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Paulo,

uma teologia
em construção
Andreas Dettwiler
Jean-Daniel Kaestli
Daniel Marguerat
(orgs.)

Paulo,
uma teologia
em construção

Tradução
Orlando Soares Moreira
Sumário

Prefácio................................................................................................. 9

Introdução............................................................................................. 11
Daniel Marguerat (Lausanne)

I
Situação da pesquisa
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e
pontos controversos subjacentes............................................................. 27
Michel Quesnel (Lyon)

II
Uma escrita em movimento
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento.......... 51
Jean-Noël Aletti (Roma)

As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de


comunicação de sua teologia.................................................................. 73
Giuseppe Barbaglio (Roma)
III
Paulo antes de Paulo
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina.................................................. 115
Karl P. Donfried (Northampton [Massachusetts], EUA)

A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão............................. 145


Rainer Riesner (Dortmund)

Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica,


ideologia imperial e cerimonial imperial................................................ 169
Neil Elliott (Minneapolis, EUA)

A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares


nas cartas incontestes de Paulo............................................................... 201
Daniel Gerber (Strasbourg)

O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo.......... 229


Elian Cuvillier (Montpellier)

IV
A Lei
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo. 243
James D. G. Dunn (Durham, UK)

Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)....................................... 267


Daniel Marguerat (Lausanne)

Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas................ 293


Jean-Pierre Lémonon (Lyon)

V
O centro da teologia paulina
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina..................... 313
Jean Zumstein (Zurique)

O presente da salvação, centro do pensamento paulino........................... 337


Udo Schnelle (Halle)
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo
como intérprete de Jesus de Nazaré........................................................ 363
François Vouga (Bethel)

VI
Paulo, o apóstolo
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida................ 385
Romano Penna (Roma)

O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina............ 413


Philippe Nicolet (Péry-Reuchenette, Suíça)

VII
Paulo depois de Paulo
A escola paulina: avaliação de uma hipótese............................................ 439
Andreas Dettwiler (Neuchâtel)

Paulo entre exegese e história da recepção.............................................. 463


Samuel Vollenweider (Zurique)

Lista das abreviaturas.............................................................................. 483

Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas............................................. 487

Índice dos autores modernos.................................................................. 509

Lista dos autores..................................................................................... 517


Prefácio

E sta obra é fruto de um programa de pesquisa (3o ciclo) do Novo Testamento


realizado no cantão de Grisões, na Suíça, em seis sessões de trabalho, de no-
vembro de 2002 a maio de 2003. Andreas Dettwiler (Neuchâtel), Jean-Daniel
Kaestli (Lausanne) e Daniel Marguerat (Lausanne) assumiram a responsabilidade
científica por essa formação de pós-graduação em ciências bíblicas. Dezoito pes-
quisadores, de diferentes nacionalidades e formações, auxiliaram os participantes
do 3o ciclo a retomar o debate sobre a teologia de uma das figuras mais marcan-
tes do cristianismo primitivo, Paulo. Mais tarde, eles contribuíram muito para a
realização desta publicação. É a eles que vão, em primeiro lugar, nossos calorosos
agradecimentos.
Várias pessoas nos ajudaram a cumprir a delicada e trabalhosa tarefa de tra-
duzir as contribuições em alemão, inglês e italiano. Agradeço a Simon Butticaz,
Cédric Fischer, Daniel Marguerat, Joanne Simon e Emmanuelle Steffek. Um
nome deve ser especialmente considerado: o de Jean-Daniel Kaestli. Ele se dedi-
cou a essa tarefa com uma solicitude e um rigor admiráveis.
Mas a satisfação dos agradecimentos não para por aí! Nicolas Friedli nos
ajudou a deixar o manuscrito pronto para imprimir. Com Emmanuelle Steffek,
ele montou os dois índices que figuram no fim do livro. Agradeço também aos
responsáveis da Comissão do 3o Ciclo em Ciências Bíblicas da Suíça romanche,
bem como às faculdades de teologia de Lausanne e de Neuchâtel por terem tor-
nado possível a publicação do livro sob a sua responsabilidade financeira.
Para terminar, algumas indicações técnicas. Para as abreviaturas dos textos da
Antiguidade nós nos baseamos nas seguintes recomendações. Os livros bíblicos

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foram abreviados segundo a TEB. Os escritos intertestamentários e os escritos
apócrifos cristãos são, em princípio, abreviados segundo as normas de La Bible.
Ecrits intertestamentaires (dir. André Dupont-Sommer, Marc Philomenko [Pléiade
337]) ou Ecrits apocryphes chrétiens (dir. François Bovon, Pierre Geoltrain [Pléia-
de 442]), os dois nas edições Gallimard de Paris. Os outros textos gregos e latinos
da Antiguidade, bem como os textos de Qumran e a literatura rabínica, foram
abreviados segundo as recomendações do Exegetisches Wörterbuch zum Neuen Testa-
ment (ed. Horst Balz, Gerhard Schneider, Stuttgart, Kohlhammer, 1980-1983,
3 v.). Para a abreviatura das revistas e das séries de monografias, consultar a lista no
fim do livro. Ela foi essencialmente elaborada com base na Theologische Realen-
zyklopädie.Abkürzungsverzeichnis (ed. Siegried M. Schwertner, Berlin/New York,
de Gruyter, 21994).

Pelos editores: Andreas Dettwiler


Neuchâtel, outubro de 2004

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Paulo, uma teologia em construção
Introdução
Daniel Marguerat (Lausanne)

A exegese de Paulo parece hoje uma cidade que um tremor de terra devastou.
Agitam-se as pessoas por todas as direções, uns avaliando os estragos, outros
verificando o que restou ainda de pé. Cada qual avalia as mudanças ainda por vir,
mas ninguém ousa ainda recomeçar, com medo de um novo abalo…
O terremoto, neste caso, foi provocado pelo aparecimento, em 1977, do livro
Paulo e o judaísmo palestino, de Ed P. Sanders1. A onda de choque foi tão forte que
ganhou, pouco a pouco, os campos mais remotos da exegese paulina. Não é um
exagero falar de um antes e de um depois de Sanders. Em todo caso, a leitura dos
trabalhos publicados sobre Paulo nos últimos 25 anos mostra que nenhum pes-
quisador pode evitar esse debate. A pesquisa deve contar agora com uma emer-
gente “nova perspectiva” sobre Paulo. Essa última designação (new perspective on
Paul) engloba uma nebulosa de trabalhos recentes, cujo ponto comum é questio-
nar o consenso na interpretação de Paulo, ao se apoiar pouco ou muito sobre o
trabalho de Sanders2.
Abalada, a exegese paulina é um canteiro no qual se anuncia, parece, uma
mudança de paradigma. Seja como for, e veremos isto, o questionamento da rela-
ção entre Paulo e a soteriologia judaica leva a redefinir a maior parte dos parâme-
tros da exegese paulina. Essa é a razão pela qual, mais que se concentrar num setor

1. Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, London, SCM, 1977.


2. A expressão new perspective on Paul é uma autodenominação desse movimento. Provém de
James D. G. Dunn, que deu esse título a um artigo de 1983, The New Perspective on Paul, repro-
duzido em Id., Jesus and the Law: Studies in Mark and Galatians, London, SPCK, 1990, 183-214.

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particular da pesquisa paulina, o programa de pesquisa cujos resultados este livro
apresenta consagrou-se à interrogação mais fundamental: Como Paulo constrói
sua teologia? Em relação a que judaísmo e sob a influência de que modelos de
pensamento greco-romanos? Além disso, constrói ele uma teologia cuja coerên-
cia é possível detectar ou é levado pelas situações que enfrenta e que o fazem
improvisar respostas contextuais? Se postulada uma coerência em sua reflexão,
que lógica está subjacente? Podemos identificar um centro, uma matriz de com-
preensão a que ligar a diversidade às vezes desconcertante das afirmações do após-
tolo? É, portanto, sobre o paradigma de compreensão da teologia de Paulo em seu
conjunto que se apoia esta pesquisa.
Cada colaborador deste livro entra em diálogo, explícita ou implicitamente,
com um aspecto da nova perspectiva sobre Paulo. O leitor, a leitora perceberão que
certas propostas são confirmadas, outros resultados são postos em dúvida e outros
francamente contrariados. Este livro não é nem um discurso de defesa, nem uma
máquina de guerra contra a nova perspectiva — apenas quer pô-la à prova. Os cola-
boradores pretendem debater esses novos estímulos, conscientes dos paradigmas a
ser revistos, satisfeitos com as questões fundamentais novamente suscitadas — a
repetição de convicções adquiridas não é excitante. Digamos que, no conjunto,
eles têm pouca inclinação a ceder a um efeito de moda. As concordâncias se darão
de modo específico, caso a caso, sem a priori.

1. A situação da pesquisa

Michel Quesnel abre a série de contribuições ao apresentar a “Situação da


pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes”. Ele
mostra a amplitude do abalo e dedica-se a identificar as novas perspectivas abertas
no campo paulino: as leituras sócio-históricas e filosóficas de Paulo, os laços entre
retórica e teologia. Mostra como são explorados os pontos de ruptura entre ju-
daísmo e cristianismo. Ressalta o que está em jogo na teologia de algumas ques-
tões disputadas, especialmente a de saber se Paulo pensa mais o humano ou o
mundo; em outras palavras, se o contexto do pensamento do apóstolo é mais an-
tropológico (é a leitura de Bultman) ou mais cosmológico, apocalíptico (é a leitu-
ra de Käsemann).

2. Uma escrita em movimento

Contrariamente à maior parte das pesquisas paulinas, que começam por re-
construir a história do apóstolo, preferimos explorar em primeiro lugar seus es-

12
Paulo, uma teologia em construção
critos. É a confissão de uma opção prioritária pela pesquisa sincrônica (o que diz
o texto expressamente?), antes que seja aberta a pesquisa diacrônica (de que his-
tória vive esse texto?).
Jean-Noël Aletti explora “A retórica paulina: construção e comunicação de
um pensamento”. Mostra-se aqui com que meios retóricos Paulo visa à melhor
comunicação epistolar: pela construção do texto (que revela sua dispositio) e pelo
empréstimo de suas referências dos dois mundos culturais acessíveis a seus leitores,
o mundo judaico e o mundo greco-romano. Aletti chega a falar de uma “retórica
do diálogo” (p. 63), pela qual o apóstolo instala uma plataforma comum com seus
contraditores, antes de lhes fazer ver as consequências lastimáveis da posição deles.
O autor conclui mostrando que a compreensão de morte de Cristo na cruz atra-
vessa a própria forma da mensagem, induzindo em Paulo a famosa retórica para-
doxal que faz a singularidade (e a dificuldade) de seu texto.
Giuseppe Barbaglio dedica-se à dimensão epistolar da comunicação paulina:
“As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua
teologia”. O caráter ocasional de sua correspondência deve ser levado em conta
numa boa exegese. Barbaglio estabelece Paulo como autor provocado (por uma
situação singular) e, por isso, provocador (que quer fazer reagir). Ele propõe a dis-
tinção entre a primeira palavra do apóstolo, em resposta à situação de seus desti-
natários, e a elaboração de uma reflexão teológica, que vem num segundo mo-
mento. Mas como distinguir o singular do permanente no pensamento de Paulo?
“Podemos falar, a propósito de Paulo, de uma teologia relativa, relativa a tal situação
dada, ao objetivo particular que persegue quando escreve sua carta e até à maneira
como ele vive sua relação com seus interlocutores. Podemos também falar de uma
teologia aberta, aberta a novos problemas e a novas hermenêuticas do Evangelho”
(p. 97). O autor conclui com a identificação do que lhe parece a perspectiva uni-
ficadora no pensamento do apóstolo: um constante esforço de hermenêutica do
Evangelho.

3. Paulo antes de Paulo

Voltemos ao abalo da exegese paulina, logo após os trabalhos de Ed P. San-


ders. Para sermos breves, digamos que Sanders ataca a imagem do judaísmo do
Segundo Templo com a qual trabalham os exegetas de Paulo e denuncia o erro de
diagnóstico deles sobre a soteriologia judaica; ela não é um legalismo, mas “um
nomismo de aliança”, no qual a Torá está subordinada à graça e não é avalista da
eleição. É errôneo, portanto, opor um Evangelho paulino da graça a uma doutrina
legalista da salvação que o judaísmo representaria. Na verdade, interrogar-se sobre

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Introdução
a imagem do judaísmo que os escritos paulinos veiculam não é uma novidade3. A
novidade em Sanders está em que ele não somente contesta a natureza legalista do
judaísmo, mas imputa esse julgamento errôneo aos intér­pretes de Paulo, mais que
ao apóstolo. Aos olhos de Sanders, Paulo defende uma soteriologia rigorosamente
semelhante à do judaísmo, a saber, um nomismo de aliança; são seus leitores que
se enganam sobre seu sistema de pensar. A única diferença entre Paulo e o judaís-
mo estaria na concepção da justiça: Paulo substitui a obediência à Torá pela salva-
ção por Cristo. Definitivamente, a conversão de Paulo o teria feito mudar de
convicção, mas o sistema de pensamento teria permanecido intacto4. É uma tese
que exige uma verificação.
Esse ataque violento levou a revisitar os testemunhos literários do judaísmo
do Segundo Templo5. O uso da dualidade Lei–Evangelho (mais luterano que pau-
lino, na verdade) para explicar o posicionamento teológico de Paulo em face da
soteriologia judaica foi posto em dúvida, na medida em que, de modo indiscrimi-
nado, reveste o judaísmo de uma negatividade legalista. Trata-se de uma reexplo-
ração do judaísmo do primeiro século que se pôs a caminho, e ela está apenas no
início. Um primeiro resultado é certamente reavaliar a cultura judaica de Paulo,
que a leitura alimentada com a exegese alemã (pensemos em Bultmann e em seus
discípulos) reduzia ao estado de vestígio cultural e religioso ultrapassado e subes-
timava em proveito da cultura greco-romana do apóstolo. Ultrapassamos o mo-
mento de tornar Paulo responsável pela ruptura entre cristianismo e judaísmo
— com o que sabemos hoje da duração desse processo e de suas variações de
acordo com as correntes do cristianismo entre 70 e 150, manter essa acusação é
dar mostra de anacronismo. Temos de adquirir uma imagem mais precisa e mais
confiável do debate de Paulo no seio do judaísmo (mas qual?), bem como dentro
da rede sociocultural do mundo romano. É então da herança, ou melhor, das he-
ranças culturais e religiosas do homem de Tarso que se deve falar.
Karl P. Donfried debruça-se sobre “1 Tessalonicenses e a cronologia paulina”.
O procedimento surpreenderá: a partir de numerosos pontos de contato entre essa

3. Claude Montefiore, em 1914, tinha afirmado que a fé judaica era mais jovial e mais nobre
do que diz Paulo, mas atribuía essa distorção ao fato de que o apóstolo tinha estado em contato
não com a corrente rabínica, mas com o judaísmo da diáspora (Judaism and St Paul: Two Essays,
London, Max Goschen, 1914). Por sua vez, Hans-Joachim Schoeps, em 1959, tinha censurado
Paulo por moralizar a Lei (Die Theologie des Apostels im Lichte der jüdischen Religionsgeschichte,Tübin-
gen, Mohr, 1959).
4. Sanders conclui: “o que Paulo acha de errôneo no judaísmo é que ele não é o cristianismo”
(Paul and Palestinian Judaism [cf. nota 1], 552).
5. O livro fundamental de Sanders foi completado por uma nova publicação: Ed P. Sanders,
Paul, the Law, and the Jewish People, Philadelphia, Fortress, 1983.

14
Paulo, uma teologia em construção
primeira epístola de Paulo e a literatura de Qumran, o autor se interroga sobre os
contatos entre Paulo e a comunidade essênia. Concluir por uma possibilidade
de contato em Damasco leva Donfried a revisitar a cronologia paulina, fazendo
voltar de 47 a 37 o início da atividade apostólica de Paulo; por isso, a redação de 1
Tessalonicenses recua dez anos e a atividade do apóstolo se desdobra numa tem-
poralidade nitidamente mais ampla do que a geralmente admitida.
Rainer Riesner revisita “A herança judaica de Paulo e os inícios de sua mis-
são”. A tese (clássica) quer que Paulo, em Damasco, tenha passado do proselitismo
farisaico ao zelo missionário em favor de Jesus. Riesner contesta com determina-
ção essa reconstrução do passado de Paulo: não dispomos de nenhum traço de
proselitismo por parte de Paulo fariseu, tampouco, aliás, de uma atividade missio-
nária desenvolvida pelo judaísmo no primeiro século. Do acontecimento de Da-
masco vem a vocação missionária de Paulo, primeiro em relação aos judeus e
depois, progressivamente, aos pagãos (segundo o cenário do livro dos Atos). Não
há, pois, como afirma Sanders, continuidade direta entre o Paulo de antes de Da-
masco e o Paulo de depois. Se sua chegada à missão foi um acontecimento pós-
pascal, não se pode negar, todavia, que o apóstolo dos gentios pôs a serviço de seu
testemunho as habilidades adquiridas durante sua formação judaica.
Que o homem de Tarso seja ao mesmo tempo filho de Israel e cidadão do
Império, situado na confluência de duas culturas, não deveria ser contestado
por ninguém. Neil Elliott explora a vertente romana: “Situar Paulo à sombra do
Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial”. O autor
situa o combate teológico paulino no contexto dos conflitos de poder que sa-
turam a vida social do Império. Interessando-se em particular pela epístola aos
Romanos, Elliot redefine o contexto dos posicionamentos do apóstolo no âm-
bito das relações de “patronato” à romana e, igualmente, diante do antijudaísmo
do aparelho imperial. Com originalidade, o autor nos convida a decodificar o
“cenário oculto” subjacente à retórica paulina. O famoso texto de Romanos
13 sobre a submissão ao Estado apresenta-se desde então como parte de uma
“estratégia ad hoc de sobrevivência numa situação de angústia, nem mais nem
menos” (p. 198).
Diz-se de Paulo, com razão, que sua teologia tinha a herança de três tradi-
ções: a judaica, a romana e a cristã. Paulo, na elaboração do querigma, foi supe-
rado: como administra ele a tradição cristã que o precede? Daniel Gerber per-
corre esse campo:“A propósito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares
nas cartas incontestes de Paulo”. Assistimos entre os primeiros cristãos a uma
“gênese explosiva” de tradições teológicas, cuja eflorescência ilustra o amplo
potencial de sentidos do acontecimento Jesus Cristo. Paulo se apoia, portanto,

15
Introdução
num dado tradicional múltiplo. Três questões guiam aqui a análise: Como se
detecta a presença de tradições pré-paulinas na redação do apóstolo? Como
qualificar o acolhimento delas por Paulo? Que intenções estão subjacentes à
retomada delas? Sobre esse último ponto, Gerber faz distinção entre a intenção
apologética (garantir uma posição “teologicamente correta”) e uma intenção
polêmica (repor a verdade).
Elian Cuvillier explora, enfim, a percepção paulina do tempo. “O ‘tempo
messiânico’: reflexões sobre a temporalidade em Paulo”. Classicamente, o debate
assim se estabelece: o pensamento de Paulo é dirigido por uma espera apocalípti-
ca do fim dos tempos (Käsemann) ou fica muito cedo livre dessa fixação sobre o
fim para refletir sobre o presente (Bultmann)? Por trás disso, vemos, faz-se uma
ponderação diferente da herança judaica (a tensão apocalíptica) ou da herança
grega (a adaptação ao presente). A partir da nova situação na exegese paulina, o
autor defende uma recusa da alternativa. O apóstolo pensa no presente da fé, mas
o pensa como um tempo messiânico marcado pelo acontecimento do Cristo.
Consequentemente, a existência crente não se fundamenta mais nas realidades
deste mundo, pois o que a constitui está posto a salvo do mundo,“em Cristo”. Há
uma tensão a salvaguardar entre o presente e o que vem.

4. A Lei

O reexame da relação entre a teologia de Paulo e a teologia do judaísmo


contemporâneo teve por efeito, suspeita-se, a questão do estatuto da Lei em
Paulo. A questão não é nova…, mas “nada é mais complexo na teologia de Paulo
do que o papel e a função que ele atribui à Lei”6. Como aliar a radiação da Lei,
do ponto de vista da salvação, à manutenção de sua função reguladora em ética,
pelo menos sob a forma do imperativo do amor? Como Paulo pode afirmar, ao
mesmo tempo, que “o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas somente
pela fé relativa a Jesus Cristo” (Gl 2,16), e sustentar peremptoriamente na carta
aos Romanos que Deus “condenou o pecado na carne, a fim de que a justiça
exigida pela Lei (to. dikai,wma tou/ no,mou) seja realizada em nós, que não anda-
mos sob o domínio da carne, mas do Espírito” (Rm 8,3.4)? De resto, do mesmo
modo que ontem, não há hoje acordo sobre o sentido de te,loj na fórmula de
Romanos 10,4 “pois o fim da lei é Cristo” (te,loj ga.r no,mou Cristo,j): ab-roga-
ção ou instauração em plenitude da Lei? Qual é, portanto, o estatuto da Torá em
regime cristão?

6. A afirmação é de James D. G. Dunn; ver abaixo p. 243.

16
Paulo, uma teologia em construção
James D. G. Dunn é fervoroso representante da new perspective on Paul7. Sua
contribuição apresenta uma boa síntese de seus resultados:“Paulo e a Torá: o papel
e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo”. De início, o autor problema-
tiza a definição de nomos (a Lei), ressaltando que Paulo não fez sempre dela o
mesmo uso. A seguir, detecta essa pluralidade de sentidos em Gálatas, 1 e 2 Corín-
tios e Romanos. Depois, ele se detém na famosa expressão “as obras da Lei”. Se-
gundo Dunn, quando o apóstolo afirma que ninguém será justificado pelas “obras
da Lei” — a expressão tem um testemunho qumraniano em 4QMMT —, ele não
nega a função salvífica da Torá como tal, mas desvaloriza a Torá em relação ao fun-
cionamento dela como sinal de identidade para Israel, como identity maker. O
combate paulino não versa, pois, sobre a natureza de salvação das obras legais, mas
sobre a função social pertinente à Lei. Na medida em que ela configura a obe-
diência, legitima, com efeito, o exclusivismo de Israel. O ponto em questão na
luta do apóstolo é o do universalismo versus o particularismo judaico e não o da
justificação pela fé versus a obediência legal. Assim, não há mais nenhum motivo
para perguntar se Paulo faz distinção na Lei entre prescrições rituais (que seriam
anuladas) e prescrições morais (que seriam mantidas como prova do amor ao pró-
ximo). Para James Dunn, Paulo é contra a Lei somente na medida em que ela se-
para judeus e pagãos.
A réplica à posição de James Dunn vem de Daniel Marguerat:“Paulo e a Lei:
a reviravolta — Filipenses 3,2–4,1”. A questão fundamental é, a seus olhos, saber
se a adesão de Paulo à fé em Cristo modificou ou não sua compreensão da Torá.
A new perspective on Paul defende a tese de uma compreensão não modificada antes
e depois de Damasco. Marguerat defende o contrário. O texto invocado como
apoio é Filipenses 3, em que o apóstolo afirma que tudo o que no farisaísmo
constituía para ele vitória (inclusive a irrepreensibilidade perante a Lei) ele consi-
dera agora “lixo” por causa de Cristo. Duas afirmações estruturam a argumenta-
ção: de um lado, está conforme à soteriologia farisaica que Paulo, antes de Damas-
co, se considere irrepreensível diante da Lei; de outro lado, a ruptura instaurada
pelo acontecimento de Damasco leva-o a dissociar entre si a outorga da graça e o
desempenho na obediência legal. O apóstolo dá mesmo testemunho, portanto, de
um deslocamento qualitativo (e não somente quantitativo, como pretende Dunn)
em sua relação com a Lei. Contra Sanders, Marguerat afirma que o “nomismo da
aliança” inclui um aspecto sinérgico que faz da obediência a necessária validação
da pertença à salvação — o gênio teológico de Paulo está em tê-lo percebido.

7. James D. G. Dunn sustentou sua tese em muitas publicações, a partir de 1983, e recentemente
numa monumental Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids, Eerdmans, 1998.

17
Introdução
Jean-Pierre Lémonon explora as múltiplas facetas do termo “Lei”: “Lei-
Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas”. Paulo é um teó-
logo pragmático; não desenvolve uma teoria da Lei, mas lhe confere diversos
papéis, segundo a conveniência de sua argumentação. A análise de Gálatas per-
mite perceber que ele distingue fundamentalmente duas funções na Lei: sua
função de Escritura, em que a Lei se faz testemunha, e seu papel de prescrito-
ra, no qual estimula as obras em que o homem põe sua confiança. Se o após-
tolo se apoia na primeira função, recusa a segunda em nome do acontecimen-
to da cruz. Para atestar a impotência da Lei para abrir as vias da justiça, Paulo
se fundamenta em sua própria experiência: “Pois é pela lei que morri para a
lei” (Gl 2,19). Não é senão pela força do Espírito que a Lei pode atingir seu
fim, que é o ágape.

5. O centro da teologia paulina

Falar de lógica ou de coerência na reflexão de Paulo leva a uma questão,


aliás, tremenda, a que não quisemos nos esquivar: a teologia paulina tem um centro,
uma sede? Em outras palavras, a teologia paulina deriva de uma estrutura funda-
mental, que cada conflito com que o apóstolo está comprometido leva a atualizar,
ou Paulo, em virtude das questões que deve resolver, é levado a elaborar respostas
contextuais? O pensamento do apóstolo se organiza em torno de um núcleo pri-
mário ou se constrói ao sabor das exigências da situação?
Hoje, o debate está aberto. De um lado, temos aqueles para quem Paulo é
um teólogo reativo, pastor e polemista, mais que teólogo sistemático; seríamos
tentados a dizer: sua teologia da cruz teria sido elaborada como reação à espiritua-
lidade entusiasta de Corinto, ao passo que a justificação pela fé seria a réplica cir-
cunstancial à crise desencadeada na Galácia e em Filipos por uma pregação de
tipo nomista. Na melhor das hipóteses, o pensamento de Paulo pode ser apresen-
tado em seu fracionamento, uma carta após a outra, como uma teologia feita de
esboços circunstanciais8. De outro lado, os defensores da ideia de um princípio
unificador na reflexão de Paulo não depõem as armas, quer se trate de reagrupar
seu pensamento em torno de uma teologia da cruz9, em torno de uma matriz de
pensamento apocalíptico que gera como categorias exteriores os conceitos de

8. É a posição defendida por Giuseppe Barbaglio em sua imponente monografia La teologia di


Paolo. Abbozzi in forma epistolare, Bologna, Dehoniane, 1999.
9. Assim Jürgen Becker, Paulus, Der Apostel der Völker,Tübingen, Mohr, 1989. Ed. fr.: Paul, l’apôtre
des nations, Paris/Montréal, Cerf/Médiaspaul, 1995.

18
Paulo, uma teologia em construção
justificação e de reconciliação10, quer a partir de um sistema de convicção subja-
cente às formulações continuamente mutantes de Paulo11. Lembremo-nos de que,
em 1930, Albert Schweitzer causou celeuma ao situar o desempenho teológico
do apóstolo numa desapocalipsização da mensagem de Jesus e na reorganização
do querigma em torno da mística do “estar em Cristo”12.
Mais recentemente, o debate ficou exaltado pelo forte ataque de um defen-
sor da new perspective on Paul, Heikki Räisänen13. Para esse exegeta finlandês, é
inútil perscrutar o discurso do apóstolo em busca de uma coerência. Paulo não
pensa como um sistemático, e Räisänen toma como prova disso o que ele chama
de ilogismo do discurso sobre a Lei: ora a Lei é considerada uma totalidade, ora é
reduzida às prescrições morais; ora é ab-rogada, ora mantida para os cristãos; ora
ninguém pode cumpri-la, ora os pagãos podem satisfazer a ela; ora o poder do
pecado no mundo é atribuído à queda de Adão, ora à própria Lei; ora se diz que a
Lei é dada para a vida, ora se diz que produz a morte… Em resumo, Räisänen
rejeita qualquer consistência no pensamento de Paulo; a única lógica que lhe
concede é um “prejulgamento cristológico”14. Diz ele: “O ponto de partida do
pensamento de Paulo com referência à Torá é o acontecimento Cristo, e não a
Lei”15. Se ninguém lhe contestar essa valorização do postulado cristológico, nin-
guém partilhará sua opinião quando considera que os julgamentos discordantes
do apóstolo são outras tantas racionalizações secundárias de um ponto de vista
fundamentalmente ideológico. Para Räisänen, definitivamente, Paulo é um teólo-
go que tenta racionalizar sua experiência subjetiva de crente, mas que é malsuce-
dido nesse processo de racionalização porque sua relação com a tradição judaica
foi perturbada pelo princípio cristológico.
A questão subjacente à provocação de Räisänen é evidentemente saber que
definição damos da “lógica”. De modo mais preciso, de que tipo de lógica o exe-
geta se prevalece quando lê Paulo? Que sistemática exigir do apóstolo? Se quiser-
mos fazer um mapa dos caminhos de sua reflexão, teremos de refletir sobre a re-
tórica do paradoxo e do excesso de que o apóstolo faz um uso voraz. O uso da

10. Assim J. Christian Beker, para quem a reconciliação e a justificação são categorias de super-
fície alimentadas por uma leitura apocalíptica da história: Paul the Apostle: The Triunph of God in
Life and Thought, Philadelphia, Fortress, 1980.
11. Daniel Patte, Paul’s Faith and the Power of the Gospel: A Structural Introduction to the Pauline
Letters, Philadelphia, Fortress, 1983. Ed. fr.: Paul, sa foi et la puissance de l’Evangile, Paris, Cerf, 1985.
12. Albert Schweitzer, Die Mystik des Apostels Paulus, Tübingen, Mohr, 1930.
13. Heikki Räisänen, Paul and the Law, Tübingen, Mohr, 1983 (Wunt 29), ou Philadelphia,
Fortress, 1986.
14. Ibid., 150, 187.
15. Ibid., 201.

19
Introdução
tensão, do paradoxo ou da antinomia denota certamente rupturas, até uma recusa
de pensar por alternativas difíceis, mas não trai necessariamente uma ausência de
coerência16. Além disso, convém perguntar se a dualidade “unidade ou fracio­
namento” não foi posta de modo muito rígido: um teólogo como Paulo não
exige que seus leitores avancem com uma dialética mais aprimorada entre os dois
polos da coerência e da contingência?17
Foi a fim de enfatizar esse desafio que apresentamos a três exegetas a mesma
questão: Onde se situa, em sua opinião, o “centro” da teologia paulina? Falar de
centro buscava evitar a cilada das categorias endurecidas, como “sistemática”, “ló-
gica” ou “unidade”.
Primeira proposição. Jean Zumstein: “A cruz como princípio de constitui-
ção da teologia paulina”. O autor desiste de descrever uma evolução do pensa-
mento paulino, tendo em vista as incertezas que pesam sobre a cronologia das
cartas. Contesta a ideia de uma reflexão puramente circunstancial em Paulo, na
medida em que a gestão de uma crise implica a presença de um pensamento per-
filado e hermeneuticamente operatório. É, por conseguinte, o princípio herme-
nêutico posto em prática pelo apóstolo por meio de crises inopinadas que se trata
de investigar. Com exceção das formulações tradicionais utilizadas pelo apóstolo,
sua linguagem própria investiu na argumentação uma semântica da cruz. ­Zumstein
mostra então que a cruz funciona como ponto de referência na argumentação de
Paulo e que ela alimenta o ensinamento sobre a justificação. A palavra da cruz
revela-se portadora de um juízo sobre o mundo, revela-se como o lugar de uma
imagem surpreendente de Deus e como o veículo de uma salvação de alcance
universal.
Segunda proposição. Udo Schnelle:“O presente da salvação, centro do pen-
samento paulino”. Para Schnelle, o ponto de partida é o acontecimento de
­Damasco e o ganho de conhecimento (teológico, cristológico, soteriológico)
que provoca essa agitação da existência de Paulo. Ora, o que acontece lá? “Paulo
vive a experiência de Damasco como uma participação no acontecimento crís-

16. O apóstolo dos gentios adora empregar o paradoxo: é pela loucura da cruz que Deus confun-
de a sabedoria do mundo (1Cor 1,21); Cristo se fez maldição por nós, a fim de que nos chegue a
bênção de Abraão (Gl 3,13-14); Deus o fez pecado a fim de que por ele nos tornemos justiça de Deus
(2Cor 5,21). A via que propõe Jean-Noël Aletti é a observação dos escritos de Paulo e de seus
procedimentos retóricos (ver sua contribuição mais abaixo, p. 51-71, e seu artigo Où en sont les
études sur saint Paul?, RSR 90 [2002] 348-350).
17. Pode-se ler com proveito a reflexão de J. Christian Beker sobre a necessária dialética que se
deve manter entre coerência e contingência: Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?, NTS 34
(1988) 364-377.

20
Paulo, uma teologia em construção
tico: ele é herdeiro de uma identidade nova, que o obriga a reestruturar sua visão
dele mesmo e do mundo” (p. 346). A descoberta fundamental para o homem de
Tarso é que o Espírito de Deus age de novo depois da ressurreição de Jesus. A
estrutura fundamental que comanda desde então a reflexão de Paulo pode ser
enunciada pela fórmula “transformação e participação”: a transformação de
Cristo, revelada na ressurreição, faz o crente passar da morte para a vida, introdu-
zindo-o num ser novo. O rito batismal exerce, a esse respeito, um papel de cris-
talização do acesso à identidade nova, e a pneumatologia se anuncia como o
princípio unificador do pensamento paulino. Percebe-se aqui como que um eco
das teses de Albert Schweitzer.
Terceira proposição. François Vouga:“A verdade do Evangelho e a nova cria-
ção: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré”. Toda a reflexão desse
autor gira em torno da questão da verdade e de seu estatuto. Aos olhos de Paulo,
a passagem da mentira à verdade resulta de uma mudança de ponto de vista sobre
a personalidade de Jesus de Nazaré. Mas essa mudança não é referida pelo apósto-
lo à vida ou às palavras do Nazareno; ou, segundo Vouga, paradoxalmente, o de-
sinteresse do apóstolo pela tradição de Jesus não impede que ele seja “o teólogo
que justificou com mais acuidade a significação da obra e da pessoa de Jesus”
(p. 371). Com efeito, pelo conceito de “cruz”, Paulo interpreta o duplo aconteci-
mento da morte e da ressurreição de Jesus como uma manifestação do poder
transformador de Deus presente no Evangelho. Há, pois, como defesa da nova
criação, continuidade teológica e antropológica entre Jesus e o apóstolo dos gen-
tios. O fruto da verdade é essa nova criação.

6. Paulo, o apóstolo

Não cometeremos aqui o equívoco de ver Paulo como um teólogo de gabi-


nete. Seja qual for a posição adotada sobre a questão da coerência de seu pensa-
mento, ninguém pensaria em negar que Paulo foi um teólogo de combate, o ar-
tesão de uma estratégia missionária de sucesso, o pastor consultado pelas
comunidades que ele fundou. Há vinte anos, a dissertação de Axel von Dobbeler18
protestava com razão contra a tendência a intelectualizar os conceitos operatórios
de que se serve o apóstolo; ele defendia especialmente uma aproximação do con-
ceito de fé (pi,stij) que integra tanto a adesão individual ao querigma como a

18. Axel Von Dobbeler, Glaube als Teilhabe. Historische und semantische Grundlagen der pauli-
nischen Theologie und Ekklesiologie des Glaubens, Tübingen, Mohr-Siebeck, 1987 (Wunt
II/22).

21
Introdução
integração numa comunidade e a acolhida do Espírito. Não se trata, portanto, de
criar uma situação difícil sobre essa dimensão da atividade de Paulo constituída
pelo contexto de sua reflexão. Duas contribuições exploram a dimensão eclesio-
lógica da ação de Paulo e sua compreensão do apostolado.
Romano Penna apresenta “São Paulo, pastor e pensador: uma teologia im-
plantada na vida”. É, de um outro modo, retomar a questão da coerência da ma-
neira de pensar paulina. O apóstolo não aborda de modo estereotipado as ques-
tões postas por suas comunidades.Ao contrário, ele procura formular o Evangelho
em expressões novas, deixando-se impregnar pela situação eclesial que encontra.
Cinco pontos particulares permitem verificar a maneira de pensar: a morte dos
cristãos antes da parusia (1Ts 4), as divisões da Igreja (1Cor 1–4), a relação do
antigo com o novo (2Cor 3), a humildade de Jesus e dos cristãos (Fl 2) e o proble-
ma da Lei em sua relação com a fé (Gálatas). O princípio diretor é o anúncio do
Evangelho como formulado em Romanos 1,14-17.
“O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina” é anali-
sado por Philippe Nicolet. Em 1 Tessalonicenses 1,6 Paulo convida os tessaloni-
censes a uma imitação de sua resistência no sofrimento, que fará deles os imitado-
res de Cristo. Em 1 Coríntios 4,16 e 11,1 é a uma mimese no seio dos conflitos
que o apóstolo convoca os cristãos. Em Filipenses 3,17 trata-se de imitar Paulo
diante da tentação da justiça legal. O apelo à imitação pressupõe um estatuto forte
do apóstolo e um sinal de sua autoridade nas comunidades que ele fundou. Jamais,
porém, Paulo se apresenta como modelo de força; trata-se, ao contrário, de assu-
mir a fraqueza humana, a fraqueza que os tessalonicenses temem, que os coríntios
tendem a negar e da qual os filipenses se propõem escapar.

7. Paulo depois de Paulo

Pareceu oportuno, afinal, abrir (um pouco) o campo da aceitação dos escri-
tos de Paulo. O apóstolo das nações, com efeito, não ficou sozinho por muito
tempo, se assim podemos dizer. O sucesso de uma literatura deuteropaulina
— Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses — e das epístolas pastorais, ordenadas
sob a autoridade do apóstolo e em seu nome, não mostra somente como os adep-
tos do apóstolo compreenderam a missão da teologia após a morte do mestre; a
grande diversidade manifestada por essa literatura mostra o grande potencial de
sentido próprio dos escritos protopaulinos19. A esse respeito, a história da acolhida

19. Reunimos sob a designação “protopaulinos” os sete escritos que a crítica atribui sem hesita-
ção à autoria de Paulo: Romanos, 1-2 Coríntios, Gálatas, Filipenses,Tessalonicenses e Filêmon. Esses

22
Paulo, uma teologia em construção
não deve ser vista como um apêndice da pesquisa histórico-crítica, mas como um
observatório privilegiado das primeiras interpretações de um escrito, que faz ver
claramente suas potencialidades.
Andreas Dettwiler estuda a noção de escola paulina. Sua intenção é testar a
hipótese, defendida desde o século XIX, de uma escola que cuida da perpetua-
ção e da atualização do pensamento do grande apóstolo. Se considerada a exis-
tência de escolas filosóficas na Antiguidade, a hipótese é plausível. A noção, toda-
via, deve ser definida com sutileza: a eventualidade de várias escolas, ou de
“classes” diferentes na mesma escola, deve ser reservada; ela permite nos darmos
conta da rica diversidade que caracteriza a acolhida da figura e do pensamento
do homem de Tarso.
Samuel Vollenweider situa “Paulo entre exegese e história da recepção”.
Num vaivém esclarecedor entre as primeiras recepções de Paulo e as mais recen-
tes interpretações da teologia paulina,Vollenweider destaca três eixos: Paulo acei-
to como uma figura ecumênica; Paulo entendido como um homem inserido na
cultura do seu tempo; Paulo em seu judaísmo. Observe-se que bem cedo, desde o
século II, a exegese do texto paulino foi um lugar de controvérsias teológicas em
que cada qual reivindicava a posse do “autêntico Paulo”.
No fim do percurso, o que desejar para este livro senão que leve leitores e
leitoras a continuar a conversa com esse grande homem, São Paulo, cuja teologia
exerceu um papel fundamental na fixação da identidade cristã? No século IV,
João Crisóstomo já o percebia e se angustiava: “Sofro e fico triste com a ideia de
que nem todos conhecem esse homem como deveriam, de que alguns o igno-
ram a ponto de não conhecerem exatamente o número das epístolas. E isso não
por falta de instrução, mas por falta de não querer se relacionar regularmente
com esse bem-aventurado. Pois tudo o que nós sabemos, se é que acaso sabemos
alguma coisa, nós não o aprendemos graças às qualidades e ao vigor de nosso
espírito, mas sim no trato contínuo com esse homem e no profundo afeto que
temos por ele”20.

escritos constituem o campo literário atribuído ao conjunto dos contribuidores deste livro. A fim
de não criar distorção entre as contribuições, foi decidido não entrar no mérito sobre a eventual
atribuição a Paulo deste ou daquele escrito cuja autenticidade uma parte dos pesquisadores defende
(por exemplo, 2 Timóteo).
20. João Crisóstomo, Prologue du commentaire de l’épître de Paul aux Romains, in Jean Chrysostome
commente saint Paul [Les Pères dans la foi], trad. Jacqueline Legée, Raymond Winling, anot. e plano
de trab. A. Hamman, Paris, Desclées de Brouwer, 1988, 19.

23
Introdução
I

Situação da pesquisa
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em
debate e pontos controversos subjacentes
Michel QUESNEL (Lyon)

Dominadas há 25 anos pelos trabalhos sobre as relações entre Paulo, a lei e o judaísmo, as
pesquisas atuais sobre o corpus paulino dedicam-se também à abordagem dos textos com
novas chaves de leitura: sócio-históricas, filosóficas, retóricas. A abordagem não é mais apenas
histórica e teológica. Em tal situação, os pesquisadores têm interesse em cruzar suas compe-
tências e em abordar os textos sem se deixarem influenciar por sua pertença confessional. Ler
Paulo em comum pode contribuir para o diálogo ecumênico e inter-religioso, bem como favo-
recer o debate entre atitude crente e agnosticismo.

P aulo está na moda, não somente entre os pesquisadores, mas também entre o
grande público. Uma das razões desse interesse é provavelmente que a pes-
quisa sobre Paulo, depois de cerca de 25 anos, agitou-se bastante e que, de artigos
de revistas em diversas publicações, alguma coisa dessa onda de forte amplitude
chegou a ultrapassar as muralhas dos seminários e universidades. De fato, não é
exagero afirmar que a exegese paulina “parece hoje uma cidade que um tremor
de terra devastou”1. Não seria necessário estender muito a imagem para conce-
ber uma apresentação da situação atual da pesquisa paulina como o trabalho de
um cão policial tentando extrair das ruínas algum corpo ferido ou algum objeto
de valor; ou como o de um trator pronto a arrastar o entulho. A zona sinistrada
está em obras; canteiros se abriram; alguns setores já estão em reconstrução. É

1. A frase é de Daniel Marguerat; ver acima p. 11.

27
preciso levar tudo isso em consideração para apresentar a situação de maneira in-
teligível, evitando os perigos, dos quais dois são fáceis de encontrar.
Continuando na imagem do abalo sísmico, poderíamos dizer que um pri-
meiro perigo seria sobrevoar de helicóptero as ruínas e as oficinas de reconstru-
ção, ou, para voltar à exegese paulina, dar forma a um panorama de questões em
debate. Elas são muito numerosas. Seria mais ou menos equivalente a montar o
quadro de matérias de um grande livro que estaria para ser escrito; ou, para ficar
mais modesto em suas ambições, comentar o plano deste livro. Quase não se vê o
interesse do empreendimento.
Um segundo perigo seria centralizar o assunto sobre o mais vivo debate
— o epicentro do terremoto —, que é ao mesmo tempo aquele cujas questões
teológicas parecem mais importantes, a saber, Paulo e a lei, Paulo e o judaísmo.
Mas existiria então o risco de aumentar com outros estudos este volume, sem
contar que, dada a delicadeza da questão, haveria certa presunção ao pretender
esgotar sua complexidade em algumas páginas.
Depois de refletir, pareceu-nos razoável e — esperemos — fecundo desen-
volver quatro operações numa ordem lógica, cada uma delas assumida em torno
de um verbo que exprime sua dinâmica. Os termos-chave e as imagens valem o
que valem! Não podemos ser ingênuos. Todavia, damo-nos esses meios não para
facilitar a tarefa, mas para tornar sua apresentação menos complexa.
Em primeiro lugar, situaremos as questões mais debatidas, especialmente as
teológicas, no conjunto do canteiro de obras paulino, pois de atingido não há se-
não o epicentro! É conveniente abrir o olhar sobre um panorama mais amplo do
que aquele para o qual se volta espontaneamente. Numa segunda etapa, dedicar-
nos-emos a estabelecer ligações entre as questões em debate, mostrar como umas
invocam as outras. Com as avenidas da cidade sinistrada cobertas de entulho, qua-
se não sabemos mais ir de um quarteirão a outro; todavia, é da mesma cidade que
se trata. É preciso ter o cuidado de articular entre eles os assuntos debatidos. Um
terceiro tempo será consagrado ao exame de uma das maiores falhas sísmicas, a
saber, a linha de fratura que Paulo desenha entre judaísmo e cristianismo: Em que
fundamenta ele a diferença? Há paradigmas, modelos que permitam captar as
grandes intuições de Paulo sobre o assunto? O verbo que então vem à mente é
“paradigmatizar”; há o inconveniente de não ser francês. Se quiséssemos evitar os
barbarismos, preferiríamos identificar, mas é menos sugestivo. Enfim, abandonando
as falhas sísmicas e permanecendo no mundo justificado em Jesus Cristo, explora-
remos alguns setores atingidos e fragilizados, digamos algumas quaestiones disputa-
tae de temas significativos, nas quais inevitavelmente faremos uma seleção. Será o
verbo ressaltar que reservaremos para essa quarta e última operação. Ela poderia se

28
I – Situação da pesquisa
estender bem mais além do que haveremos de desenvolver, pois a lista das ques-
tões debatidas em exegese paulina é muito longa.
Uma última observação introdutória antes de ir mais além no assunto: nas
três últimas partes, sobretudo nas duas últimas, a problemática contida será muitas
vezes bipolar, formulada, portanto, em termos de oposição — por exemplo, fé
versus lei ou antropologia versus cosmologia. Pode-se criticar esse modo de proce-
der. Poderíamos acusá-lo de favorecer uma leitura excessivamente hegeliana de
Paulo. A censura merece ser entendida. Dito isso, parece haver uma dupla justifi-
cativa para esse procedimento. Em primeiro lugar, o próprio pensamento paulino
se estrutura muitas vezes opondo dois lexemas. Além disso, os debates em curso se
apoiam principalmente sobre o modo como essas oposições merecem ser com-
preendidas. Mas não poderíamos negar que pode haver maneiras muito diferentes
de proceder, também elas legítimas2.

1. Abrir a pesquisas sobre Paulo não propriamente


exegéticas ou teológicas

O canteiro de obras paulino, em pleno desenvolvimento nas faculdades cris-


tãs de teologia, é também muito ativo fora das faculdades de teologia, no conjun-
to do mundo universitário. Antes de abordar a pesquisa em curso sobre a exegese
e a teologia paulinas, é importante situá-lo num campo mais amplo de novas lei-
turas feitas em outras disciplinas e com outros métodos.
O domínio que nos vem espontaneamente ao pensamento é o das leituras
judaicas de Paulo, algumas das quais têm já uns trinta anos. Elas apresentam ainda,
todavia, certo caráter de novidade, na medida em que, no debate — para não dizer
na oposição secular — entre judeus e cristãos, o pensamento paulino constitui o

2.Vários estudos em francês descrevem as pesquisas em andamento sobre Paulo. Nós as citamos
em ordem cronológica, como para o conjunto de nossas indicações bibliográficas; os pesquisadores,
com efeito, em geral leem-se uns aos outros; trajetórias de pesquisa se esboçam. Odette Mainville,
La justification par la foi et la foi dans les études pauliniennes contemporaines, in Michel Gour-
gues, Léon Laberge (éd.), “De bien des manières”. La recherche biblique aux abords du XXIe siècle:
actes du Cinquantenaire de L’Acebac (1943-1993), Paris, Cerf, 1995, 365-390 (LeDiv 163); Jacques
Schlosser (éd.), Paul de Tarse: Congrès de L’Acfeb, Paris, Cerf, 1996 (LeDiv 165); Elian Cuvillier,
La recherche paulinienne: quelques travaux récents, ETR 75 (2000) 391-394; Dossiê: Saint Paul,
relectures et nouvelles lectures, RSR 90 (2002) 323-422 (artigos de Jean-Noël Aletti, David Neu-
haus, Timo Eskola, Luigi Padovese). Pode-se observar também o interesse do Bulletin paulinien,
publicado a cada dois anos por Jean-Noël Aletti em RSR (começamos aqui pelos fascículos mais
recentes): 89 (2001) 113-135; 87 (1999) 77-105; 85 (1997) 85-112; 83 (1995) 97-126; 81 (1993)
275-298; 79 (1991) 37-56; 77 (1989) 113-135 etc.

29
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
principal pomo de discórdia, bem mais que o ensinamento de Jesus. Aqui, apenas
lembramos o fato, pois as leituras judaicas de Paulo serão novamente abordadas a
propósito de questões relativas ao que é a Lei para Paulo3. De preferência, é a dois
outros tipos de leitura que gostaríamos de consagrar algumas linhas.

1.1. As leituras sócio-históricas e políticas

As leituras sócio-históricas das epístolas paulinas não são propriamente no-


vas. Conhecemos todos os trabalhos de Theissen e as páginas que consagrou à
sociologia das Igrejas paulinas desde 19744. Menos encontradiços no meio fran-
cófono, mas mais sistemáticos, são os trabalhos de Meeks, cujas análises defendem
a tese de que as comunidades paulinas se estruturam segundo os modelos admi-
nistrativos das cidades do Império Romano5. Uma exposição e um balanço dessas
abordagens foram redigidos em 1995 por Beaude6, e os estudos desse tipo conti-
nuam. A partir de então, teríamos de citar pelo menos os nomes de Ekkehard e de
Wolfgang Stegemann7, bem como o de Ascough8.

3. Por ordem cronológica: Schalom Ben Chorin, Paul: un regard juif sur l’Apôtre des Gentils, Paris,
Desclée de Brouwer, 1999 (ed. orig. al.: München, 1970); Alan F. Segal, Paul, the Convert: the Apos-
tolate and Apostasy of Saul the Pharisee, New Haven/London, Yale University Press, 1990; Jacob
Taubes,La théologie politique de Paul: Schmitt, Benjamin, Nietzsche, Freud (Traces écrites), Paris,
Seuil, 1999 (ed. orig. al.: München, 1993); Daniel Boyarin, A Radical Jew: Paul and the Politics of
Identity, Berkeley, University of California Press, 1994. Jacob Taubes é judeu, mas o interesse de sua
leitura é principalmente filosófico.Ver abaixo.
4. Gerd Theissen, Histoire sociale du christianisme primitif: Jésus — Paul — Jean, Genève, Labor et
Fides, 1996, 161-208 (Le Monde de la Bible 33) (os estudos consagrados a Paulo remontam, para
o mais antigo, a 1974).
5. Wayne A. Meeks, The First Urban Christians: the Social World of the Apostle Paul, New Ha-
ven/London,Yale University Press, 1983.
6. Pierre-Marie Beaude, Le travail de Paul sur les modèles d’appartenance socioreligieux et
sociopolitiques, in Jacques Schlosser (éd.), Paul de Tarse (cf. nota 2), 139-146. Esse panorama foi
traçado por ocasião de um congresso da ACFEB em Strasbourg, em 1995.
7. Ekkehard W. Stegemann, Wolfgang Stegemann, Urchristiche Sozialgeschichte. Die Anfänge im
Judentum und die Christusgemeinden in der mediterranen Welt, Stuttgart/Berlin/Köln,
­Kohlhammer, 1995 (ed. ingl.: Minneapolis, 1999). Esse estudo se baseia na composição social das
comunidades cristãs do século I. Nas páginas sobre as comunidades paulinas, a tese defendida é que
Paulo é de extração social relativamente modesta e que as comunidades que ele fundou foram re-
crutadas nas classes intermediárias da vida urbana, salvo as extremas (nem a aristocracia urbana, nem
o subproletariado).
8. Richard S. Ascough, What are They Saying About the Formation of Pauline Churches, New York,
Paulist Press, 1998. O autor dá início a um trabalho de sociologia religiosa sobre as condições de
vida das cidades evangelizadas por Paulo, a fim de determinar os modelos que serviram para cons-
tituir as comunidades da Igreja. O ponto de vista que ele defende é que o modelo das administra-

30
I – Situação da pesquisa
Essas leituras devem ser situadas no contexto mais amplo do que chamamos
às vezes de leituras contextuais, compreendendo a palavra “contexto” no sentido
de meio de produção e não de meio leitor atual. Elas são a emergência do método
histórico-crítico nas leituras sincrônicas. O objetivo que se propõem não é tanto
— como nas leituras histórico-críticas — aclarar os textos com dados externos
reveladores do estatuto social de Paulo e das comunidades às quais ele escrevia,
mas, na coerência das leituras sincrônicas, determinar a condição sociopolítica do
autor implícito e do leitor implícito9.
Tudo isso não é muito novo, como já observamos. O que é novo é o ritmo
em que se apresentam as leituras desse tipo, bem como a perspectiva que se sente
delinear em alguns lugares, não a de acrescentar essas leituras a outras, mas a de
privilegiá-las mais que outras. Pretendem alguns exegetas exprimir a convicção
de que é preciso “desdogmatizar” ou “desteologizar” Paulo em proveito de leitu-
ras político-sociais, como se os debates sobre a teologia paulina tivessem, pelos
impasses a que levam, de certo modo se desqualificado. Esse ponto de vista é re-
presentado sobretudo nas universidades dos Estados Unidos. Assume diversas for-
mas, de acordo com os setores nos quais sente a necessidade de um esclarecimento
urgente — assim questões como Paulo e a escravidão, Paulo e as mulheres, cujas
publicações são incontáveis.
Tais perspectivas, sobretudo se se tornam exclusivas, certamente não estão
isentas de pressupostos. Todavia, é útil saber que elas existem, sobretudo quando
nos lançamos em discussões muito acesas de teologia paulina.

1.2. As leituras filosóficas

As leituras de Paulo feitas pelos filósofos, com frequência ateus, estão, mais
que as anteriores, em diálogo com a teologia. Que eu saiba, elas se desenvolveram
mais na Europa que na América. A partir de Nietzsche, que denunciava o modelo
de cristão sub-homem proposto pelo Apóstolo, outros nelas se aventuraram. Os

ções urbanas desempenhou decerto um papel (ver Wayne A. Meeks, The First Urban Christians [cf.
nota 5]), mas também as famílias, as sinagogas, as escolas filosóficas, os grupos religiosos, como os
cultos de mistérios, e as associações voluntárias, como as thiases.
9. O termo “implícito” é consagrado pelo uso para traduzir o inglês implied. Sem dúvida, seria
melhor traduzir por “autor envolvido”, ou “leitor envolvido”. Uma tradução bastante satisfatória é
também “autor construído” ou “leitor construído”; bem entendido: construído pelo texto.

31
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
nomes de Breton10, Badiou11,Taubes12, Franck13, Agamben14, sem esquecer páginas
de Paul Ricoeur, são aqui os que se impõem15.
Esses filósofos, pouco numerosos, leem uns aos outros, os últimos preten-
dendo precisar ou corrigir o pensamento de seus antecessores. Elabora-se então
um pensamento em diálogo. Podemos assim, se nos permitirem tais classificações,
necessariamente redutivas, distinguir duas linhagens principais. Existe uma linha-
gem Breton/Badiou/Agamben, que trabalha sobre as estratégias argumentativas
de Paulo e sobre o paradigma de um cristianismo universalista.Voltaremos a isso.
Ela pode dar uma grande contribuição para a análise do fenômeno da proclama-
ção presente nas epístolas, bem como para fazermos uma ideia melhor da força
moral da soteriologia paulina.

10. Stanislas Breton, Saint Paul, Paris, PUF, 1988 (Philosophies 18). O autor é um filósofo cris-
tão, padre católico. Um exegeta tem dificuldade em se reconhecer em seus pressupostos, na medida
em que o autor não faz a distinção entre epístolas protopaulinas e deuteropaulinas e mistura o
testemunho das epístolas com o dos Atos dos Apóstolos. Todavia, encontram-se nele boas páginas
sobre a alegorização da Escritura judaica como peça mestra da argumentação paulina, bem co-
mo sobre a cosmologia paulina, alimentada na cultura helenística.
11. Alain Badiou, Saint Paul: la fondation de l’universalisme, Paris, PUF, 1997(Les essais du Collège
international de philosophie). Sobre os escritos paulinos Badiou tem um olhar de filósofo ateu.
Segundo ele, a ressurreição é o genuíno acontecimento sobre o qual Paulo fundamenta todo o seu
pensamento (acontecimento que Badiou considera, todavia, uma ficção). Segundo ele, o pensa-
mento de Paulo se articula em torno de três conceitos, dos quais dois — o uno e o universal — se
opõem ao terceiro: o particular. Essa obra é, sem dúvida, uma das que mais marcaram a reflexão
sobre o paulinismo no meio francófono nos últimos anos.
12. Jacob Taubes, La théologie politique de Paul (cf. nota 3). Esse estudo é principalmente uma
leitura da epístola aos Romanos, epístola que é, segundo Taubes, uma declaração de guerra ao Im-
pério Romano. Ele também estuda Paulo como fonte de correntes teológicas e filosóficas poste-
riores: Marcião, Harnack, Barth, Nietzsche, Freud. Notemos a proximidade de seu pensamento ao
de Neil Elliott, colaborador deste livro.
13. Didier Franck, Nietzsche et l’ombre de Dieu (Epiméthée), Paris, PUF, 1998, 55-118.Ver tam-
bém o relatório detalhado dessas páginas redigidas por Michel Berder, Didier Franck, lecteur de
saint Paul, Transversalités 83 (jul. 2002) 105-118. Didier Franck faz reflexões importantes sobre a
função antropológica do corpo em Paulo: considera que o corpo glorioso da Ressurreição favore-
ceu a entrada do Deus bíblico na metafísica.
14. Giorgio Agamben, Le temps qui reste: un commentaire de “l’Epître aux Romains”, Paris,
Payot & Rivages, 2000 (Bibliothèque Rivages). Stricto sensu, o livro de Agamben é um comentário
filosófico de Romanos 1,1. Mas o comentário faz uma leitura quase completa da epístola. Duas
intuições principais a orientam. A primeira: no lugar de um universalismo vago, Paulo põe uma
“ruptura da particularidade”; seríamos tentados a dizer “uma ruptura da ruptura”. A segunda: o
tempo messiânico consiste numa presença crística no “agora” (o` nu/n kairo,j), que contrai o passado
e o presente por uma imbricação dos éons.
15. Notar, a esse propósito, a publicação recente de um dossiê coletivo consagrado às leituras
filosóficas de Paulo: L’événement saint Paul: juif, grec, romain, chrétien, Esprit 292 (fev. 2003) 64-
124 (artigos de Stanislas Breton, Michaël Foessel, Paul Ricoeur, Jean-Claude Monod).

32
I – Situação da pesquisa
A outra, a linhagem Nietzsche/Taubes/Franck, reflete principalmente a
partir da concepção paulina do corpo, como corpo físico e como corpo social. As
reflexões que ela suscita apoiam-se principalmente sobre a antropologia paulina,
um setor ainda relativamente pouco estudado pelos exegetas, sem dúvida porque
lhes falta ferramenta conceitual para fazê-lo. A contribuição dos filósofos nesse
domínio pode, então, se revelar de grande utilidade16.

2. Articular os pontos debatidos

As leituras dos filósofos questionam, portanto, as leituras teológicas das cartas


paulinas. Se nos aventurarmos agora mais além na disciplina teológica, constatare-
mos que as questões atualmente debatidas sobre o corpus paulino são delicadas e
tão numerosas que na maioria das vezes são trabalhadas em separado. A exegese
especializada não pode mais se dizer especialista de Paulo, mas de tal aspecto do
pensamento paulino. Estabelece-se então uma inevitável divisão em setores, que
traz o risco de fazer perder de vista o conjunto das questões levantadas. Mais que
compor uma síntese dos pontos debatidos — o que seria impossível —, convém
articulá-los uns com os outros. Tomaremos aqui dois exemplos formulados em
termos de elementos coordenados, para os quais o ponto alto da declaração estará
na conjunção coordenativa “e”.

2.1. Retórica e justificação

O novo olhar que os exegetas lançam sobre a justificação segundo Paulo,


bem como sobre a relação que o Apóstolo estabelece entre fé e lei, não é somente
a consequência do trabalho sobre a concepção que Paulo tem do judaísmo. É
devido em grande parte à leitura retórica das cartas paulinas, principalmente da
epístola aos Romanos. Um exemplo célebre é dado por Romanos 7 e pela leitura
luterana de Romanos 7,15-16, que Lutero comentava com o célebre simul justus
et peccator. Eis a tradução do texto de Lutero:
(7,16) Ora, se faço, pela carne, o que não quero, pelo Espírito, [ou seja, o
que eu não quero] cobiçar, estou de acordo com a lei [e reconheço] que
ela é boa. Pois, como ela, eu quero o bem, ela que diz: “Não cobiçarás”. É por

16. Ao escrever isso, prestamos homenagem, todavia, ao mais importante estudo sobre o assunto:
John A.T. Robinson, Le corps: étude sur la théologie de Saint Paul, Lyon, Ed. du Chalet, 1966 (1a ed.
ingl.: London, 1952). Prestou grandes serviços, mas deverá ser reescrita.

33
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
isso que eu sou ao mesmo tempo pecador e justo, pois faço o mal e odeio o
mal que faço17.
Segundo a dispositio retórica, a seção Romanos 7,7-25 comporta elementos
de propositio e de probatio formulados na primeira pessoa do singular. Poderíamos
espontaneamente pensar que esse “eu” remete ao autor da carta e, portanto, a
Paulo, discípulo de Cristo. As pesquisas sobre Paulo e a retórica greco-romana
levam, todavia, a pôr a questão do estatuto retórico desse “eu”. Há uma concor­
dância bem generalizada em afirmar que o autor não descreve aqui sua própria
situação em Cristo, mas que a utilização, nessa passagem, da primeira pessoa do
singular depende de um procedimento estilístico e aplica-se à situação do homem
sob a lei, ou seja, do homem sem Cristo.
O debate, decerto, não está encerrado. Pode parecer estranho que um autor,
ao empregar a primeira pessoa do singular, não inclua nela, ao menos em parte,
sua situação presente. Além disso, existe uma hesitação sobre a situação mais pre-
cisa desse homem sob a lei. O homem assim descrito está em situação “adâmica”,
como toda pessoa humana no espaço de tempo compreendido entre Adão e Jesus
Cristo?18 Ou antes em situação “mosaica”, a dos judeus, entre o dom da Torá no
Sinai e o acontecimento Jesus Cristo?19 Mas a leitura luterana de que o combate
entre o desejo bom e o agir mau aplicar-se-ia primeiro ao homem justificado,“ao
mesmo tempo pecador e justo”, é seriamente posta sob suspeita. Isso não tem
como consequência que a expressão “ao mesmo tempo pecador e justo” não me-
reça ser aplicada ao homem justificado, simplesmente que está um tanto fora de
lugar como comentário de Romanos 7,16.
Para concluir a respeito dessa questão, notaremos com certo humor que a
expressão de Lutero simul justus et peccator, que foi um dos maiores pontos de atri-
to entre protestantes e católicos, acaba de ser objeto de um acordo entre a Igreja

17. Martin Luther, Epître aux Romains.Texte de l’épître et gloses, Genève, Labor et Fides, 1983,
103 (Oeuvres complètes XI). Colchetes e negritos são dessa edição.
18. Poderíamos assim imaginar, ao levarmos em consideração o fato de que o judaísmo antigo
considerava de bom grado que a Torá havia sido dada a Adão desde as origens.Ver o Targum Neofiti
sobre Gênesis 2,15: “YHWH Elohim tomou Adão e o fez habitar no jardim do Éden para prestar
um culto segundo a lei e para guardar seus mandamentos” (Roger Le Deaut, Jacques Robert, Tar-
gum du Pentateuque I, Genèse, Paris, Cerf, 1978, 86 [SC 245]).
19. Sobre essa hesitação entre situação “adâmica” e situação “mosaica”, ver nossa obra Le chrétiens
et la loi juive. Une lecture de l’épître aux Romains, Paris, Cerf, 1998, 56-65. Para uma exegese revista
e recente de Romanos 7,7-25, remetemos a Jean-Noël Aletti, Rm 7,7-25 encore une fois: enjeux
et propositions”, NTS 48 (2002) 358-376 (com abundante bibliografia).

34
I – Situação da pesquisa
Católica Romana e a Federação Luterana Mundial20, precisamente quando a lei-
tura que o reformador fazia de Romanos 7,16 é contestada por um bom número
de exegetas. Ironia da história!

2.2. Teologia da lei e teologia da cruz

A dupla retórica e justificação é uma dupla heterogênea. Articula um procedi-


mento de escrita associado a um método de leitura (a retórica) com uma questão
teológica (a justificação). É corrente construir tais articulações. Não é de espantar,
pois, que a bibliografia sobre esse assunto seja imensa. É menos habitual articular
questões teológicas entre as quais não existe relação espontânea; geralmente, são
pensadas separadamente umas das outras e, para retomar a imagem da cidade par-
cialmente destruída por um terremoto, as avenidas que permitem passar de um
quarteirão a outro não estão desimpedidas. Todavia, parece que dois conceitos
teológicos paulinos importantes merecem ser estudados em conjunto, a saber, a
lei e a cruz.
A teologia paulina da lei, com efeito, é com frequência tratada em união
com a abordagem paulina do judaísmo, ou na oposição Lei versus Fé. Quanto à
teologia da cruz, é habitualmente reduzida à teologia da morte do Messias, às suas
consequências sobre a vida sacramental ou sobre a concepção paulina do sacrifí-
cio, ou ainda à ética da vida apostólica, que é propriamente mortificante. Encon-
tramos, porém, poucos estudos em que teologia da lei e teologia da cruz estejam
articuladas uma com a outra21.

20. A Doutrina da justificação, declaração comum da Federação Luterana Mundial e da Igreja


Católica Romana (documento assinado em 16 de junho de 1998 e publicado em La Documentation
Catholique 2168 [out. 1997] 875-885); seguida de Anexo à Declaração comum católica e luterana
sobre a doutrina da justificação (documento datado de 11 de junho de 1999 e publicado em La
Documentation Catholique 2209 [ago. 1999] 720-722). Citamos um extrato do Anexo (§ 2B): “Juntos
[luteranos e católicos] entendemos a exortação: ‘Que o pecado não mais reine em vosso corpo
mortal para vos fazer obedecer às suas concupiscências’ (Rm 6,12). Lembra-nos o perigo perma-
nente que vem do poder do pecado e de sua ação sobre os cristãos. Assim, os luteranos e os católicos
podem, juntos, compreender o cristão como simul justus et peccator, a despeito de suas abordagens
diferentes sobre o assunto”.
21. Além dos comentários da epístola aos Gálatas, destacamos alguns títulos, acompanhados por
um breve resumo: Robert G. Hamerton-Kelly, Sacred Violence and the Curse of the Law (Gl
3,13): The Death of Christ as a Sacrificial Travesty, NTS 36 (1990) 98-118: um artigo que utiliza as
teorias de René Girard e pretende que o religioso seja um guia heurístico para a compreensão
paulina da cruz; a tese defendida é que Paulo, desde sua conversão, vê a fé como um instrumento
da violência religiosa. Christopher D. Stanley, “Under a Curse”: A Fresh Reading of Galatians
3.10-14, NTS 36 (1990) 481-511: uma análise de Gálatas 3,10-14 segundo o método do reader

35
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
Ora, parece que a oposição Lei versus Cruz nas cartas paulinas faz sentido. De
fato, podemos destacar dois pontos de insistência propriamente paulinos. De uma
parte, Paulo insiste na morte de Cristo na cruz, por depender da tradição de fór-
mulas querigmáticas que anunciam que “Cristo morreu” (Cristo.j avpe,qanen)
sem menção explícita da cruz. E, de outra parte, para Paulo, a lei se manifesta so-
bre a condição do crucificado.
É principalmente na epístola aos Gálatas que essa oposição aparece. Mas,
considerada muitas vezes uma simples preparação da epístola aos Romanos, essa
epístola é menos trabalhada que sua irmã mais nova, mais longa. Uma passagem
do capítulo 3 de Gálatas (3,6-14) comporta ao mesmo tempo a expressão “as
obras da lei”22 (no v. 10: ta. e;rga tou/ no,mou) e a expressão “a maldição da lei” (nos
v. 10 e 13: h` kata,ra tou/ no,mou). O substantivo h` kata,ra, “a maldição”, é retoma-
do pelo adjetivo evpikata,ratoj, “maldito”, igualmente nos versículos 10 e 13.
Como compreender o genitivo “maldição da lei”? Qual é o sentido dessa maldi-
ção? A lei é maldita somente em virtude de suas próprias exigências? A cruz con-
sagra uma nova maldição da lei? A teologia da lei expressa em Romanos é depen-
dente da que se exprime em Gálatas?
Parece que a citação do Deuteronômio feita nessa passagem é uma das cha-
ves de leitura:“Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro” (Dt 21,23, citado
em Gl 3,13, TEB). Cristo crucificado, vendo-se por isso mesmo maldito pela lei,
libertou os crentes da “maldição da lei” e abriu uma era de bênção que diz respei-
to aos sem-lei, a saber, Abraão e, depois, os crentes de origem pagã… Mas não está
aí a última palavra da explicação. Decerto, é pela lei que o Crucificado é maldito.
Mas a recíproca é verdadeira? É por causa da crucifixão do Messias que a lei é

response criticism; a lei (Deuteronômio) articula duas maldições, a do judeu que não pode pôr em
prática todas as suas exigências e a de Cristo crucificado. Don B. Garlington, Role Reversal and
Paul’s Use of Scripture in Galatians 3.10-13, JSNT 65 (1997) 85-121: a chave de Gálatas 3,10-13 é
uma ideologia de inversão de papéis; cumprir a lei se tornou, pela cruz do Cristo, equivalente de
não cumprir a lei. Jean Zumstein, Paul et la théologie de la croix, ETR 76 (2001) 481-496: o artigo
propõe a teologia da cruz como novo paradigma do pensamento paulino; ver também sua contri-
buição neste livro. Andreas Dettwiler, De la malédiction à la bénédiction. Une interprétation de
Galates 3,10-14”, in Florian Bille, Andreas Dettwiler, Martin Rose, “Maudit quiconque est pendu
au bois”. La crucifixion dans la loi et dans la foi, Lausanne, Zèbre, 2002, 57-83 (Publication de
l’Institut romand des sciences bibliques 2): ao citar Deuteronômio 21,23, Paulo introduz uma dis-
sociação entre a lei e Deus e propõe uma compreensão positiva da cruz.
22. A expressão “as obras da lei” foi encontrada em Qumran (4 QMMT) sob a seguinte forma:
“algumas obras da lei” (em hebraico: miqsat ma’ase ha-torah). Ver Jacques Bernard, Pour lire
4QMMT: quelques-unes des mises en pratique de la Torah, in Philippe Abadie, Jean-Pierre Lémo-
non (éd.), Le judaïsme à l’aube de l’ère chrétienne: XVIIIe congrès de l’Acfeb, Paris, Cerf, 2001, 63-94
(LeDiv 186).

36
I – Situação da pesquisa
maldita ou existe uma maldição interna à lei, independente da cruz? Dever-se-ia
ainda investir em pesquisa sobre essa passagem difícil, cujas implicações são maio-
res no diálogo entre cristãos e judeus, do mesmo modo como as que resultam da
oposição Fé versus Lei.

3. Identificar os binômios paradigmáticos da fratura


entre judaísmo e cristianismo

O ponto de teologia paulina mais amplamente debatido há cerca de 25 anos


é o olhar de Paulo sobre a lei judaica e, portanto, a importância que ele atribui a
essa lei em regime cristão. As obras de Sanders nesse domínio deram início a uma
corrente que depois se transformou numa torrente23. Ao abordar essa questão, não
se deve perder de vista que empregar a palavra “cristianismo” no tempo de Paulo
é anacrônico, sobretudo se para usá-la em oposição a judaísmo. Paulo é judeu dos
pés à cabeça. As duas realidades que ele põe em oposição são, antes, o regime sem
Cristo (ou antes de Cristo) e o regime crístico, entre os quais existem ao mesmo
tempo ruptura e continuidade. Manteremos, todavia, as palavras “judaísmo” e
“cristianismo” para designá-los a fim de evitar o uso ininterrupto de perífrases
— é uma comodidade de linguagem.
Consideraremos aqui dois binômios principais. O primeiro, já bem estuda-
do, está sempre ativado. O segundo, menos clássico, indica um setor de pesquisa
que as leituras filosóficas acabam de pôr — ou de repor — em obras.

3.1. Fé versus Lei. Um paradigma interpretativo clássico e suas implicações

É um truísmo dizer que a antítese Fé versus Lei é um dos componentes prin-


cipais do pensamento paulino no que diz respeito às relações que o cristianismo
mantém com o judaísmo. É corrente nos escritos paulinos pôr os dois termos em
oposição. Lembremos uma das passagens mais significativas: “Mas agora, indepen-
dentemente da lei (cwri.j no,mou), a justiça de Deus foi manifestada; a lei e os profetas
lhe prestam testemunho. É a justiça de Deus pela fé (dia. pi,stewj) em Jesus Cristo
para todos os que creem” (Rm 3,21-22a). A oposição entre fé e lei é nítida. Por vá-
rias vezes ela é formulada por Paulo. Mas em que campos semânticos ela se situa?

23. No ritmo de uma ou duas monografias importantes por ano desde o início dos anos de
1980, a bibliografia sobre o assunto é imensa. A obra que deu o início é a de Ed P. Sanders, Paul
and Palestinian Judaism: a Comparison of Patterns of Religion, Philadelphia, Fortress, 1977. Para o
resto, remetemos à lista de títulos seguidos de um breve comentário que publicamos em nossa obra
Les Chrétiens et la loi juive (cf. nota 19), 115-117.

37
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
É a oposição entre dois meios de salvação? Parece ser o caso, pelo menos
numa primeira leitura, na passagem da epístola aos Romanos que acabamos de
citar. Mas não será também a oposição entre dois momentos da história? Essa in-
terpretação é, antes, a que sugeriria a epístola aos Gálatas, que designa a lei e a fé
como indicadoras de dois períodos sucessivos: “Antes da chegada da fé, nós éra-
mos mantidos em cativeiro, sob a lei, em vista da fé que devia ser revelada”
(Gl 3,23). Poderíamos ainda pensar que lei e fé fossem dois modos de viver a
aliança, dois propulsores diferentes da ética, como parece ser o caso nas partes
parenéticas das epístolas: viver segundo a fé versus viver segundo a lei?
Todos os exegetas de Paulo se põem a questão de qual é o estatuto da lei ju-
daica em regime cristão. Um versículo da epístola aos Romanos a levanta, o céle-
bre crux interpretum: “Pois o fim (te,loj) da lei é Cristo, para que seja dada a justiça
a todo homem que crê” (Rm 10,4). O sentido do termo te,loj nessa passagem é
objeto de debates que assumem até a figura de controvérsias. A lei foi ab-rogada
em Cristo? Ou, antes, instaurada em plenitude? Ou os dois sentidos devem ser
articulados, até mesmo adicionados?
Bem claramente, o papel que Paulo atribui à lei no cristianismo depende do
que ele lhe atribui no judaísmo, que, aliás, não é talvez o que os judeus que perten-
ciam a outras correntes do judaísmo lhe atribuíam… Do judaísmo como conve-
nantal nomism de Sanders24 a preceitos como identity markers de Dunn25, numerosas
proposições foram feitas. Sem nos aventurarmos mais nesse debate, enfatizemos
duas questões ligadas a esse questionamento geral, que, também elas, devem ser
retomadas não impunemente pelo fato mesmo de que dele dependem.

3.1.1. Paulo e a história da salvação

Paulo faz uma leitura da história na qual determina etapas sucessivas. Se ele
quase não respeita o espaço de tempo compreendido entre Adão e Abraão, a vinda
de Moisés e da lei abre na pessoa dele um período antes de Cristo que tem sua
especificidade. Ele tem até o cuidado de datar cronologicamente essa vinda, o que
não faz para outros acontecimentos: explica que a lei, vinda 430 anos depois de
Abraão, não ab-roga o testamento estabelecido por Deus em favor de Abraão

24. Além de sua obra já citada na nota anterior, acrescentemos Ed P. Sanders, Paul, the Law and
the Jewish People, Philadelphia, Fortress, 1983.
25. James D. G. Dunn (ed.), Paul and the Mosaic Law: The Third Durham-Tübingen Research
Symposium on Earliest Christianity and Judaism (Durhan, September 1994), Tübingen, Mohr
Siebeck, 1996 (Wunt 89); ver em particular também nessa obra de Dunn a contribuição de
Richard B. Hays, Three Dramatic Roles: The Law in Romans 3-4, 151-164.

38
I – Situação da pesquisa
(Gl 3,17). Quanto ao acontecimento Jesus Cristo, embora não esteja datado em
relação aos acontecimentos anteriores, parece abrir também ele, mais ainda que a
vinda da lei, uma nova era histórica.
Como qualificar essa visão da história? Corresponderá a um verdadeiro fra-
cionamento do tempo antes de Cristo? Se sim, quais são as grandes etapas desse
fracionamento? É propriamente falando uma história da salvação? Depois da
contribuição principal de Cullmann sobre essa questão26, Lyonnet começou uma
leitura do tempo em Paulo, particularmente em Romanos 7–8, na qual distingue
quatro etapas da história da salvação: o tempo do Paraíso original; o tempo do
homem vendido ao pecado; o tempo do homem libertado por Jesus Cristo e pelo
dom do Espírito; e, enfim, o acabamento do tempo pela redenção do universo27.
Nós mesmos, em 1998, traçamos uma história paulina da salvação em quatro eta-
pas, cujas duas primeiras diferem das estabelecidas por Lyonnet28. Sem ir tão longe
no corte do tempo antes de Cristo, numerosos autores reconhecem a novidade
que o acontecimento pascal trouxe para a história29.
Esses posicionamentos permanecem abertos ao debate. Se consideramos re-
cusável a questão da divisão paulina da época antes de Cristo — mas seria assim
tão insignificante? —, restam pelo menos duas outras questões que mereceriam
um complemento na pesquisa. A primeira é saber se a noção de história da salva-
ção, que Cullmann tirava do conjunto do Novo Testamento, e mais particular-
mente da obra de Lucas, é pertinente para qualificar a visão paulina da história.
Uma segunda, bem enfatizada pelos trabalhos de Agamben30, diz respeito à
maneira como Paulo concebe o período de tempo compreendido entre o acon-
tecimento Cristo e a parusia. Esse tempo, que Paulo chama de “tempo presente”
(o` nu/n kairo,j, Rm 8,18), é constituído por uma sucessão de instantes como os
outros períodos ou tem um caráter específico? Agamben sugere que Paulo como
que ampliou a linha de separação entre os éons. O apóstolo teria realizado assim
uma espécie de acavalamento de éons que corresponderia a esse período muito
particular, que teria durado, portanto, se nos ativermos ao tempo decorrido de-
pois da Páscoa, pelo menos dois mil anos. A ideia de Agamben sobre essa questão

26. Oscar Culmann, Christ et le temps. Temps et histoire dans le christianisme primitif, Neu-
châtel, Delachaux et Niestlé, 21957 [1. ed. 1947].
27. Stanislas Lyonnet, Les étapes de l’histoire du salut selon l’épître aux Romains, Paris, Cerf, 1969
(Bibliothèque oecuménique 8).
28. Em nossa obra Les chrétiens et la loi juive (cf. nota 19), 70-73.
29. Assim James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Edinburgh, T & T Clark, 1998, cap.
5: The Beginning of the Salvation.
30. Giorgio Agamben, Le temps qui reste (cf. nota 14).

39
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
é bem inovadora. Parece muito interessante. Sem dúvida, é preciso que ela mesma
seja submetida à prova do tempo para que se verifique sua legitimidade!

3.1.2. A ética paulina

A permanência ou não da lei judaica no regime cristão tem, muito evidente-


mente, consequências sobre a ética. Qual é a força da ética paulina? Tem ainda algu-
ma relação com a lei judaica ou não é mais de modo algum uma ética da lei? Isso leva
a examinar duas expressões cujo sentido é muito debatido: de um lado, a expressão
“lei do Cristo” (Gl 6,2); de outro, a expressão “lei do Espírito” (Rm 8,2); leva tam-
bém a estudar as relações que essas duas expressões mantêm com a Torá judaica.
É claro que Paulo conserva, como norma da vida cristã, alguma coisa de al-
guns preceitos que fazem parte da Torá, como o mandamento do amor ao próxi-
mo. Escreve ele:“Com efeito, os mandamentos: Não cometerás adultério, não matarás,
não furtarás, não cobiçarás, bem como todos os outros resumem-se nesta palavra:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13,9, TEB, citando Lv 19,18). Mas é
também claro que ele não emprega o termo “mandamento” (evntolh,) para desig-
ná-lo; ele o substitui pelo termo “palavra” (lo,goj). Parece até que Paulo experi-
menta de tal modo a restrição com relação à obediência a mandamentos precisos
que se permite, ele próprio, em sua prática missionária, manter-se distante das
maneiras de agir que o Senhor Jesus “ordenara” (diata,ssein), ou seja, viver de seu
trabalho missionário. Ao escolher ganhar a vida com suas próprias mãos, ele, de
certo modo, desobedeceu (1Cor 9,14, a ser comparado com Lc 10,7).
Sem dúvida, é um exagero pretender, como se fez várias vezes, que Paulo
conserve para a vida cristã o conjunto de mitsvot, com exceção das leis rituais (cir-
cuncisão, regras alimentares da kasherut, festas)31. Mas temos de chegar a pretender,
como fazem outros exegetas, que Paulo não mantém nenhuma prescrição moral
da Torá, a ponto de poder ser qualificado de antinomista?32 Existe um amplo le-
que de posições entre essas duas opiniões extremas33. Somos levados aqui a pôr no

31. Essa posição é, todavia, defendida por alguns exegetas. Assim Brice L. Martin, Christ and the
Law in Paul, Leiden/New York/København, E. J. Brill, 1989 (NT.S 62). Ele crê que, segundo Paulo,
a lei obrigue sempre o cristão no nível ético, seja qual for sua origem. São seus componentes cul-
tuais que são abolidos.
32. Assim Jerome Murphy-O’Connor, L’existence chrétienne selon saint Paul, Paris, Cerf, 1974
(LeDiv 80). Esse autor é defensor de um antinomismo paulino radical: Paulo mantém os valores
éticos da lei, mas recusa sua forma imperativa.
33.Ver o colóquio organizado em Durham, em 1994, cujas atas foram publicadas por James D.
G. Dunn (éd.), Paul and the Mosaic Law (cf. nota 25).

40
I – Situação da pesquisa
plano ético a questão que púnhamos, ao começar o capítulo, sobre a interpretação
da famosa frase: “O fim da lei é Cristo” (Rm 10,4,TEB). Podemos dizer que, para
Paulo, Cristo fecha o regime ético da Torá?
Todas essas questões devem ser multiplicadas por dois, pois se põem diferen-
temente segundo a origem religiosa do motivo da ética. A relação de um cris-
tão de origem judaica com a Torá não é, evidentemente, a mesma que para um cristão
vindo do paganismo. Para o primeiro, conservar os mitsvot não seria senão prolon-
gar uma prática antiga; para o segundo, seria tomar emprestado do judaísmo34.

3.2. Unicidade-universalidade versus particularidade

O paradigma autêntico Fé versus Lei é o mais operatório para decodificar


a linha de ruptura que Paulo estabelece entre regime sem Cristo e regime em
Cristo? Com muita frequência é assim que o tratamos. Mas podemos nos per-
guntar se não há outros, pouco enfatizados, todavia, pela comunidade dos exe-
getas. Um outro foi ressaltado pelos filósofos, especialmente por Badiou em
1997, revisto e corrigido por Agamben em 200035. Para resumir essa intuição
desenvolvida em obras de acesso muito difícil, poderíamos dizer que Paulo opõe
dois regimes.
O primeiro é o regime sem Cristo, o do judaísmo e do paganismo do pri-
meiro século, que poderíamos chamar de regime da particularidade. Seus teóricos
concebem o mundo como uma justaposição de múltiplos subgrupos, religiosos
(judeu versus não judeu), éticos (grego versus bárbaro), sociais (homem livre versus
escravo), sexuais (masculino versus feminino) etc. Esse é o mundo que Paulo en-
controu ao nascer e cuja estruturação ele respeitou até ser apanhado por Cristo.
Mas um outro regime se opõe àquele, o regime em Cristo, unificado pela
Ressurreição, que é puro acontecimento, acontecimento único — ainda que para
Badiou imaginário — e, por isso mesmo, universal. Sua Weltanschauung é a de um
cosmo em que o particular perdeu sua legitimidade. É um mundo do único, do
singular e do universal. Pois, diferentemente do particular, o singular fundamenta
o universal. É isso que resulta do raciocínio a fortiori expresso com vigor no para-

34. Distinção bem valorizada por Lloyd Gaston, Paul and the Torah, Vancouver, University of
British Columbia, 1987. Esse autor julga que Paulo jamais teve a intenção de substituir a lei como
meio de salvação e de justificação para os judeus, e que apenas acrescenta Cristo como meio de
salvação para os pagãos. Sua convicção de que a lei é ainda um meio de salvação para os judeus não
é seguida, todavia, por bom número de exegetas; ela não leva suficientemente em conta o lugar
único de Cristo na ordem da salvação.
35. Alain Badiou, Saint Paul (cf. nota 11); Giorgio Agamben, Le temps que reste (cf. nota 14).

41
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
lelismo antitético entre Adão e Jesus Cristo desenvolvido na epístola aos Roma-
nos (Rm 5,12-21).
Seria necessário retroceder mais do que podemos para que nos convencês-
semos de que esse paradigma antitético funciona de maneira suficientemente
ampla.Todavia, ele parece bastante fecundo como modelo interpretativo do pen-
samento paulino, em vários domínios. Com efeito, Paulo declara, em Cristo, a
abolição de numerosas particularidades e luta contra os particularismos: étnicos,
antropológicos, religiosos etc. Conhecemos sua célebre enumeração: “Não há
mais nem judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não
há mais o homem nem a mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”
(Gl 3,28). Paulo declara desnecessária a circuncisão, que homologa a distinção
entre o judeu e o não judeu.
Sem dúvida, a salvação veio primeiro para o judeu, depois para o grego, mas
é para reuni-los, no tempo “presente”, numa mesma unidade. Sem dúvida tam-
bém há, inclusive em regime cristão, separações necessárias. Agamben comenta
amplamente o termo avfwrisme,noj no começo da epístola aos Romanos
(Rm 1,1)36. Mas é uma particularidade individual para uma missão específica; não
pode ser geradora de privilégios ou de espírito de casta.
De maneira geral, o pensamento paulino valoriza o singular e desvaloriza o
plural: “a obra da lei” (Rm 2,15) versus “as obras da lei” (Rm 3,20); “as obras da
carne” (Gl 5,19) versus “o fruto do Espírito” (Gl 5,22). E, para retornar por um
instante às questões éticas, podemos nos perguntar se uma das principais censuras
que Paulo faz à lei judaica como norma moral não é o fracionamento dela em
múltiplos mandamentos, impraticáveis em virtude mesmo de sua multiplicidade
(Gl 3,10)37.

4. Enfatizar os desafios de algumas questões disputadas

Numa última etapa deste giro panorâmico iremos nos ater a duas quaestiones
disputatae, apoiando-nos não mais na ruptura entre judaísmo e cristianismo, mas
na própria economia cristã. Essas duas quaestiones, sempre formuladas de forma
antitética, têm desafios teológicos não desprezíveis.

36. Ibid., 75-97.


37. O catálogo dos 613 mitsvot (365 negativos e 248 positivos) só será fixado na época rabínica,
mas as bases já tinham sido lançadas em meados do século I de nossa era.

42
I – Situação da pesquisa
4.1. Fé de Jesus versus fé em Jesus

Entre as questões atualmente debatidas figura a compreensão das passagens


paulinas em que a palavra “fé” (pi,stij) diz respeito à pessoa de Jesus (ou de
Cristo). Resumamos os termos do debate. O termo pi,stij está, em Paulo, ligado
à pessoa do Cristo por três formulações, das quais duas não apresentam quase ne-
nhuma dificuldade de interpretação: pi,stij eivj Cristo,n (Cl 2,5)38 e pi,stij evn
Cristw/| (Gl 3,26). Uma e outra são traduzidas pelo equivalente “a fé em Cristo”.
Mais complexa é a fórmula com genitivo: pi,stij Cristou/ (com ou sem VIhsou/;
Rm 3,22.26; Gl 2,16.20; 3,22; Fl 3,9). Tem esta última o mesmo sentido que as
fórmulas anteriores, ou seja, “a fé em Cristo”, ou é preciso compreendê-la no
sentido subjetivo, “a fé/fidelidade de (Jesus) Cristo”? Esse questionamento é legí-
timo, pois sua pertinência vem em especial do sentido do termo grego pi,stij,
que combina pelo menos as três conotações de fé, fidelidade e confiança. Paulo
fala, por exemplo, da pi,stij tou/ qeou/ (Rm 3,3), que significa sem ambiguidade;
nessa passagem, “a fidelidade de Deus” e não “a fé em Deus”.
As origens desse debate são difíceis de detectar. Em 1969, um artigo de
Markus­ Barth já defendia a tradução “a fé do Cristo”39; parece, todavia, que ele
retomou uma proposição de seu pai Karl40. O debate ressurgiu nos anos de 1980
e depois não parou mais. Está sempre ativo; é bem raro passar um ano sem que
surjam dois ou três artigos sobre a questão41.
A questão não é apenas gramatical. Suas implicações são importantes para a
teologia da justificação: somos nós salvos “pela fé em Cristo”, portanto com certa
participação do sujeito humano que crê, ou “pela fé/fidelidade de Cristo”, sem
que Paulo mencione a participação do crente na ação crística salvadora? O texto
mais debatido é a passagem da epístola aos Gálatas consagrada à antítese lei versus
promessa (Gl 3,21-29): encontramos aí, sucessivamente, pi,stij VIhsou/ Cristou/

38. Há uma incerteza sobre o fato de saber se a epístola aos Colossenses é protopaulina ou deu-
teropaulina. Por prudência, seguimos aqui a hipótese de que ela é deuteropaulina.
39. Markus Barth, The Faith of the Messiah, Heythrop Journal 10 (1969) 363-370.
40. Essa não é, todavia, a leitura de Karl Barth em seu comentário da epístola aos Romanos
(tradução francesa a partir da 10a edição, 1967). Em Romanos 3,22 ele traduz dikaiosu,nh qeou/ dia.
pi,stewj vIhsou/ Cristou/ por “la justice de Dieu par sa fidelité en Jésus-Crist” (sic). E em Romanos
3,26 pi,stij é traduzido: “la fidelité qui se confirme en Jésus” (sic). Ver Karl Barth, L’Epître aux Ro-
mains (Commentaires bibliques), Genève, Labor et Fides, 1972, 91, 102.
41. Em 1980, Arland J. Hultgren, The pístis Christoû Formulation in Paul, NT 22 (1980) 248-
263. Desde então todos os comentários de Romanos e de Gálatas a ela consagram pelo menos uma
nota importante.Ver a seleção bibliográfica proposta por Jean-Noël Aletti em RSR 90 (2002) 347,
nota 55. A partir desse artigo, encontramos R. Barry Matlock, “Even the Demons Believe”: Paul
and pi,stij Cristou/, CBQ 64 (2002) 300-318.

43
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
(Gl 3,22) e pi,stij evn Cristw/| VIhsou/ (Gl 3,26). As duas expressões são sinônimas
ou têm sentidos diferentes?
É impossível entrar aqui nos pormenores do debate, hoje — e por quanto
tempo ainda? — muito vivo. A esse propósito, Aletti escreve que é preciso “reto-
mar a discussão sobre bases linguísticas sadias” (sic)42. De nossa parte, julgamos que
é igualmente necessário não se limitar ao estudo das expressões em questão e
conveniente iluminar a pesquisa com investigações laterais. Eis alguns exemplos:
• Nas passagens em que as expressões ambíguas aparecem, é necessário
considerar o tempo dos verbos empregados. Por exemplo, em Gálatas
2,16, onde está escrito que o homem “é justificado dia. pi,stewj VIhsou/
Cristou/”, o verbo passivo dikaiou/sqai não está nem no presente nem no
aoristo, mas no perfeito. Pode esse tempo designar um ato de “justificação
pela fé (ou fidelidade) de Cristo”? Para descrever o ato de justificação que
se realiza em Jesus Cristo, Paulo emprega, em geral, o aoristo.
• Todo emprego de pi,stij seguido de um genitivo tem de ser examinado.
Prescindindo-se de fé/fidelidade humana, encontramos, por exemplo:
pi,stij tou/ qeou/ (Rm 3,3, já citado) e pi,stij tou/ euvaggeli,ou (Fl 1,27).
• Se pi,stij Cristou/ pode ser traduzido por “a fé de Cristo”, poderíamos
legitimamente esperar ver Jesus qualificado por Paulo como pisto,j. É o
caso? Sim, uma vez, mas na segunda carta a Timóteo (2Tm 2,13), uma
epístola geralmente considerada deuteropaulina43.
• Do mesmo modo, se Paulo dá importância à fé/fidelidade de Jesus, pode-
ríamos esperar ver Jesus ou Cristo como sujeito do verbo pisteu,ein. Ora,
esse não é o caso.
Seria presunçoso querer encerrar aqui um debate em curso. Mediante as
questões que acabam de ser postas, sem dúvida a opção pessoal do autor pôde ser
percebida. Efetivamente, eu devo confessar — e não é um “eu” retórico — que os
colegas que fazem do genitivo um genitivo subjetivo e traduzem pi,stij Cristou/
por “a fé de Cristo” ainda não me convenceram. Mas pode ser que eu não seja

42. Jean-Noël Aletti, Où en sont les études sur saint Paul? Enjeux et propositions, RSR 90
(2002) 348.
43. Um retorno em favor da autenticidade — pelo menos parcial — da segunda carta a Timóteo
existe desde alguns anos. Os defensores dessa hipótese julgam que certos detalhes, que dão a im-
pressão de um relato bem pessoal, dificilmente podem ter sido inventados por um imitador (assim
o manto esquecido na casa de Carpo; cf. 2Tm 4,13).Ver Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Cri-
tical Life, Oxford, Clarendon, 1996, 357-359; ver também um dos três recentes comentários das
cartas a Timóteo: Luke T. Johnson, The First and Second Letter to Timothy, New York, Doubleday,
2001, 55-90 (AncB 35A).

44
I – Situação da pesquisa
muito sensível aos argumentos deles e esteja excessivamente condicionado pelo
fato de pertencer à Igreja Católica. Sem contar que, ao estudar os termos e os
pontos controversos do debate, acabo por me perguntar, com alguns colegas, se
não se trata de uma falsa questão…

4.2. Antropologia versus cosmologia

Diferentemente do anterior, já é velho o debate o que se apoia nos paradig-


mas que transmitem a escatologia paulina. Remonta a meados do século XIX e
foi reativado nos anos de 1960. Hoje em dia, no entanto, não está encerrado. Foi
entre dois gigantes da exegese alemã que o debate se travou nos anos de 1960-
1970, Bultmann e Käsemann. Depois, prolongou-se com outros pesquisadores,
que contribuíram com algumas nuanças. Mas a bipolaridade das posições conti-
nua. Nós as resumimos de maneira necessariamente esquemática.
Primeira posição: a chave hermenêutica da escatologia paulina é antropoló-
gica e cristológica. A ela estão ligados nomes de prestígio, como Baur, Bultmann,
Becker e, pela escrita de uma monografia completa, Baumgarten44. Além dos ar-
gumentos tirados do texto, esses autores ressaltam que Paulo escreve a comunida-
des implantadas no mundo helênico, um mundo preocupado com a salvação da
pessoa humana no plano individual; é normal que ele construa sua escatologia
sobre modelos que falam a seus destinatários.
A posição oposta é esta: a chave hermenêutica da escatologia paulina é cos-
mológica e teológica no sentido restrito do termo (uma escatologia com referên-
cia ao Pai). Os principais nomes a ela ligados são os de Käsemann, Beker e, mais
recentemente, De Boer45. Esses autores ressaltam o fato de que a apocalíptica ju-
daica era consideravelmente desenvolvida no século I. Paulo dela se alimentou e
foi influenciado por ela. Herdeiro desses modelos, ele desenvolve uma concepção

44. Ferdinand C. Baur, Paulus, der Apostel Jesu Christi, sein Leben und Wirken, seine Briefe und seine
Lehre, Leipzig, 1866; Rudolf Bultmann, Ist die Apokalyptik die Mutter der christichen Theologie?
Eine Auseinandersetzung mit Ernst Käsemann, in Exegetica. Aufsätze zur Erforschung des Neuen
Testaments, ed. Erich Dinkler,Tübingen, Mohr Siebeck, 1967, 467-482; Jürgen Becker, Erwägun-
gen zur apokalyptischen Tradition in der paulinischen Theologie, EvTh 30 (1970) 593-609; Jörg
Baumgarten, Paulus und die Apokalyptik. Die Auslegung apokalyptischer Überlieferungen in den
echten Paulusbriefen, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1975 (WMANT 44).
45. Ernst Käsemann, Sur le thème de l’Apocalyptique chrétienne primitive, in Essais exégétiques,
Neuchâtel, Delachaux & Niestlé, 1972, 199-226 (Le Monde de la Bible 3)(1. publ. al.: ZThK 59
[1962] 257-284); Johan Christiaan Beker, Paul the Apostle: the Triumph of God in Life and Thou-
ght, Philadelphia, Fortress, 1982; Martinus C. de Boer, Paul,Theologian of God’s Apocalypse, Interp.
56 (2002) 21-33.

45
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
da salvação mais coletiva, mais eclesial e até mais cósmica do que pretendem os
defensores da outra posição. Não são mais apenas indivíduos humanos que são
chamados à salvação, mas uma comunidade integrada à criação.
Para não endurecer os termos do debate, convém, entretanto, observar que
os defensores da primeira posição concedem aos segundos que os primeiros escri-
tos paulinos integraram elementos apocalípticos (especialmente 1 Tessalonicen-
ses), mas consideram que Paulo teria depois se afastado em relação a esse modelo.
Intervém aqui outra questão igualmente debatida a propósito de São Paulo, saber
se houve evolução em seu próprio pensamento46: tendo a escrita paulina se desen-
volvido numa quinzena de anos, podemos discernir nas epístolas de Paulo traços
de uma evolução significativa, sobre esse ponto ou sobre outros?
Os desafios desse debate não são insignificantes. Ressaltemos dois deles. Em
primeiro lugar, uma visão mais antropológica das coisas compromete uma con-
cepção da salvação mais pessoal, até mesmo mais individual (Bultmann), o que se
equipara à rigorosa leitura luterana. Ao contrário, se aderimos à tese apocalíptica,
a salvação adquire uma dimensão mais eclesial (Käsemann).Vemos, assim, que as
cisões confessionais são onipresentes em quase todos os debates sobre o pensa-
mento paulino.
Um segundo desafio, que situa o debate num nível menos interno ao cristia-
nismo, diz respeito à questão, bem contemporânea, da salvação da criação. O
contato do mundo ocidental com as religiões e espiritualidades do Extremo
Oriente, bem como o crescimento da sensibilidade ecológica levam-nos a nos
pôr essas questões, e mais uma vez questiona-se Paulo. Uma visão mais bultman-
niana das coisas levará a reservar o vocabulário da salvação à espécie humana. Ao
contrário, uma perspectiva apocalíptica — desembaraçada de seu conjunto de
imagens ultrapassadas — falará de modo mais espontâneo às pessoas que aspiram
à salvação global da criação.
Chegados a este ponto da reflexão, não podemos nos dispensar de estudar
uma questão que Paulo não põe, mas que a vida moderna e o diálogo inter-reli-
gioso estabelecem inevitavelmente, a da salvação dos não crentes. As Igrejas desti-
natárias das epístolas paulinas se perguntavam sobre a salvação dos judeus em seu
todo e sobre a dos pagão-cristãos, e é no bojo desse questionamento que Paulo
está situado. O resto do mundo intervinha pouco na reflexão, na medida em que
se pensava, talvez, que as missões cristãs acabariam chegando logo a todos os po-
vos da terra. Andando cerca de vinte séculos para trás, sabemos que não foi assim,

46. O termo alemão Entwicklungstheorie é muitas vezes utilizado para indicar a posição dos pes-
quisadores partidários de uma evolução significativa na teologia paulina ao longo dos anos.

46
I – Situação da pesquisa
e com legitimidade nos perguntamos o que o além reserva às pessoas de boa von-
tade que pertencem a outras correntes religiosas ou estranhas a qualquer fé. Sabe-
mos que Paulo não aborda diretamente essa questão, mas permitem seus textos
esclarecê-la?

5. Conclusão

No quadro que acabamos de montar, temos consciência de ter indicado as


pesquisas a ser realizadas ou, pelo menos, intensificadas, do mesmo modo como
nos ativemos a expor os debates em curso e os desafios que eles estabelecem. Ne-
cessariamente, uma coisa leva à outra. A lista de quaestiones disputatae poderia ser
ampliada, pois, como acabamos de ver, os debates ligados a pontos tão particulares
quanto a leitura da expressão pi,stij Cristou/ podem ter implicações teológicas
de grande amplidão. Paramos aqui, todavia, e nos contentamos em retomar, como
conclusão, alguns aspectos já mais ou menos lembrados.
Para a exegese de Paulo, como de modo geral em exegese, assistimos a um
deslocamento de leituras diacrônicas em direção a leituras sincrônicas. Isso não
desqualifica as leituras diacrônicas, mas obriga a uma articulação de métodos e a
uma ordem nas operações a ser realizadas quando lemos um texto. Existe hoje
certo consenso em reconhecer que a leitura sincrônica é aquela pela qual se deve
começar, e que a pesquisa sobre os meios históricos de produção e de aceitação
não dará todos os seus frutos se não tivermos feito antes um trabalho sobre o tex-
to. O texto estudado é original; decerto, é interessante pô-lo em diálogo com
outros documentos para um jogo de intertextualidade, mas não faríamos bem ao
nos ater muito cedo ao meio como o desenham outros escritos. Isso comportaria
o risco de induzir a uma pré-compreensão da qual justamente é preciso se libertar
quando se inicia um trabalho de exegese47.
O exegeta, assim como todo leitor, tem de fazer um esforço epistemológico
constante para não se deixar condicionar por seus próprios pressupostos teológi-
cos. Essa exigência assume notadamente a figura de uma vontade de objetivação
para se afastar de leituras muito ligadas a pertenças confessionais. As diferentes
confissões cristãs, mais que se agarrar às formulações de seus concílios ou de seus

47. Jean-Noël Aletti denunciava esse erro de método na recensão de uma obra sobre 1 Coríntios
15 consagrada à ressurreição dos mortos: Gerhard Sellin, Der Streit um die Auferstehung der Toten.
Eine religionsgeschichtliche und exegetische Untersuchung von 1 Kor 15, Göttingen, Vanden-
hoeck & Ruprecht, 1986 (FRLANT 138): “Indo imediatamente à procura coríntia da ressurreição
dos mortos, Sellin correu um risco enorme, que compromete todos os resultados de seu estudo”
(Jean-Noël Aletti, Bulletin paulinien, RSR 77 [1989] 126-127).

47
Situação da pesquisa sobre Paulo: questões em debate e pontos controversos subjacentes
teólogos de referência, devem se unir diante dos textos de Paulo. O próprio Paulo
e o ecumenismo têm tudo a ganhar com isso.
Trabalhamos com frequência entre exegetas teólogos. Mas assistimos a certa
desapropriação do texto bíblico à medida que não cristãos se interessam pela Bí-
blia e por São Paulo em particular. Temos de estar atentos a não estudar Paulo
somente entre cristãos e a não fazer leituras dele exclusivamente teológicas. Ou-
tras pesquisas, literárias, sociológicas, filosóficas, estão em andamento. Elas devem
ser conhecidas, até mesmo honradas por nossa presença em equipes de horizontes
bem diversificados. Enfatizamos a fecundidade de um paradigma elaborado por
filósofos — o da universalidade —, inclusive para a compreensão da teologia pau-
lina. Em resumo, constatamos que a pesquisa sobre Paulo está em pleno progresso
em muitos lugares e que os debates têm ampla abertura. Isso provaria, se fosse
preciso, a grande atualidade de Paulo.

48
I – Situação da pesquisa
II

Uma escrita em movimento


A retórica paulina: construção e comunicação
de um pensamento
Jean-Noël ALETTI (Roma)

A abordagem retórica das cartas paulinas não deve parar numa fase puramente descritiva da
dispositio ou da elocutio, mas determinar em que a escolha de pisteis e sua progressão
determinam fundamentalmente a teologia de Paulo, pois retórica e teologia são nele insepa-
ráveis. Sua maneira de usar a retórica manifesta não somente a qualidade de sua teologia,
mas ainda sua concepção da teologia. A abordagem retórica é, então, uma das mais úteis,
essencial mesmo, para entrar corretamente nos diferentes campos da teologia de Paulo.

O s estudos sobre a retórica paulina estão em plena evolução, e a utilidade


deles para a exegese e a teologia do apóstolo quase não é mais questionada1.
Sem propor aqui um status quaestionis sobre esse tipo de leitura, cada vez mais di-
versificada, quanto à maneira de tratar o gênero retórico, a dispositio, as diversas
figuras, bem como os modelos seguidos com originalidade por Paulo, tentarei,
antes, mostrar em que a retórica de suas cartas é importante, essencial mesmo, para
perceber como ele constrói sua reflexão teológica a fim de comunicá-la.

1. Se há alguns decênios muitos exegetas não viam em que se podiam aplicar os modelos da
retórica persuasiva a muitas seções de cartas, até a cartas inteiras, as reações, felizmente, mudaram. A
dispositio de numerosas argumentações paulinas, das mais breves às mais longas, é muito branda. Eis
por que, com Philip H. Kern (Rhetoric and Galatians: Assessing an Approach to Paul’s Epistle, Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1998 [MSSNTS 101]), lamentaremos uma aplicação muito
condensada da retórica greco-romana às cartas do apóstolo. É, todavia, impossível rejeitar essa grade
de leitura, tanto para a taxis como para a lexis das cartas paulinas. Permito-me remeter a meus di-
versos estudos sobre o assunto.

51
1. Procedimentos diversos em vista da comunicação

Deve-se entender que não considerarei aqui todas as técnicas retóricas do


apóstolo, mas somente as que têm uma finalidade comunicativa2. E se é útil for-
mar uma lista dos procedimentos com os quais as cartas paulinas favorecem a co-
municação deter-me-ei somente naqueles em que transparece a ideia que o após-
tolo faz da retórica.

1.1. Afeição e consideração

São numerosas as técnicas de Paulo que denotam um cuidado real e cons-


tante de se comunicar com seus leitores. Contentando-me apenas em mencioná-
las ou comentá-las muito brevemente, eu as dividirei em dois grupos: as que ma-
nifestam a afeição de Paulo por seus leitores e despertam a atenção deles (1.1) e as
que visam a uma melhor compreensão das argumentações e de seus pontos críti-
cos (1.2 a 1.5).
Que Paulo manifeste com frequência sua afeição aos crentes aos quais se
dirige, várias expressões o enfatizam claramente. Primeiro, a maneira como, du-
rante as reflexões, se dirige diretamente a eles, chamando-os de “irmãos”3, mas
também de “bem-amados”4, “meus filhos”, “meus filhos queridos”5, ou ainda ao
lhes declarar que ele os traz no coração e lhes quer bem com ternura6. Que esses
termos em que se manifesta a afeição do apóstolo tenham por função atenuar
uma censura, prevenir uma dúvida etc., não há absolutamente necessidade de o
mostrar aqui. A função comunicativa cobre todas as outras e as amplifica.

2. A mestria de Paulo em matéria de retórica é há muito conhecida. Rudolph Bultmann insis-


tiu com muita razão na diatribe (Der Stil der paulinischen Predigt und die kynisch-stoische Diatribe,
Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1910), que tem, sem nenhuma dúvida, uma função comu-
nicativa. Há quase cinquenta anos Amédée Brunot apresentou o conjunto das figuras numa obra
ainda consultável: Le génie littéraire de saint Paul, Paris, Cerf, 1955 (LeDiv 15). Folker Siegert (Argu-
mentation bei Paulus gezeigt an Röm 9-11, Tübingen, Mohr Siebeck, 1985 [WUNT 34]) foi também
à sua maneira um pioneiro.
3. Não se mencionam aqui senão as apóstrofes (“[Vós], irmãos!”): Romanos 1,13; 7,1.4; 8,12;
10,1; 11,25; 12,1; 15,14.30; 16,17; 1 Coríntios 1,10.11.26; 2,1; 3,1; 4,6; 7,24.29; 10,1; 11,33; 12,1;
14,6.20.26.39; 15,1.31.50.58; 16,15; 2 Coríntios 1,8; 8,1; 13,11; Gálatas 1,11; 3,15; 4,12.28.31;
5,11.13; 6,1.18; Filipenses 1,12; 3,1.13.17; 4,1.8; 1 Tessalonicenses 1,4; 2,1.9.14.17; 3,7; 4,1.10.13;
5,1.4.12.14.25; Filêmon 1.7.20.
4. Mesma observação. Ver: Romanos 12,19; 1 Coríntios 10,14; 15,58; 2 Coríntios 7,1; 12,19;
Filêmon 2,12; 4,1; 1 Tessalonicenses 2,8.
5. No vocativo em Gálatas 4,9; Filipenses 2,11. Ver ainda 1 Coríntios 4,14; 2 Coríntios 6,13; 1
Tessalonicenses 2,11.
6.Ver, por exemplo, Filipenses 1,7-8 e os versículos próximos.

52
II – Uma escrita em movimento
Além dos apelativos, observemos os argumentos baseados no ethos ou no
pathos7, as afirmações de elogio ou de censura8, as exclamações — “Oh! eu dese-
jaria estar neste momento junto de vós para acertar com o tom que convém, pois
não sei como haver-me convosco”9 —, as questões ou interrogações que fazem
ressaltar as argumentações10, ou ainda as “Não quero que ignoreis”11, “Vós/nós
sabeis/sabemos que”12 e “Não sabeis que…?”13, que são outras tantas maneiras de
Paulo manter um contato vivo com as comunidades às quais se dirige.
A mais conhecida das técnicas para tornar vivo o estilo é a diatribe, de que
Paulo se vale para apostrofar, à moda dos oradores e dos filósofos itinerantes de
então, um interlocutor fictício e dialogar com ele14.

7. Nos discursos, o ethos diz respeito, o mais das vezes, ao orador (sua honestidade, sua sinceri-
dade etc., com, em oposição, uma crítica da maneira de viver ou de agir dos adversários) e o pathos
aos ouvintes (os sentimentos ou emoções que se quer vê-los experimentar). Dá-se o mesmo nas
cartas do apóstolo: a que se apoia mais no ethos de Paulo (e dos que ele apresenta como adversários)
é sem nenhuma dúvida 2 Coríntios. Quanto ao pathos, encontramo-lo em todas as cartas; para um
exemplo simples e patente, ver Filêmon.
8. Podemos encontrar elogios repetidos dos destinatários em 1 Tessalonicenses 1–3 e Filipenses.
Igualmente os prayer reports (com o verbo euvcaristei/n) no início de quase todas as cartas (excluem-
se Gálatas, em que não se encontrará nenhum elogio, e 2 Coríntios, em que a fórmula euvcaristw/
é substituída por uma eulogia — Paulo não tem de modo algum vontade de fazer elogios a essas
comunidades, por razões que conhecemos) funcionam como uma captatio benevolentiae.
9. Gálatas 4,20, trad. TEB. Para expressões semelhantes, ver 2 Coríntios 13.
10. Assim Romanos 8,31-34; 1 Coríntios 9; Gálatas 3,1-5; 1 Coríntios 14,6-16.
11. Romanos 1,13; 11,25; 1 Coríntios 10,1; 12,1; 2 Coríntios 1,8; 1 Tessalonicenses 4,13.
12. Romanos 2,2; 3,19; 7,14; 8,22.28; 1 Coríntios 8,1.4; 9,13.24; 12,2; 2 Coríntios 5,1; Gálatas
4,13; Efésios 5,5; 1 Tessalonicenses 3,3; 5,2.
13. Romanos 6,3.16; 1 Coríntios 3,16; 5,6; 6,2-3.9.15-16.19; 9,13.24. A fórmula aguarda uma
resposta positiva (“Com toda a certeza!”) e exprime várias vezes uma reprovação implícita (sobre-
tudo em 1 Coríntios).
14. O uso da diatribe foi objeto de diversos estudos. A primeira monografia, ainda famosa, foi a
de Rudolph Bultmann, Der Stil der paulinischen Predigt und die kynischstoische Diatribe (cf. nota 2). O
assunto foi retomado por Stanley Kent Stowers (The Diatribe and Paul’s Letter to the Romans, Chico
[CA], Scholars Press, 1981 [SBL.DS 57]), que defendeu seu ponto de apoio escolar. Thomas
­Schmeller (Paulus und die “Diatribe”. Eine vergleichende Stilinterpretation, Münster, Aschendorff,
1987 [NTA.NF 19]) recusou (com razão) várias teses de Stowers. Para ele, a diatribe não é um
gênero literário em si, e seu meio de vida não é em primeiro lugar ou apenas a escola, até a acade-
mia, pois é utilizada também e sobretudo pelos oradores e filósofos itinerantes. Mas, com Stowers, re-
conhece que a diatribe não visa necessariamente a adversários cujas posições se refutariam, que o
interlocutor é, muitas vezes, portanto, fictício (isso é patente nas diatribai de Epicteto).Ver algumas
passagens bem conhecidas, como Romanos 2 e 11,17-24.

53
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
1.2. Uma compreensão melhor

O objetivo comunicacional não é aplicado somente no plano da enuncia-


ção, mas está também no arranjo dos enunciados, a saber, na dispositio. Para facilitar
a compreensão de seus desenvolvimentos, são usados, com efeito, diversos proce-
dimentos, em particular as partitiones, que anunciam as diferentes etapas ou os di-
ferentes temas de uma argumentação, mas também as propositiones, que permitem
ao leitor saber o que Paulo pretende mostrar15.
Uma passagem como Romanos 6,1-14 ilustra às mil maravilhas o que acaba
de ser dito, pois utiliza os dois tipos de modelos, orais (em a, b, c e a’, b’, c’)16 e per-
suasivos (uma propositio seguida de explicações). Observamos também no versí-
culo 4 a presença de uma partitio, para anunciar os temas desenvolvidos nos ver­
sículos 5-14. O leitor pode assim perceber melhor o desenvolvimento da passagem,
que consiste numa descrição do itinerário do crente: o versículo 4 é composto de
três enunciados, que são, respectivamente, retomados pelos seguintes, para descre-
ver primeiro uma situação (um fato, v. 5-11), a situação de uma morte (v. 5-7) e de
uma vida (v. 8-10; o v. 11 resume essas duas etapas), depois as consequências que
isso implica (obrigações, v. 12-14)17.

v.4a prepara o aspecto “morte para/com Cristo”


v.4b prepara o aspecto “vida com
Cristo”
a v.5 Pois se fomos totalmente unidos, assimi- v. 8 Mas se estamos mortos
lados à sua morte, sê-lo-emos também à sua com Cristo, cremos que
Ressurreição, também viveremos com ele

15. As propositiones de microunidades e de macrounidades são a tal ponto numerosas em Paulo


que não podemos deixar de lembrar o que já dizia Aristóteles séculos antes em Retórica 1414a30-37,
passagem que traduzo assim:“Com respeito à disposição, uma argumentação de duas partes: deve-se
dizer, com efeito, o que se vai mostrar e mostrá-lo, de sorte que é impossível dizer sem mostrar e
mostrar sem dizer antes o que se vai mostrar; pois aquele que mostra mostra alguma coisa e aquele
que anuncia anuncia por causa do que ele vai mostrar. Essas duas partes chamam-se, respectivamen-
te, protesis (apresentação da tese a ser demonstrada) e pistis (prova)”. Convencionou-se denominar
propositio o enunciado da tese a ser demonstrada (a prothesis) e probatio o conjunto de provas (ou
pisteis) dadas para a explicação ou para a demonstração.
16. Como sabemos, esse tipo de modelo (em particular as reversiones, em a b b’ a’ etc.), de natu-
reza mais estática, é feito para os ouvidos e não permite indicar a progressão lógica que se indica
no plano do vocabulário pelas partículas (pois, portanto etc.); sua utilidade, todavia, é valorizar as
massas lexicais e semânticas.
17. Na coluna direita do primeiro quadro, as afirmações sobre a vida não são postas em confron-
to com as da esquerda, sobre a morte; podemos ver assim a progressão do pensamento: os versículos
5-7 insistem mais sobre o ser-morto do crente, e os versículos 8-10 sobre o ser-vivo e ressuscitado
do Cristo; e se o crente não está ainda ressuscitado está, todavia, vivo para Deus em Cristo.

54
II – Uma escrita em movimento
b v. 6 Compreendamos bem isto: o nosso v. 9 nós o sabemos: ressuscita-
homem velho foi crucificado com ele, para do de entre os mortos, Cristo
que… mais escravos do pecado não morre mais; a morte não
tem mais domínio sobre ele.
c v. 7 Pois aquele que está morto está libertado v. 10 Pois, morrendo, é para o
do pecado pecado que ele morreu uma
vez por todas; vivendo, é para
Deus que ele vive
repetição v. 11a Do mesmo modo, também vós, con- v. 11b e vivos para Deus em
siderai que estais mortos para o pecado Jesus Cristo

v. 4c prepara o aspecto “levemos uma vida nova”


a = 12 Que o pecado não mais reine em vosso corpo mortal, para vos fazer obede-
cer às suas concupiscências.
b = 13 Não ponhais mais os vossos membros a serviço do pecado como armas da
injustiça,
b = 13 mas, como vivos egressos de entre os mortos, fazendo dos vossos membros
armas da justiça, ponde-vos a serviço de Deus.
a = 14 Pois o pecado não terá mais domínio sobre vós, visto que já não estais sob a
lei, mas sob a graça.

Por várias vezes acontece de Paulo proceder como faz aqui nos versículos
5-11, repetindo-se quase textualmente, a ponto de o leitor não avisado poder se
perguntar se ele não está se repetindo de modo enfadonho18. Mas essas repetições
são feitas para ajudá-lo a identificar as unidades semânticas e seu arranjo. Assim,
em Romanos 6,5-7 e 6,8-10, Paulo começa a cada vez por lembrar globalmente
a experiência crística dos crentes (v. 5 e 8), para explicitar as consequências (v. 6 e
9; morte ao pecado e libertação da morte) e a coerência (v. 7 e 10)19.
Além da partitio de Romanos 6,4, onde se anunciam as etapas da reflexão do
apóstolo, observamos a presença de uma propositio (Rm 6,1-2) em que se anuncia

18.Ver, por exemplo, 1 Coríntios 6,12-20; Romanos 7,14-20, cujo interesse há pouco mostrei;
Jean-Noël Aletti, Rm 7.7-25 ancore une fois: enjeux et propositions, NTS 48 (2002) 358-376.
Para os paralelismos estreitos entre Romanos 6,1-14 e 6,15-23, ver, entre outros, Jean-Noël Aletti,
Romans, in William R. Farmer (ed.), The International Bible Commentary, Collegeville (MN), Litur-
gical Press, 1998, 1.577.
19. Logo voltarei a esse gênero de progressão que parte dos fatos (primeira etapa) e mostra como
eles obedecem a um princípio fundamental (segunda etapa) — progressão típica da reflexão
paulina.

55
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
o que Paulo quer mostrar (os cristãos não podem continuar no pecado). Não há
nenhuma necessidade aqui de passar em revista todas essas propositiones graças às
quais o leitor habituado à maneira de agir paulina encontra imediatamente as
unidades argumentativas, mas somente de insistir na função comunicativa delas20.
Além dos componentes bem conhecidos da retórica persuasiva, o esforço de
comunicação por parte de Paulo encontra-se ainda em numerosos exemplos to-
mados da realidade corrente ou eclesial que ilustram e apoiam seus propósitos21. A
lista das técnicas graças às quais o apóstolo tenta ajudar a comunicação poderia ser
mais longa. Mais que repetir o que já foi dito (e bem dito) por outros, parece-me
preferível ressaltar agora dois fenômenos que, ao que sei, não foram ainda revela-
dos e que marcam a originalidade da comunicação paulina. Veremos as conse-
quências que o exegeta deve tirar para sua própria interpretação.

1.3. O distanciamento

As cartas paulinas deixam entrever os problemas de todos os tipos que as


comunidades fundadas pelo apóstolo tiveram de enfrentar. É função da aborda-
gem sócio-histórica determiná-los com base nos conhecimentos cada vez mais
depurados que temos do ambiente vivido por aquelas comunidades22. Ora, para-
doxalmente, em muitas de suas argumentações Paulo não trata as questões no ní-
vel em que elas se põem. Assim, em 1 Coríntios 1, ele diz ter tido informação de
litígios entre os membros da comunidade a propósito dos apóstolos. Mas, em vez
de responder imediatamente e dizer que os apóstolos não são senão servidores do
Evangelho e que o importante é a comunidade — essa resposta só é fornecida em
3,5 ss. —, ele começa por lembrar a inversão de valores provocados pela cruz, para
indicar a seus destinatários que eles tinham ficado presos aos valores do mundo e
que ainda não entraram nos do Evangelho, totalmente opostos aos primeiros. Em
resumo, ele faz um rodeio, de resto, com fundamento, pois remete ao acontecimen-

20. No comentário sobre Romanos em The International Bible Commentary (cf. nota 18), indi-
quei sistematicamente as propositiones e as provas que as justificam. Sem dúvida, será bom algum
dia fazer o mesmo para as outras cartas, a fim de pôr à disposição de todos as técnicas persuasivas
de Paulo.
21. Entre os mais conhecidos, destaquemos: 1 Coríntios 12,12-26, sobre a Igreja corpo;
1 Coríntios 15,35-41, em que Paulo tenta fazer compreender o que é um corpo ressuscitado;
e 1 Coríntios 9, em que ele se dá como exemplo — voltaremos adiante a esse capítulo de uma
rara beleza.
22. A monografia de Bruce W. Winter, After Paul Left Corinth: The Influence of Secular Ethics and
Social Change, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 2001, que utiliza a arqueologia, as inscrições, a nu-
mismática etc., é típica dessa progressão constante no conhecimento do mundo de então.

56
II – Uma escrita em movimento
to decisivo da cruz e ressalta, sobretudo, que as questões eclesiológicas encontram
sua resposta primeira na cristologia.
A maneira de agir é a mesma em 1 Coríntios 12–14. Os comentadores são
unânimes em dizer que certos membros da comunidade de Corinto considera-
vam a glossolalia superior à profecia — e talvez aos demais carismas. Paulo teria
podido interferir imediatamente, enfatizando que a profecia lhe parecia de mais
proveito que a glossolalia pelas razões amplamente enunciadas em 1 Coríntios 14,
em que o conjunto da argumentação considera tão somente esses dois carismas.
Ora, em vez de mostrar diretamente seu ponto de vista, no mesmo plano em que,
se nos fiarmos nos comentaristas, a questão se punha, o apóstolo começa por lem-
brar que os carismas são múltiplos e diversificados — para falar deles não se deve
perder de vista o conjunto que formam. Ressalta, a seguir, que essa diversidade é
complementar, como a dos membros num corpo — um carisma não pode, então,
ignorar nem desprezar os outros, pois a diversidade está a serviço da sobrevivência
do único corpo. Lembra também que há uma hierarquia de carismas — os que
têm o dom de falar em línguas são nomeados em último lugar! Mas, como se essa
expansão de dons (1Cor 12) não bastasse, o apóstolo acaba por situar todos os
carismas em relação ao ágape, ao declarar que sem este último eles nada seriam. O
intuito desse duplo rodeio (1Cor 12 e 1Cor 13) é pôr em perspectiva a relação
dos dois carismas apresentados a seguir, a profecia e a glossolalia, e mostrar que
deles não se pode verdadeiramente falar senão deles se distanciando.
Sem proceder completamente do mesmo modo, na seção de 1 Coríntios
que trata das carnes sacrificadas aos ídolos (1Cor 8–10) Paulo eleva mais uma vez
o debate. Num primeiro tempo, ele responde diretamente ao problema levantado
(1Cor 8), apresentando argumentos de diferentes tipos, lembrando, sobretudo, o
ágape, a atenção ao outro. Mas isso não basta: ele quer, propondo-se ele próprio
como exemplo, em 1 Coríntios 9, mostrar até onde é preciso chegar, ao recusar os
privilégios e ao se fazer escravo de todos. Esse primeiro rodeio é, aliás, seguido por
um outro, em 1 Coríntios 10, em que o exemplo de Israel no deserto vai lhe per-
mitir evidenciar os riscos de idolatria presentes na aceitação de convites para os
banquetes oferecidos nos templos locais. Alguns não hesitam em chamar de di-
gressões — em latim egressiones, em grego parekbaseis — todas essas passagens em
que Paulo se desvia do problema concreto para o qual se considera que daria uma
resposta. Se entendemos o termo digressão no sentido corrente, o recurso não é
útil, pois parece querer dizer que Paulo perde então o fio de sua argumentação;
mas se lhe deixamos o sentido técnico está correto, pois o procedimento tem bem
a função de responder às questões passando para outro lugar, ampliando o debate e
levando os leitores a um nível de reflexão mais radical.

57
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
Nas cartas paulinas essa passagem a outro lugar e ao essencial é mais frequen-
te do que pensamos e permite explicar a dispositio de outras probationes, como a de
1 Coríntios 15, em que, segundo os comentários mais recentes, a razão pela qual
vários membros da Igreja se recusavam a acreditar numa ressurreição final vinha
do fato de eles a conceberem como uma reanimação. Admitamo-lo sem nenhu-
ma análise. Temos de reconhecer que o apóstolo não vai responder ao problema
imediatamente, mas somente a partir do versículo 35. Antes de corrigir as exposi-
ções dos coríntios, começa por retomar longamente a questão da ressurreição em
si, recorrendo ao argumento cristológico e mostrando que recusar a ressurreição
geral dos mortos significa muito simplesmente rejeitar o Evangelho. Ao fazer isso,
Paulo quer mostrar claramente que a questão sobre a natureza do corpo ressusci-
tado (v. 35-49) deve ser reposta num conjunto mais amplo e fundamental, o da fé
na ressurreição dos mortos. Ao reconduzir os coríntios ao cerne do Evangelho é
que lhes mostra suas consequências para o próprio futuro deles, em outras pala-
vras, para a salvação deles. Em resumo, a argumentação de 1 Coríntios 15 nos
permite ir mais adiante em nossa reflexão sobre as técnicas da retórica paulina.
Com efeito, (i) ela confirma a tendência de Paulo a diferir as respostas imediatas
(ou a se contentar com elas), e (ii) mostra também que em suas respostas o após-
tolo está menos preocupado em recordar as razões ou as motivações de seus cor-
respondentes do que as consequências da posição deles; eis por que muitas vezes
é difícil reconstruir com exatidão as situações ou as dificuldades enfrentadas pelos
cristãos aos quais Paulo se dirige.
Se consideramos globalmente os textos até agora mencionados, podemos
ainda tirar uma conclusão metodológica importante. De fato, em suas argumen-
tações, já o observamos, o apóstolo responde aos problemas e questões das comu-
nidades apenas depois de um rodeio mais ou menos longo e radical. Isso significa
que temos de ter cuidado para não acreditar logo que os problemas das comuni-
dades determinam o gênero retórico das cartas paulinas: o rodeio que o apóstolo
impõe a seus correspondentes modifica, com efeito, a paisagem retórica. O exem-
plo de 1 Coríntios 12–14 é interessante a esse respeito, pois mostra que para de-
terminar o gênero retórico não são os problemas concretos das comunidades que
funcionam como critérios, mas a maneira como Paulo os trata. Assim, 1 Coríntios 14
poderia fazer acreditar que o gênero de toda a seção é deliberativo — pois é a
decisões concretas que o apóstolo quer levar seus correspondentes: a questão “que
fazer?” remete, com efeito, ao gênero deliberativo. Mas ao dar a resposta, passando
pela egressio de 1 Coríntios 13, sobre o ágape, que é de gênero epidíctico — trata-
se com toda a evidência de um elogio (enkômion) —, Paulo nos força a admitir
que uma questão concreta pode também comportar respostas de gênero epidícti-

58
II – Uma escrita em movimento
co. Pois Paulo julga menos importante dizer a seus correspondentes que decisões
concretas eles devem tomar do que modificar a ideia que eles ainda têm do Evan-
gelho e que é falsa.
Um breve olhar à carta aos Gálatas confirmará essas palavras. Com efeito, se
é verdade que a questão à qual os cristãos daquela região, na maioria de origem
pagã, devem dar uma resposta é a circuncisão, a carta que Paulo lhes envia não os
obriga imediatamente a não a fazer. Podemos observar as ambiguidades de Gála-
tas 1–2, em que a questão da circuncisão surge apenas progressivamente23. É so-
mente em Gálatas 5,2 que Paulo lhes declara: “Se vos fizerdes circuncidar, Cristo
não vos servirá (wvfelh,sei) mais para nada”24. Ora, nos capítulos precedentes, o
apóstolo se dedicou a lembrar o essencial do Evangelho mostrando-lhes que a
circuncisão (e, portanto, o estar-sob-a-Lei) não faz parte dele, pois ela não pode
fazer deles nem filhos nem herdeiros. Se Gálatas consiste numa retomada de con-
tato fundamental com as implicações do Evangelho, é que seu gênero é principal-
mente epidíctico25. A maneira como a argumentação se desenvolve mostra, seja
como for, que o que Paulo quer comunicar são menos prescrições e mais a força
inaudita do Evangelho.
Se, portanto, a tendência do apóstolo é de retroceder, não respondendo ime-
diatamente às questões concretas e, sobretudo, levando o debate para um outro
ponto radical, isso significa que seu discurso é bem menos contingente do que se disse,
pois, mais que agir de modo casuístico, ele desenvolve as questões procurando
sempre enunciar as relações fundamentais e duradouras sem as quais as questões (e
as respostas) perderiam sua pertinência.

23. A primeira menção se encontra em Gálatas 2,7.


24. Tradução TEB. O verbo wvfele,w designa aquilo a que o gênero deliberativo visa, a saber, o
útil. Foi isso que levou alguns intérpretes (ver a nota seguinte) a dizer que Gálatas pertence a esse
gênero.
25. Segundo alguns, Gálatas seria uma “apologetic letter” (Hans Dieter Betz, Galatians: A Com-
mentary on Paul’s Letter to the Church of Galatia, Philadelphia [PA], Fortress Press, 1979, 14-15 [Her-
meneia]), próxima, portanto, do gênero judiciário; segundo outros, o gênero seria deliberativo: o
que escolher, fazer-se ou não circuncidar? (George A. Kennedy, New Testament Interpretation through
Rhetorical Criticism, Chapel Hill [NC], The University of North Carolina Press, 1984, 146-147
[Studies in Religion]); segundo outros, enfim, o gênero seria epidíctico (Antonio Pitta, Disposizio-
ne i messaggio della lettera ai Galati, Roma, Institut biblique pontifical, 1992, 45-46 [AnBib 131]). Já
disse alhures que não se podia decidir sobre o gênero de uma carta sem levar em consideração as
propositiones. Ver Jean-Noël Aletti, Paul et la rhétorique. Etat de la question et propositions, in
Jacques­ Schlosser (éd.), Paul de Tarse. Congrès de l’ACFEB (Strasbourg, 1995), Paris, Cerf, 1996,
38-40 (LeDiv 165).

59
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
1.4. Uma reflexão feita para ser compreendida por todos

Que o fato de retroceder em relação aos problemas serve para qualificar a


resposta e sua comunicação, espero não ter necessidade de demonstrá-lo mais a
fundo, e me contentarei com apresentar também de modo breve outra técnica do
apóstolo que favorece ainda a comunicação.
Quando os comentadores tentam enfatizar o fundamento cultural e religio-
so das afirmações paulinas, a pesquisa deles é na maior parte do tempo monoco-
lor: segundo eles, o apóstolo se inspira (exclusivamente) no judaísmo ou no hele-
nismo. Podemos explicar isso pela formação de uns e de outros, pois é difícil
conhecer em profundidade os dois mundos, ainda que o judaísmo do tempo de
Paulo fosse muito helenizado26. Eis, sem dúvida, por que é sempre útil ter sob os
olhos vários comentários cujos autores não sejam todos especialistas de uma só
literatura, clássica ou judaica. Com efeito, muitas passagens das cartas paulinas re-
metem a dois mundos, e não se trata de um acaso, mas sim de uma vontade de se
comunicar, para ser compreendido por crentes de origem diversa, judaica ou não27.
Dois ou três exemplos deverão ser aqui suficientes.
Comecemos por Romanos 1,18–3,20, cujos comentários observam, todos
eles, que essa passagem retoma numerosos topoi judaicos, e com muita fidelidade,
como também foi dito com muita exatidão28. Mas convém acrescentar logo que a
argumentação do apóstolo nesses capítulos era inteligível não apenas para os cris-
tãos de origem judaica, mas igualmente para todos os que conheciam a maneira
de raciocinar das escolas filosóficas de então29. O mesmo, de resto, pode ser dito da

26. Sendo competente, o leitor destas páginas me agradecerá por não citar os autores que, a
partir da monografia de Martin Hengel (Judentum und Hellenismus. Studien zu ihrer Begegnung
unter besonderer Berücksichtigung Palästinas bis zur Mittle des 2. Jhs. v. Chr., Tübingen, Mohr
Siebeck, 1969 [WUNT 10]), discutiram essas questões.
27. Johannes S.Vos entendeu bem essa referência múltipla de Paulo à filosofia e ao direito grego,
romano, mas também bíblico e judaico. Encontraremos essas hipóteses reunidas num volume re-
cente: Die Kunst der Argumentation bei Paulus. Studien zur antiken Rhetorik, Tübingen, Mohr Sie-
beck, 2002 (WUNT 149). Se suas posições se assemelham muitas vezes ao espírito de geometria, a
hipótese de trabalho é globalmente válida.
28. James D. G. Dunn, What was the Issue between Paul and “Those of the Circumcision”?, in
Martin Hengel, Ulrich Heckel (Hrsg.), Paulus und das antike Judentum, Tübingen, Mohr Siebeck,
1991, 295-313 (WUNT 58). Comentarei adiante Romanos 1–3 e a opinião que a respeito tem esse
autor.
29.Ver Johannes S.Vos, Sophistische Argumentation im Römerbrief des Apostels Paulus, NT 43
(2001) 224-244, espec. 230-231; o artigo é retomado em Die Kunst der Argumentation, 65-86 (cf.
nota 27), que considera a argumentação desses primeiros capítulos de Romanos a partir do que é
dito da estratégia dos sofistas na literatura clássica.

60
II – Uma escrita em movimento
argumentação de Gálatas 3–4, cujo duplo fundamento há pouco mostramos30.
Muitos leitores, com efeito, podem se perguntar como os crentes da Galácia, em
sua maior parte de origem não judaica, podiam compreender as técnicas de inter-
pretação das Escrituras utilizadas pelo apóstolo, entre outras a gezerah shawah31, que
encontramos muitas vezes em Gálatas 3,2-13, e que Paulo devia utilizar, pois os
que contestavam seu Evangelho o faziam muito provavelmente com base nas Es-
crituras, em particular Gênesis 17, para mostrar a necessidade da circuncisão. Para
lhes responder, o apóstolo não podia se contentar em invocar os fatos (Gl 3,1-5) e
as convicções (Gl 2,15-21); devia ainda mostrar que as Escrituras, sobretudo a
Torá, confirmavam sua interpretação da Lei e da relação entre promessa, fé e justi-
ça (a primeira exigindo as duas outras). Podia o leitor não judeu compreender
como Paulo argumenta em Gálatas 3 e avaliar a força de seus argumentos? Vários
exegetas observam a esse propósito que os retóricos gregos e romanos discorriam
sobre a natureza e o estatuto32 das leis (sobre suas ambiguidades, suas possíveis
contradições e meios de superá-las, remetendo, por exemplo, à vontade do legisla-
dor, que não poderia se contradizer33). De fato, não podemos negar que Gálatas 3
podia ser compreendida por uma pessoa que tivesse um conhecimento médio do
direito romano de então: a aplicabilidade, a especificidade e a finalidade de uma ou
de diversas leis eram muitas vezes discutidas. O que ele podia delas entender é
simples, ainda que a progressão não seja sempre evidente: Paulo afirma contra toda
expectativa que um sistema legislativo que pretenda, todavia, promover a justiça
mais que os outros foi feito, na realidade, pela intenção mesma do legislador, para
provocar e multiplicar as transgressões, que seus temas se expõem à condenação e
que isso mesmo estava na intenção do legislador! Tal aposta não podia deixar de
intrigar qualquer um que estivesse um pouquinho a par de questões jurídicas.

30. Marc Rastoin, Tarse et Jérusalem. La double culture de l’Apôtre Paul en Galates 3,6-4,7,
Roma, Biblical Institute Press, 2003 (AnBib 152).
31. Com a tradição rabínica posterior (século IV), a extensão da regra foi drasticamente restrin-
gida. Sobre a questão ver, entre outros, Michael Chernick, Internal Restraints on Gezerah Shawah’s
Application, JQR 80 (1990) 253-282. Em relação aos problemas que essas restrições posteriores
levantam para a validade da exegese paulina das Escrituras, ver Jean-Noël Aletti, Romains 4 et
Genèse 17. Quelle énigme et quelle solution?, Bib. 84 (2003) 305-325.
32. Segundo Bernard Vonglis (Droit romain et rhétorique, Tijdschrift voor Rechstgeschiedenis 37
[1969] 247-256), o estatuto das leis é o ponto litigioso sobre o qual se apoia o debate judiciário.
Remete a Quintiliano, InstOrat 7,6,1: “Scripti et voluntatis frequentissima inter consultos quaestio
est, et pars magna controversi iuris hinc pendet”.
33. Cf. em particular Johannes S.Vos (Die hermeneutische Antinomie bei Paulus [Galater 3:11-
12; Römer 10:5-10], NTS 38 [1992] 254-270), que subordina o problema do status legum contrarium
ao do status scripti et voluntatis (266), ou, em outros termos, subordina o direito constituído (as leis
concretas) ao poder constituinte.

61
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
Mas Romanos 1–3 e Gálatas 3–4 não são as únicas passagens a mostrar que
Paulo escolhe suas provas para que o alcance e a pertinência delas possam ser en-
tendidos pelos dois grupos, judeu e não judeu, que compunham as comunidades
por ele fundadas. Mostrei que os topoi da argumentação de Romanos 7,7-25 re-
metiam também a um duplo fundamento, bíblico/judeu e grego34. Sem repetir os
desenvolvimentos desse artigo, acrescentarei apenas que estes três exemplos, Ro-
manos 1–3, Romanos 7,7-25 e Gálatas 3–4, convidam a ampliar a pesquisa e a
verificar se em outras passagens de Paulo a escolha dos topoi, dos exemplos e, mais
geralmente, das pisteis tem a mesma função comunicativa35. Semelhante pesquisa
corrigiria a maneira unilateral e exclusiva com que se apresenta habitualmente o
fundamento das cartas do apóstolo.
Paulo não fornece apenas provas e topoi que remetem seus leitores às respecti-
vas culturas deles. Para que suas cartas possam interessar aos membros de outras
Igrejas e ter assim uma audiência mais universal — o que leva a seu ápice a visão
comunicativa —, ele suprime ou torna vago tudo o que descreve muito diretamente
a situação concreta da comunidade à qual se dirige, em particular tudo o que pode-
ria ajudar o leitor a reconhecer as posições concretas de um grupo ou de um indi-
víduo36. Para que sua reflexão seja aplicável em outras comunidades, ele considera
tão somente o que há de emblemático em cada situação. Essa técnica, também ela,
limita notavelmente a contingência das respostas que o apóstolo dá a cada Igreja.

34. Jean-Noël Aletti, Rm 7.7-35 encore une fois: enjeux et propositions (cf. nota 18),
358-376.
35. Alguns topoi eram passados de uma cultura a outra, como o do atleta — sobre o assunto, ver,
por exemplo, o recente comentário de Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A
Commentary on the Greek Text, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 2000, 712-713 (NIGTC), que cita
com muita oportunidade o estudo de Victor C. Pfitzner, Paul and the Agon Motif: Traditional
­Athletic Imagery in the Pauline Literature, Leiden, Brill, 1967 (NT.S 16); sem dúvida, os comentá-
rios deveriam assinalar sempre mais os deslocamentos e os empréstimos que confirmam as razões
pelas quais Paulo escolheu certos topoi mais que outros.
36. Tomemos, por exemplo, 1 Coríntios 6,12 ss., passagem em que a maior parte dos comentá-
rios vê uma alternância de slogans vindos dos coríntios e respostas do apóstolo. O estilo de diatribes
não permite que nos pronunciemos sobre a identidade daqueles aos quais se atribuem esses slogans:
são eles materialistas e hedonistas? Trata-se, ao contrário, de espirituais para os quais o corpo não
teria nenhuma importância moral? É muito difícil pronunciar-se a respeito, pois, ao não fornecer
as razões que apoiem esses slogans e permitam identificar seus autores, Paulo não nos facilita a tarefa.
O mesmo acontece para aqueles que, em 1 Coríntios 15, refutam a ressurreição final dos mortos:
temos de ver nisso um desprezo do corpo (sendo a imortalidade da alma suficiente), a expressão de
uma escatologia já totalmente realizada (como em 2Tm 2,18), a não crença numa outra vida após
a morte, ou ainda uma maneira de ver a ressurreição como reanimação? Como Paulo não considera
as razões, mas somente as consequências da recusa da ressurreição final dos corpos, uma designação
segura nos é praticamente impossível.

62
II – Uma escrita em movimento
1.5. Uma retórica do diálogo

Aos fenômenos que acabam de ser lembrados — a indiferença em relação às


dificuldades imediatas e a utilização de pisteis e de topoi que pudessem ser com-
preendidos por crentes de cultura e de origem diferentes — e que mostram como
Paulo procedeu para melhor se comunicar e convencer, deve-se juntar um outro
fenômeno — único, pelo que sei — no corpus paulino, a saber, Romanos 1,18–
3,20, em que Paulo segue fielmente as reflexões judaicas sobre a retribuição final
e em que desenvolve uma retórica do diálogo com o judaísmo até hoje mal inter-
pretada pelos comentários. Onde está, então, a dificuldade? De acordo com a opi-
nião comum, Paulo mostra nesses capítulos que toda a humanidade é pecadora,
que ela é, portanto, incapaz de apelar para suas obras e está por isso ameaçada pela
cólera escatológica. Semelhante interpretação pode invocar em seu favor as pró-
prias afirmações do apóstolo em Romanos 1,18 e 3,9-19. Daria a entender essa
primeira seção que a revelação da cólera divina está associada ao Evangelho? Que
faz parte dele? Que é até sua primeira palavra?37 Deve a mensagem evangélica
começar por anunciar à humanidade pecadora a iminência de sua punição para a
impelir ao arrependimento e à conversão? Em outra parte, já dei explicação sobre
o que considero um grave despropósito38, danoso para a interpretação de toda a
carta aos Romanos, e demonstrei que não se devia confundir a moldura retórica
e sua estratégia de argumentação. A seção começa certamente por declarar que a
cólera se manifesta em toda injustiça humana, e termina coberta de citações bíbli-
cas que afirmam que todos os humanos estão totalmente corrompidos, mas não se
deve confundir esse contexto, que retoma quase ao pé da letra as ideias judaicas
referentes à retribuição no fim dos tempos, e a finalidade desse conjunto, que é
excluir a exceção judaica, ao levar em consideração a retribuição. O importante para
o assunto que nos ocupa é entender bem que Paulo retoma fielmente as ideias do
judaísmo em matéria de retribuição39 para ressaltar não o pecado da humanidade,

37. Sobre o assunto, ver Michael Theobald (Zorn Gottes, in Studien zum Römerbrief, Tübingen,
Mohr Siebeck, 2001, 68-100 [WUNT 136]), que conclui pela negativa: a cólera não é objeto do Evan-
gelho, mesmo que faça parte de seu horizonte.
38. Para não me repetir, permito-me remeter o leitor especialmente a Jean-Noël Aletti, Ro-
mans, in Willian R. Farmer (ed.), The International Bible Commentary (cf. nota 18), 1.553-1.600. Para
uma apresentação mais desenvolvida da problemática, cf. Jean-Noël Aletti, Le jugement de Dieu
en Rm 1-3, in Claude Coulot (éd.), Le jugement dans le NT (FS J. Schlosser), Paris, Cerf, 2004.
39. Num estudo já mencionado acima (cf. nota 28), Dunn admite também que nessa seção o
apóstolo descreve corretamente o judaísmo, e acrescenta que ele o descreve bem como covenantal
nomism. Tenho algumas (grandes) reservas sobre o último ponto, pois em Romanos 1–3 o objetivo
de Paulo não é apresentar todos os componentes da religião e da fé judaica, mas somente o que diz
respeito à retribuição.

63
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
mas as vias (inauditas) da justiça divina. Em Romanos 1–3 (e mesmo 1–4) são os
princípios da retribuição (e, por esse meio, da justificação) divina que são longa-
mente analisados e não, em primeiro lugar, a natureza fundamental e univer­
salmente pecadora de nossa pobre humanidade40.
O que podemos concluir em vista do percurso que Paulo nos propõe em
Romanos 1–3? Que a melhor maneira de fazer retórica é começar pelos fatos e
princípios sobre os quais se está de acordo com o interlocutor, para se apoiar nisso
a fim de ir mais longe no diálogo com ele. É bem essa a estratégia do apóstolo, que
procura primeiro uma plataforma comum com aquele que poderia lhe fazer ob-
jeção, para em seguida mostrar as consequências imprevisíveis que se devem tirar
(para o judeu, mas também para o cristão). Assim, ao prestar toda a nossa atenção
às técnicas retóricas do apóstolo, nós nos damos a possibilidade de evitar os des-
propósitos e não confundir as ideias de Paulo com as daqueles com quem cami-
nha, tachando-as muito rápido de contradição ou de incoerência41.

1.6. Consequências para o estudo de Paulo

Assim, podemos concluir brevemente nossas reflexões sobre a natureza fun-


damentalmente comunicativa da retórica paulina. Paradoxalmente, a comunica-
ção, que no início parecia apenas uma função ad extra, voltada para o ouvinte ou
leitor, revelou-se progressivamente um componente essencial para a compreensão
das cartas paulinas, em particular das seções muito difíceis, como Romanos 1–3,
Romanos 7 ou Gálatas 1–2. Chegaríamos mesmo a dizer que o debate atual sobre
a compreensão que o apóstolo teve da Lei e do papel que ele lhe concede é de-

40. A construção e a progressão da argumentação em Romanos 1–3 serão apresentadas adiante.


41. Não tendo visto a finalidade e as técnicas retóricas em Romanos 1–3, Sanders pensou, sabe-
mos disso, que Paulo estava em contradição, sobretudo em Romanos 2,13, com o que ele diz
alhures (em particular em Rm 4) sobre a doutrina da justificação sem as obras. Na realidade, Ro-
manos 2,13 não faz mais que seguir fielmente as ideias judaicas sobre a retribuição divina, pelas
razões indicadas acima. E as razões que levaram o apóstolo a tomar esse itinerário não se deixam
perceber senão se se indicam suas técnicas retóricas. Sem dúvida é útil lembrar aqui que as argu-
mentações paulinas diferem umas das outras, pois seus pontos de partida e sua perspectiva diferem.
Assim, Romanos 1–4 parte da espera judaica do julgamento final e se desenvolve ao seguir essas
categorias (o que explica as afirmações a respeito de ser o homem inescusável, a diatribe e os cri-
térios para determinar como se manifesta a justa retribuição divina), ao passo que Romanos 5–8,
cuja perspectiva é “cristã”, pode pôr Cristo e Adão em paralelo e partir do homem escatológico
para pincelar os traços do homem protológico — Romanos 5,12-21 não deve, a respeito, fazer o
leitor se enganar, como se fosse por Adão que pudéssemos compreender o Cristo e o alcance uni-
versal de sua mediação. Cf. Jean-Noël Aletti, Rm 7.7-25 ancore une fois: enjeux et propositions
(cf. nota 18), 372-375.

64
II – Uma escrita em movimento
terminado em boa parte pelo conhecimento que temos de suas técnicas retóricas.
Eis por que espero com muita curiosidade as intervenções deste programa de
pesquisa sobre a relação de Paulo com a Lei!42

2. Retórica e construção teológica

2.1. A progressão formal

2.1.1. As microunidades

Como acabamos de ver, Paulo utiliza técnicas retóricas para se comunicar


melhor; convém acrescentar logo que seu uso é inseparável da construção e da
progressão de seu pensamento.
Formalmente, as microunidades argumentativas do apóstolo procedem por
sucessivos esclarecimentos43. Paulo começa por uma frase (com frequência a pró-
pria propositio) que vai explicar rapidamente numa frase breve e também elíptica
(a que em retórica se chama a ratio), a qual é, por sua vez, explicada etc. Esse tipo
de progressão pode ser lido em Romanos 6,1-14, de que já falamos acima:

6,1 pergunta
6,2 resposta sob forma de propositio
6,3 ratio: explicação da fórmula “mortos para o pecado” de 6,2: o batismo é com
efeito um batismo na morte de Cristo
6,4 repetição de 6,3 e descrição do itinerário do crente com Cristo sob a forma
de partitio:
4a → v. 5-7 mortos com ele para o pecado
4b → v. 8-10 Cristo ressuscitado → v. 11 crentes vivos
4c → v. 12-14 consequências éticas: vida nova dos crentes
6,5-7 cf. 4a: os crentes mortos e sepultados com Cristo
6,8-10 cf. 4b: e como Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais
6,11 também os crentes estão mortos para o pecado e vivos para Deus
6,12-14 cf. 4c: consequências éticas: as exortações

42.Ver de modo especial as contribuições de James D. G. Dunn, de Daniel Marguerat e de Jean-


Pierre Lémonon neste livro.
43. Por microunidade entendo a argumentação elementar de que fala Aristóteles (cf. nota 15),
ou seja, a que é formada por uma propositio e sua prova.

65
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
As microunidades argumentativas são em sua maior parte elaboradas por
uma propositio. Mas podemos também encontrar as que se desenvolvem a partir de
uma partitio, como mostrado em 2 Coríntios 5,18-21:

a = 18a tudo vem de Deus


que nos reconciliou consigo pelo Cristo
b = 18b e nos confiou o ministério da reconciliação
A = 19ab do mesmo modo que agir divino ‌
Deus reconciliava o mundo consigo em Cristo
— não imputando aos homens suas faltas agir divino
B = 19c — e pondo em nós a palavra de reconciliação. ministério
B’ = 20 Em nome do Cristo, exercemos a função de atribuído
embaixadores ministério
por nós, é o próprio Deus que vos dirige um realizado
apelo; exortação
em nome do Cristo, nós vos suplicamos:
A’ = 21 deixai-vos reconciliar com Deus;
aquele que não conhecera o pecado,
ele o identificou com o pecado, agir divino
a fim de que por ele nos tornemos justiça de
Deus.

Como partitio, o versículo 18 prepara os desenvolvimentos que se seguem


e decompõe a iniciativa divina em dois tempos: (a) Deus se reconciliou com o
mundo, (b) e confiou a Paulo que o anunciasse. O desenvolvimento retoma
esses dois tempos: o agir divino que reconcilia (= A) e confia o anúncio (= B)
e o ministério do anúncio que Paulo exerce entre os coríntios ao lhes lembrar
o seu ministério (que é o de anunciar = B a obra inaudita de reconciliação de
Deus = A’). O modelo oral pode dar a impressão de que Paulo se repete inu-
tilmente; na realidade, ele tem por função tornar mais nítidos os componentes
semânticos e em nada impede a progressão do pensamento, que se carrega
progressivamente de elementos novos até o enunciado paradoxal do versículo
21. A repetição dos mesmos elementos (a e b etc.) tem igualmente outra fun-
ção: quando Paulo repete não faz mais que executar a ordem divina, e ele o faz
para que compreendamos e consideremos um ponto que ele julga muito im-
portante. Pois a obra de reconciliação realizada por Deus não deve ser somente
repetida para ser conhecida e para ser vivida, mas o deve ser porque continua
sempre inaudita: no processo de reconciliação é a parte ofensiva que deve to-
mar a iniciativa, implorando à parte ofendida que perdoe e reconcilie; ora, é
Deus, o ofendido, que dá o primeiro passo e vem até nós, usando meios extre-

66
II – Uma escrita em movimento
mos44. A progressão por repetição e amplificação tem, assim, em Paulo uma
função reveladora essencial.
Além de Romanos 6,1-14, Romanos 6,15-23 e 2 Coríntios 5,18-21, pode-
mos encontrar em todas as cartas do apóstolo muitas outras microunidades argu-
mentativas. Será conveniente que algum dia alguém se dedique a montar seu in-
ventário: o empreendimento não servirá senão aos não peritos…

2.1.2. Os encadeamentos de microunidades

De uma microunidade se passa a outra, e as argumentações paulinas muitas


vezes são feitas de microunidades unidas umas às outras (a1 + a2 + a3…) para for-
mar uma cadeia e constituir uma macrounidade (A1), a qual é seguida por outra
macrounidade etc.Temos um exemplo desse tipo de encadeamento em Romanos
6-8:

A1 a1 Rm 6,1-14
a2 Rm 6,15-23
a3 = peroratio de a1 e a2 Rm 7,1-6
A2 a1 Rm 7,7-12
a2 Rm 7,13-20
a3 Rm 7,21-23
a4 = peroratio da unidade A2 Rm 7,24-25
A3 a1 Rm 8,1-17
a2 Rm 8,18-30

Em poucas palavras, a argumentação paulina é hierarquizada, e, como acaba-


mos de dizer, numerosas microunidades se desenvolvem segundo o princípio de
clarificação progressiva.

2.1.3. A organização das pisteis

Em muitas probationes podemos descobrir um outro princípio de organiza-


ção, que se firma desta vez na maneira como as provas (pisteis) estão dispostas entre

44.Ver John T. Fitzgerald, Paul and Paradigm Shifts: Reconciliation and Its Linkage Group, in
Troels Engberg-Pedersen (ed.), Paul Beyond the Judaism/Hellenism Divide, Louisville (KY), West-
minster John Knox Press, 2001, 241-262; ali se mostra bem, com outros intérpretes do versículo,
que a novidade paulina se inscreve nessa inversão.

67
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
si. Com efeito, Paulo começa, muitas vezes, apoiando-se em fatos — que são os da
vivência cotidiana e/ou os da experiência dos crentes — e passa depois aos prin-
cípios que administram esses fatos e os explica, para ressaltar o que eles implicam
e como abrem horizontes; recorre, enfim, às autoridades, a saber, às Escrituras e,
sobretudo, às palavras ou às ordens do Cristo. Sobre esse ponto também, haveria
uma classificação exaustiva a fazer, mas eu me contentarei em citar alguns exem-
plos representativos — como deveriam ser todos os exemplos!
Em Romanos 1–3, seção já mencionada, que provas ilustram a propositio de
Romanos 1,18 (“a cólera de Deus se revela do alto do céu contra toda impiedade
e toda injustiça dos homens…”)? A probatio começa por mencionar fatos sem os
quais seria difícil afirmar que Deus pune a injustiça. Se Deus jamais tinha punido
a injustiça dos homens, poderíamos nós aguardar a punição, se é verdade que é da
experiência passada que se alimentam nossas afirmações e nossas esperanças? Ro-
manos 1,19-32 o demonstra, pois, pelos fatos (bíblicos, mas não citados como tais)
admitidos por todos45 — que advertem sobre a reação divina diante da recusa dos
homens em reconhecê-lo. Uma vez admitidos os fatos e sua legitimidade — se
Deus pune, é que os homens são responsáveis46 —, Paulo pode passar aos princí-
pios (Rm 2) que impõem a cólera divina — e, mais geralmente, a retribuição: ele
pune (ou recompensa) segundo as obras (2,6), imparcialmente (2,11), pois ele vê
os corações (2,16)47. Passando em revista os princípios dessa retribuição, o apósto-
lo mostra também suas consequências para o judeu, bem como para o não judeu
(ainda Rm 2): a retribuição final será a mesma para o judeu incircunciso de cora-
ção como para o não judeu injusto. Resta-lhe, então, mostrar, com a ajuda da Es-
critura48, que todos devem ter a retribuição da mesma maneira, pois são todos eles
pecadores (Rm 3,9-19, coberto de citações).
Em outra passagem, 1 Coríntios 9, que infelizmente não será comentada aqui,
encontramos grosso modo a mesma ordem nas pisteis: fatos, princípios (ou exemplos)

45. Isso se explica porque Paulo não sente necessidade de se estender; ele retoma, com efeito,
topoi que se encontram com abundância na literatura judaica intertestamentária.
46. O enunciado de Romanos 1,20 sobre ser o homem inescusável é essencial à probatio, pois se
os humanos fossem escusáveis Deus, ao dar livre curso à sua cólera, tornar-se-ia injusto.
47. A relação entre imparcialidade e conhecimento dos corações não é uma novidade paulina.
Trata-se de um topos bíblico conhecido (ver, por exemplo, 1Sm 16,7), que o apóstolo sutilmente
utilizará, por razões que nos são conhecidas, em Romanos 2,25-29 (se um fisicamente circunciso
não o é em seu coração, Deus não pode recompensar como se o fosse), em virtude do princípio de
imparcialidade.
48. Paulo não pode de modo algum se abster da prova pelas autoridades escriturísticas, pois
somente a palavra de Deus que vê os corações (vemos mais uma vez por que Paulo manteve esse
princípio de retribuição) pode declarar pecadores todos os homens sem exceção.

68
II – Uma escrita em movimento
e autoridades. Paulo começa49 por lembrar que ele é apóstolo (v. 1b-2)50 e estabe-
lece a lista dos direitos que são os dos apóstolos (direitos exercidos — trata-se, pois,
de fatos — e admitidos por todos51), a começar pelos princípios humanos em apoio
a esses direitos (o operário merece seu salário etc.), recorre em seguida às Escrituras
(v. 8-12), ao exemplo sagrado (v. 13) e, enfim, ao que o Senhor mesmo prescreveu
(v. 14). A todos esses argumentos, dispostos em clímax, Paulo oporá as razões que o
fizeram renunciar a direitos tão fortes (v. 15-18), pois não somente não exerceu
seus direitos como foi ao extremo oposto, ao se fazer escravo, estatuto de quem não
tem nenhum direito52. Como 2 Coríntios 5,18-21 já havia feito pressentir, essa
passagem mostra também, à sua maneira, como Paulo sabe avançar em suas argu-
mentações para chegar às formulações mais fortes e mais paradoxais.
Poderíamos citar aqui numerosas passagens que obedecem a esse tipo de
progressão. Baste acrescentar que essa ordem formal serve de suporte para a cons-
trução do pensamento. Com efeito, em Paulo, retórica e teologia são inseparáveis,
na medida em que a dispositio e as figuras do discurso determinam o sentido e,
portanto, o alcance das afirmações teológicas.Vejamos como.

2.2. Semântica da retórica paulina

2.2.1. Que pisteis?

As provas fornecidas pelo apóstolo, disse eu acima, são primeiro fatos ou


situações. Ora, o que constitui a situação fundamental dos crentes é a adesão

49. Notar a partitio de 1 Coríntios 9,1a, que serve como remate para o exemplo constituído por todo
1 Coríntios 9. Com efeito, a palavra “livre” prepara os versículos 19-27, em que Paulo não quis usar de
sua liberdade, mas, antes, se fez escravo de todos e pôs seu próprio corpo em servidão. Quanto à palavra
“apóstolo”, é imediatamente retomada pelos versículos seguintes (vv. 1b-18), em que se mostra que
Paulo não utilizou sua condição de apóstolo (com os privilégios que a ela estão ligados). A partitio é,
pois, retomada em reversio: a (apóstolo), b (livre) → B (direitos do apóstolo), A (livre/escravo). As rever-
siones são também elas muito frequentes em Paulo, mas resta ainda a ser feito um sumário exaustivo.
50. Observemos de passagem que esses dois versículos constituem uma microunidade; uma breve
propositio: “Não sou apóstolo?”, seguida de suas pisteis: (i) ter encontrado o Ressuscitado (e, portanto,
ter sido enviado por ele), (ii) fornecer pelos frutos que produz as provas de seu apostolado.
51. A interrogação grega com a negação ouvk implica que se responde positivamente (“Não sou
isso?” — “Evidentemente”; “Não teríamos nós o direito de…?” — “Evidentemente”).
52. Sobre 1 Coríntios 9,19-23, ver Mark D. Given, Paul’s True Rhetoric: Ambiguity, Cunning and
Deception in Greece and Rome, Harrisburg (PA), Trinity Press International, 2001, 103-117
(Emory Studies in Early Christianity 7); em razão do pano de fundo retórico (grego), Given mostra
que Paulo podia dar a impressão de ser um demagogo, nada mais. Ressalta que os dois parênteses
ou correctiones dos versículos 20 e 21 buscam evitar que seja mal compreendido um desejo de pro-
ximidade calcado sobre o de Cristo.

69
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
deles a Cristo. E não nos deve causar espanto ver Paulo começar por lembrar o
acontecimento Cristo (cruz e/ou ressurreição) ou o batismo, pelo qual começa
o itinerário crístico dos crentes. Nós o constatamos para Romanos 6,1-14 e
1 Coríntios 15. Poderíamos fazer a mesma observação para Gálatas 3,1-5
e 1 Coríntios 6,12-20, em que o primeiro argumento decisivo é cristológico
(v. 14-15). A passagem em que a dispositio demonstra do melhor modo a impor-
tância do acontecimento Jesus Cristo é, sem dúvida nenhuma, 1 Coríntios 1-4,
em que, como todos sabem, a eclesiologia (1Cor 3–4) se fundamenta na cristo-
logia (1Cor 1). Com efeito, Paulo não trata imediatamente da questão dos lití-
gios; ele faz uma longa digressão (ver nossas observações em 1.3, acima), e essa
digressão é cristológica, no sentido de que o modo de pensar a Igreja e o estatuto
dos crentes, dos ministros (apóstolos e outros) deve passar pelo discurso da cruz
e encontrar aí seu modelo.
Segundo as questões tratadas, a primeira etapa da probatio pode ser também
teológica ou pneumatológica, mas, seja qual for sua coloração, Paulo remete sem-
pre a uma experiência. A primeira prova que dá — e que todo crente deve também
dar, pois as dispositiones paulinas são, a esse respeito, um modelo para nós — é que
ele vive do amor de Deus, de seus dons, dos carismas, na diversidade deles e, toda-
via, ordenados à unidade que os suscitou (cf., por exemplo, Rm 5,1-11; 1Cor
12,4-11 etc.). A ausência dessa prova decisiva tornaria evidentemente vazio ou
puramente nominalista o discurso teológico. Se o procedimento do apóstolo é
totalmente retórico, deve-se admitir que não tem nada de um jogo estéril, pois a
retórica compreende identicamente um procedimento de fé que implica toda a
pessoa — e o grupo cristão em seu todo.

2.2.2. Retórica e expressão teológica

Além das dispositiones, o elo essencial semântico entre retórica e teologia é


ainda manifesto nas metáforas, nas metonímias e nos paradoxos paulinos. Seja-me
permitido nada acrescentar aqui ao que escrevi no número de Recherches de science
religieuse sobre o dossiê Paulo53. Se é verdade que, como tais, essas figuras perten-
cem à lexis e podem ser (erroneamente) consideradas um puro ornatus, elas têm na
realidade para o apóstolo uma função argumentativa decisiva, como acabamos de
lembrar a propósito de 1 Coríntios 1–4. Poderíamos demonstrar isso com outras
passagens em que as metáforas (como as da Igreja corpo de Cristo ou Templo do

53. Jean-Noël Aletti, Où en sont les études sur Saint Paul? Enjeux et propositions, RSR 90
(2002) 248-350; cf. 325-348.

70
II – Uma escrita em movimento
Espírito) e as metonímias (por exemplo, a do Cristo identificado com o pecado54
para que nos tornássemos justiça de Deus) são teologicamente decisivas.
Se a retórica paulina é fundamentalmente paradoxal, isso não tem nada de
acaso, pois o paradoxo é o meio privilegiado pelo qual Paulo exprime os limites
do conceito, que procura sempre dominar (e muitas vezes estudar muito) seu ob-
jeto. Se Paulo assim procede, é porque ele não pode fazer de outro modo: a mor-
te de Cristo na cruz alterou o jogo das regras retóricas e penetrou na forma
mesma de sua mensagem: nela se indicam de maneira definitiva as escolhas po-
bres de Deus. A retórica paradoxal de Paulo chega mesmo a subverter as conven-
ções da retórica, ao fazer o elogio do que o mundo despreza e de que foge: a
humildade e a fragilidade (2Cor 11,1–12,10). Mas para o apóstolo essa reviravol-
ta não equivale a sair da retórica, pois esta última, ao se tornar teologia, é mais que
nunca fiel a seu objeto.

Conclusão

As reflexões que acabamos de anunciar sobre a maneira como a retórica


permite que Paulo construa seu pensamento e o comunique têm um caráter
deliberadamente programático. Com a ajuda de numerosos estudos publicados
nestes dois últimos decênios, seria preciso refazer uma taxonomia das técnicas do
apóstolo, mostrando a pertinência e a importância teológica delas. Pois a expe-
riência apenas me diz que, se conhecemos mal — ou se a ignoramos, o que é
mais grave — a retórica paulina, não podemos senão nos enganar sobre suas afir-
mações teológicas referentes à Lei, à justificação e aos outros temas ainda e sem-
pre discutidos hoje.

54. Mesmo que compreendamos a palavra a`marti,a de 2 Coríntios 5,21 como “sacrifício pelo
pecado” ou como designando o efeito pela causa, a figura é sempre uma metonímia. Sobre essa
passagem, se é uma das mais difíceis, pois a metonímia tem aí uma função eminentemente parado-
xal, ver Jean-Noël Aletti, God made Christ to be sin (2Corinthians 5:21): Reflections on a Pauline
Paradox, in Stephen T. Davis, D. Kendall, G. O’Collins (ed.), The Redemption, Oxford, Oxford
University Press, 2004.

71
A retórica paulina: construção e comunicação de um pensamento
As cartas de Paulo: contexto de criação e
modalidade de comunicação de sua teologia
Giuseppe BARBAGLIO (Roma)

Ao caráter ocasional das cartas de Paulo — elas se inserem na densa rede das relações entre
o expedidor e os destinatários — corresponde o caráter ocasional de sua teologia. Provocado,
Paulo se torna provocador; ele quer convencer e persuadir seus interlocutores, e torna-se assim
um teólogo que argumenta. Mas o caráter ocasional dessa teologia levanta o problema de sua
coerência. O autor defende a hipótese de uma teologia paulina hermenêutica: Paulo inter-
preta o Evangelho tradicional dando-lhe novo nome: Evangelho da liberdade (Gálatas), da
cruz (1 e 2 Coríntios), do apocalipse da justiça de Deus (Romanos) e da eleição dos pagãos
de Tessalônica (1 Tessalonicenses).

A questão central deste estudo é a da relação entre as cartas do apóstolo Paulo


e sua reflexão teológica1. A essa questão podemos em princípio dar — e o
demos de fato — respostas diferentes de acordo com o modo como compreende-
mos o fato epistolar: devem as cartas ser vistas como o simples receptáculo extrín-
seco de uma teologia que foi elaborada num outro nível ou como o fator que
qualifica essa teologia e pode determiná-la de diversos modos? A primeira orien-
tação foi escolhida por todos os que pensam que Paulo é, antes de tudo, um teó-

1. Entre os estudos recentes, ver Jouette M. Bassler (ed.), Pauline Theology I: Thessalonians, Phi-
lippians, Galatians, Philemon, Minneapolis, Fortress Press, 1991; David M. Hay (ed.), Pauline Theo-
logy II: 1 & 2 Corinthians, Minneapolis, Fortress Press, 1993; David M. Hay, E. Elizabeth Johnson
(ed.), Pauline Theology III: Romans, Minneapolis, Fortress Press, 1995; E. Elizabeth Johnson, David
M. Hay (ed.), Pauline Theology IV: Looking Back, Pressing On, Atlanta, SBL, 1997.

73
logo preocupado em comunicar seu pensamento às comunidades destinatárias.
Com uma pitada de exagero retórico, diremos que vimos nele um professor de
teologia ensinando sua doutrina aos fiéis de Tessalônica e de Corinto, da Galácia,
de Filipos e de Roma, à moda de um professor que se dirige a estudantes de teo-
logia — um professor que já tem na mente um pensamento bem definido e deve
apenas encontrar uma linguagem apropriada para transmiti-lo, a seu auditório.
Conhecemos a definição que Melanchton deu da epístola aos Romanos: compen-
dium doctrinae christianae. Em sua célebre obra Die Theologie des Neuen Testaments,
tampouco Bultmann levou em consideração a variedade dos escritos epistolares,
e os concebeu como a expressão acabada do pensamento teológico de Paulo, in-
terpretado como um conjunto antropologicamente unificado que pode ser assim
resumido: O homem antes da revelação da pistis/O homem sob o regime da pistis2.
Essa imagem do apóstolo não deixou de provocar vivas reações críticas. As
mais virulentas chegaram até a negar que Paulo tivesse sido um pensador digno
desse nome3. A maior parte delas, todavia, reconheceu nele um teólogo, decerto
não um teólogo sistemático, mas um teólogo coerente, que se exprimiu em escri-
tos de circunstância — entre os quais se deve contar a epístola aos Romanos —
nos quais lida com problemas concretos das comunidades cristãs4. Convém men-
cionar também os exegetas que viram nele um pensador teológico que passou por
uma evolução: do primeiro Paulo (der frühe Paulus), o da primeira epístola aos Tes-

2. Cf. Giuseppe Barbaglio, Saggio critico su alcune teologie paoline, ScC 95 (1967) 114*-134*
(95-137).
3. Cf. Heikki Räisämen, Paul and the Law, Tübingen, Mohr Siebeck, 1983, 266-267 (WUNT
29): “São numerosos os exegetas deste século que cometeram o erro fundamental de apresentar
Paulo como ‘o príncipe dos pensadores’ e o teólogo cristão por excelência […]. Ele foi, em primei-
ro lugar e antes de mais nada, um missionário, um homem de uma religião prática, que desenvolve
uma linha de pensamento com um objetivo prático, a fim de influenciar a conduta de seus leitores”.
O próprio Deissmann já estava convencido de que Paulo não pertencia à história da teologia, mas
à história da religião; Paulo não tem uma cristologia, mas uma cristolatria; sua marca no cristianis-
mo primitivo é a religião (cf. Adolf Deissmann, Licht vom Osten. Das Neue Testament und die
neuentdeckten Texte der hellenistisch-römischen Welt, Tübingen, Mohr, 41923, 327).
4. Cf., por exemplo, Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism: A Comparison of Pattern of
Religion, Philadelphia, Fortress Press, 1983; Paulo não é um teólogo sistemático, mas coerente, com
algumas convicções fundamentais, como estas: Deus proveu em Cristo a salvação de todos os ho-
mens; Deus o chamou a anunciar o Evangelho aos pagãos. Assim já William Wrede, Paulus, in
Ulrich Luck, Karl H. Rengstorf (Hrsg.), Das Paulusbild in der neueren deutschen Forschung, Darms-
tadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1964, 41 (WdF 24): não se encontra em Paulo um sistema
teológico. Ver também J. Christiaan Beker, Paul the Apostle: The Triunph of God in Life and
­Thought, Edinburgh,T & T Clark, 1980, IX: à questão do tema que dá sua coerência ao pensamen-
to de Paulo, ele responde ao pôr em evidência o triunfo de Deus, a esperança no advento da vitória
de Deus e na iminente redenção do mundo, inaugurada em Cristo.

74
II – Uma escrita em movimento
salonicenses, chegamos ao Paulo da maturidade (der späte Paulus), o da epístola aos
Romanos, passando pelas fases intermediárias representadas pelas outras cartas5.
Essa outra perspectiva reconhece, em todo caso, que as cartas influenciaram o
pensamento paulino, marcado por contingência, parcialidade e mutabilidade.
De minha parte, esclareci a relação entre as cartas de Paulo e seu pensamento
ao falar de uma teologia “sob forma epistolar”6, entendendo-se que a forma não é
um simples vestuário literário, mas um fator que estrutura e determina a natureza
mesma da teologia. Gostaria agora de continuar essa pesquisa e aprofundar a com-
preensão da teologia que o apóstolo elaborou “epistolarmente”. Para esse fim,
apresentarei suas cartas como um meio de comunicação: cada uma delas o pôs
diante de certo auditório, que interage com ele numa relação dialógica que deter-
mina seus posicionamentos. Estes últimos se situam em dois níveis diferentes: uns,
ao tocar direta e concretamente a práxis, são suscitados pela situação particular do
expedidor e pela dos destinatários e formam um primeiro nível de discurso; ou-
tros, de natureza propriamente teológica, estão em relação com os primeiros, mas
representam na realidade um segundo nível de discurso, subordinado e funcional,
que não é outro senão uma hermenêutica do Evangelho. Para ilustrar minha re-
flexão, tomarei como exemplo a leitura de alguns textos paulinos7.

1. Caráter ocasional das cartas

1.1. Etapas da pesquisa epistolar

Não há nenhuma dúvida de que a pesquisa progrediu nesse domínio. A dis-


tinção clássica de Deissmann entre carta e epístola, ou seja, entre um escrito de

5. Cf. Siegfried Schulz, Der frühe und der späte Paulus, ThZ 41 (1985) 228-236; Udo Schnel-
le, Wandlungen im paulinischen Denken, Stuttgart, Verlag Katholisches Bibelwerk, 1989 (SBS 137);
Thomas Söding, Der erste Thessalonicherbrief und die frühe paulinische Evangeliumsverkündi-
gung, BZ 35 (1991) 180-203.Ver também Hans Hübner, Paulus I, TRE 26 (1996) 133-153, espec.
133: “A teologia de Paulo está sempre em devir (im Werden)”; ver também Id., Biblische Theologie des
Neuen Testaments 2: Die Theologie des Paulus und ihre neutestamentliche Wirkungsgeschichte,
Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1993, 28. Discerne-se essa evolução sobretudo na doutrina
da Lei e na escatologia (cf., por exemplo, Schulz), mas ela serve também para explicar as contradi-
ções presentes na teologia paulina (cf. Hübner). Mas é preciso ressaltar aqui que não é fácil expor
a evolução do pensamento de Paulo, já que não conhecemos com certeza a sucessão cronológica
de suas cartas.Ver a crítica de ReinhardVon Bendemann,“Frühpaulinisch”und/oder“­spätpaulinisch”?
Erwägungen zu der These einer Entwicklung der paulinischen Theologie am Beispiel des
­Gesetzesverständnisses, EvTh 60 (2000) 210-229.
6. Giuseppe Barbaglio, La teologia di Paolo. Abbozzi in forma epistolare, Bologna, EDB, 1996.
7. A esse respeito, para uma apresentação menos sumária, remeto a meu livro citado na nota
anterior.

75
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
circunstância e familiar e um puro tratado8, é útil, mas não é suficiente para definir
completamente as cartas paulinas. Estamos com toda certeza na presença de ver-
dadeiras cartas — Romanos também pertence a essa categoria — que se inscre-
vem num processo de comunicação com os destinatários; mas não são simples
conversação entre familiares, entre amigos ou conhecidos, no sentido em que fa-
laram Sêneca (vera amici absentis vestigia, Ep 40,1) ou Cícero (amicorum colloquia
absentium, Phil 2,4,7), que se referem na realidade ao typos philikos do gênero epis-
tolar. O expedidor aqui é Paulo, que se dirige a comunidades cristãs, em princípio
fundadas por ele, e se pronuncia em questões espirituais que as tocam de perto
— isso vale mesmo para a carta a Filêmon. Klaus Berger as qualificou com razão
de cartas apostólicas9, porque são a expressão de sua autoridade apostólica, que ele
reivindica e que lhe reconhecemos.
De fato, a comparação da correspondência paulina com a epistolografia gre-
ga e romana da época10 e com a menos frequente do mundo judaico de então11
mostrou que Paulo partilhava com elas numerosos elementos comuns: em pri-
meiro lugar, a estrutura: endereço, proemium, corpo epistolar, epílogo e saudação
ou votos finais; a seguir, fórmulas e temas estereotipados, como o agradecimento
ou proskynêma e o motivo da parousia; outros elementos ainda: a menção dos pro-
jetos de viagem, as formulae valetudinis, expressões introdutivas de passagens ou de

8. Adolf Deissmann, Licht vom Osten (cf. nota 3), 195: se a carta é um segredo, a epístola é uma
mercadoria que se troca; a carta difere da epístola como a natureza difere da arte; a carta é uma cena
da vida cotidiana, ao passo que a epístola é uma testemunha da arte. Ver também Id., Paulus. Eine
kultur- und religionsgeschichtliche Skizze, Tübingen, Mohr Siebeck, 21925, 6-7: a carta está a ser-
viço do diálogo entre homens separados, é um “eu” que se dirige a um “tu”; com a epístola é to-
talmente diferente.
9. Klaus Berger, Apostelbrief und apostolische Rede. Zum Formular frühchristlicher Briefe,
ZNW 65 (1974) 190-231.
10. Cf. David E. Aune, The New Testament in its Literary Environment, Philadelphia, Westminster
Press, 1987 (LEC 8); William G. Doty, Letters in Primitive Christianity, Philadelphia, Fortress Press,
1973 (Guides to Biblical Schorlarship. New Testament Series); Heikki Koskenniemi, Studien zur
Idee und Phraseologie des griechischen Briefes bis 400 n. Chr., Helsinki, Suomalainen Tiedeakatemia
Akateeminen Kirjakauppa, 1956 (AASF.B 102,2); M. Luther Stirewalt, Studies in Ancient Greek
Epistolography, Atlanta, Scholars Press, 1993 (SBL. Resources for Biblical Study 27); Stanley K. Sto-
wers, Letter Writing in Greco-Roman Antiquity, Philadelphia, Westminster Press, 1986 (LEC 5); John
L. White, The Greek Documentary Letter Tradition Third Century B. C. E. to Third Century C.
E., Semeia 22 (1981) 89-106; Id., New Testament Epistolary Literature in the Framework of An-
cient Epistolography, ANRW II, 25.2 (1984) 1.730-1.756; Id., Light from Ancient Letters, Philadel-
phia, Fortress Press, 1986 (Foundations and Facets. New Testament).
11. Irene Taatz, Frühjüdische Briefe. Die paulinischen Briefe im Rahmen der offiziellen religiö-
sen Briefe des Frühjudentums, Freiburg/Göttingen, Universitätsverlag/Vandenhoeck & Ruprecht,
1991 (NTOA 16).

