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BRASIL

história, escritura e teologia


DANIEL MARGUERAT
[0RG.]

história, escritura e teologia

TRADUÇÃO
Margarida Oliva

Edições Loyola
Título original:
Introduction au Nouveau Testament - Son
histoire, son écriture, sa théologie
© 2000, 20012, 20043by Editions Labor et Fides
ISBN 978-2-8309-1149-7

Preparação: Maurício Balthazar Leal


Revisão: Renato da Rocha
Diagramação: Flávio Santana

Edições Loyola
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ISBN 978-85-15-03627-1
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário

P re fá c io .............................................................................
D an iel M arguerat

parte 1
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos
capí t ulo I
O problem a sin ó tico ......................................................
D an iel M arguerat

c apí t ul o 2
O evangelho segundo M a rc o s ....................................
C orin a Com bet-G alland

capí t ulo 3
O evangelho segundo M a te u s ....................................
Elian C u v illie r

capí t ul o 4
O evangelho segundo Lucas .......................................
D aniel M arguerat

capí t ulo 5
O s A tos dos a p ó sto lo s..................................................
D aniel M arguerat
A literatura paulina
capítulo 6
Cronologia p aulin a.............................................................................171
François Vouga

capítulo 7
O c o rp u s paulino ..............................................................................181
François Vouga

parte 2.1
As epístolas de Paulo
cap í t u l o 8
A epístola aos R om an os.................................................................207
François Vouga

c apí t ul o 9
A primeira epístola aos C orín tios............................................... 233
François Vouga

cap í t u l o 10
A segunda epístola aos C o rín tio s.................................................259
François Vouga

cap í t u l o 11
A epístola aos G á la ta s......................................................................277
François Vouga

cap í t u l o 12
A epístola aos F ilip en ses................................................................. 297
François Vouga

c apí t ul ol 3
A primeira epístola aos T essa lo n ic en se s.................................. 315
François Vouga

c apí t ul o 14
A epístola a F ilêm on.......................................................................... 329
François Vouga
As epístolas deuteropaulinas
c apí t ul o 15
A epístola aos C o lo ssen ses......................................................... 339
Andreas D ettw iler

c apí t ul o 16
A epístola aos E fésios................................................................... 357
Andreas D ettw iler

c apí t ul o I 7
A segunda epístola aos T essalo n icen ses..................................377
Andreas D ettw iler

parle 2.3
As epístolas pastorais
c apí t ul o 18
As epístolas pastorais (1 e 2 T im óteo; T ito ) ......................... 393
Yann Redal/é

parle 2.4
Hebreus
capí t ul o 19
A epístola aos H e b re u s ................................................................ 419
François Vouga

parle 3
A tradição joanina
capí t ul o 20
O evangelho segundo J o ã o ......................................................... 437
Jean Zum stein

capí t ul o 2 I
As epístolas jo a n in a s .................................................................... 471
Jean Zumstein

capí t ul o 22
O apocalipse de J o ã o .................................................................... 493
E lian C u v illie r
As epístolas católicas
cap í t u l o 23
A epístola de T ia g o .......................................................................... 517
François Vouga

c a p í t u l o 24
A primeira epístola de P ed ro........................................................ 533
Jacques Schlosser

c apí t ul o 25
A segunda epístola de P ed ro ..........................................................549
Jacques Schlosser

cap í t u l o 26
A epístola de J u d a s ............................................................................559
Jacques Schlosser

parte 5
A história do cânon
cap í t u l o 27
H istória do cânon do N o v o T estam en to .................................. 571
Jea n -D a n iel Kaestli

parle 6
A crítica textual
c apí t ul o 28
O te x to do N o v o T estam en to e sua h istó r ia ......................... 607
Roselyne D upont-Roc

G lossário................................................................................................ 635

Índice de nom es e t e m a s ................................................................647


Prefácio
Daniel Marguerat

Esta Introdução ao Novo Testamento é publicada no limiar do


terceiro milênio. Estava na hora. A exegese francesa não publicara
nada nesse campo desde 1976-1977, quando A. George e P Grelot
editaram sua valiosa Introduction à la Bible — Edition Nouvelle, para
o Novo Testamento. Em comparação com a profusão de manuais de
introdução à disposição dos biblistas, em inglês, alemão ou italiano, a
indigência da produção francófona chegava a ser vergonhosa.
Esta publicação foi concebida de ponta a ponta como um manual,
destinado a biblistas, estudantes das faculdades e escolas de teolo-
gia e, enfim, a todas as pessoas que se interessem por uma leitura
rigorosa dos escritos do Novo Testamento. Trata-se, então, de um
manual: não diz tudo, mas seleciona e hierarquiza a informação útil;
garante uma compreensão coerente no campo da literatura neo-
testamentária; explora as questões em debate e faz o inventário das
principais hipóteses formuladas para lhes dar resposta; procura a sín-
tese. A idéia é oferecer ao leitor iniciante uma visão global dos pro-
blemas históricos e literários levantados pela redação de cada livro
do Novo Testamento, mas sem deixá-lo perdido numa profusão de
referências; só as teses significativas são mencionadas e atribuídas a
seu autor de origem. Cada co-autor do manual se obrigou, portanto,
não apenas a selecionar as hipóteses pertinentes ao assunto, mas a

9
NOYO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia

expô-las com o máximo de objetividade e, depois, decidir com base


em sua opção pessoal. O leitor, a leitora apreciarão também o glos-
sário, que define os termos técnicos utilizados. Um índice facilita a
pesquisa por tema.
A apresentação de cada escrito do Novo Testamento se desenvol-
ve seguindo, grosso modo, as mesmas rubricas. Começa-se por uma
apresentação literária do escrito; a estrutura é exposta e justificada
(pois todo dispositivo estrutural procede de uma escolha de leitura,
que deve ser objetivada a partir de indicadores textuais); o conteú-
do é desenvolvido em função da estrutura. Depois vem o exame do
meio histórico de produção, que aborda sucessivamente a questão do
autor, da datação do escrito, do meio de origem e da identidade de
seus primeiros destinatários. A composição literária explora o que se
pode dizer das fontes literárias com as quais o autor trabalhou, mas
também das tradições religiosas que modelaram seu pensamento. O
título intenção teológica não subentende que a obra se reduza a uma
única intenção; é o programa teológico do autor (voltando, às vezes,
às rubricas clássicas: história da salvação, cristologia, eclesiologia,
ética) que é sucintamente descrito. As novas perspectivas indicam,
além dos dados que foram expostos, quais são os novos passos dos
pesquisadores; sem decidir de seu valor, o esforço aqui é assinalar os
novos questionamentos que surgem no horizonte da pesquisa. A úl-
tima rubrica, bibliografia, apresenta uma seleção de leituras aconse-
lhadas em virtude de seu valor e, às vezes, do papel por elas desem-
penhado na pesquisa. Sob o título "Leitura prioritária” se encontram
algumas obras recomendáveis por sua função propedêutica e pelas
quais o leitor poderá iniciar sua exploração pessoal.
O reagrupamento dos escritos neotestamentários se conformou
aos corpora literários classicamente reconhecidos: tradição sinótica e
Atos — literatura paulina (compreendendo as epístolas deuteropau-
linas e as pastorais) — tradição joanina (compreendendo o Apocalip-
se) — epístolas católicas. No interior dos corpora, os escritos foram
repartidos em categorias segundo o gênero literário ou o autor pre-
sumido; a ordem de sucessão no cânon foi respeitada, salvo quando
as considerações pedagógicas a exigiam de outra forma.

10
Prefácio

O roteiro fixado para a apresentação de todos os escritos do


Novo Testamento revela a epistemologia a que se prendem os au-
tores deste manual: eles partilham a convicção originária da abor-
dagem histórico-crítica, a saber, que uma leitura adequada dos tex-
tos requer que estes sejam recolocados no meio histórico (literário,
cultural, religioso) que os viu surgir. É com a finalidade de proteger
a leitura dos anacronismos selvagens que este manual empreende
mergulhar os escritos neotestamentários no meio em que nasceram
e para o qual nasceram.
Os leitores habituais de introduções ao Novo Testamento nota-
rão as originalidades deste manual em comparação com seus pre-
decessores dos anos 1950-1980. Assinalo principalmente: o lugar
dado à apresentação literária de cada escrito, pela qual se inicia
a análise; a prioridade conferida ao trabalho de composição e es-
critura do autor; a importância menor atribuída à hipotética re-
construção da identidade do autor. Finalmente, a formulação de
novas perspectivas é testemunho de uma concepção evolutiva, não
esclerosada, da pesquisa no campo da introdução do Novo Testa-
mento. Quanto aos instrumentos de análise textual à disposição
dos pesquisadores, o assombroso progresso das leituras pragmáti-
cas (análise narrativa e análise retórica) levou a não mencioná-las
como novas perspectivas, visto que são plenamente reconhecidas
hoje; em compensação, o leitor constatará sua presença no corpus
de cada capítulo.
Para os que pensam que a exegese histórico-crítica constitui uma
disciplina imobilizada em seus procedimentos, este manual ofere-
ce a demonstração clara de uma renovação das categorias literárias
clássicas operada pelos instrumentos da narratologia e da retórica.
Emerge um novo paradigma, no qual um questionamento funda-
mentalmente histórico é dotado, a título combinatório, de instru-
mentos próprios para sondar a estratégia de escritura dos autores do
Novo Testamento. A análise histórico-crítica pode, então, aderir ao
postulado que a semiótica e, em seguida, a narratologia enunciaram:
é essencialmente por meio de suas escolhas de escritura que um au-
tor se dá a conhecer. O presente manual subscreve esse postulado,

11
NOVO TESTAMENTO - historia, escritura e teologia

sem, por isso, deixar de usar todas as fontes à sua disposição para
esboçar (pelo menos) um perfil do autor.
Os co-autores deste manual ensinam nas faculdades de teologia
protestante de Lausanne (Jean-Daniel Kaestli, Daniel Marguerat),
Neuchâtel (Andreas Dettwiler), Zurique (Jean Zumstein), Bethel-
Bielefeld (François Vouga), Paris (Corina Combet-Galland), Mon-
tpellier (Elian Cuvillier), Roma (Yann Redalié) e na faculdade de
teologia católica de Strasbourg (Jacques Schlosser). A preparação
do manuscrito se beneficiou dos cuidados atentos de Emmanuelle
Steffek.
Nosso desejo? Que este manual desempenhe plenamente seu
papel: introduzir, isto é, levar para dentro do Novo Testamento e
abri-lo para a leitura.
Lausanne, verão de 2000

P a r a a t e r c e ir a e d iç ã o
Esta obra já encontrou seu lugar de manual para o estudo do
Novo Testamento. Nas faculdades de teologia e nos locais de for-
mação bíblica, ela oferece os elementos indispensáveis para situar os
escritos fundadores do cristianismo em seu meio histórico de produ-
ção. Um 28° capítulo, acrescentado por ocasião da segunda edição,
apresenta “O texto do Novo Testamento e sua história”, devido à
competência de Roselyne Dupont-Roc (Instituto Católico de Paris).
Novidade desta terceira edição: a atualização das bibliografias e de
alguns textos, e a eliminação de algumas falhas tipográficas. Mais
uma vez, Emmanuelle Steffek prestou o enorme serviço de coorde-
nar a edição; ela tem direito à gratidão dos autores.
Lausanne, verão de 2004

12
parte 1
A tradição sinótica e os
Atos dos apóstolos
0 problema sinótico
Daniel Marguerat

Os três primeiros evangelhos são chamados “sinóticos” (a pala-


vra foi introduzida por J. J. Griesbach em 1776) porque sua grande
semelhança permite “vê-los juntos” (σύν - όι|ας); desde então se
dá o nome de sinopse ao manual que, dispondo o texto de Mateus,
Marcos e Lucas em colunas paralelas, permite a visão simultânea e a
comparação de suas formulações.
O problema sinótico é o seguinte: que relação esses três escritos
têm um com o outro? A crítica das fontes compreende essa questão
de um ponto de vista genealógico: a relação entre os três sinóticos é
detectada na dependência que revelam de um em relação ao outro;
a pesquisa visa, portanto, a identificar que evangelho tem prioridade
literária na relação de cada um com os outros.1

1. O FATO SINÓTICO. INVENTÁRIO


As narrativas de Mateus, Marcos e Lucas apresentam duas
características que os distinguem do quarto Evangelho. O modo
de composição narrativa, por um lado, é análogo: consiste em
uma sucessão de pequenas unidades literárias (logia, parábolas,
milagres, controvérsias) articuladas mais ou menos firmemente
uma à outra. Por outro lado, em número apreciável, essas uni-
dades literárias se encontram nos três evangelhos, ou em dois.
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

O quarto Evangelho, por seu lado, organiza o relato em grandes


sequências narrativas cujo texto coincide muito pouco com o dos
evangelhos sinóticos.
A pré-história das pequenas unidades literárias, antes de sua inte-
gração no texto dos evangelhos, foi esclarecida pela crítica das for-
mas (Formgeschichte): parábolas, relatos de milagre, controvérsias,
logia receberam sua marca formal no curso de sua transmissão no
estágio da oralidade. A tradição de Jesus não foi guardada pelos pri-
meiros cristãos com interesse documentário, mas para responder às
necessidades do ensino, da proclamação missionária, da celebração
litúrgica ou de codificação ética das primeiras comunidades cristãs.
Foi por isso que ela se fixou, já oralmente, em formas literárias dita-
das pelo meio de vida comunitária (Sitz im Leberí) nas quais se insere-
viam: catequese, culto, debate com a Sinagoga etc.1. Sua recepção
nos evangelhos sinóticos não despojou essas unidades literárias de
suas características formais; a comparação de um Evangelho com
outro ficou, desde então, muito mais fácil.

/. I. A s múltiplas coincidências narrativas


Uma observação estatística leva a descobrir que Mateus, Marcos
e Lucas apresentam, cada um, mas em proporções extremamen-
te variáveis, dois tipos de materiais narrativos: os materiais que eles
têm em comum com um ou dois dos outros evangelhos e os que
lhes pertencem como próprios. A repartição pode ser quantificada;
convém, entretanto, ter em mente que esses números têm só um
valor global, pois a atribuição de um versículo ou de uma parte do
versículo permanece, às vezes, duvidosa.*6

1 As obras de referência da Formgeschichte são: Rudolf BULTMANN,


Lhistorire de la tradition synoptique, Paris, Seuil, I973 (orig. al. 1921); Mar-
tin DIBELIUS, Die Formgeschichte des Evangeliums, Tübingen, Mohr, I919,
6l971; Karl Ludwig SCHMIDT, Der Rahmen der Geschichte Jesu, Berlin,
Trowitzsch, 1919; Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969.
Para uma exposição da crítica das formas: Gerhard LOHFINK, Enfin je
comprends la Bible, Cenève, Labor et Fides, 1987; Graham STANTON,
Parole d ’Evangile?, Paris/Montreal, Cerf/Novalis, 1997, 69-83.

16
O problema sinótico

Percebe-se que Marcos e Lucas apresentam traços inversos:


Marcos contém apenas uma pequena quantidade de material pró-
prio (26 versículos em um total de 661), ao passo que a parte es-
pecífica de Lucas atinge quase a metade do texto (550 versículos
em 1.149); a repartição proporcional de Mateus situa-o entre es-
ses dois evangelhos. Por outro lado, identificamos 80% do material
de Marcos em Mateus e 55% em Lucas. O texto comum a Mateus,
Marcos e Lucas (tradição tríplice) cobre 330 versículos, enquanto o
texto de tradição dupla (Mateus-Lucas) comporta cerca de 235. As
coincidências narrativas entre os sinóticos são, portanto, ao mesmo
tempo grandes e múltiplas.

1.2. Semelhanças e divergências


Ao se comparar os textos dos três evangelhos com o auxílio de
uma sinopse, constata-se que suas relações recíprocas são feitas,
ao mesmo tempo, de semelhanças impressionantes e de inegáveis
divergências. Semelhanças e divergências caracterizam tanto a es-
trutura e o conteúdo da narrativa como a sucessão das perícopes
(unidades literárias) ou a formulação do texto.

17
A tradição sinótica e os A tos dos apóstolos

Estrutura e conteúdo
Semelhanças Divergências
• Mesma estrutura fundamental do • Narrativas da infância (Mt 1-2; Lc
evangelho: João Batista/batismo 1-2) não concordantes, ausentes em
marcando o inicio da atividade públi- Marcos.
ca de Jesus/milagres e pregação na
Galiléia/viagem a Jerusalém/Paixão e
ressurreição.
• Duração do ministério de Jesus: cerca • Genealogia de Jesus discordantes (Mt
de um ano (João: três anos) 1: 3 séries de 14 nomes de Abraão a
Jesus; Lc 3: 77 nomes de Adão a José).
• Alternância de unidades literárias • O Sermão da Montanha (Mt 5-7) tem
diversas, ligeiramente localizadas. um breve paralelo em Lucas 6,20-49,
mas quase nenhum material comum
com Marcos.
• Inúmeras parábolas só se encontram
em Lucas (o samaritano, o filho perdi-
do, 0 fariseu e o coletor de impostos, o
rico e Lázaro etc.).
• As aparições do Ressuscitado estão
ausentes em Marcos 16,1-8; ocorrem
na Galiléia, segundo Mateus (28,16-
20), em Jerusalém segundo Lucas
(24,13-53).

Sucessão de perícopes
Semelhanças Divergências
Exemplos de seqüências idênticas de Exemplos de divergências no encadea-
várias perícopes: mento das perícopes:
• Marcos 2 ,1 -2 2 //M a teu s 9 ,1 -1 7 // • Marcos 6,1-6 (// Mt 13,53-58) conta
Lucas 5,17-39: cura de um paralítico, a pregação e a rejeição de Jesus em
vocação de um coletor de impostos, Nazaré; Lucas situa essa pregação no
refeição com os pecadores, controvér- início de seu evangelho (Lc 4,16-30).
sia sobre o jejum. • Marcos 1,16-20// (Mt 4,18-22) relata a
• Marcos 12,13-37a / / Mateus 22,15-46 vocação dos primeiros discípulos; Lucas
/ / Lucas 20,20-44: quatro relatos de situa a vocação de Pedro depois da
controvérsia. pesca abundante (Lc 5,1-11).
• Mateus 7,15-27 / / Lucas 6,43-49: logia • Marcos evoca primeiro o sucesso po-
sobre a árvore e seus frutos, parábola pular de Jesus e se.us milagres, depois
das duas casas. a instituição dos Doze (Mc 3,7-12.13-
• Marcos 8,2 7 -9 ,8 / / Mateus 16,13-17,8 19). Lucas procede de modo inverso (Lc
/ / Lucas 9,18-36: confissão de Pedro, 6,12-16.17-19).
anúncio da Paixão, Transfiguração.

18
O problema sinótico

Formulação
Numerosos casos de identidade verbal Divergências notáveis, mesmo no caso
nos três evangelhos. Exemplos: de tradições paralelas.
• Marcos 2,9 / / Mateus 9,5 / / Exemplos:
Lucas 5,23. • Mateus 22,1-14 (festa nas bodas do
• Marcos 15,43 / / Mateus 27,58 / / Lucas filho do rei) e Lucas 14,15-24 (um
23,52. banquete).
• Marcos 8,35 / / Mateus 16,25 / / Lucas • N o encontro com o moço rico, compa-
9,24. rar Marcos 10,18 e Mateus 19,17.
A identidade caracteriza, também, as • Na narrativa da Paixão, as versões das
citações do Antigo Testamento diver- últimas palavras de Jesus não concor-
gentes da versão grega da Septuaginta: dam entre si: comparar Marcos 15,34
• Marcos 1 ,3 // Mateus 3,2 / / (// Mt 27,46) e Lucas 23,34.43.46
Lucas 3,4. (três outras palavras).
Mesmo alguns termos insólitos ou
raros, em grego, se encontram nos três
sinóticos:
• pedaço de pano (έ π ίβ λ η μ κ : Mc 2,21
e //)
• espiga (σπόριμος: Mc 2,23 e //)
• migalha (ψ ίχίΟ Ρ : Mc 7,28 e //)
• peixinho (ίχθ1)δ10 ν: Mc 8,7 e //)

O número de semelhanças é grande demais para ser atribuído ao


acaso. Se esses contatos não são fortuitos, a hipótese mais verossí-
mil é que denotam uma dependência literária entre os escritos. Que
dependências e em que sentido?
Formulada nesses termos, a questão é recente na história da lei-
tura dos evangelhos. Durante o longo tempo em que os evangelistas
foram considerados testemunhas oculares, suas diferenças se expli-
cavam pela variedade das lembranças. Uma única exceção entre os
Padres da Igreja: Santo Agostinho, que no ano 400, no De consen-
su evangelistarum, quis responder às críticas relativas à contradição
entre os evangelhos; sua tese era que os evangelhos tinham apa-
recido segundo a ordem canônica, Mateus primeiro, Marcos como
uma abreviação de Mateus (1,2) e Lucas para evidenciar a dimensão
sacerdotal de Cristo (1,3). Sua teoria exerceu enorme influência ao
longo da história da Igreja.

19
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Foi a partir do fim do século XVIII que a pesquisa, estimulada pela


busca do Jesus histórico, situou a questão da dependência entre os
sinóticos não mais no plano dogmático, mas nos planos literário e
histórico. Até hoje, as teorias explicativas se dividem em duas cate-
gorias: a derivação de um modelo comum ou o estabelecimento de
uma genealogia entre os sinóticos.

2. A DERIVAÇÃO DE UM MODELO COMUM


As hipóteses formuladas podem ser reagrupadas em três mode-
los. Os nomes de seus iniciadores serão mencionados, mas essas hi-
póteses foram, e ainda são, formuladas com múltiplas variantes.

2. /. Hipótese do Evangelho primitivo


Segundo esta hipótese os três sinóticos seriam obras independen-
tes, derivadas de um Evangelho primitivo, que se perdeu, redigido
em hebraico ou em aramaico. G. E. Lessing (1729-1784), o primeiro
a propor esse modelo explicativo, pensava no Evangelho dos hebreus
ou Evangelho dos nazarenos mencionado pelos Padres da Igreja; esse
proto-evangelho, redigido pelos apóstolos, teria contido a narração
exaustiva da vida de Jesus desde o nascimento até a ressurreição.
Cada evangelista teria tirado daí o que quis. A título complementar,
às vezes se postula que Marcos dispunha de uma versão abreviada
do Evangelho primitivo.

20
O problem a sinótico

Essa hipótese explica bem as identidades verbais entre os sinóti-


cos, sob a condição de terem eles se servido da mesma versão gre-
ga do Evangelho primitivo. Mas não explica de maneira satisfatória
as notáveis diferenças que se observam (por exemplo, nos relatos
da infância ou nas últimas palavras de Jesus). Do mesmo modo, o
abandono em Marcos de uma porção considerável da matéria, assim
como a parte importante de material próprio em Mateus e em Lucas
permanecem inexplicados.

2.2. Hipótese dos fragmentos (ou diegeses)


E D. E. Schleiermacher (1768-1834), o primeiro a formular esta
teoria, situava a redação dos evangelhos no fim de um processo de
coleção de pequenos relatos independentes uns dos outros. Logo
depois da morte de Jesus, palavras e relatos de suas ações teriam
sido consignados em breves notas que Schleiermacher, retomando
o vocábulo do prólogo do Evangelho de Lucas, chama de “diegese”
(“Visto que muitos já tentaram compor uma narração [διήγησις]
dos fatos que se cumpriram entre n ós...”, Lc 1,1). Cada evangelista
teria feito sua seleção particular da profusão das informações.

Marcos Mateus Lucas

21
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Essa hipótese está correta quando postula uma fragmentação da


tradição na origem; a identificação pela Formgeschichte do material
diversificado de que se serviu a redação dos evangelhos confirmou
essa intuição. Se a identidade da formulação é explicável nesse qua-
dro, a sucessão idêntica das perícopes e, sobretudo, os paralelos es-
truturais não recebem, em contrapartida, nenhuma legitimação. O
defeito desse modelo explicativo é o inverso do precedente: explica
as divergências, mas não as convergências.

2.3. Hipótese da tradição oral


Discerne-se aqui, por trás da escritura dos evangelhos, não tex-
tos já fixados, mas um fluxo de tradição oral que remontaria aos
apóstolos. “Uma lei deve ser dada por escrito; uma Boa-Nova é pro-
clamada” (J. G. Herder, 1744-1803). Os acordos entre os evange-
lhos se deveríam à regulação apostólica da tradição oral, ao passo
que as divergências traduziríam a inflexão dada pelos evangelistas,
em atenção, para cada um deles, ao seu círculo de leitores (J. C. L.
Gieseler, 1792-1854). B. Reicke (1986) fez a tradição comum remon-
tar à Igreja primitiva de Jerusalém, da qual Marcos teria recebido e
traduzido para o grego2.

M arcos M ateus Lucas

2 Bo REICKE, The Roots ofthe Synoptic Gospels, Philadelphia, Fortress Press,


1986.

22
O problema siçótico

O duplo mérito dessa teoria está em sua valorização da ora-


lidade na pré-história dos evangelhos e em seu discernimen-
to de uma criatividade literária e teológica atuante por ocasião
do registro escrito da tradição. Mas, para além das semelhan-
ças setoriais, as analogias estruturais de um Evangelho para ou-
tro ultrapassam as capacidades de retenção da memória; por
outro lado, poderíam as notáveis diferenças ser atribuídas apenas
à liberdade interpretativa dos evangelistas?

Conclusão
Os três modelos inventariados conseguem explicar os acordos
entre os sinóticos, ou suas divergências, mas não resolvem os dois
problemas ao mesmo tempo: o das aproximações e o das diferenças.
Para elucidar esse duplo fenômeno, um outro parâmetro deve inter-
vir no sistema explicativo: as mediações literárias de um Evangelho
para outro. A reconstrução da filiação passa, então, de uma deriva-
ção imediata para um modelo genealógico.

3. A GENEALOGIA DOS TRÊS SINÓTICOS


Dois modelos genealógicos, cada um com múltiplas variantes,
são propostos para resolver o problema sinótico: o modelo de uti-
lização (dito também modelo dos dois evangelhos) e o modelo das
duas fontes.

3.1. Modelo de utilização


A diferença das hipóteses de derivação citadas acima, este mo-
delo explicativo considera uma relação de dependência entre os três
sinóticos; em compensação, exclui toda ingerência de uma outra
fonte. J. J. Griesbach (1745-1812), o inventor do nome “sinótico”,
elaborou uma hipótese diretamente inspirada em Santo Agostinho,
ao postular a sucessão Mateus-Lucas-Marcos; Marcos, quase intei-
ramente compreendido em Mateus e Lucas, resultaria da vontade
de resumir os evangelhos mais antigos.

23
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

K. Lachmann (1793-1851) adotou o mesmo sistema triangular,


modificando, porém, os pólos: ele defendia a prioridade literária de
Marcos; Mateus e Lucas viríam em seguida. W. R. Farmer (1964)
voltou à hipótese de Griesbach, rebatizando-a “hipótese dos dois
evangelhos”3. A prioridade mateana é afirmada; a redação de Lu-
cas, inspirada em Mateus, vem depois. Marcos, o último dos sinó-
ticos, foi redigido em Roma, no intuito, por um lado, de eliminar as
contradições entre Mateus e Lucas e, por outro, de purgar a tradi-
ção evangélica de seus elementos judaicos (influência paulina sobre
Marcos); ele não viria concorrer com os dois primeiros evangelhos,
mas completá-los no espírito dos discursos missionários de Pedro,
nos Atos dos Apóstolos, em que os logia de Jesus não têm nenhum
papel (ver At 2—4; 10,34-43).
Incontestaveimente, esse modelo genealógico se presta a justi-
ficar os acordos verbatim entre os sinóticos, especialmente para os
logia da tradição dupla, retomados de Mateus por Lucas. Outros
pontos permanecem obscuros: a que lógica obedeceu Lucas para
transcrever verbatim certos logia de Mateus (Lc 11,9-12 / / Mt 7,7-
11) e reescrever, totalmente, outras (Lc 11,2-4 / / Mt 6,9-13)? Por
que Lucas desconstruiu as seqüências temáticas que são os grandes
discursos mateanos (Mt 5-7; 10; 13; 18; 23; 24-25)? Essa interroga-
ção é mais aguda ainda no caso da redação de Marcos: renunciar a
uma parte tão importante de Mateus e Lucas para fazer uma síntese
é uma operação concebível para um espírito moderno; mas quem

3 William R. FARMER, The Synoptic Problem. A Critical Analysis, New York,


Macmillan, 1964. Sobre a posição de Farmer e de sua escola, ver David L.
DUNGAN (ed.), The Interrelation o f the Gospels, Leuven, Leuven Uni-
versity Press, 1990, 125-230, e Allan J. McNICOL, David L.DUNGAN,
David B. PEABODY (eds.), Beyond the Q Impasse. Luke’s use od Matthew,
Valley Forge, Trinity Press, 1996.

24
O problem a sinótico

teria tido, no século 1, autoridade suficiente para retalhar a tradição


de Jesus e reter apenas um breve resumo (um epitome)? De outra
parte, como veremos, a evolução da linguagem entre Marcos e Ma-
teus/Lucas pleiteia, antes, a prioridade marcana.

3.2. Modelo das duas fontes


Este modelo explicativo, resultante do precedente e desenvolvido
no fim do século XIX (C. H. Weisse, 1838; H. J. Holtzmann, 1863;
P Wernle, 1899), recebe, atualmente, a aprovação de um grande
número de pesquisadores. Ele trabalha com três princípios: a) Mar-
cos é o Evangelho mais antigo; b) uma fonte denominada Q está na
origem da tradição dupla; c) Mateus e Lucas se beneficiaram, cada
um, de tradições particulares.

M ateus Lucas

a) A tradição tríplice se explica pela prioridade marcana


Que argumentos defendem essa hipótese?
A estrutura. A estrutura de Mateus e de Lucas mostra que es-
ses dois evangelhos retomam e adaptam o argumento biográfico
adotado por Marcos. Em compensação, eles divergem um do outro
quando se afastam da narração marcana. O início e o final do relato
são significativos a esse respeito: Mateus e Lucas divergem conside-
ravelmente em seus evangelhos da infância (Mt 1-2; Lc 1-2), mas se
reencontram quando abordam a atividade do Batista (Mc 1,2ss.). Os
ciclos pascais concordam quanto à descoberta do túmulo vazio (Mc
16,1-8 / / Mt 28,1-8 / / Lc 24,1-9), mas se afastam logo depois, sem o
suporte comum de Marcos.

25
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

A sucessão das perícopes. Mateus e Lucas abandonam, freqüen-


temente, a ordem de Marcos, mas jamais apresentam um encadea-
mento comum independente de Marcos.

Exemplos: Mateus Marcos Lucas


9,1-17 2,1-22 5,17-39
9,18-11,30
12,1-14 2,23-3,6 6,1-19
6,20-49

Mateus abandona a ordem de Marcos uma primeira vez, enquan-


to Lucas a segue; o inverso se dá, em seguida. Conclusão: de uma
parte e de outra, Marcos continua a ser o fio condutor.
A matéria. Uma grande parte da matéria marcana se encontra em
Mateus (523 dos 661 que compõem Marcos). Em compensação, não
se lêem mais do que 364 versículos de Marcos em Lucas. Como expli-
car essa diferença? Por um lado, Lucas preferiu, em vez de uma série
de perícopes marcanas, tradições paralelas (por exemplo a pregação
em Nazaré: Lc 4,16-30 e Mc 6,1-6). Por outro lado, Lucas recorre, em
grande parte, à tradição não-marcana: Lc 6,20-7,50 não tem equiva-
lente em Mc, a seqüência Mc 6,5-8,26 falta totalmente nele.
E de se notar, todavia, que uma parte mínima do relato de Mar-
cos (26 versículos) não se encontra nem em Mateus nem em Lucas:
ou porque sua integração se chocava com a teologia dos dois evan-
gelistas (2,27; 4,26-29; 7,33-36; 12,33 ss.) ou com sua cristologia
(3,20 s.; 15,44), ou por razões de conveniência redacional (1,1; 7,3
s.; 8,22-26; 9,48 s.; 14,51 s.).
Língua e estilo. Marcos apresenta um estilo simples, muitas ve-
zes paratáxico (καί - καί); ele prefere o presente histórico, carac-
terístico da língua popular, e tem muitos semitismos. As correções
estilísticas e lingüísticas de Mateus e Lucas vão sempre no sentido
de melhoramento: os semitismos mais grosseiros são evitados; Lu-
cas, de modo geral, abandona o presente histórico, ao passo que
Mateus recorre frequentemente ao aoristo; a parataxe (e-e) dá lu-
gar a uma sintaxe mais complexa. Além disso, o vocabulário popu-
lar de Marcos é revisto: κράβαττος (grabato, catre) de Marcos 2,11

26
O problema sinótico

cede lugar a κλίνη (maca) em Mateus 9,6 e KÀ1víô10v(pequena


maca) em Lucas 5,244.
Comentário do texto. O texto de Marcos é raramente abreviado
em Mateus e Lucas (exemplo de abreviação: a recensão mateana
dos relatos de milagre) e mais frequentemente glosado. Os comen-
tários têm uma função de explicação, como no caso da confissão de
Pedro em Cesaréia:
Marcos 8,29 “Tu és ο Cristo” σύ 61 ò Χριστός
Mateus 16,16 “Tu és o Cristo, o σύ ei ό Χριστός ό υιός
Filho do Deus vivo” του Θ600 του 6ώντός
Lucas 9,20 “o Cristo de Deus” τον Χριστόν του 9600.
Podem valer como uma correção teológica, como no caso da
confissão do centurião (correção teológica em Mateus, histórica em
Lucas):
Marcos 15,39 "Verdadeiramente ’Αληθώς οΰτος ό
este homem era Filho de Deus” άνθρωπος υ'ιός θ€0ϋ ήν
Mateus 27,54 “Verdadeiramente ’Αληθώς Θ60ΰ υ'ιός ήν ούτός
esse era Filho de Deus”
Lucas 23,47 “Certamente ’Όντως ò άνθρωπος οΰτος
este homem era um Justo” δίκαιός ήν.
A soma dessas observações, sobretudo concernentes à estrutura e
à sucessão das perícopes, pleiteia a anterioridade do texto marcano.

b) A tradição dupla tem por origem uma segunda fonte, uma


fonte de logia dita "Q", que M ateus e Lucas consultaram inde-
pendentemente
Mateus e Lucas têm em comum um abundante material de uns
235 versículos (cerca de 4.000 palavras), totalmente ausente em
Marcos; trata-se, essencialmente, de palavras de Jesus, com alguns
textos narrativos (a tentação de Jesus, a cura do filho do centurião
de Cafarnaum). Essa fonte, hoje perdida, nos é conhecida somente

4 Para mais detalhes sobre a reescritura do texto de Marcos em Mateus e


Lucas, ver p. 90-93 e 127-130.

27
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

por sua recepção nos dois evangelhos; foi originalmente designada


pela sigla “Q ”, da primeira letra do alemão Quelle ( - fonte), para
indicar sua natureza mal conhecida (J. Weiss, 1890).

A combinação do texto de Marcos com o da fonte dos logia (Q) pode ser
mostrada com o exemplo da perícope do Batista (Mt 3,1 -12; Lc 3,1 -18). Mateus
(3,1-6) e Lucas (3,1-6) começam por seguir o texto marcano; Lucas o modifica
ampliando simplesmente a citação de lsaías 40. Quando citam a pregação de
João Batista, Mateus (3,710‫ ) ־‬e Lucas (3,7-10) se afastam de Marcos apresen-
tando um texto quase idêntico; este texto provém da fonte Q. Mateus 3,11 e
Lucas 3,16 prosseguem citando o Batista segundo um texto apresentado tam-
bém em Marcos 1,7 s. O fim de sua pregação (Mt 3,12 / / Lc 3,17) diverge, de
novo, de Marcos, que não apresenta nenhum equivalente, enquanto Mateus e
Lucas oferecem uma formulação análoga proveniente de Q. O entrelaçamen-
to das duas fontes documentárias é confirmado pelo fato de que Lucas, em
vez de proceder por colagem, como Mateus, acrescentou à segunda sequência
uma introdução (3,15 s.) e uma conclusão (3,18).

A fonte dos logia deve ter chegado aos dois evangelistas sob for-
ma escrita e em versão grega. As identidades verbais atestadas de
uma parte e de outra não teriam outra explicação. Observa-se em
Mateus uma tendência a conservar sua formulação, ao passo que
Lucas heleniza a língua. A hipótese de uma forma escrita se apóia no
fato de que as tradições tomadas da fonte aparecem nos dois evan-
gelhos seguindo claramente a mesma ordem, como o demonstra o
quadro a seguir.

28
O problema sinótico

A fonte dos logia (Q ): uma possível reconstituição


Lucas Mateus
3,7-9.16 s. Pregação de João Batista 3,7-12
4,2-13 Tentação de Jesus 4,2-11
6,20-49 Um grande discurso de Jesus 5-7
aberto pelas bem-aventuran-
ças e concluído pela parábola
das duas casas, reproduzido
por Lucas em 6,20-49 e am-
pliado por Mateus no Sermão
da Montanha (Mt 5-7).
7,1-10 O centurião de Cafarnaum 8,5-13
7,18-35 Sentenças sobre o Batista 11,2-19
9,57-60 Seguir Jesus 8,19-22
1 0 , 1- 12 Discurso do envio dos 9,37 s.; 10,7-16
discípulos
10,13-15.21 s. Maldições e regozijo 11,21-27
11,2-4.9-13 A oração 6,9-13; 7,7-11
11,14-23 Belzebul 12,22-30
11,24-26 Retorno do espírito impuro 12,43-45
11,16.29-35 Procura de sinais 12,38-42; 5,15; 6 ,22 s.
11,39-52 Contra os fariseus 23,4.13.23-25.29-36
1 2 , 1 -1 2 Confessar o Filho do homem 10,26-33:12,32;10,19
12,22-59 As preocupações 6,25-33
13,18-30; Parábolas e sentenças 13,31-33; 7,13 s.;
14,5 25,10-12; 7,22 s.;
8,11 s.; 20,16:12,11
13,34-35 Maldições sobre Jerusalém 23,37-39
14,16-24 Parábola do convite para a 2 2 ,2 - 1 0
festa

29
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

14,26 s. 34 s.; Sentenças e parábolas 10,37:5,13:18,12-14


15,4-7
16,13.16-18; Antigo e novo 6,24; 11,12 s.; 5,18.32;
17,1-6 18,7.15.21 s.;17,20
17,22-37 O fim dos tempos 24,26-28.37-41:10,39
19,12-27 Parábola dos talentos 25,14-30
22,28-30 Julgamento de Israel 19,28

Cada evangelista tratou a fonte segundo seus procedimentos


composicionais: Mateus operou, aqui e ali, reagrupamentos temá-
ticos, especialmente no plano dos grandes discursos de seu evange-
lho; Lucas inseriu blocos inteiros do texto da fonte; é nele, portanto,
que se confia para reconstruir a ordem inicial de Q. Foi por isso que a
pesquisa adquiriu o hábito de, doravante, citar o texto hipotético da
fonte Q segundo a ordem lucana (Q 3,7 = Q segundo Lc 3,7).
Um argumento vem reforçar a hipótese de uma segunda fonte ao
lado de Marcos: o fenômeno das duplicatas comuns. Chama-se assim
a recorrência, na narração, de um texto análogo, se não idêntico.
Ora, mais de uma vez, Mateus e Lucas retomam um logion, uma
primeira vez segundo a versão de Marcos, uma segunda vez segundo
a de Q. Assim o logion de Marcos 4,25 (“Ao que tem, será dado, e ao
que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado”), que é retomado em
Mateus 13,12 e Lucas 8,18, se encontra também em Mateus 25,29
/ / Lucas 19,26, proveniente de Q. Outros exemplos: Marcos 8,35
(salvar ou perder sua vida) é retomado em Mateus 16,25 e Lucas
9,24, ao passo que um logion semelhante, de Q, aparece em Mateus
10,39 / / Lucas 17,33; Marcos 8,38 (envergonhar-se de Jesus) tem
por paralelo Mateus 16,27 e Lucas 9,26, e na versão de Q Mateus
10,3 s. / / Lucas 12,8s. Lucas apresenta até mesmo dois discursos de
envio dos discípulos, um tirado de Marcos (Lc 9), o outro da fonte
dos logia (Lc 10). Esses contatos permitem concluir o conhecimento
recíproco de Marcos e da fonte dos logial Seu pequeno número leva
mais a atribuir os elementos comuns à tradição oral (F Neirynck).

30
O problema sinótico

Reconstruir a fonte dos logia (Q)


Reconstruir o texto original da fonte dos logia (S. Schulz, A.Polag)
é uma empresa audaciosa, mesmo que se esteja de acordo em pen-
sar que Mateus, menos incomodado do que Lucas com os semitis-
mos, tenha sido menos intervencionista na redação. Mas às vezes
a divergência das versões mateanas e lucanas é tão grande que a
hipótese de um mesmo texto na origem das duas recensões se reve-
Ia difícil. As nove bem-aventuranças mateanas (5,3-12) e as quatro
de Lucas acrescidas das maldições (6,20-26) derivam de um mes-
mo texto? A parábola dos talentos (Mt 25,14-30) e a das minas (Lc
19,12-27) são variantes da parábola de Q? E possível que a fonte dos
logia tenha chegado aos dois evangelistas sob duas versões diferen-
tes, por exemplo, sob a pressão da tradição oral; adquiriu-se o hábito
de denominá-las respectivamente Q Mte Q Lc (M. Sato).

Uma história da fonte dos logia (Q)?


Será que se pode reconstituir a história da fonte dos logia e a genealogia
de seu texto? A ordenação das sentenças e de alguns textos narrativos que a
compõem denota, com efeito, um agenciamento redacional (D. Lührmann). A
pesquisa de uma estratificação literária da fonte conclui com varias conjectu-
ras: será preciso diferenciar uma camada arcaica palestina, orientada pelalorá,
de uma camada helenista mais tardia, apontando para a demora da parusia e
o julgamento de Israel (S. Schulz)? Ou uma tradição primária pré-pascal de
uma tradição secundária centrada nas questões comunitárias (A. Polag)? Ou
um primeiro estrato sapiência! de um estrato ulterior de teor apocalíptico (J.
S. Kloppenborg) ? 5 A tendência é a de um acordo sobre a constatação de uma
evolução da fonte, com base em sentenças arcaicas (Lc 11,52:16,17), em dire-
ção a reagrupamentos de logia (p. ex. Lc 9,57-60; 11,39-51), para desembo-
car em um texto mais elaborado de tendência biográfica (a tentação de Jesus:
Mt 4,1-11). Esse processo evolutivo é marcado pela separação de Israel e uma
progressiva acentuação do tema do julgamento escatológico.

s Paul HOFFMANN, Studien zur theologie der Logienquelle, Münster, As-


chendorff 31982; John S. KLOPPENBORG, The Formation o f Q, Phila-
delphia, Fortress Press, 1987; Dieter LÜHRMANN, Die Redaktion der Lo-
gienquelle, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1969; Athanasius POLAG,
Die Christologie der Logienquelle, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1977;
Migaku SATO, Q und Prophetie, Tübigen, Mohr, 1988; Siegfied SCHULZ,
Q — Die Spruchquelle der Evangelisten, Zurich, TVZ, 1972.

31
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

A extensão exata da fonte Q permanece incerta, na impossibilidade em


que estamos de saber se os logia foram conservados por um único evangelista
ou ignorados pelos dois. Seja como for, não parece que ela contivesse alguma
história da Paixão, embora a perspectiva da morte de Jesus não lhe fosse des-
conhecida (cf Lc 13,34 s.; 14,27). A cristologiadominante é uma cristologia do
Filho do homem, cuja vinda para o julgamento é iminente. A identificação de
Jesus com essa figura escatológica é sustentada pela experiência da Páscoa. A
tomada de posição em relação a Jesus decide da salvação ou da condenação
no julgamento (Lc 12,8 s.); é por isso que importa guardar e transmitir suas
palavras: elas têm um valor escatológico. A convicção de viver com Jesus o
tempo da salvação (Lc 7,22; 10,23 s.) domina o envio dos discípulos, encar-
regados de oferecer a paz (Lc 10,5 s.) e anunciar a proximidade do Reino (Lc
10,9.11b). A fonte está impregnada da experiência dolorosa do fracasso dos
enviados de Q em missão a Israel (Lc 6,22 s.; 10,13-15; 15,7); o julgamento é
doravante anunciado a “essa geração” que recusou a mensagem de Jesus e de
seus enviados (Lc 7,31; 11,29-32.50).
A fonte dos logia nasceu em Israel (em língua aramaica?). Sua geografia
interna (Corazim, Betsaida, Cafarnaum) indica a Galiléia como provável lugar
de nascimento. Como não se percebe nenhum eco da destruição de Jerusalém
e de seuTemplo (cf Lc 13,34 s.), sua fixação literária precedeu ao ano 70. Seus
portadores foram missionários itinerantes cuja existência é configurada pelo
discurso do envio (Lc 10,1-12), mas também pequenas comunidades locais da
região siro-palestina (M. Sato). O registro da fonte por escrito é situado em
um espaço de tempo que vai dos anos 40, quando a missão judaica ainda está
em curso (G. Theissen), até pouco antes de 70, perto da redação de Marcos
(P Hoffmann).
Na qualidade de coleção de logia, a fonte Q não é única em seu gênero
literário. A literatura judaica oferece exemplos similares da tradição sapiencial
no Antigo Testamento ou na consignação das palavras dos rabinos no seio da
Mishnah. O evangelho apócrifo de Tomé e&Didaché apresentam, no século II,
características idênticas. Compara-se a fonte Q com os livros proféticos (M.
Sato), as coleções de sentenças sapienciais (J. S. Kloppenborg) ou ainda com
"biografias ideais” (D. Dormeyer).

c) Mateus e Lucas serviram-se, cada um, de tradições próprias


Ao lado de Marcos e da fonte dos logia, de que dispunham sob
forma escrita, Mateus e Lucas tiveram, cada um, acesso a um te-
souro tradicional particular; tiraram daí relatos e logia apresentados
unicamente por eles. Nem a produção própria de Mateus nem a de
Lucas oferecem, do ponto de vista literário ou teológico, uma consis-
tência de natureza a assinalar a presença de uma fonte escrita. E por
isso que o modelo das duas fontes fala somente de tradições próprias

32
O problem a sinótico

(Sondergut em alemão), consideradas sob a forma de documentos es-


critos ou de relatos em circulação na tradição oral viva. Esse tesouro
tradicional pertencia à comunidade do evangelista (Mateus) ou foi
recolhido no correr das pesquisas que presidiram a redação do evan-
gelho (Lucas). A apresentação desses evangelhos dará mais detalhes
sobre o conteúdo e as características dessa produção própria6.

Saldo
O que concluir dos dois modelos genealógicos propostos para a
solução do problema sinótico? Uma hipótese literária, para ser efi-
caz, deve obedecer a um princípio de economia (a complexidade é
desencaminhadora), ao mesmo tempo em que explica o máximo de
fenômenos observados; submetidos a esses dois critérios, o modelo
das duas fontes ganha do modelo de utilização.
Se sua plausibilidade parece ser mais forte, ele tropeça, no entan-
to, em um problema residual: os “acordos menores” (minor agree-
merits) Mateus/Lucas. Trata-se de pequenas modificações do texto
marcano (anexação, supressão, substituição de termos) adotadas
uniformemente por Mateus e Lucas; de importância menor quanto
à significação, seu número chega a 700. Ora, a teoria das duas fontes
postula a ausência de todo contato entre os dois evangelistas em sua
recepção de Marcos. Como explicar essa profusão de mínimas iden-
tidades verbais? O modelo da utilização a explica pela releitura lu-
cana de Mateus, mas, como já vimos, essa hipótese levanta, por sua
vez, novas dificuldades (como explicar as grandes divergências de
língua e de conteúdo entre Lucas e Mateus?). Foram propostas so-
luções combinatórias, articulando com a hipótese de um evangelho
primitivo a existência de um proto-Mateus e de um proto-Lucas e
juntando a eles a contribuição de uma fonte comum Mateus/Lucas
(R Benoit-M. E. Boismard; Ph. Rolland)7; o risco, aqui, é sobrecar-

6 Ver p. 81-106 e 107-135. #


7 Pierre BENOIT, Marie-Émile BOISMARD, Synopse dês quatre Évangiles
en français, Paris, Cerfi 1972, t. II; Phillippe ROLLAND, Lesprémiersévan-
giles. Un nouveau regard sur le problème synoptique, Paris, Cerfi 1984.

33
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

regar a reconstituição com um índice de complexidade que a torne


pouco operatória em exegese. Uma solução plausível consistiría em
pensar que Lucas, redigindo seu evangelho baseado em Marcos, na
fonte Q e em suas tradições próprias, conheceu também Mateus,
cujo texto apenas leu (H. J. Holtzmann).

A título de exemplo, os acordos menores de Mateus (12,1-8) e Lucas


(6,1-5), em sua reescritura do episódio das espigas arrancadas em dia de sába-
do (Mc 2,23-28), se apresentam assim:
Mateus 12,1/Lucas 6,1: omissão de óôòv ποιείν e junção de και
εσθίειν (Mateus)/Kal ήσθιο (Lucas)
Mateus 12,2/Lucas 6,2: substituição de κα'ι por 56 e de έλεγον por
είπαν
Mateus 12,3/Lucas 6,3: substituição de λέγει por είπεν e omissão
de χρείαν έσχεν καί.
Mateus 12,4/Lucas 6,4: omissão de επί Άβιαθαρ άρχιερεως e do
participio οΰσιν, anexação de μόνεας (Ma-
teus)/μόνους (Lucas).
O versículo inteiro de Marcos 2,27 é omitido.
Mateus 12,8/Lucas 6,5: omissão de ώστε e de καί, transferência de
ό υιός τοϋ ανθρώπου8 para ο fim da frase.