76
II – Uma escrita em movimento
seções do corpo epistolar, como a fórmula “a respeito de” (peri. de,) ou a da noti-
ficação (disclosure), “Eu vos dou a conhecer”, “Não quero vos deixar na ignorân-
cia”; enfim, o tema da lembrança (mnei,a) e os verbos que exprimem uma oração
ou um pedido (de,smai, parakalw/)12.
Nestes últimos anos, pesquisadores em grande número se concentraram na
definição do gênero das cartas paulinas, inspirando-se em numerosos gêneros
epistolares da Antiguidade grega e romana, como são definidos especialmente
pelo Pseudo-Demétrio, que monta uma lista de 21 gêneros, e pelo Pseudo-Libâ-
nio, que chega a catalogar 4113. Outros exegetas, trabalhando na mesma perspec-
tiva, definiram 1 Tessalonicenses como uma carta de consolação14, Filipenses como
uma carta de amizade (typos philikos)15, 2 Coríntios 1–7 como uma carta apologé-
tica de recomendação16 e Gálatas como uma carta de petição17.
A preocupação em definir o gênero das cartas de Paulo está de modo ainda
mais nítido no centro dos estudos retóricos, que prevalecem hoje em numerosos
setores da pesquisa bíblica, em particular na pesquisa paulina, a ponto de se tornar
uma moda um tanto repetitiva e escolástica18. A convicção inicial desses estudos é

12. Um exemplo claro de paralelismo formal é a carta de Apião a seu pai, em que se pode notar
a presença dos seguintes elementos: o endereço, a saudação, os votos de boa saúde, o agradecimento,
a comunicação de notícias, o pedido de notícias, as saudações finais e a formula valetudinis. A esse
respeito, ver Jerome Murphy O’Connor, Paul et l’art épistolaire: contexte et structure littéraires,
Paris, Cerf, 1994 (Etudes annexes de la Bible de Jérusalem).
13. Essas listas se encontram nas seguintes obras: os Typoi epistolikoi do Pseudo-Demétrio e os
Epistolimaioi Charaktêres do Pseudo-Libânio. Cf. Abraham J. Malherbe, Ancient Epistolary Theorists,
Atlanta, Scholars Press, 1988 (SBL. Sources for Biblical Study 19). Na lista de Demétrio, notamos
os seguintes gêneros epistolares: philikos (de amizade), sustatikos (de recomendação), paramythêtikos
(de consolação e de encorajamento), nouthetêtikos (de advertência), epainetikos (de louvor), symbou-
leutikos (de conselho), apologêtikos (de defesa). A lista de Libânio é mais analítica e detalhada; e, so-
bretudo, cataloga no fim um gênero misto (miktê), que se encontra certamente nas cartas paulinas,
por exemplo em 1 Coríntios.
14. Por exemplo, Juan Chapa, Is First Thessalonians a Letter of Consolation?, NTS 40 (1994)
150-160; Jutta Bickmann, Kommunikation gegen den Tod. Studien zur paulinischen Briefpragmatik
am Beispiel des Ersten Thessalonischerbriefes, Würzburg, Echter, 1998 (fzb 86); aí se esclarece: 1
Tessalonicenses é uma carta de consolação de caráter apocalíptico-sapiencial (317).
15.Ver John T. Fitzgerald (ed.), Friendship, Flattery, and Frankness of Speech. Studies on Friend­
ship in the New Testament World, Leiden/New York, Brill, 1996, espec. 83-160 (NT.S 82).
16. Linda L. Belleville, A Letter of Apologetic Self-Commendation: 2Cor. 1:8-7:16, NT 31
(1989) 142-163.
17. Dieter Mitternacht, Forum für Sprachlose. Eine kommunikationspsychologische und
apistolär-rhetorische Untersuchung des Galaterbriefes, Stockholm, Almquist & Wiksell, 1999
(CB.NT 30).
18. Limito-me a indicar três estudos em que se encontrará uma avaliação crítica desses trabalhos
de análise retórica: Stanley E. Porter, The Theoretical Justification for Application of Rhetorical

77
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
que as cartas do apóstolo representam um gênero misto, constituído de elemen-
tos epistolares e elementos retóricos; melhor, o essencial da carta — o corpo
epistolar — apresenta-se na realidade como um discurso retórico inserido numa
moldura epistolar.
O precursor na matéria foi Hans Dieter Betz, que viu na epístola aos Gálatas
um discurso judiciário que Paulo compôs para se defender contra as acusações de
seus adversários da Galácia diante do tribunal das comunidades cristãs gálatas19. A
partir de então, surgiram numerosas leituras retóricas que procuram classificar as
cartas paulinas num dos três gêneros (tria genera) da arte oratória clássica: judiciá-
rio, deliberativo, epidíctico ou demonstrativo. Mas reina nesse domínio grande
confusão e uma grande variedade de opiniões. Tot capita tot sententiae: a epístola
aos Gálatas não é um discurso judiciário, mas epidíctico para alguns20, deliberativo
para outros21, sem falar daqueles que viram nela a dupla rebuke–request22; o todo de
1 Coríntios é de gênero deliberativo23, mas essa denominação é muito genérica;

Categories to Pauline Epistolary, in Stanley E. Porter, Thomas H. Olbricht (ed.), Rhetoric and the
New Testament, Sheffield, Seheffield Academic Press, 1993, 100-122 (JSNT.S 90); Stanley E. Porter,
Paul as Apistolographer and Rhetorician?, in Stanley E. Porter, Dennis L. Stamps (ed.), The Rheto-
rical Interpretation of Scripture: Essays from the 1996 Malibu Conference, Sheffield, Sheffield Academic
Press, 1999, 222-248 (JSNT.S 180); e sobretudo Carl J. Classen, Paul’s Epistles and Ancient Greek
and Roman Rhetoric, in Rhetorical Criticism of the New Testament, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000,
1-28 (WUNT 128): “Deveríamos nos lembrar de que uma carta é uma carta e de que não podemos
esperar dela que tenha a estrutura de um discurso, embora possa ser em parte comparável a um dis-
curso” (17); “nenhum dos três tipos, nem o discurso judiciário, nem o deliberativo, nem o demons-
trativo, seria apropriado aqui” (23, a propósito da epístola aos Gálatas); “a retórica (a arte oratória) e
a epistolografia eram consideradas como dois domínios diferentes na Antiguidade” (26).
19. Hans Dieter Betz, Galatians: A Commentary of Paul’s Letter to the Churches in Galatia,
Philadelphia, Fortress Press, 1979 (Hermeneia).
20. Cf., por exemplo, Antonio Pitta, Lettera ai Galati, Bologna, EDB, 1996 (Scritti delle origine
cristiane 9).Ver também Id., Disposizione e messaggio della lettera ai Galati. Analisi retorico-letteraria,
Roma, Pontificio Istituto Biblico, 1992 (AnBib 131).
21. Por exemplo, Joop F. M. Smit, The Letter of Paul to the Galatians: A Deliberative Speech,
NTS 35 (1989) 1-26. Para Aune, o gênero deliberativo é dominante nas cartas cristãs da Antiguidade,
que querem persuadir e dissuadir (The New Testament in its Literary Environment, 199 [cf. nota 10]).
22. Notadamente G. Walter Hansen, A Paradigm of the Apocalypse: The Gospel in the Light of
Epistolary Analysis, in L. Ann Jervis, Peter Richardson (ed.), Gospel in Paul: Studies on Corin-
thians, Galatians and Romans for Richard N. Longenecker, Sheffield, Sheffield Academic Press,
1994, 194-221 (JSNT.S 108), na linha do comentário de Longenecker, que divide Gálatas em duas
partes: rebuke em 1,6–4,11; request em 4,12–6,19.
23. Cf. sobretudo Margaret M. Mitchell, Paul and Rhetoric of Reconciliation: an Exegetical Inves-
tigation of the Language and Composition of 1 Corinthians, Louisville, Westminster/John Knox,
1993; mas também o comentário de Raymond F. Collins, First Corinthians, Collegeville, The Li-
turgical Press, 1999 (Sacra Pagina Series 7).

78
II – Uma escrita em movimento
2 Coríntios pertence ao gênero judiciário24, mas 2 Coríntios 10–13 é de gênero
misto: deliberativo no início, judiciário no capítulo 11 e na primeira parte do
capítulo 12, de novo deliberativo em 12,19 ss.25; Romanos é de gênero epidícti-
co para alguns26, deliberativo para outros27, carta-ensaio para Stirewalt, protréptico
para outros ainda28; 1 Tessalonicenses foi classificada como discurso deliberati-
vo (Kennedy), mas para outros como epidíctico (Jewett, Hughes), mais precisa-
mente como um paradoxon enkomion (Wuellner)29.
Igualmente, a dispositio das partes em proemium, narratio, argumentatio intro-
duzida pela propositio, e como conclusão peroratio, que foi aplicada mais de uma
vez à estrutura das cartas paulinas, revela-se com frequência inadequada: Paulo é
muito livre e muito criativo para entrar docilmente nos cânones da retórica,
que provêm, aliás, de teorias propagadas por alguns célebres tratados30. Eu diria
até que esses cânones são camisas de força impostas a escritos que se caracteri-
zam pela grande variedade das situações concretas dos destinatários e do expe-
didor e pela multiplicidade dos objetivos perseguidos pelo apóstolo em suas
respostas epistolares.
É por isso que defensores do rhetorical criticism — em particular Aletti —,
conscientes dessa dificuldade e inspirados pela Retórica de Aristóteles, concentra-
ram sua atenção sobre a presença nos escritos de Paulo de argumentações formais,
estruturadas em propositiones — nas quais se podem distinguir as principais e as

24. Cf. George A. Kennedy, New Testament Interpretation through Rhetorical Criticism, Chapel Hill,
University of North Carolina Press, 1984, 86 ss. (Studies in Religion).
25. Brian K. Peterson, Eloquence and the Proclamation of the Gospel in Corinth, Atlanta, Scholars
Press, 1998 (SBL.DS 163).
26. Por exemplo, Jean-Noël Aletti, Israël et la loi dans la lettre aux Romains, Paris, Cerf, 1998, 38
(LeDiv 173); ali limita-se essa qualificação aos capítulos 1–11, ao passo que a parte exortativa se
conforma aos cânones da carta.
27. Cf. Steve Mason, “For I am not Ashamed of the Gospel” (Rm 1.16): The Gospel and the
First Readers of Romans, in L. Ann Jervis, Peter Richardson (ed.), Gospel in Paul, 254-287 (cf.
nota 22).
28. Assim David E. Aune, Romans as a Logos Protreptikos in the Context of Ancient Religious
and Philosophical Propaganda, in Martin Hengel, Ulrich Heckel (Hrsg.), Paulus und das antike
Judentum. Tübingen-Durham-Symposium im Gedenken an den 50. Todestag Adolf Schlatters (19.
Mai 1938), Tübingen, Mohr Siebeck, 1991, 91-121 (WUNT 58).
29. Cf. a coleção de estudos em Karl P. Donfried, Johannes Beutler (ed.), The Thessalonians De-
bate: Methodological Discord or Methodological Synthesis?, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 2000.
30.Ver, por exemplo, os dois mais antigos tratados da Antiguidade grega e romana: Rhetorica ad
Alexandrum (século IV a.C.) e Rhetorica ad Herennium (86/82 a.C.). As obras retóricas romanas mais
célebres são o De oratore, de Cícero, e o Institutio oratoria, de Quintiliano. Para uma apresentação
geral, ver o verbete Rhetorik, in Der Neue Pauly: Enzyklopädie der Antike, Stuttgart/Weimar, J. B.
Metzler, 2001, v. 10, col. 958-987.

79
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
secundárias — e em probationes, às vezes enriquecidas por refutationes e concluídas
por perorationes finais sintéticas31. Não se pode negar que a aplicação desse método
de leitura tenha dado excelentes resultados para a compreensão da correspondên-
cia paulina; basta aqui remeter aos estudos de Aletti sobre a epístola aos Roma-
nos32. Mas grandes trechos dos escritos de Paulo não são argumentationes formais,
por exemplo os primeiros capítulos de 1 Tessalonicenses, que são formalmente
um agradecimento extenso e repetido, sob forma narrativa, pelo qual o apóstolo
responde, como veremos, às necessidades concretas da comunidade macedônia e,
sobretudo, à sua necessidade de ser tranquilizada sobre o destino final de seus fiéis.
O que acaba de ser dito vale em geral para as seções exortativas de 1 Tessalonicen-
ses, de Gálatas e de Romanos, como admite também Aletti.
Por fim, alguns estudos mostraram muito bem a natureza comunicativa das
cartas de Paulo: o apóstolo e seus destinatários estão face a face e estabelecem um
diálogo cujo fruto são as cartas. Numa perspectiva um tanto unilateral, Dabourne
afirma que Paulo não é um pensador, mas um comunicador33; temos de lê-lo per-
cebendo a maneira como ele quer influenciar o espírito e a intenção de seus des-
tinatários34. Mais que considerar as situações que levaram Paulo a escrever e que
determinam uma leitura causal de suas cartas, diz ela, é preciso se concentrar na
influência que ele procurou exercer sobre seu auditório. Em sua monografia so-
bre Romanos 1–4,Wendy Dabourne fala de uma leitura teleológica, ou seja, de uma

31. Jean-Noël Aletti, La présence d’un modèle rhétorique en Romains: son rôle et son impor-
tance, Bib. 71 (1990) 1-24; Id., La dispositio rhétorique dans les épîtres pauliniennes. Propositions de
méthode, NTS 38 (1992) 385-401; Id., Composition et genre de la lettre aux Romains, in Israël et
la loi dans la lettre aux Romains, 11-39 (cf. nota 26).
32. Além dos títulos mencionados na nota anterior, ver também Id., Comment Dieu est-il juste?
Clefs pour interpréter l’épître aux Romains, Paris, Seuil, 1991 (Parole de Dieu 30); Id., Israël et la
loi dans la lettre aux Romains (cf. nota 26).
33. Wendy Dabourne, Purpose and Cause in Pauline Exegesis: Romans 1.16-4.25 and a New
Approach to the Letters, Cambridge, Cambridge University Press, 1999 (SNTS.MS 104): segundo
a interpretação mais divulgada, Paulo é um pensador de envergadura, mas um pobre comunicador.
Nosso estudo nos fez descobrir um pastor e um pregador que tem uma profunda compreensão do
Evangelho para enfrentar as questões práticas da vida cristã (179). Quando lemos o texto como
comunicação, vemos que Paulo foi um comunicador eficaz. A leitura tradicional de Paulo é guiada
por seu interesse pelo pensamento do apóstolo, em detrimento de sua força comunicativa (181).
34. Cf. também Jutta Bickmann, Kommunikation gegen den Tod (cf. nota 14); Dieter ­Mitternacht,
Forum für Sprachlose (cf. nota 17); Robert W. Funk, The Letter: Form and Style, in Language, Herme-
neutic and Word of God: The Problem of Language in the New Testament and Contemporary
­Theology, New York, Harper & Row, 1966, 250-274; Mustapha Makhloufi, Anne Penicaud,
­Notes sur le genre épistolaire, SémBib 88 (1997) 56-64. De sua parte, Lauri Thuren (Derhetorizing
Paul: a Dynamic Perspective on Pauline Theology and the Law, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000, 25
[WUNT 124]) fala a esse propósito de um aspecto “volitivo”.

80
II – Uma escrita em movimento
leitura que leva em consideração a mudança que Paulo, com seu escrito, quer
provocar em seus leitores35.
Enfim, mencionemos brevemente o apelo, para a análise dos textos paulinos,
aos recursos da retórica moderna, que é a expressão de linguagens mais universais,
como é o caso do manual exemplar de Perelman e Olbrechts-Tyteca36.
De minha parte, gostaria de ressaltar o fato de que as cartas paulinas se inse-
rem numa densa rede de relações entre o expedidor e os destinatários, o que as
situa no plano da comunicação. Eu poderia falar do necessário contexto social
delas: essas cartas nascem em certa época, num dado lugar, por determinadas cir-
cunstâncias; são a expressão de mudanças comunicativas entre Paulo e as comuni-
dades destinatárias. É nesse sentido que falo de seu caráter ocasional — que tenho
o cuidado de distinguir, com J. Christiaan Beker, do temerário e do casual37: algu-
ma coisa chega aos destinatários e ao expedidor, que, em princípio, já estão em
relação, alguma coisa que faz nascer a exigência e a necessidade de escrever. Dire-
mos que as cartas paulinas podem ser situadas no eixo binário de um Paulo provo-
cado e, como consequência, de um Paulo provocador.

1.2. Paulo provocado

A primeira malha da rede de comunicação geradora da carta é, em geral, a


história passada da comunidade que será sua destinatária — história tecida por
suas relações mais ou menos estreitas com o apóstolo, antes presente e agora au-
sente. De modo mais preciso e mais direto, a provocação que leva o apóstolo a
escrever vem da situação atual dos destinatários, que ele conhece por informado-
res, mas também de maneira indireta por uma carta (cf. 1Cor 1,11 e 7,1). Ele é
levado a intervir na qualidade de fundador da comunidade, ou mesmo como
apóstolo, a quem foi confiada a missão de evangelizar os pagãos, como no caso de
Roma. Em Tessalônica, estava-se na tristeza por causa do destino dos parentes ou
dos amigos mortos, mas sofria-se também por causa da hostilidade do ambiente
social, sem falar da preocupação causada pela distância do apóstolo. Em Corinto,

35. A leitura teleológica de uma carta responde à questão: onde vai dar isso? A leitura causal
responde à questão: de onde isso vem? (Wendy Dabourne, Purpose and Cause in Pauline Exegesis,
212 [cf. nota 33]).
36. Chaïm Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca, Trattato dell’argomentazione. La nuova retorica,
Torino, Einaudi, 1989.Ver também Heinrich Lausberg, Elemente der literarischen Rhetorik. Eine Ein-
führung für Studierende der klassischen, romanischen, englischen und deutschen Philologie, Mün-
chen, M. Hueber Verlag, 31967 (estudo que retoma, todavia, as grandes linhas da retórica clássica).
37. Cf. J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 23-24 (cf. nota 4).

81
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
tinham se formado grupos em torno de líderes vistos como gurus que iniciavam
no conhecimento das “profundezas divinas” (ta. ba,qh tou/ qeou/, 1Cor 2,10); e sa-
bemos por 1 Coríntios 15,12 que alguns crentes negavam a ressurreição dos mor-
tos. Nas Igrejas da Galácia, sob a instigação de missionários cristãos cuja identida-
de não é esclarecida e que chamaremos, com Donaldson, de “defensores da
circuncisão”38, os crentes de origem pagã estavam a ponto de se fazer “judaizar”, e
talvez já se registrassem alguns recuos completos no assunto. Em Roma, o Evan-
gelho paulino da liberdade em relação à circuncisão e à lei mosaica suscitava nu-
merosas incompreensões e talvez se lhe atribuísse uma pregação que levava, de um
lado, ao laxismo moral e, de outro, a um desconhecimento da eleição de Israel e
da fidelidade de Deus em relação ao povo eleito — tantas dúvidas ou acusações
que exigiam de Paulo uma explicação e até uma forte apologia39.
A isso se deve acrescentar que o próprio Paulo é igualmente provocado por
situações pessoais: não pode ir a Tessalônica, e é um peso para ele a separação da
jovem comunidade, que tem necessidade de sua ação pastoral. Daí a necessidade
de superar a ausência, tornando-se presente por meio de uma carta40.Após a desas-
trada visita à Igreja de Corinto, onde sua presença produzira um efeito contrário,
ele experimenta a necessidade premente de escrever uma carta “em meio a muitas
lágrimas” (2Cor 1,3-4). Preso — talvez em Éfeso —, ele quer convencer sua cara
comunidade de Filipos de que não está reduzido à impotência como evangelista,
porque, paradoxalmente, até mesmo suas cadeias são um meio de evangelização
(1,12-14). Ele escreve aos cristãos de Roma porque projetou uma viagem missio-
nária à Espanha; quer anunciar seu Evangelho na capital do Império; fala da ne-
cessidade que pensa ter de se explicar serenamente, após sua carta polêmica aos
gálatas; pede o apoio da comunidade de Roma para o sucesso da coleta que está

38. Terence L. Donaldson, “The Gospel that I Proclaim among the Gentiles” (Gal 2.2): Univer-
salistic or Israel-centred?, in L. Ann Jervis, Peter Richardson (ed.), Gospel in Paul, 166 (cf. nota 22).
39. Opinião contrária em Traugott Holtz, Die historischen und theologischen Bedingungen
des Römerbriefes, in Jostein Ådna et al. (Hrsg.), Evangelium — Schriftauslegung — Kirche. Festschrift
für Peter Stuhlmacher zum 65. Geburtstag, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1997, 238-254:
a carta nasce de uma confrontação com o judaísmo, que tinha recusado a mensagem do Cristo e
de Paulo; o apóstolo quer justificar o Evangelho que ele anuncia com a ajuda da demonstratio scrip-
turistica, e quer se justificar ele próprio contra as objeções judaicas. Segundo Holtz, Romanos é uma
carta apologética.
40. Cf. Heikki Koskenniemi, Studien zur Idee und Phraseologie des griechschen Briefes bis 400 n.
Chr., 38 (cf. nota 10): a carta é destinada a fazer que a ausência se torne presença (apousia/parousia).
Libânio podia assim afirmar: aquele que escreve uma carta fala como uma pessoa presente a uma
outra pessoa presente (w[sper parw,n tij pro.j paro,nta) (Epistolimaioi Charaktêres 2). Para Caius
Julius Victor (Ars rhetorica 27), para quem escrever uma carta é como falar a uma pessoa presente
(quasi praesentem alloqui).

82
II – Uma escrita em movimento
por levar a Jerusalém a fim de obter da Igreja-mãe o acolhimento das Igrejas pagãs
que ele fundou.
Tudo isso não é suficiente. É preciso determinar também como Paulo per-
cebeu a situação das comunidades que pediam sua intervenção41. Poder-se-ia falar
de uma pesquisa de tudo o que, psicologicamente, condicionou seus posiciona-
mentos escritos. A documentação sobre esse assunto nos é fornecida, sobretudo,
pela epístola aos Gálatas, em que se exprimem irresistivelmente a emoção e a de-
silusão do apóstolo. Amarga admiração (1,6) e dor por ser traído: se outrora os
gálatas o tinham acolhido “como um anjo de Deus, como o Cristo Jesus”, e por
amor “teríeis arrancado os vossos olhos para mos dar”, como é possível que tenha
agora se tornado inimigo deles (4,14-16)? Ele atribui a seus adversários fins sub-
versivos: “querem transtornar o Evangelho de Cristo” (1,7); agem como espias da
liberdade cristã (2,4) e recorrem aos artifícios da magia em detrimento dos gálatas
(3,1). Acusa-os de mal-intencionados: “Indivíduos desejosos de se fazer notar na
esfera da carne, eis o que são as pessoas que vos impõem a circuncisão. O seu úni-
co objetivo é não ser perseguidos por causa da cruz de Cristo; pois aqueles mes-
mos que se fazem circuncidar não observam a lei; eles querem, entretanto, que
sejais circuncidados para terem, na vossa carne, um título de glória” (6,12-13).
Lança um grito de maldição contra eles: “Se alguém vos anunciar um evangelho
diferente daquele que recebestes, seja anátema!” (1,9). Profere contra eles palavras
carregadas de um terrível sarcasmo: “Melhor se mutilem totalmente aqueles que
semeiam a desordem no vosso meio!” (5,12). Paulo lança também acusações pou-
co generosas de duplicidade contra Pedro e Barnabé (2,12). Imputa aos crentes da
Galácia nada menos que uma apostasia (1,6 e 5,4: “Vós rompestes com Cristo, se
fazeis consistir a vossa justiça na lei; decaístes da graça”); e os aflige com qualifica-
tivos incríveis: “Ó gálatas estúpidos! […] Sois a tal ponto estúpidos?” (3,1.3). Seu
temor é ter desperdiçado com eles seu trabalho e sua fadiga: “Fazeis-me temer o
ter trabalhado por vós em pura perda!” (4,11).
Naturalmente, seus posicionamentos pastorais e, sobretudo, teológicos não
podem ficar sem as consequências: há nele certa vontade de ir até o extremo, per-
ceptível tanto em seu estilo como em seu pensamento paradoxal; assim, tudo o
que ele diz de negativo sobre a lei é injusto e unilateral42. Em outras palavras, é um
Paulo alterado que fala na epístola aos Gálatas; sua reflexão teológica não poderá

41. Lauri Thuren (Derhetorizing Paul, 99 [cf. nota 34]) ressalta que a situação vista pelo autor é
mais importante para compreender a mensagem do que as circunstâncias históricas reais.
42. Cf. Giuseppe Barbaglio, La legge mosaica nella Lettera ai Galati, in Rinaldo Fabris (a cura
di), La parola di Dio cresceva (At 12,24). Scritti in onore di Carlo Maria Martini nel suo 70o comple-
anno, Bologna, EDB, 1998, 391-410 (RivBib.S 33). Lauri Thuren (Derhetorizing Paul, 94 [cf. nota

83
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
senão se mostrar sumária, caracterizada por uma parcialidade evidente, pondo o
acento num aspecto do problema em detrimento de outro; ela terá necessidade
de esclarecimentos e complementos, até mesmo de retractatio, e isso é que Paulo
fará na epístola aos Romanos. Na realidade, seu objetivo é parar, num esforço
extremo, o desvio das comunidades da Galácia. É o esforço de um Paulo extre-
mista! Nada se negligencia para atingir o objetivo; como diria Maquiavel, o fim
justifica os meios!
Provocado de diversas maneiras, Paulo quer, portanto, pôr-se em comunica-
ção com os destinatários, e o faz por escrito. O Pseudo-Demétrio, citando Artê-
mon, editor das cartas de Aristóteles, escreve que a carta é “em certo sentido uma
das duas partes do diálogo” (einai gar tên epistolên hoion to heteron meros tou dialogou:
De elocutione 223). Diz ainda:“devem-se redigir do mesmo modo as cartas e o diá-
logo” (dialogon te graphein kai epistolas: De elocutione 223). Para Demétrio, todavia,
essa afirmação de Artêmon não exprime toda a verdade: “Pode ser que, em parte,
ele tenha razão, mas não totalmente, pois a carta deve ser um pouco mais bem
preparada que o diálogo; se este imita uma palavra improvisada, aquela é escrita e
é, de certo modo, enviada como um presente” (De elocutione 224).
Mas há ainda outras diferenças: no caso da carta, trata-se de um diálogo a
distância, e isso tem necessariamente uma influência. Na realidade, os interlo-
cutores estão separados não somente pelo espaço, mas também pelo tempo, pois
a palavra do expedidor ressoa nos ouvidos do destinatário muitos dias após o
ditado da carta. Pela mesma razão, não pode haver nenhuma reação imediata à
palavra do expedidor: nenhuma possibilidade de intervir, de objetar, de fazer
ressalvas, de fazer valer seu ponto de vista. Além disso, outros elementos faltam
na escrita: a presença do locutor, o tom da voz, as pausas bem calculadas43, a rea-
ção perceptível nos rostos dos ouvintes, a possibilidade de mudar de direção no
percurso se se percebe que o auditório está desatento, pouco participante ou
nada propenso a se deixar guiar. Em resumo, temos vários tipos de separação no
caso da carta: espacial, temporal, acústica e óptica44. Podemos, todavia, estar de
acordo com a afirmação de Collins: “O logos de Paulo, nitidamente, faz parte de
um dialogos”45.

34]) revela, todavia, que a maneira unilateral como Paulo trata a questão da lei é requerida pela si-
tuação retórica.
43. O próprio Paulo lamenta não poder falar aos gálatas face a face (Gl 4,20).
44. Cf. Jutta Bickmann, Kommunikation gegen den Tod, 72 (cf. nota 14).
45. Raymond F. Collins, Reflections on 1 Corinthians as a Hellenistic Letter, in Reimund
Bieringer (ed.), The Corinthians Correspondence (BEThL 125), Leuven, Leuven University Press/
Peeters, 1996, 39-61 (44).

84
II – Uma escrita em movimento
1.3. Paulo provocador

Em si, a comunicação epistolar supõe, antes de mais nada, uma atividade do


expedidor, mas está também destinada a fazer reagir os destinatários. Paulo, com
efeito, a eles se dirige para os convencer e os persuadir46. Quer que se restabeleça
ou se reforce com ele uma profunda comunhão de intenção e de ação. Nesse
sentido, ele se torna provocador: seu objetivo é provocar nos destinatários uma mu-
dança de espírito e de vida, e ele se esforça por consegui-lo com a plenitude de
sua autoridade de apóstolo e de pai da comunidade. A carta é um instrumento
que visa a influenciar, a carta é uma força. É por isso que o que a utiliza deve ser
retoricamente bem formado e capaz de tocar seus interlocutores. Os meios não
faltavam, eram dados pela arte retórica. No caso de Paulo de Tarso, não se pode
excluir, é claro, a vantagem dos recursos da retórica clássica, que ele pôde muito
bem ter conhecido, pelo menos em parte: ele sabe utilizar a captatio benevolentiae;
conhece a arte de se apresentar sem verborreia, mas sem o menor complexo de
inferioridade, ao usar o peso de sua autoridade apostólica; faz apelo a seu ethos, ou
seja, à sua conduta irrepreensível em suas relações com os destinatários e no cum-
primento fiel de sua missão — um ethos que deve ser imitado pelos crentes da
Galácia, por exemplo (Gl 4,12, a ser lido em relação com os capítulos 1–2); recor-
re aos inesgotáveis recursos da linguagem a fim de tocar os corações de seus leito-
res/ouvintes (pathos); não desdenha mas, quando se apresenta a ocasião, solicita a
reflexão dos destinatários sobre este ou aquele argumento apresentado (logos);
apresenta exempla de diversos tipos e de grande eficácia; vale-se da auctoritas reco-
nhecida às Escrituras, interpretadas em termos cristológicos47, para apoiar as teses
e as posições a que deseja levar seus interlocutores; parte das convicções que par-
tilha com seus destinatários (auditório particular) e, mais geralmente, com todos
os cristãos ou todos os homens (auditório universal)48, para desenvolver uma co-
munhão mais forte com eles; e até ataca com dureza os intrigantes que se interpu-
seram entre ele e a comunidade, como vemos em Gálatas e em 2 Coríntios.
As cartas de Paulo servem para a comunicação com as comunidades de
crentes. É por isso que, falando com propriedade, elas não podem ser chamadas

46. Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca fazem uma distinção entre “convencer” e
“persuadir”: o primeiro termo vale mais que o segundo “para aqueles que se preocupam com o
caráter racional da adesão”; ao contrário, “para aqueles que se preocupam com o resultado, persua-
dir é mais que convencer” (Trattato dell’argomentazione. La nuova retorica, 29 [cf. nota 36]).
47. Cf. Giuseppe Barbaglio, Paolo: i suoi scritti e le Scritture, Ricerche Storico-Bibliche 12/1-2
(2000) 189-227.
48. Sobre essa distinção entre tipos de auditórios, ver Chaïm Perelman, Lucie Olbrechts-
Tyteca, Trattato dell’argomentazione (cf. nota 36), 30 ss.

85
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
de “missionárias”49. São, antes, cartas pastorais adequadas a quem, por carisma, é
o guia dos que foram levados à fé por sua palavra de evangelização e de todos os
que, de um modo ou de outro, entram na esfera de sua missão entre os pagãos.
O fundamento sobre no qual se apoia e se desenvolve a comunicação epistolar
é, portanto, a fé cristã comum com seus dons querigmáticos — fórmulas de fé
(cf., por exemplo, 1Ts 4,14) e esquemas do credo (cf. 1Cor 15,3-5) —,
com suas tradições litúrgicas (cf. 1Cor 11) e com seus hinos cristológicos
(cf. Fl 2,6-11).
Último esclarecimento: o contexto social da comunicação, com sua rede
de relações que une os destinatários e o expedidor, pode às vezes se ampliar
para um terceiro parceiro. É, por exemplo, o caso da epístola aos Romanos:
além de Paulo e da Igreja de Roma, aparece no pano de fundo a Igreja de Jeru-
salém, a quem o apóstolo vai visitar e entregar a coleta, a fim de que as Igrejas
de origem pagã sejam aceitas em plena comunhão pela Igreja-mãe judeu-cristã
que manifestava reservas a respeito delas. Lidamos, então, aqui com uma comu-
nicação triangular.
Se geralmente ele se dirige a um auditório global, como o indicam os ende-
reços das cartas — aos tessalonicenses, à Igreja de Corinto etc. —, Paulo não deixa
de falar aqui e ali a um grupo particular. Assim, em 1 Coríntios 8 dirige-se na rea-
lidade aos “fortes”, aos quais lembra o dever de responsabilidade e de solidarieda-
de deles diante dos “fracos”, escandalizados pela livre participação deles nos ban-
quetes nos templos dos ídolos (evn eivdwlei,w/|, 1Cor 8,10), sem falar de seu consumo
das carnes sacrificadas aos ídolos. A comunicação se torna então setorial. Igual-
mente, em Romanos, quando insiste na fidelidade de Deus a Israel e nas promes-
sas irrevogáveis feitas a Abraão e à sua descendência, parece se dirigir mais parti-
cularmente aos judeu-cristãos da Igreja romana, que podiam ter dúvidas e
objeções com relação à sua doutrina.
Ao contrário, Paulo jamais se dirige diretamente a seus adversários, que fi-
cam no último plano da comunicação epistolar (cf. 2 Coríntios e Gálatas). Em 1
Coríntios 15, se ele menciona crentes da comunidade que negam a ressurreição
dos mortos (v. 12), não os considera, todavia, destinatários de suas palavras, mas se
dirige a toda a comunidade a fim de que ela escape a essa influência. É por isso
que não podemos extrair de suas cartas um perfil exato dos posicionamentos de
seus adversários.

49. Contra Nils A. Dahl, The Missionary Theology in the Epistle to the Romans, in Studies in
Paul: Theology for the Early Christian Mission, Minneapolis, Augsburg, 1977, 70-94.

86
II – Uma escrita em movimento
Conclusão: é dentro dessa intensa rede de relações entre os interlocuto-
res que se situam as cartas de Paulo, e é como tais que elas devem ser lidas e
estudadas50.

2. Caráter ocasional da teologia de Paulo

Minha hipótese de trabalho é que ao caráter ocasional das cartas correspon-


de o caráter ocasional do pensamento teológico de Paulo. Em outras palavras, sua
sala de epistológrafo é o mesmo lugar em que elabora sua teologia. Ele faz teolo-
gia ao se comunicar por carta com suas comunidades51. Em seus escritos não ex-
põe uma teologia pré-embalada, escolhendo capítulos adaptados às circunstâncias,
mas elabora seu pensamento em função da necessidade de falar a seus interlocuto-
res e com o desejo de influenciar eficazmente o espírito e a vontade deles.
Não acho que o objetivo de nosso estudo seja descobrir a teologia tida
como escondida por trás das reflexões teológicas das cartas, contrariamente ao
que Dunn se propõe explicitamente fazer52. Com efeito, ele quer expor “a teo-
logia de Paulo” e não somente “a teologia de suas cartas” (p. 19), ou seja, “algo
mais que a soma pura e simples das teologias de cada carta” (p. 14); em outros
termos, “essa teologia mais total e completa de que cada carta se nutre” (p. 17) é
a única que merece ser considerada “uma teologia de Paulo digna desse nome”
(p. 19). Dunn recorre à seguinte comparação: “as cartas parecem a parte visível
de um iceberg: do que se pode ver é possível deduzir muito a respeito do que é
impossível ver” (p. 15).
Concretamente, Dunn escolheu como base da teologia de Paulo a teologia da
epístola aos Romanos, que crê “menos condicionada que as outras pelo fluxo do
discurso e pelo diálogo em evolução de Paulo com suas Igrejas”, e que considera
“um elemento relativamente [itálico do autor] fixo”; com efeito, essa carta foi “cla-
ramente compreendida como uma exposição e uma defesa de sua própria com-
preensão do Evangelho chegada à maturidade”; melhor ainda, ela é “a exposição
homogênea e meditada da teologia de Paulo devida ao próprio Paulo” (p. 25).
Assim, desejaríamos que Dunn seguisse o desenvolvimento do pensamento
teológico como ele se apresenta na epístola aos Romanos, também ela marcada

50. Os defensores do rhetorical criticism distinguem a situação histórica, ou seja, as circunstâncias


que viram surgir a carta, da situação retórica, ou seja, a situação de Paulo, que está para escrever e
faz todo o possível para encontrar a linguagem capaz de persuadir seus interlocutores.
51. Jouette M. Bassler (Paul’s Theology: Wence and Whiter?, in David M. Hay [ed.], Pauline
Theology II, 3-17 [cf. nota 1]) põe o acento em Paulo que faz teologia.
52. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998.

87
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
pela contingência! Mas ele voltou às antigas exposições de natureza sistemática:
Deus, o homem criado, o homem pecador, o homem salvo por Cristo, a Igreja
como comunidade dos justificados e dos chamados à salvação, a ética cristã53. Ora,
no discurso argumentativo de Romanos, in principio, não encontramos nem o
Deus criador nem o homem como criatura e como pecador, mas sim a tese geral
— a propositio principalis — segundo a qual o Evangelho “é poder de Deus para a
salvação de todo aquele que crê, do judeu, primeiro, e depois do grego” (Rm 1,16).
E como propositio secunda, ou mesmo como subpropositio, encontramos a seguir, em
1,17, o tema da revelação da justiça de Deus manifestada no Evangelho sola fide,
segundo a afirmação do profeta Habacuc: Aquele que é justo viverá pela fé. Do Deus
criador (e de sua revelação no mundo criado), Paulo fala somente em ligação com
a imparcialidade do julgamento divino (1,18–3,8), que, ela própria, visa a eviden-
ciar a imparcialidade da iniciativa da graça do Pai em Jesus Cristo para todos os
homens, judeus e gregos, com base numa perfeita igualdade. A isso se acrescente o
fato de que a epístola aos Romanos está longe de ser um escrito desvinculado das
circunstâncias.
Na realidade, a única teologia paulina de que se pode falar com razão é a
teologia dos escritos de Paulo. Opondo-me a Dunn, afirmo que a teologia de
Paulo é a teologia de suas cartas. Que possa haver uma teologia de Paulo além da
que está presente em suas cartas é pura conjectura subjetiva, ou, em todo caso,
uma extensão que para nós é obscura e inatingível54. Se quisermos depois, como
é justo, abordar a questão da coerência e da unidade dessa teologia, nossa pesquisa
deverá se apoiar no que Paulo diz na contingência de sua comunicação epistolar,
como J. Christiaan Beker gosta de dizer, e não deve sair dessa contingência, ao
supor que existe um sistema teológico preexistente e pré-formado. Em outros
termos, se as cartas nos oferecem esboços teológicos55 e se se admite que Paulo é
um pensador coerente, e não um oportunista que manipula a seu bel-prazer os
dados da fé56, temos de perguntar onde se encontra a coerência de seu pensamen-
to. Esse problema será estudado mais adiante. No momento, fixo minha atenção
no caráter ocasional da teologia paulina.

53. Eis os títulos dos sete capítulos da obra (cf. nota anterior): God and Humankind; Hu-
mankind under Indictment; The Gospel of Jesus Christ; The Beginning of Salvation; The Process
of Salvation; The Church; How Should Believers Live?
54. Lauri Thuren (Derhetorizing Paul, 17 [cf. nota 34]) ressalta com razão que o único objetivo
que um exegeta pode se fixar é o exame da teologia de Paulo tal como ela se apresenta nos textos.
55. Ver o subtítulo de meu livro La teologia di Paolo (cf. nota 6): Abbozzi teologici in forma
epistolare.
56. É, todavia, o que pensa Wilfred L. Knox (1934/1961), citado por Lauri Thuren, Derhetori-
zing Paul, 36 (cf. nota 34).

88
II – Uma escrita em movimento
2.1. A primeira palavra do apóstolo

Convém progredir por etapas. Como regra geral, o meio de comunicação


primeiro e imediato não é constituído por problemas teológicos; Paulo, com efei-
to, procura responder às perguntas concretas dos destinatários, a fim de convencê-
los e persuadi-los a mudar de espírito e de vontade. Exortar, advertir, censurar, ou
mesmo louvar, consolar e encorajar, propor exempla persuasivos, eis o que ele pro-
cura, sobretudo, comunicar57. Em poucas palavras, seu projeto é, em primeiro lu-
gar, pastoral e se traduz muitas vezes — mas não sempre — em imperativos for-
mais ou mesmo em fórmulas mais ou menos equivalentes de oração e de apelo.
Em 1 Tessalonicenses, por exemplo, ele deseja, de modo manifesto, consolar e en-
corajar os crentes da Igreja macedônia profundamente entristecidos porque pen-
savam que alguns de seus irmãos, já mortos, seriam excluídos da parusia final do
Cristo e não poderiam ser “elevados” ao céu com os vivos. Eles estavam tão mais
perturbados e desesperados porque podia também lhes acontecer de não estarem
mais vivos por ocasião do acontecimento final da salvação. Paulo procura agir de
modo tal que eles não fiquem mais expostos à tristeza (mh. luph/sqe) “como os
outros que não têm esperança” (1Tm 4,13).
Em 1 Coríntios 1–4, Paulo exorta a comunidade a superar as divisões e a
reencontrar os caminhos da concórdia e da unidade: “Mas eu vos exorto, irmãos,
em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: guardai a concórdia e não haja divisões
entre vós; sede bem unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento”
(1Cor 1,10). E como as divisões eram provocadas pelo culto da personalidade dos
grandes líderes, vistos como pais espirituais que iniciavam na gnose ou na sabedo-
ria e como retóricos “encantadores de serpentes”, o apóstolo incentiva seus inter-
locutores a ver nesses mesmos líderes “servos de Cristo e administradores dos
mistérios de Deus” (1Cor 4,1).
Em 1 Coríntios 15, o primeiro objetivo prático não se exprime por meio de
imperativos ou de exortações, mas está implícito na própria comunicação: ainda
que Paulo saiba que na comunidade “alguns” negam a ressurreição dos mortos
(1Cor 15,12), ele não se dirige a eles, mas ao “vós” da comunidade, a fim de dis-
suadi-la de partilhar a posição negativa da minoria.
Em Gálatas, o apóstolo se esforça por bloquear o processo no qual se encon-
tram os crentes não judeus, que correm o risco de ceder às sugestões e à violência
dos “defensores da circuncisão”: “eles vos impõem a circuncisão” (Gl 6,12). O

57. Para Sêneca (Ep 94,39), a exortação se exprime sobretudo por meio dos seguintes motivos:
consolatio, dissuasio, adhortatio, obiurgatio, laudatio.

89
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
imperativo de Gálatas 5,1 é claro: “Permanecei, pois, firmes e não vos deixeis su-
jeitar de novo ao jugo da escravidão”. Esse imperativo decorre imediatamente do
chamado à experiência da salvação de todos os crentes: “É para sermos verdadei-
ramente livres que Cristo nos libertou”. E em Gálatas 4,12 o apóstolo os exorta a
ser seus imitadores: “Procedei como eu, visto que me tornei como vós, eu vos
rogo, irmãos”. Ele se apresenta aqui, explicitis verbis, como um modelo de fidelida-
de ao Evangelho da liberdade, um modelo já extensamente oferecido na narração
dos dois primeiros capítulos da carta, que insistem sobre seu ethos. Todavia, para
evitar qualquer equívoco, tem firme vontade de especificar que é uma liberdade a
ser vivida com sentido de responsabilidade: “Vós, irmãos, é para a liberdade que
fostes chamados. Contanto que esta liberdade não dê nenhuma oportunidade à
carne! Mas pelo amor ponde-vos a serviço uns dos outros” (Gl 5,13).
Na epístola aos Romanos, Paulo quer acabar com as dúvidas, vencer as in-
certezas, talvez se defender das críticas. Tudo isso está subjacente às suas palavras,
como indicam claramente as formas interrogativas de Romanos 3,1 ss.: “Qual é,
então, a superioridade do judeu? Qual é a utilidade da circuncisão? Ela é grande
sob todos os aspectos! […] E então? Se alguns foram infiéis, acaso a infidelidade
deles tornaria nula a fidelidade de Deus? Claro que não […]. Acaso Deus não é
injusto ferindo-nos com a sua cólera? […] Claro que não!”58. A esse propósito,
podemos citar também: Romanos 6,1: “Que diremos, pois? Será preciso perma-
necermos no pecado para que a graça se torne abundante? Por certo que não!”;
Romanos 6,15:“E então? Vamos pecar porque não estamos mais sob a lei, mas sob
a graça? Não, decerto!”; Romanos 7,7: “Que diremos, então? A lei seria pecado?
Não, decerto!”. Sem esquecer Romanos 9,14:“Que diremos, pois? Haveria injus-
tiça em Deus? Não, decerto!”. E Romanos 11,1:“Pergunto, pois: teria Deus rejei-
tado o seu povo? De modo nenhum!”. Penso que não estamos tratando aqui de
questões que dependem de uma diatribe de caráter acadêmico — suscitadas, por-
tanto, com objetivo didático —, mas sim de questões reais, pelo menos em sua
essência, que estavam presentes na Igreja de Roma e com as quais Paulo deve se
haver. Creio que somente a forma dessas questões é que deve ser atribuída ao
gênero da diatribe.

58.Ver a propósito Romano Penna, I diffamatori di Paolo in Rm 3,8, in L’apostolo Paolo. Studi
di esegesi e di teologia, Cinisello Balsamo, Paoline, 1991, 135-149, e Andrew T. Lincoln, From
Wrath to Justification: Tradition, Gospel and Audience in the Theology of Romans 1:18–4:25, in
Eugene H. Lovering Jr. (ed.), Society of Biblical Literature 1993, Seminar Papers, 1993, 194-226
(SBL.SPS 32).

90
II – Uma escrita em movimento
2.2. A teologia como segundo tempo

Paulo, como pastor de almas, teria podido limitar-se a essas exortações e se


contentar em repelir, com indignação (mh. ge,noito), as conclusões falsas que
se poderiam tirar ou que se tinham efetivamente tirado de seus ensinamentos.
Ele poderia tê-lo feito ao pôr na balança sua autoridade apostólica: “Sou eu que
vos digo, deveis fazer isto e deveis evitar aquilo; não queirais acreditar que minha
apresentação do Evangelho vá desembocar em consequências inaceitáveis; tende
confiança em mim, pois eu sou o porta-voz de Deus!”. Ao contrário, para ser
convincente e persuasivo, ele escolhe o caminho da argumentação e propõe ra-
zões valiosas. Ao imperativo acrescenta o indicativo59. Em outras palavras, ele está
atento em insistir em sua primeira palavra, e é justamente dessa maneira que se
torna teólogo. Hübner o define com razão como “apóstolo que faz teologia” e
como “teólogo que argumenta”, e se explica assim: “Pensar teologicamente, para
Paulo, quer dizer argumentar de maneira teológica. E para ele a argumentação é
desenvolvimento, explicação de questões teológicas […]. Paulo escreve, portanto,
ao argumentar teologicamente, a comunidades que já são cristãs”60. A essas pala-
vras de Hübner acrescentarei que os argumentos teológicos propostos por Paulo
estão, eles próprios, marcados pela contingência, do mesmo modo como as situa-
ções que o estimularam a escrever, ou como as cartas e suas respostas compostas
de exortações práticas. São, pois, argumentos ad hoc, formulados em função de seu
auditório e de seu próprio desejo, ou seja, em função de respostas que espera de
seus interlocutores. São argumentos, pois, que, antes de mais nada, devem ser
muito eficazes, mas também valiosos em si mesmos — a menos que considere-
mos Paulo um oportunista da pior espécie. Na realidade, como mostrarei mais
adiante, Paulo remete sempre às normas do Evangelho, que ele relê em seus ní-
veis mais profundos. Aqui, convém distinguir bem a argumentatio da demonstratio:
o intuito da primeira é convencer e persuadir livremente, ao passo que o da se-
gunda é obrigar.
Em 1 Tessalonicenses, ao justificar o imperativo negativo “Não queremos
que vos entristeçais” (1Ts 4,13), Paulo se faz teólogo da esperança dos crentes de
Tessalônica. Começa por diagnosticar o mal: o estado de tristeza deles baseia-se
no fato de que ignoram o destino final positivo dos crentes. Se o espírito deles

59.Ver Wilhelm Wuellner, Paul as Pastor: The Function of Rhetorical Questions in First Co-
rinthians, in Albert Vanhoye (éd.), L’apôtre Paul. Personalité, style et conception du ministère, Leu-
ven, University Press/Peeters, 1985, 49-77 (BEThL 73); Wuellner enfatiza que o Paulo pastor é ao
mesmo tempo educador.
60. Cf. Hans Hübner, Biblische Theologie, 26 (cf. nota 5).

91
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
está na obscuridade, o olhar será necessariamente o de uma tristeza mortal: “Não
queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância a respeito dos mortos”. A reflexão
teológica que deve esclarecer os tessalonicenses enraíza-se no acontecimento da
ressurreição do Cristo e estabelece um paralelo com o destino dos crentes mor-
tos: “Se, com efeito, nós cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também,
aqueles que morreram, Deus, por causa deste Jesus, com Jesus os reunirá”
(1Ts  4,14); “então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” (1Ts  4,16). E
acrescenta que os crentes que estiverem com vida na parusia do Cristo e os que
já morreram terão o mesmo destino, ser salvos, mais precisamente, segundo as
próprias palavras de Paulo, ser “arrebatados” ao céu e estar sempre com o Senhor
(1Ts 4,17). Até mesmo a longa ação de graças narrativa dos três primeiros capítu-
los da carta busca reconfortar e encorajar. É por isso que Paulo desenvolve aí,
como veremos, uma teologia da eleição divina dos tessalonicenses que tiverem
aceitado o Evangelho com fé.
Em 1 Coríntios 1–4, o apóstolo justifica e motiva os imperativos apelando à
unidade por meio de uma reflexão cristológica. A uma situação eclesialmente de-
ficiente, na qual facções minam a unidade da Igreja local, ele responde da seguinte
maneira: é o Cristo crucificado, e não os sedutores líderes cristãos, que é o centro
unificador e o ponto de referência da experiência religiosa dos neófitos de Corin-
to, a fonte exclusiva da salvação deles. “Acaso o Cristo está dividido? Porventura
Paulo foi crucificado por vós? Foi acaso em nome de Paulo que fostes batizados?
(1Cor 1,13). O Crucificado determina o anúncio dos pregadores, não só material-
mente, para aquilo que é de seu objeto, mas também formalmente: Cristo enviou
Paulo “para anunciar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria do discurso, para
não reduzir a nada a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da cruz é loucura
para os que se perdem, mas para os que estão sendo salvos, para nós, ela é poder de
Deus” (1,17-18). “Nós, porém, pregamos um Messias crucificado, escândalo para
os judeus, loucura para os pagãos, mas para os que são chamados, tanto judeus
como gregos, ele é o Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus” (1,23-24).
Nos próprios termos da exortação em que Paulo convida a ver nos pregado-
res do Evangelho “servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”
(1Cor 4,1), a motivação teológica se mostra de modo claro: são pessoas que foram
engajadas num serviço pelo Cristo e por Deus; é a elas, e não às outras, que os
crentes de Corinto devem a novidade espiritual de suas vidas. Os pregadores do
Evangelho têm um valor puramente funcional. Paulo dá, assim, vida à sua teologia
da diakonia, que ele desenvolverá sobretudo em 2 Coríntios, em que a compara-
ção dramática e polêmica com certos propagandistas judeu-cristãos se opera jus-
tamente a partir da imagem do “ministro do Cristo” (2Cor 11,23).

92
II – Uma escrita em movimento
A seguir, para que seu trabalho de dissuasão seja eficaz — pois a comunidade
de Corinto não deve se deixar influenciar por aqueles que negam a ressurreição
dos mortos — Paulo elabora, em 1 Coríntios 15, uma profunda reflexão centrada
na indissolúvel conexão entre a ressurreição passada do Cristo, dado elementar da
fé cristã, e a ressurreição futura dos “que estão em Cristo”: “Mas não; Cristo res-
suscitou dos mortos, primícias dos que morreram. Com efeito, visto que a morte
veio por um homem, é também por um homem que vem a ressurreição dos mor-
tos: assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida; mas
cada um em sua ordem: em primeiro lugar, as primícias, Cristo; depois, aqueles
que pertencem a Cristo, por ocasião de sua vinda: em seguida virá o fim, quando
ele entregar a realeza a Deus Pai, depois de ter destruído toda dominação, toda
autoridade, todo poder” (1Cor 15,20-24).
Igualmente, Paulo elabora uma reflexão cristológica a fim de dissuadir os
gálatas “insensatos” de ceder às pressões insistentes dos “defensores da circunci-
são”. Mostra, sobretudo, as consequências catastróficas que haveria se eles se fizes-
sem circuncidar, submetendo-se à lei mosaica: “Se vos fizerdes circuncidar, Cristo
não vos servirá mais para nada” (Gl 5,2); “Se é pela lei que se alcança a justiça, foi,
portanto, para nada que Cristo morreu” (Gl 2,21); “Vós rompestes com o Cristo,
se fazeis consistir a vossa justiça na lei; decaístes da graça” (Gl 5,4). Na realidade,
Paulo se baseia no papel salvífico exclusivo do Cristo, que não tolera nenhum con-
corrente. Exclusivo porque sua função não é uma simples mediação, mas uma
mediação escatológica, ou seja, última e definitiva. Consequentemente, se solus
Christus prevalece, a circuncisão e, mais geralmente, a lei mosaica não podem rei-
vindicar nenhuma função de salvação, ainda que complementar. Daí a tese que
Paulo repete e exprime de diversas maneiras: os bens salvíficos, ou seja, a justifica-
ção, o dom do Espírito, a descendência, a bênção, a herança e a promessa a Abraão
— esta última é identificada com o Espírito —, a descendência e a herança divi-
nas são dados por Deus em Cristo, “pela fé” (dia pisteôs; ek pisteôs; ex akoês pisteôs),
“não pela obras da lei” (ex ergôn nomou; en nomôi; ek nomou) (Gl 2,16; 3,1-4,21). E,
como fundamento dessa teologia do solus Christus e da sola fides, ele pode dar o
testemunho, cheio de autoridade, da Escritura a respeito de Abraão e de sua des-
cendência (cf. Gn 15,6, citado em Gl 3,6; Gn 12,3, citado em 3,8; Gn 13,15, cita-
do em 3,16), ou ainda a respeito do patriarca, de suas duas mulheres e dos respec-
tivos filhos deles (Gn 16 e 21, citados em Gl 4,21-31).
Observemos ainda o argumento fundado na experiência (ex experientia), que
remete à pregação evangélica e à sua eficácia salvífica: os crentes da Galácia rece-
beram o Espírito Santo não “pelas obras da lei”, mas “pela escuta da fé” (Gl 3,1-5).
Destaquemos também a argumentação escriturística de Gálatas 3–4: as promessas

93
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
feitas por Deus a Abraão se cumpriram em Cristo, que é sua descendência (sperma,
no singular), e em todos os que estão unidos a ele na fé.
Aos romanos, que se interrogam sobre a particularidade da história da salva-
ção dos judeus em relação aos pagãos e, assim, sobre a fidelidade de Deus à escolha
de Israel, aparentemente comprometida pelo fato de que em Cristo as duas partes
da humanidade estão agora assimiladas, Paulo expõe seu Evangelho segundo o
qual essas duas realidades, longe de se contradizerem, completam-se harmoniosa-
mente. Para ele, com efeito, o Evangelho “é o poder de Deus para a salvação de
todo aquele que crê, do judeu primeiro, e depois do grego. De fato, é nele que a
justiça de Deus se revela, pela fé e para a fé” (Rm 1,16-17). “É a justiça de Deus
pela fé em Jesus Cristo para todos os que creem, pois não há diferença: todos pe-
caram, estão privados da glória de Deus, mas são gratuitamente justificados por
sua graça, em virtude da libertação realizada em Jesus Cristo” (Rm 3,22-24). O
universalismo da graça divina diz respeito aos judeus e aos pagãos, tomados em
conjunto, porque a graça é dada sem diferença de origem e de condição, pela fé e
sem a lei61, mas salvaguardando sempre a fidelidade de Deus ao povo da eleição:
“Pergunto, pois: teria Deus rejeitado o seu povo? De modo nenhum!” (Rm 11,1).
E conclui assim sua argumentação em Romanos 9–11: “Outrora, com efeito, vós
desobedecestes a Deus e agora, em consequência da desobediência deles, miseri-
córdia foi exercida para convosco; semelhantemente, eles também desobedeceram
agora, em consequência da misericórdia exercida para convosco, a fim de que
também eles agora sejam objeto de misericórdia. Pois Deus incluiu a todos os
homens na desobediência para conceder a todos misericórdia” (Rm 11,30-32).
Além disso, em face da objeção segundo a qual a exclusão da lei mosaica po-
dia legitimar um laxismo moral e uma libertinagem desenfreada, Paulo não se li-
mita a reagir com indignação (mh. ge,noito), mas argumenta remetendo ao batismo
— o sacramento de participação mística na morte e na ressurreição do Cristo —:
“Visto que estamos mortos ao pecado, como viver ainda no pecado? Ou ignorais
que nós todos, batizados em Jesus Cristo, é na sua morte que fomos batizados?

61.Ver o estudo já citado de Andrew T. Lincoln, From Wrath to Justification (cf. nota 58). Paulo
afirma ao mesmo tempo as duas coisas, a imparcialidade de Deus e sua fidelidade: de uma parte, não
há distinção alguma entre judeu e grego; de outra, há uma prioridade para Israel; o Evangelho não é
apenas “para a fé”, mas é, antes de mais nada, para os judeus (200). No mesmo sentido: não há dis-
tinção alguma entre judeu e pagão diante de Deus, mas ser judeu é uma vantagem (210). Deus, que
é um justo juiz e imparcial, pois julga os judeus como os pagãos, revelou-se como o único Deus
que justifica judeus e pagãos do mesmo modo — com base no sacrifício de Jesus e pela fé; assim
agindo, ele é justo em seu julgamento e fiel à sua promessa, em particular à promessa feita a Abraão
(222). Em resumo, o Evangelho de Paulo é para todos, mas antes de tudo para os judeus (223).

94
II – Uma escrita em movimento
Pois pelo batismo nós fomos sepultados com ele em sua morte, a fim de que, assim
como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós levemos uma
vida nova” (Rm 6,2-4). Não podemos censurá-lo por assimilar a lei mosaica ao
pecado, pois ela “é santa, e o mandamento, santo, justo e bom” (Rm 7,12); apenas
foi manipulada pelo pecado (7,13); em resumo, “a lei é espiritual; eu, porém, sou
carnal, vendido como escravo ao pecado” (7,14)62. A única perspectiva de salvação
reside na ação transformadora do Espírito Santo: “Agora, pois, não há mais ne-
nhuma condenação para os que estão em Jesus Cristo. Pois a lei do Espírito, que
dá a vida em Jesus Cristo, liberou-me da lei do pecado e da morte” (Rm 8,1-2).
Como se vê, a primeira palavra do apóstolo é de caráter prático e exortativo,
ao passo que sua teologia é secundária. Diz-se com frequência que nele o teólogo
e o pastor estão intimamente ligados63. É verdade, mas essa relação deve ser escla-
recida: o teólogo está a serviço do pastor. Paulo é teólogo porque é, antes de tudo,
um pastor e um educador. “Ele não é, portanto, um teólogo de gabinete, mas um
servidor do Evangelho que, pela necessidade das coisas, foi além do simples anún-
cio e respondeu às interrogações, aos problemas e às exigências concretas que seus
interlocutores e ele mesmo tinham de compreender. Dunn tem razão em afirmar
que não podemos separar nele o teólogo, o missionário e o pastor64. […] Sua teo-
logia não é apenas determinada pela missão e pela cura das almas, é também uma
forma concreta e particular de sua ação missionária e pastoral”65.
Eis por que é justo falar de caráter ocasional, contextual e contingente da teologia
de Paulo. É uma reflexão feita hic et nunc, uma resposta motivada pelos problemas
concretos de suas comunidades, adaptada aos objetivos que ele persegue em suas
cartas, a fim de obter uma resposta positiva de seus interlocutores. Como tal, essa
teologia está inevitavelmente marcada por um caráter provisório, parcial e perfectível:
vale para tal ocasião concreta; é coerente com o objetivo perseguido por Paulo
em tal carta ou em tal outra. Tem forçosamente necessidade, então, de ser desen-
volvida e completada, aperfeiçoada e corrigida. Um mesmo problema, se se apre-
sentar em outras circunstâncias, será enfrentado teologicamente por Paulo de

62.Ver a esse respeito Stefano Romanello, Una legge buona ma impotente. Analisi retorico-lette-
raria di Rm 7,7-25 nel suo contesto, Bologna, EDB, 2000.
63. Cf., por exemplo, James D. G. Dunn, In Quest of Paul’s Theology: Retrospect and Prospect,
in E. Elizabeth Johnson, David M. Hay (ed.), Pauline Theology IV, 95-115 (99) (cf. nota 1).
64. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 6 ss. (cf. nota 52).Ver também Charles K.
Barrett, Paulus als Missionar und Theologe, ZThK 86 (1989) 18-32; Otfried Hofius, Paulus —
Missionar und Theologe, in Jostein Ådna et al. (Hrsg.), Evangelium — Schriftauslegung — Kirche,
224-237 (cf. nota 39).
65. Giuseppe Barbaglio, La teologia di Paolo, 728 (cf. nota 6).

95
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
­ utra maneira, se seu projeto for outro e se ele se dirigir a interlocutores diferen-
o
tes — diferentes não apenas materialmente, mas também porque têm necessidade
de uma resposta diferente e para que ele se adapte a eles sem oportunismo. A
comparação entre Gálatas e Romanos sobre a questão da avaliação da lei parece
aqui instrutivo66. Decerto, deve-se admitir que Paulo sabe ampliar os termos de
um problema concreto, situando-o em horizontes mais vastos e mais profundos
por meio de uma oportuna digressão (digressio ou parekbasis) — por exemplo, a
questão da glossolalia e da profecia em 1 Coríntios 12–14, que ele desenvolve no
capítulo 13, ao apresentar o amor (ágape) como “valor” supremo da existência.
Mas isso não permite concluir que em tal caso a contingência está superada. Po-
de-se dizer, quando muito, que a questão concreta, de uma parte, e a reflexão teo-
lógica de Paulo, de outra, se aprofundam, mas não cessam de ser contingentes e de
assim continuar. É a questão particular dos carismas e do ágape que transcende o
valor deles: valor funcional dos carismas, valor essencial do ágape.
Eis por que, segundo Meyer, não se deve falar de teologia paulina no início
de seu percurso de epistológrafo, mas no fim, como resultado67. Mas a tese de
Meyer só é válida parcialmente, porque não há em Paulo um processo linear de
ordem de seus posicionamentos, mas sempre respostas teológicas marcadas pela
contingência. É isso que explica que Paulo, depois de ter feito pressão de modo
unilateral num dos pratos da balança, faça pressão sobre o outro, em outras cir-
cunstâncias, também unilateralmente68.Todavia, voltar a questões já tratadas, mas
com novos objetivos, permite-lhe aprofundar e considerar os diversos aspectos
do problema.
A esse propósito, julgo também interessante o método de Thurén, que afirma
em Desretorizar Paulo: “A questão crucial é compreender quanto a natureza dinâ-
mica dos textos paulinos influencia o que ele escreveu” (p. 27). A exigência é justa,
mas fico bem perplexo quando Thurén diz que é preciso desretorizar Paulo a fim de
encontrar um pensamento isento de simplificações, de exageros, de unilateralis-
mos, como se a teologia dele não fosse atingida pela contingência. Com efeito,

66. Ibid., 628-629.


67. Paul W. Meyer, Pauline Theology: A Proposal for a Pause in Its Pursuit, in E. Elizabeth
Johnson­, David M. Hay (ed.), Pauline Theology IV, 140-160 (cf. nota 1). “‘Teologia’ é algo que se
faz ou que se produz, mais que algo que se tem, e a teologia de Paulo em particular não é o que gera
seu ato de teologizar, mas o que dele nasce” (152).
68. Cf. J. Paul Sampley, From Text to Though World: The Route to Paul’s Ways, in Jouette M.
Bassler (ed.), Pauline Theology I, 3-14 (cf. nota 1). “Quando seus interlocutores ou seus adversários
sustentam com força um polo, Paulo não mede suas afirmações, mas faz sobressair o polo oposto;
em sua preocupação de arrumar a balança desajustada, ele infla às vezes o polo negligenciado” (7).

96
II – Uma escrita em movimento
penso que o que há de contingente na expressão teológica do pensamento de
Paulo não deve ser anulado, mas assumido como pertencente de modo concreto à
sua teologia, a qual é uma hermenêutica do Evangelho, palavra viva para situações
diversas, históricas e retóricas, nas quais Paulo comunica como um teólogo, sempre
pronto a fazer teologia, ou seja, interpretar o Evangelho de modo criativo.
A teologia é também uma segunda palavra que esclarece os espíritos dos des-
tinatários, como o apóstolo diz explicitis verbis em 1 Tessalonicenses 4,13: se a
primeira palavra se dirige, via de regra, à vontade e à ação de seus interlocutores,
a segunda tem por fim ajudá-los a compreender a realidade cristã, o sentido pro-
fundo dos dons tradicionais da fé, fazendo apelo aos recursos da inteligência
(nous), à racionalidade, ao logos. Se considerada válida a distinção entre “conven-
cer” e “persuadir”, diríamos que as duas palavras de Paulo servem, cada qual à
sua maneira, para atingir o duplo fim que ele persegue: sua primeira palavra visa
a persuadir e sua segunda palavra visa a convencer — a segunda, claro, subordi-
nada à primeira.
É por isso que podemos falar, a propósito de Paulo, de uma teologia relativa,
relativa a tal situação dada, ao objetivo particular que persegue quando escreve sua
carta e até à maneira como ele vive sua relação com seus interlocutores. Podemos
também falar de uma teologia aberta, aberta a novos problemas e a novas herme-
nêuticas do Evangelho.
Acrescentemos ainda que até um olhar superficial sobre as cartas de Paulo é
suficiente para medir a importância considerável que ele dá à sua argumentação
teológica, como se observa em particular na epístola aos Romanos. Suas cartas
têm uma densidade teológica visível: a finalidade delas é pastoral, mas são teológi-
cas pelas argumentações que desenvolvem e pelas reflexões profundas que con-
têm. Isso significa também que o apóstolo não quer nem se impor pela força, nem
instigar seus interlocutores a aderir de olhos fechados à sua palavra. Longe de ape-
lar para o ipse dixit, ele motiva seus posicionamentos, quer comunicar aos destina-
tários uma inteligência da fé (intellectus fidei), e não somente incentivá-los à ação;
fala como adulto a adultos. Para fazer isso, ele muitas vezes puxa seus ouvintes
para sua própria argumentação. Eles devem participar ativamente e construir com
ele e sob sua direção uma reflexão intelectual capaz de justificar orientações de
vida. Prova disso são estes poucos exemplos, tirados de duas cartas. 1 Tessalonicen-
ses contém fórmulas recorrentes: “Vós mesmos bem sabeis…” (2,1; cf. 2,11; 4,2;
5,2); “Vós vos lembrais, irmãos…” (2,9). Ele e eles têm, pois, em comum conhe-
cimentos e lembranças sobre os quais o apóstolo se apoia para argumentar. Mais
importantes são ainda as expressões que buscam envolver seus interlocutores na
epístola aos Gálatas: “Só peço que me esclareçais” (Gl 3,2); “Compreendei, pois”

97
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
(3,7);“Como podeis ainda voltar a elementos fracos e pobres, com vontade de vos
escravizardes novamente a eles?” (Gl 4,9); “Dizei-me, vós que quereis ser submis-
sos à lei, não ouvis o que diz esta lei?” (Gl 4,21). Sem dúvida, a reflexão teológica
de Paulo comporta um caráter dialógico acentuado.

3. Perspectiva unificadora da teologia de Paulo

O caráter ocasional da reflexão teológica do apóstolo levanta o problema de


sua coerência: há um centro ou uma perspectiva capaz de dar uma unidade aos
diversos esboços atestados nas cartas? Anteriormente, procuramos essa coerência no
domínio dos conteúdos ou dos temas, na esperança de encontrar um tema central,
um núcleo ao qual se vincularia todo o resto. De fato, foram feitas numerosas
proposições.

3.1. Centro temático e estrutura simbólica profunda

Como centro temático evidenciamos, antes de tudo, a teologia da justifica-


ção somente pela fé (sola fide), que a tradição luterana alçou ao nível de cânon dos
cânones — é, por exemplo, a tese proposta por Käsemann69 e defendida ainda
hoje com obstinação por Hübner70. Outros pesquisadores designaram, como cra-
tera principal do vulcão Paulo, a mística paulina, compreendida, todavia, num
sentido cristológico, escatológico e sacramental. É a posição de Schweitzer, que,
aliás, qualificou de cratera secundária a teologia da justificação71. Encontra-se um
ponto de vista semelhante em Sanders, que vê a participação em Cristo como
esquema religioso típico de Paulo, diferente do “nomismo da aliança” que carac-

69. Para ele, todavia, a justiça deve ser entendida a partir da apocalíptica ou da cosmologia, ou
seja, em favor do mundo criado por Deus.Ver Ernst Käsemann, Exegetische Versuche und Besinnungen,
Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1960; Id., Paulinische Perspektiven, Tübingen, Mohr Siebeck,
1969; ver também seu comentário da carta aos Romanos: An die Römer, Tübingen, Mohr Sie-
beck, 1973 (HNT 8a).
70. Hans Hübner, Pauli theologiae proprium, NTS 26 (1980) 45-473; Hübner fala expressa-
mente da “posição central da doutrina da justificação em Paulo” e procura mostrá-la “exegetica-
mente” (449); ao dialogar com Sanders, ele tenta também mostrar que ela engloba a teologia da
participação mística de Cristo.
71. Cf. Albert Schweitzer, Die Mystik des Apostels Paulus, Tübingen, Mohr Siebeck, 1930, 220.
Já no início do século XX Wrede tinha reduzido a doutrina da justificação a uma “doutrina de
combate” (Kampfeslehre), presente somente nas cartas centradas na polêmica antijudaica; cf. William
Wrede, Paulus, in Karl H. Rengstorf (Hrsg.), Das Paulusbild in der neueren deutschen Forschung, 67
ss. (cf. nota 4).

98
II – Uma escrita em movimento
terizava o judaísmo de seu tempo72, e em Schnelle, que identifica a transformação
e a participação como centro da teologia paulina73. Bem diferente é a posição de
Jürgen Becker, para quem o centro unificador é a teologia da cruz, tal como se
exprime de maneira exemplar nas epístolas aos Coríntios, como uma resposta ra-
zoável ao entusiasmo “espiritual” impetuoso dos destinatários. Ela encobre a teo-
logia da eleição, própria de 1 Tessalonicenses, e a teologia da justificação, que
predomina em Gálatas, Filipenses e Romanos74. Enfim, para muitos exegetas ca-
tólicos — mas também para outros — é a cristologia que é central, ou seja, a
morte e ressurreição do Cristo, “sacramento” da ação da salvação de Deus. Basta
citar aqui Fitzmyer: “O conceito-chave em torno do qual a totalidade da teologia
paulina deve ser organizada é Cristo. A teologia de Paulo é cristocêntrica […]; é a
soteriologia cristocêntrica”75. Dunn caminha no mesmo sentido: Cristo funciona
“como o critério central pelo qual Paulo distinguiu de maneira crítica o que é
importante e o que deixa de sê-lo. Ou, ainda, Cristo foi o prumo com o qual
Paulo avaliou o alinhamento do que podia ou não podia ser construído sobre um
sólido fundamento herdado de seu passado”76. Quanto a Plevnik, como conclusão
de um estudo de conjunto das hipóteses mais importantes, ele define a categoria
muitas vezes empregada de “centro” da teologia como uma dimensão que não
deriva de nenhuma outra e da qual provém todo o resto. Ele fala, por seu turno,
de “a riqueza plena e indivisível do mistério do Cristo e do projeto de salvação do
Pai pelo Filho”77.
Mas devemos a J. Christian Beker ter conferido à pesquisa uma nova direção,
muito promissora, ainda que tenha suscitado reservas e contestações. O centro
unificador do pensamento de Paulo não é um tema teológico particular nem o
dinamismo evolutivo de seu pensamento; é um horizonte ou uma perspectiva,
mais exatamente “uma estrutura simbólica” profunda, que unifica todos os temas
teológicos, como a justificação, a reconciliação, o ser em Cristo, a salvação, a vida,

72. Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism (cf. nota 4).


73. Udo Schnelle, Transformation und Partizipation als Grundgedanken paulinischer Theolo-
gie, NTS 47 (2001) 58-75. Cf. também sua contribuição neste livro.
74. Jürgen Becker, Paulus, der Apostel der Völker, Tübingen, Mohr Siebeck, 21992.
75. Joseph A. Fitzmyer, Paul and His Theology: A Brief Sketch, Englewood Cliffs, Prentice Hall,
1967, 16.
76. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 723 (cf. nota 52).
77. Cf. Joseph Plevnik,The Center of Pauline Theology, CBQ 51 (1989) 461-478 (478). De seu
lado, Christopher A. Davis (The Structure of Paul’s Theology:“The Truth which is the Gospel”, Lewis-
ton/Lampeter/Queenston, Mellen Biblical Press, 1995) acrescenta à morte e ressurreição do Cristo
a participação do crente em sua morte e em sua ressurreição, quatro eixos que o apóstolo desen-
volverá em quatorze core convictions.

99
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
a expiação e a redenção, que são, todos eles, tão somente “símbolos particulares”,
ou seja, que pertencem à estrutura do exterior78. Concretamente, J. Christiaan
Beker propôs encontrar essa chave unificadora na perspectiva apocalíptica, que o
apóstolo buscou em sua herança judaica e que redefiniu à luz do acontecimento
Cristo: a vitória de Deus no mundo contra as forças do mal e da morte, vitória já
antecipada pela ressurreição do Crucificado e que deve ser completada quando da
parusia iminente79. “Estrutura de pensamento apocalíptico cristão”80, “configu-
ração linguística (Sprachgestalt) apocalíptica”, “concepção apocalíptica do mun-
do”, substrato ou último plano apocalíptico81: tais são as fórmulas utilizadas por
Beker para caracterizar o fator de coerência da teologia de Paulo no interior da
contingência de suas trocas epistolares. Em outros termos, ainda: “O centro coe-
rente do Evangelho de Paulo é constituído pela interpretação apocalíptica do
acontecimento do Cristo”; ou ainda: “o centro do pensamento de Paulo é o se-
nhorio do Cristo que antecipa o triunfo final de Deus”82. Com efeito, Beker
considera que o pensamento paulino é essencialmente teocêntrico83, e chega a
qualificar Paulo de teólogo apocalíptico dotado de uma perspectiva teocêntrica84.
Em suas cartas, o apóstolo faz interagir hermeneuticamente a coerência — ou
seja, a perspectiva apocalíptica — e a contingência — os símbolos temáticos par-
ticulares elaborados para responder a seus interlocutores: “I claim that Paul’s her-
meneutic translates the apocalyptic theme of the gospel into the contingent par-
ticularities of the human situation”85.
O emprego que faz J. Christian Beker da categoria “apocalíptica” lhe valeu
merecidas críticas86. Além disso, convém perguntar se a estrutura apocalíptica sub-

78. J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 15-16 (cf. nota 4).
79. J. Christiaan Beker, Der Sieg Gottes. Eine Untersuchung zur Struktur des paulinischen
Denkens, Stuttgart, Verlag Katholisches Bibelwerk, 1988, 26. Beker afirma que o pensamento de
Paulo se fixou em quatro motivos centrais da apocalíptica judaica: fidelidade e justiça de Deus,
vantagem cósmica, proximidade do fim, dualismo.
80. Id., Paul the Apostle, 16 (cf. nota 4).
81. Id., Der Sieg Gottes, 75, 60 (cf. nota 79).
82. Id., Paul the Apostle, 135, 260 (cf. nota 4).
83. Id., Der Sieg Gottes, 104 (cf. nota 79); aqui Beker também diz que a glorificação teocêntrica
da majestade de Deus constitui o verdadeiro ponto de partida (Ausgangspunkt) da teologia paulina
(105). Em Paul the Apostle (cf. nota 4), ele fala do “prelúdio ao triunfo cósmico de Deus” (231).
84. Ibid., 362.
85. Ibid., IX.Ver também: Id., Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?, NTS 34 (1988) 364-
377; Id., Paul the Theologian: Major Motifs in Pauline Theology, Interpr. 43 (1989) 352-365; Id.,
Recasting Pauline Theology: The Coherence-Contingency Scheme as Interpretive Model, in
Jouette­M. Bassler (ed.), Pauline Theology I, 15-24 (cf. nota 1).
86. Cf. R. Barry Matlock, Unveiling the Apocalyptic Paul: Paul’s Interpreters and the Rhetoric of
Criticism, Sheffield Academic Press, 1996 (JSNT.S 127).

100
II – Uma escrita em movimento
jacente ao texto de Paulo não é, na realidade, o núcleo da fé cristã compartilhada
por todos, e não um princípio teológico próprio do apóstolo. Se a primeira co-
munidade cristã interpretou em termos de ressurreição a nova ação de Deus que
interveio em favor do crucificado — “Deus o ressuscitou/Cristo foi ressuscitado
por Deus” —, é justamente porque ela releu o acontecimento utilizando uma
chave de leitura apocalíptica: a ressurreição do Cristo é o início e a promessa da
ressurreição final e da redenção do mundo. Mais que uma estrutura unificadora, o
apocalipse é o ponto de partida da reflexão teológica de Paulo. Sobre essa base,
constituída pelas convicções de fé que tem em comum com os crentes destinatá-
rios de suas cartas e que podem ser resumidas pelo “Evangelho”, ele elabora sua
teologia. Mais, essa estrutura está ausente em muitas seções teológicas dos escritos
de Paulo; falta, por exemplo, quando se baseia na mística do en christô, como ob-
serva Plevnik87. Também não está claramente presente, no dizer do próprio J.
Christiaan Beker, na epístola aos Gálatas, em que a acentuação cristocêntrica
marginaliza a dimensão teocêntrica e apocalíptica88. Enfim, J. Christiaan Beker
nem sempre é coerente, pois aqui e ali fala do tema do triunfo de Deus. Pode-se
então perguntar se o centro que unifica a teologia de Paulo tem um caráter temá-
tico ou se se trata de uma perspectiva hermenêutica.
Duas proposições vizinhas merecem ainda uma breve menção. Patte estabe-
lece na base da elaboração teológica de Paulo, ou seja, de suas ideias, um sistema
de convicções fundamentais relativas à esfera existencial e à esfera social da exis-
tência humana89 — o que forma o núcleo da fé90. Boers esclarece assim a orienta-
ção de Patte: em Paulo, os dois polos, existencial e social, são opostos, e é essa
oposição que constitui o centro da teologia paulina91.

3.2. Minha hipótese

O centro de unidade do pensamento de Paulo não se constitui nem por um


tema particular nem pela perspectiva apocalíptica de Beker — esta última não

87. Cf. Joseph Plevnik, The Center of Pauline Theology, 473-474 (cf. nota 77).
88. J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 58 (cf. nota 4).
89. Patte faz a seguinte distinção entre convicções e ideias: as convicções se impõem ao sujeito
porque são evidentes e o levam à ação, a ponto de poder realizar façanhas heroicas; ao contrário, é
o sujeito que se impõe às ideias.
90. Daniel Patte, Paul’s Faith and the Power of the Gospel: A Structural Introduction to the Pauline
Letters, Philadelphia, Fortress Press, 1983; cf. 11: “faith is nothing other than holding to a system of
convictions or, better, going held by a system of convictions”.
91. Hendrikus Boers, The Foundations of Paul’s Thought: A Methodological Investigation —
The Problem of the Coherent Center of Paul’s Thought, StTh 42 (1988) 55-68.

101
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
caracteriza a reflexão paulina, mas a fé comum da primeira Igreja cristã. O centro
é mais de natureza formal: deve ser buscado na maneira como o apóstolo faz teo-
logia, como relê e redefine certos pontos nodais da fé cristã primitiva, ou melhor,
do Evangelho, considerado em seus diversos aspectos: pregação, conteúdo, dyna-
mis divina, objeto de revelação divina, mas também de anúncio profético prelimi-
nar92. A teologia de Paulo é sempre hermenêutica: quer contemplar e fazer com-
preender as riquezas escondidas no primeiro credo cristão e evidenciar suas
implicações; em resumo, Paulo traz a lume os valores secretos do Evangelho. É um
trabalho de intus-legere que empreende, ajudado pela comunicação epistolar e
guiado, sobretudo, por um critério hermenêutico bem preciso, que é o caráter
decisivo e definitivo da ação de Deus em Cristo, ou seja, a perspectiva do eschaton
que se fez história em Cristo morto e ressuscitado — uma convicção de fé co-
mum aos crentes: agora o tempo chegou à sua plenitude (to. plh,rwma tou/ cro,nou,
Gl 4,4). Paulo é assim levado a operar uma leitura aprofundada do Evangelho, que
segue as seguintes linhas diretivas:
a) Ele dá a conhecer a dimensão de totalidade e de exclusividade do
Cristo, mediador da iniciativa divina. É o que exprime a tripla fórmula
solus Christus, sola fides, sola gratia Christi. Sem essa dimensão de exclu-
sividade, o acontecimento do Cristo não seria um acontecimento
escatológico.
b) Esclarece, depois, que o universalismo soteriológico da fé cristã comum
— herdada, aliás, do judaísmo — deve ser interpretado num sentido par-
ticular: há igualdade de condição para todos os que são chamados à salva-
ção, judeus ou pagãos, o que não era uma convicção comum no cristia-
nismo primitivo, em que alguns exigiam dos pagãos que tinham se
tornado crentes a circuncisão e a observância da lei (ver a crise das Igrejas
da Galácia).

92. Sobre o Evangelho nas cartas paulinas, ver: L. Ann Jervis, Peter Richardson (ed.), Gospel
in Paul (cf. nota 22); Joseph A. Fitzmyer, The Gospel in the Theology of Paul, Interpr. 33 (1979)
339-350; Ronald Y. K. Fung, Revelation and Tradition: The Origins of Paul’s Gospel, EvQ 57
(1985) 23-41; Erich Grässer, Das eine Evangelium. Hermeneutische Erwägungen zu Gal 1,6-
10, ZThK 66 (1969) 306-344; Eduard Lohse, Euvagge,lion qeou/: Paul’s Interpretation of the
Gospel in His Epistle to the Romans, Bib. 76 (1995) 127-140; Id., Das Präskript des Römerbrie-
fes als theologisches Program, in Michael Trowitzsch (Hrsg.), Paulus, Apostel Jesu Christi. Fests-
chrift für Günter Klein zum 70. Geburtstag,Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, 65-78; Peter Stuhl-
macher, Das paulinische Evangelium, in Peter Stuhlmacher (Hrsg.), Das Evangelium und die
Evangelien. Vorträge vom Tübinger Symposium 1982, Tübingen, Mohr Siebeck, 1983, 157-182
(WUNT 28).

102
II – Uma escrita em movimento
c) Evidencia ainda o papel representativo do Cristo, que não é um meteoro
no céu da história da salvação, mas uma pessoa que sela o destino dos
homens; é o segundo e novo Adão, é solidário com “os que estão em
Cristo”, arrasta-os em seu destino de morte e de ressurreição, fazendo-os
morrer para o pecado e receber a vida nova.
d) Mostra, enfim, que essa interpretação do Evangelho corresponde ao “pré-
Evangelho” presente nas sagradas Escrituras; é isso o que faz mediante sua
argumentatio scripturistica.
1 Tessalonicenses. No caso concreto de 1 Tessalonicenses 1–3, Paulo dá aos
tessalonicenses uma primeira razão de consolação e reconforto e, sobretudo, de
esperança ao fazer uma leitura em profundidade da maneira como eles acolheram
o anúncio do Evangelho: “Vós vos voltastes para Deus, abandonando os ídolos,
para servir ao Deus vivo e verdadeiro e para esperar dos céus o seu Filho a quem
ele ressuscitou dos mortos, Jesus, que nos livra da ira que está vindo” (1Ts 1,9-10).
Eles receberam a palavra evangélica “não como palavra humana, mas como é real-
mente, palavra de Deus, a qual também está atuando em vós, que credes” (2,13),
“com a alegria do Espírito Santo: assim vos tornastes um modelo para todos os
fiéis da Macedônia e da Acaia [a amplificatio retórica é manifesta]” (1,6-7). E para
o próprio pregador do Evangelho podemos dizer que foi um acontecimento de
graça: Deus confiou o anúncio a Paulo, e ele o anunciou com absoluta lealdade a
Tessalônica (ver o cap. 2, sobretudo o v. 4). Sem dúvida nenhuma, argumenta
Paulo, os crentes de Tessalônica foram eleitos por Deus, e é por isso que o aconte-
cimento da salvação do Evangelho foi anunciado e aceito na cidade deles, e ao
mesmo tempo ele revela seu sentido profundo. Esse Evangelho, ele o compreen-
deu por indução teológica: na origem de sua conversão há a iniciativa gratuita e
livre de Deus que os escolheu.
Podemos descrever assim o fio de suas reflexões teológicas: ele parte de uma
simples constatação empírica, ou seja, o sucesso da pregação em Tessalônica. Afir-
ma a seguir — o fato empírico é lido na fé — que esse sucesso vem da graça de
Deus, essa graça que o apóstolo, de acordo com sua fé judaica, vê em ação na his-
tória humana, sobretudo onde não se espera, a saber, entre os pagãos. Mostra, en-
fim, que tudo isso tem uma explicação teológica, que se encontra na decisão, lo-
gicamente prévia, de Deus, que, por amor, quis escolher os pagãos, mais
concretamente o pequeno grupo da cidade que constitui “a Igreja dos tessaloni-
censes”. Em resumo, os que não têm mérito são amados e eleitos por Deus: “sa-
bendo, irmãos amados por Deus, vós, que ele vos escolheu” (1Ts 1,4); a formula-
ção desse versículo indica o laço estreito que une o amor (avga,ph) e a eleição
(evklogh,), que será afirmada de modo mais estreito ainda em Romanos 11,28,

103
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
quando Paulo chama os israelitas de “amados (avgaphtoi,) em atenção à eleição
(kata. de. th.n evklogh,n)”93.
Como se vê, essa teologia da eleição divina dos crentes de Tessalônica é o
produto de uma hermenêutica do Evangelho como acontecimento de graça
encarnado na pregação dos evangelistas. A conexão estreita entre as duas dimen-
sões aparece claramente na motivação da ação de graças de Paulo: “Damos con-
tinuamente graças a Deus por todos vós […] bem sabendo, irmãos amados de
Deus, que ele vos escolheu. Com efeito, o anúncio do Evangelho que efetuamos
entre vós não ficou em discurso, mas manifestou o poder, a ação do Espírito
Santo” (1Ts 1,2.4-5).
O caráter contingente dessa teologia da eleição aparece em plena luz se a
comparamos com a teologia da eleição dos crentes de Corinto. Nesse caso, o
acento não se põe no fato de que Deus elegeu pagãos, mas pessoas sem valor do
ponto de vista dos códigos culturais da sociedade greco-romana da época94: os
coríntios foram eleitos por Deus, que escolheu “o que é loucura no mundo […]
o que é fraco no mundo […] aquilo que no mundo é vil e desprezado, aquilo
que não é” (1,27-28). Para não falar da eleição de Israel, que é objeto primeiro
de Romanos 9–11, eleição como povo de Deus, destinatário das promessas divi-
nas de salvação.
Como escolhidos e amados por Deus, os tessalonicenses podem esperar
com razão a salvação final para eles e para seus amigos mortos, superando o esta-
do de tristeza no qual se encontram. Que a eleição divina seja uma garantia váli-
da de salvação é expresso explicitis verbis em 5,9: “Pois Deus não nos destinou
(e;qeto) a experimentar sua ira, mas a possuir a salvação por meio de nosso Senhor
Jesus Cristo”95.
Em 1 Tessalonicenses 4,13-18 igualmente, a teologia de Paulo é hermenêu-
tica do Evangelho, mas considerado desta vez em seu conteúdo positivo, como

93. Sobre esse laço, ver Isaías 44,2: “Não tenhas medo, meu servo Jacó, o Reerguido (o`
hvgaphme,noj), aquele que eu escolhi (o[n evxelexa,mhn)”.
94. Ver Raymond Pickett, The Cross in Corinth: The Social Significance of the Death of Jesus,
Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997 (JSNT.S 143).
95. “O apóstolo Paulo utiliza raramente o verbo tithêmi e seus compostos, mas, quando o faz,
dele se serve sobretudo para descrever a obra de Deus” (Christian Maurer, GLNT XIII, 1.237).
Uma passagem análoga se encontra sem dúvida em Romanos 4,17, que cita Gênesis 17,5: Deus
“estabeleceu (te,qeika) [no passado] Abraão como pai de um grande número de povos”, ou seja, no
sentido metafórico, escolheu e ao mesmo tempo o estabeleceu como pai universal (cf. ibid.). Se o
vocábulo “eleição” exprime a ação de Deus que “escolhe dentre” (evkle,gw), o verbo “estabelecer”,
no sentido figurado, ressalta o aspecto criativo da eleição.

104
II – Uma escrita em movimento
relatos dos acontecimentos salvíficos da morte e da ressurreição do Cristo. O
apóstolo parte da fórmula de fé tradicional bem conhecida de seus interlocuto-
res: “Cremos que Jesus morreu e ressuscitou (pisteu,omen o[ti VIhsou/ avpe,qanen
kai. avne,sth)” (1Ts 4,14a). É a partir dessa certeza de fé, que aproxima o expedi-
dor e os destinatários (nós), sempre atual (o verbo está no presente: cremos), que o
apóstolo anuncia a ação futura de Deus, numa proposição comparativa que não
exprime, todavia, uma certeza de fé humana, mas diretamente a ação divina: “as-
sim também, aqueles que morreram, Deus, por causa deste Jesus, com Jesus os
reunirá” (1Ts 4,14b).
“O raciocínio é o seguinte: como Jesus, assim os mortos; unidos num desti-
no de morte, eles o serão também na superação da morte graças à intervenção
poderosa de Deus, que já manifestou seu poder vivificador ao ressuscitar Jesus
[…]. Não se trata de um processo de simples adição ou coordenação — todos ao
lado dele —, nem de uma simples comparação, como poderíamos pensar antes
— todos como ele —, mas de uma comunhão solidária: Deus restaurará os mor-
tos com ele (su.n auvtw/|) […]. Em sua ressurreição […] Cristo é figura representa-
tiva dos crentes, unidos a ele e introduzidos em sua esfera de influência: não é por
acaso que na passagem citada a ação salvífica de Deus passa pela mediação cristo-
lógica (por Jesus) e que a fórmula tipicamente paulina ‘estar em Cristo’ já se en-
contra com frequência no primeiro escrito de Paulo que chegou até nós (cf.
1Ts 2,14; 3,8; 5,12.18). O laço estabelecido pela fé não será quebrado pela violên-
cia da morte, assim como o laço de Jesus com seu Pai não foi quebrado por sua
morte na cruz. Cristo e os crentes estão firmemente ligados pela graça e pela fi-
delidade divina. Tendo crido, os tessalonicenses podem com razão pôr sua espe-
rança no Deus fiel (5,24) e na força de sua comunhão solidária com o Cristo
ressuscitado. O compromisso teológico de Paulo consistiu em unir fé e esperança,
uma esperança fundada na fé, ao apelar à solidariedade dos crentes com Cristo e
com seu destino de ressuscitado dentre os mortos, e ao mostrar que o ressuscitado
não é um meteoro, um caso singular, único e excepcional, mas o primeiro dos
ressuscitados, como ele esclarecerá em 1 Coríntios 15, uma figura representativa e
portadora de um destino de vida para muitos (cf. Rm 15,12-21).”96
A consequência prática, que, todavia, revela o objetivo primeiro do episto-
lógrafo, como vimos acima, aparece no fim da passagem: “Portanto (w[ste), con-
fortai-vos uns aos outros com este ensinamento” (1Ts 4,18) — por estas pala-
vras teológicas.

96. Giuseppe Barbaglio, La teologia di Paolo, 730-731 (cf. nota 6).

105
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
1 Coríntios.Também em 1 Coríntios Paulo elabora uma teologia hermenêu-
tica do Evangelho, sempre pelo ângulo de seu conteúdo essencialmente cristoló-
gico97. Em 1 Coríntios 1–4, ele procura esclarecer teologicamente a relação entre
o Evangelho e a sabedoria retórica, que levava ao culto da personalidade dos líde-
res e, em última instância, à divisão da comunidade coríntia. Para esse fim, ele
parte de um dado elementar da fé, objeto do anúncio do Evangelho, a morte de
Jesus (cf. 1Cor 15,3). Mas ele a reformula de maneira nova, ao falar da cruz
de Cristo (1Cor 1,17), do Cristo crucificado (1,23), da “linguagem da cruz”
(1,18), do anúncio (khru,ssomen) do Cristo crucificado (cf. 2,3). Não são fórmulas
conhecidas da primeira tradição cristã, que utilizava sempre e apenas o vocabulá-
rio da morte (avpoqnh,|skein)98. Mas Paulo não para nesse dado de circunstância; ele
entende a morte de Jesus em seu alcance simbólico de realidade vergonhosa aos
olhos dos homens — a cruz é a pena reservada à escória da humanidade — e de
sinal de impotência do crucificado pendurado no madeiro (o lignum crucis da li-
turgia). De sua parte, a tradição judaica dá testemunho de um grande desprezo
pela cruz, sinal de maldição divina (cf. Dt 21,23)99.
Para Paulo, a morte de Jesus na cruz não é uma experiência de sofrimento e
menos ainda uma expressão moralizante de resignação (cf. Martinho Lutero
quando se dirige aos camponeses revoltados de Thomas Müntzer). Se ela é uma
metáfora da loucura e da fraqueza aos olhos dos homens que confiam nos pró-
prios critérios, aos olhos de Deus ela é um acontecimento de sabedoria e de po-
der sub signo contrarii, pois ela é o lugar da presença salvífica e a expressão de seu
projeto infinitamente sábio de salvar a humanidade perdida. E os crentes que a ela
aderem pela fé a veem da mesma maneira. Não é somente a cruz de Cristo, mas
também seu anúncio (o` lo,goj o` tou/ staurou/) que é rico de sabedoria e de poder
aos olhos de Deus, e, ao contrário, cheio de loucura e de impotência aos olhos dos

97. Remeto aqui a meu comentário La prima lettera ai Corinzi, Bologna, Dehoniane, 1996
(Scritti delle origine cristiane 16).
98. Cf., por exemplo, 1 Tessalonicenses 4,14; 5,10; 1 Coríntios 15,3; 1 Pedro 3,18. Os relatos
evangélicos da Paixão limitam-se a falar da cruz como de um aspecto particular da morte de Jesus.
99. Cf. Günter Bader, Symbolik des Todes Jesu, Tübingen, Mohr Siebeck, 1988, 35-69 (HUTh
25); Egon Brandenburger, Stauros, Kreuzigung Jesu und Kreuzestheologie, WuD 10 (1969) 17-
43; Martin Hengel, La crucifixion dans l’antiquité et la folie du message de la croix, Paris, Cerf, 1981;
Heinz-Wolfgang Kuhn, Die Kreuzesstrafe während der frühen Kaiserzeit. Ihre Wirklichkeit und
Wertung in der Umwelt des Urchristentums, ANRW II, 25,1 (1982) 684-793; Jerome Murphy
O’Connor, “Even death on a cross”: Crucifixion in the Pauline Letters, in Elizabeth A. Dreyer
(ed.), The Cross in Christian Tradition: From Paul to Bonaventure, New York/Mahwah, Paulist Press,
2000, 21-50. Em Gálatas 3,13-14 Paulo provavelmente considera o oposto de uma caçoada anti-
cristã dos judeus: aquele que se acreditava maldito por Deus tornou-se, na realidade, fonte de
bênção para os crentes.

106
II – Uma escrita em movimento
homens. A mesma antítese vale para a pessoa de Paulo, que não se apresentou em
Corinto como um orador hábil e convincente, mas “receoso e todo trêmulo”,
com Cristo crucificado em seus lábios (1Cor 2,2-3), e que, todavia, é o fundador
de uma comunidade de crentes fundada não na sabedoria dos homens, mas no
poder de Deus (2,5). Sem falar dos crentes de Corinto, que são o símbolo vivo da
metáfora paradoxal da cruz: “não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos
homens nem muitos poderosos nem muita gente de família distinta” e, todavia,
Deus os escolheu (1Cor 1,26-31).
É sobre o dado da morte de Cristo que Paulo constrói sua theologia crucis.
Com efeito, ele reflete sobre a cruz, que era a forma concreta dessa morte, e põe
em evidência sua carga simbólica, social e religiosa. E crê, além disso, com as co-
munidades da primeira hora, que Deus esteve presente nessa morte, ao ressuscitar
o Crucificado. A outra face da cruz de Cristo — mas não de toda cruz — é sím-
bolo do poder e da sabedoria divinos. O mesmo vale para o verbum crucis anuncia-
do por Paulo em Corinto: ele se apresenta como impotência e loucura humana,
mas também como poder e sabedoria divina (1Cor 2,1-5). A theologia crucis torna-
se theologia verbi crucis, como disse, com razão, Hübner100. E acredito poder acres-
centar que ela se torna também theologia verbi crucis a Paulo nuntiati (“teologia da
palavra da cruz anunciada por Paulo”).
É uma teologia capaz de influenciar os crentes de Corinto para que eles
abandonem seu entusiasmo pela sabedoria retórica, que esvazia de seu alcance de
salvação o acontecimento da cruz de Cristo (1Cor 1,17) e a substitui pela sedução
de uma linguagem elegante e profunda, exaltando assim o pregador que a ostenta.
Livres do culto da personalidade dos líderes religiosos, eles podem encontrar razões
de se reunir em torno de Cristo, único centro de atração porque único mediador
da salvação. Quanto aos pregadores da Palavra, eles poderão encontrar aos olhos da
comunidade sua verdadeira identidade de humildes servos de Deus (1Cor 3,5).
Em 1 Coríntios 15, Paulo parte de novo do Evangelho, da fé na ressurreição
do Cristo que ele tem em comum com os Coríntios:“Se se proclama (khru,ssetai)
que Cristo ressuscitou (evgh,gertai) dos mortos…”. Na apódose, sob forma inter-
rogativa, ele deduz que é impossível negar a ressurreição dos mortos: “… como é
que alguns dentre vós dizem que não há ressurreição dos mortos?” (1Cor 15,12).
Com efeito, uma coisa acarreta necessariamente a outra, e a negação desta é a
consequência da negação daquela: “Mas, se não há ressurreição dos mortos, tam-
bém Cristo não ressuscitou” (1Cor 15,13); e a afirmação daquela acarreta a afir-
mação desta.

100. Hans Hübner, Die Theologie des Paulus, 112, 141 (cf. nota 4).

107
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
Se Paulo quer ser convincente, convém-lhe demonstrar essa tese. Ele o faz
em duas etapas. Primeiro vem a refutatio da posição negativa de “alguns dentre
vós”: ele mostra a que consequências do ponto de vista espiritual leva a negação
da ressurreição dos mortos, uma vez que ela acarreta “logicamente” a negação da
ressurreição do Cristo (v. 14-19). Para mostrar a existência dessa ligação, Paulo
passa então à probatio: ele interpreta o dado evangélico tradicional por meio de um
tema bíblico — as primícias dos frutos dos campos ou do estábulo que devem ser
oferecidas no Templo — e por meio do paralelismo antitético entre Cristo e
Adão. Pode assim mostrar que Cristo foi ressuscitado não como o único, mas
como o primeiro de uma série e, sobretudo, como aquele que faz ressuscitar os
outros, ou seja, como o princípio ativo da ressurreição (v. 20-22).
“Por seu trabalho hermenêutico, Paulo exclui a ideia de que a ressurrei-
ção do Cristo seria um fato findo no passado, um acontecimento único que
não pode se repetir, e afirma, ao contrário, que ela é uma promessa para o futu-
ro dos crentes, o começo de uma ressurreição mais ampla, necessariamente in-
cluída nela. Em resumo, a escatologia está fundada na cristologia. Uma cristo-
logia que será desenvolvida na continuação do texto, primeiro nos versículos
23-28, em que se diz que o senhorio do Cristo acarreta a destruição da morte
[…], depois nos versículos 42-49, em que se trata da conformação dos corpos
dos ressuscitados ao corpo glorioso e espiritual do Cristo, segundo e último
Adão […]. Em uma palavra, Paulo, o teólogo, mostrou que a fé cristológica
expressa no Evangelho tradicional fundamenta a esperança escatológica na vi-
tória sobre a morte, celebrada no canto de vitória do fim da passagem: ‘A morte
foi tragada na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu
aguilhão?’ (1Cor 15,54b-55).”101
Gálatas. Na epístola aos Gálatas, Paulo faz-se o campeão da pureza e da ver-
dade do Evangelho que ele já havia pregado na Galácia e que agora quer nova-
mente propor. Esse Evangelho é o Evangelho autêntico, porque é de origem di-
vina: “ele não é de inspiração humana; e, aliás, não é por um homem que ele me
foi transmitido” (Gl 1,11-12a);“a evangelização dos incircuncisos me fora confia-
da, como a Pedro a dos circuncisos” (2,7). Essas afirmações estão baseadas em sua
experiência carismática de vocação a uma missão divina, à imagem da dos profe-
tas de Israel, e de revelação do Cristo: “Mas quando Aquele que me pôs à parte
desde o seio de minha mãe e me chamou por sua graça houve por bem revelar em
mim o seu Filho, a fim de que eu o anuncie entre os pagãos […]” (1,15-16); “Este
Evangelho […] me foi ensinado por uma revelação de Jesus Cristo” (1,11-12).

101. Giuseppe Barbaglio, La teologia di Paolo, 734-735 (cf. nota 6).

108
II – Uma escrita em movimento
Sua subida a Jerusalém não foi senão um reconhecimento de seu carisma pelos
líderes apostólicos da cidade (2,1-10).
Mas é apenas o preâmbulo do ponto principal da argumentação que enfatiza
as consequências lógicas de tal reivindicação: não pode haver e não há um outro
Evangelho verdadeiro diferente do seu. Paulo censura seus interlocutores por
quererem aderir a um pseudoevangelho, a um produto que usurpa o nome de
Evangelho (cf. Gl 1,6-7). O único Evangelho autêntico é o seu, o Evangelho que
liberta da circuncisão e da lei mosaica. É a propositio de sua argumentação, o ponto
nevrálgico da hermenêutica teológica da epístola aos Gálatas; ela se apoia no fato
de que o Evangelho está destinado aos pagãos e esclarece suas implicações: os
pagãos não são apenas os destinatários materiais do Evangelho, mas eles o qualifi-
cam como Evangelho da liberdade em relação à circuncisão e à lei mosaica. Em
Gálatas 2,4-5, com efeito, há correspondência entre a verdade do Evangelho e a
liberdade dos pagãos. “Os adversários judeu-cristãos de Paulo entendiam que o
Evangelho dirigido aos pagãos implicava o dever de eles se fazerem circuncidar se
quisessem aceitá-lo em todas as suas exigências. A interpretação de Paulo é dia-
metralmente oposta: o anúncio foi feito aos pagãos para que pudessem crer como
não judeus e entrar como tais no espaço dos que são chamados à salvação. É o
confronto entre duas hermenêuticas do Evangelho: uma que quer preservar sua
verdade ao obrigar os adeptos à escravidão da lei mosaica […] e a outra que eleva
a liberdade ‘que temos em Cristo’ ao nível de critério de verdade. Paulo pode in-
vocar em seu favor uma prova decisiva, ou seja, a autoridade do testemunho das
Escrituras e do exemplum paradigmático de Abraão. A hermenêutica do Evange-
lho, grandeza divina e anúncio de liberdade para os pagãos, alia-se assim à inter-
pretação dos textos escriturísticos e da história do grande patriarca.”102
Romanos. É sobretudo na epístola aos Romanos que Paulo se mostra um
grande intérprete do Evangelho. A maior parte dos exegetas julga que ele anuncia
a propositio em Romanos 1,16-17: “O Evangelho é o poder (dynamis) de Deus
para a salvação de todo aquele que crê, do judeu primeiro, e depois do grego. De
fato, é nele que a justiça de Deus se revela, pela fé e para a fé, segundo o que está
escrito: Aquele que é justo pela fé viverá”. O Evangelho é aqui compreendido por
Paulo como um poder divino de salvação sempre em ação. Não é uma simples
comunicação verbal que vise a notificar alguma coisa; quando é proclamado, é o
próprio Deus que o proclama, sua palavra é performativa: ela realiza o que diz,
cria a salvação ao anunciá-la. A esse primeiro esclarecimento interpretativo Paulo
acrescenta um outro: o destino universal ou ecumênico do Evangelho, que diz

102. Ibid., 736.

109
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
respeito de maneira igual, sem nenhuma discriminação, às duas metades da huma-
nidade, os judeus e os pagãos. Dessa maneira, Paulo qualifica o universalismo da
salvação que tem em comum com a comunidade cristã primitiva: não é um uni-
versalismo centrípeto, que absorveria as diferenças, por meio da circuncisão dos
pagãos, mas um universalismo centrífugo, de abertura às diversidades sob o signo
unificador da fé, que é em si um fator transcultural. Nesse sentido, pode-se evocar
Romanos 3,29-30, em que Paulo propõe uma leitura radical do monoteísmo
mosaico. O Deus único, que é o Deus de todos os homens, como o proclama a fé
judaica, é para ele o Deus único de Jesus Cristo, que, por seu projeto salvífico,
entra em relação com todos os homens sem discriminação. A tese de Romanos
1,16-17 comporta uma terceira intervenção hermenêutica: o Evangelho é poder
eficaz de salvação com base somente na fé, que ele fez nascer entre os ouvintes
(fides ex auditu: Rm 10,17). A fé não é uma condição realizada pelos homens para
terem acesso à salvação, mas é também um dom da graça, um efeito da palavra de
Deus, que é uma dynamis. Um outro esclarecimento deve ser destacado: o Evan-
gelho é o lugar de uma revelação, que tem por objeto a justiça de Deus; em outras
palavras, está ligado ao acontecimento escatológico — antecipado na história —
da justiça de Deus, ou seja, à ação pela qual ele manifesta sua fidelidade às promes-
sas da salvação abundantemente atestadas nas Escrituras, em particular em ­Habacuc
2,4. Last but not least: o Evangelho é acontecimento de salvação para o judeu, pri-
meiro, depois para o grego, ou seja, não somente não contradiz a eleição divina do
povo de Israel, mas também a reinterpreta libertando-a dos limites do etnocen-
trismo, a fim de que se abra espaço aos pagãos, admitidos como tais.
O corpo da epístola aos Romanos evidenciará essa leitura paulina do Evan-
gelho. O poder do Deus justo e que justifica somente pela fé, independentemente
das obras da lei (cw,rij e;rgwn no,mou, 3,28), constitui o núcleo da probatio de
­Romanos 1,18–4,25. Esta última parece centrada na imparcialidade de Deus, que
o judaísmo referia à atividade final do justo juiz divino (1,18-3,20). Mas a apre-
sentação de Paulo renova essa noção de imparcialidade ao aplicá-la à iniciativa
salvífica de Deus que age por intermédio de Cristo (3,21-31), cujo exemplo e
paradigma é Abraão (Rm 4), ou ao aplicá-la à misericórdia divina que se exerce
sem discriminação em favor de todos os homens presos no pecado (11,32).
Uma vez mais, a interpretação paulina do Evangelho está estreitamente liga-
da à hermenêutica da Escritura ou à história de Abraão que a Escritura narra. O
mesmo vale para Romanos 9–11. Paulo, instigado pelo escândalo que constitui o
fato de que a maioria de seus irmãos tinha recusado o Evangelho, desce à arena
dialética para defender a fidelidade de Deus ao seu povo, povo escolhido por amor
a Abraão e Israel. Deus, que chamou também os pagãos a fazer parte da oliveira

110
II – Uma escrita em movimento
escolhida, não deixará de reinserir os judeus que não acreditaram e que, por isso,
se tornaram ramos cortados, a fim de que todo Israel seja salvo. Esses capítulos
contêm uma argumentação difícil, que se desenrola inteiramente na linha do tes-
temunho bíblico. Assim, a hermenêutica do Evangelho e a interpretação das Es-
crituras não somente estão associadas como se interpenetram. Em outras palavras,
são as duas faces de uma mesma medalha. Com efeito, para Paulo o Evangelho de
Cristo “já fora prometido (proepagge,llein) por seus profetas nas santas Escrituras”
(Rm 1,2); poderíamos, então, dizer que ele foi antecipado no “pré-Evangelho” de
Abraão de que dá testemunho o livro do Gênesis (Gn 15,6; 17,5; 15,5).
Como conclusão, penso que a coerência teológica de Paulo é de natureza her-
menêutica, no sentido de que o apóstolo radicaliza a dimensão escatológica do
acontecimento cristão ou do Evangelho, visto sob seus múltiplos aspectos. Mais
exatamente, ele faz surgir implicações do eschaton, que se fez história em Jesus mor-
to e ressuscitado. Para evitar todo equívoco, eu diria isto: Paulo, que partilha a fé
cristã dos primeiros cristãos, crê em seu coração e confessa com sua boca (Rm 10,9)
que Jesus é o eschaton. Como teólogo, ele vê os tesouros de inteligibilidade escondi-
dos nessa confissão e que outros cristãos — os destinatários de suas cartas — ainda
não viram. Ele os fará então compreender esses tesouros, a fim de convencê-los e
persuadi-los a todos: (a) aos tessalonicenses, a fim de que superem sua tristeza e vi-
vam na esperança; (b) aos coríntios, a fim de que estejam bem unidos em torno do
único centro de unidade, o Cristo crucificado e ressuscitado, e não se deixem in-
fluenciar pelos que negam a ressurreição dos mortos, mas estejam cheios de segu-
rança, na fé de que o Cristo ressuscitado é um “espírito que dá a vida” (pneu/ma
zw|opoiou/n: 1Cor 15,45); (c) aos gálatas, a fim de que não se deixem submeter ao
jugo da escravidão da lei; (d) aos crentes judeus e pagãos de Roma, a fim de que
vivam juntos em paz e com seu Evangelho da imparcialidade da graça e da fideli-
dade inabalável de Deus ao povo eleito, à descendência de Abraão e de Israel.
Penso que a relação entre o Paulo crente e o Paulo teólogo não pode ser
interpretada em termos de separação e tampouco ser objeto de uma distinção
muito nítida. Sua hermenêutica teológica do Evangelho, com efeito, não é outra
senão o próprio Evangelho, visto em sua profundidade — profundidade que
Paulo fez emergir no contato com os problemas levantados por suas comunida-
des, ao se comunicar com elas, sobretudo ao pôr sua brilhante inteligência a ser-
viço do fim pastoral perseguido. Seu trabalho como teólogo consistiu em intus
legere (“ler bem dentro”), em compreender com inteligência o Evangelho tradi-
cional e em produzir o que ele chama de “meu Evangelho” (Rm 2,16; 16,25), o
Evangelho da liberdade cristã (Gálatas), o Evangelho da eleição divina (1 Tessalo-
nicenses), o Evangelho do Cristo crucificado (1–2 Coríntios).

111
As cartas de Paulo: contexto de criação e modalidade de comunicação de sua teologia
A relação de Paulo com toda a primeira tradição cristã foi discutida e fize-
mos a distinção entre essa tradição e a interpretação que o apóstolo lhe dá103. Mas
em minha opinião Paulo conheceu uma tradição não fixa, aberta e viva: uma tra-
dição que ele interpreta de maneira renovada em suas cartas.
A questão da relação entre fé e teologia em Paulo é um outro aspecto de
meu estudo que fica aberto a numerosos aprofundamentos e discussões.

103.Ver a esse propósito J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 109-131 (cf. nota 4): Tradition and
Gospel.

112
II – Uma escrita em movimento
III

Paulo antes de Paulo


1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
Karl P. DONFRIED (Northampton [Massachusetts], EUA)

Tendo em vista as semelhanças entre os manuscritos do mar Morto e o pensamento paulino


é necessária uma mudança de paradigma, especialmente na interpretação das cartas e da
cronologia paulinas (1 Tessalonicenses). O autor defende a ideia de que, ao nos fundamen-
tarmos mais nas epístolas protopaulinas do que nos Atos, podemos concluir pela precocidade
da evolução do ministério e da teologia de Paulo. Isso permite que melhor nos demos conta
da hipótese de um “Paulo primitivo” (1 Tessalonicenses) e de um “Paulo tardio” (Gálatas,
Romanos), que nos submetamos à prova de uma leitura situada numa temporalidade mais
ampla e que compreendamos melhor a complexidade e os paradoxos do apóstolo.

1. Descobertas no deserto

Q uando um pastor beduíno jogou uma pedra numa gruta em Kirbet


Qumran, em 1947, nossa compreensão do judaísmo e do cristianismo no
século I d.C. passou por uma mudança crucial1. Durante a segunda metade
do século XX, os pesquisadores tiveram como tarefa publicar o conjunto dos
novecentos textos encontrados naquelas grutas. A responsabilidade da pesquisa
no século XXI será reescrever a história do fenômeno complexo conhecido sob
o nome de judaísmo do Segundo Templo, a história dos inícios do “movimento
de Jesus” e as interações dessas duas entidades. Agora não podemos mais falar do

1. Para uma apresentação geral, ver Lawrence H. Schiffmann, Reclaiming the Dead Sea Scrolls,
Philadelphia/Jerusalem, The Jewish Publication Society, 1994.

115
judaísmo e do cristianismo no primeiro século como duas religiões homogêneas
em conflito violento uma com a outra. Temos, ao contrário, de reconhecer a
considerável diversidade do judaísmo, uma diversidade tão ampla que podia in-
cluir os primeiros discípulos de Jesus. As interações entre esses judaísmos multi-
formes são muito mais importantes do que o que as gerações anteriores de pes-
quisadores puderam reconhecer.
Os novecentos textos que modificaram de modo tão espetacular nossa per-
cepção desse período provinham de um movimento essênio da ampla dimen-
são2. Shemaryahu Talmon, professor na Hebrew University, prefere falar desse
movimento com o uso de termos tirados da própria descrição deles: a Comuni-
dade da Aliança renovada, ou simplesmente o yahad. Uma parte desse grupo des-
locou-se de Jerusalém para Qumran no fim do século II a.C. e ali ficaria até 68-70
d.C., quando a comunidade foi destruída pelos romanos que marchavam sobre
Massada, logo depois de terem conquistado e destruído Jerusalém pelo fogo.
­Josefo, o historiador judeu do primeiro século, informa-nos que alguns essênios
viviam em Jerusalém e que havia um bairro essênio na parte sudoeste da cidade3.
Graças ao Documento de Damasco, um dos textos principais encontrados na
gruta 4, sabemos que o movimento essênio havia se expandido por todo o país
que conhecemos hoje pelo nome de Israel4. E não era um movimento pequeno.
Josefo nos diz que em sua época os fariseus eram 6 mil e que os essênios eram
cerca de 4 mil5. Desde 1947 temos textos originais que descrevem essa comuni-
dade e lançam uma luz valiosa — às vezes diretamente, às vezes de modo indire-
to — sobre todos os aspectos dos judaísmos6 desse período, inclusive sobre os sa-
duceus, fariseus, essênios e sobre o início do movimento de Jesus. Os manuscritos
do mar Morto não somente forneceram uma grande quantidade de textos até
então desconhecidos, mas permitiram também, graças ao estudo desses documen-
tos, que se reconstruísse um novo contexto para compreender (1) a complexidade
do judaísmo do Segundo Templo, (2) o propósito de Jesus de Nazaré e de seu
movimento (3) e o grande missionário desse movimento, o apóstolo Paulo — que
estará no centro do presente estudo.

2. Cf. Joseph A. Fitzmyer, The Dead Sea Scrolls and Christian Origins, Grand Rapids, Eerdmans,
2000, 249-260.
3. Flávio Josefo, Bell 5,145.
4.Ver, por exemplo, o Documento de Damas 7,6-9.
5. Flávio Josefo, Ant 18,18-22.
6. O plural “judaísmos” é utilizado de propósito para indicar a diversidade e o caráter não mo-
nolítico do judaísmo do Segundo Templo.

116
III – Paulo antes de Paulo
2. Uma compreensão de Paulo que prevaleceu por muito tempo

Quando eu era doutorando nos anos de 1960, o paradigma a respeito do apósto-


lo Paulo que dominava os grandes centros acadêmicos era mais ou menos o seguinte:
a) Paulo foi influenciado principalmente pela cultura greco-romana e não
pelo judaísmo7.
b) O centro da teologia paulina é constituído pela justificação pela fé. Con-
sequentemente, Cristo era visto como o fim, o termo da Torá (Rm 10,4).
Essa afirmação forte de Paulo, juntamente com o emprego de outras fór-
mulas, como “obra da lei”, era o indício de sua antipatia pelo judaísmo.
De fato, o judaísmo tornara-se para ele um simples vestígio do passado8.
Além disso, nesse paradigma que dominou por muito tempo, a epístola aos
Romanos era considerada o centro e a suma da teologia paulina. Essa carta torna-
ra-se o elemento central a partir do qual todos os outros aspectos do pensamento
de Paulo eram julgados9. Nessa ocasião também, o livro dos Atos dos Apóstolos,
geralmente reconhecido como uma apresentação secundária de Paulo escrita sob
o nome de Lucas, era considerado cheio de falhas — salvo, como veremos, no
domínio da cronologia —, e justamente porque apresentava um Paulo muito ju-
deu, em quem o tema da justificação pela fé estava praticamente ausente10.
A publicação dos manuscritos do mar Morto e sua interpretação levaram
um número crescente de especialistas do Novo Testamento a questionar esse pa-
radigma tradicional11. Assim como o decreto sobre o ecumenismo do Concílio
Vaticano II, publicado em 1964, evidenciou o grande texto sobre a unidade cristã,
João 17, e permitiu que fosse visto com um novo olhar, assim os manuscritos do
mar Morto levaram a acentuar de novo a maneira como Paulo, em várias ocasiões
em suas cartas, afirma sua identidade de judeu — afirmações muitas vezes negli-
genciadas. Em Filipenses 3,5-6 o apóstolo se descreve como “circunciso no oitavo

7. Cf. Rudolf Bultmann, Zur Geschichte der Paulus-Forschung, Theologische Rundschau 1


(1929) 26-59.
8. Cf. Hans Conzelmann, Théologie du Nouveau Testament, Genève/Paris, Labor et Fides/Cen-
turion, 1969, 228-231.
9. Günther Bornkamm, The Letter to the Romans as Paul’s Last Will and Testament, in Karl P.
Donfried (ed.), The Romans Debate: Revised and Expanded Edition, Peabody, Hendrickson,
2001, 16-28.
10. Por exemplo, Philipp Vielhauer, On the “Paulinism” of Acts, in Leander E. Keck, J. Louis
Martyn (ed.), Studies in Luke-Acts: Essays Presented in Honor of Paul Schubert, Nashville, Abing-
don, 1966, 33-50.
11. Por exemplo, Joseph A. Fitzmyer, Paul and the Dead Sea Scrolls, in Peter W. Flint, James C.
Vanderkam (ed.), The Dead Sea Scrolls after Fifty Years, Leiden, Brill, 1999, v. 2, 599-621.

117
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu, filho de hebreus; quanto à lei,
fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que se encontra na
lei, tornado irrepreensível”12. Em 2 Coríntios 11,22 pergunta: “Eles são hebreus?
eu também! Israelitas? eu também! Da descendência de Abraão? eu também!”. E
em Romanos 11,1 um Paulo angustiado escreve: “Pergunto, pois: teria Deus re-
jeitado o seu povo? De modo nenhum! Pois eu mesmo sou israelita, da descen-
dência de Abraão, da tribo de Benjamin. Deus não rejeitou o seu povo, que ele
conheceu de antemão”.
Paulo abandonou o judaísmo quando foi chamado — observem que evito
dizer “quando se converteu” — pelo Senhor ressuscitado para ser um apóstolo
para as nações ou continuou a se considerar um judeu? Os que se pronunciam a
favor do primeiro termo da alternativa citam vários textos, em particular Roma-
nos 10,4, que afirma que Cristo é o fim da lei, e uma série de textos em Gálatas e
em Romanos que tratam das “obras da lei” e que se julga fundamentar essa inter-
pretação de Romanos 10,4. Até mesmo um pesquisador muito ilustre como
Hans Joachim Schoeps, ele próprio judeu, caminha nesse sentido:“Paulo deu uma
solução ao problema da lei, que, em última instância, se apoiava num equívoco
[…]”13. E, ao falar da interpretação paulina da lei em Gálatas 3,19, acrescenta:
“toda a questão evidentemente provém da pura especulação e não manifesta a
menor dependência em relação à Escritura nem a menor reminiscência de opi-
niões rabínicas”14. Claro, há uma coisa que, em grande parte, Schoeps ignorava: o
imenso corpus literário que se situa entre a Escritura judaica e os rabinos, corpus
que para nós, hoje, é uma evidência: os manuscritos do mar Morto.

3. Os manuscritos do mar Morto e Paulo

A atividade de Paulo se estende pelo menos aos anos 30, 40, 50 e talvez iní-
cio dos anos 60 do século I.Tudo isso é relativamente inconteste. O que se discute,
em contrapartida, é a data da primeira carta de Paulo, ou seja, o mais antigo do-
cumento inteiro do cristianismo, 1 Tessalonicenses. O paradigma tradicional tinha
interesse em datar essa carta o mais tarde possível, por volta de 50 d.C., a fim de

12. As citações bíblicas são tiradas da TEB, salvo indicações particulares.


13. Hans-Joachim Schoeps, Paulus. Die Theologie des Apostels im Lichte der jüdischen Reli-
gionsgeschichte, Tübingen, Mohr, 1959, 210; ed. ingl.: Paul: The Theology of the Apostle in the
Light of Jewish Religious History, Philadelphia, Westminster, 1961, 200: “Paul furnished a solution
to the problem of the law which in the last resort rested on a misunderstanding […].
14. Ibid., 191-192; ed. ingl., 183: “The whole thing is, of course, pure speculation, and shows not
the slightest dependence on scripture or reminiscence of rabbinical opinions”.

118
III – Paulo antes de Paulo
distanciar Paulo de Jesus, de estabelecer assim entre eles um abismo e de apresen-
tar Paulo como o verdadeiro fundador do cristianismo. Dois elementos podem
nos levar a examinar de modo mais sério as proposições dos pesquisadores que se
manifestam em favor de uma data de 1 Tessalonicenses no início dos anos 40: pri-
meiro, o fato de que a cronologia paulina comumente admitida, que situa toda a
sua atividade epistolar por volta de 50–60, é por demais concentrada; depois, a
descoberta de paralelos significativos entre 1 Tessalonicenses e as ideias dos ma-
nuscritos do Mar Morto15.
O paradigma tradicional pressupunha simplesmente a prioridade teológica
de Romanos e, consequentemente, quase não sabia o que fazer com 1 Tessaloni-
censes. É por isso que 1 Tessalonicenses acabou sendo o filho pobre dos estudos
paulinos, justamente porque essa carta não utiliza o conceito de “justificação”.
Por essa e por outras razões, ela parecia então insuficientemente “cristã”.

3.1. 1 Tessalonicenses

Vamos nos interessar mais de perto agora por 1 Tessalonicenses.Vários ele-


mentos dessa carta sugerem a existência de um parentesco com o yahad, o movi-
mento profético da Comunidade da Aliança renovada localizada em Qumran e
alhures. As semelhanças importantes se assentam especialmente sobre os seguintes
pontos16:
1) semelhanças no domínio escatológico/apocalíptico que se apoia na in-
tensidade da espera da consumação final da história17;

15.Ver em particular John Knox, Chapters in a Life of Paul, ed. rev., Ed. D. A. Hare, Macon, Mer-
cer University Press, 1987; Gerd Lüdelmann, Paulus der Heidenapostel, Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1980, 1983, 2 v.; ed. ingl. v. 1: Paul, the Apostle to the Gentiles: Studies in Chronology,
Philadelphia, Fortress Press, 1984; Karl P. Donfried, Chronology, New Testament, in David Noel
Freedman (ed.), Anchor Bible Dictionary, New York/London, Doubleday, 1992, v. 1, 1.011-1.022;
modif. in Karl P. Donfried, Paul,Thessalonica and Early Christianity, Grand Rapids, Eerdmans, 2002,
99-117: Cronology: The Apostolic and Pauline Period.
16. Para mais detalhes, ver Karl P. Donfried, Paul and Qumrân: The Possible Influence of jrs on
1 Thessalonians, in Lawrence W. Schiffman, Emmanuel Tov, James C. Vanderkam (ed.), The Dead
Sea Scrolls Years After Their Discovery: Proceedings of the Jerusalem Congress, July 20-25, 1997, Jeru-
salem,The Magnes Press, 2000, 148-156, e Karl P. Donfried, Paul,Thessalonica and Early Christianity,
221-231 (cf. nota 15); Id., The Assembly of the Thessalonians: Reflections on the Ecclesiology of
the Earliest Christian Letter, in Rainer Kampling, Thomas Söding (Hrsg.), Ekklesiologie des Neuen
Testaments: Für Karl Kertelge, Freiburg, Herder, 1996, 390-408; Karl P. Donfried, Paul,Thessalonica
and Early Christianity, 139-162 (cf. nota 15).
17. Para as referências aos Manuscritos do mar Morto, ver as introduções clássicas; por exemplo,
Lawrence H. Schiffman, Reclaiming the Dead Sea Scrolls (cf. nota 1).

119
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
2) a eleição e o apelo de Deus, como quando Paulo se dirige aos tessaloni-
censes dizendo: “bem sabendo, irmãos amados de Deus, que ele vos esco-
lheu (evklogh,)” (1,4);
3) a santidade/santificação, como em 1 Tessalonicenses 4,3: “A vontade de
Deus é a vossa santificação” [literalmente, “vossa santidade”: a`giasmo,j);
4) as oposições luz/trevas e dia/noite, e o emprego do termo “filhos da luz”.
Em 1 Tessalonicenses 5,5 Paulo escreve: “Todos, com efeito, sois filhos da
luz, filhos do dia: nós não somos nem da noite nem das trevas”. Uma das
principais designações dos membros do yahad é “filho da luz”18.
5) o dualismo ira/salvação: “Pois Deus não nos destinou a experimentar sua
ira, mas a possuir a salvação…”, como diz Paulo em 1 Tessalonicenses 5,9;
6) a expressão “Igreja de Deus” tem seu paralelo exato em Qumran no ter-
mo qa3hal ve3l19;
7) a;taktoj e a ordem ética. É muito provável hoje que os “desocupados” ou
“indolentes” de 1 Tessalonicenses 5,14, os a;taktoi, devam ser entendidos,
com base em textos paralelos ligados aos manuscritos do mar Morto,
como “os que vivem de maneira desordenada”20, ou seja, os que não se-
guem a serek, a Ordem da comunidade como descrita em 1 Tessalonicen-
ses 4,1-12. Um dos documentos principais da biblioteca de Qumran é a
Regra da Comunidade (1 QS), que contém também ela advertências e estí-
mulos à conveniente conformação à Ordem.

4. Paulo e a comunidade essênia: os contatos possíveis

Essas semelhanças levam a perguntar se Paulo, o judeu, pôde ter contatos


com o mundo do pensamento essênio. Pode a hipótese de tal relação ajudar a
explicar os traços comuns entre 1 Tessalonicenses e o yahad de Qumran? Numa
publicação recente, Fitzmyer formulou uma questão de grande importância:
“Onde e como Paulo teria podido entrar em contato com esse judaísmo palesti-
no não fariseu, do qual se fazem eco certos elementos de seu ensinamento
teológico?”21. A terminologia específica e as semelhanças conceituais mais amplas

18.Ver, por exemplo, 1QS 2,16; 1QM 1,1.13; 13,16.


19. Cf. Karl P. Donfried, The Assembly of the Thessalonians, 405-407 (cf. nota 16).
20. No mesmo espírito da TEB: “corrigi aqueles que vivem de maneira desordenada”.
21. Joseph A. Fitzmyer, According to Paul: Studies in the Theology of the Apostels, New York,
Paulist, 1993, 35: “Where and how could he [Paul] have come into contact with this non-Phrisaic
Palestinian Judaism, which some of the items in his theological teaching echo?”.

120
III – Paulo antes de Paulo
entre Paulo e o essenismo foram mediatizadas pelo cristianismo primitivo ou o
Paulo pré-cristão já fora influenciado pelo movimento profético do yahad?

4.1. Antes de Damasco

Uma vez que a Comunidade da Aliança Renovada tinha uma sede em Jeru-
salém (perto da porta dos essênios, ao sul da cidade) e atraía discípulos de toda a
Palestina, um contato entre Paulo e esse movimento é possível22. Na minha opi-
nião, esse contato se deu em Jerusalém, quando Paulo estudava na be3t midras farisai-
ca. Em sua Vita, Josefo informa sobre seu desejo de estudar não somente os ensina-
mentos dos fariseus e dos saduceus, mas também os dos essênios23. Lá em Jerusalém,
Paulo, esse “doutorando” extremamente curioso e inteligente, estaria menos moti-
vado que Josefo para entrar em diálogo com os ensinamentos da Comunidade da
Aliança Renovada? Pôr essa questão é evidenciar um problema mais amplo: o plu-
ralismo do meio religioso de Jerusalém antes da “unificação ‘progressiva’”24 do ju-
daísmo palestino sob a égide dos escribas rabínicos depois do ano 70 d.C.

4.2. Depois de Damasco

Bargil Pixner e outros chamaram a atenção sobre as relações entre a família


de Jesus — mas não o próprio Jesus — e o movimento essênio25. Além disso, vá-
rios pesquisadores afirmaram recentemente que a última ceia de Jesus aconteceu
numa hospedagem situada num bairro essênio de Jerusalém26. Como os essênios
seguiam um calendário diferente do adotado pelo resto do judaísmo, um calendá-
rio solar e não lunar, isso explicaria a divergência entre os evangelhos sinóticos e
o evangelho de João a respeito da data da Páscoa e sugeriria que João teria razão
nesse ponto.
Essas observações estabelecem, por sua vez, outras questões fascinantes: quem
eram os mais velhos discípulos de Jesus e onde residiam? Comumente, responde-

22. Ver a discussão em Bargil Pixner, Jerusalem’s Essene Gateway — Where the Community
Lived in Jesus’ Time, Bonner akademische Reden 23 (1997) 22-66, e a literatura aí citada.
23. Flávio Josefo, Vita 10–11.
24. Para essa expressão e para uma discussão mais ampla desse tema, ver Martin Hengel, The
Pre-Christian Paul, London, SCM Press, 1991, 44.
25. Bargil Pixner, With Jesus in Jerusalem: His First and Last Days in Judea, Rosh Pina, Corazin,
1996, 15-21; Id., With Jesus Through Galilee According to the Fifth Gospel, Rosh Pina, Corazin, 1992,
14-16, 49-53.Ver também a discussão em David Flusser, Jesus, Jerusalem, The Magnes Press, 1997,
24-36, 180-186.
26. Por exemplo, Basil Pixner, With Jesus in Jerusalem, 91-106 (cf. nota 25).

121
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
se que eram judeus. Judeus, certamente, mas que espécie de judeus? O problema
se complica mais com esta asserção de Atos 6,7: “A palavra de Deus crescia, e o
número dos discípulos aumentava consideravelmente em Jerusalém; uma multi-
dão de sacerdotes obedecia à fé”. De que tipo de sacerdotes se tratava?27 Deviam
ser ou saduceus ou essênios. Em vista de certas semelhanças gritantes entre os es-
sênios e os primeiros discípulos de Jesus no que concerne ao conceito de messias,
à escatologia, ao Templo e à refeição, os essênios são certamente candidatos prová-
veis. E onde viviam esses sacerdotes essênios que se encontravam em Jerusalém?
Precisamente no bairro essênio que se tornou mais tarde o centro da Igreja cristã
de Jerusalém, pelo menos após 70. Depois de Pedro,Tiago, o irmão do Senhor, foi
o chefe do movimento de Jesus em Jerusalém. É muito fácil imaginar que esse
judeu conservador e seus colegas tenham vivido nesse mesmo bairro bem antes
de 70 — de fato, bem pouco tempo depois da crucifixão de Jesus. Isso também
explicaria muito bem por que os primeiros discípulos de Jesus ressuscitado adota-
ram o sistema tipicamente essênio da comunidade dos bens. Se essas sugestões se
mostrarem pertinentes, seria então nesse lugar, no monte Sião, que Paulo teria
visitado Pedro e Tiago, três anos após seu chamado no caminho de Damasco, e
seria nesse local que Paulo poderia ter entrado em contato com um meio inte-
lectual e religioso essênio transformado.
Finalmente, tampouco deveríamos omitir a própria Damasco como local
possível de contato entre Paulo e o pensamento da Comunidade da Aliança Re-
novada. Mas essa questão deveria ser assunto de outra discussão. Em resumo, suge-
rimos a possibilidade de Paulo ter tido um diálogo com alguma forma de essenis-
mo. Esse cruzamento conceitual mútuo pode ter ocorrido em Jerusalém, em
Damasco ou em uma das numerosas comunidades essênias situadas entre os dois
locais. Quanto aos indícios de uma possível visita de Paulo a Qumran, eles não
existem.

5. A datação de 1 Tessalonicenses: algumas observações preliminares

Tradicionalmente, data-se 1 Tessalonicenses entre 50 e 52 d.C. Todavia, o


pensamento de Paulo refletido nessa carta, em particular a proximidade com as
ideias atestadas no mundo essênio e seu afastamento em relação às discussões so-

27. Ver Joseph A. Fitzmeyer, Essays on the Semitic Background of the New Testament, Missoula,
Scholars Press, 1974, 279, 296; para uma discussão mais geral dos primeiros desenvolvimentos do
“movimento de Jesus” em Jerusalém, ver Etienne Nodet, Justin Taylor, The Origins of Christianity:
An Exploration, Collegeville, The Liturgical Press, 1998.

122
III – Paulo antes de Paulo
bre a Torá em Gálatas e em Romanos, sugeriria uma data nitidamente mais antiga.
Essa observação foi e continua a ser meu ponto de partida no que diz respeito à
cronologia paulina. Uma datação tão tardia como 50 ou pouco depois não me
parece conciliável com o pensamento de 1 Tessalonicenses.
Um texto decisivo para a construção tradicional da cronologia paulina é
Atos 18. Nesse capítulo, três passagens desempenham um papel central:
Atos 18,1-3: “Deixando Atenas, Paulo foi em seguida para Corinto. Lá encon-
trou um judeu chamado Áquila, originário do Ponto, que acabava de chegar da
Itália com sua mulher, Priscila. Pois Cláudio decretara que todos os judeus
deviam sair de Roma. Paulo relacionou-se com eles e, como tinha o mesmo
ofício — eram fabricantes de tendas —, instalou-se em casa deles, e aí
trabalhava”.
Atos 18,11: “Paulo passou aí um ano e seis meses a ensinar a palavra de Deus”.
Atos 18,12: “Sob o proconsulado de Galião na Acaia, a hostilidade dos judeus
se tornou unânime contra Paulo, e eles o levaram ao tribunal”.
A passagem mais decisiva é a última, a data da inscrição de Galião. Fitzmyer
demonstrou de maneira convincente que Galião já se encontrava na Acaia no fim
da primavera ou no início do verão de 5228 e que Paulo, consequentemente, teve
de comparecer diante de Galião “ou no fim da primavera, no verão ou mesmo no
início do outono de 52”29.
Ao vincular essa data à indicação dos dezoito meses de Atos 18,11, Fitzmyer
concluiu que Paulo deve ter escrito 1 Tessalonicenses em 51 d.C., pouco depois
de sua chegada a Corinto, depois de partir de Atenas. Tal data para a composi-
ção da carta mais antiga de Paulo, 1 Tessalonicenses, não é convincente nem do
ponto de vista do desenvolvimento do pensamento paulino e do tempo necessá-
rio para tal desenvolvimento, nem do ponto de vista da trajetória da atividade
missionária do apóstolo. Essas dificuldades devem tomar toda a nossa atenção.

6. A cronologia paulina e Atos 18

Antes de voltar aos importantes problemas cronológicos ligados à duração


da atividade apostólica de Paulo, temos de abordar as questões postas por Atos 18.
A passagem mais controvertida nesse capítulo é a que fala do edito de Cláudio,
mais precisamente aquela em que Lucas escreve que Paulo encontrou em Corin-
to “um judeu chamado Áquila, originário do Ponto, que acabava de chegar da

28. Joseph A. Fitzmyer, The Acts of the Apostles, New York, Doubleday, 1998, 622 (AncB 31).
29. Ibid., 623: “either in late spring, summer, or even early fall of A.D. 52”.

123
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
Itália com sua mulher, Priscila. Pois Cláudio decretara que todos os judeus deviam
sair de Roma”. Fora do Novo Testamento, recorremos regularmente a três autores
para tentar datar essa ação de Cláudio: Suetônio (início do século II); Díon Cássio
(início do século III) e Paulo Orósio (século V).

6.1. Suetônio

Em Vida de Cláudio 25, Suetônio escreve a propósito do imperador Cláudio


(41-52 d.C.): “Iudaeos impulsore Chresto assidue tumultuantes Roma expulit”.
Esse texto apresenta vários problemas, a começar pelo de sua tradução. Entre as
traduções frequentemente citadas na discussão atual, vamos nos ater a três:
–– “Since the Jews constantly made disturbance at the instigation of Chres-
tus, he expelled them from Rome” [Como os judeus não cessavam de
causar tumulto, instigados por Cresto, ele os expulsou de Roma] (Loeb
Classical Library)30.
–– “He expelled Jews from Rome, who where constantly making disturban-
ces at the instigation of Chrestus” [Ele expulsou os judeus de Roma, que
não cessavam de causar tumulto, instigados por Cresto] (Fitzmyer)31.
–– “He expelled from Rome the Jews constantly making disturbances at the
instigation of Chrestus” [Ele expulsou de Roma os judeus que não cessa-
vam de causar tumulto, instigados por Cresto] (Murphy-O’Connor)32.
1) Com relação ao objetivo do texto, Fitzmyer e Murphy-O’Connor pare-
cem propor a tradução mais natural. Segundo o último, o texto significa
que “Cláudio expulsou somente os causadores de tumulto entre os
judeus”33. Essa ideia contrasta nitidamente com a afirmação de Lucas em
Atos 18, segundo a qual “Cláudio decretara que todos os judeus deviam
sair de Roma” (o itálico é nosso). Mas temos de nos lembrar aqui que o
autor de Lucas–Atos tem uma propensão ao adjetivo “todo” (pa/j/pa,nta)
e que, de uma forma ou de outra, ele utiliza essa palavra 171 vezes somen-
te nos Atos dos Apóstolos!
2) Outra dificuldade desse texto é o emprego do nome de Cresto, que em
Suetônio designa o instigador principal dos tumultos. Como a maioria

30. Suétone, Vie des 12 Césars, estabelec. de texto e trad. Henri Ailloud, Paris, Les Belles Lettres,
1932; t. 2: Tibère; Caligula; Claude; Néron, 134, § 25,11.
31. Joseph A. Fitzmyer, The Acts of the Apostles, 619 (cf. nota 28).
32. Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Critical Life, Oxford, Clarendon Press, 1996, 9.
33. Ibid., 11: “Claudius expelled only trouble-makers among the Jews”.

124
III – Paulo antes de Paulo
dos pesquisadores reconhecem hoje, o nome faz, mais que outra coisa,
referência à pessoa do Cristo e à sua interpretação — uma vez que ele
próprio, claro, jamais esteve presente em Roma.
3) A tradução da Loeb Classical Library cria um problema específico que, de
certo modo, Fitzmyer tampouco evita: parece sugerir que era possível expul-
sar os judeus que eram cidadãos romanos; na realidade, tal ação não poderia
ser tomada senão contra os que não possuíam o direito de residência34.
Dadas as ambiguidades que afetam esse texto de Suetônio, somos inclinados
a adotar a conclusão de Murphy-O’Connor: o texto sugere que Cláudio prova-
velmente expulsara missionários que não eram cidadãos romanos35.

6.2. Orósio

Da mesma forma, o texto de Suetônio não sugere a data para essa ação de
Cláudio. Numerosos pesquisadores se valem então do escritor cristão do século V
Paulo Orósio (Historiae adversus paganos 7,6,15-16)36, que não somente cita o tex-
to de Suetônio, mas data também a expulsão dos judeus do nono ano do reino de
Cláudio — de 25 de janeiro de 49 a 24 de janeiro de 50. O texto de Orósio é o
seguinte: “No nono ano de seu reino, Josefo relata que os judeus foram expulsos
de Roma por Cláudio; todavia, Suetônio, que assim fala, espanta-me ainda mais:
‘Claudio expulsou de Roma os judeus que perturbavam sem cessar, por instiga-
ção de Cristo’, porque não sabemos absolutamente se Cláudio ordenou expulsar
e oprimir os judeus que tumultuavam contra o Cristo, ou se quis expulsar igual-
mente os cristãos, como indivíduos de uma religião aparentada”37.
Vários problemas emergem de um exame acurado desse texto:
1) Orósio afirma que Josefo relata a mesma expulsão que Suetônio. Mas não
encontramos nenhum vestígio de tal testemunho em Josefo, o que leva
alguns pesquisadores a pôr sob suspeita a data de 49. Até mesmo um

34. E. Mary Smallwood, The Jews Under Roman Rule from Pompey to Diocletian: A Study in Po-
litical Relations, Leiden, Brill, 1981, 216 (Studies in Judaism in Late Antiquity 20).
35. Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Critical Life, 12 (cf. nota 32).
36. Paul Orose, Historiae adversus paganos, ed. Carl Zangemeister, New York, Johnson Reprint,
1966, 451 (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum 5 [1882]).
37. Id., Histoires (Contre les païens), estabelec. de texto e trad. Marie-Pierre Arnaud-Lindet, Paris,
Les Belles Lettres, 1991, t. III, liv. VII — Index, 31-32:“Anno eiusdem nono expulsos per ­Claudium
Urbe Judaeos Josephus refert; sed me magis Suetonius movet qui ait hoc modo: ‘Claudius Iudaeos
impulsore Christo adsidue tumultuantes Roma expulit’, quod, utrum contra Christum tumultuan-
tes Judaeos coherceri et conprimi iusserit, an etiam Christianos simul velut cognatae religionis
homines voluerit expelli, nequaquam discernitur”.

125
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
Fitzmyer­conclui que “Ninguém sabe de onde Orósio tira a informação
a respeito do nono ano, mas essa informação é plausível […]”38. Mas que
indícios há que permitiriam justificar essa data?
2) Pode-se perguntar se Orósio não foi tentado a cometer o mesmo erro de
muitos que o seguiram, ou seja, aceitar a data de 49 d.C., ao subtrair de-
zoito meses (At 18,11) da data sugerida em Atos 18,12 para o encontro
entre Paulo e Galião. Harnack, Lüdemann e Murphy-O’Connor suge-
rem que a datação de Orósio “tem toda a aparência de uma invenção
deliberada”39. Além disso, Murphy-O’Connor acrescenta que “o silêncio
de Tácito tende a confirmar essa interpretação. Seus Annales são comple-
tos para o ano 49, mas não contêm a menor alusão a uma medida tomada
ou considerada nesse ano contra os judeus de Roma”40.

6.3. Díon Cássio

Alguns procuraram interpretar o testemunho de Suetônio como uma refe-


rência a uma decisão tomada por Cláudio no primeiro ano de seu reino (41 d.C.),
decisão referida por Díon Cássio (História romana 60,6,6): “Tou,j te VIoudai,ouj
pleona,santaj au=qij, w[ste calepw/j a'n a;neu tarach/j u`po. tou/ o;clou sfw/n th/j
po,lewj eivrcqh/nai, ouvk evxh,lase me,n, tw/| de. dh. patri,w| bi,w| crwme,nouj evke,leuse
mh. sunaqroi,zesqai” (As for the Jews, who had again increased so greatly that by
reason of their multitude it would have been hard without raising a tumult to bar
them from the city, he did not drive them out, but ordered them, while conti-
nuing their traditional mode of life, not to hold meetings”41).
A relação complexa e ambígua entre os diferentes textos pode ser esclareci-
da? Fitzmyer aponta claramente o problema quando escreve a propósito da inter-
pretação de Lüdemann e de outros autores: “segundo esses pesquisadores, Suetô-

38. Joseph A. Fitzmyer, The Acts of the Apostles, 620 (cf.nota 28): “No one knows where Orosius
got the information about the ninth year, but it remais not unlikely […]”.
39. Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Critical Life, 10 (cf. nota 32): “betrays the consciousness
of invention”.
40. Ibid.: “silence of Tacitus tends to confirm this interpretation. His Annals are complete for
AD 49, but there is no single allusion to any action, taken or contemplated, against the Jews of
Rome in that year”.
41. Dion Cassius, Roman History. Vol. VII, Books 56-60 (LCL, tradução de Earnest Cary), Lon-
dres/Cambridge (MA), William Heinemann/Harvard University Press, 1955, v.VII, liv. 56–60, 383.
Trad. fr. (Jean-Daniel Kaestli): “Quant aux Juifs, qui étaient devenus si nombreux qu’il eût été diffi-
cile, à cause de leur multitude, de les exclure de la ville sans causer de trouble, il ne les expulsa pas,
mais ordonna qu’ils ne tiennent pas d’asssemblée tout en observant leur mode de vie ancestral”.

126
III – Paulo antes de Paulo
nio e Díon Cássio fazem referência a uma só e mesma decisão de Cláudio, e a
expulsão dos judeus por causa de Chresto deve ter acontecido oito anos mais
cedo […] Tal interpretação não é convincente, pois Díon Cássio diz explicita-
mente que Cláudio não expulsou judeus naquele momento (História romana
60,6,6). Cláudio pôde expulsar alguns judeus depois (em 49-50), como afirma
Suetônio sem indicar a data. A História de Díon Cássio para o ano 49 só se con-
serva num epítome bizantino e a ausência de referência a tal expulsão naquele
ano pode ser explicada pelo caráter breve do epítome. Além disso, Díon Cássio
não menciona Chrestos, o que constitui um obstáculo maior para a identificação
dos dois acontecimentos”42.
Em nossa opinião, a orientação dada por Murphy-O’Connor tem a vanta-
gem de trazer uma solução possível a essas dificuldades. Ele argumenta da seguin-
te maneira:
1) O relato de Díon Cássio é ao mesmo tempo incompleto, porque não dá
nenhuma justificação razoável para a ação de Cláudio, e inverossímil, na
medida em que a interdição feita aos judeus de se reunirem teria criado
mais problemas do que soluções. Proibir os judeus de se reunirem aos
sábados, o que era permitido pela lei romana, teria exacerbado a própria
situação cujo desdobramento Cláudio procurava prevenir43.

42. Joseph A. Fitzmyer, The Acts of the Apostles, 620 (cf. nota 28): “ […] both Suetonius and Dio
Cassius are said by these scholars to be referring to the same Caludian decision, and the expulsion
of Jews because of Chrestus would have occurred eight years earlier […]. Such an interpretation is
unconvincing, because Dio Cassius says explicity that Claudius did not expel Jews at that time
(Roman History 60.6.6). Claudius may have expelled some Jews later on (A.D. 49-50), as Suyetonius
actually affirms, without indicating the date. Dio Cassius’s history for the year 49 exists only in a
Byzantine epitome, and the lack of reference to such an expulsion in that year may be owing to
the summary nature of the epitome. Moreover, Dio Cassius makes no mention of Chrestos, which
is a major obstacles to the identification of the two events”.
43. Díon Cássio, que escreve no século III, devia necessariamente se apoiar em fontes que ele
mal pôde compreender ou que davam informações imprecisas. Como Díon Cássio compreendeu
Suetônio? Ele seguiu ou herdou dessas fontes uma linha de pensamento comparável à da tradução
da Loeb Classical Library,“Since the Jews constantly made disturbances at the instigation of Chrestus,
he expelled them from Rome [Uma vez que os judeus não paravam de criar confusão sob a insti-
gação de Cresto, ele os expulsou de Roma]”, que, como já mencionamos, podia sugerir que todos
os judeus tinham sido expulsos de Roma. Se for esse o caso, “o historiador romano não tinha co-
nhecimento de uma punição a respeito dos judeus em ampla escala, e então substituiu o que con-
siderava uma sanção menos importante” (Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Critical Life , 12 [cf.
nota 32]: “the Roman historian was not aware of any punishment of Jews on such a massive scale,
and so substituted what he considered a lesser penalty”). Díon Cássio sabia que a comunidade ju-
daica em Roma estava dividida em certo número de sinagogas? Se não era esse o caso, é bem
provável que ele não tenha visto que essa ação realizada pelo imperador podia ter visado a uma só

127
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
2) Murphy-O’Connor assim conclui: “Como não podemos confiar total-
mente nem em Suetônio nem em Díon Cássio, não é possível concluir que
eles se referem a dois acontecimentos distintos. É preferível, de acordo com
as regras da crítica das fontes habituais, considerar os textos deles relatórios
parciais, confusos e imprecisos do mesmo episódio. O núcleo histórico
subjacente aos dois relatos pode ser reconstruído da seguinte maneira: de-
pois de uma celeuma a propósito de Cristo no seio de uma sinagoga roma-
na, Cláudio, no ano 41, expulsou os missionários que não eram cidadãos
romanos e suspendeu temporariamente para essa comunidade judaica par-
ticular o direito de se reunir […] Em resumo, um grau muito alto de pro-
babilidade pode ser atribuído à hipótese segundo a qual, por causa de uma
decisão imperial, no ano 41, alguns judeus foram expulsos de Roma”44.
Barrett observa com razão que se “se parte da ideia de que a expulsão ocor-
reu mesmo, e que provocou a chegada de Áquila e de Priscila no ano 41, deve-se
admitir que Paulo tenha estado pela primeira vez em Corinto nesse mesmo ano,
ou pouco depois. Isso abala a cronologia paulina como é habitualmente enten-
dida e significa igualmente que a sequência cronológica do livro dos Atos anda
enviesada […]”45. Parece que muitos pesquisadores do Novo Testamento não re-

sinagoga, que poderia ter sido forçada a andar na linha ou fechada até que se tivesse a segurança de
que não haveria mais confusões.
44. Ibid.: “If neither Suetonius nor Dio Cassius can be taken at face value, we cannot conclude
that they are referring to two distinct events. Ir is preferable, according to the rules of normal lite-
rary criticism, to see them as partial accounsts, confused and inaccurate, of the same episode. The
historical kernel underlying both accounts can be reconstructed as follows: as the result of a distur-
bance concerning Christ in a Roman synagogue, Claudius in AD 41 expelled the missionaries who
where not Roman citizens, and temporarily withdrew from that specific Jewish community the
right os assembly […] In sum, therefore, a very high degree of probability can be accorded to
the hypothesis that as the result of an imperial action in AD 41 some Jews were expelled from
Rome”. Murphy-O’Connor encontra um argumento a mais para a reconciliação de Suetônio e
Díon Cássio na Legatio ad Gaium, de Fílon, que ele terminou em 41 d.C., em Roma, ao aguardar
uma audiência com Cláudio. A passagem citada é a seguinte: “Consequentemente, ele sabia tam-
bém que eles tinham sinagogas e que ali se reuniam, em particular nos santos sétimos dias, onde
recebiam em comum o ensinamento da ‘filosofia’ tradicional deles. Ele sabia também que reuniam
fundos sagrados, os das primícias, e que os enviavam a Jerusalém por meio de delegados encarrega-
dos de ali fazerem seus sacrifícios. Todavia, ele não expulsou essas pessoas de Roma, ele não as
privou de seus direitos respectivos de cidadania romana, pelo fato de que mantinham o orgulho de
sua condição de judeus, ele não introduziu inovações ofensivas nas sinagogas deles e não os impediu
de se reunir para as instruções sobre as leis deles, ele não fez oposição ao recolhimento das primícias
[…]” (Fílon de Alexandria, Legatio ad Caium, in Oeuvres de Philon d’Alexandrie 32, introd., trad. e
notas André Pelletier, Paris, Le Cerf, 1972, 179-183, § 156-157).
45. Charles Kingsley Barrett, The Acts of the Apostles, Edinburgh, T & T Clark, 1988, v. 2, 859
(ICC): “if the view is taken that the expulsion took place, and resulted in the arrival in Corinth of

128
III – Paulo antes de Paulo
param nesse desafio, o que tem muitas vezes por consequência um paradoxo
curioso: uma leitura crítica da história e da teologia lucana que caminha junto,
tacitamente, com uma leitura não crítica da cronologia lucana, permitindo deter-
minar a datação da atividade e da redação das cartas de Paulo.

7. Atos 18 é um texto composto?

Atos 18 é um relatório exato de uma sequência contínua de acontecimen-


tos ocorridos em Corinto ou estamos na presença de uma combinação de infor-
mações que se referem a duas ou a várias visitas de Paulo a essa cidade? A resposta
a essa questão tem consequências decisivas para o modo de considerar a datação
dos diversos episódios mencionados nesse capítulo dos Atos. Barrett resume as-
sim sua interpretação: “Mas é igualmente verdade que toda a seção deixa clara-
mente transparecer o trabalho editorial de Lucas. Não encontramos ali nenhuma
ocorrência da primeira pessoa do plural; Lucas provavelmente redigiu em seu
melhor estilo elementos de informação provenientes dos círculos paulinos e tal-
vez recolhidos na própria Corinto”46. A propósito do modo como Lucas utiliza
nos Atos o material que reuniu, John Hurd fez a seguinte observação: “Se exami-
namos o modo como as viagens missionárias de Paulo são referidas nos Atos,
surge um fato surpreendente: ainda que Paulo visite uma mesma cidade por vá-
rias vezes, suas aventuras na cidade em questão não acontecem senão por ocasião
de alguma de suas visitas, geralmente a primeira […] Parece, portanto, que o au-
tor dos Atos tem a tendência de concentrar todos os seus aditamentos numa úni-
ca visita”47. Essa observação bate com a de Charles H. Buck: “Geralmente, Lucas
narra todos os incidentes ligados a uma dada cidade como se tivessem todos
acontecido quando da primeira visita de Paulo àquele lugar”48. Isso deve nos fa-

Aquila and Priscilla, in AD 41, we must suppose that Paul reached Corinth for the first time in that
year, or soon after.This throws out the whole Pauline chronology as this is usually understood, and
also means that the order of Acts is distorted […]”.
46. Ibid., 858-859: “But it is equally true that the whole section shows Lucan editorial manage-
ment. There is no first person plural in it; Luke probably wrote up in his best style pieces of infor-
mation derived from the Pauline circle and, perhaps, collected in Corinth itself ”.
47. John Hurd, The Origin of 1 Corinthians, London, SPCK, 1956, 30: “If the account in Acts of
Paul’s missionary journeys is examined, a striking fact appears: although Paul may visit a city several
times, his adventures occur only on one of his visits, usually his first […]. Thus it appears that the
author of Acts tended to concentrate all of his additions in one visit”.
48. Charles H. Buck, The Collection for the Saints, Harvard Theological Review 43 (1950) 1-29
(27, nota 35): “Luke generally tells all incidents connected with a given town as though they oc-
curred on Paul’s first visit there”.

129
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
zer hesitar em aceitar com muita rapidez, sem uma séria análise crítica, a unidade
natural de Atos 18,1-17.
O ceticismo fica mais forte ainda pelo fato de que o capítulo menciona dois
“chefes da sinagoga”, Crispo, no versículo 8 (ver também 1Cor 1,14), e Sóstenes,
no versículo 17. Eles são apresentados um e outro como o` avrcisuna,gwgoj. Havia
somente um chefe da sinagoga de cada vez ou Crispo e Sóstenes faziam parte de
um grupo de dirigentes da sinagoga de Corinto? Em Atos 13,15 Lucas utiliza o
plural oi` avrcisuna,gwgoi. Isso se aplica também à situação descrita em Atos 18?
Pode-se argumentar em favor de uma ou de outra dessas possibilidades, mas não
dispomos de nenhum indício que prove qual a situação em Corinto49. Lee Levine
mostrou que “mais de uma pessoa por vez podia ter o título de chefe da sinagoga
num determinado tempo”50, mas essa informação ainda não resolve definitiva-
mente o problema da situação em Corinto durante o século I d.C.
Em Atos 18,7, lemos: “Abandonando esse lugar, ele foi para a casa de certo
Tício Justo, adorador de Deus, cuja casa ficava junto da sinagoga” (tradução da
TEB, ligeiramente modificada). Fitzmyer e Barrett se perguntaram sobre as razões
possíveis de tal deslocamento de um lugar a outro dentro de Corinto e chegaram
a soluções completamente diferentes. Para Fitzmyer, essa mudança de lugar per-
mite que Paulo tenha melhor acesso aos pagãos; já para Barrett ela poderia resultar
da excomunhão de Paulo da sinagoga51. Cada uma dessas soluções é possível, mas

49. Opondo-se a Barrett e a outros que afirmam que poderia haver simultaneamente mais de
um chefe de sinagoga, Gerd Lüdemann escreve (Paulus, der Heidenapostel [cf. nota 15]; v. 1: Studien
zur Chronologie, 177, nota 51):“Jedoch wird das durch jüdische Vorschriften ausgeschlossen, vgl. Bill.
IV, S. 145ff. Dass in Apg 13,15 der Plural steht, ist kein Gegenargument und im übrigen nicht das
einzige Beispiel der Unkenntnis jüdischer Vorschriften in Lukas”; ed. ingl.: Paul, Apostle to the Gen-
tiles, 185, nota 52 (cf. nota 15): “Jewish prescriptions, however preclude this possibility. See Bill., 4:
145ff. The plural in Acts 13:14 is not a counterargument and, further, is not the only exemple of
Luke’s ignorance of Jewish prescriptions”. O estudo de Levine (cf. nota 50) contradiz essa
perspectiva.
50. Lee Levine, The Ancient Synagogue:The First Thousand Years, New Haven,Yale University Press,
2000, 400: “More than one person could have held the title of archisynagogue at any one time”.
51. Joseph A. Fitzmyer, The Acts of the Apostles, 627 (cf. nota 28): “Paul withdrew from there […]
the rest of the verse implies that Paul moves to another residence in Corinth. If this is the correct
understanding of the verse, one wonders why he moves from the house of Aquila and Priscilla and
prefers the house of a Jewish sympathizer to that of Jewish Christian. Perhaps it was to give them
better entrée among indigenous Corinthian Gentiles” (“Paulo se retirou de lá […] o resto do versí-
culo implica que Paulo se deslocou para ficar em outra residência em Corinto. Se esse entendimen-
to do versículo é correto, podemos nos perguntar por que ele deixa a casa de Áquila e de Priscila
e por que prefere a casa de um [pagão] simpatizante do judaísmo à de judeu-cristãos. O objetivo
talvez fosse o de assegurar melhor aceitação entre os pagãos gentios de Corinto”). Ver também
Charles Kingsley Barrett, The Acts of the Apostles, v. 2, 867 (cf. nota 45).

130
III – Paulo antes de Paulo
é difícil não se pôr a seguinte questão: simplesmente não terá Lucas amalgamado
num único relato dados relativos a mais de uma visita de Paulo a Corinto?
Enfim, pode-se perguntar sobre a transição entre Atos 18,11 e Atos 18,12. O
versículo 11, “Paulo passou aí um ano e seis meses a ensinar a palavra de Deus”,
não dá a impressão de uma conclusão? E o versículo 12, “Sob o procunsulado de
Galião na Acaia, a hostilidade dos judeus se tornou unânime contra Paulo […]”,
não tem o ar de um novo começo? Se respondemos com uma afirmativa, isso vem
confirmar a ideia de que Atos 18,1-17 é um texto composto, e isso nos leva a
partilhar a conclusão de Justin Taylor: “É razoável podermos pensar, então, que
Atos 18,1-17 contém relatos que se referem pelo menos a duas estadas de Paulo
em Corinto, uma nos primeiros anos de 40 e a outra em 51”52.

8. A cronologia paulina numa perspectiva de conjunto

Será útil agora recolocar essas análises de 1 Tessalonicenses e de Atos 18 no


contexto do conjunto da cronologia paulina. Na história do cristianismo das ori-
gens, a época dos apóstolos e de Paulo é atualmente objeto de um exame renova-
do e de uma forte revisão. No que se refere à cronologia, há uma pluralidade de
opções, mas é possível, dado nosso objetivo hoje, reduzi-las a duas abordagens
principais: (1) a abordagem tradicional, muito dependente da exatidão das infor-
mações e do quadro cronológico dado pelos Atos dos Apóstolos, que considera
que a atividade apostólica de Paulo começou em 47-48 d.C.; (2) a abordagem
explorada primeiro por John Knox53 e agora defendida por outros pesquisadores,
que se mostra cética diante do emprego não crítico do material cronológico for-
necido pelos Atos e propõe situar o início da atividade apostólica de Paulo já em
37 ou, o mais tardar, em 40 d.C.54. É claro, portanto, que o problema decisivo que
separa essas grandes abordagens diz respeito à avaliação da confiabilidade crono-
lógica dos Atos55.

52. Justin Taylor, Les actes de deux apôtres V. Commentaire historique (Act 9,1-18,22), Paris,
Gabalda, 1994, 326 (EtB 23).
53. John Knox, Chapters in a Life of Paul, Macon, Mercer University, 1987.
54. Por exemplo, Gerd Lüdemann, Paulus, der Heidenapostel (cf. nota 15).
55. Além de John Knox, Chapters in a Life of Paul, e de Gerd Lüdemann, Paulus, der Heidenapostel,
os seguintes estudos contribuíram para informar nosso ponto de vista: Jack Finegan, Handbook of
Biblical Chronology: Principles of Time Reckoning in the Ancient World and Problems of Chrono-
logy in the Bible, Peabody, Hendrickson Publishers, 1998; Niels Hyldahl, Die Paulinische Chronolo-
gie, Leiden, Brill, 1986 (Acta Theologica Danica 19); Ernst Axel Knauf, Zum Ethnarchen des Aretas
2 Kor 11,32, SNW 74 (1983) 145-147; Kirsopp Lake, The Chyronology of Acts, in Frederick John
Foakes Jackson, Kirsopp Lake (ed.), The Beginnings of Christianity, Grand Rapids (MI), Baker, 1966,

131
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
Quando se tenta reconstruir a cronologia desse período, deve-se, evidente-
mente, prestar muita atenção ao problema da metodologia. Ressalte-se também
que nosso conhecimento do período paulino apoia-se em apenas duas fontes: as
indicações fornecidas pelas cartas do próprio apóstolo e os acontecimentos refe-
ridos por Lucas nos Atos dos Apóstolos. A maior parte dos especialistas do Novo
Testamento dá prioridade, hoje, às cartas paulinas, pois Paulo está, cronologica-
mente, mais perto dos acontecimentos que relata. Além disso, deve-se levar em
consideração o fato de que Lucas, ao redigir seu segundo livro, reelaborou nume-
rosas tradições, como o fez no evangelho, para as adaptar a seu objetivo teológico
de conjunto. Se forem consequentes, os pesquisadores que partilham essa com-
preensão do objetivo teológico de Lucas deverão necessariamente utilizar o livro
dos Atos como uma fonte que não é totalmente confiável em matéria de infor-
mações cronológicas, pois grande parte das informações de Lucas foi posta a ser-
viço de seu programa teológico mais amplo. Se o livro dos Atos pode ser ainda
uma fonte válida de informações detalhadas e precisas quando as separamos do
contexto programático, ele jamais deveria ter a prioridade sobre os documentos
que emanam de Paulo e só deveria ser utilizado quando não contradiz as afirma-
ções do próprio apóstolo.
Ainda que o emprego dessa metodologia crítica seja, aos olhos dos que a in-
vocam, a condição indispensável de uma pesquisa histórica rigorosa, sua adoção
não torna mais fácil a tarefa de estabelecer uma cronologia do período paulino. Em
todo caso, revela até que ponto as tentativas anteriores foram hesitantes e especu-
lativas e até que ponto todas as reconstruções são necessariamente frágeis. No fim
das contas, com efeito, Paulo não nos fornece uma só data precisa em suas cartas.
Querer estabelecer uma possível cronologia daquela época implicará inevitavel-
mente certo grau de dependência em relação ao livro dos Atos. Admitido isso, te-
mos de estar atentos para utilizar os Atos de uma maneira ao mesmo tempo crítica
e plausível. Temos de reconhecer, todavia, que, seja qual for a perspectiva da qual
considerar os dados, não pode haver para aquele período cronologia absolutamente defini-
tiva.Todas as tentativas têm de continuar inseguras, sujeitas a correções e revisões.
Todos os pesquisadores, seja qual for a opção cronológica que tenham esco-
lhido em sua reconstrução da carreira de Paulo, têm de fazer uma nítida distinção
entre a informação encontrada nas cartas de Paulo e a proveniente dos Atos dos
Apóstolos. O primeiro passo consistirá em isolar certas informações contidas na
correspondência paulina que possam ter implicações cronológicas.

v. 1, 445-474; George OGG, The Chronology of the Life of Paul, London, Epworth, 1968; M. Jack
Suggs, Concerning the Date of Paul’s Macedonian Ministry, Novum Testamentum 4 (1960) 60-68.

132
III – Paulo antes de Paulo
9. Os dados paulinos

As informações provenientes das cartas podem ser resumidas da seguinte ma-


neira: (1) a revelação de Jesus ressuscitado a Paulo, em Damasco (Gl 1,12-16); (2) a
visita à Arábia e o retorno a Damasco (Gl 1,17); (3) “a seguir (e;peita), três anos
depois”, a primeira visita a Jerusalém por quinze dias (Gl 1,18) — o que poderemos
chamar de a “visita de conhecimento”; (4) depois (e;peita) atividade nas regiões da
Síria e da Cilícia (Gl 1,21); (5) depois (e;peita), ao cabo de catorze anos, uma segun-
da visita a Jerusalém (Gl 2,1) — a que se chamará a “visita da conferência”; (6) ati-
vidade nas Igrejas da Galácia, da Ásia, da Macedônia e da Acaia, em que o acento é
posto especialmente na coleta da oferenda para Jerusalém (Gl 2,10; 1Cor 16,1-4;
2Cor 8-9; Rm 15,25-32) — a que se chamará a “visita da oferenda”. Examinemos
mais de perto esses elementos de informação fornecidos pelas cartas de Paulo.

9.1. A revelação de Jesus ressuscitado a Paulo em Damasco (Gl 1,12-16)

Muitas vezes nos referimos a esse acontecimento e falamos da “conversão”


de Paulo, mas temos de nos mostrar muito reticentes diante do emprego desse
termo, pois ele não se encontra em nenhuma parte no texto. Numa linguagem
que lembra as figuras proféticas, o apóstolo declara que o Deus que o separou
antes que tivesse nascido “houve por bem revelar em mim o seu Filho, a fim de
que eu o anuncie entre os pagãos”. Em termos mais precisos, temos aqui um
acontecimento de “chamado à missão” (commissioning event) — o chamado de
Paulo como aquele que deverá pregar Jesus Cristo aos pagãos.
Para compreender o contexto no qual essas indicações sobre o chamado, a
viagem e a cronologia são dadas, temos de lembrar que Paulo se esforça por de-
monstrar a seguinte tese: “não é por um homem que ele [o Evangelho] me foi
transmitido ou ensinado, mas por uma revelação de Jesus Cristo” (Gl 1,12). Para
provar que esse Evangelho paulino não depende de nenhuma autoridade huma-
na, Paulo insiste particularmente em sua independência em relação a Jerusalém.
Precisamente sobre esse ponto é que se apoia a declaração que se segue à cena do
“chamado à missão”: “sem recorrer a nenhum conselho humano, nem subir a
Jerusalém para junto daqueles que eram apóstolos antes de mim…” (Gl 1,16-17).
Convém destacar aqui o emprego no texto do termo euvqe,wj (“logo, imediata-
mente”) — “imediatamente, não recorri a nenhum conselho humano”. Se qui-
sermos interpretar numa perspectiva apropriada a informação dada nos versículos
seguintes, será fundamental compreender com muita clareza seu contexto: nessa
passagem Paulo procura, antes de mais nada, mostrar sua independência em rela-
ção a Jerusalém, e não dar informações cronológicas detalhadas.

133
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
9.2. A visita à Arábia e o retorno a Damasco (Gl 1,17)

Para enfatizar a independência de seu Evangelho e para dizer com vigor que
esse Evangelho chegou até ele mediante uma revelação de Jesus Cristo, Paulo
afirma que, por causa dessa revelação, ele não foi imediatamente a Jerusalém, mas,
antes, à Arábia, “depois voltei a Damasco” (Gl 1,17). Essa formulação de Paulo
permite concluir que o lugar do chamado era originalmente Damasco, um fato
que se harmoniza com o relato embelezado desse acontecimento no livro dos
Atos (9,1-25; 22,1-21; 26,12-30). Não sabemos quanto tempo Paulo permaneceu
na Arábia e por que foi lá; a duração de sua estada em Damasco depende da ma-
neira como se interpreta o “a seguir” de Gálatas 1,18. A partir do texto que temos
diante dos olhos, podemos concluir que provavelmente Paulo residiu em Damas-
co junto à comunidade cristã, o que se harmoniza também com as informações
fornecidas por Atos 9,19-22.

9.3. “A seguir (e;peita), três anos depois”, a primeira visita a Jerusalém


por quinze dias (Gl 1,18) — a “visita para conhecimento”

A que se refere o “a seguir” de Gálatas 1,18? Ao chamado de Paulo ou ao seu


retorno a Damasco? Claro, se a estada em Damasco foi curta, como provavelmen-
te terá sido, o acontecimento do chamado e o retorno a Damasco podem ter sido
relativamente próximos no tempo. Todavia, como não é a única ocorrência do
advérbio “a seguir” na sequência dos acontecimentos descritos em Gálatas, a in-
terpretação desse termo se reveste de grande importância. Muitos intérpretes
consideram que ele se refere sempre ao acontecimento do chamado; muitos ou-
tros são de parecer que se refere sempre ao acontecimento que o precede imedia-
tamente. A segunda interpretação é corroborada pelo emprego paralelo do termo
em 1 Coríntios 15,6 e 15,7. Se caminharmos nesse sentido, Paulo teria permane-
cido com outros cristãos em Damasco durante cerca de três anos (dois ou três,
segundo o resultado do método antigo de cálculo) antes de fazer sua primeira
visita a Jerusalém, desde seu chamado a pregar Jesus Cristo aos pagãos. De acordo
com a tese central que defende nessa seção, o apóstolo afirma que não ficou em
Jerusalém com Cefas (Pedro) senão por quinze dias e que não viu mais ninguém
senão Tiago, o irmão do Senhor.

9.4. A seguir (e;peita), atividade nas regiões da Síria e da Cilícia (Gl 1,21)

À luz do que acabamos de dizer, o e;peita (“a seguir”) provavelmente faz re-
ferência ao acontecimento imediatamente precedente: “subi a Jerusalém… a se-

134
III – Paulo antes de Paulo
guir, fui para as regiões da Síria e da Cilícia”. É muito difícil a possibilidade de
e;peita se referir ao acontecimento do chamado.
A questão decisiva a propósito desse versículo de Gálatas não é, pois, a refe-
rência de e;peita, mas, antes, saber o que encobre essa menção da atividade na Síria
e na Cilícia.A Síria inclui dois grandes centros cristãos, Damasco, lugar do chama-
do de Paulo, uma região onde Paulo trabalhou, segundo suas próprias palavras
(Gl 2,11), e uma cidade muitas vezes mencionada nos Atos (11,19; 13,1; 14,26;
15,22; 18,22). De outro lado, a Cilícia inclui Tarso, que, segundo Atos 22,3, é a
cidade natal de Paulo. A menção da Síria e da Cilícia em Gálatas 1,21 quer indicar
que Paulo passou de onze a catorze anos (ver a seguir seção 9.5) somente nessas
duas regiões? Ou, considerando o contexto e o desejo de Paulo de se distanciar de
Jerusalém, quis o apóstolo dizer apenas “a seguir, depois de ter deixado Jerusalém,
após minha estada de quinze dias, não fiquei nessa zona, mas parti para longe, até
a Síria e a Cilícia”, sem sugerir de modo algum que ele atuara somente nessa re-
gião? O modo como ele interpreta essa menção da Síria e da Cilícia será de uma importân-
cia crucial para a reconstrução da cronologia da carreira de Paulo. Para os especialistas que
interpretam a referência à Síria e à Cilícia como não limitadora da atividade mis-
sionária de Paulo a essas regiões, o apóstolo exerceu muito cedo em sua carreira
uma atividade missionária que o levou até Filipos, Tessalônica, Atenas e Corinto.
Esses mesmos especialistas enfatizam que a expressão de Filipenses 4,15, “nos co-
meços (evn avrch|/) do Evangelho”, designa literalmente o início do trabalho missio-
nário independente de Paulo em Filipos e que 1 Tessalonicenses 3,1 faz referência
à atividade contínua de Paulo durante esse período em Tessalônica, em Atenas e
em Corinto. Essa interpretação, não majoritária hoje, permite uma “desobstru-
ção” da atividade missionária de Paulo e cria um espaço-tempo necessário à ma-
turação de seu ministério apostólico e ao desenvolvimento de sua teologia56. Em
vez de postular um longo período de uns onze a catorze anos na Síria e na Cilícia,
essa perspectiva permite fazer começar a missão europeia de Paulo num momen-
to bem mais precoce de sua carreira apostólica e não reduz o resto de sua ativida-
de a um contexto temporal tão rigorosamente limitado. Se aceitamos essa leitura
dos dados, é então provável que 1 Tessalonicenses provenha desse mesmo período,
anterior à visita da conferência em Jerusalém.

56. Para um inventário das diversas posições, ver Gordon D. Fee, Paul’s Letter to the Philippians,
Grand Rapids, Eerdmans, 1995, 440, nota 12 (NICNT). É muito útil e próximo da posição defen-
dida aqui o comentário de Joachim Gnilka, Der Philipperbrief, Freiburg, Herder, 1968, 177
(HThK).

135
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
9.5. A seguir (e;peita), ao cabo de catorze anos, uma segunda visita a Jerusalém
(Gl 2,1) — a “visita da conferência”

Em Gálatas 2,2 Paulo fala que vai pela segunda vez a Jerusalém “em conse-
quência de uma revelação” e não porque tivesse sido convocado por alguma au-
toridade humana. No fim desse encontro com Tiago, Cefas e João, Paulo conta
como “[eles] nos deram a mão, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão, a fim
de que fôssemos, nós aos pagãos, eles, aos circuncisos. Apenas teríamos de nos
lembrar dos pobres, o que eu tive muito cuidado de fazer” (Gl 2,9-10).
Paulo utiliza aqui e;peita pela terceira vez. A que ele se refere? Ao seu cha-
mado ou ao começo de suas atividades na Síria e na Cilícia? Levando em consi-
deração as observações feitas antes, a segundo solução parece mais provável. Como
a atividade na Síria e na Cilícia começou bem pouco tempo após a breve visita a
Jerusalém, pode-se dizer de modo preciso que o período de catorze anos cobre o
tempo que transcorreu entre a primeira visita a Jerusalém e a segunda (entre a
“visita para conhecimento” e a “visita de conferência”).

9.6. Atividade nas Igrejas da Galácia, da Ásia, da Macedônia e da Acaia,


em que o acento se põe especialmente na coleta da oferta para Jerusalém
(Gl 2,10; 1Cor 16,1-4; 2Cor 8–9; Rm 15,25-32)

Um exame de conjunto das cartas paulinas mostra que a atividade de Paulo


durante o período que se seguiu à conferência concentrou-se na Galácia, na Ásia,
na Macedônia e na Acaia, e que um aspecto central dessa atividade foi a coleta da
oferta para os pobres de Jerusalém, que respondia a um pedido feito a Paulo na
saída do encontro de Jerusalém com Tiago, Cefas e João.
O centro principal da atividade de Paulo durante esse período era Éfeso
(1Cor 16,10-11). Foi lá que foram escritas as cartas aos gálatas, ao filipenses, a
­Filêmon e a primeira carta aos coríntios. Foi lá que Paulo chegou à Macedônia
em companhia de Timóteo, com uma primeira etapa em Filipos (1Cor 16,5;
2Cor 2,13), onde eles encontraram Tito (2Cor 7,5). Se consideramos que 2 Co-
ríntios é um documento composto, é possível que a maior parte, se não a totalida-
de da carta, tenha sido escrita em Filipos. Depois da Macedônia, com uma etapa
possível em Tessalônica, Paulo chegou a Corinto (2Cor 9,3-4; 12,4; 13,1). Enfim,
a partir de Corinto, onde ele escreveu Romanos, o apóstolo empreendeu sua úl-
tima viagem a Jerusalém.