A maior parte das intervenções Mateus/Lucas no texto de Mar-


cos visa minimizar uma incorreção de linguagem ou melhorar o es-
tilo (ver o exemplo acima de Mt 12,1-8 / / Lc 6,1-5). Outras vezes,
como quando o título de Herodes Antipas (βασιλεύς, Mc 6,14) é
modificado para τετραάρχης, é uma inexatidão histórica que é corri-
gida: “tetrarca”, com efeito, é o título oficial; a denominação “rei” é
de uso popular. E perfeitamente concebível que dois redatores preo-
cupados com a correção linguística dêem, independentemente um
do outro, o mesmo retoque; o leque de variações linguísticas não é
infinito na koinèl Mas a freqüência estatística desses acordos con-
tinua desconcertante. Ela levou a postular que tivesse havido uma
revisão estilística de Marcos antes da recepção do evangelho por

g
Segundo Frans NE1RYNCK, The Minor Agreements in a Horizontal-line
Synopsis, Leuven, University Press/Peeters, 1991.

34
O problema sinótico

Mateus e Lucas, e que os dois evangelistas teriam trabalhado sobre


um “dêutero-Marcos” hoje perdido (A. Ennulat)9. Outros pensam
em um “proto-Marcos”, mas não se explica bem por que a versão
revisada teria conservado as dificuldades estilísticas.
Se integrarmos as duas recensões da fonte dos logia assinaladas
mais acima, o esquema modificado do modelo das duas fontes se
desenha como a seguir:

Tradições
próprias de Lucas

4 . O GÊNERO LITERÁRIO “ EVANGELHO‫״‬


Com Marcos surgiu um tipo de escrito que faria sucesso na lite-
ratura cristã: o evangelho. Ele será imitado pelos outros três evan-
gelistas e por autores apócrifos até o século IV. Ao reunir tradições
esparsas em um relato de natureza biográfica consagrado à vida de
Jesus, Marcos fez uma obra inédita; até então, a tradição cristã só
conhecia sequências narrativas limitadas (a história da Paixão), co-
leções de logia ou cartas de Paulo. O primeiro evangelista se desco-
bre criador de um gênero literário. Pergunta: o evangelho é um gê-
nero literário ímpar na literatura, é um fenômeno único, ou pode-se
afiliá-lo a outros gêneros literários que circulavam na época?

Do conceito teológico ao livro


Na origem, εύαγγέλιον (a boa-nova) não designa um livro, mas
um anúncio favorável ou a mensagem transmitida por esse anúncio

9 Andreas ENNULAT, Die “Minor Agreements”. Untersuchungen zu einer


offenen Frage des synoptischen Problems, Tübigen, Mohr, 1994.

35
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

favorável. No grego não-bíblico, tOayyéXiov indica as vitórias mili-


tares e os grandes feitos do Império. Sua significação religiosa inter-
vém no contexto do culto do imperador. Uma inscrição de Priène
(Ásia Menor), datada de 9 a.C., definiu assim o aniversário do im-
perador Augusto: “o dia do nascimento do deus foi, para o mundo,
o início das boas-novas (των 6ύαγγ6λίων) que chegaram através
dele”. Fílon (Legatio ad Caium 18,99,231) e Flávio Josefo (Guerra
dos judeus 4,618.656) conheciam esse costume dos eòuyyéXía liga-
dos ao culto imperial. Mas a versão grega do Antigo Testamento
(a LXX) aplica o verbo “anunciar uma boa-nova” (€ύαγγ€λίζ6σθαι.)
à proclamação das vitórias de Deus para Israel. 1saias usa o termo
para designar o anúncio da salvação escatológica (Is 40,9; 52,7;
60,6; 61,1). Este último texto é citado por Jesus na resposta à ques-
tão messiânica do Batista: “a boa-nova é anunciada aos pobres”
(Mt 11,5; Lc 7,22).
O apóstolo Paulo herda um uso forjado pela tradição cristã hele-
nista: 6ύαγγέλιον designa a proclamação da boa-nova da salvação
em Jesus Cristo (lTs 1,5; ICor 15,1; Rm 1,1.9). Evangelho desig-
na, portanto, o anúncio do querigma e não o seu veículo literário;
esse anúncio é “uma força de Deus para todo aquele que crê” (Rm
1,16). Toda a pregação do apóstolo, aliás, pode ser concentrada na
palavra eòayyéXiov (G1 1,11).Quando Marcos inaugura sua narração
com essa palavra: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de
Deus” (Mc 1,1), ele não indica o início de seu livro, mas o início da
boa-nova. Nenhum dos quatro evangelhos se autodenomina por
essa palavra.
É só na metade do século II que evayyéXiov é aplicado ao es-
crito portador da boa-nova. A Didaché designa assim o evange-
lho de Mateus (11,3; 15,3 s.), // Clemente 8,5 o de Lucas. Justino
Mártir usa pela primeira vez a palavra no plural para designar os
escritos que guardam a memória (άπομν‫׳‬ημον€υματα) das palavras
e dos atos de Jesus, de sua Paixão e de sua ressurreição (Apoio-
gia 1,66,3). As mais antigas notícias que temos da intitulação dos
evangelhos, que emanam dos copistas e não dos autores, datam
de fins do século II e são provenientes de papiro (P66), dos escritos

36
O problem a sinótico

de Ireneu (Contra as heresias 3,11,10) ou do cânon de Murato-


ri10. Segundo M. Hengel11, o uso remontaria mesmo ao fim do
primeiro século, por causa da multiplicação dos evangelhos nas
comunidades. E de notar que mesmo então os evangelhos foram
denominados €υαγγ€λίον κατά (Ματθαίον, Μάρκον, ...). Ο uso
do singular (que contrasta com os 6ύαγγελία greco-romanos e ο
uso plural da Septuaginta) e a modalidade κάτα (segundo) con-
servam traço do sentido inicial; o evangelho não é de Mateus ou
Marcos, mas transmite a boa-nova na linguagem segundo Mateus
ou Marcos. A nuance é importante. Vai de par com o reconhecí-
mento canônico de um evangelho quadriforme, em vez e no lugar
dos quatro relatos concorrentes entre os quais a Igreja primitiva
teria tido de escolher.
Se, portanto, parecería ligeiramente anacrônico, no primeiro
século, intitular “evangelhos” os quatro relatos da vida de Jesus, a
questão continua a valer: pode-se afiliá-los a um gênero literário
existente? Suas origens se encontram no Antigo Testamento? São
eles a imitação de um gênero greco-romano?

Uma biografia ideal?


A Formgeschichte (história da forma literária) defendeu a idéia
de que os evangelhos constituíam um fenômeno literário sui gene-
ris, nascido das necessidades da comunidade; visam mais a edifi-
car do que a instruir seus leitores; seriam um produto da literatura
popular, que não se deve comparar com as obras literárias oriun-
das da cultura greco-romana (M. Dibelius, R. Bultmann). Que os
evangelhos tenham algo de único em sua intenção teológica é incon-
testável. Mas do ponto de vista literário trata-se de indagar se seus
procedimentos de escritura e seu conteúdo encontram analogia em
seu meio cultural.
K. Baltzer identificou no Antigo Testamento um gênero de “bio-
grafias ideais” que, como o evangelho, se concentra no aspecto teo-

Ver p. 580-589.
11 Martin HENGEL, Die Evangelienüberschriften, Heidelberg, Winter, 1984.

37
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

lógico e não se interessa pela dimensão psicológica dos personagens


(Davi em 2Sm 23,17; Gedeão em Jz 6-8; Moisés de Ex 2 a Dt 34)12.
Mas, da literatura hebraica, a primeira analogia que vem à mente é
o livro profético, que expõe a intervenção do Deus de Israel através
da vida, das palavras e dos atos de seu enviado. O livro de Jeremias
é o que apresenta maior proximidade, porque combina elementos
presentes no evangelho: um relato de apelo incluindo uma vocação
pré-natal (Jr 1,4-10), uma enumeração de palavras misturadas com
ações proféticas (cf a ação no Templo: Jr 7), o anúncio da ruína de
Jerusalém e uma forma de Paixão do profeta (Jr 26; 37-38). A Vida
dos profetas, escrita na Palestina no primeiro século, expõe a história
dessas figuras do passado de Israel que atraem a devoção popular;
essas biografias ideais informam os leitores sobre o nascimento, as
palavras, as ações simbólicas, a morte e a sepultura desses homens
santos. Manifestamente, os evangelhos ostentam vários traços se-
melhantes: anonimato do autor (que se retrai para trás da palavra
que anuncia); dimensão teológica da biografia; intenção edificante
da obra. Mas é verdade que no conjunto a literatura profética está
mais interessada em transmitir um ensinamento do que em guardar
a memória da vida do profeta.

A s aretologias
A literatura greco-romana oferece várias analogias possíveis.
Pensou-se nas aretologias, essas biografias que descrevem os mi-
!agres realizados pelos “homens divinos” (Géiot άνδρ6ς). H. Kõster
imaginou que Marcos e João teriam, cada um deles à sua moda, inte-
grado coleções de milagres em um contexto biográfico mais amplo13.
Mas é duvidoso que na literatura antiga se possa falar da aretologia
como de um gênero maior de escrito; a aretologia não designa uma

12 Klaus BALTZER, Die Biographie der Propheten, Neukirchen, Neukirchener


Verlag, 1975.
13 Helmut KÕSTER, Ein Jesu und vier ursprüngliche Evangeliengattungen,
in Helmut KÕSTER, James M. ROBINSON, Entwicklungslinien durch die
Welt des frühen Christentums, Tubingen, Mohr, 1971, 147-190.

38
O problem a sinótico

forma literária, mas antes o conteúdo (narração de atos sobrenatu-


rais) de escritos tão diversos como hinos, cartas, inscrições votivas
ou biografias românticas.

As opções da narrativa
O romance grego foi evocado por causa da excelência de sua cons-
trução narrativa (ver o romance de Alexandre ou Leucipo e Clitofon
de AchilleTàtius). M. A. Tolbert propôs esse modelo para Marcos14.
Disposição dos episódios, efeitos dramáticos, desenvolvimento de
um enredo caracterizam também o trabalho dos evangelistas, cujo
escrito constitui uma cristologia em forma de narração. A leitura do
evangelho, como a de um romance, deslancha um processo cogniti-
vo durante o qual o leitor é levado a pôr à prova suas concepções e
seu sistema de valores; no caso presente, cada evangelho se aplica
a corrigir outras cristologias. A comparação com o romance aponta
para a escolha evangélica da narração: contar Jesus (de preferência
a retranscrever seus discursos, como fez a fonte dos logia) é ins-
crever o destino do Filho de Deus numa história de homens e mu-
lheres. A Palavra tornou-se carne; ela se fez humanidade que pode
ser contada. A narratividade é o indício da encarnação. Não se há
de confundir, entretanto, a escolha teológica da narratividade com a
adoção dos cânones do romance grego; este último dá à ficção e ao
maravilhoso uma parte bem mais considerável.

Uma subcategoria da biografia


Na produção literária greco-romano por volta do primeiro século,
encontramos, ao lado de grandes obras historiográficas, um certo
número de biografias: as Vidas de homens célebres, de Plutarco, as
Vidas dos doze Césares, de Suetônio, as Memoriabilia de Sócrates
por Xenofonte, a Vida de Apolônio de Tiana, de Filostrato, as Vi-
das dos antigos filósofos, de Diógenes Laércio, etc. À primeira vista,

14 Mary Ann TOLBERT, Sowing the Gospel. Mark’s World in Literary-Histo-


rical Perspective, Minneapolis, Fortress Press, 1989.

39
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

os evangelhos parecem desprovidos de traços que se esperariam de


uma biografia: nem interesse pela infância e pela evolução de um
personagem, nem descrição de seus estados de alma, nem informa-
ção sobre suas motivações (os evangelhos apócrifos preencherão
essas lacunas informativas). Ora, como mostrou C. H. Talbert15, as
biografias antigas não se interessam pela interioridade de seus he-
róis; a pessoa é considerada uma entidade estática, desprovida de
evolução; os elementos míticos são requeridos para significar o valor
do personagem; pinta-se do indivíduo uma imagem estilizada que
faz dele um paradigma da virtude ou do vício, destinado à educação
moral dos leitores.
A Vita Jesu apresentada pelos evangelhos inscreve-se totalmen-
te nesse registro. A vizinhança é impressionante, principalmente
no caso das Vidas dos filósofos, em que a biografia guarda a me-
mória do mestre na intenção precisa de corrigir falsas imagens suas
e incitar a tornar-se discípulo. Como a biografia, o evangelho tem
pouco interesse documentário ou anedótico; as tradições mencio-
nadas apontam exclusivamente para a mensagem a ser transmiti-
da. Todos os traços da narração são mobilizados para esclarecer a
significação da palavra e dos gestos do herói. O evangelho pode,
portanto, ser qualificado como um “subgênero da biografia greco-
romana” (D. E. Aune)16, mas tendo em conta o fato de constituir
uma literatura popular que contrasta com o elevado padrão cultu-
ral da biografia. Essa afiliação coincide com o duplo componente
do evangelho: a fixação na vida de um personagem e o interesse
por sua inscrição na história. Como as Vidas dos filósofos, o evan-
gelho liga a transmissão de uma mensagem a um enredo de vida
historicamente situado. Mas, em vez de ilustrar valores morais in-
temporais, o evangelho anuncia a encarnação de Deus na vida de
Jesus de Nazaré, desde seu batismo por João Batista até sua morte
no Gólgota e sua ressurreição.

15 Charles H. TALBERT, What is a Gospel?, London, SPCK, 1978.


16 David E. AUNE, The New Testament in its Literary Environment, Philadel-
phia, Westminster Press, 1987, 64.

40
O problem a sinótico

Um programa ímpar
Em conclusão, parece que o evangelho se avizinha de vários gê-
neros literários da Antiguidade: biografia ideal do enviado de Deus,
escrito de intenção aretológica, romance, biografia greco-romana.
Conforme sua educação, os ouvintes/leitores do primeiro século
o aproximaram, alternadamente, deste ou daquele tipo de escrito.
Como veremos nos próximos capítulos, a aproximação pode tam-
bém variar conforme o evangelho se apresente segundo Marcos, se-
gundo Mateus, segundo Lucas ou segundo João.
Mas a afiliação literária não deve dissimular a originalidade do
evangelho, que depende de um fenômeno historicamente identified-
vel: o desenvolvimento da fé em Jesus. Porque o evangelho nasce de
um programa teológico sem igual: manifestar a identidade do Cru-
cificado e do Ressuscitado, a identidade do homem de Nazaré e do
Senhor vivo. A escolha da narração se liga, aqui, à intenção querig-
mática: a vida desse Galileu cercado de um punhado de discípulos é
contada como o momento decisivo da história do mundo. Presente
e futuro estão, doravante, suspensos desse fragmento de história em
que se dá a conhecer, definitivamente, o rosto de Deus. Esse progra-
ma teológico totalmente novo se moldou em um tipo de escrito sem
precedentes imediatos. O mais próximo é o da biografia.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Crítica do modelo das duas fontes. O consenso em torno do mo-
delo das duas fontes como solução do problema sinótico é posto em
causa a partir de seu ponto frágil: os “acordos menores” Mateus/
Lucas. A tese de uma utilização de Mateus por Lucas é explorada
com base nos acordos menores entre esses dois evangelhos, seja no
intuito de matizar o modelo das duas fontes, seja no de contestá-lo
para retornar à hipótese de Griesbach (modelo da utilização)17.

17 Eduard SIMON, Hat der dritte Evangelist den kanonischen Matthaus be-
nutz?, Bonn, 1880; Allan J. McNICOL, David L. DUNGAN, David B.
PEABODY (eds.), Beyond the Q Impasse. Luke’s Use of Matthew, Valley
Forge, Trinity Press, 1996.

41
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

A fonte Q. A fonte dos logia é alvo de intensa exploração no plano


literário e histórico. Literariamente, as hipóteses de estratificação
se refinam com o fim de reconstituir a genealogia do documento (J.
5. Kloppenborg); mas a separação de uma camada sapiencial e uma
releitura apocalíptica é duvidosa (os dois registros são dissociáveis?).
Historicamente, tenta-se reconstruir a “comunidade de Q ” e sua
teologia, até o ponto de fazer da fonte o equivalente de um evan-
gelho. A busca do Jesus histórico também está interessada nesses
resultados, pois eles representam o estágio mais arcaico da tradição
de Jesus que nos é acessível18.
O gênero “evangelho”. O estudo do gênero literário “evangelho”
compara minuciosamente os procedimentos narrativos e o trata-
mento das tradições nos evangelhos e nas biografias (judaicas e gre-
co-romanas), bem como no romance grego (D. E. Aune). A procura
de afinidades está na ordem do dia, desde que se abandonou a hipó-
tese do gênero literário único proposta pela Formgeschichte.
Literatura apócrifa. A consideração dos escritos apócrifos cris-
tãos levou a multiplicar as trajetórias da literatura cristã das origens.
De modo particular, ela explica os três evangelhos sinóticos como o
resultado de uma seleção feita no seio de uma tradição mais vasta
cuja memória foi preservada por outros escritos mais tardios, entre
os quais, em primeiro lugar, o evangelho de Pedro e o evangelho de
Tomé19.

6 . B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
BULTMANN, Rudolph. Linvestigation dês évangiles synoptiques. In:
--------- . Foi et compréhension. Paris, Seuil, 1969 [1. ed 1961], II, p.
247-29).

18 John S. KLOPPENBORG, LEvangile "Q” et le Jesus historique, in Da-


niel MARGUERAf Enrico NOELLl, Jean-Michel POFFET (éds.), Jesus
de Nazareth. Nouvelles approches d’une enigme, Genève, Labor et Fides,
1998,225-268.
19 Helmut KÒSTER, François BOVON, Gênese de Lécriture chrétienne, Tur-
nhout, Brepols, 199L

42
O problema sinótico

COUSSIN, Hugues. Le prophète assassiné. Histoire des textes évangeli-


ques de la Passion. Paris, Mame, 31995.
MARGUERAT Daniel. Le Dieu des premiers chrétiens, Genève, Labor et
Fides,31997, p. 9-102 (Essais bibliques 16).

Problème synoptique
BULTMANN, Rudolf Lhistoire de la tradition synoptique. Paris, Seuil,
1973.
DUNGAN, David L. (ed.). The Interrelations o f the Gospels. Leuven, Leu-
ven University Press/Peeters, 1990 (BEThL 95).
KLOPPENBORG, John S. The Formation o f Q. Philadelphia, Fortress
Press, 1987.
NEIRYNCK, Frans. Q-Synopsis. The Double Tradition Passages in Greek.
Leuven, Leuven University Press, 1988 (SNTA 13).
SATO, Migaku. Q undProphetie. Tübingen, Mohr, 1988 (W UN T 2.29).
STRECKER, Georg (ed.). Minor Agreements. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1993 (GTA 50).
TUCKETT, Christopher M. Q and the History o f Early Christianity.
Edinburgh, Clark, 1996.

Evangelhos
AUNE, David E. The N ew Testament in its Literary Environment. Philadel-
phia, Westminster Press, 1987, p. 17-76.
KOSTER, Helmut, BOVON, François. Genèse de I’Ecriture chrétienne.
Turnhout, Brepols, 1991 (Mémoires premières).
DORMEYER, Detlev. Evangelium als literarische und theologische Gattung.
Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1989 (EdF 263).
KOSTER, Helmut. Ancient Christian Gospels. Philadelphia, Trinity Press
International, 1990.
MARGUERAT, Daniel. Le Dieu des premiers chrétiens. Genève, Labor et
Fides, 1997, p. 147-163 (Essais bibliques 16).
STUHLMACHER, Peter (Hrsg.). Das Evangelium und die Evangelien. Tü-
bingen, Mohr, 1983.
TALBERT, Charles H. W hat is a Gospel? London, SPCK, 1978.

43
CAPITULO

2
O evangelho segundo Marcos
Corina Combet-Galland

1. A p r e s e n t a ç ã o
/. /. Gênero literário
Se o Evangelho é o conteúdo da proclamação cristã, a boa-nova
da libertação dos homens por Deus em Jesus, o evangelho segundo
Marcos é a primeira narração à nossa disposição que recorda a his-
tória. O relato se abre com a própria palavra 6ύαγγέλιον, qualificada
em seu duplo sentido por um valor de início; começa o anúncio feliz,
como uma voz viva, e começa também o ato de escritura que a re-
cebe e a verte na forma de um relato de vida. A primeira frase escla-
rece ainda que o Evangelho é o “de Jesus Cristo” e, segundo certo
bons manuscritos, “Filho de Deus”. Aqui, de novo, prepara-se uma
dupla compreensão possível: o Evangelho é a mensagem que Jesus,
como sujeito, proclama: a proximidade de Deus e seu Reino, no tem-
po acabado (1,14-15); é também o relato do qual Jesus proclamador
é o objeto, que recompõe o itinerário de Cristo pelos caminhos dos
homens, entre o Jordão, onde é batizado, na fronteira da Galiléia,
e o novo encontro na Galiléia, marcado com os seus, antes de sua
prisão em Jerusalém (14,28), mas que será lembrado no túmulo do
qual seu corpo está ausente (16,1-8).
A palavra Evangelho volta de modo significativo na narração e na
própria boca de Jesus. No fim do prólogo, Jesus proclama “o Evan-

45
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

gelho de Deus” (1,14). Mas a retomada imediata do termo, de modo


absoluto, em seu apelo a crer (“crede no Evangelho”, 1,15) permite
um deslizamento de sentido: desde aí, o Evangelho de Deus se en-
carna na vida de Jesus, adquire fisionomia nos encontros persona-
lizados, na perspectiva dos quais ela é contada. A proximidade do
Reino se atualiza em suas parábolas e seus milagres, sem, no entan-
to, neles se fundir. O percurso da existência de Jesus não cessa, ao
mesmo tempo, de se abrir para Deus e de se oferecer aos discípulos,
depois aos leitores do relato, para uma imitação inventiva. Em 8,35 e
10,29, a expressão “por causa de mim e do Evangelho”, para fundar
o apelo a carregar sua cruz, a renunciar às riquezas, situa no mesmo
plano a mensagem e a pessoa de Jesus que fala. Assim, o limiar a
transpor para entrar no Reino de Deus (1,15) se atualiza na passagem
difícil pela cruz, mas o Reino permanece sempre além, aguardado;
na última ceia, Jesus o evoca do outro lado da morte, como o dia
futuro de um vinho novo (14,24-25). Em 13,10 e 14,9, a proclama-
ção futura e universal do Evangelho, que Jesus anuncia, excede sua
própria tarefa; o relato fala aí também de si mesmo em ato de ser
escrito e integra o campo missionário de seus leitores. Aí ainda o
Evangelho é aclarado pela cruz e, de volta, a esclarece também; ele
é o testemunho dado no coração das denúncias fratricidas e dos pro-
cessos (13,9-13); e em seu anúncio se insere para sempre a memória
do gesto de amor de uma mulher, em Betânia, que Jesus recebeu
como uma unção, antecipada, para a sua sepultura (14,3-9).
O evangelho segundo Marcos tem a particularidade de corres-
ponder a uma etapa de transição. Ele é herdeiro de fontes orais, ou
já parcialmente registradas por escrito, que são integradas em sua
narração. Para modelo, recorre, sem dúvida, às Vidas de filósofos
greco-romanos e conta a de Jesus sob a luz mais popular da prega-
ção de um profeta judeu itinerante e, por fim, perseguido; a influên-
cia das aretologias helenísticas talvez tenha tido um papel também,
visto a preponderância dos milagres no correr do ministério galileu
— uma pregação em atos, portanto! Esse relato criativo foi logo to-
mado como modelo; ele é hoje reconhecido como uma das fontes
de Mateus e Lucas, que, ao adotar muito de sua trama narrativa, a

46
O evangelho segundo M arcos

engastaram com um tesouro de palavras vindas de uma outra tra-


dição. Mas além de ser um elo na história de uma transmissão esse
primeiro evangelho é, em si mesmo, uma obra de valor, um sucesso
como escritura, um ato de significação e de convicção. A vida e a
morte de Jesus contadas nele falam hoje da comunidade destinatá-
ria; elas são evocadas em sua força de inauguração e adquirem valor
de relato fundador. O caminhar dos discípulos provados nos passos
de seu mestre, bem como os encontros de improviso de personagens
episódicos ecoam na dúvida e no crer dos leitores que podem, desde
então, avançar por terem sido precedidos.

1.2. Estrutura
A organização de conjunto não é fácil de ser apreendida; para re-
cortar a matéria e evidenciar as articulações significativas do relato,
vários critérios foram retidos:
a) A observação do contexto espacial permitiría distinguir, de-
pois do prelúdio às margens do Jordão (1,1-13), três mo-
mentos: o ministério na Galiléia, com suas incursões em
território pagão (1,14-9,50); a subida a Jerusalém (10,1-
52); o ministério e a Paixão em Jerusalém, com a abertura
pascal para o encontro marcado na Galiléia (11,1-16,8)'.
Mas se as figuras espaciais estruturam a narrativa é sem
dúvida menos sob a forma de um percurso geográfico pre-
ciso, que remetería a um referente histórico, do que atra-
vés de uma topografia carregada de simbolismo que elas
projetam no mundo da narrativa e que é teológico.

As grandes imagens do deserto, do mar, do caminho, da montanha,


que evocam vários relatos veterotestamentários, mas também as
menores, como a casa, a porta, contribuem para anunciar a visita
de Deus entre os homens naquilo que ela suscita de deslocamen-
tos, de surpresa e de provação. Elas entram na teia de significação1

1 C f Jean DELORME, Lecture de 1’évangile de saint Marc, Cahiers Evan-


gile, Paris, Cerfi 1/2 (1972) 13-33, que apresenta as três pistas retomadas
aqui para um recorte de Marcos.

47
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

em que a sua coerência pode ser apreendida através dos jogos de


oposição e de mediação que atravessam a narrativa. Dessa forma,
E. S. Malbon trabalhou o espaço narrativo21 para extrair-lhe a sig-
nificação mítica e, por meio dela, chegar à finalidade do evangelho,
refletida em seu fim aberto; ela evidenciou um duplo fim do rela-
to, como Paixão de Jesus (capítulos 14-16), mas também paixão
da comunidade (o capítulo 13, apocalíptico), com as figuras de “o
entre dois” que mantêm, jamais resolvida, a tensão da boa-nova:
o caminho onde Jesus precede os seus (16,7) e o limiar onde os
crentes devem esperar vigilantes (13,37).

b) A observação das relações entre os personagens definiría,


também, três etapas, depois do encontro de Jesus e João
Batista (1,1-13); as relações de Jesus com seus discípu-
los, separados da multidão e em oposição aos adversários
(1,14-6,6); Jesus e a incompreensão de seus discípulos
sobre sua missão depois de sua Paixão anunciada (6,6-
10,52); os enfrentamentos em Jerusalém, o abandono dos
discípulos, até a fuga das mulheres do túmulo (11,1-16,8).

No plano do evangelho que fecha seu comentário com um olhar


recapitulative, E. Schweizer ressaltou o motivo da cegueira; esta
cristaliza o desentendimento nas relações quando ao apelo res-
ponde a rejeição3. A cegueira marca, com efeito, todo o relato
e corresponde às diversas formas de obstáculos que a revelação
de Deus encontra, aos mal-entendidos que ela suscita: sucessi-
vamente cegueira dos fariseus diante da autoridade de Jesus, do
povo diante dos milagres, dos próprios discípulos diante da aber-
tura para os pagãos. Em seguida, nas duas extremidades do cami-
nho para Jerusalém, que deu uma virada com a Paixão anunciada
claramente, e que começa por uma nova vocação ao seguimento,
é preciso que Deus mesmo abra os olhos dos cegos (8,22-26 e
10,46-52): sem milagres, nenhum seguimento possível, nenhum
sentido legível! Enfim, a passagem pelo despojamento da cruz se
abre para o túmulo, onde Jesus não está, e para o encontro na

1 Elizabeth S. MALBON, Narrative Space and Mythic Meaning in Mark,


Sheffield, 1SOT Press, 1991.
3 Eduard SCHWEIZER, Das Evangelium nach Markus, Gottingen, Vande-
nhoeckund Ruprecht, 1989, 211-216.

48
O evangelho segundo Marcos

Galiléia, onde ele convida a segui-lo para um verdadeiro ver: "ele


não está aqui, vede ... é lá que o vereis” (16,6).

c) Uma atenção ao desenvolvimento do drama, centrado na


identidade de Jesus, distinguiria, de preferência, dois con-
juntos depois do reconhecimento da voz de Deus no ba-
tismo (1,1-13): a identidade secreta e a incompreensão dos
discípulos (1,14-8,26); a revelação, da confissão de Pedro
em Cesaréia à do centurião romano aos pés da cruz, con-
firmada pelo túmulo vazio (8,27-16,8).

Nessa perspectiva, inspirada ao mesmo tempo pelos modelos de


composição retórica e dramática do mundo greco-romano, B.
Standaert assinalou, entre prólogo (no batismo) e epílogo (no tú-
mulo), três componentes4: a narração propriamente dita, exposição
de fatos, com o início do ministério de Jesus, onde se trama a ação
(1,14-6,13; em seu âmago, o discurso em parábolas, sob forma ve-
lada, condensa o sentido do relato); depois, comparável à argumerx-
tação, a seqüência que reporta as opiniões sobre a identidade de
Jesus, postas à prova nas partilhas do pão e, depois, nos anúncios
da Paixão (6,14-10,52, onde 8,27-9,13 marca o centro do evange-
Iho todo); enfim, o desertlace em Jerusalém (11-15). Baseada numa
arguta observação das correlações internas da narrativa, essa per-
cepção se articula com uma hipótese sobre sua função externa, na
comunidade: seria uma narração para a festa de Páscoa, uma ha-
ggadah cristã evocando a "passagem” de Jesus entre os seus e sua
última Páscoa, na noite em que foi entregue; sua leitura prepararia
o batismo, ao amanhecer, de novos convertidos, cuja imagem é in-
serida na narrativa sob os traços de um jovem nu, envolvido apenas
num lençol, como um sudário, e que reencontramos na manhã da
Páscoa, no túmulo vazio, revestido de branco (14,51-52 e 16,5).

Dessa diversidade pode-se concluir, ao mesmo tempo, que ne-


nhum fio permite marcar cortes verdadeiramente nítidos no conjun-
to da narrativa, mas também que todas as proposições convergem
para um ponto decisivo com a confissão de Cesaréia (8,27-30): an-

Benoit STANDAERT, Lévangile selon Marc. Composition et genre litterai-


re, Bruges, Zevenkerken, 1978,21984.

49
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

tes, os atos de autoridade, mas também o segredo e a comunicação


em parábolas; depois, os anúncios claros, mas também o caminho
do serviço tão difícil de compreender por causa do sofrimento. As
transições se fazem sutilmente por meio de relatos, como as curas
de cegos, que poderíam se inscrever tanto no conjunto que eles en-
cerram como no seguinte que eles introduzem.

Plano do evangelho segundo M arcos

P refácio (1,1-13) A vinda de Jesus preparada no Jordão


A voz de Deus pela voz das Escrituras (1,1-3); a
proclamação do Batista (1,4-8); o batismo de Je-
sus (1,8 - 11); as tentações no deserto (1,12-13)

A autoridade do filho de Deus


Os primeiros começos (1,14-3,35)
1.14-15 A proclamação de Jesus na Galiléia: tempo cum-
prido, reino à porta
1,16-3,35 Vocações
Vocação duas vezes de dois pescadores (1,16-20);
primeiro dia de curas e partida para outro lugar
(1,21-45); controvérsias: curas e refeições que fa-
zem aumentar a contestação (2,1-3,12); eleição
dos Doze e a família de sangue (3,13-35)
A s travessias de barco (4,1-8,21)
4,1-6,13 Parábolas e curas
Uma jornada de parábolas: a multiplicação
dos grãos (4,1-34); travessia na tempestade
(4,35-41); na outra margem, um homem sai dos
túmulos (5,1-20); um chefe da sinagoga perde a
filha (5,21-24 e 35-43); uma mulher perde sangue
(5,25-34); rejeição da família, envio dos Doze em
missão (6,1-13)
6.14- 8,21 Os pães no deserto e as migalhas
A paixão do Batista (6,4-29); primeira multipli-
cação dos pães (6,30-44); o caminhar sobre as
águas (6,45-56); o puro e o impuro (7,1-23); as
migalhas para os cãezinhos (7,24-30); cura de
um surdo-mudo (7,31-37); segunda multiplicação
dos pães (8 , 1- 10 ); um único pão na barca ou os
discípulos cegos (8 , 11- 2 1 )

50
O evangelho segundo Marcos

O serviço do filho de Deus


O caminho para Jerusalém (8,22-10,52)
O cego de Betsaida (8,22-26); a confissão de Ce-
saréia (8,27-30)
Primeiro anúncio da Paixão (8,31-33)
Apelo a carregar sua cruz (8,34-9,1); o Filho de
Deus transfigurado (9,2-13); o filho epiléptico
(9,14-29)
Segundo anúncio da Paixão (9,30-32)
O maior e o estropiado (9,33-50); o casamento,
as crianças, o homem rico (10,1-31)
Terceiro anúncio da Paixão (10,32-34)
Tiago e João na glória (10,35-45); o cego Barti-
meu no caminho (10,46-52)
A Paixão em Jerusalém (11-16)
11,1-13,37 As entradas e saídas
A entrada triunfal (11,1-11); a figueira sem fruto e
o "Templo sem orações (11,12-25); controvérsias no
Templo (11,27-12,37); a esmola de uma viúva no
Templo (12,38-44); o discurso apocalíptico (13)
14,1-52 A prisão
A unção do corpo (14,3-9); Judas ou o preço da
traição (14,1-2 e 10-11); a última ceia (14,12-31); a
oração do Getsêmani (14,32-42); a prisão, beijo
de Judas, abandono dos discípulos, o seguimento
do jovem nu (14,43-52)
14,53-15,20 Os processos
O processo judaico e sua zombaria: “Banca o
profeta!” (14,53-65); o “processo” de Pedro e
sua renegação (14,66-72); o processo romano e
sua zombaria: “Salve, rei dos judeus!” (15,1-20)
15,21-47 A morte
A cruz e sua zombaria: “Salva-te a ti mesmo, se
és o Messias!” (15,21-32); o grito no Gólgota, o
rasgão no Templo, a confissão de fé do centurião
(15,37-39); o sepultamento (15,42-47)

Posfácio (16,1-8)
16,1-8 O relato do silêncio: as mulheres no túmulo e o
encontro marcado na Galiléia
(16,9-20 Uma sequência acrescentada: o relato da procla-
mação)

51
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

1. 3. Conteúdo seguindo o fio das sequências


1,1-13. Deus é o primeiro a tomar a palavra no relato, ele fala
pelas Escrituras, em um texto compósito atribuído a Isaías. O
evangelho começa, assim, como citação e interpretação livres das
Escrituras judaicas. Com João, descrito sob os traços do profe-
ta Elias, e seu batismo de conversão começam os deslocamentos;
Jerusalém e toda a Judéia se dirigem ao deserto, como um não-
lugar, no rio Jordão, que marca uma fronteira. Jesus vai também,
é batizado ali e sua filiação é proclamada por Deus sob os 'céus
abertos, no tempo escatológico. Aí ele recebe o Espírito que ime-
diatamente o expõe à tentação. O combate com o diabo por uma
compreensão justa da filiação é evocado, mas não reportado, como
se o relato o deixasse em branco, contando com outras sequências
narrativas para completá-lo, nas quais Satã assumirá rosto huma-
no: com Pedro em Cesaréia, que recusa a cruz (8,31-33), com o
desejo mesmo de Jesus na noite do Getsêmani (14,32-42), com
os três desafios lançados ao pé da cruz para que descesse para se
salvar a si mesmo (15,29-32).
1,14-3,35. João entregue, Jesus apanha a bandeira da procla-
mação cujo objeto é o Evangelho de Deus, dado a crer. Crer nele
implica uma conversão. Que se realiza, imediatamente, com o cha-
mamento, na praia, de duas vezes dois pescadores; eles deixam a
rede familial e econômica para segui-lo e se tornar, conforme sua
palavra, pescadores de homens. A barca abandonada receberá ou-
tras funções no relato.
Uma jornada de curas (1,21-45) revela, em público e^m particu-
lar, a dimensão da autoridade de Jesus. Sua prática é saudada, desde
a manhã na sinagoga de Cafarnaum, como um ensinamento novo e
transborda, na madrugada seguinte, em outro lugar onde os discípu-
los o buscam. Nas fronteiras da morte e dos tabus, é um leproso que
vem lhe suplicar; quando Jesus o toca, o excluído é reintegrado no
espaço religioso e social, mas é o curandeiro que toma seu lugar na
marginalidade para onde sua fama o expulsa.
O retorno a Cafarnaum abre uma série de controvérsias (2,1-
3,6) construídas em encaixamento; encenações como as curas e as

52
O evangelho segundo Marcos

refeições que trazem, em seu âmago, a metáfora do vinho novo, por


ocasião das núpcias. O perdão de Deus que Jesus realiza na terra, a
liberdade com a qual ele age e fala e que outorga aos discípulos de-
sencadeiam resistências e alimentam a contestação. Isso tudo leva
à decisão, logo tomada, de suprimir aquele que reordena a criação
de Deus, e as instituições que a celebram, tais como o sábado, para
a vida do homem.
4 ,1 - 6 ,1 3 . Uma seqüência de parábolas e de milagres se insere-
ve entre^duas passagens (3,13-35 e 6,1-13) em que a incompreen-
são da família de Jesus contrasta com a eleição, depois o envio em
missão, da “família” dos doze discípulos. Uma jornada de parábolas
(4,1-34), enunciadas da barca, a distância, retrata o Reino de Deus
em imagens. O comentário delas esboça duas posições de escuta
que impelem à escolha: para os que estão de fora, a linguagem da
parábola é opacidade e exclui do perdão; para os de dentro, a “quem
foi dado o mistério do Reino” (4,11), abre-se uma via de explicação
que faz entrar na produção mesmo das parábolas (“com que vamos
comparar o Reino?”, 4,30). Ao entardecer, uma primeira travessia
do mar é marcada por uma tempestade e a ausência, sentida com
angústia, do mestre adormecido (4,35-41). Em seguida, três curas,
das quais a última é até uma ressurreição, numa e noutra margem,
pagã e judaica, restauram o humano em sua saúde e sua dignidade,
homem, mulher e criança (capítulo 5).
6 , 1 4 - 8 , 2 1 . A prisão e a morte do Batista oferecem uma imagem
reduzida e antecipatória da Paixão (6,14-29); precedem-nas o en-
vio dos discípulos, como se missão e perseguição fossem par a par.
Nada de repouso, no retorno dos discípulos, mas refeição para os
outros, que reagrupa a seqüência dos pães (6,30-8,21). Cada um
dos relatos de multiplicação milagrosa, para judeus e depois para
pagãos, é seguido de uma travessia do mar; a superabundância
da partilha parece abrir novas passagens, mas a compreensão dos
discípulos é posta à prova. Quando Jesus caminha sobre as águas
e, nisso, se revela em sua divindade (6,45-52), pode-se pensar em
um relato de aparição, tanto mais que lhe falta um final, na so-
briedade pascal própria de Marcos. Entre as duas multiplicações

53
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

dos pães, Jesus transpõe a oposição do puro e do impuro do plano


ritual para o da ética (7,1-23); ele revela duas origens verdadeiras
dos comportamentos: a palavra de Deus como exterioridade que
interpela e não se deixa reduzir a tradições humanas, e o coração
do homem, interioridade profunda, fonte de toda conduta. Mas
a fronteira da impureza é uma mulher estrangeira que a trans-
cende; ela retoma, por conta própria, a questão dos restos da
refeição como migalhas que caem da mesa e, com uma palavra li-
bertadora, arriscando desbaratar as referências mesmas de Jesus,
faz de sua filha impura uma cidadã do Reino (7,24-30).
8 ,2 2 -1 0 ,5 2 . Estendido entre duas curas de cegos, o caminho
que se orienta para Jerusalém é então marcado por três anúncios
da Paixão e da ressurreição. Um “é necessário” (Ôet) lhes é sobre-
posto, que remete o acontecimento às mãos de Deus. Mas eles
revestem o seguimento de opacidade e de angústia. O primeiro
(8,31) se apóia na confissão de Pedro em Cesaréia; faz desse ca-
minho, no qual se deve carregar a cruz, uma exigência para todos
os que quiserem seguir e para os quais a vida e a morte se reve-
lam em seu verdadeiro valor. A voz de Pedro, acima da confusão,
que reconheceu Cristo (8,27-30), faz então eco a voz de Deus na
montanha da transfiguração, que reconhece seu Filho e convida a
escutá-lo (9,2-10). Mas Jesus, que apareceu na palavra partilhada
com Elias e Moisés, desce só, com seus discípulos, entre os ho-
mens; a brancura de suas vestes só brilhará na tumba, vestindo um
jovem, depois da morte atravessada (16,5). Ao pé da montanha,
Jesus levanta um filho desfigurado dos homens, o rapaz epiléptico,
mudo, possesso (9,14-29); a figura do pai, que sai da multidão para
levar sua queixa a Jesus, permite ao evangelho construir sua mais
bela imagem da fé que suplica: “Eu creio! Vem em auxílio de minha
falta de fé!” (9,24).
O segundo anúncio da Paixão (9,30-32) é seguido de reflexões
sobre a condição do discípulo; a criança, em sua capacidade de
acolhida, é a própria imagem do convidado ao Reino, ao passo que
as riquezas, materiais ou de perfeição religiosa, são obstáculos. Em
uma explicação paradoxal, Jesus articula, então, a exigência mais

54
O evangelho segundo Marcos

radical (vender tudo para segui-lo) e a mais absoluta gratuidade (só


Deus pode dar acesso ao Reino). O terceiro anúncio (10,32-34) a
reforça: assegurar o privilégio de sentar-se com ele na glória não
pertence nem mesmo a Jesus, mas reencontrar a visão, isso ele
pode conceder; aliás, à sua direita e à sua esquerda se sentarão,
não dois discípulos na glória (10,37), mas dois bandidos na cruz
(15,27).
11-13. A entrada triunfal e aclamada do Filho de Davi em sua
cidade termina, à tarde, com um olhar à volta que varre o Templo.
O fato de a casa de Deus não oferecer mais orações por todas as na-
ções, assim como uma figueira, mesmo fora de estação, não oferece
seus frutos na hora da fome do Messias, vota uma e outra à destrui-
ção. O Templo, purificado primeiro de seu comércio, passa a ser o
teatro de uma série de controvérsias em que a autoridade de Jesus
é questionada; ele escapa das armadilhas e reduz seus adversário ao
silêncio quando acolhe, no limiar do Reino, um escriba que soube
responder (11,27-12,37).
Como os escribas devoram as casas das viúvas e o Templo as suas
moedinhas, Jesus anuncia a queda dessa construção suntuosa num
discurso apocalíptico (13). Mas a pregação do Evangelho deve prece-
der a vinda do Filho do homem, evocada primeiro como o cataclismo
de um parto cósmico, depois, mais naturalmente, como a passagem
da primavera para o verão, que não se sabe quando vai chegar, mas
que se deve aguardar vigilante.
1 4 -1 5 . A Paixão se prepara, então, por refeições em que vêm
se imbricar a razão, a decisão, a revelação da traição de Judas.
A primeira, em Betânia (14,3-9), está centrada no gesto deslo-
cado de uma mulher que, de antemão, sem ele saber, oferece a
Jesus a unção para o seu sepultamento, que não se fará na tumba,
por falta de corpo; a conveniência de seu ato tem a promessa da
memória. A segunda refeição, em Jerusalém, é a última que Je-
sus partilha com seus discípulos (14,22-25); ele aí distribui o pão
partido como o seu corpo, o vinho vertido como o seu sangue,
com uma palavra que não ordena que se repitam os gestos em sua
memória, como na tradição de Paulo e Lucas, mas cava um vácuo

55
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

entre um “nunca mais” e "até o dia em que” se beberá do vinho


novo no Reino.
O anúncio, a Pedro, de sua negação não impede o discípulo de
cair na tentação do sono três vezes no Getsêmani, nem de negar
três vezes durante o processo que se torna também o seu. Mas a
memória da palavra dita de antemão, despertada pelo canto do galo,
permite as lágrimas e inscreve a angústia da infidelidade na tensão
de um cumprimento.
E no combate de uma noite de oração que Jesus concilia sua von-
tade com a do Pai. Em dois processos, em seguida, o judaico e o ro-
mano, ele mesmo dá o motivo para condená-lo como blasfemador;
depois, com o seu silêncio ele surpreende Pilatos, que queria soltá-
lo, mas não consegue desfazer o nó do ciúme dos sumos sacerdotes
e da excitação da multidão. Sob a forma de questões e de zombarias,
os processos também permitem ao relato pôr em cena o problema
da identidade de Jesus: “és tu o Messias, Filho do Deus bendito?”
(14,61); “vereis o Filho do Homem...” (14,62); “banca o profeta!”
(14,65); “Tu és o rei dos judeus?” (15,2); enfim, quando os soldados
o revestiram de púrpura e o coroaram de espinhos, “salve rei dos
judeus!” (15,18).
Após três horas de trevas ocorridas em pleno meio-dia, Jesus
morre só, voltado para Deus com um último “por quê?”. Um jovem,
personagem próprio do relato de Marcos, bem que quis seguir Jesus
quando Judas o entregou e os discípulos o abandonaram; mas, pego
ao mesmo tempo que Jesus, ele largou o lençol que o vestia e fugiu
nu (14,51-52). Para sustentar um vínculo vivo, só resta o olhar, a dis-
tância, das mulheres diante da cruz e, depois, diante da tumba.
16, 1- 8 . O evangelho conta a manhã pascal sem recear ser curto.
Depois do sábado, começa um tempo novo: nascer do sol, pedra já
rolada, corpo ausente, palavra viva de um jovem que lembra o en-
contro marcado a ser lembrado aos discípulos lá fora. As mulheres
fogem do túmulo, trêmulas e transtornadas; não dizem nada a nin-
guém, com medo.

56
O evangelho segundo Marcos

1.4. O problema do final

Uma pluralidade de finais


• o final curto (16,1-8) termina com: “Elas saíram e fugiram para longe do
túmulo, pois estavam todas trêmulas e transtornadas; e elas não disse-
ram nada a ninguém, pois tinham medo”.
• o final curto retocado com uma breve adição‫׳‬. “Elas saíram e fugiram para
longe do túmulo, pois estavam todas trêmulas e transtornadas; ... pois
tinham medo. Elas contaram brevemente aos companheiros de Pedro o
que lhes tinha sido anunciado. Em seguida, Jesus mesmo fez levar por
eles, do oriente até o ocidente, a proclamação sagrada e incorruptível
da salvação eterna”.
• o final longo (16,1-8 + 9-20)
• o final duplamente longo (16,1-8 + adição breve + 9-20)
• ofinal com interpolação do logion de Freer entre os versículos 14e 15: “Es-
tes disseram em sua defesa: ‘Este século de impiedade e de incredulida-
de está sob o poder de Satã, que não permite que a verdade e a força de
Deus sejam recebidas pelos espíritos impuros; por isso revela desde ago-
ra tua justiça’. Diziam isso a Cristo e Cristo lhes respondeu: Ό término
dos anos do poder de Satã está cumprido, mas outras coisas terríveis se
aproximam. E fui entregue à morte por aqueles que pecaram, a fim de
que se convertessem à verdade e não pequem mais, a fim de que herdem
a glória, a justiça, glória espiritual e incorruptível que está no céu’”.

Uma análise do vocabulário e dos temas dos versículos 9-20 do


capítulo 16, e do seu parentesco com outros escritos do NovoTesta-
mento, ou posteriores, permitiu datar este pedaço no segundo terço
do século II, como um documento da missão cristã em meio helenis-
ta5. Em sua forma original, terminava o evangelho em 16,8, tendo
como última palavra o medo das mulheres, explicando sua fuga do
túmulo e o seu silêncio, ou comportava ele um outro fim acidental-
mente perdido ou voluntariamente truncado? Do lado da tradição
manuscrita, dois grandes manuscritos em uncial do século IV, Sinai-
tico (r) e Vaticanus (B), terminam em 16,8. Um manuscrito da Vetus
latina, o códice k do século IV, omite o silêncio das mulheres para
encaixar uma adição breve. A maioria dos manuscritos em uncial,

5 Joseph HUG, La finale de 1’évangile de Marc (Me 16,9-20), Paris, Gabalda,


1978. Para uma visão atual da questão, cf Steven L. COX, A History and
Critique o f Scholarship concerning the Markan Endings, Lewiston/Queens-
ton, Mellen Press, 1993.
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

bem como a Vulgata, reproduzem o texto longo (1-8 + 9-20). Este


existe também sob uma forma que integra as duas adições (atestada
por alguns manuscritos), assim como a interpolação de um togion
entre os versículos 14 e 15, que explica a incredulidade dos discípulos
(atestada pelo códice de Freer, W, do século V).
A hipótèse do final primitivo curto prevalece hoje sobre a de uma
mutilação do texto. Ela é bem do estilo deste evangelho, que mais
de uma vez suspende um episódio com uma emoção. Se o texto
longo esboça o trajeto que vai do túmulo e de seu silêncio à palavra
proclamada por toda parte no mundo, e se ele inverte o medo em
sinais que acompanham os crentes, o texto curto, em compensação,
é todo no sentido de remessas: o encontro marcado na Galiléia re-
mete ao início do relato, em que Jesus aparece na Galiléia, e a uma
leitura do evangelho a ser recomeçada; o silêncio remete à palavra
que o precedeu, à confissão do centurião que acolhe a revelação,
não das aparições pascais, mas da própria cruz (15,39).