136
III – Paulo antes de Paulo
9.7. A última viagem a Jerusalém (1Cor 16,3; Rm 15,25-32) — a “visita da
coleta”

Essa última viagem a Jerusalém é o último elemento das atividades missio-


nárias de Paulo que podemos reconstituir com base em suas cartas — o livro dos
Atos vai além de Jerusalém e continua até a estada do apóstolo em Roma. O
objetivo de Paulo ao empreender essa última viagem a Jerusalém é “manifestar a
sua solidariedade para com os santos de Jerusalém, que estão em pobreza”
(Rm 15,26: koinwni,an tina. poih,sasqai eivj tou.j ptwcou.j tw/n a`gi,wn tw/n evn
vIerousalh,m). A ansiedade que a viagem projetada suscita em Paulo é evidente,
pois pede aos romanos que orem por ele “a fim de que escape aos incrédulos da
Judeia e que a ajuda que levo a Jerusalém seja bem acolhida pelos santos” (Rm
15,31). Não se encontra nas cartas nenhuma indicação cronológica que permita
determinar o lapso de tempo transcorrido entre a “visita da conferência” e a
“visita da coleta”.
Desse rápido estudo das informações cronológicas fornecidas pelas cartas de
Paulo resulta que, afinal, encontram-se apenas duas indicações precisas (além
da referência aos quinze dias passados em Jerusalém): os três anos entre a volta de
Damasco e a primeira visita a Jerusalém “para conhecer” e os catorze anos entre
essa primeira visita a Jerusalém e a segunda. Aí param as informações de primeira
mão provenientes de Paulo. Das próprias cartas não podemos tirar absolutamente
nenhuma informação que permita determinar em que ano aconteceu esta ou
aquela sua visita ou atividade; todavia, a cronologia apresentada a seguir harmoni-
za-se bem com o contexto geral fornecido pelas cartas. Como a aproximação que
adotamos põe o acento na prioridade absoluta da documentação que emana do
próprio Paulo, é importante seguir a sequência dos acontecimentos que provém
de suas cartas.

Acontecimento Data (d.C.)


1. A revelação de Jesus ressuscitado a Paulo, em Damasco por volta de 33
(Gl 1,12-16)
2. A visita à Arábia e a volta a Damasco (Gl 1,17) por volta de 33
3. “A seguir (e;peita), três anos depois” da primeira visita a Jeru- por volta de 36
salém por quinze dias (Gl 1,18) — a visita “para conhecer”
4. A seguir (e;peita), atividade nas regiões da Síria e da Cilícia por volta de 36-50
(e além) (Gl 1,21)
5. A seguir (e;peita), após catorze anos, segunda visita a Jerusalém por volta de 50
(Gl 2,1) — a visita da “conferência”

137
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
Acontecimento Data (d.C.)
6. Atividade nas Igrejas da Galácia, da Ásia, da Macedônia e da por volta de 50-56
Acaia, em que se põe ênfase na coleta da oferta para Jerusalém
(Gl 2,10; 1Cor 16,1-4; 2Cor 8–9; Rm 15,25-32)
7.Visita final a Jerusalém (1Cor 16,3; Rm 15,15-32) — a visita por volta de 56-57
“da coleta”

10. Conclusão

Essa cronologia, baseada fundamentalmente nas cartas de Paulo, tem três


vantagens: leva em consideração os estudos recentes sobre a história da redação de
Lucas–Atos; elimina o longo e problemático “período silencioso” do início da
carreira de Paulo e explica inteligentemente a forma que assumiu sua atividade
missionária durante esse período; enfim, “desobstrui” o conjunto da carreira do
apóstolo e fornece o contexto temporal para um ministério que se estendeu por
um período bem mais longo — o que deixa a possibilidade de uma maturação e
de um desenvolvimento no ministério apostólico e na teologia de Paulo. Com tal
abordagem, torna-se mais fácil falar de um “Paulo do início” (1 Tessalonicenses) e
de um “Paulo tardio” (Gálatas, Romanos). Torna-se também possível situar as
cartas de Paulo, concretas e contingentes, no interior de um período mais extenso
e de um espectro de atividades mais amplo, o que pode também permitir com-
preender de maneira mais coerente a teologia de um apóstolo muitas vezes com-
plexo e paradoxal.

138
III – Paulo antes de Paulo
Apêndice A

Pode ser útil fornecer um quadro geral da cronologia paulina tradicional,


evidentemente com a consciência de que os especialistas que concordam com
essa perspectiva de conjunto podem ficar surpresos a respeito deste ou daquele
ponto individualmente.

Acontecimento Data (d.C.)


Conversão de Paulo 33
Primeira visita a Jerusalém 36
Visita por ocasião de uma fome 46
Primeira viagem missionária 47-48
Conferência apostólica 49
Chegada de Paulo a Corinto 50
Paulo deixa Corinto outono de 51 ou primavera de 52
Chegada de Paulo a Éfeso outono de 53
Paulo deixa Éfeso verão de 56
Chegada de Paulo a Corinto fim de 56
Paulo em Filipos Páscoa de 57
Chegada de Paulo a Jerusalém Pentecostes de 57
Paulo diante de Festus verão de 59
Chegada de Paulo a Roma primavera de 60

Apêndice B

Para tratar de maneira completa a questão da cronologia paulina, outra ta-


refa é necessária: abordar o livro dos Atos, com prudência e de maneira crítica,
para ver se podemos encontrar nele informações confiáveis que sejam compatí-
veis e não entrem em contradição com os indícios fundamentais derivados das
cartas de Paulo.

Os Atos dos Apóstolos

Os dados pertinentes do livro dos Atos, que podem ter uma influência sobre
a reconstrução da cronologia paulina, podem ser resumidos da seguinte maneira:
(1) a revelação do Senhor a Paulo e o chamado à missão recebido em Damasco

139
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
(At 9,1-25 — notar, todavia, a repetição desse acontecimento em 22,5 e 16,12);
(2) primeira visita a Jerusalém para lá encontrar os apóstolos (9,26); (3) pregação
em Jerusalém seguida da partida para Tarso (Cilícia) e do retorno a Antioquia
(9,28-30; 11,25-26); (4) segunda visita a Jerusalém para levar auxílio por ocasião
de um tempo de fome (11,29-30; 12,25); (5) atividade na Síria, em Chipre e na
Galácia (At 13–14; o que chamamos de “primeira viagem missionária”); (6) ter-
ceira visita a Jerusalém para a assembleia dos apóstolos (15,1-29); (7) atividade na
Galácia, na Macedônia, na Grécia e na Ásia (15,36–18,21 — o que chamamos de
“segunda viagem missionária”); (8) quarta visita a Cesareia para saudar a Igreja,
Jerusalém (?), a Galácia e a Frígia (18,22); (9) atividade na Síria, na Galácia, na
Ásia, na Macedônia e na Grécia (18,23–21,14 — o que chamamos de “terceira
viagem missionária”); (10) quinta (e última) visita a Jerusalém (21,11-16).
Para comparar essas informações com as que encontramos nas cartas de
Paulo e para resolver as aparentes contradições referentes ao número de visitas a
Jerusalém, convém examinar mais de perto o plano da carreira de Paulo que aca-
bamos de tirar do livro dos Atos.

1. A revelação do Senhor a Saulo e o chamado à missão recebida em Damasco


(9,1-25; 22,1-21; 26,12-30)
Ainda que Paulo aprimore muito o material que encontramos em Gálatas 1,
esse acontecimento corresponde ao elemento 9.1 na cronologia tirada da corres-
pondência paulina (ver acima).

2. Primeira visita a Jerusalém para lá encontrar os apóstolos (9,26)


Essa informação corresponde ao elemento 9.3 acima.

3. Pregação em Jerusalém seguida da partida para Tarso (Cilícia) e do retorno a


Antioquia (9,28-30; 11,25-26)
Esse elemento harmoniza-se apenas de modo parcial com o elemento 9.4
acima, no que diz respeito à partida para a Cilícia. Mas o relato dos Atos difere a
seguir substancialmente das cartas, pois fala de um retorno a Antioquia, seguido
pelo ponto 4 do apêndice B, a segunda visita a Jerusalém.

4. Segunda visita a Jerusalém para levar auxílio por ocasião de um período de


fome (11,29-30; 12,25)
Essa visita não tem nenhum paralelo nas cartas de Paulo. Com essa menção,
temos a primeira das duas visitas suplementares a Jerusalém atribuídas a Paulo nos

140
III – Paulo antes de Paulo
Atos. Quando discutirmos o ponto 10, abaixo, veremos que Lucas não aponta a
razão dessa última visita a Jerusalém, ao passo que nas cartas ela é claramente apre-
sentada como a visita da entrega da coleta. Uma maneira de resolver o problema das
visitas suplementares dos Atos é supor que essa última visita “da coleta” foi desloca-
da pelo autor dos Atos e situada numa data muito mais precoce e provavelmente
falsa. Alguns pesquisadores afirmam que, embora a tensão entre judeu-cristãos e
pagão-cristãos tenha de fato se mantido e talvez se intensificado nos últimos anos
do ministério apostólico de Paulo, Lucas quis mostrar que essas divergências já ha-
viam sido substancialmente superadas bem cedo57.Teríamos aí a verdadeira razão do
rearranjo e do deslocamento das visitas de Paulo a Jerusalém operados por Lucas.

5. Atividade na Síria, em Chipre e na Galácia — a “primeira viagem missionária”


(At 13–14)
É difícil coordenar os elementos 3, 4 e 7 da cronologia dos Atos com o pon-
to 9.4 das cartas de Paulo (ver acima). Se se segue a hipótese exposta acima, a sa-
ber, que Paulo, ao mencionar a Síria e a Cilícia, não faz mais, talvez, do que indicar
o ponto de partida de uma série de atividades que o levaram muito longe, como
à Macedônia e à Acaia, isso implica então que Lucas fragmentou um único e lon-
go período de atividade missionária em vários menores, de sorte que as visitas a
Jerusalém pudessem ser organizadas segundo o esquema que era o seu.

6. Terceira visita a Jerusalém para a assembleia dos apóstolos (15,1-29)


Hoje, a maioria dos exegetas do Novo Testamento defende a ideia de que
essa visita a Jerusalém corresponde ao elemento 9.5 (cf. acima), ou seja, à “visita da
conferência”, ao admitir que Gálatas descreve um encontro particular entre Paulo
e as autoridades de Jerusalém, ao passo que Atos se propõe descrever uma forma
mais pública desse mesmo encontro. Se nos recusamos a estabelecer tal corres-
pondência, confrontamo-nos com uma “selva de problemas”58, e também com
uma selva de soluções. Essas últimas incluem as seguintes proposições: (1) Gálatas
2,1-10 não descreve a mesma visita de Paulo a Jerusalém que a de Atos 15. Antes,
deve-se identificar o encontro mencionado em Gálatas 2 com a visita de Atos
11,27-30 (a visita por ocasião de um período de fome), ou com a de Atos 18,22,
ou ainda com uma visita não mencionada nos Atos; (2) Gálatas 2,1-5 e 2,6-11

57. John Knox, Chapters in a Life of Paul, 71-73 (cf. nota 15); Gerd Lüdemann, Paulus, der Heide-
napostel, 152-174; ed. ingl.: Paul, Apostle to the Gentiles, 139-157 (cf. nota 15).
58. Ernst Haenchen, Die Apostelgeschichte, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 61968 [1. ed.
1956], 438-456; ed. ingl.: The Acts of the Apostles, Philadelphia, Westminster, 1971, 455-472.

141
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
representam duas visitas separadas de Paulo a Jerusalém, que podem, por conse-
guinte, ser identificadas com qualquer uma das três a cinco visitas de Paulo a Jeru-
salém descritas nos Atos.
Se se defende a identificação entre Atos 15 e Gálatas 2, a diferença é clara:
para Lucas, trata-se da terceira visita a Jerusalém, ao passo que para Paulo é apenas
a segunda. Como em Atos 18,22 (cf. ponto 8) a visita a Jerusalém não é motivada
e se insere mal no contexto, supusemos que o local primitivo da visita se encon-
trava em 18,22 e que Lucas o fez subir para o capítulo 15 por razões teológicas:
em atenção à unidade da Igreja, convinha que a controvérsia fosse acertada logo,
antes que Paulo partisse para a Ásia Menor, a Macedônia e a Acaia. Se essa hipó-
tese é correta, então, depois da eliminação dos pontos 4 e 6, as atividades descritas
por Lucas nos pontos 3, 5 e 7 encontram todas seu lugar como partes de uma só
e mesma “viagem missionária”.

7. Atividade na Galácia, na Macedônia, na Grécia e na Ásia — a “segunda viagem


missionária” (15,36–18,21)
Como acabamos de dizer, é possível que os elementos 3, 4 e 7 tenham todos
ocorrido durante o período de atividade de catorze anos mencionado por Paulo
(ver acima, ponto 9.4).

8. Quarta visita a Cesareia para saudar a Igreja, Jerusalém (?), a Galácia e a


Frígia (18,22)
Além do fato de que não se dá nenhuma razão que explique por que Paulo
“subiu para saudar a Igreja” (At 18,22), o itinerário seguido é surpreendente: em
Atos 18,21 Paulo está em Éfeso e depois, em 18,24, está de novo em Éfeso, depois
de uma viagem que o levou a Cesareia, provavelmente a Jerusalém (muitos co-
mentaristas afirmam que é inverossímil que o itinerário primitivo, pré-lucano,
não tenha mencionado uma visita a Jerusalém, pois Paulo já havia feito a viagem
até Cesareia), a Antioquia, e que, depois, através da região gálata e da Frígia, o re-
conduziu a Éfeso (tudo isso em três versículos!). É possível, então, que 18,22 te-
nha sido o lugar original da visita da conferência, que é agora descrita em
Atos 15,1-29 (cf. ponto 6).

9. Atividade na Síria, na Galácia, na Ásia, na Macedônia e na Grécia — a “terceira


viagem missionária” (18,23–21,14)
Esse material se harmoniza bem com o elemento 9.6 da cronologia das car-
tas (ver acima), ainda que se deva observar que Lucas passa em silêncio o que teve

142
III – Paulo antes de Paulo
um lugar tão importante para Paulo durante esse período de seu ministério: a
coleta. Nessa ocasião, será ressaltada a coerência de Lucas: não somente ele elimina
em Atos 21,11 ss. a verdadeira razão da última visita de Paulo a Jerusalém, que era
doar a coleta a Jerusalém, como também deixa de falar da coleta, que era o obje-
tivo principal de Paulo durante seu último período de atividade nas regiões men-
cionadas aqui no ponto 9.

10. Quinta (e última) visita a Jerusalém (21,7-36)


Como já mencionamos, essa visita final corresponde ao elemento 9.7 da
cronologia das cartas, ainda que Lucas deixe de mencionar que ela está em relação
com a entrega da coleta e ainda que, como já sugerimos acima, ele faça subir no
tempo essa motivação, ao associá-la ao ponto 4 — a visita por ocasião de um pe-
ríodo de fome (At 11,29-30; 12,25).
Seja qual for a maneira como se resolve a questão das diferenças entre o
relatório das atividades de Paulo nos Atos e a apresentação delas pelo próprio
Paulo — não fizemos aqui mais que indicar uma possibilidade geral —, todos os
pesquisadores têm de admitir que essas contradições aparentes exigem uma ex-
plicação. Decerto, uma comparação de dados capazes de ter um valor cronológi-
co nas cartas de Paulo e nos Atos nos permitiu chegar a uma visão de conjunto
das semelhanças e das diferenças entre os dois corpus; apesar de tudo, porém, não
temos ainda nenhum elemento cronológico concreto e preciso. Por isso é que
será necessário, se quisermos ir mais adiante, continuar o estudo do livro dos Atos,
procurando que outros dados pertinentes esse texto poderia oferecer e pergun-
tando se os dados em questão podem contribuir para determinar de maneira
mais precisa os limites da cronologia paulina — assim agindo, convém lembrar as
observações de prudência que já fizemos a propósito do emprego da informação
tirada dos Atos.

143
1 Tessalonicenses e a cronologia paulina
A herança judaica de Paulo
e os inícios de sua missão
Rainer RIESNER (Dortmund)

Paulo não era um missionário da diáspora judaica, pois não existia proselitismo pré-cristão.
Ainda que chamado pelo Ressuscitado (Gálatas 1) à missão junto aos pagãos, sua herança
farisaica constituiu um grande obstáculo à sua entrada no ministério. Em sua prática missio-
nária, ele podia, contudo, se apoiar nas inegáveis experiências do farisaísmo (transmissão da
tradição) e do judaísmo da diáspora (sinagoga, os “tementes a Deus”). O primeiro e o se-
gundo canto do servo (Is 42; 49) determinam a teologia missionária de Paulo. Essas profe-
cias, influenciadas por tradições de Henoc e conhecidas da família de Jesus, foram, por outro
lado, dadas a Paulo pela comunidade de Damasco.

1. Paulo, fariseu e missionário do cristianismo primitivo

P aulo foi o missionário mais importante do cristianismo primitivo: é um dado


reconhecido desde sempre. Paulo continuou judeu: é algo que passamos a
admitir cada vez mais, mas há alguns decênios apenas. Em 1912, Adolf Schlatter,
num artigo de dicionário consagrado ao movimento farisaico, escreve: “A seu
respeito, o julgamento da Escritura é ambivalente, o que corresponde bem ao seu
caráter duplo. Ele perseguia um objetivo divino, mas de maneira carnal. O que
procurava com todas as suas forças era a Lei de Deus, e isso faz sua grandeza. Por
isso é que os homens mais nobres de Israel — um Nicodemos, um Paulo — fo-
ram fariseus; por isso é que Paulo jamais se arrepende de ter sido fariseu, mas se
reconhece como tal até o fim de sua carreira de apóstolo (At 23,6). O que Paulo
tinha em alto conceito neles era o fato de que punham a Lei de Deus acima de

145
tudo o mais e entendiam a promessa de Deus como uma verdade certa”. Schlatter
pôde até formular o seguinte juízo: “O farisaísmo foi o grande resultado humano
de que a história de Israel pode se orgulhar”1. Podemos não estar de acordo com
cada uma dessas afirmações; em todo caso, são surpreendentes quando se pensa
que datam de antes da Primeira Guerra Mundial.
Uma vez que Paulo continuou judeu, mesmo como missionário do cristia-
nismo primitivo, somos levados a nos pôr esta questão: Em que é ele devedor, em
sua atividade missionária, de sua herança judaica e, em particular, de suas origens
farisaicas (Fl 3,5)? De forma resumida, eis minha resposta a essa questão: Primeiro,
não lhes deve nada e, segundo, muito lhes deve! Para explicar esse resultado apa-
rentemente paradoxal, procederei em três etapas. Primeiro, examinarei a afirma-
ção segundo a qual Paulo, em seu período pré-cristão, teria sido um missionário
fariseu à procura de prosélitos. A seguir, procurarei saber como Paulo se tornou
um missionário cristão voltado para os pagãos. Enfim, mostrarei, a partir de al-
guns exemplos, quanto o apóstolo é devedor de sua herança judaica em sua prá-
tica missionária.

2. Paulo, um missionário fariseu à procura de prosélitos?

Em Gálatas 5,11 Paulo estabelece a seguinte questão: “Quanto a mim, ir-


mãos, se ainda pregasse a circuncisão (eiv peritomh.n e;ti khru,ssw), por que, en-
tão, estaria sendo perseguido?”. Dessa passagem, Barnikol quis tirar a conclusão
de que Paulo, em seu período pré-cristão, se dedicara ativamente ao recruta-
mento de prosélitos na diáspora2. Schoeps adotou essa hipótese3 e desenvolveu
num livro sobre Paulo — que gozou durante certo tempo de grande audiên-
cia — teses de grande importância a respeito desse suposto “fariseu da diáspora”.

1. Adolf Schlatter, Pharisaër, in Paul Zeller (Hrsg.), Calwer Bibellexikon: Biblisches Han-
dwörterbuch, Calw/Stuttgart, Calwer Verlag, 1912, col. 563-564 (564a): “Das Urteil der Schrift
über ihn ist doppelseitig, seinem zwiefachen Charakter entsprechend. Er hat ein göttliches Ziel
erstrebt, aber auf feischliche Weise. Was er mit allen Kräften suchte, das ist das Gesetz Gottes, und
das ist das Große an ihm. Darum waren die edelsten Männer Israels, ein Nikodemus, ein Paulus
Ph[arisäer]; darum bereute es Paulus nicht, daß er Ph[arisäer] gewesen war, sondern bekannte sich
auch am Ende seines Apostellaufs als einen Ph[arisäer], Ap. 23,6; daß sie das Gesetz Gottes über alles
andere stellten und die Veheißung Gottes als gewisse Wahrheit ergriffen, das schätzt er an ihnen
hoch […]. Der Pharisäismus war die größte menschliche Leistung, welche die Geschichte Israels
aufzuweisen hat”.
2. Ernst Barnikol, Die vorchristliche und frühchristliche Zeit des Paulus. Nach seinen geschichtli-
chen und geographischen Selbstzeugnissen im Galaterbrief, Kiel, Mühlau, 1929, 18-24.
3. Hans-Joachim Schoeps, Paulus: Die Theologie des Apostels im Lichte der jüdischen Reli-
gionsgeschichte, Tübingen, Mohr, 1959, 231.

146
III – Paulo antes de Paulo
Becker a menciona ainda como uma explicação possível de Gálatas 5,11: “Se
interpretarmos historicamente a proposição condicional inicial, referindo-a ao
período judaico do apóstolo, poderemos levar em conta o zelo dos fariseus em
conquistar prosélitos atestado em Mateus 23,15 e fazer de Paulo judeu um mis-
sionário da sinagoga que prega a lei”4. O pesquisador israelita Rokeah admite
como óbvio o fato de que deve ter havido missionários judeus, pois houve de-
pois missionários cristãos5. Com base no testemunho de Josefo (ver adiante 2.4),
outros especialistas defenderam a tese segundo a qual Saulo foi um missionário à
procura de prosélitos; esse é o caso de Bruce6 e, hoje, de maneira ainda mais con-
vincente, de Donaldson7.
Por conseguinte, a entrada de Paulo em cena como missionário constituiria
uma novidade; não teria feito senão mudar o conteúdo de sua pregação. Mas não
é nada evidente que a pregação da circuncisão de que fala Gálatas 5,11 se refira ao
período pré-cristão da vida do apóstolo. O modo de dizer peritomh.n khru,ssein
não é a retomada de uma expressão judaica, mas foi forjado pelo apóstolo sobre o
modelo de Cristo.n khru,ssein. O primeiro e;ti do versículo deve ser compreen-
dido no sentido de uma adição8: “Se, além disso [além de Cristo], eu pregasse a
circuncisão, por que, então, estaria sendo perseguido?”. E, sobretudo, deve-se per-
guntar em que medida se pode realmente pressupor, segundo os termos de ­Becker,
a existência de “um zelo dos fariseus em conquistar prosélitos” (“eine belegte
pharisäische Proselytenwerbung”).

2.1. Houve uma missão judia pré-cristã?

Do fim do século XIX até por volta de 1990, um consenso quase geral con-
siderou o judaísmo a primeira religião universal a ter sido missionária. Como se

4. Jürgen Becker, Paul, “L’Apôtre des Nations”, trad. do al. Joseph Hossmann, Paris/Montréal,
Cerf/Médiaspaul, 1995, 52-53 (Théologies bibliques); ed. orig. al.: Paulus, der Apostel der Völker,
Tübingen, Mohr Siebeck, 31998 [1. ed. 1989]: “Bezieht man […] den voranstehenden Bedingun-
gssatz historisierend auf die jüdische Zeit des Apostels, dann kann man unter Hinweis auf die Mt
23,15 belegte pharisäische Proselytenwerbung aus dem jüdischen Paulus einen synagogalen Mis-
sionar für das Gesetz machen” (41).
5. David Rokeah, Ancient Jewish Proselytism in Theory and Practice, ThZ 52 (1996)
206-224 (221).
6. Frederick F. Bruce, The Epistle of Paul to the Galatians, Exeter, Paternoster, 1982, 236
(NIGTC).
7. Terence L. Donaldson, Paul and the Gentiles: Remapping the Apostle’s Convictional World,
Minneapolis, Fortress Press, 1997, 275-284.
8. Cf. Franz Mussner, Der Galaterbrief, Freiburg, Herder, 51988, 358 s. (HThK 9).

147
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
chegou a esse consenso? Em 1770, Moses Mendelssohn alegara, entretanto, em sua
célebre correspondência com Johann Caspar Lavater, jamais ter havido no judaís-
mo verdadeiras tendências missionárias9. De fato, a influência mais forte veio de
Wettstein. Os paralelos judaicos que ele apontou em sua edição do Novo Testa-
mento, de 1751-1752, a propósito de Mateus 23,15 parecem provar a existência de
um esforço judaico generalizado para conquistar prosélitos10. Essa impressão foi
reforçada pela obra muito divulgada de Schürer sobre a história do judaísmo na
época do Novo Testamento, em que se fala de uma “propaganda judaica ativa” que
conheceu “grandes sucessos”11.Típico da primeira metade do século XX é o título
de um livro de Derwacter, Preparação do caminho para Paulo: o movimento dos prosélitos
no judaísmo tardio12. Especialistas cristãos e judeus, liberais e conservadores aderiram
a esse consenso. As raras vozes divergentes, como as do rabino alemão Bialoblocki13
ou do exegeta norueguês Aalen14, passaram despercebidas. Jeremias formulou de
maneira particularmente clara as consequências daí decorrentes para a interpreta-
ção do Novo Testamento: “Jesus [podemos acrescentar, no sentido de Jeremias:
Paulo também] cresceu num povo que, pela palavra e pela escrita, exercia uma in-
tensa atividade missionária entre os pagãos”15. Jeremias também escreveu:“O surgi-
mento de Jesus coincidiu […] com o século da missão da história israelita e judai-
ca”, acrescentando, aliás, esta frase muito surpreendente:“Na verdade, nossas fontes
são pouco abundantes […]”16. De fato, precisamente aí é que está o problema.
Entre 1991 e 1994 vimos surgir independentemente um do outro seis estu-
dos que criticaram e censuraram essa concordância quase unânime. Trata-se das

9. Cf. Hans-Joachim Schoeps, The Jewish-Christian Argument: A History of Theologies in Con-


flict, London, Faber & Faber, 1965, 98-100.
10. Johann Jakob Wettstein, H KAINH DIAQEKH. Novum Testamentum Graecum editionis cum
lectionibus variantibus… necnon commentario pleniore I, Amsterdam, Domerian, 1751; réimpr.: Graz,
Akademische Verlagsanstalt, 1962, 483-485.
11. Emil Schürer, Gechichte des jüdischen Volkes im Zeitalter Jesu Christi. , Leipzig, Hinrichs’sche
Buchhandlung, 41909; III: Das Judentum in der Zerstreuung und die jüdische Literatur, 162, 164.
12. Frederic M. Derwacter, Preparing the Way for Paul: The Proselyte Movement in Later Ju-
daism, New York, Macmillan, 1930.
13. Solomon Bialoblocki, Die Beziehungen des Judentums zu Proselyten und Proselytentum, Ber-
lin, 1930.
14. Sverre Aalen, Die Begriffe “Licht” und “Finsternis” im Alten Testament, im Späfjudentum und im
Rabbinismus, Oslo, H. J. Dybwad, 1951, 202-231 (SNVAO 1).
15. Joachim Jeremias, Jesu Verheißung für die Völker (Franz-Delitzsch-Vorlesungen 1953), Stutt-
gart, Kohlhammer, 21959, 13: “Jesus wuchs in einem Volke auf, das in Wort und Schrift regste
Heidenmission trieb”.­
16. Ibid., 10: Jesu Auftreten fiel […] in das Missionszeitalter der israelitisch-jüdischen ­Geschichte”
(itálico no original); “Zar sind unsere Quellen spärlich […]”.

148
III – Paulo antes de Paulo
publicações de McKnight17, Fredriksen18, Cohen19, Goodman20, bem como de
Will e de Orrieux21. A influência desses trabalhos foi de tal modo decisiva que
McKnight julgou que existia uma nova concordância quase geral, ao formular o
registro por ocasião de um simpósio em 1997: “A pesquisa está hoje muito de
acordo para afirmar que no tempo de Jesus e das igrejas judaicas mais antigas o
judaísmo não era uma religião missionária, comparável em qualquer sentido às
atividades de Paulo e do pagão-cristianismo primitivo”22. Quase na mesma oca-
sião, entretanto, ocorreram três publicações que tomaram o partido do antigo
consenso. Ao lado do artigo já citado de Rokeah (ver nota 5), encontram-se as
contribuições mais importantes de Carleton Paget23, de Hvalvik24 e de Dickson25.
Mas a defesa mais circunstanciada do antigo consenso é ainda a obra, obrigatória
sob vários aspectos, do especialista judeu Feldman sobre as relações entre judeus e
pagãos no mundo antigo. A dizer a verdade, o próprio Feldman reconhece que
não existe “nenhum elemento de prova decisiva em favor de uma atividade mis-

17. Scot Mcknight, A Light Among the Gentiles: Jewish Missinary Activity in the Second Temple
Period, Minneapolis, Fortress Press, 1991.
18. Paula Fredriksen, Judaism, the Circumcision of Gentiles, and Apocalyptic Hope: Another
Look at Galatians 1 and 2, JTS 42 (1991) 532-564.
19. Shaye J. D. Cohen, Was Judaism in Antiquity a Missionary Religion?, in Menachem MOR,
Assimilation and Accomodation: Past Traditions, Current Issues and Future Perspectives, Jerusalem/
Lanham, University Press of America, 1992, 14-23. O artigo, apesar de sua brevidade, é um modelo
de clareza terminológica e metodológica.
20. Martin Goodman, Jewish Proselytizing in the First Century, in Judith Lieu, John North,
Tessa Rajak (ed.), Jews Among Pagans and Christian in the Roman Empire, London, Routledge, 1992,
53-78; Id., Mission and Conversion: Proselytizing in the Religious History of the Roman Empire,
Oxford, Clarendon Press, 1994.
21. Edouard Will, Claude Orrieux, “Prosélytisme juif?” Histoire d’une erreur, Paris, Les Belles
Lettres, 1992.
22. Scot Mcnight, A Parting Within the Way: Jesus and James on Israel and Purity, in Bruce
Chilton, Craig A. Evans (ed.), James the Just and Christian Origins, Leiden, Brill, 1999, 83-129
(NT.S 98): “Scholarship is fairly united now in arguing that Judaism at the time of Jesus and the
earliest Jewish churches was not a missionary religion in any sense like the activity of Paul and early
Gentile Christianity” (109).
23. James Carleton Paget, Jewish Proselytism at the Time of Christian Origins: Chimera or
Reality?, JSNT 62 (1996) 65-103.
24. Reidar Hvalvik, The Struggle for Scripture and Covenant: The Purpose of the Epistle of Bar-
nabas and Jewish-Christian Competition in the Second Century, Tübingen, Mohr Siebeck, 1996,
268-322 (WUNT II/82).
25. John P. Dickson, Mission-Commitment in Ancient Judaism and in the Pauline Communities: The
Shape, Extent and Background of Early Christian Mission, Tübingen, Mohr Siebeck, 2003, 11-85
(WUNT II/159).

149
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
sionária judaica entre os pagãos”26. Mas Feldman pensa poder remediar essa falta
por meio da seguinte afirmação: “Os indícios acumulados — ao mesmo tempo
demográficos e literários — que apontam para essa atividade são consideráveis”.
Há, todavia, boas razões para duvidar dessa opinião. Não posso aqui senão
fazer um breve resumo do que expus em detalhe em outra publicação27. De ma-
neira independente, Jean-Pierre Lémonon chegou aos mesmos resultados28. Para
explicar o forte crescimento da população judaica na Antiguidade, não é necessário
estabelecer a hipótese de um empreendimento florescente de recrutamento de
prosélitos. Graças às leis de pureza, a taxa de mortalidade infantil era nitidamente
mais baixa entre os judeus. Igualmente, a proibição de expor as crianças e a recusa
amplamente admitida da contracepção contribuíam para a manutenção de um
número particularmente elevado de crianças na população judaica. Nenhum es-
crito judaico identificado como tratado missionário pede aos pagãos que se con-
vertam. Na realidade, trata-se quase sempre de obras apologéticas. Que alguns pa-
gãos tenham sido convencidos do valor do judaísmo e se convertido pode ter sido
um efeito dessa literatura, mas um efeito não desejado.Voltaremos adiante ao fato
de que existiu efetivamente um círculo importante de simpatizantes do judaísmo.
Mas é preciso fazer uma distinção estrita entre atração e missão. O poder de atração
que exerce uma religião é diferente de uma missão. Só se deveria falar de missão
quando se procura intencionalmente conquistar novos adeptos.Vamos, pois, exa-
minar brevemente três textos que com muita frequência são citados como provas
evidentes de um projeto consciente de atividade missionária no judaísmo.

2.2. Juvenal

Nas Sátiras desse poeta romano, nascido em 67 d.C., encontramos esta pas-
sagem conhecida, mas de conteúdo duvidoso:

26. Louis H. Feldman, Jew and Gentile in the Ancient World: Attitudes and Interactions from
­ lexander to Justinian, Princeton, Princeton University Press, 1993, 293: “no single item of con-
A
clusive evidence (for Jewish) missionary activity among the Gentiles”; “The cumulative evidence
— both demographic and literary — for such activity is considerable”.
27. Rainer Riesner, A Pre-Christian Jewish Mission?, in Jostein Ådna, Hans Kvalbein (ed.),
The Mission of the Early Church to Jews and Gentiles, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000, 211-250.
28. Jean-Pierre Lémonon, Le judaïsme avait-il une pensée et une pratique missionaire au début
du Ier siècle de notre ère?, in Philippe Abadie, Jean-Pierre Lémonon (éd.), Le judaïsme à l’aube de
l’ère chrétienne. XVIIIe congrès de l’ACFEB (Lyon, septembre 1999), Paris, Cerf, 2001, 299-329
(LeDiv 186). Cf. também P. Barnett, Jewish Mission in the Era of the New Testament and the
Apostle Paul, in Peter Bolt, Michael Thompson (ed.), The Gospel to the Nations (Festschrift Peter T.
O’Brien), Sydney, Apollos, 2000, 263-283.

150
III – Paulo antes de Paulo
Alguns, tendo tido por acaso um pai cuja superstição observa o sábado (metuen-
tem sabbata),
não adoram nada senão o poder das nuvens e do céu,
e a carne humana não é para eles mais sagrada que a do porco,
de que o pai se absteve. Cedo (mox)29, eles cortam seu prepúcio;
e, acostumados a desdenhar as leis de Roma,
não estudam, não observam, não temem senão todo o direito judaico
transmitido por Moisés num livro misterioso (arcano… volumine),
evitando mostrar o caminho aos que têm um outro culto,
não orientando na procura de uma fonte senão somente os circuncisos.
Mas o responsável é o pai, que deu à preguiça
e deixou totalmente fora da vida um dia sobre sete30.
Esse texto, longe de provar a existência de um esforço dos judeus para con-
quistar prosélitos, antes contraria tal hipótese. Segundo Juvenal, os judeus mesmos
não falam de sua fé a ninguém. Somente aos adeptos do culto deles é que se anun-
cia a Lei de Moisés, que Juvenal qualifica até de “livro oculto” — o contexto
exige que se traduzam assim as palavras arcano volumine31. Essa afirmação é decerto
um exagero, pois a Lei era lida publicamente nas sinagogas. Mas ela se tornaria
totalmente incompreensível se Juvenal tivesse tido conhecimento de verdadeiros
esforços missionários. Nesse caso, não teria deixado de atirar contra essas práticas
alguns ferozes ditos mordazes e satíricos. O que Juvenal descreve aqui foi apresen-
tado com razão por Stuehrenberg como uma “atração progressiva pelo judaísmo

29. O advérbio latino mox significa, primeiro, “proximamente”; o intervalo de tempo visado
pode ir de “logo” a “em seguida” e “mais tarde”.
30. Juvénal, Satires, estabelec. de texto e trad. Pierre de Labriolle, François Villeneuve, Paris, Les
Belles Lettres, 1967 [1921], 176 (Collection des Universités de France):
Quidam sortiti metuentem sabbata patrem
nil praeter nubes et caeli numen adorant,
nec distare putant humana carne suillam,
qua pater abstinuit, mox et praeputia ponunt;
Romanas autem soliti contemnere leges
Judaicum ediscunt et servant ac netuunt ius,
tradidit arcano quodcumque volumine Moyses,
non monstrare vias eadem nisi sacra colenti,
quaesitum ad fontem solos deducere verpos.
Sed pater in causa, cui septima quaeque fuit lux
ignava et partem vitae non attigit ullam.
31. Ver nesse sentido Johannes Leipoldt, Walter Grundmann, Umwelt des Urchristentums II:
Texte, Berlin/Ost, Evangelische Verlagsanstalt, 31972, 247 s.

151
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
que se passava de uma geração à seguinte”32. O pai foi atraído por certos aspectos
da vida judaica, como o sábado, mas continua ainda um metuens, um “temente a
Deus”. Somente o filho é que, depois de um tempo suficientemente longo (mox),
se tornará um prosélito ao se fazer circuncidar. Nesse texto, portanto, não se trata
de modo algum de missionários judeus.

2.3. Mateus 23,15

Nenhum texto desempenhou um papel tão importante para confortar os


especialistas sobre a ideia de que existiu no judaísmo uma prática missionária de
grande envergadura quanto estas palavras de Jesus:
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas,
vós que percorreis mares e continentes
para granjear um só prosélito (poih/sai e[na prosh,luton),
e, quando o conquistais,
o tornais digno da geena
duas vezes mais do que vós!
João Calvino, em seu Harmonia dos evangelhos, de 1533, já concluía dessas
palavras de Jesus a existência de uma missão judaica amplamente praticada, com o
uso de meios pouco recomendáveis33. Jeremias constatava com certo espanto: “É
um enigma: que essa afirmação violenta a respeito dos convertidos que se tornam
filhos da geena seja a única declaração de Jesus que possuímos a propósito da mis-
são judaica, quando viveu numa época missionária sem par na história do
judaísmo”34. O enigma se resolveria muito naturalmente se se admitisse que não
houve naquela época nenhum período de ouro da missão. Seria necessário, então,
interpretar o logion de modo diferente do que se faz habitualmente. Neste caso, a
questão da autenticidade pode ser deixada de lado, pois, mesmo que se tratasse de
uma criação pós-pascal, seria necessário explicar como se chegou a afirmar uma
pretensa missão dos fariseus entre os pagãos35. Um bom comentário contemporâ-

32. Peter F. Stuehrenberg, Proselyte, in Anchor Bible Dictionary V, New York, Doubleday, 1993,
503-505: “progressive attraction to Judaism from one generation to the next” (504).
33. Calvino, Commentarius in Harmoniam Evangelicam, Braunschweig, C.A. Schwetschke, 1891,
629 (CR 73).
34. Joachim Jeremias, Jesu Verheißung für die Völker, 16 (cf. nota 15): “Es bleibt ein Rätsel, daß
dieses harte Wort von den bekehrten Höllensöhnen die einzige Äußerung Jesu zur jüdischen Mis-
sion ist, die wir haben, und das in einem Missionszeitalter, das seinesgleichen in der jüdischen
Geschichte nicht besitzt”.
35. Segundo William D. Davies e Dale C. Allison (The Gospel According to Saint Matthew, Edin-
gurgh,T & T Clark, 1997, v. 3, 287-288 [ICC], e Jean-Pierre Lémonon (Judaïsme, 324-325 [cf. nota

152
III – Paulo antes de Paulo
neo do logion poderia ser o fato seguinte, muitas vezes apresentado como outra
prova do esforço ativo dos fariseus para conquistar prosélitos.

2.4. Flávio Josefo

No livro 20 de suas Antiguidades judaicas o historiador judeu refere a conver-


são da casa real de Adiabene ao judaísmo (Ant 20,34-48). O herdeiro do trono,
Izates, aprendera a conhecer o judaísmo por intermédio do mercador judeu
­Ananias. Independentemente de seu filho, a rainha-mãe Helena voltara-se tam-
bém ela para o judaísmo. Quando Izates chegou à realeza, quis se fazer circunci-
dar. Mas disso foi instantemente dissuadido não somente por sua mãe, mas tam-
bém por Ananias. O grande comerciante judeu teria dado ao seu conselho a
seguinte justificativa:
O rei podia adorar a Deus (to. qei/on se,bein), mesmo sem ser circunciso, se se
decidisse por observar totalmente as leis ancestrais dos judeus, o que era mais
importante que a circuncisão. […] O próprio Deus lhe perdoaria ter renuncia-
do a esse rito, forçado a isso pela necessidade e pelo temor que tinha de seus
súditos. (Ant 20,41-42, in Oeuvres complètes de Flavius Josèphe, trad. G. Matthieu,
L. Herrmann, ed.Th. Reinach, Paris, 1929, t. 4, 259).
Essa justificativa não deve ser explicada somente pelo medo pessoal de Ana-
nias, como o faz Feldman36. A conduta de Helena e de Ananias encontra um para-
lelo nos esforços de certos judeus de Roma junto à patrícia Fúlvia (Ant 18,81-84)
e mesmo à Popeia, mulher de Nero (Ant 20,195.252; Vita 16) para fazer delas
simpatizantes influentes, que poderiam oferecer proteção a uma minoria sempre
ameaçada. Nesse caso, havia até mesmo a disposição de tolerar práticas pagãs. É o
que mostra o exemplo da matrona Júlia Severa, que era ao mesmo tempo uma
benfeitora dos judeus na cidade de Akmonia, na Ásia Menor (CIJ II 766), e uma
sacerdotisa do culto pagão local37.Talvez se apoiassem, para justificar essas conces-
sões, no exemplo do general sírio Naaman, que o profeta Eliseu tinha autorizado

28]), Mateus 23,15 deve ser situado no pano de fundo de certas controvérsias por volta de 90 d.C.:
os fariseus quiseram impedir os “tementes a Deus” de aderir ao cristianismo, tentando vinculá-los
à observância da halakhah deles. Michael F. Bird (The Case of the Proselytizing Pharisees?
— ­Matthew 23.15, JSHJ 2 [2004] 117-137) defende a autenticidade do logion “censuring a ­Pharisaic
group for endeavouring to recruit Gentile adherents (God-fearers) to the cause of Jewish resistence
against Rome”.
36. Louis H. Feldman, Josephus X. Jewish Antiquities, Book XX, Cambridge (MA)/London,
Harvard University Press, 1981, 22, nota a.
37. Cf. Paul R. Trebilco, Jewish Communities in Asia Minor, Cambridge, Cambridge University
Press, 1991, 58-60 (MSSNTS 69).

153
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
a continuar a frequentar o culto do templo pagão como servidor do Estado (2Rs
5,17-19). Aos olhos de Helena e de Ananias, valia mais, para assegurar a proteção
do judaísmo em Adiabene, um rei temente a Deus e bem vivo do que um rei
prosélito circunciso, mas morto (cf. Ant 20,47).
Mais tarde, todavia, Izates deixar-se-á convencer pelo galileu Eleasar a se
fazer circuncidar. Como Josefo descreve esse judeu como “escrupuloso (avkribh,j)
em matéria de [prescrições] ancestrais” (Ant 20,43), isso significa provavelmente
que viu nele um fariseu (cf. Bell 1,110; Vita 191). O texto não diz que Eleasar
tenha ido visitar o rei com a intenção de levá-lo a se fazer circuncidar. Ao contrá-
rio, Eleasar “entrou para o saudar, e o encontrou prestes a ler a Lei de Moisés”
(Ant 20,44). Um elemento decisivo para a compreensão de toda a questão é o fato
de que o rei não se contentava em ser um “temente a Deus”, mas queria se tornar
um verdadeiro judeu. Josefo exprime essa intenção do rei em termos bem con-
tundentes: “Ele fazia todo o possível (e;speuse) para abraçar os costumes judaicos.
Pensava que não seria certamente judeu (ei=nai bebai,wj vIoudai/oj) se não estives-
se circunciso” (Ant 20,38). Eleasar levou esse desejo a sério e fez observar que
nessas circunstâncias a circuncisão era efetivamente indispensável (Ant 20,44-45).
Outra razão da posição de Eleasar pode ter sido o medo de que o exemplo do rei
contribuísse para esfumar as fronteiras entre judaísmo e paganismo.
Heinrich Graetz já chegara a supor que a afirmação de Jesus em Mateus
23,15 podia fazer específica referência a esse acontecimento38. Cronologicamen-
te, isso não teria nada de impossível, pois a rainha-mãe Helena já havia se unido
ao judaísmo por volta de 44 de nossa era, quando fez enviar ajuda material a Jeru-
salém por ocasião de um período de fome (Ant 20,51-53)39. Claro que tal relação
não pode ser demonstrada. Todavia, é possível compreender o logion de Mateus
23,15 contra o pano de fundo desses casos particulares. O sentido seria, então,
mais ou menos o seguinte: “Ainda que, excepcionalmente, chegueis a conquistar
um prosélito, então fazeis dele um filho da geena”. Ater-nos-emos, então, ao ve-
redicto de Hengel:“Não sabemos nada da existência de missionários judeus entre
os pagãos”40. Paulo tampouco era um velho missionário judeu que não teria mu-

38. Heinrich Graetz, Geschicht der Juden von den aeltesten Zeiten bis auf die Gegenwart, III/2,
­Leipzig, O. Leiner, 51906, 266, 403.
39. Cf. Rainer Riesner, Die Frühzeit des Apostels Paulus. Studien zur Chronologie, Missionstra-
tegie und Theologie, Tübingen, Mohr Siebeck, 1944, 117-118 (WUNT 71); ed. atualiz.: Paul’s
Early Period: Chronology, Missionstrategy and Theology, Grand Rapids [MI], Eerdmans, 1998.
40. Martin Hengel, Der vorchristliche Paulus, in Id., Ulrich Heckel (Hrsg.), Paulus und das
antike Judentum,Tübingen, Mohr Siebeck, 1991, 179-291 (WUNT 58):“Von besonderen jüdischen
Heidenmissionaren wissen wir […] nichts” (262).

154
III – Paulo antes de Paulo
dado de profissão, mas somente de confissão. Se quisermos nos interrogar sobre as
origens da missão de Paulo entre os pagãos, será preciso procurar outros motivos
explicativos além de sua herança judaica.

3. As origens da missão de Paulo entre os pagãos

3.1. Uma esperança para os pagãos no tempo messiânico

Em numerosos meios judaicos vivia-se a expectativa de ver os pagãos ade-


rirem à observância da Lei quando fosse estabelecida a soberania escatológica
do povo de Israel41. Nessa perspectiva, um texto teve uma influência particular-
mente forte: a profecia de Bileam (Nm 24,17) na versão da Septuaginta (FÍLON­,
VitMos 1,290; Praem 93-97 etc.). A conversão dos pagãos à Torá deve se realizar
como um acontecimento escatológico, no sentido da peregrinação das nações
mencionada no Antigo Testamento (Is 2,3; Mq 4,2). Essa expectativa se encon-
tra em fontes bem diversas, como Tobit 13,11, Sirácida 36,11-17 ou 4 Esdras
6,26. Mas não havia nenhuma razão para que essa expectativa no presente de-
sembocasse numa missão ativa entre os pagãos. Tratava-se, antes, de acelerar o
acontecimento da soberania de Israel sobre as nações a fim de chegar ao último
estado que era esperado42. Foram provavelmente as expectativas escatológicas
inspiradas por Números 24,17-19 que contribuíram para o desencadeamento
da guerra dos judeus contra Roma em 66-70. De fato, somente a palavra de
Bileam “de Jacó sobe uma estrela, de Israel surge um cetro” pode explicar a pas-
sagem em que Josefo fala de um “oráculo ambíguo (cresmo.j avmfi,boloj) que
encontramos nas sagradas Escrituras, segundo o qual naquele tempo um ho-
mem saído de seu país devia ter acesso à soberania sobre o mundo inteiro”
(Bell 6,312-313).
Numa corrente do judaísmo mantinha-se uma esperança ainda mais ampla
para os pagãos. Essa esperança se unia à profecia do Dêutero-Isaías segundo a qual
o Servo de Deus devia ser “a luz das nações” (Is 42,6; 49,6),“a fim de que a minha
[de Deus] salvação esteja presente até a extremidade da terra” (Is 49,6). No Livro

41. Cf. Peder Borgen, Proselytes, Conquest, and Mission, in Id.,Vernon K. Robbins, David
B. Gowler, Recruitment, Conquest, and Conflict: Strategies in Judaism, Early Christianity, and
the Greco-Roman World, Atlanta, Scholars Press, 1998, 57-77 (Emory Studies in Early Chris-
tianity 6).
42. Cf. Martin Hengel, Messianische Hoffnung und politischer “Radikalismus” in der jüdis-
chen Diaspora, in David Hellholm, Apocalypticism in the Ancient Near East and the Hellenistic World,
Tübingen, Mohr Siebeck, 21989, 655-686.

155
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
das Parábolas (1 Hen 37–71), que se datará com a maioria dos pesquisadores
como de antes de nossa era43, o Filho do homem de Daniel 7,13 é identificado
com o Servo de Deus:
Ele será a luz das nações, será a esperança dos que sofrem em seus corações.
Diante dele inclinar-se-ão e se prostrarão todos os habitantes do árido. Eles
glorificarão, bendirão e cantarão o Senhor dos Espíritos” (1 Hen 48,4-5, in
Ecrits intertestementaires, 518 [Pléiade]).
A salvação escatológica dos pagãos é o objeto de uma esperança particular-
mente viva nos Testamentos dos Doze Patriarcas (TSim 7,2; TLevi 18,2-9; TJudá
24,6; TDan 5,11; TZab 9,8; TBenj 10,10), nos Oráculos Sibilinos (OrSib 3,190-195)
e no Apocalipse de Abraão (ApAbr 29,11). Inclino-me a situar a origem desses escri-
tos nos círculos de hassidim, que têm, decerto, pontos de contato com o essenismo,
mas sem partilhar o caminho muito estreito deste último. Boccaccini fala a esse
propósito de um “judaísmo henoquiano”44. Julgo, com Bauckham45, que há in-
dícios de que as tradições sobre Henoc desempenharam um papel na família de
Jesus46. Da mesma maneira, o material próprio de Lucas, que vinculo aos círculos
judeu-cristãos conservadores na Judeia47, está marcado pela tradição sobre ­Henoc48.
Aalen já havia observado a propósito de Lucas 2,29-32:“O hino de louvor de Za-
carias testemunha, de fato, que as palavras de Isaías 42,6 e 49,6 permaneceram
vivas em certos círculos do judaísmo e foram também compreendidas de maneira

43. Cf. Paolo Sacchi, Henochgestalt/Henochliteratur, TRE 15 (1995) 42-54.


44. Gabriele Boccaccini, Beyond the Essene Hypothesis: The Parting of the Ways between
Qumran and Enochic Judaism, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998.
45. Richard Bauckham, Jude and the Relatives of Jesus in the Early Church, Edinburgh, T & T
Clark, 1990, 315-373.
46. Rainer Riesner, James, in John Barton, John Muddiman (ed.), The Oxford Bible Commen-
tary, Oxford, Oxford University Press, 2001, 1.255-1.263.
47. Rainer Riesner, Prägung und Herkunft der lukanischen Sonderüberlieferung, ThBeitr 24
(1993) 228-248; Id., James’ Speech (Acts 15:13-21), Simeon’s Hymn (Luke 2:29-32), and Luke’s
Sources, in Joel B. Green, Max Turner (ed.), Jesus of Nazareth: Lord and Christ (Festschrift I. Ho-
ward Marshall, Grand Rapids (MI)/Carlisle, Eerdmans, 1994, 263-278; Id., Das Lokalkolorit des
Lukas-Sonderguts: Italisch oder palästinisch-judenchristlich?, Liber Annuus 49 (1999) 51-64; Id.,
Die Emmaus-Erzählung (Lukas 24,13-35). Lukanische Theologie, judenchristliche Tradition und
palästinische Topographie, in Karl-Heinz Feckenstein, Mikko Louhivuori, Rainer Riesner
(Hrsg.), Emmausd in Judäa: Geschichte — Exegese — Archäologie, Gießen, Brunnen, 2003, 150-
207 (Biblische Archeologie un Zeitgeschichte 11); Id., Genesis 3,15 in vorlukanischer und johan-
neischer Tradition, SNTU.A 29 (2004) 119-178.
48. Cf. Sverre Aalen, St. Luke’s Gospel and the Last Chapters of I Enoch, NTS 13 (1966/67)
1-13; também George W. E. Nickelsburg, Riches, the Rich, and God’s Judgement in 1 Enoch 92-
105 and the Gospel according to Luke, NTS 25 (1979) 324-344.

156
III – Paulo antes de Paulo
viva”49. As diferentes correntes da tradição sinótica atestam de maneira unânime
que o próprio Jesus interpretou sua messianidade associando a figura do Filho do
homem e a do Servo de Deus. O fato de que Deus tenha confirmado essa preten-
são para a comunidade pós-pascal por meio da ressurreição de Jesus pode também
ter fomentado a esperança de ver a luz messiânica resplandecer para os pagãos. Em
todo caso, as expectativas da tradição henoquiana e dos Testamentos dos Doze Pa-
triarcas não contêm nenhuma indicação direta em favor de uma missão ativa junto
aos pagãos.

3.2. Uma ordem missionária proveniente do Ressuscitado?

A crer no evangelista Mateus, a missão entre os pagãos é já um resultado de


uma ordem dada pelo próprio Ressuscitado ao círculo dos discípulos. Na verdade,
três das mais recentes publicações sobre o envio em missão de Mateus 28,16-20
levam a conclusões totalmente diferentes. Para Ferdinand Hahn, esse texto, apesar
da “utilização de tradições cristãs primitivas”, não é “um documento tradicional
que possa ser utilizado ‘historicamente’ no sentido moderno do termo”50. Peter
Stuhlmacher admite totalmente que o evangelista manifestamente reelaborou de
modo redacional uma tradição judeu-cristã, mas julga que essa tradição remonta
aos próprios acontecimentos da Páscoa. A missão renovada confiada então pelo
Ressuscitado aos seus discípulos já devia conter o envio às nações e a ordem de
batizar. Stuhlmacher resume assim a significação de Mateus 28,16-20: “O Ku,rioj
vIhsou/j Cristo,j ressuscitado e elevado por Deus, ao preceder [seus discípulos] na
Galileia, deu uma expressão simbólica à sua função de pastor e de soberano. Quan-
do encontra os onze discípulos reunidos na montanha da Galileia, é na qualidade
de Filho do homem, de Daniel 7,13-14, elevado e revestido de toda a evxousi,a
divina, e encarrega-os então de cumprir a missão entre os pagãos”51. Schnabel, na

49. Sverre Aalen, Die Begriffe “Licht” und “Finsternis”, 225(cf. nota 14): “Das Loblied des Simon
ist ein Zeugnis dafür, daß die Worte Jes 42,6; 49,6 im Judentum in gewissen Kreisen lebendig
gewesen sind und auch verstanden wurden”.
50. Ferdinand Hahn, Der Sendungsauftrag des Auferstandenen Matthäus 28, 16-20, in Mission
in neutestamentlicher Sicht, Erlangen, Erlanger Verlag für Mission und Ökumene, 1999, 11-26 (Mis-
sionswissenschaftliche Forschungen. Neue Folge 8): “kein im modernen Sinn ‘historich’ verwert-
bares Überlieferungsstück” (23).
51. Peter Stuhlmacher, Zur missionsgeschichtlichen Bedeutung von Mt 28,16-20, in Biblische
Theologie und Evangelium, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, 88-118 (WUNT 146): “Der von Gott
auferweckte und erhöhte Ku,rioj vIhsou/j Cristo,j hat mit dem Vorangang nach Galiläa seinem
Hirten-und Herrschftsamt über das endzeitliche Reich Davids symbolischen Ausdruck verliehen.
Er begegnet den auf dem Berg in Galiläa versammelten elf Jüngern als der gemäß Dan 7,13-14

157
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
obra monumental que publicou sobre a missão cristã das origens, uniu-se à opi-
nião de Stuhlmacher52.
Em favor da interpretação de Stuhlmacher pode-se invocar não somente a
tradição pré-mateana, mas também a tradição própria de Lucas (Lc 24,47), bem
como o fim secundário de Marcos (Mc 16,15), que, em minha opinião, é inde-
pendente de Mateus e de Lucas: outros tantos textos que atribuem ao próprio
Ressuscitado a ordem de conquistar para o Evangelho o mundo das nações. Se
adotarmos tal reconstrução, deveremos, naturalmente, tentar explicar por que a
comunidade primitiva de Jerusalém não começou logo a executar essa ordem
missionária, mas somente, segundo o relato do livro dos Atos, no fim de um pro-
cesso longo e complexo. Convém observar aqui que a formulação de Lucas
24,47-48 é menos explícita que a de Mateus 28,18:
Em seu nome se pregará a conversão e o perdão dos pecados a todas as na-
ções (eivj pa,nta ta. e;qnh), a começar por Jerusalém. E vós sois as testemunhas
disso.
Se esse texto estivesse próximo da origem, compreender-se-iam melhor
certos aspectos da história da missão cristã em seu início. A ordem missionária do
Ressuscitado teria, decerto, considerado o horizonte da missão junto às nações,
mas sem fixar concretamente seu início. De acordo com as expectativas do Antigo
Testamento, e parcialmente também do judaísmo antigo, a primeira comunidade
dos discípulos teria visto, também ela, na conversão e na renovação de Israel, o
povo de Deus, uma condição prévia e necessária para que a salvação chegasse às
nações. Isso poderia explicar o apego pertinaz do judeu-cristianismo conservador
a Jerusalém como centro de sua existência. Foram as experiências carismáticas de
certos indivíduos, mas também as circunstâncias providenciais e a perseguição
que fizeram amadurecer no judeu-cristianismo o reconhecimento do fato de que
poderia haver uma missão ativa junto aos pagãos sem esperar que Israel em sua
totalidade tivesse sido conquistado para a fé53. A seu modo, Paulo também dá
testemunho da força da convicção segundo a qual a conversão de Israel era uma
condição da missão junto às nações. Ainda na epístola aos Romanos ele formula
esta frase, que tem todo o ar do anúncio de um princípio: “do judeu primeiro
(prw/ton), e depois do grego” (Rm 1,16). E para o apóstolo a reintegração tão
ardorosamente desejada de Israel em sua totalidade não será nada menos que “a

erhöhte, mit aller göttlichen evxousi,a ausgestattete Menschensohn, und er beauftragt sie mit dem
Vollzung der Völkermission” (104).
52. Eckhard J. Schnabel, Urchristliche Mission, Wuppertal, Brockhaus, 2002, 347.
53. Rainer Riesner, Die Frühzeit des Apostels Paulus, 95-120 (cf. nota 39).

158
III – Paulo antes de Paulo
passagem da morte para a vida (zwh. evk nekrw/n)” (Rm 11,15). Mas como o pró-
prio Paulo se tornou missionário junto às nações?

3.3. O chamado de Paulo para ser missionário entre os pagãos

Ao partir da observação de Paulo na primeira epístola aos Coríntios,“Cristo


não me enviou para batizar” (1Cor 1,17: ouv ga.r avpe,steile,n me Cristo.j
bapti,zein), Theodor Zahn concluía que o apóstolo tinha conhecido a ordem de
batizar dada aos Onze (Mt 28,19)54. Segundo a análise de Stuhlmacher, isso não
seria possível. Como ficará claro a seguir, pressuponho com segurança haver no
apóstolo um conhecimento profundo das tradições de Jesus. Mas a abordagem
feita por Zahn a respeito desse ponto particular não me convenceu.
Paulo pode ter aderido bem cedo à ideia da missão entre os pagãos se se
admite que a comunidade de Damasco tivesse sido fundada por “helênicos”,
abertos a tal procedimento. Mas Lucas não menciona essa cidade entre os lugares
de refúgio dos helênicos (At 11,19). Lohmeyer defendeu a hipótese de que a me-
trópole da Síria meridional foi um lugar de missão dos ascendentes de Jesus55;
vários indícios podem ser citados como apoio dessa hipótese56. Parece que a co-
munidade de Damasco foi fortemente marcada por judeu-cristãos que, como
Ananias, tinham uma origem essênia ou hassidiana57. Como se sabe, encontra-
mos em Paulo certos elementos que fazem eco ao vocabulário e ao pensamento
de Qumran, o que é de causar muito espanto para um velho fariseu. Parece-me
que esses pontos de contato são muito marcantes para poderem ser explicados
unicamente com base no enraizamento comum no Antigo Testamento das dife-
rentes correntes do judaísmo antigo. Hengel58 supõe que Paulo, antes do chama-
do de Damasco, teve contatos ocasionais com o bairro essênio de Jerusalém59. Essa
hipótese pode explicar muitas coisas, mas não é suficiente para esclarecer tudo.
Imediatamente após a descoberta dos escritos de Qumran, Grossow60 e Danié-

54.Theodor Zahn, Das Evangelium des Matthäus, Leipzig, Deichert, 1903, 713, nota 12 (KNT I).
55. Ernst Lohmeyer, Galiläa und Jerusalem, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1936, 54-55
(FRLANT 34).
56. Cf. Rainer Riesner, Bethanien jenseits des Jordan. Topographie und Theologie im Johannes-
Evangelium, Gießen, Brunnen, 2002, 116 s. (Biblische Archeologie und Zeitgeschichte 12).
57. Cf. Rainer Riesner, Die Frühzeit des Apostels Paulus, 76 s. (cf. nota 39).
58. Martin Hengel, Der vorchristliche Paulus, 245, 252-254 (cf. nota 40).
59. Cf. também Rainer Riesner, Essener und Urgemeinde in Jerusalem. Neue Funde und Quellen,
Gießen, Brunnen, 1998 (Biblische Archeologie und Zeitgeschichete 6).
60. Willem Grossouw, The Dead Sea Scrolls and the New Testament, SC 27 (1952) 1-8 (6).

159
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
lou61 já defenderam a ideia de que Paulo tinha estado em relação com um ju-
deu-cristianismo de coloração parcialmente essênia62. Essa ideia não deve ser
confundida com a tese de Watson63, segundo a qual Paulo teria pertencido pri-
meiro a um grupo judeu-cristão, que se julgava ele próprio exclusivamente ser
um movimento de renovação dentro do judaísmo. Como esse movimento fica-
ra sem grande sucesso, Paulo, por pura decepção, teria se consagrado à missão
entre os pagãos. Não podemos aqui senão subscrever o julgamento de Murphy
O’Connor segundo o qual essa hipótese está desprovida de qualquer base
textual64.
Certos elementos podem indicar que foi junto dos judeu-cristãos de Da-
masco que Paulo se fez atento ao significado das profecias do Dêutero-Isaías so-
bre o Servo de Deus como “luz das nações”. Das seis alusões mais evidentes do
Novo Testamento a Isaías 42,6 e 49,6, pelo menos quatro pertencem à tradi-
ção própria de Lucas: Lucas 2,30.32 ou Lucas 2,32; Atos 1,8 (cf. At 13,47), Apo-
calipse 7,465. Se confirmadas como certas nossas hipóteses segundo as quais a
comunidade de Damasco foi fundada por membros da família de Jesus e a tradi-
ção própria de Lucas busca sua origem nesses mesmos círculos, podemos, então,
admitir também que a esperança da luz messiânica para as nações estava presente
nessa mesma comunidade. As afirmações de Isaías 42,6 e 49,6 desempenharam
um papel muito importante no desenvolvimento da teologia missionária de
Paulo66. Se se considera a literatura rabínica como um reflexo da teologia farisai-
ca, vê-se que essas duas passagens bíblicas estão quase desprovidas ali de significa-
ção (Billerbeck II 139). Paulo, em contrapartida, refere-se a essas profecias preci-
samente em relação à sua experiência de Damasco (Gl 1,15-16)67. O que ele
próprio viveu como uma aparição do Ressuscitado no esplendor da luz divina

61. Jean Danielou, Qumran und der Ursprung des Christentums, Mainz, Grünewald, 1958, 133-135;
ed. orig. fr.: Les manuscrits de la Mer Morte et les origines du christianisme, Paris, Editions de l’Orante, 1957.
62.Ver também Marie-Françoise Baslez, Saint Paul, Paris, Fayard, 1991, 102-103; Etienne No-
det, Justin Taylor, The Origins of Christianity: An Exploration, Collegeville, Liturgical Press, 1998,
325-326; ed. fr.: Essai sur les origines du christianisme. Une secte éclatée, Paris, Cerf, 1998.
63. Francis Watson, Paul, Judaism and Gentiles: A Sociological Approach, Cambridge, Cambridge
University Press, 1986, 28-38 (MSSNTS 56).
64. Jerome Murphy O’Connor, Paul: A Critical Life, Oxford, Clarendon Press, 1996, 80.
65. Parece-me que certos indícios falam em favor da ideia de que, em Atos 13,16-41, Lucas
utilizou igualmente materiais de uma tradição particular de proveniência judaica (ver em particular
a surpreendente menção de João Batista no contexto de At 13,23-25).
66. Cf. Kark Olav Sandnes, Paul — One of the Prophets? A Contribution to the Apostle’s Self-
understanding, Tübingen, Mohr Siebeck, 1991, 58-78 (WUNT II/43).
67. Cf. Seyoon Kim, Isaiah 42 and Paul’s Call, in Paul and the New Perspective, Tübingen, Mohr
Siebeck, 2002, 101-127 (WUNT 140).

160
III – Paulo antes de Paulo
(2Cor 4,4-6) pôde também interpretar teologicamente contra o pano de fundo
dessas passagens do Antigo Testamento.
Saber se se deve chamar a experiência de Damasco de uma conversão ou de
uma vocação é hoje objeto de disputa. Uma boa resposta está em afirmar com
firmeza que é uma e outra. O livro sobre Paulo do especialista judeu Segal, con-
troverso em vários pontos, pode nos ajudar a ver que não se tratou apenas da
transmissão de uma nova tarefa, mas também de uma verdadeira conversão68.
Damasco tampouco foi apenas a confirmação visionária das esperanças apocalíp-
ticas pessoais do fariseu Saulo69. Com base em tudo o que temos hoje, a ideia de
um Messias crucificado não fazia parte das expectativas do judaísmo daquele tem-
po (Gl 3,13; ver Dt 21,23; 27,26). Segundo as declarações do próprio Paulo, sua
vocação como apóstolo das nações remonta também a seu encontro com o Res-
suscitado em Damasco:
Quando Aquele que me pôs à parte desde o seio de minha mãe e me cha-
mou por sua graça houve por bem revelar em mim o seu Filho, a fim de que
eu o anuncie entre os pagãos ( i[na euvaggeli,zwmai auvto.n evn toi/j e;qnesin)
(Gl 1,15 s.).
Hegel e Schwemer reuniram argumentos de peso para mostrar que Paulo,
no reino dos nabateus, logo após seu chamado, dirigiu-se não somente aos judeus,
mas também aos pagãos70. Lucas, todavia, parece apresentar uma imagem bem di-
ferente. Segundo ele também, a tarefa confiada a Paulo pelo Ressuscitado incluía
já a missão entre as nações (At 9,15; 22,15; 26,17-18). Mas, ao mesmo tempo,
­Lucas afirma que Paulo recebeu o convite explícito para começar a missão entre
os pagãos não já em Damasco, mas somente mais tarde, quando de uma visita ul-
terior a Jerusalém. Quando estava em oração no Templo, Paulo teria entrado em
êxtase e ouvido a voz de Deus que lhe ordenava deixar Jerusalém (At 22,17-18).
Paulo teria resistido a essa ordem, ao se referir ao fato de que, como velho perse-
guidor, seu testemunho na Cidade santa devia ser particularmente eficaz
(At 22,19). Mas Deus teria superado essa objeção ao lhe dar uma ordem brusca:
“Vai (poreu,ou), é para longe, para as nações pagãs que eu vou te enviar!” (At 22,21).

68. Alan F. Segal, Paul the Convert: The Apostolate and Apostacy of Paul the Pharisee, New Ha-
ven/London,Yale University Press, 1990.
69. Nesse sentido, ver Richard A. Horsley, Neil A. Silberman, The Message and the Kingdom,
New York, Putnam, 1997, 121-124; Neil Elliott, Paul and the Politics of Empire: Problems and
Prospects, in Richard A. Horsley (ed.), Paul and Politics: Ekklesia, Israel, Imperium, Interpretation.
Essays in Honor of Krister Stendahl, Harrisburg, Trinity Press International, 2000, 17-39 (22-24).
70. Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paulus zwischen Damaskus und Antiochien. Die un-
bekannten Jahre des Apostels, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, 174-213 (WUNT 108).

161
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
O texto de Atos 26,20 pressupõe explicitamente que Paulo — “aos habitantes de
Damasco primeiro, e de Jerusalém, em todo o território da Judeia” — pregou
somente aos judeus (ver At 9,20-23.28-30)71.
É difícil imaginar por qual motivo Lucas teria inventado essa afirmação sin-
gular. Se a tivesse feito, teria privado Paulo, seu “herói”, da glória de ter sido o
primeiro a começar a missão entre os pagãos. Se Lucas tivesse desejado mostrar,
portanto, a presença de Pedro em matéria de missão entre os pagãos, sua tentativa
teria fracassado, pois Paulo, mesmo começando sua atividade com um pouco de
atraso, teria iniciado o trabalho antes de Pedro (At 10). Além disso, na apresenta-
ção de Lucas, os primeiros a pregar o Cristo aos pagãos de maneira decidida não
são nem Pedro nem Paulo, mas certos helênicos anônimos que tinham sido ex-
pulsos para Antioquia (At 11,20). E esse último elemento não tem nenhuma apa-
rência de ser redacional, mas perfeitamente histórico. Lucas chega a dizer que os
helênicos em Antioquia não se voltaram imediatamente para os pagãos, mas tam-
bém lá se dirigiram primeiro aos judeus (At 11,19).
Lucas permite ainda que se veja com muita clareza como foi difícil para o
cristianismo primitivo lançar-se efetivamente à missão entre os pagãos. Ao consi-
derar esse fato, deveria ser possível conciliar de algum modo fontes que aparente-
mente se contradizem. Com Jeremias, penso que em Gálatas 1,16 “o ‘a fim de que’
designa o projeto divino e não um acontecimento do presente imediato”72. Para
Paulo, como para os apóstolos de Jerusalém, o horizonte da missão escatológica
entre as nações foi aberto pelo encontro com o Ressuscitado. Mas a partida con-
creta dessa missão não se mostrou menos difícil para Paulo do que para eles. Foi
necessário que ele vivesse uma experiência espiritual no Templo.Talvez encontre-
mos um vestígio disso em Romanos 15,19, quando Paulo diz que sua pregação
do Evangelho começou em Jerusalém73. Kim vê no pano de fundo do musth,rion
de Romanos 11,25-26 uma exegese de Isaías 6 (a visão do profeta no Templo),
que aprofundaria suas raízes no acontecimento de Damasco74. Mas Paulo não

71. Ver Charles K. Barrett, The Acts of the Apostles, Edinburgh, T & T Clark, 1998, v. 2, 1.163
(ICC). A sintaxe da frase é difícil. Pode ser que Lucas ou sua tradição judeu-cristã considere Da-
masco pertencente teologicamente a Erets Israel. Sobre a possibilidade de uma influência semítica,
ver James H. Hopes, The Text of Acts (The Beginnings of Christianity I: The Acts of the Apostles),
London, Macmillan, 1925, 237.
72. Joachim Jeremias, Der Schlüssel zur Theologie des Apostels Paulus, Stuttgart, Calwer Verlag,
1971, 26 (CwH 15): “bezeichnet […] das ‘damit’ die göttliche Absicht, nicht einen gegenwärtigen
Vorgang”.
73. Cf. Rainer Riesner, Die Frühzeit des Apostels Paulus, 233-234 (cf. nota 39).
74. Seyoon Kim, The “Mystery” of Romans 11:25-26 Once More, in Paul and the New Perspec-
tive, 239-258 (cf. nota 67).

162
III – Paulo antes de Paulo
poderia também ter recebido o entendimento desse “mistério” por ocasião dessa
visão no Templo (por volta de 33, 34 d.C.) de que fala Lucas? Betz já observara
que em Atos 22,17-22 restam ecos de Isaías 6,6-875.
Os pontos que desenvolvi até aqui deveriam ter esclarecido a tese que for-
mulei no início: num primeiro momento, no que se refere à sua missão, Paulo não
deve nada à sua herança judaica. O fato de ele ter se tornado o missionário dos
pagãos não se explica a partir dessa herança, mas tem suas origens nas experiências
pascais. Na medida em que existiam esperanças escatológicas judaicas para o
mundo das nações, elas foram, antes, obstáculo ao desenvolvimento da missão,
pois faziam passar a salvação dos pagãos pela total restauração de Israel. Numa
última parte, que, infelizmente, será muito breve, temos de analisar ainda o que
Paulo deve à sua herança judaica na prática de sua missão e na formulação de sua
teologia missionária.

4. A herança judaica na missão de Paulo

4.1. Os “tementes a Deus”

Tanto para a iniciação de sua missão como para a elaboração de sua teologia
missionária, Paulo é extremamente devedor da herança do judaísmo helênico.
Feldman resumiu de modo magistral o que constituía a força de atração do ju-
daísmo para os pagãos na Antiguidade76. Os elementos a ser postos em evidência
são a antiguidade da religião judaica, o monoteísmo estrito, a figura de Moisés
como legislador ideal, a posse de escritos sagrados muito antigos e a importância
dada à ética, entre outros. Nas sinagogas da diáspora, o Antigo Testamento em
tradução grega era acessível a todas as pessoas interessadas. Por ver o modo de vida
exemplar das comunidades judaicas e por ter a possibilidade de participar do culto
na sinagoga, um número importante de pagãos aderiu à fé no Deus único de Is-
rael. No seio das comunidades messiânicas havia pouco fundadas, Paulo pôde
poupar-se, e muito, a entrar em debate com o politeísmo e a moral pagã, pois a
apologética sinagogal já havia, com sucesso, feito o trabalho em seu lugar. A escas-

75. Otto Betz, Die Vision des Paulus im Tempel von Jerusalem. Apg 22,17-21 als Beitrag zur
Deutung des Damaskuserlebnisses, in Otto Böcher, Klaus Haacker (Hrsg.), Verborum Veritas
(Festschrift Gustav Stählin), Wuppertal, Brockhaus, 1970, 113-124; retomado em: Jesus — Der Herr
der Kirche. Aufsätze zur Biblischen Theologie II, Tübingen, Mohr Siebeck, 91-102 [WUNT 52].
76. Louis H. Feldman, Jew and Gentile in the Ancient World, 177-286 (cf. nota 25). Cf. também
Irina Levinskaya, The Book of Acts in Its Diaspora Setting , Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1996, 51-
126 (The Book of Acts in Its First Century Setting 5).

163
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
sez da polêmica contra o paganismo nas cartas de Paulo mostra, a seu modo, que
foi no meio ambiente das sinagogas que o apóstolo recrutou os membros de suas
comunidades, homens e, sobretudo, mulheres. Essa constatação até levou Reiser a
lançar a provocadora questão: Paulo realmente converteu pagãos?77. Quando
Reinbold contesta ter havido nas comunidades paulinas forte proporção de an-
ciãos simpatizantes do judaísmo, é obrigado, entre outros, a admitir que o apósto-
lo, ao enviar cartas cheias de referências ao Antigo Testamento e ao judaísmo,
“manifestamente pediu muito a seus leitores”78.

4.2. A interpretação da Escritura

O que contribuiu para o poder de atração do judaísmo é que, como religião,


ele possuía, aos olhos dos observadores antigos, um caráter espantosamente inte-
lectual. No centro do culto sinagogal havia a leitura e a explicação das sagradas
Escrituras. Fílon de Alexandria podia, sem precisar corar, chamar as sinagogas de
“escolas (didaskalei/a)” e a atividade dos judeus no sábado de um “estudo da filo-
sofia (filosofei/n)” (Op 128; Decal 98.100; SpecLeg 1,61-62; VitMos 2,215s). A
maneira como Paulo interpretou o Antigo Testamento pode muitas vezes parecer
estranha a nós modernos. Mas as regras hermenêuticas que utilizou e que tomou
emprestado às escolas judaicas helenísticas79 demonstraram a muitos de seus ou-
vintes — homens e mulheres — que ele estava intelectualmente capacitado a
suportar a concorrência. Deve-se ao fato de que nas escolas se ensinavam também
os princípios da retórica antiga encontrar nas cartas de Paulo não somente mani-
festações de sentimento religioso, mas também, em grande parte, uma argumen-
tação teológica construída de maneira refletida. Bastará neste contexto dar um só
exemplo. Quando Paulo desenvolve, com base em Isaías 66,18-21, um programa
missionário para grande parte do mundo então conhecido80, pode assumir para
isso conhecimentos geográficos que eram também os dos rabinos81.

77. Marius Reiser, Hat Paulus Heiden bekehrt?, BZ 39 (1995) 76-91.


78. Wolfgang Reinbold, Propaganda und Mission im ältesten Christentum. Eine Untersuchung zu
den Modalitäten der Ausbreitung der frühen Kirche, Göttingen,Vandenhoekc & Ruprecht, 2000,
180, nota 163 (FRLANT 188): “seine Leser notorisch überfordert hat”.
79. Cf. Martin Hengel, Der vorchristliche Paulus, 256-265 (cf. nota 40).
80. Cf. Rainer Riesner, Die Frühzeit des Apostels Paulu, 216-225 (cf. nota 39).
81. Cf. J. Martin C. Scott, Paul’s “Imago Mundi” and Scripture, in Jostein Ådna, Scott J. Hafe-
mann, Otfried Hofius (Hrsg.), Evangelium — Schriftauslegung — Kirche. Festschrift für Peter Stuhla-
macher, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1997, 366-381.

164
III – Paulo antes de Paulo
4.3. A transmissão da tradição

De seu período farisaico Paulo tinha aprendido que não se pode garantir a
coesão de uma comunidade unicamente com a ajuda de uma teologia inte-
lectual, mas que se tem necessidade também de uma tradição bem estruturada.
Por duas vezes, o apóstolo transmite tradições de Jesus, utilizando terminologia
técnica da transmissão (paradido,nai, paralamba,nein, 1Cor  11,23; 15,3) que
tem seu paralelo mais estreito na Mishnah (rsm, lbq [mAbot 1,1]). Já na escola
elementar da sinagoga e depois na casa de estudo de Gamaliel (At  22,3; cf.
Gl 1,14), Paulo aprendera a “receber e transmitir”82 tradições bem estruturadas.
Tenho relativa certeza de que o apóstolo, na “escola de Tirano” (At 19,9), não se
contentou, durante dois anos (At 19,10), em aborrecer seus ouvintes — homens
e mulheres — com intermináveis pregações, mas que também lhes transmitiu
tradições que eles deviam adquirir e que podiam conservar e continuar a medi-
tar de modo independente. Se consideramos o fato de que Paulo transmitiu a
tradição de Jesus sobre o modo da organização tradicional das escolas judaicas,
podemos compreender por que faz alusão a essa tradição com muito mais fre-
quência do que a cita83. O apóstolo podia muitas vezes pressupor nos destinatá-
rios de suas cartas um conhecimento importante não somente do Antigo Testa-
mento, mas também das tradições de Jesus. Sou de opinião que Wenham84 e
Kim85, com sua visão otimista sobre essa questão, têm razão. Podemos até ir mais
longe que eles e descobrir outras tradições utilizadas por Paulo. Encontramos,
por exemplo, um número espantosamente grande de referências, em parte igno-
radas, à palavra de Jesus sobre o resgate (lu,tron, Mc 10,45 e Mt 20,28)86. Quan-
do se trata da questão da herança judaica de Paulo, pode-se incluir aí, com certa
justificação, a tradição de Jesus.

82. Cf. Rainer Riesner, Jesus als Lehrer. Die jüdische Volksbildung und der Ursprung der Jesus-
Überlieferung, Tübingen, Mohr Siebeck, 42005 (WUNT II/7).
83. Cf. Rainer Riesner, Paulus und die Jesus-Überlieferung, in Jostein Ådna, Scott J. Hafemann,
Otfried Hofius (Hrsg.), Evangelium — Schriftauslegung — Kirche, 347-365 (cf. nota 81).
84. David Wenham, Paulus — Jünger Jesu oder Begründer des Christentums?, Paderborn, Bonifatius,
1999; ed. orig. ingl.: Paul: Follower of Jesus or Founder of Christianity?, Grand Rapids (MI)/Carlisle,
Eerdmans, 1995.
85. Seyoon Kim, The Jesus Tradition in Paul, in Paul and the New Perspective, 259-292 (cf.
nota 67).
86. Cf. Rainer Riesner, Back to the Historical Jesus Through Paul and His School (The Ran-
som Logion — Mark 10:45; Matthew 20:28), Journal for the Study of the Historical Jesus 1 (2003)
171-199.

165
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
5. Dois teólogos judeu-cristãos da missão: Paulo e Jakob Jocz

Entre os teólogos que não deveriam ser esquecidos no diálogo entre judeus
e cristãos, deve-se contar Jakob Jocz, um homem que, em sua época, teve total
reconhecimento e consideração. Esse judeu-cristão húngaro obteve uma dupla
promoção na Universidade de Edimburgo e ensinou depois como professor de
teologia sistemática no Wycliffe College da Universidade de Toronto. Jocz, du-
rante os anos de 1950 e 1960, esforçou-se por lembrar duas verdades ao movi-
mento ecumênico. A primeira dessas verdades, que então não tinham sido ainda
largamente popularizadas, consiste em reconhecer quanto a Igreja deve a Israel e
até que ponto ela prejudicou o judaísmo87. A segunda verdade, que já nessa época
começava a se tornar impopular, é a afirmação de que a missão é para a Igreja
uma função vital que ela não pode abandonar. Jocz, o judeu-cristão, via precisa-
mente na missão uma differentia specifica do cristianismo em relação ao judaísmo.
De maneira totalmente justificada, ele considerava essa diferença uma conse-
quência inevitável da cristologia. Jocz concluía com estas palavras uma exposição
que a revista Judaica publicou como caderno especial, em 1968: “Temos de lem-
brar que se a cristandade não tem mais uma mensagem para os judeus tampouco
a tem para o mundo. E, se a Igreja tem realmente uma mensagem universal de
salvação, ela pode descobri-la sempre de novo no encontro com o judaísmo, pois
a mensagem de alegria de Jesus Cristo, o Kyrios, faz conhecer o amor de Deus
por todo o mundo”88.
Jocz, todavia, jamais se cansou de afirmar com veemência que a missão só é
verdadeira quando se mantém distante de todo triunfalismo e de todo colonialis-
mo e quando segue, em vez disso, o caminho do Servo de Deus sofredor. Nisso
Jocz tinha a seu lado, naturalmente, Paulo, o outro grande teólogo judeu-cristão
da missão89. Para Paulo, com efeito, o encontro com o Ressuscitado e a experiên-
cia do sofrimento apostólico andaram juntos desde o início. Em 2 Coríntios 11, o
apóstolo conclui a longa enumeração dos maus-tratos e das penas que suportou
lembrando a maneira como teve de fugir de Damasco nas circunstâncias mais

87. Jakob Jocz, The Jewish People and Jesus Christ: A Study in the Relationship Between the
Jewish People and Jesus Christ, London, SPCK, 1949.
88. Id., Christen und Juden, Zurich/Stuttgart, Zwingli Verlag, 1968, 87.
89. Cf. Scott J. Hafemann, The Role of Suffering in the Mission of Paul, in Jostein Ådna, Hans
Kvalbein (ed.), The Mission of the Early Church to Jews and Gentiles, 165-168 (cf. nota 27); Hanna
Stettler, An Interpretation of Colossians 1:24 in the Framework of Paul’s Mission Theology, in
Jostein Ådna, Hans Kvalbein (ed.), The Mission of the Early Church to Jews and Gentiles, 185-208.

166
III – Paulo antes de Paulo
i­gnominiosas90. Hoje quase não há mais perseguições dos cristãos, a não ser no
terceiro mundo. Essas perseguições têm às vezes causas sociais e políticas. Mas
com frequência estão ligadas ao fato de que comunidades no terceiro mundo le-
vam a sério estas palavras de Paulo: “Se eu ainda agradasse aos homens, não seria
mais servo de Cristo” (Gl 1,10).

90. Cf. Ulrich Heckel, Kraft in Schwachheit. Untersuchungen zu 2. Kor 10-13, Tübingen, Mohr
Siebeck, 1993, 38 s. (WUNT II/56).

167
A herança judaica de Paulo e os inícios de sua missão
Situar Paulo à sombra do Império: prática
apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
Neil ELLIOTT (Minneapolis, EUA)

Estudos recentes mostram que o cristianismo de Paulo é mais político do que habitual-
mente admitido. A importância que ele atribui à pobreza e sua crítica insidiosa da ideolo-
gia imperial o atestam. Além disso, Paulo descreve seu próprio ministério apostólico segun-
do os termos do cerimonial imperial. A atenção que dá às pressões imperiais exercidas nos
conflitos entre judeus e pagãos permite-nos compreender a teologia de Paulo, em particular
em Romanos, como mais crítica em relação à ideologia imperial do que tradicionalmente
reconhecido.

H á alguns anos, o grupo de pesquisa sobre a teologia paulina na Society of


Biblical Literature (SBL) completou seu trabalho e, então, se pôs a seguin-
te questão: o que faremos a partir de agora? Por ocasião de uma reunião que se
seguiu, Frederick Danker propôs continuar o estudo do pensamento de Paulo e
de sua atividade apostólica, situando-os no contexto das realidades sociais, eco-
nômicas e políticas do Império Romano. Sua sugestão foi acolhida então por
um longo silêncio. No ano seguinte, todavia, inaugurou-se na SBL uma nova
Consultation on Paul and Politics. E os anos que se seguiram deram origem a
estudos de qualidade que recolocavam claramente Paulo no contexto do Impé-
rio Romano.
Não pretendo aqui passar em revista de modo detalhado esses estudos. Antes,
proponho-me evidenciar alguns problemas que prendem a atenção da pesquisa
atual e indicar algumas novas pistas a ser exploradas.

169
1. Uma imagem mais complexa da “cristandade paulina”

A pesquisa referente ao “mundo social” das Igrejas em que Paulo exerceu


sua missão já tem uma história bem longa e importante. Os trabalhos de Edwin
A. Judge e, um pouco mais tarde, os de Gerd Theissen e Wayne Meeks contribuí-
ram para criar uma espécie de “imagem comumente aceita” da cristandade pau-
lina1. Esses historiadores da sociedade procuraram substituir por uma imagem
mais matizada a visão anterior, muito romântica, de um proletariado urbano
oprimido que engrossava as fileiras das comunidades paulinas. Sim, a sociedade
romana era fortemente estratificada, mas a riqueza e a situação na ordem social
não eram os únicos fatores que determinavam o status do indivíduo. O sexo, a
idade e a condição — de escravo, de homem livre, ou ainda de alforriado que
continuava com a obrigação de trabalhar para seu antigo senhor — podiam con-
trabalançar o peso da riqueza pessoal. Um status adquirido podia se mostrar tão
importante quanto o status determinado por um nascimento nobre ou modesto.
Os estudos de Meeks concedem amplo espaço a uma importante classe média
constituída por artesãos e pequenos empresários.Têm elas como leitmotiv a noção
de “ambivalência de status” (status ambivalence) e a de uma ansiedade, muito vaga e
mal definida, ligada ao status.
Meeks e Theissen concentraram-se principalmente nas cartas aos coríntios,
que constituem a mais importante mina de informações a respeito do status social
das Igrejas paulinas. Para esses dois especialistas a verdadeira questão é esta: Como
funcionou a “cristandade paulina”?. Como ela disfarçou as diferenças e as dispari-
dades de status criando e mantendo um sentimento difuso, mas pessoalmente vi-
vido, de ethos comunitário? Esse “patriarcalismo do amor”, segundo a expressão
de Theissen, garantiu a perenidade das comunidades paulinas ao atenuar as ten-
sões lá onde as classes sociais se desafiavam mutuamente2.
A sociologia amplamente eclética mas essencialmente funcionalista que ins-
pira esses estudos foi objeto de crítica. Efetivamente, essa abordagem precisa ser
questionada, uma vez que postula a existência de uma ampla unidade orgânica e

1. Abraham Malherbe falou de um “new consensus” em Social Aspects of Early Christianity


(Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1977, 31), ao se referir aos seguintes trabalhos:
Edwin Judge, The Social Pattern of Christian Groups in the First Century, London,Tyndale Press, 1960;
Wayne A. Meeks, The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul, New Haven/
London,Yale University Press, 1983; Gerd Theissen, The Social Setting of Pauline Christianity: Essays
on Corinth, trad. John Schütz, Philadelphia, Fortress Press, 1978. Para uma crítica, reportar-se a
Justin J. Meggitt, Paul, Poverty, and Survival, Edinburgh, T & T Clark, 1998, 99-154 (Studies of the
New Testament and its World).
2. Cf. Gerd Theissen, The Social Setting of Pauline Christianity (cf. nota 1).

170
III – Paulo antes de Paulo
se pergunta apenas como as Igrejas paulinas “se integram” na sociedade circunvi-
zinha3. Mas subestima muito a duríssima pobreza na qual a maior parte dos con-
temporâneos de Paulo era obrigada a viver, mesmo nas colônias de conhecida
prosperidade, como Corinto4. É possível que ela conceda muita importância ao
“cristianismo burguês” que nos fazem conhecer as cartas pseudepigráficas de
Paulo ao postular a existência de uma “escola paulina” ou de uma “tradição pau-
lina” orgânica que atravessaria o tempo e o espaço5. Por ocasião de um recente
encontro da SBL (Toronto, novembro de 2002), no contexto da seção Paul and
Politics, Steve Friesen demonstrou que a inovação mais surpreendente nos traba-
lhos de Meeks e Theissen é o retraimento da categoria da pobreza em proveito de
uma concentração quase exclusiva nas questões ligadas ao status social individual.
Justin Meggitt veio confirmar o ensaio de Friesen ao ressaltar que a pobreza en-
dêmica foi o fato social essencial no meio em que Paulo vivia6.
Mas o modelo funcionalista foi também contestado por dentro. Os estudos
sobre o patronato romano (roman patronage) foram muitas vezes guiados por pre-
missas funcionalistas, apresentando a “relação patrão–cliente” como um elemento
fundamental da economia política romana. Mas observar isso é um convite a to-
mar consciência do fato de que o patronato é organizado em torno da desigual-
dade e da exploração do mais fraco pelo mais forte. A sinceridade com a qual al-
guns estudos recentes descreveram a exploração que caracteriza a natureza da
economia romana7 caminha no sentido dessa tomada de consciência; está também
apoiada por estudos sobre a retórica de Paulo na correspondência coríntia que
trazem a lume a resistência do apóstolo às pressões exercidas pelo sistema do pa-
tronato8. Do mesmo modo, certos estudos sobre 1 Coríntios e Filêmon, escritos
durante os 25 últimos anos, desenharam uma imagem de Paulo e de seu compro-

3. Mary Ann Tolbert, Social, Sociological, and Anthropological Methods, in Elisabeth


­Schüssler-Fiorenza (ed.), Searching the Scriptures, New York, Crossroad, 1993, v. 1, 225-271.
4. Justin J. Meggitt, Paul, Poverty and Survival, 155-164 (cf. nota 1); Neil Elliot, Liberating Paul:
The Justice of God and the Politics of the Apostle, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994, 57-66.
5. Ibid., 25-54.
6. Cf. Stephen Friesen, Poor Paul; Justin J. Meggitt, The Peril of Neglecting the Popular:
conferências apresentadas na seção Paul and Politics da Society of Biblical Literature (SBL) em
novembro de 2002.
7. Geoffrey E. M. de Sainte Croix, Class Struggle in the Ancient Greek World, Ithaca, Cornell
University Press, 1981, 355; Peter Garnsey, Richard Saller, The Roman Empire: Economy, Society,
and Culture, London, Duckworth, 1987, 8.
8. Cf. Peter Marshall, Emmity in Corinth: Social Conventions in Paul’s Relation with the
Corinthians, Tübingen, Mohr Siebeck, 1987 (WUNT II/23); John Chow, Patronage and Power: A
Study of Social Networks in Corinth, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1992; cf. também
­Geoffrey E. M. de Sainte Croix, Class Struggle in the Ancient Greek World, 342 (cf. nota 7).

171
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
misso ativo diante das convenções sociais da escravidão que difere muito do para-
digma habitual do “patriarcalismo do amor”9. A maneira como Justin Meggitt
discute a questão da reciprocidade econômica nas Igrejas paulinas constitui uma
síntese particularmente valiosa10.

2. Retomar a questão da “política” de Paulo

Há apenas dez anos era comum dizer que a visão política de Paulo na reali-
dade se resumia à “teologia do Estado” que se encontra em Romanos 13,1-7; que
o termo Cristo,j no vocabulário paulino era apenas um nome próprio desprovi-
do de qualquer conotação política; que a afirmação ku,rioj o` vIhsou/j era uma
proclamação religiosa entusiasta, mas certamente não um desafio à ordem impe-
rial. Nada nas cartas de Paulo era lido como uma suspeita da validade fundamental
— mas decerto temporária — da ordem política romana.
Torna-se cada vez mais difícil manter essa posição hoje. Uma primeira razão
é que os grandes movimentos sociais nos quais se inscreve inevitavelmente o tra-
balho dos teólogos tornaram-nos atentos ao modo como ordinariamente uma
interpretação acadêmica que se pretende “neutra” está a serviço de propósitos
sociopolíticos mais amplos11. Teólogos da libertação em atividade em três conti-
nentes e em dezenas de países “não desenvolvidos” mostraram que Romanos 13
foi posto a serviço de visões ideológicas de um modo que não tem nada em co-
mum com a significação da passagem no seio do corpo paulino12. Outros intér-
pretes evidenciaram a insistência paradoxal com a qual o apóstolo afirma que a
longa lista de suas prisões manifesta sua conformidade com Cristo; ou ainda a
centralidade da “palavra da cruz”, que significa — entre outras coisas — que os
“príncipes deste mundo” demonstraram sua própria falência ao levar à morte o
“Senhor da glória” (1Cor 2,8).

9. Norman Peterson, Rediscovering Paul: Philemon and the Sociology of Paul’s Narrative
World, Philadelphia, Fortress Press, 1985; S. Scott Bartchy, MALLON CHRESAI: First Century
Slavery and the Interpretation of 1 Corinthians 7:21, Missoula, Society of Biblical Literature, 1973
(SBL.DS 11); Dale B. Martin, Slavery as Salvation:The Metaphor of Slavery in Pauline Christianity,
New Haven/London,Yale University Press, 1990. Cf. também minhas observações críticas em Li-
berating Paul, 32-52 (cf. nota 4).
10. Cf. Justin J. Meggitt, Paul, Poverty, and Survival, 155-180 (cf. nota 1).
11. Cf., por ocasião de sua conferência presidencial da Society of Biblical Literature, Elisabeth
Schüssler-Fiorenza, The Ethics of Interpretation: De-Centering Biblical Scholarship, JBL 107
(1988) 3-17.
12. Cf. Robert McAfee Brown (ed.), Kairos:Three Prophetic Challenges to the Church, Grand
Rapids, Eerdmans, 1990.

172
III – Paulo antes de Paulo
Os anos de 1990 viram nascer uma série de estudos que demonstram que
um compromisso crítico diante dos valores ideológicos da época de Augusto
está no âmago do apostolado de Paulo. Os ensaios reunidos por Richard
­Horsley nos dois volumes intitulados Paulo e o Império e Paulo e a política13 são
uma boa introdução a essa nova perspectiva de pesquisa. Esses volumes são
compostos de extratos de novos estudos importantes sobre a história social ro-
mana, bem como de artigos e de livros recentes que abordam explicitamente
cartas de Paulo numa perspectiva política. Assim, a contribuição de Dieter
­Georgi, que estudou a “teologia missionária” de Paulo repondo-a no contexto
de uma difusão generalizada do culto romano do poder, é muito estimulante,
mas infelizmente muito breve14. De sua parte, Helmut Koester e Karl Donfried
mostraram que a ideologia e o culto imperiais constituem o contexto imediato
de 1 Tessalonicenses. Horsley chegou a conclusões semelhantes a propósito de
1 Coríntios, tanto no livro citado como no comentário dessa mesma carta que
ele publicou depois15.
Mesmo quando a problemática da legitimação ideológica do Império não é
explicitamente considerada, alguns intérpretes situaram com grande proveito as
cartas de Paulo em seu contexto romano. Stanley Stowers propôs ler a epístola aos
Romanos como um convite a adotar uma disciplina do “controle de si” — uma
interpretação que repõe totalmente a carta no clima filosófico e moral de seu
tempo e que sugere também que Paulo defende uma posição que entra em riva-
lidade com a pretensão pessoal do imperador de personificar a piedade. F. Gerald
Dowing procurou compreender a epístola aos Romanos — e as outras cartas
paulinas — como produções que se inscrevem num mais amplo movimento cíni-

13. Richard A. Horsley (ed.), Paul and Empire: Religion and Power in Roman Imperial Socie-
ty, Philadelphia, Trinity Press International, 1997; Id. (ed.), Paul and Politics: Ekklesia, Israel, Impe-
rium, Interpretation, Philadelphia, Trinity Press International, 2000. No segundo volume, N.T.
Wright diz que “the most exciting developments today in the study of Paul and his thought” são
“the quite fresh attempts that are being made to study the interface, the opposition, the conflict
between Paul’s gospel — the message about the crucified Jesus — and the world in which his
entire ministry was conducted, the world in which Caesar not only held sway but exercised power
through his divine claim” (Paul’s Gospel and Caesar’s Empire, 160). Apresentei um resumo da dis-
cussão em meu segundo volume: Neil Elliott, Paul and the Politics of Empire: Problems and
Prospects, 17-39.
14. Dieter Georgi, Theocracy in Paul’s Praxis and Theology, Philadelphia, Fortress Press, 1991;
breve apresentação em Richard A. Horsley (ed.), Paul and Empire, 148-157 (cf. nota 13).
15. Karl P. Donfried, The Cults of Thessalonica and the Thessalonian Correspondence, NTS
31 (1985) 336-356 (breve apresentação em Richard A. Horsley [ed.], Paul and Empire, 215-233 [cf.
nota 13]); Helmut Koester, Imperial Ideology and Paul’s Eschatology in 1 Thessalonians, in Richard
A. Horsley (ed.), Paul and Empire, 158-166.

173
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
co e estoico. Esses dois últimos estudos conseguiram dissipar o nevoeiro dogmá-
tico que marcou a leitura de Paulo16.
John White demonstrou recentemente que uma boa parte do vocabulário e
do sistema de pensamento de Paulo reflete o vocabulário e as estruturas da ideo-
logia imperial. A compreensão de Jesus como ku,rioj e como aquele que oferece
a Deus um sacrifício perfeito, a visão de uma oivkoume,nh internacional na qual
todas as nações são levadas a se submeter a um só “senhor” — esses elementos
estão presentes nos dois sistemas, como revelou também Calvin Roetzel17. A pers-
pectiva que orienta o estudo de White parece ser essencialmente genealógica: ele
afirma que a concepção paulina de Jesus como “filho de Deus” deve mais às ima-
gens associadas a Augusto do que às que se ligam a Davi.Todavia, essa tese repousa
sobre uma comparação positiva entre Augusto e Jesus, sugerindo até que possa
haver “compatibilidade” entre os dois.
Chegaremos sem dúvida a conclusões diferentes se nos interessarmos não
somente pelas comparações de vocabulário ou de repertório simbólico, mas so-
bretudo pelo efeito pragmático, pela “performance”. Numa obra marcante intitula-
da Rituais e poder, Simon Price nos convida com insistência a abandonar a inter-
pretação habitual que vê no culto ao imperador um sistema de crenças religiosas
— interpretação que é um produto da apologética cristã18. Como Price mostrou
de maneira convincente, esse culto é antes de tudo uma representação simbólica
do poder, que se repete quase todos os dias em todo o Império. O estudo de Paul
Zanker sobre as imagens imperiais chega às mesmas conclusões a propósito da
produção do simbolismo imperial que serve para legitimar o poder romano19.
Não temos ainda um estudo comparável sobre a performance de Paulo, sobre a
“produção” das simbolizações do poder nas Igrejas paulinas. Mas as alusões de
Paulo à coreografia do cerimonial romano — especialmente quando ele fala

16. Stanley K. Stowers, A Rereading of Romans: Justice, Jews, and Gentiles, New Haven, Yale
University Press, 1994; F. Gerald Downing, Cynics, Paul, and the Pauline Churches: Cynics and Chris-
tian Origins II, London/New York, Routledge, 1998.
17. John White, Apostle of God, Peabody, Hendrickson, 1998, 110-135; Calvin Roetzel, Oikou-
mene and the Limits of Pluralism in Alexandrian Judaism and Paul, in J. Andrew Overman, Robert
S. Maclennon (ed.), Diaspora Jews and Judaism: Essays in Honor of, and in Dialogue with, A.
Thomas Kraabel, Atlanta, Scholars Press, 1992, 163-182 (South Florida Studies in the History of
Judaism 41).
18. Simon R. F. Price, Rituals and Power: The Roman Imperial Cult in Asia Minor, Cambridge,
Cambridge University Press, 1984.
19. Paul Zanker, The Power of Images in the Age of Augustus, Ann Arbor, University of Michigan
Press, 1990; trad. de Augustus und die Macht der Bilder, München, Beck, 1987. Os livros de Zanker e
Price (cf. nota 18) são apresentados em Richard A. Horsley (ed.), Paul and Empire (cf. nota 13).

174
III – Paulo antes de Paulo
de “trazer em nosso corpo a agonia de Jesus” (2Cor 4,10) ou de ser “conduzido
constantemente em seu triunfo” à maneira de um prisioneiro vencido (2Cor
2,14) — indicam que a estratégia de Paulo incluía um hábil uso da ironia diante
das representações de poder do imperador20.

3. A “performance” apostólica de Paulo

Price afirma que os rituais imperiais constituem “um sistema cognitivo pú-
blico”, uma personificação social do pensamento, um modo de as cidades gregas
tentarem “representar a seus próprios olhos seus novos mestres sob um aspecto
tradicional” e assim “encontrar uma acomodação com um novo tipo de poder”.
Para Price, a origem do culto imperial deve ser procurada nos cultos públicos
helenísticos dos soberanos e dos cidadãos eminentes. Se os gregos passam desses
cultos helenísticos aos cultos da Roma personificada, aos cultos dos “benfeitores
romanos” em geral, ou de indivíduos romanos em particular, é em razão de uma
“percepção lúcida da nova situação”, marcada pela hegemonia romana, mas ex-
pressa na linguagem dos gregos. Esses cultos devem ser entendidos como reações
ao poder romano, que, aos olhos das elites provinciais, se mostrava “impossível de
manobrar de outro modo”. A obra de Price encontrou eco favorável em Susan
Alcock, que estudou a romanização do Oriente grego21. Todos esses trabalhos
demonstram que a representação do poder imperial no espaço público era agres-
siva, invasiva e sistemática.
Zander e Bowersock enfatizam o seguinte fato: como a maior parte do povo
no Império conhecia o imperador apenas por seu busto ou sua estátua, eram essas
representações que ocupavam o lugar principal na celebração do culto imperial22.
Por ocasião das procissões, com muita frequência transportavam-se imagens do
imperador. O fato de mostrar publicamente essas imagens para que elas fossem
contempladas com veneração pelos cidadãos era uma ação sagrada. A onipresença
das imagens do imperador e a manipulação delas organizada durante o ritual sur-
tiam um efeito considerável. Bowersock escreve a propósito:

20. Propus essa análise em Neil Elliot, The Apostle Paul’s Parousia as Anti-Imperial Performan-
ce, in Richard A. Horsley (ed.), Paul and the Imperial Order: Essays in Honor of S.R.F. Price, Phila-
delphia, Trinity Press International, 2003.
21. Susan E. Alcock, Gracia Capta: The Landscapes of Roman Greece, Cambridge, Cambridge
University Press, 1993.
22. Paul Zanker, The Power of Images (cf. nota 19); Glen W. Bowersock, The Imperial Cult:
Perceptions and Persistence, in Ben F. Meyer, Ed P. Sanders, Self-Definition in the Greco-Roman
World, Philadelphia, Fortress Press, 1983 (Jewish and Christian Self-Definition 3).

175
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
Ninguém, parece, era levado a estender as mãos num gesto de oração; mas não
era possível evitar o reconhecimento da realidade de um poder temporal e,
potencialmente, de um poder divino. Quando elevava os olhos para a imagem
do imperador, quando participava de um sacrifício ou quando tinha prazer em
assistir ao espetáculo dos jogos imperiais, o cidadão do Império Romano era
levado a saber quem era o mestre do mundo23.
Segundo Richard Gordon, os sacrifícios oferecidos pelos imperadores nos
rituais específicos tornaram-se cada vez mais “os símbolos de uma concepção
muito divulgada da ‘piedade’, assumida pelos imperadores não mais em nome ‘do
Senado e do povo romano’, mas em nome do Império inteiro” — e em nome
do imperador em particular. O resultado foi “um acúmulo de capital simbólico”
em favor do imperador, de tal sorte que “a vida religiosa local no Império se viu
completamente impregnada de referências ao imperador e começou em certo
sentido a depender de sua presença”24.
Como Paulo descreve sua atividade apostólica como uma “demonstração
(avpo,deixij) feita pelo poder do Espírito”, por oposição aos “discursos persuasi-
vos da sabedoria” (1Cor 2,4), podemos qualificar sua retórica de apodíctica
— como “demonstração de poder” — mais que de epidíctica. Claro, não temos
nenhum acesso direto à “performance” de Paulo, embora ela tenha tido o caráter
de uma manifestação visual (ver Gl 3,1:“aos vossos olhos, foi exposto Jesus Cristo
crucificado”). Com frequência, ele apresenta sua proclamação inicial como “po-
der de Deus para a salvação” (Rm 1,16) e declara que esse poder se tornou rea-
lidade no anúncio do Evangelho (1Ts 1,5) — especialmente nos “sinais e nos
prodígios” que são a obra do Cristo (Rm 15,18-19) ou do Espírito (Gl 3,3-5),
sinais e prodígios e “atos de poder” que são “os sinais distintivos dos verdadeiros
apóstolos” (2Cor 12,12).
Partindo daí, J. Louis Martyn afirmou que não deveríamos falar da consciên-
cia de Paulo, “ou seja, do que ele pensava”, mas dos efeitos que ele desejava con-
seguir com a ajuda do poder divino. Segundo Martyn, Paulo escreveu “ao crer
firmemente que Deus queria que tal ou tal acontecimento ocorresse” entre os
membros da ekklesia “na hora em que o enviado de Paulo lesse a carta diante deles,

23. Ibid., 173-174: “No one, it seems, was moved to stretch out his hands in prayer; but he can-
not have escaped a consciousness of temporal power at least, and of divine power potentially. By
looking upon the emperor’s image, by joining in sacrifice, and by enjoying the imperial games, a
citizen of the Roman Empire was reminded of who ruled the world”.
24. Richard Gordon,The Veil of Power: Emperors, Sacrificers and Benefactors, in Mary Reard,
John North (ed.), Pagan Priests: Religion and Power in the Ancient World, Ithaca, Cornell Univer-
sity Press, 1990, 192, 202.

176
III – Paulo antes de Paulo
em alta voz”. A epístola aos Gálatas está centrada “nesse acontecimento auditivo
(aural event), como fora visado e ativamente antecipado por Paulo”. “O horizonte
teológico de Paulo é constituído pelo tema da invasão agressiva e libertadora de
Deus, que conquista o cosmo pela cruz do Cristo e pelo Espírito do Cristo —
tema que caminha junto com a afirmação audaciosa da nova criação inaugurada
por essa invasão.”25
O termo “performance” não deve ser entendido apenas a respeito da apresen-
tação oral das ideias. É assim que Paulo pode dizer aos coríntios que o fato de
celebrar a refeição eucarística é também uma performance, pois é uma maneira
de “anunciar a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Pode também
descrever sua própria conduta e a de seus colegas apostólicos recorrendo à metá-
fora do triunfo imperial (2Cor 2,14-16):
Graças sejam dadas a Deus que, por Jesus Cristo, nos conduz constantemente
em seu triunfo e que, por meio de nós, difunde por toda a parte o perfume do
seu conhecimento. De fato, nós somos para Deus o bom odor do Cristo, para
os que se salvam e para os que se perdem; para uns, odor de morte que conduz
à morte; para os outros, odor de vida que conduz à vida.
Na controvérsia que o opõe à elite coríntia, Paulo utiliza a metáfora do
triunfo, bem como a imagem semelhante da procissão epifânica, a fim de apre-
sentar o perigo e a oposição que encontra como sinais do fato de que ele foi
“feito cativo” pelo poder do Cristo. Assim, na passagem citada, a presença de
Paulo é um bom odor, que indica a aprovação de Deus. Em 2 Coríntios 4,10, a
condição de Paulo e de seus colaboradores é assim descrita: “trazemos em nosso
corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus também seja manifestada em
nosso corpo”. Em 2 Coríntios 7,2, Paulo pede aos coríntios que lhe “deem um
lugar”, como convém por ocasião de uma procissão. Essa proliferação de imagens
rituais e de metáforas tomadas emprestadas do aparato das cerimônias imperiais
permite-lhe interpelar os coríntios a fim de que vejam sua “aflição” na Ásia
(2Cor 1,8) e na Macedônia (2Cor 7,5) — o fato de ser “premido, esmagado, per-
seguido, prostrado… entregue à morte por causa de Jesus” (2Cor 4,8-12) —
como uma demonstração paradoxal do poder de Deus. “Sem cessar trazemos
em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja manifestada

25. J. Louis Martyn, Events in Galatia: Modified Convenantal Nomism versus God’s Invasion
of the Cosmos in the Singular Gospel. A Response to James D. G. Dunn and B. R. Gaventa, in
Jouette M. Bassler (ed.), Pauline Theology, Minneapolis, Fortress Press, 1991; v. I: Thessalonians, Phi-
lippians, Galatians, Philemon, 160-179 (passim e 179): “Paul’s theological horizon is given by the
motif of God’s warlike and liberating invasion of the cosmos in Christ’s cross and in Christ’s Spirit,
coupled with the bold assertion of the new creation inaugurated by that invasion”.

177
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
em nosso corpo” (2Cor 4,8-10). É precisamente mediante a humilhação deles
que Deus é glorificado e que o poder de Deus em Cristo se torna manifesto. Essa
reivindicação paradoxal é o ponto central da imagem do triunfo: “Deus vai con-
tinuar seu caminho triunfal, ainda que na procissão Paulo não seja senão uma fi-
gura marcada pela desonra”26.

4. Paulo, os judeus, os pagãos e os romanos

Se a problemática da relação de Paulo com o Império e com o imperialismo


abre novos horizontes, já o debate relativo ao pensamento de Paulo a respeito de
Israel, da Torá e do judaísmo como modo de vida tornou-se muito difícil. De uma
parte, há os que continuam a pensar, em harmonia com a tendência majoritária da
teologia cristã, que Paulo considera a vida em Cristo e a vida “sob a Torá” com-
pletamente incompatíveis. De outra parte, encontra-se uma minoria de intérpre-
tes obstinados — e que, em minha opinião, têm razão de sê-lo — que afirmam
que nada nas cartas que Paulo dirige aos pagãos nos dá uma ideia clara de seu pen-
samento sobre os judeus e sobre o judaísmo como tais.
Curiosamente, esse debate continua em seu ponto culminante sem que se
tenha realmente reconhecido a importância das pressões exercidas pela cultura
imperial, pela “romanização” ou pela produção simbólica da “romanidade”
(romanness)27. Aproveito a ocasião para sugerir que a “tendência judaizante” (judai-
zing), combatida por Paulo em Gálatas, poderia bem ser uma reação, por parte dos
velhos pagãos convertidos por Paulo, não somente à pressão de certos protagonis-
tas judeus, mas também a pressões sociais mais amplas que visavam a impor uma
identidade romana, que estava prestes a se constituir nas cidades da Ásia Menor. O
próprio Paulo afirma que a “perseguição” é o preço a ser pago pela identidade
cristã, tanto para ele como para os cristãos da Galácia. Sabemos por meio de Josefo
— e por outras fontes — que os judeus da Ásia Menor tinham obtido em seu am-
biente importantes concessões que lhes davam o direito de praticar seus próprios
costumes, por serem a expressão de um modo de vida ancestral. Não nos revelaria

26. Paul Brooks Duff, Metaphor, Motif, and Meaning: The Rhetorical Strategy Behind the
Image “Led in Triumph” in 2 Corinthians 2:14, CBQ 53 (1991) 87, 91.
27. Cf. G. Woolf, Becoming Roman, Staying Greek: Culture, Identity, and the Civilizing Pro-
cess in the Roman East, Proceedings of the Cambridge Philological Society 40 (1994) 116-143; Id.,
Beyond Romans and Natives, World Archaelogy 28 (1995) 339-350; Clifford Ando (Imperial Ideology
and Provincial Loyalty in the Roman Empire, Berkeley/Los Angeles, University of California Press,
2000 [Classics and Contemporary Thought 6]) analisa a participação ativa das províncias na criação
de um “consensus” no Império.

178
III – Paulo antes de Paulo
a epístola aos Gálatas uma comunidade de convertidos que viviam sob ameaça,
não se sentindo mais em casa, num ambiente social em que as pressões da romani-
zação eram onipresentes, e procurando se proteger graças à adoção de certas prá-
ticas da Torá como uma espécie de camuflagem social?28 Essa hipótese permitiria
avaliar a profundidade da retórica de Paulo sem ter necessidade de exigir como
indispensável face a face uma oposição constituída por adversários judeus29.
Os problemas postos pela epístola aos Romanos são muito mais complexos,
sobretudo por causa da importância que foi dada a esse escrito como tesouro da
doutrina cristã (especialmente protestante!). Como essa carta “teológica” con-
tém a célebre passagem de Romanos 13,1-7, ela constitui, a meu ver, o maior
desafio que uma interpretação rigorosamente política do pensamento e da prá-
tica de Paulo possa enfatizar. Hoje, estou convencido de que nenhum outro es-
crito do Novo Testamento, com exceção evidente do Apocalipse de João, en-
frenta a ideologia imperial romana com mais vigor do que a epístola aos
Romanos. De fato, diante da pretensão do imperador de encarnar a justiça de
uma nova ordem mundial, Paulo proclama que a justiça de Deus já está pronta
para ser revelada no anúncio triunfal (euvagge,lion) de um “Filho de Deus” rival
do rebento da casa de Davi30.

5. A epístola aos Romanos

Ainda que os intérpretes modernos mantenham reserva em relação à defini-


ção lapidar de Melanchton, que via em Romanos um “compêndio da doutrina
cristã”, a carta continua a ser considerada habitualmente portadora da “posição
teológica fundamental” de Paulo, apresentada numa espécie de síntese. Por mais
que os intérpretes reconheçam que a carta foi provocada por uma situação espe-
cífica que prevalecia em Roma, esse contexto particular é muitas vezes com-
preendido de maneira redutiva como uma simples ocasião utilizada por Paulo

28. Atenção particular merece ser dada à importante obra de Lloyd Gaston, Paul and the Torah
(Vancouver, University of British Columbia Press, 1987), que interpreta o “legalismo” como “um
problema dos pagãos e não dos judeus” (“a Gentile problem and not a Jewish problem at all”,
25). Infelizmente, seu argumento em favor de uma salvação “a duas trilhas” (“two-track” salvation)
em Paulo levou alguns críticos a desqualificar de maneira prematura o projeto mais amplo de
Gaston. Desenvolvo uma argumentação semelhante a respeito de Gálatas em meu Liberating Paul
(cf. nota 4), 197-198.
29. Essa tendência a alimentar a interpretação de Paulo com a ajuda de caracterizações pejora-
tivas do judaísmo é agora alvo de fortes críticas, por exemplo em Mark Nanos, The Mystery of
Romans: The Jewish Context of Paul’s Letter, Minneapolis, Fortress Press, 1996, 85-165.
30. Dieter Georgi, Theocracy in Paul’s Praxis and Theology, 85-87 (cf. nota 14).

179
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
para “apresentar” seu Evangelho por meio de uma “apresentação dele mesmo”,
como se se tratasse de uma carta teológica escrita para obter o apoio dos romanos
em vista de uma missão de Paulo alhures31. Ao fazer isso, projeta-se na carta um
conjunto de pressupostos não expressos referentes à “missão” paulina e a Paulo
como “missionário”. As leituras dogmáticas ou apologéticas abordam habitual-
mente a carta numa ou noutra das seguintes maneiras: (a) como apresentação por
Paulo de sua teologia centrada na ação de Deus, que salva o ser humano pecador;
(b) como carta de uma teologia paulina “universalista”, oposta ao “particularis-
mo”, ao “etnocentrismo” ou ao “privilégio nacional” de Israel; ou (c) como defe-
sa de Paulo de uma missão entre os pagãos sem a exigência da Lei, contra pressões
judaizantes dentro do movimento cristão32.
Essas leituras vão ao encontro do movimento retórico da carta, a saber, a
exortação dirigida aos pagão-cristãos de não se gabarem perante Israel (Rm 11,13-
32)33. Para inúmeros intérpretes, a carta é principalmente um “diálogo crítico
com os judeus”, e eles se preocupam, antes de mais nada, com o “duplo caráter”
que percebem na carta34. Mas isso equivale a assemelhar o objetivo de Romanos

31. Por exemplo, ainda que James D. G. Dunn reconheça que “Romans is still far removed from
a dogmatic or systematic treatise on theology”, caracteriza, todavia, a carta como “less caught in the
flux and developing discourse of Paul with his churches than the others”. Ele considera Romanos
“the most sustained and reflective statement of Paul’s own theology by Paul himself ”, e utiliza as-
sim a carta como “uma espécie de modelo” (“a kind of template”) para construir sua apresentação
sistemática da teologia de Paulo (The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids [MI]/Cambridge,
Eerdmans, 1998, 25-26).
32. Ferdinand Christian Baur já lamentava que na interpretação comum de Romanos “the
dogmatic view is not to yield one step to the historical” (Paul the Apostle of Jesus Christ, trad. Eduard
Zeller, London/Edimburgh, Williams & Norgate, 1876, v. 1, 308-313). Um século mais tarde,
­Walter Schmithals exprimia a mesma queixa, em particular diante da “exegese teológica” de Karl
Barth (Der Römerbrief als historisches Problem, Gütersloh, Gütersloher Verlagshaus/Mohn, 1975, 7-8
[StNT 91]). Segundo Scott J. Hafemann, a interpretação ideologicamente superdeterminada de
Baur continua a fazer sentir sua ação nos estudos paulinos (Paul and his Interpreters, in Gerald F.
Hawthorne, Ralph P. Martin, Daniel G. Reid [ed.], Dictionary of Paul and his Letters, Downers
Grove/Leicester, InterVarsity Press, 1993, 666-678). Cf. também Neil Elliott, Liberating Paul, 73-
75 (cf. nota 4).
33. Essa perspicaz observação remonta a Ferdinand Christian Baur, mas encontrou um novo
vigor graças a Krister Stendhal, Paul among Jews and Gentiles, Philadelphia, Fortress Press, 1976; ver
também em particular: J. Christiaan Beker, Paul the Apostle:The Triumph of God in Life and Thou-
ght, Philadelphia, Fortress Press, 1980, 59-93; Neil Elliot, Figure and Ground in the Interpretation
of Romans 9–11, in Stephen E. Fowl (ed.), The Theological Interpretation of Scripture: Classic and
Contemporary Readings, Cambridge (MA)/Oxford, Blackwell, 1997, 371-389 (Blackwell Rea-
dings in Modern Theology).
34. Essa noção é central na posição exposta por exegetas como: Werner G. Kümmel, Introduction
to the New Testament, ed. rev., trad. H. C. Kee, Nashville, Abingdon, 1975, 309; Werner Schmithals,

180
III – Paulo antes de Paulo
ao de Efésios, para fazer dele uma regra fundamental da primazia histórica do
pagão-cristianismo, a serviço do que Richard Horsley chamou de “metanarrativa
retoricamente determinada” (theologically determined metanarrative) dos estudos
modernos sobre o Novo Testamento, a saber, “a substituição da religião excessiva-
mente política e particularista que é o ‘judaísmo’ pela religião puramente espiri-
tual e universalista que é o ‘cristianismo’”35.
Desejo delinear aqui uma leitura diferente de Romanos, partindo de duas
observações decisivas. Primeiro, a carta está explicitamente dirigida aos pagão-cristãos
de Roma (Rm 1,5-6.13.14-15). Temos de resistir à tentação — por mais útil que
ela tenha podido ser para a tradição teológica do Ocidente — de “introduzir” em
Romanos judeus ou judeu-cristãos para deles fazer o verdadeiro objetivo da car-
ta36. Segundo, a carta chega ao seu apogeu retórico nos capítulos 9–11 e atinge seu
ponto culminante com a vigorosa exortação de Paulo dirigida aos pagão-cristãos
para que eles não se orgulhem diante de Israel (Rm 11,13-32). Mais que situar
Romanos no contexto reconstituído de uma teologia judaica que condenamos,
temos todo o proveito ao ler a carta como um escrito que visa a um antijudaísmo
nascente no seio das comunidades essencialmente pagão-cristãs de Roma37.
Essas observações exegéticas harmonizam-se bem com uma reconstrução
amplamente admitida da situação histórica em Roma. O caráter premente do dis-
curso de Paulo provavelmente deve ser posto em relação com as consequências
do famoso édito de Cláudio banindo os judeus de Roma (49 d.C.), que teve de
assegurar aos pagão-cristãos uma posição preponderante nas comunidades da ca-
pital38. Esses cristãos saídos do paganismo não eram certamente judaizantes (judai-
zers), mas, ao contrário, indivíduos “propensos a ficar afastados [em relação ao ju-
daísmo], em particular pelo fato de pressões sociais que caminhavam nesse sentido

Der Römerbrief als historisches Problem, 9 (cf. nota 32); J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 59-93 (cf.
nota 33); Alexander J. M. Wedder-Burn, The Purpose and Occasion of Romans Again, ET 90
(1978) 137-141. Cf. também Neil Elliot, The Rhetoric of Romans: Argumentative Constraint and
Strategy and Paul’s Dialogue with Judaism, Sheffield, JSOT Press, 1990, 9-67 (JSNT.S 45).
35. Richard A. Horsley, Submerged Biblical Histories and Imperial Biblical Studies, in Rasiah
S. Sugirtharajah (ed.), A Postcolonial Bible, Sheffield, Sheffield Accademy Press, 1998, 154-155:“the
replacement of the overly political and particularistic religion ‘judaism’ by the purely spiritual and
universal religion ‘christianity’”.
36. Stanley K. Stowers, A Rereading of Romans, 22-33 (cf. nota 16).
37. Esse ponto foi bem estudado, notadamente por J. Christiaan Beker, Paul the Apostle, 75 (cf.
nota 33). Beker ressalta, todavia, que “this cannot explain the whole of the letter”. Penso, ao con-
trário, que é precisamente aí que se encontra a explicação.
38. A literatura a respeito é abundante.Ver, por exemplo, as coletâneas de artigos: Karl P. Don-
fried (ed.), The Romans Debate, Peabody, Hendrickson, 21991; David M. Hay, E. Elizabeth Johnson
(ed.), Pauline Theology III: Romans, Minneapolis, Fortress Press, 1995.

181
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
na Roma pagã”39. A admoestação de Paulo poderia mostrar muito bem que ju-
deus, ao voltarem do exílio após a morte de Cláudio e procurarem se reintegrar
nas comunidades cristãs, encontraram resistências ou mesmo desprezo entre os
membros de origem pagã40. Quando Paulo diz que experimenta “uma grande
tristeza e uma dor incessante” por seus correligionários judeus (Rm 9,2), é sem
dúvida para dar um modelo de atitude que ele deseja ver adotado pelos pagão-
cristãos de Roma41.
As questões em jogo não devem ser reduzidas a simples tensões “éticas” den-
tro das comunidades cristãs42. A reconstrução que proponho leva também em
consideração a política imperial romana diante de uma minoria desprezada, os
judeus. A expulsão deles da capital por Cláudio não é senão um episódio no bojo
de uma política constante e bem estabelecida. Desde a época da República, a aris-
tocracia romana olhava para os judeus com uma mistura de suspeita e de horror e
via neles os autores de uma “superstição” (superstitio) estrangeira, “uma ameaça
permanente no seio de seu próprio povo”43. Cícero deu o tom das opiniões ro-
manas que se seguiram quando ele denegriu a inclusão de costumes judeus es-
trangeiros que destruíam os valores de Roma, ou quando expôs ao ridículo os
judeus como uma nação destinada pelos deuses a ser “vencida, adjudicada aos
cobradores de impostos, escravizada”44. Os “direitos” dos judeus, celebrados por

39. N. T. Wright, Romans and the Theology of Paul, in David M. Hay, E. Elizabeth Johnson
(ed.), Pauline Theology III, 35 (cf. nota anterior). Partilho esse ponto de vista de Wright, segundo o
qual Paulo, em Romanos, quer ressaltar, “em relação a uma Igreja de Roma potencialmente anti-
judaica, que não é possível recair num invertido sistema de privilégio nacional […] A Igreja de
Roma não deve permitir que o latente sentimento antijudaico, às vezes manifesto na orgulhosa
capital pagã, se propague entre os cristãos” (“to a potentially anti-Jewish Roman church, that there
can be no lapsing back into an inverted system of national privilege […].The Roman Church must
not allow the latent, and sometimes visible, anti-Jewish sentiment in the proud pagan capital to
infect them as Christians”, 60).
40. Sobre essa questão, pareceu-me convincente a interpretação defendida por H. Dixon
­Slingerland, Claudian Policy-making and the Early Imperial Repression of Judaism at Rome, Atlanta
(GA), Scholars Press, 1997 (South Florida Studies in the History of Judaism 160).
41. Defendi esse ponto de vista, com base numa análise retórica, em Nel Elliot, Rhetoric of
Romans, 253-270 (cf. nota 34).
42. Como é o caso, por exemplo, em Francis Watson, Paul, Judaism, and the Gentiles: A Sociolo-
gical Approach, Cambridge, Cambridge University Press, 1986 (MSSNTS 56).
43. Cf. John G. Gager, The Origins of Anti-semitism: Attitudes toward Judaism in Pagan and
Christian Antiquity, New York/London, Oxford University Press, 1983, 59; Peter Schäfer, Judeo-
phobia: Attitude toward the Jews in the Ancient World, Cambridge (MA), Harvard University Press,
1997; H. Dixon Slingerland, Claudian Policymaking (cf. nota 40).
44. Cícero, Pro Flacco 69 (XXVIII): quod est victa, quod elocata, quod serva facta, ed. et trad.A. ­Boulanger,
in Cicéron. Discours, Paris, Belles Lettres, 1938, t. XII, 120 (Collection des Universités de France).

182
III – Paulo antes de Paulo
Josefo com um fim apologético evidente, jamais impediram os imperadores se-
guintes de manifestar por eles um profundo desprezo, aceitando atos de violência
dirigidos contra as comunidades judaicas por todo o Império. Não há lugar para
falar dos esforços do poder romano para ser “tolerante” ou “intolerante”: “O que
interessava a Roma era manter sob controle as massas urbanas”45.
A partir da época de Augusto, a corte imperial cultivou uma tradição de vio-
lenta propaganda antijudaica, provavelmente originária do Egito grego. Quando
Tibério optou pela supressão dos “ritos estrangeiros”, visava especialmente aos
judeus de Roma46. Para Fílon, as violências catastróficas de Alexandria (38-41
d.C.) devem correr por conta do tirano Gaio e de sua “raiva indizível dos judeus”47.
As casas e as lojas dos judeus foram pilhadas, os próprios judeus foram massacra-
dos, membros de seus gerousia foram açoitados publicamente por ordem direta do
governador. Como será muitas vezes o caso, num clima de preconceitos, os judeus
se tornaram o alvo cômodo de um conflito político entre outros48. A situação dos
judeus ficou ainda mais grave pelo sistema parasita dos impostos romanos. O peso
desses impostos era objeto de uma queixa permanente das classes mais baixas, que
suportava sua maior parte. Cícero já havia criado um precedente ao rejeitar a res-
ponsabilidade para os judeus de uma carga fiscal julgada inaceitável49. No Egito, os
coletores de impostos tratavam brutalmente os judeus50, e os judeus suportavam a
maior parte da cólera do povo contra as taxas romanas51.
Não podemos saber se os “motins” em Roma, com os quais Cláudio teve de
se confrontar no ano de 49, foram ou não provocados por um problema de im-
postos. Sabemos, em contrapartida, que, pela época em que a epístola aos Roma-
nos foi escrita, Nero, o sucessor de Cláudio, teve de enfrentar uma crise orçamen-
tária e uma séria resistência pública, em Roma e alhures, contra sua política de

45. Leonard V. Rutgers, Roman Policy toward the Jews: Expulsions from the City of Rome
during the First Century C.E., Classical Antiquity 13 (1994) 71; John G. Gager, The Origins of Anti-
semitism, 55 (cf. nota 43).
46. Suetônio, Caes,Tibère 36; Tácito, Ann 2,85.
47. Fílon, LegGai 133.
48. Em outra parte, Fílon atribui o conflito em Alexandria à “hostilidade inata contra os judeus”
por parte dos egípcios autóctones (Pro Flacco 29). Peter Schäfer (Judeophobia, 136-160 [cf. nota
43]), defende a ideia segundo a qual o conflito em Alexandria foi “em primeiro lugar e sobretudo
um conflito político”, ainda que tenha sido certamente também alimentado por um antijudaísmo
antigo no Egito.
49. Cícero, Pro Flacco 28.
50. Fílon descreve a brutalidade espantosa dos coletores de impostos romanos no Egito em
SpecLeg 2,92-95; 3,159-163, e em LegGai 199.
51. Cf. John G. Gager, The Origins of Anti-semitism, 44-54 (cf. nota 43).

183
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
contribuição, e que ele só conseguiu reprimir os motins fiscais em Putéoli, nas
cercanias de Roma, ao enviar tropas romanas e proceder a “algumas execuções”52.
A exortação problemática de Romanos 13,1-7, e especialmente a obrigação de
“pagar os impostos”, poderia ter sido destinada a evitar perturbações do tipo das
que já havia desencadeado a reação muito violenta do imperador53.
De modo revelador, quando Paulo afirma que Israel “tropeçou”, espera de
seus leitores que compartilhem essa ideia e se esforça por interpretar esse “fato”
corretamente, a saber, enfatizando que Israel decerto “tropeçou”, mas não “caiu”
(Rm 11,11). De fato, a carta está pontuada por uma série de questões retóricas
referentes ao “tropeço” aparente de Israel (Rm 3,3.5; 9,6; 11,11). Mas como foi
que Israel “tropeçou”? Alguns intérpretes percebem nesse motivo o eco de um
“fato teológico”, ou seja,“a falência da missão entre os judeus”; mas é difícil com-
preender como a recusa do Evangelho pelos judeus tomados individualmente
poderia levar à ideia da incredulidade de Israel em seu conjunto54. É tão menos
verossímil que Paulo tenha aderido a essa ideia que ele espera de seus leitores que
reconheçam nele um dos numerosos judeus que creem em Jesus (Rm 11,1-6;
16,3-16). Pelo contrário, a percepção do povo de Israel como uma raça desonrada
e vencida é um fato abundantemente atestado entre os membros da aristocracia
romana, de Cícero a Sêneca55.
Paulo se confronta com o perigo de os cristãos romanos buscarem pretexto
no preconceito antijudaico — politicamente muito cômodo — que florescia em
Roma e nos infortúnios recentes dos judeus entre eles para tirar a conclusão teo-
lógica de que Israel tinha caído, ou seja, que tinha sido abandonado por Deus
(Rm 11,1). Essa posição devia parecer inevitável do ponto de vista da teologia im-
perial, dominada pela ideia da supremacia do povo romano sobre todos os outros
povos56. Concluo, pois, que Paulo, em Romanos, longe de combater um “etno-

52. Tácito, Ann 13,48-51.


53. É a interpretação proposta por Johannes Friedrich, Wolfgang Pöhlmann, Peter Stuhlma-
cher, Zur historischen Situation und Intention von Röm 13,1-7, ZThK 73 (1976) 133-166. Segui
essa mesma pista em Neil Elliott, Romans 13:1-7 in the Context of Imperial Propaganda, in
Richard A. Horsley (ed.), Paul and Empire, 184-204 (cf. nota 13).
54. Cf. E. Elizabeth Johnson, Romans 9-11:The Faithfulness and Impartiality of God, in David
M. Hay, E. Elizabeth Johnson (ed.), Pauline Theology III, 211-239 (cf. nota 38).
55. John G. Gager (The Origins of Anti-semitism [cf. nota 43]) faz uma distinção entre a política
romana oficial em relação aos judeus, que era sempre motivada por interesse próprio, e as atitudes
populares. Acontecia muitas vezes de magistrados romanos porem em prática políticas que eram
prejudiciais aos judeus “porque viam no judaísmo uma ‘ameaça’ permanente no seio do seu povo”
(“because they saw Judaism as a persistent ‘threat’ among their own people”, 59).
56.Virgílio (Aen 1,282) chama os romanos de “rerum dominos gentemque togatam” (“mestres
do mundo, nação de toga”).

184
III – Paulo antes de Paulo
centrismo” judaico, opõe-se ao que se poderia chamar de um “etnocentrismo
romano”, corrente entre a elite dos membros da Igreja de Roma57.
Mark Reasoner mostrou que o “desprezo” (evxouqenei/n) pelos fracos (avsqenei/j)
contra o qual Paulo admoesta os fortes (dunatoi,, Rm 14,3; 15,1) é um fenômeno
politicamente mais complexo do que uma simples diferença de opinião entre cris-
tãos a respeito de práticas alimentares. Entre os grupos étnicos que viviam em
Roma, o dos judeus era um dos mais típicos e dos mais desprezados. Objetos de
insultos porque eram particularmente bem representados no seio da população in-
digente, periodicamente passavam, além disso, pela humilhação de serem expulsos
da cidade, esbulhados de suas casas e de seus bens, impedidos de continuar normal-
mente sua vida familiar e comunitária58. Em Romanos, Paulo quer, pois, promover
uma ética do “dever” dos fortes diante dos fracos (Rm 15, 1-2), ao exortar os fortes
a “se deixar atrair pelo que é humilde” (toi/j tapeinoi/j sunapago,menoi, Rm 12,16).
Essas expressões indicam que cristãos de status social elevado, muitos dos quais tal-
vez fossem cidadãos romanos, eram tentados a desprezar os seus semelhantes de
quem a pobreza, o status social inferior, a pertença a um grupo étnico estrangeiro
ou o rigorismo religioso (a “superstição”) lhes pareciam ser sinais de “fraqueza”.
Essa ética do dever devia ser potencialmente subversiva diante do sistema do
patronato (patronage system), fundado numa consciência aguçada do status social de
cada um. Os fortes são levados a reconhecer seus deveres em relação aos fracos
(Rm 15,1) e ninguém deve aceitar nenhuma obrigação senão a de “amar uns aos
outros” (13,8). As exortações de Romanos 12 estão centradas numa ideia de reci-
procidade (mutualism), numa ética concreta de interdependência mútua, que ins-
pira também a coleta para Jerusalém (Rm 15,16.25-28)59. De fato, essa ética cons-
titui o objetivo retórico de toda a carta. Com efeito, como demonstrou Furnish,
em Romanos 12 Paulo conclama seus ouvintes a “uma vida nova, que é exata-
mente o oposto da que ele tinha descrito antes” em Romanos 1. Por oposição ao
“coração que se tornou presa das trevas” (Rm 1,21-22), ao culto idólatra (1,23),
ao aviltamento do corpo (1,24) e aos atos degradantes (1,25-27) aos quais Deus

57. Mark Reasoner (The Strong and the Weak: Romans 14.1-15.13 in Context, Cambridge,
Cambridge University Press, 1999, 212-215 [MSSNTS 103]) utiliza esse termo para descrever as
atitudes correntes em Roma no momento da redação da epístola de Paulo aos Romanos. Sou de
opinião de que essas observações de Reasoner são compatíveis com as de N.T. Wright, que fala de
“um sistema invertido de privilégio nacional” e do perigo de um “sentimento antijudaico latente”
em Roma (Romans and the Theology of Paul, in David M. Hay, E.Elizabeth Johnson [ed.], Pauline
Theology III, 60 [cf. nota 38]).
58. Leonard V. Rutgers, Roman Policy toward the Jews, 64 (cf. nota 45).
59. Justin J. Meggitt, Paul, Poverty, and Survival, 155-164 (cf. nota 1); David Horrell, Paul’s
Collection: Resources for a Materialist Theology, Epworth Review 22 (1995) 74-83.

185
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
entregou os ímpios, Paulo convida os cristãos a oferecer seus corpos a Deus na
santidade à guisa de “culto espiritual” e a ter uma inteligência renovada (12,1-2).
Essa mudança tornou-se possível pelo batismo, graças ao qual os crentes são pos-
tos a serviço da justiça (6,1-19)60. Da mesma maneira, o dom do Espírito dá à
comunidade o poder de realizar a vontade de Deus (8,3-11), como “devedores”
que participam do mesmo dever de família (8,12-17)61.
Uma vez que essa maneira de viver é plenamente honrada, do mesmo modo
como Paulo “não se envergonha” de seu Evangelho (Rm 1,16), assim todos aque-
les que vivem em harmonia com o Evangelho vivem livres de toda vergonha, na
santidade (6,19-23). Além disso, a santa resposta que os romanos derem à carta de
Paulo garantirá, por sua vez, a santidade da “oferenda dos pagãos”, que é para eles
uma obrigação sagrada (Rm 15,14-16). O cumprimento da missão apostólica por
parte de Paulo, que consiste em conduzir à “obediência da fé todos os povos pa-
gãos” (1,5), exige que os romanos cumpram, de sua parte, suas próprias obrigações
levando uma vida santa. A carta pode ser entendida, pois, com razão, como o que
constitui “o trabalho de Paulo entre os romanos como trabalho missionário”62.
O tempo à disposição não permite que façamos um estudo pormenorizado
da retórica da epístola aos Romanos nessa perspectiva63. Mas é evidente que essa
leitura “subversiva” da carta se choca aparentemente com o sentido de Romanos
13,1-7, que constitui o obstáculo para qualquer um que tente seriamente com-
preender Paulo no contexto do imperialismo romano. É então essa passagem que
vou abordar, para terminar.

6. A retórica de Paulo e a “voz sob dominação”

Assistimos nos últimos vinte anos a uma explosão de estudos sobre a retórica
das cartas de Paulo. A maior parte desses trabalhos aplicam ao exame das cartas as
categorias definidas nos manuais clássicos de retórica. Mas convém saber que esses
manuais foram redigidos para descrever — e para prescrever — os meios de uma

60.Victor P. Furnish, Theology and Ethics in Paul, Nashville, Abingdon, 1968, 98-106.
61. Mark Reasoner (The Strong and the Weak, 175-199 [cf. nota 57]) descreve “a obrigação”
como a solução proposta por Paulo para o conflito que grassa em Roma.
62. J. P. Sampley, Romans in a Different Light: A Response to Robert Jewett, in David M. Hay,
E. Elizabeth Johnson (ed.), Pauline Theology III, 112-115 (cf. nota 38). J. Christiaan Beker (Paul the
Apostle, 72 [cf. nota 33]) admitia a importância simbólica da coleta, mas a subordinava ao “debate
com o judaísmo” na carta.Ver por enquanto Neil Elliott, Rhetoric of Romans, 86-99 (cf. nota 34).
63. Nessa linha, preparei um ensaio que será publicado em Rasiah S. Sugirtharajah (ed.), The
Postcolonial Biblical Commentary, Sheffield, Sheffield Academic Press. Cf. também Neil Elliott, Ro-
mans 13:1-7 in the Context of Imperial Propaganda, 184-204 (cf. nota 53).

186
III – Paulo antes de Paulo
comunicação eficaz entre os poderosos. O tribunal de justiça, a assembleia legisla-
tiva e as cerimônias cívicas eram os lugares em que o poder político se construía
e em que se “encenava”; e eram eles os únicos lugares em que, segundo os ma-
nuais, um discurso eloquente podia acontecer. Procuraremos em vão nos manuais
discussões a respeito da retórica da queixa da escravidão, da denúncia do profeta
ou da visão apocalíptica.
Mas é possível ir mais longe utilizando as categorias elaboradas por James C.
Scott em seu estudo sobre as estratégias de resistência nas culturas rurais64. Scott faz
uma distinção entre o public transcript, o roteiro público, a versão pública dos fatos,
ou seja, “a interação aberta entre os subordinados e os que os dominam”65, e o hid-
den transcript, o roteiro oculto, a versão oculta dos fatos, ou seja, o “discurso que se
mantém ‘nos bastidores’, furtando-se à observação direta dos que detêm o poder”66.
O roteiro público recupera “o desempenho público exigido daqueles que estão
submetidos a formas elaboradas e sistemáticas de dominação social”. É por isso que,
regra geral, esse roteiro “terá tendência a se conformar às expectativas dos podero-
sos, por prudência, por medo ou por desejo de atrair o favor deles”. Segundo Scott,
o public transcript, “ainda que não seja totalmente mentiroso, tem poucas oportuni-
dades de expressar toda a verdade sobre as relações de poder”. Com efeito, “muitas
vezes é do interesse dos dois partidos” — os dominados e os dominadores — “en-
trar tacitamente em acordo sobre representações errôneas”67. A pressão social “pro-
duz um roteiro público em conformidade estreita com o modo como o grupo
dominante desejaria que as coisas se apresentassem”. Por consequência, “toda aná-
lise exclusivamente fundada no roteiro público tem boas chances de concluir que
os grupos subordinados aceitem as condições de sua subordinação e que se asso-
ciem de bom grado, até mesmo com entusiasmo, a essa subordinação”68.
Mas essa conclusão seria falsa. “Praticamente, todas as relações entre domi-
nante e subordinado que de ordinário se observam representam o encontro do

64. James C. Scott, Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts, New Haven/Lon-
don,Yale University Press, 1990; cf. também a obra anterior do mesmo autor: Weapons of the Weak:
Everyday Forms of Peasant Resistance, New Haven,Yale University Press, 1985.
65. Id., Domination and the Arts of Resistance, 2 (cf. nota anterior): “the open interaction between
subordinates and those who dominate”.
66. Ibid., 4-5: “discourse that takes place ‘offstage’, beyond direct observation by powerholders”.
67. Ibid., 2: “The public transcript, where it is not positively misleading, is unlikely to tell the
whole story about power relations. It is frequently in the interest of both parties to tacitly conspire
in misrepresentation”.
68. Ibid., 4: “produce a public transcript in close conformity with how the dominant group
would wish to have things appear” […] “any analysis based exclusively on the public transcript is
likely to conclude that subordinate groups endorse the terms of their subordination and are willing,
even enthusiastic, partners in that subordination”.

187
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
roteiro público do dominante com o roteiro público do subordinado […]. Como
regra geral, as ciências sociais se concentram decididamente nas relações oficiais
ou formais entre os poderosos e os fracos.”69
De sua parte, o roteiro oculto se compõe de todos “esses discursos, gestos e
práticas ‘nos bastidores’ que confirmam, contradizem ou distorcem o que aparece
no roteiro público”. Scott não se propõe somente identificar elementos dos rotei-
ros ocultos quando eles surgem (ocasionalmente), mas do mesmo modo “dimen-
sionar a diferença entre o roteiro oculto e o roteiro público para que possamos
começar a avaliar a influência do fenômeno da dominação sobre o discurso
público”70.
A fronteira entre roteiro público e roteiro oculto é um terreno de combate
permanente entre os dominadores e os dominados — e não uma divisória so-
lidamente estabelecida. A capacidade dos grupos dominantes de impor — ja-
mais totalmente — sua definição e sua concepção do que deve ser roteiro pú-
blico e do que deve estar “fora de cena” é constitutiva em grande medida de
seu poder, como veremos. Esses limites são o objeto de um combate constante,
que é, sem dúvida, o terreno principal dos conflitos ordinários, das formas co-
tidianas da luta de classes71.
A questão decisiva, evidentemente, é saber como o analista poderá reconhe-
cer um roteiro oculto. Scott observa a esse propósito que acontece às vezes de
aquilo que pertence ao roteiro oculto se exprimir fora dos limites do grupo su-
bordinado, quando se produz uma transgressão da etiqueta que rege as relações de
poder, a qual equivale a “uma declaração de guerra simbólica”72. Somente quando
o analista chega a detectar uma diferença entre os valores expressos pelo discurso,
pelos gestos e pela prática de um grupo subordinado e os valores que predomi-

69. Ibid., 13: “Virtually all ordinarily observed relations between dominant and subordinate
represent the encouter of the public transcript of the dominant with the public transcript of the
subordinate. […]. Social science is, in general then, focused resolutely on the official or formal re-
lations between the powerful and weak”.
70. Ibid., 4-5: “those offstage speeches, gestures, and practices that confirm, contradict, or in-
flect what appears in the public transcript […]. By assessing the discrepancy between the hidden
transcript and the public transcript we may begin to judge the impact of domination on public
discourse”.
71. Ibid., 14; “The frontier between the public and the hidden transcript is a zone of constant
struggle between dominant and subordinate — not a solid wall. The capacity of dominant groups
to prevail — though never totally — in defining and constituting what counts as the public trans-
cript and what as offstage is, as we shall see, no small measure of their power. The unremitting
struggle over such boundaries is perhaps the most vital arena for ordinary conflict, for everyday
forms of class struggle”.
72. Ibid., 8.

188
III – Paulo antes de Paulo
nam no roteiro público é que pode falar, com razão, de uma emergência ou da
manifestação de um roteiro oculto.
Scott fala assim com otimismo das perspectivas que se abrem:
A análise do roteiro oculto dos poderosos e do dos subordinados abre, a meu
ver, o caminho a uma ciência social que desvenda as contradições e as po-
tencialidades, que vê mais longe que a superfície lisa que apresenta a adapta-
ção pública à divisão atual do poder, da riqueza e do status social. […] O
analista […] possui uma vantagem estratégica sobre os atores [do jogo so-
cial], mesmo os mais sensíveis, pelo fato de que o roteiro oculto dos domi-
nantes e o dos dominados praticamente jamais entram em contato. É por
isso que a análise política não pode senão se beneficiar de uma pesquisa ca-
paz de comparar o roteiro oculto dos grupos subordinados com o roteiro
oculto dos poderosos, e de comparar os roteiros ocultos com o roteiro pú-
blico que lhes é comum73.
Por outro lado, Scott reconhece que o tema de sua pesquisa é “a conduta,
muitas vezes fugidia, de grupos subordinados”. Ele admite que “a imodéstia” de
seu objetivo em nada garante que ele será atingido, a não ser de maneira fragmen-
tária e esquemática. Todavia, o fato de prestar atenção a todos os atos e gestos
políticos mascarados ou “fora de cena” pode contribuir para “estabelecer o mapa
do terreno de uma possível dissidência”:
Creio que será justamente aí que encontraremos a base social e normativa para
formas práticas de resistência […], bem como os valores que poderão alimen-
tar, se as condições o permitirem, formas mais espetaculares de rebelião. O
ponto importante é que não podemos compreender nem as formas cotidianas
da resistência nem as insurreições ocasionais sem fazer referência aos espaços
sociais isolados em que a resistência pode se alimentar e encontrar seu sentido.
Essa análise, se pudéssemos pretendê-la com mais detalhe do que tentamos fa-
zer aqui, acabaria numa tecnologia e numa prática da resistência, do mesmo
modo como a análise de Michel Foucault põe em evidência a tecnologia da
dominação74.

73. Ibid., 15:“The analysis of the hidden transcripts of the poweful and of the subordinates offers
us, I believe, one path to a social science that uncovers contradictions and possibilities, that looks
well beneath the placid suface that the public accommodation to the existing distribution of power,
wealth, and status often presents […]. The analyst […] has a strategic advantage over even the most
sensitive participants precisely because the hidden transcript of dominant and subordinate are in
most circunstances, never in direct contact […]. For this reason, political analysis can be advanced
by research that can compare the ridden transcript of subordinate groups with the hidden trans-
cript of the powerful and both hidden transcipts with the public transcripts they share”.
74. Ibid., 20: “Here, I believe, we will typically find the social and normative basis for practical
forms of resistance […] as well as the values that might, if conditions permitted, sustain more dra-
matic forms of rebellion. The point is that neither everyday forms of resistance nor the occasional

189
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
Não é de todo difícil identificar “roteiros ocultos” em certos textos do pe-
ríodo do Segundo Templo. Quando o Pesher de Habacuc, de Qumran, utiliza o
termo Kittim para falar de Romanos (1QpHab, passim), ou quando o autor do
evangelho de Marcos formula a advertência “que o leitor compreende” (Mc 13,14),
sabemos que lidamos com um roteiro mais amplo, que fica bem oculto aos nossos
olhos. Pode ser que jamais sejamos capazes de encontrar roteiros mais vastos, mas
somos obrigados a reconhecer que existem.
A situação é evidentemente bem mais complicada quando se trata de textos
que não contêm traços explícitos de um roteiro oculto. Mas Scott nos incentiva a
continuar a reflexão: temos de imaginar não que haja tão somente roteiro público
na paisagem social, mas que o roteiro oculto não cessa de “pressionar e testar os
limites do que podemos nos aventurar a dizer sem risco em reação ao roteiro pú-
blico que implica a diferença e a conformidade”.
Para a análise é, portanto, possível discernir a presença de um diálogo com a
cultura pública dominante, tanto no roteiro público como no roteiro oculto.
Ler esse diálogo a partir do roteiro oculto é ler uma reação mais ou menos di-
reta, sem reserva, contra os discursos da elite. […] Ler o diálogo a partir das
tradições orais públicas dos grupos dominados exige uma leitura mais matizada
e literária, pela simples razão de que o roteiro oculto foi obrigado a dissimular
e a se exprimir com mais precaução. Esse discurso assegura o melhor possível
seu efeito — e é também o mais apreciado — quando tem a audácia de con-
servar tanto quanto possível a força retórica do roteiro oculto, desafiando o
perigo75.
Para ilustrar isso, encontrei um exemplo brilhante — e a meu ver de grande
alcance para a interpretação de Romanos 13. Encontra-se no livro II do tratado
de Fílon sobre os sonhos, o De Somniis, e foi trazido à luz por Goodenough há
várias décadas76.

insurrection can be understood without reference to the sequestered social sites at which such
resistance can be nurtured and given meaning. Done in more detail than can be attempted here,
such an analysis would outline a technology and practice of resistance analogous to Michel
Foucault’s analysis of the techology of domination”.
75. Ibid., 164-165: “Analytically, then, one can discern a dialogue with the dominant public
culture in the public transcript as well as in the hidden transcript. Reading the dialogue from the
hidden transcript is to read a more or less direct reply, with no holds barred, to elite homilies […].
Reading the dialogue from the public oral traditions of subordinate groups requires a more
­nuanced and literary reading simply because the hidden transcript has had to costume itself and
speak more warily. It succeeds best — and one imagines, is most appreciated, too — when it
dares to preserve as much as possible of the rhetorical force of the hidden transcript while skir-
ting danger”.
76. Erwin R. Goodenough, An Introduction to Philo Judaeus, Oxford, B. Blackwell, 21962.

190
III – Paulo antes de Paulo
Trata-se de uma passagem em que Fílon trata do tema da “prudência”
(euvla,beia). Interpretando o sonho em que José vê feixes de trigo se prosternarem
diante dele, Fílon aproveita a ocasião para descrever os arrogantes que “se elevam
acima de tudo, das cidades, das leis, dos costumes ancestrais, dos negócios de cada
cidadão” a fim de “rebaixar a situação de seus vizinhos” e que “se põem de acordo
para submeter até os espíritos independentes e livres por natureza”77. Observemos
primeiramente que o meio de expressão escolhido por Fílon — a interpretação
alegórica da Bíblia — permite-lhe certa “capacidade de recusa” (deniability), um
“disfarce” (disguise) de suas opiniões políticas78. E quais são suas opiniões? Fílon
fala de uma submissão contra a natureza à ditadura, imposta a pessoas que são natu-
ralmente livres (tema que não tem base textual no relato do Gênesis, o que é um
indício, creio, da existência de um roteiro oculto). Imediatamente a seguir, toda-
via, ele volta atrás e afirma que “é totalmente natural”. Escreve ele:
o homem de bem, ao viver na meditação não somente da vida humana, mas
também de tudo o que compõe o universo, sabe como se comportam os so-
pros da fatalidade, da sorte, da ocasião, da violência, do poder, e quantos proje-
tos e grandes fortunas, tendo corrido até o céu sem tomar fôlego, se abalaram
e se esborracharam no chão.Também é necessário se servir da prudência como
defesa […] o que representa para uma cidade o muro que a circunda, a prudên-
cia o representa para cada um de nós79.
Fílon se conforma aqui com o roteiro público e descreve a fatalidade, a sorte,
a ocasião, a violência e o poder como fenômenos naturais do mundo. São assim,
com efeito, que eles são vistos por autores da elite romana, como Cícero,Tácito ou
Plutarco. Mas Fílon já indicou que essas forças não são todas igualmente “naturais”,
pois algumas delas são produto dos seres humanos que fazem violência a outros.
É de importância capital para nosso assunto que Fílon faça uma distinção
semelhante à que fez Scott entre roteiro público e roteiro oculto. A “prudência”,
observa ele, deve ser exercida, antes de mais nada, com a evitação de uma “fran-
queza fora de propósito” (parrhsi,an a;kairon)80. Fílon sabe que existem pessoas
“que perderam o senso, loucos”, que ousam “desafiar em palavras e em atos reis, às
vezes tiranos”81. É interessante observar que Fílon não diz que eles são “loucos”

77. Fílon, Som 2,78-79; aqui e a seguir, utilizaremos a tradução de Pierre Savinel em Les oeuvres
de Philon d’Alexandrie, Paris, Cerf, 1962; 19: De Somniis I-II.
78. Sobre “a arte da dissimulação política”, cf. James C. Scott, Domination and the Arts of Resistan-
ce, 136-182 (cf. nota 64).
79. Fílon, Som 2,81-82.
80. Ibid., 83.
81. Ibid.

191
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
porque são incapazes de reconhecer o benefício que vem do fato de aceitar sub-
meter-se à ordem imperial (é assim que o discurso oficial definiria o louco). Ao
contrário, se Fílon os chama de loucos, é porque eles são incapazes de reconhecer
quanto essa ordem é má.
Não se dão conta de que não somente têm a nuca sob o jugo, como os animais
de carga, mas que a mesma cadeia mantém prisioneiro o corpo inteiro, a alma,
mulher, filhos, pai e mãe, sua numerosa parentela e o amplo círculo de seus
amigos, que o que tem as rédeas pode com a maior facilidade esporear, acossar,
reprimir, agarrar pela crina, dar-lhes com a intensidade que desejarem seja lá
que tratamento for? É por isso que, trespassados, chicoteados, com as extremi-
dades cortadas, suportando um conjunto de torturas que uma crueldade im-
placável inflige antes da morte, depois de tudo isso, são levados à parte e
mortos82.
A distinção que Fílon faz entre “prudência” e “franqueza fora de propósito”
assemelha-se muito à distinção de Scott entre roteiro público e roteiro oculto:
A prudência diplomática faz que os grupos subordinados raramente deixem
escapar diretamente seu roteiro oculto. Mas, tirando proveito do anonimato de
uma multidão ou de um incidente ambíguo, eles conseguem de mil modos
astuciosos dar a entender que é contra a vontade deles que fazem parte da
representação83.
Scott reconhece, como Fílon, que é “a frustração de não poder agir em res-
posta” que explica o conteúdo do roteiro oculto:“o resultado mais cruel da servi-
dão humana é que ele faz da afirmação de sua dignidade pessoal um risco mortal.
Adotar uma atitude de conformidade diante da dominação é, então, de tanto em
tanto — e em situações que jamais esquecemos —, uma questão de abafar uma
violenta raiva, no interesse de sua própria pessoa e das pessoas que amamos”84.
Em outra passagem, Fílon relata que os coletores de impostos romanos exer-
ceram sua função com grande brutalidade, em particular contra aldeias judaicas85.
Embora não mencione nominalmente os romanos em De Somniis, a retórica que

82. Ibid., 83-84.


83. James C. Scott, Domination and the Arts of Resistance, 15 (cf. nota 64): “Tactful prudence
ensures that subordinate groups rarely blurt out their hidden transcript directly. But, taking advan-
tage of the anonymity of a crowd or of an ambiguous accident, they manage in a thousand artful
ways to imply that they are grudging conscripts to the performance”.
84. Ibid., 37: “The cruelest result of human bondage is that it transforms the assertion of
personal dignity into a mortal risk. Conformity in the face of domination is thus occasionally
— and unforgettably — a question of suppressing a violent rage in the interest of oneself and
loved ones”.
85. Fílon, SpecLeg 2,92-95; 3,159-163.

192
III – Paulo antes de Paulo
utiliza é bem eloquente86. A submissão política descrita por Fílon equivale a viver
como gado, que suporta dores e maldades até o momento em que é finalmente
abatido. Fílon não dá aqui razão alguma para justificar a consideração devida aos
governantes. Na realidade, Fílon interpreta o sarcasmo dos irmãos de José
— “Quererias reinar sobre nós como rei ou dominar-nos como dominador?”
(Gn 37,8) — como o discurso certo de desafio, que é o do verdadeiro sábio e que
deve ser pronunciado quando as circunstâncias o permitem87.
Fílon apresenta um outro indício da existência de um cenário “nos bastido-
res” quando propõe uma interpretação alegórica de Gênesis 23,7, em que se trata
da submissão de Abraão aos filhos de Heth. Ainda que o texto não utilize esse
termo, Fílon dá ênfase ao fato de que a submissão de Abraão era uma atitude mo-
tivada pelo “medo” e não pelo “respeito”88:
Pois não era por respeito em relação aos que, por natureza, atavismo e hábi-
to, são inimigos da razão […] que Abraão acabou se prosternando: mas é que
ele temia naquele momento a força e o poder invencível deles e evitava
provocá-los […]89.
“Abster-se de toda provocação”: é essa a verdadeira prudência quando se
está sob dominação. Como um marinheiro prudente que aguarda a tempestade
passar antes de içar as velas — como um viandante que, ao encontrar pelo cami-
nho um urso, um leão ou um javali, procura apaziguar e acalmar a fera —, assim o
cidadão prudente deve adotar uma atitude de paciência e de consideração diante
dos detentores do poder90. Tudo isso é dito de maneira indireta, em termos bem
gerais, e, ainda que as comparações não sejam quase nada lisonjeiras para os magis-
trados, não são nem muito específicas nem muito abertamente provocadoras para
constituir uma ofensa91. Numa ocasião, todavia, Fílon se revela e deixa de falar
como se seu discurso fosse abstrato e geral:
Aliás, nós mesmos não temos o hábito, quando nos encontramos na praça, de
nos desviar quando passam os magistrados e de nos desviar também quando
passam os animais de carga? Mas é por razões opostas e não idênticas. Diante

86. As palavras que Fílon põe nos lábios daqueles de quem faz elogio, os irmãos de José (Som
2,93-95), são dignas de um zelote que convoca a empunhar armas.
87. Ibid., 2,93-94.
88. Como observei em outra parte, essa distinção entre submissão motivada pelo “medo” e
consentimento motivado pelo “respeito” é precisamente um pilar da ideologia romana; ver Neil
Elliott, Romans 13:1-7, 189-199 (cf. nota 53).
89. Fílon, Som 2,90.
90. Ibid., 86-87.
91. Flávio Josefo põe exatamente o mesmo topos nos lábios de Agripa, suplicando aos rebeldes
que capitulem; cf. Bell 2,396.

193
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
dos magistrados, nós nos afastamos por respeito, diante dos animais de carga,
por medo de que por causa deles nos aconteça algum acidente92.
Decerto, esses esclarecimentos chegam um pouco tarde. A distinção entre os
magistrados e os animais de carga é explicitamente mantida, mas está minada por
dentro por tudo o que Fílon disse, por outro lado, da brutalidade dos detentores
do poder. E sua insistência sobre “a honra” prestada aos magistrados é contradita
por seu comentário anterior segundo o qual é o medo e não o respeito que leva
o subordinado a manifestar exteriormente sua deferência.
Segundo Goodenough,“o sarcasmo no fim do desenvolvimento é evidente”
— mas não suficientemente evidente, todavia, para tirar a ambiguidade ciosamen-
te mantida em todo o resto do trecho:
Fílon constantemente compara os governantes cruéis a animais selvagens e
mortalmente perigosos. Quando descreve como os judeus no mercado têm de
se afastar para dar lugar tanto aos magistrados quanto ao bando de animais de
carga, a distinção que estabelece a seguir entre os dois, logo depois de ter feito
clara alusão aos magistrados de Alexandria, realça a mesma prudência que está
por recomendar. Apressa-se a dizer: diante dos magistrados a gente se afasta por
respeito, ao passo que diante dos animais a gente se afasta por medo […]93.
Agindo assim, Fílon mantém uma deferência exterior em relação à legitimi-
dade do poder romano que é um elemento essencial do discurso oficial.
Mas os leitores judeus [de Fílon] podiam compreender muito bem que a razão
pela qual Fílon se afastava de uns e de outros era, na realidade, a mesma: sabia
que estaria aniquilado se não o fizesse94.
Em outras palavras, os leitores judeus podiam facilmente descobrir alusões
aparentemente incongruentes no tratado, mas que faziam pleno sentido num ou-
tro roteiro, um roteiro “nos bastidores”.
Constatamos aqui que Fílon distingue explicitamente os dois roteiros —
o roteiro “público”, feito de deferência em relação à ordem imperial, e o rotei-
ro “nos bastidores”, feito de provocação dessa mesma ordem. Esse segundo ro-

92. Fílon, Som 2,91.


93. Erwin R. Goodenhough, An Introduction to Philo Judaeus, 57 (cf. nota 76): “Philo has com-
pared harsh rulers to savage and deadly animals throughout.When he mentions how in the market­
place the Jews have to make place for their rulers and the pack animals alike, it is part of the very
caution he is counseling that he should distinguish between the two, once the rulers in Alexandria
have been distinctly referred to, and say that one gives way out of honor to the rulers, but out of
fear to the beast […]”.
94. Ibid.: “But [Philo’s] Jewish readers would quite well have understood that the reason Philo
gave way to each was the same, because he knew that if he did not he would be crushed”.

194
III – Paulo antes de Paulo
teiro se caracteriza pelas categorias do “falar livremente” ou “com ousadia”
(evleuqerostomei,tw fa,skousa), e do falar com “uma franqueza fora de propósito”
(parrhsi,a a;kairoj)95. Escreve Fílon: “Se as circunstâncias permitirem” — em
outras palavras, quando surge um espaço social que permite à comunicação “nos
bastidores” assumir o lugar na “cena aberta” e permite ao roteiro oculto da provo-
cação se tornar público —, então “é conveniente atacar nossos inimigos e lançar
por terra a tirania deles; mas, em caso contrário, o mais seguro é ficar quieto”96.
Em Paulo, claro, há roteiros ocultos. Assim, ele não diz aos coríntios o que
“um homem” viu no terceiro céu (2Cor 12). Não comunica senão aos espirituais
o que é uma sabedoria “espiritual” (1Cor 1-2). Mais importante ainda, Paulo pode
recorrer a alusões indiretas como “o tempo”, “a hora”, “o dia” (Rm 13,11-13),
sem dar mais detalhes sobre o roteiro apocalíptico ao qual essas expressões lacôni-
cas se referem97. A questão, portanto, não é saber se podemos fazer distinção entre
roteiros públicos e roteiros ocultos nas cartas de Paulo, mas saber onde e como
podemos fazê-la.
A chave hermenêutica parece se encontrar no modo como Paulo com-
preende a cruz e em seus esforços como apóstolo para tornar presente no espaço
da cidade romana o poder divino revelado pela cruz. Nesse espaço — no roteiro
público — Paulo admite que sua ação de apóstolo parece ser comunicar uma
causa perdida e desprovida de sentido, “um odor de morte que leva à morte”, mas
para os que compreendem o verdadeiro roteiro, o roteiro oculto, ela é um “odor
de vida que leva à vida”, “o bom odor do Cristo para Deus” (2Cor 2,14-16). O
fato de que aqui (e alhures) a distinção entre mensagem pública e mensagem
oculta seja formulada em termos emprestados do vocabulário das cerimônias do

95.Ver, respectivamente, Fílon, Som 2,95 e 2,83.85.


96. Ibid., 92.
97. J. Christiaan Beker (Paul the Apostle, 138-152, 176-181 [cf. nota 33]) citou essas expressões
para demonstrar que a teologia de Paulo estava centrada numa viva expectativa apocalíptica. A di-
ficuldade que Beker foi obrigado a enfrentar para defender sua tese diante de uma interpretação
“cristocêntrica” de Paulo pode ser interpretada como uma indicação da influência exercida na
pesquisa paulina pelo “roteiro público” e de sua capacidade de eclipsar o “roteiro oculto”, o roteiro
apocalíptico. Observemos que James D. G. Dunn (The Theology of Paul, 310 [cf. nota 31]) se pergun-
ta com perplexidade “por que o caráter apocalíptico das epístolas aos Tessalonicenses é relativamen-
te isolado, e por que Paulo não expôs com mais coerência sua teologia a esse respeito em suas cartas
posteriores, nem mesmo numa carta tão cuidadosamente redigida como Romanos” (“why the
apocalyptic character of the Thessalonian letters appears relatively isolated, and why Paul did not
set out his theology on this point with greater coherence in the later letters, not least the more
carefully laid-out Romans”). Fico agradecido aos participantes do 3o ciclo em Bex por me terem
aberto os olhos para esse exemplo de “roteiro oculto”.

195
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
culto do imperador indica pelo menos que a mensagem de conjunto do Evange-
lho de Paulo é extremamente irônica e subversiva em relação à ordem imperial.
Voltando a Romanos 13, constato que as declarações de Paulo a respeito das
autoridades políticas de plantão são muito mais reservadas que as de outros judeus
que viviam sob a dominação de Roma. Como observa Meggitt, “Deus os estabe-
lece (tetagme,nai, Rm 13,1), não lhes confere uma ordem”98. Não há aqui ne-
nhum vestígio do entusiasmo pelo destino divinamente estabelecido do povo
romano, que infesta o discurso de Josefo99. Não há nenhuma adesão ao lugar-co-
mum — tão antigo quanto Aristóteles — segundo o qual o mundo está “natural-
mente” dividido entre governantes e governados, entre senhores e escravos. Ao
contrário, Paulo escreve que cada alma está sujeita “às autoridades que exercem o
poder” (evxousi,aij u`perecou,saij, Rm 13,1), uma frase participial, que é notável
para a modéstia de suas pretensões.
A posição aparentemente ingênua de Paulo ao esperar das autoridades que
recompensem a boa conduta e castiguem a que é má (Rm 13,3-4), e que atuem
assim como servidoras de Deus (dia,konoj, 13,4; leitourgoi,, 13,6), é desmentida
por duas observações: Paulo afirma que “não é em vão que ela [a autoridade] traz
a espada” (13,4); esclarece que se deve temer a autoridade — e não somente
quando se faz o mal (13,4), mas também porque o temor é “devido” à autoridade
como tal (13,7).
Essas observações adquirem todo o seu peso à luz dos lugares-comuns da
retórica romana. Propagandistas como Cícero não cessam de repetir que o medo
e a ameaça da força não são necessários senão para povos indisciplinados e incul-
tos. Os cidadãos, ao contrário, dão naturalmente e de boa vontade seu consenti-
mento à autoridade100. Na mesma linha, o historiador Velleius Paterculus reco-
nhece que a persuasão e a injunção pela força eram os dois instrumentos gêmeos
para garantir a ordem social101. Mais tarde, Plutarco faz uma distinção entre a de-
pendência dos romanos em relação à Fortuna, a deusa que garantira seus inume-
ráveis triunfos militares, e a predileção dos gregos pela Sabedoria ou pela Prudên-
cia, que são as virtudes da persuasão retórica102. Os porta-vozes da propaganda de

98. Justin J. Meggitt, Paul, Poverty, and Survival, 186 (cf. nota 4): “God orders them (tetagme,nai,
13:1), he does not ordain them”.
99.Ver mais uma vez o discurso atribuído a Agripa por Flávio Josefo (Bell, espec. 2,350-358).
100. Assim, o homem de condição sábia seria qualificado por suas capacidades retóricas (para
persuadir os que estão à sua volta) e militares (para coagir seus subordinados): cf. Cícero, Rep 5,6;
cf. também 3,41.
101.Velleius Paterculus, História de Roma 2,126.
102. Plutarco, Fort 318.

196
III – Paulo antes de Paulo
Nero tomaram como base essa distinção comum entre persuasão e força para
afirmar que as práticas coercitivas pertenciam a uma época passada. O novo impe-
rador tinha subido ao poder sem recorrer à força e tinha inaugurado assim um
período de ouro em que “a Paz […] ignora a utilidade da espada”103. As armas
utilizadas nas guerras passadas não são mais que curiosidades históricas104. Sêneca
chega mesmo a atribuir ao imperador esta declaração: “Minha espada está na bai-
nha; vale mais guardada, pois sou parco no sangue, mesmo o mais miserável; qual-
quer homem, na falta de outros títulos, tem crédito comigo por sua qualidade de
homem”105. Sêneca não cessa de admirar o fato de que um príncipe tão nobre não
deva mais ser temido por sua proteção: “A força armada que mantém não é para
ele senão um ornamento”106.
A visão de Paulo é, manifestamente, bem outra. A espada de Roma continua
a ser brandida, a provocar o medo (fo,boj, Rm 13,4), e é por isso que a atitude a
ser adotada é a de “submissão” e “sujeição”, mais que a de revolta (13,2). Podemos
perceber nesse texto os vestígios de um “roteiro oculto” nas Igrejas paulinas, que
se exprime em termos bem semelhantes às observações cuidadosamente calcula-
das de Fílon no De Somniis. Quando a propaganda romana nos levaria a esperar de
um beneficiário da ordem romana que se gabasse do consentimento e da concordância
(cf. sunei,dhsij, Rm 13,5), Paulo fala de uma alternativa entre duas atitudes, a sub-
missão (u`pota,ssesqai) ou a revolta (avntita,ssesqai; avnqi,sthmi) —, o que, antes,
deveria ser entendido como ingratidão, própria dos não civilizados. Quando de-

103. Calpurnius Siculus, Bucolique [Ecloque] 1,59-64:“La Clémence a ordonné que s’éloignent
toutes les tares d’une fausse paix et elle a brisé les épées démentes […]. Il règnera une parfaite
quiétude, qui, ignorant le fer qu’on dégaine, ramènera au Latium un second règne de Saturne” (“A
Clemência ordenou que se afastassem todas as taras de uma falsa paz e quebrou as espadas dementes
[…]. Reinará uma perfeita quietude, que, ignorando o ferro que se desembainha, trará ao Lácio um
segundo reino de Saturno”); tradução francesa de Jaqueline Amat em Calpurnius Siculus. Bucoliques,
Paris, Les Belles Lettres, 1991, 9 (Collection des Universités de France); J. Wight Duff, Arnold M.
Duff, Minor Latin Poets, with Introduction and English Translations, Cambridge (MA), Harvard
University Press, 1954, 222-223 (LCL).
104. Écoglas de “Einsiedeln” 2,25-31:“We reap with no sword, nor do towns in fast-closed walls
prepare unutterable war; there is not any woman who, dangerous in her motherhood, gives birth
to an enemy. Unarmed our youth can dig the fields, and the boy, trained to the slow-moving plou-
gh, marvels at the sword hanging in the abode of his fathers”; texto e tradução em J. Wight Duff,
Arnold M. Duff, Minor Latin Poets, with Introduction and English Translations, Cambridge (MA),
Harvard University Press, 1954, 332-335 (LCL).
105. Sêneca, Clem I,1,3: “Conditum, immo constrictum aput me ferrum est, summa parsimonia
etiam vilissimi sanguinis; nemo non, cui alia desunt, hominis nomine aput me gratiosus est”; texto
e tradução de François Préchac em Sénèque. De la clémence, Paris, Les Belles Lettres, 31967, 3 (Col-
lection des Universités de France).
106. Sêneca, Clem I,13,5: “arma ornamenti causa habet” (Sénèque, 33 [cf. nota 105]).

197
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
clara que “os magistrados não devem ser temidos (fo,boj) quando se faz o bem,
mas quando se faz o mal” (Rm 13,3), certamente está de acordo com a propagan-
da romana, precisamente como quando observa que aquele que faz o bem não
deve “temer a autoridade” e que somente o que faz o mal é que deve temê-la
(Rm 13,3-4). Mais adiante, porém, Paulo exorta seus leitores a dar a cada qual “o
que lhe é devido”: a uns o temor (fo,boj), a outros o respeito (timh,, Rm 13,7). E
logo depois insiste no fato de que seus leitores não devem ter nenhuma dívida, a
não ser o amor mútuo: “Não tenhais nenhuma dívida com quem quer que seja,
a não ser a de vos amardes uns aos outros” (avgapa/n, Rm 13,8)!
Dadas as correntes exuberantes da retórica política na época de Nero, as
frases de Paulo ao encorajar a submissão são notavelmente ambivalentes. Suspeito
que para os ouvidos romanos oficiais a linguagem de Paulo teria tido o efeito de
uma aprovação dada a contragosto, mais que a reconhecida satisfação de um ho-
mem verdadeiramente civilizado107.
Mesmo que no tempo estejamos próximos dos motins que, segundo Suetô-
nio, tinham justificado uma ação repressiva contra “os judeus”108, bem como per-
turbações suscitadas pelo aumento dos impostos em Roma e na cidade vizinha de
Putéoli109, não é possível dizer hoje se Paulo, quando escreve aos romanos, consi-
derava que a tentação da sublevação era um perigo iminente (sua exortação a
pagar os impostos em Rm 13,6-7 foi lida dessa maneira).Todavia, qualquer judeu
ajuizado era capaz de imaginar qual teria sido a resposta do imperador a uma agi-
tação popular, modesta que fosse.
Leio, pois, Romanos 13,1-7 como parte de uma estratégia ad hoc de sobrevi-
vência110 numa situação de angústia, nem mais nem menos. O “realismo escatoló-
gico” de Paulo — um realismo determinado pela convicção inabalável de que
Deus ressuscitara dos mortos Jesus, o crucificado — jamais foi um realismo do
outro mundo. Paulo era uma criatura política pelo menos tão hábil quanto Fílon,
cuja insistência na necessidade de discernir o momento político, em seu tratado
alegórico De Somniis, nos parece admiravelmente moderna. “Se as circunstâncias

107. James C. Scott (Domination and the Arts of Resistance, 153 [cf. nota 64]) cita a observação de
Zora Neale Huston segundo a qual a arte verbal de grupos subordinados caracteriza-se muitas
vezes por “comentários e uma crítica social indiretos, velados”. Notemos também as observações
de Scott sobre a retórica do “resmungo” (grumbling), que sempre se detém justo diante da insubor-
dinação — de que ela é um prudente substituto (“which always stops short of insubordination —
to which it is a prudent alternative”, 155-156).
108. Suetônio, Caes,Tibère 43.
109. Tácito, Ann 13,48.
110. Sobre as estratégias de sobrevivência dos grupos subordinados e sem poder, ver Justin J.
Meggitt, Paul, Poverty and Survival, 155-178 (cf. nota 4).

198
III – Paulo antes de Paulo
permitirem”, escreve Fílon, “é conveniente atacar (avnqista,nai) nossos inimigos e
lançar por terra a tirania deles; mas, em caso contrário, o mais seguro é ficar quie-
to”. Senão, corre-se o risco de partilhar o destino dos que desafiam o poder:“tres-
passados, chicoteados, com as extremidades cortadas, suportando um conjunto de
torturas que uma crueldade implacável inflige antes da morte; depois de tudo isso,
são levados à parte e mortos”111.
As reflexões moderadas a que demos destaque em Romanos 13,1-7 ou no
segundo livro do De Somniis de Fílon não são excepcionais. De fato, essa mesma
“prudência realista” era uma necessidade “para todo mundo no Império”112. Mas o
que se deve evidenciar é a que ponto essa prudência deve ter sido percebida como
uma ruptura por ouvidos habituados a ouvir os temas triunfantes da escatologia
romana. O que Paulo declara, de fato, é: o Império continua tão perigoso quanto
sempre foi. Nada mudou.Tende prudência!
Não se encontra em Paulo a ideia fantástica segundo a qual os poderes esta-
riam prestes a se desvanecer milagrosamente, muito menos se encontra a ideia de
que são feitos para durar para sempre (Rm 13,11-12). O que está bem mais pró-
ximo, em todo caso, é o espaço de responsabilidade do cristão. Com efeito, ele
deve se aplicar com zelo ao bem comum (Rm 12,3-21) e cumprir a obrigação do
amor mútuo (13,8-10). O que constitui a “articulação” entre “o argumento” da
carta, em Romanos 1–11, e a parte parenética, em Romanos 12–15, é a exortação
geral a recusar se conformar ao mundo (12,2).Vimos que essa resistência implica-
va claramente para Paulo um desafio lançado à insolência ideológica do Império,
pela qual esse último procurava legitimar sua avidez brutal (ou seja, “manter a
verdade cativa da injustiça”, Rm 1,18).
Haja ou não adesão a todas as proposições acima, espero que tenham sido
suficientes para demonstrar a enorme promessa que encerra a nova abordagem
crítica que procura compreender Paulo no contexto da dinâmica e da ideologia
do imperialismo romano. Talvez esse esforço de compreensão nos faça tomar
consciência mais viva de nossa própria situação diante das culturas imperiais e das
pressões ideológicas que nos cercam nos dias de hoje.

111. Fílon, Som 2,83-92 (2,92, 2,84).


112. Erwin R. Goodenough, An Introduction to Philo Judaeus, 54-62 (cf. nota 76).

199
Situar Paulo à sombra do Império: prática apostólica, ideologia imperial e cerimonial imperial
A respeito das tradições cristossoteriológicas
pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
Daniel Gerber (Strasbourg)

As cartas de Paulo mostram empréstimos regulares adquiridos das tradições que, muito cedo,
circularam em diversos locais da Igreja. A flexibilidade desses materiais, raramente introdu-
zidos por uma fórmula de citação, nos põe, sobretudo, duas questões: a de seu teor inicial e a
de sua utilização pelo apóstolo. Situar esse substrato particular e se interessar pela maneira
como Paulo dele faz uso é um dos caminhos que permitem avaliar o grau de originalidade
de seu pensamento teológico ou observar seu modo de argumentar.

S e Paulo marcou com um sinal criador e decisivo a teologia cristã em sua emer-
gência, não é menos verdade que para forjar suas próprias convicções ele se
beneficiou de um fundamento plural, decerto ele próprio em obras, mas já relati-
vamente construído1. Todavia, o apóstolo não julgou necessário indicar sistemati-

1. É amplamente admitido que Paulo se apoiou em tradições cristãs já em circulação para com
elas alimentar substancialmente sua reflexão. Assim Martin Hengel, Christologie und neutesta-
mentliche Chronologie. Zu einer Aporie in der Geschichte des Urchristentums, in Heinrich Bal-
tensweiler, Bo Reike (Hrsg.), Neues Testament und Geschichte. Historisches Geschehen und Deu-
tung im Newen Testament. Oscar Cullmann zum 70. Geburtstag, Zürich/Tübingen,Theologischer
Verlag/Mohr Siebeck, 1972, 43-67 (46): “Darüber, dass Paulus in seinen Briefen in reichem Masse
traditionelle, ‘vorpaulinische’ Formeln verwendet, besteht in der Forschung kein Zweifel”; e, com
ligeira nuança, James D. G. Dunn, Prolegomena to a Theology of Paul, NTS 40 (1994) 407-432
(419): “It is generally though not universally, recognized that at various points in his letters Paul
cites or echoes language, phrases, formulae which […] must have been already established in wider
Christian discourse”; para outras opiniões ainda, ver igualmente Werner Georg Kümmel, Die Theo­

201
camente o que retomava das tradições da jovem Igreja2. Somente na primeira epís-
tola ao Coríntios, em que por duas vezes declara abertamente ter “transmitido” o
que ele próprio havia “recebido” anteriormente, é que realmente fala de sua quali-
dade de herdeiro, ao empregar uma fórmula de citação convencionada3. A ausência
regular de marcadores, explícitos em outras partes de suas cartas4, torna, por con-
sequência, delicada toda avaliação desse substrato particular do pensamento do
­Tarsiota5. Podemos nós, entretanto, esperar montar hoje um inventário exaustivo
desse fundo preexistente da correspondência paulina e vincular com total seguran-

logie des Neuen Testaments nach seinen Hauptzeugen. Jesus — Paulus — Johannes, Göttingen,
­Vandenhoeck & Ruprecht, 41980, 122 (NTD. Grundrisse zum Neuen Testament 3); Karl Hermann
Schelkle, Paulus. Leben — Briefe — Theologie, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1981, 155-158 (EdF 152); Peter Stuhlmacher, Das paulinische Evangelium, in Id. (Hrsg.), Das
Evangelium und die Evangelien,Tübingen, Mohr Siebeck, 1983, 157-182 (165) (WUNT 28); E. Earle
Ellis,Traditions in 1 Corinthian, NTS 32 (1986) 481-502 (495); Gérard Claudel, L’héritage chré-
tien de Paul, in Jacques Schlosser (éd.), Paul de Tarse, Paris, Cerf, 1995, 243-266 (243) (LeDiv 165);
Jean Zumstein,Theologie als Credoauslegung. Paulus und die urchristlichen Bekenntnisse, in Pier-
re Bühler, Emidio Campi, Hans Jürgen LUIBL (Hrsg.), Freiheit im Bekenntnis. Das Glaubens-
bekenntnis der Kirche in theologischer Perspektive, Zürich, Pano Verlag, 2000, 93-108 (94-95).
2. Não podemos esquecer a reivindicação apresentada em Gálatas 1,11-12, em que o apóstolo
nega ter “recebido” “de um homem” o Evangelho que anuncia. É importante notar, com Hermann
Von Lips (Paulus und die Tradition. Zitierung von Schriftworten, Herrenworten und urchristli-
chen Traditionen, Verkündigung und Forschung 36 [1991] 27-49 [32]), que cerca de um quarto das
citações do Antigo Testamento que se encontram em Paulo não são precedidas de uma fórmula que
permita identificá-las como tais; para cifras mais precisas, cf. Udo Schnelle, Paulus. Leben und
Denken, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2003, 101.
3. Christophe Senft (La première épître de saint Paul aux Corinthiens, Neuchâtel/Paris, Delachaux
& Niestlé, 1979, 149 [CNT 7]), observa a esse propósito: “Paralamba,nein, receber, e paradido,nai,
transmitir, são os termos técnicos que descrevem o processo da tradição, tanto nas escolas filosóficas
gregas e em diversos meios religiosos do mundo helenístico como no rabinismo”. Deve-se notar
que Paulo não fala em 1 Coríntios 15,3a da proveniência da confissão lembrada. A respeito das
palavras avpo. tou/ kuri,ou empregadas em 1 Coríntios 11,23a, Oscar Culmann (Etudes de Théologie
biblique, Neuchâtel, Delachaux & Niestlé, 1968, 160) pergunta com muita propriedade: “Por que
[Paulo não diz] ‘da parte da comunidade’?”.
4. Quanto à tradição relativa a Jesus, Hermann Von Lips (Paulus und die Tradition, 37 [cf. nota
2]) lembra que Paulo remete diretamente ao Senhor somente em 1 Coríntios 7,10; 9,14; 11,23 e
1 Tessalonicenses 4,15. Jürgen Becker (Paul, “L’Apôtre des nations”, trad. Joseph Hoffmann, Paris/
Montréal, Cerf/Médiaspaul, 1995, 141 [Théologies bibliques]) destaca em particular o caso “em
que uma palavra de Jesus atestada pelos sinóticos é utilizada por Paulo de maneira anônima (exem-
plo: Rm 12,14; Lc 6,28a)”.
5. Cf. Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 29 (cf. nota 2): “Es geht um einen Teilkom-
plex der Frage nach den Grundlagen der Theologie des Paulus, wenn nach den von ihm aufge-
nommenen und zitierten Traditionen gefragt wird”. Lembremos a esse respeito o interessante co-
mentário de Hans Conzelmann a propósito de 1 Coríntios 15,3 s. (Der erste Brief an die Korinther,
Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 21981, 303 [KEK 5]): “Paulus [treibt] hier Theologie als
Auslegung des Credo”.

202
III – Paulo antes de Paulo
ça cada elemento tradicional encontrado a um ambiente de origem claramente
identificado?6 Apesar dos esforços que de longa data até hoje foram se desenvol-
vendo, é forçoso constatar que, se consequências se desenharam, bom número de
hesitações ou de discordâncias subsistem7. Portanto, convém decerto reexaminar
— e não impunemente — a questão dos empréstimos adquiridos por Paulo de
uma ou outra corrente cristã, especialmente no contexto dos trabalhos atuais con-
sagrados ao cristianismo nascente e ao seu ambiente cultural ou religioso8.
Embora na expectativa de resultados definitivos, esta pesquisa a montante
das cartas do Tarsiota está, contudo, bastante avançada para que se possa interrogar
mais a fundo sobre o modo como Paulo utilizou tradições cristãs ou sobre as ra-
zões que o levaram a se referir a elas tão regularmente9. O interesse dessa segunda
parte do questionamento é indubitavelmente duplo: ressaltar, em primeiro lugar
do ponto de vista interpretativo, se foi feito voluntariamente um desvio de senti-
do, seja por um remanejamento redacional mais ou menos substancial de uma
fórmula, seja por sua inserção num contexto; a seguir, situar no plano da comuni-
cação as estratégias particulares empregadas pelo apóstolo, pois não poderíamos
supor nesse espírito vivo e pragmático uma retomada servil e desinteressada dos
primeiros frutos de uma iniciativa posta em prática para exprimir a nova fé e or-
ganizar a memória dos fatos ou das palavras de Jesus.
Serão, portanto, esses três aspectos — a saber, a detecção das tradições, sua
aceitação e a intenção que suscitou sua retomada — que abordaremos a seguir.
Mas convém, sem dúvida, lembrar previamente a efervescência do início e definir

6. Para o debate, cf.Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes. Traditions et tendances
dans le christianisme des origines, Paris, Cerf, 2000, 19-58 (LeDiv 188).
7. No que diz respeito à tradição relativa a Jesus, cf. o artigo de referência de Frans Neirynck,
Paul and the Sayings of Jesus, in Albert Vanhoye (éd.), L’apôtre Paul. Personnalité, style et concep-
tion du ministère, Leuven, University Press, 1986, 165-321 (BEThL 73).
8. Além da obra já mencionada de Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes (cf. nota
6), destaquemos ainda, sem ser exaustivos: Hans Conzelmann, Geschichte des Urchristentums, Göttin-
gen, Vandenhoeck & Ruprecht, 51983 (NTD. Grundrisse zum Neuen Testament 5); Raymond E.
Brown, John P. Meier, Antioche et Rome. Berceaux du christianisme, Paris, Cerf, 1988 (LeDiv 131);
Ludger Schenke, Die Urgemeinde. Geschichtliche und theologische Entwicklung, Stuttgart,
­Kohlhammer, 1990; François Vouga, Le premiers pas du christianisme. Les écrits, les acteurs, les débats,
Genève, Labor et Fides, 1997 (Le Monde de la Bible 35); Simon C. Mimouni (éd.), Le judéo-chris-
tianisme dans tous ses états, Paris, Cerf, 2001; Gerd Theissen, La religion des premiers chrétiens. Une
théorie du christinisme primitif, Paris/Genève, Cerf/Labor et Fides, 2002.
9. Hermann Von Lips (Paulus und die Tradition, 32 [cf. nota 2]) ressalta com razão: “Nich zu
schnell dürfen […] die verschiedenen Zitate hinsichtlich ihrer Verwendung in den Paulusbriefen
voneinander abgehoben werden. Es muss der Befund ernstgenommen werden, dass Paulus in sei-
nen Briefen regelmässig Tradition einbezieht, auch wenn sich dabei in den einzelnen Briefen un-
terschiedliche Schwerpunkte für die verschiedenen Bereiche ergeben”.

203
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
com mais precisão o qualificativo “paulino”.Todavia, por não podermos explorar
nestas páginas todos os recantos do vasto canteiro de obras relativo ao conjunto
das tradições cristãs que o Tarsiota apresenta como testemunha de primeira or-
dem, restringiremos nossa atenção prioritariamente aos enunciados cristossote-
riológicos que o apóstolo das nações retomou, não sem sermos obrigados ainda a
nos limitar a alguns exemplos apenas10. Esperamos, contudo, poder explicar sufi-
cientemente a peça-chave desse aspecto da pesquisa paulina, a qual, já cheia de
vasta colheita de observações, exige que seja infatigavelmente continuada para ser
mais capaz de compreender aquele que iniciou uma forte corrente dos primeiros
movimentos da Igreja.

1. O mistério da gênese explosiva das tradições cristãs e suas


consequências

É habitual11 fazer referência a dois ensaios relativamente próximos de


­Hengel12 para evocar a relativa brevidade desse tempo que leva do “fracasso à
fecun­didade”13 e que viu nascer numerosas fórmulas de fé e de oração.

10. Nossa investigação, todavia, deve ficar alerta ao que é mais imediatamente observável na
maneira própria como Paulo introduz as citações veterotestamentárias ou usa a tradição relativa a
Jesus; para esses dois aspectos da questão, ver Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 32-37,
37-43 (cf. nota 2); e também, entre outros: Jeremy Punt, Paul, Hermeneutics and the Scripture of
Israel, Neotest. 30 (1996) 377-425; Kenneth Litwak, Echoes of Scriptures? A Critical Survey of
Recent Works on Paul’s Use of the Old Testament, Currents in Research: Biblical Studies 6 (1998)
260-288; Florian Wilk, Paulus als Interpret der prophtischen Schriften, KuD 45 (1999) 284-306;
Christopher M. Tuckett, Paul, Scriptures and Ethics. Some Reflections, NTS 46 (2000) 403-424;
Thomas Schmeller, Kollege Paulus. Die Jesusüberlieferung und das Selbstverständnis des Völkera-
postels, ZNW 88 (1997) 260-283; Rainer Riesner, Paulus und die Jesus-Überlieferung, in Jostein
Adna, Scott J. Hafermann, Otfried Hofius (Hrsg.), Evangelium — Schriftauslegung — Kirche. Fests-
chrifit für Stuhlmacher zum 65. Geburtstag, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1997, 347-365;
James D. G. Dunn, Jesus Tradition in Paul, in The Christ and the Spirit: Collected Essays, Edinburgh,
T & T Clark, 1998; v. I: Christology, 169-189; Seyoon Kim,The Jesus Tradition in 1 Thess 4,13–5,11,
NTS 48 (2002) 225-242.
11. Assim, para citar apenas eles: François Bovon, Une formule prépaulinienne dans l’épître aux
Galates (Galates 1,4-5), in Révélations et Ecriture. Nouveau Testament et littérature epocryphe chré-
tienne, Genève, Labor et Fides, 1993, 13-29 (17, n. 14) (Le Monde de la Bible 26); Christopher M.
Tuckett, Paul, Tradition and Freedom, ThZ 47 (1991) 307-325 (309);Vittorio Fusco, Les premières
communautés chrétiennes, 127-128, n. 1 (cf. nota 6).
12. Martin Hengel, Christologie und neutestamentliche Chronologie (cf. nota 1), e Der Sohn
Gottes. Die Entstehung der Christologie und die jüdisch-hellenistische Religionsgeschichte, Tü-
bingen, Mohr Siebeck, 1975, 21977; ed. fr.: Jésus, Fils de Dieu, Paris, Cerf, 1977 (LeDiv 94).
13. Retomamos aqui o título da segunda parte da monografia de Michel Gourgues, Le crucifié.
Du scandale à l’exhortation, Paris, Desclée, 1989, 93 (Jésus et Jésus-Christ 38).

204
III – Paulo antes de Paulo
1.1. Um processo extraordinariamente rápido

Eis em que termos o supracitado exegeta definiu a ação inicial: “Na Páscoa
do ano 30, um judeu galileu foi pregado numa cruz em Jerusalém […]. Cerca de
vinte e cinco anos mais tarde, […] Paulo dirige uma carta à comunidade […] que
fundou na colônia romana de Filipos e nela cita um hino referente a esse mesmo
crucificado [Fl 2,6-8]. A discordância entre a morte ignominiosa de um crimino-
so político judeu e essa confissão, que apresenta o supliciado como uma forma
divina preexistente, a qual se torna homem e se rebaixa até a morte de um escravo,
[…] ilustra bem o enigma posto pela origem da cristologia cristã primitiva”14.
Cerca de vinte anos mais tarde, Fusco, da comparação entre as fórmulas simples e
complexas da tradição querigmática pascal, concluiu também ele que havia “um
processo de desenvolvimento […] em ação desde o início”. Parece-lhe “impor-
tante ressaltar que [esse processo] demandou tempo, mas um tempo espantosa-
mente breve”15. Com efeito, calculando que “em meados dos anos 30 […] Paulo
encontrou esse desenvolvimento já realizado no essencial”, ele considera, então,
que “o processo apresenta [realmente] os caracteres […] de uma ‘explosão’”16. E
afirma ainda: “É muito fácil indicar o ponto de partida desse desenvolvimen-
to, que foi, sem nenhuma dúvida, a ressurreição e a messianidade, e o ponto de che-
gada, que integra ao mesmo tempo o valor salvífico da morte e a preexistência divina.
É um pouco mais cansativo, mas não impossível, reconstituir o percurso interme-
diário, pelo menos nas grandes linhas”17. A intensidade do fenômeno, como sabe-
mos, não foi, todavia, questão de rapidez apenas, mas também de diversidade.

14. Martin Hengel, Jésus, Fils de Dieu, 13-14 (cf. nota 12) (= Der Sohn, 9). Essa citação pode ser
completada pelo que o autor já observava em Chistologie und neutestamentliche Chronologie, 45
(cf. nota 1): “Zwischen dem Tode Jesu und der voll entfalteten Christologie, wie sie uns in […] den
paulinischen Briefen […] begegnet, besteht ein zeitlicher Zwischenraum, der im Blick auf die
darin geschehne Entwicklung als erstaunlich kurz bezeichnet werden muss”; 62: “Gilt diese fast
‘explosionsartige’ missionarische Expansion am Anfang der urchristlichen Geschichte nicht auch
für die Entwicklung der Christologie?”; 66: “Der ‘dynamisch-schöpferische Impuls’ des gemeinde-
gründenden Urgeschehens hat so in sehr kurzer Seit die für das Neue Testament beherrschenden
christologischen Grundlagen gelegt”. Günther Bornkamm (Paul. Apôtre de Jésus-Christ, Genève,
Labor et Fides, 1971, 164) observava também ele: “Na primeira comunidade [… o] querigma […]
se condensa bem cedo, de modo a terminar em tradições solidamente formuladas”.
15.Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes, 127 (cf. nota 6).
16. Ibid., 128; cf. igualmente Martin Karrer, Jesus Christus im Neuen Testament, Göttingen,Van-
denhoeck & Ruprecht, 1998, 20 (NTD. Grundrisse zum Neuen Testament 11): “Die christologis-
che Entwicklung vollzog sich sehr rasch in der Breite des Urchristentums”.
17.Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes, 130 s. (cf. nota 6).

205
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
1.2. Uma produção rica e variada

Desde os primeiros anos de vida da jovem cristandade deve-se contar, sem


dúvida, com uma “pluralidade”18 de enunciados tradicionais19. Eram eles outros
tantos ensaios, quer para construir internamente a nova identidade, quer para ex-
plicar externamente a importância que se reconhecia no destino do homem de
Nazaré. E, mais ainda, está confirmado que esses materiais, ao se levar em conta
sua diversidade, foram forjados em ambientes diferentes e se constituíram em vá-
rias etapas, pelo menos os mais elaborados20. Considerados em seu conjunto, ainda
que não nos tenham chegado sob forma de uma coleção, testemunham, pois, uma
intensa e rica atividade teológica21 partilhada simultaneamente por várias corren-
tes do cristianismo primitivo, ocupadas todas em definir os fundamentos da fé em

18. Martin Hengel, Christologie und neutestamentliche Ghronologie, 66 (cf. nota 1):
“Auch wird man von Anfang an mit einer Pluralität von Formeln rechnen müssen”; cf. ­Günther
Bornkamm, Paul, 164 (cf. nota 14); Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes, 78 (cf.
nota 6).
19.Ver Philipp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Literatur. Einleitung in das Neue Testament,
die Apokryphen und die Apostolischen Väter, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1975, 9-57;
Vielhauer faz distinção entre: 1. Pistisformeln (Formel von der Auferstehung — Formel vom Tode
— kombinierte Formel); 2. Homologien (Akklamation — Identifikationssats); 3. Kerygmatische For-
meln (Missionspredigt an die Heiden — Missionaspredigt an die Juden); 4. Liturgische Texte (Eine
Personformel — heis-Akklamation — andere Akklamationen — Doxologien — Gebete —
­Kultformeln des Herrenmahls — Eingangsliturgie des Herrenmahls — Tauffeier — Tauf-oder
Ordinationsparänese); 5. Lieder; 6. Paränese. Eduard Lohse (Die Entstehung des Neuen Testaments,
Stuttgart/Berlin/Köln, Kohlhammer, 51991 [1. ed. 1972], 18-27 [ThW 4]) propõe uma classifica-
ção mais sumária: urchristliche Bekenntnisse; urchristiche Lieder; liturgische Überlieferung; parä-
netische Überlieferung.Vittorio Fusco (Les premières communautés chrétiennes [cf. nota 6]) distingue
as formulas de fé verbais — “construídas com pisteuein […] hoti; o sujeito […] é […] Deus e o verbo
[…] está […] no passado; a atenção se volta mais para o evento da salvação […] do que para a
identidade da pessoa de Jesus” (103 — e as fórmulas de fé nominais — “[…] regidas também elas pelo
verbo pisteuein [ou por outros verbos equivalentes] construído com hoti, […] todavia, o objeto […]
é […] uma frase no presente, cujo sujeito é ‘Jesus’ e o predicado, um ‘título de dignidade’ […]. A
atenção não se volta mais para o evento da salvação, mas para a pessoa de Jesus” (112 s.).
20. Cf. Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 46 (cf. nota 2): “Die einzelnen Traditionen
sind zu vielfältig, als dass sie sich auf eine einzige Traditionslinie […] zurückführen lassen”. Para
pesquisar sobre a gênese desses enunciados, Vittorio Fusco (Les premières communautés chrétiennes,
129-130 [cf. nota 6]) sugere que “é preciso levar em conta diversos fatores ao mesmo tempo: quais
são as categorias já presentes no meio? O que levou — de certo modo, até mesmo o que obrigou
— a aplicá-las a Jesus? Em que medida isso já foi feito no ministério pré-pascal e em que medida,
ao contrário, isso foi feito a partir da experiência pascal? E, nesse último caso, desde o início da
comunidade pós-pascal ou por meio de uma explicitação progressiva?”.
21. Cf. Jean Zumstein, Theologie als Credoauslegung, 96 (cf. nota 1): “Die Vielfalt und die
Komplexität der vorpaulinischen Bekenntnistrtaditionen zeugen von einer bewährten Praxis und
einer reichen theologischen Reflexion”.

206
III – Paulo antes de Paulo
Cristo e suas consequências. Por isso convém decerto situar Paulo num estágio já
relativamente avançado dessa “impulsão dinâmica e criadora”22, em todo caso na
época da redação de suas cartas e, talvez, até mesmo na hora da revelação que lhe
foi feita a respeito de Jesus23. Antes de abordar, porém, a delicada fronteira entre o
que pode ser considerado “pré-paulino” ou “protopaulino”, ressaltemos ainda
que a velocidade mesma desse intenso esforço inicial não é alheia ao fato de que
a expressão e o sentido dos enunciados produzidos não tenham se imposto ime-
diatamente. Também as tradições primitivas se deixam igualmente caracterizar
por sua relativa flexibilidade ou adaptabilidade.

1.3. Uma semifixidez

Se, para ser identificável, um material tradicional deve, com evidência, ser
suficientemente caracterizado, não poderíamos, “todavia, nos representar esses
elementos pré-paulinos como perfeitamente fixados ne varietur. As expressões li-
túrgicas, por exemplo, eram nitidamente cunhadas, não até sua formulação verbal
inteira, todavia”24. Por conseguinte, jamais poderíamos estar totalmente certos do
teor de um enunciado recebido, o que, evidentemente, torna mais delicada toda
avaliação de uma intervenção redacional sempre possível por ocasião de sua fixa-
ção num documento escrito. Essas transformações introduzidas, seja lá em que
nível for, não podem, todavia, ser vistas como alterações prejudiciais ao enunciado
inicial. Dão testemunho, ao contrário, de um processo de maturação, de uma
preocupação de correção25, de explicitação26, de ajuste ou de amplificação27. É até
permitido, sem dúvida, adiantar que a flexibilidade desses enunciados primitivos
contribuiu, de certo modo, para garantir sua retomada e, portanto, sua difusão
para além de seu ambiente de produção. Podemos dizer o mesmo de sua intrínse-
ca polissemia, justamente ao se levar em conta o fato de serem postos em circula-
ção sem contexto determinado.

22. Cf. Martin Hengel, Christologie und neutestamentliche Chronologie, 66 (cf. nota 1).
23. Christopher M. Tuckett, Paul, Tradition and Freedom, 309 (cf. nota 11): “It is clear that at
times Paul is standing at the end of a very rich development in Christian trinking”.
24. Paul-Emile Langevin, Jésus Seigneur et l’eschatologie. Exégèse de textes prépepauliniens, Bru-
ges/Paris, Desclée de Brouwer, 1967, 30-31 (Studia 21).
25. Cf. Christopher M. Tuckett, Paul, Tradition and Freedom, 310 (cf. nota 11).
26. Cf. Erich Dinkler, Tradition.V. Im Urchristentum, RGG3 6, col. 971.
27. Cf. Paul-Emile Langevin, Jésus Seigneur et l’eschatologie, 31 (cf. nota 24).

207
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
1.4. Um certo potencial de sentido

Anteriormente ao eventual trabalho sobre as palavras, há certamente a cons-


ciência de uma interpretação possível do elemento tradicional assumido28 e de sua
utilidade imediata para o propósito abordado por um autor. A eventual defasagem
entre o que quis exprimir um grupo produtor com a ajuda de certa fórmula e o
sentido dado a ela por ocasião de sua integração num contexto preciso é, de fato,
inerente ao modo de circulação das tradições primitivas. Como enunciados trans-
mitidos primeiramente de modo oral e, sobretudo, sem contexto suficientemente
determinante, elas veiculavam, com efeito, um “potencial de sentido”29 que auto-
rizava a priori diferentes recepções30. De sua pronta elaboração à sua cristalização
progressiva, as intuições iniciais do cristianismo nascente terão seguido, pois, uma
trajetória de que estava decidido apenas o ponto de partida. Que etapa algumas
delas saltaram com Paulo? Sobre essa questão é que nos deteremos por ora, não
sem ter lembrado antes que não se exclui que o próprio Tarsiota tenha colaborado
para o estabelecimento de algumas dessas fórmulas antigas.

2. Os empréstimos adquiridos por Paulo das tradições primitivas:


primeira abordagem

Não é de admirar, per se, que Paulo tenha elaborado sua teologia ao assumir
especialmente confissões de fé, hinos ou fórmulas litúrgicas31. Se a perturbação

28. Christopher M.Tuckett (Paul,Tradition and Freedom, 310 [cf. nota 11]) lembra com razão:
“[…] traditions are open to more than one interpretation”; cf. também Hans Conzelmann, Der
erste Brief an die Korinther, 302 (cf. nota 5), ou Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paulus zwis-
chen Damaskus und Antiochen. Die unbekannten Jahre des Apostels, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998,
437 (WUNT 108).
29. A expressão Sinnpotential é utilizada por Henning Paulsen, Von der Unbestimmtheit des
Anfangs. Zur Entstehung von Theologie im Urchristentum, in Cilliers Breytenbach, Henning
Paulsen (Hrsg.), Anfänge der Christologie. Festschrift für Ferdinand Hahn zum 65. Geburtstag, Göt-
tingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1991, 25-41 (28, 34), e Jean Zumstein, Theologie als Credoaus-
legung, 102 (cf. nota 1).
30. Henning Paulsen (Von der Unbestimmtheit des Anfangs, 34 [cf. nota 29]) dá este exemplo:
“[…] der vorpaulinische Philipper-Hymnus muss nicht mit Notwendigkeit zu einer Kreuzestheo­
logie führen (und bedarf gerade deshalb der paulinischen Kommentierung)”. A retomada da afir-
mação da unicidade de Deus em 1 Coríntios 8,6, Efésios 4,6 e 1 Timóteo 2,5 ilustra muito bem,
também ela, as diferentes utilizações possíveis de um mesmo enunciado.
31. No que diz respeito aos diferentes fatores que determinaram o pensamento de Paulo, James
D. G. Dunn (Prolegomena to a Theology of Paul, 427-430 [cf. nota 1]) enfatiza: “First, there are
those features os Paul’s theology taken over from his ancestral religion. […] Second, a theology of
Paul must take account of the eschatological impact of ‘the revelation of Christ’ […]. In addition,

208
III – Paulo antes de Paulo
gerada pela “revelação de Jesus Cristo” induzia, de fato, nele uma mudança parcial
de pontos de referência, certamente nada perdeu ele do “zelo” que o caracteriza,
segundo ele próprio diz (Gl 1,14); apenas o transpôs das “tradições dos pais” para
as outras, que procuravam traduzir a essência da fé crística. Consequentemente,
terá ele se aplicado a memorizar esses novos enunciados32 ou, segundo “os costu-
mes de seu tempo”, terá “observado pessoalmente, ou feito anotar por um secre-
tário, o que pensava poder utilizar para seu ensinamento oral e para suas comuni-
cações por escrito”33? Talvez não seja nada insignificante perguntar, como faz
Murphy O’Connor, sobre o modo como o Tarsiota conservou esses materiais
tradicionais, pois, em última instância, essa questão não deixa de ter incidência
sobre a avaliação do trabalho redacional. Sem dúvida, é bem pouco possível res-
ponder de maneira satisfatória a essa delicada questão sobre se Paulo cita de me-
mória ou se consulta suas anotações34.
Mas um debate mais decisivo certamente é: O que se deve entender por
“pré-paulino”35? Devemos restringir esse termo aos enunciados elaborados antes
mesmo de Paulo se abrir à fé cristã ou convém chamar, grosso modo, de “‘pré-
paulinas’ as fórmulas elaboradas antes da composição da primeira epístola aos

however, at this second stage a further dynamic is introduced, that is, between the pre-Pauline
Christian response to Jesus and the impact of ‘the revelation of Christ’ on Paul himself […]. Third,
this fundamental interaction between Paul’s own earlier theology, pre-Pauline Christian theology
and the revelation of Christ to Paul himself seems not to have unfolded at a uniform pace, but may
have been quickened or reactivated by particular events or crises . […] Finally, we should not he-
sitate to recognize a fourth level in Paul’s theology in its interaction with the particular situations
of those to whom he wrote”; o autor conclui, p. 431: “In short, the trick which a theology of Paul
needs to pull off is to trace the interactions between these four different levels of Paul’s theology
— not to be content to stay at the surface”.
32. Segundo Pierre Bonnard (L’épître de saint Paul aux Galates, Neuchâtel, Delachaux & Niestlé,
2
1972, 138 [CNT 9]), esse “zelo” englobava o esforço de memorização.
33. Jerome Murphy O’Connor, Paul et l’art épistolaire. Contexte et structures littéraires, Paris,
Cerf, 1994, 62-63. O autor intitula assim uma seção: “Prise de notes et tradition ecclésiale” (62-64).
34. Em ibid., 63-64, Murphy O’Connor considera que a notícia de 2 Timóteo 4,13 pode re-
meter “a grande quantidade de folhas de pergaminho reunidas, sobre as quais [Paulo] tinha anotado
dados de tradição que o haviam impressionado, ou ideias de pregação, ou esboços de respostas que
lhe pareciam adequadas a dificuldades que a ele tinham sido enviadas de diversas comunidades”.
35. Eis em que termos Martin Hengel (Christologie und neutestamentliche Chronologie, p. 46
[cf. nota 1]) equaciona o problema:“Freilich, der Begriff ‘vorpaulinisch’ ist in sich selbst […] doppel-
deutig und darum missverständlich. Strenggenommen würde er bedeuten, dass derartige ‘vorpau-
linische Formeln’ bereits in den wenigen Jahren vor der Bekehrung des Apostels ausgeformt wur-
den. […] Fasst man den Begriff ‘vorpaulinisch’ weiter […] so bleibt unklar, ob und wieweit der
Paulus der dunklen 14-16 Jahre vor dem Apostelkonzil […] silbst an der Herausbildung derartiger
Formeln aktiv mitwirkte bzw. wieweit er wirklich fremdes Gut übernahm”. E responde:“Nur [diese
ersten 4-5 Jahre] kann man im vollen Sinne des Wortes die ‘vorpaulinische Zeit’ nennen” (62).

209
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
Tessalonicenses”36? A hesitação não é infundada, pois, se pesamos bem a estada
relativamente longa de Paulo em Antioquia37 e sua incontestável participação no
trabalho teológico da comunidade cristã que vivia nessa cidade, somos forçados,
sem dúvida, a admitir então que, pelo menos em alguns casos,“‘pré-paulino’ signi-
fica igualmente ‘protopaulino’”38. Assim, pode-se compreender que alguns auto-
res, preocupados em desfazer qualquer ambiguidade, prefiram falar de materiais
“parapaulinos” para designar explicitamente as tradições cristãs primitivas que
foram formadas fora do campo de influência do Tarsiota39. Se, no que nos diz res-
peito, entendemos “pré-paulino” no sentido amplo de “pré-epistolar”, é em nome
do princípio de economia, por não podermos nestas páginas pesquisar mais a
fundo a origem e a datação supostas das tradições de que vamos falar. Nenhum
problema. Concordamos com a posição de Fusco, convencido de que “é natural-
mente necessário distinguir [nas cartas] a tradição ‘pré-paulina’ […] e o aprofun-
damento pessoal de Paulo”, e isso, como ele esclarece, “mesmo sem poder estabe-
lecer um nítido corte” entre os dois40. Pois, se prolongou intuições iniciais, seja lá
em que nível for, o Tarsiota não procurou indicar regularmente todos esses em-
préstimos, que dão testemunho, todavia, de seu enraizamento, ainda que crítico,
num húmus de múltiplas tradições41.
Três breves observações ainda para concluir este ponto. Se, evidentemente, a
correspondência autêntica de Paulo se oferece como um terreno de pesquisa pri-

36. Paul-Emile Langevin, Jésus Seigneur et l’eschatologie, 30 (cf. nota 24). No mesmo sentido E.
Earle Ellis (Traditions in 1Corinthians, 481 [cf. nota 1]), que define assim o conceito de tradição:
“It is […] a specific item in a traditioning process that was formed and in oral or written usage
before Paul incorporated it into his letter”.
37. Jürgen Becker (Paul, 125 [cf. nota 4]) crê que “Paulo pôde trabalhar cerca de doze anos nessa
comunidade”.
38. Ibid., 127; cf. Ludger Schenke, Die Urgemeinde, 326 (cf. nota 8): “[Es] ist aber zu bedenken,
dass Paulus selbst bei der Ausbildung solcher Bekenntnisformeln [der antiochenischen Überliefe-
rung] beteiligt gewesen sein könnte. [… Er] kann sogar ihr ‘Mitautor’ gewesen sein”.
39. Isso é destacado por Jürgen Becker, Paul, 127 (cf. nota 4). Assim Klaus Wengst, Der Apostel
und die Tradition. Zur theologischen Bedeutung urchristlicher Formeln bei Paulus, ZThK 69
(1972) 145-162 (145), ou Martin Hengel, Der Sohn Gottes, 24 (cf. nota 12). Ressaltemos que, por
sua vez, Vittorio Fusco (Les premières communautés chrétiennes, 80 [cf. nota 6]) prefere a expressão
“tradição comum” a “tradição pré-paulina”.
40. Ibid.
41. Ibid., 327: “Estamos habituados a […] imaginar [Paulo], do ponto de vista missionário e
teológico, como uma personalidade genial, impetuosa, e ficamos impressionados pelo […] caráter
áspero das polêmicas, correndo assim o risco de fazer dele uma espécie de ‘atacante’ isolado. Ao
contrário, temos de nos esforçar por ter presente também o outro lado da medalha: Paulo como
homem de comunhão e de tradição”; cf. também a conclusão de E. Earle Ellis, Traditions in 1
Corinthians, 495 (cf. nota 1).

210
III – Paulo antes de Paulo
vilegiada para o reconhecimento de algumas das primeiras expressões da fé cristã,
ela não constitui, todavia, a única fonte de prospecção no Novo Testamento42. A
localização de outras tradições pré-paulinas fora das cartas do Tarsiota deixa-nos
supor que o apóstolo tinha acesso a um fundo primitivo nitidamente mais amplo
que o que transparecia por meio das escolhas feitas em função das circunstâncias.
Inversamente, a tradição retomada em 1 Coríntios 8,6 e que atesta de modo úni-
co nas cartas incontestes a participação ativa de Jesus na obra de criação nos torna
igualmente atentos ao fato de que não podemos esperar conhecer senão uma
parte apenas da teologia paulina, cujo conjunto ultrapassa indiscutivelmente o
que conhecemos apenas pelo viés da correspondência que chegou até nós43. En-
fim, uma última observação está ligada à hipótese defendida por alguns e que
pretende que os nomes associados ao de Paulo nos endereços sejam “os nomes
daqueles que ele escolheu para que desempenhem na epístola um papel de
coautores”44. Se é esse o caso, convém talvez suavizar um pouco o que — em re-
lação ao tratamento dos materiais tradicionais na correspondência do apóstolo
das nações — é atribuído como próprio dele. Mas, ainda que se comprovasse que
a ideia da utilização de tal ou tal tradição não devia ser sua, continuaria válido, em
última instância, que, pelo menos, ele a terá afiançado.
Depois dessas observações preliminares e ao abordar o ponto seguinte, saiba-
mos nos cercar dos bons conselhos de Bovon, lembrando que “convém praticar
com prudência a detecção de elementos tradicionais nas epístolas paulinas”45.

42. Pensemos especialmente nas epístolas deuteropaulinas ou na primeira epístola de Pedro: cf.
Ludger Schenke, Die Urgemeinde, 326 (cf. nota 8).
43. Com Martin Hengel (Der Sohn Gottes, 29 [cf. nota 12]), que observa: “Wir kennen nur die
— freilich faszinierende — Spitze des Eisberges”.
44. Jerome Murphy O’Connor, Paul et l’art épistolaire, 38 (cf. nota 33).
45. François Bovon, Une formule prépaulinienne, 13 (cf. nota 11); cf. também Vittorio ­Fusco,
Les premières communautés chrétiennes, 101 (cf. nota 6). Michel Gourgues (La résurrection dans les
credos et les hymnes des premières communautés chrétiennes, in Odette Mainville, Daniel
Marguerat [éd.], Résurrection. L’après-mort dans le monde ancien et le Nouveau Testament,
Genève/Montréal, Labor et Fides/Médiaspaul, 2001, 161-174 [161-163] [Le Monde de la Bible
45]) previne também ele: “Às vezes, esses formulários se mostrarão mais fáceis de achar, introdu-
zidos de modo mais ou menos explícito como citações. […] Outras vezes, deixam-se reconhecer
por um estilo característico […]. O mais das vezes, todavia, as coisas não se apresentam assim de
modo tão claro e podemos hesitar com frequência na identificação dos contornos ou na formu-
lação exata dos formulários em passagens que aparecem como uma mistura de tradição e de
redação. […] Por meio de certo coeficiente de incerteza, mais ou menos amplo segundo o caso,
chega-se, todavia, a encontrar fórmulas que, a partir de certos critérios, podem ser consideradas
tradicionais”.

211
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
3. A localização das tradições preexistentes
Essa tarefa liminar comporta logicamente duas etapas: em primeiro lugar, a
procura exploratória, tendo em vista identificar o que nas cartas de Paulo é susce-
tível de ter sido tomado emprestado ao bem preexistente, quer se trate de um
fragmento apenas ou da totalidade de um enunciado; a tentativa, a seguir, de en-
contrar, a partir dos elementos localizados, o teor inicial dos materiais empresta-
dos46. Mas para abordar tal pesquisa arqueológica em sua primeira parte importa
certamente definir primeiro a ferramenta operatória que não ficou sem ser afiada
ao longo de todas as investigações sucessivas47.

3.1. Os critérios de detecção


O caso mais límpido é, evidentemente, aquele em que Paulo informa ele pró-
prio e de modo explícito que retoma uma tradição, o que ele faz em 1 Coríntios
11,23 e 15,3, com a ajuda de uma formulação típica que combina os verbos
paralamba,nein e paradido,nai. Pode ser também esse o emprego de uma categoria de
verbos ou expressões — oi;damen, ouvk oi;date o[ti48, h; avgnoei/te o[ti (Rm 6,3), pisteu,ein
o[ti (Rm 10,9; 1Ts 4,14), o`mologei/n (Rm 10,9), ouvdei.j du,natai eivpei/n (1Cor 12,3)
— que será de alerta49, bem como o atestado de um estilo diferente — paralelismo
(Rm 1,3b.4a), proposições participiais (Rm 1,3b4a) ou relativas (Rm 4,25), forma
hínica (Fl 2,6-11) ou litúrgica50 — ou de uma terminologia não habitual51. Um forte

46. Hermann Von Lips (Paulus und die Tradition, 44 [cf. nota 2]) lembra: “Der Identifizierung
solcher [geprägten urchristlichen] Traditionen innerhalb der Paulusbriefe fehlt die Eindeutigkeit
von Schrisftzitaten, da weder eigentliche Zitationsformeln vorliegen noch eine Textvorlage zum
Vergleich herangezogen werden kann”.
47. Para esses critérios de detecção, cf. entre outros: Paul-Emile Langevin, Jésus Seigneur et
l’eschatologie, 31-36 (cf.nota 24); Philipp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Literatur, 12 (cf. nota
19); E. Earle Ellis, Traditions in 1 Corinthians, 485 (cf. nota 1); Ludger Schenke, Die Urgemeinde,
326-327 (cf. nota 8); Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 44-45 (cf. nota 2);Vittorio Fus-
co, Les premières communautés chrétiennes, 81-89 (cf. nota 6); Michel Gourgues, La résurrection dans
les credos et les hymnes, 161-164 (cf. nota 45).
48. Cf. Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes, 82 (cf.nota 6): “[…] ‘ou bien ne
savez-vous pas que…’ (Rm 6,3; 11,2; 1Cor 3,16; 5,6; 6,2.3.9.15.16.19; 9,13.24), que às vezes po-
deria fazer parte de uma retórica pedagógica, mas outras vezes, segundo o contexto, parece real-
mente supor certos conhecimentos como já adquiridos”.
49. Romanos 10,8-9 combina três fórmulas: “proclamamos”, “confessas”, “crês”.
50. Assim, por exemplo, 1 Coríntios 16,20b.22a.22b.23.
51. Cf. Philipp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Literatur, 12 (cf. nota 19): “[…] zB. der Plural
‘Sünden’ und ‘Schriften’ 1 Kor 15,3f statt des bei Paulus sonst gebräuchlichen Singulars”; Vittorio
Fusco, Les premières communautés chrétiennes, 83 (cf. nota 6): “[…] por exemplo, em Romanos 1,3 s.,
‘Espírito de santidade […] no lugar do habitual ‘Espírito Santo’”; a propósito de 1 Coríntios 10,16,
François Vouga (La première épître aux Corinthiens, in Daniel Marguerat [éd.], Introduction au

212
III – Paulo antes de Paulo
indício é certamente a presença de uma afirmação próxima num escrito do qual não
se pode supor dependência literária da correspondência paulina, ou ainda “conteúdos
que ultrapassam o que é pedido pelo contexto”52. Outras observações, como a falta de
integração53, a autonomia de um enunciado em relação a seu contexto54 ou sua intro-
dução por o[ti ou o[j55, por serem muito úteis, convidarão, todavia, a conclusões mais
prudentes. O ideal, para concluir com um grau de certeza suficiente à retomada de
um elemento tradicional, é, claro, poder cruzar vários desses indícios56.
Mas não é sem importância observar ainda, com Gourgues, “que em algumas
passagens a referência à tradição não se apresenta sob forma de citação, mais ou menos
literal, mas simplesmente sob forma de alusão, de eco ou de reminiscência, o que per-
mite reconhecer a associação com formulários identificáveis”57. Enfim, há casos-limite
em que é muito delicado arriscar uma conclusão. Assim é que nos interrogamos, por
exemplo, a respeito de 1 Coríntios 11,19a58, 15,21-2259 ou ainda Gálatas 2,2060.

Nouveau Testament. Son histoire, son écriture, sa théologie, Genève, Labor et Fides, 2000, 188 [Le
Monde de la Bible 41]), nota: “Todo elemento de citação está ausente aqui. Tanto o paralelismo da
construção como a terminologia […] dão a entender o eco de uma fórmula litúrgica”.
52.Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétiennes (cf. nota 6); cf. Philipp Vielhauer, Ges-
chichte der urchristlichen Literatur, 12 (cf. nota 19).
53. Cf. Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 45 (cf. nota 2); Philipp Vielhauer, Geschi-
chte der urchristlichen Literatur, 12 (cf. nota 19).
54. Cf. E. Earle Ellis, Traditions in 1 Corinthians, 485 (cf. nota 1).
55. Cf. E. Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 45 (cf. nota 2).
56. Assim Paul-Emile Langevin (Jésus Seigneur et l’eschatologie, 36 [cf. nota 24]), referindo-se a
Béda Rigaux: “Uma observação essencial se impõe […]: para determinar o caráter pré-paulino de
um texto, não há critério único e infalível. Recorremos a uma convergência de provas, apelando para o ar-
gumento cumulativo”; também Philipp Vielhauer, Geschichte der urchristlichen Literatur, 12 (cf. nota 19).
57. Michel Gourgues (La résurrection dans les credos et les hymnes, 164 [cf. nota 45]) toma
como exemplo Romanos 8,34, “em que Paulo, sem citá-la literalmente, integra a seu desenvolvi-
mento a fórmula do credo relativa à morte e à ressurreição de Jesus, ao lhe imprimir as adaptações
estilísticas necessárias”; cf. também Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 45 (cf. nota 2):
“Schwieriger als Tradition zu identifizieren sind einzelne Motive, die in den Text integriert sind,
ohne Teil eines erkennbaren Traditionsstücks zu sein. […] auch hier stellt sich das Problem von
Anspielungen, ohne dass man im eigentlichen Sinne von Zitierung sprechen kann”.
58. Assim Christian Wolff, Der erste Brief des Paulus an die Korinther, Leipzig, Evangelische Verla-
gsanstalt, 1996, 260 (ThHK 7).
59. O que faz Charles Kingsley Barrett, The Significance of the Adam-Christ Typology for the
Resurrection of the Dead: 1 Co 15,20-22.45-49, in Lorenzo de Lorenzi (éd.), Résurrection du Christ et
des chrétiens, Roma, Abbazia di S. Paolo, 1985, 99-122 (107): “I noticed […] that […] in this chapter
christos has usually appeared without an article; does the diferent usage here suggest that we have in v.
21.22 a prepauline traditional formulation […]? There is as good a case for prepauline formulation here
as in many other passages where this has been alleged, but I see in the verse nothing that is clearly unpau-
line. […] The verse fits […] into the general line of the argument, and there seems to be little ground for
thinking that Paul did hot himself write them specifically for the purpose they fulfill here. If the style is
exalted and poetical, the theme is a lofty one, and Paul was capable of writing impressively”.
60. Cf. Gabriel Berenyi, Ga 2,20: A Pre-pauline or Pauline Text?, in Albert Vanhoye (éd.),
L’apôtre Paul. Personnalité, style et conception du ministère, 340-344 (340)(cf. nota 7); Berenyi re-

213
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
Não é por falta de investir com inegável perspicácia que a pesquisa se vê ain-
da embaraçada na dissecação das cartas de Paulo para nelas encontrar em sua inte-
gralidade a fonte particular de seu trabalho teológico. Se tradições de certa ampli-
tude se deixam facilmente identificar, outras, que se apresentam apenas como
vestígios, são evidentemente bem mais difíceis de detectar. Assim, será certamente
da minúcia com que se pesquisar que dependerão os progressos realizados na ava-
liação dos empréstimos adquiridos por Paulo do prodigioso esforço que o prece-
deu. Mas há limites que não poderíamos razoavelmente querer superar.

3.2. A difícil restituição do exato teor das tradições utilizadas

Para além do interesse primeiro, que é certamente chegar o mais perto pos-
sível das expressões de fé iniciais da jovem cristandade, é igualmente de grande
proveito conseguir, se não reconstituir a forma original dos materiais tradicionais
emprestados por Paulo, pelo menos deles se aproximar, em vista de constatar
eventuais intervenções redacionais nos enunciados recebidos. Se têm de ser tenta-
das, essas experiências são às vezes perigosas, mesmo que não se revelem simples-
mente “ilusórias”61. Mas, quando se observa com que liberdade o Tarsiota fez uso
das Escrituras62, pode-se razoavelmente supor que tal atitude foi adotada como
prosseguimento de tradições primitivas63. Querer remontar até elas demanda, pois,

sume assim seu procedimento: “Many exegetes consider the expression ‘The Son of God who lo-
ved me and delivered himself up for me’ in Gal 2,20 a traditional phrase. Some of these authors
have tried to establish a ‘Dahingabeformel’ concerning Christ, and maintain that Gal 2,20 is an
example of it. After summing up the mains difficulties of this positions, we propose to investigate
the reasons for maintaining the opposite opinion, i.e. the probability of the Pauline origin”. Uma
demonstração mais ampla é dada em Bib. 65 (1984) 490-537.
61. Jacques Schlosser, L’espérance de la création (Rm 8,18-22), in Raymond Kuntzmann
(éd.), Ce Dieu qui vient. Etudes sur l’Ancien et le Nouveau Testament offertes au Professeur Bernard
Renaud à l’occasion de son soixante-cinquième anniversaire, Paris, Cerf, 1996, 325-343 (LeDiv
159): Scholsser destaca em relação a Romanos 8,19: “Esse versículo e os dois seguintes parecem se
inspirar em tradições. Levemos em conta o fato […] sem nos lançar na tentativa ilusória de restituir
o teor de tal tradição” (330).
62. Eis em que termos Udo Schnelle (Paulus, 101 [cf. nota 2]) recapitula o modo de fazer: “Pau-
lus bearbeitet zahlreiche alttestamentliche Texte, wobei er sich im einzelnen vielfältiger Techniken
bedient. Er verändert die Wortfolge, gibt Person, Numerus, Genus,Tempus oder Modus anders wie-
der, er verkürzt oder erweitert den Text durch Auslassungen oder Hinzufügungen.Teile von Zitaten
werden von Paulus auch durch eigene Formulierungen ersetzt oder durch andere Schrifttexte aus-
getauscht (Mischzitate), mehrere Schriftworte ergeben zusammen eine Zitatkombination”.
63. A propósito de 1 Coríntios 11,23 e 15,3, Hermann Von Lips (Paulus und die Tradition, 45
[cf. nota 2]) se pergunta: “Strittig ist […] allerdings, inwieweit Paulus mit der Terminologie auch
eine bestimmte Traditionsauffassung übernommen hat”.

214
III – Paulo antes de Paulo
“um paciente trabalho de reconstrução”64, como a história da redação nos ensi-
nou a fazer. Seja-nos suficiente, a título de exemplo, evocar aqui as discussões re-
lativas à forma original de 1 Coríntios 10,16 ou de 1 Coríntios 15,3b-5.
Se, “como mostram a terminologia e a forma” de 1 Coríntios 10,16, pode
ser admissível que “Paulo se inspire numa fórmula eucarística tradicional”65, há
boas razões, contudo, para suspeitar de vários remanejamentos nesse versículo.
Assim, do ponto de vista da forma, é muito provável que a ordem mais habitual,
segundo a qual o pão aparece antes da taça, tenha sido deliberadamente inverti-
da66 e que, além disso, a construção interrogativa tenha sido preferida a uma
frase afirmativa67. Quanto ao conteúdo, temos certamente o direito de pergun-
tar, com Roloff, entre outros68, se Paulo não terá introduzido ele próprio o
conceito de koinwni,a nessa passagem. Isso por duas razões pelo menos: de uma
parte, a forte recorrência do emprego de koinwni,a69, koinwne,w70 ou de
koinwno,j71 na correspondência do Tarsiota72; de outra parte, a possibilidade ofe-
recida pela expressão tou/to, mou, evstin to. sw/ma (1Cor 11,24) de a interpretar
no sentido da demonstração empregada nessa passagem73. Se efetivamente for

64.Vittorio Fusco, Les premières communautés chretiènnes, 14 (cf. nota 6).


65. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 133 (cf. nota 3). Para Gor-
don D. Fee (The First Epistle to the Corinthians [NICNT], Grand Rapids, Eerdmanns, 31984, 468, n.
28), “there is no good reason why this is not an ad hoc construction, even if some of the language
is earlier”.
66. Cf. a ordem pão–taça em 1 Coríntios 11,23b.24. A menção do pão depois da taça pode
logicamente ser explicada pelo cuidado de articular mais diretamente os versículos 16b e 17; cf.
Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther. 2. Teilband (1 Kor 6,12-11,16), Zürich/Neukir-
chen-Vluyn, Benzinger/Neukirchener, 1995, 433 (EKK 7/2). Para uma explicação no sentido da
valorização da taça, cf. Christian Wolff, Der erste Brief des Paulus an die Korinther, 228 (cf. nota 58).
67. Com o intuito, sem dúvida, de criar um efeito de comunicação. Assim Christian Wolff
(Der erste Brief des Paulus an die Korinther, 227 [cf. nota 58]), que esclarece: “[…] um noch ein-
drücklicher die Zustimmung der Gemeinde herauszufordern”.
68. Jürgen Roloff, Die Kirchen im Neuen Testament, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1993,
100 (NTD. Grundrisse zum Neuen Testament 10); cf. Christian Wolff, Der erste Brief des Paulus an
kie Korinther, 227, n. 369 (cf. nota 58).
69. Romanos 15,26; 1 Coríntios 1,9; 10,16; 2 Coríntios 6,14; 8,4; 9,13; 13,13; Gálatas 2,9;
Filipenses 1,5; 2,1; 3,10; e, enfim, Filêmon 6.
70. Romanos 12,13; 15,27; Gálatas 6,6; Filipenses 4,15.
71. 1 Coríntios 10,18.20; 2 Coríntios 1,7; 8,23; Filêmon 17.
72.Também Wolfgang Schrage (Der erste Brief an die Korinther, 432 [cf. nota 66]) observa:“Nicht­
sicher erwiesen ist, dass auch koinwni,a tou/ sw,matoj/tou/ ai[matoj vorpaulinisch sind, da koinwni,a
ein typisch paulinischer Ausdruck ist”.
73. Cf. Jürgen Roloff, Die Kirche im Neuen Testament, 100 (cf. nota 68). Com efeito, a intenção
de Paulo é, a partir da partilha do pão e da taça, concluir pela impossibilidade de estar em comu-
nhão com os demônios; cf. versículo 20b.

215
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
esse o caso74, poderemos concluir pela transformação premeditada de um enun-
ciado eucarístico num enunciado mais diretamente soteriológico, tendo em vista
preparar a asserção eclesiológica do versículo 17. Se não, teremos a preocupação
pelo menos de saber se Paulo dá aqui ao substantivo koinwni,a o mesmo sentido
de que se revestia na tradição recebida75.
Para recordar essa outra problemática bem conhecida referente ao teor da
tradição subjacente a 1 Coríntios 15,3b-876, temos um excelente guia na pessoa
de Schlosser, que recapitula assim os dados essenciais do problema: “Visto que
Paulo o diz explicitamente, não há por que duvidar de que ele ‘transmite’ alguma
coisa que ‘recebeu’ antes, o que a análise interna do vocabulário e do conteúdo
facilmente confirmaria, aliás. Mas qual é a extensão dessa tradição? A passagem
para a primeira pessoa que se efetua no versículo 8 convida a não ir além do ver-
sículo 7, e dois traços literários garantem certa coerência formal nos versículos
5-7: a) a disposição em quiasma de dois advérbios gregos [ei=ta, e;peita], b) a cor-
respondência quase perfeita entre os versículos 5 e 7 […].Todavia, um hiato bem
nítido entre os versículos 5 e 6 se impõe à nossa atenção: os verbos do versículo
3a não orientam mais os versículos 6-7 (não há mais o[ti), em que várias proposi-
ções independentes apresentam as diversas manifestações do Ressuscitado. A uni-
dade é manifestamente 15,3b-5. Segundo alguns, ela não é mais decomponível. A
maioria dos autores, com base em numerosas fórmulas simples que se apoiam, de
um lado, na morte e, de outro, na ressurreição, pensam, ao contrário, que ela é o
resultado bem-sucedido de um verdadeiro trabalho feito pelos autores da didascá-
lia […]. A extensão (v. 6-7) é mais difícil de ser avaliada. Em virtude da similitude
das formulações do versículo 5 e do versículo 7, perguntamo-nos, por exemplo, se
o último não provém de uma substituição redacional pré-paulina ou até paulina
do versículo 5. O único ponto sobre o qual se formou um amplo acordo é a res-
peito do versículo 6b […]. Não somente ele se distingue das notícias paralelas por
seu estilo mais amplo, como comporta também elementos de vocabulário carac-
terísticos de Paulo, de sorte que temos boas razões para ver aí uma ampliação re-
dacional do Apóstolo. Os outros elementos são provavelmente acréscimos ante-

74. Ressaltemos a reserva expressa a respeito por Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corin-
thians, 468, n. 28 (cf. nota 65): “The […] question, which cannot be answered, is whether the
koinwni,a language is also earlier”.
75. Cf. Christian Wolff, Der erste Brief des Paulus an die Korinther, 229 (cf. nota 58).
76. E. Earle Ellis (Traditions in 1 Corinthians, 495 [cf. nota 1]) resume assim o debate: “[It is]
clear that a pre-formed tradition is being transmitted in these verses even though the extent of
traditional material and of editorial reworking in the pericope is disputed”. Consulte-se com pro-
veito Joseph Schmitt, DBS 10, col. 498-499.504-513.

216
III – Paulo antes de Paulo
riores a Paulo”77. A análise de 1 Coríntios 15,3b-7 ilustra de maneira exemplar as
dificuldades postas pela reconstituição exata das diferentes etapas que levaram ao tex-
to final que encontramos escrito por Paulo, quando ele declara aqui referir uma tra-
dição. Pois, exceto o esclarecimento no versículo 6b, o resto dos acréscimos atribuídos
(v. 6a.7) a uma tradição (v. 3b-5), que, ela própria, provavelmente funde elementos
anteriores independentes insinua-se no estilo impresso pelo versículo 5, de sorte que
não dispomos de nenhum indício forte para saber se são ou não redacionais.
A familiaridade de Paulo com essa corrente da tradição que são as fórmulas
cristossoteriológicas, porque deixa supor expressões livremente calcadas sobre
essa linguagem, bem como a permissão que o apóstolo se dá de intervir nos enun-
ciados à sua disposição tornam, pois, delicado o trabalho de escavação, primeiro, e
de restabelecimento, a seguir. O terreno sobre o qual se move essa pá da pesquisa
paulina não deveria, pois, ser declarado seguro78.

3.3. A questão particular da origem das tradições identificadas

Uma vez que um material preexistente passou a ser corrente, sua plena iden-
tificação exige ainda que se situe seu meio de produção e até, se preciso, que se
avalie sua trajetória. Se, para tanto, o duplo fator linguístico e geográfico prevale-
ceu por muito tempo, verificou-se depois que “a alternativa ‘língua aramaica ou
língua comum’ é [mesmo] muito esquemática”79, bem como uma estrita distinção
entre tradição hierosolimitana, ou mais amplamente palestina, e criações das Igre-
jas de língua grega80. Pois, de uma parte, consta que a fronteira entre esses dois
polos do cristianismo nascente não era tão delineada e impermeável como supú-

77. Jacques Schlosser,Vision, extase et apparition du Ressuscité, in Odette Mainville, Daniel


Marguerat (éd.), Résurrection, 129-159 (146-147) (cf. nota 45).
78. Baste-nos levar em conta aqui o questionamento do consenso a respeito do caráter tradicional
de Romanos 1,3b.4 feito por James M. Scott, Adoptions as Sons of God: An Exegetical Investigation
into the Background of UIOQHSIA in the Pauline Corpus, Tübingen, Mohr Siebeck, 1992, 227-236
(WUNT II/48).
79. Joseph Schmitt, DBS 10, col. 510.
80. Cf. Gérard Claudel (L’héritage chrétien de Paul, 243 [cf. nota 1]), que destaca:“o parâmetro
geográfico, redobrado pelo parâmetro linguístico […] parece que por si só não fornece mais hoje,
apesar de sua relativa pertinência, a chave para responder a todas as questões que se apresentam”.
Lembremos aqui o famoso debate entre Joachim Jeremias (Die Abendmahlsworte Jesu, Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 41967, 96-98) e Hans Conzelmann (Der erste Brief an die Korinther,
307-309 [cf. nota 5]) a propósito da expressão original da tradição retomada em 1 Coríntios
15,3b-5. Com Jean Zumstein (Theologie als Credoauslegung, 97 [cf. nota 1]), notemos que a
hesitação perdura para uma atribuição do original seja à Igreja primitiva de Jerusalém, seja à comu-
nidade de Antioquia.

217
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
nhamos e, de outra, faz-se uma distinção mais apurada entre os diversos movi-
mentos constitutivos das origens81. E também levamos mais em conta hoje prová-
veis contatos e trocas entre os diversos grupos82 caracterizados não somente por
sua implantação e sua língua, mas também pela linha de força de suas intuições
teológicas. Dá-se, portanto, uma atenção maior aos temas retomados83 ou omiti-
dos84 pelas tradições que ficaram isoladas, mas também ao enraizamento eclesial
de seu utilizador ou à estratégia visada mediante o seu emprego. Assim, Becker, ao
privilegiar o longo passado antioqueno do Tarsiota, está inclinado a acreditar “que
o que Paulo utilizará mais tarde a respeito de tradições antigas provém de bases da
comunidade de Antioquia”. Matizando imediatamente:“Isso vale muito especial-
mente para as tradições que encontramos nas duas cartas mais antigas de Paulo
(1 Tessalonicenses e 1 Coríntios) e, em todo caso, nessas cartas nas partes de orien-
tação pagão-cristã”85. É outra a opinião de Hengel e de Schwemer86. Segundo
eles, como o Tarsiota procurava ter crédito perante a Igreja de Roma e dada a
união provável desta a Jerusalém e não a Antioquia, foi-lhe necessário, logicamen-
te, apoiar-se em tradições igualmente reconhecidas pelos cristãos romanos e, por-
tanto, não “tipicamente” antioquenas87.Vemos, portanto, que o debate, por ter se
tornado complexo, está longe de se encerrar.

3.4. Para um inventário dos materiais emprestados

Apesar do coeficiente mais ou menos elevado de incerteza com o qual te-


mos muitas vezes de contar, consta que certo consenso se criou em relação a

81. Cf. Raymond E. Brown, John P. Meier, Antioche et Rome, 19-28 (cf. nota 8); François Vouga,
Les premiers pas du christianisme, 29-75 (cf. nota 8);Vittorio Fusco, Les premières communautés chrétien-
nes, 221-334 (cf. nota 6).
82. Paulo não foi a Jerusalém? Pedro não cumpriu uma etapa em Antioquia? Os “helenistas” não
estão na origem de mais de um enunciado, misturando as marcas da identidade bicultural deles?
83. Cf. Joseph Schmitt, DBS 10, col. 510.
84. Cf. Jean Zumstein, Theologie als Credoauslegung, 98 [cf. nota 1]), que afirma a respeito de
1 Coríntios 15,3b-5: “Was [die berühmte Glaubensformel] verschweigt, ist […] ebenfalls von ho-
her Bedeutung”.
85. Jürgen Becker, Paul, 127 (cf. nota 4).
86. Cf. Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paulus zwischen Damaskus und Antiochen, 434-
438 (cf. nota 28); ali, o parágrafo referente a essa questão é assim intitulado: “Antiochenische For-
meln und Traditionen bei Paulus?”.
87. Esclarecendo, ibid., 435: “Die gemeinsame Basis weist eher auf die ‘Hellenisten’ in Jerusalem
und die von ihnem gegründeten Gemeinden in den hellenistischen Städten Palästinas und Phöni-
ziens, etwa Caesarea als Haupthafen Judäs für die Verbindung nach Rom, zurück”. A propósito de
1 Coríntios 15,3b-5, esses autores afirmam ainda: “Wo und wie die Grundformel […] erstmals
gebildet wurde, wissen wir nicht”.

218
III – Paulo antes de Paulo
vários textos88. Em vez de confeccionar aqui uma lista exaustiva de supostas fór-
mulas cristossoteriológicas retomadas por Paulo segundo uma classificação apro-
priada89, destacaremos, por ordem de aparição no corpus paulino, as passagens re-
gularmente mais evocadas:
Romanos 1,3b.4a; 3,24-2690; 4,24.25; 6,3-4; 8,3.19.20.21.34; 10,9; 14,9.
1 Coríntios 8,6; 10,16; 11,23-25; 12,3; 15,3b-591.
2 Coríntios 5,21.
Gálatas 1,1-4; 4,4-5.
Filipenses 2,6-11; 3,17-21.
1 Timóteo 1,9-10.

4. A recepção paulina das tradições preestabelecidas

Depois de ter falado rapidamente das questões ligadas propriamente ao en-


contro e à localização das fórmulas tradicionais percebidas na correspondência de
Paulo, perguntemo-nos agora de modo mais direto a respeito do modo como ele
fez esses empréstimos. Em que a atenção dada a eles nos permite penetrar mais no
pensamento do apóstolo das nações? De que maneira ele moldou esses materiais
em suas cartas? Vamos nos ater num primeiro momento a essas duas questões.

4.1. Uma oportunidade para uma melhor apreciação da teologia de Paulo

Em resumo, a exata reconstituição do texto inicial de uma fórmula pré-


epistolar permite concluir seja por uma retomada literal do enunciado, seja por
um ou outro retoque feito por Paulo. Sem dúvida, convém fazer a distinção, no
segundo caso, entre o que provém do simples ajuste ao contexto e os desvios mais
significativos. Pois são somente os últimos que, claro, realmente devem ser consi-
derados para encontrar as nuanças, explicações92 ou correções aplicadas pelo

88. Cf. Hermann Von Lips, Paulus und die Tradition, 44 (cf. nota 2).
89. Gérard Claudel (L’héritage crhétien de Paul, 252 [cf. nota 1]) defende o princípio de um
“rápido inventário dos principais enunciados, reagrupados por título cristológico”. Udo Schnelle
(Paulus, 97 [cf. nota 2]) opta por uma classificação por gênero: Tauftraditionen — Abendmahlstra-
ditionen — Bekenntnisformulierungen.
90. Cf. James D. G. Dunn, Prolegomena to a Theology of Paul, 420, n. 28 (cf. nota 1): “Most
commentators […] agree that Rom 3.24-5 makes use of preformed material”.
91. E. Earle Ellis (Traditions in 1 Corinthians, 502, n. 124 [cf. nota 1]) nota dois textos da primeira
epístola aos Coríntios a respeito dos quais convém se interrogar: 1 Coríntios 13; 1 Coríntios 15,51 s.
92. Cf. Christophe Senft (La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 211 s. [cf. nota 3]), re-
tomando a hipótese de Weiss referente a 1 Coríntios 15,50b.c: “[…] a primeira declaração, de cará-

219
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
a­ póstolo à sua fonte93. Com exceção do coeficiente de verossimilhança de tais
arranjos verbais, é-nos assim oferecida a oportunidade de descobrir de modo mais
depurado ainda um ou outro aspecto da teologia de Paulo, tendo sido possível
nesse caso um olhar mais penetrante de seu pensamento ou pela distância assumi-
da diante do dado tradicional, ou pelo que foi mais particularmente acentuado94.
Muito instrutiva é, mais amplamente ainda, a observação da inserção desses
materiais pré-paulinos num contexto, pois qualquer retomada, mesmo literal, de
um enunciado até então autônomo supõe necessariamente uma interpretação em
ligação com seu novo ambiente95. Assim, pode ser de algum proveito descobrir
igualmente em que lógica particular se inscreve cada tradição utilizada. Seu con-
junto não constitui um interessante pano de fundo sobre o qual as opções pró-
prias de Paulo se destacam mais? Pois, com toda evidência, o apóstolo não somen-
te retomou esses enunciados tradicionais numa intenção precisa, mas os submeteu
ainda a seus modos de ver96.

ter judeu-palestino, cita um logion da tradição primitiva, a segunda é a transposição que Paulo faz
em sua própria língua, em consideração a seus leitores. Elas têm o mesmo sentido: de nossa huma-
nidade adâmica nada pode ter acesso ao mundo futuro”. Foi também questionado se 1 Coríntios
11,26 não era um comentário de Paulo; cf. François Vouga, La première épître aux Corinthiens,
187 (cf. nota 51).
93. Cf. Christopher M. Tuckett, Paul, Tradition and Freedom, 310 (cf. nota 11): “[…] traditions
are open to more than one interpretation and a writer may wish to modify or correct what is said
in the tradition. Paul’s use of tradition is no exception. For example, Paul is often regarded as having
adapted the mini-‘creed’ in Rom 1,3f. to avoid any ‘adoptianist’ ideas. […] Paul adds the words
‘concerning his Son’ […] to make the whole creed refer to Jesus qua Son; and he adds ‘in power’
so that Jesus is Son of God ‘in power’ by the resurrection — a claim which leaves open the possi-
bility of Jesu’s being Son of God in another mode […] before the resurrection as well”.
94. Cf. Albert Vanhoye, 1 Pierre au carrefour des théologies du Nouveau Testament, in Charles
Perrot (éd.), Etudes sur la première lettre de Pierre, Paris, Cerf, 1980, 97-128 (LeDiv 102): “[…] esfor-
çamo-nos por discernir nos escritos paulinos textos pré-paulinos, cuja teologia se esclarece, para
depois distinguir dela a de Paulo […]. Numerosos ensaios nesse sentido foram tentados para Fili-
penses 2,6-11 […], bem como para Romanos 1,3-4” (99, n. 4).
95. Christopher M. Tuckett, Paul, Tradition and Freedon, 309-310 (cf. nota 11): “[…] one can
almost say that any use of a tradition involves interpretation. Words change their meanings when
placed in different contexts so that even the repetition of the same words may produce a different
meaning when transferred to another setting”.
96. Ernt Käsemann (Die Helsbedeutung des Todes Jesu bei Paulus, in Paulinische Perspektiven,
Tübingen, Mohr Siebeck, 31993, 61-107) julga globalmente: “Die Aufnahme der Überlieferung
durch Paulus geschieht jedoch so, dass er sie vertieft, teilweise korrigiert und jedenfalls neu ausri-
chtet” (82-83). A propósito de Romanos 8,3 e Gálatas 4,4, Martin Hengel (Der Sohn Gottes, 24 [cf.
nota 12]) observa: “Typisch paulinisch ist […] die theologische Ausdeutung: Die Befreiung von der
Macht der Sünde und des Gesetzes und die Einsetzung des Glaubenden in das Sohnesverhältnis
gegenüber Gott selbst”.

220
III – Paulo antes de Paulo
Seja no nível da carta, seja no da inserção em contexto, a análise de qualquer
fórmula pré-paulina é, pois, a priori suscetível de oferecer algum esclarecimento a
um pensamento teológico fecundo, mas não totalmente original, como o do
Tarsiota.

4.2. Dois exemplos de retomada de materiais tradicionais

Tomemos aqui dois enunciados cristossoteriológicos como ilustração do


modo como Paulo faz uso de tradições cristãs, a saber, 1 Coríntios 8,6 e Gálatas
1,497. Sem dúvida, temos de considerar, com Hofius98, que a tradição retomada
em 1 Coríntios 8,6 deve se restringir a:
ei-j qeo.j o` path.r evx ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j eivj auvto,n
kai. ei-j ku,rioj vIhsou/j Cristo.j diV ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j diV auvtou/
Esse texto apresenta as características de um elemento tradicional, tanto a
forma como o fundo demandando uma existência anterior a essa confissão99. Está
posto em tensão com a atestação precedente — qeoi. polloi. kai. ku,rioi polloi,
(v. 5) — por meio das palavras avllV h`mi/n. Temos de nos perguntar, todavia, se são
os coríntios que baseiam sua posição nessa tradição100 ou, ao contrário, se é Paulo
que a convoca para construir sua argumentação101. Seja como for, a força da afir-
mação que estabelece uma ligação entre as funções cosmológica e soteriológica
de Deus e de Jesus a fim de resolver a questão posta pela consumação das carnes

97. No que diz respeito à maneira como Paulo recebeu a afirmação do “Cristo pantocrator”, cf.
Robin Scroggs, Paul: Tyth Remaker: The Refashioning of Early Ecclesial Traditions, in Janice C.
Anderson, Claudia Setzer, Philipp Sellew (éd.), Pauline Conversations in Context: Essays in Honor
of Calvin J. Roetzel, London, Sheffield Academic Press, 2002, 87-101 (JSNT.S 221).
98. Otfried Hofius, “Einer ist Gott — Einer ist Herr”. Erwägungen zu Struktur und Aussage
des Bekenntnisses 1 Kor 8,6, in Martin Evang, Helmut Merklein, Michael Wolter (Hrsg.), Escha-
tologie und Schöpfung. Festschrift für Erich Grässer zum siebzigsten Geburtstag, Berlin/New York,
Walter de Gruyter, 1997, 95-108 (103) (BZNW 89).
99. O critério de múltipla atestação vem ainda confirmar esse julgamento; cf. Christian Wolff,
Der erste Brief des Paulus an die Korinther, 172-177 (cf. nota 58). Quanto aos defensores de uma cria-
ção paulina, ver Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther, 221, n. 46 (cf. nota 66).
100. Assim Otfried Hofius, “Einer ist Gott — Einer ist Herr”, 99 (cf. nota 98): “In V. 1a,V. 4-6
und V. 8 haben wir es mit Äusserungen der Korinther zu tun, in V. 1b-3, V. 7 und V. 9-13 mit der
jeweiligen Stellungnahme des Apostels”.
101. Cf. Andrianjatovo Rakotoharintsifa, Conflits à Corinthe. Eglise et société selon 1 Co-
rinthiens. Analyse socio-historique, Genève, Labor et Fides, 1997, 161 (Le Monde de la Bible
36): “Exprimimos a hipótese de que a posição teológica aqui (re)formulada reflete uma parte do
ensinamento dispensado pelo próprio Paulo, mas explorada pelos fortes para justificar sua
conduta”.

221
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
sacrificadas aos ídolos102 é aqui refreada pelo duplo princípio normativo posto por
Paulo no versículo 1b, no caso o do avga,ph e do oivkodomh,. Se esse “credo […] pode
[…] ser considerado um ponto de partida comum […] a Paulo e aos fortes”103, ele
não os conduz, entretanto, às mesmas conclusões práticas, permanecendo o prin-
cípio da permissão submetido para o apóstolo ao da construção responsável da
comunidade eclesial. Notemos, todavia, antes de nos voltarmos para Gálatas 1,4,
que o enunciado de 1 Coríntios 8,6 se oferece como uma demonstração do “po-
tencial de sentido” dessas formulações primitivas, nada nos obrigando a aceitar o
que se encontra no contexto de uma discussão a respeito de sacrifícios oferecidos
aos ídolos, em que, todavia, ele mantém com lógica seu lugar.
Para Bovon, entre outros, “não parece muito arriscado delimitar alguns ele-
mentos pré-paulinos no endereço e na saudação da carta aos Gálatas, principal-
mente nos versículos 4 e 5 do capítulo primeiro”104, sendo a caracterização de
Deus no fim do versículo 1 — tou/ evgei,rantoj auvto.n evk nekrw/n — também ela
pelo menos de inspiração tradicional105. Três proposições podem ser encontradas
no versículo 4: a primeira — tou/ do,ntoj e`auto.n u`pe.r tw/n a`martiw/n h`mw/n —,
fortemente marcada, fala do dom voluntário de sua vida por Jesus106, ao passo que
a segunda — o[pwj evxe,lhtai h`ma/j evk tou/ aivw/noj tou/ evnestw/toj ponhrou/ —, que
lhe está subordinada, destoa um tanto em relação à linguagem paulina107, e apre-
senta a terceira — kata. to. qe,lhma tou/ qeou/ kai. patro.j h`mw/n —, também ela, um
traço original, a saber, a ligação estabelecida entre a morte de Jesus e o motivo da
vontade divina108. Se é verdade que as três frases que compõem o versículo 4 fo-

102. Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther, 242 (cf. nota 66): “[Der Satz] dient hier
[…] allein der Absicht, dass nichts, was dem von Gott Geschaffenen zugehört, ‘unrein’ sein kann”.
103. Andrianjatovo Rakotoharintsifa, Conflits à Corinthe, 163 (cf. nota 101).
104. François Bovon, Une formule prépaulinienne, 13 (cf. nota 11); cf. Walter Kirchschläger,
Zur Herkunft und Aussage von Gl 1,4, in Albert Vanhoye (éd.), L’apôtre Paul. Personalité, style et
conception du ministère, 332-339 (cf. nota 7); Kirchschläger observa a propósito do versículo 4:
“Weder der etwas unständliche Aufbau noch die Wahl des Ausdrucks weisen unmittelbar auf Paulus
als Verfasser, ja eher von ihm weg” (332).
105. Comparar com Atos 3,15; 4,10; 5,30; 10,40; 13,30.
106.Walter Kirchschläger (Zur Herkunft und Aussage von Gal 1,4, 334 [cf. nota 104]) obser-
va: “Die huper-Formel ist hier nicht — wie sonst üblich bei Paulus — mit dem Personalpronomen
verbunden [Rm 5,8; 1Ts 5,10; 1Cor 1,13; 11,24; Gl 2,20; 2Cor 5,14.15; Rm 8,32]. Die Präzisie-
rung der huper-Formel mittels des Hinweises auf die Sünden findet sich im Neuen Testament nur
noch 1 Kor 15,3”; cf. a revisada análise de Luc De Saeger, “Für unsere Sünden”. 1 Kor 15,3b und
Ga 1,4a im exegetischen Vergleich, EThL 77 (2001) 169-191.
107. Cf. Walter Kirchschläger, Zur Herkunft und Aussage von Gal 1,14, 335 (cf. nota 104).
108. François Bovon (Une formule prépaulinienne, 15 [cf. nota 11]) destaca: “As epístolas au-
tênticas jamais fazem depender explicitamente a redenção em Jesus Cristo da vontade de Deus”; cf.
Walter Kirchschläger, Zur Herkunft und Aussage von Gal 1,14, 335 (cf. nota 104).

222
III – Paulo antes de Paulo
ram de fato tomadas de empréstimo do bem comum da tradição109, é ao próprio
Paulo que devemos a associação delas?110Apesar das incertezas, não deveria passar
despercebido que a amplificação incomum feita na saudação clássica e que carac-
teriza o Cristo pela ação específica do dom de sua vida assume — esse incipit —
um aspecto singular, e a intenção de Paulo é garantir sem tardar o fundamento111
da posição que defenderá na polêmica travada com os gálatas.
Isso nos conduz muito naturalmente a nos questionar ainda sobre os princi-
pais motivos que levaram Paulo a tecer numerosos enunciados cristossoteriológi-
cos sob forma de fragmentos ou, às vezes, de ecos na trama de suas cartas.

5. As razões do recurso a tradições cristãs pré-epistolares

Supondo que — e temos base para pensar assim — esse substrato primitivo
não se oferecia a Paulo como um material “imposto”112, não deixa de ser legítimo,
consequentemente, perguntar por que o Apóstolo reuniu em numerosas ocasiões
certos temas ou fórmulas tradicionais113. O que significava para ele essa memória,
explícita ou implícita, de afirmações comumente partilhadas? Com que finalida-
de fez uso regular delas?114 Esse questionamento é tão mais justificado quanto o

109. François Bovon (Une formule prépaulinienne, 15 [cf. nota 11]) conclui dos argumentos da
análise filológica do versículo 4: “[Eles] nos parecem suficientes para sugerir que Paulo recorre aqui
a um fragmento tradicional”; para opiniões diferentes, cf. Luc De Saeger, Für unsere Sünden, 188-
189, n. 72 (cf. nota 106). A dúvida recai essencialmente sobre o versículo 4b, que alguns consideram
um comentário paulino.
110. Cf.Walter Kirchschläger, Zur Herkunft und Aussage von Gal 1,4, 336 (cf. nota 104): “Fraglich­
[…] ist allerdings die vorpaulinische Einheit des Verses”. Sua hipótese é que Paulo inseriu o versículo
4b — para o qual ele supõe uma fórmula independente vinda da cristologia do êxodo — entre os ver-
sículos 4a e 4c, julgando que o paralelo com 1 Coríntios 15,3b fundamente a associação inicial das duas
proposições; para François Bovon (Une formule prépaulinienne, 17 [cf. nota 11]), “essa fórmula se ca-
racteriza [em resumo] ao mesmo tempo por uma considerada concisão e por uma complexa constru-
ção. Esse duplo caráter deveria nos estimular a não a fazer remontar à primeira comunidade, mas a uma
cristandade anterior a Paulo, depois de ter atravessado uma fase intensa de reflexão cristológica”.
111. De modo interessante, François Vouga (An die Galater, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, 20
[HNT 10]) afirma: “Es gehört zur Arbeit des Zitats, dass die zitierten Aussagen und Äusserungen
als anerkannte Autoritäten vorgestellt werden, und dass die Aufmerksamkeit auf die Letitimität und
die Richtigkeit der Bezugnahme gelenkt wird”. A função programática de Gálatas 1,1-5 é lembra-
da por Luc De Saeger, Für unsere Sünden, 171, 174 (cf. nota 106).
112. Assim Günther Bornkamm, Paul, 165 (cf. nota 14).
113. Cf. Klaus Wengst, Der Apostel und die Tradition, 154 (cf. nota 39): “Es muss […] die Frage
gestellt werden, warum Paulus überhaupt Tradition aufnimmt. Besteht für ihn dazu eine irgendwie
geartete Notwendigkeit, oder ist sein Traditionsgebrauch völlig okkasionnel?”.
114. Hermann Von Lips (Paulus und die Tradition, 48 [cf. nota 2]) lembra: “Die versuchten
Antworten zeigen unterschiedliche Nuancen. Eichholz betont, dass Paulus ‘Traditionen, die er an-

223
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
Tarsiota, de outro lado, reivindica alto e bom som ser proveitoso para uma “reve-
lação” particular (Gl 1,12.15-16). Como conciliar a experiência privada com as
tradições recebidas?

5.1. Tradições comuns e revelação

Para introduzir a essa problemática, é habitual pôr em paralelo 1 Coríntios


15,1a.3a — gnwri,zw […] u`mi/n, avdelfoi,, to. euvagge,lion o] euvhggelisa,mhn u`mi/n
[…] pare,dwka ga.r u`mi/n evn […] o[ kai. pare,labon — e Gálatas 1,11-12 —
gnwri,zw […] u`mi/n, avdelfoi,, to. euvagge,lion to. euvaggekusqe.n u`pV evmou/ […] ouvde.
ga.r evgw. para. avnqrw,pou pare,labon auvto,. Como interpretar o fato de Paulo
lembrar com insistência aos coríntios o fundamento tradicional de seu Evange-
lho115, quando informa, de outro lado, aos gálatas que esse Evangelho procede es-
tritamente de uma revelação? Essa aparente tensão não deve, certamente, ser exa-
cerbada. Com efeito, parece que ela se deixa resolver de maneira satisfatória se
levado em conta o contexto específico de cada uma das duas informações dadas116:
se, para responder à negação da ressurreição dos mortos, o Tarsiota julgou oportu-
no construir sua argumentação com base na autoridade que se reconhecia à tradi-
ção citada, pareceu-lhe necessário, ao contrário, a fim de persuadir sobre a verdade
de seu modo de ver a liberdade em relação à Lei, alegar desta vez a autoridade que
lhe conferia pessoalmente a “revelação de Jesus Cristo”. Mas não sem ter antes
aberto a epístola aos Gálatas com a retomada de vários elementos tradicionais,
como já ressaltamos! Não há necessidade alguma, portanto, de concluir, forçando
certamente o propósito de Paulo, que a tradição referida em 1 Coríntios 15,3b-5
seja a “norma” do Evangelho ou, ao contrário, que este último “regule” toda a

traf, in seinen Kontext eingefügt und damit zugleich in seinem Sinn profiliert (hat)’. Es handelt sich
für ihn ‘nicht um Formeln der Vergangenheit, sondern um höchst aktuell interpretierte Texte, die zur
Weisung für die Gegenwart werden’. […] Nach […] Gnilka baut Paulus […] ‘auf der ihm vorge-
gebenen christlichen Verkündigung in selbständiger Weise auf und wird zum schöpferischen Ver-
mittler urchristlichen Kerygmas’. Er ist ‘im Zentrum seiner Verkündigung abhängig und unter-
nimmt es dabei, ‘vom Zentrum aus in neue Richtung zu gehen’ […]. Am prägnantesten ist die
Sicht Conzelmanns: Die paulinische Theologie ist ‘Auslegung der ursprünglichen Texte das Glau-
bens, also der ältesten Formulierungen des Credo’ […]. Die Tradition ist demnach fundamental für
die paulinische Theologie”.
115. Em 1 Coríntios 11,2, não felicita Paulo os coríntios por terem conservado as “tradições” que
ele lhes havia “transmitido”?
116. Contra Erich Dinkler, Tradition.V. Im Urchristentum, RGG3 6, col. 971: “Die Spannung
zwischen der Aussage in Gal 1,12 einerseits […] und 1 Kor 11,23 und 15,3 anderseits […] lässt sich
nicht auflösen und systematisierend klären”.

224
III – Paulo antes de Paulo
tradição117. Parece-nos mais justo manter no apóstolo o princípio da coabitação
das duas autoridades, evocadas cada uma por sua vez e se auxiliando mutuamente,
e não o da subordinação sistemática de uma à outra. Nenhum impedimento. O
que, definitivamente, importa ao Tarsiota é que seus interlocutores tirem todas as
consequências das fórmulas de fé requisitadas para as necessidades da argumenta-
ção e para as quais ele se permite determinar a “legítima” interpretação.

5.2. O estabelecimento de uma base argumentativa aceita pelos destinatários

Paulo, evidentemente, não transmitiu apenas por transmitir. Sua intenção


maior não era explicar metodicamente as bases comuns da fé cristã. Mas percebeu
com lucidez as potencialidades que as tradições primitivas ofereciam, antes de
tudo para debater questões teológicas ou éticas postas pelo difícil desenvolvimen-
to das jovens comunidades que ele acabara de criar118. Por isso evocou regular-
mente essas expressões da fé partilhadas para argumentar a partir do incontestável.
Mais de uma vez, com efeito, o Tarsiota teve o cuidado de se apoiar, neste ou na-
quele momento de algum debate, num fundamento axiomático119, reconhecido,
portanto, pela opinião contrária. E a sutileza consistia para ele em desmontar, com
base nesse terreno neutro, concorde e assumido de parte a parte120, a posição de-
nunciada ao justificar sua própria convicção. E Paulo se mostrou relativamente
perito nesse jogo, que consistia, se não em “exaurir” o potencial de sentido de um
texto121, pelo menos em delimitá-lo. Lembremos, a respeito, o papel desempenhado

117. No que diz respeito a esse antigo debate, cf. Klaus Wengst, Der Apostel und die Tradition,
146 (cf. nota 39). Lembremos a posição defendida em seu tempo por Klaus Wegenast, Das Verständ-
nis der Tradition bei Paulus und in den Deuteropaulinen, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1962, 50
(WMANT 8): “Nach der Meinung des Paulus ist das Evangelium als offenbartes einer Tradition
immer schon voraus und bleibt in jedem Fall Norm über aller Tradition”.
118. Jean Zumstein (Theologie als Credoauslegung, 102 [cf. nota 1]) ressalta com muita razão:
“[…] Paulus [war] wie kein anderer in der Lage, das Sinnpotential der urchristlichen Bekenntnis-
formeln zu erschliessen und in ganz konkreten, historischen Situationen zur Sprache zu bringen”.
119. A propósito de 1 Coríntios 15,3-5, lembra Zumstein:“Nicht die persönliche Überzeugung
von Paulus […], sondern das Credo der Kirche dildet den unumgänglichen Ausgangspunkt der
paulinischen theologischen Stellungnahme” (ibid., 103).
120. Cf. James D. G. Dunn, Prolegomena to a Theology of Paul, 419 (cf. nota 1): “Such passages
[…] bring to focus in a definitional way central affirmations about Christ which elsewhere are
expressed as credal statements, and, not least, they are not argued but assumed. In other words, the
very form in which Paul uses these formulae in his letters indicates that they belong once again to
a common discourse, a set of shared beliefs which, precisely because they were shared and were
non-controversial, need not to be argued”.
121. Henning Paulsen (Von der Unbestimmtheit des Anfangs, 34 [cf.nota 29]) descreve assim o
processo, sem fazer referência a Paulo: “Der ‘Text’ erscheint schon auf Grund seiner Sprachlichkeit

225
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
pelos diferentes elementos tradicionais (1Cor 8,6; 10,16; 15,3b-5; Gl 1,4) que
aparecem na argumentação desenvolvida referente aos sacrifícios oferecidos aos
ídolos (1Cor 8–10), à ressurreição dos mortos (1Cor 15) ou à justificação pela fé
(Gl 1,1–5,12).

5.3. A intenção apologética: garantir que se defenda uma posição


“teologicamente correta”

Mas Paulo retomou igualmente certas fórmulas antigas provavelmente com


a intenção deliberada de ganhar a confiança de alguns. O cuidado de um teste-
munho comum, claramente anunciado pelo apóstolo em 1 Coríntios 15,11
— ou[twj khru,ssomen — em ligação com o material tradicional citado nos versí-
culos 3b-5, não transparece ainda, embora de maneira mais velada, na medida
mais ampla da epístola aos Romanos? Com efeito, é apenas casual que uma fór-
mula cristológica antiga, decerto retocada122, figure já no endereço anormalmen-
te desenvolvido dessa carta em cujo corpo se verifica, além disso, que também ele
está adornado por um número incomum de enunciados primitivos, como Ro-
manos 3,25 ou 4,25? Supondo que esses materiais tradicionais eram efetivamente
familiares à comunidade destinatária123, pode-se imaginar desde já que, por seu
reemprego uniforme, Paulo procurava sutilmente dar garantias aos cristãos de
Roma quanto à “ortodoxia” de sua linha teológica124. Mas sem insistir muito,
dada a ausência de qualquer fórmula de citação construída sobre a dupla de ver-

nicht mehr als unmittelbar, sonder erweist sich als gebrochen und vermittelt. Weil er zugleich auf
Rezeption hin angelegt ist, bleiben solche Unbestimmtheitsstellen für ihn konstitutiv. Wenn dies
unterschiedliche Interpretationen zulässt, so kommt es in den daraus resultierenden Konflikten zur
nötigen Klärung der gemeinsamen Vorlage. […] Die Einsicht in die Unbestimmtheitsstellen der
anfänglichen Überlieferung und des ursprünglichen ‘Textes’ ermöglicht auch das Verständnis für
die Bemühung, solche Mehrdeutigkeit aufzuheben und so das Sinnpotential des Textes
‘auszuschöpfen’”.
122. Gérard Claudel (L’héritage chrétien de Paul, 258 [cf. nota 1]) ressalta, a propósito de Ro-
manos 1,3-4: “O caráter tradicional da passagem é pouco contestado; os debates, todavia, para de-
limitar seu teor primitivo continuam animados”; cf. Joseph Schmitt, DBS 10, col. 502-503.
123. Estava Paulo suficientemente informado sobre as tradições cristossoteriológicas conhecidas
em Roma? É difícil de responder com certeza.
124. Cf. Klaus Wengst, Der Apostel und die Tradition, 158 (cf. nota 39): “Die ungewöhnlich
häufige Zitierung von Formeln gerade in diesem Brief muss mit seinem besonderen Abfassun-
gszweck zusammenhängen”; Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paulus zwischen Damaskus
und Antiochen, 435 (cf. nota 28): “Paulus wollte in Rom nicht nur verstanden werden, sondern
auch Zustimmung finden, dazu musste er auf die unbestritten gemeinsame Glaubensgrundlage
hinweisen”.

226
III – Paulo antes de Paulo
bos paralamba,nein-paradido,nai nessa epístola e o único emprego do plural
khru,ssomen como introdução a Romanos 10,9-10. E sempre se permitindo,
como de costume, trabalhar de novo o que emprestou do bem comum125. Ne-
nhuma dificuldade. Seja lá qual tenha sido o conteúdo do tu,poj didach/j dispen-
sado a Roma126, deve-se ressaltar que, nessa carta dirigida a uma comunidade que
ele próprio não havia fundado, o Tarsiota terá desejado se referir, e isso desde o
incipit, a várias fórmulas tradicionais.

5.4. A intenção polêmica: ressituar a verdade

Outra é, evidentemente, a intenção mostrada na saudação introdutiva da


epístola aos Gálatas. Se ele lhe dá igualmente uma extensão anormal pelo acrésci-
mo no versículo 4 de um texto de origem tradicional127, vê-se com clareza que
Paulo prepara desse modo o real contexto que se dispõe realizar no corpo da car-
ta. Esse enunciado cristossoteriológico é, de fato, duplamente valorizado: de uma
parte, está situado num local eminentemente estratégico do escrito; de outra par-
te, está apoiado por Gálatas 4,4-5128.A isso se acrescenta, o que não é incomum, que
é citado antes de o tom polêmico, implícito no versículo 1, se declarar aberta-
mente no versículo 6. Significa o cuidado tomado em estabelecer — calmamente
— a marca incontestável a partir da qual será argumentado. Ao centralizar o deba-
te, desde a abertura da carta, no dom voluntário de Jesus por nossos pecados, o
Tarsiota entendia, pois, de modo bem explícito, situar-se “na verdade do Evange-
lho recebido”129, deixando, paralelamente, entender que seus adversários se assenta-
vam no erro.
Obrigado pelas circunstâncias a defender suas mais profundas convicções
teológicas, foi pela evocação, pois, de uma fórmula “neutra”, porque tradicional,
que Paulo abriu o debate, na esperança de poder confundir seus adversários ao
lhes expor as consequências últimas da morte de Jesus em matéria de liberdade
em relação à Lei.

125. Cf. François Vouga, L’epître aux Romains, 165-166 (cf. nota 51).
126. A respeito dessa expressão empregada em Romanos 6,17 e considerada por alguns uma
glosa, cf. Gerd Schunack, EWNT III, col. 896-897.
127. É possível que a doxologia do versículo 5 sirva de “ação de graças”.
128. Ulrich Wilckens (Der Brief an die Römer. Teilband II: Röm 6-11, Zürich/Neukirchen-
Vluyn, Benzinger/Neukirchener, 1980, 138-139 [EKK 6/2]) tende a supor a retomada em Gála-
tas 4,4-6 de uma tradição subjacente ainda em Romanos 8,3.4.14.15.17, mesmo que seja difícil
prová-la.
129. François Bovon, Une formule prépaulinienne, 16 (cf. nota 11).

227
A respeito das tradições cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo
6. Prolongamentos

Ao fim desta rápida análise de um dos campos importantes da pesquisa pau-


lina, embora tenhamos nos concentrado em particular nas fórmulas cristossote-
riológicas, esperamos ter desenvolvido suficientemente as principais questões e as
potencialidades mais importantes de uma pesquisa não acabada sobre as tradições
cristãs pré-epistolares na correspondência inconteste do Tarsiota.
Se fosse necessário fechar com uma questão, nós a formularíamos nestes
termos: O que citar implica? Talvez fosse mesmo conveniente a distinção, nessa
interrogação, entre citação explícita, implícita e simples eco. Nenhuma dúvida de
que, ao aprofundar pelo lado da retórica greco-romana ou da prática do judaísmo
na matéria, nós respigaríamos úteis informações para estabelecer com mais firme-
za ainda a maneira de proceder daquele que foi marcado por uma e outra maneira
de agir130.
Se fosse preciso concluir com uma observação, lembraríamos que Paulo de-
senvolveu, como prolongamento da tradição querigmática, uma lógica própria que
ele convencionou chamar de “teologia da cruz”131. Prova por excelência, se fosse
preciso, da criatividade com a qual o apóstolo recebeu as tradições preexistentes.
Se fosse preciso, enfim, abrir a pesquisa para além das cartas autênticas de
Paulo, seria muito instrutivo sem dúvida nenhuma enfatizar quais as tradições
retomadas por seus herdeiros e que uso delas fizeram132.

130. Mencionemos aqui duas questões, uma posta por Klaus Wegenast, Das Verständnis der Tradi-
tion, 92 (cf. nota 117): “Bedient sich Paulus bei der Weitergabe dieser als Tradition bezeichneten
Stücke einer irgendwie fassbaren Traditionstechnik?”; a outra por Christopher M. Tuckett, Paul,
Tradition and Freedom, 315 (cf. nota 11): “What […] are the norms by which Paul decides that
one tradition is dispensible?”.
131. Cf. Jean Zumstein, Paul et la théologie de la croix, ETR 76 (2001) 481-496; Id., Das Wort
vom Kreuz als Mittle der paulinischen Theologie, in Andreas Dettwiler, Jean Zumstein (Hrsg.),
Kreuzestheologie im Neuen Testament, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, 27-41 (WUNT 151); Daniel
Gerber, La croix dans la première lettre de Paul aux Corinthiens, in Jean-Mark Prieur (éd.), La
croix. Représentations théologiques et symboliques, Genève, Labor et Fides, 2004, 11-23 (Actes et
recherches).
132. Já tentamos em outro lugar mostrar de modo especial como o autor das pastorais alargou
uma base soteriológica que lhe parecia muito estreita; cf. Daniel Gerber, 1 Tm 1,15b: l’indice
d’une sotériologie pensée prioritairement en lien avec la venue de Jésus, RHPhR 80 (2000) 463-
477. Certamente, não é interessante comparar igualmente o recurso de Paulo a esse substrato tra-
dicional com o do autor da primeira epístola de Pedro.

228
III – Paulo antes de Paulo
O “tempo messiânico”:
reflexões sobre a temporalidade em Paulo
Elian Cuvillier (Montpellier)

Este estudo sobre a temporalidade em Paulo tenta ultrapassar os termos clássicos do debate
relativo à escatologia paulina (oposição entre apocalíptica judaica e escatologia helenística).
A noção de “tempo messiânico”, tomada emprestada do filósofo Giorgio Agamben, é utili-
zada para traduzir a maneira como Paulo interpreta a realidade presente da fé. Essa com-
preensão do presente se enraíza no acontecimento cristológico e torna complexa a distinção
apocalíptica tradicional entre os dois éons. Caracteriza-se por uma relativização radical das
ordens e distinções deste mundo e, ao mesmo tempo, por uma consideração da realidade na
qual é preciso viver.

Introdução

O debate relativo à natureza da escatologia paulina é bem conhecido. Apre-


senta-se da seguinte maneira: de um lado, e com o incentivo de Käsemann1,
uma parte da pesquisa considera que a escatologia paulina e, mais amplamente,
sua teologia estão marcadas pelo pensamento apocalíptico2: dualismo cósmico e

1. Cf. especialmente Ernst Käsemann, Sur le thème de l’apocalyptique chrétien primitive, in


Essais exététiques, Neuchâtel, Delachaux & Niestlé, 1972, 199-226, espec. 214-226 (Le Monde de la
Bible 3).
2. Assim J. Louis Martyn, Apocalyptic Antinomies in Paul’s Letter to Galatians, NTS 31 (1985)
410-424; Id., Galatians, New York, Doubleday, 1997, espec. 97-105 (“Apocalyptic Theology in Gala-

229
histórico (os dois éons), iminência da manifestação da justiça de Deus. Nesse qua-
dro conceitual, a ressurreição de Jesus antecipa o triunfo final de Deus sobre a
morte e os poderes e dá sentido à vida cristã. E, como o mundo presente está sob
o julgamento de Deus, a ética paulina tem por horizonte a espera da manifestação
da justiça de Deus no último dia, esperança para os crentes e julgamento para o
mundo. Paulo deve ser interpretado nesse último plano apocalíptico que estrutura
seu pensamento. Além do Atlântico de modo particular, Beker radicalizou a posi-
ção de Käsemann ao desenvolver a tese segundo a qual a cristologia paulina esta-
ria ordenada ao pensamento apocalíptico e não o contrário3. De maneira mais
geral, os partidários de uma interpretação de Paulo a partir da apocalíptica insis-
tem na dimensão cósmica e futurista de sua escatologia.
Ao contrário, para Bultmann4 e os que seguem sua trilha5, Paulo pouco a
pouco se separou do quadro apocalíptico ainda muito presente na primeira epís-
tola aos Tessalonicenses, mas que constitui em alguns casos a matriz de seu pensa-
mento e de sua experiência religiosa. Em particular, devido ao atraso da parusia,
Paulo evoluiu para uma escatologia adaptada ao mundo helenístico, espaço geo-
gráfico e cultural em que se desenvolve sua missão. De preferência, é para a antro-
pologia helenística que é preciso olhar para compreender a escatologia paulina, a
qual seria, então, individual e presenteísta: é à salvação do indivíduo que se visa
primeiro pela mensagem paulina, e é a dimensão presente dessa salvação que se
afirma. A ética paulina tem então por função considerar o mundo no qual as co-
munidades são chamadas a viver o Evangelho.
Essa oposição entre apocalíptica judaica e escatologia helenística e, mais am-
plamente, entre duas compreensões da teologia de Paulo foi por muito tempo um
debate interno da exegese de tradição luterana. Hoje, a mudança de paradigma na
pesquisa paulina facilita sem dúvida um distanciamento diante do que pode pare-

tians”) (AncB 33a); Id., De-apocalypticizing Paul: An Essay Focused on Paul and the Stoics by Troels
Engberg-Pedersen, JSNT 86 (2002) 61-102. Cf. igualmente Martinus C. de Boer, Paul and Jewish
Apocalyptic Eschatology, in Joel Marcus, Marion L. Soards (ed.), Apocalyptic and the New Testament:
Essays in Honor of J. Louis Martyn, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1989, 169-190 (JSNT.S 24).
3. J. Christiaan Beker, Paul the Apostle: The Triumph of God in Life and Thought, Edinburgh, T
& T Clark, 1980; 2. impr.: Philadelphia, Fortress Press, 1982; Id., Paul’s Apocalyptic Gospel: The Co-
ming Triunph of God, Philadelphia, Fortress Press, 1982.
4. Cf., por exemplo, Rudolf Bultmann, Histoire et eschatologie, Neuchâtel/Paris, Delachaux &
Niestlé, 1959, 38-42 (Bibliothèque théologique).
5. Assim, entre outros, Jürgen Becker, Erwägungen zur apokalyptischen Tradition in der pauli-
nischen Theologie, EvTh 30 (1970) 593-609; cf. Id., Paul, “L’apôtre des nations”, trad. Joseph Hoff-
mann, Paris/Montréal, Cerf/Médiaspaul, 1995, 509-520 (Théologies bibliques); Jörg Baumgarten,
Paulus und die Apokalyptik. Die Auslegung apokalyptischer Überlieferungen in den echten Paulus-
briefen, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1975 (WMANT 44).

230
III – Paulo antes de Paulo
cer uma falsa alternativa. Tanto é verdade que é possível encontrar na mesma
epístola afirmações que vão numa ou noutra direção.
Assim, no que diz respeito à dimensão futurista ou presenteísta de sua esca-
tologia, Paulo pode expressar o desejo ardente de “revestir a habitação celeste”
que lhe está reservada por Deus “nos céus” (2Cor 5,1-2) e, alguns versículos mais
adiante, afirmar que aquele que está em Cristo é uma “nova criatura”, que para
ele “o mundo antigo passou, eis que aí está uma realidade nova” (2Cor 5,17).Aliás,
é ainda mais surpreendente — considerando-se os termos habituais do debate —
constatar que, nesse exemplo, as expressões apocalípticas estão a serviço da di-
mensão presente da salvação (“é uma nova criatura”, “o mundo antigo passou”),
ao passo que a espera futura se expressa mais nas categorias da antropologia hele-
nística (“revestir a habitação celeste”)!
Da mesma maneira ainda, no que diz respeito à alternativa entre escatologia
cósmica e individualista, Paulo pode afirmar que “a criação geme” na expectativa
da libertação (Rm 8,19-22) e acrescentar logo “que não só ela”, pois “nós [ou seja,
os crentes] esperamos a adoção, a libertação” (v. 23): não há nele oposição entre
espera da criação e espera da comunidade crente, pois se entende que para Paulo
não há mais contradição entre espera individual (cf. sua expressão, por exemplo,
em Fl 1,21-25) e espera comunitária.
De tal maneira, enfim, que a ética paulina se apresenta ao mesmo tempo
como uma ética do provisório (as exortações de Paulo estão pontilhadas de con-
siderações muito claras sobre esse ponto; cf. 1Cor 7,29.31: “o tempo se abreviou
[…] a figura deste mundo passa”; e Rm 13,11.12:“mais que sabeis em que tempo
estamos […] o dia está bem próximo”) e, todavia, não somente profundamente
enraizada no concreto da existência de seus destinatários, mas ainda lançando um
olhar positivo sobre o mundo e seu funcionamento (cf., por exemplo, Rm 13).
Para tentar sair dessa visão por demais binária (“ou… ou…”) da compreen-
são da escatologia paulina, proponho abordar a questão pelo ângulo da tempora-
lidade. Mais precisamente, interessar-me-ei pela percepção paulina do presente e
pela maneira como ele articula esse presente da fé e da vida no mundo com a
espera futura do “dia do Senhor” (1Ts  5,2; Fl  1,6.10; 2,16; 1Cor  1,8; 5,5;
2Cor 1,14). Para clareza de minha exposição, enunciarei quatro “teses”, que cons-
tituirão as quatro seções de minha contribuição.

1. O presente da fé como preocupação primeira de Paulo

Tese 1. O que preocupa Paulo prioritariamente não é o futuro (a “parusia”, suas


modalidades e o que deve se seguir), mas o presente da fé. O discurso sobre o futuro está a

231
O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo
serviço de uma reflexão teológica e de uma pastoral que não visam senão a uma coisa, a
saber, o presente dos crentes aos quais o apóstolo se dirige. A preocupação de Paulo é a exis-
tência cristã entre “as duas epifanias do Salvador”6, existência que é a sorte comum de seus
destinatários.
Essa primeira afirmação baseia-se, em particular, numa análise de duas
epístolas muito diferentes, Gálatas e 1 Tessalonicenses.
A primeira epístola aos Tessalonicenses atesta um primeiro estágio do pen-
samento paulino. O apóstolo nela desenvolve uma teologia da eleição (1Ts 1,4:
“bem sabendo, irmãos amados de Deus, que ele vos escolheu”, th.n evklogh.n
u`mw/n). “A Igreja é a humanidade reunida imediatamente antes do fim, que deve
escapar à cólera e que depois da parusia iminente estará para sempre com o Se-
nhor (4,17; 5,10)”7. Ao levar em consideração o contexto de comunicação da
primeira epístola aos Tessalonicenses, em que a influência do pensamento apo-
calíptico se faz inegavelmente sentir, é então mais que significativo que a pro-
posta de Paulo não consista em favorecer entre os destinatários a espera impa-
ciente desse futuro glorioso — todavia, considerado próximo (cf. 1Ts 4,15: “nós
os vivos, que houvermos ficado até a vinda do Senhor…”) —, mas sim em en-
raizá-los solidamente no tempo presente, ainda que breve, que resta para viver
antes da parusia. Os indícios dessa insistência sobre o presente são numerosos na
epístola. Os tessalonicenses são convidados a “levar uma vida digna do Deus que
vos chama ao seu reino e à sua glória” (1Ts 2,12): a referência ao futuro está aqui
a serviço de uma exortação a viver no presente como cidadãos responsáveis,
numa atitude positiva diante do mundo (cf. 4,11-12: “tomai a peito viver uma
vida tranquila, ocupar-vos com vossos negócios e trabalhar com vossas próprias
mãos, como vos ordenamos, para que vossa conduta seja decorosa aos olhos dos
estranhos e não tenhais precisão de ninguém”). Essa atitude positiva supõe de-
certo estar atento ao que se passa no presente: no cerne da passagem apocalíptica
(1Ts 4,13-5,10), o essencial da exortação de Paulo é, com efeito, um convite a
interpretar o mundo de maneira crítica (cf. 5,2-6). Mas, se se trata de não se
deixar “enganar” pela ilusão da paz romana e de sua segurança e de permanecer
em estado de vigília, essa lucidez não é, todavia, sinônimo de exaltação e de en-
tusiasmo. Ao contrário, deve levar a se pautar por uma vida pacífica com os ir-
mãos (5,13) e na alegria (5,16). O desejo de Paulo de visitar os tessalonicenses
(cf. 1Ts 3,11) enfatiza igualmente a insistência sobre o presente: a convicção de

6. A expressão é empréstimo de Yann Redalié, Paul après Paul. Le temps, le salut, la morale selon
les épîtres à Timothée et Tite, Genève, Labor et Fides, 1994, 174 (Le Monde de la Bible 31).
7. Jürgen Becker, Paul, 159 (cf. nota 5).

232
III – Paulo antes de Paulo
Paulo de ver, ainda vivo, o dia do Senhor não é, de modo algum, sinônimo de
ausência de projetos referentes ao hoje da fé que se vive no coração do mundo
e de sua realidade.
O caso é, talvez, ainda mais interessante e significativo com a epístola aos
Gálatas. Ao passo que ela inicia com uma saudação particular que propõe uma
interpretação do acontecimento cristológico em termos que podemos considerar
apocalípticos8 (cf. 1,4: “ele nos arrancou a este mundo do mal”, evxe,lhtai h`m/aj evk
tou/ aivwnoj tou/ evnestw/toj ponhrou/), a epístola é totalmente muda sobre a paru-
sia, de tal modo que poderíamos considerar a escatologia paulina em Gálatas
como presenteísta se não houvesse ao longo do texto a atestação de que Paulo
espera a manifestação final da salvação (cf. 5,5: “esperamos firmemente se realize
o que a justificação nos faz esperar”; 6,9: “no devido tempo colheremos”). Essa
espera futura não é, todavia, o objeto da fala de Paulo. Apenas o interesse hoje de
seus ouvintes e mais precisamente o risco que eles correm, pelo abandono do
Evangelho, de se verem novamente mergulhados no “mundo presente mau” em
vez de pertencer à única realidade que importa para Paulo, a “nova criação” (6,15),
a qual parece dever ser vivida antes aqui e agora.
Mas qual é, então, a natureza desse “presente da fé”, preocupação prioritária
de Paulo?

2. O presente da fé como “tempo messiânico”

Tese 2. Para Paulo, o presente não se reduz à realidade atual (o mundo presente é
“mau” e está sob o julgamento de Deus).Tampouco é, todavia, a antecipação imaginária do
mundo futuro (que Paulo espera, mas que ele jamais descreve). O presente da fé é o que po-
deríamos chamar de “tempo messiânico”. Esse tempo não deve ser confundido nem com o
“tempo profano” (em linguagem apocalíptica: o éon presente), nem com o “tempo escatoló-
gico” (em linguagem apocalíptica: o éon futuro). Essa compreensão específica do presente
como “tempo messiânico” se enraíza na interpretação paulina do acontecimento cristológico
e torna complexa a distinção apocalíptica tradicional entre os dois éons.
No contexto apocalíptico tradicional, faz-se distinção entre dois tempos ou
dois mundos (dois olamim): o olam hazzeh, o mundo desde sua criação até o fim, e
o olam habba, o mundo futuro9. Em grego, distinguem-se dois éons (aivw/nej). En-
contramos em Paulo vestígios dessa distinção entre os dois éons. Todavia, ele a

8. Cf. em particular J. Louis Martyn, Galatians, 98 (cf. nota 2).


9. Cf. 1 Henoc 71,15; 4 Esdras 7,50.112.119; 2 Baruc 44,8-15; 83,4-9. Sobre esse ponto, cf.
Martinus C. de Boer, Paul and Jewish Apocalyptic Eschatology, 172 ss. e notas (cf. nota 2).

233
O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo
torna problemática e complexa. Com efeito, parece que Paulo distingue não dois,
mas três tempos.
Retomando aqui as categorias do filósofo italiano Giorgio Agamben10, pro-
ponho chamar esses três tempos de o “tempo profano”, o “tempo escatológico” e
o “tempo messiânico”.
• O “tempo profano” é o que corresponde, no pensamento apocalíptico, ao
“éon presente”. Em Paulo, corresponde à realidade do mundo presente que vai
desde a criação até o acontecimento cristológico. A palavra aivw,n designa muitas
vezes, nas epístolas paulinas, o mundo ou “século” presente que não reconheceu o
Cristo (1Cor 1,20; 2,6.8; 2Cor 4,4; cf. igualmente 1Cor 3,18; 10,11), um “século”
ao qual os crentes não devem se conformar (Rm 12,2; Paulo fala também de tou/
ko,smou tou,tou, “este mundo”, cf. 1Cor 3,19; 5,10; 7,31). O “tempo profano” é,
pois, o tempo do mundo no qual os crentes vivem e do qual, todavia, eles foram
arrancados (Gl 1,4). Poderíamos dizer que se trata do tempo da história dos ho-
mens, do tempo cronológico (o cro,noj, cf. Gl 4,4). De agora em diante, a vinda
do Cristo manifesta que esse tempo chegou à sua “plenitude” (cf. Gl 4,4: to.
plh,rwma tou/ cro,nou), que, de certa maneira, o “fim dos séculos” — ta. te,lh tw/n
aivw,nwn — chegou” (1Cor 10,11).
• O “tempo escatológico” corresponde, nas categorias apocalípticas, ao “éon
futuro”. A expressão, todavia, jamais é utilizada por Paulo. De maneira significati-
va, ele jamais fala do mundo futuro, mas se contenta em anunciar o que manifes-
tará seu início, a saber, a “parusia” do Cristo (1Ts 2,19; 3,13; 4,15; 5,23; 1Cor
15,23), o “Dia do Senhor” (1Cor 1,8; 5,5; 2Cor 1,14; Fl 1,6.10; 2,16; 1Ts 5,2).
Esse “Dia” (h`me,ra) marcará, para Paulo, o começo do “para sempre com o Se-
nhor” (1Ts 4,18), ou seja, o momento em que o “tempo profano” será sucedido
pela “vida eterna” (zwh, aivw,nion, Rm 2,7; 5,21; 6,22-23; Gl 6,8), o tempo da glo-
rificação com o Cristo (Rm 8,17), uma “glória” (do,xa) para o instante “ainda por
vir” (Rm 8,18).
• Em relação a essa distinção clássica, Paulo introduz a ideia de um “tempo”
que não é ainda o “tempo escatológico”, mas que não é mais o “tempo profano”.
Chamemo-lo de “tempo messiânico”. Ele nasce com “a plenitude dos tempos”
(Gl 4,4), ou seja, com a vinda de Cristo e mais precisamente, para Paulo, com o
acontecimento pascal. Repitamos: esse tempo não é nem o tempo cronológico
do mundo presente nem o tempo do mundo futuro. É o tempo que Paulo chama
de o` nu/n kairo,j, “o tempo presente” (Rm 3,26; cf. também 8,18 e 11,5), no qual

10. Giorgio Agamben, Le temps qui reste. Un commentaire de “l’Epître aux Romains”, Paris,
Payot & Rivages, 2000, espec. 104-119 (Bibliothèque Rivages).

234
III – Paulo antes de Paulo
Deus, pela morte do Cristo, manifesta a justiça. O “tempo messiânico” não coin-
cide, pois, com o fim do tempo e com o éon futuro, nem tem parentesco puro e
simples com o tempo cronológico profano, sem que lhe seja exterior. É igual-
mente impróprio dizer que ele começa na ressurreição e dura até a parusia, pois
isso equivaleria a inscrevê-lo numa linha cronológica, quando, para Paulo, ele não
é perceptível senão pela fé. Esse tempo se apresenta, com efeito, como uma reve-
lação, um “apocalipse” (Rm 1,17-18; cf. 16,25; 1Cor 2,10; Gl 3,23), de que o
próprio Paulo foi beneficiário (cf. Gl 1,12.16) e que exige a fé (Rm 1,17-18).
Podemos, então, dizer que, se o “tempo — kairo,j — messiânico” pertence
ao “tempo profano”, ou seja, se ele não está fora do tempo cronológico, ele o re-
qualifica em profundidade. E, se não é o tempo escatológico, ele constitui sua
premissa e sua condição necessária. De fato, o “tempo messiânico” introduz no
cerne da separação tradicional entre os dois éons uma segunda separação que vem
se inscrever no espaço criado pela primeira. Essa segunda separação é provocada
pelo acontecimento cristológico — daí o nome proposto,“tempo messiânico”. O
“tempo messiânico” não é, pois, um tempo cronológico e mensurável. Não é um
tempo que se acrescenta ao “tempo profano”, é um tempo que opera uma defa-
sagem em relação a ele e permite compreendê-lo diferentemente, interpretá-lo.
Dar-lhe sentido. Duas questões se põem então: Que interpretação do “tempo
profano” o “tempo messiânico” propõe? E que consequência tem isso para o
crente na sua relação com o mundo?

3. O “tempo messiânico” como fundamento da existência crente

Tese 3. O “tempo messiânico” é o tempo da manifestação paradoxal da justiça de


Deus. Para quem crê, o “tempo messiânico” é o da justificação (Rm 3,26) ou, em outras
palavras, da libertação “deste mundo mau” (Gl 1,4). Concretamente, isso significa uma
compreensão renovada da existência humana: esta não encontra mais seu fundamento nas
realidades deste mundo, mas o que a constitui está fora da influência dos poderes e dos prin-
cípios que agem aqui na terra, pois é “em Cristo” que o crente agora vive.
O “tempo messiânico” é antes de mais nada a manifestação da justiça de
Deus (Rm 3,21.26). Aqui, as categorias apocalípticas retomadas por Paulo são
reinterpretadas pelo acontecimento cristológico: é “no tempo presente” (v. 26)
que essa justiça se manifesta, mas se trata de uma justiça paradoxal, pois se dá a
conhecer na morte de um crucificado. Para a epístola aos Gálatas, que desenvolve
também ela a linguagem da justificação, o envio do Filho na “plenitude dos tem-
pos” (Gl 4,4) e, mais precisamente, a morte de Jesus são sinônimo para o crente
não somente de justificação, mas ainda de “arrancamento deste mundo do mal”

235
O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo
(Gl 1,4), de “crucifixão” do mundo (Gl 6,14) e de “nova criação” (kainh. kti,sij,
Gl 6,15). Na primeira epístola aos Coríntios é outra linguagem que Paulo utiliza,
mas, no fundo, a ideia é a mesma: a cruz contesta o “raciocinador deste século”
(1,20), pois a sabedoria paradoxal que ela desenvolve não é deste mundo e ne-
nhum príncipe deste mundo a conheceu (2,6-8). Ela é então poder de Deus para
a salvação do crente (1,18.24). A consequência é tirada na segunda epístola aos
Coríntios, numa linguagem que se junta à de Gálatas: a morte do Cristo significa
o fim das “coisas velhas”, a “nova criação” (kainh. kti,sij) e o início de uma “rea-
lidade nova” (cf. 2Cor 5,17). Por isso o presente é requalificado, pois de agora em
diante é “tempo favorável, kairo,j euvpro,sdektoj, dia da salvação” (2Cor 6,2).
O “tempo messiânico” é revelação da Boa-nova da salvação. Entendida pela
fé, essa revelação permite que o crente se compreenda de um modo novo no co-
ração do mundo antigo. Essa compreensão nova encontra seu fundamento na
proclamação da cruz como revelação paradoxal de Deus (1Cor 1,18-25)11. Ela faz
chegar ao coração do mundo uma realidade não perceptível por ele e que consti-
tui para o crente uma interpretação e ao mesmo tempo uma contestação.
O “tempo messiânico” garante, então, uma base para a existência cujo centro
está no exterior deste mundo: o que constitui o ser cristão está, com efeito, situa-
do em Cristo (cf. o evn Cristw/| paulino). É em nome desse evn Cristw/| messiânico
que as identidades mundanas, os particularismos deste mundo (judeu/pagão, es-
cravo/homem livre, homem/mulher, cf. Gl 3,28) se tornam fundamentalmente
inoperantes, pois o que o crente é em seu ser não se confunde mais com o que o
mundo nele vê ou dele diz: é a súbita intervenção do “tempo messiânico” na exis-
tência do indivíduo e da comunidade que realiza isso. Daí a última questão: A que
atitude específica no mundo esse “tempo messiânico”, que torna relativas as iden-
tidades mundanas, conduz o crente?.

4. O “tempo messiânico” como fim de toda vocação e esperança

Tese 4. O “tempo messiânico” é a ocasião de uma nova compreensão de si mesmo, do


mundo e dos outros que se caracteriza, de um lado, por uma relativização radical das ordens
e distinções deste mundo — o “tempo messiânico” contesta o mundo, sua sabedoria e seus
poderosos (1Cor 1,20; 2,6-8) — e, ao mesmo tempo, por uma consideração da realidade
presente na qual é preciso viver. Para o crente, isso significa ao mesmo tempo inscrição posi-
tiva no mundo e espera de uma outra realidade. Essa espera inscreve uma exterioridade na

11. Sobre a teologia da cruz, cf. Jean Zumstein, Paul et la théologie de la croix, ETR 76 (2002)
481-496.

236
III – Paulo antes de Paulo
existência crente e a projeta numa dinâmica de vida e de esperança que ultrapassa a dimen-
são individual para se abrir a toda a criação.
O “tempo messiânico”, o o` nu/n kairo,j (Rm 3,26), é um “tempo abrevia-
do” (1Cor 7,29: o` kairo,j sunestalme,noj, cf. também Rm 13,11). Não é, todavia,
um “tempo” de fuga das realidades concretas. Ao contrário, duas passagens ressal-
tam aqui como Paulo convida seus ouvintes a viver este mundo em toda a sua
positividade. Em Gálatas 6,10, Paulo exorta os gálatas a aproveitar este tempo
para trabalhar para o bem de todos (Gl 6,10: w`j kairo.n e;comen, evrgazw,meqa to.
avgaqo.n pro.j pa,ntaj, literalmente: “como nós temos o kairo.n, trabalhemos para
o bem de todos”). De maneira semelhante, em Romanos 12,1-2, ele convida os
cristãos de Roma a não se conformar “ao mundo presente” (tw/| aivw/ni tou,tw|),
mas a se renovarem para discernir “o que é bom, o que […] é agradável [a Deus],
o que é perfeito”.
A inscrição positiva na vida do mundo (cf. também Rm 13) não impede que
ele seja compreendido como se estivesse a ponto de “passar” (1Cor 7,31: para,gei
ga.r to. sch/ma tou/ ko,smou tou,tou). O texto de 1 Coríntios 7,29-31 exprime en-
tão a condição crente no seio do “tempo messiânico”. Podemos até considerar o
“como se não” (w`j mh,) paulino como a “fórmula da vida messiânica”12. Viver o
“tempo messiânico” é o mesmo que viver “como se não”, e é o sentido último da
vocação cristã no mundo. A particularidade do “como se não” paulino consiste,
com efeito, em pôr em tensão não uma realidade deste mundo com uma outra (as
lágrimas com a alegria, o casamento com o celibato…), mas em pôr em tensão a
realidade com ela mesma (chorar como se não chorasse, ser casado como se não o
fosse…). Viver o “tempo messiânico” não é, pois, fugir para algum outro lugar
(negar as lágrimas com a alegria, preferir o celibato ao casamento, ou o contrário);
isso não é ser indiferente à realidade (trata-se realmente de chorar ou de se casar,
ou o contrário), mas é questionar a realidade sem, todavia, alterá-la. Nesse sentido,
o “como se não” é a revogação de todas as vocações que o “tempo profano” im-
põe ou propõe13. O “como se não” é então a única vocação aceitável para quem,
pela fé, foi introduzido no “tempo messiânico”. Com efeito, tal vocação torna o
crente fundamentalmente livre em relação à sua ação, ao seu fazer ou à sua condi-
ção social (cf. 1Cor 7,17-24): nenhuma “vocação” ligada ao “tempo profano” lhe
dá de maneira última a sua identidade. De algum modo, ele fica livre dos “ele-

12. Giorgio Agamben, Le temps qui reste, 44 (cf. nota 10).


13. Ibid., 46:“Ao levar todas as coisas para elas mesmas sob a forma de como se não, o messianismo
não a apaga simplesmente; ao contrário, ele as faz passar, prepara o fim delas. O messianismo não é
uma outra figura, um outro mundo: é a passagem da figura deste mundo”.

237
O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo
mentos deste mundo” (stoicei/a tou/ ko,smou, Gl 4,3). E se o “tempo presente” é
ainda um tempo de sofrimento, se é espera da “glória que deve ser revelada em
nós” (Rm 8,18), essa espera não é uma fuga da realidade deste mundo, mas um
início de uma caminhada, um percurso aqui na terra em vista de obter “o prêmio
ligado ao chamado” (Fl 3,14, cf. Fl 3,10-16). Assim, o “tempo messiânico” possui
nele mesmo uma dimensão escatológica que ultrapassa a salvação isolada do indi-
víduo. O crente nunca pode se satisfazer com o que se vê e com o que se apresen-
ta aqui na terra como concluído. Isso significa: outra coisa é possível, não somente
para o indivíduo, mas para a criação inteira (cf. Rm 8,19-22).

Conclusão: o “tempo messiânico” como “tempo do desejo”

Saber se o “atraso da parusia” desempenhou uma função motora na evolu-


ção da escatologia paulina é uma questão ainda sem resposta definitiva. Essa apo-
ria põe de costas uns para os outros os defensores de um Paulo apocalíptico e os
de um Paulo adepto de uma escatologia individualista. Aos segundos ela indica
que Paulo não transformou fundamentalmente sua compreensão dos “fins últi-
mos”, mas que não deixou de utilizar a linguagem apocalíptica, ao deslocá-la do
interior. E lembra aos primeiros que é preciso relativizar a dimensão futurista da
escatologia paulina: seja lá o que for a respeito da espera futura, é o presente da fé
que interessa a Paulo.
Ao introduzir a noção de “tempo messiânico”, tentamos levar em conside-
ração a compreensão paulina do esquema apocalíptico tradicional. Esse “tempo
messiânico” deve ser compreendido como tempo que surge do “interior do tem-
po cronológico, que o trabalha e o transforma internamente”14. É de certo modo,
para o crente, o tempo cronológico que começa a terminar, o tempo que resta
antes do fim. Paulo procede assim a uma requalificação do presente, ao mesmo
tempo contra o apocalíptico (nada de fuga numa espera do futuro) e contra o en-
tusiasmo (nada de negação da realidade): o presente da fé, aqui e agora, é o único
lugar em que se pode viver na verdade o Evangelho.
Com base num acontecimento que é interpretado como causador de rup-
tura na história dos homens (a cruz) e na expectativa de um descanso escatoló-
gico (a salvação), trata-se de viver neste mundo que passa, dia a dia, diante de
Deus e diante dos homens como cidadão de uma cidade “que está nos céus” (Fl
3,20), ou seja, cujo fundamento está fora deste mundo. Não é mais o mundo,
então, e seu “tempo profano” que condicionam o crente (não são o agir e os

14. Ibid., 112-113.

238
III – Paulo antes de Paulo
princípios deste mundo que fazem a identidade do crente), mas é o crente que
interpreta o mundo e pode livremente nele agir, pois a sua verdadeira pátria está
alhures (cf. Gl 4,26).
Para terminar e para tentar demonstrar a pertinência das instituições pauli-
nas, arrisco-me a traduzi-las nas categorias das ciências humanas. O “tempo mes-
siânico” (o “momento favorável, dia da salvação”, 2Cor 6,2) poderia se comparar
com o que a psicanálise chama de “desejo”. Como nós o definimos, com efeito, o
“tempo messiânico” permite o surgimento de um sujeito crente pela descoberta
de uma alteridade radical (a revelação da justiça paradoxal de Deus no Crucifica-
do, ou, dito de outro modo, “a palavra da cruz”; cf. 1Cor 1,18-25). Ele não se
apresenta como resposta à pergunta do indivíduo ou da coletividade por satura-
ção da necessidade — o que propõe a espiritualidade “entusiasta”. Ao contrário,
ao inscrever a carência no coração mesmo do vivente (“os gemidos da criação”,
“a expectativa da glória futura”; cf. Rm 8,18-25), esse tempo faz nascer o desejo
(“chegar, se possível, à ressurreição dentre os mortos”, Fl 3,11). Esse “tempo mes-
siânico” ou “tempo do desejo”15 não é, todavia, fuga da realidade — risco recor-
rente de uma espiritualidade apocalíptica —, é possibilidade oferecida de pensar
um mundo que não se detém sobre ele mesmo, possibilidade de pensar uma his-
tória humana não encerrada, aberta ainda, portanto, a uma esperança. Ele é, aqui
e agora, dinâmica de vida, “poder de ressurreição” (cf. Fl 3,10: du,namin th/j
avnasta,sewj [auvtou/]).

15. Para retomar o título da obra de Denis Vasse, Le temps du désir. Essai sur le corps et la parole,
Paris, Seuil, 1969.

239
O “tempo messiânico”: reflexões sobre a temporalidade em Paulo
IV

A Lei
Paulo e a Torá: o papel e a função
da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
James D. G. Dunn (Durham, UK)

Uma análise da utilização de no,moj (“lei”) nas cartas de Paulo traz os seguintes resulta-
dos: (1) Para Paulo, não é um termo estritamente definido, mas deve, antes, ser entendido
como uma espécie de espectro. No centro desse espectro encontra-se a Lei de Moisés, a ins-
trução de vida de Deus dirigida a seu povo Israel. (2) Todavia, essa função da Lei poderia
ser — e, de fato, foi — interpretada de um modo muito estrito: não somente como proteção,
mas também como definição de Israel. Mais grave ainda, a Lei foi utilizada e abusada pelo
pecado para incitar as paixões egoístas e nacionalistas. (3) As duas funções encontraram seu
fim na vinda do Cristo e de seu Espírito. Insistir no fato de que a Lei é o que distingue
Israel equivale a insistir no fato de que as obras da Lei são necessárias para garantir a sal-
vação. (4) Entretanto, a Lei pode também ser entendida como expressão da vontade e da
sabedoria de Deus ao mesmo tempo para Israel e para o mundo. Ela é a medida da vontade
e do julgamento de Deus, não de uma maneira estreita ou restritiva, mas, antes, como
exemplificada pelo Cristo e capaz de ser cumprida por aquelas e aqueles que são conduzi-
dos pelo Espírito.

N ada é mais complexo na teologia de Paulo do que o papel e a função que


ele atribui à Lei. Em minha obra A teologia de Paulo, o apóstolo, foi-me neces-
sário consagrar três seções à análise do que Paulo escreveu sobre o assunto1. Nos

1. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998, 6,
14, 23.

243
dez últimos anos, vários trabalhos importantes foram consagrados a esse tema2.
Não é, pois, possível fazer-lhe justiça num só artigo. Mais que lembrar as linhas
principais do debate antigo ou que fazer um apanhado das contribuições mais
recentes, parece-me mais razoável tentar ver globalmente como o próprio Paulo
trata o assunto. Concentrar-me-ei nos quatro Hauptbriefe, assumindo-os no que é
provavelmente sua ordem cronológica: Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Romanos.

1. Nomos entendido no sentido de “a Lei”

Meu ponto de partida é o seguinte: quando Paulo escreve a respeito da Lei (no-
mos), ele quer quase sempre que seus leitores pensem particularmente na lei de Moisés, a Torá.
a) No que diz respeito aos gálatas, há consenso em dizer que Paulo se dirige
a Igrejas quase convencidas por outros missionários judeus a aceitar a circuncisão
(2,2–4,14; 5,2-4.11-12; 6,12-16). Eles são fortemente encorajados, como conver-
tidos pagãos, a aceitar as obrigações impostas na Torá ao Israel de Deus, a aceitar a
maneira judaica de viver (a “judaizar”)3. Assim, quando Paulo utiliza o termo
“lei” pela primeira vez na epístola (“as obras da Lei”, 2,6), com muita probabili-
dade ele faz referência ao que exigia a lei de Moisés. Sua referência à vinda da Lei
em 3,17 não pode se referir senão ao dom da Lei no Sinai (cf. 4,25). E o desafio
que ele lança em 4,21 aos que queriam estar “sob a Lei” (u`po. no,mon) é claramente
dirigido aos gálatas convertidos, que se tentava convencer que se tornassem pro-
sélitos com plenos direitos aceitando as obrigações de Israel sob a Lei4.
Em 1 Coríntios, quando Paulo fala de novo dos que estão “sujeitos à Lei”
(9,20), faz, com toda evidência, referência ao modo de vida típico e distintivo dos
judeus; ele apela à “Lei” por várias vezes (9,8-9; 14,21-34). Aparentemente, ainda
que os membros da comunidade à qual ele se dirige venham de horizontes dife-
rentes, Paulo parte do princípio de que seus ouvintes, ao escutar o termo “lei”,
compreenderiam a referência à Torá judaica5.

2. Ver em especial as bibliografias em James D. G. Dunn (ed.), Paul and the Mosaic Law, Tübin-
gen, Mohr Siebeck, 1996 (WUNT 89);Veronica Koperski, What are they saying about Paul and the
Law?, New York (NY)/Mahwah (NJ), Paulist Press, 2001.
3. Utilizo judäiser em seu sentido antigo: “seguir a maneira judaica de viver” (ver meu comen-
tário Galatians, London, Black, 1993, 129 [BNTC]); o sentido contemporâneo de judäiser (“judeu
ou missionário judeu-cristão que tenta persuadir um pagão convertido ao cristianismo a se tornar
prosélito) é uma adaptação do século XIX.
4.Ver ibid., 265-267, a respeito de 5,3.
5. Podemos imaginar que a referência à Lei como “poder do pecado” em 1 Coríntios 15,56
visa a uma só vez ao efeito da Lei na incitação ao pecado (“a lei do pecado”) e a seu papel para
condenar o pecado à morte (como em Rm 1,32; ver adiante seção 4; cf. James D. G. Dunn, The

244
IV – A Lei
Em 2 Coríntios, Paulo jamais menciona a Lei como tal. Mas notamos que
sua longa autodefesa dos capítulos 1–3 leva a opor seu próprio ministério ao de
Moisés, a “Aliança nova” à escrita sobre “tábuas de pedra” (3,3-11), em que a
alusão a Êxodo 31,18 e 32,15 quase não pode ser posta em dúvida6. Com toda
evidência, o papel de Moisés e da Lei de Moisés constitui um pano de fundo de
sua teologia.
A epístola aos Romanos pode ser definida como “o livro da Lei” de Paulo,
pelo menos pelo fato de que nomos aí aparece com mais frequência do que em
qualquer outro escrito do Novo Testamento. Uma vez mais, é totalmente sur-
preendente que Paulo, ao escrever a Igrejas desconhecidas, principalmente vindas
do paganismo, possa logo na primeira vez fazer referência à “Lei”, sem mais expli-
cações (2,12). Ele supunha provavelmente que o alcance de seu argumento, uma
vez que ele estava implicitamente em diálogo com um interlocutor tipicamente
judeu (2,1-11)7, não deixaria nenhuma dúvida sobre o fato de que falava da Torá.
Mesmo que o objetivo não fosse imediatamente perceptível por todos, a sequên-
cia da argumentação afastaria rapidamente eventuais dúvidas: o judeu “descansa
em nomos” e “põe seu orgulho em nomos”, mas deve ser questionado a partir dos
dez mandamentos sobre o fato de “praticar” efetivamente nomos (2,17-27); trata-
se aqui, claramente, da lei judaica. Paralelamente, Paulo resume sua acusação cate-
górica (1,18–3,18), que leva ao catálogo assustador de textos de julgamento tira-
dos principalmente dos Salmos (3,10-18), ao demonstrar que o que diz a Lei, ela
o diz aos que estão “sob a Lei” (evn tw/| no,mw|); parece, pois, que isso diz respeito aos
que consideravam os Salmos parte das escrituras santas de seu povo.
Da mesma maneira, o capítulo 5 concebe um tempo antes do nomos e um
tempo em que “o nomos interveio” (5,13.20). Aparentemente, ele faz referência ao
tempo em que a Lei fora dada no Sinai (como em Gl 3,17). O capítulo 7 começa
por um apelo a todos os que conhecem nomos (7,1), e muitos concordam em di-
zer que Paulo subentende a lei judaica, em particular o estatuto legal da mulher
em relação ao seu marido8. Uma importante seção a respeito do no,moj, o` no,moj,

Theology of Paul the Apostle, 159 [cf. nota 1]; Anthony C. Thiselton, 1 Corinthians, Grand Rapids
[MI], Eerdmans, 2000, 1.303 [NIGTC]).
6. Um amplo consenso estatui que Paulo fazia alusão à nova Aliança prometida em Jeremias
31,31 (bibliografia em James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 147, n. 103 [cf. nota 1]).
7. Segundo a opinião geral, 2,1 é dirigido a um interlocutor judeu que é a seguir explicitamen-
te identificado (2,17); ver ibid., 115, n. 67; ver também Douglas J. Moo, Romans, Grand Rapids
(MI), Eerdmans, 1996, 128-130 (NICNT).
8. Para mais detalhes, ver meu comentário Romans, Dallas (TX), Word, 1988 (WBC 38); Dou-
glas J. Moo, Romans, 411-412 (cf. nota 7); Thomas R. Schreiner, Romans, Grand Rapids (MI),
Baker, 1998, 346-347.

245
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
começa por identificar essa Lei como a que proíbe a cobiça, o décimo manda-
mento do Decálogo (7,7; Ex 20,17), e insiste na “santidade” da “Lei” (7,12) — ela
se refere sem dúvida à lei de Moisés.
Em resumo, parece muito claro que, quando Paulo faz referência à “lei” ou a
“a lei”, parte do princípio de que seus ouvintes pensarão primeiro e principal-
mente na Torá. A presença ou não do artigo definido parece ser pouco importan-
te. Certamente não podemos deduzir que no,moj sem artigo significaria alguma
coisa como “o princípio da lei” e que somente o` no,moj (“a Lei”) seria uma refe-
rência à lei de Moisés9.
b) Todavia, certos esclarecimentos se impõem.
Acontece que Paulo utiliza nomos num sentido restrito, mais ou menos sinô-
nimo de “mandamento”, como em Romanos 7,7-12. Mais precisamente, ele
pode considerar a Lei como resumida ou focalizada num só mandamento, como
“não cobiçarás” (7,7), ou pela obrigação da circuncisão (Gl 5,3), ou pela sentença
“amarás teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14; Rm 13,9).
Ao mesmo tempo, ele pode utilizar nomos num sentido mais amplo, incluindo
o material narrativo do Pentateuco (Rm 4 como desenvolvimento de 3,31; Gl
4,22-30 como demonstração de 4,21). Em Romanos 3,10-19, “o que diz a Lei”
refere-se ao catálogo de textos citados antes, nenhum dos quais é tirado do Penta-
teuco. E em 1 Coríntios 14,21 a passagem citada de “a Lei” provém, de fato, de
Isaías 28,11-12. Em outras palavras, há certa flexibilidade na maneira como Paulo
fala de “lei/a lei”, ainda que o peso resida na utilização que dela faz o mais das
vezes, ou seja, em primeiro lugar e principalmente a Lei de Moisés.
Alguns gostariam de esticar mais essa flexibilidade na utilização que Paulo
faz de nomos. Com efeito, julgam difícil imaginar que Paulo possa ligar “a Lei” a
motivos altamente positivos de sua teologia, a saber, “a fé”, “o Espírito” e “o
Cristo”: (1) “a lei da fé” (Rm 3,27); (2) “a lei do Espírito” (8,2); (3) “a lei
do Cristo” (Gl 6,2). Para eles, é mais lógico compreender o uso que faz Paulo de
nomos no sentido de “princípio” ou “regra” do que no sentido mais específico
de “lei/lei judaica”10. É certamente uma utilização possível de nomos na época de
Paulo, como mostrou em particular Heikki Räisänen11. O único problema é que
em cada caso o contexto mostra que Paulo pensa na lei mosaica como tal.

9. Para mais detalhes, ver James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 131-133 (cf.
nota 1).
10. É um amplo consenso, como ilustra bem Douglas J. Moo, Romans, 247-250 (cf. nota 7).
11. Heikki Räisänen, Paul’s Word-play on Nomos: A Linguistic Study, in Jesus, Paul and Torah:
Collected Essays, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1992, 69-94 (JSNTS 43). Os trabalhos de

246
IV – A Lei
Examinemos brevemente os três casos. (1) Romanos 3,27-31 apresenta uma
inclusão em que “o nomos da fé” (3,27) é definido como a lei “estabelecida” pela
fé (3,31); com toda a evidência, trata-se do Pentateuco12. (2) Romanos 8,2 é o
ponto culminante de uma argumentação em que Paulo defende a Lei ao descre-
vê-la como o instrumento utilizado pelo pecado (7,13-23), portanto “o nomos do
pecado” (7,23; 8,2). A consequência é imediata: um poder diferente poderia se
servir dessa lei essencialmente santa, boa e espiritual (7,12-14) de um modo posi-
tivo — e é “o nomos do Espírito” (8,2). Trata-se da mesma lei, como é indicado
pelo ponto final da argumentação: “a lei do Espírito que dá a vida” tem por obje-
tivo que “a justiça exigida pela lei seja realizada” naqueles que andam “sob o do-
mínio do Espírito” (8,4). Manifestamente, o termo nomos é utilizado com flexibi-
lidade, mas o ponto crucial é que “a lei do Espírito” torna o crente capaz de
cumprir a Lei13. (3) Em Gálatas 6,2, a melhor compreensão da “lei do Cristo” é
entendê-la como uma retomada da ideia de 5,14: a Lei resumida pelo manda-
mento “tu amarás teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18) é igualmente resu-
mida pelo ensinamento e pela vida do Cristo, que é uma prática do mandamento
do amor14. Notamos com pouca frequência que o mandamento de “amar seu
próximo” está igualmente presente como resumo e cumprimento de toda a Lei
em Romanos 13,8-10; é igualmente evocado na ordem expressa de “agradar a seu
próximo”, a exemplo de Jesus (Rm 15,1-3)15.

Räisänen (cf. também The “Law” of Faith and Spirit, in Jesus, Paul and Torah, 48-68) tiveram grande
influência.
12. Douglas J. Moo insiste em dizer que Paulo “fully separated ‘faith’ from the law of Moses”
(Romans, 248 [cf. nota 7]), mas depois sua explicação de 3,31 mantém certa tensão com relação a esse
assunto. Ele resolve essa tensão ao observar que a visão negativa de 3,27-28 não está dirigida contra a
Lei como tal, mas contra as “obras da Lei”. Isso removeria a dificuldade em 3,31a (pois as obras da Lei
são o que a Lei exige), mas a distinção permite ao mesmo tempo o enunciado negativo de 3,27-28 e
o enunciado positivo de 3,31 (ver adiante seção 5). Para mais detalhes, ver James D. G. Dunn, The
Theology of Paul the Apostle, 638-639 (cf. nota 1), bem como Peter Stuhlmacher, Romans, Louisville
(KY), Westminster John Knox, 1994, 66-67, e Thomas R. Schreiner, Romans, 201-202 (cf. nota 8).
13. Ver James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 645-647 (cf. nota 1), e Thomas R.
Schreiner, Romans, 399-400 (cf. nota 8) (com mais referências bibliográficas); no congresso da SBL
em Toronto (novembro de 2002), J. Louis Martyn (Deliverance from Illusion) defendeu a mesma
tese, mas sem referência a 8,4.
14. É muito provável que se vise ao ensinamento de Jesus a esse respeito (Mc 12,28-31): faltam
referências explícitas a Levítico 19,18 na literatura judaica anterior a Jesus, e não se dá atenção par-
ticular a tais alusões (ver James D. G. Dunn, Romans, 778-780 [cf. nota 8]; Id., The Theology of Paul
the Apostle, 655-656 [cf. nota 1]).Ver também Bruce W. Longenecker,The Triunph of Abraham’s God:
The Transformation of Identities in Galatians, Edinburg, T & T Clark, 1998, 85-87, biblio. na n. 27.
15. Paulo só fala do “próximo” em três ocasiões: Gálatas 5,14; Romanos 13,9-10; 15,2. É, por-
tanto, muito provável que, ao escrever 15,2, ele pense no mandamento de amar o próximo.

247
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
Não conviria aqui endurecer a argumentação como se nomos fizesse sempre
referência à Lei de Moisés como tal, ou seja, aos mandamentos específicos conti-
dos nas partes jurídicas do Pentateuco. É muito claro que Paulo conhecia e em-
pregava uma acepção mais ampla de nomos. A constatação que me parece a mais
segura é que seu uso de nomos é guiado pela equivalência no,moj/o` no,moj = a Torá.
Para Paulo, a referência primeira e normativa é a Lei de Moisés, seja qual for a
extensão (restrita ou ampla) que lhe dê em cada caso particular. Se esse esclareci-
mento se verifica na reflexão de Paulo, deve ter consequências no que se segue.

2. A Lei nas epístolas aos Gálatas

Se nomos = Lei de Moisés nas cartas de Paulo, isso significa que “a Lei” para
Paulo tem por função principal ser “a lei de Israel” ou, para ser mais preciso, “a lei
para Israel”. É em sua carta às Igrejas da Galácia que Paulo desenvolve com mais
precisão essa função da Lei.
Em Gálatas 3,19, Paulo pergunta explicitamente: “Então, qual o papel da
Lei?”. Antes disso, na epístola, a Lei fora apresentada em termos bem negativos: ela
é alguma coisa para a qual o próprio Paulo está morto (2,19); não é o vetor da
justiça (2,21; 3,11); não é “da fé” (3,12); provoca uma maldição (3,10.13); é con-
trária à promessa e à herança de Abraão (3,17-18). Ele pode então, por conseguin-
te, pôr a questão: nesse caso, “qual o papel da Lei?”.
A resposta de Paulo a essa questão suscitou numerosos debates. Mas sua
resposta, breve, parece ser que a Lei foi dada por duas razões principais: (a) prote-
ger Israel (3,23-24); (b) até que a promessa pudesse ser realizada em Cristo
(3,19.22.23-26.29).
a) O papel protetor da Lei é claramente indicado em 2,23-24: “Antes da
chegada da fé, nós éramos mantidos em cativeiro, sob a lei, em vista da fé que de-
via ser revelada. Assim, pois, a lei foi o nosso vigilante, à espera do Cristo…”. O
verbo traduzido por “mantidos em cativeiro” tem um papel mais positivo do que
o que lhe é geralmente reconhecido. Seu sentido principal é “guardar, vigiar,
proteger”16. O que parece, portanto, ser considerado, nós o definiríamos hoje
como uma guarda protetora, mais que como uma guarda repressiva17. A imagem é
desenvolvida pela descrição da Lei como paidagwgo,j: trata-se do escravo que

16.Ver James D. G. Dunn, Galatians, 197-198 (cf. nota 3).


17. “Cativeiro” (3,22-23) tem evidentemente um sentido mais negativo, mas tanto aqui como
em Romanos 11,32 (o outro único lugar em que Paulo utiliza o termo) o cativeiro é temporário
e visa a uma solução duradoura e positiva no projeto de Deus.

248
IV – A Lei
l­evava o menino de casa à escola e o trazia de volta, e cuja responsabilidade com-
preendia tipicamente a guarda do menino, sua educação nas boas maneiras e sua
correção, se necessário. A imagem é essencialmente positiva18. A pertinência dessa
interpretação é confirmada pela volta de Paulo à imagem do herdeiro menor,
submetido a tutores e a curadores, para descrever o estatuto de Israel antes da vin-
da da fé (4,2). Em outras palavras, o papel atribuído à Lei nessa passagem é ser a
protetora de Israel na imaturidade de sua juventude diante dos atrativos e sedu-
ções, particularmente a idolatria, a impureza e os valores morais depravados do
mundo dos pagãos.
Se queremos saber com mais detalhes como a Lei exercia esse papel, os me-
lhores indícios se encontram na primeira parte da resposta que Paulo dá à questão
“Então, qual o papel da Lei?” (3,19). A resposta imediata é que a Lei “vem acres-
centar-se para que se manifestem as transgressões” (3,19). A significação poderia
ser “a fim de fazer aparecer o que constituía uma transgressão”, o que representa-
ria uma formulação primitiva da função atribuída por várias vezes à Lei, mais
tarde, em Romanos19. No contexto da imagem da criança imatura que tem ne-
cessidade de ser instruída e levada, a função da Lei era dar linhas de conduta pre-
cisas para guiar a criança e limites para impedi-la de se desviar do caminho reto20.
A fórmula “em vista (ca,rin) das transgressões” denota, talvez, um papel ainda
mais positivo: “a fim de se ocupar das transgressões”, o que remete ao dispositivo
previsto pela Lei para o arrependimento e a expiação21.
Segundo indício: a recusa a atribuir à Lei um papel qualquer no dom da
vida. Se a Lei pudera dar a vida (duna,menoj zw|opoih/sai), a justiça viria da Lei
(3,21). Paulo responde aqui, observemos, à questão de saber se a Lei é contrária às
promessas de Deus. “Não, decerto”, diz Paulo, “se, com efeito, houvesse sido ou-
torgada uma lei que tivesse o poder de fazer viver, então é da lei que proviria de
fato a justiça” (3,21). O desmentido é claro: a Lei não é contrária à promessa. A

18.Ver James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 141-142 (cf. nota 1) (com uma biblio-
grafia mais completa); cf. também Ben Witherington III, Grace in Galatia: A Commentary on
Paul’s Letter to the Galatians, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998, 262-266; em outro sentido,
J. Louis Martyn, Galatians, New York, Doubleday, 1997, 363 (AncB 33A).
19.Ver também ibid., 354-355.
20. O ponto de vista corrente afirma que “em vista das transgressões” significa “a fim de
acrescentar = de manifestar uma transgressão”, o que implica um papel inteiramente negativo
(ver os autores citados em James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 139, n. 57 [cf. nota
1]); essa interpretação não condiz com o papel positivo do “cativeiro vigilante” descrito alguns
versículos adiante.
21. Para mais detalhes, ver James D. G. Dunn, Galatians, 188-190 (cf. nota 3); Id., The Theology of
Paul the Apostle, 139 (cf. nota 1).

249
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
consequência é que a promessa e a Lei funcionam em registros diferentes: pode-
mos dizer que a promessa dá vida22, mas não a Lei; a justiça emana dessa função de
dar a vida que exerce a promessa. Qual é, então, a função da Lei? A primeira res-
posta que vem à mente é que a Lei foi dada para uma função mais nobre, mas
igualmente positiva, a de ordenar a vida outorgada pela promessa; a Lei não dá a
vida, ela a regula. Tal concepção concordaria certamente com o papel da Lei
como a fixa o Deuteronômio, o livro da Aliança tão importante para Israel,
bem como com o papel que expõe Levítico 18,5: a Lei fornece as regras segundo
as quais Israel deve viver (Gl 3,11)23. É talvez mais pertinente ainda observar que
essa função, já indicada em 3,11 e subentendida em 3,21, convém totalmente ao
papel da Lei como protetora e guardiã, como será desenvolvido nos versículos
seguintes (3,23-24).
Uma vez mais, descobrimos um insistente interesse de Paulo na lei de Israel,
a Torá. Mas o que nos interessa é o modo como ele traz variantes para essa ideia
básica: o papel protetor da Lei para Israel. É que a imagem vai mudando aos pou-
cos, de “vigilante” (paidagwgo,j) (3,23-25), passando por “tutores e curadores”
(4,1), a “elementos do mundo” (stoicei/a) (4,3.9). Paralelamente, o estatuto dos
que estão “submetidos” a essas figuras varia progressivamente: de escolar (“sob o
paidagwgo,j”, 3,25) ao herdeiro menor (nh/pioj) (“sujeito a tutores e curadores”,
4,2), não diferindo “em nada de um escravo” (4,1), apesar de sua situação de her-
deiro, para uma condição de escravo “submetido aos stoicei/a” (4,9). Convém
ressaltar que no fim de seu desenvolvimento Paulo tem condições de estabelecer
a equivalência entre a Lei e os stoicheia: aceitar a circuncisão e as outras obras da
Lei impostas por outros missionários judeus equivale a voltar atrás, a se tornar de

22. Paulo exprime essa ideia em termos semelhantes em Romanos 4,16-18; o verdadeiro doa-
dor de vida é evidentemente o autor da promessa (referências em James D. G. Dunn, The Theology
of Paul the Apostle, 154, n. 130 [cf. nota 1]).
23. A aceitação geral de Levítico 18,5 como o que inculca uma vida a ser vivida na prática dos
mandamentos é indicada em Ezequiel 20,5-26 (o mais antigo comentário de Lv 18,5); isso é con-
firmado por Deuteronômio 30,15-20; Provérbios 3,1-2; 6,23; Neemias 9,29; Baruc 4,1; 1QS
4,6-8; CD 3,15-17; PsSal 14,2-3; EpArist 127; Fílon, Congr 86-87; LAB 23,10; 4 Esdras 7,21;
mAbot 2,7; “a Lei da vida” (Sr 17,11; 45,5; 4 Esd 14,30); “os mandamentos da vida” (Ba 3,9). Parece
ter surgido (em Qumran?) a ideia de que a duração da vida prometida podia se exprimir em ter-
mos de “vida eterna” (adquirida) (1 QS 4,7: “abundância de paz numa longa vida […] prazer
eterno com uma vida sem fim”; CD 3,30: ele “adquirirá uma vida eterna”; 7,6: “eles viverão um
milhar de gerações”); ver mAbot 2.7. A noção de uma ressurreição para a vida eterna (Dn 12,2; 2Mc
7,9; cf. 4M 15,3) não parece estar tão diretamente ligada a Levítico 18,5. Simon J. Gathercole
(Where is Boasting? Early Jewish Soteriology and Paul’s Response in Romans 1–5, Grand Rapids
[MI], Eerdmans, 2002, 66-67, 100-102) opõe com muito vigor as expressões “maneira de viver” e
“caminho de vida”.

250
IV – A Lei
novo escravo dos “elementos fracos e pobres” (4,9). Em outras palavras, o papel da
Lei em sua capacidade de proteger e de guardar Israel é semelhante ao dos stoi-
cheia, aos quais se atribuía o poder de determinar o destino dos indivíduos e das
nações24. Podemos dizer que, aos olhos de Paulo, a Lei funcionava quase como um
anjo da guarda de Israel. No sentido de Deuteronômio 32,8-9, o próprio Deus
havia designado anjos da guarda para cada uma das nações, mas havia separado
Israel para ele próprio25. Paulo pode ter elaborado essa ideia em 3,19-20 à luz de
Deuteronômio 33,2-426, no sentido de que a Lei assim dada era o meio pelo
qual Deus exercia sua vigilância sobre o povo que ele reservara para si, Israel.
Se temos razão nesse ponto, impõe-se, uma vez mais, que Paulo não hesitou
em falar de nomos de uma maneira flexível e extensiva. A Torá de Israel é visada
primeiro, mas Paulo pode ao mesmo tempo reduzir e ampliar esse objetivo. Ele a
reduziu ao limitar seu papel à proteção e, provavelmente, à regulação da vida de
Israel. Mas ele pode também ampliá-la, ao opor esse papel estreito à dimensão
cósmica do projeto de Deus para todas as nações, e não somente para Israel. Nesse
sentido mais amplo, o papel da Lei pode ser vinculado ao do anjo da guarda, equi-
valente ao papel protetor e de guia dos anjos designados para conduzir as outras
nações. Aqui, estamos próximos da ideia de que a Torá encarna uma Lei cósmica,
que ela é a expressão particular de uma ordem divina à qual todas as nações estão
submetidas. A ironia é que os condutores angélicos das outras nações podem ser
rebaixados ao nível de stoicheia servidores; se as outras nações tentam se submeter
ao império da Lei, o anjo da guarda de Israel, sua atitude volta a considerar a Lei
como um dos stoicheia e a aceitar um estatuto de escravidão sob a Lei.
b) É ainda mais claro que Paulo considera ser essa função da Torá limitada no
tempo. Paulo o repete com frequência: a Lei “vem acrescentar-se para que se ma-
nifestem as transgressões até que venha a descendência” (3,19); seu papel protetor
vigorava “antes da chegada da fé; nós éramos mantidos em cativeiro, sob a lei, em
vista da fé que devia ser revelada” (3,23); “mas, após a chegada da fé, não estamos
mais sujeitos a esse vigilante” (3,25); o herdeiro criança “está sujeito a tutores e
curadores até a data fixada por seu pai” (4,2); “ao chegar a plenitude dos tempos,
Deus enviou o seu Filho… sujeito à lei, para pagar a alforria daqueles que estão
sujeitos à lei…” (4,4-5).

24. Detalhes em James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 107-108 (cf. nota 1); Bruce
W. Longenecker, The Triunph of Abraham’s God, 127-128 (cf. nota 14).
25. Interpretação corrente de Deuteronômio 32,8-9 (LXX); Sirácida 17,17; Jub 15,31-32; 1 Hén
20,5; Targ P Jon de Gênesis 11,7-8.
26. O autor se baseia na trad. REB [The Revised English Bible]: “The Lord came from Sinai […]
and with him were myriads of holy ones […]” (nota dos tradutores).

251
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
O divino doador da Lei quis de modo manifesto que sua função protetora
para com Israel fosse temporária. Essa função estava limitada ao período anterior
à vinda do Cristo; mas quando o Cristo veio, inaugurando uma nova possibilidade
de fé27, a necessidade desse papel protetor deixou de existir. O estatuto de prote-
ção “sob a lei”, “por vigilantes”, era necessário para o herdeiro enquanto durava
sua infância. Mas a vinda do Cristo marcou a transição a um estado de maturidade
para o povo do plano de Deus, que podia começar a entrar na totalidade da he-
rança (atualizada e atestada pelo Espírito) (4,5-7). Não há mais necessidade, portanto,
da Lei em seu papel protetor e regulador da criança. E querer viver uma vida inteira-
mente regulamentada pela Lei significa voltar a essa imaturidade e ao estatuto de
escravo (4,1.9).
Observamos de novo aqui que Paulo pode utilizar a Lei tanto num sentido
restritivo como num sentido mais amplo. A Lei reduzida à circuncisão era a Lei
que distinguia e protegia Israel; esse papel está agora ultrapassado. Ao mesmo tem-
po, Paulo pode dizer a seguir que a Lei resumida no mandamento de amor (5,14)
é sempre absolutamente pertinente. Cumprida e vivida pelo Cristo, “a lei do
Cristo” (6,2) traz sempre obrigações para os crentes.
Por outro lado, Paulo pode situar a Lei no contexto cósmico do desígnio de
Deus para a criação. Podemos dizer que a vinda do Cristo marcou um desloca-
mento cósmico dos tempos, de “este mundo do mal”, de 1,4, à “nova criação”, de
6,15. Nesse contexto universal, o papel da Lei não está confinado ao poder angé-
lico exercido sobre outras nações; é também visto como o instrumento de um
desígnio firme e positivo em relação a Israel e preparatório da “plenitude dos
tempos”. Em resumo, o papel particularista da Lei, protetora de Israel, pode ser
considerado num contexto mais amplo, espacial e temporal, com uma envergadu-
ra ao mesmo tempo cósmica e histórico-salvífica.
À luz dessa análise, percebemos com mais clareza o ponto crítico da objeção
de Paulo à Lei, ou, para ser mais precisos, o ponto crítico de sua objeção ao fato
de os pagãos convertidos se submeterem à Lei. O problema é o revés de Israel ao
compreender que com a vinda do Cristo tudo mudara. A vinda do Cristo pôs um
termo à necessidade de a Lei desempenhar esse papel protetor de Israel diante dos
pagãos. O papel positivo outrora exercido pela Lei em relação a Israel foi suplan-

27.Todavia, não estou convencido do ponto de vista corrente que quer que “a chegada da fé” em
3,23.25 signifique “a fidelidade do Cristo”; a chegada da fé em Cristo, que se tornou possível pela
chegada do Cristo, simbolizava a tal ponto uma nova era para Paulo que ele podia dela falar como
da chegada da fé; para entender os pontos controversos do vivo debate sobre o assunto, ver James
D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 379-385 (cf. nota 1).

252
IV – A Lei
tado pelo Cristo. A maturidade marcada pela vinda do Espírito significa que o
período restritivo da infância terminou (4,6-7). Como, pois, os que tinham vivido
essa liberdade podiam querer voltar à escravidão de uma vida limitada pela Lei e
pela circuncisão para se juntar aos descendentes de Abraão “segundo a carne”
(4,8-11; 4,21-5,1)? Antes, a vida agora pode e deve ser vivida sob a guia do Espí-
rito, uma fé ativa pelo amor, uma vida de uma qualidade diferente da vida sob a
Lei, sob as stoicheia (Gl 5). O que tinha sido positivo no funcionamento da Lei
antes do Cristo e antes da fé não está, pois, perdido. No novo contexto cósmico
histórico-salvífico, esse papel positivo foi superado pelo Cristo. Ele encontra seu
centro no mandamento do amor e pode ser definido como “a lei do Cristo”.
Em resumo, era inevitável que a Lei fosse considerada primeira e principal-
mente a lei de Israel. Mas se a Lei é vista como de Israel apenas, garantindo a jus-
tiça unicamente para os judeus, ela é estéril, pior que inútil. Ela não pode mais
desempenhar seu papel senão de modo resumido no mandamento do amor, tal
qual o Cristo o interpretou e viveu.

3. A Lei nas epístolas aos coríntios

As poucas referências nas epístolas aos coríntios confirmam os posicionamentos


negativos e positivos que revelamos em Gálatas.
a) Em 2 Coríntios 3 encontramos um contraste semelhante ao que predo-
minava em Gálatas 3–4. Em Gálatas, Paulo tirou os marcos de promessa e Lei; a
Lei em sua relação com Israel exerce uma função temporária até o tempo do
cumprimento da promessa em Cristo. Tentar estender essa função aos pagãos é
equivalente a lhes impor uma forma de escravidão. Em 2 Coríntios 3, o contraste
fica mais acentuado entre antiga e nova Aliança28. O sentimento de um adiamen-
to escatológico é, todavia, o mesmo: a antiga Aliança mosaica foi superada pela
nova, prometida pelos profetas29. Encontramos também grande similitude entre
um privilégio mais limitado (somente Moisés fez experiência da glória, e uma
glória que desbotava: 3,13) e um privilégio bem mais aberto (“todos nós que, de
rosto descoberto”, continuamos a fazer a experiência de uma glória que trans-
forma: 3,18).

28.Vale a pena notar que a antítese antiga/nova Aliança está ausente em Gálatas (cf. 3,15.17; 4,24);
para mais detalhes, ver James D. G. Dunn, “Did Paul Have a Convenant Theology? Reflections on
Romans 9,4 and 11.27, in Stanley E. Porter, Jacqueline C. R. de Roo (ed.), The Concept of the
Convenant in Second Temple Judaism, Leiden/Boston, Brill, 2003, 287-307 (Supplements to The
Journal for The Study of Judaism 71).
29.Ver acima nota 6.

253
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
Ao mesmo tempo, o contraste parece ser bem mais marcante entre um “có-
digo escrito” (gra,mma) que mata e o Espírito que vivifica (3,6); entre um ministé-
rio de morte e de condenação e o ministério do Espírito e de justiça (3,7.9).
Convém, todavia, ressaltar que o ministério de Moisés era um ministério de “gló-
ria” (3,7-11), embora uma glória menor, agora abandonada. Além disso, a admis-
são de Moisés na presença do Senhor (Ex 34,34) é apresentada como uma espécie
de conversão cristã (2Cor 3,6)30. Dever-se-ia dar mais importância do que damos
habitualmente à utilização paulina de gramma em vez de nomos. O fato é que gram-
ma não é um simples sinônimo de nomos; põe, antes, o acento na lei escrita, a lei
que se vê na carta escrita. Gramma não é a lei como tal, mas a lei em seu aspecto
evidente, a antiga Aliança naquilo em que faz pensar imediatamente na Aliança
com Israel31.
Em outros termos, a oposição entre o Espírito e a letra é muito semelhante
à que existe entre promessa e Lei. Essa Lei que Paulo contesta, com efeito, não é a
Lei como tal, mas a Lei em sua definição mais estreita de gramma, ou seja, a Lei
concentrada nos mandamentos que definiram a Aliança como a Aliança de Israel,
a Lei cristalizada na circuncisão (Rm 2,28-29). Quando a Lei é entendida de um
modo tão restritivo, diz Paulo, ela pode se revelar mortal.
b) Em 1 Coríntios 7,19 descobrimos a outra abordagem que faz Paulo da
Lei. É que, espantosamente, ele afirma que “a circuncisão nada é e a incircuncisão
nada é: tudo está em observar os mandamentos de Deus”. Imediatamente dever-
se-ia concluir que somente alguém que trabalhe com uma noção diferenciada da Lei/
mandamento de Deus pode operar tal distinção. Nenhuma necessidade de lembrar a
Paulo que a circuncisão é um dos “mandamentos de Deus”. Ele está plenamente
consciente de que sua declaração é contraditória em relação a um judeu piedoso.
Se há algo evidente é que em 1 Coríntios 7,19 Paulo pode, ao mesmo tempo,
desvalorizar (aspectos de) a Lei e considerar que (aspectos de) a Lei é ainda nor-
mativa para seus convertidos32.
A solução para o enigma que Paulo assim formulou é relativamente simples,
pois Paulo já usou essa antítese, “nem a circuncisão nem a incircuncisão, mas…”,

30. Ver James D. G. Dunn, 2 Corinthians 3,17 — “The Lord is the Spirit”, JTS 21 (1970)
309-320; reed.: Id., The Christ and the Spirit, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998; v. 1: Christology,
115-125.
31. Esse ponto é ainda mais claro em Romanos 2,28-29 (ver James D. G. Dunn, Romans, 123-
125 [cf. nota 8]).
32. Cf. Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther. 1 Kor 6,12-111,16, Zürich/Brauns-
chweig/Neukirchen-Vluyn, Benzinger/Neukirchener, 1995, 136 (EKK 7/2): “Das Ende des Ge-
setzes als Heilsweg (Röm 10,4) impliziert nicht sein Ende als Lebensweisung”.

254
IV – A Lei
por duas vezes em Gálatas (5,6; 6,15), e com toda evidência temos o eco dessa
mesma antítese em 1 Coríntios 7,1933. Podemos, pois, deduzir que o lado negati-
vo do contraste é uma insistência de Paulo em Gálatas: nos dois casos, ele faz um
alerta contra a exigência feita por seus correligionários (judeus) de se identificar
com Israel e de se tornar prosélito (pela circuncisão) se se quisesse partilhar a he-
rança e a promessa feita a Abraão. O aspecto positivo do contraste se explica do
mesmo modo, mas com acentos diferentes segundo as situações tratadas na epís-
tola. Em Gálatas, em que é viva a ameaça de um outro Evangelho, Paulo afirma
que a fé que faz obras pelo amor torna inútil a circuncisão, a qual se tornou cadu-
ca pela “nova criação”. Em 1 Coríntios, em que a ameaça é diferente, Paulo não
hesita em pôr o acento na importância de guardar os mandamentos de Deus —
tanto que é bem claro que o mandamento que diferenciou Israel das outras na-
ções pode ser considerado com indiferença sem, todavia, diminuir a importância de
guardar os mandamentos de Deus.
Mais uma vez, parece evidente aqui que Paulo trabalha com uma noção di-
ferenciada de nomos. Ele adota atitudes diferentes em relação à Lei segundo o as-
pecto ou a função dela que ele tem em mente. A chave parece ser o vínculo que a
Lei mantém com Israel, como lei de Israel. Quando esse aspecto central da Lei é
acentuado com excesso, de uma maneira exclusiva e em direção ao exterior (com
a circuncisão como ponto de litígio), Paulo a recusa em bloco. Ao contrário,
como Lei/mandamento de Deus, ela expressa ainda a vontade de Deus para a
humanidade, ainda que ela seja diferenciada da Lei que definiu Israel e não se re-
duza a ela.

4. A Lei na epístola aos Romanos

Na epístola aos Romanos, Paulo expõe sua visão da Lei ou, mais precisa-
mente, articula aspectos de sua compreensão do papel da Torá que não havia ex-
posto (tão claramente) até então.
a) Em primeiro lugar, afirma que um papel central da Lei é servir para medir o
pecado, ou seja, definir o pecado, fazer os pecadores tomarem consciência de seus
pecados e dar a norma pela qual o pecado pode ser julgado. Assim 3,20: “a lei dá
apenas o conhecimento do pecado”; 4,15: “onde não há lei, tampouco há trans-
gressão”; 5,13: “embora o pecado não possa ser sujeito a sanção quando não há

33.Ver James D. G. Dunn,“Neither Circumcision Nor Uncircumcision, but…” (Ga 5,2-12; 6,12-
16; cf. 1 Co 7,17-20), in Albert Vanhoye (éd.), La foi agissant par l’amour (Galates 4.12-6.16), Roma,
Abbaye de S. Paul, 1996, 79-110.

255
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
lei”; 7,13: “e aparecesse em toda a sua virulência de pecado, por meio do manda-
mento”. Gálatas 3,19 contém, talvez, uma alusão a esse papel, que só se torna ex-
plícito mais tarde, em Romanos. O fato de Paulo se referir por várias vezes a esse
papel nessa epístola indica precisamente que não é uma ideia que lhe venha de
improviso (!). Paulo pôde apresentar esse papel desde que certos círculos cristãos
punham em dúvida a pertinência atual da Lei e porque sua própria interpretação
do papel da Lei no desígnio de Deus podia ser facilmente compreendida como
uma recusa da Lei, como veremos adiante.
É no papel da Lei como medida do pecado que ele insiste em sua acusação
inicial de 1,18–3,20. Esse papel está explícito no capítulo 2, particularmente em
2,12-16. Parece inicialmente que a função judiciária da Lei não se aplica senão a
Israel: “Todos os que pecaram sem a lei perecerão também sem a lei; todos os que
pecaram sob o regime da lei serão julgados pela lei” (2,12). A Torá é, afinal de
contas, a Lei de Israel (cf. seção 2).Todavia, Paulo fez antes apelo a uma percepção
mais ampla (universal) do “veredicto justo de Deus” (1,32)34; ele continua a ver os
pagãos como aqueles que “fazem naturalmente o que a Lei ordena”, ao mostrar
que a obra desejada pela Lei está “inscrita em seu coração” e que “observam as
prescrições da Lei” (2,14-15.26). Assim, de novo, o nomos de Deus se verifica na
compreensão de Paulo focalizado na Torá, mas sem estar limitado a ela nem redu-
zido a ela. Se os que não conhecem a Torá sabem, todavia, o que é o veredicto
justo de Deus e realizam seu nomos, então nomos não se confunde com a Torá35. É
na lei de Israel que o dever do homem diante de Deus é expresso da maneira mais
completa, mas não é coextensivo à Torá; pode ser conhecido e receber uma res-
posta fora da Torá. A Lei, mesmo quando lei de Israel, transcende Israel.
Isso é particularmente importante para o ponto culminante da acusação de
3,19-20. Paulo quer dizer que a Lei mantém todos os homens suscetíveis de ser
julgados por Deus. Mas como se trata, em primeiro lugar, da lei de Israel é a Israel
que se dirigem particularmente as palavras condenatórias da Lei. Mais uma vez,
Paulo pensa na Lei como numa tensão entre, de uma parte, sua destinação parti-
cular a Israel e, de outra, o fato de que ela constitui a medida segundo a qual toda
a humanidade será julgada.
b) O segundo papel da Lei sobre o qual se concentra Romanos é a maneira
como ela é utilizada e abusada pelo poder do pecado de incitar ao desejo/cobiça e de produ-
zir o que é contrário à vontade de Deus. A afirmação inicial soa como uma dura

34. Esse “conhecer” é com toda evidência o eco do “conhecer” de 1,19.21.28.


35. Para o debate em torno do conceito de “lei não escrita” ao qual se refere Paulo e da emer-
gência recente da noção de “consciência”, ver meu comentário Romans, 99-102 (cf. nota 8).

256
IV – A Lei
acusação da Lei: “a Lei interveio para que proliferasse a falta” (5,20). Isso poderia
ser uma reafirmação do primeiro tema: “a Lei torna consciente do pecado e mul-
tiplica os pecados”; ou ainda, ao fazer tomar conhecimento do pecado, ela faz o
pecado parecer bem mais odioso ainda. Mas quando Paulo volta ao tema evocado
em 5,20 torna-se claro que tem em mente o papel da Lei como agente de propa-
gação das paixões repreensíveis (7,5)36. A acusação lançada à Lei de ser um instru-
mento e não apenas uma medida do pecado está nitidamente presente na dedu-
ção lógica: a Lei é, ela própria, pecado (7,7)! Ora, depois de incentivar seus
ouvintes a considerar essa possibilidade, Paulo a nega imediatamente e se lança
numa vigorosa defesa da Lei (7,7-25). A falta não reside na Lei, mas na fraqueza da
carne e no poder do pecado de (ab)usar da Lei, a fim de suscitar o desejo/cobiça
do “fruto proibido”37.
É o papel do “agente involuntário” que Paulo resume na expressão “a lei do
pecado” (7,23.25; 8,2), à qual já fizemos referência (cf. seção 1b). É análogo ao papel
atribuído à Lei em Gálatas, quando, uma vez que estava destinada a proteger Israel,
a Lei se põe a funcionar para os convertidos pagãos à maneira das stoicheia de que
eles tinham sido escravos antes (cf. seção 2b). E, como em Gálatas, a Lei está instala-
da num pano de fundo cósmico. Não é mais um código de exigências imposto a
Israel pelo Deus de Israel, mas se vê assumir um papel numa cena mais importante
e no coração da humanidade. Poderíamos até mesmo dizer que, do mesmo modo
que por trás dos pecados individuais se projeta (o poder do) Pecado, por trás da Torá
reside o princípio superior da vontade de Deus. Seja como for, a Torá não funcio-
na apenas como a norma do bem e do mal, ela pode ser manipulada por outros
poderes, infelizmente o poder do pecado, mas também o poder do Espírito (8,2).
Em tudo isso a Lei é a expressão e a medida da vontade de Deus. Seguir suas justas
prescrições é o objetivo dos que andam “segundo o Espírito” (8,4).
c) As numerosas facetas da Lei trazidas a lume até aqui mostram-se ainda
mais claramente em 9,30–10,12. De um lado, Paulo usa termos muito positivos
para falar da Lei em relação a Israel. A Lei era o objetivo atribuído a Israel, “a lei
de justiça” (9,31)38. Paulo pensa provavelmente no papel da Lei: ser norma e me-

36. Uma vez que a Lei é considerada dada especificamente a Israel, as paixões repreensíveis
devem compreender uma estranha mistura de orgulho nacional e de complacência pessoal posta
sob acusação em 2,17-24.
37. O eco de Gênesis 3,13 em Romanos 7,11 retira toda dúvida quanto à alusão à história
primordial de Adão (ver James D. G. Dunn, Romans, 384, 379-381 [cf. nota 8]; Id., The Theology of
Paul the Apostle, 98-100 [cf. nota 1]).
38. Sobre o equívoco relativo a essa expressão, ver James D. G. Dunn, Romans, 581 (cf. nota 8);
Joseph A. Fitzmyer, Romans, New York, Doubleday, 1993, 578 (AncB 33).

257
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
dida da vontade de Deus para Israel. Que Israel não tenha acertado com a Lei
(9,31) não diminui o papel da Lei de Israel: ser dada por Deus e exprimir a von-
tade de Deus. O pensamento é aqui coerente com a ideia expressa em Gálatas de
uma função protetora da lei para Israel (cf. seção 2a). Mas, como em Gálatas,
a vinda do Cristo e a necessidade de crer em Cristo puseram um termo nessa fase
(9,33–10,4)39. Consequência: o papel limitado da Lei em sua regulação da vida de
Israel (10,5)40 encerra-se igualmente.
É nesse momento que Paulo realiza um de seus mais audazes deslocamentos
hermenêuticos. Em 10,6-10, ele cita Deuteronômio 30,11-14 como a expressão
da “justiça da fé”, distinta da justiça que vem da Lei enunciada em 10,5 (Lv 18,5).
Ora, Deuteronômio 30 é o ponto culminante do “livro da lei” (Deuteronômio),
manifesto clássico do “nomismo da Aliança”41. Sua razão de ser é convencer que a
obediência à Lei é totalmente possível para Israel:“o mandamento não é excessivo
para ti; … a palavra está em tua boca e em teu coração para que a ponhas em prá-
tica” (Dt 30,11.14). Quase para a totalidade da tradição judaica, Levítico 18,5 e
Deuteronômio 30,11-14 falam de uma mesma palavra. Ora, Paulo traz à luz uma
interpretação do Deuteronômio que já circulava nos meios judaicos e que via a
Lei de que se trata como a expressão de uma sabedoria mais universal ou boa42.
Ele aplica a passagem ao que considera uma expressão mais transcendental da
vontade de Deus do que a lei vista (simplesmente) como a Torá de Israel. O “man-
damento/palavra” de que fala o Deuteronômio é “a palavra de fé que nós procla-
mamos” (Rm 10,8). Aqui, como nas fórmulas “a lei do Cristo” (Gl 6,2) e “a lei do
Espírito” (Rm 8,2), a Lei pode ser compreendida como uma expressão da justiça
salvadora, como Evangelho! O pensamento assemelha-se muito a Romanos 3,27
(“a lei da fé”): a Lei é a expressão da fé. É isso que cria entre 10,6-12 e 9,31 uma
verdadeira inclusão: a Lei era a lei de justiça para Israel, mas Israel não a alcançou
porque “eles não a esperavam da fé” (9,32); todavia, entendida como palavra de fé
(10,8), a Lei é uma via de justiça para todos aqueles que creem (10,4-10).

39. Em Romanos 10,4, te,loj pode significar ao mesmo tempo “fim” e “realização”, mas uma
realização que põe fim ao papel anterior.
40. Não é por acaso que Paulo cita Levítico 18,5 (ver acima nota 23) ao mesmo tempo em
Gálatas 3,11 e em Romanos 10,5, de modo a minimizar a função da Lei para opô-la à justificação
pela fé.
41. A expressão, popularizada por Ed P. Sanders (Paul and Palestinian Judaism, London, SCM,
1977), é uma tentativa de substituir a imagem tradicional do judaísmo, estritamente legalista, por
uma imagem que mostra um equilíbrio entre a consciência da eleição de Israel (Aliança) e a obri-
gação de obediência que dela decorre (nomismo).
42. Baruc 3,39-40; Fílon, Post 84-85; cf. Targ Neof sobre Deuteronômio 30,11-14 (mais detalhes
em James D. G. Dunn, Romans, 603-605 [cf. nota 8]).