2 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
2 .1. O autor
O evangelho segundo Marcos é uma obra que quis ficar anônima.
Quando o autor recebeu uma pregação de Jesus e sobre Jesus, que
traduziu em um relato de vida, sua personalidade se apagou diante
da autoridade da mensagem a ser comunicada, o Evangelho. Seu
relato não ostenta nenhum “eu” que fala, diferentemente da dedica-
ção lucana (Lc 1,1-4); ele é apenas pressuposto pela apóstrofe ao lei-
tor introduzida no discurso apocalíptico (“que o leitor compreenda”,
13,14). O autor também não explicita nenhuma intenção, diferente-
mente da conclusão joanina (Jo 20,30-31): ela deve ser deduzida da
perspectiva da própria obra.
A importância dada a essa reserva põe a questão da identidade
de Marcos em seu justo lugar. A subscrição “segundo Marcos” (κατά
Μάρκον), um nome de origem romana muito difundido, é secunda-
ria; atestada desde Ireneu (fim do século II), ela reflete novas condi-
ções de recepção. Para situar esse relato, toda a tradição patrística

58
O evangelho segundo Marcos

se apoiou no testemunho de Papias, bispo de Hierápolis, na Frigia (c.


125), reportado por Eusébio de Cesaréia (História eclesiástica 111, 39,
15). Comentando a afirmação de um presbítero João, Papias qualifica
Marcos de intérprete de Pedro (6ρμην6‫׳‬υτής — mas em que sentido?
tradutor? comentador?) que fez uma obra de memória das palavras
e dos atos do Senhor (έμνημόνευσ6ν: a tradição não era mais direta-
mente acessível?) sem omissão nem mentiras, escrevendo sem or-
dem mas com exatidão (sua memória era seletiva ou sem defeito?).
Ao lado das questões que suscita, essa atestação parece apologética;
tem a intenção de ligar os evangelhos, mesmo indiretamente, à figura
de um apóstolo e não pode, portanto, ser tomada ao pé da letra. O
próprio conteúdo do relato faz o olhar deslizar do autor para os des-
tinatários do evangelho: este se explica muito mais como resposta
às questões das comunidades às quais se dirige do que como teste-
munho ocular direto. A referência a Papias, entretanto, sustentou a
hipótese de Marcos ter escrito em Roma depois da morte de Pedro.
No Novo Testamento, é em 1 Pedro, ele mesmo um escrito pseu-
depigráfico, que Marcos é associado a Pedro como “meu filho”, cujas
saudações o autor da carta envia junto com as da comunidade de
Roma (5,13). A tradição eclesiástica identificou Marcos com João
Marcos, um judeu-cristão da comunidade de Jerusalém, discípulo de
Pedro, de que falam os Atos (12,12), e primo de Barnabé, segundo
Cl 4,10; João Marcos foi companheiro de missão de Paulo e Barnabé
desde Antioquia até uma separação que Paulo se recusará a anular
(At 13,3; 15,37-39). As pastorais o mencionam como associado a
Paulo (2Tm 4,11). Filêmon 24 indica Marcos junto de Paulo entre
outros colaboradores, entre os quais Lucas.
A exegese discutiu essas relações. Na falta de uma teologia de
Pedro, para comparação, pois dele não se tem nenhum texto direto,
observou-se o papel importante que esse discípulo desempenha no
relato de Marcos. Mas na imagem que se extrai dele o que levaria a
pressupor o contato direto de um discípulo ou intérprete? As impre-
cisões geográficas do relato pesaram também em favor de uma cer-
ta distância do evangelho em relação a uma tradição da andança na
Galiléia ligada a Pedro. Mas é sobretudo a pluralidade de tradições

59
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

reunidas por Marcos que, em sua diversidade, afrouxa as ligações


e torna mais complexa a questão das heranças. Por outro lado, as
aberturas teológicas do evangelho podem entrar em ressonância
com a pregação de Paulo do Evangelho: a comensalidade com os
pagãos (comparar p. ex. Mc 7,24-30 e Gl 2,11-21), a compreensão
da cruz como lugar decisivo da revelação de Deus (Mc 15,39), onde
sua força se manifesta na fraqueza, como diz Paulo falando de si
mesmo (2Cor 12,9). Mas a questão mais cerrada dos paulinismos na
linguagem de Marcos foi resolvida pela crítica de maneira negativa;
se há aproximações possíveis, é sem dúvida mais produtivo pensá-las
no leque de expressões particulares de questões decisivas próprias
do cristianismo nascente, que se fecundam umas às outras na leitu-
ra, do que em termos de dependência.
O autor, portanto, não há como conhecê-lo senão por seu escrito
e pelo que podemos deduzir de sua linguagem, de seu estilo, de sua
relação com o espaço e o tempo, de seu trabalho literário e de sua
perspectiva teológica.
Observa-se que o evangelho de Marcos é um escrito de língua
grega tingida de semitismos, próxima das tradições orais aramaicas,
com uma reserva léxica pobre, de sintaxe elementar, que justapõe as
proposições de preferência a hierarquizá-las (parataxe), usa muito o
presente histórico e suas imperfeições redacionais são visíveis. Deixa-
se claro, hoje, que esses traços não o desqualificam, mas o inscrevem
de pleno direito no campo reconhecido da literatura popular helênica.
Na verdade, o evangelho, em sua escrita, se revestiu de modéstia,
mas traz, no fundo, uma vivacidade poética decorrente da rugosidade
da expressão, de um relevo frequentemente deixado em estado bruto.
As abordagens atuais, sensíveis à unidade da obra e à riqueza de suas
correlações internas, descobrem uma tecedura muito trabalhada,
uma ingenuidade, em segundo plano, que ajusta o estilo ao conteúdo.

2.2. O lugar
A tradição, e já Clemente de Alexandria, localizou o evangelho
em Roma. Nada no texto permite, realmente, confirmá-lo ou infir-

60
O evangelho segundo Marcos

má-lo. É verdade que se notam latinismos (sobretudo em termos


militares ou monetários, como a tradução de lepta por quadrante
romano, 12,42); mas na época esses latinismos parecem ter passado
para a linguagem corrente do grego helênico. A montante, a coleção
de tradições diversas que Marcos herdou, a jusante o fato de Mateus
e Lucas o terem logo conhecido e reconhecido sua autoridade, a
ponto de utilizá-lo como uma de suas fontes comuns, pleiteiam um
centro urbano e eclesial de certa irradiação. Isso vale para Roma,
mas não exclusivamente; Alexandria, no Egito, Antioquia, na Sí-
ria, foram também sugeridas. Por causa do interesse do evangelho
pela Galiléia — onde Jesus começa a proclamar o Evangelho e que
percorre em todos os sentidos, e onde o Ressuscitado espera pelos
seus — ; por causa de sua fidelidade a uma tradição antiga, que aca-
tou, localizando os saduceus no Templo e os escribas em Jerusalém,
como antes de 70, ao passo que Mateus e Lucas ampliam o lugar
com as primeiras comunidades palestinenses, alguns pesquisado-
res chegaram mesmo a defender a idéia de uma origem na Galiléia.
Roma permanece, entretanto, como a hipótese privilegiada.

2.3. A data
Para a datação, é o capítulo 13 — o grande discurso que anuncia
o fim dos tempos a partir da destruição do Templo de Jerusalém —
que é tomado como ponto de referência. Ele lembra um discurso
de adeus, que dá ao presente precário das comunidades às quais o
evangelho se dirige a condição de um anúncio profético do Senhor.
Esse texto reflete um período conturbado, conforme as informações
que nele podemos respigar — clima tenso, profanação do lugar san-
to (“Quando virdes o Abominável Devastador instalado onde não
deve”, v. 14), urgência de proclamar o Evangelho às nações (v. 10),
diante dos tribunais (v. 11), pretensões messiânicas (vv. 5-7; 22).
Mas tudo isso pode tanto falar da primeira Guerra Judaica (66-70),
que terminou com a tomada de Jerusalém por Tito e o incêndio do
Templo, como visar à escatologia e depender de temas apocalípticos
segundo os clichês bíblicos.

61
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Que parte atribuir a cada um desses pontos de vista? É preferí-


vel focalizar a atualidade ou a Parusia? O apelo à vigilância, dirigido
a todos, com o qual termina o discurso, é sem dúvida urgido pelos
acontecimentos da guerra. Mas a alusão a esta limita-se ao conflito
palestino ou integra também um eco dos distúrbios em Roma, nessa
mesma época, com o incêndio da cidade pelo qual Nero culpa os
cristãos e a guerra civil que se segue à morte do imperador? O sinal
de alarme que o martírio de Pedro talvez tenha significado para os
crentes pode ter levado a consignar por escrito as tradições sobre
Jesus. Portanto, a data de 70, num clima de efervescência apoca-
líptica, é majoritariamente mantida, seja logo antes, ou logo depois,
conforme se suponha a queda de Jerusalém iminente ou já realiza-
da. As alusões à violência desse desfecho são menos nítidas do que
em Mateus (22,7, p. ex.), o que faria pender para antes.

2.4. Os destinatários
Quanto à origem religiosa dos destinatários, é a ausência de refle-
xão profunda sobre alorá, ao contrário do evangelho de Mateus, que
leva a pensar em pagãos-cristãos. A importância dos deslocamentos
de Jesus nos territórios limítrofes de Tiro e de Sídon, de Cesaréia de
Filipe e, mais ainda, francamente do outro lado do lago da Galiléia, na
Decápolis, apóia esta hipótese. Ela é confirmada pontualmente pela
tradução necessária de usos e costumes judaicos desconhecidos dos
leitores (7,1-4, sobre os rituais de purificação). Mas a imprecisão his-
tórica nessas mesmas explicações não chega, em geral, a induzir que
o próprio autor seja pagão-cristão; como judeu de origem, pode-se
imaginá-lo a certa distância das autoridades religiosas e das institui-
ções de seu tempo, o que lhe dá uma certa flexibilidade de visão. A
atenuação dos costumes pode, aliás, se explicar também pelo ângulo
polêmico dos debates encenados pela narração. A figura do autor se
delineia, assim, como um judeu-cristão da segunda geração, falando o
grego, aberto à missão universal, que escreve para pagãos-cristãos de
uma comunidade, se não romana, pelo menos do mundo ocidental.
Não sendo possível, para esse primeiro evangelho, um olhar si-
nótico com algum texto anterior, uma imagem teológica da comuni-

62
O evangelho segundo Marcos

dade receptora não pode ser avaliada por retoques, deslocamentos,


omissões, acréscimos, como se faz com Mateus e Lucas a partir de
Marcos. A pesquisa das fontes, que permanecem hipotéticas, e so-
bretudo a intencionalidade que se extrai da própria obra suprem par-
cialmente essa falta. Mas como decidir, por exemplo, se a dificuldade
dos discípulos de compreender a pessoa e as intervenções de Jesus
representa uma estratégia para acompanhar a fragilidade de uma
comunidade sofrida, fortificando-a pelo exemplo das origens, ou, ao
contrário, quer deslocar os marcos já esclerosados demais, deses-
tabilizar os costumes fáceis demais, até mesmo da confissão de fé
(1,24; 5,7) ou das palavras de perdão (2,9)?
Alguns traços sugestivos de uma experiência histórica podem ser
tirados do relato. A imagem que se projeta é a de uma comunidade
a caminho; ela se desembaraça da febre apocalíptica (13,6-8); toma
distância em relação às instituições judaicas (o sábado, por exemplo,
2,27-28); volta-se para os outros, os pagãos, sob a inspiração da li-
berdade de Jesus, que para recolocar o homem no centro da criação
de Deus teve de transpor muitas fronteiras. Essa comunidade assu-
me sua vida desenraizada, itinerante, que atravessa as tempestades
da história e da fé. Encontra acolhimento e força para enfrentar a
novidade nos pães que dá o seu Senhor — como fez Deus para seu
povo no êxodo. Encorajada pelos momentos de recolhimento nas
casas onde é ensinada, é sobretudo para a frente que essa comuni-
dade é arrastada, em busca de reconhecimento, pela questão “mas,
então, quem é Jesus?”. E interrogando-se sobre ele que ela se afir-
ma. Ela modela sua identidade lendo e escrevendo sua história; ela
cava o sulco de seu futuro contando onde começa sua libertação,
que recebe como uma cura, uma ressurreição.

3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e h is t ó r ic a
3 .1. Os gêneros literários
Se o estilo do evangelho, no conjunto de sua composição, encer-
ra alguma coisa de incomparável, os gêneros literários de seus epi-
sódios parecem mais evidentes. Eles foram recenseados pela crítica

63
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

das formas (Formgeschichte) e comparados com os da literatura tanto


judaica como greco-romana (ex-voto do templo do deus curandeiro
Esculápio, em Epidauro, por exemplo, no caso dos relatos de cura).
Pelo modo como as unidades estão distribuídas na trama do rela-
to final, pode-se distinguir:
a) Um grande relato de Paixão (capítulos 14-16) é ritmado
pelos dias que precedem a Páscoa, depois pelas horas que
precipitam a morte. Ele é preparado por três anúncios di-
retos na boca de Jesus, que marcam a subida a Jerusalém
e a interpretam como uma obediência consciente do Filho,
que seus discípulos ainda seguem, mas sem compreender,
com medo crescente.
b) Inúmeros relatos de cura e de exorcismo constituem a ati-
vidade principal de Jesus na Galiléia: dezessete milagres
particulares que são reforçados, num resumo generalizan-
te, por três sumários. Como atos de poder (δυνάμεις), eles
significam que a vida é milagre, que ela é dada por Deus;
um relato de ressurreição leva essa expressão ao extremo
(5,21-24.35-43).
c) Duas séries de controvérsias com os adversários, escri-
bas, fariseus, sumos sacerdotes, anciãos, ocupam um lu-
gar significativo nos dois espaços do ministério: a Galiléia
(2,1-3,6), depois Jerusalém (11,27-12,37). Retomando o
gênero e as questões dos debates acadêmicos, elas estig-
matizam a oposição das diferentes autoridades judaicas ao
pequeno grupo de Jesus e seus discípulos.
d) A boa-nova do Reino, que reclama uma proximidade de es-
cuta, toma também o desvio do falar em parábolas. Reuni-
das, sobretudo, em uma jornada de discursos na margem,
elas privilegiam as imagens de fecundidade do grão (ca-
pítulo 4), ao passo que uma outra parábola, pronunciada
no Templo de Jerusalém, conta a substituição dos frutos
esperados da vinha pelo sangue derramado (12,1-12).
e) Na véspera da Paixão, um longo discurso de traços apo-
calípticos (capítulo 13) liga representações do fim do mun-

64
O evangelho segundo Marcos

do ao anúncio da destruição do Templo. Mas sua redação


parece subverter o gênero a partir de dentro, pois em vez
de reservar uma revelação para alguns iniciados lança-os
na confusão dos acontecimentos da história; adverte con-
tra a ilusão de todo sinal de reconhecimento, destitui até
mesmo os anjos e o Filho de qualquer saber sobre a hora
do fim, para se abrir, no final, a um grande apelo, dirigido a
todos, para vigiar.

3.2. As fontes
O autor do evangelho herdou tradições que situamos sob a sua
remodelagem; mas é difícil dizer com precisão sua extensão e seu
teor, bem como restabelecer os contornos de um eventual proto-
Marcos. Sem dúvida ele se beneficiou, ao mesmo tempo, de fontes
escritas e de material oral, de primeiros esboços do judeu-cristianis-
mo da Palestina e de outros mais marcados pela cultura helênica.
Um relato da Paixão, com o qual as comunidades comemoravam,
em sua liturgia, a morte e ressurreição de seu Senhor, talvez tenha
formado o núcleo de sua narração; tecido de citações das Escrituras
que evocam as figuras do justo perseguido, ele deu ao evangelho sua
tensão dramática. Quanto às parábolas, às controvérsias, aos mila-
gres, parece que a tradição já tinha feito um trabalho de reagrupa-
mento. Marcos retomou também sentenças isoladas, que manteve
aqui e ali, mesmo quando as circunstâncias as tinham desmentido
(como a certeza de que o Reino viria antes da morte de alguns dos
ouvintes de Jesus, 9,1), ou que já tinham sido desenvolvidas em pe-
quenas coleções (como o apelo a todo homem a segui-lo ao preço de
sua própria vida, 8,34-38).
A obra final acentuou esses reagrupamentos, mas organizando o
material em um roteiro, com um contexto espaciotemporal e mediante
um manejo de atores; o relato foi também submetido a outros efeitos
de ecos internos, que transgridem as fronteiras dos gêneros literários.
A mola essencial da composição de Marcos, que assegura uma
coerência teológica das tradições recolhidas, foi designada pela ex-

65
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

pressão “segredo messiânico”. Aplica-se às ordens de silêncio diri-


gidas por Jesus àqueles que ele curava (1,44; 5,43; 7,36; 8,26), ou
a seus discípulos depois de uma revelação (8,30; 9,9), e ao tema da
incompreensão dos discípulos (4,13.40; 6,50-52; 8,16-21 etc.). Es-
ses dois temas fazem da revelação uma “epifania secreta”, segundo
a bela fórmula, tornada clássica, de Martin Dibelius. Certos autores
a isso associam a teoria das parábolas (4,10-12), o ensino velado de
Jesus explicado em particular para “os de dentro”. A tese do se-
gredo messiânico foi formulada pela primeira vez por W. Wrede,
em 19016. A seus olhos, para a comunidade primitiva, o segredo é o
meio de transportar sua fé pascal no Cristo ressuscitado para o Je-
sus histórico, quando este não tinha consciência clara de sua identi-
dade messiânica. Portanto, se Jesus não disse que ele era o Messias,
foi porque queria adiar a divulgação até a ressurreição e guardou
segredo. Outros autores pensam que essa teoria é imputável não à
tradição, mas à reflexão teológica do evangelista.

3.3. O trabalho literário e teológico


Pode-se ilustrar o impacto do trabalho do evangelista em relação
às suas fontes, num movimento ao mesmo tempo de respeito e de
repetição crítica, pela análise dos relatos de milagres proposta por
C. Senft7. Ele supõe que a tradição via nesses relatos, influenciados
pela sensibilidade helênica à presença do divino, um encontro liber-
tador que suscitava uma admiração estupefata diante da autoridade
carismática de Cristo; Jesus parecia ser percebido como um homem
divino (θ^ΐοςάνήρ), e o relato de seus atos que atraíam as multidões
servia sem dúvida de propaganda missionária. O evangelho dá uma

6 William WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangeliem. Zugleich ein


Beitrag zum Verstàndnis des Markusevangelium, Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1901. Cf as retomadas e modificações de Georges MINET-
TE DETILLESE.Lesecretmessianiquedans 1'évangiledeMarc, Paris, Cerf,
1968, e de Heikki RÀ1SÀNEN, The “Messianic Secret" in Mark’s Gospel,
Edinburgh, Clark, 1990 (orig. al. 1976).
7 Christophe SENFT Eévangileselon Marc, Genève, Labor et Fides, 1991, p.
13-41.

66
O evangelho segundo Marcos

grande importância a esses relatos, mas os reinterpreta em relação


ao seu projeto teológico. A evidência do milagre e a celebração de seu
autor se modificam num processo de questionamento. Para Marcos,
se o milagre liberta, traz também o risco de escravizar o libertador;
daí os traços novos de um Cristo que liberta provocando rupturas,
trazendo a contestação no seio mesmo das imagens da liberdade de
Deus feitas pelo homem. As resistências se exprimem, então, pela
vontade da oposição de fazer perecer aquele que faz viver a esse
preço. O acesso ao conhecimento de “quem é, em verdade, esse aí”
é problematizado: no nível do querer, pela presença dos adversários
que reclamam um sinal do céu em lugar de decifrar, em Jesus, o sinal
de Deus; no nível do poder, pela figura dos discípulos que custam a
compreender; no nível do saber, pelos demônios que possuem e não
se perguntam e pelas ordens de guardar silêncio — cuja transgres-
são, aliás, não leva nem mesmo a multidão a um reconhecimento
adequado. O último milagre, aquele de que Jesus é objeto, sua res-
surreição por Deus, deixa um túmulo aberto, mas vazio; Jesus dá, se
dá, mas não se deixa reter.

Sublinha-se, ao mesmo tempo, o esquematismo dos relatos de milagre


(um mesmo arcabouço narrativo para a primeira expulsão de um demônio
na sinagoga de Cafarnaum, 1,25-27, e para a tempestade acalmada no mar,
4,37-41) e seus toques vivos, muito coloridos, às vezes (até mesmo burlescos,
se pensarmos na manada de dois mil porcos arrastados pelo demônio Legião,
5,11-13). Por causa da densidade da expressão em sua sobriedade mesma,
o estudo de um relato particular parece dar a compreensão do conjunto de
conteúdos do evangelho, como se cada membro funcionasse como que em
metonímia do corpo inteiro. Mas seu reagrupamento apóia a complementa-
ridade. Em sua trama narrativa, o evangelista os colocou, por exemplo, sob a
unidade de tempo de uma primeira jornada em Cafarnaum (1,21-45), onde o
poder de cura transcende as barreiras entre os lugares, estoura os privilégios,
intervindo tanto no privado (a casa de Pedro) como no público, diferenciado,
por sua vez, em religioso (sinagoga) e social (a porta da cidade); a jornada
cheia transborda até mesmo para o dia seguinte e para o exterior, quando
Jesus sai, ao anoitecer, para proclamar noutro lugar e quando cura um leproso
fora dos espaços de contato. Mais adiante, retomando, para intensificá-lo, o
mesmo movimento que atravessa as distâncias, sem as anular, mas comba-
tendo suas resistências, o evangelho mostra a cura nas duas margens do mar

67
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

que separa judeus e pagãos, assim como no espaço intermediário (4,35-5,43);


Jesus afronta aí o desencadeamento da criação, depois do demônio, a sexua-
lidade ferida e até a morte. Com a partilha miraculosa dos pães (6,30-44 e
8 , 1- 1 0 ), as duas margens são ainda visitadas para o ato de alimentar, depois
do ato de curar, operando-se a conjunção dos dois na ordem de dar de comer
à menina que Jesus acaba de ressuscitar (5,43). Duas outras curas de criança
pontuam o traçado do percurso, onde uma palavra de mãe (7,24-30), depois
um grito de pai (9,14-29) esboçam inesperados modelos de fé. Enfim, as duas
curas de cego, que enquadram o caminho da Paixão, marcam uma progres-
são — não ver nada, ver alguma coisa (homens como árvores que caminham,
8,24), ver distintamente, ver e seguir (10,52); eles sugerem, sobretudo, que
não há como compreender e seguir sem que o próprio Cristo abra os olhos.
Uma dimensão metafórica vem assim se enraizar na linguagem corporal (cf
também 8,18).

Marcos fez o mesmo trabalho de problematização com as pará-


bolas, que parecem não tanto comunicar um ensinamento quan-
to fazer refletir sobre o ensinamento, provocando uma crise na
compreensão. Jesus, ao mesmo tempo, ilumina e esconde o Reino
que ele mostra em imagens. A linguagem da parábola escapa à
compreensão direta, marca descontinuidades, chama à responsa-
bilidade da escuta, revelando, ao mesmo tempo, que é impossível
ao homem compreender se o mistério não lhe é dado (4,11) se
Jesus não explica em particular o que ele conta (4,34). Acontece,
aliás, com ‫׳‬O contador de parábolas a mesma sorte de suas pará-
bolas: não uma “virada de sucesso” (C. Senft), mas o difícil enca-
minhamento que leva da incompreensão à rejeição, à traição, ao
abandono.
O célebre aforismo de Martin Kàhler, no início do século, de que
os evangelhos são “relatos de paixão precedidos de uma introdu-
ção circunstanciada” verifica-se particularmente em Marcos mas é,
ao mesmo tempo, matizado. Com efeito, desde os primeiros con-
frontos com os movimentos religiosos, por ocasião das curas e das
refeições que desarrumam a ordem dos valores e dos papéis, dos
tempos e dos lugares, o conflito se abre com a acusação de bias-
fêmia que será o motivo da condenação e da morte (2,10 e 14,64).
E enquanto Jesus cura a mão seca, fazendo fluir a vida no coração

68
O evangelho segundo Marcos

da sinagoga e do sábado (3,1-6), as autoridades dessa casa de Deus


se excluem e buscam, fora, alianças para fazê-lo perecer. Assim
a Paixão se anuncia desde os primeiros gestos, reinterpretando os
caminhos de acesso a Deus; como diz a metáfora das núpcias, dias
virão em que o esposo será tirado, e então será tempo de jejuar
(2,20). O evangelho começa, aliás, pela pregação de João Batista,
este precursor que prepara o caminho do Senhor; ora, ele é entre-
gue quando Jesus se põe a proclamar (1,14), depois assassinado por
ocasião de uma festa na corte de Herodes; e o relato conta isso no
momento em que o poder de Jesus suscita fama e os discípulos são
enviados em missão (6,14 ss.). O clima é de ameaça; proclamação
e Paixão caminham juntas. Mas tão grande porção do evangelho
consagrada aos encontros desse mestre itinerante que ensina, cura
e alimenta é mais do que uma introdução ao relato de sua perda.
Seus atos dizem, em cores vivas, o “não” de Deus a todas as for-
mas de opressão, de paralisia, de sedução, de idolatria que alteram
a criação. Eles afirmam o “sim” de Deus à vida, eles não são apenas
um trampolim para a Paixão.

A lg u m a s ca ra cterística s da com posição d e M arcos


Vários procedimentos do evangelista para entretecer essas uni-
dades narrativas recebidas ou criadas foram registrados:
estruturas concêntricas: pelo jogo integrante das correlações, esboça-
se um movimento de convergência em direção a um elemento central;
este pode servir de revelador para o conjunto. Assim a série das cinco
controvérsias de 2,1-3,6, em que a correlação entre as duas curas en-
globa a das duas refeições, traz em seu bojo a dupla metáfora da roupa
velha irreparável e do vinho novo. Mas o evangelho não se conforma
inteiro a esse modo de construção; sua estruturação parece mais com-
plexa. Aliás, para essa mesma sequência de debates, um aumento da
oposição traça um outro movimento que corresponde a uma progres-
são dramática.
relatos de transição: reconhece-se o papel particular dos pequenos epi-
sódios na articulação das seqüências entre si. Por exemplo, os relatos de
cura de cego cujos temas e termos se entrelaçam com os das perícopes
que precedem ou se seguem. Entre a cegueira dos discípulos no mar
(8,18) e a clarividência de Pedro em Cesaréia (8,27-30), inscreve-se a
cura do cego de Betsaida; mas esta é logo invertida pela cegueira de

69
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Pedro: malgrado a clareza de sua confissão, o discípulo não pode, com


efeito, conceber a necessidade da Paixão (8,31-33).
dramatização dos relatos: depois de uma partida apressada, eles se
vêem logo embarcados na crise e sua violência; há um desenlace, mas
o final é problematizado — nele desponta, entretanto, uma ultrapassa-
gem possível. Por exemplo, a tempestade acalmada (4,35-41) ou a pa-
rábola dos vinhateiros homicidas (12,1-12). A mesma tensão sustenta,
aliás, o evangelho todo.
encaixamentos: certas inserções são maiores, como a grande seqüên-
cia dos debates no Templo seguida do discurso apocalíptico (11,27-
12,37 e 13), inserida entre o que constituía talvez um relato primi-
tivo da Paixão (a entrada triunfal em Jerusalém com a purificação
do Templo, 11,1-25, e o relato da Páscoa, 14-16). O encaixamento
de um relato em outro se produz no nível das pequenas unidades,
como aquela, exemplar, da cura da mulher hemorroíssa em meio ao
deslocamento de Jesus em direção à casa de Jairo (5,25-34 entre
21-24 e 35-43). Do mesmo modo, a imbricação do processo de Jesus
e a negação de Pedro (14,66-72) ligam inseparavelmente as duas pro-
vações. Ou, ainda, o discurso apocalíptico, enxertado no anúncio da
ruína do Templo, está encravado entre os dons de duas mulheres, as
pobres moedinhas da viúva no cofre do Templo (12,41-44) e o perfu-
me caro derramado na cabeça de Jesus em Betânia (14,3-9); o gesto
delas esboça o próprio movimento de substituição do Templo de Je-
rusalém pelo corpo de Jesus.
dualidades de expressão: as inclusões já evocadas são uma das formas de
um paradigma de repetição mais amplo, explorado por P Neirynck8. A
duplicata mais evidente é a repetição da multiplicação dos pães (6,30-
44 e 8,14-21), mas parece que o fenômeno corresponde a um verda-
deiro processo de expressão em dois tempos, típico do pensamento e
da escritura de Marcos. Ele joga com detalhes (“ao anoitecer, após o
pôr-do-sol”, 1,32), frases, episódios e talvez mesmo com a própria or-
ganização do relato global.
palavras-gancho permitem ligar os episódios na sucessão, particular-
mente os dois pequenos advérbios típicos de Marcos, logo (€υθυς) e
de novo (ΤΓΚλίν). Eles sustentam o ritmo rápido dos acontecimentos,
sobretudo a sucessão de deslocamentos que dão ao relato um ritmo
ofegante. A repetição deles acaba por ter sentido: de maneira com-
plementar, eles evocam a imediatidade do dom de Deus, que antecipa
todo esforço humano, e os necessários recomeços que desapegam das
posses e das chegadas.

8 Frans NEIRYNCK, Duality in Mark: Contribution to the Study of the Mar-


kan Redaction, Leuven, Leuven University Press, 1972,21988.

70
O evangelho segundo Marcos

4 . V is ã o t e o l ó g ic a
4. /. O Filho de Deus
O evangelho de Marcos não faz mistério nem guarda o segredo,
e suas primeiras palavras o declaram: Jesus, cuja boa-nova se vai ler,
leva o título de Cristo, ao qual se acrescenta, segundo os manuscri-
tos, o de Filho de Deus. Apesar disso, a narração está semeada de
questões sobre sua identidade. Não se desenrola como a aquisição
progressiva^de um saber, que viria preencher uma falta, mas toma
a forma de um questionamento desse saber, desse crer já dados.
Como se com o apoio dessa confissão primeira fosse preciso que
o homem se interrogue, sempre de novo, sobre as modalidades de
acesso ao conhecimento, e como se fosse no próprio caminho desse
questionamento que ele se descobre verdadeiramente capaz de um
reconhecimento. O percurso da vida de Jesus segue, aliás, o mesmo
plano: nele, os sinais da alteridade de Deus, como no batismo ou
na transfiguração, são o viático que permite ao Filho, no caminho
assumido da obediência, atravessar a morte. A iniciativa da mulher
que perde seu sangue pode oferecer uma representação da busca,
por patamar, que o evangelho parece, assim, promover (5,25-34):
de uma necessidade para seu corpo, a saúde como um objeto que ela
ousa roubar pelas costas, ela passa à relação intersubjetiva, face a
face, quando Jesus procura quem o tocou, e depois finalmente ace-
de, a seus pés, a uma palavra verdadeira. O “verdadeiramente este
homem era Filho de Deus” (15,39) do centurião aos pés da cruz, que
faz eco ao “verdadeiramente tu és um dos seus”, que Pedro nega,
quando seu mestre é preso (14,70-72), indica a posição do olhar teo-
lógico a que o evangelho visa. Ele é enunciado no presente da ver-
dade, mas no espaço mesmo da morte, da ausência; integra, assim,
a distância do depois, antecipa a posição da leitura.

Rompimento e filiação
Sem relato do nascimento, nem da infância (Lucas e Mateus che-
garão a esses inícios humildes e milagrosos), sem evocação da pree-
xistência (João celebrará, em seu prólogo, essa origem primeira), o
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

evangelho de Marcos segue o percurso da vida e da morte de um


homem adulto. Inscreve-se entre dois batismos, o da água no rio
Jordão, no meio de todo o povo que ali se reúne, e o de sua Paixão,
segundo a metáfora do caminho de rejeição e de sofrimento que Je-
sus opõe à glória com a qual sonham dois de seus discípulos (“Podeis
beber a taça que vou beber, ou ser batizados com o batismo com
que serei batizado?”, 10,38).
Mas para anunciar Deus de maneira radicalmente nova, através
dessa história que desmonta o velho mundo, o relato estende o seu
fio sobretudo entre dois rompimentos: os céus que se rasgam, no
batismo, deixando passar a voz de Deus que reconhece seu filho e
sua alegria, e o Espírito que desce e concede autoridade a Jesus (1,9-
11); depois, o rompimento da cortina do Templo, na hora da cruz,
quando Deus abandona o Santo dos Santos para um último exílio,
para não mais se deixar encontrar em outro lugar senão nesse Cru-
cificado (15,38-39). Entre essas duas bordas, no centro do itinerário
e pouco antes que ele se incline para sua vertente de sombra, uma
luz, no cimo da montanha da transfiguração, rompe também o véu
sobre a identidade divina de Jesus (9,2-7). Desse modo, três mo-
mentos de revelação pontuam o enredo; eles sustentam sua curva,
que se faz cada vez mais provocativa, pois a terceira vez é para a
boca, não de um homem apenas, mas de um pagão (15,39) que a
palavra de reconhecimento, que era a de Deus (1,11 e 9,7), é des-
locada. Os discípulos representados pçlo trio dos íntimos (Pedro,
Tiago, João) são testemunhas só da visão do meio; a primeira reve-
lação (1,11) precede sua vocação e dirige-se apenas a Jesus; a última
(15,39) vem depois de seu abandono e não tem destinatário entre
os personagens do relato. Só o olhar do leitor abarca todo o qua-
dro. A seus olhos, a palavra de Deus — que, a princípio, no batismo,
institui Jesus para proclamar o Evangelho e curar, que, em seguida,
na transfiguração, convida seus discípulos a ouvi-lo quando anuncia
a necessidade de sua Paixão — reinterpreta-se, enfim, com força,
na fragilidade da cruz: na nudez sem sinal de uma morte abando-
nada por Deus, um homem decifra o sinal de Deus. A filiação se dá
a reconhecer no seio mesmo do abandono. Os discípulos deveríam,

72
O evangelho segundo Marcos

desde então, poder seguir em frente a partir de um túmulo vazio; os


leitores deveríam poder crer a partir de um evangelho interrompido,
no final, pelo medo, pela fuga, pelo silêncio (16,8).
Os outros títulos sustentam o mesmo projeto teológico. A figura
do Filho do homem, herdada do profetismo, mais privilegiada pelo
apocalipse (particularmente Dn 7) como figura celeste do fim dos
tempos, vem, antes de tudo, apoiar os atos de autoridade de Jesus
na terra (2,10.18-20.27; 3,4). Mas com a segunda parte do evange-
lho ela é redefinida na esfera do serviço (10,45 e os anúncios da Pai-
xão). A espera da vinda do Filho do homem sobre as nuvens do céu
passa por uma paixão do mundo (13,26); o anúncio, no processo, da
visão do Filho do homem sentado à direita do Deus todo-poderoso
(14,62) precipita a condenação à morte.
E na confissão de Pedro em Cesaréia (8,27-30) que é reconhecí-
do o título de Cristo para Jesus; ele marca um auge do relato e seu
pivô. Pedro reconhece sua identidade messiânica, mas perde-se na
tentação quando recusa a definição que essa denominação justa vai
receber na história: um Cristo da rejeição, do sofrimento e da morte.
A narração toda, aliás, ao iniciar inúmeros episódios por um desloca-
mento, já fez dele um Cristo das partidas: partindo para alimentar no
deserto, para curar, atravessando o mar, para morrer como rei ridicu-
larizado em sua cidade. E o fim da primeira jornada de curas, quando
ele sai para proclamar o Evangelho em outro lugar, enquanto seus dis-
cípulos partem à sua procura (1,35-39), pode antecipar o último ato,
sua ressurreição, que deixa um túmulo vazio e as testemunhas trans-
tornadas. O corpo ausente no túmulo convoca, nesse momento, os
discípulos lá fora, na Galiléia, não para a expectativa de uma parusia,
mas para começar a formar, na história, o corpo de sua Igreja.

Crítica das imagens de Deus


Assim, com sua cristologia, o evangelho de Marcos problematiza
todo acesso ao ver, ao saber. Seu desafio lançado à facilidade da pa-
lavra chegou até a pôr a confissão de fé na boca dos demônios (1,24;
3,11; 5,7). Há, portanto, uma maneira demoníaca de dar a resposta
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

certa. Nenhum saber protege da perversão possível de seu uso. O


crente é, assim, interpelado não somente acerca do objeto de sua fé,
mas também acerca de sua autenticidade de sujeito que confessa.
Mas, se a resposta, direta demais, é submetida a crítica, a possibi-
lidade de uma resposta indireta também é explorada pelo relato: os
discípulos se perguntam o que significa ressuscitar dos mortos, quan-
do Jesus lhes impõe segredo sobre a visão de sua transfiguração “até
que o Filho do homem ressurgisse dentre os mortos” (9,9); o relato,
então, da cura de um filho dos homens, o rapaz epiléptico, é que pro-
põe uma representação disso, em plena massa humana, pois o texto
mostra o rapaz como morto e convoca os dois verbos da ressurreição
para contar que Jesus o levanta (9,27). Do mesmo modo, também as
aparições, ausentes na ressurreição, são como que antecipadas pelo
caminhar sobre as águas ou pela transfiguração; na trama narrativa
assim desordenada, elas não invertem o vazio da morte; elas o pre-
cedem como que para torná-la possível e daí fazer viver.
O relato da tempestade acalmada pode ilustrar a repetição crítica
das imagens de Deus que o evangelho opera em Jesus (4,35-41). No
contexto da tempestade, Jesus aparece dominando o vento e o mar
como o Deus criador que administra o caos; mas a censura do “ainda
não tendes fé”, dirigida aos discípulos que o despertaram, com medo
de perecer, faz pender a leitura para o centro do relato, onde o sono
do mestre, em pleno turbilhão, pode ser percebido como uma metá-
fora do crucificado, do Deus presente na ausência. O relato vai mais
longe: seu final abre-se numa questão que, se tomada em sentido
forte — “Quem é este, para qye até o vento e o mar lhe obedeçam?”
(4,41) — , leva ao Deus desconhecido. O segredo a ser guardado so-
bre a ressurreição da filha de Jairo (“que ninguém o soubesse”, 4,43)
ou sobre a transfiguração (9,9) pode também significar que Jesus e o
relato de Marcos levam à beira do incognoscível.

4.2. Os filhos dos homens


Se a proximidade de Deus se exprime em um relato de vida no mun-
do, o homem assim encontrado é interpelado no modo de sua acolhida,

74
O evangelho segundo Marcos

de sua resposta. Dos dois lados, do lado de Deus e do lado do homem,


é a questão da identidade que é trabalhada pelo relato de Marcos.

O corpo e as emoções
A condição humana é confirmada na carne e na história. Os inú-
meros relatos de milagres ilustram a restauração do corpo, curado e
alimentado, levantado, libertado das forças redutoras do demônio.
Eles significam, assim, a possibilidade e a exigência de uma vida de ho-
mem devolvido à sua identidade singular e, a partir daí, a uma palavra
pessoal. Pela complementaridade de seus relatos, o evangelho projeta
um corpo íntegro, mobilizado, de membros reunidos. Os afetos tam-
bém impressionam por sua importância, sejam os do próprio Jesus,
sua cólera ou sua piedade (1,4; 3,5; 5,19; 6,34; 8,2; 9,24; 10,47.48), os
dos ouvintes de sua palavra ou os das testemunhas de um milagre, de
uma revelação: o temor e seu tremor (5,33 e 16,8), a admiração (5,20;
6,6; 15,5.44), a estupefação (5,42; 16,8), o pavor (6,50), a comoção
e a profunda angústia (9,15; 14,33; 16,5). Se suscitam uma interven-
ção de Jesus, deixam em suspenso uma reação dos homens; o relato,
num final de episódio, abandona freqüentemente os personagens com
esse choque que exigiría um salto no caminho do crer, e volta a seguir,
com outros protagonistas, pelos caminhos do mundo. O relato mostra
como o corpo fala em suas emoções quando as evidências se esgar-
çam, quando o homem é desalojado de seus pontos de referência,
quando a compreensão dos outros e de si mesmo escapa ao inteligível
porque novas possibilidades de sentido começam a despontar.

O olhar
Mas é sobretudo no olhar que o relato de Marcos insiste. Por sua
significação ao mesmo tempo concreta e simbólica, ele permite a co-
nexão entre o corpo e a compreensão, entre o corpo em seus sentidos
e a percepção de um sentido novo a ser decifrado para o mundo. O
evangelho o aborda de maneira extrema, por um duplo expediente,
tanto a cegueira dos olhos diante dos milagres (os discípulos, como
cegos, se afligem ao atravessar o mar depois das duas multiplicações
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

dos pães, 6,45-52 e 8,14-21) como o milagre dos olhos abertos (8,22-
26 e 10,46-52). Com essas duas curas de cego, o relato mostra que
não há nada mais difícil do que abrir os olhos de um cego; é preciso
que Jesus tente duas vezes para curar o primeiro. A cura do segundo,
Bartimeu, na beira do caminho, perto de Jerusalém, parece conden-
sar os desafios de todo o evangelho: o apelo do cego faz eco às pri-
meiras vocações à beira do mar; o desejo, posto à prova, de um gesto
de Jesus representa a renúncia ao direito de ser dependente, doente e
mendigo; a vista recuperada por milagre significa o acesso ao sentido,
tão difícil, do caminho em direção à capital; a rejeição do lençol quan-
do o homem salta para seguir Jesus sugere uma figura exemplar de
discípulo, um crente sem qualidades nem riquezas, um homem nu.

A nudez
Em suas duas partes sucessivas, mas complementares, é real-
mente mediante duas representações significativas da nudez que
o evangelho deixa perceber seus valores. A do homem reduzido à
animalidade bruta, à regressão a um aquém da condição de criatura,
o relato a recusa. O possesso de Gerasa (5,1-20) é a sua imagem:
para o louco incontrolável da outra margem, que grita sem parar e se
automutila, é uma verdadeira saída do túmulo que Jesus promove; a
palavra que separa o homem do demônio lhe devolve não somente
seu bom senso, mas lhe confia um sentido a ser levado para os ou-
tros, a mensagem de sua libertação. Assim o enviado torna presen-
te, por seu relato em terra pagã, a intervenção de Jesus a seu favor;
assim o evangelho fala por si mesmo ao inscrever, em seu enunciado,
a situação mesma de sua proclamação: a boa-nova de libertação de
um Senhor, no entanto, rejeitado e ausente. A outra representação
da nudez, aquela que o evangelho sugere discretamente, aparece na
figura fugitiva de um jovem que segue Jesus quando seus discípulos
o abandonaram (14,52). Vestido apenas com um lençol de linho — a
palavra é a mesma da mortalha que envolverá o corpo de Jesus para
o sepultamento (15,46) — , ele larga seu lençol quando querem pren-
dê-lo junto com Jesus e foge nu. Aqui o evangelho leva mais longe,

76
O evangelho segundo Marcos

ou traz para mais perto, sua intenção teológica: na própria fuga, na


perda de todo poder, até o de seguir Jesus entregue, a verdadeira
fidelidade é reinterpretada como impossível para o homem, como
puro dom de Deus. Um mesmo e totalmente outro jovem vestido de
branco aparece na tumba aberta, no lugar do corpo ausente do Cru-
cificado (16,1-8); por ele, mensageiro de Deus, a palavra de Jesus é
tornada atual, no próprio lugar da morte, para marcar um encontro
entre vivos, por meio do qual a história pode começar de novo.
O despojamento se exprime também na substituição dos fami-
liares, postos à prova o tempo todo, por personagens de fora, e sua
resposta fulgurante. O possesso de Gerasa proclama Jesus Senhor
(5,19-20), enquanto os discípulos permanecem bloqueados dian-
te da questão: quem é, então, esse que acaba de acalmar o mar?
(4,41). O cego Bartimeu salta para o seguimento (10,52), enquanto
Tiago e João estão preocupados em se instalar na glória (10,35 ss.).
Simão de Cirene, um africano que passa, voltando do campo, leva a
cruz, enquanto Judas trai e entrega. Uma mulher de Betânia unge a
cabeça de Jesus, numa oferenda que assume valor de gesto funerá-
rio, enquanto Pedro recusa ao Ungido de Deus, que, no entanto, ele
reconhecera, a via do serviço que cumpre as Escrituras. Enfim, um
soldado romano reconhece Deus no Crucificado, ao passo que Pe-
dro renegou seu mestre, e são as três mulheres que, no amanhecer
de um primeiro dia, deverão lembrar a Pedro, e aos outros apóstolos
que o abandonaram, o encontro marcado na Galiléia.
As travessias de fronteiras, os impasses, os limiares, o mar e fi-
nalmente a morte podem, num segundo nível, simbolizar todo o
trabalho que a leitura impõe àquele que atravessa o evangelho. Com
o choque das imagens, a teologia de Marcos se enuncia em uma his-
tória da proximidade de Deus, como convite urgente a se tornar “si-
mesmo como um outro” (se podemos retomar, para o evangelho, a
magnífica expressão de Paul Ricoeur). Isso passa pela cruz.5

5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Se foi com o evangelho de Marcos que as leituras de tipo narrati-
vo começaram a ser praticadas e depois amplamente desenvolvidas,

77
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

hoje parecem se tornar específicas e querer, ao mesmo tempo, en-


trar em diálogo.
A escritura do relato. Há trabalhos consagrados ao estudo das
modalidades da comunicação indireta, particularmente da ironia9.
Sob esse aspecto, o relato popular de Marcos aparece como uma
construção complexa, e sua língua, por muito tempo considerada
pobre, parece carregada de potencialidades a ser exploradas.
Pluralidade de leituras. Do lado da articulação das abordagens,
as análises semióticas e narrativas mostram interesse em entrar em
diálogo ou complementaridade com os estudos histórico-críticos101.
Análises narrativas fundamentam, igualmente, questionamentos
sociológicos11.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
GNILKA, Joachim. Das Evangelium nach Markus. Zürich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1978-1979 (EKK 11/1-2).
LEGASSE, Simon. Lévangile de Marc. Paris, Cerf 1997 (LeDiv. Commen-
taires 5/1-2).
LÜHRMANN, Dieter. Das Markusevangelium. Tübingen, Mohr, 1987
(H N T 3).
PESCH, Rudolf Das Markusevangelium. Freiburg, Herder, vol. 1, 1980
[1. ed. 1976], vol. 2, 1977 (HTh K 11/1-2).

9 C f por exemplo Jerry CAMERY-HOGGAT, Irony in Mark’s Gospel·. Text


and Subtext, Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1992; Robert M.
FOWLER, The Rethoric of Direction and Indirection in the Gospel of
Mark, Semeia 48 (1989) 115-134; Werner H. KELBER, Récit et revelation:
voiler, dévoiler e revoiler, RHPR 69 (1989/4) 389-410.
10 Por exemplo Jean DELORME, Au risque de la parole. Lire les évangiles,
Paris, Seuil, 1991; Camile FOCANT Me 7,24-31 par. Mt 15,21-29: critique
des sources et/ou étude narrative, in ID. (ed.), The Synoptic Gospels. Sour-
ce Criticism and the New Literary Criticism, Leuven, Leuven University
Press, 1993.
11 David M. RHOADS, Network for Mission: The Social System o f the Jesus
Movement as Depicted in the Narrative of the Gospel of Mark, ANRW,
Berlin, de Gruyter, 11.26.2 (1995) 1.692-1.729.

78
O evangelho segundo Marcos

SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Markus. Gottingen, Van-


denhoeck und Ruprecht, 1989 (NTD 1) (ed. ingl.: The Good News
According to Mark, Atlanta, John Knox, 1970).
TROCME, E. LEvangile selon Saint Marc. Genève, Labor et Fides, 2000
(CNT 2).

Leitura prioritária
AUNEAU, Joseph. Évangile de Marc. In: AUNEAU, J. etal. Évangiles sy-
noptiques et Actes des apôtres. Paris, Desclée,1981, p. 53-129 (Petite
Bibliothèque des Sciences Bibliques, N T 4).
DELORME, Jean. Lecture de I’evangile selon saint Marc. Cahiers Evan-
gile, Paris, Cerf 1/2 (1972).
SENET, Christophe. Lévangile selon Marc. Genève, Labor et Fi-
des, 1991 (Essais bibliques 19).
STANDAERT, Benoit. Lévangile selon Marc. Commentaire. Pa-
ris, Cerfj 1983 (Lire La Bible 61).

História da pesquisa
HARRINGTON, Daniel J. Neuere Wege in der Synoptiker-Exegese am
Beispiel des Markusevangeliums. In: HORN, Friedrich W. (Hrsg.).
Bilanz: und Perspecktiven gegenwartiger Auslegung des Neuen Testa-
ments. Symposium zum 65. Geburtstag von Georg Strecker, Berlin/
N ew York, de Gruyter, 1995, p. 60-90.
POKORNY, Petr. Das Markusevangelium. Literarische und theologische
Einleitung mit Forschungsbericht. A N R W , Berlin, de Gruyter, 11.25,
3 (1985) 1.968-2.035.