258
IV – A Lei
Para resumir, constatamos mais uma vez que a Lei pode ser entendida de
maneira restritiva, focalizada exclusivamente em Israel e no que Israel devia fazer.
Para Paulo, isso é o mesmo que trair a Lei pela fraqueza da carne e deformá-la
pelas tramas das paixões repreensíveis. Mas, fora dessa perspectiva restritiva e cons-
trangedora, a Lei, ao apelar à fé e utilizada pelo Espírito para a vida, continua a
servir de norma da vontade e do julgamento divinos.

5. As obras da Lei

O resultado mais surpreendente da pesquisa realizada até aqui é a enorme


flexibilidade do discurso de Paulo sobre a Lei. Resumamos. (1) O sentido que
Paulo dá a nomos é quase sempre a Lei como tal, a Torá de Israel. Mas ele pode
reduzir sua referência a um mandamento particular ou estendê-la às Escrituras
em sentido amplo, ou ainda à vontade e à sabedoria consignadas nas Escrituras. (2)
Como lei de Israel, ela pode ser resumida num mandamento particular (a circunci-
são, o imperativo do amor), ou vista como uma espécie de anjo da guarda que
protege Israel. Os dois papéis podem ser tanto negativos quanto positivos: poder
subjugante, quando seu papel protetor é exercido para além do limite previsto;
gramma, quando ela interpreta os mandamentos de Deus de modo muito exclusi-
vo e restritivo em relação a Israel, impedindo assim que um campo de aplicação
mais amplo e permanente lhes seja plenamente reconhecido. (3) Como medida do
pecado, a lei de Deus é a mais claramente definida na Torá, mas é também reconhe-
cida mais amplamente. (4) Ainda que ela exprima a vontade de Deus, a Lei pode
ser utilizada e abusada pelo poder do pecado. Mas pode ser também utilizada pelo
Espírito, tornando-se um objetivo a alcançar. Israel não chegou a esse objetivo, não
tendo se dado conta de que ele não poderia ser atingido senão pela fé. O Evange-
lho, ao oferecer à sabedoria de Deus uma expressão mais completa graças à pala-
vra de fé, permitiu que os pagãos alcançassem esse objetivo.
Até aqui, deixamos quase que completamente de lado uma das fórmulas de
Paulo, “as obras da Lei”. Abstive-me até agora da discussão sobre esse ponto por-
que uma vez esclarecida a imagem mais geral do papel da Lei sua significação e
seu alcance são mais fáceis de entender. Abordar essa questão muito cedo poderia
facilmente deformar esse retrato global. O que quer, então, dizer Paulo quando
fala das “obras da Lei”?
a) Paulo utiliza a expressão e;rga no,mou apenas em Gálatas e em Romanos43.
Evidentemente, são as duas cartas nas quais Paulo trata de modo mais completo a

43. Gálatas 2,16 (três vezes); 3,2.5.10; Romanos 3,20.28; e;rga sem no,mou, mas provavelmente
subentendido (4,2.6; 9,12.32; 11,6)?

259
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
questão de saber como os crentes das nações diferentes de Israel podem reclamar
uma parte da promessa e da herança de Abraão. Podemos, pois, supor que pela
expressão “as obras da Lei” Paulo entendia especificamente a lei de Israel e o que
a Torá requeria de Israel. Vemos isso no discurso recorrente da Bíblia hebraica
sobre a obrigação de Israel de “pôr em prática” a Lei44. A expressão “as obras da
Lei” designa, pois, o que a Lei exige do povo da Lei. Se o “nomismo da Aliança”
descreve, ainda que imperfeitamente, o equilíbrio na soteriologia judaica entre
um povo escolhido por graça e a obrigação imposta a esse povo de obedecer à
Torá45, “as obras da Lei” situam essa obrigação no contexto da Aliança de Deus
com Israel. Antecipando um pouco, poderíamos definir mais completamente “as
obras da Lei” como o que os membros da Aliança devem fazer a fim de atestar sua per-
tença, viver sua vida como povo de Deus e garantir sua absolvição no julgamento final, além
de (já que aparece a noção de uma vida depois da morte) assegurar sua participação
na vida do éon futuro46. Deve-se notar que a ideia não é tanto merecer uma recom-
pensa quanto obter uma herança já prometida47.
Este resumo corresponde ao estado atual do debate sobre as “obras da
Lei”.Vamos perguntar agora a que Paulo faz objeção quando afirma de modo
tão enérgico que “pelas obras da Lei ninguém é/será justificado” (Gl 2,16;
Rm 3,20).

44. Particularmente no Deuteronômio: 27,26; 28,58; 31,12; 32,46; ver Simon J. Gathercole,
Where is Boasting?, 92-93 (cf. nota 23).
45. D. A. Carson, Peter T. O’Brien, Mark A. Seifrid ([ed.], Justification and Variegated Nomism,
Tübingen, Mohr Siebeck, 2001; v. I: The Complexities of Second Temple Judaism [WUNT 140]) tes-
tam a pertinência da expressão em todo o corpus dos escritos do Segundo Templo. Carson interpreta
as descobertas negativamente (543-548), mas as descobertas, de fato, confirmam que a maior parte
dos escritos examinados atesta um equilíbrio entre os dois polos. Friedrich Avemarie (Tora und
Leben. Untersuchungen zur Heilsbedeutung der Tora in der frühen rabbinischen Literatur, Tübin-
gen, Mohr Siebeck, 1996 [TSAJ 55]) avisa, com razão, que não se deve procurar uma coerência
nesse equilíbrio no seio dos textos rabínicos.
46. De modo especial, insisti em minhas pesquisas sobre os dois primeiros pontos deste quádru-
plo objetivo, principalmente porque eles haviam sido ignorados; ver James D. G. Dunn, The Theology
of Paul the Apostle, 354-359 (biblio. 335) (cf. nota 1); ver também Id., Noch einmal “Works of the
Law”: The Dialogue Continues, in Ismo Dunderberg et al. (ed.), Fair Play: Diversity and Conflicts
in Early Christianity. Festschrift H. Räisänen, Leiden, Brill, 2002, 273-290. Simon J. Gathercole
(Where is Boasting? [cf. nota 23]), ao contrário, põe o acento, com razão, nos últimos dois pontos do
quádruplo objetivo.
47. Uma das características da obra de D. A. Carson, Peter T. O’Brien e Mark A. Seifrid ([ed.],
Justification and Variegated Nomism [cf. nota 45]) é que os contribuidores negam com insistência o
fato de que a ideia de mérito tenha estado na base da relação contínua de Israel com Deus (9, 29,
41-42, 218, 222, 238, 324, 331, 353, 396-397); sugiro que o comparemos à preocupação de Paulo
em obter o prêmio (1Cor 9,24-27; Fl 3,14).

260
IV – A Lei
b) Encontramos um indício no que parece ser o mais antigo atestado da
expressão, o agora célebre 4 QMMT, uma carta enviada por um (ou o) responsá-
vel da seita de Qumran para explicar aos judeus de Israel a halakhah particular da
seita. Parece bem claro do contexto que a expressão “miqsat ma’ase ha-torah” (113/
C27)48, “algumas obras da Lei”, faz referência à interpretação qumraniana de di-
versas leis referentes ao Templo, ao sacerdócio, aos sacrifícios e à pureza (3-5/B1-
2)49. A seita considerava manifestamente que essas diferenças de interpretação
eram um motivo suficiente para se “separar” do resto de Israel (92/C7)50. Essa
carta termina por incitar os destinatários a seguir a halakhah da seita, garantindo-
lhes que, se o fizerem, isso lhes será contado como justiça (116-118/C30-32). É
interessante observar a presença do mesmo fenômeno que já encontramos no dis-
curso mais geral de Paulo a respeito da Lei, a saber: o autor dessa carta entendia,
sem dúvida nenhuma, “ma’ase ha torah” no sentido das “obras da Lei” em geral,
portanto tudo o que a Lei exigia de Israel. Mas a referência está restrita aqui a leis
particulares como a seita as entendia. O princípio básico, que desejava que Israel
fizesse o que exigia a Lei (as obras da Lei), tornou-se o ponto central nas regras da
halakhah, que diferenciavam a seita do resto de Israel, obrigando-o a dele se sepa-
rar pelo fato de que o resto de Israel era malsucedido no cumprimento das obras
da lei. A menos que o resto de Israel faça as obras da Lei, não será “reconhecido
como justo” no fim dos tempos.
A ideia é, pois, a de uma justificação final, mas não preceitua tanto sobre o
mérito quanto sobre a absolvição. É, antes, a ideia de que os únicos que podem
ter a garantia de uma absolvição são aqueles que seguirem a halakhah de Qumran,
ou seja, a prática de uma justiça exclusiva, mais que de uma justiça adquirida
por mérito.
c) O paralelo com a primeira utilização paulina da expressão em Gálatas é
surpreendente51: Paulo começa por falar das “obras da Lei” (Gl 2,16) depois de sua
descrição das duas tentativas por parte dos crentes judeus de obrigar os pagãos a
adotar a prática judaica — circuncisão (2,1-10) e regras alimentares — cuja au-

48. As referências provêm da tradução de Florentino Garcia Martinez, The Dead Sea Scrolls
Translated, Leiden, Brill, 21966, 77-79, e da edição crítica do texto por Elisha Qimron, John
­Strugnell, Miqsat Ma’ase Ha-Torah, Oxford, Clarendon, 1994 (DJD 10.5).
49. A sequência das halakhoth é assim introduzida:“Há algumas de nossas regras […] que são […]
as obras […]” (3-5/B1-2); as regras particulares que se seguem são sistematicamente introduzidas
pela fórmula “nossa opinião é que” (11, 32, 39, 40, 45, 58, 76/B8, 29, 36, 37, 42, 55, 73).
50. Encontra-se aqui pela primeira vez o verbo “parah” com essa significação na literatura antiga;
Paulo não deixaria escapar esse eco na identidade característica dos fariseus (parushim = “os
separados”).
51.Ver meu artigo 4QMMT and Galatians, NTS 43 (1997) 147-153.

261
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
sência impedia que um judeu comesse com um pagão (2,11-14). A insistência
nesse último ponto por parte de Pedro e dos outros crentes judeus tinha sido uma
razão suficiente para se “separar” (2,12) dos crentes pagãos (é a mesma palavra que
utilizara a seita de Qumran). Ao continuar sua resposta na epístola, Paulo tira des-
ses acontecimentos o princípio básico, que ele repete com insistência: “ninguém
é/será justificado pelas obras” (2,16). Alguns versículos mais adiante, ele mostra
que sua fé foi tida em conta de justiça a Abraão (3,6 faz eco, como a carta de Qumran,
a Gn 15,6).
Isso leva a pensar que Paulo utiliza “as obras da Lei” do mesmo modo que
o único outro exemplo conhecido nessa época. Quer dizer que ele pensa no
princípio geral (o dever que tem Israel de pôr em prática a Lei), mas aplicado a
questões particulares. Como as regras da halakhah de Qumran eram controversas
em Israel, Paulo considerava as regras dos judeu-cristãos sobre a circuncisão e a
comunhão da mesa para os pagãos como um objeto de controvérsia. Qumran
afirmava que a observância dessas regras da halakhah, dessas “obras da Lei”, era
necessária para a justificação final. Da mesma maneira, do ponto de vista de
Paulo, ao sustentarem que os pagãos deviam aceitar a circuncisão e observar as
leis sobre o puro e o impuro, seus adversários faziam depender das obras da Lei a
justificação por Deus52. A reflexão leva mais uma vez à exclusividade da justifica-
ção (os que não punham em prática a Lei não seriam justificados) mais que a
uma dimensão meritória.
Uma questão pode ajudar a esclarecer a posição de Paulo. Teria ele dito a
mesma coisa de outros mandamentos, por exemplo a proibição pela Torá de pra-
ticar a idolatria ou a porneia? Ele não teria defendido exatamente a mesma posi-
ção, pois seus alertas contra uma e outra proibição atestam o conformismo de
Paulo53. Não teria feito depender a salvação do respeito a esses dois mandamentos,
embora temesse provavelmente que a salvação fosse posta em perigo pela prática
da idolatria ou da porneia. Mas ele não teria provavelmente falado deles como das
“obras da Lei”. Em outras palavras, não se deve compreender a avaliação negativa
da “obras da Lei” como a denúncia de praticar a Lei em geral. Paulo põe em jogo
um princípio: a aprovação do Evangelho depende unicamente da fé. Mas ele con-
centra o efeito negativo do princípio geral contra a observância de certas leis,
uma vez que ela deveria garantir a justificação. Após nossa constatação sobre a

52. Ben Witherington III (Grace in Galatia, 176-177 [cf. nota 18]) confunde o paralelo; nos dois
casos, “algumas obras da Lei” punha a questão de fundo.
53.Ver James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 32-33, 121-123, 690-692, 702-705 (cf.
nota 1).

262
IV – A Lei
flexibilidade de Paulo em sua utilização de nomos, a ambiguidade de seu discurso
sobre “as obras da Lei” não deveria nos espantar.
A aplicação do princípio geral a casos particulares pode explicar o uso re-
corrente da expressão “obras da Lei” em Gálatas. Paulo lembra aos seus gálatas
convertidos que eles receberam o Espírito sem nenhuma das exigências que os
adversários missionários judeus recomendam (3,2.5). Sua referência a “todos os
que vivem segundo as obras da Lei”, em Gálatas 3,10, é sem dúvida uma alusão
aos próprios opositores54. Podemos igualmente presumir que quando, ao longo de
sua argumentação de 2,11-21, Paulo afirma: “morri para a lei” (2,19), ele tem na
mente esse aspecto da Lei, muito precisamente a reivindicação levantada por seus
irmãos judeus crentes, que acreditavam que todos os crentes deviam se conformar
à maneira de viver que distinguia os judeus; é precisamente para essa Lei que ele
está morto55. E como a carne está nesse ponto ligada à circuncisão (3,3; 4,23;
6,12-13) não é, talvez, levar longe demais o pensamento de Paulo sugerir que,
nesse sentido, em seu mundo de representação, as “obras da carne” (5,19) não es-
tão assim tão distantes das “obras da Lei”56.
Podemos até mesmo nos perguntar se ao usar essa expressão Paulo não visa
ao mesmo exclusivismo judeu, com sua fixação mental sobre as obras da Lei, con-
tra as quais ele se oporá a seguir, ao afirmar que a vinda do Cristo pôs fim ao papel
protetor da Lei em relação a Israel (cf. seção 2). Insistir nas obras da lei constitui
um retorno a um período de escravidão, a um atestado de minoridade em que a
herança estava restrita aos herdeiros legais de Abraão.
d) Em Romanos, Paulo faz um retrocesso. Consolida o princípio fundamen-
tal segundo o qual não há justificação senão pela fé; portanto, pela fé e não ao fazer
o que dita a lei. Mas a expressão “obras da Lei” está estreitamente ligada à com-
preensão judaica do que exige a Lei, e que é julgado inaceitável diante do Evan-
gelho. Romanos 3,20 se inclui no mesmo registro universal de Gálatas 2,16. Mais
uma vez, porém, constatamos que as palavras de Paulo se voltam contra aqueles
que estão “sob a Lei” (Rm 3,19). Como em 3,19-20 Paulo recapitula seu discurso
de acusação (1,18–3,20), deve ter de modo especial na mente sua polêmica contra
a presunção judaica em 2,17-29. Em outras palavras, “as obras da Lei” não repre-

54.Ver Id., Galatians, 170-174 (cf.nota 8); Id., The Theology of Paul the Apostle, 361-362 (cf. nota
1); igualmente Jeffrey R. Wisdom, Blessing for the Nations and the Curse of the Law: Paul’s Citatin of
Genesis and Deuteronomy in Gal. 3.8-10, Tübingen, Mohr Siebeck, 2001 (WUNT II/133).
55. Ver meu comentário Galatians, 143 (cf. nota 8); Bruce W. Longenecker, The Triumph of
Abraham’s God, 111-113 (cf. nota 14).
56. Em The Theology of Paul the Apostle (68-70 [cf. nota 1]) observo que Paulo utiliza muitas vezes
“a carne” quando faz referência à insistência judaica sobre a identidade étnica.

263
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
sentam de modo algum a pretensão judaica de guardar um privilégio sobre as
outras nações (2,17-20); mas essa mesma presunção deve estar presente na insis-
tência judaica nas obras da Lei, ao ordenar aos pagãos a prática da Lei, inclusive (e
não é a menor insistência) as práticas distintivas do judaísmo já apresentadas aos
gálatas57. Percebe-se a mesma conotação em alguns versículos mais adiante, na
segunda referência às “obras da Lei” (3,28), em que a argumentação faz ver que
insistir nas obras da Lei equivale a dizer que Deus não é senão o Deus dos judeus
(3,27-29)58. Sejam quais forem as outras acepções da fórmula, as “obras da Lei”
confirmam ou ilustram a insistência judaica na manutenção das leis que separa-
ram Israel das nações.
Em 4,4-5 Paulo enuncia o princípio geral que considera a peça-chave de
toda essa questão: Deus não justifica como num contrato entre empregador e
empregado, que estipularia o trabalho a ser feito e a recompensa a ser dada. Deus
justifica, com efeito, o ímpio e conta a fé como justiça. Acusa ele seus interlocuto-
res judeus desse desprezo contratual ou enuncia um princípio fundamental da
eleição de Israel?59 A resposta não é evidente. Seja como for, o tipo de obra que está
em questão aqui é mais uma vez a circuncisão, como o demonstra a sequência de
4,9-12. Como em no,moj, Paulo usa a expressão e;rga (no,mou) num sentido ao
mesmo tempo amplo e estreito. A lógica que une esses dois empregos é a negação
de que a obediência fiel à Lei caracterizada pela circuncisão seja suficiente para
atestar a justiça ou garantir a justificação final.
Encontramos as mesmas características nas outras referências. Romanos 9,12
e 11,6 apresentam o mais extenso desdobramento do princípio: por chamado di-
vino — não pelas obras; por graça — não pelas obras60. Mas a crítica de 9,32 é que
Israel não alcançou a lei de justiça porque a esperava “não da fé, mas das obras”.
Aqui ainda, ressaltemos o que o raciocínio aconselha: a lei de justiça teria podido
ser alcançada se tivesse sido procurada na fé; em segundo lugar, Israel, por ter obe-
decido à Lei segundo as obras — as obras da Lei —, não chegou à justiça. A pers-

57. Minha leitura de 3,20, à luz de 2,17-29, é uma das interpretações mais controversas de meu
comentário Romans (153-155 [cf. nota 8]). Para a crítica, ver em particular Douglas J. Moo, Romans,
206-217 (cf. nota 7); mas esse autor não leva muito a sério o fato de que 3,19-20 tem por objetivo
incluir os judeus na acusação geral de toda carne, nem o fato de que o resumo de 3,19-20 se foca
nas obras da Lei mais que nas transgressões da Lei (como em 2,21-27).
58. Para um desenvolvimento mais amplo desse ponto, ver James D. G. Dunn, The Theology of
Paul the Apostle, 363-364 (cf. nota 1).
59. O consenso exegético postulava que Paulo se ativesse a uma teologia de justiça pelas obras
preeminente no judaísmo de seu tempo; cf. Stephen Westerholm, Israel’s Law and the Church’s
Faith, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1988, cap. 8; Douglas J. Moo, Romans, 263-265 (cf. nota 7).
60. Douglas J. Moo, Romans, 582-583, 678 (cf. nota 7).

264
IV – A Lei
pectiva é, mais uma vez, opor a lei de Israel ao Evangelho, ao considerá-la como a
lei de Israel; a justiça considerada como adquirida pelas obras da Lei é a justiça de
Israel (a sua, não aberta aos outros: 10,3); a justificação final não é acessível senão
por aqueles que obedecem à Lei como a maioria dos judeus a entendia corrente-
mente. Se as obras se mostraram tão calamitosas é porque estavam a esse propósito
vinculadas à identidade mesma de Israel e recusavam a justiça dos que criam61.
e) Faz-se necessário assinalar finalmente que Paulo não condena as “obras”
como tais; ao contrário, encoraja a agir bem (2Cor 9,8; Cl 1,10). Ele pressupõe
que o julgamento final se dará “segundo as obras” e que as boas obras serão re-
compensadas por glória, honra e vida eterna (Rm 2,6-7; 2Cor 5,10). No mesmo
filão, ele não hesita em falar de “recompensa” (1Cor 3,8.14). Aqui ainda, o sentido
de “obras” é mais amplo. Mas na medida em que o princípio de julgamento “se-
gundo as obras” é totalmente judaico (Sl 62,12; Pr 24,12), e como muitas boas
obras resultam da prática do mandamento de amar o próximo como a si mesmo
(Lv 19,28), podemos falar de “obras da Lei” sem, todavia, forçar seu sentido.
Eu me perguntei há pouco se Paulo teria visto a abstinência da idolatria e de
porneia como “obras da Lei” e sugeri que ele teria evitado utilizar essa expressão
para qualificar esse respeito da Lei. Todavia, deve-se observar que Paulo continua
a solicitar tal obediência; de outra parte, essa obediência poderia ser definida como
a prática da Lei, como outros tantos exemplos do tipo de obediência que exige a
Lei, em outros termos, das “obras da Lei” compreendidas no sentido amplo de
atos exigidos pela Lei. Paulo não separa a conduta segundo o Espírito desse tipo
de obediência à Lei. A justificação pela fé não dispensa o crente desse tipo de obe-
diência. Daí, a visão diferenciada da Lei segundo Paulo pode manter ao mesmo tempo a
afirmação de que a justificação final não viria “das obras da Lei” e a ideia de que o julga-
mento final se daria segundo “as obras (da Lei)”. Em outras palavras, considerar, como
Paulo, que as obras devem ser praticadas pelos crentes e constituem a base do jul-
gamento final representa um ponto de vista pouco diferente da opinião comu-
mente admitida pelo judaísmo de sua época62.
Isso nos conduz a uma dupla conclusão a respeito da teologia das “obras”
segundo Paulo. (1) O princípio da justificação pela fé não elimina a obrigação das obras,

61. Para a crítica, ver ibid., 622-627, espec. n. 49; mas ele avalia de modo diferente o vínculo
entre a crítica de 9,32 e a de 10,3, e não reconhece em 10,3 o eco da atitude expressa em 1 Maca-
beus 2,27 (ver meu comentário Romans, 588 [cf. nota 8]).
62. Cf. Peter Stuhlmacher, Romans, 45-47 (cf. nota 12), e particularmente Kent L.Yinger, Paul,
Judaism and Judgment According to Deeds, Cambridge, Cambridge University Press, 1999 (MSSNTS
105); o último reconhece que o judaísmo do Segundo Templo e Paulo partilham a esse respeito o
ponto de vista marcado pela mesma tensão.

265
Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo
mesmo das obras da Lei. (2) Quando Paulo nega que a justificação dependa das obras da
Lei, ele visa a um objetivo muito preciso, a saber, a insistência de seus irmãos judeus crentes
em fazer adotar por todos os que queriam se prevalecer da descendência de Abraão práticas
que tradicionalmente identificavam Israel.
Em resumo. (1) Nomos não é para Paulo um termo de sentido restrito; ele
funciona, antes, em sua teologia como um largo espectro em cujo centro se en-
contra a lei de Moisés, a lei que especifica como Deus quer que seu povo viva. (2)
Esse papel da Lei podia ser interpretado (e foi) num sentido muito estreito: não
somente para proteger Israel, mas para defini-lo, como gramma. De modo igual-
mente sério, ele podia ser (e foi) utilizado e abusado pelo pecado para estimular
paixões egoístas e estritamente nacionalistas. (3) A vinda do Cristo e de seu Espí-
rito pôs fim à necessidade do primeiro papel e à desculpa para o segundo papel.
Continuar a dar importância a essa função da Lei redundava em fazer as obras da
carne, em insistir na necessidade das obras da Lei para a salvação. (4) Mas a Lei
podia igualmente ser compreendida de uma maneira que transcende o particula-
rismo de Israel, como a expressão da vontade e da sabedoria de Deus por Israel,
mas também para além desse povo. Entendida como a palavra de fé que incita a
uma maior confiança, mais que a uma paixão repreensível, ela pode ser instru-
mento do Espírito. Continua a ser a norma da vontade e do julgamento de Deus
como ela sempre foi, não mais num sentido restritivo, mas à moda do Cristo, sus-
cetível de ser realizada por aqueles que andam segundo o Espírito.

266
IV – A Lei
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
Daniel Marguerat (Lausanne)

A adesão de Paulo à fé em Cristo modificou sua compreensão da Torá? Sobre essa questão
crucial reinava um consenso que admitia uma transformação radical da relação do apóstolo
com a Lei. Ora, esse consenso é combatido pela new perspective on Paul. Daniel
­Marguerat retoma e examina de perto essa nova argumentação a propósito do famoso texto
de Filipenses 3,2–4,1. O estudo se concentra em duas questões: 1) Como o apóstolo pode
se dizer “irrepreensível” diante da Lei? 2) Como compreender a antítese que estabelece
entre uma justiça que vem da Lei e uma justiça que vem de Deus? Chega-se a uma abor-
dagem mais nuançada que a prevista da avaliação da Torá no pensamento paulino.

A questão que me proponho responder é a seguinte: A adesão de Paulo à fé no


Cristo afetou sua compreensão da Lei? Em quê? A questão pode ser enun-
ciada com simplicidade. O debate que ela suscita é hoje bem acirrado1. Se a com-
preensão clássica da teologia paulina dava sem hesitar uma resposta afirmativa à
questão, o novo paradigma desenvolvido sob a denominação new perspective on

1. Para a situação da pesquisa, consultar: Stephen Westerholm, Israel’s Law and the Church’s Faith:
Paul and His Recent Interpreters, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1988, 1-101; Frank ­Thielman,
From Plight to Solution: A Jewish Framework for Understanding Paul’s View of the Law in Galatians
and Romans, Leiden, Brill, 1989, 1-27 (NT.S. 61); Veronica Koperski, What Are they Saying about
Paul and the Law?, New York (NY), Paulist Press, 2001; Colin G. Kruse, Paul, the Law, and Justifica-
tion, Peabody (MA), Hendrickson Publishers, 1996, 27-53, bem como o Dossier Saint Paul, RSR
90/3 (2002) 325-422.

267
Paul opõe-se a subscrevê-la2. A ideia de uma desvalorização da Torá no pensa-
mento do apóstolo não é aceita por Ed P. Sanders ou James D. G. Dunn senão de
modo muito limitado e setorial, como veremos. Minha intenção é submeter a
“nova abordagem de Paulo” à prova dessa questão e, mais especificamente, à prova
de um texto: Filipenses 3,2–4,1.
De início, uma objeção deve ser apresentada: Podemos falar de um discurso
paulino sobre a Lei?. Abordarei a objeção num primeiro momento (1), depois
entrarei no estudo de Filipenses 3, legitimando a escolha do texto e vendo como
se desenvolve sua argumentação (2). Apresentarei a seguir dois questionamentos
abertos para a leitura do texto: como Paulo pôde se dizer “irrepreensível” diante
da Lei (3) e como compreender a antítese que estabelece entre uma justiça que
vem da Lei (evk no,mou) e uma justiça que vem de Deus (evk qeou/) (4)? Como con-
clusão, levantaremos a questão da validade da Lei na existência cristã (5).

1. Um discurso paulino sobre a Lei?

É legítimo falar de um discurso de Paulo sobre a Lei? Heikki Räisänen não


tem essa opinião, pois nega ao apóstolo qualquer coerência sobre esse assunto. A
seu ver, as declarações de Paulo constituem um agregado de discursos disparata-
dos e contraditórios3. Ora, em minha opinião, o ponto crítico do debate atual
sobre a teologia paulina da Lei não é, ou não é mais, determinar se o apóstolo faz
uma avaliação exclusivamente negativa ou exclusivamente positiva da Torá, ou se
defende uma posição ambivalente. A new perspective on Paul valorizou definitiva-
mente o fato de que Paulo pode se entregar a um discurso tanto positivo como
negativo sobre a Torá. Isso não é uma revelação, e tanto Bultmann quanto
­Bornkamm o tinham admitido4; mas é verdade que o acento estava unilateral-
mente posto na desvalorização soteriológica da Torá.

2. Para as discordâncias introduzidas na exegese paulina desde os anos de 1980 por vários pesqui-
sadores, agrupados sob o nome de new perspective on Paul, ver minha introdução neste livro, p. 11-23.
Essa denominação provém de James D. G. Dunn num artigo de 1983:The New Perspective on Paul;
republ.: Jesus, Paul and the Law: Studies in Mark and Galatians, London, SPCK, 1990, 183-214.
3. Heikki Räisänen recusa toda lógica (se não cristológica) a propósito de Paulo sobre a
Torá: Paul and the Law, Tübingen, Mohr, 21987 (WUNT 29); ou: Philadelphia (PA), Fortress
Press, 1986.
4. Rudolf Bultmann, Theologie des Neuen Testaments, Tübingen, Mohr Siebeck, 51965, 260-270
(Neue theologische Grundrisse); Günther Bornkamm, Paul, apôtre de Jésus-Christ, Genève, Labor et
Fides, 21988, 173-184 (Le Monde de la Bible 18).

268
IV – A Lei
A Torá: um tríplice papel

Constatar que o discurso de Paulo sobre a Torá manifesta uma ambivalência,


que o apóstolo pode, então, ao mesmo tempo, anular e respeitar a Torá não acaba
por votá-lo à incoerência. Paulo, com efeito, modula seu discurso de acordo com
as diversas funções que atribui à Lei. James D. G. Dunn propõe uma tipologia dos
papéis que desempenha a Torá no discurso paulino5: 1) ela define o pecado e
serve de norma ao julgamento de Deus (1Cor 15,56; Gl 3,10; Rm 3,20; 4,15;
5,13-14; 7,13); 2) protege e dirige Israel, de Moisés à vinda do Cristo (Gl 3,19-24;
4,1-2); 3) regula a vida de Israel e configura sua fidelidade à Aliança (Gl 3,12.21;
Rm 7,7.14-25). Essa tipologia ordena os discursos paulinos sobre a Lei segundo
um tríplice papel: forense, soteriológico, ético.

Uma contradição aparente

Essa diversificação das funções atribuídas à Lei faz compreender por que
Paulo, às vezes no mesmo versículo, é capaz de unir duas afirmações contradi-
tórias sobre a Lei. Ele afirma em Gálatas 4,4-5 que Deus enviou seu Filho para
pagar a alforria dos que estão sujeitos à Lei; mas se o faz é porque ele próprio
está sujeito à Lei (geno,menoj u`po. no,mon, 4,4). A forte declaração de Romanos
7,7 “A lei seria pecado? Não, decerto!” é imediatamente seguida da declaração
segundo a qual o pecado instrumentalizou o mandamento para produzir a co-
biça (7,8)6. Em Romanos 3,21, em que aparece a famosa fórmula da justiça
divina manifestada “independentemente da Lei” (cwri.j no,mou), é indispensá-
vel ler todo o versículo: “Mas agora, independentemente da lei, a justiça de
Deus foi manifestada; a lei e os profetas lhe prestam testemunho”. Chegamos ao
último paradoxo em Gálatas 2,19, quando o apóstolo declara: “Pois é pela lei
que morri para a lei…”. Aos olhos de Paulo a Torá não mata; é o encontro en-
tre o homem e a Lei que provoca infortúnios tão graves que o homem não é
capaz de contê-los.
Como enunciado da vontade divina, a Lei merece um respeito que Paulo
não lhe recusa; ao contrário, quando ela pretende fazer viver, ela esmorece diante
do poder do pecado. Em resumo, o discurso paulino sobre a Lei está marcado por
uma dialética aceitação/recusa que flutua ao sabor dos empregos, diversificados,

5. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1998, 128-
161.Ver também sua contribuição neste livro, p. 243-266.
6. Para Charles E. B. Cranfield, é por falta da palavra “legalismo” que Paulo utiliza constante-
mente no,moj e culpa a própria Lei (St. Paul and the Law, SJTh 17 [1964] 43-68, espec. 55).

269
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
que Paulo lhe dá. Identificar que função está em jogo no enunciado evita concluir
necessariamente pela incoerência do pensamento paulino.

Mudanças de frente

Hans Hübner afirma que essa oscilação da posição de Paulo emana da mudança
de contexto histórico de uma epístola a outra (por exemplo, entre Gálatas e Roma-
nos). A polêmica contra a Lei se explica pelo combate do apóstolo contra os judai-
zantes da Galácia, ao passo que a insistência regular na obediência que lhe é devida é
motivada pelo risco de entusiasmo religioso revelado por Paulo em Corinto7.
É inegável que a frente teológica visada pelo apóstolo desempenha um papel
decisivo na ponderação de seu discurso. Resta trazer a lume a lógica de fundo
subjacente à sua posição sobre a Lei; é a essa tarefa que me dedico agora.

2. A argumentação de Paulo em Filipenses 3,2–4,1

A escolha desse texto pode surpreender. Num debate dominado pela utili-
zação de Gálatas e Romanos, Filipenses 3 geralmente não é requisitado como um
texto importante para a teologia paulina da Lei8.Todavia, ele responde a dois cri-
térios a meu ver decisivos. De uma parte, une uma afirmação sobre o estatuto da
Lei (dikaiosu,nh, no,moj, 3,6b.9) ao evento da reviravolta existencial de Paulo, a
saber, sua conversão (3,7); permite, pois, determinar se e em que medida a revira-
volta de Paulo modifica seu entendimento da Lei. De outra parte, ele vincula uma
afirmação sobre a Lei ao querigma cristológico. Ora, ao levar em conta o papel
central exercido pelo querigma no pensamento de Paulo, julgo que é na articula-
ção do querigma e da Lei que se mede o trabalho que realiza o apóstolo sobre a
questão da Torá. Satisfazendo a esses dois critérios, o texto de Filipenses 3 se pres-
ta, por conseguinte, à questão: A adesão de Paulo à fé em Cristo afetou sua com-
preensão da Lei? E em quê?

Interrupção da sequência

Uma observação do texto se impõe de início. Como se apresenta sua


argumentação?

7. Hans Hübner, Das Gesetz bei Paulus. Ein Beitrag zum Werden der paulinischen Theologie,
Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1978 (FRLANT 119).
8. Hans Hübner, por exemplo, concentra sua análise em Gálatas e Romanos, sem dar atenção
à epístola aos Filipenses (Das Gesetz bei Paulus [cf. nota 7]).

270
IV – A Lei
O encerramento da sequência é confirmado, acima, pela ruptura de tom que
acontece entre 3,1 e 3,2 e, abaixo, pela passagem em 4,2 a uma parênese específi-
ca, voltada para pessoas particulares (Evódio, Síntique…).
Uma ruptura de tom é perceptível entre 3,1 (o apelo à alegria no Senhor) e
3,2-3; esses versículos instalam uma relação polêmica entre os da verdadeira cir-
cuncisão (o “nós”) e outros, tachados de cães, partidários da castração (katatomh,).
Essa fratura serve de ponto de apoio à tese, à qual se junta Jürgen Becker, da divi-
são literária da epístola aos Filipenses9. Nesse caso, segundo os autores, Filipenses
3,2–4,1 constituiria uma segunda ou uma terceira carta na compilação epistolar
final10. Não compartilho essa tese. A primeira razão é que não se reuniram as
condições de uma tese de compilação. Com efeito, é necessário provar uma mo-
dificação da situação histórica dos destinatários de um fragmento epistolar a ou-
tro, o que os defensores da tese da divisão não foram capazes de demonstrar. A
segunda razão é que sabemos muitíssimo pouco das condições da escrituração
das cartas paulinas para afastar a ideia, plausível, de uma interrupção no ditado da
epístola. Defendo, pois, a hipótese da integridade literária da epístola, que leio
como um todo11.
Wolfgang Harnisch dedicou-se a um estudo retórico de Filipenses 312. Ele
atribui a esse trecho um objetivo essencialmente polêmico, após a construção da

9. Jürgen Becker, Paul, “L’Apôtre des nations”, trad. Joseph Hoffmann, Paris/Montréal, Cerf/
Médiaspaul, 1995, 358-366 (Théologies bibliques).
10. Jürgen Becker aborda a composição de Filipenses a partir de duas cartas, Filipenses A
(1,1–3,1; 4,2-7.10-23) e Filipenses B (3,2-21; 4,8-9): Paul, 361 (cf. nota 9). Joachim Gnilka faz
diferença entre uma carta da prisão (1,1–3,1a; 4,2-7.10-23) e uma carta polêmica (3,1b–4,1.8-9):
Der Philipperbrief, Freiburg, Herder, 31980, 5-11 (HThK 10/3). A hipótese de divisão majoritária
postula a existência original de três fragmentos, uma carta de reconhecimento (4,10-20), uma in-
formação sobre a situação do apóstolo (1,1-31; 4,4-7.21-23) e uma carta polêmica (3,2–4,3; 4,8-9).
Estado da questão em Wolfgang Schenk, Der Philipperbrief in der neuren Forschung (1945-1985),
ANRW II,25.4, Wolfgang Haase, Hildegard Temporini (Hrsg.), Berlin, de Gruyter, 1987, 3.280-
3.313; Berthold Mengel, Studien zum Philipperbrief, Tübingen, Mohr Siebeck, 1982, 82-221
(WUNT 2/8).
11. Ulrich B. Müller defende a tese da pausa de ditado após 1,1–3,1, devido à recepção de
novas informações provindas de Filipos (Der Brief des Paulus an die Philipper, Berlin, Evangelische
Verlagsanstalt, 1993, 4-14 [ThHk 11/I]). François Vouga faz constatar, aliás, que a Antiguidade gre-
co-romana não oferece nenhum exemplo de fragmentos epistolares combinados e reescritos sob
forma de carta (L’épître aux Philippiens, in Daniel Marguerat [éd.], Introduction au Nouveau Testa-
ment. Son histoire, son écriture, sa théologie, Genève, Labor et Fides, 22001, 233 [Le Monde de la
Bible 41]).
12. Wolfgang Harnisch, Die Paulinische Selstempfehlung als Plädoyer für den Gekreuzingten.
Rhetorisch-hermeneutische Erwägungen zu Phil 3, in Ulrich Mell, Ulrich B. Müller (Hrsg.),
Das Urchristentum in seiner literarischen Geschichte. Festschrift J. Becker, Berlin, de Gruyter, 1999, 133-

271
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
antítese apresentada nos versículos 2-4: de um lado, os cães, partidários da castra-
ção (v. 2), de outro lado, “nós” (h`mei/j), representantes da verdadeira circuncisão,
que adoram pelo Espírito de Deus e se baseiam no Cristo Jesus, mais que na car-
ne. Para Harnisch, o conjunto do texto (3,2–4,1) deve ser compreendido como
uma caricatura contra os concorrentes judaizantes de Paulo em Filipos. Mas essa
hipótese tropeça no imperativo do versículo 17:“Imitai-me todos juntos, irmãos”,
cujo objetivo é inegavelmente parenético, mais que polêmico13. Harnisch não
deixa de ter o mérito de pôr a questão da estruturação retórica da passagem.

Estruturação em seis períodos

Ao me inspirar em sua proposição, apresento uma estruturação em seis pe-


ríodos14. Um exórdio (v. 2-4a) estabelece uma situação polêmica, que desempata
“nós” e “cães”. Segue uma narratio (v. 4b-6); sabemos que a narratio tem por fun-
ção preparar a argumentação, ao fazer um histórico do desacordo (retórica judi-
ciária) ou ao expor os termos do debate (retórica epidíctica). Essa narratio age à
maneira da simulatio: sob a égide da “confiança na carne” (v. 4b), que ele classificou
no exórdio do lado dos adversários, Paulo simula uma enumeração de qualidades
de que pode se orgulhar; esses valores não são usurpados, mas o procedimento do
inventário é falso: ele será objeto de uma inversão de valores na propositio (é o
terceiro período). Ela (v. 7) enuncia a tese da passagem ao recorrer ao vocabulário
econômico: o que era ganho (ke,rdoj), Paulo por causa do Cristo o considera uma
perda (zhmi,a).
A probatio (quarto período) retoma e explicita a propositio, o que constitui um
procedimento frequente em Paulo, mais rabínico que greco-romano: Paulo ex-
plicita por vagas sucessivas. Prova disso é a recorrência do verbo principal da pro-
positio, h`gei/sqai (considerar), na probatio. Uma primeira vez, no versículo 8a, Paulo
retoma no presente (h`gou/mai pa,nta zhmi,an) a constatação que fazia a propositio

154 (BZNW 100). Outra proposição de estruturação retórica em Wolfgang Schenk, Die Philipper-
briefe des Paulus: Kommentar, Stuttgart, Kohlhammer, 1984, 277-280.
13. Deve-se observar que Wolfgang Harnisch facilita sua tarefa, ao desvalorizar esse versículo,
que ele vê como uma glosa e excluído do texto (“nachpaulinische[n] Glossierung des Textes”: Die
paulinische Selbstempfehlung, 150 [cf.nota 12])! A operação não me parece, na verdade, nem fun-
dada literariamente nem aceitável teologicamente.
14. Diferentemente da estrutura que vou propor, Wolfgang Harnisch atribui os versículos
12-14 a uma refutatio e subdivide a peroratio em duas partes, os versículos 15-16 e 18-21 (Die pau-
linische Selbstempfehlung, 146-151 [cf. nota 12]). A unidade ao mesmo tempo argumentativa e
temática dos versículos 12-16 leva-me, antes, a ver aí uma digressio, desenvolvendo a reserva escato-
lógica do versículo 11.

272
IV – A Lei
no passado (h[ghmai… zhmi,an); em outras palavras, o versículo 8 reitera no pre-
sente o que a propositio enunciava como um balanço do passado. Uma segunda
vez, no versículo 8b, h`gou/mai retorna, mas com uma radicalização do pensamento:
zhmi,a (a perda) dá lugar a sku,bala (o lixo). Em resumo, a tese da passagem é de-
senvolvida em duas vagas marcadas cada uma pela retomada de h`gou/mai, no versí-
culo 8a, de um lado, e nos versículos 8b-9, de outro, com um reforço do pensa-
mento; os versículos 10-11 enunciam a finalidade do raciocínio por um infinitivo
introduzido por um artigo de valor final: “para conhecê-lo” (tou/ gnw/nai auvto,n).
A probatio termina com uma fórmula reveladora da famosa reserva escatoló-
gica paulina: “a fim de chegar, se possível, à ressurreição dentre os mortos”. O
apóstolo evoca a plenitude da história, mas sob a forma de uma graça à qual ele
chegará eventualmente (ei; pwj). Os versículos 12-16 parafraseiam esse “se possí-
vel” (ei; pwj) ao distinguir o estado atual de Paulo da perfeição à qual ele tende,
sem tê-la ainda alcançado; esses versículos constituem tipicamente uma digressio,
que em retórica greco-romana não apresenta um raciocínio acessório ou fora do
assunto, mas uma digressão necessária à argumentação.
O sexto e último período da sequência é a peroratio, que é o período classi-
camente conclusivo. Ela se estende de 3,17 a 4,1 e se reata à oposição entre “nós”
e “eles” estabelecida no exórdio; o fim “deles” será a perdição, ao passo que para
“nós” será a cidade celeste (3,19-20). Peroração e exórdio fazem, pois, inclusão no
motivo polêmico, mas com duas particularidades para a peroração: de um lado, a
antítese é estendida à escatologia e qualifica o destino inverso das duas partes; de
outro lado, o quadro escatológico contraditório fica desaprumado por uma exor-
tação: “Imitai-me todos juntos (summimhtai, mou), irmãos” (3,17).

Uma condição paradigmática

É muito importante ressaltar que o conjunto da sequência acaba numa exor-


tação. Esse dispositivo indica que o “eu” de Paulo, que domina a narratio, a proposi-
tio e a probatio, recebe no fim, por essa parênese da imitação, uma condição de
exemplaridade. Em outras palavras, a volta de Paulo a seu percurso biográfico não
visa a desenvolver seu caso particular, mas a fazer emergir as características da
condição crente. Paulo se apresenta como paradigma da condição cristã: ele ar-
ranca seu percurso pessoal à singularidade para torná-lo exemplar da condição
cristã em Filipos.
O que me interessa nessa operação é a maneira como Paulo recorre à temá-
tica da Lei para descrever a condição crente antes e depois da reviravolta de Da-
masco. Verifica-se haver uma compreensão diferente da justiça (dikaiosu,nh, 3,6.9)

273
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
no centro de uma inversão na maneira de definir a existência crente antes e depois
de Damasco15.Temos boas razões para analisar o teor dessa inversão.

Filipenses 3,4-11

4b-6: narratio (à maneira de simulatio)


ei; tij dokei/ a;lloj pepoiqe,nai evn sarki,,
evgw. ma/llon
5
peritomh/| ovktah,meroj,
evk ge,nouj vIsrah,l,
fulh/j Beniami,n,
~Ebrai/oj evx ~Ebrai,wn,
kata. no,mon Farisai/oj,
6
kata. zh/loj diw,kwn th.n evkklhsi,an,
kata. dikaiosu,nhn th.n evn no,mw| geno,menoj a;memptoj.

7: propositio (inversão de valores)


[avlla.] a[tina h=n moi ke,rdh,
tau/ta h[ghmai dia. to.n Cristo.n zhmi,an.

8-11: probatio (retomada da propositio)


8
avlla. menou/nge kai. h`gou/mai pa,nta zhmi,an ei=nai
dia. to. u`pere,con th/j gnw,sewj
Cristou/ VIhsou/ tou/ kuri,ou mou,
di´ o]n ta. pa,nta evzhmiw,qhn,
kai. h`gou/mai sku,bala,
i[na Cristo.n kerdh,sw 9kai. eu`reqw/ evn auvtw/|,
mh. e;cwn evmh.n dikaiosu,nhn
th.n evk no,mou
avlla. th.n dia. pi,stewj Cristou,
th.n evk qeou/ dikaiosu,nhn evpi. th/| pi,stei,
10
tou/ gnw/nai auvto.n kai. th.n du,namin th/j avnasta,sewj auvtou/
kai. [th.n] koinwni,an [tw/n] paqhma,twn auvtou/,
summorfizo,menoj tw/| qana,tw| auvtou/,
11
ei; pwj katanth,sw eivj th.n evxana,stasin th.n evk nekrw/n.

15. Sobre o papel fundador do acontecimento de Damasco como revelação cristológica na exis-
tência e na teologia de Paulo, ver Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paulus zwischen Da-
maskus und Antiochien, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, 153-173 (WUNT 108).

274
IV – A Lei
Tradução16

4b-6: narratio (à maneira de simulatio)


Se um outro crê poder confiar na carne,
eu o posso ainda mais,
5
circunciso no oitavo dia,
da raça de Israel,
da tribo de Benjamim,
hebreu, filho de hebreus;
quanto à lei, fariseu;
6
quanto ao zelo, perseguidor da Igreja;
quanto à justiça que se encontra na lei, tornado irrepreensível.

7: propositio (inversão de valores)


Mas todas essas coisas que para mim eram ganhos,
eu as considerei como perda por causa do Cristo.

8-11: probatio (retomada da propositio)


8
Como não, eu considero que tudo é negativo
em comparação deste bem supremo que é o conhecimento
de Jesus Cristo, meu Senhor.
Por causa dele, perdi tudo,
e considero tudo isso como lixo
a fim de ganhar a Cristo 9e ser achado nele,
não já com uma justiça que seja minha,
que venha da lei,
mas com a que vem pela fé em Cristo,
a justiça que vem de Deus e se apoia na fé.
10
para conhecê-lo, a ele, e ao poder da sua ressurreição
e à comunhão com seus sofrimentos,
tornado semelhante a ele em sua morte,
11
a fim de chegar, se eu puder, ao levantamento dentre os mortos.

16. Tradução de D. Marguerat.

275
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
3. Como Paulo pode se dizer “irrepreensível” diante da Lei?

A fórmula “quanto à justiça que se encontra na lei, tornado irrepreensível


(a;memptoj)” (3,6) restitui sem dúvida nenhuma a consciência farisaica que Paulo
tinha dele mesmo antes de sua conversão17. Essa justiça, que Paulo contempla com
o pronome possessivo “minha” (3,9; voltaremos a isso adiante), corresponde ao
enunciado das qualidades enumeradas nos versículos 4b-6. Encontramos o equi-
valente no que Paulo diz dele mesmo nesta outra passagem autobiográfica, Gála-
tas 1,14:“eu progredia no judaísmo, ultrapassando a maioria dos da minha idade e
da minha raça por meu zelo transbordante pelas tradições dos meus pais”. A irre-
preensibilidade de Paulo é feita de um zelo vivo pela Lei e de uma defesa agressiva
de sua convicção.
Na compreensão que chamaremos de clássica deste texto, é nesse sentimen-
to mesmo de irrepreensibilidade que reside precisamente seu pecado; com efeito,
ele resume a autoafirmação do crente que exibe sua fidelidade diante de Deus.
Esse auge de zelo farisaico é percebido simultaneamente como o auge do pecado
religioso. Cito Günther Bornkamm em seu belo livro sobre Paulo: o apóstolo
“não nega que os pagãos, assim como os judeus, fazem de certo modo o que os
mandamentos da Lei lhes ordenam (Rm 2,14; Fl 3,6). Mas essa maneira de agir,
por mais que seja zelosa, não muda em nada o fato de que o homem é prisionei-
ro do poder maléfico do pecado; ela não poderia ‘justificá-lo’. O homem conti-
nua fechado a Deus e preocupado consigo mesmo. O Juiz zelador da Lei é, pre-
cisamente, para Paulo, o exemplo de um homem cativo do pecado: na ilusão de
sua piedade, ele imagina que o acesso a Deus, na realidade desesperadamente fe-
chado, está aberto; ou crê poder abri-lo por suas obras”18. Dessa piedosa e mortí-
fera ilusão de irrepreensibilidade a experiência do caminho de Damasco teria
livrado Paulo.

17. Assim Peter T. O’Brien, The Epistle to the Philippians, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1991,
379 (NIGTC). Otto Betz defendeu o teor tipicamente fariseu da autoapresentação de Paulo nesses
versículos (Paulus als Pharisäer nach dem Gesetz. Phil 3,5-6 als Beitrag zur Frage des frühen
Phrisäismus, in Jesus. Der Herr der Kirche. Aufsätze zur biblischen Theologie II, Tübingen, Mohr
Siebeck, 1990, 54-64 (WUNT 52]). Opinião contrária em A. Andrews Das, Paul, the Law, and the
Covenant, Peabody (MA), Hendrickson Publishers, 2001, 215, n. 1: “Nothing in the text indicates
that Phil 3,6 is to be limited to Paul’s ‘pre-Christian evaluation of himself ’. He is writing from a
Christian vantage point in his life”; essa leitura, todavia, não é recomendada, pois introduz uma
ruptura entre 4b-6a e 6b, pois somente essa última sentença depende de uma interpretação de
Paulo a posteriori.
18. Günther Bornkamm, Paul, 177 (cf. nota 4).

276
IV – A Lei
Uma moralização do judaísmo?

Hans-Joachim Schoeps, em seu Paulo, de 195919, já pusera em dúvida não


essa interpretação, mas a declaração de Paulo. O apóstolo se engana, diz em subs-
tância Schoeps. Ele moraliza repreensivelmente a Lei e perverte a obediência em
legalismo. Seu orgulho farisaico teria esquecido que a vida na Aliança é funda-
mentalmente uma parceria e que, a partir daí, a justiça é do mesmo modo um
dom de Deus como uma prestação do crente. Por conseguinte, ao não reter da
Torá senão seu imperativo, Paulo é levado a proclamar a falência dela e afirmar
que Cristo põe fim à Lei (Rm 10,4). Esse desprezo, segundo Schoeps, viria da
pertença de Paulo ao judaísmo da diáspora: contrariamente ao judaísmo palestino,
ele teria tendência a não mais perceber a articulação tradicional da Lei e da graça
no estabelecimento e na manutenção da Aliança.
Ed P. Sanders retoma o discurso, mas o desloca: a moralização da Lei não é
obra de Paulo, mas de seus leitores20. Eles é que entenderam mal a teologia da
Torá, que o apóstolo expõe corretamente. Investindo forte erudição no judaísmo
rabínico, Sanders trabalha com a compreensão da ética que ele percebe entre os
rabis tanaítas: a perfeição humana não é nem exigida nem considerada realista. O
crente judeu não está de modo algum obrigado à integralidade da obediência,
pois ela simplesmente não é atingível! Quem são os “justos” em perspectiva judai-
ca?, pergunta Sanders. São “os que respeitam a Torá e expiam suas faltas”21. A Torá,
com efeito, compreende ao mesmo tempo um registro de prescrições e um dis-
positivo de expiação dos pecados. A irrepreensibilidade de que se prevalece Paulo
não deve, portanto, ser entendida como uma reivindicação de perfeição legal, mas
como uma declaração de absoluta fidelidade à relação de Aliança, e essa relação de
Aliança engloba tanto a satisfação dos imperativos como a consciência da graça
que apaga as faltas. A justiça é do mesmo modo um agir dos crentes que obede-
cem à Torá e um agir de Deus que concede aos fiéis a herança da salvação22.

19. Hans-Joachim Schoeps, Paulus. Die Theologie des Apostels im Lichte der jüdischen Reli-
gionsgeschichte, Tübingen, Mohr, 21972 [1. ed. 1959].
20. Sigo a argumentação de Ed P. Sanders em seu Paul and Palestinian Judaism, London, SCM
Press, 1977; Paul, the Law, and the Jewish People, Philadelphia (PA), Fortress Press, 21989.
21. Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, 204 (cf. nota anterior).
22. “The righteous are those in the covenant, who, on their side, obey the Torah, while God,
for his part, gives them the promised inheritance, which includes a share in the world to come”
(ibid., 205).

277
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
O exemplo de Qumran

Ressaltemos, num primeiro momento, que a leitura da literatura de Qumran


dá razão a Sanders. O paralelo é interessante, porque não somente confirma a tese
de Sanders obtida a partir dos escritos rabínicos mas também porque Qumran
defende um ideal perfeccionista análogo ao do farisaísmo ao qual pertencia Paulo.
O rolo da Regra diz isto do membro da comunidade:
E firmará seus passos para andar de maneira perfeita em todos os caminhos de
Deus, segundo o que ele prescreveu com referência às suas festas regulamenta-
res; e não se desviará nem para a direita nem para a esquerda e não dará um só
passo fora de alguma de suas palavras (1QS 3,9c-11a)23.
É altamente significativo situar esse programa perfeccionista na perspectiva
do que lemos nos Hodayot:
Que ser de carne é capaz disso? E que criatura de barro tem o poder de realizar
tais maravilhas, uma vez que está na iniquidade desde o seio materno e até a
velhice, na falta de infidelidade? Quanto a mim, sei que não é ao homem que
pertence a justiça nem ao filho de homem a perfeição da via: é ao Deus Altís-
simo que pertencem todas as obras de justiça, ao passo que a via do homem
não é segura se não for pelo Espírito que Deus criou para ele, tendo em vista
tornar perfeito um caminho para os filhos de homem (1QH 4, 29b-32a).
Impressionante comparação: mostra a que ponto Qumran sabe ao mesmo
tempo anunciar a necessidade de um exigente programa de obediência e implo-
rar a graça de Deus, na consciência de que a perfeição exigida não é atingível.
Não se deveria, então, concluir daí que, quando Paulo se diz,“quanto à justiça que
se encontra na lei, irrepreensível” (3,6), ele apresenta tanto seus desempenhos
quanto sua confiança na fidelidade de Deus à Aliança, a qual garante eficácia ao
dispositivo de expiação das faltas? O judaísmo, repete Sanders com insistência,
construiu um sistema soteriológico que inclui dialeticamente o imperativo ético
e a certeza da misericórdia divina24. Aliás, acrescenta, Paulo prescreve que os cris-
tãos sejam irrepreensíveis: Cristo “vos confirmará até o fim, para que sejais irre-
preensíveis (avnegklh,touj) no dia de Nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 1,8; cf.
1Tm 3,13; 5,23).
Sobre esse ponto, mais uma vez temos de dar quitação a Sanders de sua lei-
tura da soteriologia judaica. O esquema dogmático Lei/Evangelho é impróprio

23. Esse texto e o seguinte são citados segundo a tradução de La Bible. Ecrits intertestamentaires,
ed. André Dupont-Sommer, Marc Philonenko, Paris, Gallimard, 1987 (La Pléiade).
24. A mesma dialética do imperativo de obediência à Lei e da necessidade do perdão divino para
o pecado encontra-se em Fílon de Alexandria (VitMos 2,147 e Fug 158).

278
IV – A Lei
para explicar uma concepção da justiça que, no judaísmo, engloba nitidamente a
consciência da graça. São inumeráveis os exegetas que assumiram o slogan do “no-
mismo da Aliança”, caro a Sanders, em que a Lei não é mais entendida como algo
que permite entrar na Aliança (getting in), mas algo que permite nela permanecer
(staying in), considerada a ação preliminar e permanente da misericórdia divina25.
Foi dita a última palavra sobre o assunto? Ainda não.

Um nomismo sinergético

De vários anos para cá, a tese densa de Sanders é posta em dúvida ou, pelo
menos, submetida a comprovação. A suspeita é dupla. Não idealiza Sanders a pie-
dade judaica quando afirma que o indicativo da graça é sempre o primeiro peran-
te o imperativo ético? De outra parte, não é necessário matizar uma tese tão densa
como a do “nomismo da Aliança” segundo os diversos componentes do judaísmo
do Segundo Templo (Sanders não explorou nem o pensamento apocalíptico, nem
os Macabeus, nem Flávio Josefo)?26
Sem querer relatar aqui o conjunto do processo em sua complexidade, des-
taco os trabalhos de Timo Eskola27. Para esse exegeta finlandês, não é certo afirmar
que em soteriologia judaica a salvação esteja incondicionalmente prometida aos
membros da Aliança. Podemos reconhecer com Sanders que “todos os que se
mantiveram na Aliança pela obediência, expiação e misericórdia de Deus perten-
cem ao grupo que será salvo”28; mas temos então de convir que a salvação é outor-
gada pelo efeito da graça divina na medida em que a fidelidade à Lei os mantém na
Aliança. Afirmar que as ações humanas têm um papel na obtenção da salvação, em
particular a obediência à Torá — o staying in caro a Sanders —, não significa, to-
davia, que saímos de uma teologia da Aliança; somente a fidelidade à Lei não é

25. “The intention and effort to be obedient constitue the condition for remaining in the covenant,
but they do not earn it” (Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, 180 [cf. nota 20]).
26. Esse empreendimento de verificação está em andamento. Os primeiros resultados confir-
mam o risco de encerrar toda a variedade do judaísmo do primeiro século sob uma mesma estru-
tura soteriológica: cf. Mark A. Seifrid, Justification by Faith: The Origin and Developoment of a
Central Pauline Theme, Leiden, Brill, 1992, 78-135 (NT.S 68); Mark A. Elliott, The Survivors of
Israel: A Reconsideration of the Theology of Pre-Christian Judaism, Grand Rapids (MI), Eerdmans,
2000; Donald A. Carson, Peter T. O’Brien, Mark A. Seifrid (ed.), Justification and Variegated Nomism,
Tübingen, Mohr Siebeck, 2001 (WUNT 140); I: The Complexities of Second Temple Judaism.
27. Remeto à sua tese: Theodicy and Predestination in Pauline Soteriology,Tübingen, Mohr Siebeck,
1998 (WUNT II/100). Podemos encontrar uma apresentação sintética desses resultados, em diálo-
go com Sanders, em Timo Eskola, Paul et le judaïsme du Second Temple. La sotériologie du Paul
avant et après E.P. Sanders, RSR 90/3 (2002) 377-398.
28. Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, 422 (cf. nota 20).

279
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
suficiente, com efeito, para obter a salvação; mas afirmar que as obras desempe-
nham um papel em relação à salvação significa que o nomismo da Aliança pressu-
põe uma sinergia entre o agir humano e o agir de Deus. Temos então de falar de
um nomismo sinergético, mais que de um puro e rigoroso nomismo da Aliança29.
Eskola vai ainda mais longe. Crê que Sanders “não pôde dizer por que o
nomismo da Aliança não era um legalismo. Pois, se ‘legalismo’ significa que a obe-
diência à Lei serve para obter a salvação, então o nomismo da Aliança é um nomismo lega-
lista. O nomismo não foi suprimido, apenas tem um novo estatuto”30. Mas a meu
ver é ir muito longe classificar sob a denominação “legalismo” todo sistema sote-
riológico que põe em relação a salvação e a obediência à Lei. Eu diria, antes, o
seguinte: podemos declarar que estamos de acordo com os traços do judaísmo do
Segundo Templo propostos por Sanders, a saber, que na diversidade de seus gru-
pos ele se conforma com a soberania de Deus para garantir a salvação de Israel.
Mas o que deve ser considerado é a estrutura soteriológica na qual o judaísmo
revive sua fé ancestral. Essa estrutura, que cobre praticamente todos os textos ju-
daicos dos séculos I e II, constrói uma polaridade entre a graça da eleição e a obediência
exigida dos crentes, entre o agir divino e o investimento exigido dos homens. É, portanto,
um exagero esvaziar a função soteriológica da obediência ao estatuir que a graça
é um dom incondicional concedido ao seu povo pelo Deus de Abraão.

O polo da graça e o polo do mandamento

Temos de abandonar a dualidade Lei/Evangelho ao supor que ela distribui-


ria arbitrariamente o imperativo do lado judeu e a graça do lado cristão. Mas negar
a indispensabilidade da obediência para a salvação no seio da fé judaica significa
optar pelo extremo inverso. Somos convocados, ao contrário, a registrar a imagem
mais exata de uma soteriologia judaica em tensão entre dois polos, adotando cada
facção sua própria ponderação: uns, como a fé apocalíptica, insistem mais na radi-
cal soberania de Deus na instauração do mundo futuro; outros, o rabinismo por
exemplo, confinam com o legalismo ao focalizar sobre a obediência necessária,
cujas condições de possibilidade são configuradas pela halakah, que os rabinos se
esforçam por ajustar. Para usar outros termos, a dimensão da Aliança é constante-
mente articulada, mas com ponderações variadas, com a dimensão forense31.

29. Timo Eskola, Paul et le judaïsme du Second Temple, 384-386 (cf. nota 27).
30. Ibid., 385.
31. Seyoon Kim põe a alternativa não sem ironia: ou temos de culpar Paulo de falso testemunho,
ou então convir que “Paul, the former Pharisee and ‘zealot’ for the law, provides a extremely valu-
able piece of evidence that the judaism of the first century A.D. contained an element of work-

280
IV – A Lei
Essa imagem encontra sua confirmação no que sabemos do sectarismo do
judaísmo na época do Segundo Templo. Penso em sua explosão em correntes di-
ferenciadas, nas quais a identidade se define por um fenômeno de sobrelanço em
relação aos valores principais do judaísmo, em particular a observância da Lei32.
Seja em Qumran, seja nos conciliábulos farisaicos, cada qual reivindica para si
possuir a correta halakah, que permite praticar a autêntica fidelidade que se nega
ao outro. De modo bem preciso, o sobrelanço entre as facções do judaísmo se
exerce no “zelo”, ou seja, na impecabilidade de uma obediência que se torna pos-
sível pela leitura da Torá específica ao grupo e distintiva do grupo.

A linhagem farisaica de Paulo

Voltemos a Paulo. O apóstolo que se exprime em Filipenses 3 era um zeloso


(um zelote) da Torá ou, antes, como pensam Räisänen e, antes dele, Schoeps, cul-
pável de uma falsificação legalista do judaísmo? O modo como Paulo constrói em
nosso texto a linhagem do crente judeu perfeito é reveladora: o quadro dos desem-
penhos enumera no versículo 5ab quatro qualidades inatas (a circuncisão, a raça, a
tribo, a dignidade de hebreu); e continua em 5c-6 com três qualidades adquiridas,
ka,ta no,mon (fariseu), ka,ta zh/loj (perseguidor da Igreja) e ka,ta dikaiosu,nhn (ir-
repreensível diante da Lei). Paulo percebeu bem, pois, a essência da identidade
judaica no sobrelanço que ela conhecia no século I: a pertença ao povo da pro-
messa, beneficiário da graça fundadora de Deus, é confirmada pelas quatro quali-
dades inatas; mas requer a ativa participação do crente, que mostram as três qua-
lidades adquiridas.
A própria estrutura da linhagem exposta nos versículos 5-6 ilustra a polari-
dade graça/obediência de que eu falava, coincidindo o primeiro polo com as
qualidades inatas e o segundo com as qualidades adquiridas. E, se o zelo pela Lei
leva Paulo a perseguir a Igreja (3,6a), não é com o objetivo de salvaguardar as
fronteiras de Israel, mas em vista de sancionar os desvios dos cristãos na obser-
vância da Torá. Nesse sentido, o combate contra os cristãos tinha uma dimensão
relativa à identidade, do mesmo modo como as imprecações do Mestre de Justiça

righteousness within its framework of covenantal nomism” (Paul and the New Perspective: Second
Thoughts on the Origin of Paul’s Gospel, Grand Rapids [MI], Eerdmans, 2002, 83).
32. Ver a respeito Joseph Blenkinsopp, Interpretation and the Tendency to Sectarianism: An
Aspect of Second Temple History, in Ed P. Sanders (ed.), Jewish and Christian Selfdefinition 2, Phila-
delphia (PA), Fortress Press, 1981, 1-26. Esclareci a partir dessa situação de conflito de identidade o
debate teológico de Mateus e de Lucas com o judaísmo (Le Nouveau Testament est-il anti-juif?
L’exemple de Matthieu et du livre des Actes, RThL 26 [1995] 145-164).

281
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
em Qumran contra seus adversários33 têm uma dimensão de identidade. Como
cada corrente reivindicava para si a autêntica definição da fidelidade à eleição, o
sobrelanço não recai sobre o polo da eleição, mas sobre o polo das condições de
pertença ao grupo. A lealdade ao grupo leva, pois, a combater o desvio.

Necessária validação da pertença

Concluamos. Como pôde Paulo se dizer “irrepreensível” diante da Lei? Sua


afirmação não é nem uma fanfarronada nem uma exclamação de autozombaria a
posteriori. O apóstolo restabelece a consciência, adquirida antes do caminho de
Damasco, de sua certeza de pertencer ao povo dos salvos. Essa convicção se basea-
va, de um lado, em seus privilégios de nascimento, que o punham no benefício
das promessas feitas aos pais, e, de outro, em seu compromisso ativo de praticar a
Torá segundo uma das vias mais exigentes do judaísmo da época (a via farisaica)
Filipenses 3,5-6 confirma que, se a salvação é concedida a Israel em virtude
de uma eleição fundadora, a pertença à salvação deve ser ainda validada por uma
dedicação indefectível à Torá. Essa dedicação engloba a segurança do perdão dos
pecados por parte da misericórdia divina, mas essa segurança não contamina a
inflexibilidade do imperativo. Temos, então, de compreender o comentário que
Paulo apresenta em Gálatas 3,10 a respeito da maldição de Deuteronômio 27,26:
“Seja maldito todo aquele que não persevera no cumprimento de tudo o que está escrito no
livro da Lei”.

4. Uma justiça que vem da Lei (evk no,mou) ou uma justiça que vem de Deus
(evk qeou/)?

A reviravolta teológica de Paulo é expressa em Filipenses 3 pela recusa de


um tipo de justiça fundada na Lei e pela adoção de uma justiça mediada pela fé
em Cristo. “… considero tudo como lixo, a fim de ganhar a Cristo e ser achado
nele, não já com uma justiça que seja minha, que venha da lei, mas com a que vem
pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus e se apoia na fé” (3,8b-9). Em parti-
cular, o que se deve entender da fórmula “uma justiça que seja minha, que venha
da lei (evk no,mou)”? A proposição evk indica certamente a origem da fonte.
Ed P. Sanders e James D. G. Dunn negaram que se trate de uma justiça auto-
adquirida pelo crente, que dispensaria a Lei, oposta a uma justiça que Deus con-

33. “Intérpretes desviantes” (1 QH 2,14), “homens enganadores” (1 QH 2,16), “profetas de


mentira” (1 QH 4,7); cf. 1 QH 2,14-19; 4,6-18 etc.

282
IV – A Lei
cede34. Eles insistem para tanto no pronome possessivo: uma justiça que seja minha
(evmh.n dikaiosu,nhn). Paulo, dizem eles, indica aqui uma justiça conforme ao par-
ticularismo de Israel, uma justiça que lhe ocorre como judeu. Essa justiça se opõe
não a uma justiça que vem de Deus, mas a uma justiça atribuída a todos segundo a fé.
Paulo renuncia então a uma justiça que lhe é atribuída como judeu, um privilégio
da eleição que é bem próprio de Israel; repudia a justiça que a Torá reserva a Israel
para endossar uma justiça outorgada a todos e a cada um.

Um deslocamento qualitativo

Dunn se apoia no contexto. “Se um outro crê poder confiar na carne…”,


começa Paulo (3,4b). O termo carne (sa,rx), tão importante em antropologia
paulina, não deve ter aqui um superinvestimento teológico, segundo ele; sa,rx não
é o lugar da afirmação do homem contra Deus (Rm 7,18.25), mas designa aqui a
pertença de identidade ao povo eleito. Paulo se expressa como o fariseu conven-
cido de que “a justiça pertence a Israel, que ela deve ser praticada pelos judeus fiéis
à Aliança e defendida como o bem de Israel para aqueles que a praticam”35. A li-
nhagem paulina dos versículos 5-6 expõe precisamente o que o apóstolo entende
por “confiança na carne”.
Por sua parte, Sanders insiste no fato de que a antítese elaborada nesses ver-
sículos de Filipenses 3 não opõe uma justiça autoadquirida a uma justiça recebida
de Deus, mas uma justiça recebida via Aliança de Israel a uma justiça recebida via
Cristo. “A única falha da Lei nessas duas passagens — e eu acrescentaria, cada vez
que Paulo discute sobre a justificação pela fé e não pela Lei — é que ela não leva
a ser cristão e, em segundo lugar, que ela recusa aos pagãos um tratamento de
igualdade com os judeus.”36 Em resumo, o único defeito da soteriologia judaica
seria… o de não ser cristã!
Esses dois exegetas recusam-se, pois, a ver na oposição “justiça da Lei versus
justiça da fé” a indicação de uma inversão de valor qualitativo. Trata-se quando
muito de um deslocamento quantitativo, em que a afirmação da justiça da fé nega
que o benefício exclusivo da graça esteja reservado a Israel. Em outras palavras: é

34. Ed P. Sanders, Paul on the Law, His Opponents, and the Jewish People in Philippians 3 and
2 Corinthians 11, in Peter Richardson, David Granskou (ed.), Anti-Judaism and the Gospel Studies,
Waterloo, Laurier University Press, 1986, 75-90, espec. 77-80; James D. G. Dunn, The Theology of
Paul the Apostle, 369-371 (cf. nota 5).
35. Ibid., 370.
36. Ed P. Sanders, Paul on the Law, His Opponents, and the Jewish People in Philippians 3 and
2 Corinthians 11, 79 (cf. nota 34).

283
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
a limitação étnica da eleição a Israel que Paulo contesta, e não o fato de que a
justiça que vem da Lei não seria concedida por Deus.

A conversão de Paulo

Convém dizer que a leitura de Dunn se apoia ainda num outro argumento:
sua compreensão da conversão de Paulo37. Fundamentalmente, Paulo descreve sua
conversão como uma vocação recebida de evangelizar as nações, de abrir, pois, a
Aliança aos não judeus.
Mas, quando Aquele que me pôs à parte desde o seio de minha mãe e me cha-
mou por sua graça houve por bem revelar em mim o seu Filho, a fim de que eu
o anuncie entre os pagãos, imediatamente, sem recorrer a nenhum conselho
humano, nem subir a Jerusalém para junto daqueles que eram apóstolos antes
de mim, parti para a Arábia, depois voltei a Damasco (Gl 1,15-17).
Na reconstrução que faz Dunn da biografia do apóstolo, a teorização sobre
a Lei seguiu, mais que precedeu, a evangelização dos pagãos. Ele quer como prova
o enunciado de Gálatas 1, em que Paulo põe toda a carga na evangelização dos
pagãos e não numa problematização da Lei. Dunn inverte, pois, o paradigma clás-
sico: os pagãos não foram admitidos na Aliança porque aos olhos de Paulo a Lei
tinha sido desacreditada soteriologicamente; mas, ao contrário, a Lei foi desacre-
ditada porque bloquearia em benefício de Israel uma salvação que Paulo tinha
recebido por missão anunciar às nações38.
Sobre esse ponto, responderíamos a Dunn que tanto Gálatas 1 como Fili-
penses 3 evocam a conversão de Paulo. A ausência de menção da Lei em Gálatas 1
não se deve ao fato de que não haveria referência a ela na experiência de Damas-
co, mas se explica pelo contexto da passagem, centrado na autoridade apostólica e
em seu mandato de evangelizar os pagãos. Minha objeção à leitura de Dunn é,
entretanto, mais fundamental; resulta de sua leitura de Filipenses 3.

Uma justiça jogada no lixo

Leiamos de novo com atenção nosso texto. Se se tratasse para Paulo de revo-
gar a “justiça que vem da Lei” por causa da restrição a Israel, bastaria a ele opor à

37. Remeto a seu artigo: “A Light to the Gentils?”, or “The End of the Law”? The Significance
of the Damascus Road Christophany for Paul, in Jesus, Paul and the Law, London, SPCK, 1990, 89-
107; ver também The Theology of Paul the Apostle, 177-179 (cf. nota 5).
38. Seyoon Kim trava uma discussão cerrada com a tese de Dunn: Paul and the New Perspective,
7-57 (cf. nota 31).

284
IV – A Lei
justiça de Israel a que vem da fé em Jesus Cristo lembrando sua vocação à evan-
gelização dos gentios. Ora, é tudo ao contrário. Como Paulo legitima a recusa da
“justiça que vem da Lei”?
Essa recusa é legitimada em três afirmações sucessivas.
Primeira afirmação (v. 7): essa justiça é considerada uma perda “por causa do
Cristo”. A afirmação é tética, brutal, absoluta. É tentador ver aqui o equivalente
paulino das duas sentenças de Jesus: “Que proveito terá o homem em ganhar o
mundo inteiro, se o paga com a própria vida?” (Mt 16,26) e “Quem quer que
ponha a mão no arado e olhe para trás não é feito para o Reino de Deus”
(Lc 9,62)39. Mas permanecemos no nível inicial; a explicação virá no versículo
seguinte. Trata-se de uma referência ao Crucificado?40 O versículo 8 nos orienta
numa outra direção.
Segunda afirmação (v. 8): essa justiça é considerada negativa “em comparação
deste bem supremo que é o conhecimento de Jesus Cristo meu Senhor”. O co-
nhecimento não recai em Deus e em sua universalidade, mas em Cristo confessa-
do como Senhor. A forma enfática “conhecimento de Jesus Cristo meu Senhor”
é única na pena de Paulo; “conhecer” tem aí o sentido veterotestamentário de
relacionar-se; o título ku,rioj, como é habitual no apóstolo, refere-se ao senhorio
do Ressuscitado na vida dos crentes.
Terceira afirmação (v. 10): “Trata-se de conhecê-lo, a ele, ao poder de sua res-
surreição e à comunhão com seus sofrimentos”. Notemos que a ressurreição é
citada em primeiro lugar, antes da cruz. Mas como compreender “o poder da
ressurreição”? O genitivo th/j avnasta,sewj auvtou/ tem um valor objetivo (o poder
de Deus que se manifesta na ressurreição) ou um valor subjetivo (o poder de Jesus
que emana da ressurreição)? Peter O’Brien admite com razão o segundo sentido:
trata-se do poder difundido pela ressurreição do Cristo41. Joseph Fitzmyer, toda-
via, observa que em Paulo a ressurreição é constantemente referida à ação de
Deus, que eleva Jesus dentre os mortos42. Considerada essa aproximação teocên-

39. François Bovon discerne aqui um possível midrash paulino das duas sentenças de Jesus:
L’homme nouveau et la Loi chez l’apôtre Paul, in Révélatons et écritures. Nouveau Testament et lit-
térature apocryphe chrétienne, Genève, Labor et Fides, 1993, 39 (Le Monde de la Bible 26).
40. Assim Jean-François Collange: “dia. to.n Cristo,n significa mais amplamente: ‘por causa do
que acontecera na Cruz […]’” (L’Epître de saint Paul aux Philippiens, Neuchâtel, Delachaux et Nies-
tlé, 1973, 114 [CNT[N] 10a]).
41. Peter T. O’Brien, The Epistle to the Philippians, 404 (cf. nota 17).
42. Joseph A. Fitzmyer, “To Know Him and the Power of His Resurrection” (Phil 3,10), in
Albert Descamps, André de Halleux (éd.), Mélanges Béda Rigaux, Gembloux, Duculot, 1970, 411-
425, espec. 418-420.

285
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
trica da ressurreição na teologia paulina, a oposição não deve se tornar dura, ainda
que o pronome possessivo avutou/ tenha sem dúvida como referente o Cristo. O
importante é considerar que a ressurreição de Jesus aparece aqui como um poder
que Paulo experimenta e que age sobre ele.
Que relação se estabelece aqui entre a justiça e a ressurreição? Essa ligação
aparece alhures, em Romanos 4, em que Paulo faz sua leitura da figura de Abraão.
Ele fala de Deus “que faz viver os mortos e chama à existência o que não existe (ta. mh.
o;nta w`j o;nta)” (4,17), para concluir sobre a fé “nAquele que, dentre os mortos, ressus-
citou Jesus, nosso Senhor, entregue por nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação”
(4,24-25). Essas fórmulas são esclarecedoras para nosso texto, pois encontramos
nele, de uma parte, a oposição entre o que é nada (ou “lixo”) e o Deus que faz
viver, e, de outra, a afirmação de que a justiça é o produto da ressurreição. O para-
lelo de Romanos 4 fornece, pois, um comentário adequado ao nosso texto. Quan-
do declara a ruína de uma identidade fundada em sua linhagem judaica farisaica,
que passa do ganho ao nada, Paulo expõe a experiência pela qual ele experimen-
tou a ação do Deus que eleva Jesus dentre os mortos43. Paulo experimentou — era
Damasco — a ressurreição de Jesus e seu poder. Esse poder se concretizou na ou-
torga de uma justiça totalmente imerecida, dom puro, em que Paulo reconheceu
o surgimento da vida no seio do que não era mais que nada. “A chave dessa revi-
ravolta reside, portanto, na aceitação de uma justiça exterior a ele mesmo.”44

Sob o horizonte da cruz

Ao poder da ressurreição Paulo acrescenta a comunhão com os sofrimentos


de Jesus. O binômio Paixão/ressurreição é uma estrutura característica da sote-
riologia paulina, que representa a salvação sub specie crucis. O presente não é ainda
o tempo do cumprimento, o tempo da plenitude45. Em seus sofrimentos, o apósto­
lo é ícone do Crucificado (2Cor 4,7-15; 12,9-10)46. A criação inteira vive na ex-
pectativa e no gemido, no horizonte da total libertação futura (Rm 8,22-27).

43. Ibid., 420: “the transformation force that vitalizes Christian life and molds the suffering of
the Christian to the pattern which is Christ”.
44. Elian Cuviller, L’homme entre mort e vie. L’existence humaine selon Philippiens 3, DBS
187 (1993) 43-55 (50).
45. Giuseppe Barbaglio desenvolveu bem esse tema da via crucis como paradigma da condição
cristã (ela define Paulo e os filipenses) sob o horizonte escatológico: La Teologia di Paolo. Abbozzi in
forma epistolare, Bologna, Dehoniane, 1999, 340-346.
46. Sobre o tema, remeto a meu artigo: 2 Corinthiens 10-13: Paul et l’expérience de Dieu, ETR
63 (1988) 497-512.

286
IV – A Lei
Quando declara, no fim do nosso texto,“a fim de chegar, se possível, à ressurreição
dentre os mortos” (3,11), o “se possível” (ei; pwj) não expressa a incerteza de
Paulo quanto à sua própria ressurreição; corresponde à reserva escatológica
que Paulo jamais deixa de mencionar desde suas discórdias com os coríntios entu-
siastas.“Se possível” garante ao cumprimento seu estatuto de promessa e o mantém
na esfera do dom. Essa preocupação explica o desenvolvimento dos versículos
12-16, que são uma digressão sobre o tema da reserva escatológica: Paulo declara
não ter chegado à perfeição, mas estar a caminho de atingi-la; à quietude do espiri-
tual alcançado ele prefere a metáfora do atleta que se lança para alcançar o prêmio.
Se eu sintetizar minha leitura, veremos que o texto de Filipenses 3 resiste à
compreensão de Sanders e Dunn assentada na função social da Lei, sem levar em
consideração o fato de que Paulo se pronuncia aqui teologicamente. O apóstolo não
compara uma justiça universal a uma justiça restritiva e particularista; ele opõe
uma justiça inata e adquirida (a linhagem judaica farisaica) a uma justiça recebida
por experimentação do poder de ressurreição de Deus em Jesus Cristo. A exorta-
ção do versículo 17 “imitai-me todos juntos, irmãos” confirma minha leitura. O
apelo à imitação não se justifica no contexto de uma redefinição da identidade do
povo de Deus por extensão aos não israelitas; ajusta-se bem, ao contrário, a uma
redefinição da identidade crente, de que Paulo se faz o paradigma. “Der Apostel
selbst wird zur Norm des Christlichen.”47 Sobre esse ponto, pois, a compreensão
clássica desse texto se confirma como a mais adequada.

“Tomando a condição de servo…”

Uma atenção ao contexto literário de Filipenses 3 fornece um sólido ponto


de apoio à compreensão que acabo de defender. Acima, em nosso texto, ressoa o
famoso hino cristológico de 2,6-11, herdado da tradição pré-paulina e ligeira-
mente emendado pelo apóstolo. Ora, entre esse hino e o nosso texto as analogias
são numerosas.
Estruturalmente, uma mesma sucessão orienta os dois textos: à renúncia su-
cede uma reabilitação soteriológica. Jesus é soberanamente exaltado e reconheci-
do como Senhor (2,9-11), ao passo que Paulo é gratificado por uma justiça ad-
quirida pela fé (3,9). Uma mesma inversão paradoxal balança a argumentação: “foi
por isso que (dio. kai,) Deus o exaltou soberanamente” (2,9a); “mas (avlla,) todas as

47. “O próprio apóstolo torna-se a norma do que é cristão”: Joachim Gnilka, Die Kehre des
Paulus zu Christus (Phil 3,2-21), in Paolo Lunardon (a cura di), Per me vivere è Christo (Filippesi 1,1-
3,21), Roma, Abbazia di S. Paolo, 2001, 137-152 (148) (Serie Monografica di “Benedictina” 14).

287
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
coisas que para mim…” (3,7). Notamos igualmente a recorrência de termos co-
muns de uma e de outra parte: o verbo cognitivo “considerar” (h`gei/sqai) não
aparece apenas por três vezes em Filipenses 3 (versículos 7, 8a e 8b), mas igual-
mente em 2,6: de condição divina, Jesus Cristo “não considerou (h`gh,sato) como
presa a agarrar o ser igual a Deus”. Da mesma maneira, Jesus “é reconhecido (eu`reqei,j)
como homem” (2,7), ao passo que Paulo “é achado” (eu`reqw/) em Cristo revestido
de uma justiça que vem dEle (3,9). Jesus tomou a condição (morfh,) de servo (2,7),
Paulo espera se tornar semelhante (summorfizo,menoj) em sua morte (3,10)48. Enfim,
um mesmo horizonte escatológico aproxima o fim dos dois textos: o reconheci-
mento universal do senhorio do Cristo (2,10-11) e a ressurreição dos mortos
(3,11-12; cf. 3,20-21).
Essas múltiplas analogias são, a pouca distância textual, muito numerosas
para ser fortuitas. Considerado o caráter tradicional do hino cristológico, temos
de concluir que Paulo modelou o texto de Filipenses 3 sobre o do hino para
construir um efeito de eco. Qual o efeito? Ao despojamento do Cristo, que en-
dossa a condição de servo, responde a desistência de Paulo, que renuncia à justiça
garantida pela Lei49. A quenose cristológica de Filipenses 2 encontra seu correlato antropo-
lógico em Filipenses 3. Assim, o Cristo não é apenas apresentado por Filipenses 2
como paradigma de humildade; é instituído como protótipo de um despojamen-
to que se reduplica na condição exemplar de Paulo. O despojamento do Cristo
configura assim um movimento no qual, depois de Paulo, todo crente é chamado
a se reconhecer (“imitai-me todos juntos, irmãos”). A solidariedade com a morte
e a ressurreição do Cristo é expressa em termos um tanto apocalípticos em nosso
texto (3,10-11); damo-nos conta agora de que esses termos são esclarecidos pelo
que Paulo disse mais acima na passagem, a saber, a precedência cristológica (2,8-9).
Porque o Cristo aceitou endossar por obediência, até a morte, a mais humilde
condição, o crente é chamado a deixar o privilégio de suas conquistas espirituais
para receber como uma pura graça a justiça que vem de Deus. Ele é desde então
“tornado conforme” ao seu Senhor (2,10).

48. Sobre essas retomadas e essas transformações de linguagem de Filipenses 2 e Filipenses


3, pode-se consultar o artigo de Roselyne Dupont-Roc, De l’hymne christologique à une vie
de Koinonia. Etude sur la lettre aux Philippiens, Estudios Bíblicos 49 (1991) 451-472, espec.
462-464.
49. William S. Kurz fala de um mesmo paradigma força/fraqueza (“power-in-weakness pat-
tern”) aplicado ao Cristo, depois a Paulo (Kenotic Imitation of Paul and Christ in Philippians 2 and
3, in Fernando F. Segovia [ed.], Discipleship in the New Testament, Philadelphia [PA], Fortress Press,
1985, 103-126 [108]).

288
IV – A Lei
Romanos 10 como releitura da experiência de Paulo

Na leitura que defendi até aqui, recusei a ideia de que a concepção da justiça
abandonada por Paulo depois da experiência de Damasco, a “justiça que seja mi-
nha, que venha da lei” (Fl 3,9), seja identificada com a justiça que Israel se reserva.
Essa interpretação, defendida por Dunn e por Sanders, mascara, com efeito, o lan-
ce soteriológico da reviravolta de que Paulo fala. Todavia, temos de acrescentar
que a leitura proposta por esses exegetas, se não convém a Filipenses 3, é adequada
a um outro texto, Romanos 10,1-350.
O apóstolo analisa nessa famosa passagem o revés de Israel diante do Evan-
gelho. O que diz ele dos israelitas? “Pois, eu sou testemunha, eles têm zelo por
Deus, mas é um zelo que não é iluminado pelo conhecimento” (zh/lon qeou/
e;cousin avll´ ouv kat´ evpi,gnwsin, Rm 10,2).Vemos aqui em oposição os mesmos
dois termos que Paulo utiliza em Filipenses 3,6a e 8b: zh/loj e gnw/sij. De novo, a
competência (o zelo) não é negada, mas desvalorizada em nome de um conheci-
mento. Esse conhecimento ausente tem igualmente por objeto a justiça: “desco-
nhecendo a justiça que vem de Deus (th.n tou/ qeou/ dikaiosu,nhn) e procurando
estabelecer a sua própria justiça (th.n ivdi,an dikaiosu,nhn), eles não se submeteram
à justiça de Deus” (Rm 10,3). A ignorância se declina como uma recusa em se
submeter à justiça que emana de Deus, em nome de uma justiça que lhes perten-
ce como coisa particular (th.n ivdi,an dikaiosu,nhn), pelo que se deve compreender
não uma justiça autoproclamada, mas uma justiça autodefinida. Em minha opi-
nião, essa “justiça própria” corresponde à linhagem de Paulo em Filipenses 3,4b-6
com suas sete qualidades inatas e adquiridas. Mas, diferentemente de Filipenses 3,
Paulo insiste aqui no fato de que essa justiça é específica de Israel, que ela perten-
ce “como coisa particular” aos israelitas. A antítese “deles” versus “de Deus” (i;dioj
— tou/ qeou/) é explícita: Israel optou por ignorância por uma justiça que ele au-
todefiniu, em prejuízo de uma justiça cujo autor é Deus. A consequência vem no
versículo 4: “pois o fim da Lei é Cristo, para que seja dada a justiça a todo homem
que crê”. Seja qual for a nuança a atribuir ao muito discutido te,loj (fim ou cum-
primento), o que Paulo atribui à linguagem não é muito contestável: com a vinda
de Cristo, a Lei encontra sua interrupção.
Penso que esses três primeiros versículos de Romanos 10 cristalizam a expe-
riência de Paulo em Damasco e operam sua releitura no contexto de uma proble-
mática específica posta em Romanos 9–11: o destino de Israel, ou mais exata-

50. A aproximação entre Filipenses 3 e Romanos 10 é igualmente explorada por Seyoon Kim,
Paul and the New Perspective, 79-80 (cf. nota 31).

289
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
mente a relação entre o particularismo israelita e o universalismo do Evangelho.
De fato, é à oposição particularismo/universalismo que se consagra o conjunto
de Romanos 10. Em outras palavras, aqui (e não em Fl 3) as categorias de Dunn
são apropriadas. O apóstolo instala uma polaridade entre a limitação da justiça a
Israel e a abertura à universalidade da fé, o que confirma o fim de 10,4: “para que
seja dada a justiça a todo homem que crê”.
O problema em que se baseia Paulo em Romanos 10 é saber por que Israel,
como povo, recusou uma salvação que, todavia, lhe estava destinada, ao passo que
os pagãos a aceitaram. Em Filipenses 3, o objetivo de Paulo é, ao contrário, expor
como e por que ele, como israelita com suas marcas de identidade, viu oscilar sua
concepção de salvação. Em Romanos 10, Paulo periodiza a história da salvação;
em Filipenses 3, ele expõe a condição exemplar do crente. O registro do pensa-
mento é histórico-salvífico no primeiro caso, soteriológico no segundo. Não
confundamos um com o outro.

5. Validade da Lei na existência cristã

Que validade a Lei mantém em regime cristão? Paulo, teremos observado,


não recorre à Lei para descrever sua condição nova em Filipenses 3. Ele se con-
centra, antes, na reserva escatológica, que desenvolve nos versículos 12-16: “Não
que eu já tenha alcançado tudo isso, ou já me tenha tornado perfeito, mas arreme-
to para tentar alcançá-lo…” (3,12a). Há necessidade de não queimar etapas, ao se
ver já projetado na esfera da ressurreição. Podemos descobrir aqui os estigmas da
crise coríntia, que tornou Paulo muito prudente diante dos entusiasmos espiri-
tuais, a menos que o apóstolo tenha tido boas razões para pensar que em Filipos a
mesma arremetida de entusiasmo se desenhava51. Seja como for, o “ainda não” es-
catológico, que preserva o direito de Deus, marca o caráter não domável da graça
que faz viver o crente.
Uma ordem ética é necessária, mas terá então o estatuto do provisório52. A ética
levará a marca desse inacabado que caminha para o cumprimento. Ora, para defi-
nir essa ordem, Paulo não apresenta a Torá, mas a figura do apóstolo como “tipo”
a imitar: “Imitai-me todos juntos, irmãos” (3,17). Por trás da figura do apóstolo
projeta-se, todavia, a figura do Cristo, o verdadeiro “tipo” segundo 3,21: é ele que,
na cidade celeste,“transfigurará nosso corpo humilhado, para torná-lo semelhante

51. Assim Joachim Gnilka, Die Kehre des Paulus zu Christus (Phil 3,2-21), 147 (cf. nota 47).
52. Para o que se segue, inspiro-me na reflexão de François Bovon, L’homme nouveau et la Loi
chez l’apôtre Paul, 42-43 (cf. nota 39).

290
IV – A Lei
ao seu corpo glorioso”. Definitivamente, ele nos tornará semelhantes a ele. A mi-
mesis do apóstolo é sempre mimesis do Cristo (“Sede meus imitadores, como eu o
sou de Cristo”, 1Cor 11,1).
O silêncio sobre a Lei quando Paulo descreve sua nova condição de crente
não visa a afastar definitivamente a Lei (vê-se bem isso nas partes éticas de suas
cartas), mas a reajustar a leitura. Esse reajuste se realiza a partir do “bem supremo
que é o conhecimento de Jesus Cristo meu Senhor” (Fl 3,8). “Conhecer Cristo”
é, pois, um lugar de verdade teológica para Paulo. A reflexão sobre a Lei não parte de
uma teorização da Lei, mas do acontecimento crístico. Sua avaliação da Torá pode,
então, ser ambivalente: negativa ou positiva. Paulo se permitirá falar do Cristo
como plenitude na descontinuidade com o judaísmo (a Lei é revogada como lu-
gar de aquisição da salvação), mas também na continuidade (a Lei é confirmada
como código moral).
Em 2 Coríntios 3,14, Paulo desenvolve a imagem do véu que recobre ­Moisés
e a Torá, e Cristo levanta esse véu. Os cristãos, em que habita o Espírito de Cristo,
são os verdadeiros intérpretes da Escritura. Essa perspectiva define a condição
cristã como a dos homens e das mulheres em quem habita o Espírito, crentes ca-
rismáticos abertos a uma leitura nova da Torá, que é uma leitura feita à luz do
Cristo. O apóstolo não estabelece uma alternativa entre Cristo e a Torá; afirma a
necessidade e a possibilidade de uma recepção da Lei “segundo o Espírito”.
Certos fatores internos ao desenvolvimento do judaísmo facilitaram a ado-
ção dessa nova e original posição de aceitar o Cristo sem deixar a Lei53. De um
lado, o judaísmo do Segundo Templo evolui no sentido de uma espiritualização
dos ritos e de uma alegorização da Escritura. É no fundo desse impulso que se
trata de compreender, por exemplo, a declaração de Paulo em Romanos 7,14:
“Certamente, sabemos que a Lei é espiritual”. De outro lado, a teologia farisaica
defende a regra segundo a qual toda Lei está contida num versículo, de sorte que
violar um mandamento significa transgredir toda a Lei (Tg 2,10; cf. Gl 3,10).
Paulo, como Jesus e no seguimento de Jesus, optará pelo mandamento do amor;
fará disso uma norma hermenêutica da Torá, que funciona como uma lei na Lei.
É inegável que Paulo tem, diante do judaísmo de seu tempo, uma percepção
diferente da Torá. Mas, enfim, Paulo não quer atacar a Lei, que permanece como
uma grandeza estrutural na compreensão da fé. O que para ele mudou — e é
mais uma vez a experiência fundadora de Damasco — é a identidade de quem faz
a lei na Lei.

53. Sobre a posição de Paulo comparada à dos rabinos, ver Hans Hübner, Das Gesetz bei Paulus,
76-80 (cf. nota 7).

291
Paulo e a Lei: a reviravolta (Filipenses 3,2–4,1)
Lei-Escritura, Lei-prescrição,
Lei-ágape na epístola aos Gálatas
Jean-Pierre LÉMONON (Lyon)

Para estimular os gálatas a se fazerem circuncidar, os adversários de Paulo apelam para a


Torá. O apóstolo opõe-se a tal pretensão, apoiando-se na própria Escritura, que relê à luz
da experiência de Damasco e na força do Espírito. A Lei não pode justificar, pois tornaria
inútil a morte do Cristo; ela é uma testemunha em favor do ágape e da fé. Paulo não se
declara contra a Lei, mas contra as obras da lei, que ele opõe à fé de Jesus Cristo. Em razão
da multiplicidade das transgressões, Deus ofereceu a Lei como uma última ajuda.

A Lei é um conceito-chave da tradição de Israel, pois é a prova da Aliança en-


tre Deus e seu povo, cuja vida regula. Mas sua interpretação é motivo de
discussões no Israel do primeiro século. Hoje, mais que no passado, graças espe-
cialmente a um melhor conhecimento do judaísmo do início de nossa era, somos
sensíveis às múltiplas interpretações a que então a Lei dava motivo. A publicação
dos manuscritos de Qumran contribuiu muito para a descoberta de um judaísmo
diverso em suas teologias. Os seguidores de Qumran tinham uma interpretação
original da Lei de Israel na medida em que a reliam como o Mestre de Justiça a
tinha interpretado. A hermenêutica original desses sectários foi uma das razões da
sua separação de outras tendências de Israel. A carta haláquica1 há pouco publica-
da é particularmente interessante. O chefe da comunidade de Qumran lembra ao

1. Ver Hugues Cousin, Jean Massonnet, Jean-Pierre Lémonon, Le monde où vivait Jésus, Paris,
Cerf, 1998, 500-505.

293
chefe de seus oponentes, desde a segunda metade do século II a.C., que a Escritu-
ra é a única fonte do direito. As divergências entre fariseus e saduceus sobre a in-
terpretação da Lei e o lugar da tradição oral são bem conhecidas2. Os próprios
discípulos de Jesus têm também eles sua própria hermenêutica, propõem-se se-
guir e interpretar a Lei segundo as práticas do Mestre. Além disso, eles releem a
Escritura à luz da morte e da ressurreição de Jesus, pois estão persuadidos de que
toda a Escritura fala do Mestre e deles mesmos.
Na própria primeira comunidade cristã, a interpretação da Lei e sua prática
são uma fonte de tensões. Questiona-se, particularmente, sobre o lugar que con-
vém dar à circuncisão e às práticas alimentares na vida da comunidade cristã
(Mt  15,1-20; Mc 7,1-23; At 15,1-29; Gl 2,1-10). O debate é tanto mais vivo
quanto mais a Lei está no coração da vida judaica3. Sua prática unifica Israel e
contribui para a manifestação de sua identidade. A Lei esteve no cerne dos confli-
tos que levaram a contendas Paulo e certos membros do movimento de Jesus que
ordinariamente chamamos de “judaizantes”, na medida em que estes atribuíam
um lugar essencial à observação da integralidade da Lei para todo crente. Neste
estudo, esclareceremos em primeiro lugar o objeto da pendência entre Paulo e
seus adversários, tal como a podemos reconstituir a partir da epístola aos Gálatas.
Depois, numa segunda seção, examinaremos a importância dada por Paulo à Lei
como Escritura ou reserva de sentido. Teremos então mais condições de com-
preender a alternativa que Paulo estabelece entre a fé e as obras da Lei. Enfim,
questionaremos a relação entre a Lei e a promessa; será a ocasião de esclarecer a
função que Paulo reconhece à Lei na epístola aos Gálatas.

1. Um debate em torno da Lei

Na epístola aos Gálatas, em geral, Paulo designa com o termo Lei a Lei dada
a Moisés no Sinai. Não sente ele a necessidade de dar tal esclarecimento; ele a
evoca de modo absoluto: a Lei ou as obras da Lei ou o livro da Lei. Assim proce-
dendo, o apóstolo remete a uma realidade bem conhecida por aqueles a quem se
dirige. A primeira comunidade cristã teve de debater sobre o lugar que convinha

2. Ver Flávio Josefo, Bell 2,162-166; Ant 13,297-298; Lucas 20,27-40; Atos 23,6-8; Le monde
où vivait Jésus, 679-680 (cf. nota anterior).
3.Ver, por exemplo, Flávio Josefo, Ap 2,173-178; notemos de modo especial esta observação
do historiador judeu: “entre nós, se perguntarmos sobre as leis ao primeiro que aparecer, ele as
dirá todas com mais facilidade que seu próprio nome”. Josefo celebrou antes a lei mosaica, o
plural utilizado nessa passagem é provocado pela comparação com a atitude dos outros povos
perante suas leis.

294
IV – A Lei
dar à Lei no seio da comunidade que se reportava ao Senhor Jesus. Acolher pagãos
no seio da comunidade de Israel não apresentava em si dificuldade, mas as condi-
ções de admissão causavam problema4. As concepções e as práticas de Paulo pro-
vocaram vivas controvérsias. A assembleia de Jerusalém (Gl 2,1-10), o incidente
de Antioquia (Gl 2,11-14) e as dificuldades encontradas nas comunidades da Ga-
lácia (Gl 4,8-11; 5,12; 6,13) o manifestam. Durante a grande missão que ele ence-
tou até a Macedônia e a Acaia, antes mesmo da assembleia de Jerusalém5, Paulo fez
que pagãos entrassem para a comunidade dos discípulos sem lhes impor nem a
circuncisão, nem os diversos ritos que manifestavam o particularismo de Israel à
vista de todos (circuncisão, sabá, práticas alimentares).
Na epístola aos Gálatas, o apóstolo deixa sua versão da assembleia de Jerusa-
lém. Segundo ele, dois fatos merecem ser ressaltados: 1) apesar dos esforços em-
pregados pelos falsos irmãos (2,4),Tito, um grego, não foi obrigado a se circunci-
dar. Ora, a verdade do Evangelho, “a liberdade que vem de Jesus Cristo”, estava
em jogo nessa confrontação. 2) Além disso, Paulo teve a satisfação de ver reconhe-
cida pelas autoridades de Jerusalém a graça que Deus lhe havia concedido ao lhe
confiar a evangelização dos incircuncisos, as nações (Gl 2,7.9). “As personalida-
des” na vida da comunidade de Jerusalém nada mais lhe impuseram (2,6); ele de-
veria simplesmente, com Barnabé, lembrar-se dos pobres (Gl 2,10)6. Ao reconhe-
cer a graça concedida a Paulo, as “colunas” admitem que Paulo tem razão em não
impor a circuncisão aos pagãos.
Em Antioquia, o debate, à primeira vista, parece de outra natureza. Cefas
viveu à maneira dos pagãos; depois, sob pressão dos gentios que se reportavam a
Tiago, ele se separa dos pagãos; poderíamos, então, pensar que ele se contenta em
pregar a existência de duas comunidades cristãs separadas. Ora, depois da censura
que Paulo lhe move, a imposição da circuncisão aos pagãos é questionada, pois

4. O judaísmo do primeiro século não foi missionário, mas sua irradiação incontestável atraía
pagãos (ver Jean-Pierre Lémonon et al., Flavius Josèphe. Un témoin juif de la Palestine au temps des
apôtres, Paris, Cerf, 1981, 40-43 [CEv Suppl 36]); a instituição dos tementes a Deus e dos prosélitos
manifesta a atração de certos pagãos em relação ao judaísmo; sobre as condições de admissão que
podiam variar de uma sensibilidade a outra, podemos nos lembrar das diferenças de ponto de vista
entre Shammai e Hillel às vésperas da era cristã: bShabbat 31a, apud Le monde où vivait Jésus, 69 (cf.
nota 1).
5. Sobre a datação dessa missão “mundial”, ver Simon Legasse, Paul apôtre. Essai de biographie
critique, Paris/Québec, Cerf/Fides, 22000, 79-92.
6. Os pobres designam os membros da comunidade de Jerusalém sem dúvida às voltas com di-
ficuldades materiais; mas para Paulo essa exigência que ele se esforça por satisfazer devia contribuir
para manifestar a comunhão entre as comunidades pagãs que ele havia fundado e a Igreja-mãe de
Jerusalém (Rm 15,27).

295
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
Cefas é acusado de querer “obrigar os pagãos a se comportarem como judeus”
(Gl 2,14b).
Enfim, nas comunidades da Galácia, pôs-se de novo a questão da circuncisão.
As pessoas que Paulo denuncia procuram impor a circuncisão aos gálatas: “eles
querem, entretanto, que sejais circuncidados para terem, na vossa carne, um título
de glória” (Gl 6,13). Eles desejam se atribuir assim o mérito de autênticas conver-
sões no país gálata, fazer esquecer a pena que Paulo se atribuiu. O apóstolo opõe
assim dois grupos de pessoas à procura de uma glória totalmente diferente. En-
quanto alguns se vangloriam por eles mesmos em sua carne, ou na carne dos ou-
tros, Paulo, de seu lado, não conhece senão um só título de glória,“a cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). O apóstolo fica indignado por encontrarem na
circuncisão um motivo de orgulho que não pertence senão à cruz de Cristo. Os
judaizantes pretendem fazer que os novos convertidos entrem numa comunidade
que vive à moda judaica. Segundo Paulo, seus adversários agem mais com a preo-
cupação de evitar qualquer perseguição do que por convicção profunda, pois “seu
único objetivo é não ser perseguidos por causa da cruz do Cristo” (Gl 6,12b). A
posição de Paulo é toda outra: “o que importa não é nem a circuncisão nem a
incircuncisão, mas a nova criação” (Gl 6,15), ponto de vista já defendido pelo
apóstolo em Gálatas 5,6: “pois, para quem está em Jesus Cristo, nem a circuncisão
nem a incircuncisão são eficazes, mas a fé que age pelo avga,ph”. Essa convicção
está, aliás, de pleno acordo com a Lei, quando a intenção dela é corretamente
entendida:“Pois toda a lei encontra o seu cumprimento nesta única palavra: Ama-
rás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14)7. O sentido da Lei é dado pelo avga,ph.
Com efeito, a fé e o avga,ph, enaltecidos por Paulo, são dois pilares da Lei.
Assim, o apóstolo lembra a importância da fé, inclusive do ponto de vista da
Lei, ao apresentar Abraão (Gl 3,6) e ao evocar em Gálatas 3,11 o dito de Habacuc
2,4: “quem é justo viverá pela fé”. Paulo está convencido de que há convergência
entre sua posição e a Lei, tal como ele a entende à luz do acontecimento Cristo e
da experiência que fez em Damasco, durante a qual compreendeu o verdadeiro
sentido da cruz (Gl 3,13-14). Sua interpretação da lei à luz das tradições farisaicas
sofreu total reviravolta com a revelação do Filho. A transformação de Paulo é
muito bem expressa na epístola aos Filipenses. Agora, o que dirige sua conduta,
bem como sua compreensão da Lei, é “o conhecimento de Jesus Cristo [seu] Se-
nhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo isso como lixo, a fim de ganhar
a Cristo e ser achado nele, não já com uma justiça que seja minha, que venha da
lei, mas com a que vem pela fé em Cristo” (Fl 3,8b-9).

7. Sobre o alcance desta tradução literal, cf. abaixo nota 15.

296
IV – A Lei
Estar “sujeito à lei” é, antes de mais nada, uma situação de fato à qual nem o
próprio Filho escapou (Gl 4,4); esse estado caracteriza certo número de pessoas
oriundas do judaísmo, entre as quais Paulo se inclui (Gl 4,5). Essa condição deter-
mina um destino particular e não deve ser partilhada pelos pagãos. Com efeito, o
orgulho que eventualmente poderia vir da Lei antes da plenitude dos tempos não
tem sentido; mais, a confiança absoluta depositada na Lei constitui um verdadeiro
obstáculo à fé em Cristo (Gl 2,21).
O pensamento de Paulo tem suas raízes em seu próprio itinerário espiritual,
mas, além disso, a obstinação dos judaizantes em valorizar a Lei leva o apóstolo a
decididas afirmações. Para uma justa avaliação do ponto de vista de Paulo em rela-
ção à Lei de Israel, é necessário não esquecer as pressões a que estão submetidas as
Igrejas da Galácia. Aliás, ao longo de toda a epístola aos Gálatas, Paulo apela para a
Escritura e, em particular, para a Lei para convencer os gálatas de que não há ne-
nhuma razão para ceder às pressões de adversários que procuram vantagens pró-
prias e não o bem das comunidades. Paulo está longe de se opor a todo uso da Lei.

2. A Lei como Escritura

A Escritura exerce um papel determinante na epístola aos Gálatas, a tal ponto


que se pode considerar que perícopes como 3,7-14 ou 4,21-31 constituem uma
verdadeira demonstração exegética. Em 3,7-14, Paulo apresenta uma notável ar-
gumentação exegética. Ele recorre ao lexema “Escritura”8 e ao verbo “escrever”9
em 3,10.13. Segundo 3,8, a Escritura previu a justificação dos pagãos pela fé; Paulo
prova isso citando Gênesis 12,3: “Todas as nações serão abençoadas em ti”. Em
3,10 e 13, as citações de Deuteronômio 27,26 vêm em auxílio das afirmações de
Paulo. Mas os recursos à Escritura não se limitam aos textos introduzidos de ma-
neira explícita. Paulo utiliza outros textos veterotestamentários sem anunciá-los. É
o caso de Habacuc 2,4 no versículo 11 e Levítico 18,5 no versículo 12. O mesmo
acontecia com o Salmo 143,2 em 2,16 e Gênesis 15,6 em 3,6. Em 5,14, sem men-
ção da Escritura, a citação de Levítico 19,18 é introduzida de maneira solene.
Em 4,21-22, de maneira explícita, Paulo convida a entender o que diz a Lei
e desenvolve o apelo à Lei, considerando-a como Escritura (ge,graptai): “Dizei-
me, vós que quereis ser submissos à lei, não ouvis o que diz esta lei? Com efeito,

8. O substantivo “Escritura” encontra-se mais uma vez em Gálatas 3,22; 4,30.


9. A forma é sempre ge,graptai, ver ainda Gálatas 4,22.27; em 1,2 e 6,11, gra,fw provém de
outra temática. Em Gálatas 3,16, o apóstolo chama a atenção para uma particularidade do texto
bíblico com o verbo “dizer”.

297
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
está escrito que Abraão teve dois filhos, um da criada, um da mulher livre”. O
apóstolo apresenta como Escritura os textos aos quais apela: Gênesis 16,15 e 21,2,
depois Gênesis 17,16; no versículo 30, o apóstolo cita Gênesis 21,10. Em 4,22.27,
Paulo utiliza o verbo gra,fw; em 4,30, o substantivo. Em 4,27, Paulo cita Isaías
54,1, quando o apóstolo convida a entender o que diz a Lei. Paulo introduz a ci-
tação de Isaías com ge,graptai, como fez em 4,22, para remeter a textos do Gêne-
sis. Lei e Escritura podem designar um mesmo corpus, e a Lei pode ser mais com-
pleta do que a Torá em sentido estrito10.
Ao interpelar os gálatas, Paulo opõe dois tipos de lei. Convida os que dese-
jam praticar a Lei a entender a Lei na medida em que é Escritura. Trata-se, então,
de compreendê-la à luz da liberdade que caracteriza a comunidade dos discípulos
desde a morte e a ressurreição do Cristo. Paulo relê os textos veterotestamentários
empregados em 4,21-31 apoiando-se numa convicção que vemos expressa na
conclusão da perícope em que ele propõe uma exegese em sentido novo: “nós
não somos filhos de uma escrava, mas da mulher livre” (v. 31). O apóstolo defende
assim a verdade do Evangelho, que é liberdade. Ao longo de toda a carta, Paulo
utiliza amplamente, aliás, a Lei-Escritura.
Essas duas perícopes (3,7-14; 4,21-31) abrem e concluem a parte na qual o
apóstolo manifesta o papel libertador do Cristo e a natureza dos membros da co-
munidade cristã. Em 3,7-14, Paulo cita textos da Torá, mas também Habacuc 2,4,
bem como em 4,21-31 cita Isaías 54,1. Sob o termo “Escritura” ou “está escrito”,
Paulo se inspira num conjunto mais amplo do que apenas a Torá. Do mesmo
modo, nas duas perícopes 2,15-21 e 3,1-6, em que expõe seu pensamento quanto
à justificação e à fonte da manifestação do Espírito, Paulo apoia suas afirmações
num texto da Escritura. Em 2,16, cita o Salmo 143,2: “ninguém será justificado”;
em 3,6, cita Gênesis 15,6. E também não limita à Torá seus empréstimos
escriturísticos.
A Lei, relida à luz da experiência de Damasco e da descoberta do verdadeiro
sentido da cruz, desempenha um papel essencial na obra de Paulo. O Cristo dá
um sentido novo à Lei. Nesse caso, como o apóstolo diz explicitamente em Gála-
tas 3,8, a Lei previu, é anúncio; mas é preciso saber entendê-la de maneira correta!
Paulo tem a preocupação de mostrar a coerência que entre o acontecimento
Cristo e a Lei. Esta última é uma reserva de sentido que o apóstolo descobre à luz
da fé. A exegese que Paulo faz dos textos da Escritura surpreende muitas vezes o

10. A tradição rabínica conhecia uma ampliação análoga muito tradicional; ver Ephraïm E.
­ rbach, Les sages d’Israel. Conceptions et croyances des maîtres du Talmud, Paris/Lagrasse, Cerf/
U
Verdier, 1996, 300-301 (Patrimoines. Judaïsme).

298
IV – A Lei
leitor moderno, habituado a outros métodos. De fato, o apóstolo pratica a herme-
nêutica do seu tempo. Como sua vida foi revolvida por Cristo, do mesmo modo
sua compreensão da Escritura foi transformada, pois o Cristo se torna seu princí-
pio de leitura. Paulo se dobra, todavia, às regras de interpretação, que pregarão
mais tarde os mestres de Israel11 e de que ele é uma antiga testemunha. Podemos
citar entre outras coisas a esse propósito a atenção aos detalhes do texto da Escri-
tura: “Não se disse: ‘e às descendências’, como se se tratasse de muitas, mas é de
uma só que se trata: ‘é à tua descendência’, isto é, Cristo” (Gl 3,16). Paulo aproxi-
ma passagens da Escritura bem diferentes, por meio de uma palavra; é essa a apro-
ximação que faz entre os textos de Gênesis utilizados em 4,21-31 e Isaías 54,1. A
mulher livre de Abraão, que dá nascimento a nações, e a Jerusalém do alto podem
ser aproximadas, pois uma e outra foram estéreis.
Os adversários de Paulo exaltaram entre os gálatas a figura de Abraão e os
convidaram a ser os verdadeiros filhos de Abraão por meio da recepção da circun-
cisão. Paulo compreende a personagem de Abraão, mas propõe sua própria inter-
pretação dessa figura tutelar, ao dar destaque a Gênesis 15,6 em Gálatas 3,6. Com
efeito, esse versículo do Gênesis liga Abraão, a justificação e a fé. Além disso, não é
Abraão o homem da promessa, e não da lei, vinda 430 anos mais tarde (Gl 3,15-22)?
A argumentação que Paulo desenvolve em torno da figura de Abraão revela a
verdadeira descendência dele, o Cristo, e a identidade de seus filhos, que, como
Isaac, são descendentes da mulher livre.
Paulo não hesita em apresentar de Abraão um rosto diferente do que emerge
no primeiro século de nossa era nas diversas correntes do judaísmo. Com efeito, a
Lei é nele valorizada, e Abraão é apresentado como o homem da Lei. Fílon, con-
temporâneo de Paulo, celebra em Abraão aquele que obedeceu aos mandamentos
divinos, “os que são comunicados pela palavra e pela Escritura, mas também os
que são mostrados pela natureza em sinais claros”12. A tradição rabínica, por sua
vez, insiste no conhecimento que o patriarca teve da Lei oral, bem como da Lei
escrita13: “Vemos que nosso pai Abraão observou a Torá antes que ela fosse dada,
pois está escrito: ‘porque Abraão obedeceu à Minha voz e guardou Minha prote-

11. Sobre as regras hermenêuticas formalizadas no século II d.C., mas atribuídas, segundo a
tradição, a Hillel, mestre que viveu às vésperas de nossa era, ver Hermann L. Strack, Günter Stem-
berger, Introduction au Talmud et au Midrash, trad. e adapt. fr. Maurice-Ruben Hayoun, Paris, Cerf,
1986, 39-43 (Patrimoines. Jadaïsme); ver ainda sobre a hermenêutica dos mestres de Israel
­Maurice-Ruben Hayoun, La littérature rabbinique, Paris, PUF, 1990, 35-56 (Que sais-je? 2526).
12. Fílon, Abr 60. Sobre os mandamentos mostrados pela natureza, segundo Fílon, ver Ephraïm
E. Urbach, Les sages d’Israël, 302-306 (cf. nota 10).
13. Ver Robert Martin-Achard, Actualité d’Abraham, Neuchâtel, Dalachaux et Niestlé, 1969,
126-127 (Bibliothèque théologique).

299
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
ção, Meus mandamentos, Meus regulamentos e Minha lei’”14. Os adversários de
Paulo apresentam a figura do patriarca para impor a circuncisão; Paulo enfatiza o
desafio, mas propõe uma leitura bem diferente. Abraão é o homem da justificação
pela fé (Gl 3,6); visam-se às nações na promessa feita a Abraão (Gl 3,8); a verdadei-
ra descendência de Abraão é o Cristo (Gl 3,15-16). Cada uma dessas afirmações é
apoiada por um texto tirado da Lei.
A Lei compreendida como Escritura-anúncio oferece a Paulo um corpus que
lhe permite reconhecer uma coerência entre a tradição de Israel e o aconteci-
mento Jesus Cristo. O apóstolo não hesita em apelar para a Lei, pois ela valoriza a
fé e o avga,ph. Em Gálatas, Paulo vai muito longe na celebração da Lei, pois em
5,14 ele recorda a verdadeira intenção dela. Somente o avga,ph lhe dá seu verdadei-
ro sentido. Com efeito, há lugar para uma leitura da Lei guiada pelo Espírito.
Paulo sabe perfeitamente que a vida no Espírito, cujo fruto é o avga,ph, não faz
mais que realizar o que anuncia a Lei, quando encontramos sua verdadeira inten-
ção. O cristão escapa agora às obrigações da Lei, não está obrigado a cumprir tudo
o que a Lei prescreve; conduzido pelo Espírito, ele não está sem Lei, pois tem a
Lei do Cristo (Gl 6,2), que está na linha correta da Lei bem entendida, pois ela lhe
dá cumprimento (5,14). Com efeito, “Vós, irmãos, é para a liberdade que fostes
chamados. Contanto que esta liberdade não dê nenhuma oportunidade à carne!
Mas pelo amor ponde-vos a serviço uns dos outros. Pois toda a lei foi cumprida
numa única palavra15, ou seja,‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’” (Gl 5,13-
14). Essa reciprocidade de novo é afirmada a propósito da lei do Cristo (6,2), lei
do avga,ph, pois somente o Cristo realizou verdadeiramente a intenção da Lei in-
dicada em Levítico 19,18, citado em Gálatas 5,14. Deve-se distinguir plhro,w de
poie,w e de avnakefalaio,w, com os quais o confundimos muitas vezes16. Plhro,w
deve ser compreendido no sentido de “satisfazer a verdadeira intenção de”17; o

14. MQiddouchin 4,14, apud Ephraïm E. Urbach, Les sages d’Israël, 332 (cf. nota 10).
15. A tradução literal que utiliza uma forma no passivo deve ser conservada, pois ela põe com
sutileza o enigma do agente. Esse texto não é um simples resumo prático da Lei; chama a atenção
para aquele que cumpre a ação; o passivo é um passivo divino; aquele que realiza o cumprimento
da Lei bem entendida está radicalmente do lado de Deus; ora, um só, o Senhor Jesus Cristo, cum-
priu a lei em sua plenitude. Depois de ter apresentado diferentes interpretações avançadas, J. Louis
Martyn recomenda esta interpretação: Galatians, New York, Doubleday, 1997, 489 (AncB 33A).
16.Ver Jean-Pierre Lémonon, Dans l’épître aux Galates Paul considère-t-il la loi mosaïque com-
me bonne?, in Camille Focant (éd.), La loi dans l’un et l’autre Testament, Paris, Cerf, 1997, 243-270,
espec. 249 (LeDiv 168).
17. Ver Stephen Westerholm, On Fulfilling the Whole Law (Gal. 5,14), SvenskExegArs 51-52
(1986-87) 229-237, espec. 234-235; ver também Israel’s Law and the Church’s Faith: Paul and his
Recent Interpreters, Grand Rapids, Eerdmans, 1988, 201-205; John M. G. Barclay, Obeying the
Truth: A Study of Paul’s Ethics in Galatians, Edinburg, T & T Clark, 1988, 140-141 (Studies of the

300
IV – A Lei
cumprimento é o que Deus previu e quis. A linguagem do Levítico dá a verdadei-
ra intenção da Lei mosaica.
Ainda que Paulo utilize a Lei como reserva de sentido e manifeste clara-
mente os vínculos entre a Lei, a fé e o avga,ph, é, todavia, inconteste que em certas
passagens da epístola aos Gálatas Paulo opõe de maneira radical fé e obras da Lei.
Examinaremos esses textos na seção seguinte.

3. Antagonismo da fé e das obras da Lei

Gálatas 2,15-21 e 3,1-6 constituem uma ponte entre a autobiografia de


Paulo e a situação dos gálatas18. Essas perícopes expõem a essência do pensamento
de Paulo, que nelas apresenta o Salmo 143,2 e Gênesis 15,6. Apoiando-se no Sal-
mo 143,2, Paulo confessa: pelas obras da Lei “ninguém é justificado”; Gênesis
15,6, citado em Gálatas 3,619, confirma a convicção de Paulo: a justificação está do
lado da fé.
Em Gálatas 2,15-21 Paulo opõe não “a fé e a Lei”, mas “a fé de Jesus Cristo”
e “as obras da Lei”20. A fé de Jesus Cristo, tradução literal da expressão grega21,
ressalta a radical gratuidade da obra do Cristo. Ele é a fonte da justificação inde-
pendentemente da resposta que o homem dá. As “obras da Lei” designam as ações
humanas efetuadas ao pôr em prática as prescrições da Lei. Dessa realização o
homem adquire orgulho, em vez de pô-lo unicamente na cruz de Jesus Cristo. As
obras da Lei são a valorização do que o homem realiza por ele mesmo; as obras
não têm nenhuma utilidade para a justificação.

New Testament and its World); In-Gyu Hong, The Law in Galatians, Sheffield, JSOT Press, 1993,
179 (JSNT.S 81).
18. Sobre a organização da epístola aos Gálatas, ver Jean-Pierre Lémonon, Galates: une lettre
unifiée, in Id. (éd.), Regards croisés sur l’épître aux Galates, Lyon, Profac, Université catholique,
2001, 27-53.
19. O versículo 6 do capítulo 3 deve ser unido ao que precede, pois constitui a resposta à per-
gunta posta nos versículos 2 e 5. Os gálatas encontrarão boa resposta à questão posta por Paulo na
medida em que se lembrarem das circunstâncias da justificação de Abraão, para quem somente a fé
intervém.
20. Os textos de Qumran também conhecem a expressão “obras da Lei”, maase ha-Torah, mas o
sentido é diferente. A carta de halakhah comporta essa expressão que antecipa o sintagma paulino
(ver Pierre Grelot, Les oeuvres de la Loi. A propos de 4 Q394-398, Revue de Qumrân 16 [1994]
441-448); em Qumran, trata-se de realizar “algumas das obras da Torá” como o chefe da comuni-
dade de Qumran as compreende e as recomenda ao chefe de seus opositores.
21. Sobre a justificação dessa tradução e sua interpretação, ver Jean-Pierre Lemonon, Loi et
justification, in Jacques Schlosser (éd.), Paul de Tarse: Congrès de l’ACFEB (Strasbourg, 1995),
Paris, Cerf, 1996, 269-292, espec. 272-273 (LeDiv 165).

301
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
Depois de ter celebrado a fonte da justificação, a fé de Jesus Cristo, inclusive
para os judeus (Gl 2,15-21), Paulo convida os gálatas (em Gl 3,1-6) a se pronun-
ciar eles mesmos sobre a origem do dom do Espírito concedido à sua comunida-
de. A oposição, então, está entre “as obras da Lei” e “a escuta da fé”. A comunidade
se constitui a partir da escuta da fé. Como faz com frequência, Paulo põe uma
questão e deseja o compromisso dos gálatas na resposta a dar; orienta a resposta ao
apelar para Abraão (Gl 3,6). Os gálatas, como o patriarca, escutaram a fé por oca-
sião da primeira proclamação do Evangelho feito pelo apóstolo. Nas duas períco-
pes em que Paulo reúne suas convicções, o antagonismo se cria entre a “fé de Jesus
Cristo”, a “escuta da fé” e as “obras da Lei”; nelas Paulo não verbera a própria Lei
nem seus mandamentos, mas certa utilização das prescrições da Lei.
Paulo encontra na Escritura pensamentos que lhe permitem apoiar seu
ponto de vista. Aquele que enceta o caminho da Lei arrisca-se à maldição na
medida em que não cumpre “tudo o que está escrito no livro da Lei”. Mais ainda,
o regime da Lei não é da ordem do da fé,“pois aquele que cumprir as prescrições
desta lei delas viverá” (os e;rga, 3,12b). Com efeito, com muita sutileza, Paulo
prossegue na crítica das obras da Lei, começada em 2,16-3,6. Em Gálatas 3,10,
apoia-se em Deuteronômio 27,26, e em 3,12 cita Levítico 18,5. Ora, a maneira
como Paulo utiliza essas citações é extraordinária. Num e noutro texto, Paulo
aborda o tema da obrigação de fazer o que a Lei pede, mas as modificações pelas
quais faz os textos passarem estão longe de não ter interesse. Em 3,10, Paulo es-
creve:“evpikata,ratoj pa/j o]j ouvk evmme,nei pa/sin toi/j gegramme,noij evn tw/| bibli,w|
tou/ no,mou tou/ poih/sai auvta,”, “Maldito seja todo aquele que não persevera no
cumprimento de tudo o que está escrito no livro da lei”. Deuteronômio 27,26
(LXX) é sensivelmente diferente:“evpikata,ratoj pa/j a;nqrwpoj, o] ouvk evmmenei/ evn
pa/sin toi/j lo,goij tou/ no,mou tou,tou tou/ poih/sai auvtou,j”. Paulo substitui um
termo preciso,“lo,goj”, por uma expressão mais vaga,“pa/sin toi/j gegramme,noij”,
o que leva à substituição do pronome auvtou,j, em concordância com lo,goj, por
auvta,, um neutro plural. O Texto massorético (TM) está próximo do texto da
Septuaginta (LXX), mas tem “as palavras”, e não “todas as palavras”. A parte do
versículo de Levítico 18,5 citada por Paulo está muito próxima do texto da
Septuaginta. Paulo escreve:“o` poih,saj auvta. zh,setai evn auvtoi/j”, onde o Levítico
dizia: “a] poih,saj a;nqrwpoj zh,setai evn auvtoi/j” (Lv 18,5LXX). No Levítico, o
referente de auvtoi/j, bem como de a], é claramente expresso (pa,nta ta.
prosta,gmata,22; ta. kri,mata), pois o início do versículo é: “kai. fula,xesqe pa,nta

22. Prosta,gma é desconhecido no Novo Testamento, ao passo que kri,ma nele se reveste mais
do sentido de julgamento do que do sentido de mandamento.

302
IV – A Lei
ta. prosta,gmata, mou kai. pa,nta ta. kri,mata, mou kai.. poih,sete auvta,”; para o Le-
vítico, a observação dos mandamentos é a condição para não morrer23. Em Paulo
o “auvta,” remete ao versículo 10, em que a fórmula é muito vaga, pois se trata de
“tudo o que está escrito no livro da Lei”. Quando Paulo considera os manda-
mentos da Lei, aos quais devem obedecer aqueles que a ela se reportam, ele não
tem, portanto, um substantivo preciso. O termo mais usual para os mandamentos
da Lei é evntolh,24; Paulo não emprega esse termo na epístola aos Gálatas, embora o
conheça25. Ele evita lo,goj, que encontra no Deuteronômio, bem como
prosta,gmata e kri,mata, que lhe oferece o Levítico. É sempre difícil interpretar
os silêncios, mas não deixa de ser verdade que Paulo parece evitar evntolh, ou ter-
mos que lhe sugeria a tradição de Israel. Em 3,10 e 12, os pronomes no neutro,
bem como pa/sin toi/j gegramme,noij evn tw/| bibli,w| tou/ no,mou, remetem a e;rga.
Pode-se supor com legitimidade que Paulo não estabelece uma equivalência pura
e simples entre esses diferentes termos. Paulo denuncia as obras e não os manda-
mentos ou as palavras da Lei. Em Gálatas, e;rgon no plural26 não se encontra em
contextos polêmicos acompanhados de qualificativos que contribuem para o
desqualificar: seis vezes sob a forma e;vrga no,mou (2,16 três vezes; 3,2.5.10) e uma
vez e;rga th/j sarko,j (5,19). Para Paulo, realizar as obras da Lei e cumprir os man-
damentos não são da mesma ordem. Os e;rga lisonjeiam a parte humana, são da
ordem da carne. Ao contrário, as palavras ou os mandamentos da Lei são comple-
tamente respeitáveis.
Todavia, Paulo não hesita em desqualificar a própria Lei como fonte de jus-
tificação, pois se a Lei pudesse, de um modo ou de outro, justificar o homem,
tornaria inútil a morte do Cristo, e, portanto, o próprio mistério cristão ficaria
desprovido de sentido:“pois se é pela lei que se alcança a justiça, foi, portanto, para
nada que Cristo morreu” (Gl 2,21). Nesse versículo,“a Lei” está bem próxima das
“obras da Lei” anteriormente desqualificadas por Paulo; mencionar nesse fim da
perícope a Lei, e não as obras da Lei, é a ocasião para Paulo de afastar a própria
Lei. Paulo explica isso em 3,7-29. Aliás, desde o início da carta o apóstolo expri-
me sua convicção: em matéria de salvação, somente Cristo livra do mundo do
mal: com efeito,“[o Senhor Jesus Cristo] se entregou por nossos pecados, a fim de

23. Ver ainda Levítico 22,9. Justino, retomando Gálatas 3,10 em Dial 95,1, e os Padres gregos
afirmarão que ninguém pode seguir “exatamente todos os mandamentos”; ver La Bible d’Alexandrie.
5, le Deutéronome, trad. e notas Cécile Dogniez, Marguerite Harl, Paris, Cerf, 1992, 283-284.
24. vEntolh, na Septuaginta traduz o mais das vezes mitsvah. Já Isaías criticava aqueles que cum-
priam os mandamentos sem neles pôr todo o seu coração (29,13).
25.Ver, por exemplo, Romanos 7,8-10.11-13; 13,9…
26. :Ergon no singular encontra-se em Gálatas 6,4, mas o sentido é outro.

303
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
nos arrancar a este mundo do mal27, de acordo com a vontade de Deus, que é
nosso Pai” (Gl 1,4). A morte e a ressurreição do Cristo seriam em vão se fosse
possível obter a justiça pela Lei. A mesma convicção de impotência da Lei mosai-
ca para a obtenção da justiça é expressa em 3,21: “Se, com efeito, houvesse sido
outorgada uma lei que tivesse o poder de fazer viver, então é da lei que proviria
de fato a justiça”; ora, não é esse o caso. Se a Lei não pode fazer viver, teremos de
nos interrogar sobre sua função; será esse o objeto da quarta parte deste artigo.
Para viver verdadeiramente com Deus, é preciso seguir o itinerário que foi
o de Paulo e que ele propõe a todo crente: “Pois é pela lei que morri para a lei, a
fim de viver para Deus. Com Cristo eu sou um crucificado” (Gl 2,19)28. O início
do versículo é particularmente difícil de interpretar em razão de sua densidade29;
o fim do versículo exprime bem a importância central da cruz, que Paulo inter-
preta em termos de amor: “vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se
entregou por mim” (Gl 2,20). Já encontramos esse tema do amor oferecido pela
própria Lei em Gálatas 5,14. Com efeito, sobre a cruz, o Cristo realizou plena-
mente a proposta do avga,ph expresso em Levítico 19,18. A Lei mal interpretada
levou Cristo à cruz, mas o Cristo, no amor que manifestou livremente nessa oca-
sião, completou-a a tal ponto que Paulo pode falar da lei do Cristo (Gl 6,2). Com
o Cristo, Paulo morre para a Lei que exige o cumprimento de tudo o que nela
está escrito (Gl 3,10). Morre para ela graças à Lei bem compreendida, lei de amor
que Cristo levou à sua plenitude pela cruz. A Lei mosaica pesava como fonte de
julgamento, pois prescrevia mandamentos que era preciso realizar (Gl 3,10); ora,
essa Lei chegou ao fim com a morte do Cristo. A cruz do Cristo comporta con-
sequências radicais para Paulo e o conjunto dos crentes; estes últimos se libertam
de uma ameaça que pesava constantemente sobre eles. Com o Cristo, Paulo está
morto para a Lei que prescreve; agora ele vive para Deus. Paulo evoca em Gálatas
2,19-20 um pensamento que ele desenvolve na epístola aos Romanos: “Com-
preendamos bem isto: o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que
seja destruído esse corpo de pecado e, assim, não sejamos mais escravos do peca-

27. Paulo utiliza de bom grado esquemas de tipo apocalíptico, ao opor dois mundos: o mundo
presente mau opõe-se ao mundo futuro; a Jerusalém atual se opõe à Jerusalém do alto (4,25-26);
nesse último caso Paulo realiza uma transformação útil à sua demonstração, pois a Jerusalém atual
se opõe à Jerusalém futura. Mas o registro apresentado por Paulo não é ignorado, pois a Jerusalém
atual tem um modelo: a Jerusalém celeste; mas a primeira não é o reflexo da segunda, conforme a
exegese de Paulo.
28. A interpretação de Gálatas 2,19 é retomada de Jean-Pierre Lémonon, Entre justification et
salut, la communauté des fils de Dieu, in Mélanges Jacques Schlosser, Paris, Cerf, 2004.
29. Sobre as diferentes interpretações propostas, ver Simon Légasse, L’epître de Paul aux Galates,
Paris, Cerf, 2000, 190-192 (LeDiv, commentaires 9).

304
IV – A Lei
do. Pois aquele que está morto está libertado do pecado. Mas se estamos mortos
com Cristo, cremos que também viveremos com ele… Do mesmo modo tam-
bém vós: considerai que estais mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus
Cristo” (Rm 6,6-8.11). Paulo está morto para a Lei mosaica que prescreve, em
razão de uma interpretação má dessa Lei que levou Cristo à morte. Mas essa Lei
que fez morrer o Cristo é também a que lhe permite realizar plenamente a es-
sência da Lei, o avga,ph.
Temos de nos interrogar agora sobre as razões da impotência da Lei para
abrir as vias da justiça. Paulo se expressa a partir de sua experiência, a qual o con-
duz a opor radicalmente duas vias. Ele encontra na própria Escritura a justificação
de convicções adquiridas; com efeito, ele se apoia em Habacuc 2,4, que imagina
como um resumo de seu Evangelho: “Aliás, é evidente que pela lei30 ninguém é
justificado diante de Deus, pois quem é justo viverá pela fé. Ora, o regime da Lei
não procede da fé; para ela, aquele que cumprir as prescrições desta lei delas vive-
rá” (Gl 3,11-12). “Ninguém é justificado diante de Deus” é a retomada do Salmo
143,2 citado em 2,16.Todavia, a impotência da Lei não vai acabar em desesperan-
ça, pois outra via de justificação se desenha, a da fé, perfeitamente indicada por
Habacuc 2,4: “quem é justo viverá pela fé”. Há uma oposição entre dois modos
de justificação: um ilusório, pelas obras da Lei, muito bem resumido em Levítico
18,5; outro que se realiza pela fé de Jesus Cristo, sua morte e a escuta da fé, cele-
brada em Gálatas 3,1-6. A experiência do Cristo fez Paulo descobrir que não
havia nada a esperar da Lei, ainda que de modo teórico: “aquele que cumprir as
prescrições (e;rga) dessa lei delas viverá” (Gl 3,12b), pois essa via expõe à maldição
aquele “que não persevera no cumprimento de tudo o que está escrito no livro da
Lei” (Gl 3,10). Aliás, os adversários de Paulo lhe dão razão, pois, ao pregar a cir-
cuncisão para os fiéis da Galácia, eles mesmos não observam a Lei (Gl 6,13); ora,
“eu atesto mais uma vez a todo homem que se faz circuncidar que ele é obrigado
a praticar a lei integralmente” (Gl 5,3), assim se expressa o fariseu Paulo. Diante da
impotência da Lei, que obriga mas não permite realizar, outra via se abre, a do
Espírito:“Mas se sois guiados pelo Espírito não estais mais sujeitos à lei” (Gl 5,18)
e, portanto, às obras da Lei.
O inimigo fundamental do homem é a carne, ou seja, o homem entregue
somente às suas forças, espreitado pelo pecado. O homem deixado a si mesmo fica
sem meios de defesa; torna-se pecado. Entre a carne e o Espírito existe um anta-
gonismo fundamental, o que Paulo jamais evoca para a relação Lei–Espírito; ora,
“os que pertencem ao Cristo crucificaram a carne com suas paixões e desejos”

30. O evn grego tem neste versículo o sentido do be hebraico; seu valor é instrumental.

305
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
(Gl 5,24), vivem sob as forças do Espírito. É do gosto de Paulo traçar uma oposi-
ção radical entre as obras da carne, que são evidentes, e o fruto discreto do Espíri-
to, que é o avga,ph (5,19-23). Nenhuma Lei age contra aquele que se beneficia dos
frutos do Espírito (5,23). Nem a Lei mosaica nem nenhuma outra lei têm poder
algum contra o que inspira o avga,ph (5,18). A carne é oposta ao Espírito (Gl 5,17),
mas não à Lei: “A carne, em seus desejos, opõe-se ao Espírito e o Espírito à carne:
entre eles há antagonismo; por isso não fazeis o que quereis”.
A epístola aos Gálatas une estreitamente ação do Cristo e recepção do Espí-
rito: “Cristo pagou para nos libertar da maldição da lei, tornando-se ele mesmo
maldição por nós, pois está escrito: ‘maldito todo aquele que é suspenso no ma-
deiro’. Isto para que a bênção de Abraão alcance os pagãos em Jesus Cristo e, as-
sim, nós recebêssemos pela fé o Espírito, objeto da promessa” (Gl 3,13-14; ver
também 4,1-7).Tendo lembrado a maldição que a Lei atrai sobre todo aquele que
não cumpre tudo o que está escrito no livro da Lei, Paulo enfatiza o papel do
Cristo, que se fez maldição para libertar da maldição, mas, sobretudo, fez se mani-
festar o caráter particularista da Lei, que não permitia que a promessa chegasse aos
pagãos. Assim, por esse resgate, todos os crentes recebem o Espírito, objeto da
promessa. A promessa feita a Abraão tinha de imediato um caráter universalista, e
o dom, objeto da promessa, era o Espírito. A Lei não dá os meios de realizar o que
ela propõe; ela não permite que o objeto da promessa, o Espírito, seja recebido.
Temos de precisar a função da Lei; se não permite a vida, tem ela um papel?

4. Promessa e Lei

Paulo cria uma tensão entre a promessa feita a Abraão orientada às nações e a
Lei. A promessa e a Lei representam duas vias diferentes: “pois se é pela lei que se
obtém a herança, não é mais pela promessa. Ora, foi por meio de uma promessa
que Deus concedeu a sua graça a Abraão” (Gl 3,18). A história da salvação começa
por uma promessa feita a Abraão; a promessa está contida na Escritura, que previu
a boa-nova resumida em Gênesis 12,3: “todas as nações serão abençoadas em ti”
(Gl 3,8); os crentes são os filhos de Abraão. Como o patriarca foi justificado a partir
da fé, é assim que os pagãos são também justificados pela fé, atesta a Escritura. A
promessa se dirigia a Abraão e à sua descendência. Ao chamar a atenção dos desti-
natários da carta para o singular “e à tua descendência”, que ele encontrou no Gê-
nesis (12,7; 13,15; 17,7), Paulo reconhece aí o anúncio do Cristo. A promessa diz
respeito ao Cristo, e por ele deve ela beneficiar as nações; seu objeto é o Espírito.
Paulo não desqualifica a Lei, mas em relação à promessa, que é dirigida a
Cristo, ela comporta certo número de fraquezas. Se Deus se comprometeu com

306
IV – A Lei
uma promessa, não é possível que ela seja posta em dúvida, pois mesmo um testa-
mento31 humano não pode ser modificado (Gl 3,17). A promessa comporta uma
permanência, uma estabilidade, o que não é o caso da Lei (Gl 3,24-25). O sentido
da Lei não é o mesmo antes e depois da vinda do Cristo, pois a Lei é dada à ex-
pectativa da fé.
Pode-se perguntar se Lei e promessa não estão em concorrência. A Lei veio
“quatrocentos e trinta anos” depois da promessa e não pode rivalizar com ela, pois
não dá a capacidade de viver (Gl 3,21). A herança e a vida são o fruto da promessa,
e não da Lei. Se levadas em conta as condições de sua manifestação, a inferiorida-
de da Lei é evidente. A promessa é dada a Abraão pelo próprio Deus. Concedida
por Deus, ela diz respeito às nações. A Lei, ao contrário, foi “promulgada pelos
anjos, pela mão de um mediador. Ora, este mediador não é mediador de um só. E
Deus é único” (Gl 3,19b-20). Paulo utiliza um tema que encontramos em outros
textos do Novo Testamento: a Lei teria sido promulgada pelos anjos (At 7,38.53;
Hb 2,2). Esses textos neotestamentários se fazem eco assim de tradições judaicas
que conhecem a presença dos anjos no Sinai. “Se na narrativa da revelação no
monte Sinai, no livro do Êxodo, os anjos não são mencionados, eles são legião nas
alusões que fazem ao acontecimento os outros livros da Bíblia32. Naturalmente,
em seus comentários, os Tanaim amalgamaram os versículos do Êxodo e os de
outras passagens.”33 Os textos neotestamentários são, pois, as testemunhas antigas
da aproximação de textos mais ou menos ligados à revelação do Sinai com um
papel atribuído aos anjos. O papel dos anjos no Sinai varia em função das tradi-
ções. Podem cantar a glória de Deus, exprimir a importância da Torá ou exercer
certa ameaça em relação a Israel. A menção de um anjo em Atos 7,38 tem, sobre-
tudo, por fim evocar o papel intermediário de Moisés; em Hebreus 2,2 a impor-
tância da palavra anunciada pelos anjos faz sobressair a importância da palavra
decisiva do Senhor Jesus. Somente Gálatas 3,19 recorre à tradição dos anjos no
Sinai para exprimir a inferioridade da Lei em relação à promessa. Com efeito,

31. Diaqh,kh dá uma conotação jurídica à promessa, que não está simplesmente ligada à ideia de
Aliança.
32.Ver Deuteronômio 33,1-3; Salmo 68,9-18. A segunda parte do versículo 2 de Deuteronômio
33 é difícil de interpretar. Os tradutores traduzem tranquilamente duas palavras hebraicas incom-
preensíveis por “(chegou) de Meribá-de-Qadesh”; para isso se apoiam em Deuteronômio 32,51. A
tradição judaica, por sua vez, entendeu qodèsh no sentido de “santidade”: “e vê aqui ‘miríades de
santidade’ (Aquila, Symmaque) ou ‘miríades de santos anjos’ (Targums, bem como vários Padres da
Igreja)”: Cécile Dogniez, Marguerite Harl, La Bible d’Alexandrie. 5, le Deutéronome, 344 (cf. nota
23). A Septuaginta leu: “e ele se apressou desde o monte Paran com miríades de Qadesh, desde sua
direita, anjos com ele”.
33. Ephraïm E. Urbach, Les sages d’Israël, 155-156 (cf. nota 10).

307
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
para a promessa a Abraão, Deus se moveu e o Cristo era o destinatário últi-
mo; para a Lei, os anjos são os promulgadores e o povo, por intermédio de Moisés,
é seu destinatário. O versículo 20, muito complexo em razão de sua densidade,
concorre para a demonstração feita por Paulo. A Lei, decerto, é divina por sua
origem, mas não foi dada pelo próprio Deus. Com efeito, “Deus é Único”, como
confessa toda a tradição judaica. Ora, nessas circunstâncias precisas, Moisés, o me-
diador, não pôde ter sido o mediador do Único, ou seja, de Deus, pois era o
­mediador de uma multidão, os anjos. Deve-se observar, além disso, que Moisés
não é mencionado no versículo. Ora, o Deus Único supõe um Evangelho
(Gl 1,7-8), e um só modo de justificação, o que vem da fé em Jesus Cristo.
Se tal é a Lei, uma questão não pode deixar de ser posta, e é o próprio Paulo
quem a formula: “Então, qual o papel da lei?” (Gl 3,19a). Da resposta paulina à
questão levantada: tw/n paraba,sewn ca,rin prosete,qh, várias interpretações fo-
ram propostas34. Uma, a mais frequentemente considerada, supõe a seguinte tradu-
ção:“em vista das transgressões, ela foi acrescentada”; a outra:“por causa das trans-
gressões, ela foi acrescentada”35. A primeira interpretação se apoia em Romanos
7,7. A Lei teria por função evidenciar e multiplicar o pecado. A segunda interpre-
tação conta com a lógica do contexto. A Lei está no prolongamento da promessa,
não pode rivalizar com ela, mas se apresenta como uma ajuda que Deus ofereceu
ao seu povo faltoso. A Lei se apresenta, então, como um último meio que Deus
põe à disposição dos seus. É como um complemento, pois na hora em que se es-
pera a realização da promessa essa última não foi suficiente. Porque havia trans-
gressões, a Lei foi dada a fim de formar uma cerca contra o pecado; ela separa,
protege36. Essa interpretação é de certas correntes do pensamento judaico segundo
as quais a Lei reforça as resistências às transgressões37, ao pecado, embora o estudo
da Torá não compense o pecado. O dom da Lei não tirou a tendência má que

34. Ca,rin pode indicar seja a causa, seja o fim; ver Walter Bauer, Griechisch-deutsches Wörterbuch
zum Neuen Testament und der frühchristlichen Literatur, ed. Kurt Aland, Barbara Aland, Berlin/New
York, de Gruyter, 61988, col. 1750.
35. A interpretação causal foi considerada por Agostinho, Calvino, Crisóstomo e, nos tempos
modernos, por Burton, Baur, Reuss. Segundo Crisóstomo e os dois últimos autores, a Lei foi dada
“para conter o pecado até o tempo de Jesus Cristo”. Pierre Bonnard, L’épître de saint Paul aux
Galates, Neuchâtel/Paris, Delachaux et Niestlé, 21972, 72 (CNT); outros dois autores dão a ca,rin
um sentido causal: David J. Lull, The Law was our Pedagogue: A Study in Galatians 3:19-25, JBL
105 (1986) 481-498, espec. 483-485; e James D. G. Dunn, A Commentary on the Epistle to the Gala-
tians, Peabody, Hendrickson, 1993, 188-190 (BNTC).
36.Ver EpArist 139.142; Fílon, Decal 17; Flávio Josefo, Ant 4, 180-193.
37. Hans-Joachim Schoeps, Paul: The Theology of the Apostle in the Light of Jewish Religious
History, London, T & T Clark, 1961, 194-195.

308
IV – A Lei
existe no homem, mas, graças à Lei, o homem tem a possibilidade de escolher o
bem: “Tua Glória passou então pelas quatro portas, a do fogo, a do tremor de ter-
ra, a do vento e a do granizo, para dar a Lei à raça de Jacó e os mandamentos à
posteridade de Israel. Mas tu não tiraste deles o coração mau para que a Lei pro-
duzisse fruto neles”38.
Essa compreensão do papel da Lei é confirmada pela apresentação dela como
“pedagoga”. No primeiro século, semelhante função não é de desvalorização39,
pois o pedagogo é muito útil para a construção da personalidade.Todavia, o peda-
gogo tem um papel limitado no tempo, ele não desaparece quando sua tarefa é
realizada, mas seu papel não pode mais ser da mesma natureza. Quando a justifi-
cação pela fé se realiza, a Lei não cumpre mais o mesmo papel. Decerto, o dom da
Lei é testemunha da misericórdia de Deus, mas a Lei não pode atingir seu fim
verdadeiro, o avga,ph, senão na força do Espírito. A vinda da justificação pela fé
marca uma ruptura na história; o papel da Lei difere segundo a época: “Mas a Es-
critura sujeitou tudo ao pecado num cativeiro comum, a fim de que, pela fé rela-
tiva a Jesus Cristo, a promessa fosse cumprida para os que creem. Antes da chegada
da fé, nós éramos mantidos em cativeiro, sob a lei, em vista da fé que devia ser
revelada” (Gl 3,22-23). Paulo expôs bem por que a Lei não pode ser fonte de
justificação; aí está sua grande fraqueza em relação à promessa, fonte de justifica-
ção em Cristo. Segundo Paulo, considerada do ponto de vista de seu conteúdo, a
própria Escritura, de que a Lei é uma parte, fala em favor da promessa realizada
pela fé de Jesus Cristo para os crentes. A Escritura encerrou tudo sob o pecado e
manifestou com clareza que até mesmo a Lei não permite ao homem ser justifi-
cado; nada lhe escapou. A Escritura, pois, faz aspirar a uma fonte de justiça, a pro-
messa. A Lei fora dada para proteger das transgressões, permitir a Israel tomar um
caminho de santidade. A Escritura, que é mais ampla do que a Lei, no sentido de
mandamento, dá um outro testemunho. Com efeito, a Escritura mostra que nada
escapa ao pecado. O acréscimo da Lei não permitiu, pois, a Israel ser eventual-
mente justificado por suas prescrições.
A Lei tinha sido dada para ajudar Israel a viver na fidelidade à promessa, mas
não alcançou seu objetivo e contribuiu para o fechamento de Israel, que dela fez
um uso negativo; ela não contribuiu para a liberdade. Em 3,23, Paulo emprega o
“nós”, pois a Lei fora dada a Israel e ele se sente membro desse povo. Ele associa a
esse “nós” os judaizantes, que têm necessidade de compreender o verdadeiro sen-

38. 4 Esdras 3,19-20; ver as observações de Ephraïm E. Urbach, Les sages d’Israël, 441 (cf. nota 10).
39.Ver os textos reunidos por Jean-Pierre Lémonon, Dans l’épître aux Galates Paul considère-
t-il la loi mosaïque comme bonne?, 263 (cf. nota 16).

309
Lei-Escritura, Lei-prescrição, Lei-ágape na epístola aos Gálatas
tido da Lei. Todavia, o apóstolo tampouco ignora os próprios gálatas, que não es-
tavam sem lei, ainda que não dispusessem da Lei mosaica. Essa interpretação
apoia-se em Gálatas 4,3: “nós, igualmente, quando éramos crianças sujeitas aos
elementos do mundo, éramos escravos”; ora, segundo Gálatas 4,9, os gálatas que
são de origem pagã querem retornar a esses princípios; com efeito, querem se
voltar para a Lei judaica, que constitui para eles um novo caminho. Mas Paulo
estende a toda forma de lei o que expressa num primeiro momento em relação à
Lei de Moisés. Nenhuma lei pode contribuir para a liberdade, que somente o
Cristo consegue.

Conclusão

Para interpretar com justiça o discurso de Paulo sobre a Lei em Gálatas, é


necessário que nos lembremos da experiência mesma de Paulo, que foi tomado
por Jesus Cristo, seu Senhor (Fl 3,8-9). Além disso, Paulo não redige um tratado
teórico sobre a Lei mosaica, mas se dirige a pessoas que são tentadas a abandonar a
liberdade conquistada pela morte e ressurreição do Cristo para se submeter aos
elementos do mundo, aos quais o apóstolo vincula a Lei. Paulo distingue funda-
mentalmente duas funções na Lei: (a) sua função de Escritura, de testemunha, (b)
e seu papel de prescrição em favor das obras nas quais o homem deposita sua con-
fiança. Paulo se apoia na Lei-Escritura, recusa-se a atribuir alguma força em vista
da salvação à Lei, que conduz à produção de obras. A Lei foi dada por Deus como
um último testemunho de sua misericórdia; todavia, ela não produziu os efeitos
esperados: ela manifestou a universalidade do pecado e curvou Israel sobre ele
mesmo. A experiência mesma dos gálatas deve conduzi-los a reconhecer o papel
da fé na justificação, bem como no dom do Espírito. Paulo tem muita preocupa-
ção em manifestar o pleno acordo entre suas afirmações e a Lei-Escritura, e não
hesita em recorrer a ela para convencer os gálatas da legitimidade de suas palavras.

310
IV – A Lei
V

O centro da teologia paulina


A cruz como princípio de constituição
da teologia paulina
Jean Zumstein (Zurique)

Ao apresentar a hipótese da coerência do pensamento paulino, o artigo se interroga sobre seu


princípio de constituição. Como herdeiro da tradição querigmática, que vê na confissão da
morte e da ressurreição do Cristo o acontecimento escatológico da salvação, Paulo constrói
sua teologia concentrando-se nesse acontecimento fundador, mas ele o interpreta de maneira
original, com a ajuda do conceito de “cruz”, de modo que “a linguagem da cruz” se torna o
princípio constitutivo de sua teologia. A linguagem da cruz se expressa em dois importantes
e diferentes discursos: a teologia da cruz e o ensinamento sobre a justificação.

1. Introdução

A pesquisa paulina está ameaçada atualmente pelo positivismo1. De uma par-


te, uma impressionante série de pesquisas de detalhes se realiza nos mais
diversos domínios (sabemos quase tudo sobre quase nada!)2. De outra parte, a
tarefa hermenêutica é negligenciada, e até encarada com ceticismo: considera-

1. Cf. o relatório com base na história da pesquisa feito por Jean-Noël Aletti, Où en sont les
études sur Saint Paul?, RSR 90 (2002) 329-351. Sobre a situação atual da pesquisa paulina, ver Sa-
muel Vollenweider, Paulus, RGG4 2 (2003) col. 1035-1066.
2. Por exemplo, na série “New Testament Theology” publicada sob a direção de James D. G.
Dunn, na Cambridge University Press, a teologia de Paulo não é mais vista como um fenômeno
global; agora, cada carta é objeto de uma pesquisa distinta. Detalhe interessante, observa-se uma
tendência inversa entre os intérpretes “leigos” de Paulo; por exemplo, Alain Badiou, Saint Paul. La
fondation de l’universalisme, Paris, PUF, 1997 (Les essais du Collège international de philosophie).

313
se ilusória toda tentativa de apresentar uma concepção de conjunto da teologia
paulina. Quando a erudição leva à insignificância, quando o mundo do texto
não é mais capaz de chegar ao leitor, a pesquisa exegética e teológica está em
declínio3. Assumiremos então o risco de propor uma leitura teológica de conjun-
to da literatura paulina4 — é o que corresponde à intentio operis. Paulo pretendia,
com efeito, transmitir uma mensagem teológica a seus destinatários. Desse
modo, estaremos conscientes do caráter necessariamente falível de tal empreen-
dimento. Nosso propósito repousa numa série de pressupostos que começare-
mos a explicitar.
Hipótese literária I. Nossa base documental é constituída pelas sete cartas pro-
topaulinas selecionadas pela crítica5 e que devem ser lidas como cartas apostóli-
cas, ou seja, como escritos circunstanciais postos a serviço da prática missionária e
pastoral do apóstolo6. Nessa lista, a carta aos Romanos — na medida em que
pertence ao gênero de obra de apresentação — ocupa uma posição particular7.
Hipótese literária II. O exame crítico das cartas protopaulinas leva a uma du-
pla constatação. De uma parte, é extremamente difícil, e até impossível, reconsti-
tuir de maneira exata a ordem cronológica das cartas. A título de exemplo, Gálatas
foi escrita antes ou depois da correspondência coríntia?8 Filipenses e Filêmon são
fruto da estada efésia ou do cativeiro romano?9 Essa incerteza torna aleatória a
tentativa de reconstruir uma história do desenvolvimento do pensamento pauli-
no10. De outra parte, o debate sobre a crítica literária das cartas paulinas — saber

3. É ilusório pensar — seria sucumbir ao mito positivista do progresso — que a pesquisa, por
exemplo paulina, está constantemente em progresso, ou que sabemos mais e melhor hoje do que
ontem.
4. Ver a breve história da pesquisa de James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Edin-
burgh, T & T Clark, 1998, 19-23.
5. Trata-se de 1 Tessalonicenses, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, Filêmon, Romanos.
6. Sobre esse ponto, ver François Vouga, Les lettres pauliniennes comme épîtres apostoliques,
in Daniel Marguerat (éd.), Introduction au Nouveau Testament. Son histoire, son écriture, sa théolo-
gie, Genève, Labor et Fides, 22001, 150-156 (biblio. 155-156) (Le Monde de la Bible 41).
7. Ver o estado da discussão em Hans-Josef Klauck, Die antike Briefliteratur und das Neue Testa-
ment, Paderborn, Schöning, 1998, 228-230 (UTB.W 2022); Jürgen Roloff, Einführung in das Neue
Testament, Stuttgart, Reclam, 1995, 132 (Universal-Bibliothek Nr. 9413).
8. Sobre esse ponto ver, por exemplo, a posição de Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testa-
ment, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 31999, 107-108 (UTB.W 1830).
9. Cf. ibid., 146-148, 159-160.
10. Contra, por exemplo, Id., Wandlungen im paulinischen Denken, Stuttgart, Katholisches Bibe-
lwerk, 1989 (SBS 137); Id., Paulus. Leben und Denken, Berlin/New York, de Gruyter, 2003, 11-25
(de Gruyter Lehrbuch); Ferdinand Hahn, Gibt es eine Entwicklung in den Aussagen über die
Rechtfertigung bei Paulus?, EvTh 53 (1993) 342-366.

314
V – O centro da teologia paulina
se as cartas canônicas, especialmente 2 Coríntios e Filipenses, são de um só trecho
ou fruto de uma compilação ulterior — permanece aberto11. Consideradas essas
duas incertezas, que no estado atual da documentação não poderiam ser supera-
das, estudaremos as sete cartas protopaulinas como um corpus literário, ou seja, le-
remos essas cartas em sua versão canônica e por um ângulo sincrônico.
Hipótese histórica I. É, evidentemente, muito correto pretender que Paulo
pertença ao mesmo tempo ao mundo judaico e ao mundo helenístico. É, portan-
to, legítimo nos interrogarmos sobre a contribuição do mundo grego ao seu pen-
samento (por exemplo, a retórica12) ou sobre a imagem falsa ou exata que ele ti-
nha do judaísmo de seu tempo13.Todavia — e nisto eu me afasto da pretensa nova
pesquisa iniciada por Sanders —, mais importante e mais decisivo, a meu ver, é seu
enraizamento no primeiro cristianismo, especialmente na comunidade de Antio-
quia no Oronte. A argumentação empregada em suas cartas está, antes de mais
nada, impregnada pelas tradições vividas, discutidas e desenvolvidas no cristianis-
mo dos helênicos de Antioquia, comunidade de base do apóstolo, de sua conver-
são até o segundo incidente de Antioquia (Gl 2,11-14).
Hipótese histórica II. Além disso, o acontecimento de Damasco é determinan-
te para o nascimento e a constituição do pensamento paulino14. Consideraremos
que, de uma parte, se trata de uma cristofania, ou seja, de uma aparição do Cruci-
ficado ressuscitado, e que, de outra, essa experiência de visão levou o agora após-
tolo a uma falsificação de suas convicções religiosas, mais precisamente a uma in-
versão de seu sistema de convicções (nova avaliação da morte do Cristo, nova
concepção da apocalíptica, nova concepção da Lei).
Hipótese hermenêutica I. Ainda que esteja certo ressaltar o aspecto circunstan-
cial e contextual dos discursos do apóstolo, é, ao contrário, falso considerá-los
puramente reativos15. Com efeito, para quem se dispõe a refletir direito por um

11.Ver a esse respeito a discrepância entre a pesquisa da geração precedente e a tendência atual
da pesquisa (por exemplo, Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, passim [cf. nota 8]).
12. Sobre esse ponto, ver o comentário programático de Hans Dieter Betz, Galatians, Philadel-
phia, Fortress Press, 1979 (Hermeneia).
13. Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, London/Philadelphia, SCM/Fortress Press, 1977;
Id., Paul, the Law, and the Jewish People, Philadelphia, Fortress, 1985.
14. Cf. a monografia de Christian Dietzfelbinger, Die Berufung des Paulus als Ursprung seiner
Theologie, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 21989 (WMANT 58); Udo Schnelle, Paulus,
77-94 (cf. nota 10).
15. Com J. Christiaan Beker, Paul’s Theology: Consistent or Inconsistent?, NTS 34 (1988) 364-
377; contra Ed P. Sanders (Paulus. Eine Einführung, Ditzingen, Reclam, 1995, 62-85 [Reclam
Universal-Bibliothek 9365]) e outros que explicam o surgimento da temática da justificação pela
fé sem as obras da Lei como instrumento circunstancial de resolução de um conflito.

315
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
instante, a identificação de uma crise e a tentativa de resolvê-la supõem o empre-
go de uma concepção apresentada com nitidez e hermeneuticamente operativa.
Não há crise em Corinto e na Galácia senão para quem se apoia numa interpre-
tação bem definida da fé cristã. Diremos, pois, que a teologia paulina é, sem difi-
culdade, consistente, ainda que as crises e os desafios enfrentados permitam sua
ampliação, seu aprofundamento e sua renovação.
Hipótese hermenêutica II. Pôr a questão do princípio de constituição da teolo-
gia paulina equivale a se interrogar sobre o princípio hermenêutico que permite ao
apóstolo decodificar ao mesmo tempo o acontecimento crístico e a realidade vi-
vida. Não se trata em primeiro lugar de um conteúdo doutrinal considerado
central (por exemplo, a doutrina da justificação pela fé16), mas de um processo
hermenêutico.
O problema. Como destacou muito bem Jürgen Becker17, a correspondência
paulina está marcada por três grandes campos teológicos. 1 Tessalonicenses está
dominada pela teologia da eleição, ao passo que a correspondência coríntia está
marcada pela teologia da cruz. Ao contrário, é a temática da justiça/justificação
que modela Gálatas, Filipenses e Romanos. A questão que se põe é a seguinte: é
possível articular esses campos teológicos? Há uma coerência entre eles?
Nossa hipótese. Paulo é o herdeiro da tradição querigmática que vê na confis-
são da morte e da ressurreição do Cristo o acontecimento escatológico da salva-
ção. Ele muda, todavia, a compreensão desse acontecimento fundador ao inter-
pretá-lo com o auxílio do conceito de “cruz”, de sorte que a linguagem da cruz se
torna o princípio constitutivo de sua teologia. A linguagem da cruz se manifesta
em dois importantes e diferentes discursos: a teologia da cruz e o ensinamento
sobre a justificação.

2. Da morte à cruz

Para evocar a morte e a ressurreição de Jesus, Paulo recorre a dois registros


diferentes. De uma parte, ele se apoia em formulações tradicionais, de outra põe
em seu lugar uma conceituação que lhe é própria.

16. Assim, por exemplo, Günther Bornkamm, Paul, Apôtre de Jésus-Christ, Genève, Labor et Fides,
2
1988 [1. ed. 1971], 167-170 (Le Monde de la Bible 18).
17. Cf. Jürgen Becker, Paulus. Der Apostel der Völker, Tübingen, Mohr Siebeck, 1989 (compa-
rar os caps. 6, 8 e 11); ed. fr.: Paul. “L’apôtre des nations”, trad. Joseph Hoffmann, Paris/Montréal,
Cerf/Médiaspaul, 1995 (Théologies bibliques).

316
V – O centro da teologia paulina
2.1. Os argumentos tradicionais

Paulo é o herdeiro e o transmissor da corrente querigmática levada pelos


helenistas a Antioquia e desenvolvida nessa comunidade. Esse fato é confirmado
pelas tradições de que fala Paulo em cada uma de suas cartas18. Citemos, a título de
ilustração, mas sem ser exaustivos, os seguintes exemplos:
a) A referência à tradição já é claramente perceptível na carta paulina mais
antiga mantida no cânon, a primeira epístola aos Tessalonicenses. Assim, os
argumentos tradicionais da pregação missionária helenística, ricos de for-
te acento apocalíptico, transparecem em 1,9-10, ao passo que 4,14 cita
uma fórmula de fé como ponto de partida da argumentação19. A cada vez,
a morte e a ressurreição do Cristo (terminologia: nekro,j e avpoqnh,|skein)
são evocadas num contexto apocalíptico.
b) Na primeira epístola de Paulo aos Coríntios, o leitor descobre em 15,3-5
uma confissão de fé clássica do primeiro cristianismo em uso em Antio-
quia articulado em torno da morte e da ressurreição do Cristo (verbo
utilizado avpoqnh,|skein). Além disso, a liturgia eucarística citada em 11,23-
26 proclama a morte do Cristo (terminologia utilizada: paradi,dwmi e
ai-ma) e sua significação soteriológica20. De novo, o acento apocalíptico é
claramente perceptível. A expressão avpoqnh,|skein u`pe,r aparece igual-
mente em 2 Coríntios 5,14-15 para conotar a significação salvífica da
morte do Cristo21.
c) O prólogo da epístola aos Gálatas oferece um exemplo suplementar des-
sa valorização da tradição que evoca a morte do Cristo. No prólogo, a

18. Sobre a presença e o papel das confissões de fé tradicionais na correspondência paulina, cf.
Jean Zumstein, Theologie als Credoauslegung. Paulus und die urchristlichen Bekenntnisse, in
­Pierre Bühler, Emidio Campi, Hans Jürgen Luibl (Hrsg.), Freiheit im Bekenntnis. Die Glaubensper-
pektive der Kirche in theologischer Perspektive, Zürich, Pano Verlag, 2000, 93-108.
19. Sobre 1 Tessalonicenses 1,9-10 e 4,14, ver Traugott Holtz, Der erste Brief an die Thessalonicher,
Zürich, Benzinger/Neukirchener Verlag, 1986, 55-62, 189-194 (EKK 13); Abraham J. Malherbe,
The Letters to the Thessalonians, New York, Doubleday, 2000, 118-122, 131-133, 265-267, 271-272
(AncB 32B).
20. Sobre 1 Coríntios 11,23-26 e 15,3-5, ver o estado da discussão no comentário de Wolfgang
Schrage, Der erste Brief an die Korinther (1Kor 11,17–14,40), Zürich/Düsseldorf/Neukirchen Vluyn,
Benzinger/Neukirchener Verlag, 1999, 9-12, 29-47 (EKK 7/3); Id., Der erste Brief an die Korinther
(1Kor 15,1–16,24), Zürich/Düsseldorf/Neukirchen Vluyn, Benzinger/Neukirchener Verlag, 2001,
18-53 (EKK 7/4).
21. Sobre essa passagem, ver Victor Paul Furnish, II Corinthians, New York, Doubleday, 1984,
309-311, 325-329 (AncB 32A); Erich Grässer, Der zweite Brief an die Korinther. Kapitel 1,1–7,16,
Gütersloh/Würzburg, Gütersloher Verlagshaus/Echter Verlag, 2002, 213-217 (ÖTBK 8/1).

317
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
saudação é feita pela adjunção de uma formulação tradicional (1,4) que
põe em destaque a morte do Cristo e seu retorno. O acento soterioló-
gico e apocalíptico é acentuado (tou/ do,ntoj e`auto.n u`per tw/n a`martiw/n
h`mw/n)22.
d) Na epístola aos Filipenses, o célebre hino cristológico (2,6-11) serve para
dar um fundamento à parênese23. A exortação ética não é, pois, motivada
por um recurso à pregação do Jesus terrestre, mas pela evocação do rebai-
xamento de Cristo que culmina em sua morte (qa,natoj) e sua elevação.
De novo, o acento apocalíptico é fundamental.
e) Finalmente, a célebre formulação tradicional que aparece no capítulo 3
da epístola aos Romanos (v. 25-26) apresenta a significação soteriológica da
morte do Cristo em termos expiatórios (i`lasth,rion, ai-ma)24. Seu ponto
alto é que a justiça de Deus se manifesta e se cumpre na morte do Filho.

2.2. As expressões paulinas

2.2.1. A semântica da cruz

Como Paulo é o herdeiro e o transmissor das formulações querigmáticas,


sua criatividade teológica se manifesta na utilização de um novo campo semânti-
co para falar da morte do Cristo: trata-se da semântica da cruz (stauro,j( stauro,w(
sustauro,w)25, a qual, diferentemente dos sinóticos, não descreve mais exclusiva-
mente o instrumento do suplício de Jesus, o modo de sua execução, mas se reveste
de uma dimensão metafórica que se trata de explicitar. Essa inovação semântica
tem um alcance decisivo, pois deixa entrever a maneira como Paulo interpreta “o
Evangelho”.

22. Cf. François Bovon, Une formule prépaulinienne dans l’épître aux Galates (Ga 4,1-5), in
Révélations et Ecritures. Nouveau Testament et littérature apocryphe chrétienne, Genève, Labor et
Fides, 1993, 13-29 (Le Monde de la Bible 26).
23. Sobre o hino e sua contextualização, ver Joachim Gnilka, Der Philipperbrief, Freiburg/Basel/
Wien, Herder, 1968, 108-147 (HThK 11/3); Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus. Ein Versuch,
über den Geschichtsbezug des christlichen Glaubens nachzudenken, Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1981, 209-217 (FRLANT 125).
24. Sobre esse ponto, ver Heinrich Schlier, Der Römerbrief, Freiburg/Basel/Wien, Herder, 1977,
109-114 (HThK 6); Konrad Haldimann, Kreuz — Wort vom Kreuz — Kreuzestheologie. Zu ei-
ner Beggriffsdifferenzierung in der Paulusinterpretation, in Andreas Dettwiler, Jean Zumstein
(Hrsg.), Kreuzestheologie im Neuen Testament, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, 13-16 (WUNT 151).
25. Sobre esse ponto, cf. minha análise detalhada em Paul et la théologie de la croix, ETR 76
(2001) 481-496, espec. 486-487; Udo Schnelle, Paulus, 486-492 (cf. nota 10).

318
V – O centro da teologia paulina
2.2.2. A cruz, o único acontecimento de salvação

A retomada da confissão da cruz e da ressurreição na semântica da cruz mos-


tra que para Paulo a cruz é o único acontecimento da salvação. A ressurreição é
uma segunda parte em relação à cruz, ela manifesta sua significação.

2.2.3. A cruz, o ponto de referência para a argumentação paulina

A cruz constitui o ponto de referência em relação ao qual se constitui a ar-


gumentação paulina. Para demonstrá-lo, limito, por princípio de economia, meu
campo textual à primeira epístola aos Coríntios, paradigma da teologia da cruz, e
à epístola aos Gálatas, paradigma do ensinamento sobre a justificação pela fé.
a) Em 1 Coríntios, duas passagens devem chamar nossa atenção26:
–– 1 Coríntios 1,17: ouv ga.r avpe,steile,n me Cristo.j bapti,zein avlla.
euvaggeli,zesqai, ouvk evn sofi,a| lo,gou, i[na mh. kevnwqh/| o` stauro.j tou/
Cristou/ (“Pois Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar
o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria do discurso, para não reduzir
a nada a cruz de Cristo”). Esse versículo dá uma definição polêmica do
Evangelho: uma pregação que recorre aos argumentos da sabedoria e
da retórica para se impor leva a esvaziar a cruz de seu sentido. De
modo muito interessante, para se exprimir Paulo utiliza a expressão o`
stauro.j tou/ Cristou/ (“a cruz de Cristo”).
–– 1 Coríntios 2,2: ouv ga.r e;krina, ti eivde,nai evn u`mi/n eiv mh.. vIhsou/n
Cristo.n kai. tou/ton evstaurwme,non (“Pois resolvi nada saber entre vós
a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado”). Toda pregação que
escolhe um outro ponto de referência que não o Cristo crucificado ou
o desenvolve é rejeitada. A escolha terminológica é novamente típica:
evstaurwme,non; observemos que se trata de um particípio perfeito pas-
sivo, o qual lembra um acontecimento decerto acontecido no passado,
mas que determina o presente.
b) Ora — fato interessante —, na epístola aos Gálatas, que não recorre de
início ao registro da teologia da cruz, mas emprega o da justificação, te-
mos duas passagens da mesma ordem27:

26. Sobre essas duas passagens, cf. Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther (1Kor 1,1–
6,11), Zürich/Braunschweig/Neukirchen-Vluyn, Benzinger/Neukirchener, 1991, 157-161, 227-
229 (EKK 7/1); Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus, 125-137, 162-165 (cf. nota 23).
27. Sobre Gálatas 3,1 e 5,11, ver Hans Dieter Betz, Galatians, 130-132, 268-270 (cf. nota 12); J.
Louis Martyn, Galatians, New York, Doubleday, 1998, 382-383, 475-477 (AncB 33A); Hans We-
der, Das Kreuz Jesu bei Paulus, 182-186, 193-197 (cf. nota 23).

319
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
–– Gálatas 5,11: evgw. de,, avdelfoi,, eiv peritomh.n e;ti khru,ssw, ti, e;ti
diw,komai; a;ra kath,rghtai to.. ska,ndalon tou/ staurou/ (“Quanto a
mim, irmãos, se ainda pregasse a circuncisão, por que, então, estaria
sendo perseguido? Nesse caso, o escândalo da cruz ficaria abolido”).
Nesses dois versículos, a cruz é apresentada como o único ponto de
referência possível por oposição à circuncisão. Uma ampliação dessa
perspectiva levaria a reduzir a nada a cruz. Com efeito, a circuncisão
e, mais amplamente, a Lei enfatizam o mundo antigo que foi aboli-
do pela cruz, a qual marca a chegada da nova criação. De novo, o
apóstolo se expressa em termos que lhe são próprios: to.. ska,ndalon
tou/ staurou/.
–– Gálatas 3,1: =W avno,htoi Gala,tai, ti.j u`ma/j evba,skanen, oi-j katV
ovfqalmou.j vIhsou/j Cristo.j proegra,fh evstaurwme,noj (“Ó gálatas es-
túpidos, quem vos seduziu, depois que, aos vossos olhos, foi exposto
Jesus Cristo crucificado?”). De modo característico, a expressão esco-
lhida para evocar a morte do Cristo é: Cristo.j… evstaurwme,noj.
Como ele vai iniciar sua argumentação que se baseia na oposição entre
a Lei e o Evangelho, Paulo convida seus leitores a dirigir seu olhar para
a cruz, centro da pregação apostólica.
A conclusão se impõe por si: Para Paulo, a “cruz” (stauro,j) é o ponto de re-
ferência tanto de um discurso dependente da teologia da cruz como do ensina-
mento da justificação.

3. A linguagem da cruz28

Se a cruz se torna o ponto de referência a partir do qual o discurso teológico


se desenvolve, é possível caracterizar esse discurso, essa linguagem da cruz (1Cor
1,18: o` lo,goj o` tou/ staurou/)? É possível evidenciar os elementos de sentido que
constituem esse ponto de vista que organiza e estrutura a reflexão teológica do
apóstolo? Esse trabalho foi conduzido de maneira programática por Ulrich Luz,

28. A distinção entre linguagem da cruz e teologia da cruz é uma das conclusões do seminário
interdisciplinar do 3o ciclo realizado em 2000-2001 pelas faculdades de Neuchâtel e de Zurique
sobre o tema “Teologia da cruz”. Foi particularmente estudada por Konrad Haldimann, Kreuz
— Wort vom Kreuz — Kreuzestheologie, 1-25 (cf. nota 24).

320
V – O centro da teologia paulina
Ernst Käsemann e Jürgen Becker29. Eu o continuei num artigo consagrado à teo-
logia da cruz30. Dá os seguintes resultados:
a) A linguagem da cruz não constitui uma interpretação da morte de Jesus
que se acrescentaria a outras interpretações já disponíveis, mas atesta uma
reviravolta hermenêutica. A cruz não é mais objeto de interpretação; ela
se torna seu sujeito. Chave hermenêutica (ou para utilizar a terminologia
de J. Christian Beker: sistema simbólico31), ela permite decifrar toda a
realidade.
b) A linguagem da cruz é de natureza polêmica. Denuncia as concepções
existentes como inválidas e anuncia a irrupção de uma nova realidade. Dá
testemunho da criatividade divina que se opõe à perdição humana.
c) A linguagem da cruz traz uma tripla afirmação:
–– A linguagem da cruz, antes de mais nada, é uma linguagem de julgamento.
Diante da cruz se manifesta a radical perdição de toda existência hu-
mana (o ser humano é surpreendido em sua loucura ou em sua pró-
pria justiça).
–– A linguagem da cruz é teológica em sentido estrito, ou seja, é uma lin-
guagem sobre Deus: faz surgir um Deus livre e inesperado que ques-
tiona todas as expectativas humanas (1Cor 1; Gl 3,10-13). Esse aspecto
é particularmente desenvolvido na teologia da cruz.
–– A palavra da cruz tem um alcance soteriológico: revela e faz nascer uma
nova possibilidade de existência. Esse aspecto é particularmente de-
senvolvido no ensinamento sobre a justificação.
d) Esse sistema simbólico se desenvolve em duas grandes formas de teologia:
a teologia da cruz e o ensinamento sobre a justificação.

4. A teologia da cruz

Precisamente porque a linguagem da cruz é fundamentalmente um princípio


hermenêutico que permite interpretar a realidade em seu todo, ela se concretiza

29. Cf. Ulrich Luz, Theologia crucis als Mittle der Theologie im Neuen Testament, EvTh 34
(1974) 116-141; Ernst Käsemann, Die Heilsbedeutung des Todes Jesu bei Paulus, in Paulinische
Perspectiven, Tübingen, Mohr Siebeck, 1969, 61-107; Jürgen Becker, Paulus, 209-254 (cf. nota 17).
30. Ver o artigo sintético de Jean Zumstein, Paul et la théologie de la croix, 481-496 (cf. nota
25), e o livro consagrado a essa temática: Andreas Dettwiler, Jean Zumstein (Hrsg.), Kreuzestheo-
logie im Neuen Testament (cf. nota 24).
31. Cf. J. Christiaan Beker, que utiliza a expressão “symbolic universe”: Paul’s Theology: Con-
sistent or Inconsistent?, 369 (cf. nota 15).

321
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
em discursos teológicos definidos. Ela não existe como uma verdade geral e atem-
poral, mas se faz sempre perceber em atos de interpretação concretos. O primeiro
deles é a teologia da cruz em sentido estrito. Caracteriza-se por uma predominância
da semântica da cruz e pelo recurso a uma argumentação de tipo paradoxal. Por
sua vez, contudo, a teologia da cruz não é um sistema fechado. Ela se modula em
função das questões particulares que se põem ao apóstolo compromissado em sua
atividade pastoral. É desenvolvida de maneira paradigmática na literatura coríntia.
Escolhemos dois exemplos para ilustrar nossa exposição. O primeiro é dado no
locus classicus da teologia da cruz, a saber, 1 Coríntios 1,18–2,5. O segundo aparece
no tratamento que faz Paulo da figura do apóstolo em 2 Coríntios. A cada vez,
tentaremos mostrar que a cruz é o princípio hermenêutico que organiza o dis-
curso e que este último emprega os elementos que anunciamos.

4.1. 1 Coríntios 1,18–2,532

O programa fundamental da teologia da cruz é desenvolvido em 1,18-25. O


leitor atento não deixará de constatar que as características que atribuímos à lin-
guagem da cruz são utilizadas nessa sequência. Convém, primeiro, perceber que
nessa passagem a linguagem da cruz (o` lo,goj o` tou/ staurou/) não é tratada como
tal, mas se aplica ao problema do conhecimento. Mais precisamente, a linguagem
da cruz acaba numa crise radical da sabedoria sob sua mais alta forma. Cai sob o
golpe dessa crítica radical a sabedoria dos gregos, que visa a ordenar o conjunto
dos fenômenos num contexto inteligível, atribuir a cada elemento da realidade
um lugar preciso e, assim, permitir ao sábio compreender o cosmo no qual ele
vive. O próprio Deus toma lugar nesse sistema, é sua origem e seu ápice. Cai
igualmente sob o golpe dessa crítica radical a tradição religiosa judaica, marcada
por uma longa coleta dos sinais dados por Deus através da longa história que ele
partilha com seu povo. O crente se julga capaz de reconhecer o Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacó, que se revelou numa história agora conhecida. Seja a sabedoria
grega, seja a piedade judaica, a cada vez o ser humano pretende poder identificar
Deus, pôr a mão nele. Mas ao fazê-lo Deus cessou de ser Deus, e o ser humano
aquele que espera tudo de Deus. O cadáver do Crucificado é o contrassenso que
faz fracassar seja a sabedoria especulativa dos gregos, seja a expectativa religiosa
judaica. É o escândalo que faz brilhar todas as representações de Deus.

32. Sobre essa passagem, cf. Wolfgang Schrage, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1–6,11),
165-203 (cf. nota 26); Samuel Vollenweider, Wesheit als Kreuzweg. Zum theologischen Pro-
gramm in 1Kor 1 und 2, in Andreas Dettwiler, Jean Zumstein (Hrsg.), Kreuzestheologie im Neuen
Testament, 43-58 (cf. nota 24); Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus, 138-155 (cf. nota 23).

322
V – O centro da teologia paulina
Essa crise radical do conhecimento, todavia, abre caminho a uma revelação
de Deus em verdade. Ao se subtrair à penhora do conhecimento humano, ao se
manifestar pela cruz, Deus se revela em sua liberdade e em sua alteridade. Sua
manifestação chega por uma reviravolta dos valores (v. 27-29: “Mas o que é lou-
cura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; o que é fraco no mun-
do, Deus o escolheu para confundir o que é forte, aquilo que no mundo é vil e
desprezado, aquilo que não é, Deus o escolheu para reduzir a nada o que é, a fim
de que nenhuma criatura possa orgulhar-se diante de Deus”).
Essa afirmação paradoxal, todavia, não deve ser separada de seu contexto. Se
Deus chega dessa maneira é porque os homens não o reconheceram em sua sabe-
doria, é a fim de fazer brilhar à luz do dia a loucura humana. Por isso é preciso
evitar erigir um novo sistema no qual Deus agora se manifestaria exclusivamente
nos valores contrários àqueles que os gregos e os judeus associavam ao divino.
Argumentar dessa maneira33 seria negar de novo a alteridade de Deus e querer
pôr a mão nele, seria sucumbir ao perigo da contradependência. De fato, o Deus
que renuncia a toda sabedoria, a toda força, a toda vida é aquele que manifesta a
verdadeira sabedoria e que é criador de vida (1,24.30). A revelação do Deus da
cruz tem um alcance soteriológico (cf. o verbo sw,|zw nos v. 18 e 21). Estaremos,
todavia, atentos ao fato de que a problemática central dos versículos 18-25 é es-
sencialmente teológica.
A crítica é unânime em reconhecer que, se a linguagem da cruz trata de um
problema do conhecimento nos versículos 18-25, uma mudança significativa se
realiza nos versículos 26-31, depois em 2,1-434. Nos versículos 26-31, a linguagem
da cruz aplica-se à realidade eclesial. As características que valiam da proclamação
do Cristo crucificado — a escandalosa reviravolta de valores a que ela induzia —
são transferidas para a comunidade coríntia. A eleição paradoxal dos “vadios” co-
ríntios é chamada a pôr o mundo em crise, a fazê-lo abandonar toda pretensão e
por isso mesmo a fazê-lo descobrir o único fundamento no qual o ser humano é
chamado a pôr sua confiança a fim de receber a vida em plenitude: o Cristo cru-
cificado (v. 30-31). Um último deslocamento acontece em 2,14. A linguagem da

33.Ver, por exemplo:,Wolfgang Shrage, Der erste Brief an die Korinther (1 Kor 1,1–6,11), 221-222
(cf. nota 26); Jürgen Becker, Paulus, 220-221 (cf. nota 17). Contra o perigo da contradependência,
Hans Weder (Das Kreuz Jesu bei Paulus, 161 [cf. nota 23]) escreve, com razão: “Weil der Ruf Gottes
schließlich in der geschichtlichen Gestalt des Kreuzes an die Korinther ergangen ist, ist es Paulus
verwehrt, die soziologische Struktur der Gemeinde etwa im Sinne einer Regel zum Verifikations-
prinzip für das Wort vom Kreuz zu machen”.
34. Sobre essa sequência argumentativa, ver Hans Conzelmann, Der erste Brief an die Korinther,
Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1969, 54-72 (KEK 5); Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Pau-
lus, 157-165 (cf. nota 23).

323
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
cruz não é mais dirigida ao conhecimento ou à realidade eclesial, mas à existência
apostólica. A orientação do apostolado paulino sobre a cruz e a reviravolta de va-
lores que implica dão desta vez forma à conduta desse ministério. Em resumo,
esses deslocamentos sucessivos mostram como opera a linguagem da cruz, como
se contextualiza com a maior coerência em diferenciados registros de realidade.

4.2. 2 Coríntios

A fim de mostrar essa fecundidade da linguagem da cruz como princípio de


constituição do discurso, gostaríamos de nos referir a um segundo exemplo que,
também ele, depende da teologia da cruz. Trata-se do modo como a existência
apostólica é apresentada em 2 Coríntios, em particular no que se convencionou
chamar de “a apologia do apostolado” (2,14–7,4) e na “carta nas lágrimas” (Tränenbrief,
cap. 10–13). Nessas duas partes de 2 Coríntios — pouco importa para nossa pro-
blemática que se trate de bilhetes de origem independente ou que se defenda a
unidade literária de 2 Coríntios —, a condição apostólica é encarada a partir da
linguagem da cruz. Isso significa que a cruz é o ponto de referência, o horizonte
hermenêutico que permite decifrar a vivência apostólica.

4.2.1. Dois gêneros literários a serviço da teologia da cruz

Nessa perspectiva, dois gêneros literários (que, aliás, coincidem em parte)


devem especialmente chamar nossa atenção, pois constituem de maneira privile-
giada a expressão literária da teologia da cruz em 2 Coríntios. De uma parte, tra-
ta-se de catálogos de perístases (2Cor 4,7 ss.; 6,4 ss.; 11,21b-33; 12,10 [cf. também
Rm 8; 1Cor 4]; peri,stasij significa circunstância lastimável, dificuldade, vicissi-
tude), passagens nas quais o apóstolo enumera as provas que pontuaram o exercí-
cio de seu ministério35. De outra parte, convém levar em conta o “discurso na
loucura” (Narrenrede: 11,16–12,13), em que Paulo faz o elogio paradoxal de seu
ministério apostólico36. Se fizermos abstração do contexto literário (11,16-21a e
12,11-13), esse elogio sub contrario compreende três elementos característicos: de
uma parte, um imponente catálogo de perístases (11,21b-33), em que Paulo se
gloria de sua fraqueza, depois as duas revelações de que ele foi beneficiário. De
maneira bem típica, quando a experiência extática que se concretiza num arreba-

35.Ver Wolfgang Schrage, Kreuz und Eschaton. Die Peristasenkataloge als Merkmale paulinis-
cher theologia crucis und Eschatologie, EvTh 34 (1974) 141-175.
36. Cf. a análise de Jürgen Becker, Paulus, 245-254 (cf. nota 17).

324
V – O centro da teologia paulina
tamento celeste (12,1-6) é definitivamente desprovida de pertinência (ela não vai
dar em nenhuma palavra, em nenhum conteúdo revelador que modificaria o
querigma), a segunda revelação (12,7-10), que afirma a manifestação da força na
fraqueza, é a única decisiva (“A minha graça te basta; o meu poder se perfaz na
fraqueza”). O processo hermenêutico é claro: a linguagem da cruz é o ponto a
partir do qual a existência apostólica é interpretada. O apóstolo está assim alinha-
do com seu Senhor que foi crucificado na fraqueza, mas que está vivo pela graça
de Deus (2Cor 13,4). Como se deve compreender essa conformidade entre o
apóstolo que sofre e seu Senhor crucificado? Como se deve interpretar essa con-
formidade entre a existência crente e a cruz? Como se deve avaliar essa nova e
impressionante expressão da teologia da cruz?

4.2.2. A conformidade entre a cruz e a existência crente

Notemos desde logo um deslocamento interessante. Se em 1 Coríntios


1,18–2,5 o discurso é essencialmente teológico (Deus se identifica com o Cru-
cificado e se revela por meio dele), em 2 Coríntios a atenção se concentra na
antropologia (o Crucificado se identifica com os seus para dar sentido ao destino
deles).
Como se deve compreender essa conformidade entre a cruz e a vivência da
fé? Não se trata de uma piedade da imitação, pois só a morte de Jesus é o aconte-
cimento escatológico da salvação. A passagem-chave que permite compreender
essa conformidade é 2 Coríntios 4,1037: “Sem cessar trazemos em nosso corpo a
agonia (ne,krwsij) de Jesus, a fim de que a vida de Jesus (h` zwh. tou/ VIhsou/) tam-
bém seja manifestada em nosso corpo (evn tw/| sw/mati h`mw/n fanerwqh/|)”. Dessa
declaração tiraremos três afirmações capitais.
De uma parte, ainda que o velho homem esteja sepultado (Rm 6,4
— suneta,fhmen ou=n auvtw/| dia. tou/ bapti,smatoj eivj to,n qa,naton — é explicitado
na linguagem da teologia da cruz em 6,6: tou/to ginw,skontej o[ti ov palaio.j hvmw/n
a;nqrwpoj sunestaurw,qh) pelo batismo na morte do Cristo, não deixa de ser ver-
dade que a existência do homem novo se caracteriza por um “morrer” cotidiano
(1Cor 15,31: kaqV h`me,ran avpoqnh|,skw), por um “encaminhar-se para a ruína”
(2Cor 4,16: “É por isso que nós não perdemos a coragem; e mesmo se, em nós, o

37. Sobre esse ponto, ver a análise de Wolfgang Schrage, Kreuz und Eschaton, 160-169 (cf. nota
35); Rudolf Bultmann, Der zweite Brief an die Korinther, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht,
1976, 117-121 (KEK Sonderband); Erich Grässer, Der zweite Brief an die Korinther. Kapitel 1,1–
7,16, 166-168 (biblio. exaust. 160-161) (cf. nota 21).

325
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
homem exterior se encaminha para a sua ruína [o` e;xw h`mw/n a;nqrwpoj
diafqei,retai], o homem interior se renova dia a dia”).
Depois, as provas e os sofrimentos suportados não têm sentido em si mes-
mos, mas somente na medida em que se referem ao Cristo (th.n ne,krwsin tou/
VIhsou/). São ao mesmo tempo sinal de pertença ao Cristo e efeito dessa pertença.
Enfim, esses sofrimentos indicam que a morte do Cristo não está fechada no
passado, mas informa o presente. Não devemos nos enganar; essa presença da
morte do Cristo na existência do crente não deve ser entendida num sentido
dorido e trágico. Ao contrário, manifesta uma atividade portadora de vida (2Cor
4,12: “Assim a morte age em nós, mas a vida, em vós [w[ste o` qa,natoj evn h`mi/n
evnergei,tai, h` de. zwh. evn u`mi/n]”).

4.2.3. Levar a sério as experiências presentes dos crentes

Depois de ter indicado que em 2 Coríntios a cruz é o ponto de vista a partir


do qual a existência apostólica e, mais amplamente, a existência crente são com-
preendidas, gostaríamos de dar um passo suplementar mostrando que alguns dos
elementos típicos da teologia da cruz desenvolvidos no locus classicus de 1 Corín-
tios 1,18–2,5 ressurgem em 2 Coríntios, mas num outro registro, o dos catálogos
de perístases. Agora são as experiências presentes dos crentes no mundo e na história
que constituem o contexto no qual se desenvolve a teologia da cruz.
a) As provas e os sofrimentos dos crentes e, em primeiro lugar, do apóstolo
atestam que uns e outro estão em situação de seguimento de seu Senhor
crucificado38. Do mesmo modo como Cristo foi crucificado na fraqueza
e seu destino é um escândalo para a inteligência e a piedade (1Cor 1,18 ss.;
2Cor 13,3), assim também acontece com os crentes que, à imagem do seu
Senhor, são loucos e fracos (1Cor 1,26 ss.; 4,13: “Nós somos até agora,
por assim dizer,o lixo do mundo,os detritos do universo [w`j perikaqa,rmata
tou/ ko,smou evgenh,qhmen, pa,ntwn peri,yhma e[wj a;rti]”). Essa miséria que
eles suportam tem um alcance polêmico e crítico, e até um caráter escan-
daloso. A fé confessada não leva a uma integração harmoniosa no mundo
e a uma aceitação de seus valores, mas, ao contrário, a uma crise. Em vez
de gerar harmonia, integração, popularidade, sucesso, a fé precipita o
apóstolo nas troças da perseguição, faz dele um objeto de zombaria, o es-
cárnio das elites. A crise e o desmoronamento dos valores em voga na
cultura e na religião são evidentes: é por sua fraqueza e seus fracassos que

38. Wolfgang Schrage, Kreuz und Eschaton, 164-165 (cf. nota 35).

326
V – O centro da teologia paulina
os crentes atestam, de uma maneira escandalosa e paradoxal, a presença do
Crucificado. Instauram uma distância crítica em relação à expectativa re-
ligiosa tradicional e aos valores reconhecidos no mundo, sua vida se trans-
forma numa contralinguagem subversiva. A crise desencadeada pela cruz
do Cristo continua através do destino de seus enviados.
b) Seria, todavia, equivocar-se sobre esses catálogos de perístases pensar que
são doridos, mortíferos, que glorificam a humilhação e a fraqueza39.
Como o enfatiza a dialética empregada em 2 Coríntios 4,10, na fraqueza
se manifesta a força de Deus, no morrer dos cristãos surge a vida (“Sem
cessar trazemos em nosso corpo a agonia [ne,krwsij] de Jesus, a fim de
que a vida de Jesus também seja manifestada em nosso corpo [i[na kai. h`
zwh. tou/ vIhsou/ evn tw/| sw,mati h`mw/n fanerwqh/|]”). Porque o Crucificado
é o Ressuscitado, o morrer, a ne,krwsij de que ele fala não é uma fatalida-
de que leva ao aniquilamento, mas um espaço no qual se manifestam a
vida, a alegria, o reconhecimento, a eleição e o amor divino. O projeto
soteriológico é a última palavra do Evangelho paulino. Todavia, uma vez
que o Ressuscitado não é ninguém mais que o Crucificado, a vida se
manifesta neste mundo sob a máscara da morte e da fraqueza. A forma do
Cristo continua a se manifestar de maneira paradoxal mediante o apósto-
lo e os crentes. A teologia da cruz é aqui formulada em toda a sua
radicalidade.

5. O ensinamento sobre a justificação

Para que a hipótese proposta seja válida, convém demonstrar que a lingua-
gem da cruz — tal como foi definida — estrutura igualmente o discurso centrado
na justificação. Ao tomar a epístola aos Gálatas como texto de referência, gostaria
de chamar a atenção para dois pontos.

5.1. Gálatas 3,1-14

Segundo o modelo da análise retórica40, Gálatas 3–4 pode ser considerada a


probatio (a demonstração) da tese anunciada na propositio (tese) formulada em

39. Cf. Erhardt Güttgemanns, Der leidende Apostel und sein Herr, Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 1966, 94-126, espec. 102-112 (FRLANT 90).
40. É o mérito de Hans Dieter Betz (Galatians, 14-26 [cf.nota 12]) ter realizado a aproximação
entre a epistolografia e a retórica antiga e aplicado consequentemente esse modelo à epístola aos
Gálatas.

327
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
2,15-21. Nos limites desta demonstração, o célebre argumento cristológico de
Gálatas 3,13 (Cristo.j e`ma/j evxhgo,rasen evk th/j kata,roj tou/ no,mou geno,menoj
u`pe.r h`mwn kata,ra, o;ti ge,graptai\ evpikata,ratoj pa/j o` krema,menoj evpi. xu,lou:
“Cristo pagou para nos libertar da maldição da lei, tornando-se ele mesmo mal-
dição por nós, pois está escrito:‘Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro’”41)
merece uma atenção particular, pois é a primeira declaração cristológica, centrada
na morte do Cristo, no contexto dominado pela temática da justificação pela fé.
Examinemos esse argumento42:
a) Contexto (3,1-14). A passagem começa com uma lembrança (3,1-5) da
experiência dos Gálatas por ocasião da acolhida do Evangelho. Permite
ela estabelecer a oposição que será desenvolvida nos versículos 1-14, a
saber, a que prevalece entre a escuta da fé (evx avkoh/j pi,jtewj/evk pi,stewj)
e as obras da Lei (evx e;rgwn no,mou). Se o tema “escuta da Lei”, que suscita
a bênção, é explicitado nos versículos 6-9, o motivo “obras da Lei”, que
provoca a maldição, é objeto dos versículos 10-14. O versículo 13 equi-
vale, na escala da cristologia, à maldição, ligada à Lei. É da maior impor-
tância, aliás, considerar que o versículo 13 retoma, para explicitá-lo, o
versículo 1, que invocava como ponto de referência o Cristo crucificado
( vIhsou/j Cristo.j … evstaurwme,noj). Daí a questão que se põe é a seguin-
te: como o Cristo crucificado, invocado explicitamente como ponto de
referência, é aplicado à linguagem num campo semântico, jogando com
os conceitos de Lei/fé/justificação? Lidamos com uma expressão teoló-
gica análoga à que se concretiza na teologia da cruz? Eu gostaria de res-
ponder positivamente a essa questão mostrando que os elementos que
associamos à linguagem da cruz são empregados, em particular, no versí-
culo 13.
b) A cruz invocada no versículo 1 induz — e nisso mostra sua função herme-
nêutica — a uma completa reavaliação do papel da Lei e da Escritura (a
passagem faz referência à promessa de Abraão e contém numerosas cita-
ções do Antigo Testamento, como a de Dt 27,26). A linguagem da cruz
não está, pois, fechada em si mesma, mas permite uma releitura da tradi-
ção religiosa judaica em suas expressões mais fundamentais.

41. Tradução de Andreas Dettwiler em De la malédiction à la bénédiction: une interprétation


de Galates 3,10-14, in Florian Bille, Andreas Dettwiler, Martin Rose (éd.), “Maudit quiconque est
pendu au bois”. La crucifixion dans la loi et dans la foi, Lausanne, Edition du Zèbre, 2002, 57-83 (66)
(Publications de l’Institut romand des sciences bibliques 2).
42. Para a exegese dessa passagem, ver prioritariamente Andreas Dettwiler, De la malédiction
à la bénédiction, 73-80 (cf. nota 41).

328
V – O centro da teologia paulina
c) A linguagem da cruz é de natureza polêmica. De uma parte, o contexto de
comunicação entre Paulo e seus destinatários está dominado pela denún-
cia feita pelo apóstolo sobre o possível abandono do Evangelho por parte
deles (v. 1: “Ó gálatas estúpidos!”; v. 3: “Sois a tal ponto estúpidos?”; v. 4:
“Ter feito tantas experiências em vão!”). De outra parte, e isto é essencial,
a Lei, centro da fé de Israel, cessa de ser a expressão da revelação e da pre-
sença divina.
d) Aliás, o caráter paradoxal do discurso, gerado pela linguagem da cruz, está
manifesto na declaração do versículo 13. É no seio mesmo da maldição,
de que a cruz é a expressão, que surgem a bênção e a promessa para a
totalidade dos homens. Poderíamos também evocar a reviravolta extraor-
dinária na interpretação da figura de Abraão (de pai dos filhos de Israel
torna-se o pai de todos os crentes).
e) Vamos às diretrizes teológicas que são geradas pela linguagem da cruz. A
linguagem da cruz suscita, antes de mais nada, afirmamos, uma revelação
do julgamento, da perdição que atinge os seres humanos. Ora, em três afir-
mações sucessivas, os versículos 10-12 mostram que a perdição atinge os
seres humanos que se reportam à Lei para estruturar sua existência. A Lei
é, com efeito, o vetor de uma maldição fatal. Não é mais pela Lei, mas
pela fé que o ser humano é justificado diante de Deus. O versículo 13
acrescenta um novo elemento a esse quadro: a Lei revela seu poder des-
truidor ao cravar Cristo na cruz.Todavia, sua negatividade volta-se contra
ela mesma na medida exata em que é impotente para impor sua conde-
nação do Cristo crucificado. A maldição que pronunciou é transformada
em promessa. Num ousado resumo, diremos, pois, que se a sabedoria do
mundo se torna loucura aos olhos de Deus em 1 Coríntios 1, a Lei é de-
salojada ao mesmo tempo de sua negatividade e de sua impotência em
Gálatas 3,13. Como demonstrou Weder43, ela é capaz de provar, a exem-
plo de Deuteronômio 27,26, que Jesus é maldito, mas não consegue des-
cobrir que essa maldição é, de fato, rica de bênção.
f) A linguagem da cruz — nossa segunda tese — faz surgir um Deus ines-
perado: é fundamentalmente teologia. Decerto, o versículo 13 não é, em
sentido estrito, teológico, mas cristológico. Todavia, como bem ressaltou
Haldimann44, a maneira mesma como Cristo é apresentado dá indireta-
mente testemunho de Deus. O acontecimento hermenêutico principal

43. Cf. Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus, 186-193, espec. 188-189 (cf. nota 23).
44. Cf. Konrad Haldimann, Kreuz — Wort vom Kreuz — Kreuzestheologie, 10-12 (cf. nota 24).

329
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
do versículo 13 — e isto foi bem visto por Dettwiler45 — consiste na
dissociação entre a Lei e Deus. Cristo, certamente, foi condenado pela
Lei, e não por Deus. A esse respeito, a omissão da pessoa de Deus na cita-
ção de Deuteronômio 21,23 é sintomática. De fato, como atesta a retros-
pectiva pascal, Deus se mantém ao lado do Crucificado. A constatação é
clara: segundo essa passagem, Deus se revela na cruz, independentemente
da Lei, distante dela, independentemente da Escritura ou, pelo menos,
subvertendo sua leitura. Para se manifestar, toma de empréstimo um ca-
minho totalmente imprevisto e absolutamente novo.
g) A linguagem da cruz — nossa terceira tese — tem, enfim, um alcance
soteriológico. O verbo “resgatar” (evxagora,zw) utilizado no versículo 13
faz justiça indiscutivelmente a essa dimensão. O aoristo utilizado
(evxhgo,rasen) esclarece que a salvação dada e que consiste na libertação
dos poderes alienantes, em particular o da Lei, ocorreu no acontecimento
passado da cruz (cf. v. 1). O “nós” (h`ma/j, respectivamente u`pe.r h`mw/n) não
designa somente os judeu-cristãos, mas a totalidade dos crentes (cf. o
contexto de comunicação da carta e as afirmações do contexto; por
exemplo, v. 14). A salvação ou, para falar a linguagem da passagem, a pro-
messa, respectivamente a bênção, é estipulada de uma dupla maneira: de
uma parte, ela chega, independentemente da Lei, pela fé e pelo dom do
Espírito e, de outra, tem um alcance universal.
h) Façamos um balanço intermediário: Com este breve esboço, espero ter
sugerido, a exemplo de Gálatas 3,1-14, que a linguagem da cruz está
agindo, bem mais que ser o princípio de constituição do discurso, não
somente na correspondência dominada pela teologia da cruz, mas igual-
mente na correspondência que aplica o ensinamento sobre a justificação.
O complexo argumentativo sobre a justificação não nasce primeiro de
um problema particular — que seria a necessidade de acolher os pagãos
no povo de Deus (ainda que esse problema possa ter tido a função de
catalisador) —, mas dá à linguagem num outro campo semântico a lin-
guagem fundadora da cruz. Para firmar com mais solidez meu ponto de
vista, gostaria de apelar para um argumento suplementar.

5.2. A propositio e a recapitulatio de Gálatas

Que esse princípio de constituição do discurso paulino esteja agindo é ates-


tado por um fenômeno cuja importância não foi suficientemente ressaltada, ou

45. Cf. Andreas Dettwiler, De la malédiction à la bénédiction, 77-79 (cf. nota 41).

330
V – O centro da teologia paulina
seja, dois lugares estratégicos decisivos da epístola aos Gálatas — a propositio e a
recapitulatio — misturam discursos sobre a justificação e afirmações dependentes
da teologia da cruz.

5.2.1. A propositio

A propositio (2,15-21) tem, do ponto de vista retórico, um papel preciso46:


formula argumentos que, a seguir, serão desenvolvidos na probatio. Condensa, as-
sim, de maneira programática, a mensagem central da carta. Compõe-se de quatro
partes: a) os versículos 15-16 expõem o ponto de harmonia entre Paulo e seus
leitores gálatas; b) os versículos 17-18 formulam a questão que é objeto de contro-
vérsia; c) os versículos 19-20 enunciam quatro teses teológicas nas quais está con-
densado o ponto de vista do apóstolo; d) o versículo 21 é consagrado à refutação
de uma objeção47. Ora, não escapará ao leitor atento que se a propositio em seu todo
está dominada pela temática da justificação pela fé as teses propriamente paulinas
e que são destinadas a sustentá-la recorrem à semântica da cruz (v. 19b)48.
19 evgw. ga.r dia. no,mou no,mw| avpe,qanon, i[na qew/| zh,sw. Cristw/| sunestau,rwmai\
20 zw/ de. ouvke,ti evgw,, zh/| de. evn evmoi. Cristo,j\ o] de. nu/n zw/ evn sarki,, evn
pi,stei zw/ th/| tou/ ui`ou/ tou/ qeou/ tou/ avgaph,santo,j me kai. parado,ntoj e`auto.n
u`pe.r evmou/. 21 ouvk avqetw/ th,n ca,rin tou/ qeou/\ eiv ga.r dia. no,mou dikaiosu,nh,
a;ra Cristo.j dwrea.n avpe,qanen.
19 Pois é pela lei que morri para a lei, a fim de viver para Deus. Com Cristo eu
sou um crucificado; 20 vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim.
Pois a minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me
amou e se entregou por mim. 21 Eu não torno vã a graça de Deus; pois se é
pela lei que se alcança a justiça, foi, portanto, para nada que Cristo morreu.
Se a primeira tese (v. 19a) opõe a Lei e Deus e denuncia o caráter mortífero
da Lei, a segunda tese (v. 19b) formula o efeito da cruz para o crente: pela cruz, o
crente é ao mesmo tempo libertado da Lei e de seu eu pecador, de sorte que ele
possa ter acesso à vida nova tal qual descrita na terceira e na quarta teses (também
elas centradas na morte do Cristo). O ponto decisivo é aqui que a crítica da Lei
está fundada num argumento da teologia da cruz. Os dois discursos não estão
dissociados, mas articulados. No momento em que o apóstolo ousa comunicar

46. Sobre a função retórica da propositio, ver Hans Dieter Betz, Galatians, 114 (cf. nota 12); no
mesmo sentido, Jürgen Becker, Paulus, 292 (cf. nota 17). Outra apreciação em François Vouga, An
die Galater, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998, 55-56 (HNT 10).
47. Cf. Hans Dieter Betz, Galatians, 19, 121-127 (cf. nota 12).
48. A esse propósito, Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus, 175-182 (cf. nota 23).

331
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
seus próprios argumentos, une temática da justificação e teologia da cruz, e se
pode fazer isso é porque uma e outra têm origem na linguagem da cruz. Obser-
varemos, enfim, que a refutação do versículo 21, que fecha a propositio, reafirma
que a morte do Cristo é o único fundamento da salvação.

5.2.2. A recapitulatio

Encontramos um fenômeno análogo na peroratio/recapitulatio (6,12-17). A pe-


roratio/recapitulatio constitui, numa perspectiva retórica, a conclusão de um discur-
so. Seu papel, além de tentar ganhar uma última vez a simpatia dos destinatários, é
mencionar uma última vez a questão debatida e os argumentos que vêm em apoio
da posição defendida pelo autor49. Percebe-se logo a significação principal dessa
passagem para nossa problemática, pois se pode, sem exagero, ver nela um resumo
do conflito que opõe Paulo e os Gálatas, bem como da posição que ele defende.
Se os versículos 12 e 13 evocam uma última vez a posição dos oponentes
— a exigência da circuncisão —, os versículos 14 e 15 formulam de uma forma
condensada a posição teológica do apóstolo50. De novo, o leitor é tocado pelo sur-
gimento da semântica da cruz. O ponto de referência de Paulo, seu único objeto
de orgulho, é a cruz de Cristo (evmoi. de. mh. ge,noito kauca/sqai eiv mh. evn tw/|
staurw/| tou/ kuri,ou h`mwn VIhsou/ Cristou/ — “Eu, por mim, nunca vou querer
outro título de glória que a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”). Essa referência à
cruz acaba em três afirmações:
a) O efeito da cruz permanece na descontinuidade que se institui entre o eu
e o mundo.
b) Essa descontinuidade se concretiza em primeiro lugar no fato de que o mun-
do está crucificado para mim (di ou- evmoi. ko,smoj evstau,rwtai). Esse mundo
que morre a meus olhos é o mundo que se caracteriza pelos valores morais e
religiosos definidos, por exemplo, pela linha de demarcação que existiria
entre circuncisos e incircuncisos, pela separação entre Israel e as nações. Na
cruz, essa concepção do mundo é definitivamente julgada e aniquilada.
c) O efeito da cruz reside igualmente na morte do eu (ka.g. w. ko,smw|). O eu
que é crucificado, o eu que morre na cruz, é o eu caracterizado pela pró-
pria glória, pela procura de reconhecimento diante do fórum do mundo.

49. Sobre a função retórica da peroratio/recapitulatio, ver Hans Dieter Betz, Galatians, 23, 313 (cf.
nota 12).
50. Cf. sobre esse ponto a contribuição decisiva de Wolfgang Harnisch, Einübung des neuen
Seins. Paulinische Paränese am Beispiel des Galaterbriefes, ZThK 84 (1987) 279-296.

332
V – O centro da teologia paulina
Essa dupla morte do mundo e do eu, que exprime a importância crítica da
cruz, abre o caminho à importância criadora e positiva da cruz, à nova criação
(v. 15: ou;te ga.r peritomh. ti, evstin ou;te avkrobusti,a avlla. kainh. kti,sij). Quando
as velhas clivagens desapareceram surgiu um novo espaço de vida de liberdade em
que a articulação entre o eu e o mundo se realiza de maneira totalmente nova.
Para não deixar nenhuma dúvida sobre o caráter fundamental dessa recapitulatio,
Paulo a apresenta como o “cânon” (v. 16: kanw,n) da mensagem paulina.
Ressaltaremos de novo três aspectos fundamentais para nossa problemática.
De uma parte, todos os elementos característicos da linguagem da cruz estão pre-
sentes. A seguir, quando a carta em seu todo manifesta o ensinamento da justifica-
ção, a recapitulatio é formulada em termos de teologia da cruz — o que estabelece
a compatibilidade e o parentesco dos dois discursos. Enfim, a importância da lin-
guagem da cruz é estabelecida pelo próprio Paulo, que a eleva ao nível de cânon.

6. Conclusão

6.1. O estatuto epistemológico da hipótese apresentada

A título de conclusão metodológica, gostaria de falar da seguinte reflexão. O


princípio de constituição da teologia paulina que apresentamos pretende ser uma
leitura plausível da teologia paulina, sem excluir outras leituras, na medida em que
satisfizerem aos mesmos critérios de rigor. Nossa hipótese quer oferecer um fio
condutor que permita perceber a condição de possibilidade e a coerência do dis-
curso teológico paulino. Todavia, é metodologicamente impossível provar que
essa leitura esteja certa. É possível, ao contrário, demonstrar que é falsa, ao imagi-
narmos que ela transgride afirmações centrais do corpus literário escolhido como
corpus de referência, ou que ela ignora o sentido óbvio dos textos invocados. Na
medida em que essa refutação não foi bem-sucedida, nossa hipótese interpretativa
é considerada válida.

6.2. Paulo e Jesus

A título de conclusão teológica, gostaríamos de sugerir brevemente que as


diferentes expressões da teologia paulina que se apoiam na linguagem da cruz
constituem uma retomada pertinente da mensagem de Jesus51.

51. Para uma argumentação detalhada, ver nossa contribuição: Paul et Jean: Les deux premiers
grands interprètes du Jésus de l’histoire, in Elian Cuvillier (éd.), Sola fide. Mélanges offerts à Jean
Ansaldi, Genève, Labor et Fides, 2004 (Actes et Recherches).

333
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
6.2.1. Paulo, intérprete de Jesus

Paulo é o intérprete mais antigo da pessoa de Jesus cujo testemunho o Novo


Testamento conservou. Haveria, então, uma continuidade entre Jesus e Paulo, a
qual nos asseguraria que Paulo se mantém no seguimento de Jesus, que ele é seu
fiel porta-voz? A essa questão deve-se responder com uma negativa: não há con-
tinuidade histórica entre Paulo e Jesus (Paulo não encontrou nem conheceu o
Jesus da história), nem continuidade tradicional (Paulo não é o portador da tradi-
ção do Jesus terrestre, mas da tradição querigmática).
A questão da possível continuidade entre Jesus e Paulo se radicaliza se lem-
bramos que Jesus anunciou com palavras e atos a vinda iminente do Reino de
Deus, ao passo que Paulo pregou a morte e a ressurreição de Cristo como um
acontecimento de salvação. Esse deslocamento na formulação da mensagem é uma
traição ou, ao contrário, se trata de uma pertinente compreensão do “fato Jesus”?
Para abordar essa problemática de maneira profunda, convém pôr a seguinte
questão: o apóstolo Paulo atribuiu a Jesus a mesma significação que este último
reivindicava para si mesmo? Entendeu ele a figura de Deus e a condição humana
do mesmo modo? Concebeu a fé em termos equivalentes?

6.2.2. Jesus, Palavra última de Deus

O Jesus histórico atribuiu a seu ministério um significado escatológico.


Considerava ele que, por sua palavra e por seus atos, manifestava de maneira deci-
siva e última o projeto de Deus para os seres humanos.
Paulo entendeu bem esse caráter último e decisivo da vinda de Jesus. Para ele
também a vinda de Cristo, condensada em sua morte e em sua ressurreição, sub-
sumida na metáfora da cruz, tem um significado escatológico. A cruz marca uma
reviravolta decisiva na história e no destino humanos. Se o antes de Cristo era
marcado pela revolta e pela perdição dos homens, sua vinda, em particular a cruz,
abre um novo espaço de vida. Todos(as), sem exceção, são convidados(as) agora a
viver da graça de Deus — e isso na liberdade e na responsabilidade. Para Jesus e
para Paulo, Deus diz sua última palavra por meio do Nazareno.

6.2.3. O Deus de Jesus e o Deus de Paulo

Jesus e Paulo estão igualmente unidos numa mesma concepção da pessoa de


Deus, e isso de um tríplice ponto de vista. Em primeiro lugar, para Jesus, como para
Paulo, Deus é o criador e o Deus da Aliança. Deus fez aliança com seu povo, deu-

334
V – O centro da teologia paulina
lhe a Lei para lhe oferecer o espaço de uma relação autêntica com ele. Mas — e é o
segundo ponto —, para Jesus como para Paulo, o Deus da Aliança não é nem reco-
nhecido nem confessado. É rejeitado ou instrumentalizado. O pecado, ou seja, o
desconhecimento de Deus e a ruptura que daí se origina, é universal. A partir de
então — e é o terceiro ponto de concordância —, para Jesus como para Paulo, Deus
vem para o julgamento, mas esse julgamento assume uma forma eminentemente
surpreendente. A boa-nova que está no centro da mensagem de Jesus consiste em
proclamar que Deus não vem para aniquilar o mundo revoltado, mas para lhe abrir
um novo futuro. Sua sanção não consiste na recusa dos pecadores, mas em seu aco-
lhimento incondicional. De modo semelhante, Paulo, quando fica calado sobre a
pregação do Jesus terrestre, propaga a mesma mensagem, mas recorrendo a outra
terminologia. Deus manifesta sua justiça, ou seja, sua fidelidade a ele mesmo e à
Aliança, ao declarar o pecador justo, por pura graça e independentemente de suas
obras. A cruz e a ressurreição são o espaço em que brilha a graça de Deus.
Assim, o que Jesus diz em sua proclamação do Reino que vem, Paulo o re-
toma em seu anúncio do Evangelho da justiça de Deus ou em sua teologia da
cruz. Os dois se harmonizam para discernir em Deus ao mesmo tempo aquele
que diz um resoluto não aos erros humanos e às suas consequências catastróficas
e um incondicional sim a cada existência humana onde quer que se encontre e
independentemente de suas qualidades e de suas respostas.

6.2.4. A existência crente segundo Jesus e segundo Paulo

Contrariamente a João Batista, o anúncio da vinda de Deus para estabelecer


seu Reino não é um fator de medo e de contrição, mas de alegria e de reconhe-
cimento: dá acesso a uma vida posta no signo da liberdade e da alegria.
De modo semelhante, os crentes das comunidades paulinas sabem possuir os
benefícios da justificação pela Lei sem as obras da Lei.Tendo passado pela tristeza
de uma procura ilusória da perfeição religiosa ou ética, eles são chamados a levar
uma existência na liberdade — libertos que estão da morte, do pecado, da Lei, li-
vres agora para o mundo e para os outros.
Jesus chama os homens que libertou para que o sigam e por isso para que
renunciem a seus apegos terrestres, sejam eles de natureza familiar, profissional ou
material. A palavra que estrutura sua existência é agora o mandamento do amor.
A mesma revisão da existência se manifesta em Paulo no apelo a ser crucificado
com Cristo. Convém não viver mais para si mesmo, mas para Deus. Trata-se de
estar crucificado para o mundo e para si mesmo, o que significa: ficar livre de um
passado de erros, da preocupação com os resultados e do medo da morte.

335
A cruz como princípio de constituição da teologia paulina
6.2.5. O salto pascal

Essa profunda conivência teológica não deve, todavia, mascarar um desloca-


mento significativo: todo o projeto de Jesus está articulado em torno do anúncio
da proximidade do Reino de Deus. O de Paulo tem sua referência na cruz. Jesus
se põe na perspectiva do Deus que vem; Paulo, na de Deus que veio. O que
Jesus diz sob a óptica da promessa, Paulo o anuncia como já chegado. É um teó-
logo pós-pascal. Recupera o projeto de Jesus em situação de releitura pascal e à
salvação vinda de uma vez por todas dá um nome, Jesus de Nazaré.

336
V – O centro da teologia paulina
O presente da salvação,
centro do pensamento paulino
Udo Schnelle (Halle)

Uma ideia fundamental determina o pensamento paulino: pela mudança de Jesus de Na-
zaré do espaço da morte para o espaço da vida, os crentes participam, já no presente, desse
acontecimento salvífico. É por isso que a presença da salvação está no centro da reflexão de
Paulo. Não é apenas uma nova compreensão do ser, mas um novo ser, em sentido fundamen-
tal, que começa. Os crentes se encontram num processo de transformação universal. Esse
processo começou com a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, continua sob a ação
poderosa do Espírito no tempo presente e culminará na transformação da criação inteira em
direção à glória de Deus.

1. Preliminares hermenêuticas: a constituição do sentido pelo relato

E m si mesmo, um acontecimento histórico não é ainda portador de sentido.


Seu potencial significativo deve ser previamente valorizado e desenvolvido.
Requer a transferência de uma contingência aleatória para “uma contingência
ordenada, significativa, inteligível”1; essa transferência se realiza pelo relato, que é
fundamentalmente uma elaboração narrativa do sentido2. Com efeito, a narração

1. Paul Ricoeur, Zufall und Vernunft in der Geschichte, Tübingen, Gehrke, 1986, 14; ed. or. fr.:
Contingence et rationalité dans le récit, Genève, Labor et Fides, 1989 (Lieux théologique 14).
2. Pressupomos um conceito amplo de narração, que não está ligado a um gênero literário
determinado. Partindo da ideia fundamental de que a experiência do tempo deve ser trabalhada de
modo narrativo, somos levados a conceber “die Erzählung als eine bedeutungs- oder sinnhafte bzw.

337
configura essa estrutura de sentido que permite superar a contingência histórica3.
Constitui o tempo e dá uma duração, de forma única, permitindo somente assim
a recepção e a formação de uma tradição4. O relato põe em relação os níveis ob-
jetivo, temporal e espacial, “torna compreensível ex post facto o que devia aconte-
cer necessariamente ou com verossimilhança”5. Um relato suscita uma compreen-
são ao realizar novas conexões e ao fazer emergir a significação do acontecimento.
Ao se tratar da cruz e da ressurreição, tentativas de constituição de sentido eram
inevitáveis. Todos os autores do primeiro cristianismo se viram diante da missão
de converter a contingência aleatória da cruz e da ressurreição numa construção
teológica significativa.

1.1. O nascimento da história

Do ponto de vista da linguagem, a construção da história se desenvolve sem-


pre como um processo criador de sentido, destinado a dar um significado tanto ao
passado como ao presente. Oferecer uma interpretação histórica significa gerar
um sistema de sentido coerente. Os fatos não se tornam o que são para nós senão
com o estabelecimento de conexões históricas pela narração6. Os dados históricos
devem assim ser manifestados no presente e levados à linguagem, de sorte que a
apresentação/narração da história liga necessariamente “fatos” e “ficção”7, ele-

Bedeuntung oder Sinn stiftende Sprachform […]. Dies soll heißen: Schon die narrative Form
menschlicher Selbst- und Weltthematisierungen verleiht Widerfahrnissen und Handlungen Sinn
und Bedeutung — unabhängig vom jeweiligen Inhalt der erzählerischen Präsentation” (Jürgen
Straub, Über das Bilden von Vergangenheit, in Jörn Rüsen [Hrsg.],Geschichtsbewußtsein. Psycholo-
gische Grundlagen, Entwicklungskonxzepte, empirische Befunde, Köln, Böhlau Verlag, 2001, 45-
113 [51 s.] [Beiträge zur Geschichtskultur 21]). Para um conceito amplo de narração, cf. igualmen-
te Roland Barthes, Das semiologische Abenteuer, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1988, 102 ss.; ed. or. fr.:
L’aventure sémiologique, Paris, Seuil, 1985.
3. Cf. Jürgen Straub,Temporale Orientierung und narrative Kompetenz, in Jörn Rüsen (Hrsg.),
Geschichtsbewußtsein, 15-44 (26 s.) (cf. nota 2).
4. Cf. a esse respeito Aleida Assmann, Zeit und Tradition. Kulturelle Strategien der Dauer, Köln,
Böhlau Verlag, 1999, 15 ss. (Beiträge zur Geschichtskultur 15).
5. Ibid., 30.
6. Cf. Chris Lorenz, Konstruktion der Vergangenheit. Eine Einführung in die Geschichtstheorie,
Köln, Böhlau Verlag, 1997, 17 ss. (Beiträge zur Geschichtskultur 13).
7. Não se deve entender “ficção” simplesmente no sentido comum de negação da realidade; o con-
ceito deve ser pensado num sentido funcional e relacional, próximo de sua significação etimológica de
fictio: elaboração, modelagem. Cf.Wolfgang Iser, Der Akt des Lesens.Theorie ästhetischer Wirkung, Mün-
chen,W. Fink, 31990, 88: “Wenn Fiktion nicht Wirklichkeit ist, so weniger deshalb, weil ihr die notwen-
digen Realitätsprädikate fehlen, sondern eher deshalb, weil sie Wirklichkeit so zu organisieren vermag,
daß diese mitteilbar wird, weshalb sie das von ihr Organisierte selbst nicht sein kann.Versteht man ­Fiktion

338
V – O centro da teologia paulina
mentos factuais e criatividade literária8. Como os dados históricos devem ser
combinados e os vazios históricos preenchidos, as informações do passado e sua
interpretação presente se harmonizam e dão nascimento a um produto novo.
A interpretação confere ao acontecimento uma estrutura nova que não tinha até
então, dando existência a um universo de sentido estruturado9. A significação de
um acontecimento não pode ser simplesmente deduzida de seu caráter factual.
Não existem senão fatos potenciais, pois o alcance significativo de um aconteci-
mento só pode ser percebido mediante a experiência e a interpretação. Trata-se
de atribuir uma significação aos fatos, e a estrutura desse processo hermenêutico
constitui a compreensão dos fatos10. Somente a ficção dá acesso ao passado, tor-
nando possível a inevitável reescrita dos acontecimentos pressupostos. O nível
figurativo é indispensável a todo trabalho histórico, pois desenvolve o plano pre-
figurado da interpretação, que determina a concepção atual do passado. Por con-
seguinte, a história é sempre um sistema seletivo pelo qual os intérpretes ordenam
e explicam não somente o passado, mas sobretudo seu próprio mundo.

1.2. Constituição do sentido e da história em Paulo

O que prevalece como regra geral para a escrita da história é também válido
em Paulo: o mundo deve ser objeto de uma interpretação para poder ser apreendi-
do. Ao contar e explicar de uma maneira específica a história de Jesus Cristo, Paulo
faz história e fundamenta seu próprio universo religioso11. Um acontecimento revela-

als Kommunikationsstruktur, dann muß im Zuge ihrer Betrachtung die alte an sie gerichtete Frage durch
eine andere ersetzt werden: Nicht was sie bedeutet, sondern was sie bewirkt, gilt es nun in den Blick zu
rücken. Erst daraus ergibt sich ein Zugang zur Funktion der Fiktion, die sich in der Vermittlung von
Subjekt und Wirklichkeit erfüll”. Cf. também Hans-Jürgen Goertz, Unsichere Geschichte, Stuttgart, Re-
clam, 2001, 20: “Das fiktionale Element ist nicht der freie Lauf dichterischer Phantasie, die sich über die
Fakten derVergangenheit hinwegsetzt, sie zurechtstutzt oder ergänzt. Es ist vielmehr das Mittel, das einen
Zugang zur Vergangenheit überhaupt erst schafft und ihre Interpretation bewerkstelligt”.
8. Cf. a esse respeito Id., Umgang mit Geschichte. Eine Einführung in die Geschichtstheorie,
Reinbek, Rowohlt, 1995, 101-103.
9. Cf. as reflexões sobre a história do problema e da pesquisa em Id., Unsichere Geschichte, 16 ss.
(cf. nota 7).
10. Cf. Id., Umgang mit Geschichte, 87 (cf. nota 8): “Nicht die reine Faktizität konstituiert also
eine ‘historische Tatsache’, sondern ihre Bedeutsamkeit, die sich erst nach und nach einstellt und
die einem Ereignis, das sonst ohne viel Aufhebens in der Vergangenheit versunken wäre, eine be-
sondere Qualität verleiht. Nicht zu seiner Zeit, sondern erst nach seiner Zeit wird aus einer bloßen
Tatsache eine historische Tatsache”.
11. Essa consideração é fundamental para a compreensão de Paulo aqui defendida, pois “das
Entscheidende ist nicht, aus dem Zirkel heraus-, sondern in ihm nach der rechten Weise hinein-
zukommen” (Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tübingen, M. Niemeyer, 141977, 153).

339
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
dor como Damasco exige um trabalho de decifração. Paulo foge à alternativa, histórica e
objetivamente inadequada, entre uma história factual do Jesus terrestre e uma cris-
tologia querigmática que dela se abstrairia. Mais ainda, em Paulo, a história do Jesus
terrestre é compreendida à luz da realidade presente da salvação gerada pelo Res-
suscitado (cf., por exemplo, Gl 1,3-4). As epístolas paulinas estão recheadas de ele-
mentos e de referências narrativas que tematizam tanto a história terrestre de Jesus
como sua ressurreição e sua parusia12. Assim, a tradição da ceia do Senhor atestada
em 1 Coríntios 11,23b-25, bem como a confissão de fé tradicional de 1 Coríntios
15,3b-5 guardam, sob a forma de sumários13 narrativos estilizados, os dados funda-
mentais da história de Jesus Cristo, visto que tematizam diretamente a existência
(Proexistenz) terrestre de Jesus14: seu dom de si pelos seus na noite em que foi en-
tregue, sua morte, sua colocação no túmulo, sua ressurreição no terceiro dia, bem
como suas aparições. Paulo não escamoteia o Jesus terrestre, mas lê seu ministério
à luz da Páscoa. A cruz, sumário narrativo central, é bem mais que uma cristaliza-
ção querigmática; continua a ser um local histórico e um modo bárbaro de exe-
cução, mesmo quando Paulo a integra a relatos mitológicos (Fl 2,6-11)15. Quando
a cruz aparece em Paulo, cobre sempre toda a história de Jesus Cristo: em 1 Corín-
tios 1,18, é resumida sob o conceito de “linguagem da cruz”. A cruz aparece tanto
como fato passado quanto como acontecimento durável de salvação, pois sua sig-
nificação verdadeira só pode ser percebida à luz do agir divino em Jesus Cristo16.
Em sua correspondência, Paulo baseia-se num conhecimento da história de Jesus
Cristo por parte das comunidades e a ela se refere constantemente17. A significação

12. Cf. Eckhart Reinmuth, Narratio un argumentatio — zur Auslegung der Jesus-Christus-
Geschichte im ersten Korintherbrief, ZThK 92 (1995) 13-27 (21); para Reinmuth, Paulo não conta
uma história abstrata do Jesus histórico, mas a história de Jesus Cristo como ele a “kennt und
verkündet — die Jesus-Christus-Geschichte also, die die Geschichte des irdischen Jesus abenso um-
greift wie Präexistenz und künftige Parusie”. Cf. igualmente Alexander J. M.Wedderburn, Paul and
the Story of Jesus, in Id. (ed.), Paul and Jesus, Sheffield, JSOT Press, 1989, 161-189 (JSNT.S 37).
13. Cf. Jürgen Straub, Geschichten erzählen, Geschichte bilden, in Id. (Hrsg.), Erzählung, Identität
und historisches Bewußtsein. Die psychologischen Konstruktion von Zeit und Geschichte, Frankfurt
a.M., Suhrkamp, 1998, 81-169 (123):“Narrative Abbreviaturen enthalten Geschichten oder verwei-
sen auf Geschichten, ohne selbst Geschichten zu sein. Narrative Abbreviaturen lassen sich nur im
Rekurs auf die Geschichten, auf die sie anspielen oder hinweisen, hermeneutisch auslegen”.
14. Cf. Klaus Scholtissek, “Geboren aus einer Frau, geboren unter das Gesetz” (Gal 4,4). Die
christologisch-soteriologische Bedeutung des irdischen Jesus bei Paulus, in Udo Schnelle,Thomas
Söding, Michael Labahn (Hrsg.), Paulinische Christologie. Exegetische Beiträge (Festschrift H. Hüb-
ner), Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 2000, 194-219 (211 s.).
15. Cf. ibid., 209 s.
16. Cf. Eckhart Reinmuth, Narratio und argumentatio, 24 s. (cf. nota 12).
17. Cf. ibid., 22 s.: “Diese Jesus-Christus-Geschichte ist als Inhalt auch der mündlichen Verkün-
digung des Paulus vorauszusetzen”.

340
V – O centro da teologia paulina
de Jesus não se esgota na soma de todas as suas palavras ou de todos os seus atos
significativos, mas se desdobra unicamente à luz da história realizada por Deus em
Jesus Cristo, história que faz de Jesus o portador escatológico e último da salvação.
No bojo dessa história de Jesus Cristo, a figura terrestre e o Ressuscitado — e
assim a pessoa de Jesus Cristo — formam uma unidade que não se deixa reduzir
nem a uma nem a outra dessas dimensões18.Visto que Paulo trata igualmente do
agir divino em Jesus Cristo, evita a alternativa errônea entre caráter factual e in-
terpretação, e salvaguarda, pois, toda a história de Jesus Cristo19.
O caráter fundamentalmente construído da elaboração histórica do sentido
é patente em Paulo: ele institui universos de sentido que, com a ajuda de breves
unidades narrativas, de palavras-chave e de símbolos, inserem o indivíduo e o
grupo na totalidade do cosmo, esclarecendo os fenômenos da vida, oferecendo
diretivas de ação e abrindo finalmente perspectivas para além da morte20. Se cons-
tituição de sentido rima sempre com interpretação construída e atual do mundo,
a questão que se põe em Paulo é a da matriz do sentido que lhe está associada, dos
esquemas de pensamento que ele investe nessa operação.

2. Damasco, o ponto de partida

Damasco é considerada por mais de um título a origem da teologia paulina


em seu todo, especialmente da doutrina da justificação pela fé. O novo julgamen-
to feito a respeito de Jesus Cristo é desde então idêntico a um julgamento novo
feito a respeito da Torá21, e Romanos 10,4 descreve o conteúdo do acontecimen-

18. Essa afirmação litiga tanto contra uma aproximação minimalista (cf. Rudolf Bultmann
[Theo­logie des Neuen Testaments, Tübingen, Mohr Siebeck, 71977, 190], que declara em referência a
Paulo:“Aus der Geschichte Jesu ist für ihn bedeutsam nur die Tatsache, dass Jesus als Jude unter dem
Gesetz geboren war und gelebt hatte [Gl 4,4], und dass er gekreuzigt worden war”) como contra
uma aproximação maximalista (cf. David Wenham, Paulus. Jünger Jesu oder Begründer des Chris-
tentums?, Paderborn, F. Schöningh, 1999) da tradição de Jesus presente em Paulo.
19.A esse propósito, ver Josef Blank, Paulus und Jesus. Eine theologische Grundlegung, München,
Kösel-Verlag, 1968, 183 (StANT 18):“Die Urkirche hat letzten Endes nicht trotz Ostern am Kreuz
Jesu und an der Jesus-Geschichte festgehalten, sondern gerade wegen Ostern und aufgrund von
Ostern”.
20. Cf. Peter Ludwig Berber, Zur Dialektik von Religion und Gesellschaft. Elemente einer soziolo-
gischen Theorie, Frankfurt a.M., Fischer, 1988, 32: “Sie [isto é, a religião] gibt den zerbrechlichen
Wirklichkeiten der sozialen Welt das Fundament eines heiligen realissimum, welches per definitio-
nem jenseits der Zufälligkeiten menschlichen Sinnens und Trachtens liegt”.
21. Cf., por exemplo: Christian Dietzfelbinger, Die Berufung des Paulus als Ursprung seiner Theo-
logie, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1985, 90-116 (WMANT 48); Günter Klein, Gesetz. III.
Neues Testament, in TRE 13, Berlin, de Gruyter, 1984, 64 s.; Hans Hübner, Biblische Theologie.

341
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
to de Damasco22. Se a teologia paulina está baseada na experiência de Damasco e
não oferece nada mais que uma explicação desse acontecimento, sua unidade
pode ser considerada demonstrada.Todas as variantes não são a partir daí mais que
desenvolvimentos e aplicações circunstanciadas do conhecimento adquirido nes-
sa ocasião. Todavia, as declarações do apóstolo sobre ele próprio não permitem
essas conclusões. Com efeito, Paulo não evoca nenhum pormenor biográfico
quanto ao acontecimento de Damasco. A apresentação que ele faz a respeito está
impregnada de uma linguagem estandardizada e limitada ao conhecimento novo
de Jesus Cristo e à justificação de seu apostolado. O próprio Paulo não comunica
nenhum conceito que sirva à interpretação do acontecimento de Damasco, não
faz nenhum apelo a essa experiência no desenvolvimento de suas reflexões
teológicas.

2.1. O ganho em conhecimento

É claro que com base no próprio testemunho do apóstolo Damasco deve ser
compreendido como um acontecimento gratuito, que lhe trouxe quatro conhe-
cimentos fundamentalmente novos23:

Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1993; II: Die Theologie des Paulus (32): “Somit ist Damaskus
die Stunde der Geburt der theologischen Freiheit vom Gesetz […]”; Peter Stuhlmacher, Biblische
Theologie des Neuen Testaments, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1992; I: Grundlegung: von Jesus
zu Paulus, 234-252; Karl-Wilhelm Niebuhr, Heidenapostel aus Israel. Die jüdische Identität des Pau-
lus nach ihrer Darstellung in seinen Briefen, Tübingen, Mohr Siebeck, 1992, 179 ss. (WUNT 62);
Martin Hengel, Die Stellung des Apostels Paulus zum Gesetz in den unbekannten Jahren zwischen
Damaskus und Antiochien, in James D. G. Dunn (ed.), Paul and the Mosaic Law, Tübingen, Mohr
Siebeck, 1996, 25-51 (33) (WUNT 89): “Für ihn [isto é, Paulo] stellte sich durch seine Begegnung
mit dem Auferstandenen vor Damaskus die Frage Gesetz oder Christus in der Form der soteriologis-
chen Alternative”.
22. Cf. nesse sentido, por exemplo, Peter Stuhlmacher, Das Gesetz als Thema biblischer Theo-
logie, in Versöhnung, Gesetz und Gerechtigkeit. Aufsätze zur biblischen Theologie, Göttingen,Vanden-
hoeck & Ruprecht, 1981, 136-165 (155): “Paulus steht traditions-geschichtlich in der Linie des
Stephanuskreises. Er verdankt seine dialektische Gesetzestheologie jedoch unmittelbar seiner Beru-
fung zum Apostel. Bei dieser Berufung erscheint ihm Christus als das ‘Ende des Gesetzes’ (Röm
10,4)”. Para uma crítica dessa posição, cf., entre outros, Klaus Haacker, “Antinomismus” des Paulus
im Kontext antiker Gesetzestheorie, in Hermann Lichtenberger (Hrsg.), Geschichte,Tradition, Refle-
xion,Tübingen, Mohr Siebeck, 1996; v. III: Frühes Christentum (Festchrift M. Hengel), 387-404 (394
s.); Gerhard Dautzenberg, Freiheit im hellenistischen Kontext, in Johannes Beutler (Hrsg.), Der
neue Mensch in Christus. Hellenistische Anthropologie und Ethik im Neuen Testament, Freiburg i.
Br., Herder, 2001, 57-81 (75) (QD 190); Ingo Broer, Einleitung in das Neue Testament II (Die neue
Echter-Bibel. Ergänzungsband zum Neuen Testament 2), Würzburg, Echter–Verlag, 2001, 442.
23. Gerd Theissen, Die Religion der ersten Christen. Eine Theorie des Urchristentums, Gütersloh,
Kaiser, 2000, 296;Theissen desconhecia a significação interna de Damasco quando redigiu a seguin-

342
V – O centro da teologia paulina
1. O conhecimento teológico: Deus fala e age de novo; revela no fim dos
tempos e de maneira nova a salvação. Por meio da intervenção de Deus,
horizontes absolutamente inéditos emergem na história e para a história.
2. O conhecimento cristológico: Jesus de Nazaré crucificado e ressuscitado
permanece eternamente ao lado de Deus; é seu representante; no céu,
assume a condição de second power. Como “Senhor” (1Cor 9,1: ku,rioj),
“Ungido” (1Cor 15,8: Cristo,j), “Filho” (Gl 1,16: ui`o,j) e “imagem de
Deus” (2Cor 4,4: eivkw.n tou/ qeou/), Jesus Cristo é o portador permanente
do poder e da revelação de Deus. Em sua majestade e em sua proximida-
de de Deus transparece sua dignidade sem igual.
3. O conhecimento soteriológico: Cristo, exaltado, integra os crentes em seu
senhorio, e já no presente. São incluídos num processo universal de transfor-
mação, inaugurado pela ressurreição de Jesus Cristo, continuado no agir do
Espírito e chamado a se apresentar em breve na parusia e no julgamento.
4. A dimensão biográfica: Deus escolheu e chamou Paulo para difundir essa
inaudita boa-nova entre as nações. Por esse meio, Paulo tornou-se ele
mesmo participante do plano divino da salvação, pois o Evangelho deve,
por meio dele, ser levado ao mundo a fim de salvar os crentes.
Quanto ao modo de transmissão desses conhecimentos, os textos são pouco
eloquentes. O acontecimento de Damasco apresenta, sem dúvida, uma dimensão
externa (cf. 1Cor 9,1; 15,8) e uma dimensão interna (cf. Gl 1,16; 2Cor 4,6), pro-
vavelmente ligadas a um fenômeno auditivo (cf. kalei/n = “chamar” em Gl 1,15).
Qualquer outra interpretação, quer seja sobre o conteúdo da revelação, quer sobre
sua dimensão psicológica, falta, porém, em Paulo; não é desejável então tirar con-
clusões mais amplas a partir dessa rara documentação24.

2.2. Os efeitos
Se o conteúdo do acontecimento de Damasco é uma cristofania e uma ins-
tauração, uma vocação e um envio25, de sorte que o conhecimento da pertença

te constatação:“Die Bekehrung und Berufung des Paulus ist daher Übernahmne einer völlig neuen
sozialen Position; er wird vom Christenverfolger zum Missionar der von ihm verfolgen Gruppe”.
24. Werner Georg Kümmel (Römer 7 und das Bild des Menschen im Neuen Testament. Zwei Stu-
dien, München, Kaiser, 1974, 160 [TB 53]) previne contra qualquer outra interpretação do acon-
tecimento de Damasco: “Alle psychologisierenden Hypothesen und alle Behauptungen, die über
das aus den Quellen zu Erhebende hinausgehen, führen nur an den Trtsachen vorbei und vergessen
die Ehrfurcht vor der geschichtlichen Wirklichkeit”.
25. Christian Strecker (Die liminale Theologie des Paulus. Zugänge zur paulinischen Theologie
aus kulturanthropologischer Perspektive [TB 53], Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1999,

343
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
divina de Jesus Cristo e o conceito paulino de apóstolo oferecem sua chave de
leitura, Damasco não pode, pois, ser simplesmente assimilado à doutrina da justi-
ficação pela fé de Gálatas e de Romanos (obras de decênios mais tarde), nem ao
conjunto da teologia paulina. Incontestavelmente, a experiência de Damasco de-
via ter consequências sobre a compreensão paulina da Lei/Torá e da justiça, bem
como sobre seu pensamento global26. Todavia, toda reconstrução desses efeitos
sobre as afirmações do apóstolo está votada ao fracasso. Seus discursos, além disso,
refletem um estágio mais avançado da teologia de Paulo e não podem simples-
mente ser referidos de modo pontual a essa experiência, em razão do caráter
contingente de sua argumentação27. Essa interpretação do acontecimento de Da-
masco confirma-se pela primeira epístola aos Tessalonicenses, bem como pelas
duas epístolas aos Coríntios: o conceito de nomos ou está totalmente ausente, ou
não oferece o sentido refletido de que se reveste em Gálatas e em Romanos28.
Mais ainda, as tensões consideráveis sobre a compreensão da Lei entre Gálatas e
Romanos indicam que é impossível falar de uma doutrina homogênea da Lei

155-157 [TB 53]) propõe renunciar aos termos conversão e vocação para falar do acontecimento
de Damasco — a eles prefere o termo iniciação. Para isso, pode remeter à linguagem da iniciação
e às suas apresentações (cf. 1Cor 15,8: o apóstolo como aborto; 2Cor 4,6: nova criação, luz; Gl
1,15 s.: iniciação em sua vocação e instrução; Fl 3: morte à vida de antes, ponto de partida abso-
lutamente novo). Em minha opinião, os modelos de vocação e de iniciação não constituem
oposição, mas se completam um ao outro: Paulo compreende manifestamente Damasco como
um processo de iniciação, chamado a se realizar numa participação no corpo ressuscitado do
Cristo (Fl 3,10 s.).
26. Mark A. Seifrid (Justification by Faith:The Origin et Development of a Central Pauline The-
me, Leiden/New York/Köln, E. J. Brill, 1992, 136-180 [NT.S 68]) dá destaque a esse fato, sem,
todavia, identificar a argumentação de Gálatas, Romanos e Filipenses com a experiência de Damas-
co: “Nevertheless, a difference must be recognized between the shift in Paul’s soteriology following
his conversion, which can be described only in the most general language, and the arguments
which he later enunciates in Galatians, Phil 3 and Romans. The arguments regarding ‘justification
by faith apart from works of the Law’ constitue a development in Paul’s thought, which was preci-
pitated by the struggle over the issue of Gentile circumcision and table-fellowship between Jewish
and Gentile believers” (p. 180).
27.Ver a esse propósito William Wrede, Paulus, in Karl Heinrich Rengstorf (Hrsg.), Das Pau-
lusbild in der neueren deutschen Forschung, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 21969, 79
(WdF 24): “Damit schwindet jeder Anlaß, die Lehre von der Rechtfertigung und die Verwerfung
der Gesetzeswerke frischweg aus der Bekehrung abzuleiten. Die Gnade empfinden, heißt noch
lange, nicht sie in einen Gegensatz zum Tun des Menschen stellen. An Tod und Auferweckung
Christi glauben bedeutet am allerwenigsten die Nötigung, die Berschneidung und andere Riten
abzutun, zumal wenn Christus, wie Paulus glaubte, selber das Gesetz gehalten hat” (Wrede remete
a Gl 4,4; Rm 15,8).
28. Cf. Hans Hübner, Das Gesetz bei Paulus. Ein Betrag zum Werden der paulinischen Theolo-
gie, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 31982, 16 ss. (FRLANT 119).

344
V – O centro da teologia paulina
outorgada em Damasco29. Decerto, a reviravolta radical de Damasco e a reorien-
tação fundamental que lhe está associada não podiam, com o tempo, ficar sem
efeito sobre sua compreensão farisaica da Lei.Todavia, os textos de Paulo não dão
testemunho de uma identidade pontual entre o conhecimento do Cristo recebi-
do em Damasco e a crítica da Lei30. É claro, Paulo já se debruçara sobre o signifi-
cado da Lei/Torá para os pagão-cristãos e os judeu-cristãos antes de redigir as
epístolas aos Gálatas e aos Romanos31. Saber se ele o fez com a ajuda das catego-
rias desenvolvidas por ocasião dessas duas cartas, entretanto, é uma questão que
deve ficar em aberto. A temática da justificação e da Lei era um dado para Paulo,
mas não a doutrina da justificação e da Lei como ela é exposta em Gálatas e em
Romanos!

2.3. Damasco, experiência da transcendência

Essa leitura não diminui de modo algum a significação do acontecimento de


Damasco para a teologia paulina. Ao contrário, a experiência fulminante de Jesus
Cristo ressuscitado impregna a partir desse momento a vida do apóstolo em sua
totalidade, sem poder se reduzir a enunciados teológicos. Toda experiência reli-
giosa comporta em seu início emoção e participação, mas não sistematização!

29. Cf. Heikki Räisänen, Paul and the Law, Tübingen, Mohr Siebeck, 21987, 25 (WUNT 29):
“It is my contention that the theory of the theology of the Law which was basically ‘ready’ with
Paul’s conversion cannot adequately explain the nature of the extant material”.
30. Cf. Is., Paul’s Conversion and the Development of his View of the Law, NTS 33 (1987) 404-
419 (416): “General considerations about the nature of Paul’s theology of the Law and the histori-
cal context of mission suggest that theology was not complete with his conversion”. Cf. igualmente
Klaus Berger, Theologiegeschichte des Urchristentums. Theologie des Neuen Testaments, Tübingen/
Basel, Francke Verlag, 1994, 436: “Auch ein Zusammenhang zwischen Bekehrung und Gesetzesfra-
ge ist nicht erkennbar”; Joachim Gnilka, Paulus von Tarsus, Apostel und Zeuge, Freiburg i.Br., Herder,
1996, 45 (HThK.S 6): “Der Gekreuzigte vom Gesetz verflucht, Christus des Gesetzes Ende, Ret-
tung nummehr allein durch Glauben an Jesus Christus waren wohl Einsichten, die sich ihm erst
später eröffneten”.Wolfgang Kraus, Zwischen Jerusalem und Antiochia. Die “Hellenisten”, Paulus und
die Aufnahme der Heiden in das endzeitliche Gotteswolk, Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 90
(SBS 179): “Die Gesetzesproblematik nicht ganz aus dem Damaskusereignis heraushalten zu kön-
nen, heiß also nicht, die Rechtfertigungslehre bzw. die Rede vom ‘Ende des Gesetzes’ doch schon
dorthin zurückverlegen zu sollen”; Gerhard Dauzenberg, Freiheit im hellenistischen Kontext, 75
(cf. nota 22): “Ich halte es für ganz unwahrscheinlich, dass an den Anfängen der Völkermission eine
Auseinandersetzung mit einem universalen Geltungsanspruch der Tora stand”.
31. A referência de Paulo a seu passado judaico prova bem que o Paulo cristão devia igualmente
ter um interesse marcado pelas questões da Lei e da justiça, mas não diz nada da forma concreta
dessas reflexões (contra Ferdinand Hahn, Gibt es eine Entwicklung in den Aussagen über die
­Rechtfertigung bei Paulus?, EvTh 53 [1993] 342-366 [346]).

345
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
Damasco é uma experiência externa da transcendência32 que funda uma identi-
dade nova. Esse conceito de identidade é útil muito particularmente para com-
preender o conteúdo do acontecimento de Damasco e suas consequências33. Deus
abre diante de Paulo horizontes novos: o julgamento que os homens fizeram so-
bre Jesus de Nazaré crucificado é revogado por Deus. Jesus não morreu como um
condenado pregado na cruz, mas está ao lado de Deus, é seu representante, o
agente eterno de sua glória. Em Damasco, Paulo faz a experiência de um ponto
de ruptura entre dois mundos: o filho de Deus lhe aparece no espaço e no tempo.
A visão do Ressuscitado leva Paulo ao abandono do seu “eu” de então, ao despo-
jamento de si (Entselbung34), e essa negatividade constitui a condição de seu ser
novo em Cristo. Por graça, é concedido a Paulo compreender que, pela ressurrei-
ção de Jesus Cristo dentre os mortos, Deus inaugurou a época decisiva de seu agir
salvífico, época à qual o próprio apóstolo está associado como proclamador do
Evangelho35. Paulo vive a experiência de Damasco como uma participação no
acontecimento crístico: ele é herdeiro de uma identidade nova, que o obriga a
reestruturar sua visão dele mesmo e do mundo. Deus lhe concedeu um novo co-
nhecimento da pessoa de Jesus Cristo e lhe conferiu uma nova missão: anunciar o
Evangelho de Jesus Cristo aos pagãos36. É desse acontecimento que Paulo faz pro-
vir sua dignidade de apóstolo. Ele incorpora naturalmente à sua nova identidade

32. Alfred Schütz e Thomas Luckmann (Strukturen der Lebenswelt, Frankfurt a.M., Suhrkamp,
5
1994, 171-177), em sua pesquisa consagrada às experiências do mundo vivo, não tratam natural-
mente senão de experiências internas da transcendência, entre as quais a morte herda um lugar
privilegiado: “Das Wissen daß der tod eine letzte Granze ist, ist unzweifelhaft. Nicht unzwifelhaft
ist das Wissen davon, was dahinterliegt. Da im Gegensatz zu den anderen Transzendenzen diese
Grenze nur in einer Richtung überschreitbar ist, ist aus der alltäglichen Erfahrung zweifellos nicht
unmittelbar ableitbar, was — falls überhaupt etwas — hinter der Grenze warten könnte. Die ande-
ren Transzendenzerfahrungen bieten sich jedoch als Hinweise an. Als Ausgangspunkt für die An-
nahme, daß hinter der Grenze des Todes eine andere Wirklichkeit wartet, hat sich verständili-
cherweise immer wieder der Schlaf angeboten” (173).
33. Cf. Jürgen Straub, Temporale Orientierung und narrative Kompetenz, 40 (cf. nota 3): “Die
Kontingenz emergierender Ereignisse zwingt Menschen zur Umstrukturierung ihrer Selbst- und
Weltbilder”.
34. Rudolf Otto, Mystische und gäubige Frömmigkeit, in Sünde und Urschuld. Und andere
Aufsätze zur Theologie, München, C.H. Beck, 1932, 140-177 (144).
35. O que Thomas Luckmann (Kanon und Konversion, in Aleida e Jan Assmann [Hrsg.], Kanon
und Zensur, München, W. Fink, 1987, 38-46 [40] [Beiträge zur Archäologie der literarischen Kom-
munikation 2]) distingue como traços característicos da conversão é no essencial igualmente válido
em Paulo: “biographische Rekonstruktion, Übernahme eines Generalschlüssels für die Wirkli-
chkeit, Ausklammerung analogischen Denkens und Rollen- ‘Totalisierung’”.
36. Wolfgang Kraus (Zwischen Jerusalem und Antiochia, 105 [cf. nota 30]) afirma com razão que
por esse meio encontra-se igualmente abordada a temática do povo de Deus. Todavia, não se trata
do centro do acontecimento de Damasco, mas de um fenômeno consecutivo.

346
V – O centro da teologia paulina
elementos de seu universo de sentido de então; ao mesmo tempo, concede-lhe
uma avaliação diferente dentro de seu novo sistema de referências37. A identidade,
vista na perspectiva da temporalidade, apresentando-se como um contínuo pro-
cesso de transformação38, torna pouco provável o fato de que, nessa mutação de
identidade, Paulo tenha possuído desde Damasco todos os componentes do uni-
verso de sentido desenvolvidos em Gálatas e em Romanos.
Mas Damasco continua sendo sempre indubitavelmente um ponto de parti-
da fundamental para a elaboração paulina do sentido. Como ele, até então, não
podia conceber o anúncio de um Messias crucificado senão como uma provoca-
ção, a experiência de Damasco o faz ver na cruz um potencial inusitado de senti-
do. A reflexão biográfica alia-se agora a uma perspectiva universal, pois Paulo se
vê confrontado com a missão de erigir, sobre a base da experiência e da leitura
individual de um acontecimento passado, um edifício de sentido suscetível de
oferecer uma orientação no presente e uma esperança para o futuro39. Um fato
histórico carregado de brutalidade como a cruz não é em si mesmo portador de
sentido; um processo de elaboração é necessário para “revestir de sentido e de
importância os fatos, transformar o caos de uma factualidade desprovida de senti-
do num mundo de história significativa”40. A partir da certeza religiosa adquirida
em Damasco, Paulo erigiu uma estrutura universal de sentido cujos efeitos na
história foram únicos. Assim agindo, ele desejava levar todos os homens a uma
orientação global de sua existência. Ele construiu um sistema de referências signi-

37. Cf. Jörn Rüsen, Krise,Trauma, Identität, in Zerbrechende Zeit. Über den Sinn der Geschichte,
Köln, Böhlau Verlag, 2001, 145-179 (164): “In den Prozeduren und Praktiken der Identitätsbildung
durch Geschichtsbewußtsein spielen Ereignisse eine entscheidende Rolle. Sie werden in einer sol-
chen Weise erinnert und repräsentiert, daß ihre faktische Besonderheit (kontingente Ereignishafti-
gkeit) für die Besonderheit und Einzigartigkeit des persönlichen oder sozialen Selbst steht”.
38. Jürgen Straub (Temporale Orientierung und narrative Kompetenz, 39 [cf. nota 3]) não
julga possível a “Bildung und Aufrechterhaltung von Identittät nur noch als prinzipiell unabs-
chließbarer Prozeß der Umbildung”.
39. Cf. Jörn Rüsen, Historisches Erzählen, in Zerbrechende Zeit, 43-105 (54) (cf. nota 37): “‘Sinn’
integriert Wahrnehmung, Deutung, Orientierung und Motivation so, daß sowohl der Welt- wie
auch der Selbstbezug des Menschen in seiner zeitlichen Ausrichtung beistig bewältigt und
­praktisch-intentional vollzogen werden kann”.
40. Jörn Rüsen, Historische Methode und religiöser Sinn, in Wolfgang Küttler, Jörn Rüsen,
Ernst Schulin (Hrsg.), Geschichtsdiskurs modernen historischen Denkens, Frankfurt a.M., Fischer, 1994,
344-377 (353) (Fischer Wissenschaft 11476); cf. Id., Anmerkungen zum Thema Christologie und
Narration, in Klaus-Michael Kodalle (Hrsg.), Gegenwart des Absoluten. Philosophisch-theologische
Diskurse zur Christologie, Gütersloh, G. Mohn, 1984, 90-96 (91): “Genaugenommen geht es in
Geschichten gar nicht primär um die Darlegung der puren Faktizität der menschlichen Vergange-
nheit, sondern um die Darstellung von Sinnzusammennhägen des menschlichen Handelns in des-
sen zeitlicher Dimension”.

347
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
ficativas capaz de tecer vínculos entre os indivíduos e suas pertenças sociais, entre
o mundo cotidiano — com sua segurança e suas experiências de crise — e um
nível de realidade transcendente.

3. O presente da salvação, centro do pensamento paulino

A partir do acontecimento de Damasco, o pensamento paulino é profunda-


mente marcado por essa descoberta: em razão da ressurreição de Jesus Cristo dentre os
mortos, o Espírito de Deus age de novo. O Espírito, poder de autorrevelação de Deus
em Jesus Cristo, constitui o elemento determinante do processo universal de
transformação em curso. Dentro de antigos esboços de sentido, Paulo realiza uma
redefinição do presente divino, qualificando o Espírito de presença criadora uni-
versal do escathon (cf. 2Cor 1,22; 5,5; Rm 8,23). A participação no agir do Espírito
faz surgir o presente da salvação. A ideia que quer que os cristãos façam totalmen-
te parte da salvação adquirida na morte e na ressurreição de Jesus Cristo desde o
momento presente pelo dom do Espírito no batismo é fundamental para o pen-
samento paulino. Eles estão agora separados do pecado e vivem na esfera da graça.
Não é simplesmente o início de uma nova compreensão da existência, mas, em
sentido amplo, o começo da existência nova como tal! O cristianismo paulino não
era de modo algum uma religião do além, mas se via totalmente marcado pelas
experiências rituais da salvação presente41. A realização futura da salvação não vem
de maneira nenhuma arrefecer a convicção segundo a qual a transferência para o
ser novo se dá com eficácia; é o acontecimento já vindo e não o que virá que consti-
tui o objeto decisivo do Evangelho paulino. Paulo se preocupa com o hoje da
salvação, pois “Eis agora (nu/n) o momento inteiramente favorável. Eis agora (nu/n)
o dia da salvação” (2Cor 6,2b). O cortejo triunfal de Cristo já começou (cf. 2Cor
2,14). De novo, Paulo descreve e interpreta essa realidade com a ajuda de diversas
metáforas: o presente é o tempo da graça e da redenção, a participação em Cristo
modifica o ser e o tempo.

3.1. Um modelo fundamental: transformação e participação

Uma ideia fundamental, um modelo-chave determina o pensamento pauli-


no: Deus transferiu Jesus de Nazaré morto e crucificado para um ser novo42, oca-

41. Cf. Christian Strecker, Die liminale Theologie des Paulus , 245 ss. (cf. nota 25).
42. Cf. a esse propósito Udo Schnelle, Transformation und Partizipation als Grundgedanken
paulinischer Theologie, NTS 47 (2001) 58-75.

348
V – O centro da teologia paulina
sionando imediatamente uma mudança de estado. Com efeito, Jesus de Nazaré
não fica mais na condição de morte e de distanciamento de Deus, mas, ao contrá-
rio, Deus lhe dá o estado de igual a ele mesmo. Foi em Damasco que Paulo fez
essa experiência e essa descoberta arrasadora. Em suas cartas, ele reflete de diversas
maneiras sobre essa passagem da morte para a vida. Para Paulo como para a pri-
meira tradição cristã, a convicção de que Deus ressuscitou Jesus de Nazaré dentre
os mortos se impõe como ponto de partida (1Ts 1,10; 2Cor 4,14; Rm 8,11, entre
outras). Deus e Jesus Cristo são pensados juntos. O Filho tem parte total na divin-
dade do Pai. É por isso que já antes de Paulo a reflexão cristológica tinha enten-
dido essa mudança de estado da pós-existência para a preexistência. O hino em
Filipenses (Fl 2,6-11)43 exprime claramente essa mudança de condição ao opor a
morfh. qeou/ (v. 6:“condição divina”) à morfh. dou,lou (v. 7:“condição de servo”)44.
Jesus Cristo renuncia à sua condição divina para chegar ao extremo oposto. O
hino desdobra e considera esse retorno fundamental em suas etapas particulares.
Jesus Cristo se despoja de si para se revestir de um estado de impotência. A partir
de então, não é mais o senhorio, mas a impotência e o rebaixamento que qualifi-
cam sua nova condição. A encarnação significa renunciar ao seu próprio poder,
rebaixar-se e obedecer até a morte. O acréscimo paulino no versículo 8c (a “mor-
te numa cruz”)45 aguça o motivo: Jesus Cristo renuncia não somente à sua divin-
dade e à sua vida, mas morre no que é a ignomínia por excelência46. A reviravolta
nesse acontecimento é indicada no versículo 9, marcado estilisticamente pela ir-
rupção de um novo sujeito: o` qeo,j. A ressurreição de Jesus Cristo se realiza na
conferência do Nome (v. 9b-10), seguida de sua instalação e de seu reconheci-
mento como Kosmokrator (v. 10-11b). A aclamação senhoril e a adoração universal
do Kyrios respondem à vontade de Deus e por sua glória (v. 11c). A nova condição
de Jesus Cristo é mais que um simples retorno à antiga igualdade com Deus47.

43. Para os múltiplos problemas postos por esse texto, ver Samuel Vollenweider, Der “Raub”
der Gottgleichheit. Ein religionsgeschichtlicher Vorschlag zu Phil 2,6(-11), NTS 45 (1999) 413-
433; Id., Die Metamorphose des Gottessohnes, in Ulrich Mell, Ulrich B. Müller (Hrsg.), Das
Urchristentum in seiner literarischen Geschichte (Festschrift J. Becker), Berlin, de Gruyter, 1999, 107-
131 (BZNW 100).
44. Cf. Christian Strecker, Die liminale Theologie des Paulus, 163 (cf. nota 25).
45. Para uma justificação dessa leitura, na minha opinião sempre a mais plausível, ver Ulrich
B. Müller, Der Brief des Paulus an die Philipper, Leipzig, Evangelische Verlagsanstalt, 1993, 105
(ThHK 11/1).
46. Cf. Otfried Hofius, Der Christushymnus Phlipper 2,6-11, Tübingen, Mohr Siebeck, 1976, 63
(WUNT 17).
47. Cf. Günther Bornkamm, Zum Verständnis des Christus-Hymnus Phil 2,6-11, in Studien zu
Antike und Urchristentum, München, Kaiser, 31970, 177-187 (183) (BEvTh 28); Christian Strecker,
Die liminale Theologie des Paulus, 171 s. (cf. nota 25).

349
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
Somente o autorrebaixamento no caminho da cruz era capaz de garantir a eleva-
ção à condição de Senhor do universo, ou seja, o próprio Preexistente devia pas-
sar por uma transformação para chegar ao seu destino.
Porque é o lugar da transformação do Cristo, a cruz é de uma importância
fundamental para a teologia paulina48. Para Paulo, o Ressuscitado é o Crucificado
(2Cor 13,4: “Ele, sem dúvida, foi crucificado em sua fraqueza, mas está vivo pelo
poder de Deus”). O significado redentor da ressurreição lança uma luz inédita
sobre a morte de Jesus. Para Paulo, morte e ressurreição interagem: a ressurreição
fundamenta concretamente o significado redentor da morte; simultaneamente, o
querigma da ressurreição recebe na hermenêutica paulina da cruz sua importân-
cia última. Mesmo depois da ressurreição, Jesus continua sendo o Crucificado
(part. perf. passivo evstaurwme,noj, 1Cor 1,13; 2,2; Gl 3,1)49.“O Ressuscitado exibe
as marcas dos pregos da cruz.”50 O discurso paulino da cruz é sempre denso teo-
logicamente, sem, todavia, se desviar da história. Ao contrário, a cruz como lugar
da execução de Jesus de Nazaré constitui seu ponto de partida. Pela fórmula
ska,ndalon tou/ staurou/ (1Cor 1,25; Gl 5,11), o apóstolo entende a crucifixão
como o processo concreto e humilhante de submissão à morte. Faz do homem
não o Filho de Deus, mas um criminoso. Adorar um crucificado como Filho de
Deus constituía para os judeus um escândalo teológico51 e para o mundo greco-
romano uma aberração52. Paulo se agarra firmemente à cruz como lugar histórico
em que se manifesta o amor de Deus e se opõe assim a uma completa querigma-
tização desse acontecimento único. O agir atemporal de Deus exerce a sua ação
salvífica sobre os seres humanos, dado que tem um lugar e uma duração, um
nome e uma história53. A concentração da teologia paulina no Kyrios Jesus Cristo,

48. Para a cruz em Paulo, ver os trabalhos fundamentais de Heinz-Wolfgang Kuhn, Jesus als
Gekreuzigter in der frühchristlichen Verkündigung bis zur Mitte des 2. Jahrhunderts, ZThK 72
(1975) 1-46; Id., Die Kreuzesstrafe während der frühen Kaiserzeit, ANRW II, 25.1, ed. Wolfgang
Haase, Hildegard Temporini, Berlin, de Gruyter, 1982, 648-793.
49. Cf. Fridrich Blass, Albert Debrunner, Fredrich Rehkopf, Grammatik des neutestamentlichen
Griechisch, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 141975, § 340; o perfeito exprime “a duração do
consumado”.
50. Gerhard Friedrich, Die Verkündigung des Todes Jesu im Neuen Testament, Neukirchen-Vluyn,
Neukirchener Verlag, 1982, 137 (BThSt 6).
51. Para uma tradução de ska,ndalon por escândalo (Anstoss), cf. Heinz-Wolfgang Kuhn, Jesus
als Gekreuzigter in der früchristlichen Verkündigung bis zur Mitte des 2. Jahrhunderts, 36 s. (cf.
nota 48).
52. Cf. Plínio, Ep 10,96,8: “uma superstição insensata e sem medida” (in Pline Le Jeune, Lettres,
estabel. de texto e trad. M. Durrry, Paris, Belles Lettres, 1972, liv. X, 96).
53. Cf. a esse respeito Hans Weder, Das Kreuz Jesu bei Paulus. Ein Versuch, über den Geschichts-
bezug des christilchen Glaubens nachzudenken, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1981, 228
ss. (FRLANT 125).

350
V – O centro da teologia paulina
exaltado e presente, tem seu fundamento em sua identidade com o Jesus terrestre
morto na cruz. A fé não pode se esvair na mitologia. A cruz lhe serve para ter o pé
no chão. Paulo luta com veemência contra qualquer funcionalização da cruz.
Dirigindo-se aos coríntios, ele esclarece que a ressurreição só pode ser afirmada se
tomado como medida o Crucificado: diante do Crucificado, toda sabedoria e
toda glória são nulas (1Cor 2,6 ss.)54. Diante da exigência da circuncisão alardeada
por seus opositores judaizantes, o apóstolo lembra que precisamente o crucificado
é que libertou os batizados e crentes da Lei (Gl 3,13; 5,11). Em sua morte de cruz,
o Cristo assumiu substantivamente por nós (Gl 3,13: u`pe.r h`mw/n) a maldição da
Lei, que atinge todo aquele que deseja nela fundamentar sua vida. Ao qualificar o
Crucificado de maldito, a Lei não pode ao mesmo tempo ser um fundamento
constrangedor para os cristãos. Os que pregam a circuncisão querem desfazer essa
oposição, para não serem perseguidos (pelos judeus) “por causa da cruz do Cristo”
(Gl 6,12). Cruz do Cristo e Lei se excluem reciprocamente, pois o dom salvador
do Espírito resulta da fé no Crucificado (Gl 3,1-5).
A linguagem da cruz designa o processo fundamental de transformação que
sobreveio no acontecimento crístico e foi introduzido no coração mesmo do
pensamento paulino55. Por isso a teologia paulina da cruz se mostra como uma
interpretação fundamental de Deus, do mundo e da existência. Ela aprende a ler a
realidade a partir do Deus manifestado no Crucificado e para ele orientar seu
pensamento e seu agir. A cruz acarreta uma reinterpretação dos valores, das nor-
mas e das classificações humanas, pois os valores divinos são seus contrários. O
Evangelho do Crucificado outorga a salvação na fé, pois é aí que se revela o Deus
que deseja salvar os seres humanos, precisamente no abandono e na vacuidade.
A base do pensamento paulino não está ligada a um conceito negativo da
Lei ou a uma concepção definida da justiça; ela deriva positivamente da lógica da
transformação e da participação56. A mudança de estado do Filho transpõe igualmente
os crentes e batizados para uma condição nova: a graça.

54. Cf. a esse respeito Thomas Söding, Das Wort vom Kreuz. Studien zur paulinischen Theologie,
Tübingen, Mohr Siebeck, 1997 (WUNT 93).
55. Contra Heinz-Wolfgang Kuhn (Jesus als Gekreuzigter, 40 [cf. nota 48]), que localiza as pa-
lavras paulinas sobre a cruz exclusivamente em contextos polêmicos. 1 Coríntios 1,23; 2,2 e Gálatas
3,1 mostram claramente que o discurso da cruz se inscreve já na primeira pregação paulina. Para
um exame teológico da teologia paulina da cruz, ver Otfried Hofius, Sühne und Versöhnung. Zum
paulinischen Verständnis des Kreuzestodes Jesu, in Paulusstudien, Tübingen, Mohr Siebeck, 1989,
33-49 (WUNT 51).
56. Posição diferente, por exemplo, da de Rudolf Bultmann (Theologie des Neuen Testaments,
284 [cf. nota 18]), que assimila na realidade ca,rij e dikaiosu,nh (qeou/): “Die dikaiosu,nh hat also
ihren Ursprung in Gottes ca,rij”. Paralelamente, Hans Conzelmann (Grundriss der Theologie des

351
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
3.2. A participação no ser novo no batismo

A finalidade da transformação de Jesus Cristo é a participação dos crentes


nesse acontecimento fundador57: “Com efeito, vós conheceis a generosidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo, que, por vós, de rico que era, fez-se pobre, para vos
enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). Deus “identificou com o pecado
aquele que não conheceu o pecado, a fim de que por ele nos tornemos justiça de
Deus” (2Cor 5,21). A Páscoa constitui também um ato de Deus para com seus
discípulos e apóstolos, pois Deus lhes revelou que o Crucificado estava vivo. Des-
se modo, a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é para Paulo um ato úni-
co, cujos efeitos, todavia, perduram e chocaram o mundo. Deus se identifica a tal
ponto com o Crucificado que seu poder vivificante manifestado na ressurreição
ainda age: “Pois foi para ser Senhor dos mortos e dos vivos que Cristo morreu e
tornou à vida” (Rm 14,9). As forças próprias da ressurreição agem no presente e
suscitam sua própria certeza: “Mas se estamos mortos com Cristo, cremos que
também viveremos com ele” (Rm 6,8; cf. 2Cor 1,9; 5,15).
É no batismo que se realiza a participação nessas forças de ressurreição que
sempre agem no mundo. Cruz, ressurreição e batismo não se sucedem como a
causa e a consequência, mas o acontecimento original está constantemente presente
em seus efeitos. Em Romanos 6, o ponto de partida da argumentação paulina reside
na articulação pecado–graça58. Os dois se opõem, pois o Cristo vive na esfera da
ca,rij (“graça”) e é, assim, morte para o pecado. Paulo fundamenta essa afirmação

Neuen Testaments, ed. von Andreas Lindemann,Tübingen, Mohr Siebeck, 41987, 236 s. [UTB 1446])
e James D. G. Dunn (The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids [MI], Eerdmans, 1998, 319-323)
discernem na doutrina exclusiva da justificação de Romanos a elaboração da doutrina paulina da
graça. O propósito de Bultmann é sem dúvida válido para a carta aos Romanos; em contrapartida,
a compreensão paulina da graça não se identifica em geral às concepções da justificação da Lei
desenvolvida em Romanos! A graça de Deus em Jesus Cristo não deve ser confundida com um de
seus preceitos interpretativos.
57. Cf. Albert Schweitzer, Die Mystik des Apostels Paulus, Tübingen, Mohr Siebeck, 21954, 116:
“Der ursprüngliche und zentrale Gedanke der Mystik Pauli ist also der, daß die Erwählten mitei-
nander und mit Jesu Christo an einer Leiblichkeit teilhaben, die in besonderer Weise der Wirkung
von Sterbens- und Auferstehungskräften ausbesetzt ist und damit der Erlangung der Seinsweise der
Auferstehung fähig wird, bevor noch die allgemeine Totenauferstehung statt hat”.
58. Para um comentário de Romanos 6, ver Udo Schnelle, Gerechtgkeit und Christusgegenwart.
Vorpaulinische und paulinische Tauftheologie, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 21986, 74-88,
203-215 (discussão da pesquisa) (GTA 24); Hans Dieter Betz, Transferring a Ritual: Paul’s Inter-
pretation of Baptism in Romans 6, in Troels Engberg-Pedersen (ed.), Paul in his Hellenistic Context,
Edinburgh, T & T Clark, 1994, 84-118; Dieter Hellholm, Enthymemic Argumentation in Paul:
The Case of Romans 6, in Troels Engberg-Pedersen (ed.), Paul in his Hellenistic Context, 119-179;
Christian Strecker, Die liminale Theologie des Paulus, 177-189 (cf. nota 25); Helmut Umbach, In

352
V – O centro da teologia paulina
ao fazer referência ao batismo, que, por ser um batismo na morte do Cristo, tem
por consequência a morte do cristão para o pecado. Com a ajuda de um elemento
tradicional (Rm 6,3b-5)59, Paulo tenta uma ilustração desse acontecimento decisi-
vo para a vida do cristão.A expressão o[soi evbapti,sqhmen eivj Cristo.n Iv hsou/n (“nós
que fomos batizados em Cristo”) designa a incorporação dos batizados na obra e
na espera da salvação de Jesus Cristo.As formulações paralelas eivj to.n qa,naton (“na
morte”) atestadas nos versículos 3b e 4a, bem como a expressão do versículo 2, que
pressupõem esferas de poder pw/j e[ti zh,somen auvth/| (“como podemos viver nele
[no pecado]”)60, advogam em favor de uma interpretação espacial e material de eivj.
A ideia de uma transposição é retomada e amplificada pelos conceitos de integração
e participação. A morte de Jesus Cristo está presente no batismo, de sorte que o ato
batismal pode ser compreendido como um remanescente sacramental da morte
presente de Jesus através dos cristãos. Somente a morte de Cristo pôs um termo
definitivo ao pecado; ela está agora presente no batismo graças ao poder do Espírito
e trabalha para a morte efetiva (realiter) do cristão para o pecado. A morte de Jesus
Cristo no Gólgota e a permanência sacramental dessa morte, que tem como efeito
a própria morte no batismo, não são idênticas; todavia, o batismo é o lugar em que
a significação salvífica da morte de Jesus se torna realidade para o cristão. É aí
que se realiza o aniquilamento do corpo do pecado e se institui uma existência
nova, a qual se desdobra como uma vida kata. pneu/ma (“segundo o Espírito”).
Romanos 6,4 reforça a concepção da participação exposta no versículo 3b;
com efeito, tanto o prefixo su,n (“com”) como o comparativo w[sper … ou[twj
(“assim como… também) apontam para uma grande conformidade entre o Cristo
e os batizados. A fórmula suneta,fhmen (“fomos sepultados com ele”) ressalta a
dimensão total da salvação adquirida no batismo. O batismo oferece uma partici-
pação efetiva no acontecimento da salvação em seu todo, ou seja, também na res-
surreição de Jesus Cristo. A subordinada final de Romanos 6,4b.c, introduzida por
i[na e construída com w[sper … ou[twj, o manifesta claramente. A ideia de uma
conformidade tanto objetiva como temporal entre o Cristo e os seus por ocasião
da ressurreição deveria levar de maneira consequente à seguinte formulação: w[sper
… ou[twj kai. h`mei/j evk nekrw/n evgerqw/men (“assim como… também nós fomos

Christus getauftvon der Sünde befreit. Die Gemeinde als sündenfreier Raum bei Paulus, Göttingen,
Vandenhoeck, 1999, 230-257 (FRLANT 181).
59. Cf., por exemplo: Hans Lietzmann, An die Römer, Tübingen, Mohr Siebeck, 51971, 67
(HNT 8); Ernst Käsemann, An die Römer,Tübingen, Mohr Siebeck, 21974, 157 (HNT 8a); Helmut
Umbach, In Christus getauft — von der Sünde befreit, 239 s. (cf. nota anterior).
60.Ver nesse sentido Ernst Käsemann, An die Römer, 156 (cf. nota anterior); Helmut Umbach,
In Christus getauft — von der Sünde befreit, 240 (cf. nota 58).

353
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
ressuscitados dentre os mortos”)61. Com efeito, Paulo não tira essa conclusão, mas
caracteriza o ser presente e futuro do cristão com a ajuda da expressão ética e es-
catológica evn kaino,thti zwh/j peripath,swmen (“levar uma vida nova”)62. A morte
para o pecado não dá motivo a uma mudança substancial do ser humano: ele não
é tirado das condições de vida que eram as suas e continua a viver no contexto
deste cosmo efêmero. A realidade nova da libertação do pecado é sobrepujada por
uma reserva escatológica; não é demonstrável dentro do mundo e deve se verificar
historicamente. Crentes e batizados ainda não são ressuscitados, mas tomam parte
plena nas forças da ressurreição do Cristo, que penetram no cosmo todo e o trans-
formam (cf. Rm 8,18 ss.). De certo modo, todavia, esse esclarecimento não vem
relativizar as verdadeiras mudanças ocorridas na vida dos batizados!63
Na arquitetura de toda a epístola aos Romanos, o capítulo 6 é herdeiro de
uma função-chave: é aí que Paulo elucida a transferência para o ser novo. Em Romanos
6, o aspecto fundamentalmente participativo da teologia paulina transparece sobre
o plano semântico na acumulação incomum de su,n (v. 8) e de termos compostos
com o prefixo su,n& (v. 4.5.6.8).A transformação numa vida nova no poder do Espí-
rito já começou, em sentido próprio, e não somente como uma percepção diferen-
ciada do mundo. Pelo batismo, os crentes foram incorporados numa nova esfera e a
entrada na vida eterna se realizou (Rm 6,23). A libertação do pecado e a inaugura-
ção poderosa do ser novo incluem a liberdade da Lei/Torá, pois prevalece a regra de
que “não estais mais sob a lei, mas sob a graça” (Rm 6,14). O enraizamento ritual da
temática da justiça não é fruto do acaso64. O batismo é o lugar onde se realizou para
os cristãos uma mudança fundamental de condição, que os transferiu da esfera do
pecado para a da justiça. Como os rituais são condensações de concepções religiosas
do mundo, cabe ao batismo um papel fundamental para o pensamento paulino. É no
ritual que se realiza a construção teológica e social do novo homem “em Cristo”65.

61. Cf. Rudolf Bultmann, Theologie des Neuen Testaments, 143 (cf. nota 18).
62. É aqui que reside a diferença decisiva com Colossenses 2,12; 3,1-4; Efésios 2,6, que evocam
uma ressurreição (na fé) já realizada no batismo; para uma análise desse texto cf. Erich Grässer,
Kolosser 3,1-4 als Beispiel einer Interpretation secundum homines recipientes, in Text und Situa-
tion. Gesammelte Aussätze zum Neuen Testament, Gütersloh, G. Mohn, 1973, 129 ss.
63. Cf. Helmut Umbach, In Christus getauft — von der Sünde befreit, 247 (cf. nota 58). Christian
Strecker (Die liminale Theologie des Paulus, 177-189 [cf. nota 25]) acentua de modo diferente, dando
grande destaque à separação dos batizados do pecado; afirma, de outra parte, com base numa com-
preensão ritual da morte, que os batizados morrem de modo “symbolisch effektiv” (188).
64. Cf. ibid., 210.
65. Cf. Gerd Theissen, Die urchristliche Taufe und die soziale Konstruktion des neuen Mens-
chen, in Jan Assmann, Guy G. Stroumsa (ed.), Transformation of the Inner Self in Ancient Religions,
Leiden, Brill, 1999, 87-114 (107 ss.) (Studies in the History of Religion 83).

354
V – O centro da teologia paulina
Consequentemente, o recurso ao batismo não vem ilustrar66 conteúdos teo-
lógicos, biográficos ou sociais. O batismo é, ao contrário, o lugar mesmo desse
acontecimento: (1) Pelo batismo, os crentes se tornam plenamente participantes
do poder soteriológico da cruz; são assimilados ao destino semântico de seu mes-
tre. (2) No batismo dá-se realística e historicamente a separação do poder do pe-
cado. (3) É no batismo que o dom do Espírito e da justiça se realiza. (4) O novo
ser inscrito na força do Espírito se dá como uma consequência durável do batis-
mo. (5) O batismo confere uma nova identidade tanto individual como social. O
indivíduo é tirado do domínio profano e recebe um novo entendimento de si e
do mundo. (6) A incorporação no corpo do Cristo, que é uma entidade crente e
social, modifica o pensamento, o agir e o sentir dos batizados. Não se deve con-
fundir o batismo com a salvação67; nele a salvação é efetiva, pois Deus o escolheu
como lugar de seu agir realista e histórico para os homens. No batismo, a morte
de Jesus e as forças de sua ressurreição estão presentes, juntas, de sorte que o ato
batismal deve ser entendido como uma remanência sacramental da morte presen-
te de Jesus e uma incorporação à realidade da ressurreição.

3.3. O Espírito, princípio que congrega o pensamento paulino

Uma vez que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos e que no batismo
integra, com seu poder, os crentes nesse acontecimento, o Espírito de Deus assu-
me um lugar preponderante no pensamento paulino. Essa importância transpare-
ce na função-chave da pneumatologia para a conexão interna entre teologia, cris-
tologia, soteriologia, antropologia, ética e escatologia68. Somente o poder
integrador da pneumatologia é capaz de conferir uma dimensão sistêmica à inter-
pretação paulina da história de Jesus Cristo.
Teologia: a realidade de Deus no mundo é realidade do Espírito. No pneu/ma,
unido prioritariamente a Deus (cf. 1Ts 4,8; 1Cor 1,12.14; 2Cor 1,21; 5,5;

66. Contra Klaus Haacker (Der Brief des Paulus an die Römer, Leipzig, Evangelische Verlagsans-
talt, 1999, 126 [ThHK 6]), que mesmo em Romanos 6 não reconhece o batismo como um tema
específico.
67. Na história recente da teologia, as alternativas postas por Markus e por Karl Barth levaram
a teorias inadequadas; para uma história da pesquisa, cf. Udo Schnelle, Gerechtigkeit und Christus-
gegenwart, 11-32 (cf. nota 58).
68. Para a função integrativa e organizadora da pneumatologia, cf. igualmente: Heinrich Schlier,
Grundzüge paulinischer Theologie, Freiburg i.Br., Herder, 1978, 179-194; Friedrich Wilhelm Horn,
Das Angeld des Geistes. Studien zur paulinischen Pneumatologie, Göttingen, Vandenhoeck &
­Ruprecht, 1992, 385-431 (FRLANT 154); James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 413-
441 (cf. nota 58).

355
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
Gl 4,6; Rm 5,5), manifesta-se o poder vivificador do Criador69. O Espírito de
Deus não tem como único efeito a ressurreição de Jesus (cf. Rm 1,3b-4a), mas
constitui ao mesmo tempo a nova modalidade de ser e de agir do Ressuscitado,
sua atualidade dinâmica e eficiente (cf. 2Cor 3,17; 1Cor 15,45). Pelo agir do Es-
pírito de Deus, os crentes são libertados do poder do pecado e da morte (cf. Rm
8,9-11). Os cristãos receberam um Espírito que se originou em Deus (cf. 1Cor
2,12; 6,19; “Ou não sabeis acaso que o vosso corpo é templo do Espírito Santo
que está em vós e que vos vem de Deus?”). A ação universal do Espírito de Deus
fundamenta toda a teologia paulina, pois o agir do Espírito de Deus em Jesus
Cristo e nos crentes constitui o sinal distintivo do presente período da salvação.
Agindo assim, o dom poderoso do Espírito por Deus fica em todos os seus modos
de ação ligado à sua origem70. O Espírito de Deus constitui o ponto de partida
inevitável de todas as afirmações paulinas sobre o Espírito, de sorte que sua teolo-
gia (e sua cristologia) fundamenta sempre a pneumatologia (e a soteriologia).
Cristologia: Jesus Cristo foi ressuscitado dos mortos pelo Espírito de Deus (cf.
Rm 1,3b-4a; também Rm 6,4; 2Cor 13,4), e sua ação fundamenta a singularidade
escatológica de Jesus Cristo. É em sua relação única a Deus que o Cristo exaltado
como pneuma vai haurir seu ser e seu agir. O Espírito serve igualmente de desig-
nação cristológica, pois Cristo e Espírito se correspondem (cf. 2Cor 3,17; o` de.
ku,rioj to. pneu/ma, evstin, “pois o Senhor é Espírito”)71. Mesmo o Cristo preexis-
tente assume o atributo de pneuma (1Cor 10,4). Como poder criador e vivifica-
dor, o Senhor é Espírito, o que significa que a pneumatologia descreve o modo de
ser e de agir do Cristo exaltado no seio da comunidade (cf. Gl 4,6: “Filhos, vós
bem que o sois: Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que
clama Abbá, Pai!”). O vínculo entre Espírito e Cristo é tão estreito que Paulo
julga impossível ter um sem ter o outro (cf. Rm 8,9b: “Se alguém não tem o Es-
pírito de Cristo não lhe pertence”). Desde a ressurreição é como Espírito ou no
Espírito que Jesus Cristo entra em relação com os seus. O Cristo exaltado age

69. Cf. Friedrich Wilhelm Horn, Kyrios und Pneuma, in Udo Schnelle, Thomas Söding, Mi-
chael Labahn (Hrsg.), Paulinische Christologie (Festscrhrift H. Hübner), Göttingen,Vandenhoeck &
Ruprecht, 2000, 59-75 (59).
70. Ver sobre o assunto especialmente Wilhelm Thüsing, Per Christum in Deum. Das Verhältnis
der Christozentrik zur Theozentrik, Münster, Aschendorff, 31986, 152-163 (NTA.NF 1).
71. Diferentemente, Friedrich Wilhelm Horn (Kyrios und Pneuma, 66 s. [cf. nota 69]), que
assimila o endereço ao Kyrios ao endereço ao Espírito de Deus e conclui:“Der Gedanke, daß Paulus
an dieser Stelle etwas über eine mögliche Identität von Kyrios (Christus) und Pneuma aussagen
will, ist somit abwegig” (67).

356
V – O centro da teologia paulina
como pneu/ma zw|opoiou/n (1Cor 15,45)72 e concede aos seus o sw/ma pneumatiko,n
(1Cor 15,44)73. O Espírito do Kyrios anima e molda a vida dos crentes (cf. Fl
1,19). Eles se tornam membros de seu corpo. A comunhão com o Senhor ressus-
citado é uma comunhão no Espírito (1Cor 6,17): “Aquele que se une ao Senhor
é com ele um só espírito”.
Soteriologia: ao acolher o Espírito de Deus (cf. 1Ts 4,8; 1Cor 2,12; 2Cor
1,22; 11,4; Gl 3,2.14; Rm 5,5; 8,15), os crentes batizados já se encontram ple-
namente na esfera da communitas do Cristo e, portanto, na salvação. Postos ao
lado do Espírito, o Cristo e os seus não estão mais submetidos ao reino da car-
ne, do pecado e da morte. Podem se apresentar diante do Julgamento futuro
fortalecidos pela convicção de que o dom do Espírito é penhor do “ainda não”
(cf. 2Cor 1,22; 5,5); consequentemente, futuro e presente se entrelaçam no agir
salutar do Espírito.
Antropologia: mediante o dom do Espírito de Deus ou do Cristo, os crentes
batizados fazem a experiência de uma redefinição, pois o Espírito molda e man-
tém o ser novo. A recepção do Espírito no batismo (cf. 1Cor 6,11; 10,4; 12,13;
2Cor 1,21 s.; Gl 4,6; Rm 8,14), início da comunhão em Cristo, marca a partici-
pação no acontecimento da salvação. Pelo batismo, o cristão tem acesso à esfera
do Cristo pneumático. O Cristo exaltado (cf. Gl 2,20; 4,19; 2Cor 11,10; Rm
8,10) e o Espírito (cf. 1Cor 3,16; 6,19; Rm 8,9.11) agem juntamente no crente.
Os enunciados recíprocos designam um fato fundamental para Paulo74: como o
crente é incorporado no Espírito do Cristo, assim o Cristo habita nele como
pneu/ma. A existência pneumática mostra-se como a consequência e o efeito do
batismo, que, por sua vez, como acontecimento salvífico, é uma ação na força do
Espírito. Dessa forma, Paulo caracteriza uma expressão antropológica fundamen-
tal, pois a vida do cristão deu uma guinada decisiva: determinado pelo Espírito, o
cristão vive na esfera do Espírito e se orienta sobre seu agir. Essa modificação
existencial do cristão, ocasionada pelo Espírito, e portanto pelo próprio Deus,

72. O termo pneu/ma zw|opoiou/n é atestado somente no Novo Testamento; cf. Friedrich Wilhelm
Horn, Das Angeld des Geistes, 197 s. (cf. nota 68); James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle,
261 (cf. nota 56). 1 Coríntios 15,46 mostra que Paulo argumenta de maneira antientusiasta e liga
conscientemente o conceito de Espírito ao Cristo ressuscitado.
73. Johannes Sijko Vos (Traditionsgeschichtliche Untersuchungen zur paulinischen Pneumatologie, As-
sen, Van Gorcum, 1973, 81) afirma com razão: “Als eschatologischer Adam ist Christus sowohl in
seiner Substanz als auch in seiner Funktion Pneuma. Als Pneuma erschafft Christus die Seinen
nach seinem Bilde, und das heißt: er verwandelt sie in seine pneumatische Wesernsart”.
74. Ver sobre esse assunto Udo Schnelle, Gerechtigkeit und Christusgegenwart, 120-122 (cf. nota
58); Samuel Vollenweider, Der Geist Gottes als Selbst der Glaubenden, ZthK 93 (1996) 163-192
(169-172).

357
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
revela a condição verdadeira do cristão. Ele não vive por ele mesmo, mas reside
sempre num espaço que o qualifica (cf. Rm 8,5-11)75: quer viva segundo a carne
(kata. sa,rka), quer viva segundo o Espírito (kata. pneu/ma). O Espírito possui
igualmente uma função noética76, pois somente ele torna possível e garante um
conhecimento do plano divino da salvação: “Não recebemos o espírito do mun-
do, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de conhecermos os dons da graça de
Deus” (1Cor 2,12). A participação no Espírito de Deus não suprime o espírito
individual dos seres humanos (cf. 1Cor 5,4; 14,14; 16,18; 2Cor 2,13; 7,1; Gl 6,18;
Rm 1,9: “meu espírito”; Fl 4,23; Fm 25: “vosso espírito”); está, ao contrário, ins-
crito num acontecimento dinâmico, firme, cercado de cuidados, transformado e
reorientado77. O conhecimento oferecido por Deus no Espírito abre a uma com-
preensão do agir de Deus que inclui o conhecimento humano e leva a um novo
agir, sem, todavia, minimizar ou aniquilar toda responsabilidade humana78. O ser
novo toma forma na interface do divino e do somático, cuja relação deve ser pen-
sada de maneira criativa e relacional.
Ética: o novo ser se desenvolve em harmonia com o Espírito, que funciona
como fundamento e norma do agir novo (cf. Gl 5,25; igualmente 1Cor 5,7; Rm
6,2.12; Fl 2,12 s.). O Espírito molda o ser novo do cristão, olhando por sua ma-
nutenção, encarregando-se de modo eficaz do ser e do querer dos cristãos. Os
crentes são introduzidos na existência regida pelo Espírito e devem agora se dei-
xar levar pelo Espírito. O Espírito é o poder e o princípio da vida nova. É por isso
que Paulo dirige aos gálatas esta questão desconcertante:“Será em virtude da prá-
tica da lei que recebestes o Espírito, ou por terdes escutado a mensagem da fé?”

75. Cf. Rudolf Bultmann, Theologie des Neuen Testaments, 227 s. (cf. nota 18).
76.Ver a esse respeito um paralelo pagão em Cícero (Tusc 5,70), que, depois de ter enumerado
as alegrias do sábio, declara: “Revolver noite e dia essas questões no espírito, refletir sobre elas sem
cessar, eis o ato de nascimento desse extraordinário estudo recomendado pelo deus de Delfos, que
quer que o pensamento reconheça sua identidade própria e tome consciência de sua participação
no pensamento divino, consciência que a penetra de uma alegria de que ela jamais se farta” (Cicero,
Le Bonheur [IVème Tusculanes], trad. do latim e apresent. Ch. Labree, Paris, Arléa, 1993, 110).
77. As afirmações paulinas a respeito da relação do Espírito de Deus com o espírito humano
continuam abertas e indeterminadas, pois esse mistério escapa a toda conceitualidade estática; po-
dem-se encontrar reflexões nesse sentido em Samuel Vollenweider, Der Geist Gottes als Selbst der
Glaubenden, 175 ss. (cf. nota 74); cf. 189: “Der Geist bewegt das Ich dazu, sich selbst im Sinne
seiner sarkischen Herkunft preiszugeben, sich zu lassen, zu ‘sterben’, um vom göttlichen Geist
durchdrungen neu zu erstehen [cf. Gal 2,19s; 6,14b]. Allein in diesem elementaren Prozeß kommt
es zur Präsenz des Pneuma im Selbst”).
78. Sobre esse ponto,Wolfgang Schrage (Ethik des Neuen Testaments, Göttingen,Vandenhoeck &
Ruprechtd, 21989, 181 [GNT 4]) parece-me problemático: “Der Geist ist vielmehr Inbegriff des
neuen Lebens bis in alle, auch unscheinbaren Einzelheiten und Altäglichkeiten hinein”.

358
V – O centro da teologia paulina
(Gl 3,2). Simultaneamente, torna-se evidente que não há novo comportamento
sem agir renovado! O Espírito que se doa quer ser compreendido. É precisamente
porque o Espírito incorpora o crente batizado na esfera de Deus e no espaço da
comunidade que ele não se encontra mais na vacuidade de um espaço sem poder,
mas se mantém firme diante da exigência de uma nova obediência que se torna
possível pelo Espírito79. Deus não se aproxima mais com exigências externas da-
queles que vivem no campo da ação do Espírito80. A Lei/Torá e o Espírito estão
em lados opostos, pois, “se sois guiados pelo Espírito, não estais mais sujeitos à lei”
(Gl 5,18; cf. Rm 6,14). A novidade da vida (Rm 6,4) se desdobra na novidade do
Espírito (Rm 7,6).
Escatologia: o Espírito, dom presente do porvir, apresenta-se como fiador da
confiança na fidelidade escatológica de Deus (cf. 2Cor 1,22; Rm 8,23). O Espí-
rito de Deus ou do Cristo não determina apenas o presente, mas igualmente o
futuro, pois garante no último Dia a transferência dos crentes para um modo de
existência espiritual (cf. 1Cor 15,44.45) e oferece a vida eterna (cf. Gl 6,8:
“Quem semeia para o Espírito colherá o que produz o Espírito: a vida eterna”).
No cerne desse acontecimento, o Espírito surge ao lado mesmo da criatura em
oração e representa os santos diante de Deus (cf. Rm 8,26)81. O Espírito de Deus
concedido no batismo, que habita no cristão, aparece como o agente permanen-
te do poder vivificador de Deus. O que Deus realizou em Cristo se encontra
oferecido como partilha aos crentes por meio do Espírito (cf. Rm 8,11). A rela-
ção criadora do Espírito com o corpo garante a existência de seu ser novo para
além da morte.

4. Conclusões

A base e o centro do pensamento paulino residem na presença escatológica


da salvação de Deus em Jesus Cristo. Paulo foi submergido pela experiência e pela
descoberta de que Deus havia posto em Jesus Cristo crucificado, ressuscitado e
logo de volta seu desígnio final de salvação para todo o mundo. O próprio Deus
provocou essa reviravolta do tempo. Instaurou uma realidade nova em que o
mundo e a condição mundana do ser humano aparecem sob uma luz diferente.
Um acontecimento totalmente inesperado e singular modificou completamente

79. Ernst Käsemann ressalta constantemente esse aspecto (cf., por exemplo, em Römer, 26 [cf.
nota 59]: “Denn der Apostel kennt keine Gabe, die uns nicht fordernd in Verantwortung stellt, sich
uns gegenüber also als Macht erweist und uns Raum zum Dienst schafft”).
80. Cf. Hans Lietzmann, Römer, 71 (cf. nota 59).
81. Para um comentário, ver Friedrich Wilhelm Horn, Angeld des Geistes, 294-297 (cf. nota 68).

359
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
o pensamento e a vida de Paulo.Viu-se ele diante da tarefa de reinterpretar à luz
do acontecimento crístico a história do mundo e da salvação, seu próprio papel
no plano salvífico, bem como o agir passado, presente e futuro de Deus. A teologia
paulina é a partir daí tanto uma percepção do novo como uma interpretação do
passado. Paulo esboçou um cenário escatológico em que a vontade de Deus estabele-
ce o fundamento, em que a ressurreição e a parusia de Jesus Cristo constituem a
pedra angular, em que o Espírito dá o poder determinante, em que a participação
dos crentes no novo ser é o fim presente e em que a transformação na existência
pneumática junto de Deus constitui o ponto de chegada. Desde a ressurreição de
Jesus Cristo, o Espírito de Deus age de novo82, os batizados são libertados do pe-
cado e tecem uma relação qualitativamente nova com Deus e o Kyrios Jesus Cristo.
A eleição dos cristãos, que se torna visível no batismo e no dom do Espírito, bem
como sua vocação a serem participantes do Evangelho conservam sua validade até
o eschaton: entrelaçam-se experiência presente da salvação e esperança futura de
redenção83. A reserva escatológica (cf. 1Cor 13,12; 2Cor 4,7; 5,7; Rm 8,24) não
gera nenhuma limitação objetiva da existência essencialmente nova dos crentes84,
mas caracteriza a estrutura temporal da existência cristã e seu cumprimento na
ressurreição futura. Já no presente, os batizados passam sem reserva da esfera da
morte à da vida. Não somente uma nova compreensão do ser, mas o próprio ser
novo já começou plenamente. Os crentes tomam parte agora de um processo uni-
versal de transformação, iniciado pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos,
continuado no agir presente poderoso e salvífico do Espírito e chamado a termi-
nar numa transformação gloriosa de toda a criação. A teologia paulina está intei-
ramente impregnada da ideia do presente da salvação85.

82. Cf. Panim Kim, Heilsgegenwart bei Paulus. Eine religionsgeschichtlich-theologische Untersuchung zu
sündernvergebung und Geistgabe in den Qumrantexten sowie bei Johannes dem Täufer, Jesus und Paulus,
Dissert. teol., Göttingen, 1996, 180: “Die Wirkung des Geistes Gottes in der Welt setzt für Paulus
nach dem Ende der Prophetie in Israel wieder ein mit dem Tod und der Auferweckung Jesu Chris-
ti. Mit der Annahme und Auferweckung des zu Unrecht Gekreuzigten setzt Gott seinen Geist
erneut in Kraft, um die Welt in Gericht und Vollendung zu führen. Seit dem Tod und der Auferwe-
ckung Christi sind die Menschen dazu aufgerufen, sich der Gemeinschaft, in der der Geist wirkt,
anzuschließen“.
83. Cf. Daniel Glenn Powers, Salvation through Participation: An Examination of the Notion of
the Believers’ corporate Unity with Christ in Early Christian Soteriology, Leiden, 2001, 234: “Paul
even describes the believers’ eschatological resurrection as a participation in Jesus’ resurrection“.
84. Diferentemente, Christian Strecker (Die liminale Theologie des Paulus, 211 [cf. nota 25]), para
quem os batizados são “pessoas liminares”, “die zwar von der alten Existenz unter der Sünde befreit
sind, in denen das neue Sein allerdings erst anbruchhaft wirkt”.
85. Cf. Panim Kim, Heilsgegenwart bei Paulus, 177-186 (cf. nota 82). O autor vê no dom do Es-
pírito pelo batismo a especificidade do pensamento paulino sobre o plano da teologia e da história

360
V – O centro da teologia paulina
Inevitáveis aporias

Esse modelo do pensamento constitui a base da argumentação paulina em


todas as suas cartas; ao mesmo tempo, deixa sem resposta questões que sempre
tiveram mais impacto para Paulo: como se tornar e como continuar membro da
comunidade eleita de Deus? Nessa interrogação central se enxertam numerosos
problemas particulares: como articular a primeira e a segunda revelação de Deus?
Os pagão-cristãos devem ser circuncidados por ocasião de sua entrada na comu-
nidade de Deus? Para os judeu-cristãos e os pagão-cristãos, que significado dar à
obediência aos mandamentos da Torá? Qual a relação dos cristãos com o Israel
empírico? O grande sucesso da missão paulina entre os pagãos, livre da circunci-
são, pôs Paulo em confronto com problemas enormes. Ele tinha de pensar junto
e conduzir a um acordo interno o que escapava a qualquer harmonização: a pri-
meira Aliança de Deus continua válida, mas somente a nova Aliança salva. O
povo de Israel deve se converter ao Cristo para formar com os crentes pagãos o
único e verdadeiro povo de Deus. Para afirmar a unidade do que estava separado,
Paulo se viu logo forçado a oferecer uma racionalização a posteriori da questão da
Lei e do problema de Israel. Sua imagem de Deus não o autorizava a declarar o
fracasso da primeira aliança. Não podia nem queria aceitar que Deus tomasse ou
fosse forçado a tomar um segundo movimento para conceder de uma vez por
todas a redenção e a salvação ao mundo86. É por isso que Paulo teve de se conten-
tar com contradições, imprecisões e argumentações sofisticadas87.Tudo isso não é
fruto de seu arbítrio ou de sua incapacidade, mas decorre objetivamente de
questões em suspenso, que, no fundo, continuam pendentes ainda hoje. Não po-
dem ser resolvidas, pois somente Deus sabe sua resposta! A importância da Torá
para os cristãos e a relação deles com Israel foram outros tantos problemas teoló-
gicos e históricos que Paulo foi levado a se pôr. Decerto, ganham importância lá
pelo fim de sua atividade missionária, mas, de fato, continuaram como fenôme-
nos secundários. Até mesmo Gálatas e Romanos, caracterizadas pela temática da
Lei e da justiça, fazem aparecer com clareza que o que forma o fundamento

das religiões.
86. Ed P. Sanders (Paulus. Eine Einführung, Ditzingen, Reclam, 1995, 167 s. [Reclam Universal-
Bibliothek 9365]) ressalta com razão que Paulo era guiado em seu pensamento por princípios
imutáveis.
87. Esse aspecto não é levado em consideração por Heikki Räisänen (Paul and the Law, 266 s. [cf.
nota 29]) quando constata: “it is a fundamental mistake of much Pauline exegesis in this century to
have portrayed Paul as ‘the prince of thinkers’ and the Christian ‘theologian par excellence’”. Paulo
foi mais que um pensador original, pois sua obra apresenta uma dimensão sistemática, a despeito
dos problemas mencionados, dimensão desconhecida por Räisänen.

361
O presente da salvação, centro do pensamento paulino
permanente do pensamento paulino não são categorias jurídicas, mas a ideia de
transformação e de participação88.

88. Para a gênese da doutrina paulina da justificação, cf. Udo Schnelle, Paulus. Leben und
Denken, Berlin/New York, de Gruyter, 2003, 579-598.

362
V – O centro da teologia paulina
A verdade do Evangelho e a nova criação:
o apóstolo Paulo como intérprete
de Jesus de Nazaré
François Vouga (Bethel)

No centro da teologia paulina encontra-se uma exigência de verdade. Ora, a verdade se re-
velou no acontecimento da cruz, que designa, nas cartas de Paulo, a manifestação pascal do
Crucificado — estando ele como homem totalmente desqualificado — como Filho de Deus.
Segue-se que a verdade do Evangelho de Deus, anunciada pelo apóstolo, situa-se na conti-
nuidade imediata da comensalidade de Jesus com os coletores de impostos e com os pecadores.
Ela proclama, com efeito, a criação nova de indivíduos que, justificados pela confiança na
confiança de Jesus Cristo, ou seja, reconhecidos e amados como pessoas independentemente
de suas qualidades — para retomar os termos de Blaise Pascal —, receberam uma nova
consciência deles mesmos como sujeitos livres e responsáveis.

S inal de novos tempos, Paulo se mostra no centro do debate de filósofos e de


historiadores da cultura1. A situação não deixa de ser interessante. Com efeito,
quando o Evangelho paulino é denunciado ou repelido para as margens da refle-
xão, ele o é por razões que, do ponto de vista de sua lógica mesma, são periféricas,
ao passo que, ao ser projetado para diante da cena, parece sê-lo, de diversas pers-
pectivas, em função de seu próprio núcleo.
Qual é, pois, a verdade do apóstolo sobre a qual se pensa poder fundamentar,
após o fim declarado das ideologias, uma reconquista do sentido da história, uma
revalorização do indivíduo e uma reconstrução do universalismo?

1. O estudo sucinto que propõe Paul Ricoeur (Paul apôtre. Proclamations e argumentation,
Esprit 292 [fev. 2003] 85-102) basta para nos servir de indicador.

363
1. O problema da verdade do Evangelho

A consistência lógica do Evangelho paulino é regularmente objeto de dis-


cussão2. Ora, o conceito de verdade tem um papel central na argumentação epis-
tolar do apóstolo. Não é empregado apenas como um termo de moral (1Cor 5,8;
13,6), mas sobretudo como o critério sobre o qual se julgam tanto a compreen-
são de Deus (Rm 1,18.25; 2,2.8.20; 3,7; 15,8) como a autoridade do Evangelho
(Gl 2,5.14) e da pregação apostólica (Rm 9,1; 2Cor 4,2; 7,14; 11,10; 12,6; 13,8;
Gl 5,7; Fl 1,18).
A primeira tese que defenderei é que a passagem da mentira para a verdade
decorre de uma mudança de ponto de vista sobre a pessoa de Jesus de Nazaré.
Uma experiência fundamental fez passar o apóstolo de uma interpretação do
Cristo que depois ele qualifica de humana (“segundo a carne”, 2Cor 5,16) a ou-
tra compreensão que o reconhece como o Filho de Deus (Gl 1,16).

1.1. A subjetividade da verdade do apóstolo

A verdade é uma questão de subjetividade. É essa a evidência que surge na


leitura das epístolas paulinas.
Subjetivo não significa evidentemente relativo, como se o conceito de
subjetividade implicasse uma flexibilidade individual da verdade que suprimi-
ria a oposição entre a verdade e o erro pela ideia de uma multiplicidade de
verdades. Decerto, podemos constatar que para o apóstolo a diversidade é
constitutiva da unidade, como o demonstra a concepção que ele tem de sua
colaboração com seus colegas, da relação entre as comunidades e seus apósto-
los (1Cor 1,10-4,18) ou de estruturas políticas internas das Igrejas (1Cor
12,1-31a). Pode-se ver também que a renúncia a impor suas próprias convic-
ções e suas próprias práticas resulta do respeito e da liberdade cristã, pois tudo
é permitido, mas nem tudo é útil nem edifica (1Cor 6,12; 10,23). Nenhuma
dificuldade, todavia, que o Evangelho possua um valor de verdade e que a

2. Podemos, por exemplo, citar Albert Schweitzer, La mystique de l’apôtre Paul, Paris, A.
­ ichel, 1962 (or. al. 1930); Ed P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism: a Comparison of Patterns
M
of Religion, London, SCM Press, 1977; Heikki Räisänen, Paul and the Law, Tübingen, Mohr
Siebeck, 1983 (WUNT 29). Devemos a Johan Christiaan Beker (Paul’s Theology: Consistent or
Inconsistent?, NTS 34 [1988] 364-377) um modelo que evidencia, a partir de uma interpretação
apocalíptica da teologia paulina, a dialética necessária entre coerência e contingência, que é pró-
pria desta última. Seyoon Kim (Paul and the New Perspective: Second Thoughts on the Origin of
Paul’s Gospel, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002 [WUNT 140]) faz uma boa análise crítica do re-
cente debate.

364
V – O centro da teologia paulina
verdade do Evangelho possa ser explicada, mas não discutida (Gl 2,5.14). Ao
Evangelho pode-se, com certeza, tentar opor outros evangelhos, mas eles não
existem (Gl 1,6-9).
Ora, como indica o próprio termo subjetividade, a realidade da verdade não
existe por si mesma, como se pudéssemos definir “o Verdadeiro” à moda de Platão,
mas a verdade é uma questão de relação. Partindo do mais imediato, notaremos
que ela qualifica primeiro a relação do sujeito consigo mesmo. Assim, Paulo não
diria senão a verdade se se orgulhasse de suas visões e das revelações que lhe foram
feitas (2Cor 12,6). Ele diz a verdade ao levar em consideração suas preocupações
pela salvação de Israel (Rm 9,1). Ora, declara ele, sua consciência é testemunha
disso (9,2). Quando o apóstolo declara dizer a verdade, invoca outra relação dife-
rente da que mantém consigo mesmo, pois a consciência é para ele uma instância
de discernimento que reclama, ela própria, critérios exteriores de julgamento3. A
realidade à qual refere a verdade de sua relação consigo mesmo é a da palavra que
anuncia: ele não tenta enganar com a palavra de Deus, mas tem intenção, ao con-
trário, de ganhar a consciência da humanidade, tornando manifesta a verdade
(2Cor 4,2; cf. 2Cor 7,14).

1.2. A verdade fundadora da verdade do Evangelho

A verdade da relação que o sujeito paulino mantém com ele próprio está,
portanto, fundamentada na verdade de uma relação que fundamenta externa-
mente sua identidade e sua missão. É por isso que Paulo pode afirmar que o Evan-
gelho, pela verdade, arrasta para a liberdade os que o escutam (Gl 5,7).
É, aliás, interessante constatar que essa verdade é ao mesmo tempo uma força
que domina a pessoa do apóstolo — pois está sem poder contra a verdade e não
tem poder senão pela verdade (2Cor 13,8) — e uma realidade que se impõe in-
dependentemente da sinceridade dos pregadores (Fl 1,18).
Qual é, pois, essa verdade que liberta? A resposta de Paulo invoca o que ele
designa como a “verdade de Deus” (Rm 15,8). O que é então a verdade de Deus?
Em vez de uma definição da verdade, o apóstolo remete de novo a um jogo de
relações intersubjetivas. A verdade de Deus se exprime, com efeito, por uma dupla
ação atribuída à figura do Cristo: este se tornou ao mesmo tempo o servidor dos
circuncisos, a fim de fortificar a promessa feita aos pais (Rm 15,8), e o fundador

3. Romanos 2,15; 9,1; 13,5; 1 Coríntios 8,7.10.12; 10,25.27-29; 2 Coríntios 1,12; 4,2; 5,11. A
consciência fraca (1Cor 8,7.10.12) não é uma consciência débil, mas uma consciência incerta dos
critérios de julgamento e da ação aos quais ele deve se referir.

365
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
de seu universalismo, de maneira que os próprios pagãos se puseram a glorificar a
Deus (Rm 15,9a).
Segue-se que a verdade divina que fundamenta a verdade da relação do su-
jeito consigo mesmo é também ela uma verdade subjetiva. Resulta, segundo a
afirmação do apóstolo dos pagãos, da fidelidade de Deus à sua promessa e se ma-
nifestou na figura que Paulo qualifica como Cristo.
O conceito de verdade que Paulo emprega caracteriza, pois, a relação que
Deus mantém com ele mesmo em sua fidelidade à promessa. É sobre essa verdade
que se fundamenta a relação de verdade que Deus estabelece com o sujeito e que
determina certa relação de verdade entre as instâncias da subjetividade individual
e entre sujeitos.

1.3. O processo de verdade do Evangelho

Não há sentido algum em introduzir o conceito de verdade se não for para


opor a verdade à possibilidade do erro ou da mentira. Ora, quando Paulo denun-
cia a ilusão na qual se encontra a humanidade, que mantém a verdade cativa da
injustiça (Rm 1,18), que troca a verdade de Deus pela mentira e que confunde a
criatura com o Criador (Rm 1,25; 3,7), anuncia, para falar com propriedade, um
processo de verdade4. Como o conhecimento da Lei — na qual a verdade está,
todavia, inscrita (Rm 2,20) — não basta para fazer compreender a justiça de
Deus, esse processo implica um estabelecimento de critérios de verificação.
As cartas de Paulo propõem dois critérios de verificação:
1) O primeiro critério é de ordem hermenêutica. É o da revelação da justiça
de Deus na morte e na ressurreição de Jesus.
2) O segundo é de ordem prática. Leva em conta a identidade nova e a nova
consciência de si que a revelação conferiu ao apóstolo e aos que, como
ele, creram.
É surpreendente que o conceito paulino de nova criação, que por duas vezes
sai da pena do apóstolo (2Cor 5,17 e Gl 6,15), não designa algo como a realidade
espiritual dos corpos ressuscitados (1Cor 15,35-50), mas qualifica a existência pre-
sente e cotidiana dos crentes. Tampouco descreve a visibilidade de um mundo
novo, como se uma determinada realidade devesse tomar o lugar de outra, mas uma
transformação do sujeito: “vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim”
(Gl 2,20a). A nova criação é, como a verdade, da ordem da subjetividade.

4. Alain Badiou, Abrégé de métapolitique, Paris, Seuil, 1998 (L’ordre philosophique).

366
V – O centro da teologia paulina
Ora, a nova criação provém, para o apóstolo, do fato de ele não conhecer
mais Cristo apenas segundo a carne (2Cor 5,16) ou, o que sem dúvida dá na mes-
ma, do fato de que deposita agora toda sua esperança na cruz (Gl 6,15). Uma
mudança de olhar ocorreu a respeito daquele cujas aparições (1Cor 9,1; 15,7) ou
o próprio Deus (Gl 1,12.16) revelaram que morreu por todos, a fim de que os
vivos não vivam mais para eles mesmos, mas para aquele que morreu e ressuscitou
por eles (2Cor 5,15). A verdade se identificou com uma pessoa, Cristo (2Cor
11,10), e é a revelação divina de Jesus crucificado como Filho de Deus que cons-
titui e fundamenta ao mesmo tempo a vocação de Paulo como apóstolo dos pa-
gãos (Gl 1,15-17) e a verdade do Evangelho (Gl 2,5.14).

2. Paulo e a tradição das palavras de Jesus5

A segunda tese que eu gostaria de defender é que o pouco interesse que o


apóstolo parece manifestar em suas cartas pela tradição de Jesus não se deve nem
ao gênero literário delas — como se ninguém se esforçasse por carregar sua cor-
respondência com todo o seu saber —, nem mesmo à sua ignorância. Deve-se
mais ao fato de que a verdade de seu Evangelho não está fundamentada nem em
seu conhecimento segundo a carne (2Cor 5,16) nem nas tradições humanas que
são as palavras de Jesus transmitidas pela Fonte Q ou pelo evangelho de Tomé
(Gl 1,10-12), mas nas aparições do próprio Ressuscitado:“Vi Jesus, nosso Senhor”
(1Cor 9,1); “também me apareceu a mim” (1Cor 15,8); “Deus revelou seu Filho
em mim” (Gl 1,16; cf. Gl 1,12).

2.1. Paulo e a questão do Jesus histórico

Reconheçamo-lo, o desenvolvimento do pensamento teológico do apósto-


lo e sua compreensão do Evangelho parecem perfeitamente se abster de qual-
quer referência à vida e à pregação do Jesus da história6. Parece que para Paulo
conta apenas o duplo acontecimento da “cruz”, ou seja, de sua morte e de sua
ressurreição.

5. A argumentação a seguir constitui o objeto de uma comunicação por ocasião do congresso


internacional de Salamanca “Biblia, memoria histórica y encrucijada de culturas” (9 a 11 de setem-
bro de 2002).
6. Pode-se encontrar no livro de Giuseppe Barbagio, Paolo di Tarso e le origini cristiane (Assisi,
Citadella, 32002, 240-252 [Commenti e Studi Biblici]), um capítulo consagrado às concordâncias
históricas e literárias das epístolas com a história de Jesus de Nazaré, que faz um amplo inventário
de algumas alusões paulinas à vida e ao ensinamento de Jesus e de seus companheiros.

367
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
Por que então suas epístolas referem-se apenas incidentalmente às “palavras
do Senhor” (1Cor 7,10; 1Cor 9,17; 1Ts 4,15)?
1) Elas só raramente são evocadas nas cartas. A argumentação, decerto, con-
tém de tanto em tanto algumas reminiscências, na definição da vida coti-
diana dos cristãos, por exemplo em Romanos 12,10-21. Mas não são
designadas como tais.
2) As referências explícitas são excepcionais. Aos dois logia de 1 Coríntios
(7,10; 9,17) e 1 Tessalonicenses 4,15 só se podem acrescentar as palavras
de instituição da ceia do Senhor, em 1 Coríntios 11,23b-26, e, para ser-
mos bem exaustivos, a fórmula pascal de 1 Coríntios 15,3-5(-7).
3) Esses ditos do Senhor não desempenham nenhum papel na definição do
que é essencial e da verdade do Evangelho de Deus.
Duas explicações desse silêncio relativo vêm imediatamente ao espírito. Ou
Paulo — que não fez parte dos discípulos — não conheceu o ensinamento de
Jesus, ou, se dele teve conhecimento, não se interessou por ele.
Se é, pois, verdade ser necessário não somente admitir uma ruptura de con-
tinuidade significativa entre o Jesus da história e o querigma pós-pascal, como
fazia Rudolf Bultmann, mas também enxergar o patrimônio dos ditos de Jesus
como o critério de verdade, então se põe com acuidade a questão da legitimida-
de, da pertinência e da autoridade da teologia paulina para a compreensão do
cristianismo. Desse ponto de vista, temos boas razões para ser críticos a respeito
das teologias cristãs — na realidade, de todas as teologias ocidentais — baseadas
em Paulo.
Se insistimos, em contrapartida, na fidelidade do Evangelho paulino à histó-
ria e à mensagem de Jesus de Nazaré7, vemo-nos, ao contrário, diante do desafio
de evidenciar uma continuidade teológica que ultrapassa e explica as desconti-
nuidades literárias. Com efeito, parece, à primeira vista, paradoxal a tese segundo
a qual o apóstolo — que desenvolve depois uma compreensão do cristianismo,
que passa de referências ao ensinamento de Jesus — pode ser considerado um dos
intérpretes privilegiados do Deus que revela a pessoa e a obra de Jesus8. Ela deve
ser demonstrada.

7. Christophe Senft, Jésus de Nazareth et Paul de Tarse, Genève, Labor et Fides, 1985 (Essais bi-
bliques 11).
8. O último grande representante clássico de um Jesus histórico de estrutura paulina é sem
dúvida o belo livro de Jürgen Becker, Jesus von Nazaret (Berlin/New York, de Gruyter, 1996 [de
Gruyter Lehrbuch]). Pode-se mencionar na mesma linha a importante pequena obra de Jean Denis
Kraege, Vivre gràce à Dieu. Le message libérateur de Jésus, Poliez-le-Grand, du Moulin, 2000.

368
V – O centro da teologia paulina
2.2. O Evangelho de Deus

Os intérpretes das cartas paulinas não são os primeiros a se interrogar sobre a


liberdade assumida por Paulo a respeito da tradição das palavras de Jesus. Com
efeito, o próprio apóstolo evoca a questão e se explica a esse respeito no esboço
autobiográfico que ele coloca no início da epístola aos Gálatas (Gl 1,10–2,21, es-
pecialmente Gl 1,10-12). Já se pensou que Paulo estava na defensiva e que seus
destinatários ou os missionários que que haviam chegado à Galácia o tinham inti-
mado a legitimar a autoridade9 de seu Evangelho e de seu apostolado. É um equí-
voco. Paulo não se defende. Desde os primeiros termos empregados, o apóstolo
afirma a verdade e a autoridade de uma palavra que não vem dos homens, mas do
próprio Deus (Gl 1,1)10. A oposição Deus/homem domina toda a epístola, do
começo ao fim (Gl 6,14-15). Ela é sua mensagem central (Gl 1,10-12), e é a partir
dela que se elucida a necessidade da independência do representante do Evange-
lho de Deus a respeito da transmissão das palavras do Jesus histórico (Gl 1,11-12a).
Com efeito, Paulo não recebeu dos homens seu Evangelho, mas de uma revelação
do próprio Deus (Gl 1,12b), que lhe revelou o Filho (Gl 1,16).
A liberdade de Paulo a respeito das “palavras do Senhor” não é, pois, caso
nem de negligência nem do acaso. Decorre diretamente, como uma necessidade,
de sua compreensão do Evangelho.
Paulo realiza em Gálatas 1,6-9 uma clara distinção, inesperada mas funda-
mental, entre o Evangelho de Deus, de que Jesus Cristo e o próprio Deus o fize-
ram mensageiro (Gl 1,1-2a), e um “outro evangelho”, que, por definição, esclare-
ce ele, não poderia sê-lo (Gl 1,6).
(1) A distinção entre o Evangelho e os evangelhos, que não o são, primeiro
afirmada (Gl  1,6-7), a seguir confirmada pela experiência dos destinatários da
carta (Gl 1,8-9), está depois fundamentada na origem deles (Gl 1,10-12). Com
efeito, só pode ela repousar na oposição que a carta estabelece a seguir entre um
Evangelho que Paulo recebeu, proveniente de uma revelação de Deus, e, de outra
parte, os evangelhos que não o são, porque provêm apenas de tradições e de ensi-
namentos humanos.
(2) A declaração do apóstolo ao afirmar não ter recebido nem aprendido dos
homens seu Evangelho (Gl 1,10-12) deve ser lida, primeiro, como uma interpre-

9. Hans Dieter Betz, Galatians: A Commentary on Paul’ Letter to the Churches in Galatia,
Philadelphia, Fortress, 1979 (Hermeneia).
10. Bernard Lategan, Is Paul Defending His Apostleship in Galatians?, NTS 34 (1988) 411-430;
J. Louis Martyn, Galatians, New York, Doubleday, 1997 (AncB 33A); François Vouga, An die Gala-
ter, Tübingen, Mohr Siebeck, 1998 (HNT 10).

369
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
tação do conflito que o opõe aos missionários em atividade na Galácia: o “outro
evangelho”, que não o é, indica a teologia deles acerca da Aliança, que estabelece
para os cristãos de origem pagã a obrigação de se fazer circuncidar11. Esse evange-
lho é que é um evangelho humano, recebido dos homens e ensinado por homens
(cf. Gl 1,11-12a), pois contradiz a verdade do Evangelho (Gl 2,5 e 2,14) e a ver-
dade dada pela revelação divina (Gl 5,1).
A oposição estabelecida pela epístola entre o Evangelho de Deus e os pre-
tensos evangelhos dos homens tem, todavia, um alcance mais geral e fundamental.
A certeza que tem o apóstolo de ter sido o beneficiário de uma revelação divina
determina não somente sua releitura da significação da história e da pessoa de
Jesus — pois Deus lhe apresentou o Crucificado como seu Filho (Gl 1,16) —,
mas também o estado da verdade da missão que lhe foi confiada (Gl 1,16-17).

2.3. Os evangelhos humanos

A afirmação de uma contemporaneidade garantida pelo próprio Deus não


pode ser compreendida de outro modo senão como um distanciamento explícito
do apóstolo em relação às tradições das palavras de Jesus. Com efeito, ao afirmar
não ter sido chamado como apóstolo por parte dos homens nem ter se tornado
apóstolo por intermédio de um homem (Gl 1,1), e ao apresentar, depois, o Evan-
gelho que ele anuncia como um Evangelho que não é de inspiração humana nem
recebido nem aprendido de um homem (Gl 1,12a), Paulo subentende, evidente-
mente, que poderia ter sido de outro modo12, como é o caso do evangelho que
não o é e que começou a seduzir os gálatas.
O que são, pois, os evangelhos que não o são e onde, quando e como Paulo
poderia ter se tornado um apóstolo dos homens? Várias respostas são possíveis.
(1) O apóstolo poderia ter recebido dos discípulos de Jesus o Evangelho que
anuncia. Paulo, como apóstolo dos pagãos, teria iniciado então a difusão em larga
escala das declarações das primeiras testemunhas, sejam elas Pedro e João, citados
na epístola (Gl 1,18 e 2,7-9), sejam as comunidades da Judeia, que desempenham
igualmente um papel importante na argumentação (Gl 1,23-24 e 2,1-5).
(2) Ou ele ouviu falar de Jesus pela tradição polêmica dos fariseus. É prová-
vel, pois Paulo não teria tido razão de querer destruir a Igreja (Gl 1,13) se não ti-

11. J. Louis Martyn, A Law-Observant Mission to Gentiles: The Background of Galatians,


MQR 22 (1983) 211-236 (= SJT 38 [1985] 307-324).
12. Oswald Ducrot, Dire et ne pas dire. Principes de sémantique linguistique, Paris, Hermann,
3
1991 (Savoir. Sciences).

370
V – O centro da teologia paulina
vesse à disposição informações precisas sobre o cristianismo e sobre seu fundador.
Mas as acusações contra Jesus só com muita dificuldade constituiriam um
“evangelho”.
(3) Paulo poderia, ao contrário, fazer alusão a um evangelho constituído
pelas palavras de Jesus referidas nas Igrejas perseguidas. O evangelho transmitido
e ensinado pelos homens não designaria então mais que a tradição das palavras de
Jesus, de que a fonte Q e o evangelho de Tomé são as testemunhas exemplares13.
(4) Ao tentar harmonizar o relato paulino (Gl 1,13-17) com o dos Atos dos
Apóstolos (Atos 9,1-19a), poderíamos especular sobre a eventual catequese batis-
mal que deveria ter precedido seu batismo, que Lucas, segundo o programa teo-
lógico próprio, não deixa de mencionar (At 9,18)14.
O afirmado afastamento do apóstolo em relação às diferentes formas da tra-
dição das palavras de Jesus é confirmado pelo pouco interesse que ele manifesta
pelos que são seus detentores privilegiados: a comunidade de Jerusalém e Pedro,
com os quais só entra em contato mais tarde e, sem dúvida, depois de ter dado
início à sua obra missionária (Gl 1,17-20).

3. Jesus e Paulo: a continuidade histórica

O duplo paradoxo que gostaria agora de defender é este: o apóstolo dos


pagãos, que parece se desinteressar pelo ensinamento e pela herança de Jesus, é
precisamente o teólogo que justificou com mais acuidade a significação da obra e
da pessoa de Jesus. E a recusa a “completar” sua compreensão da morte do Cruci-
ficado com o que se referia às palavras do Jesus da história confere sua radicalidade
libertadora ao que ele chama de Evangelho.

13. Presta-se a confusão a maneira como Paulo introduz a citação que faz da fórmula cristoló-
gica e soteriológica de 1 Coríntios 15,3b-5, que frequentemente vinculamos a Antioquia. Com
efeito, o apóstolo dá a impressão de remeter à tradição eclesial como ao fundamento do Evangelho.
Ora, desde o início (1Cor 1,17), a própria epístola situa o fundamento do Evangelho em outro
ponto que não na interpretação e no desenvolvimento da tradição cristológica do cristianismo
helenístico: a linguagem da “cruz” repousa sobre um envio de que Paulo foi objeto e que é idêntico
ao acontecimento da revelação e da vocação que ele evoca em Gálatas 1,12-17. A argumentação de
1 Coríntios 15,1-3a não fundamenta, pois, o Evangelho sobre a tradição das comunidades cristãs,
como gostaria Hans Conzelmann (Grundriss der Theologie des Neuen Testaments, München, Kaiser,
2
1968, 181-182 [EETh 2]; ed. fr.: Théologie du Nouveau Testament, Genève/Paris, Labor et Fides/
Centurion, 1969, 172-173 [NSTh 21]), mas enfatiza uma convergência.
14. Martin Hengel, Anna Maria Schwemer, Paul between Damascus and Antioch: The Unknown
Years, London, SCM Press, 1997, 45.

371
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
3.1. Paulo e o Jesus histórico dos fariseus
Uma questão importante que se impõe à história do início da teologia cristã
é a da continuidade ou da descontinuidade que o distanciamento assumido e afir-
mado por Paulo a respeito da tradição de Jesus implica entre a proclamação de
Jesus e a verdade do Evangelho revelado ao apóstolo. Ora, a reflexão hermenêuti-
ca que desenvolve o início da epístola aos Gálatas (em particular Gl 1,10-17 e
2,14b-21) não justifica apenas o distanciamento a respeito da transmissão dos di-
tos de Jesus, mas também a singular proximidade ao mesmo tempo histórica e
existencial15 da compreensão paulina do cristianismo com o centro da mensagem
de Jesus.
A continuidade histórica entre a mensagem de Jesus e o conhecimento que
o apóstolo adquiriu não está ligada ao acontecimento de sua vocação, como já
vimos, pois ela fundamenta sua missão universal sobre a revelação divina
(Gl 1,12.16) e sobre uma compreensão do Crucificado Filho de Deus indepen-
dentemente das tradições das comunidades cristãs, mas é avalizada por sua ativida-
de de perseguidor da Igreja (Gl 1,13-14.23). Os esforços apaixonados feitos por
Paulo, o fariseu, para destruir a Igreja implicam, de fato, um conhecimento preci-
so dos desvios ensinados em nome de Jesus.
Para Paulo, conhecido como “aquele que nos persegue”, quem é, afinal, e
que representa a figura de Jesus de Nazaré? A epístola aos Gálatas não dá resposta
direta a essa questão, mas a explicação que apresenta retrospectivamente do passa-
do (fariseu, segundo Fl 2,4-6) do apóstolo implica uma visão clara dos problemas
teológicos postos pelo cristianismo à tradição judaica. Podemos, pois, pensar que
Paulo dispunha de um bom conhecimento da história de Jesus e de seu ensina-
mento. Suas informações não provinham, todavia, de adeptos de Jesus — galileus,
judeus e helenistas —, mas da tradição farisaica de seus adversários16.
(1) O relato autobiográfico do período anterior à vocação de Paulo como
apóstolo dos pagãos (Gl 1,13-14) concentra todas as razões de conflitos no pro-
blema da interpretação e da observância da vontade de Deus. A insistência apoia-
se em dois pontos, estreitamente ligados entre si (Gl 1,14): o primeiro diz respeito
à competência e às qualificações procuradas e obtidas por Paulo na leitura da Lei
judaica; o segundo afirma uma vontade de identidade de fidelidade à vocação ju-
daica e o respeito da tradição dos pais.

15. Jean Calvin, Institution de la religion chrétienne, Liv. I, cap. 1, § 1: o conhecimento de Deus e o
conhecimento do homem são coisas que andam juntas.
16. Christophe Senft, Jésus de Nazareth et Paul de Tarse, 67-68 (cf. nota 7).

372
V – O centro da teologia paulina
(2) Essa dupla afirmação da fidelidade à Lei e à identidade judaica constitui
a isotopia das duas retrospectivas que constituem as cartas paulinas (Gl 1,13-14 e
Fl 3,2-11). Elas constituem nos dois relatos o fundo sobre o qual o apóstolo expli-
ca sua vontade de reduzir a nada o cristianismo (Gl 1,13.23; Fl 3,6a). Pode-se,
pois, concluir daí que a violenta oposição manifestada por Paulo a respeito das
Igrejas cristãs foi provocada pelo que ele percebeu ser a expressão de uma desen-
voltura inadmissível sobre a identidade judaica e a Lei17.
(3) Do ponto de vista histórico, essa reconstituição da gênese da teologia de
Paulo é confirmada pelo relato dos deslocamentos do apóstolo. Com efeito, de-
pois de ter sido chamado por Deus como apóstolo das nações (Gl 1,16-17), ele
teria ido a Jerusalém apenas após dois ou três anos (Gl 1,18), tendo partido ime-
diatamente para a Arábia para voltar depois a Damasco (Gl 1,17). O elo estabele-
cido explicitamente pelos Atos dos Apóstolos entre o ativismo anticristão de
Paulo e a cidade de Damasco já está, pois, subentendido na crônica estabelecida
pela epístola (Gl 1,17). A Igreja que ele perseguiu é a do cristianismo liberal que
Paulo vai encontrar em Antioquia (Gl 2,11-21) e que se caracteriza precisamente
por sua atitude liberal e aberta a respeito da Lei e dos pagãos.
Compreende-se, pois, que a revelação divina de que o apóstolo foi benefi-
ciário não exclui um bom conhecimento do Jesus histórico e de seu ensinamen-
to. A acolhida da revelação do Filho de Deus (Gl 1,12.16) consistiu, ao contrário,
na reavaliação de uma compreensão sem dúvida precisa e detalhada que lhe for-
necia a tradição farisaica.

3.2. O Jesus histórico e a “cruz”


A reconstituição literária e histórica que proponho permite compreender a
estrutura particular da interpretação paulina do cristianismo. Explica em parti-
cular a necessidade segundo a qual ela articula toda a pessoa e a obra de Jesus em
torno do conceito da “cruz” e da problemática da Lei.
Sabe-se muito bem que o emprego simbólico e metafórico do termo “cruz”
é uma criação das cartas paulinas. Se no Novo Testamento a cruz descreve, em
geral, as condições da execução de Jesus, Paulo a emprega num sentido figurado

17. Convém enfatizar que o conceito de “judaísmo” empregado aqui não designa o judaísmo
como tal, mas a afirmação prática de confissão da identidade judaica contra o helenismo e as ten-
dências internacionais e liberais do judaísmo helenístico (cf. 2Mc 2,21; 8,1; 14,38; 4 M 4,26; Ernest
De Witt Burton, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistles to the Galatians, Edinburgh,
T & T Clark, 1921, 44 [ECC]; François Vouga, An die Galater, 31 [cf. nota 10]).

373
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
para falar da revelação de Deus no duplo acontecimento da morte e da ressurrei-
ção de Jesus (1Cor 1,17.18; Gl 5,11; 6,12.14; Fl 2,8; 3,18)18. Observe-se logo que
a “cruz” não se refere somente à crucifixão de Jesus19, como é, evidentemente, o
caso quando é utilizada em seu sentido próprio, mas ao duplo acontecimento de
sua morte e de sua ressurreição. As aparições do Ressuscitado (1Cor 9,1; 15,5-8, a
que se deve acrescentar Gl 1,12 e 1,16) constituem o instante a partir do qual a
condenação e o assassinato de Jesus assumem seu significado. Acrescente-se, além
disso, a essa primeira observação que a “cruz” não é apenas um termo coletivo
para falar da Sexta-feira Santa e da Páscoa. O conceito paulino de “cruz” interpre-
ta, antes, o duplo acontecimento da morte e da ressurreição de Jesus como uma
manifestação do poder transformador de Deus que está presente no Evangelho20.
Os “inimigos da cruz” (Fl 3,18) não são meros negadores da mensagem pascal, e
quando Paulo fala de ter medo de ser perseguido por causa da “cruz” (Gl 6,12) e
de pôr sua esperança na “cruz” (Gl 6,14) é evidente que se trata ao mesmo tempo
de toda a revelação de Deus na pessoa e na obra de Jesus Cristo e de seu valor de
renovação e de recriação.

3.3. A “cruz”, a Lei e o Jesus histórico

As implicações e os desafios do conceito paulino de “cruz” mostram-se de


modo claro nas duas argumentações da primeira epístola aos Coríntios e na epís-
tola aos Gálatas.
(1) Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo apresenta a proclamação apos-
tólica como a “linguagem da cruz” (1Cor 1,17 e 1,18–3,4, que é sua explicação e
seu desenvolvimento): Cristo não enviou o apóstolo para batizar, mas para anun-
ciar a “cruz”. A “cruz” é apresentada como um paradoxo da comunicação21 em-

18. François Vouga, Une théologie du Nouveau Testament, Genève, Labor et Fides, 2001, 307-313
(Le Monde de la Bible 43).
19. É a razão pela qual me parece inapropriado dizer que Paulo “hipertrofia a linguagem da cruz
ao atrofiar o lugar da ressurreição”, como faz Michel Deneken (La foi pascale. Rendre compte de la
Résurrection de Jésus aujourd’hui, Paris, 1997, 169 [Théologie]).
20. Ernst Käsemann, Die Heilsbedeutung des todes Jesu bei Paulus, in Paulinische Perspektiven,
Tübingen, Mohr Siebeck, 1969, 61-107; Marion L. Soards, 1 Corinthians, Peabody (MA)/Carlisle,
Hendrickson/Paternoster Press, 1999, 43 (NIBC), que remete especialmente a J. M. Reese, Paul
Proclaims the Wisdom of the Cross: Scandal and Foolishness, BTB 9 (1979) 147-153.
21. Antonio Pitta, Il paradosso della croce. Saggi di teologia paolina, Casale Monferrato, Piemme,
1998, 80-110. O conceito de paradoxo da comunicação e sua descrição lógica foram desenvolvidos
por Paul Watzlawick, John H. Weakland, Richard Fisch, Change: Principles of Problem Forma-
tion and Problem Resolution, New York/London, W. W. Norton, 1974; ed. fr.: Changements. Para-

374
V – O centro da teologia paulina
pregado por Deus para salvar a humanidade. Com efeito, pela sabedoria, a sabedo-
ria do mundo se revelou incapaz de entender a sabedoria de Deus, de sorte que
Deus decidiu frustrar a sabedoria dos homens revelando-se na loucura e na fra-
queza (1Cor 1,18-25 e 2,6-16). O leitor compreende que a revelação que se dá
no acontecimento da “cruz” comporta um desafio antropológico fundamental
cuja exposição a epístola ao Romanos retomará (Rm 1,18-31 e 7,7-23): Deus faz
fracassar a sabedoria dos sábios e a compreensão dos inteligentes porque o ser
humano sucumbe à loucura ao se servir de possibilidades da sabedoria para se pôr
a si mesmo como a origem que lhe confere sua identidade e seu sentido22.
(2) A epístola aos Gálatas desenvolve a mesma argumentação num outro re-
gistro (Gl 3,10-14)23. Constata em primeiro lugar que a existência sob a Lei se
encontra sob a maldição (Gl 3,10a). Com efeito, a Lei fecha o indivíduo no siste-
ma de um duplo desespero: ou ela o põe diante da exigência impossível de uma
obediência infinita, ou lhe promete uma justiça que nenhuma Lei pode dar
(Gl 3,10b). Ora, a justa relação que Deus estabelece com sua criatura não pode
passar senão pela confiança do ser humano em seu Criador (Gl 3,11b), e a Lei não
suscita a confiança, mas promete abusivamente a vida a quem pode invocar o tes-
temunho de suas qualidades e de sua obediência (Gl 3,12). A razão fundamental
da incompatibilidade entre o sistema da Lei e o sistema da confiança será dada
mais adiante (Gl 3,21): se uma Lei recebera o poder de dar a vida, haveria uma
justiça pela Lei. Mas — como subentende o apóstolo — somente Deus faz viver
(Gl 3,21). No momento, Paulo apresenta a morte de Jesus como o acontecimento
libertador que abre a passagem de um sistema a outro (Gl 3,12): ao declarar mal-
dito o Filho de Deus, que confiou no Pai até dar sua vida, a própria Lei se desa-
creditou (3,13)24, de sorte que Paulo pode dizer que foi crucificado com o Cristo,
na medida em que, pela revelação divina do crucificado como Filho de Deus,
morreu para a Lei pela Lei para viver para Deus (Gl 2,19).

doxes et psychothérapie, Paris, Seuil, 1975 (Points 130); Mara Selvini-Palazzoli et al., Paradoxe et
contre-paradoxe. Un nouveau mode thérapeutique face aux familles à transaction schizophrénique,
Paris, ESF, 92000 (Collection Art de la psychothérapie); ed. it.: Paradosso e controparadosso, 1975.
22. Stanislas Breton, Christianisme: Paul ou Jean, Esprit 292 (fev. 2003) 66-78, espec. 76-78.
23. Christophe Senft, La première épître de Paul aux Corinthiens, Genève, Labor et Fides, 21990,
41-43 (CNT[N] 7).
24. Robert G. Hamerton-Kelly, Sacred Violence and the Curse of the Law (Gal 3,13): The
Death of Christ as a Sacrificial Travesty, NTS 36 (1990) 98-118. Sobre o sentido do texto de Deu-
teronômio 21,22-23, o de sua recepção no judaísmo e o de sua retomada na epístola aos Gálatas,
reportar-nos-emos à monografia interdisciplinar de Florian Bille, Andreas Dettwiler, Martin
Rose,“Maudit quiconque est pendu au bois”. La crucifixion dans la loi et dans la foi, Lausanne, Editions
du Zèbre, 2002 (Publications de l’Institut romand des sciences bibliques 2).

375
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
Podemos concluir constatando que Paulo manifesta pouco interesse pelas
tradições de palavras de Jesus porque está, sem dúvida, bem informado sobre a
pessoa e a obra do Jesus histórico pela tradição crítica dos fariseus. Essa tradição é
depositária de uma imagem de Jesus que liga sua execução e sua morte à atitude
que ele adotou e autorizou a respeito da Lei. As aparições do Ressuscitado
(1Cor 9,1; 15,5-8) e a revelação que Deus lhe fez da identidade do Filho de Deus
(Gl 1,12 e 16) não se opõem ao conhecimento que ele tem do Jesus da história.
Em vez disso, destrói os juízos de valor ao pôr o apóstolo diante da alternativa de
duas atitudes existenciais:
1) ou o Deus da promessa é o Deus da Aliança e da Lei, que reconhece e
justifica cada um segundo suas qualidades e sua obediência, e é justo que
Jesus tenha sido morto, condenado e maldito pela Lei que ele mesmo
transgrediu;
2) ou Deus se revela como o Pai do Crucificado, o ser sem qualidade por
excelência, pois se vê despojado de todo poder, de sua dignidade e, se-
gundo a Lei, posto sob a maldição do próprio Deus. A justiça diante de
Deus é então uma justiça sem a Lei, só pela confiança, e a Promessa é para
todas as nações (Gl 3,6-9).

4. Jesus e Paulo: a continuidade teológica e antropológica da nova criação


Com relação ao Jesus da história, a vocação apostólica coloca Paulo na situa-
ção de uma continuidade descontínua. De certo ponto de vista, Jesus continuou
o mesmo, pois sua morte continua ligada à sua desenvoltura ou à sua liberdade a
respeito da Lei. De outro lado, o maldito de Deus se tornou o Filho (Gl 1,12.16),
apareceu vivo (1Cor 9,1; 15,5-8). A continuidade histórica, de que podíamos du-
vidar ao ler os posicionamentos radicais do apóstolo a respeito das tradições hu-
manas (Gl 1,1 e 1,10-12), está, pois, bem presente. Mas qual é a significação dessa
continuidade descontínua?
A quarta tese que eu gostaria de defender é que, com base nas tradições fa-
risaicas sobre a pessoa e a obra de Jesus de que o apóstolo é herdeiro (Gl 1,13-14;
Fl 3,4-6) e com base na visão ou na revelação de que foi destinatário (1Cor 9,1;
15,8; Gl 1,12 e 1,15-17; Fl 3,7-11), ele desenvolveu uma compreensão do que
chama de Evangelho25 que está em continuidade imediata com o que constitui o

25. É provavelmente significativo que o termo Evangelho apareça com força nos dois corpus do
Novo Testamento, afirmando a individualidade anarquista de uma obra literária em face do contro-
le social que, segundo Jan Vansina (Oral Tradition as History, London/Nairobi, J. Currey/Heine-

376
V – O centro da teologia paulina
essencial da mensagem de Jesus. Ele faz aparecer o centro de maneira bem mais
precisa e mais direta do que a tradição das palavras do Senhor que transmitem as
coleções da Fonte Q e do evangelho de Tomé26. As cartas paulinas constituem a
esse respeito fontes importantes que nos permitem reconstituir a figura do Jesus
histórico, sua mensagem e sua significação.

4.1. As más convivências de Jesus e a justiça sem a Lei


O relato do incidente de Antioquia, que constitui a cena central da epístola
aos Gálatas (Gl 2,11-21) e dá oportunidade ao apóstolo de fazer a exposição de
sua compreensão nova da justiça de Deus (Gl 2,14b-21), oferece estranhos para-
lelismos com uma das raras tradições evangélicas que dão a palavra aos detratores
de Jesus (Lc 7,31-34):
1) o contexto é nos dois episódios o da comensalidade;
2) a questão é nos dois casos a da preferência (Lc 7,34) e das condições de
acolhimento dos convivas (Gl 2,11-14a).
31) A quem, pois, compararei os homens desta geração? A quem são
comparáveis?
32) São comparáveis a crianças sentadas na praça e que se interpelam umas
às outras, dizendo:
“Tocamos flauta para vós, e não dançastes. Entoamos um canto fúnebre,
e não chorastes”.

mann, 1985) caracteriza a tradição oral, seja ela materialmente oral, registrada ou até consignada
por escrito, como foi sem dúvida o caso logo cedo da fonte Q e do evangelho de Tomé. O termo
Evangelho é, com efeito, o conceito programático das cartas pelas quais, mais que por suas visitas,
Paulo pretende expor sua compreensão do cristianismo, como demonstrou Bärbel Rosenius (Die
Abwesenheit des Apostels als theologisches Programm. Der zweite Korintherbrief als Beispiel für die
Briefchkeit der paulinischen Theologie, Tübingen/Basel, Francke Verlag, 1994 [TANZ 11]). É
igualmente o do evangelho de Marcos, que impõe por sua composição literária sua própria estru-
tura dramática aos episódios tradicionais das coleções de ditos de Jesus; cf. François Vouga, Mün-
dliche Tradition, soziale Kontrolle und Literatur als theologischer Protest. Die Wahrheit des Evan-
geliums nach Paulus und Markus, in Gerhard Sellin, François Vouga (Hrsg.), Logos und Buchstabe.
Mündlichkeit und Schriftlichkeit im Judentum und Christentum der Antike, Tübingen/Basel,
Francke Verlag, 1997, 195-209 (TANZ 20).
26. O gênero literário das coleções justapõe e ordena, sem dúvida, em torno de temas e “nós”,
mas não hierarquiza. É por isso que a ideia mesma de um centro e das hierarquias que inclui essa
metáfora geométrica é estranha ao propósito delas. A dialética paulina, bem ao contrário, faz da
colisão entre a revelação da “cruz” e o ensinamento da Lei a singularidade absoluta a partir da qual
se estrutura o todo da realidade.

377
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
33) De fato, João, o Batista, veio: ele não come pão, não bebe vinho, e dizeis:
“Ele perdeu o juízo”.
34) Veio o Filho do Homem, come, bebe, e dizeis: “Eis um comilão e um
beberrão, amigo dos coletores de impostos e dos pecadores”
(Lc 7,31-34 Q).
O interesse da tradição (Lc 7,31-34 e Mt 11,16-18) é evidenciar duas for-
mas diferentes de não conformismo que aproximam Jesus e João Batista27. Dito
isso, o traço considerado pelos espíritos críticos é, de um lado, o ascetismo de João
Batista e, de outro, a promiscuidade procurada e tolerada por Jesus. Com efeito, é
a frugalidade do regime alimentar que dá ao Batista o aspecto de um demoníaco,
ao passo que são as convivências e as amizades de Jesus que o fazem passar por um
glutão e por um beberrão.
Ora, qual é o sentido da observação de seus contemporâneos que pretendem
caracterizar Jesus evocando a sociedade duvidosa que o cerca? Ela chama a nossa
atenção para a provocação de uma atitude antirreligiosa que se recusa a aceitar as
segregações sociais fundadas nos critérios de moral ou na pureza das pertenças.
Pressupõe a existência de um elo, estabelecido implícita ou explicitamente por
Jesus, que une a presença do Reino de Deus e a instauração de uma distinção antro-
pológica entre a pessoa, reconhecida como sujeito individual (coletores de impos-
tos e pecadores, por exemplo), e suas qualidades étnicas (é identificado como judeu
ou como grego), econômicas, políticas e sociais (é cidadão, homem livre ou escra-
vo), morais (é considerado justo ou pecador) e de gênero (homem ou mulher), que
permitem em cada caso classificá-la segundo uma ordem geral, objetiva e abstrata.
Observemos a proximidade particular do Evangelho paulino (Gl 2,14b-21)
com essa visão de uma tradição que, embora hostil a Jesus, ou precisamente por-
que o é, concentra na questão da identidade do sujeito toda a sua mensagem. A
ideia segundo a qual Jesus é um comilão e um beberrão que se senta à mesa com
qualquer um corresponde exatamente à proclamação paulina de um Deus que
revelou seu Filho na pessoa de um homem sem qualidade (Gl 1,12.16), que aco-
lhe incondicionalmente judeus e pagãos à sua mesa (Gl 2,11-14a) e que justifica
sem impor condições (Gl 2,14b-21; Rm 3,21-26), ou seja, para retomar os termos
utilizados por Blaise Pascal, que reconhece a pessoa de cada uma e de cada um
independentemente de suas qualidades28.

27. James Breech, The Silence of Jesus: The Authentic Voice of the Historical Man, Philadelphia,
Fortress Press, 1983, 22-31.
28. Blaise Pascal, Pensées, Br 323 = MSL 686, série 25:

378
V – O centro da teologia paulina
4.2. O Evangelho e a verdade universal da subjetividade individual

A continuidade que se pode constatar entre Jesus e Paulo não é da ordem da


tradição literária, mas teológica e antropológica. Consiste na revelação de um
Deus que não justifica em razão de qualidades (pertença a um povo, a um sexo, a
uma classe social), mas em razão da confiança que indivíduos — reconhecidos e
recriados como subjetividade individual, reconhecida e responsável — depositam
na confiança que havia em Jesus Cristo29.
No relato dado pelo apóstolo, a série de controvérsias que parecem ter ocor-
rido em Antioquia faz aparecer na história do judaísmo — e provavelmente da
cultura ocidental — um salto qualitativo da percepção que o espírito humano
tem de si mesmo. Os posicionamentos dos diferentes interlocutores não se situam,
com efeito, no mesmo plano.

O que é o eu?
Um homem se põe à janela para ver os passantes; se eu passo por ali, posso dizer que ele
ali se pôs para me ver? Não; pois ele não pensa particularmente em mim; mas aquele que
ama alguém por causa de sua beleza, ama-o? Não, pois a varíola, que há de matar a beleza
sem matar a pessoa, fará que ele não o ame mais.
E se alguém me ama por meu juízo, por minha memória, ama-me? a mim? Não, pois
posso perder essas qualidades sem eu mesmo me perder. Onde está, pois, esse eu, se não
está nem em meu corpo nem em minha alma? E como amar o corpo ou a alma senão
por suas qualidades, que não são o que faz o eu, pois são perecíveis? Pois amar-se-ia a
substância da alma de uma pessoa, abstratamente, e algumas qualidades que nela estives-
sem? Não é possível, seria injusto. Jamais, portanto, amamos alguém, mas somente suas
qualidades.
Não desprezemos mais, então, aqueles que se fazem honrar por cargos e ofícios, pois não
amamos ninguém senão por qualidades tomadas de empréstimo.
Devo ao professor Claude Papin de Nantes ter chamado minha atenção para esse texto,
que, em minha opinião, explica de maneira precisa e exata o tema paulino da justificação.
29. A tradução da expressão “a fé de/em Jesus Cristo” por “a confiança na confiança que havia
em Jesus Cristo” resulta de um diálogo amigável mantido com Alain Badiou na Faculdade Livre de
Teologia de Montpellier no início do outono de 1998. A interpretação que Alain Badiou dá do que
ele chama de “o antidialético” paulino da morte e da ressurreição de Jesus (Alain Badiou, Saint
Paul. La fondation de l’universalisme, Paris, PUF, 1997, 69-78 [Les essais du Collège international de
philosophie]) pressupõe a construção de um genitivo subjetivo, a fé de Jesus Cristo, como já haviam
proposto Pierre Valloton (Le Christ et la foi. Etude de théologie biblique, Genève, Labor et Fides,
1960, 41-62 [NSTh 10]) e Guy Wagner (La foi de Jésus-Crist, ETR 59 [1984] 41-52). Ora, o
genitivo subjetivo que se refere à fé de Jesus Cristo não tem sentido se não está acompanhado
do genitivo objetivo da fé em Jesus Cristo, que inclui o crente no movimento da confiança, do
mesmo modo como o genitivo objetivo da fé em Jesus Cristo não tem significação compreensível
senão porque se ampara na confiança do próprio Jesus. Segue-se que os dois valores do genitivo
— genitivo subjetivo e genitivo objetivo — são aqui indissociáveis um do outro: não há confiança
senão na confiança.

379
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
(1) O início da discussão pressupõe, em primeiro lugar, por parte da co-
munidade mista judeu-cristã e pagão-cristã de Antioquia uma prática liberal
da Lei (Gl 2,12a). O leitor da epístola compreende que a tolerância que reina
lá representa exatamente o que Paulo, o fariseu, tinha detestado entre os
cristãos.
(2) As pessoas provindas do círculo de amizade de Tiago abrem o debate
sobre a dupla questão da interpretação fiel da Lei e de seu domínio de pertença
(Gl 2,12b). Por razões que ignoramos, pois Paulo diz simplesmente que é por
medo dos defensores da circuncisão30, defendem uma variante complementar do
ponto de vista que era, sem dúvida, o dos “falsos irmãos” em Jerusalém (Gl 2,4) e
que é provavelmente o de mestres na Galácia (Gl 5,2-3; 6,11-13). Se os últimos,
como os “falsos irmãos” de Jerusalém, julgam que se deve fazer circuncidar os
pagãos para os incluir no povo da Aliança, os emissários de Tiago exigem dos ju-
deu-cristãos que se atenham às prescrições judiaicas de pureza ritual e se sentem
à mesa em local à parte.
(3) Esperaríamos certamente que Paulo tomasse a defesa do liberalismo ou
até que introduzisse uma terceira posição, radical, no conflito. Nada disso. Com
efeito, o apóstolo não se pronuncia sobre a questão da interpretação da Lei, mas
declara, ao contrário, revogada a oposição que ele pressupõe entre circuncisos e
incircuncisos: não há mais circuncisos nem incircuncisos, mas uma nova criação
(Gl 6,15).
A interpretação do cristianismo que a revelação divina impõe ao apóstolo
encerra o debate, agora anacrônico, travado em Antioquia pelos emissários de
­Tiago. A transgressão cometida por Pedro (Gl 2,18) e que requer o esclarecimen-
to do apóstolo (Gl 2,14-21) não é questão de interpretação da Lei, de liberalismo
e de hospitalidade. O erro de Pedro é mais o de ter confundido os tempos e de se
ter deixado levar numa controvérsia que não é mais atual. Com efeito, no tempo
novo que irrompeu no presente não há mais nem circuncisos nem incircuncisos,
mas uma nova criação31.

30. Trata-se de pessoas que, como Paulo fizera mais cedo, controlam a partir da sinagoga o
que se passa nas Igrejas? Ou o apóstolo pensa em pressões exercidas por judeus ou “falsos ir-
mãos” (cf. Gl 2,4) de Jerusalém? O que é certo é que a designação “da circuncisão” emprega a
mesma preposição (evk) que a epístola utiliza para dizer “pelas obras da Lei” ou “pela fé de/em
Jesus Cristo”: são pessoas que buscam sua identidade e a razão de ser de sua pertença ao povo da
Aliança e da Lei.
31. Giorgio Agamben, Le temps qui reste. Un commentaire de “l’Epître aux Romains”, Paris,
Payot & Rivages, 2000 (Bibliothèque Rivages).

380
V – O centro da teologia paulina
4.3. A “nova criação” e a descoberta da interioridade

A declaração do apóstolo (Gl 2,14b) e a explicação que ele deu a Pedro, à


assembleia de Antioquia e aos gálatas (Gl 2,15-21) justificam a passagem de um
limiar histórico que impõe uma nova visão da vida do sujeito. Aliás, o próprio
Paulo o diz: “vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20a).
Como há pouco observou muito bem Wagner, essa confissão não significa uma
renúncia à própria identidade ou uma perda da individualidade da pessoa, mas, ao
contrário, a emanação, pela revelação da “cruz” (Gl 2,19b), de uma dimensão até
então desconhecida da vida espiritual32.
Dois aspectos, pelo menos, do que o próprio Paulo chama de “nova criação”
(2Cor 5,17; Gl 6,15) devem ser enfatizados.
Ao fazer, primeiro, uma distinção entre a justiça “pelas obras da Lei” e a
justiça “pela fé” (Gl 2,16) que a epístola aos Romanos anuncia como a manifes-
tação da gratuidade da justiça de Deus (Rm 3,24), a revelação da “cruz” abre o
caminho que leva ao novo mundo das Confissões de Santo Agostinho. Ela implica,
com efeito, a descoberta da interioridade do sujeito33. O nascimento da consciência de
si, da subjetividade individual encontra sua expressão mais contundente nos pa-
radoxos da comunicação indireta empregada para a defesa do apostolado paulino:
a distinção entre o homem exterior e o homem interior (2Cor 4,16-18) ou a
distinção entre o outro e mim (2Cor 12,1-10) como categorias interpretativas da
história pessoal.
Ao afirmar, depois, sem outra prova do que a da revelação da cruz (“sabe-
mos”, Gl 2,16a) e a citação implícita do Salmo 143,2 (Gl 2,16c) que ninguém será
justificado por Deus em virtude das obras da Lei (Gl 2,16a.b), Paulo anuncia a
análise que Søren Kierkegaard34 fará do desespero.Toda tentativa tomada pelo indi-
víduo de encontrar sua identidade e seu sentido em sua relação consigo mesmo e
suas próprias qualidades está necessariamente votada ao fracasso. Curiosamente, a

32. Cf. Guy Wagner, La foi de Jésus-Christ, 47 (cf. nota 29): “Não se trata de despersonalização,
mas de uma ressurreição”.
33. É um sofisma a argumentação de Bruce J. Malina e Jerome H. Neyrey (Portraits of Paul: an
Archaeology of Ancient Personality, Louisville [KY], Westminster John Knox Press, 1996), que
deduz da significação geral dos gêneros literários e dos documentos autobiográficos antigos a
impossibilidade na qual se encontraria o apóstolo de tomar consciência de sua subjetividade
individual.
34. Søren Kierkegaard, La maladie à la mort, Paris, Ed. de l’Orante, 1971, 171 (Oeuvres com-
plètes 16): “O desespero é uma doença do espírito, do eu, e pode assim assumir três formas: o de-
sespero em que não temos consciência de ter um eu (ou desespero impropriamente dito); o deses-
pero em que não se quer ser si mesmo; o desespero em que se quer ser si mesmo”.