Bibliografia exaustiva
HUMPHREY, Hugh M. A Bibliography for the Gospel o f Mark 1954-1980.
N ew York/loronto, Mellen Press, 1981 (Studies in the Bible and Ear-
ly Christianity 1).
NE1RYNCK, Frans et al. The Gospel o f Mark: A Cumulative Bibliography
1950-1990. Leuven, Leuven University Press, 1992 (BEThL 102).

79
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Estudos particulares
FOWLER, Robert M. Let the Reader understand: Reader-Response Criti-
cism and the Gospel o f Mark. Minneapolis, Fortress Press, 1991.
MALBON, Elizabeth S. Narrative Space and Mythic Meaning in Mark.
Sheffield, JSOT Press, 1991 [1. ed. 1986] (Biblical Seminar 13).
MARSHALL, Christopher D. Faith as a Theme in Mark's Narrative. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1989 (SNTS.MS 64).
RHOADS, David M., MICHIE, Donald. Mark as Story: An Introduction to
the Narrative o f a Gospel. Philadephia, Fortress Press, 61987.
SABBE, Maurits (éd.). LEvangile selon Marc. Tradition et redaction. Nova
ed. ampl. Leuven, Leuven University Press, 1988 (BEThL 34).
STAN DAERT, BenoTt. Lévangiie selon Marc. Composition et genre litté-
raire. Bruges, Zevenkerken, 1982.
TOLBERT, Mary Ann. Sowing the Gospel: Mark’s World in Literary-His-
torical Perspective. Minneapolis, Fortress Press, 1989.
TROCMÉ, Etienne. La formation de Lévangiie de Marc. Paris, PUF 1963
(EHPR57).

80
CAPÍTULO

3
O evangelho segundo Mateus
Elian Cuvillier

Oevangelho segundo Mateus ocupa um lugar privilegiado na li-


teratura cristã antiga. E o mais citado pelos Padres da Igreja, não
somente entre os evangelhos, mas também entre todos os outros
livros do Novo Testamento1. Além disso, e embora haja numerosas
variações na ordem dos evangelhos nas listas ou códices antigos de
que dispomos, Mateus em primeiro lugar é um dado constante.
Entre as razões que explicam esse lugar especial, é preciso su-
blinhar que Mateus foi por muito tempo considerado o mais antigo
dos evangelhos, de modo particular pela influência de Santo Agosti-
nho; essa opinião não é mais compartilhada hoje. Uma outra razão
é que o lugar importante que Mateus atribui aos discursos de Jesus
tornava-o particularmente próprio para a catequese dos novos con-
vertidos e para a edificação das comunidades na Igreja antiga.

1. A p r e s e n t a ç ã o
/./. Estrutura
Enquanto alguns se detêm na organização geográfica semelhante
à de Marcos, a maior parte dos exegetas constata a complexidade da
matéria mateana. Alguns privilegiam a organização temática em tor-

1 Edouard MASSAUX, Influence de Γ évangile de saint Matthieu sur la litté-


rature chrétienne avant Saint Irénée, Gembloux, Duculot, 1950.

81
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

no de cinco discursos (e sua conclusão estereotipada καί €γέν‫׳‬£το õte


h tle o e v ò Ίησοΰς... cfi 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1), que se alternam
com as partes narrativas; outros sublinham o caráter estruturante
da expressão άπό τότ€ ήρξατο em 4,17 e 16,21, passagens às quais é
preciso, talvez, juntar 26,16; outros ainda querem, a todo custo, des-
cobrir no evangelho estruturas em quiasma (jamais se pode, entre-
tanto, mostrar que a figura retórica do quiasma tenha sido aplicada,
na literatura antiga, ao conjunto de uma obra). E sem dúvida pru-
dente não se ater à prova da coerência do conjunto da narração. De
qualquer maneira, é impossível explicar a complexidade da narração
por meio de uma estrutura, por mais detalhada que seja.

Piano do evangelho segundo M ateu s

Preparação da B oa-N ova (1,1—4,11)


1.1-2,23 Genealogia e relato da infância de Jesus
3.1-17 Pregação de João Batista; batismo de Jesus
4.1- 11 Tentação de Jesus

O anúncio da B oa-N ova (4,12-11,1)


4,12,25 Início do magistério na Galiléia; vocação dos pri-
meiros discípulos
5.1- 7,29 Sermão da Montanha
8.1- 9,34 Relatos de milagres
Cura de um leproso (8,1-4); o servo do centurião
(8,5-13); curas de doentes (8,14-17); seguir Je-
sus (8,18-22); a tempestade acalmada (8,23-27);
cura de dois possessos (8,28-34); o paralítico de
Cafarnaum (9,1-8); a refeição na casa de Mateus
(9,9-13); ojejum; odres velhosevinho novo (9,14-
17); a mulher doente e a menina morta (9,18-26);
cura de dois cegos (9,27-31); cura de um possesso
mudo (9,32-34)
9,35-11,1 Discurso missionário

Fé e incredulidade (11,2-16,12)
11,2-30 João Batista e Jesus
Pergunta de João Batista (11,2-6); declaração
de Jesus sobre João Batista (11,7-19); invectivas
contra as cidades da Galiléia (11,20-24); hino de
júbilo (11,25-30)

82
O evangelho segundo Mateus

12,1-50 Controvérsias
Sobre o sábado (12,1-14); citação da palavra cum-
prida (12,15-21); Jesus e Beelzebul (12,22-32);
o homem julgado por suas palavras (12,33-37); o
sinal de Jonas (12,38-42); retorno do espírito im-
puro (12,43-45); a família de Jesus (12,46-50)
13.1- 52 Discurso em parábolas
13,53-58 Jesus na sua pátria
14.1- 12 Morte de João Batista
14,13-16,12 Milagres e controvérsias
Primeira multiplicação dos pães (14,13-21); ca-
minhando sobre as águas (14,22-33); sumário
(14,34-36); o puro e o impuro (15,1-20); a mulher
cananéia (15,21-28); sumário (15,29-31); segunda
multiplicação dos pães (15,32-39); pedido de um
sinal (16,1-4); o fermento dos fariseus e dos sadu-
ceus (16,5-12)

A comunidade dos discípulos de Jesus (16,13-20,34)


16,13-28 Em Cesaréia de Filipe
Confissão de Pedro (16,13-20); primeiro anúncio da
Paixão (16,21-23); como seguir Jesus (16,24-28)
17,1-27 A caminho com Jesus
Transfiguração (17,1-9); Elias e João Batista
(17,10-13); o menino epiléptico (17,14-21); segun-
do anúncio da Paixão (17,22-23); o imposto do
Templo (17,24-27)
18.1- 35 Discurso comunitário
19.1- 20,34A caminho de Jerusalém
Divórcio, casamento e celibato (19,1-12); Jesus e
as crianças (19,13-15); o jovem rico (19,16-30); os
operários da última hora (20,1-16); terceiro anún-
cio da Paixão (20,17-19); os filhos de Zebedeu
(20,20-28); os cegos de Jerico (20,29-34)

Últimos dias em Jerusalém (21,1-25,46)


21,1-22 Entrada em Jerusalém; purificação do Templo; a
figueira maldita
21,23-22,46 Controvérsia no Templo
A autoridade de Jesus (21,23-27); parábola dos
dois filhos (21,28-32); os vinhateiros homicidas
(21,33-42); parábola dos convidados (22,1-14);
o imposto a César (22,15-22); questão sobre a
ressurreição (22,23-33); o maior mandamento
(22,34-40); Jesus maior do que Davi (22,41-46)

83
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

23.1- 39 Maldições contra escribas e fariseus


24.1- 25,46 Discurso escatológico

Relato da Paixão (26,1-28,20)


26,1 - 16 Unção em Betânia, anúncio da traição
26,17-28,15 Ultima ceia, prisão, processo, morte e
ressurreição
28,16-20 Envio final

1.2. Conteúdo
Na primeira seção (Mt 1,1-4,11), Jesus é apresentado como Mes-
sias de Israel. Desde Mateus 1,1 Jesus é designado como filho de Davi
e filho de Abraão, duas figuras fundamentais da tradição judaica. A ge-
nealogia (1,1-17) sublinha o enraizamento profundo de Jesus na história
da fé de Israel (Abraão pai dos crentes) e na história de sua esperança
messiânica (a figura de Davi). Das dez citações de cumprimento2 que
semeiam a narração (“para que se cumprisse o que tinha dito o Senhor
pelos profetas...”), quatro se encontram no relato mateano da infan-
cia. Elas sublinham com força que esse Jesus de Nazaré era bem aque-
le que fora prometido e anunciado pelos profetas: 1,22, o nascimento e
o nome de Jesus; 2,15, a “saída do Egito” de Jesus, lembrança explícita
do destino do povo no deserto; 2,17, a aflição de Raquel; 2,23, Jesus
como nazoreu. A essa lista pode-se acrescentar Mateus 2,5: o lugar de
onde sairá o pastor de Israel. O capítulo 2 (visita dos magos do Orien-
te; fuga para o Egito; massacre das crianças de Belém; retorno à terra
de Israel) sublinha a abertura universalista e a incredulidade de Jeru-
salém. Além disso, mostra que Jesus se desloca de um lugar para ou-
tro (Belém, Egito, Nazaré). O capítulo 3 apresenta João Batista como
o anunciador da missão de Jesus que “cumpre toda a justiça” (3,15).
Esse Jesus, tentado no deserto (4,1-11), é vencedor de Satã.
Em seguida, é apresentada a missão de Jesus e de seus discípulos
junto ao povo (4,12-11,1). Ela é colocada sob o signo do ensino (5-7)

2 O acordo é unânime para as dez citações seguintes: 1,23; 2,15; 2,18; 2,23;
4,15-16; 8,17; 12,18-21; 13,35; 21,5; 27,9-10. Muito discutido é o status de
2,5-6; 3,3; 13,14-15 e 26,56.

84
O evangelho segundo Mateus

e da cura (8-9). O ensino do Messias de Israel versa sobre a Lei, que


ele cumpre (5,17-20) e radicaliza (5,21-48). Doravante a “justiça su-
perior” (5,20) supera a lei como mandamento (5,18-19) inaugurando
uma ética da superabundância do dom, do excesso e da confiança
(cf Mt 5-7). As numerosas curas que Jesus opera (cfi Mt 8-9) são,
também elas, um cumprimento da palavra profética (8,17) e só pode
deixar maravilhadas as multidões (9,33: “Nunca se viu algo assim em
Israel”). Três episódios apresentam obstáculos a essa missão: a cura
do servo do centurião (8,5-13) é a ocasião de Jesus constatar a falta
de fé de Israel (8,10); em contraste com a admiração das multidões
(9,33), apresenta-se o julgamento negativo dos fariseus (9,34: “É
pelo chefe dos demônios que ele expulsa os demônios”); enfim, o
discurso missionário (9,35-11,1) anuncia o fracasso da missão de Je-
sus e dos discípulos junto a Israel (10,5; cf v. 17: “eles vos flagelarão
em suas sinagogas”; a mesma coisa v. 25b).
A pergunta do Batista (11,2-6) e a opinião de Jesus sobre o Ba-
tista (11,7-19) formalizam a questão central nos capítulos que se se-
guem (Mt 11,2-16,12): fé ou incredulidade. A incredulidade é a das
cidades da Galiléia que não se arrependeram à vista dos milagres
(11,20-24). A fé é a dos “pequeninos” (νήπιοι,, 11,25) aos quais o
Pai revelou o Filho (11,25-27), Aquele que toma o fardo de todos
os cansados e sobrecarregados (11,28-30). O capítulo 12 e depois os
capítulos 15 e 16 em nível inferior não passam de uma longa série de
invectivas de Jesus contra seu povo endurecido ou de controvérsias
com os fariseus (12,1-8.9-14.22-32.38-42.46-50; 15,1-20; 16,1-4; cf
também 13,53-58). Nesses capítulos se confirma, por uma citação
das Escrituras, a abertura universal já entrevista (cf 12,18: “Eis o
meu servo a quem elegi ..., ele anunciará o direito às nações”). Mas
essa perspectiva universalista é ainda marcada pelo selo do silêncio
(12,16). O capítulo 13 explica teologicamente a incredulidade de ls-
rael (cf 13,15: “Pois o coração deste povo se tornou insensível!”). A
esse povo de pescoço duro se opõem os discípulos, declarados feli-
zes porque vêem e ouvem (13,16). Em 15,21-28 se situa um episódio
que serve de articulação: o Jesus mateano, fazendo eco a 10,4b-5
(comparar o v. 24 com 10,4b-5 e 28,19), se deixa, entretanto, con-

85
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

vencer pela insistência e pela fé da mulher cananéia cuja filha é, fi-


nalmente, curada.
A confissão de Pedro em Cesaréia (10,13-16) abre uma seção
(16,13-20,34) consagrada à edificação da εκκλησία (cf 16,18 e
18,17). O Messias de Israel edifica sua comunidade nova sobre Pedro
(16,13-20), que representa, em sua fé imperfeita (cf v. 22-23), a fi-
gura dos discípulos, eles também chamados a se posicionar nesse de-
bate entre fé e incredulidade. Uma Igreja que será chamada, um dia,
a ultrapassar as fronteiras do povo (cf 8,5-13, especialmente o v. 11
e 15,21-28 como prefigurações de 28,16-20). Essa comunidade está,
com Jesus, a caminho de Jerusalém. Uma peregrinação que é a oca-
sião de revelações (17,1-19), entre as quais se destacam os repetidos
anúncios da Paixão (16,21-23; 17,22; 18,17-19); ocasião, também, de
questionamentos e ensinamentos (17,10-12.14-21.24-27:19-20), en-
tre os quais se destaca o discurso comunitário (18,1-19,1).
A chegada de Jesus a Jerusalém abre uma seção centrada em
torno de um confronto entre os chefes do povo de Israel e Jesus (Mt
21,1-25,46). Esse confronto se acompanha de um julgamento, sem
apelo, do Jesus mateano contra seu povo e, sobretudo contra seus
responsáveis religiosos. Esse julgamento começa desde a entrada de
Jesus em sua cidade, Jerusalém (cf 21,4), e culmina, no capítulo 23,
com as maldições contra escribas e fariseus. Vem, em seguida, o dis-
curso escatológico (24-25), que constitui um alerta à comunidade
mateana (cf particularmente o capítulo 25).
O Jesus mateano julga Israel, mas não é seu carrasco. Ao con-
trário: a redação mateana do relato da Paixão (Mt 26,1-28,20) su-
blinha que é o próprio Israel que condena à morte o seu Messias,
conforme a Escritura tinha anunciado (26,54.56; 27,9). Três episó-
dios próprios de Mateus indicam que um ponto de não-retorno foi
atingido a partir daí: a declaração do “povo” (λάος, 27,25) assumin-
do plenamente a responsabilidade desse ato; o ardil imaginado pelos
chefes do povo para negar a ressurreição de Jesus (28,12-15); enfim,
o envio dos discípulos a “todas as nações” (πάιηα τα ’έθνη, 28,19).
Em Mateus, a morte de Jesus é proposta no contexto de uma inter-
pretação apocalíptica da cruz. No plano narrativo, ela é sublinhada

86
O evangelho segundo Mateus

pelas tradições (próprias do primeiro evangelho) relativas ao tremor


de terra e à abertura dos túmulos (27,51b-53). A partir daí acontece
0 que a pregação de João Batista e a de Jesus deixavam entrever (cf
3,2 e 4,17): acaba um tempo antigo, começa um novo. Para Mateus,
a morte de Jesus é o lugar dessa passagem que os atos e palavras de
Jesus tinham inaugurado. Em sua morte, a representação dramática
realizou o que seu ensinamento exigia (cf particularmente as antí-
teses do Sermão da Montanha). Note-se, enfim, que Jesus ressus-
citado não pronuncia nenhuma palavra de apelo ao julgamento de
Deus. Em vez da retribuição contra os culpados, o “fazer discípulos”
é com que se preocupa o Ressuscitado (cf 28,16-20). Para Mateus,
o povo da promessa se recusou a reconhecer seu Messias e o cru-
cificou. O paradoxo que Mateus deve enfrentar está em que, por
sua recusa, Israel (doravante assimilado a “todas as nações” 28,19)
ofereceu aos pagãos um Messias. Um Messias cujo destino passa,
entretanto, pela cruz.

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. Autor
A tradição que faz do apóstolo Mateus (Mt 10,3, c f 9,9) o autor
do primeiro evangelho baseia-se no testemunho de Papias reporta-
do por Eusébio (História eclesiástica 111, 39,16): Ματθαίος μέν ουν
'Εβραίδι διαλέκτω τα συν<5τάξατόήρμήν6υσ6ν δ’αύτά ώς ήν δυνατός
'έκαστος (que se pode traduzir "Mateus reuniu, então, em língua he-
braica os logia [de Jesus] e cada um os interpretou conforme era
capaz”). O comentário de Papias não se baseia, entretanto, em
nenhuma informação histórica sólida; não existe, particularmente,
traço nenhum de uma versão aramaica antiga do evangelho de Ma-
teus. Além disso, seria muito surpreendente que uma testemunha
ocular (no caso, o discípulo Mateus) utilizasse uma fonte secundária
(o evangelho de Marcos) para redigir seu próprio relato. A transfor-
mação do nome de Levi em Mateus (Mc 2,14 / / Mt 9,9) reflete, aliás,
um processo secundário que não é obra de uma testemunha ocular
(um outro exemplo se encontra em Mt 27,56, em que Salomé — Mc

87
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

15,40 — passa a ser a mãe dos filhos de Zebedeu, cf Mt 20,20). Teria


o discípulo Mateus tido um papel na comunidade da qual se origina o
autor do evangelho? Essa hipótese poderia explicar a mudança de
nome e o acréscimo de τελώνης (“coletor de imposto”, Mt 10,3).
A paternidade do apóstolo não é mais sustentada hoje, mas a maio-
ria dos exegetas pensa que o autor seja de origem judaica3 (critérios:
caráter central da Lei; importância das citações do AntigoTestamen-
to; limitação da missão do Jesus terreno a Israel; cf igualmente Mt
24,20; 17,21-27; 23,1-3...). A hipótese mais correntemente admitida
é que o autor do primeiro evangelho viveu no fim do primeiro sécu-
lo. Cinco argumentos para essa datação: a) Mateus utiliza Marcos
(datado por volta de 70) como fonte; b) a imagem do judaísmo que
ele transmite é a de um bloco unido em torno dos fariseus (reflete o
judaísmo posterior a 70 com o qual Mateus se viu confrontado); c) a
multiplicação da expressão “sinagoga deles” (4,24; 9,35; 10,17; 12,9;
13,54; 23,34) ao falar dos judeus (índice de uma separação consu-
mada entre a comunidade mateana e a sinagoga dos fariseus); d) a
alusão às perseguições, que reflete uma situação do fim do primeiro
século (ver particularmente 10,16-42); e) a possível alusão à destrui-
ção de Jerusalém em 70 (cf 22,7; ver igualmente 23,38).

2.2. Mateus e a tradição judaica


A leitura do evangelho de Mateus permite constatar a onipre-
sença das tradições herdadas do judaísmo antigo. O enraizamen-
to veterotestamentário do primeiro evangelho é, a esse respeito,
muito significativo: a abundância de citações de cumprimento (1,23;
2,15.17.23; 3,3 (?); 4,14; 8,17; 12,17; 13,14(?).35; 21,4; 26,54.56 (?);
27,9) que salpicam a narração é uma prova manifesta do interesse
marcante do evangelista por suas raízes judaicas. Significativa tam-
bém é a constante preocupação com a questão do status e do lugar
da Lei (particularmente em 5,17-20), juntamente com a da prática
da justiça (3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32). Para o autor do evange-

3 Opinião inversa se encontra em Trilling e Strecker.

88
O evangelho segundo Mateus

lho, portanto, há um elo estreito entre Jesus, de quem ele dá teste-


munho, e a tradição religiosa de que é oriundo: Jesus é o Messias
anunciado pela lorá e pelos profetas, que Mateus relê através do
prisma da fé pascal.
Em contraponto com o que acaba de ser dito, tem fundamen-
to, também, sustentar que Mateus é igualmente um polemista vi-
rulento contra os representantes oficiais do judaísmo, até mesmo
contra o povo judeu em seu conjunto4. Basta lembrar, aqui, quatro
áreas da narração mateana nas quais se desenvolve essa polêmica:
a) as numerosas controvérsias de Jesus com as autoridades judai-
cas e especialmente com os fariseus (9,9-17; 9,34; 12,1-14; 12,22-
32; 12,38-42; 15,1-20; 16,1-4; 19,1-9; 21,23-27; 22,15-22; 22,23-33;
22,41-45); b) a utilização polêmica de certas passagens do Antigo
Testamento (13,14-15; 15,8-9; 23,38; 27,9-10); c) as repetidas in-
vectivas, e de uma violência rara, de Mateus 23 (particularmente
as sete maldições dos vv. 13 ss.; c f , p. ex. o v. 33: “Serpentes, crias
de víboras, como poderieis escapar do castigo da geena?”); d) en-
fim, certas tradições próprias de Mateus, no relato da Paixão, que
reforçam a culpabilidade de Israel na morte de Jesus. Lembremos,
especialmente, Mateus 27,3-10, 27,24-25 ou ainda 28,11-15.

Data da composição e destinatários


Do que precede, deduz-se que o auditório a que se dirige Mateus
é provavelmente uma comunidade de maioria judeu-cristã, que vive
na Síria (talvez em Antioquia), no último quarto do primeiro século
(a redação do evangelho pode ser situada entre 80 e 90). Ela tem sua
origem nas comunidades palestinas e hierosolimitas de antes de 70,
compostas de judeus que reconheceram em Jesus o Messias de Is-

4 Ulrich LUZ, Le problème historique et théologique de I’antijudaisme dans


1’évangile de Matthieu, in Daniel MARGUERAT (éd.), Le déchirement.
Juifs et chrétiens aux premier siècle, Genève, Labor et Fides, 1996, 127-
150; Daniel MARGUERAT Quand Jesus fai le procès des juifs. Matthieu
23 et I’antijudaisme, in Alain MASCHADOUR (éd.), Procès de Jesus, pro-
cès des juifs? Eclairage biblique et historique, Paris, Cerf 1998, 101-125.

89
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

rael. Por isso, é para Israel que esses discípulos de Jesus se sentem,
antes de tudo, enviados, encarregados por Deus de convidá-lo a re-
conhecer seu Messias. O traumatismo causado pelo fracasso dessa
missão foi agravado pela perseguição, da parte da Sinagoga, e pela
migração do grupo para a Síria, depois da destruição de Jerusalém e
do Templo em 70. Na Síria, em contato com os pagão-cristãos, essa
comunidade de origem judeu-cristã é levada a alargar suas perspecti-
vas teológicas: o Evangelho se dirige a todas as nações sem distinção
e independentemente de uma pertença ao povo de Israel.
Essa mudança de perspectiva se operou lentamente, e não sem
dificuldades. Da parte da comunidade mateana, há especialmente
necessidade de um duplo esforço reflexivo de que o autor do pri-
meiro evangelho se dá conta mediante seu trabalho de escritor. De
um lado, era preciso explicar a recusa de Israel e a reivindicação da
comunidade mateana de invocar as mais essenciais tradições judai-
cas (especialmente a Torá). Por outro lado, tratava-se de defender a
pertinência da compreensão judeu-cristã do Evangelho. Em sua nar-
ração, por meio da história de Jesus e seus discípulos, o evangelista
encena essa mudança de perspectiva.

3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
3.1. A s fontes
O evangelho de Mateus compreènde 1.048 versículos. No con-
texto da teoria das duas fontes, Mateus utiliza o evangelho de Mar-
cos, a fonte dos logia (Q) e tradições que lhe são próprias (SMt).
Dos 661 versículos de Marcos, ele toma 523, ou seja, 80% (o que
constitui quase a metade do evangelho de Mateus). Mas pode-se
considerar que 90% da matéria marcana se encontra em Mateus.
Ele reproduz Marcos bastante fielmente, mas modifica sua ordem
(até o capítulo 14).

Mateus reúne os relatos de milagres que se encontram entre Marcos 1 e


Marcos 6 em dois capítulos (Mt 8-9; cf o boxe abaixo). Ele encurta os relatos
(exemplo: o relato da cura do paralítico de Mt 9,1-8 contém 126 palavras con-
tra 196 em Mc e 212 em Lc; o episódio de Gadara em Mt 8,28-34 contém 136

90
O evangelho segundo Mateus

palavras contra 325 em Mc e 293 em Lc; cf ainda Mt 8,18-26 e 17,14-21, com-


parados com seus paralelos marcanos). Ele suprime certo número de traços
secundários do relato de Marcos (a almofada, no relato da tempestade acalma-
da; cf Mc 4,38 // Mt 8,24; a menção de Abiatar em Mc 2,26 // Mt 12,4; o di-
nheiro gasto em vão pela mulher doente em Mc 5,25-26 // Mt 9,20; o verde da
relva no relato da multiplicação dos pães de Mc 6,39 // 14,19). Por outro lado,
ele amplia, com acréscimos específicos, o efeito da narrativa. Por exemplo,
nos relatos de milagres, dois possessos (Mt 8,28-34) e dois cegos curados (Mt
9,27-31), em vez de um nos textos paralelos em Marcos. Do mesmo modo,
nas controvérsias retomadas de Marcos (Mt 9,9-13 // Mc 2,13-17; Mt 12,1-8
// Mc 2,23-28), Mateus acrescenta a citação de Oséias 6,6 (9,13 e 12,7). Do
mesmo modo, ainda, aos dois discursos de Jesus retomados diretamente de
Marcos, ele acrescenta tradições substanciais (cf Mc 4 // Mt 13: acréscimo de
Mt 13,24-30 e 36-52; Mc 13 // Mt 24-25: acréscimo de Mt 24,37-25,46).

A fonte Q se encontra essencialmente nos treze primeiros ca-


pítulos do evangelho de Mateus (o Sermão da Montanha e grande
parte dos capítulos 1-12) e nos capítulos 23-25 (23,4.13.23.25-32,
34-39; 24,26-28.37-38,40-41.43-51; 25,14-20); cf igualmente Ma-
teus 17,20; 18,12-14 e 21-22; 19,28 e 22,2-10.
Ao lado de Marcos e de Q, o evangelho de Mateus comporta
certo número de passagens que lhe são específicas (SMt). Pode se
tratar de tradições utilizadas por Mateus ou de sua própria atividade
redacional (quer a passagem tenha sido escrita inteiramente ppr Ma-
teus, quer ele tenha retocado uma de suas tradições próprias, como
fez com Marcos ou com a fonte Q). A questão da amplidão da ativi-
dade redacional de Mateus e a de saber se as tradições pré-mateanas
circulavam de modo oral ou escrito permanecem inteiramente em
aberto. Sejam quais forem as reconstituições, sempre hipotéticas,
que se possam propor, as fontes próprias de Mateus, especialmente
as togia, nos transmitem a imagem de uma comunidade judeu-cristã
em íntima relação (conflituosa ou não) com a Sinagoga.

Além do relato da infância (Mt 1-2), as tradições próprias de Mateus são


constituídas de logia espalhadas por diversos lugares da narração, particular-
mente no Sermão da Montanha (5,5-10; 5,17.19.21-24.27-28.33-37.41;6,l-
8.16-18;7,6.14), no discurso missionário (10,5b-6.23b.25b), no discurso con-
tra os fariseus (23,2-3.5.8-10,15.16-22.24; cf ainda 12,36-37; 16,2b-3.17-19;

91
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

17.24- 27; 18,18.19-20; 19,12:25,31-46). Igualmente, uma coleção de parábolas


(13,24-30; 13,44-46; 13,47-50; 18,23-25; 20,1-16; 21,28-32; 22,1-14; 25,1-13;
25,14-30) e, enfim, as tradições particulares sobre o relato da Paixão (27,19;
27.24- 25; 27,51b-53; 27,62-66; 28,2-4; 28,9-10; 28,11-15).

Observe-se também que o número importante de citações de


cumprimento5 e sua fórmula introdutória estereotipada levam al-
guns a pensar que o evangelista utiliza uma coleção de testimonia.

3.2. No cruzamento de tradições


Mateus manifesta uma grande fidelidade às tradições recebidas,
bem como uma grande liberdade. De certa maneira, pode-se dizer
que ele cria uma ficção histórica6: por exemplo, o reagrupamento
de milagres em 8-9, reunindo, em uma longa série, relatos que Mar-
cos situa em momentos diferentes. Delineiam-se aí orientações teo-
lógicas particulares e um contexto de comunicação específico: os
evangelistas escrevem, é verdade, uma história de Jesus, mas uma
história que remete também à história e às preocupações das comu-
nidades às quais eles se dirigem.

M ateu s e su as fo n tes: o exem plo dos capítu los 8 —9


Tanto a liberdade como a fidelidade de Mateus às suas fontes são
bem ilustradas no trabalho editorial efetuado no agrupamento de relatos
de milagre dos capítulos 8-9:

1) 8,1-17: Jesus em Cafarnaum


8,1-4: cura do leproso //Marcos 1,40-44
8,5-13 : cura do servo do centurião //Q 7,1-10*
8,14-15: cura da sogra de Pedro //Marcos 1,29-31
8,16-17: sumário + citação de //Marcos 1,32-34 +
cumprimento redação Mateus
(redMt)
* Por convenção, designa-se o texto reconstituído da Fonte dos logia pela
sigla Q e a partir do texto de Lucas; assim, Q 7,1-10= o texto reconstruído
de Q correspondente a Lucas 7,1-1(

5 C f p. 84, nota 2.
6 Ulrich LUZ, Fiktivitát im Mattháusvangelium im Lichte griechischer Lite-
ratur, Z N W 84 (1993) 153-177.

92
O evangelho segundo Mateus

2) 8,18-34: De uma para outra margem


8,18-22: um escriba e um discípulo
querem seguir Jesus l/Q 9,57-60
8,23-27 tempestade acalmada //Marcos 4,35-4!
8,28-34 cura do demoníaco de Gadar //Marcos 5,1-20

3) 9,1-34: Jesus de volta à sua cidade


9, 1-8 cura de um paralítico //Marcos 2,1-12
9,9-13 Vocação de Levi e refeição
em sua casa //Marcos 2,13-17
9,14-17 controvérsia sobre o jejum //Marcos 2,18-22
9,18-26 cura da mulher e da menina //Marcos 5,21-43
9,27-31 cura de dois cegos //redação Mateus
sobre Marcos 10,45-52
9,32-34: cura de um possesso //Q 11,14-15
9,35-38 conclusão/introd. do
discurso missionário //redação Mateus sobre Q 10,2

Mateus se situa, assim, no cruzamento de várias tradições lite-


rárias e teológicas: Marcos, que concentra a fé cristã na cruz (sem
componente didático preciso); a fonte Q, sem laço particular com a
história (ética do instante e do provisório); o judeu-cristianismo, que
vive uma profunda crise de identidade. Em relação a Marcos, ele
reinscreve a teologia da cruz no contexto do ensinamento de Jesus
(cf sua insistência no aspecto didático do ministério de Jesus). A
cruz não se compreende fora da prática de Jesus (Marcos), nem fora
de seu ensinamento (Paulo). Em relação à fonte Q, ele reabilita a di-
mensão histórica da fé cristã; não se trata simplesmente de reportar
as palavras de Jesus, mas também de compreender sua pertinência
no concreto da existência do crente. As palavras do mestre não têm
significação fora da história. Em relação às tradições do judeu-cris-
tianismo que ele recolhe, elabora uma teologia específica que não é
nem uma variante do judaísmo, nem um legalismo cristão.

3.3. O escriba inspirado


Fala-se, às vezes, de estilo midráshico para evocar o trabalho de
Mateus na composição de seu evangelho. Estritamente falando, o

93
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

midrash está ligado ao Antigo Testamento (método de interpre-


tação e de comentário do texto bíblico, de caráter homilético) e
constitui um qualificativo redutor para explicar o trabalho do evan-
gelista. A expressão “intérprete criativo”7 talvez seja mais exata.
Mateus adapta e amplia suas fontes, criando “novas” palavras de
Jesus, com a finalidade de elucidar, para sua comunidade, uma
ou outra tradição sobre Jesus: assim, em 9,13 e 12,7, a citação de
Oséias 6,6 como elucidação da maneira como, segundo Mateus,
convém compreender as perícopes marcanas (ver também em Mt
21,41c e 43 a elucidação de Mc 12,9-11). Que autoridade se arroga
Mateus para agir assim? Explica-se, às vezes, esse fenômeno lem-
brando os profetas inspirados (semelhantes aos que transmitiram a
fonte Q) que nas comunidades primitivas transmitiam as palavras
de Jesus glorificado.
Fala-se também da compreensão que tem Mateus de seu papel
de autor como o de um “escriba inspirado”, à maneira da litera-
tura judaica do Segundo Templo (escritos pós-exílicos do Antigo
Testamento, literatura apocalíptica, escritos de Qumran). Para
Mateus, o ideal do escriba se inspira, talvez, na noção do escriba
tal como se desenvolveu nos escritos mencionados acima: prática
da sabedoria, dom da compreensão das parábolas e dos mistérios,
noção de autoridade e da verdadeira justiça, interpretação da Lei
e dos profetas. Essa consciência profética de escritores inspirados
implica uma capacidade de criar e de transmitir, da parte de Deus,
novas palavras de sabedoria (para Mateus, essas palavras são as do
escriba ideal, a saber, o próprio Jesus). Nessa perspectiva, Mateus
13,52 é às vezes interpretado como uma referência implícita a ele
mesmo, Mateus: “E lhes disse: Assim, pois, todo escriba instruído
no Reino dos céus é comparável a um dono de casa que tira do
seu tesouro coisas novas e velhas”. Havería, assim, em Mateus,
dois tipos de escribas: os escribas judeus que perverteram o ensi-

7 Graham N. STANTON, A Gospel for a New People. Studies in Matthew,


Edinburgh, Clark, 1992; cf cap. 14: Matthew as a Creative Interpreter of
the Sayings o f Jesus, 326-345.

94
O evangelho segundo Mateus

namento de Moisés e os “escribas cristãos”, talvez os que ensinam


na comunidade. “No pensamento do evangelista, o escriba cristão
se assemelha a um proprietário bem provido. Porque o seu ensina-
mento repousa não somente na revelação feita aos pais por Moisés
e os profetas, mas também na que Deus concedeu aos homens por
seu Filho, que os instruiu a respeito dos mistérios de seu Reino.
E graças à inteligência dessa dupla revelação que o didata cristão
se encontra à altura de enfrentar todas as necessidades de seu
ensinamento.”8 Mateus aplicaria este logion à sua própria atividade
de evangelista. Ele se compreendería como um escriba inspirado,
capaz de tirar de seu tesouro o velho (as tradições fielmente trans-
mitidas) e o novo (a adaptação das tradições recebidas, bem como
a criação de novas tradições correspondentes a uma nova situação,
na fidelidade ao Mestre).

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. Particularismo e universalismo9
Discerne-se, no primeiro evangelho, um duplo movimento. An-
tes de tudo, um particularismo muito forte. Mateus conhece perfei-
tamente o judaísmo de seu tempo. Ele considera que escribas e fari-
seus estão “sentados na cátedra de Moisés”, e por isso ele respeita
seu ensinamento (23,2). O Jesus que ele nos apresenta não vem
abolir nem um iota da Lei (5,17 s.). Poderiamos, aliás, multiplicar os
exemplos que manifestam um profundo enraizamento na tradição
judaica (o Jesus de Mateus paga o imposto do Templo; cf 17,24-27;
Mateus, ao contrário de Marcos, não explica os costumes judai-
cos de que fala; cf Mt 15,1-9, a comparar com Mc 7,1-13). Enfim,
não envia Jesus seus discípulos somente às “ovelhas perdidas da
casa de Israel” (Mt 10,4-5; cf também 15,24)? Entretanto, ao lado
desse forte particularismo, coabita um decidido universalismo de

8 Jacques DUPONT NovaetVetera(Mtl3/52), in LÉvangilehieretaujourd’hui.


Mélanges E-J. Leenhardt, Genève, Labor et Fides,1968, 55-63 (62).
9 Elian CUV1LL1ER, Particuarisme et universalisme chez Mathieu: quelques
hyptothèses à 1’épreuve du texte, Bíblica 78 (1997) 481-502.

95
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

tom polêmico: os magos são os primeiros a vir se prostrar diante


de Jesus menino, ao passo que Herodes quer matá-lo e os escribas
de Jerusalém o ignoram (2,1-12); Jesus cura o servo do centurião
e proclama que jamais viu tamanha fé em Israel (8,5-13); a filha da
mulher cananéia é curada depois de muita resistência, o que ressal-
ta a dificuldade, para Jesus e seus discípulos, de admitir essa aber-
tura para os pagãos (15,21-28). Enfim, depois da Páscoa, o próprio
Jesus estende o anúncio da Boa-Nova a todos os povos da terra
(28,16-20).

4.2. Cristologia 10
Mateus se interessa muito mais do que Marcos pelo ministério
e pelo conteúdo do ensinamento do Jesus terreno (cristologia da
didascália). Pelo fato de ser, para sua fé, a história da intervenção
decisiva e escatológica de Deus no mundo, o destino do Jesus ter-
reno convida o evangelista a uma releitura de sua própria história
e da de sua comunidade pelo prisma da história de Jesus e à luz de
seu ensinamento. A narração da vida de Jesus não é, portanto, uni-
camente, nem prioritariamente, o relato de acontecimentos pas-
sados, mas testemunho da identidade total entre o Jesus terreno
e o Ressuscitado presente ao lado dos seus. Essa identidade fun-
damenta a autoridade e a atualidade de seu ensinamento recolhido
no evangelho, particularmente em seus cinco grandes discursos.
Assim, a narração mateana da vida e do ensinamento de Jesus de
Nazaré explica ao mesmo tempo a história da comunidade matea-
na tal qual a interpreta o evangelista. Ela é também a permanen-
te lembrança da interpelação radical que o Ressuscitado dirige aos
discípulos das gerações seguintes. A narração funciona como atua-
lização e apropriação da história de Jesus e de seu ensinamento na
vida da comunidade.

10 Miche QUESNEL, Jesus-Christ selon Saint Matthieu, Paris, Desclée, 1991;


David D. KUPR Matthew's Emmanuel. Divine Presence and God’s People in
the First Gospel, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

96
O evangelho segundo Mateus

Para Mateus, Jesus de Nazaré é o Messias de Israel. Isso é


manifesto em sua narração de três maneiras: o Jesus mateano
é apresentado, por duas vezes, como enviado ou enviando os disci-
pulos à casa de Israel (10,5-6; 15,24). Pelas citações de cumprimento
descobre-se que Jesus é o enviado aguardado e anunciado: os que
o recebem são, portanto, fiéis à tradição dos pais. Enfim, terceiro
elemento, Jesus leva os títulos cristológicos tomados do Antigo Tes-
tamento (Filho de Davi, Messias, Filho do homem). A confissão de
Jesus de Nazaré como Messias de Israel pelo judeu Mateus tem por
conseqüência a redefinição, em profundidade, de seu universo reli-
gioso. Na medida em que Jesus é confessado como presença viva
de Deus no meio de seu povo, e mais largamente no meio do mundo
(cristologia do Emanuel), assiste-se a uma radicalização do messia-
nismo judaico e, por conseguinte, a uma reinterpretação em profun-
didade dos temas clássicos do judaísmo: a Lei, a questão da eleição,
a questão comunitária, a relação com os pagãos.
Sabe-se da importância dos títulos dados a Jesus ou, ainda, do
paralelo que alguns estabelecem com Moisés. Não se há de negligen-
ciar também a solidariedade profunda que no evangelho de Mateus
une Jesus com os “pequenos” (μικρός, Mt 10,42; 18,6.10; 25,31-46).
Jesus se apresenta, ele mesmo, como um pequeno entre os peque-
nos (cf Mt 10,42 e 25,31-46), um “título” que constitui, sem dúvida,
um importante redimensionamento das outras formulações mais
tradicionais.

4.3. Eclesiologia11
O Jesus mateano constitui para si uma comunidade nova. A figu-
ra dos Doze, dos quais Pedro é o porta-voz (cf Mt 14,22-33; 16,13-

11 Günther BORNKAMM, Enderwartung und Kirche im Mattháusevangeli-


um, in G. BORNKAMM, G. BARTH, H. J. HELD, ÜberlieferungundAus-
legung im Mattháus-Evangelium, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1961,
13-47; Eduard SCHWEIZER, Matthaus und seine Gemeinde, Stuttgart,
Katholisches Bibelwerk, 1974; Jean ZUMSTEIN, La condition du croyant
dans 1' évangile de Matthieu, Fribourg/Gõttingen, Editions Universitaires/
Vandenhoeck und Ruprecht, 1977.

97
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

23), é aqui um símbolo da condição de discípulo. Por extensão, essa


comunidade é a vocação de todo homem a quem é proclamado o
Evangelho (28,16-20). Para Mateus, discípulo é aquele que cum-
pre a vontade de Deus (12,46-50), isto é, que segue o ensinamento
de seu Mestre. Essa obediência é constitutiva do discurso mateano
sobre a condição do discípulo. A exigência mateana da obediên-
cia (que assume, às vezes, aspectos ameaçadores; c f Mt 5,17-20,
cf v. 20; Mt 25) não deve dissimular o que caracteriza a condição
do discípulo em Mateus, a saber, seu estado paradoxal de miséria e
grandeza: miséria de um discípulo de “pouca fé” (ολιγόπιστος; cf
8,26; 14,31; 16,8) confrontado com sua própria fraqueza e com o
mal deste mundo (cf 14,22-33); grandeza desse mesmo discípulo,
chamado ao seguimento e assegurado da graça do socorro de seu
Senhor, que lhe permite vencer as provações. E, aliás, significativo
que um dos termos favoritos de Mateus para designar os discípu-
los seja “pequeno” (10,42; 18,6.10.14 e, talvez, 25,31-46; também
11,25). Esses discípulos/pequenos recebem uma dignidade igual à
dos justos e dos profetas (10,40 e 13,16-17), figuras eminentes da
tradição judaica.
Essa condição paradoxal do discípulo sem dúvida explica por que
Mateus não instaura ninguém, aqui embaixo, como juiz de quem é
verdadeiramente membro da comunidade de Jesus. A separação
entre o joio e o trigo pertence a Deus somente, no juízo final (cf
Mt 13,36-43; 25,31-46). Para Mateus, portanto, a Igreja é, de fato,
um corpus mixtum. A única exceção é a famosa disciplina eclesiás-
tica de Mateus 18 sobre a exclusão do irmão (vv. 15-18). Todavia,
é preciso reler a passagem em seu contexto mateano. As palavras
sobre a exclusão da comunidade devem ser interpretadas no con-
texto do conjunto do discurso comunitário e, mesmo, do próprio
evangelho: considerar o irmão, que não se arrepende, como um
pagão e um cobrador de imposto (v. 17) não é rejeitá-lo, mas agir,
em relação a ele, à imagem do Pai que não cessa de ir em busca da
ovelha perdida (18,10-14); é considerar o irmão desgarrado como
aquele com quem Jesus partilha sua mesa (9,9-10) e que não cessa
de chamar (9,13b).

98
O evangelho segundo Mateus

4 . 4. Mateus e a Lei{2
O lugar do Sermão da Montanha (SM) como abertura do minis-
tério de Jesus na Galiléia e, no seio do SM, o caráter programático
de Mateus 5,17-20, imediatamente seguido de antíteses, sublinham
o lugar central em Mateus da reflexão sobre a lei. Na pesquisa ma-
teana da última metade do século XX, o tema é recorrente: qual
é a interpretação mateana da Torá e que papel desempenha ela na
compreensão do Evangelho?
Em 5,17-20, Mateus mantém em tensão duas lógicas, duas or-
dens de coisas. De um lado, a ordem ou a lógica da lei como man-
damento (vv. 18-19). Esta permanecerá válida enquanto perdura-
rem a ordem e a lógica deste mundo. A vinda de Jesus, portanto,
não anula a lei, que pertence, nesse contexto, às coisas “penúlti-
mas”: delas não depende a entrada no Reino, mas a classificação
dentro dele (cf entretanto Mt 11,11 e 20,16). De outro lado, em
face dessa lógica da lei, Mateus aponta para a lógica do “cumpri-
mento”, por Cristo, da “lei e dos profetas” (v. 17), isto é, para a
evidência da vontade primeira de Deus (poder-se-ia dizer: a “lei e
os profetas” como promessa). E então a noção de “justiça” que é
convocada (v. 20). Esta suplanta a lei que os escribas e os fariseus
praticam. É da justiça nova, inaugurada por Jesus, que depende a
entrada no Reino.
As antíteses do SM (5,21-48) são a ilustração direta do quadro
hermenêutico apresentado em 5,17-20. O fio condutor de cada12

12 Gerhard BARTH, Das Gesezesverstandnis des Evagelisten Matthaus, in


Uberlieefrung and Auslegung im Matthausevanelium, 54-154; Jean ZUMS-
TEIN, Loi et Evangile dans le témoignage de Matthieu, Miettes exégéti-
ques, Genève, Labor et Fides (1992) 131-150; Daniel MARGUERAT, “Pas
un iota ne passera de la Loi...” (Mt 5,18). La Loi dans 1’évangite de Mat-
thieu, in Camille FOCANT (éd.), La loi dans I’un et I’autre Testament, Pa-
ris, Cerf 1997, 140-174; Martin ST1EWE, François VOUGA, Le Sermon
sur la Montagne, espec. 59-71; Elian CUVILLIER, La loi comme realité
avant-dernière: Mt 5,17-20 et son déploiement narratif dans 1’évangile de
Matthieu, in Emmanueile STEFFEK, Yvan BOURQUIN (éds.), Raconter,
interpréter, annoncer. Parcours de Nouveau Testament, Genève, Labor et
Fides, 2003, 81-91.

99
A tradição sinótica e os A tos dos apóstolos

uma das antíteses está na lógica do “não só, mas mesmo”: não só
o assassinato, mas mesmo o ódio, não só o adultério, mas mesmo
o olhar impuro...: tudo isso é contrário à vontade de Deus. E uma
renovação do modo de compreender a existência que a palavra do
Jesus mateano quer provocar, convidando a passar de uma ordem
de coisas para outra, de uma realidade para outra, do reino deste
mundo para o Reino dos céus. Não se trata, aqui, de máximas mo-
rais ou, em outros termos, de um “mandamento” (5,18-19), mas da
“justiça superior” (5,20). A lógica que prevalece nesta passagem é a
do excesso. Ora, se se trata de excesso, do incalculável, o outro não
é simplesmente uma pessoa, objeto de um respeito quantificável
em vista do mandamento, mas se torna “sujeito” que encontramos
como próximo para além da regra. A utilização da hipérbole indi-
ca que a palavra do Jesus mateano não visa à descrição precisa de
uma prática, que arriscaria a se tornar razoável e a reduzir a “justiça
superior” da ordem do Reino de Deus à letra do “mandamento” da
ordem deste mundo.
Em Mateus 6,1, o Jesus mateano afirma: “Guardai-vos de prati-
car vossa justiça (την δικαιοσύνην ύμών) diante dos homens”. Se-
gue-se (vv. 2-18) uma reinterpretação dos três pilares da piedade
judaica: a esmola, o jejum e a oração. O que, em substância, essa
reinterpretação manifesta pode ser resumido na forma de uma al-
ternativa: ou uma “ética do parecer”, pela qual o crente tem sua
vida assegurada pelo olhar dos outros, ou uma “ética do segredo”,
segundo a qual a identidade não depende do que faz o homem sob
o olhar dos outros, mas da relação filial com o Pai que vê no segre-
do. Não se trata tanto de contestar a validade das obras de piedade
quanto de sublinhar que a entrada no Reino (em outras palavras:
a “recompensa”, μισθόν, vv. 1.2.5.16) é concedida de acordo com
critérios que não são os do mundo e de sua lógica, à qual pertence
a ordem religiosa. Na lógica do Reino dos céus, que é a do segre-
do e do íntimo, o ato ético ou o gesto de piedade é justamente
o inverso do que se pode constatar a olho nu: a justiça do Reino
não tem nada a ver com a justiça dos homens. De sua responsa-
bilidade ética, os ouvintes de Mateus não devem prestar contas

100
O evangelho segundo Mateus

diante dos homens, mas “no segredo” onde só o “Pai” vê e retribui


(cf 0,4.6.18). Para Mateus, não é mais o olhar dos outros pousado
sobre o gesto ético que funda a identidade. E diante do “Pai” que
o sujeito se descobre na verdade. E é por isso que, em vez de se
preocupar com as coisas deste mundo, os ouvintes do SM são con-
vidados à confiança absoluta no Pai (vv. 19-34). Pertencer ao Rei-
no dos céus implica uma relação diferente com o mundo: buscar o
Reino dos céus e sua justiça (vv. 33) é viver na confiança, isto é,
na total dependência em relação a Deus. Enfim, a lei e os profetas
reinterpretados pelo Jesus mateano são uma compreensão de si
mesmo e dos outros como seres em relação (7,12) e não apenas
um viver juntos de maneira razoável que a lei, como mandamento,
torna possível.
Três observações para concluir. Primeiro, a “vinda” de Jesus,
para Mateus, provoca em todos os círculos cristãos um questio-
namento radical sobre o estatuto da lei. Essa simples constatação
mostra que, para quem quer que se refira ao pregador de Nazaré,
não é Jesus que está sujeito à lei, mas o contrário. Segundo, a vali-
dade da lei é limitada (“até o fim do mundo”; c f , para comparação,
24,35: as palavras de Jesus não passarão!). Terceiro, ela não per-
mite o acesso ao Reino dos céus (5,19). Para Mateus, a lei perten-
ce à ordem deste mundo: o discípulo é, certamente, convidado a
obedecer a ela — na medida em que rege a vida em comum dos
homens — mas também a ultrapassá-la para ter acesso ao Reino
dos céus (5,20). Em Mateus, a lei tal qual os escribas e fariseus a
põem em prática não é, portanto, fonte de vida. Somente a “lei e
os profetas” reinterpretados por Jesus permitem o acesso à vida.
Enfim, a palavra de Jesus é sabedoria e repouso para aqueles que
depõem, diante dele, seu fardo e tomam seu jugo fácil e leve (Mt
11,28-30). Que “a lei e os profetas”, para Mateus, sejam uma pro-
messa só é possível em nome dAquele que é seu intérprete esca-
tológico. Assim, a compreensão mateana da lei é, não importa o
que digam, radicalmente distanciada da do judaísmo do primeiro
século. E que para Mateus passamos da lei para a Justiça, da Torá
para o Messias.

101
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

4.5. O julgamento13
Constata-se freqüentemente o lugar importante dado ao tema
do julgamento no primeiro evangelho (ver entre muitos outros tex-
tos Mt 11,21-14; 13,36-43; 18,23-35; 21,33-45; 22,1-14; 25,14-30.31-
46). Além da estrutura apocalíptica formal que pode assumir, os
motivos do julgamento, em Mateus, são diretamente tomados da
linguagem dos profetas de Israel. O Jesus mateano se situa, assim,
na grande tradição profética veterotestamentária, na qual a função
da linguagem do julgamento é de apelo ao arrependimento. Mas em
Mateus a exposição dos motivos do julgamento tem também uma
outra função. E uma linguagem de revelação que faz os homens apa-
recerem tais quais são: indivíduos prisioneiros da hipocrisia e do mal
(cf as invectivas de Mt 23). Por isso, é de se notar que a ameaça do
julgamento divino não concerne apenas a Israel ou aos incrédulos.
Concerne às figuras da narrativa por trás das quais os membros da
comunidade mateana podem se reconhecer. A linguagem mateana
do julgamento instaura, nesse caso, o homem em geral e o discípulo
em particular em regime de responsabilidade. Entretanto, em Ma-
teus a cruz opera uma ruptura: o Jesus ressuscitado não profere
mais nenhuma palavra de julgamento. Ele não é o juiz escatológico,
mas Aquele que envia seus discípulos a anunciar a Boa-Nova a todas
as nações (28,16-20).

5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Desde o início dos anos 1980, assistimos, do outro lado do Atlân-
tico especialmente, a um deslocamento metodológico. As leituras
sociológicas, de um lado, e as narrativas, de outro, deixam entrever
a possibilidade de repor um certo número de questões clássicas no
estudo do primeiro evangelho.
Particularismo e universalismo, relações com o judaísmo. A co-
munidade mateana é uma comunidade pluricultural, decididamen-15

15 Daniel MARGUERAT, Le jugement dans 1’Evangile de Matthieu, Genève,


Labor et Fides,21995.

102
O evangelho segundo Mateus

te aberta à missão junto aos pagãos, ou os ouvintes de Mateus se


vêem ainda como pertencendo a Israel? Ligada a essa problemática,
a questão do antijudaísmo mateano tornou-se, hoje, objeto de aten-
ção muito especial.
A cristologia. A narratologia nos faz prestar mais atenção ao risco
de elaborar uma cristologia que não leva em conta nada além dos
“títulos” messiânicos. E o conjunto da narração que constrói a apre-
sentação mateana de Jesus, desenvolvendo uma espécie de “cristo-
logia narrativa”.
A eclesiologia mateana. Quais são a composição e a organiza-
ção da comunidade mateana? Aproxima-se ela da comunidade de
Qumran, que é uma comunidade em busca de pureza, com uma
disciplina rigorosa (próxima do tipo sociológico “seita”), ou a comu-
nidade mateana é um corpus mixtum, que reúne o “trigo” e o “joio”
(próxima do tipo sociológico “Igreja”)?
A questão da Lei. E chegada a hora de retomar a análise indepen-
dentemente da problemática paulina, levando sempre em conside-
ração as evoluções na compreensão da Lei no seio do judaísmo do
primeiro século.
A escatologia e o julgamento. As razões pelas quais essa linguagem
é usada por Mateus despertavam, até agora, pouco interesse. Dora-
vante, os trabalhos levam em consideração a função sociológica dos
temas apocalípticos.6

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre. LÉvangile selon Saint Matthieu. Genève, Labor et Fi-
des, 31981 (C N T 2/1).
DAVIES, William David, ALLISON, Dale C. The Gospel According to Saint
Matthew. Edinburgh, Clark, 1988, 1991, 1997, v. I, II, III (ICC).
GNILKA, Joachim. Das Mattháusevangelium. Freiburg, Herder, 21988, v.
I-ll (HThKNT).
HAGNER, Donald A. Matthew. Dallas, Word Books, 1993, 1995, v. I-ll
(W BC33).

103
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

KLOSTERMANN, Erich. Das Mattháus-Evangelium. Tülbingen, Mohr,


41971 (H N T 4).
LOHMEYER, Ernst. (Werner Schmauch, ed.) Das Evangelium nach Mattháus.
Gottingen,Vandenhoeck und Ruprecht, 4I967 (KEK. Sonderband).
LUCK, Ulrich. Das Evangelium nach Matthãus. Zürich, Theologischer Ver-
lag, 1993 (ZBKNT 1).
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthãus. Zürich/Neukirchen, Benzi-
ger/Neukirchener Verlag, 1985, 1990, 1997, v. 1-II-1I1 (EKK1).

Leitura prioritária
LUZ, Ulrich. LEvangeliste Matthieu: un judeo-chrétien à la croisée des
chemins. In: MARGUERAT Daniel, ZUMSTE1N, Jean (éds.). La
mémoire et le temps. Genève, Labor et Fides, 1991, p. 77-92 (Monde
de la Bible 23).
--------- . Die Jesusgeschichte des Mattháus. Neukirchen, Neukirchener Ver-
lag, 1993 (ed. ingl.: The Theology o f the Gospel o f M atthew . Cambrid-
ge, Cambridge University Press, 1995 [New Testament Theology]).
ZUMSTEIN, Jean. Matthieu le théologien. Cahiers Evangile, Paris, Cerf
58(1986).

História da pesquisa
CUVILLIER, Élian. Chroniques matthéennes I. ETR 68 (1993) 573-584;
II. ETR 71 (1996) 101-113; III. ETR 72 (1997) 81-94; IV ETR 73 (1998)
239-256; V ETR 74 (1999) 251-265.
STANTON, Graham N. The Origin and Purpose o f Matthew s Gospel:
Matthean Scholarship from 1945-1980. A N R W II, Berlin, de Gruy-
ter, 25.4(1985) 1.889-1.951.

Bibliografia exaustiva
NEIRYNCK, Frans, VERHEYDEN, Jozef Matthew and Q. Bibliography
1950-1995. Leuven, Leuven University Press, 1998. 2 v.
Günter WAGNER (ed.). Matthew and Mark. Macon, Mercer University
Press, 1983 (An exegetical Bibliography o f the NewTestam ent 1).

104
O evangelho segundo Mateus

Estudos particulares
BORNKAMM, Gunther, BARTH, Gerhard, HELD, Heinz Joachim.
Uberlieferung und Auslegung im Matthàus-Evangelium. Neukirchen,
Neukirchener Verlag, 1961 (WMANT 1).
DUMA1S, Marcel. Le Sermon sur la Montagne. Etat de la recherche. Inter-
pretation. Bibliographie. Paris, Letouzay et Ané, 1995.
HUMMEL, Reinhart. Die Auseinandersetzung zwischen Kirche und Juden-
tun im Matthausevangelium. Munich, Kaiser, 1966 (BEvTh 33).
KINGSBURY, Jack Dean. Matthew as Story. Philadelphia, Fortress Press,
21988.
MARGUERAT, Daniel. Le jugement dans Γ Evangile de Matthieu. Genève,
Labor et Fides, 1952 (Monde de la Bible 6).
ORTON, David E. The Understanding Scribe Matthew and the Apocalyptic
Ideal. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1989 (JSNTSS 25).
SCHWEIZER, Eduard. Matthaus und seine Cemeinde. Stuttgart, Katholis-
ches Bibelwerk, 1974 (SBS 71).
SIM, David C. The Gospel o f Matthew and Christian Judaism. The History
and Social Setting of the Matthean Community. Edinburgh, Clark,
1998.
STANTON, Graham N. A Gospel for a New People. Studies in Matthew.
Edinburgh, Clark, 1992.
STRECKER, Georg. Der Weg der Gerechtigkeit: Untersuchung zurTheo-
logie des Matthaus. Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 21966
(FRLANT 82).
TRILLING,Wolfgang. Das Wahre Israel: Studien zurTheologie des Matt-
haus Evangeliums. München, Kõsel-Verlag, 1964 (StANT 10).
ZUMSTE1N, Jean. La condition du croyant dans I’Evangile de Matthieu.
Fribourg/Gõttingen, Editions universitaires/Vandenhoeck und Rup-
recht, 1977 (OBO 16).

Coletâneas de artigos
BALCH, David (ed.). Social History o f the Matthean Community. Cross-
Disciplinary Approaches. Minneapolis, Fortress Press, 1991.

105
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

BAUER, David R., POWELL, Mark Allan (eds.). Treasures New and Old.
Contributions to Matthean Studies. Atlanta, Scholars Press, 1996
(Symposium Series 1).
DIDIER, Marcel (éd.). TEvangile selon Matthieu. Rédaction et théologie.
Gembloux, Duculot, 1972 (BEThL29).
LANGE, Joachim (Hrsg.). Das Matthaus-Evangelium. Darmstadt, Wis-
senschaftliche Buchgesellschaft, 1980 (WdF 525).
STANTON, Graham N. (ed.). The Interpretation o f Matthew. London,
SPCK, 21995 (1RT 3).

106
CAPÍTULO

4
O evangelho segundo Lucas
Daniel Marguerat

O evangelho de Lucas apresenta uma dupla originalidade no seio


da tradição sinótica: é o único dos evangelhos a ser dotado de uma
continuação em um outro livro, os Atos dos Apóstolos; a obra de
Lucas (também chamada Lucas-Atos) compreende, portanto, dois
volumes, o primeiro dos quais é o evangelho. Segunda originalidade:
Lucas é o único evangelho cujo autor (embora permaneça anônimo)
se manifesta pessoalmente por um “eu” e expõe sua intenção lite-
rária e historiadora: ele o faz no contexto de um prefácio (Lc 1,1-4)
que é uma introdução ao conjunto da obra e tem eco no início do
livro dos Atos (At 1,1 s.). E evidente, assim, à primeira vista, que o
evangelho de Lucas assume lugar no interior de um projeto histo-
riográfico mais vasto, no qual ele preenche apenas uma parte, e que
a intenção desse projeto é explicitamente formulada. Transparece
aqui um programa que põe em ação as competências de Lucas his-
toriador, de Lucas escritor e de Lucas teólogo.

1. L u c a s - A t o s , u m a o b r a e m d o is v o l u m e s
A repetição do prólogo de Lucas 1,1-4 em Atos 1,1 (“Eu consagrei
meu primeiro livro, ó Teófilo, a tudo o que Jesus fez e ensinou, des-
de o com eço...”) é um indício seguro de que os Atos constituem a
sequência do evangelho. Pode-se pensar que por razões práticas de

107
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

extensão do manuscrito o autor tenha querido dividir sua obra em


duas partes, facilitando a edição e a difusão do livro. A cisão entre
as duas partes não é, entretanto, fortuita: de um lado, a história de
Jesus, do outro, os inícios da Igreja. Ora, acontece que nenhum ma-
nuscrito antigo nos transmite o texto dos Atos dos apóstolos ime-
diatamente em seguida a Lucas. Essa anomalia se explica. No con-
texto do processo de canonização do Novo Testamento, no correr
do século II, Lucas foi destacado dos Atos para constituir o corpus
dos evangelhos; estes foram agrupados e copiados juntos, seja na or-
dem atual, seja seguindo a ordem, dita ocidental, atestada pelas mais
antigas versões latinas: Mateus, João, Lucas, Marcos; o manuscrito
mais antigo que traz o título “evangelho segundo Lucas”, o P75, data
de entre 175 e 225.

O corte: uma decisão doutrinai


O corte em dois da obra lucana é, portanto, uma decisão doutri-
nal, devido ao fato de a Igreja primitiva reconhecer uma autoridade
maior dos evangelhos; a autoridade apostólica e canônica dos Atos
será admitida um pouco mais tarde, graças especialmente aos esfor-
ços de Ireneu (c. 180). Desde então os Atos passaram a ser juntados
ao cânon logo em seguida aos quatro evangelhos ou, às vezes, em
seguida às epístolas católicas, cujo reagrupamento estava em curso.
O Espírito, autor divino das Escrituras, importava, então, mais do
que o desejo do autor humano de ver reunidas as duas partes de seu
texto. No total, essa obra de extensão impressionante (52 capítulos)
representa um quarto do Novo Testamento. A tradição antiga não
pôs em dúvida a unidade de autor de Lucas-Atos; e tanto o cânon
de Muratori (c. 190) como Ireneu, Tertuliano ou João Crisóstomo
atribuem os dois escritos a Lucas, o médico, companheiro de Paulo
(ver abaixo seção 4).

Um díptico
Lucas-Atos constituem um conjunto literário de dois painéis,
cuja homogeneidade literária é reconhecida.

108
O evangelho segundo Lucas

Os dados internos corroboram abundantemente a homogeneidade


literária de Lucas-Atos.
• O vocabulário comum é importante: dos 143 termos familiares do ter-
ceiro evangelho, quer dizer, empregados mais de quatro vezes, 108 se
encontram nos Atos.
• A linguagem específica em Lucas-Atos, mas ausente no resto do
Novo Testamento, é consequente: 130 palavras ou locuções próprias
de Lucas-Atos.
• As particularidades estilísticas de Lucas aparecem em bom número
nos Atos: emprego de verbos com prefixo; construção do particípio
com um artigo neutro; uso de του + infinitivo com sentido final; posi-
ção do particípio no início da frase etc.
• Frases do evangelho se encontram inteiras ou parcialmente nos Atos:
comparar Lucas 1,66 e Atos 11,21; Lucas 12,14 e Atos 7,27; Lucas
24,19 e Atos 7,22; Lucas 15,20 e Atos 20,37 etc.

Fato significativo, o autor deixou de inserir os logia de Jesus no


evangelho, reservando-os para os Atos; a citação de Isaías 6,9 s.
sobre o endurecimento de Israel é truncada em Lucas 8,10 (cf Mc
4,12), para aparecer in extenso no fim dos Atos (28,26 s.). A crí-
tica de Jesus contra o Templo é suprimida do comparecimento de
Jesus diante do Sinédrio (Lc 22,67-71; cf. Mc 14,58) para intervir
por ocasião do processo de Estêvão (At 7,14). Essas transferências
são o indício de que o planejamento da narração abarca o conjunto
de Lucas-Atos. O autor, aliás, proveu sua obra de articulações e
inclusões que têm a função de soldar as duas partes: a) os dois
painéis do díptico giram em torno do relato da Ascensão, com o
qual termina o evangelho (Lc 24,50-53) e começa o livro dos Atos
(At 1,6-11); b) o evangelho termina no Templo de Jerusalém (Lc
24,53), onde tinha começado com Zacarias (Lc 1,5-25); c) enfim,
o conjunto Lucas-Atos é cingido pelo anúncio da “salvação de
Deus”, uma expressão tomada de Isaías 40,5, que qualifica a pro-
clamação de João Batista no limiar do evangelho (Lc 3,6; c f 2,30)
e fecha a pregação de Paulo no fim dos Atos (28,28). O anúncio
da “salvação de Deus” às nações é um indício claro do tema que
domina toda a obra de Lucas. No total, esse jogo significativo de
referências denota o cuidado que teve o narrador na composição

109
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

de seu escrito e sua preocupação de ajudar o leitor a apreender


sua unidade1.

2 . A presen ta çã o e pla n o
O evangelho de Lucas é o mais longo dos quatro evangelhos. E
também o mais cuidado do ponto de vista lingüístico e literário: seu
vocabulário é mais rico que o de Marcos e o de Mateus, seu estilo é
esmerado, sua composição bem cuidada. Seu autor é o mais grego
do Novo Testamento. Seu prefácio, com a dedicação a Teófilo (Lc
1,1-4), proclama já sua vontade de inserir seu escrito na literatura
helênica de qualidade. Enquanto Marcos refere seu texto ao “Evan-
gelho de Jesus Cristo” (Mc 1,1), Lucas anuncia a Teófilo sua intenção
de escrever uma “narração” (διήγησις, 1,1) de tudo o que se passou;
esse termo enuncia o projeto literário de apresentar uma narração
conforme às regras da historiografia antiga. De fato, Lucas se revela
um excelente contador; seu talento narrativo não exclui, veremos,
uma intenção teológica.

Gênero literário
O corte operado entre os dois volumes da obra de Lucas denota
uma vontade clara de distinguir a história de Jesus da dos apóstolos.
Em relação a Marcos, de cujo gênero literário ele se apropria, a di-
mensão biográfica do evangelho é acentuada pelos relatos da infância
(Lc 1,5-2,39) e da juventude (2,40-52), pelas referências cronológi-
cas da história do império romano (2,1 s.; 3,1; 23,12), pela Ascensão
que marca o fim das aparições pascais (24,50 s.). O autor se esforçou
por dotar sua narração de um enquadramento que vai do nascimento
do herói à separação dos seus: é assim que se apresentam na Anti-
guidade as Vidas de filósofos. A inspiração no modelo das biografias
antigas traduz a insistência de Lucas na mediação escolhida por Deus
para manifestar o acontecimento decisivo da salvação: um homem,

1 Daniel MARGUERAT La premiere histoire du christiansime. Les Actes dês


apôtres, Paris/Genève, Cerf/Labor et Fides, 1999, 65-92.

110
O evangelho segundo Lucas

Jesus, cuja vida se desenrolou neste mundo. Mas em sua intenção o


evangelista se aproxima dos autores dos livros históricos do Antigo
Testamento: ele quer mais convencer do que informar.

Conteúdo
Para quem guarda de memória a organização geográfica do evan-
gelho de Marcos (Galiléia — o caminho — Jerusalém), a macroes-
trutura do evangelho de Lucas aflora no texto; ela de fato serviu
de base para o evangelista estruturar sua narração. A atividade de
Jesus na Galiléia cobre de 4,14 a 9,50. A breve seção marcana do
caminho (Mc 8,27-10,52) foi consideravelmente ampliada, a ponto
de constituir um longo relato de viagem para Jerusalém, iniciado em
9,51 (“Ora, como chegasse o tempo em que ele ia ser arrebatado do
mundo, Jesus tomou resolutamente a estrada de Jerusalém”) e con-
cluído em 19,28 (“Terminando essas palavras, Jesus seguiu adiante
para subir a Jerusalém”). A entrada em Jerusalém (19,29-40) intro-
duz, como em Marcos, um discurso escatológico (21,5-38), antes da
sequência da Paixão (22-23) e da ressurreição (24). Lucas ampliou
esse esquema tripartite, a montante, pelo evangelho da infância de
Jesus (1,5-2,52) e por uma transição que prepara o ministério públi-
co (3,1-4,13).
Se a macroestrutura se esboça sem dificuldade, em compensa-
ção as grandes seqüências, assim recortadas, se furtam a uma es-
truturação interna clara. Atribui-se a dificuldade à técnica narrativa
lucana, que, ao contrário das grandes composições discursivas de
Mateus ou de João, busca dar sentido encadeando pequenas unida-
des literárias.
Após o prefácio que dedica a obra aTeófilo (1,1-4), o evangelho da
infância de Jesus (1,5-2,52) se singulariza como uma entidade cons-
truída sobre a simetria Batista-Jesus: duplo anúncio, dupla nativida-
de, dupla celebração do nascimento por um hino (1,68-79; 2,29-35).
Esse prólogo ao mesmo tempo estabelece a pertença de Jesus ao
judaísmo, selada pela circuncisão, e anuncia a superação da antiga
economia; essa superação é claramente significada no episódio de
Jesus aos doze anos (2,44-52).

111
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Plano do evangelho segundo Lucas

1.1-4 Prefácio da obra lucana

A infância de Jesus (1,5-2,52)


1,5-80 Anúncios do nascimento de João Batista e de Je-
sus. Visitação (Magnificat: 1,46-55). Nascimento
do Batista (Benedictus: 1,57-80)
2.1-40 Nascimento de Jesus. Apresentação noTemplo
2,41 -52 Jesus no Templo aos 12 anos

Preparação do ministério público (3,1-4,13)


3.1-20 Atividade de João Batista: vocação, pregação,
prisão
3,21-4,13 Batismo de Jesus e genealogia. Tentações

Jesus na Galiléia (4,14-9,50)


4,14-30 Pregação em Nazaré e rejeição de Jesus
4,31-6,11 Milagres e controvérsias
Pregação e curas em Cafarnaum (4,31-44).
Peca abundante e vocação dos discípulos (5,1-11)
6,12-49 Escolha dos Doze (6,12-16). Discurso na planície
(6,20-49)
7-8 Milagres e parábolas
O filho do centurião pagão (7,1-10). O jovem de
Nairn (7,11-17). Jesuse João Batista (7,18-35). A
pecadora em casa de Simão (7,36-50). Discurso
em parábolas (8,4-18). A tempestade acalmada
(8,22-25). O possesso geraseno (8,26-39). A
mulher hemorroíssa e a filha de Jairo (8,40-56)
9,1-50 Perguntas sobre a identidade de Jesus
Envio dos Doze (9,1-6). Milagre dos pães (9,10-
17). Primeiro anúncio da Paixão (9,18-22). Trans-
figuração (9,28-36). Segundo anúncio da Paixão
(9,43b-45)

A viagem para Jerusalém (9,51-19,28)


9,51-13,21 A vida na fé
Envio dos 72 discípulos (10,1-20). Parábola do sa-
maritano (10,29-37). Marta e Maria (10,38-42).
Pai-nosso e palavras sobre a oração (11,1-17).
Discurso contra os fariseus (11,37-53). Confes-
sar o Filho do homem (12,1-12). Palavras sobre
o dinheiro (12,13-34). Parábolas da vigilância
(13,35-59)

112
O evangelho segundo Lucas

13,22-17,10 Convite parao Reino


Quem será salvo (13,23-30). Parábola do convite
para o jantar (14,15-24). Parábolas da ovelha, da
moeda, do filho reencontrado (15). Parábola do
gerente astuto (16,1-13). Parábola do rico e Láza-
ro (16,19-31)
17,11-19,28 Em face do fim dos tempos
Os dez leprosos (17,11-19). Discurso escatológi-
co (17,20-37). O homem rico (18,18-30) Terceiro
anúncio da Paixão (18,31-34). Zaqueu (19,1-10).
Parábola dos talentos (19,11-27)

Jesus entra em Jerusalém (19,29-21,38)


19,29-48 Entrada messiânica na cidade. Os vendedores
expulsos do Templo
20,1-21,4 Controvérsias no Templo. Parábola dos vinhatei-
ros homicidas (20,9-19)
21,5-38 Discurso escatológico

Paixão e ressurreição (22-24)


22.1-38 Complô contra Jesus. A última ceia
22,39-65 Oração e prisão no monte das Oliveiras. Nega-
ção de Pedro
22,66-23,25 Comparecimento de Jesus diante do Sinédrio,
diante de Pilatos, diante de Herodes
23,26-56 Crucifixão e sepultamento
24.1-35 Descoberta do túmulo vazio. Os peregrinos de
Emaús
24,36-53 Aparições do Ressuscitado em Jerusalém. As-
censão.

A preparação do ministério público (3,1-4,13) valoriza fortemente


a atividade profética de João Batista e sua vocação de precursor;
Jesus, batizado (3,21 s.) e vitorioso na tentação (4,1-13), pode co-
meçar seu ministério público.
A atividade na Galiléia (4,14-9,50) desenvolve a proclamação
do Reino de Deus em palavras e atos. Ela é inaugurada pela cena
da sinagoga de Nazaré (4,16-30), que tem um valor programático:
Jesus prega a partir do texto de Isaías 61,1 s. e anuncia a realização
desse programa de libertação; mas a recusa dos ouvintes e sua ten-
tativa de eliminar Jesus prefiguram a Paixão. Jesus é acusado nas
controvérsias, sucessivamente, de curandeiro, pregador da conver-

113
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

são, parabolista; a narração marca gradativamente a indagação da


identidade de Jesus, seja da parte do Batista (7,18-23), de Herodes
(9,7-9) ou dos discípulos (9,45).
O motivo literário da viagem a Jerusalém (9,51-19,28) recorta
uma longa seqüência sob a égide da subida de Jesus para sua “ar-
rebatação” (άνάλημψις, 9,51), quer dizer, sua morte e sua ascen-
são. Dois pequenos resumos poderíam funcionar como cesuras
e assinalar uma organização interna da seqüência: 13,22 e 17,11.
Recortam-se, desse modo, três seções. A primeira (9,51-13,21)
orienta a atenção dos leitores para a vida de fé: que significa
tornar-se discípulo? Como viver a condição de discípulo? Temas
abordados: o amor, a oração, a gestão do dinheiro, a vigilância.
A segunda seção (13,22-17,10) oferece variações, sobretudo por
meio de parábolas, sobre o convite para entrar no Reino. A pers-
pectiva do fim dos tempos colore fortemente a terceira seção
(17,11-19,27); ela põe em cena Jesus como pregador de conver-
são e de salvação (Zaqueu).
Antes da paixão, a entrada em Jerusalém abre um período
marcado pelo ensinamento de Jesus no Templo (19,47; 21,37).
A entrada na Cidade santa é interpretada no sentido de reale-
za; aquele que vem em nome do Senhor é “o rei” (19,38). Nos
capítulos 20 e 21, depois da purificação do Templo, as últimas
palavras públicas de Jesus concorrem para dramatizar os aconte-
cimentos que se preparam: controvérsias sobre a autoridade de
Jesus, anúncio do fim do Templo e do julgamento de Jerusalém,
discurso escatológico.
Na seqüência paixão e ressurreição (22-24), Lucas está atento à
distinção das instâncias em jogo (Sinédrio, Herodes, Pilatos) no in-
tuito de sublinhar a inocência de Jesus. Na crucificação, as palavras
de compaixão de Jesus sublinham sua grandeza moral (23,34.43). O
ciclo pascal concentra as aparições do Ressuscitado em Jerusalém
e conclui com a ascensão; a imagem dos discípulos “sem cessar no
Templo, bendizendo a Deus” (24,53) termina o evangelho lá onde
começara: no Templo de Jerusalém.

114
O evangelho segundo Lucas

3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
O prefácio da obra lucana admite a existência de predecessores
e, portanto, de uma documentação já reunida à qual Lucas pôde re-
correr: “Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos
acontecimentos realizados entre n ó s...” (Lc 1,1). Quem são esses
“muitos”? A comparação com Marcos e Mateus revela amplas coin-
cidências atribuíveis, de um lado, à utilização de Marcos, de outro
à utilização da fonte dos logia (Q), comum a Mateus e Lucas2. Por
outro lado, uma parte importante do evangelho não tem paralelo em
nenhum dos outros sinóticos, nem em João.

3.1. A retomada de Marcos


O empréstimo da matéria narrativa de Marcos constitui 35% do
evangelho de Lucas (por volta de 364 versículos). A prática do autor
consiste em seguir a ordem de Marcos, retomando largas fatias de
sua narração. Percebe-se, aqui, uma estratégia narrativa oposta à de
Mateus, que reagrupa os materiais de diversas proveniências por
suas afinidades temáticas (daí a construção de grandes discursos);
a decisão de Lucas é bem diferente. Ele interrompe o fio narrativo
de Marcos quando se trata de introduzir uma matéria heterogênea.
E esse o seu procedimento em três inserções no roteiro narrativo
marcano, em 4,16-30, 5,1-11 e 19,1-28. Mas intervenções mais maci-
ças são discerníveis em 6,20 e 8,3 (“pequeno inciso”) e entre 9,51 e
18,14 (“grande inciso”); esta última coincide com quase a totalidade
da viagem a Jerusalém.
A recepção do relato marcano se acompanha de um trabalho
de reescritura que, sem alterar o texto emprestado, o melhora aos
olhos de Lucas.

—‫ ־‬O grego de Marcos é retocado. As cascatas de "logo, imediatamen-


te” ou “de novo” são evitadas (comparar, p. ex., Mc 1,28-31 e Lc
4,37-39). O estilo é mais leve (Lc 3,16 escreve “vem aquele que é
mais forte do que eu” lá onde Mc 1,7 diz “Depois de mim vem o

2 Ver acima p. 16-22; 25-30.

115
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Materiais de Marcos em Lucas Principais in terp o la te s íucanas


Marcos 1,1-15 = Lucas 3,1—4,15 4,16-30 (em Nazaré)
Marcos 1,21-3,19 = Lucas 4,31- 5.1- 11 (pesca abundante)
44; 5,12-6,19 6,20-8,3 (pequeno inciso)
Marcos 4,1-6,44 = Lucas 9,51-18,14 (grande inciso)
8,4-9,17 19.1- 28
Marcos 8,27-9,40 = Lucas 9,18-50 (Zaqueu, parábola)
Marcos 10,13-13,32 = Lucas
18,15-43; 19,29-21,33
Marcos 14,1-16,8 = Lucas
22,1-24,12

que é mais forte do que eu”). Os termos aramaicos são evitados


(Boanerges, Getsêmani, Gólgota) e também os latinismos (ο κή
νσος = census de Mc 12,14). A parataxe de Marcos (cadeias de καί)
é modificada pelo emprego de subordinadas, e para variar a sintaxe
da frase Lucas recorre facilmente às expressões participiais. Resul-
tado: uma elegância estilística implantada à custa de uma perda de
espontaneidade lingüística.
— Lucas é partidário de maior precisão: ele se recusa a chamar de mar
(de Tiberíades) o que não passa de um lago; ele deixa claro, em 6,6,
que a cura do homem de mão seca ocorreu em “um outro sábado”
(Mc 3,1: "de novo”).
— Lucas reorganiza, às vezes, o enredo de Marcos, seja para simpli-
ficá-lo (suprime os entrelaçamentos da negação de Pedro com o
processo de Jesus no Sinédrio: Mc 14,54.66-72 // Lc 22,54-62),
seja para obter um melhor efeito pragmático (transfere a cura da
sogra de Simão para antes da vocação de Simão e seus companhei-
ros para segui-lo: Mc l,16-3l//Lc 4,38-5,11).
— As passagens julgadas chocantes são eliminadas. Lucas não gosta,
visivelmente, do que diminui a imagem dos discípulos: por exem-
pio, quando Jesus chama Pedro de “Satanás” (Mc 8,33), quando
diz que eles vão cair (Mt 14,27) ou quando, pela terceira vez, os
encontra dormindo no Getsêmani (Mc 14,40 s.). A cristologia lu-
cana também não suporta que o Senhor seja descrito como áspero,
irritado ou fraco; daí a eliminação de Marcos 1,41 (piedade), 1,43
(irritação), 4,39 (ameaça), 10,14a (indignação), 11,15b (cólera),
11,20-25 (maldição), 13,32 (ignorância), 14,33 s. (tristeza), 15,34
(sentimento de abandono).

116
O evangelho segundo Lucas

3.2. A retomada da fonte dos logia (Q)


Calcula-se que pouco mais de 20% do evangelho (235 versículos)
seja matéria narrativa extraída de fonte Q. Lucas procede da mesma
forma que fez com Marcos: inserção por blocos e reformulação se
necessária. Os logia de Q são alojados no pequeno e no grande inci-
so, onde se misturam com textos próprios do terceiro evangelho; são
identificados essencialmente em 3,7-4,13, 6,20-7,35, 9,51-13,35.
Essa justaposição de blocos marcanos e blocos Q provocou a apari-
ção de duplicatas: dois relatos de envio de discípulos (9,1-6 segundo
Mc; 10,1-16 segundo Q) ou dois discursos escatológicos (17,20-37
segundo Q; 21,5-33 segundo Mc).

3.3. A tradição própria de Lucas


Abstração feita dos empréstimos de Marcos e de Q, uma parte im-
portante do texto (quase 45%) pertence apenas ao terceiro evange-
lho: cerca de 550 versículos. A lista (não exaustiva) é impressionante:
— o evangelho da infância (1-2);
— a genealogia de Jesus (3,23-38);
— a pregação inaugural em Nazaré (4,16-30);
— um grupo de parábolas (o samaritano, o amigo importuno,
o homem rico, a figueira, a dracma perdida, o filho perdido,
o rico e Lázaro, o fariseu e o coletor de impostos etc.);
— um grupo de relatos de milagres (a pesca abundante, a res-
surreição do filho da viúva de Naim, a mulher encurvada,
os dez leprosos etc.);
— fragmentos da Paixão (22,28-32; 23,6-12; 23,39-43);
— relatos pascais (24,13-52).
Essas passagens são reagrupadas e combinadas com as herda-
das da fonte Q, e nem sempre é fácil distinguir umas das outras.
Esse emaranhado de materiais de Q e da produção própria de Lucas
levou B. H. Streeter a formular a hipótese de um proto-Lucas con-
temporâneo do evangelho de Marcos, que o evangelista teria com-
binado, secundariamente, com Marcos para compor o texto que

117
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

conhecemos3. Em apoio dessa hipótese pode-se invocar o fato de


que algumas perícopes marcanas faltam quando Lucas prefere um
equivalente de outras tradições. Exemplos: a pregação em Nazaré
(Lc 4,16-30 em lugar de Mc 6,1-6); a unção de Jesus (Lc 7,36-50 em
lugar de Mc 14,3-9); o maior mandamento (Lc 10,35-37 em lugar de
Mc 12,28-31). Contra a tese de Streeter, constata-se, entretanto,
que o “proto-Lucas”: a) não apresenta nenhuma homogeneidade
literária ou teológica; b) não denota nenhum princípio de organiza-
ção do material fora de Marcos e Q; c) não oferece nenhum critério
estilístico apto a identificá-lo.
A mesma dificuldade prejudica a hipótese de uma “fonte L’ (Sonder-
quelle lucana), hebraizante, que teria servido de trama para o terceiro
evangelho: 4,30; 6,12-16.20-49; 7,1-8,3; 9,51-18,14; 19,1-28; 22,14-
24,53 (J. Jeremias, E Rehkopf E. Schweizwer)4. Parece bem mais ve-
rossímil que Lucas tenha integrado no enredo marcano um abundante
material próprio: prova disso é o espaçamento entre os três anúncios
dapaixão-ressurreição, regularem Marcos (8,31; 9,31; 10,32-34), mas
aumentado em Lucas pela contribuição de relatos de outra proveniên-
cia (Lc 9,22; 9,43 s.; 18,31-33). Lucas, portanto, trabalhou baseado
em duas fontes escritas (Marcos e Q), bem como em um tesouro tra-
dicional muito rico que chegou a ele sob forma parcialmente escrita,
parcialmente oral. É provável que para certas seqüências narrativas
(evangelho da infância, paixão) ele tenha se beneficiado de tradições
consistentes já fixadas literariamente (E Rehkopf H. Schürmann).

3.4. A construção da narrativa lucana


A técnica lucana de composição (já foi dito) é oposta à de Mateus,
que reorganiza seu material procedendo a grandes reagrupamentos

3 Burnett H. Streeter, The Four Gospels, London 1924.


4 Joachim JEREMIAS, Die Sprache des Lukasevangeliums, Gottingen, Van-
denhoeck und Ruprecht, 1980; Friedrich REHLOPfi Die lukanische Son-
derquelle, Tübingen, Mohr, 1959; Eduard SCHWEISER, Zur Frage der
Queilenbenutzung durch Lukas, in ID., Neues Testament and Christologie
im Werden, Gottingen, Vandenhoeck umd Ruprecht, 1982, 33-85.

118
O evangelho segundo Lucas

temáticos. Inserindo suas tradições em blocos compactos, Lucas


imprime sua interpretação tecendo relações entre as pequenas uni-
dades herdadas. Essa construção da narração opera mediante qua-
tro procedimentos, pode-se dizer, estruturais: o papel programático,
a simetria, a contextualização e o fio temático.

O popel programático
O autor confere a certas perícopes um papel programático para
a sequência da narração. Um exemplo é o episódio da pregação de
Jesus em Nazaré (4,16-30), bastante ampliado a partir do relato
de Marcos 6,1-6. Todo o programa cristológico de Lucas está con-
densado nesses versículos: a proclamação messiânica está apoiada
nas Escrituras (vv. 17-21); a evangelização dos pobres e a liberta-
ção dos cativos anunciam a dimensão ética do Evangelho lucano
(vv. 18 s.); o exemplo da viúva de Sarepta e de Naamã antecipa a
eleição dos pagãos (vv. 25-27); a rejeição de Jesus (“nenhum pro-
feta é acolhido em sua pátria”) prefigura a Paixão (vv. 28 s.); sua
maneira de escapar da multidão ilustra sua soberania em face da
hostilidade (v. 30). Um outro enunciado de cristologia se encon-
tra, em miniatura, no relato da transfiguração (9,28-36), da qual
o evangelista faz uma revelação oculta da glória do Filho antes de
ele subir para Jerusalém (9,31; c f 9,51). Da mesma forma, o rela-
to dos peregrinos de Emaús (24,13-35) expõe, narrativamente, a
conformidade da morte do Messias com a Sagrada Escritura e as
condições de reconhecimento do Ressuscitado. O narrador marca,
assim, sua narração com pontos de referência que balizam a leitura
e orientam o leitor.

A simetria
O gosto pelas construções simétricas se concretiza pela disposição
dos dípticos. O evangelho da infância (Lc 1-2) é construído segundo
esse princípio que põe em dualidade João Batista e Jesus: duas anun-
ciações (1,5-25 e 1,26-56), dois nascimentos (1,57-58 e 2,1-20), duas
circuncisões e duas nominações (1,59-66 e 2,21), duas ações de graça

119
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

(1,67-79 e 2,22-39), duas notícias de crescimento da criança (1,80 e


2,40). O díptico sublinha a continuidade que liga Jesus ao passado de
Israel e afirma, ao mesmo tempo, a superioridade do acontecimento
crístico. Função programática e simetria presidiram também a orga-
nização da sequência de Lucas 10,25-42: o diálogo com o legista (w.
25-28) resume programaticamente a Lei no duplo mandamento de
amor, que é ilustrado, um, pela parábola do samaritano (amor ao pró-
ximo), o outro pelo episódio de Marta e Maria (10,38-42).

A contextualização
O motivo da viagem serve de contexto para a seção do meio do
evangelho (9,51-19,28). Esse contexto é leve. Custa ao leitor identi-
ficar os deslocamentos, a não ser no início da seqüência (9,51-56) e
em algumas notícias esparsas (9,57; 10,38; 13,22; 14,25; 17,11; 19,1).
Manifestamente, esse tema não tem valor documentário, mas inter-
pretativo; é um expediente literário usado pelo narrador para situar
suas tradições sob o emblema de um Jesus que sobe a Jerusalém. O
anúncio que o encima (9,51: “como chegasse o tempo em que ele
ia ser arrebatado [άνάλημψι,ς]”) engloba tanto a subida a Jerusalém
como a elevação na ascensão. Esse modelo cristológico reagrupa
dois traços marcantes: 1) Jesus, a exemplo dos filósofos antigos, dis-
pensa seu ensinamento como mestre itinerante; 2) Jesus é o Mes-
sias destinado a sofrer, mas seu caminho terminará na exaltação do
Ressuscitado.

O fio temático
Lucas tem o hábito de extrair efeitos de sentido ligando, discre-
tamente, várias perícopes por um fio temático. Entre o relato do
batismo e a tentação, ele insere a genealogia de Jesus (2,23-38),
que termina com “filho de Adão, filho de Deus”; nenhuma notícia
redacional explicita a razão disso, mas o leitor é convidado a reatar
a filiação divina proclamada por ocasião do batismo (3,22) à que é
atestada pela genealogia (3,38) e que o diabo põe à prova (4,3.9): na
história de Jesus batizado e tentado se inscreve, deste modo, uma

120
O evangelho segundo Lucas

cristologia do novo Adão. Outro exemplo: a seqüência 7,11-50 rece-


be, como fio condutor, o tema do profeta (cf vv. 16,26,39); o inte-
resse está no reconhecimento de Jesus como verdadeiro profeta. E
o tema do rei que liga a parábola das minas (19,11-28) à entrada de
Jesus em Jerusalém (19,29-40); a menção da realeza, própria de Lu-
cas (19,28.38), é posta a serviço da cristologia: nos dois casos, Jesus
é o rei cuja realeza se dá a conhecer por um caminho de morte, de
exaltação e de volta (19,12).

O prefácio tucano (Lc 1,1-4)


A obra dupla dirigida a Teófilo se abre com um prólogo solene, de uma única frase
(Lc 1,1-4), em que o autor faz a apresentação de seu texto. Lucas se conforma a uma
prática conhecida da cultura greco-romana: os autores de obras históricas ou de tra-
tados científicos conferiam ao seu texto o rótulo de obra literária de caráter público5.
Seguindo a regra, o autor de Lucas-Atos mostra sinteticamente seu programa de his-
toriador: lembra o trabalho de seus predecessores (v. I), indica suas fontes (v. 2), expõe
seus princípios metodológicos (v. 3), dedica sua obra (v. 3) e anuncia sua intenção (v.
4). Esses diferentes pontos se reconhecem no prefácio de G uerra d os ju d e u s , escrita
por Flávio Josefo pouco antes de Lucas-Atos: "A guerra que os judeus acabaram de
fazer contra os romanos é a mais importante não só de todas as de nossa época, mas,
por assim dizer, de todos os conflitos que jamais se manifestaram... Dado que pessoas
que não assistiram ao acontecimento (ΤΓραγμάτα, Lc 1,1) e se limitam a recolher de
fonte oral relatos (δ ιη γ ή μ α τ α , c f Lc 1,1) fantasiosos e contraditórios escrevem a
história com força retórica..., e que assim suas obras comportam, aqui a invenção, lá
o louvor, mas em parte alguma a exatidão (α κ ρ ίβ έ ζ , c f Lc 1,3) exigida pela história,
propus-me redigir seu relato para uso de todos os súditos do império romano... eu, Jo-
sefo..., que no início da guerra combatí pessoalmente contra os romanos e que, forço-
samente, assistí à sucessão dos acontecim entos... Abarco todo esse conjunto de acon-
tecimentos em sete livros, sem deixar àqueles que conhecem os fatos (Τ φ α γ μ α τα )
e tomaram parte na guerra nenhum pretexto de censura ou de acusação, e escreví
(αν‫׳‬α γ ρ α φ 6 ΐ ν ) para aqueles que amam a verdade” (G uerra d os ju d e u s 1,1-3.30). Falta
a dedicatória, mas em compensação o autor se apresenta.

O prólogo lucano é muito rico em indicações sobre a ética do historiador Lucas.


I) A evocação dos esforços d os predecessores (v. I) situa Lucas em uma sucessão e
legitima sua obra, que ele julga mais completa (v. 3). O s “numerosos” que o prece-
deram são somente Marcos e a fonte Q ou ainda outros? Seja como for, os acon-
tecimentos “realizados entre nós” (notar o passivo divino) inscrevem Lucas e seus
predecessores no seio de uma tradição de fé na qual esses acontecimentos consti-
tuem sua identidade.

5 Loveday A L E X A N D E R , T h e P r e fa c e to L u k e 's G o s p e l, C am bridge, C am -


bridge U niversity Press, 1993.

121
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

2) A indicação das fo n te s (v. 2) posiciona o trabalho de Lucas como um trabalho de


historiador à distância dos fatos: ele não pertence à geração das testemunhas ocu-
lares, nem à dos predecessores. Pertence, portanto, à terceira geração cristã.
3) A m eto d o lo g ia (v. 3) adotada concorda com os cânones da historiografia antiga: pre-
cisão, ordenação dos fatos e explicação da origem. Justifica Lucas por este último
traço o seu remonte a um tempo anterior ao do relato de Marcos, ao nascimento de
Jesus (G. Klein)? O estabelecimento de uma ordem, de uma periodização na histó-
ria é, em todo caso, a primeira regra do autor. Lucas afirma ter recolhido, verificado
e controlado a confiabilidade de suas fontes.
4) A ded ica tó ria (v. 3): Teófilo (literalmente: o amigo de Deus) pode ser a figura ima-
ginária do leitor desejado, ou um personagem real, ou um pseudônimo. Se Lucas
se submeteu aos usos socioculturais de seu tempo, trata-se de um personagem in-
fluente do qual espera proteção ou de um mecenas capaz de assegurar a difusão da
obra providenciando cópias (F Bovon).
5) A inten çã o da obra (v. 4) é fortificar a fé dos destinatários, garantindo a solidez e a
confiabilidade dos fatos reportados. Se Lucas se submete ao estilo da historiografia
helênica quanto às modalidades da pesquisa, a finalidade de seu empreendimento o
afilia aos historiadores judeus: a história é testemunha de Deus. Precisão e exaustão na
pesquisa da documentação respondem a uma finalidade catequética e apologética.
O prefácio permite, assim, ao autor de Lucas-Atos, formular sua ambição literária,
precisar sua ética de historiador e enunciar a finalidade teológica de seu empreendí-
mento.

4 . A QUESTÃO DO AUTOR E O MEIO HISTÓRICO DA PRODUÇÃO


Que imagem nos dá o evangelho de seu autor? Embora indicado
por seu “eu” (1,3), seu nome permanece desconhecido; mas é o cos-
tume dos autores bíblicos desaparecer por trás da palavra que anun-
ciam, salvo no caso das cartas. Por seu domínio do grego e seus bons
conhecimentos de retórica (a construção dos discursos dos Atos),
adivinha-se um escritor de boa educação, dotado de formação es-
colar superior.

Lucas: judeu ou grego?


Seu domínio da Bíblia judaica na versão da Septuaginta é notável;
ele conhece também as regras da exegese judaica; a cena da homília
de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,16-30), com a descrição minu-
ciosa do cerimonial de leitura (ver os versículos 16 a 21), atesta uma
informação exata do serviço sinagogal. Todavia, seu conhecimento
dos rituais judaicos antigos é aleatório: o relato da apresentação do
menino Jesus noTemplo (2,22-40) reúne, erroneamente, o ritual de

122
O evangelho segundo Lucas

purificação da mulher que deu à luz, que não precisava da presença


do recém-nascido, e o resgate do primogênito, que não estava liga-
do ao Templo. E incompreensível que um judeu de nascença tenha
cometido esse erro.
Deve-se concluir que Lucas é de origem pagã? Sua excelente prá-
tica do grego da koiné, a língua comum da bacia do Mediterrâneo,
tem frequentemente levado a pensar que ele era grego. Ora, tal fa-
miliaridade com as Escrituras da parte de qualquer um que não as
tivesse longamente freqüentado parece inconcebível. A redação do
evangelho da infância (Lc 1-2), com sua atmosfera muito bíblica,
além de um estilo recheado de vestígios da Septuaginta, só pode ser
atribuída a um escritor totalmente familiarizado com as Escrituras.
A gestão dos semitismos corrobora este ponto de vista: se Lucas
evita os semitismos de Marcos por causa de sua falta de elegância
(comparar, por exemplo, Mc 1,9-11 e Lc 3,21 s.), por outro lado ele
os introduz. Seguindo que regra? O princípio parece ser que ele usa
semitismos desde que lhe pareçam admissíveis, isto é, consagrados
pelo uso da Septuaginta. Assim, todo o Evangelho da infância é re-
digido em “estilo bíblico”. Dessa proximidade com a tradição judaica
pode-se concluir que antes de sua conversão ao cristianismo Lucas,
de origem pagã, se aproximou da Sinagoga a ponto de se tornar pro-
sélito ou temente a Deus (E Bovon)6. Que ele fosse judeu da diás-
pora (J. Jervell)7 é pouco provável, em razão de seu pouco interesse
pelas minúcias dos mandamentos da Lei; a leitura cristológica que
ele faz da Torá remete, antes, à teologia do cristianismo pagão.

A posição tradicional
Mas e a tradição, o que diz? O nome Λουκάς, diminutivo grego de
um nome latino (Lucius?), não é conhecido nem de Marcião (c. 140),
nem de Justino; a opinião de Papias (primeira metade do século 11)
não foi conservada para nós. A primeira atestação data do manus-

6 François BOVON, LÉvangile selon saint Luc 1,1-9,50, Genève, Labor et


Fides, 1991, 27.
7 Jacob JERVELL, The Unknown Paul, Minneapolis, Augsburg, 1984, 13-25.