381
A verdade do Evangelho e a nova criação: o apóstolo Paulo como intérprete de Jesus de Nazaré
alternativa posta por Kierkegaard coincide com as duas leituras possíveis da cita-
ção de Deuteronômio 27,26 (Gl 3,10): ou o sujeito desespera por ser o que é, ou
desespera por não ser o que não é.A ideia, que é a do apóstolo quando fala de uma
justificação — ou seja, de uma justa relação com Deus35 e, portanto, consigo mes-
mo e com o outro —, que é dada gratuitamente em confiança na confiança que
existia em Jesus, é muito simplesmente que a identidade pessoal e o sentido da
existência não podem ser dados senão de fora, pelo Criador.

5. A nova criação e a verdade do Evangelho

A dupla descoberta da interioridade do sujeito e da estrutura existencial do


desespero, que leva à certeza de que em Cristo não há mais judeu nem grego, nem
escravo nem livre, nem “homem nem mulher” (Gl 3,28), não é, para falar com
propriedade, obra do apóstolo. Decorre de uma nova compreensão, que não é
mais “segundo a carne” (2Cor 5,16), de tudo o que a morte de Jesus pode envol-
ver. É por isso que podemos dizer, por extensão, que é uma explicação iniciada e
autorizada pela revelação divina (Gl 1,12.16) das implicações teológicas e antro-
pológicas da comensalidade do Reino, pela qual um comilão e um beberrão
sentam à mesa com os pecadores e os coletores de impostos.
Ora, essa constatação, que constitui nosso ponto de chegada, nos une ao pon-
to de partida. Com efeito, já tínhamos observado que o Evangelho de Paulo ini-
ciava com a humanidade um processo de verdade cujo desafio é o seguinte: como
resolver o problema hermenêutico posto pela interpretação da morte de Jesus e
pela experiência de tempos novos (da criação nova) como critérios de verdade.
O fruto da verdade é a criação nova. E o é de tal maneira que a verdade re-
side numa transformação em cascata das relações intrassubjetivas e intersubjetivas.
Deus manifesta sua fidelidade à promessa ao revelar sua justiça, que fundamenta a
distinção libertadora entre a pessoa do sujeito, destinatário de um reconhecimen-
to incondicional, e suas qualidades. Ora, essa distinção cria o espaço da interiori-
dade do sujeito, resgatando-o do desespero e revelando na mesma ocasião a mal-
dição da existência oculta pela ilusão da Lei e das ordens da sabedoria. E esse
espaço de interioridade subjetiva é a condição da liberdade que o constitui como
um “tu” e um “eu” de responsabilidade pessoal.
Inversamente, a verdade é a árvore que dá o fruto da criação nova. Ou, mais
exatamente, é na árvore que traz a criação nova que está a verdade.

35. Ferdinand Christian Baur, Vorlesungen über Neutestamentliche Theologie, Leipzig, Fues, 1864,
132-133.

382
V – O centro da teologia paulina
VI

Paulo, o apóstolo
São Paulo, pastor e pensador:
uma teologia implantada na vida
Romano Penna (Roma)

Paulo não abordava de maneira estereotipada as questões postas por suas comunidades, mas
procurava expressões novas da fé, deixando-se impregnar por diferentes situações eclesiais.
Depois de ter mostrado que a reflexão sobre a natureza do Evangelho provém da prática do
anúncio (Rm 1,14-17), cinco questões particulares são tratadas a título paradigmático: a
morte dos cristãos antes da vinda do Senhor (1Tm 4,13-18), as divisões e a unidade da
Igreja (1Cor 1-4), a formulação de um “testamento” antigo e a de um novo (2Cor 3), a
relação entre a humildade do Cristo e a dos cristãos (Fl 2,1-11) e, enfim, o problema da Lei
em relação à justificação pela fé (Gálatas). Uma breve comparação entre Paulo, o pastor, e
Sêneca, o filósofo, conclui este artigo.

0. Premissas

“O
s mais genuínos problemas filosóficos têm sempre suas raízes em proble-
mas prementes exteriores à filosofia.” Karl R. Popper1, o célebre filósofo
e teórico do falibilismo científico, exprimia assim não somente a importância mas

1. Karl R. Popper, Diritto d’errore.Ventiquattro interviste (1970-1994), Roma, Armando Edito-


re, 2002, 177: “I problemi filosofici genuini sono sempre radicati in urgenti problemi esterni alla
filosofia”; cf. 95: “Io sono convinto que tutto ciò che Socrate e l’induzione avevano in comune era
il richiamarsi a fatti specifici, a eventi singoli, ad esempi. Mentre Aristotele si serviva di esempi per
stabilire una teoria, Socrate si appellava ad essi per destabilizzarla o smantellarla: c’è una bella diffe-
renza! Infatti, Aristotele era quello che chiudeva i discorsi mentre Socrate li apriva: ed ho imparato
da Socrate”.

385
também a necessidade de basear as teorias científicas e filosóficas na experiência
concreta, a qual acabava por adquirir assim uma função insuspeitável de matriz do
saber. Popper não acreditava, evidentemente, na doutrina platônica das ideias ina-
tas, da mesma forma, aliás, como a filosofia escolástica medieval, se pensarmos que
um de seus primeiros princípios estava formulado em termos bem aristotélicos, a
saber: “Nihil est in intellectu quod non fuerit prius in sensu”2.
Um princípio análogo deve absolutamente ser levado em conta no domínio da
hermenêutica bíblica, e não pretendo com isso me situar no nível do exercício exe-
gético realizado sobre os textos, mas na interação, prévia ao próprio texto, entre a
existência do autor sagrado e a formulação de suas intervenções doutrinais. Por
exemplo, o que teriam se tornado as profecias “messiânicas” de Natã e de Isaías se eles
não tivessem tido nenhuma relação com os reis Davi e Acaz e as respectivas histórias
deles? E isso é válido para o próprio Jesus, cujas numerosas declarações seriam certa-
mente incompreensíveis se não soubéssemos que foram condicionadas pelas relações
específicas que ele mantinha com a situação particular de Israel naquela época.
É, sem dúvida, mais fácil verificar o princípio quando estamos em presença
de uma simples polêmica ou de intervenções disciplinares. Nos dois casos há cla-
ramente a implicação de um contraditor, a propósito de situações, de comporta-
mentos, de instituições ou de pessoas determinadas. São essas realidades que po-
dem suscitar posicionamentos polêmicos ou, em todo caso, reguladores. Parece-nos
ainda mais interessante tentar ver em que medida situações, comportamentos,
instituições ou pessoas podem influenciar a configuração de doutrinas, de teses ou
de ensinamentos, mesmo quando não há quase lugar para polêmica. O tema da
inculturação provém certamente desse capítulo da pesquisa.
É certo que a revelação bíblica, em especial a revelação cristã, não recorreu
ao êxtase ou à prática da adivinhação; mais, não é produto do círculo fechado de
um santuário distribuidor de oráculos, em resposta a questões suscitadas pela
curiosidade religiosa especulativa ou pela necessidade de certeza em vista da
ação3. Tampouco chegou até nós à moda de um meteorito caído do céu sobre a
terra, sem nenhum enraizamento em nosso mundo, como pôde ter sido o caso de
uma ou outra das numerosas revelações gnósticas4.

2. A primeira formulação desse princípio encontra-se em Tomás de Aquino (Quaest. Disp. de ver.
2,3,19). Foi depois retomado e corrigido por Leibniz, que acrescentou: “… nisi intellectus ipse”
(Nouveaux Essais 2,1,2).
3. Cf. Georg Luck, Il magico nella cultura antica, Milano, 1994; Walter Burkert, I Greci, Milano,
Jaca Book, 1983, t. I, 162-175 (Storia delle religioni 8/1).
4. Cf. Kurt Rudolph, La gnosi, Brescia, Paideia, 2000, 102 ss.; Aldo Magris, La logica del pensiero
gnostico, Brescia, Morcelliana, 1997, 109-150 (Scienze delle religioni).

386
VI – Paulo, o apóstolo
Um exemplo sintomático da particularidade bíblico-cristã, no que se refere
à maneira de agir da teologia, nos é dado precisamente pela figura de São Paulo,
cuja biografia é a mais ricamente documentada no quadro das origens cristãs. Ele
não fala com base em fenômenos extáticos5, tampouco leva em conta revelações
recebidas de algum oráculo divino6 ou fruto de meditações realizadas em algum
lugar solitário — é por isso que não nos dirigimos a ele como a um adivinho. Há
em sua vida um momento preciso que foi particularmente fecundo para seu pen-
samento em geral e para sua visão das coisas: o acontecimento do caminho de
Damasco. Aqui se avalia quanto a experiência de um encontro, tão inesperado
quanto rico de consequências, pôde marcar de modo indelével sua vida e, sobre-
tudo, sua interioridade, seus ideais. Podemos dizer, sem nos enganar, que foi o
caminho e não uma cela de convento ou uma cátedra universitária que, literal-
mente, causou uma reviravolta em sua forma mentis e verdadeiramente “zerou”
(reset) todas as suas categorias mentais.
Não quero evocar o impacto provocado nele por esse turning-point único e
extraordinário que foi sua conversão ou sua vocação — seja qual for o nome que
lhe queiramos dar. Interessar-me-ei, antes, pelo que havia de extraordinário no
exercício de seu apostolado pastoral, ou de sua pastoral apostólica, a saber, sua re-
lação cotidiana com as comunidades que havia fundado. Com efeito, percebe-se
aqui, de modo muito concreto, de modo quase privilegiado e quase repetitivo,
que ele não abordava as comunidades em questão com base em preconceitos e,
portanto, com respostas já prontas com antecedência, mas que se deixava condi-
cionar pelas diferentes situações eclesiais e procurava, a partir delas, novas expres-
sões da fé evangélica. Consequentemente, os dois qualificativos de Paulo que fi-
guram no título deste estudo, “pastor e pensador”, não estão coordenados de
maneira simétrica, mas devem ser entendidos de maneira assimétrica: o segundo
está subordinado ao primeiro, e não o contrário.
Nas páginas a seguir apresentarei sucessivamente alguns exemplos de textos
e de temas escolhidos entre as numerosas possibilidades que nos oferecem as
cartas, e começarei pela conscientização de um princípio fundamental (princípio-
base).

5. Ele não concebe sua experiência de arrebatamento ao terceiro céu (cf. 2Cor 12,2-4) nem
como um reservatório de doutrinas reveladas, nem como um motivo de autoridade para seus pró-
prios enunciados.
6. Quando ele afirma ter recebido esta ou aquela verdade “do Senhor”, quer se refira a elemen-
tos da tradição de Jesus que implicam a mediação da Igreja primitiva (cf. 1Cor 7,10.12.25; 9,14;
11,23), quer deduza seus ensinamentos de sua própria fé e de sua experiência da vida em Cristo (cf.
1Cor 7,40; 14,37), ou ainda da intervenção de um outro profeta (cf. talvez 1Ts 4,15, ver abaixo).

387
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
1. Da prática do anúncio à percepção da natureza do Evangelho
(Rm 1,14-15.16-17)

A epístola aos Romanos, embora se dirija a uma comunidade não paulina e


não responda de modo algum a interesses pastorais, permitir-nos-á descobrir um
princípio fundamental — e por assim dizer programático — na prática de Paulo.
No fim do exórdio epistolar, Paulo enuncia e mais uma vez repete em termos
gerais o programa apostólico de toda a sua vida: “Sou devedor (ovfeile,thj eivmi,) aos
gregos como aos bárbaros, às pessoas cultas como às ignorantes” (Rm 1,14). E o que
se segue (v. 15: “daí o meu desejo de vos anunciar o Evangelho, a vós também
que estais em Roma”) não é mais que uma ampliação desse programa aos destinatá-
rios da carta.A formulação lembra alguma coisa da consciência que caracterizou seu
primeiro encontro com o Senhor, quando, de acordo com seu próprio testemunho,
“Aquele… houve por bem revelar em mim o seu Filho, a fim de que eu o anuncie
(i[na euvaggeli,zwmai auvto,n) entre os pagãos” (Gl 1,15-16). Agora ele se diz devedor,
ovfeile,thj, ou seja, ligado por uma obrigação moral, em relação a todos os homens,
sem distinção, que não receberam ainda o Evangelho. Se esse conceito fosse utilizado
segundo a lógica paulina que prevalece alhures, deveríamos, antes, nos considerar
devedores daquele que, de uma maneira ou de outra, agiu em nosso favor7. Mas aqui
Paulo, ao contrário, proclama-se devedor das pessoas que nada fizeram por ele
— gregos e bárbaros, pessoas cultas e ignorantes, são todos desconhecidos. Com mais
razão Paulo deveria aplicar a ideia de dívida à sua relação com o Cristo, de quem ele
sabe ter “recebido a graça de ser apóstolo” (Rm 1,5). É em relação ao Cristo que
Paulo se tornou devedor do que ele é depois de Damasco, e é para a glória dele,“para
a glória do seu nome entre os pagãos”, que Paulo consagra sua vida. Há claramente
no conceito de dívida o sentimento de uma urgência, de uma “necessidade” deriva-
da justamente da missão recebida de evangelizar todas as nações (cf. 1Cor 9,16). Isso
significa que para Paulo o Cristo e as nações estão no mesmo plano, são dois polos
indissociáveis (cf. Gl 1,16) aos quais ele está igual e totalmente dedicado.
Os destinatários de sua dívida apostólica são designados por dois pares de
termos antitéticos, dos quais o segundo (“pessoas cultas e ignorantes”) pode ser
considerado uma simples variante do primeiro (“gregos e bárbaros”)8. O segundo

7. O adjetivo ovfeile,thj é utilizado alhures para significar a dívida de todo batizado para com o
Espírito Santo (Rm 8,12-13), a dívida das Igrejas dos gentios para com a Igreja de Jerusalém
(Rm 15,27), a da comunidade cristã para com o apóstolo (2Cor 12,11), a dos circuncisos em rela-
ção aos mandamentos da Lei (Gl 5,1), ou a do escravo para com seu patrão (Fm 18).
8. Na epístola aos Romanos, encontramos outras formulações em forma de pares para designar
os destinatários do Evangelho, mas se trata sempre do binômio “judeu–grego” (1,16; 2,9.10; 10,12;

388
VI – Paulo, o apóstolo
par antitético não faz mais que repetir o primeiro se levamos em conta o fato de
que a associação entre o bárbaro e o ignorante é tradicional já desde Aristófanes
até Sêneca9. Todavia, a oposição entre pessoa culta e ignorante é também própria
de certos meios judaicos, que fundamentam essa distinção no conhecimento ou
na ignorância da Lei, como atesta a literatura rabínica10. Desse ponto de vista, po-
demos pensar que a distinção pressupõe uma forma mentis característica da forma-
ção farisaica de Paulo, que, todavia, com essa afirmação, suprime numa só penada
as diferenças e as oposições estabelecidas pelos homens. Ao pôr no mesmo nível
essas duas vertentes culturais, Paulo de certo modo as aproxima e as torna iguais.
Assim agindo, seu ponto de vista não é o da sofística ou da filosofia estoica, que
insistiam na identidade da natureza humana comum, mas ele se fundamenta no
pressuposto da igualdade natural dos humanos diante do Cristo e do Evangelho.
De qualquer modo, convém notar a construção original do texto grego de Ro-
manos 1,14, em que, em cada um dos pares de nomes, a enclítica te é seguida da
conjunção kai,; essa construção quer significar que os dois membros de cada bi-
nômio são postos no mesmo plano (“e…e”, “seja… seja”, “tanto… como”), mas
com uma nuança que tende a evidenciar o segundo termo ao qual se atribui im-
plicitamente uma importância maior (“não somente… mas também”)11. Chama-
se assim a atenção, respectivamente, para os bárbaros e para os ignorantes, como se

cf. igualmente 1Cor 1,22.24; 10,32; 12,13; Gl 3,28). O fato de em nosso caso os gregos serem
comparados aos bárbaros (para além do paralelismo entre “gregos” e “gentios” instaurado em 1Cor
1,23) dá a entender que Paulo, com o termo [Ellhnej, quer designar globalmente os gentios, mais
que os juízes helenizados, como propõe Lucio Troiani (Il giudeo-ellenista e le origini del cristia-
nesimo, in Marta Sordi [a cura di], Autocoscienza e rappresentazione dei popoli nell’antichità, Milano,
Vita e pensiero, 1992, 195-210 [Contributi dell’Istituto di storia antica 18]), ao passo que vIoudai,oi
se referiria aos judeus tradicionalistas e observantes.
9. Cf. Aristófanes, Nu 492 (Sócrates diz a Estrepsíades:“Esse homem é ignorante e bárbaro”, que
sem dúvida deve ser tomado aqui apenas no sentido de rústico, grosseiro); Sêneca, Marc 7,3 (“a dor
pela perda de um próximo não é um fato natural, pois atinge mais as mulheres que os homens, mais
os bárbaros que as pessoas civilizadas, mais um ignorante que uma pessoa instruída”); ver igualmen-
te Políbio 1,65,7; Cícero, Mil 30.
10. Ver, por exemplo, a oposição entre mestre e alunos e as ‘ammê ha’aretz (cf. Aharon
­Oppenheimer, The am ha-aretz: a Study in the Social History of the Jewish People in the Hellenis-
tic-Roman Period, Leiden, Brill, 1977, 172-188 [ALGHJ 8]) e a célebre oração de R. Jehuda ben
Elai (c. 150): “Os louvores que devem ser recitados todos os dias são três: Bendito seja Deus […]
porque ele não me criou mulher. Bendito seja porque não me criou ignorante. Bendito seja porque
não me criou gôy,‘pois todos os gôyîm não são nada diante dele’ [Es 40,17]” (tBer. 7,18; cf. Hermann
L. Strack, Paul Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, München,
Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 31961, t. III, 611).
11. Encontramos a mesma construção logo antes, no versículo 12, e logo depois, no versículo
16 — que mostra uma vez mais que a teologia não pode se abster da gramática, que a condiciona
(ver igualmente na mesma carta 2,9.10; 3,9; 10,12).

389
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
eles fossem os destinatários privilegiados do apóstolo e como se, ao contrário,
fossem excluídos por princípio do interesse dos bem-pensantes.
No versículo seguinte (Rm 1,15), que inicia com uma proposição consecu-
tiva, Paulo tira a conclusão do que acaba de enunciar, para aplicar as consequên-
cias aos destinatários de sua carta. O adjetivo pro,qumoj — “ávido, desejoso” e não
somente “pronto, preparado, disponível”12 — vem depois de uma série de expres-
sões pelas quais Paulo quase manifesta sua impaciência de ir a Roma (ver os v.
10b.11a.13.15). O versículo, e com ele toda a seção do agradecimento pós-proto-
colar, termina e culmina com o verbo “anunciar o evangelho” (euvaggeli,sasqai).
Se até aqui, em sua carta, Paulo já empregou duas vezes o substantivo “evangelho”
(v. 1 e 9), é a primeira vez que emprega o verbo de mesma raiz13; e o que é mais,
ele o emprega sob uma forma absoluta, sem especificar de modo algum o objeto
do anúncio, como é também o caso, aliás, em várias outras passagens (ver Rm
15,20; 1Cor 1,17; 9,16bis; 9,18) — como se o objeto estivesse implicitamente
contido no verbo14.
O versículo 16a, “Pois não me envergonho do Evangelho”, representa uma
espécie de transição entre o exórdio (Rm 1,8-15) e o enunciado propriamente te-
mático que se segue, que se pode comparar do ponto de vista retórico a uma propo-
sitio (v. 16b-17). De uma parte, a declaração autorreferencial do expedidor — “não
me envergonho” — confirma o emprego da primeira pessoa do singular (como nos
versículos anteriores); de outra parte, o uso impreciso do termo euvagge,lion prepara
a explicação que se segue imediatamente (nos v. 16b-17).Assim, não se pode separar
o versículo 16a dos versículos 16b-17, pois formam um todo15; de certa maneira,

12. Paulo emprega o adjetivo substantivo neutro para indicar em abstrato a dimensão do apetite,
do desejo, como quem diz: “quanto a mim, eu o desejo…”. No NT, o adjetivo se encontra somente
no contexto da agonia de Jesus no Getsêmani (“O espírito está pro,qumoj, mas a carne é fraca”:
Mc  14,38/Mt 26,41); quando ao substantivo proqumi,a, significa mais que a simples prontidão,
como vemos em Atos 17,11 (traduzido pela Bíblia de Jerusalém por “solicitude” e pela Conferência
Episcopal Italiana por “entusiasmo”!); 2 Coríntios 8,11.12.19; 9,2.
13. Note-se que o infinitivo do verbo está no aoristo, que indica não uma ação contínua, mas
um fato pontual, ou seja, que deve ainda começar pontualmente (em Roma), ao passo que o meio
acrescenta uma nuança de compromisso subjetivo (encontramos a mesma forma verbal em Lc 1,19;
At 16,10; Ef 3,8).
14. Essa prática demonstra que o verbo tem hoje um sentido técnico unívoco, como se fosse
natural para o leitor acrescentar o complemento que se impõe, ainda que ele continue não expres-
so; às vezes, como para suprimir todo equívoco quanto ao objeto do anúncio, encontramos até a
construção, aparentemente tautológica,“evangelizar o Evangelho” (to. euvagge,lion o] euvhggelisa,mhn:
1Cor 15,1; cf. Gl 1,8.11).
15. Contra Charles E. B. Cranfield, The Epistle to the Romans I, Edinburgh, T & T Clark, 1975,
86 (ICC).

390
VI – Paulo, o apóstolo
dentro da grande propositio constituída pelos versículos 16-17, o versículo 16a
funciona como uma superpropositio autônoma dentro da própria perícope, no
sentido de que dela fornece o título e o assunto. Com efeito, os versículos 16-17,
centrados no conceito de “Evangelho”, de que Paulo diz não ter vergonha, não
fazem mais que propor uma definição geral do Evangelho, que é única em seu
gênero em todo o corpus paulino, até mesmo em todo o Novo Testamento16. Uma
ligação se manifesta assim entre a natureza do Evangelho e a experiência de
Paulo, que se declara pronto e desejoso de ir a Roma por essa causa. O que é in-
teressante notar, com efeito, é que a reflexão sobre o Evangelho nasce e se desen-
volve com base num devotamento total e concreto à sua causa por parte do após-
tolo, ou seja, com base na evangelização. Sem a prática do euvaggeli,sasqai,
lembrado no versículo 15b, não haveria reflexão sobre o euvagge,lion, como lemos
nos versículos 16-17. Temos assim a confirmação, por via indireta, de que para
Paulo é a vida que gera o pensamento ou, pelo menos, que permite lhe dar uma
formulação melhor.
A ideia de Evangelho não parece nova na carta aos Romanos, pois já se tra-
tou antes do “Evangelho de Deus” (1,1) e do “Evangelho de seu Filho” (1,9).
Quando Paulo escreve essa carta, já tem atrás de si longos anos de evangelização,
mas também de reflexão sobre a natureza dela, como podemos deduzir do que
escreve alhures a propósito do lo,goj avkoh/j (1Ts 2,13), do lo,goj o` tou/ staurou/
(1Cor 1,18) e do lo,goj th/j katallagh/j (2Cor 5,17-21). Além disso, não há dú-
vida de que os próprios destinatários da carta conheciam, pelo menos por alto, o
sentido cristão da ideia de Evangelho. Jamais, porém, como nessa passagem o
apóstolo utiliza a seu propósito termos tão secos para construir sua frase, a tal pon-
to que o próprio Evangelho poderia ser seu sujeito lógico (a expressão “não me
envergonho do Evangelho” poderia igualmente ser formulada assim: “O Evange-
lho não me causa nenhuma vergonha”), de sorte que é a própria enunciação que
é construída numa forma absoluta. O fato é que em nenhuma outra parte de seus
escritos o apóstolo dá do Evangelho uma definição tão densa, nítida e incisiva.
Essa singularidade só se explica pela referência ao seu compromisso de evangeli-
zador que lembrou um pouco antes.
A elaboração de grandes conceitos como “poder de Deus” (du,namij qeou/),
“salvação” (swthri,a), “justiça de Deus” (dikaiosu,nh qeou/) e, mais ainda, como
“fé” (pi,stij) não encontram seu fundamento num puro sistema teológico ou
num patrimônio de fórmulas recebidas da tradição, mas num compromisso mis-

16. Encontra-se também uma reflexão especial a esse respeito em 1 Coríntios 9,16-23, mas de
maneira mais pessoal que especulativa.

391
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
sionário que, longe de ser puramente veleidoso, foi perseguido por Paulo a ponto
de arriscar sua própria vida (cf. 1Cor 4,9-13; 2Cor 11,21b-29). Foi durante essas
viagens, para as quais o chamava sua dedicação apostólica, que Paulo pôde consta-
tar concretamente a dynamis do Evangelho: “O anúncio do Evangelho que efe-
tuamos entre vós não ficou em discurso, mas manifestou o poder, a ação do Espí-
rito Santo” (1Ts 1,5); foi aí que compreendeu a que ponto a justiça de Deus agia
nele em favor dos gentios; estes, “que não procuravam a justiça [que provinha da
Lei] obtiveram-na — falo da justiça que vem da fé” (Rm 9,30); foi aí também que
experimentou quanto a simples fé em Cristo podia unir o judeu e o grego, o es-
cravo e o homem livre, o homem e a mulher, sem nenhuma outra distinção (cf. Gl
3,23-28). Foi, portanto, a experiência, unida certamente ao temperamento arden-
te do apóstolo e à sua capacidade dedutiva, que lhe permitiu formular a extraor-
dinária definição de Romanos 1,16-17; por essa definição ele dá uma expressão
verbal a convicções nascidas de seu empenho de cada dia.

2. A espera do Senhor (1Ts 4,13-18)

Na primeira de suas epístolas, Paulo tem de enfrentar uma questão da comu-


nidade cristã de Tessalônica que o interroga a propósito dos cristãos defuntos, peri.
tw/n koimwme,nwn (4,13)17. De fato, entre os cristãos de Tessalônica, houve mortes
que a comunidade, segundo toda probabilidade, não tinha previsto e que por essa
razão causavam uma grande tristeza. No que se refere ao próprio Paulo, não se
sabe se o fato era novo ou imprevisto também aos seus olhos, mas “na verdade, é
difícil imaginar que, durante os cerca de vinte anos de atividade missionária que
precederam a composição da carta, Paulo jamais tenha se visto confrontado com
o problema da morte de um crente e não tenha encontrado uma solução teológi-
ca para o problema”18. De outra parte, é certamente improvável que Paulo, num
primeiro tempo, tenha raciocinado somente em termos de escatologia realizada
(parusia como “presença”) e que somente a morte de alguns crentes o tenha obri-
gado a modificar sua concepção e projetar para o futuro a comunhão com o Se-

17. O entendimento do particípio presente (koimwme,nwn) é preferível ao do particípio perfeito


(kekoimhme,nwn), pois é mais bem atestado textualmente (cf. Barbara e Kurt Aland et al. [Hrsg.],
Novum Testamentum Graece, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 271993, ad loc.) — ainda que o
perfeito fosse mais lógico (em vez de um fato contínuo, que corresponde bem menos ao que Paulo
terá a dizer sobre o assunto, o perfeito exprimiria melhor a realidade atual da morte, e ao mesmo
tempo o fato de que ela já foi constatada).
18. Larry J. Kreitzer, Escatologia, in Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin, Daniel G. Reid,
Dizionario di Paolo e delle sue lettere, Cinisello Balsamo, San Paolo, 1999, 556-582 (570).

392
VI – Paulo, o apóstolo
nhor (parusia como “vinda”)19. O que é certo, em todo caso, em relação à do-
cumentação conservada, é que o texto de 1 Tessalonicenses 4,13-18 constitui o
testemunho mais antigo em matéria de espera escatológica. É nele que pela pri-
meira vez o apóstolo põe por escrito seu pensamento a esse respeito. É, pois, ine-
vitável estabelecer uma relação entre a situação que se criou em Tessalônica e o
posicionamento de Paulo em sua epístola.
É certo que a primeira geração cristã20 se caracterizava por uma forma de
Naherwartung, segundo a qual a parusia do Senhor era esperada como iminente21.
Essa crença é bem atestada em todas as camadas ou perspectivas do Novo Testa-
mento, quer entre os que põem com solidez Jesus Cristo no centro de seus pen-
samentos, como Paulo (cf., por exemplo, Rm 13,11; Fl 3,20), o autor de Hebreus
(cf. Hb 10,37) e o do Apocalipse (cf. Ap 3,11; 22,7.12.20), quer entre os que, ao
contrário, como Tiago, atribuem à figura do Cristo um papel bem marginal (cf.
Tg 5,7-8)22. Mas é Paulo, mais do que qualquer outro, que dá testemunho dessa
espera pelo emprego do verbo avpekde,comai, que é o único autor do Novo Testa-
mento a utilizá-lo (seis vezes: Rm 8,19.23.25; 1Cor 1,7; Gl 5,5; Fl 3,20; ver, além
disso: Hb 9,28).
Em sua resposta, o apóstolo exprime o vivo desejo de que os tessalonicenses
conheçam a verdade das coisas: “Não queremos, irmãos, deixar-vos na ignorância
(ouv qe,lomen de. u`ma/j avgnoei/n, avdelfoi,)”. Ele se apresenta assim não somente
como o consolador, mas também, em certo sentido, como o “revelador”. Com
efeito, a fórmula supracitada, que volta várias vezes em suas cartas (cf. Rm 1,13;
11,25; 1Cor 10,1; 12,1; 2Cor 1,8), tem por objetivo introduzir uma informação
ao mesmo tempo nova e importante23. É verdade que, poucas linhas antes, ele
lembrou aos seus leitores os ensinamentos que lhes havia dado quando estava com
eles (cf. 1Ts 4,2: ti,naj paraggeli,aj evdw,kamen u`mi/n); mas, evidentemente, jamais

19. Contra Christopher L. Mearns, Early Eschatological Development in Paul:The Evidence of


I and II Thessalonians, NTS 27 (1981) 137-157.
20. A segunda geração, ao contrário, atenuou, pelo menos esporadicamente, a espera de uma
vinda iminente.
21. O termo parousi,a em referência a Jesus Cristo (dezessete vezes no NT; cinco vezes nas cartas
autênticas de Paulo, quatro das quais em 1 Tessalonicenses) pode também ser substituído, com o
mesmo significado, por avpoka,luyij (cinco vezes no NT; uma vez em Paulo, em 1Cor 1,7).
22. É interessante observar que Paulo e Tiago utilizam a mesma raiz léxica evggu,j a propósito da
vinda escatológica (cf. Rm 13,11.12: evggu,teron … h;ggiken; Tg 5,8.9: h;ggiken … pro. tw/n qurw/n).
23. Ela se distingue nitidamente da fórmula que Paulo utilizará pouco depois: “Vós mesmos o
sabeis perfeitamente” (1Ts 5,2: auvtoi. ga.r avkribw/j oi;date), pela qual ele remete a um ensinamento
recebido anteriormente; a esse propósito, com efeito, ressalta explicitamente: “Não precisais que se
vos escreva” (1Ts 5,1).

393
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
lhes disse o que está por lhes escrever a respeito da sorte dos defuntos. O que cau-
sa problema concretamente não é a ressurreição como tal, mas a condição efetiva
dos defuntos em relação aos que estiverem ainda em vida24.
A resposta de Paulo está articulada e se desenvolve em três tempos. Em pri-
meiro lugar, lembra o dado fundamental e jamais posto em dúvida da fé pascal
comum para aplicá-la ao caso: o esquema morte-ressurreição de Jesus (v.14:
vIhsou/j avpe,qanen kai. avne,sth) deve ter um valor paradigmático também para os
defuntos cristãos (ou[twj kai,…). Num segundo tempo, de maneira mais específi-
ca, ele se lembra de uma palavra do Senhor, ou melhor, fala (le,gomen) conforman-
do-se a uma palavra do Senhor (evn lo,gw| kuri,ou). É esse o traço mais característi-
co da intervenção apostólica. A que palavra se refere Paulo? Não há tanta clareza25:
trata-se de uma palavra de Jesus transmitida pela Igreja? De uma declaração do
próprio Paulo? Do oráculo de um profeta que o apóstolo teria feito seu? Essa
última hipótese é talvez a mais provável26. Seja lá como for, Paulo propõe essa
solução como sendo a sua. Consiste ela em garantir aos tessalonicenses que os
defuntos deles não serão abandonados no momento da parusia (v. 15: ouv mh.
fqa,swmen), seja qual for a maneira como compreendemos a frase h`mei/j oi` zw/ntej
oi` perileipo,menoi eivj th/n parousi,an, seja no sentido de uma asserção (“Nós, os
vivos, que tivermos ainda ficado até a vinda do Senhor”), seja sob uma forma de
dúvida (“Nós, os vivos, no caso de termos ainda ficado até a vinda do Senhor”)27.

24. Nesse sentido, o Sitz im Leben da Igreja de Tessalônica é diferente do da Igreja de Corinto:
cf. Joël Delobel, The Fate of the Dead according to 1Thes and 1 Cor 15, in Raymond F. Collins
(ed.), The Thessalonian Correspondence, Leuven, University Press, 1990, 340-347 (BEThL 87).
25. Ver a discussão em Traugott Holtz, Der erste Brief an die Thessalonicher, Zürich, Benziger/
Neukirchener, 1986, 183-185 (EKK 13): o autor tende a uma palavra de Jesus transmitida pela
Igreja.
26. Assim David E. Aune (La profezia nel primo cristianesimo e il mondo mediterraneo antico, Brescia,
Paideia, 1996, 472-480 [Biblioteca di storia e storiografia dei tempi biblici 10]), que oferece igual-
mente o estado da questão; o autor observa que na Septuaginta o sintagma lo,goj kuri,ou é utilizado
para introduzir oráculos proféticos (cf. 1Rs 20,35; 2Rs 13,1 ss.; 21,35; Sr 48,3) e que Paulo jamais
a eles recorreu para referir revelações pessoais (nesse caso, ele fala de avpoka,luyij: cf. 1Cor 14,6;
2Cor 12,1.7; Gl 1,12; 2,2); Aune sugere consequentemente ver em Silvano (1Ts 1,1) o profeta
cristão a quem se deve o oráculo em questão.
27. É esse sentido que é considerado por Sebastian Schneider, Vollendung des Auferstehens. Eine
exegetische Untersuchung von 1 Kor 15,51-52 und 1 Thess 4,13-18, Würzburg, Echter Verlag,
2000, 265-279 (fzb 97). O texto paralelo de 1 Coríntios 15,51-52 em si se presta a traduções diver-
sas, porque apresenta variantes na tradição manuscrita. Segundo o ensinamento do Codex Vaticanus
(B), que é comumente admitido, a tradução é esta: “Certamente não morreremos todos, mas seremos todos
transformados num instante, num piscar de olhos, ao som da trombeta final: pois a trombeta soará, e os
mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós, nós seremos transformados”. Mas, segundo o Papyrus 46,
mais antigo, a passagem poderia ser traduzida deste modo: “Todos nós nos tornaremos não dormentes

394
VI – Paulo, o apóstolo
O terceiro momento da resposta de Paulo consiste em retomar elementos típicos
da apocalíptica judaica (v. 16: a trombeta, a voz do arcanjo, a descida do céu, a
elevação sobre as nuvens)28, embora pareça que a tese própria da apocalíptica já
esteja na origem da problemática mesma (tal como a lemos, por exemplo, em
4Esd 13,24: “Os que forem deixados serão mais felizes do que os que estiverem
mortos”).
A solução do problema é, pois, que os mortos ressuscitam primeiro e que os
vivos os seguirão depois, como se se tratasse de dar a precedência àquele que foi
desfavorecido pela sorte. Trata-se de uma resposta claramente formulada a partir
de uma situação bem concreta e marcada pela tristeza, e talvez seja condicionada
e até relativizada por aquela situação. Mas o elemento fundamental que aproxima
as duas categorias de pessoas diz respeito à comunhão de todos “com o Senhor”,
su.n kuri,w|. Esse sintagma aparece aqui pela primeira vez e de maneira repetida
(cf. 1Ts 4,14.17; 5,10), e será depois retomado em outras cartas para ressaltar a
dimensão cristológica da existência no eschaton (cf. Fl 1,23; Rm 6,8; Cl 3,3).

3. Divisão e unidade da Igreja (1Cor 1–4)

Como se sabe, a primeira epístola aos Coríntios trata de uma série de pro-
blemas concretos relativos à vida de uma Igreja particular. Segundo uma famosa
definição de Hans Conzelmann, Paulo pratica uma “teologia aplicada”. Mais
que isso, porém, pois “a teologia não é somente aplicação de princípios abstratos,
mas, antes, compreensão da situação em que se encontra o homem em seu mo-
mento presente”29. A primeira questão abordada pelo apóstolo diz respeito ao
embaraçoso problema de um conflito que surgiu na Igreja de Corinto e que
Paulo menciona desde o início da carta. Em 1 Coríntios 1,11, com efeito, fala de

(ou seja, seremos despertados), mas nós não seremos todos transformados. Num instante, num fechar de
olhos, ao som da trombeta final — pois a trombeta soará —, assim como os mortos (ou seja, todos)
ressuscitarão incorruptíveis, nós mesmos (ou seja, os cristãos), nós seremos transformados”. Esta
segunda leitura é defendida por Sebastian Schneider (Vollendung des Auferstehens, 81-179).
28. Cf. Jörg Baumgarten, Paulus und die Apokatyptik. Die Auslegung apokalyptischer Überliefe-
rungen in den echten Paulusgriefen, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1975, 91-98 (WMANT
44); Albertus F. J. Klijn, 1Thessalonians 2.13-18 and its Background in Apocalyptic Literature, in
Morna D. Hooker, S.G. Wilson (ed.), Paul and Paulinism: Essays in Honour of C. K. Barrett, Lon-
don, SPCK, 1982, 67-73.
29. Hans Conzelmann, Der erste Brief an die Korinther, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht,
1969, 22 (KEK 5): “angewandte Theologie […] Weil Theologie für Paulus nicht Anwendung von
zeitlosen Prinzipien ist, sondern das Verstehen der Situation, in der sich der Mensch in dem Au-
genblick befindet, in dem die Gnade durch das Wort bei ihm eintrifft”.

395
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
e;ridej, “querelas, rivalidades, discórdias”, que se exprimem em reivindicações
específicas: “Cada um de vós fala assim: ‘Eu sou de Paulo. Eu, de Apolo. Eu, de
Cefas. Eu, de Cristo” (1,12; cf. 3,3: zh/loj kai. e;rij). Essa é a situação de fato,
manifestamente inesperada, com a qual o apóstolo se vê confrontado. À guisa de
resposta, invoca de imediato o princípio, enunciado sob a forma de uma inter-
rogação retórica, da “indivisibilidade” do Cristo: “Acaso o Cristo está dividido?”
(1,13: meme,ristai o` Cristo,j;). Essa frase polêmica já exprime por si só o ponto
de vista de Paulo a respeito da solução da situação coríntia. Não poderíamos
deixar de citá-la se tivéssemos de comentar a definição paulina da Igreja como
“Corpo de Cristo”, sw/ma Cristou/, formulada mais adiante na carta (1Cor
12,27)30 — ainda que seja necessário reconhecer que nesse último caso o con-
texto imediato não se refere tanto ao lado negativo das divisões quanto ao lado
positivo da pluralidade de carismas.
Em 1 Coríntios 1–4, a situação coríntia oferece a Paulo a ocasião de elaborar
uma resposta original e articulada, de que ressalto aqui três aspectos diferentes.
Em primeiro lugar, ele se refere ao fundamento da identidade cristã, que é a
cruz de Cristo, ou melhor, “a linguagem da cruz” (1,18: o` lo,goj o` tou/ staurou/),
ou seja, o anúncio do Evangelho. A convicção de Paulo é que esse fundamento
não pode se reduzir à sabedoria humana — como se na vida da Igreja se pudesse
ultrapassá-la, ou como se se pudesse imaginar considerar-se herdeira de escolas de
pensamento que se opõem entre si. A esse propósito, o apóstolo formula o binô-
mio insólito “escândalo e loucura” (1,23). Com esses termos paradoxais, mas ver-
dadeiros, ele quer exprimir a impossibilidade de reduzir a cruz do Cristo às cate-
gorias da sabedoria humana. Se o cristianismo não é comparável a uma escola de
sabedoria, é precisamente porque sua sabedoria não é de origem humana. Segun-
do Paulo, a Igreja não pode ser dividida, a menos que se reduza o Evangelho a
uma cultura ou a uma doutrina, à mercê de raciocínios e demonstrações eruditos.
Ao contrário, são a cruz do Cristo e o anúncio de seu Evangelho que fundamen-
tam e garantem a unidade eclesial, com a condição, todavia, de perceber neles o
naufrágio de toda sabedoria deste mundo e de aceitá-lo.Vê-se assim que a coesão
da Igreja não provém nem pode resultar de dissertações intelectuais ou filosóficas.
Ela é estabelecida objetivamente por um Deus que, de maneira imprevista, sem
levar em conta nossas pré-compreensões, revela-se no que causa escândalo aos
judeus e aparece como loucura aos olhos dos pagãos. Isso significa, em outros
termos, que a unidade da Igreja, ou melhor, sua identidade primeira não encontra

30. Cf. Romano Penna, La chiesa come Corpo di Cristo secondo S. Paolo. Metafora sociale-
comunitaria o individuale-cristologica?, Lat 68 (2002) 243-257.

396
VI – Paulo, o apóstolo
fundamento em si mesma, mas num extra nos bem determinado e ao qual não se
pode renunciar31.
Junto com esse tema, a situação coríntia convida Paulo a abordar o problema
dos ministros. A esse propósito o apóstolo escreve com muita clareza que Paulo e
Apolo (e Cefas) não são mais que “servos (dia,konoi) pelos quais fostes conduzidos
à fé; cada um deles agiu conforme os dons que o Senhor lhe concedeu” (1Cor
3,5). Pensar de modo diferente seria profano e falso, kata. a;nqrwpon, não confor-
me à perspectiva de Deus (3,3). Num estudo interessante, Bruce W.Winter mostra
bem a diferença entre Paulo e os sofistas de seu tempo, e conclui que “Paulo lança
por terra uma das concepções básicas dos sofistas, ao declarar que na Igreja o mes-
tre pertence aos discípulos, e não o contrário”32. Paulo o expressa e ressalta de
vários modos. Uma delas consiste em recorrer às metáforas — agrícola e arquite-
tônica — da Igreja como campo e da Igreja como edifício (cf. 1Cor 3,6-15). Nos
dois casos, Deus é ou o proprietário ou o mestre de obras, ao passo que Apolo e
Paulo não são mais que seus colaboradores, qeou/ sunergoi, (3,9) — pouco impor-
tando a maneira como se compreende essa última denominação, quer se refira a
preposição su,n à relação dos colaboradores entre si, quer à sua relação com Deus33.
O certo é que o apóstolo não pensa aqui numa forma de sinergia, pois o contexto
sugere uma dependência contínua desses colaboradores em relação a Deus. Além
disso, convém notar que a Igreja é vista como sempre a ponto de ser plantada e
construída: é precisamente isso que faz que seus ministros estejam continuamente
agindo, exercendo sua função de (sun)ergoi,, ainda que o fundamento, que é o

31. Outra coisa é perguntar se o cristianismo, do ponto de vista da fenomenologia sociocultural,


poderia aparecer como uma escola (cf. Loveday C. A. Alexander, Paul and the Hellenistic Schools:
The Evidence of Galen, in Troels Engberg-Pedersen [ed.], Paul in His Hellenistic Context, ­Edinburgh,
T & T Clark, 1994, 60-83 (82) [Studies of the New Testament and its World]: “Em termos de es-
trutura social, o modelo da escola tem vantagens sobre os modelos mais familiares da casa ou da
associação, porque nenhum deles produz literatura nem se entende ele mesmo como parte de um
movimento de envergadura universal”). É certo que 1 Coríntios 1–4 “sugere que Paulo teria tido
mais afinidades com o modelo da escola filosófica ou médica do que com o estilo polêmico do
ensinamento dos sofistas de seu tempo, cujas atitudes encorajavam a adesão a indivíduos, uma vez
que seus adeptos se assemelham mais a fãs de um pop star moderno” (Loveday C.A. Alexander,
“IPSE DIXIT”: Citation of Authority in Paul and in the Jewish and Hellenistic Schools, in Troels
Engberg-Pedersen [ed.], Paul Beyond the Judaism/Hellenism Divide, Louisville [KY], Westminster
John Knox Press, 2001, 103-127 [118]).
32. Bruce W. Winter, Philo and Paul Among the Sophists, Cambridge, Cambridge University
Press, 1997, 201 (MSSNTS 96).
33. No primeiro sentido, ver Charles Kingsley Barret, A Commentary on the First Epistle to the
Corinthians, London, A. & C. Black, 1971, 86 (BNTC); no segundo sentido, ver Wolfgang Schrage,
Der erste Brief an die Korinther, Zürich/Braunschweig/Neukirchen-Vluyn, Benziger/Neukirchener,
1991, v. 1: 1 Kor 1,1-6,11, 293-294 (EKK 7/1).

397
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
Cristo, tenha sido lançado de uma vez por todas (cf. 3,11). De mais a mais, a pas-
sagem seguinte, 1 Coríntios 3,18-23, evidencia uma estrutura eclesial que é tudo
salvo uma pirâmide: “Tudo é vosso: Paulo, Apolo ou Cefas, o mundo, a vida ou a
morte, o presente ou o futuro, tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo, de
Deus” (1Cor 3,21-23).Vê-se claramente que os ministros não estão no ápice do
edifício, mas, antes, na base, como os escravos, na estrutura da sociedade antiga, se
encontravam no degrau mais baixo da hierarquia social. O apóstolo dirá isso com
mais clareza ainda na segunda epístola aos Coríntios, quando escreve: “Não se-
nhoreamos a vossa fé” (2Cor 1,24: ouvc o;ti kurieu,omen u`mw/n th/j pi,stewj), pois
“não é a nós mesmos, mas a Jesus Cristo Senhor que nós proclamamos. Quanto a
nós, proclamamo-nos vossos servos por causa de Jesus” (2Cor 4,5: e`autou/j de.
dou,louj u`mw/n dia. VIhsou/n).
Enfim, reservemos um lugar à parte à definição da Igreja como templo de
Deus, elaborada em 1 Coríntios 3,16-17 (cf. 6,19; 2Cor 6,16). Paulo é o único a
utilizar essa imagem, cujos ecos se percebem também alhures, quando se trata de
cristãos que são edificados “como pedras vivas” sobre a pedra angular que é o
Cristo (1Pd 2,4-5). Essa mesma metáfora é parcialmente documentada nos ma-
nuscritos de Qumran34. Em Paulo, ela ultrapassa a ideia, típica da religiosidade
pagã, de um espaço físico sagrado isento de forças negativas e que, assim, permi-
te um acesso privilegiado ao divino; e ela reconhece na Igreja como comunida-
de humana de crentes as mesmas características de pureza que proporcionam
uma união imediata com Deus. A imagem se insere em outra mais ampla, de
povo de Deus, como indica claramente a associação delas na seguinte passagem:
“Pois nós somos o templo do Deus vivo, como disse Deus: ‘No meio deles eu
habitarei e andarei; eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo’” (2Cor 6,16,
com citação de Lv 26,11).

34. Encontramos aí a expressão enigmática miqdaš ’a3da3m (4QFlor 1,6), que foi interpretada de
duas maneiras diferentes: seja no sentido personalista e coletivo de “santuário do homem” e, por-
tanto, como uma alusão à própria seita, seja no sentido mais cultual de “santuário de Adão”, que
seria uma evocação do santuário escatológico, purificado e retornado à condição de inocência do
primeiro homem. Mas em 1QS 8,5 o conselho da Comunidade é chamado de bêt qôdes\ leyis r8 a3’e3l
(lit. “casa santa para Israel”), que se pôde traduzir de modo não codificado por “templo para Israel”
(Corrado Martone, La Regola della Comunità. Edizione critica, Torino, Zamorani, 1995, 128 [Qua-
derni di Henoch 8]), com tanto mais razão quanto a própria comunidade é definida como “habi-
tação do santo dos santos” (8,8) e sua função é uma função sacerdotal “de expiação em favor do
país” (8,6). Em todos esses textos, todavia, a óptica é sempre comandada pela referência ao espaço
sagrado do Templo de Jerusalém e à sua função expiatória.

398
VI – Paulo, o apóstolo
4. O antigo e o novo “testamento” (2Cor 3)

Na segunda epístola aos Coríntios, Paulo emprega excepcionalmente a me-


táfora original da evpistolh, para definir a comunidade cristã viva à qual se dirige.
A imagem implica a ideia de que foi Paulo quem “escreveu” essa Igreja, ou seja,
quem a fundou, ainda que ele se corrija imediatamente definindo-a mais precisa-
mente como “uma carta do Cristo composta por nós” (2Cor 3,2-3). Ao se expri-
mir assim, ele dá a impressão de ter tido um sobressalto de orgulho ao pensar nas
comunidades que tinha fundado, definidas, aliás, como “o selo de seu apostolado”
(1Cor 9,2), embora ele próprio não tivesse necessidade de nenhuma outra carta
de apoio ou de suporte para se apresentar. Nesse contexto, com efeito, a metáfora
epistolar remete a um gênero de carta bem específica: a carta de recomendação,
evpistolh. sustatikh,, que na Antiguidade constituía um gênero à parte35.
Em 2 Coríntios 3, é importante notar que a metáfora paulina gera uma ar-
gumentação imprevista, que abre um discurso original caracterizado pela passa-
gem36 do nível da comunidade viva ao nível de uma reflexão nos devidos termos
sobre o antigo e o novo testamento. A ocasião concreta e imediata desse desenvol-
vimento é dada pelo esclarecimento segundo o qual os cristãos de Corinto são
uma carta “escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tá-
buas de pedra, mas em tábuas de carne, em vossos corações” (2Cor 3,3). Podemos
ver nessas palavras uma alusão combinada de três textos veterotestamentários:
Êxodo 31,18, em que se lê que Deus deu a Moisés “as duas tábuas do Documen-
to, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus”; Jeremias 38,33 (LXX), em que
Deus promete no futuro “escrever as leis em seus corações”; e Ezequiel 36,26, em
que Deus esclarece que deseja “tirar do vosso corpo o coração de pedra e vos dar
um coração de carne”. Nesse último texto profético, percebemos uma nuança
pejorativa referente às tábuas de pedra do Decálogo, às quais se opõe o coração de
carne, que significa pelo menos uma melhora da situação. É precisamente essa
oposição que é retomada e amplificada por Paulo, numa perspectiva de história
mais ampla da salvação.

35. Cf. Chan-Hie Kim, Form and Structure of the Familiar Greek Letter of Recommendation, Missoula
(MT), Society of Biblical Literature, 1972 (SBL.DS 4); Stanley Kent Stowers, Letter Writing in
Greco-Roman Antiquity, Philadelphia (PA), Westminster Press, 1986, 153-165 (Library of Early
Christianity 5). Exemplos no NT: Romanos 16,1-2; 2 Coríntios 8,18-23; Filipenses 2,25-30; em
parte, igualmente Filêmon.
36. É Margaret E. Thrall (The Second Epistle to the Corinthians, I, Edinburgh, T & T Clark, 1994
[ICC]) que fala de um “shift of imagery”; ver também Bernd Juschnerus, Die Gemeinde als Brief
Christi. Die Kommunikative Funktion der Metapher bei Paulus am Beispiel von 2 Kor 2-5, Göt-
tingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 2002, espec. 150-172 (FRLANT 197).

399
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
Não podemos deixar de nos perguntar por que a argumentação de Paulo
tende a opor dois momentos e até duas formas de aliança.A melhor resposta é que
essa argumentação reflete uma situação particular da Igreja de Corinto e da rela-
ção de Paulo com ela. A esse propósito, parece-me difícil aceitar plenamente a
hipótese apresentada em sua época por Dieter Georgi: o apóstolo pretenderia
aqui responder a pregadores judaizantes que tendiam a apresentar o Decálogo,
escrito pelo dedo de Deus, como uma carta de recomendação a fim de impor a
Corinto a Lei de Moisés37. Na realidade, o Decálogo jamais foi visto como uma
carta38. Aliás, temos de reconhecer que Paulo, ao tomar uma atitude polêmica
diante de “alguns”, tinej (v. 1), que se gabam de possuir cartas de recomendação,
adota um tom mais sereno na continuação da passagem, ao falar de “filhos de Is-
rael” (3,7.13) e, mais especificamente, de “Moisés” (3,7.13.15).A menção de Moi-
sés parece ser óbvia, depois da das tábuas de pedra, no versículo 3, mesmo que
pareça secundária em relação à definição da comunidade como “carta”. Mas tam-
bém essa metáfora é amparada pela ideia de escritura — que convém, todavia,
entender no sentido metafórico —, e é sobre ela que cai o acento principal.
Embora não tenha falado ainda explicitamente dos opositores na parte da
epístola que precede nossa passagem, é certo que já passaram pela cabeça de Paulo
diversas situações de oposições, às quais se refere com várias alusões: a tribulação
experimentada na Ásia (cf. 2Cor 1,8-11), a acusação implícita de ter feito alternar
o Sim e o Não em seus projetos de viagem a Corinto (cf.1,15-20) e a humilhação
que sofreu em Corinto por parte de um personagem anônimo que o mergulhou
na tristeza (cf. 2,1-11), isso sem falar dos que fazem comércio com a palavra de
Deus (cf. 2,17). Parece querer dizer que, apesar de todas as suas dificuldades, con-
seguiu compor uma carta de valor, ou seja, a Igreja de Corinto. Paulo, apesar das
oposições e aversões, encontra a maior consolação em suas comunidades, de que
ele se gloria como se fossem criaturas suas, seus filhos ou suas filhas (cf. 1Cor
3,14-15; 2Cor 6,13; Gl 4,19; 1Ts 2,11).
É precisamente a alegria que sente Paulo ao pensar na comunidade cristã, de
que é o fundador, o ponto de partida de sua ampla reflexão sobre a relação entre
o velho e o novo testamento, que são comparados, em 2 Coríntios 3,7-9, com a
ajuda de uma forte oposição entre “ministério de morte/de condenação”
(diakoni,a tou/ qana,tou/th/j katakri,sewj) e “ministério do Espírito/da justiça”

37. Cf. Dieter Georgi, The Opponents of Paul in Second Corinthians, Edinburgh, T & T Clark,
1986, 230-238, 254-258 (Studies in the New Testament and its World). Para o estado da questão,
ver Christian Wolff, Der zweite Brief des Paulus an die Korinther, Berlin, Evangelische Verlagsanstalt,
1989, 63-66 (ThHK 8).
38. Cf. Margaret E. Thrall, The Second Epistle to the Corinthians, I, 228 (cf. nota 36).

400
VI – Paulo, o apóstolo
(diakoni,a tou/ pneu,matoj/th/j dikaiosu,nhj). Essa oposição, quando muito, é tem-
perada pelo reconhecimento do fato de que a economia mosaica já gozava de sua
“glória”, ainda que esta tivesse sido superada pela glória bem maior da nova or-
dem de coisas baseada no Evangelho.
Convém ter presente o fato de que o apóstolo, nessa página, forja pela pri-
meira vez o sintagma palaia. diaqh,kh,“antiga disposição”,“antiga aliança”,“anti-
go testamento”; convém examinar bem o sentido preciso que lhe dá39. Não faz
ele referência, com efeito, a uma economia salvífica viva, a uma modalidade de
intervenção de Deus na história, tampouco a um modo positivo de se pôr em
relação com Deus sob a forma da obediência religiosa. Antes, pretende se referir a
algo escrito, pois fala de “letras gravadas em pedra” (3,7) e de “leitura”, avna,gnwsij
(3,14; cf. 3,15:“quando lemos Moisés”), ainda que se trate de uma leitura ordena-
da à aceitação de uma economia salvífica particular. A expressão assume, pois, aqui
um sentido que, literalmente, é verdadeiramente “escriturístico”, pois se refere a
uma escrita40.
Ao contrário, Paulo utiliza, numa correspondência antitética exata, o sintag-
ma kainh. diaqh,kh, “novo testamento”, “nova aliança”, “nova disposição” (2Cor
3,6), que não deve, certamente, ser entendido no sentido de uma ab-rogação do
“antigo”, tampouco num sentido puramente “escriturístico”. Com efeito, a “nova
disposição” diz respeito ao Espírito vivificador (cf. v. 6b), ao Cristo (cf. v. 14), a um
Senhor que deve ser contemplado de rosto descoberto (cf. v. 15.18), e à vida vivi-
da e livre dos crentes em Jesus Cristo. Todavia, o sintagma, diferentemente do
primeiro, é, de certo modo, tradicional. Encontramo-lo desde muito tempo na
literatura de Israel, pois o profeta Jeremias, por primeiro, já o emprega num senti-
do escatológico (cf. Jr 31,31 [TM]: berît ha5daša3h = 38,31 [LXX]: diaqh,kh kainh,).
A comunidade de Qumran o utiliza igualmente num outro sentido, para designar
a si mesma (cf. CD 6,19; 8,21; 19,33 s.; 20,12; provavelmente também 1QpHab
2,3)41, e esse uso qumraniano está próximo do de Paulo.Todavia, nos textos judai-
cos, o sintagma jamais se opõe, nesse sentido, a um outro “testamento”, declarado
“antigo”42. Mas no seio do cristianismo anterior a Paulo a expressão já é tradicio-

39. Cf. Romano Penna, Appunti sul come e perché il Nuovo Testamento se rapporta all’Antico,
Bib. 81 (2000) 95-104.
40. Sobre o todo, cf. Ellen J. Christiansen, The Covenant in Judaism and Paul: A Study of Ritual
Boundaries as Identity Markers, Leiden/New York/Köln, E.J. Brill, 1995, 249-269 (AGSU 27).
41. Além disso, em 1 QSb 5,21 trata-se do Príncipe da Congregação que “renovará o pacto da
comunidade para ele” (ûberît ha[yya]had yeh9ade3š lô).
42. Cf. Annie Jaubert, La notion d’alliance dans le Judaïsme aux abords de l’ère chrétienne, Paris, Seuil,
1963, 210 (PatSor 6); Ellen J. Christiansen, The Covenant in Judaism and Paul, 129 (cf. nota 40).

401
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
nal, pois pelo menos em certos meios (a Igreja de Antioquia?) ela era empregada
nas palavras eucarísticas pronunciadas sobre a taça (cf. 1Cor 11,25/Lc 22,20). De
sua parte, o autor da epístola aos Hebreus a utilizará depois para formular um
julgamento cristológico conciso a respeito de Jesus como sacerdote e vítima de
um novo tipo, definido por duas vezes como “mediador de uma aliança nova”
(Hb 9,15: kainh,; 12,24: ne,a; cf. 7,22: “aliança melhor”). Ao contrário, “antigo tes-
tamento”, se excetuarmos a expressão “o primeiro testamento” na epístola aos
­Hebreus (Hb 9,15; cf. 8,13; 9,1.13), não aparecerá mais na linguagem cristã por
muito tempo, pelo menos até o fim do século II43.
Guardemos bem um elemento muito interessante: o discurso de grande en-
vergadura de Paulo em 2 Coríntios 3 tem seu ponto de partida na imagem da
Igreja como uma “carta” viva, que está sob os olhos de todos.

5. A relação entre a humildade do Cristo e a dos cristãos (Fl 2,1-11)

Um outro exemplo eloquente da combinação entre interesse pastoral e inte-


resse teológico nos é dado por uma bela página da carta à Igreja de Filipos: Filipen-
ses 2,1-11. Essa página faz parte de um bloco parenético mais amplo (1,27–2,18)
no qual Paulo recomeça a utilizar a segunda pessoa do plural, que havia abandona-
do depois de 1,10-11 para falar na primeira pessoa do singular, de sua própria si-
tuação (1,12-26), e que será de novo abandonada na seção seguinte (2,19-30).
Nessa longa página de exortação só levarei em consideração a seção 2,1-11,
em que se manifesta mais que nunca a imbricação entre o pastor e o pensador. O
pastor se afirma sobretudo nos primeiros versículos (1-5), ao passo que o pensa-
dor se manifesta particularmente nos versículos seguintes (6-11). O todo conjuga,
de fato, de maneira harmoniosa, preocupação ética e celebração cristológica, rea-
lizando o que se chamou de “a metaphorical detour”44. Deixo de lado, aqui, a
questão de saber se o hino cristológico é anterior a Paulo ou se emana diretamen-
te de sua pena. Embora eu julgue que o hino seja pré-paulino45, isso nada acres-

43. O único a retomar o sintagma será o bispo Melito de Sardes, segundo o testemunho de Eu-
sébio, HistEccl 4,26,13-14 “les livres de l’Ancien Testament”; cf. Victor P. Furnish, II Corinthians,
New York, Doubleday, 1984, 208-209 (AncB 32A).
44. Cf. Steven J. Kraftchick, A Necessary Detour: Paul’s Metaphorical Understanding of the
Phyilippian Hymn, HBT 15 (1993) 1-37.Ver também R. A. Worthman, Christology as Commu-
nity Identity in the Philippians Hymn: The Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-
11), Perspectives in Religious Studies 23 (1996) 269-286.
45. Além dos comentários — entre os mais recentes, o de Peter T. O’Brien (The Epistle to the
Philippians, Grand Rapids [MI]/Carlisle, Eerdmans/Paternoster, 1991 [NIGTC]) é contrário à hipó-

402
VI – Paulo, o apóstolo
centa à sua significação para o estudo da figura do apóstolo como pensador, pois
Paulo se revela também como tal quando retoma e reutiliza uma composição
produzida anteriormente ou que não seja dele, sobretudo quando a adapta a um
novo contexto.
Temos de partir da intenção que comanda a redação de toda a carta. A ten-
tativa é sem dúvida difícil, pois se corre o risco de montar, como se diz, um pro-
cesso de intenção. Mas a proposição recente de considerar Filipenses uma carta de
consolação46 é interessante, mesmo que, aparentemente, ela possa dar a impressão
de ser um pouco parcial. Não se pode negar que com esse escrito o apóstolo pro-
cura responder à situação de angústia dos filipenses, provocada tanto por sua pri-
são como pelos sofrimentos deles por causa do Evangelho. Mas o objetivo da
carta deve ser definido como a soma de várias intenções, sem excluir a de fazer a
apologia do Evangelho47, a de exortar a ficar firme na fé, apesar de um ambiente
difícil48, ou ainda a de convidar à unidade da vida comunitária49.
Para chegar agora ao texto de Filipenses 2,1-11, podemos nos perguntar se a
para,klhsij do versículo 1 deve ser entendida como um encorajamento que
Paulo solicita aos filipenses para ele mesmo (sentido passivo) ou como um enco-
rajamento que ele próprio lhes quer dar (sentido ativo). Seja como for, ele os
exorta a viver numa profunda harmonia mútua. O acento sobre esse tema pode
até surpreender se se considera a insistência com a qual a ele retorna no versículo
2, multiplicando os sinônimos: tende “o mesmo amor, uma só alma, um só senti-
mento”. O fundamento da harmonia solicitada é dado nos versículos 3-4. Paulo
enumera aí os verdadeiros valores que devem regular as relações mútuas: humilda-

tese, ao passo que o de Ulrich B. Müller (Der Brief des Paulus an die Philipper, Leipzig, Evangelische
Verlagsanstalt, 1993 [ThHK 11/1]) lhe é favorável —, ver por fim nesse sentido Emmanuele Testa,
Un inno prepaolino della catechesi primitiva (Fil 2,6-11), Studium Biblicum Franciscanum, Liber An-
nuus 47 (1997) 97-116; Mark I. Wegener, Philippians 2,6-11. Paul’s (Revised) Hymn to Jesus,
Currents in Theology and Mission 25 (1998) 505-517. Em contrapartida, não julgo pertinentes os
exemplos tirados da literatura antiga e invocados em favor da paternidade paulina de nosso texto por
Ralph Bruckner (“Christushymnen” oder “epideiktische Passagen”? Studien zum Stilwechsel im ­Neuen
Testament und seiner Umwelt, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1997 [FRLANT 176]).
46. Assim Paul A. Holloway, Consolation in Philippians: Philosophical Sources and Rhetorical
Strategy, Cambridge, Cambridge University Press, 2001 (MSSNTS 112).
47. Cf. Johannes Schoon-Janssen, Umstrittene “Apologien” in den Paulusbriefen. Studien zur rhe-
torischen Situation des 1 Thessalonicherbriefes, des Galaterbriefes und des Philipperbriefes, Göt-
tingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1991 (GTA 45).
48. Cf. Timothy C. Geoffrion, The Rhetorical Purpose and the Political and Military Character of
Philippians: A Call to Stand Firm, Lewiston/Queenston/Lampeter, Edwin Mellen, 1993.
49. Cf. Davorin Peterlin, Paul’s Letter to the Philippians in the Light of Disunity in the Church,
Leiden/New York, E. J. Brill, 1995 (NT.S 79).

403
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
de, desinteresse, generosidade, que ficam ressaltados ainda mais pela evocação da
face negativa deles, a rivalidade, a vaidade e a procura do interesse próprio. A vida
cristã não é, pois, feita apenas de um “sentimento” interior, mas, mais do que isso,
de um exercício concreto e constante que, eliminando toda forma de presunção
pessoal, considera os outros positivamente em função de seu valor próprio. Em
substância, trata-se de abandonar toda forma de egocentrismo, sempre latente,
que tende a considerar os outros como se estivessem a seu serviço. Poucos temas
são tão “cristãos” quanto esse. É difícil dizer se a comunidade de Filipos tinha par-
ticular necessidade de ser chamada a esses deveres de humildade. Por si só, o as-
sunto poderia ter um valor geral, se levado em conta o fato de que Paulo a ele
retorna com frequência em suas cartas (cf. Rm 12,16; 15,5; 1Cor 1,10; 2Cor
13,11). Todavia, o caso de Evódio e de Síntique (cf. Fl 4,2: to. auvto. fronei/n evn
kuri,w|) poderia ser indicador de uma situação comunitária marcada por certas
rivalidades e afirmações de si, ou até por vexações.
Além disso, o hino cristológico constitui um sinal suplementar da importân-
cia que o apóstolo atribui à sua exortação, se se considera que em nenhuma outra
passagem ele a fundamenta com a ajuda de um texto tão forte. Mantendo a auto-
nomia pré-redacional do hino, poderíamos discutir seu Sitz im Leben original, seja
batismal (como pensam Käsemann e Jervell), seja eucarístico (como supõem
­Lohmeyer e Dahl)50; uma conexão entre esse carmen Christi e as reuniões comuni-
tárias dos cristãos está fora de qualquer dúvida51.
A novidade que caracteriza o emprego do hino para Paulo reside, mais que
nos improváveis retoques redacionais, no fato de que se situa numa parênese epis-
tolar, que lhe serve de contexto, seja a parte ante (2,1-5), seja a parte post (2,12-
18)52. Ainda que a interpretação ética do hino tenha sido criticada53, parece-me
ser ainda a melhor. Observemos, de um lado, a ausência de uma perspectiva sote-

50. Para o estado da questão, ver Ralph Philip Martin, Carmen Christi: Philippians ii. 5-11 in
Recent Interpretation and in the Setting of Early Christian Worship, Cambridge, Cambridge Uni-
versity Press, 21983, 63-95 (MSSNTS 4).
51. Cf. Colossenses 3,16; Efésios 5,19; ver também Plínio, O Jovem, Ep 10,96,7. Observe-se,
todavia, que o hino de Filipenses 2,6-11 não apresenta nenhuma referência comunitária, como é o
caso, ao contrário, na eulogia de Efésios 1,3-14; mas é a própria forma do hino que exclui esse tipo
de referência (o mesmo se dá com Cl 1,15-20). Uma referência genérica ao Gottesdienst é suficien-
te, a exemplo do que faz Reinhard Deichgräber, Gotteshymnus und Christushymnus in der frühen
Christenheit. Untersuchungen zu Form, Sprache und Stil der frühchristilichen Hymnen, Göttingen,
Vandernhoeck & Ruprecht, 1967, 132 (StUNT 5).
52. Cf. Timothy A. Friedrichsen, The Christ Hymn (Fl 2:6-1): Instructive for the Philippians
and for Paul, Living Light, Washington, DC, 36 (1999) 29-35.
53. Cf. Ralph Philip Martin, Carmen Christi, 68-74 (cf. nota 50).

404
VI – Paulo, o apóstolo
riológica sobre a morte de Jesus no texto do hino (cf. v. 8), contrariamente à
hermenêutica paulina habitual54, e, de outro, o fato de que o hino não é posto em
relação em sua totalidade com o quadro parenético, pois os versículos 9-11 ultra-
passam a parênese do contexto. Esses dois indícios estão a favor de uma redação
anterior do próprio texto (talvez de cunho judeu-cristão?) e por isso mesmo em
favor de sua utilização possível num sentido ético55. Na configuração atual da
carta, é o étimo tapein– que serve de palavra-gancho evidente entre o hino (v. 8:
evtapei,nwsen e`auto,n) e a parênese (v. 3: th/| tapeinofrosu,nh| avllh,louj h`gou,menoi
u`pere,contaj e`autw/n), ao passo que a ligação entre as duas vertentes da argumen-
tação paulina é constituída pelos temas da kénosis56 e da renúncia a toda forma de
hybris que lhe está ligada57.
Concluindo, a dimensão ética certamente não pertence à redação primeira,
pré-epistolar, do hino. Sua forma laudatória permite excluí-la, pois está centrada
na celebração de um itinerário não habitual em três etapas: passa-se sucessivamen-
te da “forma de Deus (morfh. qeou/) pré-temporal à “forma de servo” (morfh/
dou,lou) histórica, e até ao estado de “senhorio” (kurio,thj), ligado a uma exaltação
única em seu gênero58. Esse itinerário constitui a essência do “mito” cristão, ou seja,
do relato que está na base do Evangelho e da existência mesma do batizado. Por si
mesma, tal redação permitia naturalmente tirar consequências éticas, pois a ex-
traordinária passagem do Cristo da primeira à segunda morfh, (“forma”) podia se
revestir do caráter de um paradigma para o comportamento do próprio cristão.
A marca genial de Paulo consiste precisamente em ter posto o hino cristo-
lógico em relação com a vida cristã. Mas, se nos atemos à estratégia retórica do
texto epistolar, o ponto de partida não é o hino, mas a parênese: é em função dela

54. Não é senão num sentido bem amplo que se pode falar de uma soteriologia de nosso hino
(cf. Nicola Capizzi, Soteriologia in Phil 2:6-11?, Gr. 81 [2000] 221-248), mas de nenhuma maneira
em relação com a morte do Cristo.
55. Cf. Edvin Larsson, Christus als Vorbild. Eine Untersuchung zu den paulinischen Tauf- und
Eikontexten, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1960 (FRLANT 76); e sobretudo Jozef HE-
RIBAN, Retto: fronei/n e ke,nwsij: Studio esegetico su Fil 2,1-5.6-11, Roma, Libreria Ateneo
Salesiano, 1983 (BSRel 51).
56. Cf. D. T. Knapp, The Self-Humiliation of Jesus Christ and Christ-Like Living: A Study of
Philippians 2:6-11, EvJo 15 (1997) 80-94.
57. Cf. Samuel Vollenweider, Der “Raub” der Gottgleichheit. Ein religionsgeschichtlicher
Vorschlag zu Phil 2.6-11, NTS 45 (1999) 413-433.
58. Aqui se poderia pôr a questão hínica própria de nosso texto, que não é fácil determinar além
da definição geral da prosa rítmica. Cf. a rica coleção de textos e o comentário dos hinos cultuais
gregos em William F. Furley, Jan Maarten Bemer, Greek Hymns: Selected Cult Songs from the
Archaic to the Hellenistic Period, Tübingen, Mohr Siebeck, 2001, v. I-II (Studien und Texte zu
Antike und Christentum 9-10) (com uma boa discussão metodológica no volume I, 1-64).

405
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
que o apóstolo reproduz esse texto de louvor. Desse modo, o que podia parecer
um puro elogio do Cristo, um tanto distante, na terceira pessoa (er-Stil), acaba por
ter um impacto direto sobre a comunidade concreta dos que creem nele, pelo fato
de estarem integrados no mesmo elogio.

6. A justificação pela fé e o problema da Lei (Gálatas)

Um caso macroscópico de imbricação em Paulo entre preocupação pastoral


e formulação nova de seu pensamento é dado por seu posicionamento em face do
que se passava nas Igrejas da Galácia59. Pouco tempo depois de sua partida da re-
gião, alguns pregadores judeu-cristãos, uns tais “pseudoirmãos infiltrados” (Gl 2,4),
se insinuaram entre os batizados das comunidades gálatas “lançando a perturbação
entre eles e querendo transtornar o Evangelho do Cristo” (Gl 1,7: metastre,yai),
como se se tratasse de um atentado de sedução. O problema era que os cristãos da
Galácia tinham se mostrado totalmente prontos a “passar a um outro evangelho”
(1,6: metati,qesqe), realizando uma espécie de conversão ao contrário (cf. 4,9:
evpistre,fete).
Depois de um breve momento de admiração, o apóstolo reage a essa situa-
ção com uma recusa bem nítida (cf. Gl 1,6-9), e utiliza para esse fim diferentes
argumentos, como sua autobiografia (cf. 1,10-2,21), a ironia (cf. 3,1-5; 5,1-25) e
sobretudo uma exposição doutrinal bem polêmica (cf. 3,6-4,20; 4,21-31; 5,1-
2560. A questão está numa alternativa, posta em termos bem claros, entre o Cristo
e a Lei, entendidos como dois polos opostos: de uma parte, “aquele que vos cha-
mou pela graça” (1,6; cf. 5,8) e “na liberdade” (5,1.13); de outra parte, o Nomos (a
Lei) como princípio de servidão (cf. 3,23-24; 4,21-31) e, portanto, de renúncia à
própria graça (cf. 5,4). Essa polaridade é igualmente expressa, de maneira variada,
como uma oposição entre a fé e as obras (cf. 2,16; 3,2.5), entre a infância e a idade
adulta (cf. 4,1-7), entre Deus e os elementos do mundo (cf. 4,8-19), entre a carne
e o Espírito (cf. 3,3; 5,16-25), entre a antiga e a nova criação (cf. 6,15).

59. Infelizmente, nem tudo é claro no que diz respeito a essas diferentes circunstâncias, pois “ler
a epístola de Paulo aos Gálatas é entrar numa cena em que a cortina se levantou no terceiro ou no
quarto ato” (J. Louis Martyn, Galatians, New York, Doubleday, 1997, 13 [AncB 33A]).
60. Tudo isso leva à questão muito debatida do gênero retórico da carta — deliberativo, apolo-
gético ou epidíctico-demonstrativo —, que aqui deixamos de lado (para o estado da questão, ver
Antonio Pitta, Lettera ai Galati, Bologna, Dehoniane, 1996, 43-50 [SOCr 9]; o autor pende a favor
do terceiro gênero, na medida em que o apóstolo tentaria evangelizar seus destinatários); por seu
lado, Albert Vonhoye (Lettera ai Galati, Milano, Paoline, 2000, 16-18 [I Libri Biblici — Nuovo
Testamento 8]) prefere falar de um “gênero não catalogado nos tratados de retórica antigos, o da
pregação cristã”.

406
VI – Paulo, o apóstolo
Observemos em particular uma admirável novidade linguística e semântica
que, na série cronológica das cartas autênticas de Paulo, é uma característica típica
da epístola aos Gálatas. Com efeito, encontramos nela pela primeira vez o sintag-
ma “obras da Lei” (e;rga no,mou), e, ainda mais, com uma conotação semântica ne-
gativa (cf. 2,16c; 3,2.5.10)61. Além disso, pela primeira vez também, Paulo atribui
um valor semântico negativo ao conceito de “Lei” (no,moj). Mesmo conservando
seu sentido tradicional de “Escrita” (cf. 3,10; 4,21; 5,14), o termo adquire agora
um sentido fortemente pejorativo (pelo menos cerca de vinte casos, além do sin-
tagma considerado)62, a ponto de ser associado à ideia de maldição (cf. 3,10-13).
Fato extraordinário: antes da epístola aos Gálatas, essa perspectiva era ausente63.
Mais, vemos emergir aí de maneira mais clara do que nunca o tema da justificação
pela fé, que será depois mais amplamente desenvolvido na epístola aos Romanos,
em relação com um amplo desdobramento do léxico que deriva da raiz dik-.
Eis como se apresenta a situação:
di,kaioj: jamais utilizado em 1 Tessalonicense nem em 1-2 Coríntios64, o termo
aparece com um valor tético em Gálatas 3,11 na citação de Habacuc 2,4 como
prova escriturística, e voltará depois sete vezes em Romanos;
dikaiosu,nh: embora presente bem oito vezes nas epístolas aos Coríntios
(1Cor 1,30; 2Cor 3,9; 5,21; 6,7.14; 9,9.10; 11,15), é em Gálatas que a justiça é
oposta pela primeira vez de maneira polêmica à Lei (cf. 2,21; 3,21) e associada
à fé (cf. 3,6) e ao Espírito (cf. 5,5);
dikaio,w: até então presente somente em 1 Coríntios 6,11, com um valor sote-
riológico (e uma conexão implícita com o batismo), o verbo é agora utilizado
oito vezes (cf. Gl 2,16.17; 3,8.11.24; 5,4), para indicar que a justificação é im-
possível pela Lei e pelas obras, mas que é possível somente pela fé em Cristo.
Evidentemente, a novidade diz respeito também ao emprego da raiz pist-,
na medida em que seus derivados são agora referidos à Lei e às suas obras, com

61. O sintagma encontra-se também em Romanos 3,20.27.28; 4,2.6; 9,12.32; 11,6; mais, as
obras estão também associadas a outras essências pejorativas, como a carne (cf. Gl 5,19) e as trevas
(Rm 13,12). Em 1 Tessalonicenses 1,3, fala-se, ao contrário, da “obra da fé” e em 1 Coríntios 15,58;
16,10, da “obra do Senhor”.
62. É por isso que e;rga no,mou e no,moj acabam por significar quase a mesma coisa; é o que ob-
serva com razão A. Andrew Das (Paul, the Law, and the Covenant, Peabody [MA], Hendrickson
Publischers, 2001, 161-163), contra os que tendem a distinguir as duas locuções, ao mostrar que
somente a primeira exprime um abuso legalista da Lei (assim, por exemplo, Robert Keith Rapa,
The Meaning of “Works of the Law” in Galatians and Romans, New York/Bern, Lang, 2001 [Studies in
Biblical Literature 31]).
63. O único precedente é a afirmação isolada de 1 Coríntios 15,56 (“O poder do pecado é a
Lei”), que tem, todavia, toda a aparência de uma glosa (ver os comentários).
64. Encontra-se duas vezes em Filipenses (1,7; 4,8), mas num sentido tênue.

407
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
formulações negativas que ressaltam a existência de um dilema. Não era o caso
antes, mas isso vale agora tanto para o verbo pisteu,w (cf. Gl 2,16; 3,6.22)65 como
para o substantivo pi,stij (22 vezes em Gálatas)66.
Vê-se bem que em Paulo se realizou uma reviravolta na hermenêutica do
Evangelho, constatada tanto no léxico utilizado como na significação dos ter-
mos. A mudança, sem dúvida, foi motivada pela confrontação de Paulo com um
grupo de oponentes e pela necessidade que dela se originava de defender, ou
melhor, de esclarecer o que aos seus olhos deve permanecer como “a verdade
do Evangelho” (2,5.14; 4,16; 5,7). Até a crise que encontrou na Galácia não ti-
vera ele ocasião de enfrentar um confronto desse tipo67. Decerto, temos de pro-
curar precisar as ideias defendidas pelos adversários do apóstolo e perguntar até
que ponto a linguagem que ele utiliza é função da que eles mesmos utilizavam68.
O que não deixa dúvida é que seus adversários exigiam a circuncisão, apresen-
tada como indispensável (cf. 6,12-13; 5,3; 2,3), e que eles invocavam provavel-
mente o exemplo do patriarca Abraão, na medida em que ele tinha observado a
Lei bem antes que ela tivesse sido dada a Moisés no Sinai69. Essas prescrições
eram contrárias à pregação de Paulo sobre a liberdade da Lei, e a novidade dessa
situação punha assim o apóstolo diante da necessidade de a ela responder com
vigor, chegando até a reformular sua compreensão do Evangelho e suas impli-
cações antropológicas.
Por sua intervenção, Paulo demonstra que está bem consciente do risco
que correm os cristãos da Galácia, e deixa transparecer isso no plano emocio-
nal quando recorre a uma série de expressões muito fortes de admiração, de
condenação, de medo de ter trabalhado em vão (cf. 1,6-9; 3,1; 4,11; 5,2.12;

65. Embora o verbo retorne com frequência em 1 Tessalonicenses (cinco vezes), em 1 Coríntios
(nove vezes) e em 2 Coríntios (duas vezes), é somente e 1 Coríntios 1,21 que é posto em evidência,
graças à sua associação com os conceitos, contextuais mas atípicos, de escândalo e folia.
66. Em 1 Coríntios 2,5, há somente uma oposição com a sabedoria dos homens, ao passo que
em 2 Coríntios 5,7 a fé é logicamente oposta à visão.
67. Ver o título (mas somente o título!) de George Howard, Paul: Crisis in Galatia: A Study in
Early Christian Theology, Cambridge, Cambridge University Press, 21990 (MSSNTS 35).
68. Cf. em particular: Bernard H. Brinsmead, Galatians — Dialogical Response to Opponents,
Chico, Scholars Press, 1982 (SBL.DS 65); Dieter Sänger, Die Verkündigung des Gekreuzigten und
Israel. Studien zum Verhältnis von Kirche und Israel bei Paulus und im frühen Christentum,Tübin-
gen, Mohr Siebeck, 1994, 254-282 (WUNT 75) (“Das Christusevangelium im Konflikt mit no-
mistischen Gegnern in Galatien”); François Martin, Paul et les judéo-chrétiens, Lumen Vitae,
­Washington, DC, 48 (1999) 37-49.
69. Cf. Stephan K. Davis, The Antithesis of the Ages: Paul’s Reconfiguration of Torah, Washington
(DC), Catholic Biblical Association of America, 2002 (CBQ.MS 33), espec. 152-181: oposição de
Paulo ao conceito de uma Torá eterna, de que Abraão já teria sido observante.

408
VI – Paulo, o apóstolo
6,17a)70. Essa dimensão psicológica se ajusta naturalmente a um esforço conside-
rável e apaixonado de argumentação, que põe no centro da identidade cristã a
necessidade e a suficiência do Cristo e da fé nele em vista da justificação dos gen-
tios perante Deus.
Põe-se aqui uma questão importante, que podemos formular da seguinte
maneira: é possível que Paulo, antes da crise encontrada na Galácia, jamais tenha
pensado no tema da justificação pela fé sem as obras da Lei? Ou o caso da Ga-
lácia apenas favoreceu a explicação de um dado ligado desde a origem à sua
adesão a Cristo? Constatamos que a resposta a essa questão suscitou uma enor-
me produção bibliográfica, que opõe entre si, de um lado, os defensores do que
se denomina new perspective sobre Paulo e o paulinismo71 e, de outro, seus opo-
nentes, que se referem a uma interpretação de Paulo mais tradicional (e mais
“luterana”)72.
Segundo penso, não está certo reduzir a experiência do caminho de Damas-
co somente à vocação do apóstolo em vista do anúncio do Evangelho aos gentios,
como se Paulo não tivesse então percebido de modo algum o problema teológico
da Lei, mas somente suas dimensões estritamente étnicas, como definidor dos
“identity markers” sociorreligiosos. Esse tipo de interpretação, sabe-se, acaba por
ver o tema da justificação como um simples acréscimo posterior e secundário. Ao
contrário, é mais provável que o posicionamento que se manifesta em Gálatas não
represente senão o quarto estágio de um reajustamento (reset) do conceito judaico
da Lei e do da justiça possível que lhe está unido. Em primeiro lugar, houve cer-
tamente a lembrança da perseguição da comunidade cristã pelo fariseu Saulo; essa
perseguição devia ter como ponto de partida o sentimento de que o Messias dos
cristãos (e a fé que tinham nele) acabaria por substituir a Lei e torná-la insuficien-

70. Ver a esse propósito Giulio Cirignano, Ferdinando Montuschi, La personalità di Paolo. Un
approccio psicologico alle lettere paoline, Bologna, Dehoniane, 1996, 178-183 (Studi Biblici 27).
71.Ver sobretudo: James D. G. Dunn, The New Perspective on Paul, BJRL 65 (1983) 103-118;
Francis Watson, Paul, Juidaism and the Gentiles: A Sociological Approach, Cambridge, Cambridge
University Press, 1986 (MSSNTS 56); Heikki Räisänen, Paul’s Conversion and the Development
of his View of the Law, NTS 33 (1987) 404-419; Kent L.Yinger, Paul, Judaism, and Judgment Accor-
ding to Deeds, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, 169-175 (MSSNTS 105).
72. Contra a new perspective (representada igualmente por Frank J. Matera, Galatians in Perspec-
tive: Cutting a New Path through Old Territory, Interp. 54 [2000] 233-245), ver recentemente o
posicionamento de Peter Stuhlmacher, A Challenge to the New Perspective: Revisiting Paul’s Doc-
trine of Justification, Downers Grove, InterVarsity Press, 2001 (com um complemento de Donald
A. Hagner, Paul and Judaism:Testing the New Perspective, 75-105); e sobretudo Seyoon Kim, Paul
and the New Perspective: Second Thoughts on the Origin of Paul’s Gospel,Tübingen, Mohr Siebeck,
2002 (WUNT 140) (= Grand Rapids [MI]/Cambridge, Eerdmans, 2002).

409
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
te, e ainda menos indispensável73. Em segundo lugar, houve, sobretudo, a expe-
riência de Damasco, que, ao revelar a Paulo a centralidade absoluta de Jesus Cristo
como Filho de Deus e Senhor, o fez ao mesmo tempo tomar consciência de to-
dos os limites da Lei, para não dizer de sua insuficiência e até de sua impotência
em tornar o gentio aceitável por Deus e, portanto, definitivamente, de sua supera-
ção74. O terceiro estágio é o das cartas escritas anteriores a Gálatas, em que já se
encontra o tema da justificação pela fé, embora não esteja senão subentendido,
pois, na ausência de um estímulo polêmico externo, fica implícito, indireto, não
formalizado75. Enfim, com base na ocasião dada pelos acontecimentos na Galácia,
Paulo acaba por exprimir seu pensamento sobre o assunto com mais precisão, ain-
da que seja no tom de uma polêmica acerba. Consequentemente, pode-se dizer
que Paulo não se voltou para a doutrina da justificação pela fé por causa de sua
missão entre os gentios, mas que, ao contrário, ele se consagrou à missão entre os
gentios em razão da doutrina da justificação pela fé76.

7. Conclusão

Vemos assim que cada um dos textos epistolares examinados se relaciona a


um tema diferente. A cada um deles corresponde um novo componente do pen-
samento paulino: a espera escatológica do Senhor, a necessária unidade eclesial, a
relação entre o antigo e o novo Testamento, a relação entre a humildade do Cristo
e a dos cristãos, a justificação pela fé sem as obras da Lei.
Poderíamos assim multiplicar os exemplos77. Podemos constatar que Paulo é
muito hábil em passar de uma questão concreta ao enunciado de princípios fun-

73. Cf.Terence L. Donaldson, Zealot and Convert:The Origin of Paul’s Christ-Torah Antithe-
sis, CBQ 51 (1989) 655-682; Torrey Seland, Saul of Tarsus and Early Zealotism: Reading Gal
1,13-14 in Light of Philo’s Writings, Bib. 83 (2002) 449-471.
74. Cf. Christian Dietzfelbinger, Die Berufung des Paulus als Ursprung seiner Theologie, Neukir-
chen-Vluyn, Neukirchener, 1985, 90-116 (WMANT 58).Ver igualmente Terence L. Donaldson,
Paul and the Gentiles: Remapping the Apostle’s Convictional World, Minneapolis, Fortress Press,
1997, 295: “Essa experiência não poderia mesmo ser compreendida como um apelo se não tivesse
ao mesmo tempo implicado uma convicção mais fundamental a respeito de Israel, da Lei, dos gen-
tios e do Cristo”.
75. Ver as análises feitas sobre 1 Tessalonicenses e 1–2 Coríntios por Seyoon Kim, Paul and the
New Perspective, espec. 85-100 (cf. nota 72); mais, o autor já encontra na pregação do Reino por
parte de Jesus um fundamento da doutrina paulina (ibid., 259-292).
76. Cf. Donald A. Hagner, Paul and Judaism, 90 (cf. nota 72)(com citação de um estudo de J. G.
Machen de 1921).
77. 1 Coríntios em particular oferece uma ampla sequência de ajustes teológicos ocasionados
por situações específicas na Igreja coríntia: a antinomia típica entre indicativo e imperativo, provin-

410
VI – Paulo, o apóstolo
damentais para esboçar traços da identidade cristã. Com efeito, não se contenta
ele em responder com uma curta parênese, que se limitaria a estabelecer de ma-
neira apocalíptica e seca o que é permitido e o que não é permitido fazer.
Nisso ele se aproxima de Sêneca, uma vez que este afirma que “esta parte da
filosofia que os gregos chamam de paraenetica e nós de praeceptiva […] não é sufi-
ciente para tornar perfeita a sabedoria (ad consummandam sapientiam)”78. Segundo
o filósofo latino, com efeito, “ninguém fará corretamente o que deve fazer se não
entendeu a razão (ratio) pela qual convém cumprir sempre seu dever, e não poderá
cumpri-lo se recebeu preceitos sobre um detalhe e não sobre o todo, pois os pre-
ceitos particulares são, em si, fracos e, por assim dizer, sem raiz (imbecilla sunt per se
et, ut ita dicam, sine radice quae partibus dantur)”; “são esses os princípios fundamen-
tais (decreta)79 que nos tornam seguros de nós mesmos, garantem nossa tranquili-
dade, abrangem a vida toda”80.
Há, portanto, diferença radical entre o filósofo e o apóstolo: se o primeiro
disserta em abstrato sobre a relação teórica da parênese e a importância de alguns
princípios básicos, o segundo se pauta concretamente pelas situações da vida, vi-
vidas às vezes de maneira dramática pelos destinatários das cartas, com o intuito
de dar a estes últimos linhas de conduta que esclareçam o comportamento deles
desde o início. Em suma, diferentemente de Sêneca, Paulo é um pastor que tem
diante dele comunidades humanas vivas, desejosas de ter respostas a problemas
bem específicos81. É por isso que, diferentemente de Sêneca, não parte do enun-
ciado de princípios antes de aplicá-los à vida, mas, paradoxalmente, parte dos
problemas da vida para deduzir a formulação de alguns princípios de primeira

da do tratamento de um caso de incesto (cf. 5,1-8); a instrução sobre a porneia-prostituição, moti-


vada pelo axioma coríntio segundo o qual tudo é permitido (cf. 6,12-20); o discurso complexo
sobre o casamento, ocasionado pela prática de certos cristãos de se absterem de qualquer contato
com as mulheres (cf. 7,1 ss.); a rica exposição sobre a idolatria e sobre a oportunidade de saber
renunciar aos próprios direitos, a partir da questão de saber se convém ou não a um cristão alimen-
tar-se de animais sacrificados nos templos da cidade (cf. 8,1–11,1) etc.Ver também, por exemplo, os
princípios cristãos que Paulo formula sobre os escravos a partir do episódio de Onésimo, que havia
escapado de seu dono Filêmon, na carta homônima.
78. Sêneca, Ep 95,1.
79. Sobre o sentido desse termo, cf. Sêneca, Ep 95,10:“Nenhuma arte especulativa (ars contempla-
tiva) está desprovida de seus próprios princípios, que os gregos chamam de dogmata e que nós po-
deremos chamar de decreta ou scita ou placita”.
80. Sêneca, Ep 95,12; um pouco antes esclarece:“É necessário servir-se de princípios fundamen-
tais para extirpar erros profundamente enraizados” (93,34).
81. Ver igualmente as observações de James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle,
­Edinburgh, T & T Clark, 1998, 6-12, e Giuseppe Barbaglio, La teologia di Paolo. Abbozzi in forma
epistolare, Bologna, Dehoniane, 1999, 726-728 (La Bibbia nella Storia).

411
São Paulo, pastor e pensador: uma teologia implantada na vida
importância. Seu ponto de partida último, decerto, não é tanto a questão concreta
a ser resolvida quanto a fé cristã de base.Todavia, essa fé não traz já consigo desde
o início todas as soluções possíveis e, sobretudo, não as contém todas já prontas,
“pré-confeccionadas”. Paulo demonstra que a fé no Cristo está aberta a diferentes
contribuições que as situações concretas podem, caso a caso, estimular e sugerir.
Ela é uma fé aberta para a vivência, não somente para esclarecê-la do alto e num
sentido único, mas também para se deixar, por sua vez, influenciar por ela; e é por
uma relação recíproca desse gênero que a própria fé adquire uma melhor com-
preensão de si mesma.
Reconheçamos que não é essa a última das lições que Paulo pode ainda dar
às nossas Igrejas.

412
VI – Paulo, o apóstolo
O conceito de imitação do apóstolo
na correspondência paulina
Philippe Nicolet (Péry-Reuchenette, Suíça)

A análise das passagens da correspondência paulina a respeito das quais se discute a imita-
ção do apóstolo permite tirar as seguintes conclusões: o motivo da imitação do apóstolo se
inscreve em discursos em que Paulo está preocupado em encorajar seus destinatários a perse-
verar na fé à qual ele lhes deu acesso. Os apelos à imitação não visam em primeiro lugar a
reafirmar o poder do apóstolo, mas remetem a Cristo, que se tornou presente — “reapresen-
tado” — mediante a proclamação e a existência do apóstolo. Paulo exorta seus leitores a que
se tornem, cada qual e todos, imitadores do Cristo, ou seja, a tomá-lo não como um modelo
de conduta, mas como o fundamento de uma vida nova, que, na prova e no despojamento de
si, está plenamente aberta à salvação de Deus. Os apelos à imitação do apóstolo estão a
serviço da proclamação do Crucificado.

1. As origens do conceito de imitação

E m seu comentário da primeira epístola aos Coríntios, Senft observa que o


tema da imitação era familiar aos autores filosóficos e religiosos, pagãos e ju-
deus, da época helenística1. E ao longo da segunda metade do século XX numero-
sas contribuições fizeram um amplo apanhado das raízes históricas, filosóficas e re-

1. Chistophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, Genève, Labor et Fides, 21990,
70 (CNT[N] 7).

413
ligiosas desse motivo, mais particularmente as obras de Boer2, Betz3 e Castelli4, bem
como o artigo de Michaelis no Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament5.

1.1. Os primeiros usos de mimese

O termo mimese (mi,mhsij) e os termos a ele aparentados surgiram em con-


textos em que se tratava, essencialmente, de música e de dança. E a mimese desig-
nava originalmente uma “representação” (Darstellung), mais que uma “imitação”
(Nachahmung)6. É assim que os ritos constituíam uma lembrança, uma representa-
ção mimética de um momento particular do mito. Por meio do gesto mimético,
trata-se de tentar assimilar o divino. Betz insistiu particularmente no aspecto de
representação da mimese7. Quanto a Castelli, de quem tomamos emprestada uma
boa parte da classificação que se segue, ela observa que não há aqui oposição entre
o original e a cópia, e que essa oposição ganhará importância com Platão8.

1.2. A mimese estética

Platão, com efeito, põe a questão da relação entre a imitação e o conheci-


mento e estabelece um contraste, uma distância entre a imitação e a verdade. Para
ele, a mimese praticada pelo pintor ou pelo trágico afasta mais do que aproxima
da verdade.

1.3. A mimese cosmológica

A literatura da Antiguidade dá numerosos testemunhos da utilização do


conceito de mimese para caracterizar a relação entre o mundo sensível e o mundo
das ideias (“the intelligible world”, segundo Castelli9): a criação é vista como um

2. Willis Peter de Boer, The Imitation of Paul: An Exegetical Study, Kampen, J. H. Kok, 1962.
3. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung jesu Christi im Neuen Testament,Tübingen, Mohr
Siebeck, 1967 (BHTh 37).
4. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul: A Discourse of Power Louisville (KY),Westminster/John
Knox Press, 1991 (Literary Currents in Biblical Interpretation).
5. Wilhelm Michaelis, mime,omai ktl., ThWNT 4, 661-678.
6. Hermann Koller, Die Mimesis in der Antike. Nachahmung, Darstellung, Ausdruck, Bern,
1954, 12-13, 37-48 (Dissertationes Bernensis, ser. 1, fasc. 5), apud Elizabeth A. Castelli, Imitating
Paul, 60 (cf. nota 4).
7. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, 48 ss. (cf. nota 3).
8. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 62 ss. (cf. nota 4).
9. Ibid., 65 ss.

414
VI – Paulo, o apóstolo
processo explicado em termos de modelos universais e de cópias terrestres. A mi-
mese evidencia uma relação de correspondência entre duas realidades. No pensa-
mento platônico, ela se inscreve numa ontologia estruturada de maneira hierár-
quica: o mundo sensível e os seres humanos são concebidos como uma analogia
da ordem cósmica. E há uma diferença fundamental entre o modelo eterno e sua
cópia mortal. A ação mimética, se visa a desfazer essa diferença e criar uma iden-
tidade entre as duas realidades, jamais o consegue totalmente; subsiste sempre uma
distância insuperável entre o modelo, que é perfeito, e sua cópia, que é, quando
muito, um reflexo seu, uma sombra.
Assim, a mimese se inscreve numa relação hierárquica entre o universo e o
mundo, entre o divino e o humano, entre a idealidade e a realidade.
Ainda segundo Castelli, Fílon considera, também ele, que o mundo das
ideias constitui o modelo divino e não corporal do mundo material, que se esfor-
ça por se tornar semelhante ao mundo superior. E Fílon percebe um movimento
mimético para a identidade, para a “não diferença”, movimento que está em ten-
são com a diferença intransponível que distingue o modelo de sua cópia10.

1.4. A imitação de Deus

Em Platão, a ideia de imitação de Deus assemelha-se à imitação cosmológi-


ca: ao que deseja se tornar semelhante ao divino se solicita que prove especial-
mente retidão e sabedoria. É o filósofo o mais capaz de responder a essas exigên-
cias. Platão esclarece, todavia, que o deus que o filósofo procura alcançar permanece
definitivamente inacessível a ele.
Mais uma vez, a imitação implica uma tensão entre o movimento para a
identidade com o divino e a incapacidade de atingi-lo. A imitação se inscreve
numa hierarquia entre o que se dá à imitação e o imitador.
Observe-se aqui que a linguagem mimética e mais particularmente a ideia
de imitação de Deus estão ausentes da Septuaginta e aparecem apenas esporadica-
mente nos escritos judaicos helenísticos, com exceção de Fílon.

1.5. A imitação e a realeza

Na literatura grega, em particular em Platão, diz-se que o rei (o rei-filósofo


em Platão) pode ser o imitador privilegiado de Deus. As analogias “Deus-rei”,

10. Ibid., 71.

415
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
“cosmo-Estado”, “seres criados-súditos reais” servem para fundamentar a autori-
dade do poder real, visto como o avalista da harmonia e da unidade no seio do
Estado. Nesse contexto político, a mimese serve igualmente para desqualificar a
ideia de discórdia.
O rei, imitador da divindade, pode simultaneamente ser considerado o pai
de seus súditos.

1.6. A imitação educativa e ética


Na Antiguidade, a capacidade do ser humano de imitar é frequentemente
considerada como na origem de sua capacidade de aprender (é assim que os seres
humanos podem aprender pela observação e pela imitação dos animais). A ideia
de uma relação mimética entre o mestre e seu aluno determina amplamente a
compreensão da educação no mundo grego. De fato, a imitação educativa e a
imitação ética aparecem muitas vezes como parte integrante de um mesmo pro-
cesso: o sistema educativo visa não somente a transmitir um saber, mas também a
inculcar valores e virtudes.
E é a propósito da imitação ética que se encontram os maiores desenvolvi-
mentos no judaísmo helenístico. Fílon, especialmente, apela à imitação das figuras
virtuosas da história.

1.7. Algumas observações conclusivas


Se é impossível propor uma definição monolítica do conceito de mimese,
podemos, todavia, especialmente após as observações feitas por Castelli11, eviden-
ciar alguns pontos comuns às diferentes utilizações que esse conceito conheceu:
–– a mimese se inscreve geralmente num contexto hierárquico;
–– a mimese fundamenta uma relação de autoridade entre o modelo e seu
imitador;
–– a mimese valoriza a identidade (“the sameness”, segundo Castelli) mais
que a diferença;
–– todavia, a mimese é uma relação em tensão: o imitador jamais tem acesso
à identidade com seu modelo.
Castelli julga que se encontram em Paulo esses diversos traços quando con-
vida os destinatários de seus escritos a se tornar seus imitadores12. É o que será
necessário examinar a seguir.

11. Ibid., 86 s.
12. Ibid.

416
VI – Paulo, o apóstolo
2. O termo “imitador(es)” na correspondência paulina

Senft, ainda em seu comentário, afirma que Paulo usa de bom grado o tema
da imitação13, e como apoio de sua tese cita: 1 Tessalonicenses 1,6; 2,14; 1 Corín-
tios 4,16; 11,1; Filipenses 3,17; Gálatas 4,12 — em que se se trata de imitação do
apóstolo, o termo “imitação” (mi,mhsij) ou “imitador” (,mimhth,j) não aparece.
Essas cinco ocorrências do termo “imitador(es)” levaram Getti, ao contrário,
a considerar que “the lexical evidence for the importance of imitation for Paul is
not impressive”. E poderíamos ser tentados a pensar que a ideia mesma de imita-
ção não constitua um tema importante na reflexão paulina14. A análise das passa-
gens em que o termo imitador(es) é expressamente utilizado por Paulo e em que
o apóstolo aparece como aquele que se dá a imitar mostrará que esse não é o caso.
Ao se servir do conceito de “imitador”, Paulo pode, com efeito:
–– (re)definir a natureza das relações que o unem às comunidades que ele
criou;
–– lembrar como ele entende seu apostolado;
–– retomar a exposição de aspectos fundamentais de sua reflexão teológica.
Nosso exame dos textos paulinos não apresentará uma exegese exaustiva,
mas prestará uma atenção particular ao que quer dizer o apóstolo quando declara
que os cristãos se tornaram seus “imitadores” ou quando convida os cristãos a se
tornar seus “imitadores”.
Num primeiro momento, poderíamos nos admirar de que o termo “imita-
dor” (mimhth,j) não apareça nem em 2 Coríntios nem em Romanos. Se é possível
imaginar que Paulo renunciou a falar de imitação em Romanos porque se trata aí
de uma carta dirigida a uma comunidade que ele não criou e que, além disso, não
o conhece15, a ausência de qualquer referência à imitação em 2 Coríntios é mais
perturbadora. Teremos de aceitar sobre esse ponto a hipótese de Betz, que pensa
que os adversários combatidos pelo apóstolo em 2 Coríntios fazem de Jesus um
theios aner com o qual eles se esforçam por entrar em comunhão mediante a imi-
tação? Nesse contexto, o conceito de imitação, se tivesse sido utilizado por Paulo,

13. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 70 (cf. nota 1).
14. Mary Ann Getty, The Imitation of Paul in the Letters to the Thessalonians, in Raymond F.
Collins (ed.), The Thessalonian Correspondence, Leuven, University Press, 1990, 277-283, espec. 277
(BEThL 87).
15. Paulo convida comunidades que criou e que o conhecem bem a se tornar seus imitadores.
É um ponto sobre o qual insiste de modo todo particular David M. Stanley, “Become Imitators
of me”: The Pauline Conception of Apostolic Tradition, Bib. 40 (1959) 859-877, espec. 860, 864,
872, 877.

417
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
poderia se prestar a confusão e ser mal compreendido, sendo interpretado no sen-
tido que lhe davam seus adversários16.
Abordaremos exclusivamente, e de maneira cronológica, as passagens em
que se faz uso explícito do termo “imitador(es)”.

2.1. 1 Tessalonicenses 1,6: a imitação em face das angústias e do sofrimento

(1) Em 1 Tessalonicenses, o tema da imitação do apóstolo se inscreve num


contexto de ação de graças, e não em desenvolvimentos parenéticos, como é o
caso nas outras epístolas em que Paulo convida seus leitores a se tornar seus
imitadores.
Se é verdade, como ressalta Marguerat, que “toda a sequência 1 Tessaloni-
censes 1–3 é comandada pela ação de graças” e que ela se reveste nesta carta de
uma “inusitada intensidade”17, não fica menos claro que 1 Tessalonicenses 1,6 se
inscreve numa oração de ação de graças que começa em 1,2 para terminar provi-
soriamente em 1,10.
a oração de 1 Tessalonicenses 1,2-10 está organizada em torno da tríade “fé,
amor e esperança”: Paulo dá graças a Deus pela fé ativa de que os tessalonicenses
dão prova, pelo amor e pela esperança que os animam. Os tessalonicenses ficaram
fiéis à eleição divina de que foram objeto, ao amor que Deus lhes testemunhou.
Nesse contexto de gratidão, Paulo esclarece ainda como o Evangelho foi dirigido
aos seus leitores, como eles o receberam, e é aí que constata: “vós vos tornastes
nossos imitadores, bem como do Senhor”18.
Segundo ainda Marguerat, parece legítimo pensar que o “nós” tem aqui um
real valor de plural: Paulo designa aqui a coletividade dos fundadores da Igreja de
Tessalônica.Trata-se de uma particularidade própria de 1 Tessalonicenses. E, ainda
que “na proporção do avanço de seu ministério” Paulo tenha insistido sempre
mais em seu próprio compromisso e em sua própria autoridade, jamais recusou
totalmente “a dimensão comunitária da missão”19. “Jamais deixou de se com-
preender, fundamentalmente, como o vetor de um movimento ao qual ele asso-

16. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, 176 (cf. nota 3).
17. Daniel Margherat, L’apôtre, mère et père de la communauté (1 Thessaloniciens 2,1-12),
ETR 75 (2000), 373-389 (378).
18. Tradução de Béda Rigaux em Saint Paul. Les épîtres aux Thessaloniciens, Paris/Gembloux,
Gagalda/Duculot, 1956, 378 (EtB).
19. Para retomar uma dupla observação feita por Daniel Marguerat, L’apôtre, mère et père de
la communauté (1 Thessaloniciens 2,1-12), 376 (cf. nota 17).

418
VI – Paulo, o apóstolo
cia, nomeando-os, uma multidão de mulheres e de homens.”20 Com muita fre-
quência, esse ponto fica esquecido pelos exegetas, que se ocupam em registrar as
passagens de Paulo em que se trata da imitação na perspectiva de uma vontade do
apóstolo de reafirmar seu poder a respeito das comunidades às quais se dirige.
Ora, a problemática do poder ou da afirmação da autoridade apostólica reivindi-
cada por Paulo não parece estar no primeiro plano de 1 Tessalonicenses 1,2-10.
(2) Paulo declara não somente que os tessalonicenses se tornaram imitadores
dos que lhes anunciaram o Evangelho, mas que se tornaram também imitadores do
“Senhor”. Alguns comentadores viram nessa última notícia uma adjunção, uma
“autocorreção” feita pelo próprio apóstolo ou ainda uma gradação21: Paulo não
desejaria se apresentar como um objeto de imitação; os cristãos não deveriam se
orientar, definitivamente, senão à figura do Cristo. Essa leitura é contradita pelo
fato de que Paulo não teme, em suas cartas e, mais particularmente, em sua parêne-
se, propor-se como exemplo aos seus destinatários. Ou então Paulo declararia que
os tessalonicenses se tornaram não somente seus imitadores, mas igualmente imi-
tadores do Senhor. O apóstolo daria assim uma intensidade maior ao reconheci-
mento que sente diante da fidelidade exemplar manifestada pelos cristãos de Tessa-
lônica. Essa interpretação não explica suficientemente a importância que Paulo dá
à sua própria pessoa e à dos seus colaboradores na economia da proclamação do
Evangelho e do dom da salvação. 1 Tessalonicenses 1,6 obriga a elucidar a relação
entre “a imitação do apóstolo” e “a imitação do Senhor”, mais que pela extinção
da primeira em proveito da segunda. Se Paulo fala do caráter exemplar dos tessalo-
nicenses, insiste, por outro lado, na acolhida que eles lhe reservaram e no poder de
sua própria pregação. Paulo não se apaga por trás do Cristo que proclama.
(3) Em 1 Tessalonicenses 1,6, Paulo não esclarece tanto em que momento
mas em que os cristãos de Tessalônica se tornaram imitadores. Ele acentua o fato
de que os tessalonicenses “acolheram” a Palavra. Antes (v. 5), havia declarado que
essa Palavra, o Evangelho, não lhes havia sido apresentada “unicamente em pala-
vras, mas também em poder, no Espírito Santo e em abundância de toda sorte”22.
Paulo insiste no poder do Evangelho que ele dirigiu com outros aos tessalonicen-
ses e na transformação operada por esse Evangelho: após a aceitação do Evangelho,
os tessalonicenses se reconheceram como escolhidos por Deus, amados por ele.
Equivale a dizer que o Evangelho os fez chegar a uma nova experiência, levan-
do-os a abandonar os ídolos para servir “ao Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1,9).

20. Ibid.
21.Ver a esse propósito os autores citados por Wilhelm Michaelis, mime,omai ktl., 672 (cf. nota 5).
22. Tradução de Béda Rigaux em Saint Paul. Les épîtres aux Thessaloniciens, 375 (cf. nota 18).

419
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
Convém observar que em 1 Tessalonicenses 1,2-10 os tessalonicenses pare-
cem essencialmente passivos23: Deus os escolheu; o Evangelho os transformou
com poder; tornaram-se imitadores. Mas seria falso querer reduzir as palavras de
Paulo a um elogio somente dessa passividade. Ao acolher o Evangelho, os tessalo-
nicenses mostraram-se singularmente ativos. E é precisamente a firmeza de que
deram prova em sua dedicação ao Deus do Evangelho que Paulo louva aqui.
(4) Mas Paulo não se contenta em evidenciar a acolhida favorável que os
tessalonicenses reservaram ao Evangelho e aos que o levaram a eles. Esclarece que
os tessalonicenses acolheram a Palavra “entre as numerosas tribulações com a ale-
gria do Santo Espírito”24. Os tessalonicenses, como as comunidades cristãs da
Judeia (ver 1Ts 2,14), foram também eles objeto de perseguições, e nessas provas
ficaram firmes na fé, continuaram a viver da alegria do dom do Espírito25. E é
precisamente essa perseverança na tensão da fé — alegres na aflição — que faz dos
tessalonicenses imitadores do apóstolo. Como Paulo, vivem de uma fé que tem
seu fundamento somente em Deus. E no sofrimento, como o apóstolo, encon-
tram em Deus a certeza de não serem derrotados. Como ele, na hostilidade e na
angústia, mantêm-se firmes no Senhor.
Em 1 Tessalonicenses, lembra Paulo inúmeras vezes que seu apostolado se
coloca sob o selo do sofrimento (ver em particular 1Ts 2,2), dos insultos, da per-
seguição. Igualmente, a existência crente está destinada a sofrer provações (1Ts 3,4):
agarrar-se ao Deus do Evangelho é chocar-se com a oposição do mundo, mas é
também, mesmo na fraqueza, receber a força de não sucumbir.Tornar-se imitador
de Paulo é, pois, ter parte no Evangelho que ele proclama, no Evangelho que
lança no sofrimento quem a ele adere, permitindo-lhes estar “em meio a muitas
tribulações com a alegria do Espírito Santo” (1Ts 1,6).
Em seu comentário, Marxsen enfatizou bem que essa tensão que caracteriza
aqui a fé cristã — tensão entre tribulação e alegria, entre fraqueza e força, entre
abatimento e exaltação — é, de fato, constitutiva da cristologia paulina26. E, se é
verdade que esse aspecto da cristologia se expressa apenas em filigrana em 1 Tes-
salonicenses (ver 1,14 e 5,10), é, talvez, porque nessa carta a preocupação de Paulo
não está tanto na cristologia quanto na caminhada dos tessalonicenses na fé. E
quando Paulo declara que essa marcha é determinada pelo “Senhor” dá a enten-

23. David Michael Stanley, “Become Imitators of me”, 865 (cf. nota 15).
24. Tradução de Béda Rigaux em Saint Paul. Les épîtres aux Thessaloniciens, 381 (cf. nota 18).
25. Ver a esse propósito David Michael Stanley, “Become Imitators of me”, 865 (cf. nota 15);
ver também Willi Marxsen, Der erste Brief an die Thessalonicher, Zurich, Theologischer Verlag, 1979,
38 (ZBK 11.1).
26. Ibid., 39.

420
VI – Paulo, o apóstolo
der com isso que para os tessalonicenses, como para ele, o Senhor, aquele que foi
ressuscitado, continua sendo o Crucificado. E se orientar para o Senhor ressusci-
tado é se orientar simultaneamente para aquele que foi posto na cruz. Essa pers-
pectiva, que será amplamente desenvolvida ulteriormente por Paulo (ver em par-
ticular 2Cor 4,8-12), já está, pois, esboçada em 1 Tessalonicenses: os tessalonicenses
participam da glória do Senhor partilhando sua humilhação. Betz o ressaltou com
clareza27: os tessalonicenses se tornaram imitadores do Cristo na medida em que
se reconhecem como ligados ao Cristo que age hoje e que não é outro senão o
Crucificado, aquele que “se rebaixou, tornando-se obediente até a morte, e morte
numa cruz” (Fl 2,8; 2Cor 8,9).
Ao se tornar imitadores de Paulo, ao se apropriar de seu Evangelho, que os
faz viver na tensão da fé, os tessalonicenses tornaram-se, pois, definitivamente,
imitadores do Cristo. E imitar o Cristo é “viver em Cristo”, e não querer ser o
imitador de um modelo constituído pelo Jesus terrestre28. Imitar o Cristo é viver
da obra salvífica realizada pelo Cristo, é conhecer já agora, nas tribulações, a ale-
gria da salvação.
(5) Paulo diz mais uma coisa aos tessalonicenses: a imitação que eles assumi-
ram tem um alcance missionário. Por meio de seu sofrimento, suportado com a
alegria do Espírito Santo, os tessalonicenses dão, de fato, testemunho do Cristo a
quem uniram suas vidas. Tornaram-se exemplos para outras comunidades e fize-
ram ressoar a Palavra do Senhor para além da Macedônia e da Acaia. Mais que
numa atividade missionária efetiva dos cristãos de Tessalônica, Paulo pensa aqui
nos efeitos que a atitude deles pôde ter sobre outras comunidades cristãs, até mes-
mo sobre as não cristãs. Assim, os tessalonicenses se tornaram imitadores de Paulo
e do Senhor na medida em que, mediante a perseverança deles na fé, tornam pre-
sente, de algum modo, o apóstolo e seu Evangelho, e, portanto, também o Cristo
ao qual eles se remetem todos juntos.
(6) Ao dizer aos tessalonicenses que a fé deles os faz testemunhas, até mes-
mo pregadores do Evangelho, Paulo, de modo manifesto, não visa a reafirmar
seu poder e seu estado privilegiado de apóstolo. E, mesmo que a relação defini-
da pelo conceito de imitação seja uma relação assimétrica — uma assimetria
que aparece igualmente quando Paulo descreve as relações que o unem aos tes-
salonicenses como as de uma mãe, ou de um pai, com seus filhos (ver a propó-
sito 1Ts 2,7 ss. e 2,11-12) —, não é de modo algum necessário pensar que com

27. Hans Dieter Betz, Nachfolge un Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, 144 (cf. nota 3).
28.Ver a esse propósito ibid., 144, e David Michael Stanley, “Become Imitators of me”, 862 s.,
868 (cf. nota 15).

421
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
a ajuda desse conceito Paulo procure sistematicamente reafirmar uma posição
de poder.
(7) O discurso de Paulo, se enfatiza a exemplaridade do compromisso dos
tessalonicenses, trai igualmente uma inquietude a respeito deles: ao lhes lembrar
que se tornaram imitadores do apóstolo e do Senhor, Paulo quer “encorajar e re-
forçar a resistência dos crentes fragilizados pela agressão da sociedade circundante”29.
A ação de graças que lembra aos cristãos de Tessalônica qual é a identidade deles,
de quem eles a receberam e em quem ela se enraíza reveste-se assim, indiretamen-
te, de uma dimensão parenética: ela exorta os tessalonicenses a perseverar em sua
identidade nova. Ao lhes dizer que essa identidade é uma identidade recebida, a
ação de graças convida a comunidade de Tessalônica a continuar a se remeter ao
poder dessa Palavra que fez deles imitadores do apóstolo e do Senhor.

2.2. 1 Coríntios 4,16 e 11,1: a imitação diante dos conflitos

(1) 1 Coríntios 4,16 situa-se num conjunto de exortações (4,14-21) que


serve de conclusão a um longo desenvolvimento (1,10–4,21) consagrado à pro-
blemática dos partidos e das divisões no seio da comunidade de Corinto. Nessa
parte da epístola, para defender sua autoridade apostólica contestada entre a co-
munidade, Paulo estabelece uma relação estreita entre o Evangelho que ele pro-
clamou e a maneira como se deu a conhecer aos coríntios: “Resolvi nada saber
entre vós a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado. Por isso estive diante de
vós fraco, receoso e todo trêmulo” (1Cor 2,2). É nesse contexto de defesa e de
ilustração de seu apostolado e de seu Evangelho que Paulo convida os cristãos de
Corinto a se tornar seus imitadores. Decerto, a exortação é polêmica, mas traduz
também a preocupação de Paulo com seus “filhos queridos” (1Cor 4,14): ele quer
preservá-los de um engano em que alguns já caíram. Paulo, pois, não condena os
coríntios; ele quer reconduzi-los ao Evangelho que lhes anunciou.
(2) Castelli insiste, em sua análise de 1 Coríntios 4,14-21, no uso que faz
Paulo da imagem paterna. Com efeito, o apóstolo se apresenta aos cristãos de Co-
rinto como seu pai único:“Não tendes muitos pais” (1Cor 4,15). Castelli contesta
as interpretações que insistem aqui na afeição e no amor que transparecem nessa
imagem e que caracterizam a relação do apóstolo com os cristãos de Corinto.
Julga ela que temos de nos ater aqui à concepção do papel paterno próprio da
sociedade greco-romana da época: o pai é o que possui uma autoridade total so-

29. Daniel Marguerat, L’apôtre, mère et père de la communauté (1 Thessaloniciens 2,1-12),


389 (cf. nota 17).

422
VI – Paulo, o apóstolo
bre seus filhos. Em sua explicação do uso paulino da figura do pai, ela faz igual-
mente referência a representações cosmológicas nas quais o papel dos pais é defi-
nido como ontologicamente superior ao de sua descendência. O papel criador
dos pais é visto por analogia com o poder criador da divindade. A relação pai–fi-
lho, segundo Castelli, se inscreve, pois, numa estrutura hierárquica; não é uma re-
lação de reciprocidade. Por conseguinte, o apelo à imitação que Paulo dirige aos
coríntios deve ser entendido nessa perspectiva; o acento é posto na autoridade do
pai e nas obrigações dos filhos em relação a ele30.
Provavelmente temos de dar razão a Castelli quando ressalta que Paulo se
esforça por reafirmar sua autoridade contestada no seio da comunidade coríntia.
De outra parte, em 1 Coríntios 4,15, Paulo opõe a figura do pai à do “pedagogo”
(Paulo não utiliza aqui o termo “instrutor”, como o faz em 1Cor 12,28-29; Gl 6,6;
Rm 12,7). Alguns exegetas viram nessa referência de Paulo aos “pedagogos” uma
nuança pejorativa. Assim, Lang dá a entender que o pedagogo, na Antiguidade,
não era prioritariamente nem um mestre nem um educador, mas, antes, um vigi-
lante bem pouco culto (“ein ziemlich ungebildeter Aufseher”), que tinha, o mais
das vezes, condição de escravo. Como pedagogo, era encarregado de vigiar os
meninos desde a idade dos 6 anos e de fazê-los levar uma vida ordenada até a
idade adulta31. Para Senft, ao contrário, os pedagogos, que substituíram o apóstolo
em Corinto, fazem um trabalho indispensável, e Paulo não tem nenhuma inten-
ção “de menosprezar seus sucessores”32.Também Bertram mostra que, se os peda-
gogos, no mundo greco-romano, eram certamente escravos, não deixavam de ser
escolhidos com cuidado, pois eram destinados a exercer uma forte influência na
formação e na educação das crianças que lhes eram confiadas. Aliás, Bertram ob-
serva ainda que o termo pedagogo foi retomado na literatura rabínica, em que a
identificação pedagogo-escravo não aparece; o pedagogo é considerado um vigi-
lante, um curador ou um tutor33.
Concluindo, Paulo não tem a intenção de lançar o descrédito sobre pessoas
que exercem uma função particular no seio da comunidade coríntia. Antes, ele
quer evidenciar o caráter exclusivo de sua atividade: não somente foi o primeiro
a proclamar o Evangelho aos coríntios, mas, mediante essa proclamação, ele os
“gerou”, deu-lhes acesso a uma vida nova, a uma vida que é do Cristo (1Cor 3,23),
e a uma fé baseada no poder de Deus (1Cor 2,5). Por meio da figura do pai, o

30. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 100 ss. (cf. nota 4).
31. Friedrich Lang, Die Briefe an die Korinther, Göttingen/Zürich, Vandenhoeck & Ruprecht,
1994, 66 (NTD 7).
32. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 70 (cf. nota 1).
33. Georg Bertram, paideu,w ktl., ThWNT 5, espec. 599, 617, nota 139.

423
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
apóstolo se descreve, pois, como aquele que deu vida aos coríntios. Mas, ao com-
parar de maneira antitética o pai ao pedagogo, Paulo diz mais ainda sobre a relação
que o une aos que sua pregação fez nascer para a fé: a relação do pai com seus fi-
lhos, contrariamente à que tem o pedagogo com aqueles de quem está encarrega-
do, não é limitada no tempo, não está destinada a desaparecer — subsiste de ma-
neira permanente.
Como pai, Paulo tem em qualquer tempo o direito de se dirigir aos corín-
tios, para repreendê-los, para exortá-los, para convidá-los a se tornar seus imitado-
res. Seu estado de pai lhe confere uma autoridade constante sobre seus filhos
queridos. Mas Paulo tem o cuidado de fundamentar essa autoridade paternal “em
Cristo Jesus”: “pois fui eu, em Jesus Cristo, que vos gerei pelo Evangelho”34
(1Cor 4,15b). É como representante do Cristo que Paulo pode reivindicar uma
autoridade paterna sobre os cristãos de Corinto.
(3) Conzelmann enfatizou, com razão, que, se Paulo se dá como modelo a ser
imitado, essa exigência de imitação se inscreve num paradoxo: Paulo é um modelo
na medida em que não é nada, na medida em que sofre (ver 1Cor 10,33–11,1)35.
Senft confirma essa linha de interpretação quando escreve que em 1 Coríntios
4,16, onde Paulo convida seus destinatários a se tornar seus imitadores, ele se refere
evidentemente à imagem que deu dele em 1 Coríntios 4,9-1336. E esses versículos
nos comunicam o que Senft, com muita razão, designou como “a paradoxal apo-
logia do apóstolo, fraco e tolo por causa do Cristo”37. Se, em 1 Coríntios 4,9 ss., Paulo
opõe aos que se incham de orgulho (1Cor 4,6), aos que, portanto, se mostram “es-
quecidos da graça de que dependem”, as provações pelas quais sua existência de
apóstolo está marcada, é justamente para mostrar que sua fraqueza e seus sofrimen-
tos são a consequência e o prolongamento necessário da fraqueza de Deus
(1Cor  1,25), bem como o selo que garante a autenticidade de seu apostolado38.
(4) Na fraqueza e nos maus-tratos, Paulo representa o Cristo. Que Paulo se
entende como o representante do Cristo aparece em 1 Coríntios 11,1, em que o
apóstolo convida os coríntios a se tornar seus imitadores como ele próprio o é do
Cristo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo”39.

34. Segundo a tradução proposta por Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Co-
rinthiens, 69 (cf. nota 1).
35. Hans Conselmann, Der erste Brief an die Korinther, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht,
1969, 111 (KEK 5).
36. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 79 (cf. nota 1).
37. Ibid., 67.
38. Ibid., 67-68.
39. Ibid., 137.

424
VI – Paulo, o apóstolo
1 Coríntios 11,1 é a conclusão de uma passagem em que se trata do direito
de os cristãos consumirem carnes sacrificadas (1Cor 8–10 e, mais particularmente,
1Cor  10,23–11,1). Bornkamm40 ressalta, em referência a 1 Coríntios 9,19-23
— mas isso poderia se aplicar também a 1 Coríntios 10,33 (o próprio Senft esta-
belece uma relação entre 1Cor 9,19-23 e 1Cor 10,3341) —, que Paulo não advoga
simplesmente em favor de uma adaptação da proclamação do Evangelho e do
comportamento dos cristãos no mundo circunstante. Se o apóstolo se esforça por
agradar a todos e a todas, é porque não reconhece mais as posições religiosas — e
as pretensões de salvação a elas vinculadas — das pessoas e dos grupos aos quais
dirige o Evangelho. Para o apóstolo, essas posições religiosas (as dos judeus como
as dos pagãos, as dos entusiastas, mas também as dos “fracos”) não são mais cami-
nhos de salvação. Despojadas de sua pretensão de levar à salvação, essas posições
subsistem agora como a realidade de vida na qual o Evangelho procura chegar a
cada um. O apóstolo não faz seu, portanto, o ponto de vista de seus interlocutores,
mas o leva a sério como “lugar de vida” em que cada qual pode, sem nenhuma
diferença, mas de maneira diferente, ser libertado pelo Cristo.
Assim, o apóstolo, antes de convidar os coríntios a se tornar seus imitadores
(1Cor 11,1), dá testemunho da própria liberdade, uma liberdade que diz não às
posições nas quais os seres humanos depositam sua confiança, para chamá-los
— onde estão e tais quais são — a se tornar novas criaturas em Cristo42.
Essa liberdade, Paulo não a encontra em nenhuma outra parte senão em
Cristo, e particularmente no Cristo crucificado, que é o lugar de um “julgamento
sem apelo sobre a humanidade e os valores que esta última defende”43. Mas, ao
mesmo tempo, “a linguagem da cruz, na medida exata em que é uma contestação
e uma crítica radical do mundo tal qual é, do homem tal qual vive, é portadora de
salvação”44.
(5) Na sua liberdade, na renúncia a procurar sua vantagem pessoal, em sua
preocupação pelo maior número, a fim de que sejam salvos (1Cor 10,33), Paulo
imita desde então o Cristo: não que o apóstolo cumpra o que o próprio Cristo fez45,

40. Günther Bornkamm, Paulus, Stuttgart et al., Kohlhammer, 1969 (Urban Bücher, 119 D); ver
em particular o capítulo intitulado Dienst und Leiden des Apostels, 172-184, mais espec. 180-181;
ed. fr.: Paul, apôtre de Jésus-Christ, Genève, Labor et Fides, 21971 (Le Monde de la Bible 18).
41. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 139 (cf. nota 1).
42. Günther Bornkamm, Paulus, 183 (cf. nota 40).
43. Jean Zumstein, Paul et la théologie de la croix, ETR 76 (2001) 490.
44. Ibid., 492.
45. O que Christophe Senft (La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 139 [cf. nota 1])
enfatiza com muita razão.

425
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
mas encontra na obra de salvação do Cristo, da qual ele próprio é beneficiário, o
fundamento de sua própria liberdade e de seu compromisso apostólico. É porque
dá testemunho — na liberdade de que dá prova — da obra do Cristo que o
apóstolo torna esse Cristo presente e o representa. O comportamento de Paulo se
torna uma proclamação do Cristo, um apelo a se unir a ele.
Mais uma vez, a imitação do Cristo não se orienta à pessoa do Jesus terrestre,
à maneira como ele viveu, mas à obra de salvação que ele realizou. É justamente
porque Paulo é o imitador do Cristo, no sentido de que vive da salvação que se
manifestou no Crucificado, que pode convidar os coríntios a se tornar seus imita-
dores: ou seja, não para que simplesmente adotem suas próprias atitudes nem para
que repitam mecanicamente suas palavras e seu comportamento46, mas para que
se unam ao Cristo ao qual ele se remete. É na união ao Cristo, e não na reprodu-
ção dos comportamentos do apóstolo, que os coríntios descobrirão o que deve
orientar sua própria conduta.
(6) A esta altura da reflexão, temos de nos fazer a seguinte pergunta: por que
o apóstolo não convida os coríntios a imitar diretamente o Cristo, sem que te-
nham de se orientar para a própria pessoa dele?
Castelli acha que a retórica mimética de Paulo está dominada por um quá-
druplo cuidado47:
a) O apóstolo quer reafirmar seu estado privilegiado e seu poder sobre a
comunidade que fundou. O convite a imitar o apóstolo visa à manuten-
ção de uma estrutura hierárquica.
b) Paulo quer conservar, como modelo na relação mimética, um papel de
mediador entre a comunidade e Cristo; quer ser a “passagem obrigatória”
que leva ao Cristo.
c) Paulo quer (r)estabelecer a unidade e a harmonia no seio da comunidade.
Trata-se de que todos se tornem iguais na imitação do apóstolo: “‘Beco-
me imitators of me’ is a call to sameness which erases difference and, at
the same time, reinforces the authoritative status of the model”48.
d) O apelo à imitação do apóstolo serve também para desqualificar aqueles
que, por suas diferentes convicções, são fonte de discórdia, de desordem e
que ameaçam definitivamente a salvação da comunidade. O convite à
imitação legitima a exclusão.

46. David M. Stanley (“Become Imitators of me”, 861 [cf. nota 15]) insiste fortemente nesse
ponto.
47. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 97 ss. (cf. nota 4).
48. Ibid., 103.

426
VI – Paulo, o apóstolo
(7) Finalmente, Castelli manifesta a hipótese de que Paulo, sempre para
consolidar sua própria posição, tende a instaurar uma confusão de identidade
entre o que provém do Cristo e de Deus, de uma parte, e o que provém do
apóstolo, de outra49.
Betz, se reconhece que o convite à imitação formulado por Paulo caminha
junto com uma reivindicação incomparável de autoridade, esclarece, todavia, que
Paulo, ainda que se compreenda como “um administrador dos mistérios de Deus”
(1Cor 4,1), distingue-se, além disso, de um mistagogo gnóstico, na medida em que
não se reveste nem do papel nem, a fortiori, da identidade do Redentor50. E os co-
ríntios, mediante a imitação que fazem do apóstolo, devem ser levados a viver “no
poder da cruz de Cristo”51. Ser convidado a se tornar imitador de Paulo e do
Cristo é ser convidado “a viver em perfeito acordo uns com os outros segundo
Jesus Cristo” (Rm 15,5).
Michaelis ressalta que, se Paulo convida os coríntios a imitá-lo como ele
próprio imita o Cristo, quer de fato exortá-los a obedecer a preceitos que lhes
deu e que ele próprio aceitou como regra de vida. Para Michaelis, imitar não é,
em primeiro lugar, tentar se tornar parecido ou igual a figuras exemplares; imitar
é se submeter a ordens, a prescrições dadas52.
Assim, as posições de Castelli, Betz e Michaelis divergem na maneira de per-
ceber a relação entre imitação do Cristo e imitação do apóstolo. Para Castelli, o
que domina, até a caricatura, é a exigência do reconhecimento do poder do após-
tolo. Para Betz, a imitação de Paulo visa definitivamente à imitação do Cristo; quer
abrir à vida em Cristo. E o apóstolo não cessa de desempenhar um papel determi-
nante na prática dessa imitação do Cristo; é ele que a torna possível53. É nessa linha
de interpretação que vai minha preferência. Finalmente, aos olhos de Michaelis,
Paulo parece ilustrar por meio de seu comportamento a conduta que exorta a
adotar; sua obediência de apóstolo deve orientar a obediência dos coríntios.
De fato, o convite à imitação formulado pelo apóstolo não me parece ser
primeiro um apelo a uma obediência ética, mas a uma “reorientação da fé”: os
coríntios são convidados a se orientar de novo ao Evangelho de Paulo, à sua pro-
clamação do Cristo.Todavia, convidados a se unir de maneira renovada ao Cristo
que o apóstolo torna presente, os coríntios são também exortados a examinar seu

49. Ibid., 110.


50. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, 154 (cf. nota 3).
51. Ibid., 159.
52. Wilhelm Michaelis, mime,omai ktl., 672 (cf. nota 5).
53. É também o ponto de vista defendido por David M. Stanley, “Become Imitators of me”,
874 (cf. nota 15).

427
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
próprio comportamento: não lhes é possível unir-se ao Cristo e continuar a se
acreditar “fartos”. O convite à imitação do apóstolo, se não tem primeiro uma
visão ética, quer igualmente levar os coríntios a examinar de maneira crítica seu
comportamento ético e a modificá-lo.

2.3. Filipenses 3,17: a imitação diante da tentação da justiça legal

(1) Não é fácil situar Filipenses 3,17 num contexto preciso. De uma parte,
Filipenses 3,17 parece se inscrever num conjunto constituído por Filipenses
3,17–4,1, em que Paulo convida os filipenses a se tornar, todos juntos, seus imita-
dores, na espera da vinda do Senhor Jesus Cristo. De outra parte, Filipenses 3,17
não está desligado do que o precede: assim, Bonnard lê 3,17 no contexto de 3,15-
17, em que Paulo convida os filipenses a se manter unidos no mesmo despoja-
mento que ele54. Mas, quer se una Filipenses 3,17 ao que precede, quer ao que
segue, não deixa de ser verdade que o convite à imitação do apóstolo se inscreve
numa exortação à unidade (ver Fl 3,16: “caminhemos na mesma direção”; ver
também a utilização — única na correspondência paulina — do termo
summimhth,j): Paulo exorta todos os crentes de Filipos a ficar bem unidos e reuni-
dos como seguidores dele55.
Filipenses 3,17 resume, pois, a exortação na qual o apóstolo encoraja os fili-
penses a se comportar como o delineado nos versículos anteriores, quando o
apóstolo declara ter “renunciado a toda justiça legal por causa de Jesus Cristo”
(Fl 3,4-11), e quando se apresenta não como um cristão “chegado”, mas como
um crente a caminho, “em marcha” em direção à meta, a qual ele não alcançou
ainda (Fl 3,12-14)56.
(2) Além disso, a exortação de Filipenses 3,17 se inscreve num contexto po-
lêmico: note-se a violência da advertência dirigida aos filipenses em Filipenses
3,2:“Cuidado com os cães!”, bem como a menção, em Filipenses 3,18, dos que se
portam “como inimigos da cruz”. Toda a unidade discursiva (Fl 3,2-21) está en-
quadrada por uma oposição entre “nós” e os “outros”57: os adversários que Paulo

54. Pierre Bonnard, L’épître de saint Paul aux Philippiens, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1950,
69 (CNT[N] 10).
55. Em ibid, 70, Bonnard atribui com razão ao sufixo sum& o sentido de “com”/“juntos”. David
M. Stanley (“Become Imitators of me”, 871 [cf. nota 15]) partilha a mesma interpretação.
56. Ibid, 61, 67, para retomar as felizes formulações de Bonnard.
57. Ulrich B. Müller, Der Brief des Paulus an die Philipper, Leipzig, Evangelische Verlagsanstalt,
1993, 174 (ThHK 11/1).

428
VI – Paulo, o apóstolo
tem em vista constituem uma frente única e não fazem parte da comunidade; eles
a ameaçam de fora.
Esses adversários, cujo poder e cuja influência parecem crescentes — e de
quem Paulo já teve ocasião de falar muitas vezes aos filipenses —, são vistos como
“destruidores”: põem em perigo a importância salvífica da cruz do Cristo. E pa-
rece legítimo aproximar a acusação apresentada em Filipenses 3,18 do que diz
Paulo em Gálatas 2,20-21: os que destroem a cruz do Cristo são os mesmos que
tornam a graça inútil. Significa que Paulo tem de se entender com os cristãos,
mais precisamente com os judeu-cristãos, vindos do exterior, que incitam a co-
munidade de Filipos a obedecer às exigências da lei judaica, a pôr sua glória na
obediência legal, mais que na “cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Esses judeu-
cristãos negam com isso aos pagão-cristãos o direito de viver sua fé sem mostrar
ao mesmo tempo sua pertença à comunidade judaica.
Em Filipenses 3,19 ss., Paulo se entrega desde então a uma violenta censura
contra os que já descrevera em Filipenses 3,3 como os que “confiam na carne”:
Paulo não faz alusão aqui, ainda que de modo sarcástico, ao respeito das prescri-
ções legais relativas à alimentação; denuncia o desregramento de seus adversários.
Esses últimos pensam, pela fidelidade à lei, servir a Deus e atingir a salvação, ao
passo que se condenam na realidade à ruína e à morte. Pensam se orientar para
Deus quando estão a serviço de seu próprio ventre.
(3) Às exigências de seus adversários Paulo opõe o que fundamenta sua exis-
tência e sua esperança, o Senhor Jesus Cristo, designado como o “Salvador” em
Filipenses 3,20. Não é na justiça “que vem da lei, mas na justiça que vem de Deus
e se apoia na fé” (Fl 3,9)58 que se fundamenta a segurança cristã. À justiça legal
alardeada pelos que ameaçam a comunidade de Filipos Paulo opõe uma justiça
que vem de Deus, ou que é recebida de Deus por meio da fé em Jesus Cristo59.
Ao evocar os inimigos da cruz em Filipenses 3,18, Paulo explicita também
aquilo em que consiste a obra da cruz: a cruz significa a condenação de toda pro-
cura de justiça própria, o aniquilamento de tudo aquilo de que o ser humano
pode se orgulhar. E se a cruz despoja o ser humano das seguranças que ele se dá
abre também, realmente, à acolhida de Deus e a uma existência nova.
(4) Se a oposição irredutível entre a justiça que vem da lei e a que vem de
Deus instiga a realizar uma aproximação entre Filipenses e Gálatas, a reflexão so-
bre a cruz do Cristo como instrumento de julgamento e de salvação ao mesmo

58. Segundo a tradução proposta por Pierre Bonnard, L’épître de saint Paul aux Philippiens, 61
(cf. nota 54).
59. Ibid.

429
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
tempo sugere uma proximidade entre Filipenses e a teologia da cruz desenvolvida
em 1 Coríntios. Podemos assim pensar, a título de hipótese, que a carta aos Fili-
penses exerce um papel-chave na teologia de Paulo e que atesta a coerência entre
a teologia da cruz e a da justificação.
Gálatas 4,12, em que Paulo exorta os cristãos da Galácia a se tornar como
ele, do mesmo modo como ele se fez semelhante a eles, aproxima-se do discurso
de Filipenses 3: aos gálatas, ameaçados de sucumbir a uma nova sujeição à lei,
Paulo dirige um convite a que permaneçam livres como ele, a que imitem sua
liberdade na fé, sua liberdade a respeito da lei.
Essa liberdade a respeito da lei, Paulo a vincula igualmente à cruz do Cristo:
“com Cristo eu sou um crucificado” (Gl 2,19). A crucifixão do Cristo pronuncia
um juízo de morte sobre aquele que, como Paulo o havia feito, põe sua confiança
e seu orgulho em sua obediência à lei, em sua fidelidade religiosa, em sua condi-
ção de eleito de Deus. A crucifixão do Cristo desmascara, como uma rejeição da
graça divina, a obediência legal e a segurança que o crente nela busca. Ao reco-
nhecer ter sido crucificado com o Cristo, Paulo confessa simultaneamente que
essa morte o abriu a uma existência na qual ele vive “na fé no Filho de Deus que
o amou e se entregou por ele” (Gl 2,20), que ele vive, pois, da “graça de Deus”,
que ele não tornou vã (Gl 2,21). E quando Paulo faz essa declaração extraordiná-
ria: “não sou mais eu, é Cristo que vive em mim”, quer dizer com isso que são o
juízo e a salvação realizada na crucifixão que constituem a origem e o fundamen-
to de sua própria existência e que o orientam constantemente. Como faz obser-
var com razão Bonnard em seu comentário da epístola aos Gálatas, é em Filipen-
ses 3,3 ss. que Paulo descreve com a maior clareza a maneira como, na fé em Jesus
Cristo, ele renunciou à lei60.
Ao convidar os gálatas a se tornar como ele, Paulo os convida a deixar o
Cristo viver neles, a não abolir a graça de Deus voltando a uma obediência legal.
Tornar-se como Paulo é, como ele, “assimilar” o Cristo, deixá-lo viver em si. Fi-
nalmente, ao dizer que ele se fez como eles, o apóstolo lembra mais uma vez aos
gálatas sua própria renúncia: se ele se tornou como eles, sem lei, foi sempre para
ganhá-los para o Cristo.
(5) Em Filipenses 3, Paulo fala da vida nova para a qual a justiça que vem de
Deus o abriu, e ele a põe sob uma dupla tensão.
a) Em primeiro lugar, o apóstolo ressalta que não está no fim da carreira,
que está chamado a se tornar constantemente o que a revelação de Deus

60. Id., L’épître de saint Paul aux Galates, Neuchâtel/Paris, Delachaux et Niestlé, 21972, 92
(CNT[N]9).

430
VI – Paulo, o apóstolo
em Cristo fez dele. Nesse contexto,“os perfeitos” de que fala em Filipen-
ses 3,15 são precisamente aqueles que se deixam tomar constantemente
por Jesus Cristo, aqueles que morrem sempre de novo para a pretensão de
ser perfeitos, aqueles que não pretendem estar de posse da salvação, mas
os que se abrem sem cessar à sua vinda. A abertura à salvação é constituti-
va da existência cristã.
b) Essa tensão, o apóstolo a exprime ainda ao descrever seu abandono, “por
causa de Cristo” (Fl 3,7), de tudo o que lhe dava razões de ter confiança
na carne (Fl 3,4). Vivendo de uma justiça recebida de Deus, Paulo vive
numa renúncia total às suas prerrogativas passadas, num despojamento,
“numa crucifixão de sua personalidade farisaica, em comunhão com o
julgamento significado por Deus na cruz de Jesus Cristo”61. E essa crucifi-
xão, Paulo não a considera um acontecimento passado; ela define seu
modo de existir atual. Ao aceitar a crucifixão de sua própria justiça, Paulo
vive, decerto, em comunhão com os sofrimentos de Cristo, mas vive tam-
bém na esperança certa da salvação da qual participará plenamente.Vive a
submissão à cruz ao se remeter plenamente ao Deus da ressurreição. Não
é, decerto, o sofrimento que ele aceita assumir que lhe dará o direito à
vida, mas é, antes, a confiança posta em Deus salvador que o leva a aceitar
o despojamento, a morte de suas próprias seguranças, e que lhe dá a certe-
za de que, em sua própria humildade, “sua pátria está nos céus” (Fl 3,20).
(6) Desde então, mesmo que disso não faça menção, como em 1 Coríntios
11,1, o apelo à imitação do apóstolo remete, aqui também, pelo menos implici-
tamente, ao Cristo. Como diz Betz, “na medida em que Paulo está em Cristo, a
vida toda do cristão deve ter, também ela, o caráter de um mimei/sqai to.n Cristo,n
[imitar o Cristo]”62. Há, pois, aqui, como em 1 Coríntios 11, uma ligação estreita
entre a imitação do Cristo e a imitação do apóstolo63. A primeira constitui o
fundamento e o objetivo do apelo a imitar o apóstolo dirigido aos leitores de
Filipenses.
Trata-se para os filipenses de continuar a aceitar suportar o julgamento da
cruz sobre a vida deles, de renunciar a toda justiça própria, de comungar com os
sofrimentos do Cristo, como faz o apóstolo. É a condição de sua salvação e de sua
capacidade de resistir aos “inimigos da cruz” que os ameaçam.

61. Id., L’épître de saint Paul aux Philippiens, 66 (cf. nota 54).
62. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi im Neuen Testament, 175 (cf. nota 3)
(tradução pessoal), apud Ulrich B. Müller, Der Brief des Paulus an die Philipper, 173 (cf. nota 57).
63. David Michael Stanley, “Become Imitators of me”, 871 (cf. nota 15).

431
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
E, na medida em que Paulo vê sua própria existência como uma existência
posta entre a salvação já conseguida e a que, todavia, ainda está por vir, o apóstolo
lembra também seus leitores que permaneçam no mesmo “caminho” que ele. Por
meio do apelo à imitação, Paulo encoraja os filipenses a continuar agarrados à
salvação dada e sempre novamente a receber. Se eles vivem uma existência humi-
lhada, não devem procurar a ela escapar, cedendo às injunções daqueles que lhes
mostram, para seduzi-los, uma existência segura de si mesma e de sua salvação
mediante a obediência à lei. É precisamente a privação, “a morte com o Cristo”
que, para o apóstolo, é garantia da ressurreição e da glória por vir.
(7) Ao exortar os filipenses a imitá-lo, Paulo quer, definitivamente, fortificá-
los com uma força paradoxal: convida-os a encontrar sua segurança na adesão
Àquele que, no rebaixamento e na obediência até a morte, e morte na cruz, foi
soberanamente exaltado por Deus. Paulo convida os cristãos de Filipos a viver sua
fé conforme o Cristo rebaixado e glorificado. Em Filipenses 2,5 ss., o apóstolo
não os exorta a imitar o Cristo, como se se tratasse de tomá-lo como modelo,
senão para fazer o que ele fez, pelo menos para adotar a mesma conduta que ele.
Que sentido tal injunção poderia, aliás, ter e quem poderia pretender ser capaz de
a ela se conformar?
Em Filipenses 2,5, Paulo convida os filipenses a se comportar entre si como
se faz “em Jesus Cristo” (e não como o fez Jesus Cristo!). A descrição do rebaixa-
mento e da exaltação do Cristo diz o que está no fundamento da existência cristã
e o que a orienta. A imitação do Cristo não poderia, então, ser compreendida
como a imitação (no sentido de Nachahmung) de um modelo que seria o Cristo.
A mimese do Cristo não se orienta de modo algum para uma exemplaridade
ética do Jesus terrestre nem para uma exemplaridade do Cristo preexistente64. A
mimese do Cristo se orienta para o acontecimento da salvação que se realizou
nele. Imitar o Cristo é se reconhecer posto nesse acontecimento da salvação, é
viver uma existência fundamentada nesse acontecimento e por ele formada.

3. Conclusão: a imitação, uma exortação a viver na tensão da fé

(1) Se é verdade que, o mais das vezes, Paulo convida seus correspondentes a
imitá-lo, temos de lembrar que em 1 Tessalonicenses 1,6 o contexto não é pare-
nético: Paulo não exorta os tessalonicenses a se tornar seus imitadores, mas cons-
tata que, de fato, eles já o são.Vimos, todavia, que esse atestado em 1 Tessalonicen-
ses tem valor de exortação indireta.

64. Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christ im Neuen Testament, 144, e espec. 168.

432
VI – Paulo, o apóstolo
A cada vez o apóstolo quer consolidar a comunidade à qual se dirige: seja
porque ela está ameaçada pela perseguição, seja porque se atormenta em conflitos
internos, seja porque está exposta às astúcias dos adversários vindos de fora.
Na pregação de Paulo, que é, em primeiro lugar, uma proclamação ao indi-
cativo (por meio dela, Deus realiza uma “nova criação”), o imperativo e, mais
particularmente, o convite à imitação se revestem de uma conotação particular65:
se a vida nova é “uma caminhada segundo o Espírito” (Rm 8,4 ss.), então o con-
vite à imitação se inscreve no ensinamento relativo à maneira como essa caminha-
da pode e deve se realizar. A parênese paulina quer encorajar os cristãos a não ficar
de fora da salvação que lhes foi proclamada e à qual foram incorporados.
O convite à imitação do apóstolo quer permitir aos correspondentes dele
que resistam na fé.
a) É assim que os tessalonicenses se veem encorajados a não se escandalizar nem
de sua própria fraqueza nem dos sofrimentos que lhes são infligidos. Imita-
dores do apóstolo, eles o são também do Senhor. Em sua angústia, podem
sempre reconhecer que foram escolhidos por Deus e que são seus amados.
b) No que diz respeito aos coríntios, o apelo à imitação do apóstolo indica
um caminho que permite superar as divisões e os conflitos que correm o
risco de fazer explodir a comunidade. Mas o convite de Paulo se inscreve
assim na defesa de seu apostolado e de sua própria autoridade, ainda que
não seja certo, como pensa Castelli, que a unidade da comunidade só pos-
sa se dar num ato de submissão a Paulo66. A unidade é chamada a se dar,
antes, na acolhida renovada da linguagem da cruz. É essa linguagem que
manifesta a inanidade das rivalidades e das lutas de poder às quais os corín-
tios se entregam. As divisões são o sinal de que sua fé não se orienta mais
ao Cristo crucificado; por isso é que são tão perigosas: ameaçam lançá-los
fora da salvação. E é por isso — e não por ser o “líder” inconteste de uma
comunidade unânime — que Paulo as combate com tal insistência.
c) Quanto aos cristãos de Filipos, o que os ameaça é a pressão que fazem
pesar sobre eles pessoas vindas de fora, judeu-cristãos provavelmente: eles
querem impor à comunidade de Filipos que se dobre às exigências da lei.
Nesse contexto, o convite a imitar o apóstolo lembra aos filipenses onde
reside o fundamento da salvação deles: no acontecimento do Cristo e, par-
ticularmente, em sua colocação na cruz foi pronunciada uma condenação
definitiva de todas as seguranças religiosas que os seres humanos podem se

65. Ibid., 169 ss.


66. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 102 (cf. nota 4).

433
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
dar. Mas, se essa morte do Cristo é um julgamento, abre também a uma
existência nova na qual a perfeição consiste em não pôr a confiança em si
mesmo, mas no Senhor, que salva e que ressuscita dos mortos.
Em resumo, o convite à imitação do apóstolo não visa a suprimir a fraqueza
humana, essa fraqueza que os tessalonicenses temem, que os coríntios negam e da
qual os filipenses se propõem escapar.
(2) Se Paulo convida os cristãos aos quais se dirige a se tornar ou a perma-
necer seus imitadores, ele quer, definitivamente, fazer deles, mesmo quando não o
diz explicitamente, imitadores do Cristo. Paulo se vê como um mediador, um in-
termediário, com uma forte consciência de ter uma responsabilidade permanente
em relação às comunidades que criou, em relação àqueles aos quais, pela procla-
mação do Evangelho, ele deu a vida.
Os convites a se tornar imitadores do apóstolo remetem definitivamente ao
Cristo, que se tornou presente mediante a proclamação e mediante a existência
de Paulo. E “imitar Cristo” é deixar agir a morte do Cristo em sua própria vida.
Imitar Cristo não é tomá-lo como um modelo a ser imitado, não é sofrer
porque ele sofre, não é se humilhar porque ele foi humilhado, mas é viver da vida
que ele inaugurou por sua obediência e por sua morte na cruz; é viver “em
Cristo”67 ou deixar viver “Cristo em si”. Assim, o crente não se torna idêntico
ao Cristo, mas sua existência está determinada escatologicamente pelo Cristo68.
(3) Na leitura dos estudos e dos comentários que tratam da imitação do
apóstolo, impõe-se saber se tal imitação tem uma dimensão ética69. Segundo Senft,
a exortação à imitação de 1 Coríntios 4,16 não deve ser vista como “um chamado
em geral à humildade ou à obediência”70. Senft marca assim a distância que o se-
para de Michaelis, que vê nas exortações a imitar o apóstolo, essencialmente, ape-
los a obedecer às suas recomendações, à sua vontade, às suas prescrições71.

67. David Michael Stanley (“Become Imetator of me”, 868 [cf. nota 15]) evoca os crentes e
“their assimilation to Christ who has attained glory through suffering”.
68. É o que ressalta muito claramente Hans Dieter Betz, Nachfolge und Nachahmung Jesu Christi
im Neuen Testament, 168, 172-173 (cf. nota 3).
69. Entre os artigos que não citei explicitamente, mas que contribuíram para alimentar minha
reflexão, mencionarei ainda: Linda L. Belleville,“Imitate Me, Just as I Imitate Christ”: Discipleship
in the Corinthian Correspondence, in Richar N. Longenecker (ed.), Patterns of Discipleship in the
New Testament, Grand Rapids (MI), Eerdmanns, 1996, 120-142 (McMaster New Testament Stu-
dies); William S. Kurz, Kenotic Imitation of Paul and Christ in Philippians 2 and 3, in Fernando F.
Segovia (ed.), Discipleship in the New Testament, Philadelphia (PA), Fortress Press, 1985, 103-126.
70. Christophe Senft, La première épître de saint Paul aux Corinthiens, 70 (cf. nota 1).
71. Ver a esse propósito David Michael Stanley, “Become Imitator of me”, 861 (cf. nota 15);
Stanley resume a posição defendida por Michaelis e faz sua crítica.

434
VI – Paulo, o apóstolo
Mas, se a linha interpretativa de Michaelis dificilmente se sustenta, tem da
mesma maneira o mérito de chamar a atenção para o fato de que os convites a
imitar o apóstolo têm, de maneira indireta, um alcance ético: ao remeter os cris-
tãos ao Cristo, esses convites à imitação não querem ajudá-los a viver corretamen-
te em Cristo em suas vidas concretas, cotidianas? Imitar Cristo não é renunciar a
fazer valer privilégios, estar dispostos a dar adeus às vantagens pessoais? Todavia,
essa dimensão ética dos convites à imitação não deveria ser vista de maneira isola-
da, absoluta72: quando o apóstolo convida seus destinatários a se tornar seus imita-
dores, não se apresenta como um modelo cujos comportamentos devessem ser
imitados, mas os remete ao Cristo, que ele torna presente e ao qual eles devem
continuar fiéis em suas vidas de cada dia.
(4) Finalmente, as teses de Castelli sobre a natureza das relações entre o
apóstolo e suas comunidades merecem um último exame crítico.
Decerto, como não cessa de ressaltar Castelli, a imitação implica uma estru-
tura hierárquica73, mas isso não significa de modo algum que o apelo à imitação
esteja unicamente a serviço da afirmação do poder, da posição privilegiada da-
quele que se oferece a ser imitado.
Além disso, se é verdade que o modelo é definitivamente inacessível ao que
o imita, não será justamente isso que o apóstolo quer evidenciar?74 Ao convidar à
imitação, Paulo não se dá, aliás, como um simples modelo a ser imitado. De mais
a mais, a autoridade que ele reivindica é uma autoridade paradoxal. É isso que
Conzelmann resumiu nesta densa fórmula:“Vorbild ist er, indem er nichts ist”75. A
esse propósito, Castelli acha que Paulo desenvolveria aqui uma “retórica de imu-

72. É também o que dá a entender David M. Stanley quando escreve à guisa de conclusão:
“Consequently, this ‘self-imitation’ proposed by the Apostle, so necessary in his eyes as a vehicle for
the transmission of apostolic tradition, must be not overlooked in any systematic presentation of
Pauline moral theology” (ibid., 877).
73.Ver, por exemplo, Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 112-113 (cf. nota 4).
74. Elias Canetti, num ensaio consagrado a Confúcio, refletiu sobre as categorias da imitação e
do modelo. E, se suas declarações apresentam certo parentesco com as teses de Castelli, as relações
que descrevem entre imitador e modelo parecem-me contradizer as que Paulo mantém com as
comunidades que criou. De certo modo, é por contraste que Canetti poderia contribuir para es-
clarecer a posição de Paulo: “An Konfuzius lässt sich mit besonderer Klarheit lernen, wie ein Vor-
bild entsteht und sich bewahrt. Es gehört dazu vor allem, dass man selbst von einem Vorbild erfüllt
ist, an dem man unter allen Umständen festhält, an dem man nicht zwifelt, das man nie aufgibt, das
man erreichen möchte und doch nie ganz erreicht. Selbst wenn man’s erreicht hätte, dürfte man
nie wahrhaben wollen, dass es erreicht ist. Denn das erreichte Vorbild verliert sine Kraft. Es nährt
nur den, der sich in Distanz dazu sieht” (Elias Canetti, Das Gewissen der Worte. Essays, Frankfurt am
Main, Fischer Taschenbuch Verlag, 1981, 207).
75. Hans Conzelmann, Der erste Brief an die Korinther, 111 (cf. nota 35).

435
O conceito de imitação do apóstolo na correspondência paulina
nização”: ele se apresentaria como aquele que fala com autoridade, mas, simulta-
neamente, pretenderia não ser, na realidade, senão o medium da Palavra divina; as-
sim, o apóstolo se imunizaria de toda crítica76. Castelli vai mais longe ainda quando
afirma que se, em 1 Coríntios 4,16 o apelo à imitação não tem conteúdo claro,
isso responde a uma estratégia deliberada do apóstolo77: a imprecisão relativa àqui-
lo em que consiste concretamente a imitação à qual a comunidade é chamada
serviria também ela para reforçar a autoridade do apóstolo; colocaria, com efeito,
o imitador numa situação de dependência a respeito do modelo, o único capaz de
definir em que reside a imitação que reivindica.
Dunn, em sua suma consagrada à teologia de Paulo, denuncia com razão os
abusos aos quais pode sucumbir uma “hermenêutica da suspeita”, que percebe
constantemente em Paulo uma vontade de exercer sua autoridade de maneira
manipuladora e vingativa78. Dunn mostra, de outra parte, que a autoridade de
Paulo está totalmente a serviço do Evangelho, está submetida à “norma do
Evangelho”79. Em momento algum Paulo se permite confundir o que depende de
sua atividade e o que depende do Cristo, que ele torna presente mediante seu
ministério apostólico. Paulo, no exercício mesmo de sua autoridade, toma o cui-
dado de circunscrevê-la e de limitá-la80. E se exerce sua autoridade em relação aos
coríntios é, definitivamente, para exortá-los a que se tornem plenamente respon-
sáveis por eles mesmos81.
Finalmente, e Dunn o enfatiza com vigor, a autoridade do apóstolo está a
serviço da proclamação do Crucificado: “As the gospel is the gospel of the cruci-
fied, so the ministry of the gospel involves living out a theologia crucis rather than a
theologia gloriae”82.

76. Elizabeth A. Castelli, Imitating Paul, 104 (cf. nota 4).


77. Ibid., 108 ss.
78. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids (MI)/Cambridge (UK),
Eerdmans, 1998, 575-576: o autor denuncia aí a “unsympathetic reading or hermeneutic of suspi-
cion” à qual se entrega Graham Shaw (The Cost of Auythority: Manipulation and Freedom in the
New Testament, London/Philadelphia [PA], SCM/Fortress Press, 1983).
79. James D. G. Dunn, The Theology of Paul the Apostle, 572 (cf. nota anterior).
80. Ibid., 575.
81. Ibid., 574.
82. Ibid., 580.

436
VI – Paulo, o apóstolo
VII

Paulo depois de Paulo


A escola paulina: avaliação de uma hipótese
Andreas DETTWILER (Neuchâtel)

Para dar base sócio-histórica ao processo de recepção da teologia paulina (literatura deutero-
paulina), a pesquisa, desde o século XIX, insistiu na ideia de uma “escola paulina”. O
artigo submete a hipótese a uma avaliação crítica. O autor conclui por sua plausibilidade, em
particular se levamos em conta as escolas filosóficas da Antiguidade. Todavia, não poderia
ocultar sua gritante diversidade, até mesmo, em parte, a heterogeneidade no seio da literatura
deuteropaulina. É por isso que é preferível falar de várias “classes” ou “alas” dentro da es-
cola paulina.

1. Introdução: emergência e problemas de definição


do termo “escola paulina”1

O s escritos deuteropaulinos são testemunhas de um processo de recepção


intensa e variada da pessoa e da teologia de Paulo. Para dar uma base sócio-

1. Escolha bibliográfica a respeito da “escola paulina” (ordem cronológica): Hans Conzelmann,


Paulus und die Weisheit, NTS 12 (1965-1966) 231-244; Hans-Martin Schenke, Das Weiterwirken
des Paulus und die Pflege seines Erbes durch die Paulus-Schule, NTS 21 (1975) 505-518; Hans
Conzelmann, Die Schule des Paulus, in Theologia crucis — Signum crucis, Festschrift E. Dinkler, ed.
Carl Andresen, Günther Klein, Tübingen, Mohr Siebeck, 1979, 85-96; Peter Müller, Anfänge der
Paulusschule. Dargestellt am zweiten Thessalonischerbrief und am Kolosserbrief, Zürich,Theologis-
cher Verlag, 1988, passim (AThANT 74); Richard S. Ascough, What Are They Saying About the
Formation of Pauline Churches?, New York/Mahwah (NJ), Paulist Press, 1998; Knut Backhaus, “Mit-
teilhaber des Evangeliums” (1 Kor 9,23). Zur christologischen Grundlegung einer “Paulus-Schule”

439
histórica a esse fenômeno de sustentação e de atualização da tradição, a pesquisa
falou, desde o século XIX, de uma “escola paulina”2. Mas a expressão foi utilizada
e continua a sê-lo de diferentes maneiras, evocando associações diferentes. Müller
resumiu bem essas associações: quem diz “escola” pressupõe a existência e a trans-
missão de uma tradição, de um saber. “Escola” pressupõe depois a existência de
portadores da tradição e, assim, a relação “mestre–discípulo”. Pressupõe, além dis-
so, um contexto de ensinamento institucional mais ou menos bem definido. En-
fim, parece pressupor certa coerência “ideológica” ou, se preferirmos, um sistema
de convicção bem perceptível e que serve de “marca de identidade” de uma esco-
la em relação a outras escolas ou, mais geralmente, ao mundo ambiente3. Aplicada
a Paulo e à sua recepção na literatura deuteropaulina, Backhaus propôs a seguinte
definição: “escola paulina” designa um círculo de portadores de tradição que, em
parte, provavelmente influenciado pelos colaboradores de Paulo, desenvolveu uma
rica atividade de manutenção da herança paulina, referindo-se constantemente à
figura de Paulo, em particular ao seu apostolado: coleção e redação de seus escri-
tos, desenvolvendo ao mesmo tempo sua própria atividade literária (produção da
literatura deuteropaulina). Por falta de dados, esse grupo de portadores de tradição
não pode ser sociologicamente identificado com suficiente precisão4.
Essa definição, ao mesmo tempo ampla e prudente, portanto muito consen-
sual, é o fruto de numerosas decisões exegéticas. Delineia, todavia, com sutileza
uma série de questões espinhosas, como estas: será que o termo pressupõe a exis-
tência de uma escola paulina quando Paulo ainda vivia? Se é o caso, o termo visa

bei Paulus, in Klaus Scholtissek (Hrsg.), Christologie in der Paulus-Schule. Zur Rezeptionsgeschi-
chte des paulinischen Evangeliums, Stuttgart, Katholisches Bibelwerk, 2000, 44-71 (SBS 181);
Klaus Scholtissek, Paulus als Lehrer. Eine Skizze zu den Anfängen der Paulus-Schule, in Id.
(Hrsg.), Christologie in der Paulus-Schule, 11-36; Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testament?
Zur Stellung des Urchristentums in der Bildungswelt seiner Zeit, Freiburg, Herder, 2001, espec.
93-253 (HBS 30); Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, Göttingen, Vandenhoeck &
Ruprecht, 42002, 45-50 (“Die Schule des Paulus”).
2. Segundo Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, 46, nota 52 (cf. nota 1), o termo
“escola paulina” aparece pela primeira vez em 1880 no comentário sobre as pastorais de Heinrich
Julius Holtzmann. O termo “escola joanina” é ainda mais antigo (desde 1837); cf.Thomas Schmel-
ler, Schulen im Neuen Testament?, 7 (cf. nota 1).
3. Cf. Peter Müller, Anfänge der Paulusschule (cf. nota 1), 2.
4.Tradução ligeiramente simplificada de Knut Backhaus,“Mitteilhaber des Evangeliums” (1 Kor
9,23), 45 (cf. nota 1): “Unter Paulus-Schule sei im folgenden ein (soziologisch mangels Evidenz
nicht näher definierter) Kreis von frühchristlichen Tradidionsträgern verstanden, die, ­wahrscheinlich
wenigstens teilweise von Mitarbeitern des Paulus inspiriert, in dessen theologischem ­Einflussbereich
das Andenken an seine Gestalt wahrten, seinen Apostolat als normativen Bezugspunkt ihrer
­Selstdefinition wahrnahmen, seine Schiften sammelten und redigierten und im Bewusstsein
­theologischer Solidarität unter deuteronymer Berufung auf ihn literarisch tätig wurden”.

440
VII – Paulo depois de Paulo
unicamente a um grupo específico (por exemplo, os colaboradores de Paulo, es-
tando ele ainda vivo) ou inclui as comunidades paulinas em seu todo? Qual o
grau de organização dessa escola paulina que teria sido criada e mantida pelo pró-
prio Paulo e tido sua sede num lugar claramente identificável, por exemplo Éfeso,
Corinto ou Roma? Se formos céticos a respeito da ideia de uma escola paulina
com o apóstolo das nações ainda vivo, o termo designaria um fenômeno essen-
cialmente pós-apostólico, sem querer negar a possibilidade de uma base na ativi-
dade do Paulo histórico. Último campo de questões: a história da recepção de
Paulo atesta uma grande variabilidade, até mesmo heterogeneidade. Essa plurali-
dade põe em questão a hipótese da escola paulina? Ou é suficiente aperfeiçoá-la,
insistindo, por exemplo, na ideia de várias “classes” ou de várias escolas?
Para tentar esclarecer um pouco a problemática, parece-nos indispensável,
em primeiro lugar, lançar um olhar, ainda que fragmentário, sobre o modelo de
comparação dominante, a saber, as escolas filosóficas da Antiguidade5. Depois,
apresentaremos e avaliaremos os indícios principais que advogam em favor da hi-
pótese de uma “escola primitiva”. Para terminar, retomaremos a questão, histórica
e hermeneuticamente importante, da pluralidade da recepção da herança paulina.

2. Um modelo de comparação: as escolas filosóficas da Antiguidade

A hipótese da escola paulina nos põe em confronto com o seguinte proble-


ma metodológico: os textos do Novo Testamento não nos fornecem virtualmente
nenhum indício direto sobre a existência e o funcionamento concreto de uma
“escola” (paulina, joanina, mateana ou outra). Juntam-se a isso nossas pré-com-
preensões modernas de “a escola” (seja universitária, seja pré-universitária). Para
não cair na armadilha do anacronismo, o único procedimento pertinente consiste
em desenvolver uma tipologia “de escola” com base em textos da Antiguidade.
Visto o duplo enraizamento cultural de Paulo — veterotestamentário-judaico, de
uma parte, greco-romano, de outra —, parece indispensável levar em considera-
ção os dois contextos em igualdade de condições. Infelizmente, as pesquisas sobre
o fenômeno da escola na tradição veterotestamentário-judaica, em particular so-
bre a existência, a natureza e o funcionamento das escolas no período do Segundo
Templo, oferecem-nos resultados muito modestos6. Os textos rabínicos mostram,

5. Observemos, todavia, que o próprio Knut Backhaus apresentou a comparação com as es-
colas filosóficas e forneceu numerosas observações pertinentes a esse respeito (ibid., espec. 46, com
nota 6, 51, 53-54, 56-57, 59, 61, 63).
6. Para um rápido apanhado sobre a problemática, cf., por exemplo, Thomas Schmeller, Schu-
len im Neuen Testament?, 33-45 (cf. nota 1).

441
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
decerto, um sistema de escola claramente identificável e de bons resultados7. O
problema maior, todavia, consiste no fato de que para o período do Segundo
Templo possuímos pouquíssimas informações que nos permitam ter uma ideia
clara sobre a natureza e o funcionamento das escolas farisaicas, por exemplo8.
Permito-me, pois, não seguir essa pista e me voltar para um terreno mais promis-
sor, a saber, as escolas filosóficas do mundo greco-romano9.
Entre as escolas filosóficas mais importantes — a escola pitagórica, a Aca-
demia de Platão, o Lu,keion de Aristóteles, o “Jardim” de Epicuro e a escola da
Stoa —, as duas últimas parecem ter tido a maior popularidade na época de
Paulo. Apresento-as brevemente, sem, todavia, entrar em discussão sobre as dou-
trinas filosóficas delas.
A Stoa10 privilegia os ensinamentos nos edifícios públicos, contrariamente à
maioria das outras escolas filosóficas. O grau de organização é fraco; a adesão
a uma vida comum não é necessária. O elemento unificador é a adesão aos
princípios básicos da Stoa11. Como todas as outras escolas filosóficas, atribui

7. Cf., por exemplo, Günter Stemberger, Einleitung in Talmud und Midrasch, München, C. H.
Beck, 81992, 18-24.
8. R. Alan Culpepper (The Johannine School: An Evaluation of the Johannine-School Hypothesis
Based on an Investigation of the Nature of Ancient Schools, Missoula [Montana], Scholar Press, 1975
[SBL.DS 26]) destinou um capítulo inteiro a The House of Hillel (171-195) como exemplo de uma
escola farisaica antes de 70 d.C. Mas os frutos de suas investigações continuam modestos (171: “[…]
very little can be said about it with certainty”; ou 194: “[…] the nature of the Pharisaic schools is
still very obscure; and this obscurity is due primarily of the difficulty in using the Rabbinic mate-
rials”); Günter Stemberger (Einleitung in Talmud und Midrasch [cf. nota 7]) é ainda mais preciso em
seu balanço: “Über die Vorläufer des rabbinischen Schulwesens in der Zeit des Tempels, ob es nun
Einrichtungen der Pharisäer oder der Schriftgelehrten waren, ist uns fast nichts bekannt” (19-20).
9. Para uma rápida análise das escolas filosóficas antigas, pode-se consultar, por exemplo: Loveday
C. A. Alexander, Schools, Hellenistic, in Anchor Bible Dictionary V, 1992, 1.005-1.011; R. Alan
Culpepper, The Johannine School, 39-170 (cf. nota 8); Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testa-
ment?, 46-92 (cf. nota 1). A melhor contribuição é ainda, a meu ver, a de Culpepper.
10. Além das obras mencionadas na nota anterior, acrescentemos ainda: Hans-Josef Klauck, Die
religiöse Umwelt des Urchristentums, Stuttgart/Berlin/Köln, Kohlhammer, 1996; II: Herrscher- und
Kaiserkult, Philosophie, Gnosis, 77-113; ed. ingl.: The Religious Context of Early Christianity: A Guide
to Graeco-Roman Religions, Edinburgh, T & T Clark, 2000, 335-385 (Studies of the New Testa-
ment and its World).
11. Cf. R. Alan Culpepper, The Johannine School, 247 (cf. nota 8): “The Stoics found their grea-
test unity in their philosophy, not in their organization or the succession of philosophers leading
back to Zeno”; Loveday C. A. Alexander, Schools, Hellenistic, 1.008 (cf. nota 9): Stoicism never
became a closed institution. To be a Stoic was to profess adherence to a set of doctrines and a body
of wisdom passed down from Zeno and the great masters, perhaps to have studied with a teacher
who made the same profession, but not necessarily to join […] a body or group with a communal
existence”. A constatação, todavia, deve ser suavizada, pois o grau de institucionalização na época

442
VII – Paulo depois de Paulo
grande importância à philia, à amizade entre o mestre e os alunos e entre os
alunos entre si. Um outro elemento importante é a capacidade de “guiar a
alma”12; Sêneca, por exemplo, mestre eminente do período dos imperadores, dá
grande importância à troca regular entre os amigos e à correção recíproca,
tendo em vista chegar à “conversão” e atingir o ideal de uma vida filosófica
cheia de sabedoria13.
A escola de Epicuro14 mostra traços sensivelmente diferentes. Epicuro, no fim do
século IV a.C. (em 306), parece ter criado deliberadamente sua escola em Ate-
nas, onde ele comprou uma casa e um jardim e para onde foram ele e seus
discípulos, retirando-se do mundo. Parece que sua escola está marcada por um
sistema hierárquico claramente definido: no topo, o próprio mestre, ou seja,
Epicuro; depois, os líderes associados; depois, os instrutores; depois, os estudan-
tes adiantados; finalmente, os noviços. Na pesquisa, essa reconstrução é, todavia,
discutida de maneira controversa15. A vida comunitária (que se manifesta, por
exemplo, em refeições comunitárias, mas não na partilha dos bens) e a solicitu-
de pela amizade eram fundamentais. Fato surpreendente: a escola de Epicuro
aceitava mulheres e, parece, também escravos, o que demonstra, além disso, que
Epicuro não tinha a intenção de preparar seus alunos para uma carreira pública
(contrariamente a Platão ou Isócrates, por exemplo). Um outro traço bem tí-
pico do “Jardim” é a veneração quase religiosa do fundador. Epicuro reivindi-
cava e recebia uma autoridade inigualável. É ao mesmo tempo fundador, orga-
nizador, modelo de vida (aparece aqui com muita clareza o topos da imitatio), o
sábio por excelência e a única fonte de sua doutrina16. É chamado, além disso,
de “chefe” (h`gemw,n), “sábio” (sofo,j) e “pai” (path,r). Em seu testamento,
Epicuro ordena que seu aniversário seja celebrado todo ano e que seja organi-
zada uma refeição comemorativa no vigésimo dia de cada mês para honrar a
ele e a seu mais ilustre discípulo, Metrodoro. Depois de sua morte, seu retrato,
inúmeras vezes copiado e utilizado com intenção missionária, foi venerado

dos imperadores parece aumentar; Thomas Schmeller (Schulen im Neuen Testament, 59-60 [cf. nota
1]) se faz atento às escolas de Rufus e de Epicteto.
12. Cf. por exemplo ibid., 169-173, em que Schmeller utiliza por várias vezes o termo alemão
Psychagogik.Vê aí, de uma maneira um tanto anacrônica, uma espécie de combinação entre psico-
terapia e cura de almas (19).
13. Cf., por exemplo, Sêneca, Ep 6, em que se trata da transformação interior do homem (6,1
fala do “aperfeiçoamento da alma”; em 6,2 Sêneca gostaria de “partilhar contigo a transformação
tão rápida de minha pessoa” [“Cuperem itaque tecum communicare tam subitam mutationem
mei”]; e em 6,4 ressalta a riqueza do intercâmbio regular dos conhecimentos fiolosóficos).
14. Além dos trabalhos mencionados na nota 9, ver ainda Hans-Josef Klauck, Die religiöse
Umwelt des Urchristentums II, 113-123 (cf. nota 10); ed. ingl., 385-400.
15. Cf. R. Alan Culpepper, The Johannine School, 110 (cf. nota 8).
16. Cf. ibid., 106: “He was its founder, its organizer, its model for life and wisdom, and the sole
source of its doctrine. Epicurus required a kind of allegiance which was unknown in other philo-
sophical schools”.

443
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
religiosamente, primeiro em Atenas, depois em outras partes. Do ponto de
vista iconográfico, sintetiza os elementos do pai, do filósofo por excelência, do
herói cultual, do salvador, do guia espiritual, até de um deus17. Penúltimo traço
a ser observado: a escola empreende atividades missionárias intensas. O epi-
curismo está presente em particular na parte oriental — provavelmente tam-
bém em Tarso, a cidade natal de Paulo — do Império romano18. Observemos,
finalmente, que Epicuro se serve de maneira extensa do meio literário da carta
de amizade e da carta doutrinal para se comunicar com seus discípulos: “[…]
ao longo de sua vida, Epicuro, em relações epistolares mantidas com seus discí-
pulos, jamais deixou de manifestar a esses grupos distantes sua presença viva e
vigilante; algumas cartas tinham, sem dúvida, uma importância doutrinal ex-
cepcional, pois séculos mais tarde continuam a ser evocadas como textos fun-
damentais […]”19.
Esse rápido exame nos deixa atentos para o fato de que as escolas filosóficas
da Antiguidade são um fenômeno plural, não somente do ponto de vista doutri-
nal, mas também do ponto de vista do modo de organização. Todavia, nessa di-
versidade destacam-se traços comuns que permitem uma definição sumária do
termo “escola”.Tomemos a definição de Schmeller: “Uma escola filosófica é um
laço institucionalizado entre um mestre e vários alunos, provindos de meios so-
ciais privilegiados. Tem por objetivo ensinar e aprender e, ao mesmo tempo, in-
terpretar e atualizar numa perspectiva ética uma tradição filosófica que remonte
ao fundador”20. Mais importante ainda: Schmeller propõe a seguinte categoriza-
ção em oito pontos21: (1) Institucionalização. Aderir a uma escola filosófica signi-
fica participar ativamente da escola, seja como mestre, seja como aluno. Todavia,
o grau de institucionalização, aparentemente, varia de modo considerável. Pare-
ce, por exemplo, fraco para a Stoa. (2) A posição do mestre — que, desde a segun-
da geração, não é mais idêntica à figura fundadora — qualifica-se ao mesmo
tempo por uma grande autoridade e uma relação pessoal muito forte com seus
discípulos. O mestre se encontra numa situação de concorrência em relação às

17. Cf. Hans-Josef Klauck, Die religiöse umwelt des Urchristentums II, 116 (cf. nota 10).
18. Cf. R. Alan Culpepper, The Johannine School, 118 (cf. nota 8).
19. Graziano Arrighetti, Epicure, in Encyclopaedia universalis, 1990, t. 8, 541.
20.Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testament?, 91 (cf. nota 1): “Eine philosophische Schu-
le ist eine institutionalisierte Verbindung zwischen einem Lehrer und mehreren Schülern aus sozial
privilegierten Kreisen, bei der philosophische Tradition, die auf einen Gründer zurückgeführt wird,
gelehrt und gelernt und zugleich ethisch intepretiert und akualisiert wird”. Cf. também a outra
visão sintética sobre as escolas filosóficas da Antiguidade (integrando, todavia, igualmente Qumran,
Fílon, Hillel e “a escola de Jesus”), proposta por R. Alan Culpepper, The Johannine School, 247-260
(cf. nota 8) (variabilidade do fenômeno: 247-248; proposição de definição em nove pontos que
atinge em boa parte a de Schmeller: 258-259).
21. Cf. Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testament?, 91-92 (cf. nota 1).

444
VII – Paulo depois de Paulo
outras escolas filosóficas, por razões financeiras, de uma parte, e, de outra, para
manter o perfil específico de sua escola. Em outras palavras, ele tem de se posi-
cionar ativamente no “mercado” filosófico competitivo da época. O epicurismo
mantinha as mais fortes atividades missionárias. (3) Um grupo de discípulos muito
ligado por amizade. Mais uma vez, é o epicurismo que se qualifica pela mais mar-
cante identidade social. Certas escolas cultivam igualmente uma identidade so-
cial forte para se diferenciar das outras ou, mais geralmente, do “mundo”.Várias
escolas conhecem aparentemente círculos distintos (estudantes iniciantes; estu-
dantes adiantados). (4) Estatuto social muito privilegiado. Os mestres e os alunos são,
quase sempre, homens livres por nascimento e provindos de famílias relativa-
mente abastadas. A exceção que parece confirmar a regra é a escola de Epicuro,
que aceita as mulheres e os escravos. (5) A importância da tradição. A referência à
tradição fundadora é um elemento-chave para cada escola. De novo, é o epi-
curismo que parece ter dado mais atenção a esse aspecto. (6) A veneração do fun-
dador tem muitas vezes traços religiosos. (7) O ensinamento e a aprendizagem cons-
tituem um elemento-chave de cada escola, mesmo na época helenística, em que
a orientação propriamente intelectual e especulativa da filosofia é menos desen-
volvida do que a educação moral da pessoa. O ensinamento e a aprendizagem se
concentram principalmente no conhecimento e na interpretação atualizadora
de textos de sua própria tradição filosófica, sem necessariamente excluir outras.
(8) A primazia da filosofia prática. O objetivo principal das escolas filosóficas do
período helenístico era a educação intelectual e, antes de mais nada, moral do
discípulo. Tratava-se de “converter”, de “curar” e de “guiar a alma” para um ca-
minho equilibrado, moralmente responsável e feliz.
Antes de estabelecer uma relação explícita entre o contexto de compreensão
e a tradição paulina, convém apresentar os indícios mais importantes em favor da
“escola paulina”. No fim deste percurso neotestamentário, seremos capazes de
comparar melhor essas duas tradições (em 3.6).

3. A hipótese da “escola paulina”

3.1. A educação e a formação teológica de Paulo

Segundo Schnelle, um primeiro indício importante consiste no fato de que


Paulo teria sido influenciado por duas principais “tradições de escola”: farisaica, de
uma parte (influenciada, por sua vez, pela cultura helenística), e cristã, de outra22.

22. Cf. Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, 46-47 (cf. nota 1).

445
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
O argumento, todavia, é frágil, tão hipotética é a reconstrução exata da formação
escolar de Paulo.
Paulo recebeu uma educação no farisaísmo, como o atestam indiretamente
Filipenses 3,5-6 e Gálatas 1,14. A informação da obra lucana segundo a qual
Paulo teria sido educado em Jerusalém e recebido “aos pés de Gamaliel uma
formação rigorosamente conforme à lei de nossos pais” (At 22,3; cf. 26,4-5) é
discutida de maneira controversa na pesquisa23.Todavia, a importância da alter-
nativa “Tarso versus Jerusalém” se relativiza um tanto pelos dois fatos seguintes:
de uma parte, sabemos muito pouco sobre a existência e o funcionamento da
formação farisaica em Jerusalém ou alhures na Palestina no início de nossa era;
de outra parte, a língua grega e, mais geralmente, o sistema de educação hele-
nístico, na época de Paulo, influenciaram não apenas o judaísmo da diáspora,
mas igualmente o judaísmo palestino24.
Após o acontecimento de Damasco, no início dos anos 30 e durante os longos
“anos desconhecidos” até a assembleia dos apóstolos em Jerusalém, em 48,
Paulo foi se familiarizando progressivamente com os fundamentos da fé cristã.
A comunidade cristã de Antioquia parece ter tido uma influência importante
sobre sua identidade teológica25. As tradições pré-paulinas em certas cartas
paulinas mostram que Paulo se fundamentou em tradições eclesiais — antio-
quenas ou outras, pouco importa para nossa problemática — e que ele enten-
deu como uma das tarefas da teologia a interpretação dessa tradição26.Todavia,

23. Afirmativo: Martin Hengel (colab. Roland Deines), Der vorchristliche Paulus, in Martin
Hengel, Ulrich Heckel (Hrsg.), Paulus und das antike Judentum, Tübingen, Mohr Siebeck, 1991,
177-293, espec. 215-220 (WUNT 58) (hipótese biográfica sobre o jovem Paulo segundo Hengel,
237-239: nascimento e frequentação de uma escola elementar judaica em Tarso; grego como língua
materna da família; na adolescência mudança para Jerusalém para o estudo da Torá). Cético, não
excluindo, todavia, a possibilidade de uma estada de formação na cidade santa: Jürgen Becker, Paul,
“L’Apôtre des nations”, trad. J. Hoffmann, Paris/Montréal, Cerf/Médiaspaul, 1995, 50-52 (Théolo-
gie bibliques): “Sua formação na linha farisaica, Paulo pôde recebê-la sem dificuldade em qualquer
sinagoga da diáspora de alguma importância e, portanto, também em Tarso. Jerusalém só teria acres-
centado de algum modo o ‘nível de Oxford’” (52).
24. Sobre Jerusalém como “cidade grega” no primeiro século de nossa era, cf. Martin Hengel,
Der vorchristliche Paulus, 256-265 (cf. nota 23).
25. Cf., por exemplo, Jürgen Becker, Paul, 103-150 (cf. nota 23) (“Paul missionnaire et théolo-
gien d’Antioche”). Becker atribui importância absolutamente capital à comunidade de Antioquia
como lugar de formação teológica de Paulo. Essa apreciação não é partilhada, todavia, de modo
unânime; cf., por exemplo, Anna Maria Schwemer, Paulus in Antiochien, BZ 42 (1998) 161-180.
26.Ver antes de mais nada a contribuição, neste livro, de Daniel Gerber: A respeito das tradições
cristossoteriológicas pré-epistolares nas cartas incontestes de Paulo. A título não exaustivo, trata-se
principalmente de quatro tipos de tradições diferentes: tradições eucarísticas (1Cor 11,23b-25);
tradições batismais (1Cor 1,30; 6,11; 12,13; 2Cor 1,21 s.; Gl 3,26-28; Rm 3,25; 4,25; 6,3-4); tradi-
ções querigmáticas sobre a morte e a ressurreição do Cristo e as primeiras aparições (por exemplo,
1Cor 15,3b-5); e finalmente tradições hínicas (provavelmente Fl 2,6-11).

446
VII – Paulo depois de Paulo
saber se é realmente pertinente falar de uma “escola cristã” (por exemplo, em
Antioquia), como sugeriu Hans Conzelmann27, é uma questão que deve, julgo
eu, ficar em suspenso.

3.2. A autocompreensão apostólica de Paulo

O segundo indício que prepara o terreno da hipótese da escola paulina é o


do apostolado de Paulo. O assunto é vasto e mereceria uma análise profunda28.
Limito-me, aqui, às três seguintes dimensões: Paulo como “pai” fundador das co-
munidades cristãs; Paulo como figura a ser imitada (imitatio Pauli); enfim, Paulo
como mediador da revelação crística29.

3.2.1. Paulo, “pai” fundador de comunidades cristãs

Para caracterizar a relação entre ele e suas comunidades ou pessoas, Paulo


recorre com frequência a metáforas ligadas à família. À exceção de Romanos, a
única carta dirigida a uma comunidade que lhe é pessoalmente desconhecida,
Paulo se serve da linguagem metafórica familiar em todas as suas cartas, em par-
ticular quando se trata de esclarecer uma situação difícil ou crítica30. Tomemos
como exemplo a correspondência coríntia, de uma parte, e Gálatas, de outra. Na
correspondência com a comunidade de Corinto, Paulo acentua a relação dos
deveres recíprocos, servindo-se da dupla metáfora do “pai” que ama “seus filhos”.
Assim, ele escreve em 1 Coríntios 4,14-15: “Não vos escrevo isto para vos enver-
gonhar, mas para vos advertir, como a filhos queridos. Com efeito, mesmo que
tivésseis dez mil pedagogos [paidagwgoi,] em Cristo, não tendes muitos pais. Fui
eu que, pelo Evangelho, vos gerei em Jesus Cristo”. A relação paternal de Paulo
com a comunidade de Corinto explica, aliás, em parte, sua recusa de ser susten-
tado materialmente por essa comunidade: “[…] não procuro os vossos bens, mas
a vós mesmos. Não compete aos filhos fazer reservas para os pais, mas aos pais
para os filhos” (2Cor 12,14; a outra razão é sua compreensão da liberdade cristã:
cf. 1Cor 9). Outras passagens nas cartas coríntias confirmam esse vínculo pater-

27. Cf. Hans Conzelmann, Die Schule des Paulus, 87 (cf. nota 1).
28.Ver de modo especial, neste volume, estas duas contribuições: São Paulo, pastor e pensador:
uma teologia implantada na vida, de Romano Penna; e O conceito de imitação do apóstolo na
correspondência paulina, de Philippe Nicolet.
29. Para o que se segue apoio-me em grande parte no excelente artigo de Knut Backhaus,
“Mitteilhaber des Evangeliums” (1 Kor 9,23), espec. 46-69 (cf. nota 1).
30.Ver ibid., 48-49.

447
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
nal, afetivo, cuidadoso de Paulo em relação a essa comunidade (1Cor 3,1-3; 4,21;
11,2). Em Gálatas, Paulo se serve da linguagem metafórica familiar para exprimir
a experiência da paixão e da dor: “meus filhinhos que, entre dores, novamente
dou à luz, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19). A relação “pai–filho” é
aqui substituída pela relação “mãe–filhos”. Para nossa problemática, é, além disso,
importante ver que Paulo se serve da imagem do pai para designar igualmente
sua relação estreita com seus colaboradores (1Cor 4,17, a respeito de Timóteo:
“meu filho querido e fiel no Senhor”; Fl 2,22: “Timóteo […], qual filho junto
do seu pai, ele se pôs comigo a serviço do Evangelho”; Fm 10, a respeito de
Onésimo: “meu filho, que gerei [ou: dei à luz; o verbo grego evge,nnhsa pode ter
os dois significados] na prisão, Onésimo” etc.). Ao estabelecer uma relação afeti-
va extremamente forte com suas comunidades e seus colaboradores, Paulo cria
os fundamentos de uma relação que terá fortes chances de durar, até de sobrevi-
ver ao apóstolo.

3.2.2. O apóstolo como modelo de vida (imitatio Pauli)

Na correspondência coríntia, mas igualmente em Filipenses (3,17; cf. 1,12-


14) e Gálatas (4,12), a imitatio Pauli é uma ideia importante. As comunidades des-
tinatárias são chamadas a imitar Paulo como modelo de vida. Esse convite reforça,
uma vez mais, a adesão dos membros das comunidades paulinas a Paulo, o ensi-
nante e pregador do Evangelho. Nesse sentido, a imitação de Paulo é um outro
elemento forte que ressalta o dever de lealdade ao apóstolo. Seria um desvio para
uma autoglorificação do apóstolo Paulo? Três considerações põem em questão
essa suspeita. Em primeiro lugar, a função mimética de Paulo é a de apresentar um
modelo concreto para o seguimento de Cristo; ela não tem por função substituir
a relação do crente com o Cristo. Em 1 Coríntios 1,13, por exemplo, Paulo recusa
com determinação toda função soteriológica: “… Porventura Paulo foi crucifi-
cado por vós? Foi acaso em nome de Paulo que fostes batizados?”. Em segundo
lugar, a biografia de Paulo funciona como um exemplo da graça na medida em
que aquele que tinha antes “perseguido a Igreja de Deus” (1Cor 15,9b; Gl 1,13-
14; Fl 3,6a) foi escolhido como destinatário privilegiado da experiência visioná-
ria do Cristo ressuscitado: “O que sou, devo-o à graça de Deus, e a sua graça não
foi vã a meu respeito…” (1Cor 15,10a). O apóstolo se torna o exemplo concreto
de sua mensagem, a saber, o da reconciliação pelo Cristo, e constitui o paradigma
dos efeitos da graça divina31. Em terceiro lugar, o paradoxo inerente ao convite à

31. Cf. ibid., 58; aqui fala do apóstolo como exemplum gratiae.

448
VII – Paulo depois de Paulo
imitação de Paulo torna-se particularmente perceptível no contexto de seu de-
senvolvimento da teologia da cruz (1Cor 1-4; cf. em particular 4,6-13; 4,16)32. O
que constitui o objeto de sua imitação não é sua personalidade impressionante,
suas qualificações morais ou outras virtudes a ser imitadas, mas precisamente sua
conformidade com a existência do Cristo crucificado — existência que se carac-
teriza pela recepção do sofrimento e, finalmente, pelo amor (4,12-13!)33. Em ou-
tras palavras, a imitação de Paulo ganha toda a sua profundidade e a sua força de
persuasão unicamente no contexto da linguagem da cruz.

3.2.3. O apóstolo como mediador da revelação crística

Como apóstolo do Cristo crucificado e ressuscitado, Paulo tinha uma con-


siderável confiança em si (uma pepoi,qhsij [“segurança”], 2Cor 3,4). Essa
­confiança, ou certeza apostólica, caracteriza-se por três dimensões principais34. A
primeira dimensão constitutiva é a do serviço (diakoni,a). Paulo se compreende
como servidor (dia,konoj: 1Cor 3,5; 2Cor 3.6; 6,4; 11,23 etc.) ou como escravo
(dou/loj: 2Cor 4,5; Gl 1,10; Fl 1,1; Rm 1,1). Essa relação de serviço não se refere
prioritariamente à comunidade, mas a Deus ou ao Cristo. A segunda dimensão
principal, complementar à primeira, é a da graça (ca,rij: 1Cor 3,10; 15,9-10 etc.).
É ela e unicamente ela que constitui, legitima e mantém a atividade apostólica de
Paulo. A terceira dimensão principal é a da autoridade ou soberania do apóstolo em
relação à comunidade cristã. Ela se manifesta pela atividade apostólica principal, a
saber, o anúncio do Evangelho (1Cor 1,17: “Cristo não me enviou para batizar,
mas para anunciar o Evangelho [euvaggeli,zesqai], e sem recorrer à sabedoria do
discurso, para não reduzir a nada a cruz de Cristo”). Ela tem como objetivo prin-
cipal a criação e a edificação da Igreja (cf., por exemplo, 2Cor 10,8). Não é, pois,
um exagero dizer que Paulo se compreende como mediador da revelação crística.
Outras passagens acentuam muito fortemente essa função de mediação, por
exemplo 1 Coríntios 9,22-23, em que Paulo diz que salva: “… Fiz-me tudo para

32. Com referência às implicações antropológicas da teologia da cruz — cf. antes de tudo 2
Coríntios —, ver neste volume a contribuição de Jean Zunstein: A cruz como princípio de cons-
tituição da teologia paulina, espec. 324-327.
33. Excelente formulação de Helmut Merklein, Der erste Brief an die Korinther. Kapitel 1–4,
Gütersloh/Würzburg, Gütersloher Verlagshaus/Echter, 1992, 327 (ÖTBK 7/1): “Nicht was Paulus
von sich aus enzubringen hat: seine vorbildiliche Persönlichkeit oder sein beispielhaftes Tugends-
treben, sondern gerade, was er nicht aus sich selbst ist: seine vom Gekreuzigten geprägte apostolische
Existenz, ist Gegenstand der Nachahmung” (itálicos meus).
34. Para a sequência, cf. Knut Backhau, “Mitteilhaber des Evangeliums” (1 Kor 9,23), 64-69 (cf.
nota 1).

449
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
todos, para de alguma maneira salvar alguns ([v. 22b:] toi/j pa/sin ge,gona pa,nta
i[na pa,ntwj tina.j sw,sw). E tudo isso eu o faço por causa do Evangelho, para dele
participar”.Todavia, a existência apostólica de Paulo é uma existência descentrali-
zada, por assim dizer, uma existência que se compreende totalmente a partir do
Evangelho de Cristo. Não é o próprio Paulo o conteúdo de sua mensagem. O
apostolado de Paulo está ligado de maneira constitutiva à cristologia.

3.3. Paulo, seus colaboradores e suas colaboradoras

Um terceiro indício em favor da hipótese da escola paulina está ligado à es-


tratégia missionária de Paulo. Os trabalhos de Wolf-Henning Ollrog sobre os co-
laboradores e as colaboradoras de Paulo35 permitiram-nos corrigir um mal-enten-
dido persistente. O apóstolo das nações não era um nômade religioso, uma espécie
de solipso rígido. Aprendemos a dar adeus à nossa compreensão romântica do
apóstolo como gênio solitário ao descobrir um homem da Antiguidade, capaz de
trabalhar estreitamente com os outros em vista de seu projeto missionário. De
fato, esse vasto projeto não podia ser realizado sem a ajuda considerável de todo
um grupo de colaboradores e colaboradoras. As epístolas protopaulinas mencio-
nam cerca de quarenta personagens que devem ser consideradas como tais. O
grupo mais próximo em torno de Paulo compreendia pessoas como Barnabé
(somente no início de sua atividade missionária; cf. o reflexo das tensões em At
15,36-40; Gl 2,13), Silvano (1Ts 1,1), Timóteo (1Ts 1,1; 2Cor 1,1; Fl 1,1; Fm 1;
etc.), Tito, Sóstenes (1Cor 1,1; etc.) e outros. Mas havia igualmente missionários
independentes que colaboravam com ele durante certo tempo, como Apolo
(1Cor 1,12; 3,5 ss.22; 4,6; 16,12; cf. também At 18,24-28), ou o casal Prisca e
Áquila (1Cor 16,19; Rm 16,3-4; cf. também At 18,1 ss.). Os colaboradores e co-
laboradoras de Paulo eram, em sua maioria, delegados das comunidades fundadas
pelo apóstolo. Nessa função, participavam do projeto missionário de Paulo, man-
tendo o vínculo com as comunidades de que provinham, sustentando-o de ma-
neira ativa como missionários e assumindo sua tarefa, pontual, de corredatores das
cartas de Paulo36. Esse trabalho de acompanhamento e de colaboração não se li-
mitava provavelmente a simples questões de organização ou de estratégia, mas
incluía a elaboração de questões teológicas. Podemos, além disso, supor que essas
discussões teológicas continuaram dentro desse grupo em torno de Paulo após a

35. Cf. Wolf-Henning Ollrog, Paulus und seine Miterbeiter. Untersuchungen zu Theorie und
Praxis der paulinischen Mission, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1979 (WMANT 50).
36. Ver a esse respeito Markus Müller, Der sogenannte “schriftstellerische Plural” — neu be-
trachtet. Zur Frage der Mitarbeiter als Mitverfasser der Paulusbriefe, BZ 42 (1998) 181-201.

450
VII – Paulo depois de Paulo
morte dele. Em outras palavras: esse grupo de colaboradores e colaboradoras
constitui provavelmente o grupo central da “escola paulina”.
Como entende Paulo sua relação com os colaboradores e as colaboradoras?
Sua autoridade apostólica não leva, segundo os textos, a uma relação autoritária
com seus colaboradores. O colaborador — o sunergo,j — não é definido em
primeiro lugar pelo fato de que trabalha com Paulo, mas por ser chamado a tra-
balhar na mesma obra (su.n-e;rgon) que Paulo37. Os colaboradores trabalham sobre
o mesmo fundamento teológico que Paulo. A passagem central de 1 Coríntios
3,5-9, por exemplo, põe Apolo e Paulo no mesmo plano: Paulo “plantou” (a co-
munidade de Corinto), Apolo a “regou”, mas somente Deus faz “crescer” sua
obra. Não surpreende, pois, que Paulo, nos versículos 5 e 9, se situe no mesmo
nível de Apolo, qualificando-se, também ele, primeiro como “servidor” (dia,konoj),
depois como “colaborador de Deus (qeou/ ga,r evsmen sunergoi,). Decerto, Paulo
não hesita em exigir, em caso de necessidade, a obediência, não a ele mesmo
como indivíduo, mas sim ao Evangelho. Quando Paulo se vê em acordo com
suas comunidades ou com seus colaboradores, não exige prerrogativas apostóli-
cas particulares38.

3.4. A existência da literatura deuteropaulina; pseudepigrafia

Parto do pressuposto exegético segundo o qual seis escritos que fazem parte
do corpus paulinum devem ser compreendidos como deuteropaulinos em sentido
pleno, a saber, obras que pretendem ter sido escritas por Paulo, mas que foram
concebidas e redigidas por pessoas desconhecidas no tempo pós-apostólico, bem
familiares à herança paulina39. A existência de cartas deuteropaulinas é um dos
mais fortes indícios em favor de uma ou de várias escolas paulinas. Uma análise
detalhada desses documentos mostra, todavia, que a recepção da teologia paulina
era um processo complexo e variado, até heterogêneo. Retomaremos esse aspecto
no fim desta contribuição.
A existência da literatura deuteropaulina suscita, evidentemente, a questão
da pseudepigrafia antiga. Na literatura da Antiguidade greco-romana ela é forte-

37. Cf. Peter Müller, Anfänge der Paulusschule, 214 (cf. nota 1).
38. Cf. ibid., 215, e Knut Backhaus, “Mitteilhaber des Evangeliums” (1 Kor 9,23), 47 (cf. nota 1).
39. No que diz respeito a 2 Tessalonicenses, a hipótese de William Wrede, retomada e aperfei-
çoada por Wolfgang Trilling e outros, segundo a qual o escrito constitui uma imitação literária
deliberada de 1 Tessalonicenses é, a meu ver, a mais plausível. O estatuto de Colossenses, atualmente,
é mais disputado, mas também aí convém considerar uma hipótese deuteropaulina no sentido forte.
Quanto aos outros escritos — Efésios e as pastorais —, a dúvida, a meu ver, não é mais permitida.

451
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
mente disseminada. Mas é falso concluir daí que era unanimemente aceita como
método literário normal. Jean-Daniel Kaestli afirma, com razão: “A pretensa
indiferença da Antiguidade diante da pseudepigrafia é uma ilusão; a crítica da
autenticidade e a condenação da prática das falsificações literárias estão nela
bem documentadas”40. Duas observações nos permitem criar uma ponte entre a
pseudepigrafia do mundo greco-romano e a pseudepigrafia deuteropaulina (an-
tes de mais nada, Colossenses, Efésios e as pastorais; 2 Tessalonicenses deveria, a
meu ver, ser tratada em separado). De uma parte, as obras se baseiam na tradição
das escolas da Antiguidade: “Nas escolas filosóficas ou médicas, não era raro um
discípulo publicar sob o nome do mestre uma obra de comentário ou de desen-
volvimento de seu ensinamento. Um grande número de obras atribuídas a
­Sócrates, a Platão, a Aristóteles ou a Hipócrates foi assim publicado”41. Nessas
tradições de escola, a pseudepigrafia parece ter sido, assim, um procedimento
mais ou menos geralmente aceito. De outra parte, é precisamente a literatura
epistolar que na Antiguidade parece ter sido o terreno privilegiado de toda sorte
de métodos pseudepigráficos. A pseudepigrafia tinha seu ponto culminante na
pseudepistolografia42. Virtualmente, todas as grandes figuras da história grega
— Eurípedes, Demócrito, Sócrates, Alexandre, o Grande, e outros — estão in-
cluídas nesse fenômeno43.
Quais eram as razões da emergência da literatura deuteropaulina? Em outras
palavras: por que os “discípulos” de Paulo não escreviam em seu próprio nome,
mas recorriam à figura do apóstolo Paulo para legitimar os escritos deles? Com
mais forte razão a questão é pertinente a partir do momento em que nos damos
conta do caráter transitório da pseudepigrafia neotestamentária. Na realidade, a
maior parte desses escritos foi produzida entre cerca de 70 e 110; portanto, entre
a redação dos escritos protopaulinos e as cartas de Inácio de Antioquia. A razão
principal é, a meu ver, de ordem eclesiopolítica. Na história do cristianismo pri-

40. Jean-Daniel Kaestli, Mémoire et pseudépigraphie dans le christianisme de l’âge post-apos-


tolique, RThPh 125 (1993) 47. Cf. também Hans-Josef Klauck, Die antike Briefliteratur und das Neue
Testament, Paderborn, Schöningh, 1998, 303 (UTB 2022): “Man darf nicht soweit gehen und
behaupten, dass Pseudepigraphie in der Antike ein allgemein verbreiteter und anerkannter Vorgang
gewesen sei, an dem niemand mehr Anstoss nahm. Es gab im Gegenteil sehr wohl ein Gefühl für
geistige Urheberschaft und für bewusste Fälschung”.
41. Jean-Daniel Kaestli, Mémoire et pseudépigraphie dans le christianisme de l’âge post-apos-
tolique (cf. nota anterior), 47.
42. Cf., por exemplo, Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, 326 (cf. nota 1).
43. As variações eram inúmeras, parece. Os exemplos mais inocentes eram de simples exercícios
retóricos no quadro escolar; no outro extremo figuravam desde os falsos até as intenções claramente
fraudulentas (por exemplo, no contexto econômico).

452
VII – Paulo depois de Paulo
mitivo, esse período “pós-clássico”44 deve ser qualificado como um tempo de
ruptura e de nova orientação45. Para as comunidades paulinas, a morte do apósto-
lo, figura de autoridade e laço unificador dessas Igrejas, tinha provocado um sen-
timento de insegurança. Podemos supor que forças “centrífugas”, já bem presen-
tes no seio das comunidades paulinas quando Paulo estava vivo — basta pensar
nas relações agitadas de Paulo com a comunidade de Corinto —, se intensifica-
ram após o desaparecimento do apóstolo. O desenvolvimento dos ministérios
eclesiais provavelmente estava ainda num estágio rudimentar. E a interpretação
adequada da herança tornava-se um problema cada vez mais crítico. Diante desses
múltiplos desafios, os portadores da tradição paulina não tinham aparentemente
outra escolha senão recorrer à autoridade de Paulo. Outra autoridade eclesial
dessa envergadura não existia ainda. Somente falando em nome de Paulo é que se
tinha a chance de ser entendido nas comunidades paulinas46. Fenômeno parado-
xal à primeira vista apenas: a morte de Paulo suscitou ao mesmo tempo sua res-
surreição literária pela emergência da literatura deuteropaulina!

3.5. Para a composição do corpus paulinum

Um último campo de indícios em favor de hipótese da “escola paulina” está


ligado à constituição do corpus paulinum. Também aqui limito-me a um esboço
sumário da problemática, tão complexo é o assunto em seus detalhes.

3.5.1. Leitura e circulação das cartas

Desde o início, as cartas de Paulo foram lidas em voz alta nas comunidades
(cf. 1Ts 5,27; Rm 16,16). O próprio Paulo supõe que suas cartas — pelo menos
uma parte — deviam circular entre as comunidades, como indica, por exemplo, o
plural em Gálatas 1,2 (“às Igrejas da Galácia”). Colossenses, por sua vez, a carta
deuteropaulina mais antiga, convida à troca de cartas (4,16:“Quando tiverdes lido
a minha carta, empenhai-vos para que a leiam também na Igreja de Laodiceia.
Quanto a vós, lede a que vier de Laodiceia”). A observação é interessante, pois dá

44. Tomamos emprestado o termo de Horst R. Balz, Anonimität und Pseudepigraphie im


­ rchristentum. Überlegungen zum literarischen und theologischen Problem der urchristlichen
U
und gemeinantiken Pseudepigraphie, ZThK 66 (1969) 432.
45. Boa descrição da problemática em Udo Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, 327 (cf.
nota 1).
46. É a tese, pertinente, de Karl Martin Fischer, Anmerkingen zur Pseudepigraphie im Neuen
Testament, NTS 23 (1977) 76-81, espec. 79.

453
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
testemunho do avanço progressivo do contexto de comunicação inicial e assim da
autoridade crescente das cartas paulinas. Além disso, 2 Tessalonicenses pressupõe o
conhecimento de falsas cartas paulinas (cf. 2Ts 2,2!; 3,17), o que supõe indireta-
mente a circulação de várias cartas de Paulo entre suas comunidades. Essas poucas
observações demonstram claramente a autoridade atribuída às cartas de Paulo nos
meios paulinos. Além disso, já se observa essa autoridade durante a vida de Paulo,
como mostra 2 Coríntios 10,10: “… pois suas cartas, dizem, têm peso e força;
mas, quando presente, ele é fraco e sua palavra, nula”. É compreensível, pois, que
as cartas de Paulo fossem colecionadas (não de maneira exaustiva, todavia, como
mostra a carta perdida de Paulo indicada em 1Cor 5,9), reagrupadas e postas em
circulação, em primeiro lugar para um público restrito, as comunidades paulinas.

3.5.2. Modificação redacional de cartas existentes

Um outro indício em favor da escola paulina é o fato de que, logo após a


morte de Paulo, suas cartas passaram por ligeiras modificações47. Mencionemos,
primeiro, o fenômeno das glosas que se encontram aqui ou ali nas cartas proto-
paulinas. São textos ou fragmentos textuais que foram inseridos ulteriormente
em cartas de Paulo (cf. Rm 16,25-27; evidentemente 1Cor 1,2c; 14,33b-36; cer-
tamente 2Cor 6,14-7,1 etc.).Também é de mencionar a hipótese segundo a qual
2 Coríntios, pelo menos, parece ser uma composição ulterior de vários fragmen-
tos de cartas do Paulo histórico. Nessa hipótese, alguém teve de reunir essas cartas
ou fragmentos de carta e delas fazer uma composição coerente. Podemos supor
que esse alguém era próximo de Paulo, pois esse gênero de trabalho supõe certa
familiaridade com seu pensamento. Além disso, esse trabalho de composição lite-
rária atesta o enorme interesse que se concedeu à teologia paulina. Queria-se que
a voz de Paulo continuasse a ser ouvida na Igreja. De novo, surge aqui o trabalho
da “escola paulina”, preocupada em preservar a herança escrita do apóstolo.

47. Ou, talvez, em parte, já durante a vida de Paulo? Walter Trobisch (Die Entstehung der Paulus-
briefsammlung. Studien zu den Anfängen christlicher Publizistik, Freiburg/Göttingen, Universitäts-
verlag/Vandenhoeck & Ruprecht, 1989 [NTOA 10]) defende a hipótese segundo a qual o autor
— Paulo — teria sido seu primeiro redator importante. Em outras palavras, o próprio Paulo teria
retocado pelo menos algumas de suas cartas com base em sua correspondência eclesial, em vista da
difusão e da preservação de seu pensamento para as gerações futuras (Trobisch fala de Autorenrezen-
sionen, cf., por exemplo, 119-132). A hipótese de Trobisch, ao se inspirar em outras coleções de
cartas da Antiguidade (como, por exemplo, as de Cícero, Plínio, o Jovem, e Inácio de Antioquia),
não me parece extravagante; mas não poderia ser compreendida como modelo de explicação ex-
clusiva. De fato, todas as operações redacionais não remontam a Paulo, mas refletem cuidados da
geração pós-apostólica.

454
VII – Paulo depois de Paulo
3.5.3. Coleção e reunião das cartas: a construção do corpus paulinum

Um último indício nesse contexto do trabalho de redação é a coleção das


cartas paulinas e, portanto, a etapa decisiva para a constituição do corpus paulinum.
Uma vez mais, tomo a liberdade de me limitar a duas, três indicações48. A recons-
trução das primeiras coleções de cartas paulinas (protopaulinas e deuteropaulinas)
é extremamente difícil e deve continuar hipotética. Parece que o processo de co-
leção e de classificação das cartas paulinas estava bem avançado no fim do primei-
ro século ou início do segundo. A primeira evidência para a existência de uma
coleção extensiva de cartas paulinas é dada pela coleção de Marcião em meados
do século II. A ordem das dez cartas que figuravam nesse cânon paulino (Gálatas;
1 Coríntios; 2 Coríntios; Romanos; 1 Tessalonicenses; 2 Tessalonicenses; Efésios
[“Laodiceanos”, segundo Marcião]; Colossenses; Filipenses; Filêmon), em parti-
cular a anteposição de Gálatas, suscitou interpretações controversas. É, todavia,
verossímil que Marcião tenha se baseado numa edição já existente de coleção de
cartas, sem modificá-la muito49. As edições foram organizadas segundo o princí-
pio cronológico (o fragmento de Muratori o atesta) ou o do tamanho decrescen-
te (por exemplo, Marcião, com exceção de Gálatas)50.

3.6. Avaliação

3.6.1. A comparação com as escolas filosóficas da Antiguidade

Voltemos à comparação da “escola paulina” com as escolas filosóficas da An-


tiguidade. Cada trabalho comparativo se caracteriza pelo esforço de determinar o
grau de semelhança entre dois ou mais fenômenos distintos, ou, mais geralmente,

48. Para a sequência, ver: Kurt Aland, Die Entstehung des corpus paulinum, in Neutestamentliche
Entwürfe, München, Kaiser, 1979, 302-350 (ThB 63); Harry Y. Gamble, The Canon of the New Tes-
tament. Its Making and Meaning, Philadelphia, Fortress Press, 1985, 35-46 (News Testament Series);
Jean-Daniel Kaestli, Histoire du canon du Nouveau Testament, in Daniel Marguerat (éd.), Intro-
duction au Nouveau Testament. Son histoire, son écriture, sa théologie, Genève, Labor et Fides, 22001,
449-474, espec. 459-461 (Le Monde de la Bible 41); Hans-Martin Schenke, Das Weiterwirken des
Paulus und die Pflege seines Erbes durch die Paulus-Schule (cf. nota 1); Udo Schnelle, Einleitung
in das Neue Testament, 395-410 (Die Sammlung der Paulusbrief und das Werden des Karons)(cf. nota
1). Dieter Trobisch, Die Entstehung der Paulusbriefsammlung (cf. nota 47).
49. Segundo Jean-Daniel Kaestli, Histoire du canon du Nouveau Testament, 460 (cf. nota
anterior).
50. Mas esse princípio levou a diferentes resultados segundo se contassem as cartas endereçadas
à mesma comunidade como uma unidade de tamanho (“1–2Cor”; “1–2Ts”) ou separadamente; cf.
Harry Y. Gamble, The Canon of the New Testament, 41-42 (cf. nota 48).

455
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
por um jogo dialético entre identidade e diferença. Não se trata, pois, de esperar
uma semelhança perfeita, mas de ver se as escolas filosóficas da Antiguidade ofere-
cem um quadro heuristicamente interessante para melhor compreender Paulo e
sua recepção numa perspectiva sócio-histórica, em particular as influências recí-
procas entre Paulo e o mundo circunstante51.
As semelhanças são consideráveis. (1) A utilização paulina das metáforas fa-
miliares, em particular a do “pai”, para designar ao mesmo tempo sua grande au-
toridade e seu forte vínculo afetivo com as comunidades fundadas por ele mesmo,
bem como com seus colaboradores e suas colaboradoras, encontra seu eco no
estatuto de autoridade do mestre filosófico. (2) A imitação do mestre filosófico,
concebido como um dos meios mais eficazes para levar o discípulo ao amadure-
cimento pessoal, tem seu par no topos da imitatio Pauli, mesmo que, nesse ponto,
as diferenças sejam incontestáveis. (3) A dimensão fortemente comunitária (o
ideal de philia) encontra-se de uma parte e de outra52. (4) Os colaboradores e as
colaboradoras de Paulo, também eles compromissados com o ensinamento e a
propagação da mensagem, podem ser comparados a adiantados estudantes de filo-
sofia53. (5) A atividade missionária — viagens sozinho ou com discípulos, criação
de novos círculos de simpatizantes etc. — e, portanto, a necessidade de se posicio-
nar ativamente no “mercado intelectual” da época são elementos familiares a
Paulo e a seus sucessores. (6) A literatura deuteropaulina, em particular Colossen-
ses e Efésios, dá testemunho de um processo de recepção inovador da herança
paulina. É análoga ao cuidado das escolas filosóficas em preservar sua própria he-
rança filosófica, submetendo-as a uma interpretação atualizadora. Ao compor car-
tas deuterônimas54 em nome de Paulo, “a escola paulina” imita evidentemente a

51. Cf. a observação inspiradora de Loveday C. A. Alexander, Paul and the Hellenistic Schools:
The Evidence of Galen, in Troels Engberg-Pederson (ed.), Paul in his Hellenistic Context, ­Edinburgh,
T. & T. Clark, 1994, 60-83 (82) (Studies of the New Testament and its Word): “All I have tried to
do is to establish that the model of the school is an important tool for the imaginative understan-
ding of Paul’s world and the options open to him for penetrating it, as well as for understanding
the reactions of that world to Paul”.
52. Thomas Schmeller (Schulen im Neuen Testament?, 181 [cf. nota 1]) acentua aqui unilateral-
mente as diferenças quando escreve: “Die Temeinden [isto é, as comunidades cristãs] unterschieden
sich von den Schulen (selbst von den Epikureern) durch ein sehr viel stärkeres Gruppenbewusst-
sein: Das kommunale Element ist nicht didaktisches Mittel, sondern ein Grundzug ihrer Identität”.
Será realmente correto desqualificar o elemento comunitário, por exemplo dos epicureus, como
simples “meio didático”? E o que ocorre, por exemplo, com a orientação profundamente dialógica
da filosofia de Sêneca?
53. Cf. ibid., 180.
54. O neologismo “deuterônimo” remonta a Joachim Gnilka, Der Kolosserbrief, Freiburg/Basel/
Wien, Herder, 1980, 23 (HThK 10) (retomado por Peter Müller, Anfänge der Paulusshchule, 318 [cf.

456
VII – Paulo depois de Paulo
atividade epistolar do apóstolo. Ao mesmo tempo, a epistolografia deuterônima
tem sua analogia na atividade literária das escolas filosóficas da Antiguidade. (7)
Enfim, um olhar sobre a história da recepção mostra que não somente autores
não cristãos entenderam os cristãos como parte de uma “escola”55, mas também
que já o autor da obra lucana, pelo fim do século I d.C., põe Paulo em paralelo
com a atividade de ensinamento de mestres filosóficos: basta pensar em seu dis-
curso no Areópago (At 17,22-31) ou em sua atividade de ensinamento durante
dois anos em Éfeso: “… Paulo rompeu com eles [isto é, com os membros da sina-
goga do mesmo lugar], e tomando à parte os discípulos dirigia-lhes diariamente a
palavra na escola de Tirano. Esta situação durou dois anos” (At 19,9b-10a)56. Do
ponto de vista histórico, a notícia de Lucas não deveria ser desqualificada muito
cedo. É possível que reflita a lembrança de uma atividade de ensinamento prolon-
gado de Paulo em Éfeso. Se, ao contrário, formos céticos a respeito de seu valor
histórico, ela reflete, pelo menos, a percepção lucana de Paulo como “filósofo”57.
A análise comparativa mostra ao mesmo tempo as diferenças ou especifici-
dades da “escola paulina” em relação às escolas filosóficas da época. A meu ver, as
diferenças mais interessantes são as seguintes: (1) Ao analisar os escritos protopau-
linos, é às vezes difícil distinguir com clareza entre tal comunidade cristã em seu
todo e o grupo de colaboradores e colaboradoras de Paulo. O apóstolo é, por
exemplo, “pai” e modelo a ser imitado por todos os membros da comunidade
coríntia, o que sugeriria compreender essa comunidade local como “escola”.To-
davia, o problema não deveria ser acentuado além da conta. Poderíamos, por
exemplo, a título hipotético, propor o modelo da diferenciação entre vários gru-
pos no seio de uma comunidade (estudantes novatos/estudantes adiantados).

nota 1]). Tem a vantagem de evitar julgamentos de valor inapropriados ligados ao termo clássico
“pseudônimo”.
55. Cf., por exemplo, Loveday C. A. Alexander, Paul and the Hellenistic Schools (cf. nota 51),
em que apresenta o médico e escrivão Galeno (fim do século II d.C.), em particular seus posicio-
namentos sobre os judeus e os cristãos, como membros da “escola de Moisés e do Cristo” (cf.
espec. 64-67).
56. […] avposta.j avpV auvtw/n avfw,risen tou.j maqhta.j kaq’ h`me,ran dialego,menoj evn th/| scolh/|
Tura,nnou. tou/to de evge,neto evpi. e;th du,o […].
57. Com referência à interpretação de Atos 19,9-10, cf., por exemplo, Thomas Schmeller,
Schulen im Neuen Testament?, 95-97 (posição indecisa) (cf. nota 1); Alfons Weiser, Die Apostelgeschi-
chte. Kepital 13–28, Gütersloh/Würzburg, Gütersloher/Echter Verlag, 1985, 521-522, 528 (ÖTBK
5/2) (retomada de uma tradição pré-lucana, por razões de Lokalkolorit, 522); Charles K. Barrett,
The Acts of the Apostles, Edinburgh, T. & T. Clark, 1998, v. II, 901.904-905 (ICC) (posição próxima
de Weiser: At 19,9 fazia parte de um itinerário pré-lucano, 901); Barrett traduz scolh, por lecture-
room (905); diale,gesqai significa “conversar”, “discutir”, “ensinar (em forma de diálogo)” ou sim-
plesmente “falar”.

457
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
(2) A condição social dos discípulos de Paulo parece ter sido inferior à da maioria
dos membros das escolas filosóficas58. Todavia, a observação não põe em dúvida
de modo algum a hipótese de uma “escola paulina”, pelas seguintes razões: a pre-
sença de mulheres e de escravos no seio das comunidades paulinas (algumas mu-
lheres até faziam parte do círculo estreito de Paulo) é facilmente explicável, ou
seja, de uma parte, pela mensagem teológica de Paulo (cf., por exemplo, Gl 3,28;
1Cor 1,26-31; cf. também a escola de Epicuro) e, de outra parte, pela autonomia
financeira de Paulo (At 18,3: “fabricante de tendas”), manifestada por sua recusa
de se deixar sustentar materialmente por suas comunidades. (3) Como já vimos, a
imitação do mestre desempenha um papel capital na formação dos discípulos, de
uma parte e de outra; nos dois casos, o mestre é concebido como “a encarnação
viva” de sua mensagem (filosófica e teológica). O estabelecimento dessa relação
nos permite, de imediato, entender melhor a compreensão especificamente pau-
lina do topos imitatio: Paulo não se vê como o sábio por excelência, como ho-
mem “perfeito”, até mesmo como deus (cf. a escola de Epicuro), mas como um
“louco em Cristo” (1Cor 4,9-13), um “fraco” (2Cor 12,7-10), um homem não
perfeito (Fl 3,10-16). Ele compreende sua existência como em conformidade
com o Cristo crucificado. Nesse sentido, ele se torna o paradigma da graça. Em
resumo, a diferença, pois, é aqui essencialmente devida às opções teológicas e
antropológicas especificamente paulinas. (4) A diferença provavelmente mais in-
teressante está ligada à relação paulina entre apostolado e cristologia. Na realida-
de, quem é o fundador da “escola paulina”: Paulo ou o Cristo? O papel de Paulo
como fundador de uma escola é ambivalente59. Essa ambivalência é devida à com-
preensão de seu apostolado. Paulo, pelo menos, concebe sua autoridade apostóli-
ca como uma autoridade dada por Deus em vista da pregação do Cristo (Gl
1,15-16; 1Cor 9,1 etc.). Assume, assim, o papel de mediador da revelação crística
(cf. acima 3.2), sem, todavia, aspirar a uma condição soteriológica qualquer. Na
literatura deuteropaulina, a relação “apostolado–cristologia” será repensada e in-
tensificada, compreendendo agora Paulo como parte do “mistério”, ou seja,
“Cristo entre vós” (Cl 1,27 [musth,rion… Cristo.j evn u`mi/n]; cf. de modo mais
geral Cl 1,24-2,5; Ef 3,1-13 etc.). O mensageiro fará agora parte da mensagem
crística. Entretanto, os escritos deuteropaulinos mantêm também eles a primazia
do Cristo em relação à autoridade apostólica de Paulo!60 É infundada, pois, a cen-

58. Cf. Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testament?, 181 (cf. nota 1).
59. Observação pertinente de Thomas Schmeller: “[…] in mancher Hinsicht erscheint eher
Christus als der Gründer. Zudem ist eine religiöse Verehrung seiner eigenen Person für Paulus je-
denfalls ausgeschlossen” (ibid.).
60. Com razão Knut Backhaus, “Mitteilhaber des Evangeliums” (1 Kor 9,23), 69-71 (cf. nota 1).

458
VII – Paulo depois de Paulo
sura às vezes dirigida aos escritos deuteropaulinos de que substituiriam a cristo-
logia por uma espécie de “Paulologia”.
Chegamos assim à conclusão de que é plausível a hipótese da existência de
uma escola paulina, em particular com base numa comparação com as escolas fi-
losóficas da Antiguidade. Resta-nos discutir ainda a seguinte questão: é uma hipó-
tese plausível somente para o período pós-apostólico? Ou é permitido falar de
uma escola já no período de vida de Paulo? Se sim, em que sentido?

3.6.2. Uma hipótese plausível para a época pós-apostólica

A hipótese da “escola paulina” torna sociologicamente plausíveis diversos


fenômenos literários, como a coleção e a preservação das cartas de Paulo, a revisão,
a redação e a circulação delas, bem como, finalmente, a produção e a distribuição
de novas cartas sob o nome da grande figura da autoridade do passado (cf. acima
3.4 e 3.5). Harry Y. Gamble resumiu bem os argumentos que defendem a hipóte-
se: “Uma teoria satisfatória deve levar em consideração o fato de que algumas
cartas foram perdidas, outras preservadas, algumas editadas e outras compostas em
segunda mão. Deve, além disso, propor um contexto realista no qual a herança li-
terária de Paulo foi cultivada e, finalmente, fixada por uma coleção. É provável
que seja uma escola paulina a ter responsabilidade por isso, pois tal grupo oferece
o perfil necessário para o interesse e a capacidade de tal tarefa, a qual tornaria in-
teligível ao mesmo tempo a diversidade e a coerência que caracteriza a coleção
das cartas paulinas”61.

3.6.3. A ancoragem na atividade missionária e a autocompreensão de Paulo

A outra questão, ou seja, a existência de uma escola paulina durante a vida


do apóstolo, é nitidamente mais discutida na pesquisa. A dizer a verdade, a dis-
cussão em torno desse ponto é um tanto inepta. Tornou-se popular (a) afirmar a
existência de uma ou de várias escolas paulinas para o período deuteropaulino,

61. Harry Y. Gamble, The Canon of the New Testament, 40-41 (cf.nota 48). Original inglês: “A
satisfactory theory must give an account of why some letters were lost, some preserved, some ex-
tensively edited, and some newly composed. It must also suggest a realistic context in which Paul’s
literary legacy was cultivated and finally codified in a formal collection. That the responsibility for
this lay with a Pauline school is probable, for such a group furnishes just the sort of constituency
which could have had the interest and the capacity for the task, and which would make intelligible
both the diversity and the coherence of the Pauline letter collection”. Mesma posição em Jean-
Daniel Kaestli, Histoire du canon du Nouveau Testament, 460 (cf. note 48).

459
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
(b) haver ao mesmo tempo muita reticência a respeito da ideia de uma escola de
Paulo durante sua vida, (c) admitir o enraizamento histórico do deuteropaulinis-
mo na atividade do Paulo histórico!62 Backhaus mostrou de modo pertinente (cf.
acima 3.2) que a emergência da escola paulina (ou das escolas paulinas) se dava
organicamente sobre a base da atividade pastoral e missionária e, em particular, da
compreensão apostólica de Paulo. O resto é secundário e depende da imaginação
histórica, sem grande esperança de encontrar respostas às questões concretas,
como a do lugar da escola paulina. Éfeso é uma hipótese atraente, embora inveri-
ficável63. Mas um modelo descentralizado pode ser também considerado (e com-
patível com as escolas filosóficas da Antiguidade!), pois é provável que “estudantes
adiantados” de Paulo estivessem e trabalhassem simultaneamente em diversos lu-
gares, permanecendo em estreito contato com seu mestre. Esse modelo facilitaria,
aliás, a ideia, a meu ver plausível, da emergência de várias “classes”64 ou “alas” no
seio da escola paulina. O que nos leva ao último ponto.

4. “Escola paulina” e pluralidade da recepção da herança paulina

Se há um problema inerente à hipótese da escola paulina é que ela deixa


sugerir — com ou sem razão — um processo de recepção homogênea da herança

62. Cf., por exemplo, Peter Müller, Anfänge der Pauluschule, 321 (cf. nota 1): “As raízes da escola
paulina remontam até a atividade de apóstolo. Resta o fato de que a escola paulina é um fenômeno
da época pós-paulina” (“Ihre Wurzeln reichen in die Wirksamkeit des Apostels selbst zurück. Glei-
chwohl ist ide Paulusschule ein Phänomen der nachpauliniscchen Zeit”; Klaus Scholtissek, Paulus
als Lehrer, 34 (cf. nota 1): “Der Nachweis eines regulären Schulunterrichtes des Paulus in Ephesus
(Korinth oder Rom) lässt sich nicht führen. Von ‘Paulus-Schule’ in einem spezifischen Sinn zu
Legzeiten des Apostels kann deshalb nicht wirklich die Rede sein”;Thomas Schmeller, Schulen im
Neuen Testament?, 182 (cf. nota 1): “Von einer Paulusschule zu Lebzeiten des Apostels ist nur mit
grossen Vorbehalten zu sprechen”, mas concedendo: “[…] aber Ansätze einer Schulbildung sind
nicht zu leugnen” (184).
63. Hipótese defendida por Hans Conzelmann, Die Schule des Paulus, 88 (cf. nota 1); Udo
Schnelle, Einleitung in das Neue Testament, 50 (cf. nota 1). A metrópole da província Asia desempe-
nhava um papel importante para o cristianismo paulino. Foi lá que o casal Prisca e Áquila trabalhou
(At 18,19-21; 1Cor 16,19). Em nenhuma outra cidade Paulo ficou tanto tempo como em Éfeso
(por cerca de dois anos e meio, segundo At 19,8.10). Segundo Atos 19,9 (cf. nota 57), Paulo fez um
ensinamento regular “aos discípulos” na “escola de Tiranos”. Em Éfeso, Paulo não redigiu apenas 1
Coríntios (cf. 16,8), mas provavelmente também 2 Coríntios (na maior parte, em todo caso), e
eventualmente outras cartas.
64. Hans-Josef Klauck (Die antike Briefliteratur und das Neue Testament [cf. nota 40]), levando a sério
o trabalho de Peter Müller (Anfänge der Paulusschule [cf. nota 1] [comparação entre 2 Tessalonicenses
e Colossenses]), observa: “Wenn man den Autor [isto é, de 2 Tessalonicenses] in einer Paulusschule
ansiedelt, muss man sofort hinzufügen, dass diese Schule verschiedene ‘Klassen’ hatte, denn mit den
Paulusschülern, die Kol und Eph verantworteten, weist er kaum Gemeinsamkeiten auf ” (301).

460
VII – Paulo depois de Paulo
de Paulo. Há, decerto, denominadores comuns da literatura deuteropaulina. O elo
mais importante consiste no cuidado de preservar a herança de seu fundador em
contextos mais ou menos tensos com a referência explícita à sua autoridade, agora
incontestável. Mas, à parte esses denominadores comuns, observamos uma clamo-
rosa diversidade: procedimentos literários diferentes (2 Tessalonicenses é uma imi-
tação deliberada, embora um tanto “mecânica”, de 1 Tessalonicenses; Efésios é
uma “segunda versão ampliada e melhorada” de sua irmã maior, ou seja, Colos-
senses etc.); modos de argumentação sensivelmente diferentes (2 Tessalonicenses:
combate contra a espera da iminência da parusia, levada ao extremo — “o dia do
Senhor já está aqui!” —, reatualizando um quadro de compreensão estritamente
apocalíptico: cf. 2,1-12; Colossenses e Efésios: reescrita inovadora da teologia
paulina, com recurso parcial a tradições pré-paulinas65); opções teológicas diver-
gentes, até mesmo conflitantes. Essas divergências tornam necessária, a meu ver, a
noção hermenêutica do “conflito das interpretações” (exemplo clássico: a dife-
rença notória em matéria de escatologia entre, de uma parte, Colossenses e Efé-
sios [escatologia presenteísta] e, de outra, as epístolas pastorais, perceptível na
questão da ressurreição espiritual dos crentes66; cf. 2Tm 2,18 versus Cl 2,12-13; 3,1;
Ef 2,5-6; 5,14)67. Há muito ainda por fazer aqui. Para traçar a história da escola
paulina em toda a sua diversidade seria necessário de modo especial elaborar uma
“tipologia teológica” da literatura deuteropaulina. Mas isso seria assunto de outra
contribuição!

65. Cf. a esse respeito meu ensaio sobre a compreensão da cruz em Colossenses: Das Verständnis
des Kreuzes Jesu im Kolosserebrief, in Andreas Dettwiler, Jean Zumstein (Hrsg.), Kreuzestheologie
im Neuen Testament, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, 81-105, espec. 103 (WUNT 151). Com refe-
rência mais global ao método da recepção da teologia paulina: Helmut Merklein, Paulinische
Theologie in der Rezeption des Kolosser- und Epheserbriefes, in Karl Kertelge (Hrsg.), Paulus in
den neutestementlichen Spätschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen Testament, Freiburg/Basel/Wien,
Herder, 1981, 25-69 (QD 89). Mereceria ser corrigida, todavia, sua tese principal, segundo a qual
Colossenses e Efésios não dariam uma interpretação criadora da teologia paulina, mas essencial-
mente uma “paulinização” do material tradicional.
66. Quanto a Colossenses, ver minha contribuição: La résurrection des croyants selon l’Epître
aux Colossiens, in Odette Mainville, Daniel Margherat (éd.), Résurrection. L’après-mort dans le
monde ancien et le Nouveau Testament, Genève, Labor et Fides, 2001, 307-320 (Le Monde de la
Bible 45).
67. Nesse sentido também Annette Merz, Die fiktive Selbstauslegung des Paulus. Intertextuelle
Studien zur Intention und Rezeption der Pastoralbriefe, Göttingen/Fribourg, Vandenhoeck &
Ruprecht/Academic Press, 2004, 208-222 (NTOA 52): as pastorais como documento que reflete
uma batalha em torno da interpretação adequada da herança paulina; noção da “continuidade con-
troversa” (por exemplo, 209). Mais prudente: Samuel Vollenweider em sua contribuição neste
volume: Paulo entre exegese e história da recepção, espec. 476-478.

461
A escola paulina: avaliação de uma hipótese
Paulo entre exegese e história da recepção
Samuel Vollenweider (Zurique)

quot homines tot sententiae


Terêncio, Fórmio 454

O autor tenta reconstruir alguns traços da pessoa e da atividade de Paulo pelo prisma da
“história dos efeitos” (Wirkungsgeschichte). Advoga a pluralidade das interpretações de
Paulo, sem minimizar, todavia, o papel da doutrina da justificação.

N o fim de um ciclo de pesquisa sobre a teologia de Paulo é prudente abordar


a questão da relação entre exegese e história da recepção. Com efeito, na
hermenêutica da modernidade tardia, uma convicção se impõe cada vez mais: a
história da recepção não é um apêndice sem importância da interpretação histó-
rico-crítica da Bíblia, mas, ao contrário, uma disciplina indispensável e epistemo-
logicamente pertinente no conjunto dos métodos histórico-críticos. Se uma das
principais virtudes da história da recepção é evidenciar o caráter perspectivista das
diferentes posições interpretativas e relativizar sua pretensão à verdade, isso vale de
modo todo especial no caso do apóstolo das nações. Com efeito, quando nos de-
bruçamos sobre a história da recepção de Paulo, de sua pessoa e de sua obra,
confrontamo-nos com uma diversidade desconcertante. Desde o início, a figura
de Paulo deu origem a uma história da interpretação complexa e rica de tensões,
mas que em boa parte é conhecida apenas de maneira superficial.

463
A questão que eu gostaria de explorar nas páginas a seguir é saber se pode
haver uma interação fecunda entre a história da recepção e a exegese — sendo a
exegese a forma essencialmente ocidental e acadêmica da interpretação de Paulo
na virada do século XX para o XXI. Numa primeira parte, examinarei três novas
orientações da pesquisa recente sobre Paulo e tentarei situá-las na corrente mais
ampla das interpretações anteriores. Numa segunda parte, debruçar-me-ei sobre
as possibilidades e as dificuldades hermenêuticas de uma interpretação de Paulo
que pretende ser autocrítica1.

1. Perspectivas novas e antigas sobre Paulo

A partir dos anos de 1960 e 1970 produziram-se na pesquisa paulina pelo


menos três importantes reviravoltas que ainda hoje prendem a atenção dos exege-
tas. Simplificando um pouco, podemos distinguir três marcantes retratos de Paulo,
que se tornaram muito atraentes e plausíveis aos olhos de numerosos exegetas:
primeiro, Paulo como figura ecumênica; segundo, Paulo como homem da Anti-
guidade; terceiro, Paulo, o judeu. Examinaremos com atenção, embora brevemen-
te, cada um desses retratos. Tentarei a seguir, a partir desses diferentes debates da
época moderna, lançar uma luz pontual sobre certos fenômenos da recepção de
Paulo. Limitar-me-ei essencialmente a alguns traços da recepção de Paulo na
Igreja antiga, que têm, entretanto, certo valor paradigmático. Num terceiro mo-
mento, perguntarei, a propósito de cada um desses exemplos, sobre as consequên-
cias que deles poderiam derivar para a exegese.

1.1. Paulo como figura ecumênica

A interpretação de Paulo, que desde a Reforma esteve fortemente marcada


por posicionamentos ligados às controvérsias teológicas, dá amplo lugar hoje a
uma concordância ecumênica. A abertura da Igreja Católica Romana à pesquisa
histórico-crítica, a partir do Vaticano II, acabou numa colaboração entre exegetas
protestantes e católicos particularmente bem ilustrada pelas coleções de comen-
tários EKK (Evangelisch-katholischer Kommentar) e ÖTBK (Ökumenischer
Taschenbuch-Kommentar). Os recentes debates na Alemanha sobre o estatuto da
justificação mostram, todavia, que os antigos conflitos podem surgir aqui e ali2

1. Para o conjunto dessa temática, inclusive a história da recepção, ver meu artigo: Paulus,
RGG4 6 (2003) col. 1.035-1.065.
2. Do ponto de vista exegético, ver Thomas Söding (Hrsg.), Worum geht es in der Rechtfertiguns-
lehre? Das biblische Fundament der “Gemeinssamen Erklärung” von katholischer Kirche und Lu-

464
VII – Paulo depois de Paulo
— sem falar no fato de que se pode perguntar se a exegese neotestamentária tem
ainda alguma contribuição a dar para a orientação dos diálogos ecumênicos.
Se lançamos um olhar para a história, é impressionante a constatação de que
as controvérsias teológicas se apoiavam facilmente na antítese que opunha os dois
principais apóstolos, Pedro e Paulo. O enfrentamento dos dois apóstolos no episó-
dio de Antioquia (Gl 2,11-14) prefigurava aos olhos de Lutero o conflito entre a
Igreja romana e o Evangelho da justificação, ou entre o papa e o reformador.
­Lutero se identificou com Paulo para demolir, a partir da Bíblia, o primado e a
infalibilidade do papa como vicarius Petri. O episódio de Antioquia foi elevado
aqui ao patamar de programa de história da Igreja. A história da interpretação de
Gálatas 2,11-14 é, aliás, um tema dos mais apaixonantes, pelo menos no domínio
da Igreja antiga3.
O conflito entre os dois “príncipes” dos apóstolos em Antioquia chama nos-
sa atenção para a necessidade de considerar uma questão bem mais ampla, a da
relação entre Pedro e Paulo4. A tendência geral é claramente perceptível desde os
primeiros tempos da Igreja: os dois apóstolos são postos em relação um com o
outro quer no modelo de uma parataxe, quer também, com muito mais raridade,
no modelo de uma subordinação de Paulo a Pedro. No Novo Testamento já se
estabelecem normas decisivas. Pedro representa os Doze na primeira parte do li-
vro dos Atos, ao passo que a história do cumprimento continua, graças a Paulo na
segunda parte, nitidamente mais longa. Já se perguntou se a leitura de 1 Pedro não
deveria ser posta sob o signo de uma harmonia entre os dois apóstolos, pois a carta

therischem Weltbund, Freiburg, Herder, 1999 (QD 180); Id., Der Skopos der paulinischen
­Rechtfertigungslehre, ZThK 97 (2000) 404-434.
3. Ver em especial: Karl Holl, Der Streit zwischen Petrus und Paulus zu Antiochien in seiner
Bedeutung für Luthers innere Entwicklung, in Gesammelte Aufsätze zur Kirchengeschichte, Tübingen,
Mohr Siebeck, 1928, v. 3, 134-146;Volker Stolle, Luther und Paulus, Leipzig, Evangelische Verlag-
sanstalt, 2002, 94-96 (ABG 10); além disso: Gerhard May, Der Streit zwischen Petrus und Paulus in
Antiochien bei Markion, in Walter Komolka, Otto Ziegelmeier (Hrsg.), Von Wittenberg nach Mem-
phis. Festschrift für Reinhard Schwarz, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1989, 204-209; Ralph
Hennings, Der Briefwechsel zwischen Augustinus und Hieronymus und ihr Streit um den Kanon des Alten
Testaments und die Auslegung von Gal. 2,11-14, Leiden, Brill 1994, 218-264 (SVigChr 21); Alfons
Fürst, Origenes und Aphräm über Paulus’ Konflikt mit Petrus (Gal. 2,11/14), in Manfred Wacht
(Hrsg.), Panchaia. Festschrift Klaus Thraede, Münster, Aschendorff, 1995, 121-130 (JbAC.E 22).
4. Cf. Lothar Wehr, Petrus und Paulus — Kontrahenten und Partner. Die beiden Apostel im Spie-
gel des Neuen Testaments, der Apóstolischen Väter und früher Zeugnisse ihrer Verehrung, Münster,
Aschendorff, 1996 (NTA.NF 30); com referência a 1 Pedro, cf. Jens Herzer, Petrus oder Paulus?
Studien über das Vehältnis des ersten Petrusbriefes zur paulinischen Tradition, Tübingen, Mohr
Siebeck, 1998 (WUNT 103); com referência a 2 Pedro, cf. Thomas J. Krauss, Sprache, Stil und his-
torischer Ort des zweiten Petrusbriefes, Tübingen, Mohr Siebeck, 2001 (WUNT II/136).

465
Paulo entre exegese e história da recepção
associa uma linguagem paulina, de concepções e de colaboradores paulinos, a
uma pseudepigrafia petrina. Mas, de fato, não encontramos nela nenhum indício
sério da presença de tal programa. 1 Pedro não faz mais que atestar a influência da
teologia paulina na Ásia Menor do século I. Já em 2 Pedro é diferente: aqui, Pedro
e Paulo (2Pd 3,15-16!) são apresentados como autoridades altamente respeitáveis.
Paulo é vinculado à tradição da Igreja universal representada por Pedro, a fim de
protegê-la contra o perigo de uma interpretação gnosticizante (no que se trata da
escatologia e da compreensão da liberdade, por exemplo).
A tendência em questão, que há pouco por várias vezes desqualificamos, ta-
chando-a de “protocatólica”, continuou a estar presente na literatura e na história
da piedade — em particular na tradição da cidade de Roma, a qual acabou por se
orgulhar do duplo martírio de Pedro e de Paulo, cujo primeiro testemunho é o de
1 Clemente5. Os dois martírios, originalmente transmitidos de modo separado,
serão progressivamente harmonizados, chegando até a uma sincronização ideal,
segundo a qual a execução deles teria ocorrido no mesmo dia6. Essa tendência se
reflete também no cânon do Novo Testamento: o corpus paulino está aí associado
não somente às cartas católicas, mas também aos evangelhos, nos quais Pedro de-
sempenha um papel preponderante (sobretudo em Marcos e Mateus). Entretanto,
a tradição romana atesta claramente a tendência a evidenciar a ecumenicidade de
Paulo ao afirmar sua subordinação a Pedro7.

5. 1 Clem 5; com referência ao culto, cf. Hans-Georg Thümmel, Die Memorien für Petrus und
Paulus in Rom, Berlin, de Gruyter, 1999 (AKG 76). O desenvolvimento do material dos Atos apó-
crifos mostra como tradições, amplamente separadas na origem progressivamente foram se imbri-
cando. Ver em especial a redação secundária das Acta Petri (Acta Vercellenses; CANT 190.III) 1-3
(sobre o assunto, cf. Gérard Poupon, Les “Actes de Pierre” et leur remaniement, ANRW II, 25.6
[1988] 4.363-4.383; Id., Introduction aux Actes de Pierre, in François Bovon, Pierre Geoltrain
[éd.], Ecrits apocryphes chrétiens, Paris, Gallimard, 1997, v. I, 1.042 [Pléiade]), segundo a qual Pedro é
levado à morte un ano antes de Paulo.Ver mais tardiamente a Passio apostolorum Petri et Pauli (Acta
Petri et Pauli; CANT 193), a Passio Petri et Pauli de Pseudo-Hegesippus (CANT 192), a Passio apos-
tolorum Petri et Pauli (CANT 194), as Acta Petri et Pauli orientais (CANT 203) etc. Sobre a questão
historicamente controversa dos túmulos dos apóstolos, cf.: Hans Lietzmann, Petrus und Paulus in
Rom, Bonn, Marcus und Weber, 21927 (AKG 1); Engelbgert Kirschbaum, Die Gräber der Apostelfürs-
ten. St. Peter und St. Paul in Rom, Frankfurt a.M., Societäts-Verlag, 31974.
6. A celebração simultânea dos dois apóstolos no dia 29 de junho levou provavelmente à con-
clusão de que tinham sido postos à morte juntos no mesmo dia (cf. Hans-Georg Thümmel, Memo-
rien, 10 [cf. nota anterior]). Essa ideia encontra-se, por exemplo, no Decretum Gelasianum 3,2 e em
Jerônimo, De viris illustribus 5; já está presente de maneira embrionária em Denis de Corinto
(Eusébio­, HistEccl 2,25,8).
7. A forma mais extrema se encontra num decreto do papa Inocêncio X, claramente dirigido
contra as Igrejas protestantes (24 de janeiro de 1647): o papa… “propositionem hanc […] ita expli-
catam, ut ponat omnimodam aequalitatem inter S. Petrum et S. Paulum sine subordinatione et

466
VII – Paulo depois de Paulo
Esses testemunhos da história da recepção dão destaque à importância da
“coexistência” entre Pedro e Paulo para a Igreja cristã. Como vozes contrárias,
quase não podemos citar senão as cartas pastorais e Marcião, talvez também a carta
aos Colossenses8. A elas se juntam, em sentido contrário, vozes judeu-cristãs
— pouco numerosas e mal conservadas — que rejeitam categoricamente Paulo,
considerado transgressor da lei e pseudoapóstolo9. Para medir a importância da
“coexistência” entre Pedro e Paulo, basta imaginar como a tradição cristã se tor-
naria insignificante sem os relatos dos evangelhos sobre Jesus e, ao contrário, como
a Igreja se sentiria restringida sem o corpus paulino!
Examinemos agora a questão interrogando alguns textos do próprio Paulo.
Mesmo depois do enfrentamento de Antioquia, a harmonia com Pedro deve ter
sido aos olhos de Paulo um elemento ao mesmo tempo importante e natural, pois
Pedro era o avalista das tradições de Jesus e, mais ainda, um companheiro de tra-
balho a serviço do Evangelho. Paulo desejou ardentemente manter os vínculos,
apesar das discordâncias com seus colegas, os outros missionários10. Sua tendência
a desafiar os outros representa apenas um aspecto da realidade, ligado ao seu cui-
dado de defender “a verdade do Evangelho”. O outro aspecto é sua vontade de
colegialidade, que fazia que suas rivalidades pessoais devessem se apagar por trás
da missão comum da pregação do Evangelho (1Cor 15,11; 3,5-11; Fl 1,12-18).
Uma olhada para as tradições das Igrejas gregas e orientais permite comple-
tar o quadro. Nelas se encontra às vezes, especialmente em João Crisóstomo, uma
ideia não concebível no Ocidente de orientação romana: o predomínio de Paulo
sobre Pedro11.
Concluo sobre esse ponto: o novo consenso ecumênico a respeito de Paulo
mostra-se como uma variante da tradição, ricamente representada na história da

subiectione S. Pauli ad S. Petrum in poteste suprema et regimine universalis ecclesiae, haereticam


censuit et declaravit” (segundo Carl MIRGT [éd.], Quellen zur Geschichte des Papsttums und des rö-
mischen Katholizismus, Tübingen, Mohr Siebeck, 51934,381-382, n. 528).
8. Não somente as epístolas pastorais se referem exclusivamente a Paulo, mas elas parecem
mesmo atribuir-lhe a primeira manifestação do Cristo (1Tm 1,15-16); cf. Michael Wolter, Die
Pastoralbriefe als Paulustradition, Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1988, 49-55 (FRLANT 146).
Os marcionitas consideravam Paulo o único apóstolo (segundo Ireneu, Haer 3,13,1).
9. Ver Simon Legasse, L’antipaulinisme sectaire au temps des Pères de l’Eglise, Paris, Gabalda, 2000
(CRB 47).
10.Ver:Thomas Schmeller, Kollege Paulus, ZNW 88 (1997) 260-283; Lothar Wehr, Petrus und
Paulus, 126-127, 377-379 (cf. nota 4).
11.Ver Margaret M. Mitchell, The Heavenly Trumpet: John Chrysostom and the Art of Pauline
Interpretation, Tübingen, Mohr Siebeck, 2000, 394-395 (HUTh 40); a autora remete também à
opção inversa, a saber, a simetria exata dos dois apóstolos, num Pseudo-Crisóstomo.

467
Paulo entre exegese e história da recepção
recepção, que insiste na catolicidade de Paulo, situando-o numa relação complexa
com os outros apóstolos, especialmente com Pedro. Encontra-se no pano de fun-
do a ideia central da complementaridade entre Paulo e as outras testemunhas do
cristianismo primitivo, em particular os evangelhos. Num outro sentido, as Igrejas
devem se perguntar se, em circunstâncias bem determinadas, o Evangelho não
obriga a escolher entre Paulo e as outras testemunhas. Uma teologia do Novo
Testamento deve evidenciar o fato de que Paulo é confrontado com, pelo menos,
três vozes discordantes no cânon neotestamentário: Mateus (em que Pedro como
discípulo é a figura central),Tiago e o Apocalipse de João12. De maneira um tanto
anacrônica e artificial, poderíamos dizer: o Novo Testamento estabelece Paulo
numa unidade rica de tensões com as “colunas”, que são Pedro,Tiago e João!

1.2. Paulo como homem da Antiguidade

De um tempo para cá, constata-se na exegese um vivo interesse por Paulo


como homem da sociedade de seu tempo. Poderíamos falar de uma kulturwissens-
chaftliche perspectiva, que estuda Paulo e suas comunidades urbanas situando-as
no contexto do mundo mediterrâneo. Paulo mostra-se então ao mesmo tempo
como representante da sociedade antiga e crítico de tal sociedade. Nessa perspectiva,
sua teologia da cruz e da justificação pode ser compreendida como uma crítica da
cultura, na medida em que Paulo põe em questão parâmetros de orientação fun-
damentais e escalas de valor da sociedade greco-romana. Convém mencionar
aqui as análises sócio-históricas que evidenciam a enorme importância da classe e
da condição na sociedade da época imperial, ou as análises inspiradas da antropo-
logia cultural, que atribuem um lugar central às categorias de honra e desonra13.
A isso se juntam outros estudos alinhados que procuram explorar o potencial

12. Sobre a orientação antipaulina do Apocalipse, ver Jens-Wilhelm Taeger, Begründetes


Schweigen. Paulus und paulinische Tradition in der Johannesapokalypse, in Micheal Trowitzsch
(Hrsg.), Paulus, Apostel Jesu Christi, Festschrift für Günter Klein zum 70. Geburtstag, Tübingen,
Mohr Siebeck, 1998, 187-204. No que se refere à epístola de Tiago, é uma questão debatida há
muito saber se ela está realmente em reação contra Paulo e sua teologia; questão que tem uma
resposta afirmativa, por exemplo, em Friedrich Avemarie, Die Werke des Gesetzes im Spiegel des
Jakobusbriefs, ZThK 98 (2001) 282-309. O evangelho de Mateus, ao contrário, não parece tomar
posição contra Paulo, ainda que se possa perguntar se as tradições judeu-cristãs que ali estão não
refletem controvérsias a respeito do Evangelho paulino (Mt 5,17-19; evidentemente 13,25).
13. Penso nos seguintes trabalhos: Bruce J. Malina, Jerome H. Neyrey, Portrats of Paul: An Ar-
chaeology of Ancient Personality, Louisville (KY), John Knox Press, 1996; Daniel Boyarin, A Ra-
dical Jew: Paul and the Politics of Identity, Berkeley, University of California Press, 1994; Christian
Strecker, Die liminale Theologie des Paulus. Zugänge zur paulinischen Theologie aus kulturanthro-
pologischer Perspektive, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1999 (FRLANT 185); Ben

468
VII – Paulo depois de Paulo
emancipador presente nos textos de Paulo e em suas comunidades14. A teologia
paulina pode assim ser entendida como teoria crítica, que se mantém distante de
uma interpretação de Paulo tradicional e conservadora.
Consideremos de novo alguns exemplos escolhidos na multiplicidade dos
retratos e interpretações tradicionais de Paulo. Na abundância das vozes que se
nos oferecem, considerarei três testemunhos bem diferentes provenientes da
Igreja antiga.
Pelo fim do século II, o Martírio de Paulo, que constitui a seção final dos Atos
dos Apóstolos, põe claramente em evidência a oposição entre o Império Romano
e o Reino de Deus, mediante o confronto entre o imperador Nero e Paulo. O
apóstolo e seus seguidores dão destaque ao contraste entre o poder militar do
princeps romano e o reino do rei Jesus Cristo; o reino terrestre de Roma cedo
perecerá pelo fogo. O poder de Deus vivo é demonstrado por milagres, em parti-
cular pelo fato de que Paulo, após sua morte, se manifesta a Nero. A linha violen-
tamente antirromana do Martírio de Paulo distingue-se nitidamente da “apologéti-
ca política” dos Atos dos Apóstolos e reflete aparentemente as experiências
terríveis do reino de Nero perseguidor dos cristãos. Essa posição crítica tem seu
equivalente nas outras partes dos Atos de Paulo, na medida em que a continência
sexual sobressai como motivo principal da pregação de Paulo e encontra ampla
repercussão, em particular entre as mulheres. É interessante constatar que não se
encontra nenhuma referência explícita a textos paulinos, quer no Martírio, quer
nas outras partes dos Atos de Paulo15. É verdade que a tendência crítica em relação
a Roma não poderia encontrar em Paulo senão alguns pontos de apoio indiretos
— fortemente contrabalançados não somente por Romanos 13, mas também
pelas epístolas pastorais (1Tm 2,2), então consideradas paulinas. Em contrapartida,
1 Coríntios 7 ofereceria à ascese um sólido ponto de apoio, mas contrabalançado,
por sua vez, por Efésios 5,22-33 e pela tendência das epístolas pastorais.
Saltemos para o fim do século IV, em que encontramos João Crisóstomo,
que pronuncia sete panegíricos do santo apóstolo Paulo por ocasião da festa do

­ itherington III, The Paul Quest: The Renewed Search for the Jew of Tarsus, Downers Grove
W
(IL), InterVarsity Press, 1998.
14. Por exemplo: Neil Elliott, Liberating Paul:The Justice of God and the Politics of the Apostle,
Maryknoll (NY), Orbis Books, 1994; Claudia Janssen, Luise Schottroff, Beate Wehn (Hrsg.),
Paulus: Umstrittene Traditionen — lebendige Theologie. Eine feministische Lektüre, Gütersloh, Kaiser/
Gütersloher Verlagfshaus, 2001.
15. Cf. Dennis R. MacDonald, Apocryphal and Canonical Narratives about Paul, in William S.
Babcock (ed.), Paul and the Legacies of Paul, Dallas, Southern Methodist University Press, 1990,
55-70, espec. 57-63. Deve-se, todavia, observar a alusão a 1 Coríntios 7,29 em ActPaulThecl 5 (éd.
Lipsius-Bonnet, 238,16-17).

469
Paulo entre exegese e história da recepção
Natal em Antioquia16. O retrato de Paulo feito por João Crisóstomo recebeu re-
centemente o tratamento que merecia, graças ao estudo de Mitchell. Os discursos
de João, porta-voz eminente da Igreja do Oriente, oferecem um interesse todo
particular, pois quebram a limitação de certas percepções ocidentais. Hoje, nós
nos interessamos pelo modo como Crisóstomo apresenta Paulo, pregador da cruz,
em particular pelo acento muito forte que ele põe no significado “antropológico”
(kulturanthropologisch) da cruz17. João expõe de maneira brilhante esse paradoxo: a
cruz e a morte são o que há de mais infame e repugnante — e, todavia, o mundo
inteiro acorre em massa para elas. Crisóstomo estabelece então uma ligação com
Paulo, o operário do couro (ele fornece de passagem uma informação interessan-
te a respeito do “fabricante de tendas”18); sua condição social é descrita como ex-
tremamente baixa — ele é um ivdiw,thj (cf. 2Cor 11,6!), sem cultura, vive numa
profunda pobreza e é precisamente assim que se revela ser verdadeiro filósofo. O
discurso inflamado de Paulo extravasa pelo poder de persuasão e conquista toda a
terra habitada. É interessante salientar que as homilias de Crisóstomo, que recor-
rem ao paradoxo, realizam a própria ação de que falam: todos os registros da retó-
rica da Antiguidade tardia são convocados a serviço de uma causa que derruba
totalmente as orientações fundamentais dessa época19. Isso se manifesta também
na maneira como João, o asceta, situa a sociedade urbana de seu tempo diante das
elevadas exigências em matéria de ética social20.
Voltemos ao próprio Paulo. Os primeiros capítulos de 1 Coríntios operam
uma reviravolta bem semelhante. A negação da sabedoria do mundo e de sua re-
tórica caminha junto com o emprego por Paulo de uma retórica extremamente

16. Edição do texto em Auguste Piedagnel, Jean Chrysostome. Panégyriques de s. Paul (SC 300),
Paris, Cerf, 1982.Ver Margaret M. Mitchell, The Heavenly Trumpet, 137-172 (cf. nota 11).
17. João Crisóstomo, De laudibus Pauli, 4,7-20 (SC 300, 196-226).
18. João Crisóstomo, De laudibus Pauli, 4,10 (202-203): o fabricante de tendas (skhnopoio,j) é
um homem que exerce o ofício de curtidor de peles (peri. de,rmata th.n te,cnhn e;cwn); ver também
João Crisóstomo, in Eutropium eunuchum 2,14 (PG 52, 409): o` skhnopoio,j, o` smi,lhn
metaceirizo,menoj, kai. de,rmata r`a,ptwn; ad eos qui scandalizati sunt 20,10 (SC 79,248): e-ij
skhnorra,foj, peri. de,rmata hvscolhme,noj; hom 20,6 in 1 Cor (PG 61, 168): evpi. skhnorvr`afei,ou
e`stw.j, de,rmata e;rvr`apte; hom 1,2 in Hebr (PG 63,15): avpo. th/j smi,lhj ga.r kai. tw/n derma,twn, h;
tou/ evrgasthri,ou; hom in 2Cor 5,17 (PG 64,25): o` skhnopoio,j, o` evp’ avgora/j e`sthkw.j, o` de,rmata
r`a,ptwn. Essas informações importantes, fornecidas por um habitante de uma cidade da Antiguida-
de, não foram levadas suficientemente em consideração na pesquisa (Ronald F. Hock, The Social
Context of Paul’s Ministry: Tentmaking and Apostleship, Philadelphia, Fortress Press, 1980; Peter
Lampe, Paulus — Zeltmacher, BZ 31 [1987] 256-261).
19. Cf. Margaret M. Mitchell, Rhetorik, RGG4 7 (2004) col. 494-496.
20. Ver Adolf Martin Ritter, John Chrysostom as an Interpreter of Pauline Social Ethics, in
William S. Babcock, Paul and the Legacies of Paul, 183-192 (cf. nota 15).

470
VII – Paulo depois de Paulo
eficaz, ainda que ela não se conforme com as normas escolares da retórica antiga.
Esse uso paulino da retórica quer visar ao que constitui o ápice da filosofia aos
olhos da Antiguidade tardia: o conhecimento de Deus. Essa combinação cheia de
tensão entre conformidade com a cultura antiga e resistência a essa cultura (ex-
pressa de maneira programática em Rm 12,1-2) não deixou de ter importantes
repercussões na história da recepção; até produziu, no caso de João Crisóstomo,
um desenvolvimento animado de um gênio igual ao de Paulo.
Observo aqui, de passagem, que outra tendência da pesquisa atual, o rhetorical
criticism, teria toda vantagem em considerar estudos sobre a história da recepção21.
Certas hipóteses audaciosas sobre a estratégia retórica das cartas de Paulo pode-
riam ser verificadas ao se apelar para a autoridade dos Padres da Igreja que tinham
recebido uma formação retórica.
Para terminar, olhemos para Agostinho, contemporâneo famoso de João no
Ocidente latino.Agostinho se inscreve também ele no contexto do vigoroso renas-
cimento do pensamento paulino que se observa tanto no Oriente como no Oci-
dente na segunda parte do século IV. Serei breve nesse ponto22. Paulo exerceu uma
influência sobre Agostinho pelo menos em dois momentos cruciais de sua vida23.
Em primeiro lugar, sua vocação, de 386, é posta totalmente sob o signo de Platão e
do apóstolo. O platonismo cristão de seu período milanês tem por objeto a ascen-
são da alma para Deus e a libertação do homem interior da prisão pelos sentidos. A
filosofia e o apóstolo acabam se fundindo no ideal de uma síntese entre mundo
antigo e cristianismo, entre cultura clássica e vida cristã. Nos anos 390, Agostinho,
sob a influência de um estudo intensivo de Paulo, passa por uma mudança muito
profunda. Em seu combate contra o maniqueísmo, depois contra os pelagianos, ao
se apoiar uma vez mais sobre uma nova leitura de Paulo, volta resolutamente as
costas ao ideal da cultura clássica e à antropologia antiga em geral. Descobre o mal

21. Para um estudo exemplar a esse respeito, ver Margaret M. Mitchell, Reading Rhetoric
with Patristic Exegetes, in Adela Y. Collins, Margaret M. Mitchell (ed.), Antiquity and Humanity:
Essays on Ancient Religion and Philosophy presented to Hans Dieter Betz on his 70th Birthday,
Tübingen, Mohr Siebeck, 2001, 333-355.
22. Ver, por exemplo, Peter Brown, Augustinus von Hippo, trad. al., Frankfurt, Societäts-Verlag,
2
1982, 88-96, 130-136, 308, 324-325; Caroline P. Bammel, Tradition and Exegesis in Early Christian
Writers, Aldershot, Variorum, 195, n. 16-17 (CStS 500); Paula Fredriksen, Augustine on Romans,
Chico (CA), Scholar Press, 1982 (ECLS 6); Id., Beyond the Body/Soul Dichotomy: Augustine’s
Answer to Mani, Plotinus, and Julian, in Willian S. Babcock (ed.), Paul and the Legacies of Paul, 227-
251 (cf. nota 15); Margaret M. Mitchell, The Heavenly Trumpet, 411-423 (cf. nota 11).
23. Como maniqueu, Agostinho não tinha encontrado ainda o acesso à Bíblia (Confissões 3,5:9).
Somente no contexto de sua conversão é que a leitura de Paulo será decisiva; ver Confissões 7,21:27;
8,12:29 (com a citação de Rm 13,13-14); Contra Academicos 2,2,5-6 (“tunc vero […] se mihi phi-
losophiae facies aperuit”).

471
Paulo entre exegese e história da recepção
inextirpável que habita no homem, a tensão perpétua entre a carne e o Espírito,
entre o homem exterior e o homem interior. Em sua polêmica contra os pelagia-
nos, Agostinho lê Romanos 7 como um texto que descreve a existência dos cris-
tãos (diferentemente de sua própria interpretação mais antiga, que referia o texto à
condição pré-cristã). O “eu” de Paulo convida assim a uma leitura autobiográfica.
Ao mesmo tempo, Agostinho atribui um lugar central a Paulo, o perseguidor, cha-
mado por Deus a se tornar apóstolo.Toma como modelo de sua própria conversão
a figura exemplar do perseguidor que Deus chamou sem razão. Agostinho faz a
experiência do poder da ação divina, da graça de Deus, que precede todas as obras:
Paulo é sua testemunha principal quando se trata de estabelecer a importância ili-
mitada da graça de Deus, que produz o querer bem (1Cor 4,7; Fl 2,12-13; Rm 9,16;
11,36). Aos nossos olhos, o ponto decisivo é constatar que Agostinho, graças a
Paulo, esteve na origem de uma nova época, ao pôr em questão e descartar a paideia
clássica e cristã, quando os pelagianos, que se remetiam também eles a Paulo, de-
fenderam o ponto de vista tradicional, naturalmente otimista — ao se fundarem,
aliás, de modo explícito na interpretação que João Crisóstomo dava de Paulo.
Não é difícil dar-se conta de que as duas etapas da leitura agostiniana de
Paulo revelam configurações que ainda hoje reconhecemos como elementos
de tensão inerentes à teologia paulina. Encontramos na biografia de Agostinho,
sob forma separada, o que em Paulo deve ser interpretado como dois aspectos
unidos um ao outro de maneira complexa: de um lado, Paulo mestre de retórica,
condutor de almas e místico; de outro, Paulo resolutamente teocêntrico, que re-
flete, a partir de Deus, a respeito da graça, da predestinação, da liberdade e da jus-
tificação. Observo aqui, de passagem, que a história da recepção tornou-se ainda
mais complexa pelo fato de que os maniqueus da África do norte, bem como os
pelagianos apelavam também com vigor para a autoridade de Paulo.

1.3. Paulo, o judeu

A mudança mais prenhe de consequências na pesquisa recente sobre Paulo


apresenta-se geralmente sob a etiqueta programática de new perspective. Contento-
me em ressaltar que essa “nova perspectiva”, pelo simples fato de se manter distan-
te em relação a uma perspectiva “antiga”, põe em jogo ex negativo um critério que
depende claramente da história da recepção: é preciso libertar Paulo do espartilho
da interpretação nascida da Reforma24. A new perspective quer romper fundamen-

24. Ver Krister Stendahl, Der Jude Paulus und wir Heiden. Anfragen an das abendländische
Christentum, München, Kaiser, 1978 (KT 36); or. ingl.: Paul among Jews and Gentiles, London, SCM

472
VII – Paulo depois de Paulo
talmente com a leitura agostiniana e reformada de Paulo. Ela descobre Paulo
como judeu, como apóstolo de Israel, ou mesmo como apóstolo para Israel25.
Uma olhada sobre a história (ou as histórias) da recepção de Paulo dá plena-
mente razão à afirmação da novidade proclamada por esse programa exegético. De
fato, a dedicação constante de Paulo a Israel, seu povo, foi amplamente negligencia-
da em razão da história conflitante das relações entre o judaísmo e o cristianismo
— ainda que se possam esperar encontrar algumas zonas de luz isoladas no rico
campo da história da recepção de Romanos 9–11.Temos de mencionar em parti-
cular a epístola aos Efésios, que considera que a obra principal do apóstolo reside
na unidade da Igreja constituída de judeus e de pagãos (Ef 2,11-22; 4,1-6).Todavia,
mesmo essa epístola não manifesta nenhum interesse pela ideia de Israel. Na Igreja,
Paulo foi celebrado desde a origem quase que exclusivamente como apóstolo dos
pagãos. Essa característica aparece, primeiro, com muito vigor em Colossenses e nas
pastorais, e continua a orientar fundamentalmente a imagem de Paulo depois, em
particular na literatura encomiástica e hagiográfica — ela pode com certeza en-
contrar um sólido ponto de apoio na compreensão que Paulo teve dele mesmo.
Temos de perguntar se a reavaliação da crítica paulina da Lei que caracteriza
a new perspective está prefigurada, pelo menos ela, na história da recepção. A manei-
ra como a new perspective concentra sua atenção nos mandamentos rituais e cul-
tuais — como identity markers — faz pensar, de longe, nas diferenciações no inte-
rior da Lei que foram propostas na Igreja antiga, sobretudo no século II, em
particular na distinção entre lei moral e lei cerimonial26. Mas se olhamos mais de
perto as convergências se reduzem um tanto. Primeiramente, as diversas distin-
ções dentro da Lei que encontramos em Justino, em Ptolomeu, o gnóstico, ou em
Ireneu não podem ser reduzidas à oposição entre “lei moral” e “lei cerimonial”27,
mas combinam, cada uma à sua maneira, concepções antigas do direito natural
com certas decisões exegéticas. Em segundo lugar, em Justino e em Ptolomeu, os
textos paulinos não exercem nenhum papel de formação28. E, em terceiro lugar,

Press, 1977. Particularmente importantes para a new perspective são James D. G. Dunn, Jesus, Paul and
the Law, London, SPCK, 1990; Id., The Theology of Paul the Apostle, Grand Rapids (MI)/Cambridge,
Eerdmans, 1998; cf. Christian Strecker, Paulus aus einer “neuen Perspektive”, Kirche und Israel 11
(1996) p.3-18.
25.Ver James D. G. Dunn, Paul, Apostate or Apostle of Israel?, ZNW 89 (1998) 256-271.
26. Ver Uwe Kühneweg, Das neue Gesetz. Christus als Gesetzgeber und Gesetz, Marburg,
Elwert, 1993 (MThSt 36).
27. Cf. Rolf Noormann, Irenäus als Paulus-Interpret, Tübingen, Mohr Siebeck, 1994, 394 ss.
(WUNT II/66).
28. Cf. Andreas Lindemann, Paulus im ältesten Christentum, Tübingen, Mohr Siebeck, 1979, 342
(BHTh 58).

473
Paulo entre exegese e história da recepção
falta, antes de mais nada, nesses autores antigos o forte acento sociológico e ecle-
siológico que caracteriza a new perspective.
Se olhamos do lado da história da recepção da doutrina paulina da justifica-
ção em geral, vemo-nos diante de uma dificuldade bem conhecida: essa história
deve ser escrita, sobre longos períodos, como a história de uma ignorância ou de
uma reinterpretação profunda, quando não de uma incompreensão total. Essa si-
tuação podia de fato dar razão à new perspective, na medida em que ela situa a dou-
trina da justificação numa situação histórica específica das primeiras comunidades,
que devia bem cedo ser ultrapassada pelo desenvolvimento da história.Todavia, os
poucos ecos da doutrina da justificação que encontramos na época pós-apostólica
mostram, antes, que essa doutrina, se cessou de estar no centro da reflexão, jamais
foi reduzida a significar a incorporação dos pagãos no seio de Israel29.
A volta aos textos de Paulo, que constitui cada vez o terceiro momento de
nosso processo, leva-nos agora a uma avaliação mais completa da new perspective,
considerando-se a história da recepção. Num plano geral, temos de nos pôr a se-
guinte questão: o interesse hoje tão forte pelos temas sociológicos, em detrimento
dos temas propriamente teológicos, que caracteriza também a new perspective, não
faz perder o potencial hermenêutico extraordinário do pensamento de Paulo?
Convém, primeiro, levar em consideração o fato de que a “nova perspectiva” põe
o acento num ponto decisivo: a doutrina paulina da justificação tem um Sitz im
Leben específico, que é a missão entre os pagãos. Mas a new perspective subestima a
importância da universalização antropológica que Paulo realiza em Gálatas e so-
bretudo em Romanos. A oposição entre as “obras (da Lei)” e a “fé em Jesus
Cristo” (Gl 2,16; Rm 3,20.27-28), formulada no contexto da polêmica contra os
adversários judaizantes (Gl 2,11-14), decerto está em relação, primeiro, com a
superação da diferença étnica (marcada pela circuncisão, pelas regras alimentares
etc.). Mas as categorias universais (“todo homem”, “toda carne”) mostram que a
visão central é o problema fundamental da relação com Deus. O mesmo acontece
com “a própria justiça” (Rm 10,3 ss.; Fl 3,9) e com o “gloriar-se”, que Paulo con-
sidera o pecado dos judeus. As duas expressões designam primeiro o fato de se
referir ao privilégio de Israel como destinatário da Lei, que é incompatível com a
vontade de salvação universal de Deus em Cristo. Mas também nesse caso Paulo
vai mais longe: para ele, “gloriar-se” remete a uma realidade antropológica funda-
mental (1Cor 1,29; 4,7) que, no contexto da cultura mediterrânea antiga, deve ser
compreendida no sentido de uma alegação da identidade étnica e da condição

29. Cf. Efésios 2,5.8-10; 2 Timóteo 1,9; Tito 3,5.7; Atos 13,38-39; Tiago 2,14-26 (?!); 1 Clem
32,4; IgnPol 1,3; Diogn 9,3-4.

474
VII – Paulo depois de Paulo
social. Assim, ao olhar do agir criador de Deus em Cristo, Paulo desqualifica, tra-
tando-o como confiança “na carne” (cf. Fl 3,3 ss.), o apego à sua origem e à sua
posição social, ou seja, aos valores deste mundo, e o opõe ao “gloriar-se em Deus”
ou ao “gloriar-se em Cristo” (1Cor 1,31; Rm 5,11). Como membro da sociedade
antiga, é claro que Paulo uniu fortemente a segurança de identidade, que se tor-
nou caduca pelo Evangelho, ao que os homens são “segundo a carne”, kata. sa,rka
(ver, todavia, Rm 4,4-5; 9,16a). Ao contrário, os exegetas de Paulo, na Reforma e
sobretudo na época moderna, puseram mais o acento na produtividade, ou seja,
no que os homens fazem por eles mesmos. A questão que se põe é saber se se trata
de uma contextualização hermeneuticamente justa. Enfim, pode-se também
mostrar que a universalização atua na compreensão paulina da Lei. O apóstolo
pode reduzir o papel da Lei ao de um episódio entre Moisés e Cristo (Gl 3,15-
18.19 ss.; Rm 5,13-14); sua validade não diz respeito senão aos judeus: de Adão a
Moisés, ela não está ainda em vigor (Rm 5,12-21), e, a partir de Cristo, ela não
está mais em vigor (Rm 8,3-4; 10,4). Mas, de outro lado, Paulo eleva o nomos à
condição de uma ordem universal, que diz respeito a todos os homens, tanto os
judeus como os pagãos (Rm 2,14-15; Gl 3,13-14; 3, 23-4,10; Rm 7,7 ss.: Adão);
por Cristo os homens foram libertados dessa ordem. Parece-me que a new perspec-
tive subestima as dimensões antropológicas da teologia paulina, que determinaram
de maneira produtiva a recepção de Paulo, de Ireneu e Orígenes até a Reforma.

2. A interpretação de Paulo sob o signo da história da recepção

2.1. Imagens e textos

A história da recepção traz a lume a riqueza complexa do que Paulo repre-


senta para a Igreja. Mostra que ele foi recebido como figura de identificação,
como texto apostólico de referência e como doutor da Igreja com autoridade. É
ao mesmo tempo documento e monumento30. Estamos aqui em presença de três
conjuntos de representações que se influenciam mutuamente, mas que, por outro lado,
agem também de modo isolado: em primeiro lugar, o retrato do apóstolo, ou seja,
sua biografia; em segundo, seus textos, ou seja, a coleção de suas treze (ou catorze)
cartas canônicas; em terceiro, o fenômeno global constituído pelo apóstolo e sua
teologia. No caso de Paulo, a história da recepção se apresenta, pois, de maneira
mais complicada do que quando podemos nos basear pura e simplesmente nos

30. Ver François Bovon, Paul comme document et Paul comme monument, in Joël Allaz
(éd.), Chrétien en conflit: L’épître de Paul aux Galates, Genève, Labor et Fides, 1987, 54-65; Martinus
C. de Boer, Images of Paul in the Post-Apostolic Period, CBQ 42 (1980) 359-380.

475
Paulo entre exegese e história da recepção
textos. Pelo fato de Efésios (que exerceu uma influência eclesiológica muito for-
te), Colossenses, as epístolas pastorais e, progressivamente, também Hebreus terem
sido considerados textos de Paulo e completados pelos relatos e discursos dos
Atos, a história da recepção do personagem e de sua obra adquiriu uma amplitude
pouco comum.
O campo das imagens de Paulo define o vasto domínio das tradições hagio-
gráficas, litúrgicas e iconográficas em que a influência das epístolas ou da cons-
trução teológica resta geralmente marginal31. Os Atos de Paulo escapam quase
totalmente à marca da linguagem e da teologia paulina, ainda que os autores e os
meios portadores do texto devessem conhecer a coleção das cartas do apóstolo.
Tampouco encontramos nos Atos referência alguma às cartas de Paulo, mas não
penso que se possa tirar dessa constatação a conclusão segura de que Lucas não
as conhecesse32. Muitos escritos cristãos antigos fazem referência a Paulo sem
fazer uso explícito, todavia, de seus textos. Em sentido inverso, a história da re-
cepção das cartas não tem muitas vezes nenhuma relação com uma concepção
qualquer do personagem ou do perfil teológico do apóstolo. As epístolas de
Paulo não são mais que componentes da Sagrada Escritura e, nessa condição, são
amplamente utilizadas tanto nas obras teológicas e exegéticas como em textos de
direito eclesiástico e de liturgia. É apenas em situações bem precisas que o após-
tolo é posto, como pessoa e como pensador, no centro do trabalho teológico,
homilético e catequético; nesses casos, passagens particulares de suas cartas vêm
se integrar numa imagem de conjunto e podem se tornar o catalisador de grandes
reviravoltas na história da Igreja. Assim aconteceu sobretudo em épocas em que
a identidade da Igreja devia ser fundamentalmente redefinida (particularmente
nos séculos I, II, IV e XVI).

2.2. A exegese de Paulo como geradora de controvérsias

A história da recepção, já na época antiga, pode ser reconstruída em boa


parte em termos de conflito em torno da justa compreensão de Paulo. Isso vale de

31. Ver em especial Ernst Dassmann, Der Stachel im Fleisch. Paulus in der frühchristilichen Li-
teratur bis Irenäus, Münster, Aschendorff, 1979; Id., Paulus in frühchristlicher Frömmingkeit und Kunst,
Opladen, Westdeutscher Verlag, 1982 (RhWAW.G 256); Id., Aspekte früchristlicher Paulusve-
rehrung, in Chartulae. Festschrift für Wolfgang Speyer, Münster, Aschendorffsche Verlagsbuchhan-
dlung, 1998, 87-103 (Jahrbuch für Antike und Christentum. Ergänzungsband 28).
32. Ver as passagens “paulinizantes” em Atos 13,38-39; 20,21.24.28.31-32; 26,18; ver também
16,15. 18,9.14.

476
VII – Paulo depois de Paulo
modo evidente para os séculos II e IV, mas pode valer também para os traços mais
antigos da recepção de Paulo no século I.
A primeira referência explícita às cartas de Paulo, em 2 Pedro 3,15-16, mos-
tra que em razão da autoridade incontestável que se reconhece ao apóstolo, tanto
por seus adversários gnosticizantes como pelos ambientes da Grande Igreja, sur-
gira uma querela a respeito da justa interpretação de sua obra. No caso de 2 Pedro,
ela levava à compreensão do fim dos tempos e da liberdade. Isso leva à seguinte
questão: as diferentes “escolas paulinas” se enfrentaram, desde os primeiros decê-
nios depois da morte do apóstolo, a propósito da justa compreensão da autoridade
doutrinal a que se reportavam? Poderíamos fazer aqui um paralelo com a situação
dos meios joaninos, em que, segundo um modelo conhecido, o evangelho de João
era reivindicado tanto por protognósticos como pelo grupo que se exprime nas
cartas joaninas33. A hipótese de um debate exegético precoce pode ser formulada
do seguinte modo: durante os decênios que se seguiram à morte de Paulo, o mo-
vimento paulino se dividiu em várias correntes, uma corrente de “espiritualistas”,
que afirmavam a bondade da criação (representada por Colossenses e Efésios)34,
uma corrente de “ortodoxos” (representados pelas epístolas pastorais) e uma cor-
rente de orientação ascética (quer se trate de protognósticos [cf. 1Tm 1,20; 2Tm
2,17-18; 2Pd 3,16], quer de encratistas [cf. os Atos de Paulo]35). Os textos não per-
mitem, infelizmente, estabelecer tal hipótese com uma segurança suficiente. A
verdade é que se pode reconhecer em outro lugar uma disputa a propósito da
interpretação de Paulo: a segunda epístola aos Tessalonicenses representa uma ten-
tativa de garantir pela pseudepigrafia uma leitura correta de 1 Tessalonicenses;

33. Cf., por exemplo, Jean Zumstein, Zur Geschichte des johanneischen Christentum, in Krea-
tive Erinnerung. Relecture und Auslegung im Johannesevangelium, Zürich, Theologischer Verlag,
2
2004, 1-14 (AThANT 84).
34. Pode-se legitimamente perguntar se a polêmica de 2 Timóteo 2,18 contra pessoas que
creem que “a ressurreição já ocorreu” não visa a meios paulinos que gravitam em torno de Colos-
senses e de Efésios (cf. Cl 2,12 s.; 3,1; Ef 2,5 s.; 5,14). Sobre essa questão, ver Andreas Lindemann,
Paulus im ältesten Christentum, 147 (ver nota 28).
35. Para as hipóteses desse tipo, ver em especial: Dennis R. MacDonald, The Legend and the
Apostle: The Battle for Paul in Story and Canon, Philadelphia, Westminster Press, 1983; Willy Ror-
dorf, Introduction aux Actes de Paul, in François Bovon, Pierre Geoltrain, Ecrits apocryphes chré-
tien, 1.120-1.122 (cf. nota 5); Willy Rordorf, Was wissen wir über Plan und Absicht der Paulu-
sakten?, in Lex orandi, lex credendi. Gesammelte Aufsätze zum 60. Geburtstag, Fribourg,
Universitätsverlag, 1993, 485-493 (Paradois 36); Rainer Schwindt, Das Weltbild des Epheserbriefes.
Eine religionsgeschichtlich-exegetische Studie, Tübingen, Mohr Siebeck, 2002, 503-506 (WUNT
148); ver também a crítica de Gerd Häfner, Die Gegner in den Pastoralbriefen und die Paulu-
sakten, ZNW 92 (2001) 64-77. Michael Wolter (Die Pastoralbriefe als Paulustradition, 264-265 [cf.
nota 8]) faz observar que não há indícios que pudessem mostrar que os adversários das epístolas
pastorais tenham visto a eles mesmos como paulinos.

477
Paulo entre exegese e história da recepção
parece que ela se mantém distante de qualquer aproximação com um outro escri-
to pseudepigráfico de Paulo que não foi conservado (cf. 2Ts 2,2)36.
O que apenas podemos supor para o século I aparece de maneira clara no
século II: a gnose e a Grande Igreja se enfrentam então a respeito da interpretação
correta de Paulo. O pressuposto comum aos dois campos é a plena validade da
autoridade do apóstolo, que se tornou amplamente inatacável. Teorias anteriores
afirmavam que a Grande Igreja teve de, com dificuldades, separar dos gnósticos um
Paulo que por muito tempo permanecera suspeito aos seus olhos, mas essas teorias
não resistem ao exame37. Ao contrário, Paulo exerceu grande influência tanto nos
meios da Grande Igreja como entre os gnósticos (entre os quais devem ser men-
cionados em particular os valentinianos e, lógico, os marcionitas), mas foi quase
sempre associado nisso a outras testemunhas apostólicas. De novo, parece que se
pode traçar um paralelo sobre esse ponto com a história da recepção do evangelho
de João: houve um enfrentamento intenso a propósito da justa compreensão da
autoridade do apóstolo que fundamentava a identidade do grupo38. Não foi por
acaso que no contexto desses debates é que nasceram os primeiros comentários
das epístolas de Paulo, que só se conservaram de modo fragmentário39.
Enfim, na época do reaparecimento de Paulo, no século IV, quando os co-
mentários se desenvolveram, pode-se observar a maneira como partidos bem di-
ferentes e violentamente opostos citaram o apóstolo como testemunha principal
em favor de sua respectiva doutrina — no Ocidente, isso vale em particular para
os maniqueus, para Pelágio e para Agostinho40.

36.Ver Thomas Schmeller, Schulen im Neuen Testament? Zur Stellung des Urchristentums in der
Bildungswelt seiner Zeit, Freiburg, Herder, 2001, 248-253 (HBS 30).
37. A visão enganosa que considera Paulo o haereticorum apostolus (assim tertuliano, Marc 3,5,4)
é defendida ainda por Alaine Pagels, The Gnostic Paul, Philadelphia (PA), Fortress Press 1975, 159-
162. A demonstração contrária foi feita por: Ernst Dassmann, Der Stachel im Fleisch (cf. nota 31);
Andreas Lindemann, Paulus im ältesten Christentum (cf. nota 28); Id., Der Apostel Paulus im 2.
Jahrhundert, in Paulus, Apostel und Lehrer der Kirche. Studien zu Paulus und zum frühen Paulusvers-
tändnis, Tübingen, Mohr Siebeck, 1999, 294-322. Todavia, Annette Merz tentou recentemente
numa leitura intertextual interpretar as epístolas pastorais contra o pano de fundo das controvérsias
teológicas referentes à herança de Paulo: Die fiktive Selbstauslegung des Paulus,Vandenhoeck & Ru-
precht, Göttingen/Fribourg, 2004, 208-222 (NTOA/StUNT 52).
38. Seria necessário ainda verificar se o quarto evangelho, diferentemente do que se passou com
Paulo, teve ou não de ser reconquistado com dificuldade pela Grande Igreja.
39. Não há indícios claros em favor da existência de comentários gnósticos de Paulo (mas ver
Klaus Koschorke, Paulus in den Nag Hammadi Texten, ZThK 78 [1981] 177-205 [204-205]). As
Hypotyposeis de Clemente se perderam. O comentário da epístola aos Romanos de Orígenes
subsiste apenas parcialmente, mas é de importância capital.
40. Peter Brown (Augustinus von Hippo [cf.nota 22]) falou da “geração de São Paulo” (130; cf.
88). Além de Agostinho e de Pelágio, devem-se também destacar os comentários de Paulo de Jerô-

478
VII – Paulo depois de Paulo
Se passamos dessas considerações históricas à nossa própria interpretação
hoje, podemos pôr dois pontos em evidência.
Primeiro, uma reflexão histórica. Os debates das Igrejas a propósito da justa
interpretação de Paulo não fazem mais que prolongar algo que está inscrito na
pragmática das cartas paulinas, pois o próprio Paulo, em algumas de suas cartas,
teve de discutir certas interpretações de sua mensagem. A primeira epístola aos
Coríntios pode ser lida como uma discussão do apóstolo com uma comunidade
que tinha interpretações muito diferentes de sua pregação original; a isso se acres-
centa também a interpretação que o próprio Paulo dá de suas cartas anteriores
(1Cor 5,9-11; cf. 2Cor 2,3-4.9; 7,8-12). De sua parte, a epístola aos Romanos se
defende de uma interpretação errônea do Evangelho paulino. O proveito que traz
tal leitura das cartas de Paulo em relação às discussões exegéticas posteriores é
evidente: Paulo se interpreta a si mesmo. Com sua morte, essa autointerpretação
deixou de ser possível. Foi por isso que as cartas pseudepigráficas procuraram fa-
zer falar de novo o ausente no presente41.
A seguir, uma reflexão teológica. A história da interpretação, por sua dimen-
são de conflitos, torna-nos atentos a dois traços complementares da herança paulina.
De um lado, o caráter controverso de suas interpretações remete-nos à tendência
à controvérsia do próprio apóstolo. É, com efeito, uma particularidade eminente
do pensamento paulino produzir antíteses fortes e traçar limites bem nítidos. A
história da recepção não faz mais aqui do que desenvolver certas facetas do fenô-
meno original. De outro lado, tornamo-nos atentos à riqueza complexa do fe-
nômeno Paulo, de sua pessoa e de sua obra. Para terminar, gostaria de refletir um
pouco sobre essa multiplicidade complexa.

2.3. “A múltipla sabedoria de Deus” (Ef 3,10)

A percepção dessa multiplicidade na história da recepção, que remonta à


pessoa e à obra de Paulo, põe a questão da pretensão à verdade desta ou daquela
imagem, ou seja, a questão do “verdadeiro” Paulo. O princípio que guia a exegese
histórico-crítica consiste em fazer sua, entre as interpretações reais ou possíveis de

nimo, de Marius Victorinus, do Ambrosiaster, bem como o comentário anônimo de Paulo chamado
Budapest (cf. Hermann J. Frede [éd.], Ein neuer Paulustext und Kommentar, Freiburg, Herder, 1973-
1974, 2 v. [Vetus Latina 7; 8]).
41. Ver Colossenses 2,1-5; 1 Timóteo 3,14-15, que são variações do topos epistolar de 1 Co-
ríntios 5,3. Cf. Hans Dieter Betz, Paul’s Second Presence in Colossians, in Tord Fornberg, David
Hellholm (ed.), Texts and Contexts: Biblical Texts in their Textual and Situational Contexts: Essays
in Honor of Lars Hartman, Oslo, Scandinavian University Press, 1995, 507-518.

479
Paulo entre exegese e história da recepção
Paulo, a que é certa e verdadeira. De fato, a exegese moderna se emancipou de
formas tradicionais de interpretação: o Paulo das epístolas distingue-se claramente
do Paulo das tradições eclesiásticas, inclusive do dos Atos dos Apóstolos; o Paulo
autêntico distingue-se claramente do Paulo pseudepigráfico. É por isso que uma
boa parte dos trabalhos mais antigos apoiados na história da recepção apresentam
essa história como a história de uma incompreensão contínua42.
Há algum tempo, porém, uma profunda mudança de perspectiva se esboçou.
Em vez de nos deixar guiar pela noção de crise, deixamo-nos guiar pela de criati-
vidade; no lugar do critério de diferença, fazemos intervir o critério de contexto.
A hermenêutica própria da história da recepção se esforça por compreender as
diversas interpretações, bem como explicações surgidas em contextos sempre no-
vos — explicações que, por sua vez, ajudam a perceber melhor a multiplicidade
dos fenômenos originais. Essa mudança de paradigma mostra-se particularmente
frutuosa para compreender a recepção de Paulo. As múltiplas interpretações de
Paulo que balizam a história das Igrejas cristãs atualizam, cada qual à sua maneira,
os diversos elementos que constituem a multiplicidade complexa da pessoa e da
obra do apóstolo. Os primeiros textos das “escolas” paulinas tentam reformular o
Evangelho de Paulo em contextos novos. Nesse caso, o interesse se desloca: a
questão não é mais saber em que se baseia a diferença entre o Paulo autêntico e o
Paulo dos escritos pseudepigráficos, mas é agora saber como “Paulo”, numa situa-
ção histórica nova, intervém, tomando a palavra de maneira apropriada. Podería-
mos ilustrar isso a partir do exemplo de Colossenses, de Efésios, das epístolas pas-
torais ou dos Atos dos Apóstolos: cada qual à sua maneira, os escritos integram
Paulo ao próprio Evangelho e, assim, fazem dele o mediador mais ou menos ex-
clusivo da salvação. Esse modo de atualizar Paulo une-se assim estreitamente à
compreensão de si por parte do apóstolo que brota das cartas autênticas (em par-
ticular de 2Cor 2,14-7,4), mas com um importante deslocamento de acentos.
Com muita lógica, essa mudança de perspectiva pode também ser aplicada
com proveito na própria exegese paulina. Mencionarei aqui dois pontos. Primei-
ramente, é desaconselhado agora reduzir a rica variedade do pensamento paulino
a essa ou àquela figura, como a doutrina da justificação, a teologia da cruz ou a
“mística”, bem como é desaconselhável obrigar esse pensamento a fazer parte da

42. Ver, por exemplo, Eva Aleith, Paulusverständnis in der alten Kirche, Berlin, Töpelmann, 1937
(BZNW 18); num sentido mais prudente, Wilhelm Schneemelcher, Paulus in der griechischen
Kirche, ZKG 75 (1964) 1-20; ver a crítica dessa posição em Ernst Benz, Das Paulus-Verständnis in
der morgenländischen und abendländischen Kirche, ZRGG 3 (1951) 289-309; Maurice F. Wiles,
The Divine Apostle: The Interpretation of St. Paul’s Epistles in the Early Church, Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1967, 1-2, 139.

480
VII – Paulo depois de Paulo
sequência cronológica com a ajuda de modelos de desenvolvimento. O desafio
hermenêutico consiste, antes, em mostrar como Paulo se esforçou por desenvol-
ver em diferentes contextos sua compreensão do Evangelho como ação salvadora
única de Deus em Jesus Cristo. A multiplicidade de que falamos pode dar uma
impressão de polimorfia (cr. 1Cor 9,19-23) — uma impressão que parece suscitar
a irritação não somente dos intérpretes do apóstolo, mas, às vezes, também de suas
próprias comunidades. Em segundo lugar, a história da recepção nos lembra que
esse fenômeno original tão complexo não nos é acessível senão sob uma forma
mediata, por via da história da recepção, ou, em outras palavras, que ele mesmo
deve ser entendido, de certo modo, como um produto da recepção. Esse acesso
mediato é particularmente evidente no caso da seleção das epístolas realizada pe-
los primeiros redatores das coleções das cartas; e, estando nós aquém, nos é impos-
sível chegar a elas.
Com um olhar para trás, percebemos o seguinte: o perigo que ronda uma
hermenêutica da história da recepção consiste justamente, no caso de Paulo, em
desembocar num anything goes. Mas o contrário é que é verdade: a figura contro-
versa do apóstolo nos coloca diante de decisões. É por isso que eu gostaria de
advogar em favor de uma interpretação que apresenta Paulo como gerador
de impulsos críticos diante da teologia, da Igreja e da sociedade. Essa posição pode
ser perfeitamente compreendida no sentido da perspectiva clássica — que para
mim, como teólogo marcado pela Reforma, permanece exemplar, ou seja, na
perspectiva da teologia da cruz e da doutrina da justificação. Trata-se necessaria-
mente aí de um posicionamento autocrítico, consciente de sua própria contex-
tualidade e que reconhece a pretensão à verdade de outras interpretações. Sendo
assim, é-me permitido tomar partido de modo tão claro quanto João Crisóstomo,
que amava “acima de tudo o bem-aventurado Paulo, o instrumento escolhido, a
trombeta celeste”43.
Concluirei reassumindo as últimas linhas do livro sobre Paulo de Eduard
Lohse, cujas pesquisas sobre o apóstolo se impõem e que pertencem a essa grande
geração de sábios ainda presente e ativa entre nós:
Uma antiga história rabínica põe em cena escribas que defendiam concepções
diferentes e faziam valer seus respectivos argumentos. Lá no fundo, na oitava
fileira da escola, estava sentado um velho homem que seguia de modo atento a
discussão, mas que não chegava a compreender plenamente os argumentos e os

43. João Crisóstomo, Hom 1 in 2 Cor 11.1 (a[pantaj me.n filw/ tou.j a`gi,ouj, ma,lista de. to.n
maka,rion Pau/lon, to. skeu/oj th/j evklogh/j, th.n sa,lpigga th.n ouvra,nion: PG 51, 301 = Montfou-
con III2, 347); esse qualificativo “corneta celeste” fornece o tema condutor e o título da obra de
Margaret M. Mitchell, The Heavenly Trumpet, 1 (cf. nota 11).

481
Paulo entre exegese e história da recepção
contra-argumentos que se alternavam. Quando os alunos perguntaram ao
mestre de onde lhe vinha seu saber, ele respondeu: “É um ensinamento trans-
mitido por Moisés no Sinai”. Então o velho ficou tranquilo. Com efeito, ele
não era senão Moisés, que havia escutado as discussões realizadas pelos eruditos
(bMen 29b). Poderíamos também aplicar essa história ao apóstolo Paulo. As
opiniões se enfrentam e a agitação reina. E eis que um ancião, mal percebido e
desconhecido, se senta no fundo da sala e observa a maneira como os pontos de
vista se opõem e como é difícil chegar a um consenso. Mas, quando um dos
interlocutores se refere ao que “o apóstolo disse outrora”, então se pode espe-
rar que no velho se ilumine o rosto marcado pelo sofrimento, pois, para além
da distância dos séculos, um eco se faz ouvir que, do cristianismo, volta ao dou-
tor da Igreja que tão profundamente marcou o início de sua história44.

44. Eduard Lohse, Paulus, München, 1996, 297: “Eine alte rabbinische Erzählung spricht davon,
wie Schriftgelehrte unterschiedliche Auffasssungen vertraten und gegeneinander geltend machten.
Hinten in der achter Reihe der schule aber habe ein alter Mann gesessen, der die Disckussion zwar
aufmerksam verfolgte, ihre Gründe und Gegengrtünde aber nicht voll zu verstehen vermochte. Als
der Lehrer dann von seinen Schülern gefragt wurde, woher er denn sein Sissen habe, antwortete
er: Dies sei eine Mose am Sinai überlieferte Lehre. Da wurde der alte Mann ruhig; denn er war
kein anderer als Mose, der den Auseinandersetzungen zugehört hatte, wie die Gelehrten sie geführt
hatten (bab.Talmud Men. 29b). Man könnte diese Geschichte auch auf den Apostel Paulus anwen-
den. Da wogt der Streit der Meinungen hin und her. Doch kaum bemerkt und nicht erkannt, sitzt
ein alter Mann im Hintergrund und verfolgt, wie Ansicht gegen Ansicht gestellt wird und es nur
mühsam gelingen will, zu einer Übereinkunft zu gelangen. Doch wenn dann einer sich darauf
beruft, so habe einst der Apostel gesprochen, dann geht hoffentlich ein Leuchten über die von
Leiden gezeichneten Züge des Zuhörers. Denn über den weiten Abstand der Jahrhunderte hinweg
gelangt ein Echo zu Gehör, das aus der Christenheit zurückkommt zum Lehrer der Kirche, der
ihre Anfänge prägend bestimmt hat”.

482
VII – Paulo depois de Paulo
Lista das abreviaturas

AASF.B Annales academiae scientarum Fennicae


AB Assyriologische Bibliothek
ABG Archiv für Begriffsgeschichte
AGSU Arbeiten zur Geschichte des Spätjudentum und (des) Urchristentums
AKG Arbeiten zur Kirchengeschichte. Berlin
ALGHJ Arbeiten zur Literatur und Geschichte des hellenistischen Judentums
AncB Anchor Bible
ANRW Aufstieg und Niedergang der römischen Welt
BEvTh Beiträge zur evangelischen Theologie
BEThL Bibliotheca Ephemeridum theologicarum Lovaniensium
BHTh Beiträge zur historischen Theologie
Bib. Biblica
BJRL Bulletin of the John Rylands Library
BNTC Black’s New Testament Commentaries
BSRel Biblioteca di scienze religiose (Roma)
BTB Biblical Theology Bulletin
BZ Biblische Zeitschrift
BZNW Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft
CAnt Christianisme antique
CB.NT Coniectanea Biblica. New Testament Series
CBQ Catholic Biblical Quarterly. Monograph Series
CBQ.MS Catholic Biblical Quarterly. Monograph Series

483
CEv Cahiers évangile
CNT Commentaire du Nouveau Testament
CR Corpus reformatorum
CRB Cahiers de la Revue biblique
CStS Collected Studies Series
DBS Dictionnaire de la Bible. Supplément
DJD Discoveries in the Judaean Desert
ECLS Early Christian Literature Series
EETh Einführung in die evangelische Theologie
ET Expository Times
EtB Etudes Bibliques
EThL Ephemerides Theologicae Lovanienses
ETR Etudes théologiques et religieuses
EvQ Evangelical Quarterly
EvTh Evangelische Theologie
EWNT Exegetisches Wörterbuch zum NT
FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments
fzb Forschungen zur Bibel
GLNT Grand Lessico del Nuovo Testamento
GTA Göttinger tehologische Arbeiten
HBS Herders Biblische Studien
HBT Horizons in Biblical Theology
HNT Handbuch zum Neuen Testament
HThK Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testement
HUTh Hermeneutische Untersuchungen zur Theologie
ICC International Critical Commentary
JBL Journal of Biblical Literature
JQR Jewish Quarterly Review
JSNT Journal for the Study of the New Testament
JSNT.S Journal for the Study of the New Testament. Supplement Series
JTS Journal of Tamil Studies
KEK Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament
KNT Kommentar zum Neuen Testament
KT Kaiser-Traktate / Kaiser-Taschenbücher
LCL Loeb Classical Library
LEC Library of Early Christianity
LeDiv Lectio Divina

484
Paulo, uma teologia em construção
MQR Methodist Quarterly Review
MSSNTS Monographic Series. Society for New Testament Studies
MThSt Marburger theologische Studien
NICNT New International Commentary (on the New Testament)
NIGTC New International Greek Testament Commentary
NSTh Nouvelle série théologique
NT Novum Testamentum
NT.S Novum Testamentum. Supplements
NTA.NF Neutestamentliche Abhandlungen. Neue Folge
NTD Das Neue Testament Deutsch
NTOA Novum Testamentum et Orbis Antiquus
NTS New Testament Studies
ÖTBK ökumenischer Taschenbuchkommentar
PG Patrologiae cursus completus. Accurante Jacques-Paul Migne. Series Graeca
QD Quaestiones disputatae
RGG Religion in Geschichte und Gegenwart
RhWAW Rheinisch-Westfälische Akademie der Wissenschaften
RSR Recherches de science religieuse
RivBib.S Rivista Biblica. Suppl
SBL Society of Biblical Literature
SBL.SBS Society of Biblical Literature. Sources for Biblical Studies
SBL.DS Society of Biblical Literature. Dissertation series
SBS Stuttgarter Bibelstudien
SC Sources chrétiennes
ScC Scuola Cattolica
SémBib Sémiotique et Bible
SJTh Scottish Journal of Theology
SNTU.A Studien zum Neuen Testament und seiner Umwelt. Serie A
SNVAO Skrifter utgitt av det Norske Videnskaps-Akademi i Oslo
SOCr Scritti delle origini cristiane
StANT Studien zum Alten und Neuen Testament
StNT Studien zum Neuen Testament
StUNT Studien zur Umwelt des Neuen Testaments
StTh Studia theologica
TANZ Texte und Arbeiten zum neutestamentlichen Zeitalter
TB Theologische Bücherei
ThHK Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament

485
Lista das abreviaturas
ThWNT Theologische Wörterbuch zum Neuen Testament
TRE Theologische Realenzyklopoädie
TSAJ Texte und Studien zum antiken Judentum
UTB Uni-Taschenbücher
UTB.W Uni-Taschenbücher. UTB für Wissenschaft
WdF Wege der Forschung
WMANT Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament
WuD Wort und Dienst
WUNT Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament
ZBK Zürcher Bibelkommentar
ZKG Zeitschrift für Kirchengeschichte
ZNW Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft
ZRGG Zeitschrift für Religions- und Geistesgeschichte
ZThK Zeitschrift für Theologie und Kirche

486
Paulo, uma teologia em construção
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas

(I) Antigo Testamento 31,18 245, 399


32,15 245
Gênesis (Gn)
34,34 254
2,15 34
3,13 257
Levítico (Lv)
12,3 93, 297, 306
12,7 306 18,5 250, 258, 297, 302, 305
13,15 93, 306 19,18 40, 247, 297, 300, 304
15,5 111 22,9 303
15,6 93, 111, 262, 297-299, 26,11 398
301
16 93
Números (Nm)
16,15 298
17 61 24,17-19 155
17,5 104, 111
17,7 306 Deuteronômio (Dt)
17,16 298
21,23 36, 106, 161, 330
21 93
27,26 161, 260, 282, 297, 302,
21,2 298 328, 329, 382
21,10 298
28,58 260
23,7 193
30 258
37,8 193
30,11-14 258
30,11 258
Êxodo (Ex) 30,14 258
20,17 246 30,15-20 250

487
31,12 260 Habacuc (Hab)
32,8-9 251 2,4 110, 296, 297, 298, 305,
32,46 260 407
32,51 307
33,1-3 307
Salmos (Sl)
33,2-4 251
62,12 265
143,2 297, 298, 301, 305, 381
1 Samuel (1Sm)
16,7 68 Provérbios (Pr)
3,1-2 250
2 Reis (2Rs) 6,23 250
24,12 265
5,17-19 154

Daniel (Dn)
Isaías (Is)
7,13-14 157
2,3 155
7,13 156
6,6-8 163
12,2 250
28,11-12 246
29,13 303
40,17 389 Neemias (Ne)
42 145 9,29 250
42,6 155, 156, 160
44,2 104 Tobit (Tb)
49 145
13,11 155
49,6 155, 156, 160
54,1 298
66,18-21 164 1 Macabeus (1Mc)
2,27 265

Jeremias (Jr)
2 Macabeus (2Mc)
38,33 LXX 399
2,21 373
7,9 250
Ezequiel (Ez)
8,1 373
20,5-26 250 14,38 373
36,26 399

Sirácida (Sr)
Miqueias (Mq) 17,11 250
4,2 155 17,17 251

488
Paulo, uma teologia em construção
36,11-17 155 João (Jo)
45,5 250
17 117

Baruc (Br)
Atos (At)
3,9 250
1,8 160
3,39-40 258
6,7 122
4,1 250
7,38 307
7,53 307
(II) Novo Testamento 9,1-25 134, 140
Mateus (Mt) 9,1-19 371
5,17-19 468 9,15 161
11,16-18 378 9,18 371
15,1-20 294 9,19-22 134
16,26 285 9,20-23 162
20,28 165 9,28-30 140, 162
23,15 147, 148, 152-154 10 162
26,41 390 11,19 135, 159, 162
28,16-20 157 11,20 162
28,18 158 13,1 135
28,19 159 13,16-41 160
13,47 160
14,26 135
Marcos (Mc)
15,1-29 140-142, 294
7,1-23 294
15,22 135
13,14 190
15,36-40 450
14,38 390
16,10 390
17,11 390
Lucas (Lc) 17,22-31 457
1,19 390 18 123, 124, 129-131
2,29-32 156 18,1-17 130, 131
2,30 160 18,1-3 123
2,32 160 18,3 458
6,28 202 18,7 130
7,31-34 377, 378 18,11 123, 126, 131
7,34 377 18,12 123, 126, 131
9,62 285 19,9-10 457
10,7 40 19,9 165, 457, 460
24,47-48 158 19,10 165
24,47 158 18,22 141, 142

489
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
21,1-21 134 1,18–3,8 88
22,3 135, 165, 446 1,18–31 375
22,15 161 1,18 63, 68, 199, 366
22,17-22 163 1,19-32 68
22,17-18 161 1,19 256
22,19 161 1,20 68
22,21 161 1,21 256
23,6 145 1,21-22 185
26,4-5 446 1,23 185
26,12-30 134 1,24 185
26,17-18 161 1,25-27 185
26,20 162 1,25 366
1,28 256
Romanos (Rm) 1,32 244
1–4 64, 80 2 53, 68
1–3 63 2,1-11 245
1,1 42, 449 2,1 245
1,2 111 2,2 53
1,3-4 220, 226 2,6-7 265
1,3 212 2,6 68
1,4 212 2,7 234
1,5-6 181 2,8 364
1,5 388 2,9 388, 389
1,8-15 390 2,10 388, 389
1,9 358 2,11 68
1,10 390 2,12-16 256
1,11 390 2,12 245, 256
1,12 389 2,13 64
1,13 52, 53, 393 2,14-15 475
1,14-17 22, 385 2,14 276
1,14-15 388 2,15 42, 365
1,14 388, 389 2,16 111
1,15 390 2,17-27 245
1,16-17 94, 109, 110, 392 2,17-24 257
1,16 88, 158, 176, 186 2,17 245
1,17-18 235 2,20 366
1,17 88 2,25-29 68
1,18–4,25 110 2,26 256
1,18–3,20 60, 63 2,28-29 254
1,18–3,18 245 3,1 ss 90

490
Paulo, uma teologia em construção
3,3 43, 44 5,20 245
3,5 184 5,21 234
3,7 364, 366 6–8 67
3,9-19 68 6 352-355
3,9 389 6,1-19 186
3,10-19 246 6,1-14 54, 55, 65, 67, 70
3,10-18 245 6,1 90
3,19-20 256, 366 6,2-4 95
3,19 53, 263 6,2 353
3,20 42, 260, 263, 269 6,3-5 353
3,21-31 110 6,3-4 219, 446
3,21-26 378 6,3 212
3,21-22 37, 38 6,4-14 54, 55
3,21 269 6,4 55, 325, 353, 356, 359
3,22-24 94 6,5 354
3,22 43 6,6-8 305
3,24-25 219 6,6 395
3,24 381 6,8 352, 395
3,25 226, 446 6,11 305
3,26 43, 234, 235, 237 6,12 35
3,27-31 247 6,15-23 55, 67
3,27 258, 246 6,15 90
3,28 110, 264 6,17 227
3,29-30 110 6,19-23 186
3,31 246 6,22-23 234
4 64, 110, 246, 286 6,23 354
4,2 407 7 33, 64, 472
4,4-5 475 7,1 245
4,6 407 7,5 257
4,9-12 475 7,6 359
4,15 269 7,7-25 34, 62, 95
4,16-18 250 7,7-23 375
4,17 104 7,7-12 67, 246
4,25 212, 446 7,7 90, 246, 269, 308, 475
5–8 64 7,8-10 303
5,1-11 70 7,8 269
5,11 475 7,11-13 303
5,12-21 42, 64, 475 7,11 257
5,13-14 269, 475 7,12-14 247
5,13 245 7,12 95

491
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
7,13-23 247 9,31 257
7,13 95, 269 9,32 258
7,14-25 269 9,33-10,4 258
7,14-20 55 10 289, 290
7,14 53, 95, 291 10,1-3 289
7,15-16 33 10,2 289
7,16 34, 35 10,3 289, 265
7,18 283 10,3ss 474
7,23 283 10,4 16, 38, 41, 117, 118, 258,
7,25 283 277, 341, 342, 475
8 324 10,5 258
8,1-2 95 10,6-12 258
8,2 40, 247, 258 10,6-10 258
8,3-4 475 10,8-9 212
8,3 220 10,8 258
8,4 247 10,9-10 227
8,4ss 433 10,9 111, 212, 219
8,11 349 10,12 257
8,12-17 359 11,1-6 184
8,12-13 388 11,1 90, 94, 118, 184
8,14 357 11,5 234
8,15 357 11,6 264, 407
8,17 234 11,11 184
8,18-25 239 11,13-32 180, 181
8,18ss 354 11,15 159
8,18 39, 234, 238 11,17-24 53
8,19-22 231, 238 11,25-26 162
8,19 214 11,28 103
8,22-27 286 11,30-32 94
8,23 348, 359 11,32 248
8,34 213 11,36 472
9–11 94, 110 13,12 407
9,1 364, 365 12–15 199
9,2 182 12,1-2 237, 471
9,6 184 12,2 234
9,12 264 12,3-21 199
9,14 90 12,7 423
9,16 472 12,10-21 368
9,30-10,12 257 12,14 202
9,30 392 12,16 185, 404

492
Paulo, uma teologia em construção
13 15, 172, 190, 196, 231, 16,3-4 450
237, 469 16,25-27 454
13,1-7 172, 179, 184, 186, 198, 16,25 111
199
13,1 196
1 Coríntios (1Cor)
13,2 197
13,3-4 196, 198 1–4 70, 385, 449
13,3 198 1–2 195
13,4 196, 197 1 70
13,5 197, 365 1,2 393
13,6-7 198 1,7 393
13,6 196, 198 1,8 231, 234, 278
13,7 196, 198 1,10-4,21 422
13,8-10 199, 247 1,10-4,18 364
13,8 198 1,10 52, 89, 404
13,9-12 247, 248 1,11 51, 395
13,9 40, 246, 303 1,12 450
13,11-13 195 1,13 92, 222, 350, 448
13,11-12 199 1,14 130
13,11 237, 393 1,17 371
13,12 407 1,18-3,4 374
14,3 185 1,18-2,5 322, 325, 326
14,9 219, 352 1,18-25 236, 239, 322, 375
15,1-3 247 1,18 320, 340, 391
15,1-2 185 1,20 234, 236
15,1 185 1,21 20, 408
15,2 247 1,23-24 92
15,5 404, 427 1,23 351, 389
15,8 344, 364, 365 1,24 323
15,9 366 1,25 350, 424
15,14-16 186 1,26-31 107, 458
15,16 185 1,27-29 323
15,18-19 176 1,27-28 104
15,19 162 1,29 474
15,20 390 1,30-31 323
15,25-32 133, 136-138 1,30 407, 446
15,25-28 185 1,31 475
15,26 137, 215 2,1-5 107
15,27 215, 295, 388 2,1-4 323
15,31 137 2,2-3 107
16,3-16 184 2,2 319, 350, 351, 422

493
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
2,3 106 4,16 22, 417, 422, 424, 434,
2,4 176 436, 449
2,5 408, 423 4,21 448
2,6-16 375 5,3 479
5,5 231, 234
2,6-8 236
5,8 364
2,6ss 351
5,9-11 479
2,6 234
5,9 454
2,8 172
5,10 234
2,10 82, 235
6,12-20 55, 70
2,12 356-358
6,12ss 62
3-4 70
6,12 364
3,1-3 448 6,17 357
3,3 397 7 469
3,5-11 467 7,1 81
3,5-9 451 7,10 202, 368
3,5 107, 397, 449 7,17-24 237
3,6-15 397 7,19 254, 255
3,8 265 7,29-31 237
3,9 397 7,29 237, 469
3,11 398 7,31 234, 237
3,14 400 8–10 57
3,16-17 398 8 57, 86
3,18-23 398 8,6 208, 211, 219, 221, 222,
226
3,18 234
8,10 86
3,19 234
9 53, 56, 57, 68, 69, 447
3,21-23 398
9,1-18 69
3,23 423
9,1 343, 367, 374, 376, 458
4 324
9,2 399
4,1 89, 92, 427
9,8-18 69
4,6-13 449 9,8-9 244
4,6 52, 424, 450 9,14 40, 202, 387
4,7 472, 474 9,16-23 391
4,9-13 392, 424, 458 9,16 388
4,12-13 449 9,17 368
4,14-21 422 9,18 390
4,14-15 447 9,19-27 69
4,14 52, 422 9,19-23 69, 425, 481
4,15 422, 423 9,20 244

494
Paulo, uma teologia em construção
9,22-23 449 15,3-8 216
9,24-27 260 15,3-7 217
10 57 15,3-5 86, 225, 317
10,4 356, 357 15,3 106, 165, 212, 214, 222,
10,11 234 224, 225
10,16 212, 215, 219, 226 15,5-8 374, 376
10,23 364 15,5 216
10,33-11,1 424 15,6-7 216
10,33 425 15,6 134
11 86, 431 15,7 134, 367
11,1 22, 291, 417, 422, 424, 15,8 343, 344, 367, 376
425, 431 15,9 448
11,2 224, 448 15,10 448
11,16 215 15,11 226, 467
11,17 317 15,12 82, 89, 107
11,19 213 15,13 107
11,23-26 317 15,20-24 93
11,23-25 219 15,20-22 213
11,23 165, 202, 212, 214, 224, 15,21-22 213
387 15,21 213
11,24 215, 222 15,22 213
11,26 177, 220 15,23-28 108
12-14 57, 58 15,23 234
12 57 15,35-50 366
12,1-31 364 15,35-49 58
12,3 212, 219 15,35-41 56
12,4-11 70 15,35 56
12,12-26 56 15,42-49 108
12,27 396 15,44 357
12,28-29 423 15,45 111, 356, 357
13 57, 58, 219 15,46 357
13,6 364 15,50 219
14 57, 58 15,51 219
14,21 246 15,51-52 394
14,33-36 454 15,54-55 108
14,34 244 15,56 244, 269, 407
15 47, 58, 62, 70, 86, 89, 93, 15,58 52, 407
105, 107, 226 16,1-4 133, 136, 138
15,1-3 371 16,3 137, 138
15,1 390 16,5 136

495
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
16,8 460 4,6 343, 344
16,10-11 136 4,7ss 324
16,10 407 4,7-15 286
16,19 450, 460 4,8-12 177, 421
16,20 212 4,10 175, 177, 325, 327
16,22 212 4,12 326
16,23 212 4,14 349
4,16-18 381
4,16 325
2 Coríntios (2Cor)
5,1-2 231
1–7 77
5,5 348, 355, 357
1–3 244
5,7 360, 408
1,1 450 5,10 265
1,8 52, 177 5,14-15 317
1,9 352 5,15 352, 367
1,14 231, 234 5,16 364, 367, 382
1,22 348, 357, 359 5,17-21 391
1,24 398 5,17 231, 236, 366, 381
2,3-4 479 5,18-21 66, 67, 69
2,9 479 5,21 20, 71, 219, 352, 407
2,13 136, 358 6,2 236, 239
2,14-7,4 324 6,4ss 324
2,14-16 177, 195 6,14-7,1 454
2,14 175, 348 7,2 177
3 22, 253, 385, 399, 402 7,5 136, 177
3,2-3 399 7,8-12 479
3,3-11 245 7,14 364, 365
3,3 399 8–9 133
3,4 449 8,9 421, 352
3,6 254, 401 8,11 390
3,7-11 254 8,12 390
3,7-9 400 8,19 390
3,7 254 9,2 390
3,9 407 9,3-4 136
3,14 291 9,8 265
3,18 253 10-13 167, 286
4,2 364, 365 10,8 449
4,4-6 160 10,10 454
4,4 234, 343 11 166
4,5 398, 449 11,1–12,10 71

496
Paulo, uma teologia em construção
11,6 470 1,8-9 369
11,10 357, 364, 367 1,8 369
11,16–12,13 324 1,9 369
11,16-21 324 1,10–2,21 369
11,21-33 324 1,10-17 372
11,22 118 1,10-12 367, 369, 376
11,23 92, 449 1,10 167, 449
12 195 1,11-12 202, 224
12,1-10 381 1,11 52
12,4 136 1,12-17 371
12,1-6 325 1,12-16 133, 137
12,6 364, 365 1,12 133, 367, 374, 376, 394
12,7-10 325, 458 1,13-17 371
12,9-10 286 1,13-14 372, 373, 376, 410, 448
12,10 71, 324 1,13 370
12,11-13 324 1,14 165, 209, 222, 276, 372,
12,11 388 446
12,14 447 1,15-17 284, 367, 376
13,1 136 1,15-16 160, 388, 458
13,3 326 1,15 343
13,4 325, 350, 356 1,16-17 133, 370, 373
13,8 364, 365 1,16 162, 343, 364, 367, 369,
370, 374, 388
Gálatas (Gl) 1,17-20 371
1,17 133, 134, 137, 373
1,1–5,12 226
1,18 133, 134, 137, 370, 373
1–2 59, 64, 85
1,21 133-135, 137
1 140, 145, 284
1,23-24 370
1,1-5 223
1,23 370
1,1-2 369
1,1 369, 370, 376 2,1-10 141, 294, 295
1,2 297, 453 2,1-5 141, 370
1,3-4 340 2,1 133, 136, 137
1,4-5 204 2,2-4,14 244
1,4 221, 222, 226, 234-236, 2,2 136, 394
304 2,4-5 109
1,6-9 365, 369, 406 2,4 380, 406
1,6-7 109, 369 2,5 370
1,6 369 2,6 141
1,7 406 2,7-9 370
1,7-8 308 2,7 59

497
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
2,9-10 136 3,7-29 303
2,9 215 3,7-14 297
2,10 133, 136, 138, 295 3,7 98
2,11-21 373, 377 3,8 298, 300, 306
2,11-14 295, 315, 465, 474 310-14 35, 36, 328, 375
2,11 135 3,10-13 36, 321
2,12 83 3,10-12 329
2,13 450 3,10 35, 42, 263, 269, 282, 291,
2,14-21 380 302-305, 382
2,14 370 3,11-12 305
2,15-21 61, 301, 302, 328, 381 3,11 250, 258, 296, 407
2,15-16 331 3,12 375
2,16–3,6 302 3,13-14 20, 106, 296, 306, 475
2,16 16, 44, 93, 259-261, 263, 3,13 35, 36, 161, 328, 329, 351,
381, 408, 474 375
2,17-18 331 3,14 330
2,18 380 3,15-22 299
2,19-20 304 3,15-16 300
2,19 18, 269, 304, 375, 430 3,15 52
2,20-21 429 3,16 297, 299
2,20 213, 214, 222, 304, 357, 3,17-18 248
430 3,17 39, 245, 307
2,21-27 264 3,18 306
2,21 93, 297, 303, 430 3,19-24 269
3–4 61, 62 3,19-20 251
3 61 3,19 118, 248, 256, 307
3,1–4,21 93 3,20 307
3,1-14 327, 330 3,21-29 43
3,1-6 301, 302, 305 3,21 307, 375
3,1-5 53, 61, 70, 93, 351 3,22-23 309
3,1 301, 319, 320, 350, 351 3,22 43, 44, 297
3,2-13 61 3,23–4,10 475
3,2 97, 359 3,23-26 248
3,3-5 176 3,23-25 250
3,3 263 3,23-24 250
3,4 329 3,23 38, 235
3,5 259 3,24-25 307
3,6-14 36 3,25 250
3,6-9 376 3,26 43, 44
3,6 93, 296, 299-302 3,28 42, 236, 382, 389, 458

498
Paulo, uma teologia em construção
3,29 248 5,3 246, 305
4,1-7 306 5,4 93, 407
4,1-2 269 5,5 393
4,1 250 5,6 255, 296
4,2 250 5,7 364, 365
4,3 238, 310 5,11-12 244
4,4-6 227 5,11 52, 146, 147, 319, 320,
4,4-5 269, 219, 227 350, 351, 374
5,12 295
4,4 102, 220, 234, 235, 297,
340, 341, 344 5,13-14 300
4,5-7 252 5,13 90
4,5 297 5,14 246, 247, 296, 300, 304
4,6-7 253 5,17 306
4,6 356, 357 5,18 359
4,8-11 295 5,19-23 306
5,19 42, 407
4,9 52, 98, 310
5,22 42
4,12 85, 90, 417, 430, 448
5,23 306
4,14-16 83
5,24 306
4,11 83
6,2 40, 246, 247, 258, 300,
4,12 85, 90, 417, 430, 448
304
4,16 408
6,4 303
4,19 357, 400, 448
6,6 215, 423
4,20 53, 84 6,8 234, 359
4,21-31 93 6,9 233
4,21 98 6,10 237
4,21–5,1 253 6,11-13 380
4,21-22 297 6,11 297
4,22-30 246 6,12-17 332
4,22 246, 297 6,12-16 255
4,23 263 6,12-13 263, 408
4,25-26 304 6,12 89, 351, 374
4,25 304 6,13 295, 296, 305
4,26 239 6,14-15 369
4,27 298 6,14 236, 296, 374
4,30 297 6,15 236, 255, 296, 366, 367,
5 253 380, 381
5,1 90, 370, 388 6,16 332
5,2-4 244
5,2-3 380 Efésios (Ef)
5,2 59, 93 2,5-6 461

499
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
2,6 354 2,10 288
2,11-22 473 2,11 52
3,1-13 458 2,12-18 404
3,8 390 2,12-13 472
4,1-6 473 2,16 231, 234
4,6 208 2,19-30 402
5,14 461, 477 2,22 448
5,22-33 469 3 17, 268, 270, 271,
281-284, 287-290, 344,
430
Filipenses (Fl)
3,1 271
1,1–3,1 271 3,1–4,1 271
1,1 449, 450 3,2–4,3 271
1,6 231, 234 3,2–4,1 17
1,7 407 3,2-21 271, 287, 290, 428
1,10-11 402 3,2-11 373
1,10 402 3,2-4 271
1,12-26 402 3,2-3 271
1,12-18 467 3,2 428
1,12-14 448 3,3 429
1,18 364, 365 3,3ss 475, 430
1,21-25 231 3,4-11 274, 428
1,27–2,18 402 3,4-6 376
1,27 44 3,4 431
2 22, 288 3,5-6 117, 276, 282, 446
2,1-11 385, 402, 403 3,5 146
2,1-5 405 3,6 276
2,3 404 3,7-11 376
2,5ss 432 3,7 431
2,5 432 3,8-9 310
2,6-11 86, 212, 219, 220, 340, 3,8 291
349, 403, 404, 446 3,9 43, 289, 429, 474
2,6-8 205 3,10-16 238, 458
2,6 287, 340, 349 3,10-11 288
2,7 288, 349 3,10 215, 239, 285
2,8-9 288 3,11-12 288
2,8 374, 421 3,11 239
2,9-11 287 3,12-16 273
2,9-10 349 3,12-14 428
2,9 287 3,12 290
2,10-11 288 3,14 238, 260

500
Paulo, uma teologia em construção
3,15-17 428 1,4 52, 103, 232
3,15-16 272 1,5 176, 392
3,15 431 1,6-7 103
3,16 428 1,6 22, 417-420, 432
3,17–4,1 428 1,9-10 103, 317
3,17 22, 417, 428 1,9 419
3,18-21 272 1,10 349
3,18 429 1,14 420
3,19-20 273 2 103
3,19 ss. 429 2,1 418, 422
3,20 238, 393, 429, 431 2,2 420
3,21 287 2,4 103
4,2-7 271 2,7ss 421
4,2 404 2,9 97
4,8-9 271 2,11-12 421
4,8 407 2,11 52, 400
4,10-23 271 2,12 232
4,10-20 271 2,13 391
4,15 135, 215 2,14 417, 420
2,19 234
Colossenses (Cl) 3,1 135
3,4 420
1,10 265
3,8 105
1,24–2,5 458
3,11 232
1,27 458
3,13 234
2,1-5 479
4 22
2,5 43
4,1-12 120
2,12-13 461
4,2 393
2,12 354
4,3 120
3,1-4 354
4,11-12 232
3,1 477
4,13–5,10 232
4,16 453
4,13-18 104
4,13 392-394
1 Tessalonicenses (1Ts) 4,14 86, 92, 106, 212, 317, 395
1–3 53, 103 4,15 202, 232, 234, 368, 387
1,1 394, 450 4,16 92
1,2-10 418-420 4,17 92
1,2 104 4,18 105, 234
1,3 407 5,1 393
1,4-5 104 5,2-6 232

501
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
5,2 53, 231, 234, 393 Tiago (Tg)
5,5 120
2,10 291
5,9 120
5,10 106, 222, 395
5,12 105 1 Pedro (1Pd)
5,13 232
2,4-5 398
5,14 120
3,18 106
5,16 232
5,18 105
5,23 234, 278 2 Pedro (2Pd)
5,24 105
3,15-16 466, 477
3,16 477
2 Tessalonicenses (2Ts)
2,1-12 418, 422
2,2 454, 478 Apocalipse (Ap)
3,17 454 7,4 160

1 Timóteo (1Tm)
1,15-16 467
2,2 469 (III) Literatura judaica antiga
2,5 208 1. Apócrifos do Antigo Testamento
3,14-15 479
Apocalipse de Abraão (ApAbr)
29,11 156
2 Timóteo (2Tm)
2,13 44
2,17-18 477 2 Baruc (2Ba)
2,18 62, 461, 477
44,8-15 233
4,13 44, 209
83,4-9 233

Filêmon (Fm)
1 450 4 Esdras (4 Esd)
10 448 6,26 155
18 388 7,21 250
7,50 233
Hebreus (Hb) 7,112 233
2,2 307 7,119 233
9,15 402 13,24 395
12,24 402 14,30 250

502
Paulo, uma teologia em construção
1 Henoc (1 Hen) Simeão (TSim)

20,5 251 7,2 156


37-71 156
71,15 233 Zab (TZab)

9,8 156
Jubileus (Jub)
15,31-32 251 2. Qumran
Documento de Damasco (CD)
Livro das Antiguidades bíblicas (LAB) 3,15-17 250
23,10 250 3,30 250
6,19 401
7,6-9 116
4 Macabeus (4M)
7,6 250
4,26 373
8,21 401
15,3 250
19,33 s. 401
20,12 401
Oráculos sibilinos (OrSib)
3,190-195 156 Hodayoth (1QH)
2,14-19 282
Salmos de Salomão (SlSal) 2,14 282
14,2-3 250 2,16 120, 282
4,6-18 282
4,7 282
Testamentos dos Doze Patriarcas
4,29-32 278
Benjamim (TBenj)
10,10 156
Pesher de Habacuc (1QpHab)
2,3 401
Dan (TDan)
5,11 156
Regra da Comunidade (1QS)

Judá (TJuda)
3,9-11 278
4,6-8 250
24,6 156
4,7 250
8,5 398
Levi (TLevi) 8,6 398
18,2-9 156 8,8 398

503
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
Coleção das bênçãos (1QSb) 20,51-53 154
5,21 401 20,195 153
20,252 153

4QMMT
De bello judaico (Bell)
3-5/B1-2 261
11/B8 261 1,110 154
32/B29 261 2,350-358 196
39/B36 261 2,396 193
40/B37 261 5,145 116
45/B42 261
58/B55 261 Contra Apionem (Ap)
76/B73 261
2,173-178 294
92/C7 261
113/C27 261
116-118/C30-32 261 Vita Josephi (Vita)

16 153
4QFlor 191 154

1,6 398
Fílon

3. Literatura judaica helenística Legatio ad Gaium (LegGai)

Epístolas de Aristeu (EpArist) 133 183


127 250 199 183
139 308
142 308 De Abrahamo (Abr)

60 299
Flávio Josefo
Antiquitates judaicae (Ant) De congressu eruditionis gratia (Congr)
4,180-193 308 86-87 250
18,18-22 116
18,81-84 153
De Decalogo (Decal)
20,34-48 153
20,38 154 17 308
20,41-42 153 98 164
20,43 154 100 164
20,44-45 154
20,44 154 De fuga et inventione (Fug)
20,47 154 158 278

504
Paulo, uma teologia em construção
De opificio mundi (Op) bMenahot
128 164 29b 482

De posteritate Caini (Post) bShabbat


84-85 258 31a 295

De praemiis et poenis (Praem)


TBerakhot
93-97 155
7,18 389

De specialibus legibus (SpecLeg)


Targum Codex Neofiti (Targ Neof)
1,61-62 164
2,92-95 183, 192 Dt 30,11-14 258
3,159-163 183, 192

Targum Pseudo-Jonathan (Targ P Jon)


De somniis (Som)
Gn 11,7-8 251
2,78-79 191
2,81-82 191
2,83-92 199 (IV) Literatura cristã antiga
2,83-84 192
Atos de Paulo 477
2,83 195
2,84 199 Agostinho
2,85 195 Confessiones
2,86-87 193
3,5:9 471
2,90 193
7,21:27 471
2,91 194
8,12:29 471
2,92 199
2,93-95 193
2,93-94 193 Contra Academicos
2,95 195 2,2,5-6 471

De vita Mosis (VitMos)


1 Clemente (1 Clem)
1,290 155
5 466
2,147 278
2,215s 164
Eusébio
4. Literatura rabínica e targumim História eclesiástica (HistEccl)
mAbot 2,25,8 466
2,7 250 4,26,13-14 402

505
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
Ireneu Calpurnius Siculus
Adversus haereses (Haer) Bucólica

3,13,1 467 1,59-64 197

João Crisóstomo Cícero

Ad eos que scandalizati sunt De oratore (DeOrat) 79

20,10 470
Pro Flacco

De laudibus Pauli 28 183


29 183
4,7-20 470
69 182
4,10 470

Pro Milone (Mil)


Homilias
30 389
20,6 in 1Cor 470
In 2Cor 5,17 470
1 in 2Cor 11,1 481 De re publica (Rep)
1,2 in Hb 470 3,41 196
5,6 196
In Eutropium ennuchum
2,14 470 Demétrio
De elocutione

Jerônimo 223 84
224 84
De viris illustribus
5 466
Dion Cassius
História romana
(V) Autores gregos e latinos
60,6,6 126, 127
Aristófanes
Nubes (Nu)
Justino
492 389 Diálogo com Trifon (Dial)
95,1 303
Caius Julius Victor
Ars rhetorica Juvenal
27 82 Sátiras 150

506
Paulo, uma teologia em construção
Orósio Epistulae morales (Ep)
Historiae adversus paganos 6 443
40,1 76
7,6,15-16 125
94,39 89
95,1 411
Plínio o Jovem
95,10 411
Epístolas (Ep) 95,12 411
10,96,7 350
10,96,8 350 Suetônio
Vida de Claudio
Plutarco 25 124, 125
De fortuna (Fort)
318 196 Vida de Tibério
36 183
43 198
Polibeu
1,65,7 389
Tácito
Anais (Ann)
Quintiliano
2,85 183
Institutio oratoria (InstOrat) 13,48-51 184
7,6,1 61 13,48 184, 198

Sêneca Velleius Paterculus


De clementia (Clem) História de Roma
I,1,3 197 2,126 196
I,13,5 197
Virgílio
Ad Marciam de consolatione (Marc) Eneida (Aen)
7,3 389 1,282 184

507
Índice das passagens bíblicas e extrabíblicas
Índice dos autores modernos

Aalen, Sverre 148, 156, 157 Barrett, Charles K. 95, 128-130, 162, 213, 395,
Agamben, Giorgio 32, 39, 41, 42, 229, 234, 457
237, 380 Bartchy, S. Scott 172
Aland, Kurt 308, 392, 455 Barthes, Roland 338
Alcock, Susan E. 175 Barth, Karl 43, 180, 355
Aleith, Eva 480 Barth, Markus 43
Aletti, Jean-Noël 13, 20, 29, 34, 43, 44, 47, 55, Baslez, Marie-Françoise 160
59, 61-64, 70, 71, 79, 80, 313 Bassler, Jouette M. 73, 87, 96, 100, 177
Alexander, Loveday C. A. 397, 442, 456, 457 Bauckham, Richard 156
Allison, Dale C. 152 Bauer, Walter 308
Ando, Clifford 178 Baumgarten, Jörg 45, 230, 395
Arrighetti, Graziano 444 Baur, Ferdinand C. 45, 180, 308, 382
Ascough, Richard S. 30, 439 Beaude, Pierre-Marie 30
Assmann, Aleida 338 Becker, Jürgen 18, 45, 99, 147, 202, 210, 218,
Aune, David E. 76, 78, 79, 394 230, 232, 271, 316, 321, 323, 324, 331,
Avemarie, Friedrich 260, 468 349, 368, 446
Beker, J. Christiaan 45, 74, 81, 88, 100, 101,
Backhaus, Knut 439-441, 447, 451, 458, 460 112, 180, 181, 186, 195, 230, 315, 321,
Bader, Günter 106 364
Badiou, Alain 32, 41, 313, 366, 379 Beker, J. Christian 19, 20, 45, 99, 100, 230,
Balz, Horst R. 453 321
Bammel, Caroline P. 471 Belleville, Linda L. 77, 434
Barbagio, Giuseppe 367 Bemer, Jan Maarten 405
Barclay, John M. G. 300 Ben Chorin, Schalom 30
Barnett, Paul 150 Berber, Peter Ludwig 341
Barnikol, Ernst 146 Berder, Michel 32

509
Berenyi, Gabriel 213 Calvin, Jean 372
Berger, Klaus 76, 345 Canetti, Elias 435
Bernard, Jacques 36 Capizzi, Nicola 405
Bertram, Georg 423 Carleton Paget, James 149
Betz, Hans Dieter 59, 78, 315, 319, 327, 331, Carson, Donald A. 260, 279
332, 352, 369, 414, 418, 421, 427, 431, Castelli, Elizabeth A. 414-416, 422, 423, 426,
432, 434, 471, 479 427, 433, 435, 436
Betz, Otto 163, 276 Chapa, Juan 77
Beutler, Johannes 79, 342 Chernick, Michael 61
Bialoblocki, Solomon 148 Chow, John 171
Bickmann, Jutta 77, 80, 84 Christiansen, Ellen J. 401
Bille, Florian 36, 328, 375 Cirignano, Giulio 409
Billerbeck, Paul 160, 389 Classen, Carl J. 78
Bird, Michael F. 153 Claudel, Gérard 202, 217, 219, 226
Blank, Josef 341 Cohen, Shaye J. D. 149
Blass, Fridrich 350 Collange, Jean-François 285
Blenkinsopp, Joseph 281 Collins, Raymond F. 78, 84, 394, 417
Boccaccini, Gabriele 156 Conzelmann, Hans 117, 202, 203, 208, 217,
Boers, Hendrikus 101 323, 351, 371, 395, 424, 435, 439, 447,
Bonnard, Pierre 209, 308, 428-430 460
Borgen, Peder 155 Cousin, Hugues 293
Bornkamm, Günther 117, 205, 206, 223, 268, Cranfield, Charles E. B. 269, 390
276, 316, 349, 425 Cullmann, Oscar 39, 201
Bovon, François 10, 204, 211, 222, 223, 227, Culpepper, R. Alan 442-444
285, 290, 318, 466, 475, 477 Cuvillier, Elian 16, 29, 229, 333
Bowersock, Glen W. 175
Boyarin, Daniel 30, 468 Dabourne, Wendy 80, 81
Brandenburger, Egon 106 Dahl, Nils A. 86, 404
Breech, James 378 Daniélou, Jean 159
Breton, Stanislas 32, 375 Danker, Frederick 169
Brinsmead, Bernard H. 408 Das, A. Andrews 276
Broer, Ingo 342 Dassmann, Ernst 476, 478
Brown, Peter 471, 478 Dautzenberg, Gerhard 342
Brown, Raymond E. 203, 218 Davies, William D. 152
Brown, Robert McAfee 172 Davis, Stephan K. 408
Bruce, Frederick F. 147 de Boer, Martinus C. 45, 230, 233, 475
Bruckner, Ralph 403 de Boer, Willis Peter 414
Brunot, Amédée 52 Debrunner, Albert 350
Buck, Charles H. 129 Deichgräber, Reinhard 404
Bultmann, Rudolf 14, 16, 45, 46, 52, 53, 74, Deissmann, Adolf 74-76
117, 230, 268, 325, 341, 351, 352, 354, Delobel, Joël 394
358, 368 Deneken, Michel 374
Burkert, Walter 386 Derwacter, Frederic M. 148

510
Paulo, uma teologia em construção
De Saeger, Luc 222, 223 Funk, Robert W. 80
De Sainte Croix, Geoffrey E. M. 171 Furley, William F. 405
Dettwiller, Andreas 318, 328, 439 Furnish,Victor P. 185, 186, 317, 402
De Witt Burton, Ernest 373 Fürst, Alfons 465
Dickson, John P. 149 Fusco,Vittorio 203-206, 210-213, 215, 218
Dietzfelbinger, Christian 315, 341, 410
Dinkler, Erich 45, 207, 224, 439 Gager, John G. 182-184
Donaldson, Terence L. 82, 147, 410 Gamble, Harry Y. 455, 459
Donfried, Karl P. 14, 15, 79, 115, 117, 119, 120, Garcia Martinez, Florentino 261
173, 181 Garlington, Don B. 36
Downing, F. Gerald 174 Garnsey, Peter 171
Ducrot, Oswald 370 Gaston, Lloyd 41, 179
Duff, Paul Brooks 178 Gathercole, Simon J. 250, 260
Dunn, James D. G. 11, 16, 17, 38-40, 60, 63, 65, Geoffrion, Timothy C. 403
87, 88, 95, 99, 177, 180, 195, 201, 204, 208, Georgi, Dieter 173, 179, 400
219, 225, 243-255, 257, 258, 260, 262,
Gerber, Daniel 15, 16, 201, 228, 446
264, 268, 269, 282-284, 287, 289, 290,
Getti, Mary Ann 417
308, 313, 314, 342, 352, 355, 357, 409,
411, 436, 473 Girard, René 35
Dupont-Roc, Roselyne 288 Given, Mark D. 69
Gnilka, Joachim 135, 224, 271, 287, 290, 318,
Elliott, Mark A. 279 345, 456
Elliott, Neil 15, 32, 161, 169, 173, 180, 184, Goertz, Hans-Jürgen 339
186, 193, 469 Goodenough, Erwin R. 190, 194, 199
Ellis, E. Earle 202, 210, 212, 213, 216, 219 Goodman, Martin 149
Eskola, Timo 29, 279, 280 Gordon, Richard 176
Gourgues, Michel 29, 204, 211-213
Fee, Gordon D. 135, 215, 216 Graetz, Heinrich 154
Feldman, Louis H. 149, 150, 153, 163 Grässer, Erich 102, 221, 317, 325, 354
Finegan, Jack 131 Grossouw, Willem 159
Fischer, Karl Martin 453 Grundmann, Walter 151
Fisch, Richard 374 Güttgemanns, Erhardt 327
Fitzgerald, John T. 67, 77
Fitzmyer, Joseph A. 99, 102, 116, 117, 120, Haacker, Klaus 163, 342, 355
123-127, 130, 257, 285 Haenchen, Ernst 141
Flusser, David 121 Hafemann, Scott J. 164-166, 180
Foessel, Michaël 32 Häfner, Gerd 477
Franck, Didier 32, 33 Hagner, Donald A. 409, 410
Fredriksen, Paula 149, 471 Hahn, Ferdinand 157, 208, 314, 345
Friedrich, Gerhard 350 Haldimann, Konrad 318, 320, 329
Friedrich, Johannes 184 Hamerton-Kelly, Robert G. 35, 375
Friedrichsen, Timothy A. 404 Hansen, G. Walter 78
Friesen, Stephen 171 Harnisch, Wolfgang 271, 272, 332
Fung, Ronal Y. K. 102 Hay, David M. 73, 87, 95, 96, 181, 182, 184-186

511
Índice dos autores modernos
Hayoun, Maurice-Ruben 299 Karrer, Martin 205
Hays, Richard B. 38 Käsemann, Ernst 12, 16, 45, 46, 98, 220, 229,
Heckel, Ulrich 60, 79, 154, 167, 446 230, 321, 353, 359, 374, 404
Heidegger, Martin 339 Kennedy, George A. 59, 79
Hengel, Martin 60, 79, 106, 121, 154, 155, 159, Kern, Philip H. 51
161, 164, 201, 204-211, 218, 220, 226, Kierkegaard, Søren 381, 382
274, 342, 371, 446 Kim, Chan-Hie 399
Hennings, Ralph 465 Kim, Panim 360
Herzer, Jens 465 Kim, Seyoon 160, 162, 165, 204, 280, 284, 289,
Hock, Ronald F. 470 364, 409, 410
Hofius, Otfried 95, 164, 165, 204, 221, 349, Kirchschläger, Walter 222, 223
351 Kirschbaum, Engelbert 466
Holl, Karl 465 Klauck, Hans-Josef 314, 442-444, 452, 460
Holloway, Paul A. 403 Klein, Günter 102, 341, 439, 468
Holtz, Traugott 82, 317, 394 Klijn, Albertus F. J. 395
Hong, In-Gyu 301 Knapp, Dietrich T. 405
Hopes, James H. 162 Knauf, Ernst Axel 131
Horn, Friedrich Wilhelm 355-357, 359 Knox, John 67, 78, 119, 131, 141, 414, 468
Horrell, David 185 Knox, Wilfred L. 88
Horsley, Richard A. 161, 173-175, 181, 184 Koester, Helmut 173
Howard, George 408 Koller, Hermann 414
Hübner, Hans 75, 91, 98, 107, 270, 291, 340, Koperski,Veronica 244, 267
341, 344, 356 Koschorke, Klaus 478
Hultgren, Arland J. 43 Koskenniemi, Heikki 76, 82
Hurd, John 129 Kraege, Jean Denis 368
Hvalvik, Reidar 149 Kraftchick, Steven J. 402
Hyldahl, Niels 131 Krauss, Thomas J. 465
Kraus, Wolfgang 345, 346
Iser, Wolfgang 338 Kreitzer, Larry J. 392
Kühneweg, Uwe 473
Janssen, Claudia 469 Kuhn, Heinz-Wolfgang 106, 350, 351
Jaubert, Annie 401 Kümmel, Werner G. 180, 201, 343
Jeremias, Joachim 148, 152, 162, 217 Kurz, William S. 288, 434
Jervis, L. Ann 78, 79, 82, 102
Jewett, Robert K. 79, 186 Lake, Kirsopp 131
Jocz, Jakob 166 Langevin, Paul-Emile 207, 210, 212, 213
Johnson, E. Elizabeth 73, 95, 96, 181, 182, 184, Lang, Friedrich 407, 423
185, 186 Larsson, Edvin 405
Johnson, Luke T. 44 Lategan, Bernard 369
Judge, Edwin A. 170 Lavater, Johann Caspar 148
Juschnerus, Bernd 399 Le Deaut, Roger 34
Légasse, Simon 304
Kaestli, Jean-Daniel 9, 126, 452, 455, 459 Leipoldt, Johannes 151

512
Paulo, uma teologia em construção
Lémonon, Jean-Pierre 18, 36, 65, 150, 152, May, Gerhard 465
293, 295, 300, 301, 304, 309 McKnight, Scot 149
Levine, Lee 130 Mearns, Christopher L. 393
Levinskaya, Irina 163 Meeks, Wayne A. 30, 31, 170, 171
Lietzmann, Hans 353, 359, 466 Meggitt, Justin J. 170-172, 185, 196, 198
Lincoln, Andrew T. 90, 94 Meier, John P. 203, 218
Lindemann, Andreas 352, 473, 477, 478 Melanchton, Philipp 74, 179
Lohmeyer, Ernst 159, 404 Mengel, Berthold 271
Lohse, Eduard 102, 206, 481, 482 Merklein, Helmut 221, 449, 461
Longenecker, Bruce W. 247, 251, 263 Merz, Anette 461, 478
Lorenz, Chris 338 Meyer, Paul W. 96
Lovering, Eugene H. 90 Michaelis, Wilhelm 414, 419, 427, 434, 435
Luck, Georg 386 Mimouni, Simon C. 203
Luckmann, Thomas 346 Mitchell, Margaret M. 78, 467, 470, 471, 481
Lüdemann, Gerd 126, 130, 131, 141 Mitternacht, Dieter 77, 80
Lull, David J. 308 Monod, Jean-Claude 32
Luther, Martin 34 Montefiore, Claude 14
Luz, Ulrich 320, 321 Moo, Douglas J. 245-247, 264
Lyonnet, Stanislas 39 Müller, Markus 450
Müller, Peter 439, 440, 451, 456, 460
MacDonald, Dennis R. 469, 477 Müller, Ulrich B. 271, 349, 403, 428, 431
Magris, Aldo 386 Müntzer, Thomas 106
Mainville, Odette 29, 211, 217, 461 Murphy-O’Connor, Jerome 40, 44, 124, 125,
Makhloufi, Mustapha 80 126, 127, 128
Malherbe, Abraham J. 77, 170, 317 Mussner, Franz 147
Malina, Bruce J. 381, 468
Marguerat, Daniel 9, 11, 17, 27, 65, 211, 212, Nanos, Mark 179
217, 267, 271, 275, 314, 418, 422, 455 Neirynck, Frans 203
Marshall, Peter 171 Neuhaus, David 29
Martin-Achard, Robert 299 Neyrey, Jerome H. 381, 468
Martin, Brice L. 40 Nickelsburg, George W. E. 156
Martin, Dale B. 172 Nicolet, Philippe 22, 413, 447
Martin, François 408 Niebuhr, Karl-Wilhelm 342
Martin, Ralph Philip 180, 392, 404 Nietzsche, Friedrich 30-33
Martone, Corrado 398 Nodet, Etienne 122, 160
Martyn, J. Louis 117, 176, 177, 229, 230, 233, Noormann, Rolf 473
247, 249, 300, 319, 369, 370, 406
Marxsen, Willi 420 O’Brien, Peter T. 150, 260, 276, 279, 285, 402
Mason, Steve 79 Olbrechts-Tyteca, Lucie 81, 85
Massonnet, Jean 293 Ollrog, Wolf-Henning 450
Matera, Frank J. 409 Oppenheimer, Aharon 389
Matlock, R. Barry 43, 100 Orrieux, Claude 149
Maurer, Christian 104 Otto, Rudolf 346

513
Índice dos autores modernos
Padovese, Luigi 29 Robert, Jacques 34
Pagels, Alaine 478 Robinson, John A. T. 33
Pascal, Blaise 363, 378 Roetzel, Calvin 174, 221
Patte, Daniel 19, 101 Rokeah, David 147, 149
Paulsen, Henning 208, 225 Roloff, Jürgen 215, 314
Penicaud, Anne 80 Romanello, Stefano 95
Penna, Romano 22, 90, 385, 396, 401, 447 Rordorf, Willy 477
Perelman, Chaïm 81, 85 Rose, Martin 36, 328, 375
Peterson, Brian K. 79 Rosenius, Bärbel 377
Peterson, Norman 172 Rudolph, Kurt 386
Pfitzner,Victor C. 62 Rüsen, Jôrn 338, 347
Pickett, Raymond 104 Rutgers, Leonard V. 183, 185
Pitta, Antonio 59, 78, 374, 406
Pixner, Bargil 121 Sacchi, Paolo 156
Plevnik, Joseph 99, 101 Saller, Richard 171
Pöhlmann, Wolfgang 184 Sampley, J. Paul 96, 186
Popper, Karl R. 385, 386 Sanders, Ed P. 11, 13-15, 17, 37, 38, 64, 74, 98,
Porter, Stanley E. 77, 78, 253 99, 175, 258, 268, 277-283, 287, 289, 315,
361, 364
Poupon, Gérard 466
Sandnes, Kark Olav 160
Powers, Daniel Glenn 360
Sänger, Dieter 408
Price, Simon R. F. 174, 175
Schäfer, Peter 182, 183
Punt, Jeremy 204
Schelkle, Karl Hermann 202
Schenke, Hans-Martin 439, 455
Qimron, Elisha 261
Schenke, Ludger 203, 210-212
Quesnel, Michel 12, 27
Schenk, Wolfgang 271, 272
Schiffmann, Lawrence H. 115
Räisänen, Heikki 19, 246, 247, 260, 268, 281,
Schlatter, Adolf 145, 146
345, 361, 364, 409
Schlier, Heinrich 318, 355
Rakotoharintsifa, Adrianjatovo 221, 222
Schlosser, Jacques 29, 30, 59, 63, 202, 214, 216,
Rastoin, Marc 61
217, 301, 304
Reasoner, Mark 185, 186
Schmeller,Thomas 53, 204, 440-444, 456-458,
Redalié,Yann 232 460, 467, 478
Reese, James M. 374 Schmitt, Joseph 216-218, 226
Rehkopf, Fredrich 350 Schnabel, Eckhard J. 158
Reinbold, Wolfgang 164 Schneemelcher, Wilhelm 480
Reinmuth, Eckhart 340 Schneider, Sebastian 394, 395
Reiser, Marius 164 Schnelle, Udo 20, 75, 99, 202, 214, 219, 314,
Richardson, Peter 78, 79, 82, 102, 283 315, 318, 337, 340, 348, 352, 355-357,
Ricoeur, Paul 32, 337, 363 362, 440, 445, 452, 453, 455, 460
Riesner, Rainer 15, 145, 150, 154, 156, 158, Schoeps, Hans-Joachim 14, 118, 146, 148, 277,
159, 162, 164, 165, 204 281, 308
Rigaux, Béda 213, 285, 418-420 Scholtissek, Klaus 340, 440, 460
Ritter, Adolf Martin 470 Schoon-Janssen, Johannes 403

514
Paulo, uma teologia em construção
Schottroff, Luise 469 Taatz, Irene 76
Schrage, Wolfgang 215, 221, 222, 254, 317, Taeger, Jens-Wilhelm 468
319, 322, 324-326, 358, 397 Talmon, Shemaryahu 116
Schreiner, Thomas R. 245, 247 Taubes, Jacob 30, 32, 33
Schulz, Siegfried 75 Taylor, Justin 122, 131, 160
Schunack, Gerd 227 Testa, Emmanuele 403
Schürer, Emil 148 Theissen, Gerd 30, 170, 171, 203, 342, 354
Schüssler-Fiorenza, Elisabeth 171, 172 Theobald, Michael 63
Schütz, Alfred 346 Thiselton, Anthony C. 62, 245
Schweitzer, Albert 19, 21, 98, 352, 364 Thrall, Margaret E. 399, 400
Schwemer, Anna Maria 161, 208, 218, 226, Thümmel, Hans-Georg 466
274, 371, 446
Thurén, Laura 96
Schwindt, Rainer 477
Thüsing, Wilhelm 356
Scott, James M. C. 164, 187-192, 198, 217
Tolbert, Mary Ann 171
Scroggs, Robin 221
Trebilco, Paul R. 153
Segal, Alan F. 30, 161
Trilling, Wolfgang 451
Seifrid, Mark A. 260, 279, 344
Trobisch, Walter 454
Seland, Torrey 410
Sellin, Gerhard 47, 377 Troiani, Lucio 389
Selvini-Palazzoli, Mara 375 Tuckett, Christopher M. 204, 207, 208, 220,
228
Senft, Christophe 202, 215, 219, 368, 372, 375,
413, 417, 423-425, 434
Shaw, Graham 436 Umbach, Helmut 352-354
Siegert, Folker 52 Urbach, Ephraïm E. 299, 300, 307, 309
Slingerland, H. Dixon 182
Smallwood, E. Mary 125 Valloton, Pierre 379
Smit, Joop F. M. 78 Vanhoye, Albert 91, 203, 213, 220, 222, 255
Söding, Thomas 75, 119, 340, 351, 356, 464 Vansina, Jan 376
Stanley, Christopher D. 35 Vasse, Denis 239
Stanley, David M. 417 Vielhauer, Philipp 117, 206, 212, 213
Stegemann, Ekkehard W. 30 Vollenweider, Samuel 23, 313, 322, 349, 357,
Stegemann, Wolfgang 30 358, 405, 461, 463
Stemberger, Günter 299, 442 Von Bendemann, Reinhard 75
Stendhal, Krister 180 Von Dobbeler, Axel 21
Stolle,Volker 465 Vonglis, Bernard 61
Stowers, Stanley K. 53, 76, 173, 174, 181, 399 von Harnack, Adolf 32, 126
Strack, Hermann L. 299, 389 Von Lips, Hermann 202-204, 206, 212-214,
Straub, Jürgen 338, 340, 346, 347 219, 223
Strecker, Christian 343, 348, 349, 352, 354, Vos, Johannes S. 60, 61, 357
360, 468, 473 Vouga, François 21, 203, 212, 218, 220, 223,
Strugnell, John 261 227, 271, 314, 331, 363, 369, 373, 374, 377
Stuehrenberg, Peter F. 151, 152
Stuhlmacher, Peter 82, 102, 157-159, 184, 202, Wagner, Guy 379, 381
204, 247, 265, 342, 409 Watson, Francis 160, 182, 409
Suggs, M. Jack 132 Watzlawick, Paul 374

515
Índice dos autores modernos
Weakland, John H. 374 Winter, Bruce W. 56, 397
Wedderburn, Alexander J. M. 340 Wisdom, Jeffrey R. 263
Weder, Hans 222, 318, 319, 322, 323, 329, 331, Witherington, Ben (III) 249, 262, 468
350 Wolff, Christian 213, 215, 216, 221, 400
Wegenast, Klaus 225, 228 Wolter, Michael 221, 467, 477
Wegener, Mark I. 403 Woolf, G. 178
Wehn, Beate 469 Worthman, R. A. 402
Wehr, Lothar 465, 467 Wrede, William 74, 98, 344, 451
Weiser, Alfons 457 Wright, Nicholas Thomas 173, 182, 185
Wengst, Klaus 210, 223, 225, 226 Wuellner, Wilhelm 79, 91
Wenham, David 165, 341
Westerholm, Stephen 264, 267, 300 Yinger, Kent L. 265, 409
Wettstein, Johann Jakob 148
White, John L. 76, 174 Zahn, Theodor 159
Wilckens, Ulrich 227 Zanker, Paul 174, 175
Wiles, Maurice F. 480 Zumstein, Jean 20, 36, 202, 206, 208, 217, 218,
Wilk, Florian 204 225, 228, 236, 313, 317, 318, 321, 322,
Will, Edouard 149 425, 461, 477

516
Paulo, uma teologia em construção
Lista dos autores

Jean-Noël Aletti (Institut Biblique Pontifical, Roma)


Giuseppe Barbaglio (Bibliste, Roma)
Elian Cuvillier (Faculté libre de théologie protestante, Montpellier)
Andreas Dettwiler (Faculté autonome de théologie, Université de Genève)
Karl P. Donfried (Smith Gollege, Northampton [MA], EUA)
James D. G. Dunn (Université de Durham, Inglaterra)
Neil Elliot (Metropolitan State University et United Theological Seminary, Minneapo-
lis [MN], EUA)
Daniel Gerber (Faculté de théologie, Université Marc Boch de Strasbourg)
Jean-Pierre Lémonon (Faculté de théologie, Unviersité Catholique de Lyon)
Daniel Marguerat (Faculté de théologie protestante, Université de Lausanne)
Philippe Nicolet (Bibliste, Péry-Reuchenette, Suíça)
Romano Penna (Université du Latran, Roma)
Michel Quesnel (Université catholique de Lyon)
Rainer Riesner (Université de Dortmund)
Udo Schnelle (Faculté de théologie, Université de Halle-Wittenberg)
Samuel Vollenweider (Faculté de théologie, Université de Zurich)
François Vouga (Kirchliche Hochschule, Bethel, Bielefeld, Alemanha)
Jean Zumstein (Faculté de théologie, Université de Zurich)

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