123
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

crito P75 (175-225) e, na mesma época, do comentário de Ireneu: “E


Lucas, o companheiro de Paulo, consignou em um livro o Evangelho
que Paulo pregava” (Contra os hereges 111,1,1). Uns vinte anos mais
tarde, o cânon de Muratori afirma que “Lucas, o médico, depois da
ascensão de Cristo, como Paulo o levou com ele, à maneira de al-
guém que estuda o direito, escreveu sob seu próprio nome, segundo
o que julgava bom”8. Desde então, a atribuição do evangelho a “Lu-
cas, o médico”, colaborador de Paulo, não varia (Cl 4,14; 2Tm 4,11;
Fm 24). A razão é a seguinte: Lucas é, segundo 2 Timóteo 4,11, o
último colaborador que permaneceu fiel ao apóstolo; ora, essa epís-
tola, redigida, no dizer do autor, em Roma (2 Tm 1,17), se insere pre-
cisamente lá onde termina o relato dos Atos (28,30 s.). Dessa feita,
a comparação desses dois escritos indicava Lucas como o autor de ^
Lucas-Atos. Os prólogos antimarcionitas retratam Lucas como um
sírio de Antioquia, médico, discípulo dos apóstolos e de Paulo, morto
aos 84 anos, na Beócia, depois de ter escrito, na Acaia, o evangelho
e os Atos; mas esses prólogos datam do século II ou do século IV?
Não se sabe.
O texto do evangelho sustenta esses dados tradicionais? Pode-se
inferir do texto de Lucas-Atos uma formação médica do autor? E
verdade que a doença é, às vezes, descrita com precisão (4,38; 5,12;
8,44; 13,11; At 28,9 s.) e que a crítica aos médicos em Marcos 5,26 é
omitida em Lucas 8,43. Mas H. J. Cadbury mostrou que a descrição
das doenças não vai além do que se encontra nos escritores greco-
romanos da época; a Antiguidade, aliás, não tinha uma linguagem
médica específica. Em resumo, a competência médica do autor de
Lucas-Atos é improvável. Quanto à relação de Lucas-Atos com a
teologia paulina, o retrato lucano do apóstolo nos Atos não pleiteia
uma proximidade cronológica do autor com o apóstolo dos gentios9.
As parábolas do filho perdido (15,11-32) ou do fariseu e do coletor de
impostos (18,9-14) denotam uma proximidade com a teologia pauli-
na, mas esta pode ter sido comunicada por via da tradição.

8 Sobre o cânon de Muratori, ver p. 578-583.


9 Ver, mais abaixo, p. 145-146.

124
O evangelho segundo Lucas

Lugar e público visado


Se aceitarmos os dados induzidos pelo próprio escrito, a saber,
que o autor seria um cristão anônimo, de origem não-judaica, mas
muito familiarizado com o judaísmo, suas Escrituras e suas sinago-
gas, que poderemos saber do lugar e da data da redação do evange-
lho? O lugar não é, certamente, a Palestina (o autor conhece mal a
geografia local: c f 4,44 e 17,11). Foram propostas as localidades de
Efeso, Antioquia (por causa de uma menção dos Reconhecimentos
pseudoclementinos 10,71), Acaia (por causa dos prólogos antimarcio-
nistas), Macedonia (porque a primeira das seções dos Atos em que
aparece o “nós” se desenrola aí)10 e Roma (porque os Atos termi-
nam aí). Essa indecisão é reveladora de uma certa universalidade do
autor e de sua obra: o autor de Lucas-Atos é localizável na parte
oriental da bacia mediterrânea, sem que se possa dizer mais do que
isso; seu escrito não é destinado a uma comunidade de contornos
identificáveis (diferentemente de Mateus ou Marcos).
O público ao qual ele destina sua obra se compõe tanto de Igrejas
do Mediterrâneo oriental como de leitores desejosos de se informar
sobre o cristianismo. A tendência manifesta em Lucas de ser apre-
sentador e defensor da fé cristã denota a ambição de visar a uma
audiência grande. Esse público é, seguramente, de cultura grega: o
autor apaga particularidades tipicamente palestinas (comparar Mc
2,4 e Lc 5,19) e substitui fórmulas aramaicas por expressões gregas
(κύριε em lugar de ραββουνί Lc 9,33 / / Mc 9,5; επιστάτης em lugar
de ραββί, Lc 22,42 // Mc 14,36 etc.). Todo um esforço de transcul-
turação é perceptível na reescritura da tradição.

Datação
A datação do evangelho de Lucas é posterior à de Marcos, visto
que Lucas o utiliza. Não deve ser colocada antes de 70, pois Lucas
21,20 faz alusão clara à destruição de Jerusalém, reinterpretando
Marcos 13,14; mesma nota em 19,43 s. e 21,24. A distância toma-

10 Ver mais abaixo, p. 153.

125
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

da pelo autor a respeito da iminência da parusia (Lc 17,20 s.; 19,11;


21,8) aproxima sua escatologia da de Mateus. O início dos anos 80,
entre 80 e 85, convém para a redação do evangelho; uma datação
mais tardia empurraria exageradamente a redação dos Atos. Não
há nenhum clima de perseguição subjacente ao escrito; a teologia do
evangelista reflete a problemática da terceira geração cristã.

5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
O prefácio do evangelho (Lc 1,1-4) anuncia o programa de Lu-
cas: não só ele pretende trabalhar como historiador, como é o único
evangelista a pensar teologicamente o tempo e a fazer da história
um objeto de reflexão teológica.

Lucas historiador
O que interessa a Lucas não é a história profana, mas a história
na qual Deus intervém. Daí seu interesse na ancoragem dos aconte-
cimentos evangélicos, que se concretiza nos famosos sincronismos
de 2,1 s., 3,1 s. e 13,31; designa-se, assim, oesforço de assegurar aos
acontecimentos da história da salvação um marco cronológico em-
prestado da história do império romano. Aos seus olhos, a história de
Deus e a história dos homens não estão divorciadas. Esse cuidado de
historicização se manifesta também em 21,5-11, em que a reescri-
tura do texto de Marcos traduz o cuidado de desligar a queda de
Jerusalém do enredo apocalíptico; conhecendo a catástrofe de 70,
ele cuida de fazer dela um acontecimento da história, sem que seja
confundido com o calendário do fim dos tempos. O fim virá, mas
antes dele a história se desenrola sem que se tenha como prever seu
término (17,20 s.; 19,11; 21,12-33; At 1,6-8). Se Lucas, visivelmente,
leva em consideração a demora da parusia (ver sua correção de Mc
9,1 em 9,27), nem por isso descarta o prazo do retorno de Cristo e
do juízo final. Vigilância e fidelidade ética são exigidas em razão do
juízo (12,35-48.57-59; 13,6-9; 16,19-31 etc.).
Com o evangelho de Lucas surge um interesse novo, alheio tan-
to a Marcos como à fonte dos logia: a preocupação com a história.

126
O evangelho segundo Lucas

Não por desinteresse pelo querigma, nem para substituir uma ver-
dade de fé por uma verdade histórica (R. Bultmann), mas por con-
vicção de que a salvação não se dá fora da história. Lucas partilha
essa convicção com a historiografia veterotestamentária e judaica:
se a história não prova a existência de Deus, serve para reconhecer
suas intervenções. A história se torna, em sua narração, história
da salvação, “com a condição de não se colocar sob essa expres-
são uma instalação do divino na história nem, no outro extremo,
limitar a intervenção de Deus a uma proclamação sem efeito so-
bre os acontecimentos do mundo. Há história de salvação porque
homens, sob a ação da palavra de Deus, provocam uma história e
a vivem” (F Bovon)11. O relato de Lucas convida a uma leitura teo-
lógica da história.

Um calendário da história da salvação


A “ordem” que o evangelista prometeu dar à sua narração (1,3)
se estende à sua leitura da história: Lucas é o teólogo das etapas da
história da salvação. H. Cozelmann descobriu, em 16,16, a chave de
sua periodização da história da salvação12: “A lei e os profetas vão
até João; a partir daí, a boa-nova do Reinado de Deus é anuncia-
da”. Até João, vale o tempo de Israel, que é o tempo da promes-
sa; o Batista, que não tem neste evangelho a função de anunciar o
Reinado (diferente de Mt 3,2), depende dos tempos antigos como
pregador do juízo. Com Jesus se abre o período do Reinado anun-
ciado e manifestado, quando o tempo se “cumpre” (4,17-21; 18,31;
22,37; 24,25-27). O tempo da salvação é marcado pela retirada de
Satã, que se afasta de Jesus, depois da tentação (4,13), para voltar
por intermédio da traição de Judas (22,3). “Eu via Satanás cair do
céu como um relâmpago” (10,18), diz Jesus aos discípulos que lhe
contam seus exorcismos.

11 François BOVON, Luc le théologien. Vint-cinq ans de recherche (1950-


1975), Genève, Labor et Fides, 1988.
12 Hans CONZELMANN, Die Mitte derZeit, Tübingen, Mohr,51964 [1. ed.
1954],

127
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

O calendário lucano comporta, segundo Conzelman, três perfo-


dos: o tempo de Israel; o tempo de Jesus, que é o “meio do tempo”; o
tempo da Igreja. A vinda de João Batista significa o fim do tempo de
Israel; Pentecostes, quando os apóstolos recebem o Espírito, inaugura
o tempo da Igreja. Se a estrutura é inegável, é de duvidar que o tempo
de Jesus e o da Igreja sejam teologicamente tão nitidamente separados
no pensamento de Lucas. O livro dos Atos afirma abundantemente a
continuidade. Os apóstolos, testemunhas legítimas da revelação crís-
tica (At 1,21 s.), são os continuadores da obra de Jesus pela pregação e
pela atividade milagrosa. Entre Jesus e a Igreja, a ascensão (Lc 24,50-
53; At 1,6-11) funciona como gonzo e não como ruptura. O tempo de
Jesus, para Lucas, tem a condição de tempo da salvação, o tempo em
que nasce a Igreja e ao qual ela deve constantemente se referir. Nessa
perspectiva, prefere-se, às vezes, considerar uma divisão da história
da salvação em dois períodos (G. Schneider)13.
A distribuição das intervenções do Espírito é representativa desse
enredo histórico-salutar. O Espírito é concedido a algumas figuras do
Evangelho da infância (1,13-17.35.41.67; 2,25-28), mas desde que Je-
sus é batizado (3,22) ele se torna seu único portador. Desde sua vinda,
o Filho concentra em si toda a inspiração celeste disponível: moção do
Espírito, visão, êxtase, intervenção angélica. Esse poder, ele promete
doar a seus discípulos depois de seu desaparecimento (Lc 24,49; At
1,8), o que será realizado em Pentecostes. Desde então, os apóstolos,
depois os evangelistas (At 8), depois os crentes de Samaria (At 8,15-
17), depois os vindos do paganismo (At 10,44-48) receberão o Espírito
Santo em partilha. Mas note-se que a recepção do Espírito é constan-
temente ligada a Jesus, à acolhida do Evangelho, ao batismo de Jesus.
O sinal da salvação não é dado sem um retorno ao tempo fundador.

A cristologia
Os retoques dados por Lucas no retrato marcano de Jesus trazem
algo de hierático: os afetos negativos são suprimidos, todo traço de

13
Gerhard SCHNEIDER, Lukas, Theologe der Heilsgeschchte, Kõnigstein,
Hanstein, 1985, 35-60.
O evangelho segundo Lucas

impertinência a seu respeito é apagado. O Jesus de Lucas é um ho-


mem de compaixão, generoso com gestos de cura: a ressurreição de
um jovem em Nain (7,11-17) é motivada pela “compaixão” sentida
por Jesus pela mãe viúva, e depois de ter despertado o rapaz Jesus
“ entregou-o à sua mãe”.
A reescritura da Paixão é sintomática dos tons da cristologia lu-
cana. Jesus não morre com o grito de abandono de Marcos 15,34,
mas com a declaração confiante: “Pai, em tuas mãos entrego meu
espírito” (23,46). No Getsêmani, sua oração angustiada recebe o
socorro de um anjo para sustentá-lo (22,43). Ele cura a orelha do
homem ferido por um discípulo, por ocasião da prisão (22,51), e ao
malfeitor crucificado que lhe implora responde: “hoje, estarás co-
migo no paraíso” (23,43). A presença de sua declaração na cruz
(23,34): “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, é incer-
ta na tradição manuscrita14; todavia, ela se integra perfeitamente na
imagem lucana de um Cristo que, morrendo mártir, não abandona
nada da dignidade e da compaixão do Salvador.
Jesus é o Messias que Deus envia a seu povo Israel para salvá-lo:
o evangelho da infância significa isso claramente no limiar do relato
(1,32 s.), e o profeta Simeão pode dizer que “meus olhos viram a tua
salvação que preparastes em face de todos os povos, luz para a reve-
lação aos pagãos e glória de Israel teu povo” (2,30-32). A dimensão
universal da salvação em Cristo já desponta; ela só se tornará efetiva
nos Atos, com a rejeição de Jesus e de seus enviados. Jesus veio
reunir os filhos de Israel (13,34). A historicização consequente do
evangelista o faz restringir a atividade de Jesus estritamente ao povo
eleito (com exceção de 8,26-39): o episódio da mulher siro-fenícia
de Marcos 7,24-30 não tem equivalente nele, e a cura do servo do
centurião de Cafarnaum se faz a distância (comparar Lc 7,1-10 e Mt
8,5-13). Lucas não cessa de afirmar que a vinda do Messias satisfaz
as promessas feitas a Israel e se inscreve na espera despertada pelos
profetas. Mas logo de início ele põe na boca de Simeão a predição

14 O versículo é ausente em vários manuscritos antigos: P75, Vaticanus e Có-


dice de Beza.

129
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

de que Jesus será “sinal de contradição” e fautor de cisão no seio do


povo escolhido (2,34).

A eclesiologia
Mais do que Marcos e do que Mateus, Lucas faz questão de
pôr em evidência que Jesus atrai as multidões e que um núme-
ro importante de homens e mulheres se apega a ele. Em 6,7-19,
uma “grande multidão de seus discípulos” e “uma grande massa de
povo” se reúnem à sua volta. Em 8,1-3, os Doze o acompanham e
também um grande número de mulheres que tinham sido curadas
de espíritos maus e de doenças. A palavra e, sobretudo, a com-
paixão de Jesus mobilizam constantemente uma comunidade em
torno dele.
Desse afluxo lucano distinguem-se os Doze como aqueles que Je-
sus chama e aos quais confere o nome de apóstolos (6,13). As cenas
de vocação, sumárias em Marcos (1,16-20; 2,3-17), são ampliadas
pelo milagre da pesca abundante (5,1-11) e pela indicação do fim para
o qual concorre a vocação: a conversão (5,32). A obra missionária
para a qual são convidados os apóstolos é, assim, claramente deli-
neada; eles a exercerão efetivamente no livro dos Atos (At 1-15).
Instalados, no relato, em um círculo próximo do mestre, destinados
a perpetuar sua ação depois de seu desaparecimento, os Doze se be-
neficiam de um retrato retocado em relação a Marcos: sua lentidão
em compreender (Mc 8,22-26) é omitida; Lucas suprime a alterca-
ção entre Pedro e Jesus em seguida ao primeiro anúncio da Paixão
(9,18-22 / / Mc 8,27-33) e suaviza a incompreensão dos discípulos
(9,43-50 / / Mc 9,30-37); o anúncio de sua dispersão por ocasião da
paixão é substituída pela promessa de sua associação com Cristo
no Reino (22,28-30); sua fuga por ocasião da prisão é omitida. Es-
ses múltiplos retoques correspondem à historicização da figura dos
Doze, erigidos em testemunhas de um tempo único e passado, o
tempo de Jesus.
A pregação de Jesus, que reúne a multidão, é o anúncio do Reina-
do de Deus (4,43; 8,1; 9,11), cuja presença está ligada à sua pessoa.

130
O evangelho segundo Lucas

Ao pedido dos fariseus de sinais da vinda do Reinado, Jesus responde


que ele não vem como um fenômeno observável a distância: “Com
efeito, o Reinado de Deus está entre vós/em vós” (17, 21,6ντος ύμίν,
oferece os dois sentidos). Objeto da pregação de Jesus, o Reinado
de Deus será igualmente pregado pelos apóstolos (At 8,12) e por
Paulo (At 14,22; 20,25; 28,23.31); essa pregação, animada pelo Es-
pírito, assegurará a presença de Jesus na Igreja.

Uma ética forte


De todos os evangelistas, Lucas é o que (sob a influência de Q
e de suas tradições próprias) insiste mais nas implicações éticas
da fé. O fazer-se discípulo não se pode conceber sem uma trans-
formação da vida. A exigência de conversão repercute ao longo
de toda a sua narração (3,3.8; 5,32; 10,13; 11,32; 13,3.5; 15,7.10;
16,30; 17,3 s.; 24,47). A cura dos dez leprosos (17,11-17) e o en-
contro com Zaqueu (19,1-10) ilustram bem o que Lucas entende
por conversão: um reconhecimento ativo da graça de Deus e uma
mudança de comportamento em proveito da justiça. A perspecti-
va do julgamento escatológico intensifica esse apelo a praticar as
obras de justiça.
No programa ético lucano, o componente socioeconômico rece-
be um papel predominante. O uso correto dos bens é visivelmente
um problema central para Lucas (3,11; 12,13-34; 16,1-31; 21,1-4). O
discurso na planície se abre com a felicidade prometida aos pobres e
a maldição dos ricos (6,20.24 s.). O apelo ao seguimento vai a par do
abandono dos bens (5,11.28; 9,3; 10,4; 18,28). “Do mesmo modo,
qualquer um de vós que não renuncia a tudo o que lhe pertence não
pode ser meu discípulo” (14,33). Identifica-se, no evangelho, a valo-
rização de tradições ebionitas (1,46-55; 6,20-26; 16,19-26), ligadas à
espera de uma inversão escatológica dos valores, que o evangelista
integrou em sua ética da conversão. Com a ruptura dos laços fami-
liares e a aceitação do sofrimento, a renúncia dos bens inscreve-se na
norma do seguimento. Não é difícil de pressentir, nessa insistência, a
preocupação de Lucas de se dirigir a uma cristandade rica, ou melhor,
de interpelar os ricos entre a audiência cristã a que visa sua obra.

131
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Um outro traço singulariza a ética lucana: a oração. A cada etapa


importante de seu ministério, Jesus ora: em seu batismo, antes de
escolher os apóstolos, antes da profissão de fé de Pedro, por oca-
sião da transfiguração, naagoniaena cruz (3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28;
10,21; 11,1; 22,31.39 s.; 23,34.46). A parênese sobre a oração insiste
ao mesmo tempo na confiança na bondade do Pai e na necessidade
de orar sem cessar (11,1-13; 18,1-14). Orar sem descanso revela-se
uma necessidade para viver o tempo da Igreja, que, segundo a con-
cepção lucana da história, é chamada a durar muito tempo.

6 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
Uma intenção eclesiológica. Ph. Vielhauer e H. Conzelmann ti-
nham compreendido o desenvolvimento da história da salvação, em
Lucas, como uma resposta ao problema levantado pela demora da
parusia. A tendência hoje é pepsar que Lucas estava menos preo-
cupado com a demora do fim dos tempos do que com o cuidado de
ligar o tempo da Igreja ao tempo de Jesus (J. Fitzmyer)15. A inten-
ção eclesiológica do evangelista emerge mais fortemente. De vez, a
relação entre o tempo da Igreja e o tempo de Jesus revela-se menos
marcado pela separação do que pela continuidade.
Os ecos do Antigo Testamento. Uma leitura tipológica do evange-
lho, atenta aos ecos do Antigo Testamento no texto lucano, iden-
tifica a presença de traços proféticos, ou do êxodo, na cristologia.
Especialmente o relato da viagem parece configurar Cristo como
o último profeta, um profeta como Moisés (Ex 18,15.18), rejeitado
pelo povo segundo a tradição deuteronomista (D. P Moessner)16.
O status da Lei. A validade da Lei em regime cristão precisa ser
esclarecida: aos olhos de Lucas ela é revogada? Ou reduzida à lei
moral? Ou Lucas considera a aplicação da Lei ritual aos judeu-cris-

15 Joseph A. FITZMYER, Luke the Theologien. Aspects of this Teaching,


New York, Paulist Press, 1989.
16 David P MOESSNER, Lord o f the Banquet. The Literary and Theological
Significance of the Lukan Travel Narrative, Harrisburg, Trinity Press Inter-
national, 21998.

132
O evangelho segundo Lucas

tãos e a lei moral aos pagãos-cristãos? O desafio é também obter


uma imagem mais nítida do contexto sócio-religioso do autor, entre
judaísmo e paganismo (M. Klinghardt, K. Saio)17.
O papel das mulheres. A importância dada à presença das mulhe-
res em Lucas e Atos interessa à teologia feminista, mas também à
história sociológica do cristianismo primitivo18. E interessante pes-
quisar em que medida essa insistência corresponde a um papel ativo
das mulheres na cristandade lucana.

7 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BOVON, François. LEvangile selon saint Luc. Genève, Labor et Fides,
1991, v. 1: 1,1-9,50; 1996, v. 2: 9,51-14,35; 2000, v. 3: 15,1-19,27
(CNT 3a, 3b, 3c).
LEPLATTENN1ER, Ch. Lecture de 1' Évangile de Luc. Paris, Desclée,
1982.
ERNSTj Josef Das Evangelium nach Lukas. Regensburg, Pustet, 1977
(RNT).
F1TZMYER, Joseph A. The Gospel According to Luke. Garden City, Dou-
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JOHNSON, Luke 1. The Gospel o f Luke. Collegeville, MN, The Liturgical
Press, 1991 (Sacra Pagina 3).
SCHNEIDER, Gerhard. Das Evangelium nach Lukas. Gütersloh/Wurzburg,
Mohn/Echter Verlag,21984 (OTKNT 3/1-2). 2 v.

17 Matthias KLINGHARDT, Gezets und Volk Gottes. Das lukanische Ver-


standnis des Gesetzes nach Herkunft, Funktion und seinem Ort in der
Geschichte des Urchristentums, Tübingen, Mohr, I988; Lkaervo SALO,
Luke’s Treatment o f the Law. A Redaction-Critical Investigation, Helsinki,
SuomalainemTiedeakatemia, 1991; ver também François BOVON, LaLoi
dans l’oeuvre de Luc, in Camille FOCANT (éd.), La Loi dans I'un et I’autre
Testament, Paris, Cerf I997, 206-225.
18 Ben WITHERINGTON III, Women in the Earliest Churches, Cambridge,
Cambridge University Press, 1988, 129-157.

133
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. Gottingen, Vanden-


hoeck und Ruprecht, 1982 (NTD 3).
SCHURMANN, Heinz. Das Lukasevangelium. Freiburg, Herder, 1969, v.
1: Lc 1,1-9,50; 1994, v. 2/1: Lc 9,51-11,54 (HThKNT 3).

Leitura prioritária
BOVON, François. Luc: portrait et projet. In: Loeuvre de Luc. Paris, Cerf,
1987, p. 15-27 (LeDiv 130).
ALETTI, Jean-Noèl. Lart de raconter Jésus Christ. Paris, Seuil, 1989 (Pa-
role de Dieu).

História da pesquisa
BOVON, François. Luc le théologien. Vingt-cinq ans de recherche (1950-
1975). Genève, Labor et Fides, 21988 (Monde de Ia Bible 5).
--------- . Etudes lucaniennes. Retrospective et prospective. RThPh 125
(1993) 113-135.

Bibliografia exaustiva
VAN SEGBROECK, Frans. The Gospel o f Luke: a Cumulative Bibliography
1973-1988. Leuven, Leuven University Press, 1989 (BEThL 88).

Estudos particulares
BOVON, François. Loeuvre de Luc. Paris, CerF 1987 (LeDiv 130).
BUSSE, Ulrich. Die Wunder des Propheten Jesu. Stuttgart, Katholisches
Biblewerk, 1979 (fzb24).
CONZELMANN, Hans. Die Mitte derZeit. Tübingen, Mohr, *1964 (1. ed.
1954) (BHTh 17).
GEORGE, Augustin. Etudes sur 1' ceuvre de Luc. Paris, Galbalda, 1978
(SBi).
HORN, Friedrich-Wilhem. Claube undHandeln in der Theologie des Lukas.
Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1983 (GTA 26).

134
O evangelho segundo Lucas

MOESSNER, David P Lord o f the Banquet. The Literary and Theological


Significance of the Lukan Travel Narrative. Harrisburg, Trinity Press
International,21998.
NE1RYNCK, Frans (éd.). LEvangile de Luc. Problèmes littéraires et théo-
logiques. Gembloux, Duculot, 1978 (BET11L32).
STEGEMANN, Wolfgang. Zwischen Synagoge und Obrigkeit. Zur histori-
schen Situation der lukanischen Schriften. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1991 (FRLANT 152).
TANNEHILL, Robert C. The Narrative Unity o f Luke-Acts. A Literary
Interpretation. Philadelphia, Fortress Press, 1986. v. 1: The Gospel
According to Luke.

135
CAPÍTULO

5
Os Atos dos apóstolos
Daniel Marguerat

O livro dos Atos é único em seu gênero no Novo Testamento:


nem evangelho, nem carta, nem escrito profético, esse escrito conta
o desenvolvimento da primeira cristandade no mundo após a mor-
te e a ressurreição de Jesus. Escrever uma história dos apóstolos
depois da história de Jesus é um gesto único na Antiguidade cristã:
ninguém o fizera antes de Lucas e ninguém o repetirá depois dele.
Mas essa novidade literária traduz uma mudança de paradigma teo-
lógico: o agir de Cristo prossegue por intermédio de suas testemu-
nhas e deve ser contado como uma continuação do Evangelho. A
decisão teológica é de peso considerável, visto que a revelação não
se limita mais à vida de Jesus, mas engloba, doravante, a história das
testemunhas. Com os Atos, o Evangelho faz história.

1. U m a c o n t i n u a ç ã o d o e v a n g e l h o d e L u c a s
O livro dos Atos se apresenta como uma continuação do evange-
lho de Lucas. Já ressaltamos que a homogeneidade literária e teológi-
ca pleiteia a unidade do autor1. Além do fato de a narração de Atos se
iniciar onde terminou o evangelho, isto é, na ascensão (Lc 24; At 1),
um indício literário vem confirmar a continuidade: Atos 1,1 retoma,

1 Ver p. 107-110.

137
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

como eco, a dedicatória a Teófilo, inscrevendo este novo relato na


sequência do “primeiro livro”, que é o evangelho: “Eu consagrei meu
primeiro livro, ó Teófilo, a tudo o que Jesus fez e ensinou...”. Na
mente de seu autor, Lucas-Atos constitui uma única obra.
Os dois painéis da obra lucana se articulam em torno da Ascen-
são de Jesus, narrada sob duas formas diferentes (Lc 24,50-53; At
1,6-11). Essa divergência levou os estudiosos a indagar se o escrito
de Lucas não teria sido cindido, posteriormente, em duas partes,
camuflando-se o corte com interpolates. A verdade é o contrário:
separação de um texto longo em dois livros é uma prática conhecida
da Antiguidade, de que dá testemunho a Septuaginta (o livro dos
Reis e o livro dos Macabeus). Por razões práticas, quanto ao tama-
nho do manuscrito, o autor quis cindir sua obra em duas partes de
igual extensão, mas a escolha da cisão não foi deixada ao acaso: a
Ascensão significa ao mesmo tempo o apogeu do senhorio de Jesus
e a instauração de sua ausência. A repetição desse relato, que faz
a solda entre os dois painéis da obra, permite ao autor propor uma
dupla leitura: Lucas 24,50-53 vê a Ascensão como a conclusão da
atividade de Jesus, ao passo que Atos 1,6-11 a concebe como uma
abertura para o tempo do testemunho.
O cânon do Novo Testamento apresenta, assim, em duas partes
separadas pelo evangelho de João, uma obra que o autor quis contí-
nua. Essa separação é devida ao processo de canonização, desigual
no tratamento dos evangelhos e dos Atos: o agrupamento dos qua-
tro evangelhos, de autoridade desde cedo reconhecida, precedeu a
recepção canônica dos Atos. O lugar dado aos Atos, antes das car-
tas paulinas, fornece a estas um contexto narrativo.

A intitulação “Atos de apóstolos” (Πράξεις αποστόλων) se tornara popular,


desde o fim do século II, com Ireneu (Contra as heresias III 13,3), ao lado de ou-
tros títulos (Atos dos apóstolos, Atos dos santos apóstolos etc.). Essa intitula-
ção assimila o relato aos escritos greco-romanos que engrandecem a carreira
de homens célebres (Πράξεις ou Acta). Ela não provém de Lucas, que não teria
certamente aprovado a adição "de apóstolos”; em sua concepção, com efeito,
só os Doze têm a honra desse título reservado aos companheiros do Jesus ter-
restre (1,21 s.); Paulo é privado dele (salvo em 14,4.14), embora se torne, desde

138
Os A tos dos apóstolos

o capítulo 13, o herói principal do relato. O título conservado reflete o uso do


termo “apóstolo” tal como se aclimatou na Igreja pós-apostólica, apropriado
tanto a Pedro como a Paulo, as duas figuras principais do livro.

Um relato de origem
Identificar o gênero literário a que se afilia Lucas-Atos é uma
empresa difícil, para a qual a pesquisa não oferece solução definiti-
va. Foi proposto que se visse em Lucas e Atos uma biografia mo-
delada segundo as Vidas de filósofos, seguida da história dos suces-
sores (Ch. Talbert)2, mas a Antiguidade não conhece, realmente,
qualquer relato da atividade dos sucessores de um mestre (se é que
os apóstolos possam ser qualificados como tais). Os Atos têm sido
assimilados à historiografia apologética ilustrada, na época helenísti-
ca, pelas obras de Manethon, Berossos e, sobretudo, Flávio Josefo,
cujo intuito é expor a história de um povo ou de uma cultura para
preservar sua memória (G. Sterling)3. Lucas é, em todo caso, o pri-
meiro, na Antiguidade, a apresentar um movimento religioso por
meio de um relato histórico. Sublinhou-se também a semelhança
que os Atos de Lucas e os Atos apócrifos de apóstolos alimentam
com o romance grego; mas a vontade do autor de fazer obra histo-
riográfica é incontestável.
Vê-se claramente que o evangelho e os Atos não derivam do mes-
mo gênero literário. Ao soldar a história dos apóstolos à de Jesus,
Lucas produziu um escrito ligado, ao mesmo tempo, à biografia — o
evangelho — e ao livro histórico — Atos. A literatura judaica ou hele-
nística não apresenta nada equivalente a esse gênero misto, mas é ver-
dade que, na época, a fronteira entre biografia e história era fluida.
Forçoso, portanto, é reconhecer que a intenção de Lucas estoura
os gêneros literários disponíveis. Seus “Atos dos apóstolos” contam

2 Charles H. TALBERT, Literary Patterns. Theological Themes and the


Genre o f Luke-Acts, Missoula, Scholars Press, 1974, 125-140.
3 Gregory E. STERLING, Historiography and Self-Definition. Josephos,
Luke-Acts and Apologetic Historiography, Leiden, Brill, 1992.

139
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

uma história (intenção historiográfica) com um gosto pronunciado


pela escrita romanesca. E por isso que H. Conzelmann propôs a eti-
queta ampla “monografia histórica”4. Os livros históricos da Septua-
ginta apresentam a analogia mais próxima. Quanto à sua intenção,
os Atos se assemelham aos relatos de origem contidos na Bíblia he-
braica: história de Adão e Eva (Gn 2-3), de Caim e Abel (Gn 4),
da vocação de Abraão (Gn 12), da travessia do mar dos Juncos (Ex
14) etc. Lucas pretende com sua obra oferecer à cristandade de seu
tempo um relato de origem que lhe permita fixar sua identidade (D.
Marguerat)5.

2 . A p r e s e n t a ç ã o d o l iv r o
Como o evangelho, o relato dos Atos apresenta uma série de ce-
nas (cura, discurso, conflito, deslocamentos etc.). Mas, à diferença
do evangelho, que justapõe pequenas unidades literárias, os episó-
dios são longos, os discursos amplos, as transições bem cuidadas. O
esforço de composição literária é manifesto.

Estrutura
O estilo episódico dos Atos assemelha o relato a uma sucessão de
quadros: mas como é que se articulam os quadros? O papel de pivô
desempenhado pela assembléia de Jerusalém, no capítulo 15, leva a
dividir os Atos em uma primeira parte dedicada à missão junto aos
judeus (1,1-15,35) e uma segunda parte consagrada à evangelização
dos pagãos (15,36-28,31). Prestando atenção nos personagens prin-
cipais do relato, distingue-se um ciclo de Pedro (At 1-12) de um ciclo
de Paulo (At 13-28). Mas a narração se furta a uma organização tão
sistemática.
Acontece que o relato detém, ele mesmo, a chave de sua organi-
zação. Em 1,8, Cristo ressuscitado faz uma promessa a seus discípu-

4 Hans CONZELMANN, Die Apostelgeschichte, Tübingen, Mohr, 1963, 6.


5 Daniel MARGUERAT, La primière histoire du christianisme (Les Actes dês
Apôtres), Paris/Genève, Cerf/Laboret Fides, 1999, 43-63.

140
O s Atos dos apóstolos

ios: “recebereis uma força, a força do Espírito Santo que virá sobre
vós; e sereis então minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a
Judéia e Samaria, até as extremidades da terra”. Essa declaração
encerra, de maneira condensada, o programa dos Atos: o relato
conta como, sob o impulso do Espírito Santo, a palavra do Evange-
Iho se difunde no império romano pela missão cristã; essa difusão é
progressiva, partindo de Jerusalém para atingir a Judéia, a Samaria,
depois, enfim, Roma, aonde chega Paulo acorrentado (At 28). Ora,
esse movimento geográfico tem, ao mesmo tempo, valor teológico:
a Palavra parte de Jerusalém, lugar dos acontecimentos da salvação,
para ganhar a capital do mundo pagão, abrindo aos não-judeus o
acesso ao Deus de Israel. A narração se organiza, assim, seguindo
um plano geográfico, do qual se podem discernir seis etapas.
Primeira etapa: a expectativa do Espírito (1,1-26). Depois do pre-
fácio (1,1-3), o relato da Ascensão fixa a atenção dos discípulos no

Plano dos Atos dos apóstolos


A expectativa do Espírito (1,1-26)
1.1-3 Transição com o evangelho
1,4-11 Ascensão e instrução de Jesus aos Apóstolos
1,12-26 Reconstituição do colégio dos Doze

Jerusalém. A comunidade em torno dos Doze apóstolos (2,1-8,la)


2.1-41 Pentecostes e discurso de Pedro em Jerusalém
2,42-5,42 Vida da comunidade em Jerusalém, conflitos com
o Sinédrio. Primeiro sumário (2,42-47). Cura de
um doente no Templo e discurso de Pedro (3,1-
26). Prisão e comparecimento diante do sinédrio
(4,1-31). Segundo sumário e morte de Ananias
e Safira (4,32-5,11). Terceiro sumário (5,12-16).
Prisão, libertação dos apóstolos e comparecimen-
to diante do Sinédrio (5,17-42)
6.1-6 Instituição dos Sete
6,7-8, la A crise: processo e martírio de Estêvão

De Jerusalém a Antioquia (8 , lb-12,25)


8 , lb-4 Dispersão da Igreja de Jerusalém
8,5-40 Filipe e Pedro na Samaria. Batismo do eunuco
etíope
9.1-31 Conversão de Paulo em Damasco

141
Os Atos dos apóstolos

27.1-44 Viagem para a Itália. O naufrágio.


28.1-10 Acolhida na ilha de Malta
28,11-15 De Malta a Roma
28,16-31 Paulo em Roma: última entrevista com
notáveis judeus

tempo presente (“Homens da Galiléia, por que ficais aí a olhar para


o céu?”, 1,11). Ao grupo dos apóstolos cercado de algumas mulhe-
res (1,12-14), Pedro anuncia a necessidade de preencher a defecção
de Judas; o colégio dos Doze é reconstituído pela eleição de Matias
(1,15-26).
Segunda etapa: a comunidade em torno dos Doze apóstolos (2,1-
8,1a). A vinda do Espírito em Pentecostes (2,1-13) provocou o de-
senvolvimento da comunidade agrupada em torno dos Doze. Três
sumários (2,42-47; 4,32-35; 5,12-16) ressaltam a unanimidade do
grupo, sua exemplar comunhão de bens e a eficácia de sua prática
de cura. A proteção assegurada pelo Espírito Santo chega até a
abater aqueles que ameaçam o ideal comunitário (5,1-11: Ananias
e Safira). Mas esse crescimento maravilhoso da Igreja vai a par de
uma escalada da hostilidade das autoridades judaicas que, da prisão
dos apóstolos e do comparecimento no Sinédrio, atinge o paroxis-
mo no processo e na lapidação de Estêvão, o helenista (6,7-8,1 a).
Terceira etapa: de Jerusalém a Antioquia (8, lb-12,25). A crise de-
sencadeada pela morte de Estêvão provoca a dispersão da Igreja de
Jerusalém (8,lb-4). A Palavra se difunde na Samaria, graças à ativi-
dade evangelizadora de Filipe (8,5-40), depois na costa mediterrâ-
nea com o apóstolo Pedro (9,32-11,18). O encontro entre Pedro e
Cornélio, em Cesaréia (10,1-48), é um ponto alto do livro, pois Pedro
é levado, sob pressão divina, a admitir um pagão na Igreja. O cristia-
nismo reconhece, a partir de então, dois pólos: Jerusalém, onde atua
o colégio dos Doze, conduzido por Pedro; a diáspora, mais precisa-
mente Antioquia, onde, pela primeira vez, os adeptos de Jesus são
chamados de cristãos (Χριστιανοί) (11,26).
Quarta etapa: a primeira viagem missionária junto dos pagãos
(13,1-15,35). Barnabé e Paulo, enviados da Igreja de Antioquia, con-
cretizam a abertura de Pedro junto dos não-judeus, em uma viagem

143
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

missionária a Chipre e à Ásia Menor (At 13-14). A estratégia mis-


sionária é invariável: começa-se por pregar na sinagoga; o auditório
se divide, mas os que se opõem são a maioria; a hostilidade provoca
a partida dos missionários, que deixam atrás de si uma comunida-
de composta de judeus e não-judeus. Uma viravolta decisiva se dá
com a assembléia de Jerusalém (15,1-35), onde a unidade da Igreja
é preservada: a salvação pregada por Barnabé e Paulo sem exigir a
obediência à Lei é ratificada como obra do Espírito; é necessária so-
mente a observância de um mínimo de regras de pureza.
Quinta etapa: Paulo missionário (15,36-21,14). Doravante Paulo
fica em primeiro plano como missionário exemplar. O novo périplo
o conduz à Grécia e a Efeso, onde o Evangelho encontra a filosofia
grega e o sincretismo greco-romano. A pregação de Paulo não cessa
de suscitar a agressividade dos judeus ou a antipatia das multidões,
mas a testemunha de Cristo — libertado milagrosamente da prisão
em Filipos (16,16-40), expulso deTessalônica e Beréia (17,1-15), ridi-
cularizado pelos filósofos de Atenas (17,16-34), denunciado perante
o procônsul de Corinto (18,12-17), ameaçado pelos artesãos de Efe-
so (19,21-40) — retoma sempre novo alento. Uma última viagem de
Paulo a Jerusalém (20,1-21,14) é ocasião do discurso de adeus aos
anciãos de Efeso.
Sexta etapa: o martírio de Paulo. De Jerusalém a Roma (21,15-
28,31). Os oito últimos capítulos do livro são reservados ao martírio
de Paulo: sua prisão no Templo e a ameaça de linchamento (21,15-
36), seu encarceramento em Cesaréia (23,11-26,32), a transferência
para Roma para lá ser julgado pelo imperador (27-28). Essa última
etapa é marcada por discursos nos quais Paulo proclama o Evan-
gelho ao justificar sua conversão e ao se defender da acusação de
infidelidade à Lei: diante do povo de Jerusalém (22,1-21), diante do
Sinédrio (23,6), diante do governador Félix (24,10-21), diante do rei
Agripa (26,2-29). A viagem a Roma comprova a proteção providen-
ciai de que se beneficia o apóstolo (27,1-28,10); ele tem uma última
entrevista com os judeus, que sela o fracasso de Paulo em convencer
o povo de Israel e reconhece que “é aos pagãos que foi enviada esta
salvação de Deus” (28,28).

144
Os A tos dos apóstolos

3 . O MEIO HISTÓRICO DA PRODUÇÃO


A Igreja dos primeiros séculos, ao reconhecer a unidade de autor
de Lucas e Atos, atribuía a obra à pena de “Lucas, o médico nosso
amigo”, o colaborador de Paulo (Cl 4,14; 2Tm 4,11; Fm 24). Essa
atribuição baseia-se na emergência, quatro vezes nos Atos, de se-
qüências redigidas na primeira pessoa do plural: as “seções em nós”
(16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16). Essas quatro seqüências
consistem essencialmente em relatos de viagem; é por isso que, bus-
cando entre os colaboradores de Paulo quem podería ser esse anôni-
mo companheiro de viagem, os Padres atribuíram a Lucas a redação
dessas passagens e, por extensão, da obra toda.

Um cristão da terceira geração


Independentemente de saber quem está na origem das “seções
em nós” (voltaremos a isso mais tarde), o autor do livro dos Atos
não pode ser um companheiro histórico de Paulo. Foi ressaltado, a
propósito do evangelho de Lucas, que a imagem do cristianismo ao
qual ele remete é um cristianismo de terceira geração, próxima das
pastorais6; ora, o discurso de despedida de Paulo oferece a confir-
mação desse estado avançado da cristandade (At 20,25-32). Além
disso, a redação do evangelho de Marcos e a catástrofe do fim do
Templo, em 70, devem estar pressupostos para a redação do tercei-
ro evangelho. No que diz respeito aos Atos, três fatores desempe-
nham um papel determinante na datação:
a) a insistência dos Atos na rejeição do Evangelho pela Sina-
goga não é muito concebível, caso o diálogo entre cristãos
e judeus estivesse ainda vigente no momento da redação
do escrito; ora, o conflito judaísmo/cristianismo se agrava
depois de 70;
b) a abundante utilização do apelativo “os judeus” em senti-
do depreciativo (desde 9,23) implica que judaísmo e cris-
tianismo estejam institucionalmente separados;

6 Ver p. 124-126.

145
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

c)a notável divergência entre o retrato lucano de Paulo e o


pensamento do apóstolo, desenvolvido em suas epístolas,
torna difícil a hipótese de companheirismo, a menos que
se considere que Lucas teria compreendido mal o após-
tolo; em compensação, a tendência da terceira geração
cristã a engrandecer a memória do apóstolo é atestada de
vários lados7.
O livro dos Atos, segunda parte da obra dedicada ao “excelentís-
simoTeófilo” (Lc 1,3; At 1,1), foi redigido simultaneamente ou pouco
depois do evangelho, isto é, entre 80 e 90. O silêncio do autor sobre
a correspondência paulina torna improvável uma datação no fim do
século 1. O cânon das epístolas de Paulo estava, de fato, formado
entre 95 e 100.

O autor e seu público


O autor anônimo de Lucas-Atos é um escritor culto, muito via-
jado, bem informado sobre a topografia do império e sobre suas
instituições. Sua familiaridade com a Bíblia grega (Septuaginta)
leva a pensar que podería ser oriundo do círculo dos tementes a
Deus, aqueles pagãos atraídos pelo judaísmo que viviam na órbita
da Sinagoga8.
Ele pertence à esfera de influência paulina que reagrupa, nos anos
80, os fiéis apegados à memória do apóstolo dos gentios, que preser-
va sua tradição e perpetua sua atividade evangelizadora.
Sua obra é dirigida a leitores cristãos no seio do império, sem que
se possa afiliá-los a uma comunidade precisa; visa, igualmente, a
convencer um público mais amplo, simpatizante do cristianismo, do
sólido fundamento da nova fé, perante o judaísmo, e de sua inocên-
cia em relação às instituições romanas. O lugar da redação situa-se
no circuito mediterrâneo ocidental (Macedonia, Antioquia) ou, tal-
vez, em Roma.

7 Ver abaixo p. 158-161.


8 Ver mais acima. p. 123-124.

146
O s Atos dos apóstolos

4 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Examinaremos aqui o enigma do texto dos Atos, a questão das
fontes de que se serviu o autor e os meios narrativos que empregou.

4.1. O enigma do texto dos Atos


Para estabelecer o texto original de cada livro do Novo Testa-
mento, é preciso fazer uma escolha entre as lições variantes apre-
sentadas pela tradição manuscrita. Ora, o texto dos Atos coloca a
crítica textual diante de uma situação absolutamente particular: os
manuscritos se dividem em duas versões nitidamente diferentes. O
texto alexandrino — adotado pelas traduções modernas — é repre-
sentado por dois papiros importantes do século III (P45, P53) e três
grandes unciais: Vaticanus (B), Sinaítico («), Alexandrinus (A). Uma
outra forma textual, 8,5% mais longa, pode ser identificada em al-
guns manuscritos da versão latina (daí seu nome: texto ocidental),
mas também na versão siríaca, em papiros do fim do século III (P38,
P48) e no Códice de Beza (D)9. No total, mais de seiscentas varian-
tes diferenciam as duas versões. A antiguidade e a grande difusão
desses dois textos levam a indagar qual seria o original.

As múltiplas divergências do texto ocidental em face do texto alexandrino


obedecem a três constantes: a) um esforço de aperfeiçoamento estilístico (ver
12,4 s.); b) a contribuição de informações mais precisas (ver 1ó, 10 s.; 18,2); c)
maior legibilidade do texto pela eliminação de contradições evidentes (ver 3,11;
10,25; 15,34; 16,35-40). O material adicional ocupa, às vezes, versículos intei-
ros (8,37; 9,5; 10,25; 11,2; 19,1.14; 23,24 s.; 24,7; 25,24; 28,29). A diferença
mais notável afeta o decreto apostólico de 15,20.29, que regula a coabitação
na Igreja de cristãos judeus e não-judeus de origem: as quatro regras, ritualistas
segundo o texto alexandrino, recebem no texto ocidental uma nítida inflexão
ética. F Blass, em 1895, tinha defendido uma dupla redação da parte de Lucas,
a primeira sendo a versão ocidental. Caso se adote a teoria de duas edições do
livro dos Atos, podem-se imaginar quatro variantes: 1) Lucas escreveu as duas
versões, abreviando secundariamente um texto longo (daí a versão alexan-

9 Tentativa de reconstituição do texto ocidental em Marie-Émile BOIS-


MARD, Arnaud LAMOUILLE, Le texte occidental des Actes des apôtres,
Paris, Recherche sur les Civilisations, 22000 [1. ed. 1984], 2 v.

147
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

As duas versões do “decreto apostólico” (At 15,27-29)


Texto alexandrino Texto ocidental
(Códice de Beza: D)
"Nós vos enviamos, pois, Judas e Si- “Nós vos enviamos, pois, Judas e Si-
las para vos comunicar de viva voz as las para vos comunicar de viva voz as
mesmas diretivas. O Espírito santo e mesmas diretivas. O Santo Espírito e
nós mesmos decidimos não vos impor nós mesmos decidimos não vos impor
nenhuma outra obrigação a não ser nenhuma outra obrigação a não ser
estas exigências inevitáveis: abster- estas exigências inevitáveis: abster-
vos das carnes de sacrifícios pagãos, vos das carnes de sacrifícios pagãos,
do sangue, dos animais asfixiados, e da do sangue e da imoralidade, e tudo 0
imoralidade. Se evitardes tudo isso com que não quereis que lhes aconteça, não
cuidado, tereis agido bem. Adeus!” 0 façais aos outros. Se evitardes tudo
isso com cuidado, tereis agido bem,
levados pelo Santo Espírito. Adeus!”
drina) ou ampliando, posteriormente, um texto mais conciso (daí a variante
ocidental); 2) um secretário glosa o texto curto original, com base em notas
deixadas pelo autor; 3) o texto ocidental constitui a edição original, do qual $e
faz uma versão abreviada, no século II, para facilitar a difusão; 4) as versões
dos Atos são o resultado de duas revisões, independentes uma da outra, do
texto original de Lucas, hoje perdido.

Uma constatação se impõe: os dois textos podem reivindicar, tan-


to um como o outro, uma grande antiguidade. Mas como explicar
essa concorrência? A teoria de uma dupla edição dos Atos pode se
apoiar na liberdade, reconhecida na Antiguidade, que tinha o autor
de modificar seu texto depois que um escriba o tivesse copiado para
uma primeira difusão10. Mas contra ela opõem-se dois argumentos; a)
todas as variantes do texto ocidental podem se explicar por um de-
sejo de glosar o texto curto, ao passo que não é tão fácil de entender
uma redução do texto longo; b) as glosas do texto ocidental trazem
a marca de uma teologia posterior à de Lucas, a saber: o aumento do
antijudaísmo, a primazia de Pedro e a exaltação do poder do Espírito.
A evolução da tradição manuscrita parece mais conduzir do tex-
to alexandrino para o texto ocidental, e não o inverso. O corte entre

Ver W. A. STRANGE, The Problem o f the Text o f Acts, Cambridge, Cam-


bridge University Press, 1992.

148
O s A tos dos apóstolos

Atos e o evangelho de Lucas, no século 11, inerente ao processo de


canonização, assegurou ao texto dos Atos uma proteção menor do
que a concedida ao texto do evangelho; a liberalização do texto que
se seguiu não foi necessariamente canalizada em uma variante só;
pergunta-se, hoje, se o chamado “texto ocidental" não esconde, an-
tes, uma nebulosa de variantes do texto original (curto) de Lucas,
lreneu, o primeiro a citar Atos (c. 180), baseia-se, ao que parece, em
um texto que conta apenas com alguns traços do texto dito ociden-
tal. O texto glosado pode ter aparecido, desde o século II, a leste do
Império, na Síria por exemplo; isso explicaria sua rápida difusão na
tradição siríaca e no Egito.

4.2. A s fontes dos Atos


Com que documentação trabalhou o autor dos Atos? De que
fontes tomou suas informações? A situação não é, visivelmente,
a mesma que a do evangelho, no qual se notam facilmente as pe-
quenas unidades literárias tradicionais herdadas por Lucas; aqui, o
autor trabalha de maneira diferente, redigindo longas sequências
narrativas em que com dificuldade se consegue distinguir o tradicio-
nal do redacional.
E verdade que a existência mesma de fontes para a história dos
apóstolos foi posta em dúvida: os primeiros cristãos, interessados
em fixar uma tradição querigmática em torno de Cristo, teriam pen-
sado também em preservar a memória dos apóstolos (M. Dibelius)?
A resposta vem das epístolas paulinas: a referência à fé das comu-
nidades e aos apóstolos desempenha nelas um papel tão importante
que faz parte do querigma (lTs 1,8 s.; lCor9,5; 15,5-7; 2Cor 3,1-3;
Rm 1,8). Os relatos sobre os apóstolos e sobre as comunidades por
eles fundadas não são um amontoado de anedotas e lendas tardias;
a Igreja primitiva os conservou-os não por uma preocupação de or-
dem histórica ou biográfica, mas para responder a uma necessidade
teológica e parenética11.

11 A tese de Martin Dibelius contestando a antiguidade das tradições sobre


os apóstolos (DIBELIUS, Stikritisches zur Apostelgeschichte, in Aufsát-

149
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Lucas, grande viajante, certamente recolheu de viva voz tra-


dições locais, como a da conversão do eunuco etíope, na Samaria
(8,26-39), ou a história do mágico Elimas em Chipre (12,4-12). Se
ele era, de fato, macedônio, a figura de Lídia, a comerciante de púr-
pura (16,13-15.40), e a maravilhosa libertação de Paulo e Silas da
prisão (16,16-39) deviam habitar a memória de sua comunidade.
Mas não havería fontes escritas?

Fontes escritas?
A hipótese clássica foi formulada por A. von Harnack (1906-
1908), que reconstruiu três fontes: uma fonte A, conservada em
Jerusalém e Cesaréia (3,1-5,16; 8,5-40; 9,31-11,18; 12,1-23), uma
fonte B de menor valor histórico (2,1-47; 5,17-42) e uma fonte
antioquena (6,1-8,4; 11,19-30; 12,25-15,35)12. Outros propuse-
ram distinguir uma fonte palestina (1,6-2,40; 3,1-4,31; 4,36-5,11,^.
5,17-42; 8,5-40; 9,32-11,18; 12,1-23), uma fonte antioquena de
origem helenística (6,1-8,4; 11,19-30; 15,3-33) e uma fonte paulina
(9,1-30; 13,3-14,28; 15,35-28,31). A dificuldade vem dos critérios
aplicados para reconstruir essas fontes: a afiliação geográfica não
é suficiente para indicar uma fonte; deve-se lhe acrescentar um
critério estilístico. Poder-se-ia invocar o estilo fortemente semítico
dos doze primeiros capítulos dos Atos, mas o argumento não con-
vence: o autor distingue-se por variar os estilos, adotando uma lín-
gua arcaica quando os apóstolos pregam em Jerusalém, ou clara-
mente mais grega quando Paulo se dirige a auditórios cultos. Para
constatá-lo, basta comparar os discursos de Pedro em Pentecostes
(2,14-36), saturados de septuagintismos, com o grego refinado de
Paulo diante dos filósofos de Atenas (17,22-31). Além disso, to-
das as seções de Atos levam as marcas do estilo e do vocabulário

ze zur Apostelgeschichte, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 51968,


9-28) foi refutada por Jacob JERVELL, The Problem ofTradition in Acts,
in Luke and the People o f God, Minneapolis, Augsburg, 1979, 19-39.
n Adolf van HARNACK, Beitàge zur Einleitung in das Newe Testament, Leip-
zig, Hinrichs, 1906, v. 1; 1908, v. 111.

150
Os Atos dos apóstolos

lucano. Conclusão: Lucas recorreu a fontes, mas as reescreveu


inteiramente13.
O fracasso da hipótese documentária denota, na realidade, a ex-
celência do trabalho literário de Lucas, que como bom escritor ca-
mufla seus empréstimos. A recomendação é feita por Luciano de
Samósata, autor, em 166-168, de um manual Como se deve escrevera
história; ele recomenda ao historiador que registre suas informações
em um caderno de notas (υπόμνημα), depois esboce um rascunho
e, enfim, redija o texto definitivo (§ 48). Lucas manifestamente se
conformou ao uso codificado por Luciano: as notas tomadas da fon-
te pelo historiador já estão marcadas por seu estilo, e quando ele
redige, após o rascunho, as características literárias da fonte são ab-
sorvidas por esses sucessivos filtros.

Tradições preexistentes
Embora a identificação segura de documentos anteriores ao tex-
to de Lucas nos escape, alguns fragmentos deixam entrever tradi-
ções preexistentes:
a) listas de nomes (1,13; 6,5; 13,1; 20,4);
b) episódios isolados, como a morte de Judas (1,16-20), a cura
do aleijado na Bela Porta (3,1-10), Ananias e Safira (5,1-11),
a eleição dos Sete (6,1-6) etc.;
c) um ciclo narrativo de Pedro (9,32-11,18; 12,1-7);
d) um itinerário da missão paulina comportando notícias de via-
gem e indicações de etapas, discerníveis por trás dos capítulos
16 a 21; pensou-se em um caderno de viagem ou “diário”;
e) um esquema querigmático presente tanto nos discur-
sos de Pedro (2,22-24.32-36; 3,13-15; 4,10 s.; 5,29-32;
10,37-43) como nos de Paulo (13,23-33): Jesus, que vo-
cês entregaram à morte — Deus o ressuscitou — , é o
Deus de Israel que o exaltou — disso nós todos somos
testemunhas.

13 Jacques DUPONT, Les sources du livre dês Actes. Etat de la question, Bru-
ges, Desclée de Brouwer, 1960.

151
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Os discursos ocupam mais de um terço do livro dos Atos: 24 no


total, atribuídos a Pedro, Estêvão, Paulo ou Tiago14. Eles desem-
penham papel importante no relato, pois interpretam os aconteci-
mentos em curso, mostrando como dependem do plano de Deus.
É fácil de entender que na origem do cristianismo, quando a Igreja
não era mais do que um grupelho obscuro, nenhum secretário te-
nha tomado nota das falas dos apóstolos. Os historiadores da Anti-
guidade, que gostavam de colocar discursos na boca de seus heróis,
se defrontavam com a mesma dificuldade. Eles seguiam o princípio
adotado por Tucídides: “exprimi o que, a meu ver, eles teriam podi-
do dizer que melhor correspondesse à situação” (Guerra do Pelopo-
neso I 22,1). Esse princípio legitima a recomposição dos discursos,
submetendo-a sempre a uma dupla adequação: o discurso recons-
truído deve convir ao que se sabe do locutor e ser apropriado à
situação. Em suas escolhas de estilo e em seus propósitos oratórios,
Lucas seguiu a regra de Tucídides. Adotando, para cada um de seus
heróis, a linguagem que lhe convém, ele se distingue na arte da imi-
tatio, a imitação estilística apreciada pelos escritores helenísticos; a
Septuaginta fornece ao autor as expressões que ele buscava.

A s ‫״‬seções em nós "

A origem das “seções em nós” é um mistério. Quatro vezes, sem transição, o


narrador passa para a primeira pessoa do plural e a abandona também brus-
camente. Trata-se, de cada vez, de uma viagem marítima: de Trôade a Filipos
(16,10-17), de Filipos a Mileto (20,1-15), de Mileto a Jerusalém (21,1-18), de
Cesaréia a Roma (27,1-28,16). Hipóteses propostas: a) "Lucas, o médico”,
companheiro de Paulo e autor dos Atos, relata sua própria experiência (cons-
tatamos a improbabilidade de uma datação assim tão precoce dos Atos)15; b)
Lucas retranscreveu uma fonte: o diário de viagem de um companheiro de

14 Discursos de Pedro: 1,16-22; 2,14-36; 3,12-26; 4,9-12; 5,29-32; 10,34-43;


11,5-17; 15,7-11. Discurso de Estêvão: 7,2-53. Discurso de Tiago: 15,13-21.
Discurso de Alexandre: 19,35-40. Discursos de Paulo: 13,16-41; 14,15-17;
17,22-31; 20,18-35; 22,1-21; 23,1-6; 24,10-21; 26,2-23; 27,21-26; 28,17-
20.25-28.
15 Claus-Jürgen Thorton ainda recentemente defendeu a hipótese segundo
a qual as “seções em nós" emanam de Lucas, o autor dos Atos: THOR-

152
O s A tos dos apóstolos

Paulo (mas por que tamanha falta de jeito nas transições?); c) Lucas recorre
a um artifício literário conhecido dos escritores greco-romanos (Homero, Vir-
gílio, Varrão, Josefo, Luciano) para dar mais vivacidade ao seu relato (mas por
que o reservar para as travessias de Paulo?).
Note-se que essas rupturas de estilo, na obra de um narrador tão cuidadoso
como Lucas, não são devidas à negligência (mesmo que fosse ditada por uma
fonte); importa, portanto, distinguir a questão da origem (a cópia de um diário
de viagem é inteiramente plausível) do efeito que se quer causar no leitor. A
esse respeito, o “nós” das viagens não deve ser confundido com o “eu” do pre-
fácio do autor (Lc 1,1-4; At 1,1). O uso do "nós” é um procedimento narrativo
para dar credibilidade ao relato, com o intuito de sinalizar sua origem em um
grupo do qual faz parte o narrador. Em quatro momentos cruciais do itinerário
de Paulo, o narrador fez questão de notificar sua dependência de uma tradição
teológica que remonta ao círculo próximo do grande apóstolo.

4.3. Os processos narrativos


Com a finalidade, ao mesmo tempo, de mostrar a coerência de
sua história do cristianismo, de tornar seu relato atraente, de evitar
cansar o ouvinte/leitor ao se repetir, Lucas usou, com mestria, vá-
rios procedimentos narrativos: ele se conforma, assim, aos gostos e
usos de sua época.

A s sequências
Diferentemente do evangelho (como já foi dito), Lucas não ali-
nha pequenas unidades narrativas, mas constrói sequências, reagru-
pando diversas cenas. Exemplo: a passagem consagrada a Estêvão
(6,8-8, la) relata o conflito nascente em torno de Estêvão, um longo
discurso de sua parte, depois a lapidação. Mas Lucas se preocupa
com fazer aparecer o encadeamento no qual ocorre a “seqüência
Estêvão”. Por isso relata, antes, a instituição dos Sete (6,1-6), faz
um sumário do crescimento da comunidade (6,7) e, em 8,lb-4, in-
troduz a personagem de Paulo e sua perseguição da Igreja, que des-
lanchará a evangelização da Samaria (8,5 ss.). Ao longo dos Atos,
sumários e passagens de transição ligam as sequências com o fito de

TON, DerZeuge desZeugen. Lukas ais Historiker der Paulusreisen, Tübin-


gen, Mohr, 1991.

153
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

articulá-las com o plano de Deus, que é o progresso da Palavra. Os


sumários, especialmente, marcam o ritmo do início dos Atos, à ma-
neira de refrão, ressaltando o crescimento da Igreja levada pelo agir
de Deus (2,42-47; 4,32-35; 5,12-16; 6,7; ver também 9,31; 12,24;
16,5; 19,20; 28,30 s.). Transições e sumários são indícios de uma
teologia da continuidade.

Um cuidado de marcar a continuidade


O cuidado de marcar a continuidade na história da salvação con-
cretiza-se pela recorrência de certos temas: a repetição de enredos,
as correntes narrativas e a síncrise.
Os enredos se repetem, entre os quais o mais estereotipado é o
da missão paulina com seu esquema: pregação na sinagoga/rejeição.
Correntes narrativas atravessam o conjunto Lucas-Atos: a corrente
dos centuriões cuja fé exemplar legitima o acesso dos pagãos à sal-
vação (Lc 7,1-10; 23,47; At 10); a corrente da conversão de Paulo
reinterpreta o acontecimento (At 9) no fim do relato (At 22; 26); a
corrente pentecostal liga o primeiro Pentecostes (At 2,1-13) às res-
surgências coletivas do Espírito (10,44-46; 19,6). Enfim, o procedí-
mento de síncrise consiste em apresentar um personagem segundo
o modelo de um outro, com o intuito de estabelecer uma correia-
ção entre eles16. Assim, o martírio de Estêvão é calcado na mor-
te de Jesus (comparar At 7,55-60 com Lc 23,34-46). O exemplo
mais espetacular de síncrise é o paralelo Jesus-Pedro-Paulo: Pedro
e Paulo curam como Jesus curou (Lc 5,18-25; At 3,1-8; 14,8-10);
como Jesus no batismo, eles se beneficiam de uma visão extática no
momento-chave de seu ministério (At 9,3-9; 10,10-16); como Jesus,
eles pregam e suportam hostilidade de uma parte dos judeus; como
Jesus, eles sofrem e são ameaçados de morte (At 12; 21); Paulo é
processado, como foi Jesus (At 21-26); e como seu Mestre Pedro e
Paulo são, no fim de sua vida, motivo de uma libertação milagrosa
(At 12,6-17; 16,19-40). Semelhante conformidade de destino entre

16 Estudo desse processo em Lucas: Jean-Noèl ALETTl, Quand Luc racon-


te. Le récit comme théologie, Paris, Cerf 1998, 69-166.

154
O s A tos dos apóstolos

Cristo e suas testemunhas denota, de um lado, a fidelidade dos dis-


cípulos ao Mestre e, de outro, a intervenção divina na história.

5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Lucas faz obra de historiador. No começo do livro, antes da As-
censão, Jesus desmantela a expectativa apocalíptica para fixar a
atenção dos discípulos na tarefa a ser cumprida no presente: “Não
vos compete conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou
por sua própria autoridade; mas recebereis uma força, ... e sereis,
então, minhas testemunhas “ (1,7 s.). Se o prazo do fim dos tempos
escapa ao conhecimento dos crentes, a expectativa da parusia não
é suspensa; a volta de Cristo permanece no horizonte da história
(1,11; 10,42; 17,31). Mas a fé dos discípulos é mobilizada em torno
do testemunho a ser manifestado na história. Entre ascensão e pa-
rusia se instala um tempo no qual a fidelidade não consiste apenas
em aguardar o Reino, mas em trabalhar na difusão da Palavra. Lucas
é o representante de um cristianismo no qual a preocupação com a
demora da parusia se esvaeceu em proveito de uma valorização do
tempo presente, o tempo da Igreja. “Um empreendimento desses
só seria possível, e teria sentido para um escritor, em uma época em
que a escatologia apocalíptica não mais dominava o conjunto da vida
no cristianismo primitivo. Não se escreve a história da Igreja quando
se aguarda o fim do mundo” (E. Kásemann)17.

5.1. Lucas historiador


Do ponto de vista histórico, a obra de Lucas é preciosa porque
constitui, ao lado da correspondência paulina, nossa única fonte di-
reta de informação sobre o primeiro cristianismo. Mas até que ponto
essa fonte é confiável? Constata-se que o autor concentrou seu re-
lato na difusão cristã no Oriente Próximo, na Ásia Menor, na Grécia
e na Itália, ignorando a cristandade egípcia e o oeste do império; o

17 Ernst KÁSEMANN, Le problème du Jésus historique (I954), in Essaisexé-


gétiques, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1972, 157.

155
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

progresso do cristianismo joanino também fica fora de seu propósito.


Por outro lado, acusam-no de ter idealizado a imagem da primeira
Igreja em Jerusalém (At 1-6) e deformado a teologia de Paulo. Teria
Lucas rompido seu contrato de escrever a Teófilo “uma narração or-
denada depois de ter se informado cuidadosamente de tudo a partir
das origens” (Lc 1,3)?
E preciso ponderar o fato de que, como todo historiador, Lucas
conta a história a de um ponto de vista específico; e é em virtu-
de desse ponto de vista que ele seleciona os dados e os coloca em
perspectiva. Em primeiro lugar, à maneira do Deuteronomista, ou do
Cronista, Lucas faz uma leitura crente da história; só os elementos
aptos a servir à sua leitura teológica, em que se trata de mostrar
como Deus conduz os seus, são retidos. Em segundo lugar, Lucas
quer explicar como o Evangelho deixou seu espaço original, o ju-
daísmo, para chegar aos pagãos; o itinerário de Jerusalém (At 1) a
Roma (At 28) simboliza essa abertura da Palavra para o mundo. Em
terceiro lugar, Lucas está persuadido de que Paulo foi o instrumento
privilegiado pelo qual a oferta da salvação chegou aos não-judeus;
importa-lhe mostrar que o impulso irresistível da missão paulina para
as nações é o resultado do plano de Deus anunciado pelo Ressus-
citado (1,8) e gradualmente realizado por Filipe (At 8), depois por
Pedro (At 10-11). A historiografia lucana é, portanto, teológica; ela
não pretende recapitular tudo o que há para saber sobre as origens
cristãs, mas ilustra uma tese que é a universalização do cristianismo
pelo vetor da missão petrina e, sobretudo, paulina. Os Atos apre-
sentam, portanto, uma história das origens do cristianismo, parcial e
orientada, vista a partir da missão de Paulo e na intenção de perpe-
tuar a memória do apóstolo dos gentios.

Uma suspeita de idealização


O retrato favorecido da primeira comunidade em Jerusalém, de
sua unanimidade (2,46; 4,32; 5,12), de sua comunhão de bens (2,44
s.; 4,32-37), de sua fulgurante progressão numérica (2,41; 4,4; 5,14;
6,7), levanta uma suspeita de idealização em Lucas. Não é de du-
vidar que, aos olhos do autor, os primeiros tempos da cristandade

156
Os Atos dos apóstolos

agrupada em torno dos Doze constituem uma “idade de ouro” ex-


cepcional e, como tal, um modelo para os leitores. A semelhança de
Gênesis 1-11, a “história das origens” funciona em Atos 1-6 como
um mito fundador para uma cristandade que no tempo de Lucas
está dividida e separada do judaísmo.
Mas note-se que nessa comunhão exemplar da primeira Igreja
não faltam crises internas (5,1-11; 6,1-6), nem a agressão do mun-
do exterior (4,1-21; 5,17-40; 6,11-15). A prática da partilha dos bens
descrita em 4,34 s. não foi assim tão geral como dá a entender o au-
tor; mas o testemunho de convenções similares, na mesma época,
entre os essênios (/ QS 1,11-13; 6,16-22) vem em apoio dessa ano-
tação, que Lucas recolheu como um fato de tradição e generalizou
para o cristianismo das origens.

Preocupação com a exatidão


E notável a preocupação do historiador Lucas com a exatidão.
O cuidado com que descreve os itinerários percorridos, seu conhe-
cimento minucioso das instituições do império e dos títulos dos fun-
cionários imperiais (cf 16,19; 19,35) denotam uma informação exata
e verificada. Importa-lhe, manifestamente, oferecer uma imagem
precisa do imperium romanum no qual, no futuro, o cristianismo vai
viver e crescer.

5.2. Uma história da salvação


O objetivo fundamental da teologia lucana é este: mostrar que
o acesso dos não-judeus à salvação se inscreve na lógica de uma
história da salvação começada com Israel. Entre judaísmo e cris-
tianismo, Lucas constrói uma indestrutível continuidade teológica.
Um após outro, os discursos dos Atos o repetem ao sabor de uma
retrospectiva da história da salvação: é o Deus de Israel que levan-
tou Jesus dentre os mortos e convida para que se convertam, hoje,
ao Evangelho (2,22-36; 3,13-26; 4,9-12; 7,2-53; 13,17-41; 24,14
s.). A precedência de Israel na ordem da salvação é plenamente
afirmada, mas doravante a graça concedida em Jesus se estende

157
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

a quem quer que creia (13,39 s.). O povo de Deus que se constitui
em torno do Nome de Jesus Cristo compõe-se, assim, de judeus e
não-judeus.
Lucas conta com insistência que, a despeito dos esforços mis-
sionários, a maioria do judaísmo se fechou a essa proclamação. No
entanto, Deus dá sinais evidentes de seu consentimento a essa ex-
tensão da santidade de Israel ao mundo inteiro. A irrupção do Espíri-
to santo é a assinatura divina aposta à missão dos apóstolos quando
ela se abre para a universalidade. Significativamente, não é nunca
a Igreja que toma a iniciativa: o Espírito precede os apóstolos e age
para espanto dos crentes. O milagre de Pentecostes prefigura o
anúncio da Palavra a todos os povos (2,5-11); o Espírito provoca o
batismo do eunuco etíope em Samaria (8,26-40); a barreira milenar
do puro e do impuro cai por terra no encontro entre Pedro e Corné-
lio, quando o Espírito se apossa dos assistentes e corta a palavra do
apóstolo: “Podería alguém impedir de batizar com água estas pes-
soas que, tanto quanto nós, receberam o Espírito Santo?” (10,47).
O Espírito é o instrumento pelo qual Deus precede os seus e toma a
iniciativa na história.

5.3. A imagem de Paulo


Entre o retrato de Paulo feito por Lucas nos Atos e os propó-sitos
do apóstolo em suas cartas, a divergência é impressionante. Diz res-
peito a seis pontos:
1) A assembléia de Jerusalém: Paulo, em Gálatas 2,1-10, re-
cusa qualquer concessão de sua parte e afirma que sua
missão foi validada por Jerusalém, sendo esse acordo ecu-
mênico selado com a coleta em favor dos pobres; Lucas
fala, ao contrário, de uma prescrição mínima de regras ali-
mentares impostas aos pagãos (At 15,20.29).
2) A circuncisão: Paulo fica indignado com a volta dos gálatas
à circuncisão, que, segundo ele, infirma o Evangelho da
graça (Gl 5,1-12; 6,12-15); Atos 16,3 menciona que Paulo
circuncidaTimóteo “por causa dos judeus”.

158
O s Atos dos apóstolos

3) O passado pré-cristão de Paulo: o apóstolo rejeita, com


os termos mais enérgicos, sua piedade legal farisaica
(F1 3,7 s.), enquanto o Paulo de Lucas exclama diante do
Sinédrio: “eu sou fariseu, filho de fariseus” (At 22,6).
4) A Lei: o conflito fundamental entre Paulo e o judaísmo se
dá na interpretação da Torá, sobre o valor salutar de sua
observância (Romanos, Gaiatas, Filipenses): o ponto de
conflito se desloca, nos Atos, quando Paulo protesta não
ter “feito nada contra nosso povo ou contra as normas re-
cebidas dos nossos pais” (At 28,17) e considera que a linha
divisória entre cristãos e judeus passa pelo reconhecimen-
to da ressurreição de Jesus (At 23,6; 26,6-8).
5) Nenhum traço nos Atos dos conflitos que criaram a opo-
sição entre Paulo e seus adversários (sobretudo G1 e 1-2
Cor), nem de sua atividade epistolar.
6) Enquanto Paulo reivindica seu título de apóstolo e se bate
por ver reconhecida sua autoridade (ICor 9,1; 15,9 s.; G1
1,1), Lucas reserva o título para os Doze e atribui a Paulo o
título de testemunha (exceção: At 14,4.14).

Paulo, figura emblemática


A que atribuir uma soma de divergências tão conseqüente e, ain-
da mais, a respeito de pontos cruciais do pensamento paulino? Uma
parte da pesquisa conclui que o retrato lucano de Paulo não compor-
ta nada de paulino e que, salvo sua admiração pelo grande apóstolo,
Lucas não pode estar ligado a ele18. Mas essa conclusão não se impõe.
Trata-se, com efeito, de levar em consideração o tempo decorrido no
século I entre a época de Paulo (os anos 50) e o tempo de Lucas (os
anos 80); à distância de uma geração, o autor dos Atos pertence a um
meio que administra a herança do apóstolo. Sua intenção não é repe-
tir o que disse o apóstolo, mas preservar sua memória, ressaltando o
papel que ele desempenhou no nascimento da Igreja.

18 Posição sustentada por Philipp VIELHAUER, Zum “Pau!inismus”der Apostol-


geschichte, 1n Aufsátze zum Neuen Testament, München, Kaiser, 1965, 9-27.

159
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

Ora, do ponto de vista de Lucas, Paulo não é somente um propa-


gador eficaz da mensagem de salvação para os gentios; ele também
é, na qualidade de judeu convertido, a figura emblemática dessa con-
tinuidade histórico-salutar com Israel, reclamada pelo cristianismo.
Sua conversão é lembrada duas vezes (At 22; 26), quando Paulo
advoga sua inocência diante de seus detratores; sua linha de defesa
não varia: ele recebeu revelação do Deus de Israel e se vê perseguido
por causa de uma crença que representa, no entanto, a esperança
de Israel: a ressurreição dos mortos (23,6; 28,20).

Divergências teológicas
Em resumo, o retrato lucano de Paulo revela, inegavelmente, di-
vergências em relação ao pensamento teológico do apóstolo. Essas
divergências se devem à intenção historiográfica de Lucas, que va-
loriza a mediação que a dupla pertença (judaica e cristã) de Paulo
constitui para a cristandade de seu tempo. Essa leitura da história
levou-o a deslocar da lorá para a ressurreição a frente polêmica de
Paulo, mantendo, porém, algumas formulações soteriológicas to-
talmente paulinas. Exemplo: “é graças a ele [Jesus] que vos vem o
anúncio do perdão dos pecados; e esta justificação, que não pudes-
tes obter na lei de Moisés, nele é que ela é plenamente concedida a
todo homem que crê” (13,38 s.; cf 10,34 s.).
Lucas participa desse esforço da terceira geração cristã que ad-
ministra e atualiza a memória de Paulo. A produção das epístolas aos
Efésios, aos Colossenses e das pastorais inscreve-se em uma linha
institucional e doutrinai em que se aplica o pensamento de Paulo às
necessidades eclesiásticas da época. Os Atos, como mais tarde os
Atos de Paulo apócrifos, se inscrevem em uma linha historiográfica
que preserva mais a lembrança da fabulosa epopéia missionária do
apóstolo do que uma conformidade doutrinai. De um lado, guardou-
se a lembrança do Paulo teólogo, de outro do Paulo fundador de
Igrejas. A fixação lucana na figura do missionário exemplar pode ex-
plicar a surpreendente ausência de qualquer menção nos Atos da
atividade epistolar de Paulo: sendo conhecida por outras vias, ela

160
Os Atos dos apóstolos

não interessa ao narrador, que se prende somente à dimensão evan-


gelizadora do personagem.

5.4. Uma intenção de definir a identidade


No Paulo de Lucas, o protesto constante de sua conformidade
com a tradição dos pais podería levar a pensar que o autor dos Atos
procura defender sua memória contra uma acusação de antijudaís-
mo (W. Schmithals). Lucas se esforçaria, assim, por se opor a uma
crítica judeu-cristã ao paulinismo. Isso não está excluído; mas, se o
personagem de Paulo é efetivamente tratado, nos Atos, como uma
figura emblemática, não se trata mais de Paulo, mas do destino do
cristianismo. E, então, a fé cristã que Lucas defende da acusação de
ter rompido com o judaísmo.

A ruptura com Israel


Como toda obra historiográfica, Lucas-Atos responde, com efei-
to, a uma necessidade de afirmação de identidade. A cristandade
de Lucas, uma cristandade de terceira geração, experimenta a ne-
cessidade de afirmar sua identidade por uma comemoração de suas
origens. A resposta de Lucas é dupla.
De um lado, ele assegura a essa cristandade (majoritariamente
pagão-cristã) que ela é herdeira legítima da história milenar das pro-
messas feitas a Israel; essas promessas encontraram seu cumpri-
mento na ressurreição de Jesus dentre os mortos. Do ponto de vista
lucano, é o judaísmo que fica de fora ao recusar ver nessa ressurrei-
ção a obra do Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Mesmo que o futuro
de Israel fique, aqui, em suspenso, a linha da graça passa, doravante,
pelo povo novo convocado pela Palavra.
Por outro lado, a Igreja é originária de uma ruptura indesejada,
mas querida pela Sinagoga; o enredo estereotipado da missão pau-
lina, com a expulsão sistemática do apóstolo, imputa ao judaísmo a
responsabilidade pelo dilaceramento do qual nasceu o cristianismo.
Mas o relato não convida a repudiar essa origem; ao contrário, con-
vida o leitor cristão a estar consciente dessas raízes perdidas, mesmo

161
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

que esteja cortado delas, como de uma origem indispensável para


construir a identidade cristã.

Entre Jerusalém e Roma


A identidade cristã tal como a configura a obra lucana situa a
cristandade entre Jerusalém e Roma. Jerusalém é o lugar de origem,
garantia da inviolável fidelidade de Deus a seu povo; Roma simbo-
liza o futuro, no qual se realizará a promessa antiga da salvação de
Deus enviada a todas as nações (Lc 3,6 e At 28,28 citando Is 40,5).
Em relação ao Império, o autor dos Atos adota uma atitude noto-
riamente favorável: os funcionários imperiais manifestam para com
o cristianismo uma neutralidade benévola; em Corintos (18,12-17),
em Efeso (19,21-40), em Jerusalém (21,30-24,23), eles intervém
para proteger Paulo ameaçado de linchamento pela multidão de ju-
deus. Em duas ocasiões, Lucas procura demonstrar que a nova fé é
politicamente inofensiva (18,14 s.; 26,2-8). Deve-se ver aqui o traço
de um arrazoado em favor da Igreja, uma apologia pro ecclesia (E.
Haenchen)?19 O autor dos Atos está procurando defender a causa
do cristianismo junto da alta sociedade romana, para mostrar sua
licitude e sua dignidade intelectual? O discurso de Paulo diante do
rei Agripa, em Atos 26, correspondería a essa intenção. Tendo-se
em conta o público leitor majoritariamente cristão ao qual se destina
Lucas-Atos, é mais provável que o retrato favorável das instituições
romanas (mas nem sempre: cf 24,26) seja destinado a facilitar a im-
plantação da Igreja na sociedade imperial.

5 .5. Uma teologia da providência


Entre os deslocamentos da teologia lucana em relação à teolo-
gia de Paulo figura também o abandono da centralidade da cruz: a
morte de Jesus concretiza o erro humano em face de Deus, mas a
oferta da salvação se apóia na certeza da ressurreição (At 2,23 s.;

19 Ernst HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, Gottingen, Vandenhoeck und


Ruprecht, 61968, 90-92.

162
O s A tos dos apóstolos

3,14 s.; 7,52; 13,27-31). Na soteriologia, a ressurreição toma o lu-


gar que a cruz ocupa em Paulo: não é mais a morte de Jesus que é
objeto de escândalo (cf ICor 1,18-25), mas a notícia de que Deus o
ressuscitou dos mortos. E por isso que Lucas se aplica a expressar
a historicidade e a materialidade da ressurreição (Lc 24,36-43). Em
consequência, é a afirmação da Páscoa, e não mais a Lei, que nos
Atos constitui o ponto de litígio entre a Igreja e a Sinagoga.
Nem por isso se há de atribuir a Lucas uma teologia da glória
(E. Kásemann)20. Porque, embora o progresso da Palavra no impé-
rio seja irreprimível, os portadores do Evangelho são continuamente
ameaçados, injuriados, levados ao tribunal, surrados, lapidados. A
posição de Lucas não é que a Palavra triunfa malgrado essas difi-
culdades e esses sofrimentos; o relato mostra, ao contrário, que o
sucesso da evangelização opera através desses obstáculos. A missão
retoma sempre o seu impulso porque Deus protege seus enviados
e transforma sua aflição em tribuna para o Evangelho (exemplo:
a prisão em Filipos, 16,20-34). A concepção que transparece aqui
é a do fracasso providencial: o enviado de Cristo não está, de forma
alguma, livre de sofrer, seguindo nisso o seu Mestre (Lc 12,4-12),
mas em sua fragilidade, em seu fracasso mesmo Deus vela pela fe-
cundidade de sua Palavra.

6. N o v a s p e r s p e c t iv a s

O trabalho do historiador Lucas. O conflito entre contestadores e


partidários da confiabilidade histórica dos Atos permanece vigente,
a comparação minuciosa do relato lucano com os dados históricos
e arqueológicos continua21, mas esboçam-se algumas perspectivas
para sair desse impasse. A questão do valor histórico do relato lu-

20 Ernst KÁSEMANN, Der R uf der Freiheit, Tübingen, Mohr, s 1972, 207-


222 .
21 A concordância dos parâmetros culturais e geográficos dos Atos com os
dados fornecidos pela arqueologia e pelos textos dos historiadores greco-
romanos é objeto de um exame minucioso em Bruce W. WINTER (ed.),
The Book o f Acts in its First Century Setting, Grand Rapids/Carlisle, Eerd-
mans/Paternoster, 1993-, 6 v.

163
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

cano é recolocada a partir do reconhecimento do caráter parcial e


subjetivo de todo ponto de vista historiográfico: não existem “fatos
brutos”, mas somente fatos interpretados e ajustados com base no
ponto de vista do historiador. Reconstruir o ponto de vista historio-
gráfico de Lucas permite fazer justiça ao seu trabalho de historiador,
sobretudo se comparado com os procedimentos aplicados pelos his-
toriadores de seu tempo. A administração das fontes e a composi-
ção dos discursos aproximam nitidamente os Atos dos apóstolos das
obras históricas do primeiro século; é particularmente a obra de Flá-
vio Josefo que atesta a maior proximidade com o trabalho de Lucas.
O texto dos Atos. Um movimento de reabilitação do texto ociden-
tal se esboça no seio da crítica textual. Para uns, o veio ocidental
teria preservado um estado original do texto tucano. Para outros, a
comparação das versões alexandrina e ocidental esclarece, sobretu-
do, a história do texto e a intensa criatividade de que foi palco, desde
muito cedo, a transmissão textual22.
Continuidade e ruptura na relação com o judaísmo. A posição de
Lucas perante o futuro de Israel é objeto de uma grande atenção:
o fim dos Atos (28,16-31) rompe as pontes entre judeus e cristãos
ou deixa viva uma esperança de continuidade? Mais geralmente, a
história da salvação, tal como a concebe Lucas, é objeto de deba-
te: constitui o cristianismo o último capítulo da história de Israel ou
inaugura ele uma nova etapa na aliança com Deus? O desafio da
pesquisa é, aqui, manter juntas a continuidade e a descontinuidade,
que Lucas discerne, entre cristianismo e judaísmo. Porque, de todos
os escritos do Novo Testamento, Lucas-Atos é, ao mesmo tempo, o
mais aberto ao universalismo e o mais favorável a Israel; Lucas está
atento tanto às raízes judaicas da Igreja como à extensão geográfica
do Evangelho, que levou judeus e cristãos à ruptura23.

22 Marie-Émile BOISMARD, Arnaud LAMOUILLE, Le texte occidental des


Actes des apôtres, Paris, Editions Recherche sur les civilisations, 220 00 [1.
ed. 1984], 2 v.; Edouard DELEBECQUE, Les deux Actes des apôtres, Paris,
Gabalda, 1986.
23 David P MOESSNER (ed.), Jésus and the Heritage o f Israel, Harrisburg,
Trinity Press International, 1999.

164
Os A tos dos apóstolos

/4s trajetórias teológicas do cristianismo primitivo. Entre as traje-


tórias teológicas do cristianismo primitivo, situar Lucas no seio da
terceira geração cristã o introduz na dinâmica da administração
da herança paulina. A proximidade dos Atos com a atmosfera das
cartas pastorais, de um lado, mas também com as cristandades mar-
ginais que se adivinham por trás dos Atos apócrifos dos apóstolos,
permite reconstituir a diversidade de correntes que invocavam Paulo
e reivindicavam sua herança no fim do século I. De modo particular,
os Atos de Lucas e os Atos apócrifos dos apóstolos revelam mais afi-
nidades do que se pensava outrora, tanto no plano literário como na
imagem sociológica da cristandade sobre a qual eles nos informam24.
Sociologia do cristianismo. O material que os Atos fornecem à so-
ciologia do cristianismo primitivo promete refinar, no futuro, nosso
conhecimento do tecido sociocultural no qual se implantou o primei-
ro cristianismo25.

7 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BARRETT, Charles K. Acts. Edinburgh, Clark, 1994, 1998 (ICC). 2 v.
BOISMARD, Marie-Émile, LAMOUILLE, Arnaud. Les Actes des deux
apôtres. Paris, Gabalda, 1990 (EtB NS 12-14). 3 v.
BOSSUYT Philippe, RADERMAKERS, Jean. Témoins de la Parole de la
Crâce. Lecture des Actes des Apôtres. Bruxelles, Institut d’Etudes
Théologiques, 1995. 2 v.
BRUCE, Frederick E The Acts o f the Apostles. The Greek Text with In-
troduction and Commentary. Grand Rapids/Leicester, Eerdmans/
Apollos,31990.
FITZMYER, Joseph A. The Acts o f the Apostles. N ew York, Doubleday,
1998 (AB 31).
HAENCHEN, Ernst. Die Apostelgeschichte. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 61968 (KEK).

24 Richard I. PERVO, Profit with Delight, Philadelphia, Fortress Press, 1987.


25 Jerome H. NEYREY (ed.), The Social WorldofLuke-Acts, Peabody, Hen-
drickson, 1991.

165
A tradição sinótica e os Atos dos apóstolos

LEPLATTENIER, Charles. LesActes des apôtres. Genève, Labor et Fides,


1987 (La Bible porte-Parole).
JERVELL, Jacob. Die Apostelgeschichte. Gottingen, Vandenhoeck und Ru-
precht, 1998 (KEK).
JO H N SO N , LukeT The Acts o f the Apostles. Collegeville, Liturgical Press,
1992 (Sacra Pagina 5).
ROLOFE Jürgen. Die Apostelgeschichte. Gottingen, Vandenhoeck und Ru-
precht, 1981 (NTD 5).
SCHNEIDER, Gerhard. Die Apostelgeschichte. Freiburg, Herder, 1980,
1982 (HThKNT 5 ).2 v .

Leitura prioritária
JUEL, Donald. Luc-Actes. La promesse de P histoire. Paris, Cerf, 1987, es-
pec. p. 91-194 (Lire la Bible 80).
MARGUERAT Daniel. La premiere histoire du christianisme (Les Actes des
apôtres). Paris/Genève, Cerf/Labor et Fides, 1999, espec. p. 11-92
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História da pesquisa
BOVON, François. Luc le théologien. Vingt-cinq ans de recherche (1950-
1975). Genève, Labor et Fides, 21988 (Monde de la Bible 5).
DUMAIS, Marcel. Les Actes des Apôtres. Bilan et orientations. In:
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MILLS, Watson E. A Bibliography o f the Periodical Literature on the Acts o f
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166
Os Atos dos apóstolos

Estudos particulares
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DUPONT, Jacques. Etudes sur les Actes des apôtres. Paris, Cerf, 1967 (Le-
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VERHEYDEN, Jozef (ed.). The Unity o f Luke-Acts. Leuven, Leuven Uni-
versity Press/Peeters, 1999 (BEThL 142).

167
À literatura paulina
CAPITULO

6
Cronologia paulina
François Vouga

O estabelecimento da cronologia paulina não se faz sem dificul-


dade. De um lado, os dados fornecidos pelos dois grupos de fon-
tes de que dispomos, as cartas de Paulo e os Atos dos Apóstolos,
nem sempre coincidem. Por outro lado, elas só contêm elementos
de cronologia relativa. E próprio da cronologia relativa estabelecer
a seqüência de uma série de acontecimentos sem, entretanto, que
esses acontecimentos estejam relacionados com um quadro de re-
ferência externa e, portanto, sem que possam ser fixados num ca-
lendário. A datação das diferentes etapas do apostolado paulino e
das cartas do apóstolo, isto é, o estabelecimento de uma cronologia
absoluta, só é possível com a ajuda de uma documentação externa.

1. A CRONOLOGIA PAULINA SEGUNDO AS CARTAS PAULINAS


Quais são as informações das epístolas que podem ser usadas
para reconstituir a cronologia da missão paulina e a sucessão das
cartas do apóstolo? São sete.
1) o relato autobiográfico de Gálatas 1,13-2,21; ele fornece
um calendário contínuo, começando com a vocação de
Paulo e terminando com o Concilio de Jerusalém e o inci-
dente de Antioquia.

171
A literatura paulina

2) a notícia das etapas sucessivas (Filipo, Tessalônica, Ate-


nas) que precederam à primeira chegada do apóstolo a
Corinto (ITs 2,2; 3,1-6).
3) a intenção de Paulo de permanecer em Efeso até Pente-
costes (ICor 16,8).
4) os planos de viagem de Efeso a Corinto, passando pela
Macedonia (ICor 16,5-7); esses planos provavelmente
substituem os de 2 Coríntios 1,15-16, modificados pelas
razões indicadas em 2 Coríntios 1,17-2,11.
5) os relatos de viagem em 2 Coríntios 2,12-13 e 7,5-7 (Paulo
em Irôade e na Macedonia [Filipos] a caminho de Corinto).
6) os anúncios da visita a Corinto (2Cor 9,4; 10,2; 12,14;
13,1.10).
7) os planos de viagem a Jerusalém, a Roma e na Espanha
(Rm 15,14-32).

1.1. Da vocação de Paulo à segunda viagem a Jerusalém


O conjunto dessas informações permite reconstituir de manei-
ra relativamente precisa o desenrolar dos quinze primeiros anos do
apostolado paulino. De fato, esses anos são abrangidos pelo relato
de Gálatas 1,13-2,21, referente ao período que vai desde sua voca-
ção até sua segunda viagem a Jerusalém. O calendário apresentado
comporta, todavia, duas incertezas.
A primeira diz respeito ao fato de que a Antiguidade exclui em
suas contas tanto o primeiro como o último ano do período indi-
cado. “Após três anos” significa exatamente, portanto, que um ano
inteiro decorreu entre a vocação de Paulo e sua primeira viagem a
Jerusalém, ao passo que os quatorze anos mencionados em Gála-
tas 2,1 significam que decorreram doze anos inteiros entre o ano
da primeira viagem a Jerusalém e o da segunda. Quanto à segunda
incerteza, tem a ver com a própria construção do relato: em razão
do paralelismo entre Gálatas 1,18, 1,21 e 2,1, calcula-se, em geral,
que os 1-3 anos na Arábia e em Damasco (Gl 1,18), os quinze dias
em Jerusalém (Gl 1,18) e os 12-14 anos na Síria e na Cilicia (Gl 1,21 e

172
Cronologia paulina

2 ,1) devem ser somados: interpreta-se o “depois, ao cabo de quator-


ze anos” de Gálatas 2,1 como quatorze anos depois dos “três anos
depois” de Gálatas 1,18-19 e dos “quinze dias” de Gálatas 1,18 e 21.
Seria, contudo, gramaticalmente possível entender que o ponto de
partida dos quatorze anos é o mesmo que o dos três anos; devería-
mos, então, interpretar: três anos após sua conversão, Paulo subiu
uma primeira vez a Jerusalém, e quatorze anos após sua conversão
foi lá uma segunda vez.

j vocação de Paulo | "após três anos” | 15 dias em Jerusalém | “após 14 anos”

Gálatas 1,18 s. 1,18.21 2,1

1.2. Paulo na Asia, na Macedonia e na Grécia


Se as informações da epístola aos Gálatas nos permitem, salvo
essas duas incertezas, ter uma idéia contínua dos inícios do aposto-
lado paulino, em compensação os dados concernentes às viagens à
Ásia, à Macedonia e à Grécia, isto é, o período da grande produtivi-
dade literária do apóstolo, reduzem-se a alguns elementos fragmen-
tários (ITs; 1 e 2 Cor; Rm); seria difícil ordená-los sem o contexto
fornecido pelos Atos dos Apóstolos. Essas informações fragmen-
tárias são, todavia, muito preciosas; concernem essencialmente ao
presente imediato e permitem-nos, por essa razão, datar com certa
precisão as cartas que as contêm. Não é de surpreender, por con-
seguinte, que se possa datar com certa segurança 1Tessalonicenses,
1 e 2 Coríntios e a epístola aos Romanos; em compensação, o lugar
das epístolas aos Gálatas, aos Filipenses e a Filêmon na história da
missão paulina permanece conjectural, porque quase sem solução
no estado de nossa documentação.

1.3. Da última estadia em Corinto aos projetos da Espanha


A partir da última estadia em Corinto, as cartas (essencialmente:
Rm 15,14-32) só nos informam dos projetos de viagem a Jerusalém
e, depois, à Espanha, passando por Roma.

173
A literatura paulina

2 . A CRONOLOGIA PAULINA SECUNDO OS A TO S DOS APÓSTOLOS


Diferentemente das epístolas, os Atos nos oferecem um relato
contínuo da atividade apostólica. Os descontos da história lucana
se tornam, aliás, particularmente precisos para todo o período que
começa com a grande estadia em Efeso e termina com os dois anos
que se seguem à chegada do apóstolo a Roma; esse lapso de tem-
po cobre os dez últimos anos conhecidos do apostolado paulino:
a estadia em Efeso (At 19,1-40), a viagem por Trôade e pela Ma-
cedônia a caminho de Corinto (At 20,l-3a), depois a partida para
Jerusalém, passando pela Macedonia (At 20,3b-16), a despedida
dos anciãos de Efeso em Mileto (At 20,17-38), a chegada e a pri-
são em Jerusalém (At 21,1-23,10), os dois anos em Cesaréia (At
23,11-26,32) e finalmente o embarque para Roma e a chegada à
Itália (At 27,1-28,31).
As informações fornecidas pelas epístolas paulinas e pelos
Atos parecem, portanto, se completar muito bem. Infelizmente,
os Atos não fazem nenhuma menção à produção literária de Paulo,
de modo que só dão uma ajuda indireta para a datação das epístolas.
Por outro lado, quando comparados, os dados lucanos e as informa-
ções de primeira mão do apóstolo, quando coincidem, nem sempre
são inteiramente compatíveis. Os relatos de viagem fazem, de fato,
parte dos meios literários privilegiados por meio dos quais Lucas ex-
pressa sua concepção da história e sua própria teologia. Segue-se,
daí, que se as epístolas constituem uma documentação segura para
o estabelecimento da história do apostolado e da cronologia paulina
— os destinatários das cartas são os contemporâneos dos aconteci-
mentos relatados, de modo que podem verificar os dados fornecidos
pelo apóstolo — os relatos dos Atos não podem ser utilizados como
fontes históricas, a não ser com alguma prudência. Um certo número
de dados dos Atos devem, antes, ser atribuídos à ficção literária da
historiografia lucana: a construção da terceira viagem a Jerusalém
(At 18,20-22), com ausência de detalhes; e também a apresentação
da tática missionária do apóstolo, que começa, sistematicamente,
por pregar o Evangelho na sinagoga, bem como os relatos do com-
parecimento diante da justiça romana em Corinto e em Cesaréia.

174
Cronologia paulina

3. R ec o n str u ç õ es
As cartas paulinas permitem estabelecer uma cronologia rela-
tiva dos quinze primeiros anos da missão paulina, ao passo que
os Atos oferecem uma outra cronologia relativa que vai da esta-
dia do apóstolo em Efeso até sua chegada a Roma. O trabalho
do historiador consiste, primeiramente, em combinar essas duas
cronologias relativas para reconstruir a história das viagens e da
produção literária do apóstolo; visa, secundariamente, a fixar essa
cronologia relativa no calendário da história geral para obter uma
cronologia absoluta.

3.1. Cronologia relativa: Paulo e os Atos


De modo geral, admite-se que o relato da assembléia dos apósto-
los (ou “Concilio de Jerusalém”) de Atos 15,1-21, é a versão lucana
do encontro reportado por Paulo em Gálatas 2,1-10. O plano dos
dois relatos é, no conjunto, o mesmo, e o debate se dá em torno
da mesma questão da admissão dos pagãos na Igreja. Nos detalhes,
os dois relatos diferem em vários pontos: segundo Gálatas 2,1-21,
o incidente de Antioquia se seguiu às conversações de Jerusalém,
ao passo que segundo Atos 15,1-4 ele é a causa da assembléia. O
desenrolar dos debates não é o mesmo: Atos 15,5-21 fala de uma as-
sembléia de toda a Igreja de Jerusalém, dos apóstolos e dos anciãos,
enquanto Paulo salienta o caráter decisivo de conversas particulares
com alguns notáveis também e com as “colunas”, isto é, Tiago, João
e Pedro. Os participantes na discussão não são exatamente os mes-
mos e, sobretudo, seus papéis são distribuídos diferentemente. No
relato de Gálatas 2,1-10 trata-se de um reconhecimento mútuo dos
dons e da vocação particular de Paulo, Pedro, Tiago e João; o relato
lucano fala de uma decisão eclesiástica oficial: Paulo e Barnabé têm,
aí, a simples condição de testemunhas, enquanto Pedro toma sua
defesa e Tiago desempenha o papel de presidência. Enfim, os resul-
tados do encontro não são os mesmos: segundo Gálatas 2,1-10, a
vocação do apóstolo dos gentios, a missão universal que dela decor-
re e as Igrejas que dela nascem são reconhecidas incondicionalmen-

175
A literatura paulina

te e a mesmo título que a missão de Pedro na diáspora judaica (G1


2,6-9); uma coleta das Igrejas recém-fundadas nas cidades do Impé-
rio, em benefício da comunidade de Jerusalém, deve selar o acordo e
o reconhecimento recíproco (G! 2,10). Segundo Atos 15,22-35, em
compensação, o resultado da assembléia é a promulgação do “de-
ereto apostólico” segundo o qual os pagãos podem ser admitidos na
Igreja sob condição de se absterem da idolatria, da imoralidade, dos
animais asfixiados e do sangue.
Essas diferenças se explicam sem dificuldade a partir das concep-
ções próprias da história da salvação contada por Lucas. Admite-se,
portanto, de modo geral, que as duas cronologias relativas das epís-
tolas paulinas e dos Atos podem ser articuladas uma com a outra
com base na equivalência entre Gálatas 2,1-10 e Atos 15,5-21.

No contexto de outras hipóteses, identifica-se a visita de Gálatas 2,1-10


seja com a viagem mencionada em Atos 11,27-30, quando Paulo e Barnabé
são encarregados pela Igreja de Antioquia de levar seu apoio financeiro a Je-
rusalém1, seja com a viagem introduzida por Lucas em Atos 18,20-22. A iden-
tificação de Gálatas 2,1-10 com Atos 18,20-22 tem o resultado de encurtar
sensivelmente o conjunto da cronologia, visto que a primeira missão na Europa
(Filipos, Tessalônica, Corinto) é então incluída no período dos quatorze anos
precedentes ao encontro dos apóstolos em Jerusalém (G1 2,1-10); assim, pou-
co mais de vinte anos separariam a vocação de Paulo de sua última passagem
por Corinto e sua derradeira viagem a Jerusalém:
• Vocação de Paulo; 30
• Viagem para a Arábia (Gl 1,17): 30-33
• Viagem para a Síria e a Cilicia (Gl 1,21): 34-36
• Primeira viagem na Europa: 36-47
• I Tessalonicenses: 41
• Assembléia de Jerusalém (Gl 2,1 -10): 47
• Paulo em Éfeso: 48-50
• I Coríntios: 49
• 2 Coríntios e Gálatas: 501

1 Bem WITHERINGON III, The Paul Quest. The Renewed Search for the
Jew of Tarsus, Downers Grove, Intervarsity, 1998. A consequência da
identificação de Gálatas 2,1-10 com Atos 11,27-30 é a alta datação possível
da epístola aos Gálatas (por volta de 49), que se torna, assim, a carta mais
antiga do apóstolo.

176
Cronologia paulina

• Paulo em Corinto: 51-52


• Romanos: 5I/522

3.2. A inscrição de Galião e as tentativas de cronologia absoluta


As informações que nos fornecem as cartas de Paulo e os Atos
dos Apóstolos permitem construir a escala móvel de uma cronologia
relativa, mas elas não contêm os elementos necessários para fixar
essa escala num calendário da história geral.
O estabelecimento de uma cronologia absoluta torna-se possível
pelo cotejo entre o relato que Atos 18,12-17 faz do comparecimento
de Paulo perante Galião, irmão do filósofo Sêneca e, na época, pro-
cônsul na Acaia, e uma inscrição descoberta, em 1905, em Delfos,
que permite datar o proconsulado de Galião. A inscrição é datada da
vigésima sexta aclamação em honra de uma vitória imperial, isto é,
entre janeiro de 52 e Io de agosto do mesmo ano. Como o cargo pro-
consular dura um ano, que começa no início de julho e termina no fim
de junho, pode-se deduzir que Galião ocupou o posto em Corinto de
Io de julho de 51 a 30 de junho de 52. Se é verdade que Paulo compa-
receu perante Galião, no início de sua estada em Corinto (At 18,18),
e se é verdade que permaneceu um ano e seis meses em Corinto (At
18,11), então Paulo provavelmente se encontrava em Corinto entre
fins de 49 e o verão de 51, ou entre fins de 50 e a primavera de 52.
Com base nesse ponto fixo, e levando em conta as incertezas
ligadas ao cotejo das estadias corintianas de Paulo e de Galião e aos
descontos de Gálatas 1,18.21 e 2,1, pode-se converter a cronologia
relativa deduzida das cartas de Paulo e dos Atos em uma cronolo-
gia absoluta. Admitindo-se que Atos 15,5-21 corresponde a Gálatas
2 ,1-10, obtém-se o seguinte resultado:
• Vocação de Paulo: 32/34
• Viagem na Arábia: 32-35/34-37
• Viagem na Síria e na Cilicia: 35-48/37-49
• Assembléia dos apóstolos em Jerusalém: 48/49

2 Gerd LÜDEMANN, Paulus dr heidenapostel, Gottingen, Vandenhoeck


und Ruprecht, 1980, v. 1: Studien zur Chronologie.

177
A literatura paulina

Viagem na Europa: 48-56/49-57


Paulo em Corinto: 49-51/50-52
I Tessalonicenses: 50-52
Paulo em Éfeso: 51-54/52-55
1 Coríntios: 52/54
2 Coríntios 54/55
Paulo em Corinto: 55-56/56-57
Romanos: 56-57

3.3. A morte de Paulo


O primeiro testemunho da tradição que reporta o martírio de
Paulo em Roma encontra-se na epístola de Clemente de Roma, da-
tada geralmente do fim do primeiro século.

"Por ciúme e inveja, foram perseguidos e lutaram até a morte as nossas


colunas mais elevadas e mais retas. Fixemos nossa vista sobre os valorosos
apóstolos. Pedro, que por ciúme injusto não suportou apenas uma, ou duas,
mas numerosas provas e, depois de assim render testemunho, chegou ao lugar
merecido da glória. Por ciúme e discórdia, Paulo ostentou o preço da paciên-
cia. Sete vezes carregado de cadeias, exilado, apedrejado, arauto no Oriente
e no Ocidente, recebeu a ilustre glória por sua fé. Ensinou ao mundo todo a
justiça e chegou até os confins do Ocidente, dando testemunho diante das
autoridades. Assim deixou o mundo e foi em busca do lugar santo, ele, que se
tornou o mais ilustre exemplo de paciência!” (/ Clemente 5,2-7)3

3 Carta de São Clemente Romano aos Coríntios, trad, do original grego por
Dom Paulo Evaristo Arns, o.fm., Petrópolis, Vozes, 31970. (N. daT)

178
Cronologia paulina

Cronologia relativa: Cronologia relativa: Cronologia absoluta


Paulo Atos
Gaiatas 1,17: na Arábia e Atos 9,19b-25: prega- = cerca de 35/37
em Damasco ção em Damasco
Atos 9,26-31: viagem a
Jerusalém (1)
Gálatas 1,18-19: três anos Atos 11,30: viagem a
depois, viagem a Jeru- Jerusalém (11)
salém, onde permanece
quinze dias
Gálatas 1,21: na Síria e na Atos 13,1-14,28: pri-
Cilicia meira viagem
Gálatas 2,110‫ ־‬: quatorze Atos 15,1-21: viagem a
anos depois, segunda via- Jerusalém (111) “assem- cerca de 48/49
gem a Jerusalém bléia dos apóstolos”
Gálatas 2,11-21: incidente
de Antioquia
1Tessalonicenses 2,2: A tos 15,35-18,22:
Filipos e Tessalônica segunda viagem A inscrição de Ga-
1Tessalonicenses 3,1: lião em Delfos: entre
Atenas 25.1 e 1.8.52
I Tessalonicenses 3,1-6: Galião em Corinto:
Atos 18,12: Galião pro-
Corinto 1.7.51-30.6.52. Paulo
cônsul na Acaia
1 Tessalonicenses em Corinto: entre
Atos 18,11: um ano e seis
(+ Gálatas?) fim de 49 e o verão
meses em Corinto
de 51 e fim de 50 e a
Atos 18,20-22: viagem
primavera de 52.
a Jerusalém (IV)
= de 51/52 a 54/55
A tos 18,23-21,26:
terceira viagem
1Coríntios 16,8: em Efeso Atos 19,8.10: três meses
até Pentecostes e dois anos em Efeso
1 Coríntios (+ Gálatas? +
Filipenses?)
2 Coríntios 2,12-13: Paulo
em Trôade
2 Coríntios 7,5-7: Paulo na
Macedonia
2 Coríntios
2 Coríntios 9,4; 10,2; 12,14;
13,1.10: viagem a Corinto
1Coríntios 16,6: inverno Atos 20,3: três meses na : 55-56 ou 56-57
em Corinto Grécia (= Corinto)
Romanos (+ Gálatas?)

179
A literatura paulina

Cronologia relativa: Cronologia relativa: Cronologia absoluta


Paulo Atos
Romanos 15, 25-27: piano Atos 20,1-21,26: via-
de viagem a Jerusalém gem a Jerusalém (V)
(Filipenses? em Cesaréia) Atos 21.27-23,22: pri-
Romanos 15,24.28: pianos são em Jerusalém
de viagem para a Espanha Atos 23,22-26,32: dois
anos em Cesaréia
Atos 27,1-28,31:
quarta viagem
Malta (três meses),
Siracusa (três meses)
Pozzuoli (sete dias) e
Roma (dois anos)

4 . B ib l io g r a f ia
BAUR, Ferdinand Christian. Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben
und sein Wirken, seine Briefe und sein Lehre. Stuttgart, Becher und
Miller, 1845.
BECKER, Jurgen. Paul, “Lapôtre des Nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995.
LEGASSE, Simon. Paul apôtre. Essai de biographie critique. Paris/Mon-
tréal, Cerf/Fides, 1991.
RIGAUX, Béda. Saint Paul et ses lettres. Paris/Bruges, Descléede Brouwer,
1962, 99-138 (Studia neotestamentica, Subsidia 2).
HEGEL, Martin, SCHWEMER, Anna Maria. Paul Between Damascus
and Antioch: T h e Unknown Years. London, SCM Press, 1997.
JEWETT, Robert. A Chronology o f Paul’s Life. Philadelphia, Fortress
Press, 1979.
LOHSE, Eduard. Paulus, Eine Biographie. München, Beck, 1996.

Leitura prioritária
BORNKAMM, Gunther. Paul, apôtre de Jesus-Christ. Genève, Labor et
Fides, 19882, 35-158 (Monde de la Bible 18).

180
CAPÍTULO

7
O corpus paulino
François Vouga

1. A s CARTAS PAULINAS E A PESQUISA RECENTE


“Estamos sentados sobre ombros de gigantes e vemos mais lon-
ge do que eles.” A história da interpretação das cartas paulinas é
marcada por duas figuras que continuam a ser referência para a pes-
quisa recente sobre a importância histórica e teológica de Paulo. A
primeira é a de Ferdinand Christian Baur (1792-1860). Discípulo de
Hegel, Baur retomou a filosofia da história elaborada pelo mestre
para aplicá-la aos desenvolvimentos do cristianismo. Segundo Baur1,
a teologia da primeira geração cristã foi dominada pela tensão rei-
nante entre dois movimentos antitéticos, um cristianismo conserva-
dor que permaneceu estreitamente ligado ao judaísmo e personifi-
cado por Pedro, em oposição ao cristianismo internacional e liberal
preconizado pelo apóstolo Paulo. Essa teologia da história valoriza
a posição radical do pensamento paulino no espectro da diversida-
de doutrinai que se observa no Novo Testamento. A segunda figura
que domina a leitura moderna do paulinismo é a de Rudolf Bultmann
(1884-1976). Herdeiro do existencialismo de S0ren Kierkegaard e
da fenomenologia de Husserl, Bultmann propôs uma interpretação

1 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben
und Wirken, seine Briefe und seine Lehre, Stuttgart, Becher und Müller,
1845.

I8l
A literatura paulina

da teologia paulina que se apresenta como uma descrição da auto-


compreensão da existência humana, dominada seja pelo poder do
pecado, seja pelo da justiça de Deus2. A força dessa leitura reside em
sua capacidade de mostrar tanto a coerência do sistema de convic-
ção elaborado nas epístolas como a plausibilidade antropológica do
Evangelho paulino.
A apresentação a seguir se esforça por reportar os novos conhe-
cimentos adquiridos e os deslocamentos propostos pela pesquisa
recente. Assim se explica a ênfase dada à consideração e à inter-
pretação do corpus paulino como obra literária em si: a coleção das
epístolas paulinas é mais do que a soma das cartas que a constituem.
Assim se explica também a preocupação de compreender a mensa-
gem das cartas com base em sua argumentação própria, sem pro-
curar reconstruir seus “adversários”, sempre hipotéticos. O diálogo
com Baur continua na convicção de que a verdade do Evangelho
paulino se exprime na contingência e de que para sua compreen-
são é necessário tomar a sério a história. O diálogo com Bultmann
obriga, ao contrário, a ligar existencialmente a questão da verdade
como poder de libertação ao conjunto das discussões de ordem lite-
rária e histórica.

1.1. Cartas e coleção de cartas


O cânon do Novo Testamento conserva 13 ou 14 cartas atribuídas
ao apóstolo Paulo. Sete delas são dirigidas a comunidades partícula-
res: uma carta aos cristãos de Roma, duas à Igreja de Corinto, uma
à Igreja de Colosso, uma à Igreja de Efeso e duas à Igreja de Tessa-
lônica; uma carta circular destinada às Igrejas da Galácia e quatro
escritas a pessoas individuais: duas a Timóteo, uma a Tito e uma a
Filêmon. Quanto à décima quarta e última, a epístola aos Hebreus,
ela se apresenta, no início, como uma pregação, mas termina com
saudações epistolares à semelhança das outras cartas de Paulo; a

2 Rudolf BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, Tubingen, Mohr,


1948-1935; reed.: Tubingen, Mohr, 1980.

182
O corpus paulino

tradição manuscrita hesita entre sua integração e sua exclusão da


coleção das epístolas do apóstolo.
As cartas de Paulo não são cartas íntimas. O leitor se enganaria
se pensasse, ao abri-las, que estaria se imiscuindo indiscretamente
na correspondência alheia: por um lado, Paulo, certamente, dirigiu
suas cartas a comunidades particulares que tinham sua própria his-
tória e suas próprias particularidades, mas a saudação de várias de
suas cartas mostra precisamente que elas se dirigem, além de aos
destinatários explicitamente nomeados, ao conjunto da cristanda-
de. A formulação mais clara é a de 1 Coríntios 1,1-2, que faz dessa
carta um manual de vida cristã destinado a “todos os que, em todo
lugar, invocam o nome de Jesus Cristo”. As cartas de Paulo não de-
pendem, por conseqüência, do gênero de correspondência pessoal e
íntima; elas foram concebidas para o ensino e a edificação de todos
os cristãos.
Esse aspecto eclesial e público das cartas paulinas explica por que
se apoiam na prática litúrgica das comunidades às quais se dirigem:
duas vezes Paulo se refere explicitamente às tradições que ele mes-
mo recebeu (1 Cor 11,23 e 15,3), e pode-se pensar que em muitas
outras passagens (Rm 1,4-5; 3,25; 4,25; G1 1,3-4; 3,18; F1 2,6-11) a
argumentação do apóstolo cita fórmulas de hinos ou de confissões
de fé conhecidas de seus leitores, para se apoiar na experiência deles
ou para reinterpretar as idéias recebidas. A dimensão eclesial e pú-
blica determina também a forma sob a qual as cartas paulinas foram
desde logo transmitidas: como a correspondência de muitos autores
antigos e modernos, as diferentes cartas de Paulo não foram conser-
vadas, recopiadas e divulgadas individualmente: elas foram editadas
e transmitidas em forma de coleção. Esse procedimento, já bem
conhecido na Antiguidade, nos é familiar, pois podemos comprar
em qualquer livraria a correspondência ou as cartas de Vincent van
Gogh, de Charles-Ferdinand Ramuz ou de Stravinsky. Acontece
com as cartas de Paulo o mesmo que com as de Platão ou de Cícero:
antes de tratar de cartas particulares, o leitor se confronta com a
coleção em seu conjunto, que delimita a escolha e a ordem dos do-
cumentos conservados.

183
A literatura paulina

1.2. O problema da pseudepigrafia: cartas “autênticas” ou


“protopaulinas”, “dêutero-paulinas” e “tritopaulinas”
Quem fala de coleção de cartas pressupõe, ipso facto, um processo
de edição no correr do qual os documentos conservados são reuni-
dos, editados e difundidos. Alguns autores publicam eles mesmos sua
correspondência. Têm, assim, ocasião de decidir sobre a forma sob
a qual querem pô-la à disposição do público. Outras correspondên-
cias são objeto de publicações científicas e críticas. O editor verifica o
conteúdo, a proveniência e a destinação de sua composição.
A coleção de cartas paulinas resulta de um outro processo que
a assemelha a outras coleções, como as das cartas de Platão ou de
Epicuro. São cartas de filósofos, de chefes de escola e de mestres
do pensar. Foram lidas, conservadas, reunidas e transmitidas pela
comunidade de seus alunos, que a elas se referem como a textos
fundadores. Quer dizer que essas cartas não são consideradas e
tratadas somente como documentos históricos, mas também como
os testemunhos, para a vida atual, da verdade ensinada por seu
autor. Para manter vivo seu ensinamento, para preencher o vazio
criado por sua ausência e para resolver, em seu espírito, os proble-
mas novos surgidos depois de sua morte, os círculos de alunos e de
discípulos completam sua correspondência com cartas de sua com-
posição, que têm por finalidade atualizar a mensagem do mestre e,
portanto, o conjunto da coleção. De acordo com um procedimento
que nossa concepção romântica da propriedade intelectual reprova,
mas que exprime na Antiguidade um sentimento de veneração e
respeito, essas cartas “pseudepigráficas”, isto é, colocadas fictícia-
mente sob a assinatura de um autor que não é o delas, têm por fim
fazer viver a palavra do filósofo ou do apóstolo nos novos tempos.
Vejam bem: elas não são falsificações, mas exprimem, ao contrário,
a consciência que o cristianismo tinha de viver da palavra e da pre-
sença de seu fundador.

O limite exato entre as cartas que se podem considerar de autoria do


próprio Paulo e as cartas paulinas pseudepigráficas deve, nesse caso, ser
traçado com delicadeza e prudência. Como se fica sabendo em Romanos
16,22, em que Tércio se apresenta como aquele que “escreveu esta carta

184
O co rp u s paulino

[isto é, Rm 16 ou toda a epístola] no Senhor” e se permite tomar diretamen-


te a palavra para saudar seus leitores, e como se vê também em 1 Coríntios
16,21, Filêmon 19 e Gálatas 6,11-18, em que o apóstolo declara ter tomado
da pena para concluir a carta com sua própria mão, Paulo não tem o hábito
de escrever ele mesmo: recorre aos serviços de um secretário, como muitos
outros correspondentes de seu tempo e de hoje3. Na Antiguidade, qual era
a função de um secretário e que parte desempenhava na formulação das
cartas? A resposta a esta questão é muito simples, porque não mudou com
0 tempo: isso depende e pode variar totalmente. O expedidor pode tanto
ditar sua mensagem palavra por palavra como assinar uma carta redigida
inteiramente por seu secretário. A precisão e a constância da argumentação
teológica, entretanto, permitem pensar que o apóstolo, ele mesmo, deve,
em todo caso, ser tido como responsável pelas grandes cartas aos Romanos,
aos Coríntios e aos Gálatas.

Se, então, todas as cartas do corpus paulino reivindicam a autoria


do apóstolo Paulo, nem todas as cartas escritas pelo apóstolo fo-
ram necessariamente conservadas no cânon, como mostra, talvez,
1Coríntios 5,9, ao passo que aquelas que nele foram integradas não
são todas, provavelmente, de sua pena. Segundo um certo consenso
da pesquisa, sete cartas são consideradas “autênticas”, quer dizer,
ditadas e enviadas pessoalmente pelo apóstolo:
• a epístola aos Romanos
• as duas epístolas aos Coríntios
• a epístola aos Gálatas
• a epístola aos Filipenses
• a primeira epístola aos Tessalonicenses
• a epístola a Filêmon
A utilização do adjetivo “autêntico” para designar as cartas nas-
cidas da pena ou da voz do apóstolo se presta, todavia, a confusão.
Com efeito, “autêntica” não afirma somente a identidade entre o
signatário da carta e seu autor, mas implica um juízo de valor so-
bre os escritos: “autêntica” significa, de fato, tanto “escrita ou di-
tada pelo próprio Paulo” como “dando testemunho da verdade do

5 E. Randolph RICHARDS, The Secretary in the letters o f Paul, Tubingen,


Mohr, 1991.

185
A literatura paulina

Evangelho”, ao passo que “inautêntico” implica uma desqualificação


do conteúdo das cartas pseudepigráficas. E por essa razão que re-
nunciamos, daqui em diante, a essa terminologia corrente. As sete
cartas atribuídas ao próprio Paulo serão chamadas protopaulinas, as
que são obra de seus discípulos mais próximos (2 Tessalonicenses,
Efésios e Colossenses) serão chamadas deuteropaulinas e as mais
tardias (as epístolas ditas “pastorais” a Timóteo e aTito) serão cha-
madas tritopaulinas. Com essa nomenclatura, ressaltamos que todas
as cartas do corpus paulino dependem de Paulo e situam-se tanto em
sua esteira como em sua autoridade.

1.3. A liberdade paulina e seus inimigos: o problema dos


“adversários” nas cartas de Paulo
Alguns escrevem por prazer, a maioria o faz por necessidade. As
cartas paulinas, quer sejam proto, dêutero, ou tritopaulinas, não esca-
pam à regra. Isso significa que a argumentação que desenvolvem não
se constrói no vazio, mas é em grande parte determinada pelas contin-
gências históricas. Por um lado, o apóstolo deve deixar clara sua com-
preensão do Evangelho em nome do qual fundou suas Igrejas. Por ou-
tro lado, ele desfaz mal-entendidos que possam ter surgido entre ele e
seus destinatários. Finalmente, ele toma distância em relação a outros
ensinamentos ou a outros apóstolos que, conforme sua própria convic-
ção, deformam ou traem a força libertadora do Evangelho de Deus.
Desde a segunda metade do século XIX, a pesquisa, interessada
na reconstrução das diferentes correntes de pensamento que mode-
laram a história da teologia cristã do primeiro século, esforça-se por
reconstituir com precisão o perfil daqueles que se costuma chamar
de “adversários” de Paulo. 1
Neste ponto, como no precedente, decidimos optar pela prudên-
cia, que corresponde, aliás, a uma tendência da pesquisa moderna.
Por outro lado, o pensamento e as idéias teológicas dos “adversários”
de Paulo não nos são acessíveis senão pela argumentação que o pró-
prio Paulo lhes opõe. Parece-nos, portanto, problemático procurar
interpretar as afirmações paulinas com base numa reconstrução da
posição de seus adversários que é, ela mesma, inteiramente depen-

186
O co rp u s paulino

dente do texto paulino. Metodologicamente, seria entrar em um cír-


culo vicioso. Por outro lado, das sete cartas protopaulinas, a epístola
aos Gálatas é a única que contém indícios indiscutíveis que nos per-
mitem constatar que Paulo mantém um verdadeiro debate teológico
com os adversários, defendendo uma outra interpretação do cristia-
nismo. Não se encontram indícios iguais nem na epístola aos Roma-
nos, na qual o apóstolo expõe seu Evangelho a comunidades que não
o conhecem, nem na epístola aos Filipenses, na qual não há nada que
ateste a presença de “adversários” na comunidade. Não se encon-
tram também nas epístolas aos Coríntios: os dados textuais permitem
perceber tensões tanto no interior da Igreja de Corinto como entre
alguns de seus membros e o apóstolo; essas tensões, aliás, parecem
reforçadas pela presença de outros apóstolos que, de passagem por
Corinto, falaram mal de Paulo. Entretanto, nada autoriza a aumentar
as proporções dos conflitos e deduzir debates teológicos de fundo.

Evidentemente, é sempre possível construir "em espelho” o que se imagi-


na ser a teologia dos “adversários”: interpreta-se cada afirmação do apóstolo
como uma refutação da posição adversa e reconstrói-se, assim, por simetria,
um sistema de convicção. Esse procedimento é, entretanto, metodologicamen-
te arbitrário, na medida em que não é fundado nas informações explícitas forne-
cidas pelo texto e não se limita, estritamente, ao que elas permitem deduzir.

1.4. Paulo e a interpretação da teologia paulina


A leitura que fazemos das cartas paulinas não é destituída de
pressuposições. Nossa compreensão de sua concepção da liberdade
e de sua teologia da justiça é fortemente determinada pela redesco-
berta que delas fez Lutero e pelo conflito de interpretações então
desencadeado. A interpretação luterana da justificação paulina, de
fato, não só impregnou a exegese paulina protestante mas também,
por contragolpe, a imagem que a pesquisa bíblica católica lhe devol-
veu e o debate travado entre as duas4.

4 Um bom exemplo dessa tradição de interpretação orientada pelos debates


confessionais é fornecido pelo comentário de Pierre BONNARD, Lépitre

187
A literatura paulina

A pregação luterana da justificação opõe, em face de uma tradi-


ção medieval marcada por Aristóteles, a fé e as obras. A única obra
que Deus pede, não cessa paradoxalmente de repetir o Sermão das
boas obras5, é crer nele. Essa oposição entre fé e obras é, na verdade,
atestada no Novo Testamento, mas somente na epístola a Tiago.
Ela não se encontra, em compensação, no Evangelho paulino, que
afirma que Deus não justifica em virtude da Lei, mas pela fé de e
em Jesus Cristo. A oposição entre fé e obras, decisiva para o debate
iniciado pela Reforma de Lutero, não tem muito sentido para Paulo.
De fato, como mostraram as pesquisas recentes sobre a teologia ju-
daica e sobre a compreensão paulina da Lei, a função da Lei judaica
não é, principalmente, exigir um fazer, mas marcar um limite entre o
povo da Aliança e os pagãos, que, não importa o que façam e quais
sejam suas obras, permanecem excluídos da eleição divina6. Como
se pode ver, particularmente na epístola aos Romanos e na epístola
aos Gálatas, a afirmação do Evangelho paulino é que Deus não es-
tabelece sua justiça, isto é, uma relação justa com a pessoa de sua
criatura, em virtude da qualificação assegurada por sua pertença ao
povo eleito da Lei, mas a estabelece de modo incondicional, reque-
rendo apenas de sua criatura a confiança necessária para receber
sua justiça (quer dizer, sua origem e sua identidade) como dom gra-
tuito do Criador. E por isso que os Pensamentos de Blaise Pascal, que
opõem o não-amor que ama qualquer um por suas qualidades ao
amor verdadeiro que é amor à pessoa, independentemente de suas
qualidades7, parecem nos propor uma interpretação muito mais exa-
ta do Evangelho paulino da justiça de Deus que a discussão sobre as
obras e os méritos: a boa-nova da justificação pela fé em Jesus Cris-
to é o anúncio libertador do estabelecimento de uma justa re!açã<p

de saint Paul aux Galates, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 21972 [1. ed.
1953],
5 Martin LUTHER, Des bonnes oeuvres, WA 6, 196-276, in Oeuvres I,
Genève, Labor et Fides, 1957, 207-295; ou Oeuvres /, Paris, Gallimard,
1999,435-533.
6 Ed Parish SANDER, Paul and Palestinian Judaism. A Comparison of Pat-
terns of Religion, Minneapolis/London, SCM, 1977.
7 Blaise PASCAL, Pensées, Br 323 = MSL 688, série 25.

188
O co rp u s paulino

com Deus, consigo mesmo e com os outros, pela confiança na fé que


Jesus Cristo teve em seu Pai.

1.5. A teologia paulina e o judaísmo


A compreensão da relação de Paulo com o judaísmo é uma em-
presa que se torna impossível caso se perca de vista a realidade his-
tórica de sua vocação apostólica e de seu Evangelho.
1. Paulo nunca entendeu a revelação que Deus lhe fez de Je-
sus Cristo e a boa-nova do Evangelho que dela decorre
como ruptura com o judaísmo: a vocação que lhe foi diri-
gida de se tornar o apóstolo dos gentios (G1 1,12-16) for-
çou Paulo a se converter ao Deus que já era o seu. É mais
justo, portanto, na medida em que se pretende explicar as
afirmações contidas nas epístolas paulinas, falar em voca-
ção de Paulo em vez de falar em conversão.
2. A idéia de que Paulo teria se convertido do judaísmo ao cris-
tianismo contradiz fortemente a compreensão que Paulo
tem de sua história. Para Paulo, foi o Deus de Abraão que se
revelou a ele em Jesus Cristo, de modo que o Evangelho não
se apresenta a ele como uma alternativa à tradição judaica;
pelo contrário, ele o percebe como a compreensão que Deus
lhe deu da bênção de Abraão, da promessa e da eleição, isto
é, daquilo que constitui o essencial da tradição judaica.
3. A consequência imediata dessa convicção é que Paulo
continua muito naturalmente a frequentar a sinagoga. Lá
ele é certamente considerado um mestre da heresia (2 Cor
11,24-25), e os responsáveis da sinagoga o tratam como
ele mesmo, Paulo, tinha tratado e perseguido os cristãos
em seu passado fariseu (G1 1,13.23). Ele sabe, entretanto,
por uma revelação de Deus, que não é a Lei e a pertença a
um povo eleito que justifica, mas apenas o Deus que pode
dar a vida (Gl 3,21).
4. A idéia de que Paulo teria se convertido do judaísmo ao
cristianismo é anacrônica. O debate que opõe, de um lado,

189
A literatura paulina

Paulo a seu passado fariseu e, de outro, a sinagoga à prega-


ção “sem a Lei” do apóstolo dos gentios é uma controvér-
sia interna do judaísmo; ela incide sobre a definição que o
judaísmo deve dar de si mesmo. O conceito de cristianis-
mo é totalmente alheio a Paulo e não podería haver, para
ele, confrontação entre “judaísmo” e “cristianismo”. A
confrontação que existe muito claramente, e que Paulo se
recusa a subestimar porque se trata da verdade do Evan-
gelho de Deus (G11,10-12; 2,1-10), é um conflito entre duas
compreensões do judaísmo: ao lhe revelar seu Filho, Deus
revelou a Paulo que a tradição dos fariseus se enganava a
respeito de Deus e de qual é a verdade do judaísmo.

Articular a leitura de Paulo e nossa relação com o judaísmo é uma tarefa que
não podemos realizar se perdemos de vista a realidade histórica que é a nossa.
Esta é caracterizada particularmente pela ruptura, sobrevinda no correr do
tempo, entre o cristianismo e o judaísmo, e pelo fato de que a fé cristã e a per-
tença ao judaísmo constituem duas entidades religiosas distintas.
A acusação de antijudaísmo feita, às vezes, a Paulo resulta de uma confu-
são típica entre a realidade que era a do apóstolo e a realidade a que pertencem
seus intérpretes. O antijudaísmo é próprio das interpretações de Paulo que
abusam do debate que o apóstolo dos gentios introduziu no judaísmo, para
desqualificá-lo do exterior. Atribuir a Paulo atitude ou propósitos hostis ao
judaísmo é um procedimento singular, que consiste em acusar um judeu do
primeiro século da responsabilidade pelas ações cometidas contra o judaísmo
por não-judeus e pagãos. Um outro resultado da mesma confusão consiste
na busca de uma atitude “politicamente correta” que minimiza os desacordos
entre Paulo e o farisaísmo de seu tempo a fim de reduzir as diferenças entre
cristianismo e judaísmo.
No primeiro caso, tenta-se mostrar que a crítica paulina da Lei não diz
respeito a toda a Lei, mas somente ao domínio do culto e das regras de pureza
ritual8. No outro, tenta-se mostrar que as formulações paulinas já têm seu
equivalente no próprio judaísmo9. Ora, se a distinção entre lei ritual e lei moral
está presente tanto no Novo Testamento (Mc 7,1-23) como na tradição cris-

s James D. G. DUNN, A Commentary on the Epistle to the Galatians, Lon-


don, Black, 1993.
9 Literatura e discussão: François VOUGA, An die Galater, Tübingen, Mohr,
1998, 58.

190
O c o rp u s paulino

tã, ela está precisamente ausente da problemática paulina da justiça. E, se é


verdade que o judaísmo conhece a expressão as “obras da Lei", ele não opõe,
jamais, como duas atitudes existenciais, a justiça pela fé a uma justiça ilusória
"pelas” obras da Lei.
A tarefa e a responsabilidade da interpretação da obra de Paulo consistem
em expor seu radicalismo e sua significação para o conhecimento de Deus e
para a compreensão da existência humana. O diálogo entre judaísmo e cristia-
nismo não pode fazer economia de um reconhecimento honesto dos desacor-
dos e das diferenças.

2. O CORPUS PAULINO COMO COLEÇÃO DE CARTAS


2.1. O gênero literário da coleção
As cartas da Antiguidade que conhecemos chegaram até nós, de
modo geral, de três maneiras diferentes.
1. Uma quantidade de cartas isoladas foi encontrada in-
teira, ou sob forma de fragmentos. Trata-se de papiros
descobertos principalmente no Egito, porque foi lá que
as condições climáticas melhor os conservaram. Essas
cartas dependem de diferentes formas de correspondên-
cia particular: cartas de amizade e familiares, cartas de
soldados em campanha a suas famílias, cartas de reco-
mendação, cartas de solicitação, cartas de agradecimen-
to etc.
2. Um certo número de cartas chegou até nós porque elas
são citadas em obras da literatura antiga que nos foram
transmitidas por outras vias. Temos até alguns exemplos
no interior do cânon bíblico. Para indicar apenas algu-
mas: Jeremias 29,4-32 contém uma carta do profeta aos
deportados; 2 Macabeus 1,1-9 e 2 Macabeus 1,10-2,18
apresentam duas cartas de judeus de Jerusalém e da Ju-
déia para os judeus do Egito; o Apocalipse siríaco de Baruc
78,2-86,3 contém uma carta de Baruc aos judeus depor-
tados; Atos 15,23-29 retranscreve uma carta dos apósto-
los, dos anciãos e dos irmãos de Jerusalém para a comu-
nidade de Antioquia. E, evidentemente, difícil avaliar, de
cada vez, em que medida essas cartas são documentos

191
A literatura paulina

originais ou composições redacionais do autor do texto


em que estão inseridas.
3. Um número importante de cartas antigas nos chegou sob
a forma de coleções de cartas. É assim que dispomos, por
exemplo, de cartas de Sócrates, de Platão, de Epicuro, de
Sêneca, de Horácio, de Isócrates, de Demóstenes, de Cí-
cero ou da correspondência entre Plínio, o Jovem, e o im-
perador Trajano.
Essas coleções de cartas foram editadas e publicadas como livros.
As vezes foram ditadas e publicadas pelo próprio autor, que, nesse
caso, tem o cuidado de procurar as cartas das quais não tem dupli-
cata (Cícero, Cartas a Atico 4,6,4) e de revisar sua correspondência
em atenção à imagem que pretende dar de si mesmo ao público (Cí-
cero, Cartas a Atico 16,5,5; Plínio, o Jovem, Cartas 1,1,1). Mais ra-
dical ainda é a atitude de Horácio, que concebe suas epístolas como
uma obra poética e que, combinando verdade e ficção, dirige sua úl-
tima carta ao livro no qual as recolhe e as publica (Horácio, Epístolas
1,20). Mas o trabalho de colação, de revisão e de edição pode tam-
bém ser confiado a um secretário. Em outros casos, como o de Pia-
tão por exemplo, esse trabalho foi visivelmente empreendido mais
tarde pelas escolas filosóficas, que contribuem assim para a difusão
da obra do mestre e acrescentam às cartas autênticas novas cartas
que as atualizam ou comentam. Em outros casos, enfim, como o
das cartas de Sócrates, o conjunto da correspondência foi composto
como uma ficção literária.
Como se vê, a gama de procedimentos utilizados não é essencial-
mente diferente daquela que preside a publicação, no mundo literá-
rio moderno e contemporâneo, da corresponência de pensadoreè,
escritores, artistas e políticos.

2.2. O corpus paulino como coleção


As primeiras coleções de cartas cristãs são as de Paulo e as de
Inácio de Antioquia. Nos anos 120-135, Policarpo testemunha a
constituição do corpus de cartas de Inácio (Policarpo, Epístola aos

192
O co rp u s paulino

Filipenses 13,2). Na mesma época, ou ainda mais cedo, a epístola de


Clemente de Roma aos Coríntios apóia-se na argumentação de 1
Coríntios (/ Clemente 47,1-2); Inácio de Antioquia menciona a carta
que Paulo dirigiu aos efésios (InEf 12,2), e Policarpo lembra, em sua
carta aos filipenses, a ação de graças dada, por causa de seus desti-
natários, no início de sua carta (PolFil 11,3). 2 Pedro 3,16, por volta
da metade do século II, parece já conhecer uma coleção de "todas
as cartas” de Paulo.
Se uma ou várias coleções de cartas paulinas começaram a ser
constituídas desde o fim do século I, como é geralmente admitido, é
provável que a tradição manuscrita do Novo Testamento não con-
tenha mais as cartas de Paulo na forma em que foram enviadas pelo
apóstolo e recebidas pelas comunidades destinatárias; trata-se de
versões arranjadas tendo em vista sua edição e sua circulação como
coleção. O texto das epístolas guarda, às vezes, traços evidentes
desse trabalho de edição; o mais significativo é o da anexação de
1 Coríntios 14,33b-36 para corrigir 1 Coríntios 11,2-16 e preparar 1
Timóteo 2,8-15.

O princípio da ordenação das cartas e suas exceções


A ordem na qua! as cartas aparecem nos manuscritos antigos e
nos catálogos pré-canônicos, que contêm a lista dos escritos lidos e
reconhecidos nas Igrejas (Canon de Muratori, Catálogo Claromon-
tanus, Canon Mommsen, 39a Carta de Páscoa de Atanásio), fome-
ce informações suficientes para permitir formular algumas hipóteses
sobre a história da coleção de cartas paulinas.
Com exceção de Marcião, que coloca a epístola aos Gálatas en-
cabeçando o corpus paulino, porque encontra nela o fundamento de
seu próprio programa hermenêutico (Epifânio, Contra as heresias
42; Tertuliano, Contra Marcião IV,5 e V,2,1-4,15), a disposição geral-
mente seguida ordena as cartas segundo sua extensão decrescente.
Ora, duas cartas fazem freqüentemente exceção a essa regra. A
primeira é a epístola aos Efésios que, segundo esse critério, deve-
ria ter seu lugar antes da epístola aos Gálatas e encontra-se muitas

193
A literatura paulina

vezes relegada ao quinto lugar. A segunda é a epístola aos Hebreus,


que nem sempre é incluída no corpus paulino, e quando é vê-se co-
locada no fim da lista ou então (em razão de sua extensão) entre
Romanos e 1 Coríntios.
A falta de unanimidade na sequência das cartas mostra que pro-
vavelmente na origem não existia uma única coleção das cartas pau-
linas; várias coleções foram, inicialmente, constituídas e, em seguida,
combinadas101. Em todo caso, parecem ter sido postas em circulação
uma coleção de quatorze cartas (com Hebreus), uma coleção de tre-
ze cartas (sem Hebreus) e também uma coleção de dez cartas (a de
Marcião, sem Hebreus e sem as epístolas pastorais)11.

Romanos, Hebreus, 1 Coríntios e Efésios como


cartas “católicas"
A tradição manuscrita de Romanos, 1 Coríntios e Efésios apre-
senta a particularidade de atestar duas versões de cada uma dessas
cartas. Uma das versões é dirigida à comunidade destinatária (Rm
1,7.15; ICor 1,2; Ef 1,1). A saudação da outra versão não contém
menção nenhuma às comunidades particulares de Roma ou de Co-
rinto e dirige a carta “aos que estão na paz de Deus” (Rm 1,7: G
012), “à Igreja de Deus, aos que foram santificados em Cristo” (1
Cor 1,2: versão deduzida diretamente da inversão atestada por P46,
B D* F G), “aos santos e fiéis” (Ef 1,1: P46 Sin* B*). Pode-se imagi-
nar que essas versões "católicas” de Romanos, 1 Coríntios e Efésios,
bem como de Hebreus, tenham circulado nas Igrejas12 independen-
temente umas das outras. Mas pode-se também pensar que uma
coleção dessas epístolas “católicas” de Paulo, compreendendo e in-
1

10 Kur ALAND, Die Entstehung des Corpus Paulinum, in Neutestamentliche


Entwürfe, München, Kaiser, 1979, 302-350.
11 Adolf von HARNACK, Die Briefsammlung des Aposteis und die anderen
workonstantinischen christlichen Briefsammlugen. Sechs Vorlesungen aus
der altkirchlichen Literaturgeschichte, Leipzig, Heinrich, 1926, 6-27.
12 Nils Alstrup DAHL, The Particularity of the Pauline Epistels as a Problem
in the Ancient Church, in Neotestamentica et Patristica. Festschrift O.
Cullmann, Leiden, Brill, 1962, 261-271.

194
O co rp u s paulino

tegrando Hebreus no corpus paulino, tenha sido publicada, difundida


e utilizada paralelamente a uma outra coleção que classificava e de-
signava as cartas segundo seus destinatários13.

A s primeiras coleções das cartas paulinas


Para explicar o lugar singular que Efésios ocupa já em P46 e que se
impôs, em seguida, de fato, no cânon neotestamentário, D. Trobis-
ch14formulou a hipótese da circulação, inicialmente, de uma primei-
ra coleção de cartas contendo apenas as quatro “grandes cartas”
aos Romanos, aos Coríntios e aos Gálatas. Segundo essa hipótese,
um primeiro trabalho de revisão e de redação necessário para a pu-
blicação e para a difusão dessa primeira coleção foi assegurado pelo
próprio Paulo.
Quer essa hipótese seja correta ou não, duas coleções parecem
ter sido constituídas, editadas, revistas e postas em circulação depois
da morte do apóstolo: por um lado, a coleção católica de Romanos,
1 Coríntios, Efésios e Hebreus; por outro lado, uma coleção redigida
por uma escola paulina, seja em Corinto, seja em Éfeso; a escola
completou as quatro grandes cartas, ou a primeira edição das quatro
grandes cartas, com as três outras que Paulo não tinha, ele mesmo,
publicado (FI, ITs e Fm), e a elas juntaram as epístolas aos Colossen-
ses e aos Efésios15 e, mais tarde, as epístolas pastorais16. Da combi-
nação dessas coleções resulta o corpus paulino das quatorze cartas,
que constitui o ponto de partida do cânon neotestamentário.

13 David TROB1SCH, Die Entstehung der Pauiusbriefsammlung. Studien zu


den Anfungen christlicher Publizistik, Fribourg/Gõttingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1989.
14 Ibid.; também ID., Die Paulusbriefe und die Anfange der christlichen Publizi-
stik, Gütersloh, Kaiser, I994.
15 Edgard J. GOODSPEED, The Meaning o f Ephesians, Chicago, [s.n.] 1933.
16 Walter SCHMITHALS, Die Briefe des Paulus in ihrer ursprünglichen Form,
Zurich, Teologischer Verlag, 1984. Schmithals reconstitui uma coleção prin-
cipal (correspondência com Corinto, Galácia, Filipos, Tessalônica, Roma e
Éfeso, caso Rm 16 constitua uma palavra de saudação acompanhando o en-
vio de uma cópia da carta aos Romanos para Éfeso), uma pequena coleção
paralela (Colossenses, Efésios, Filêmon) e a coleção das epístolas pastorais.

195
A literatura paulina

3. A s CARTAS PAULINAS COMO EPÍSTOLAS APOSTÓLICAS


3.1. O gênero literário da carta antiga
A epistolografia antiga, constituída pela reflexão de autores como
Cícero, Sêneca, Horácio ou Plínio sobre sua própria atividade epis-
tolar, bem como pelos manuais antigos de práticas corretas (p. ex.:
Demétrio, Do estilo17), é muito consciente das particularidades da
comunicação epistolar.
Claro, a função primária da carta é substituir uma visita e um diá-
logo direto que não podem ser realizados. Seu primeiro papel é assegu-
rar uma certa presença do parente, do amigo ou do interlocutor ausen-
te. E por essa razão que o anúncio de uma próxima visita e o desejo de
reencontros, que pode exprimir sentimentos verdadeiros, fazem parte
do próprio gênero da carta para a família ou para os amigos.
Dito isto, às vezes é melhor escrever do que se encontrar e dis-
cutir de viva voz. Cícero escreve uma carta um pouco delicada a
Lúcio, que está escrevendo uma história da democracia romana,
onde lhe pede que não integre o relato de sua carreira política e de
seu consulado à sua grande obra, onde ele podería passar desper-
cebido, mas que faça uma pequena monografia histórica, separada
(do tipo dos Atos dos apóstolos18); ele faz então, habilmente, a ob-
servação que “uma carta não se enrubesce” (Cícero, Epistulae ad
familiares V, 13[12],1). Da mesma forma, mas por razões totalmen-
te diferentes, Paulo explica em 2 Coríntios 1,23-2,11 que adiou sua
visita a Corinto porque queria, previamente, resolver a desavença
por carta. A vantagem da carta sobre o encontro pessoal é que ela
permite guardar distância ao mesmo tempo em que assegura uma
certa proximidade19.

17 W. Rhys ROBERTS, Demetrius On Style. The GreekText of Demetrius De


Elocutione Edited after the Paris Manuscript, Cambridge [s.n.], 1902.
18 Eckhard PLÜMACHER, Neues Testament und hellenistische Form. Zur
Literarishen Gattung dr lukanischen Schriften, Theologia Viatorum 14
(1979) 109-123.
19 Barbel BOSENIUS, Die Abwesenheit des Aposteis als theologisches Pro-
gramm. Der zweite Korintherbriefe als Beispiel fur die Brieflichkeit der
paulinischen Theologie, Tubingen, Francke, 1994.

196
O co rp u s paulino

Essa proximidade é precisamente o que dá vantagem à carta


sobre as outras formas literárias. Sêneca, em suas cartas reais ou
fictícias a Lucílio, faz deliberadamente a exposição do estoicismo
sob forma epistolar, porque a filosofia não trata de verdades gerais,
mas de questões existenciais. A razão da escolha literária depen-
de do que constitui essencialmente a carta: ela é uma forma de
diálogo. Mais exatamente, e segundo a fórmula dos epistológrafos
antigos: a carta é “um diálogo cortado em dois” (Cícero, Epistu-
lae ad familiares XI1, 30,1; Sêneca, Epistulae morales 75,1). Por um
lado, a carta requer a sinceridade e a retidão de seu autor (Sêneca,
Epistulae morales 75,2). A essa exigência de verdade (Sêneca, Epis-
tulae morales 75,4) se acrescenta, por outro lado, sua eficácia: a
carta visa a tocar seu destinatário (Sêneca, Epistulae morales 38,1);
aquele a quem ela é endereçada é interpelado pessoalmente e se vê
obrigado, por sua vez, a tomar em consideração a mensagem que
lhe é destinada e a responder.
As diversas vantagens da comunicação epistolar explicam a mui-
tiplicidade de seus empregos: a carta pode servir tanto para trans-
formar um saber, para difundir um pensamento, para promover um
ensinamento ético como para resumir um sistema filosófico para o
leitor apressado (Epicuro, Carta a Heródoto).

O formulário epistolar da carta antiga


Quaisquer que sejam sua função e sua dimensão, a carta helenís-
tica comporta os seguintes elementos:
1. Endereço e saudação. A forma usual comporta o nome do
remetente, no caso nominativo, o nome do destinatário,
no dativo, e a simples saudação χαιρelu: “Paulo, a Pedro,
salve!”20. Mas esse formulário pode variar. Por um lado, o
simples dativo designando o nome do destinatário pode ser
substituído pelo ττρό + dativo. Mas certas cartas invertem

20 Essa formulação usual é gramaticalmente elíptica: χαιρΑν (lit.: "alegrar-se")


é escrito em lugar de λίγ^ι χκιράν (lit: "diz que se alegre”), que conserva
o contexto da comunicação oral (lit: “Paulo diz a Pedro que se alegre”).

197
A literatura paulina

a fórmula, de modo que o destinatário é nomeado no no-


minativo e o remetente é designado por παρά + genitivo:
“Pedro, da parte de Paulo, salve!”. Pode-se variar a forma
de saudação: “salve e passe bem” (χαιρεΐν‫ ׳‬καί ύγιαι,νόίν)
ou ainda “salve, eu te abraço” (χαιρέ κα'ι άσπά(ομαι).
Com a preposição άπό + genitivo, ο remetente esclare-
ce sua identidade mencionando o lugar de seu domicílio:
“Paulo, da cidade de Lausanne, a Pedro, salve!” Ele pode,
é claro, juntar títulos ao seu nome e ao do destinatário:
“Paulo, pastor, da cidade de Lausanne, a Pedro, profes-
sor, da cidade de Ecublens, salve e passe bem”. Quanto à
construção Ôta + genitivo, ela menciona ou o secretário
que foi encarregado de escrever a carta ou a pessoa encar-
regada, em seguida, de levá-la.
2 . O corpo da carta pode começar com votos de boa saúde.
Introduz em seguida o objeto do qual se vai tratar, por meio
de fórmulas que já na Antiguidade são freqüentemente
estereotipadas: “não quero deixá-lo ignorar”, “quero te
fazer saber”, “peço-te” etc.
3. A conclusão da carta. Ou a carta termina no fim do cor-
po epistolar ou o autor acrescenta uma última fórmula de
votos, em geral algo equivalente a “passe bem” (eppcoao,
plural έρρώσθ6). Esta última fórmula pode ser precedida
por duas saudações secundárias: “saudações a João” ou
“saudações a João de minha parte”.

3.2. O gênero da carta apostólica paulina


Abstração feita do fato, estranho para nós, de que a assinatura
e as saudações precedem o corpo da carta, o formulário epistolar
das cartas paulinas apresenta apenas um longínquo parentesco com
o que se encontra habitualmente nas cartas helenístícas. Paulo é,
com efeito, antes de tudo, herdeiro do judaísmo helenístico, de sorte
que não é grande surpresa constatar numerosas semelhanças en-
tre 1 Tessalonicenses e as cartas sinagogais. Com Romanos, 1 e 2

198
O co rp u s paulino

Coríntios, Gálatas, Filipenses e Filêmon, Paulo, todavia, inventou


uma nova forma epistolar, a da carta apostólica, cujo gênero lite-
rário foi reproduzido, em seguida, não somente pelos autores das
cartas dêutero e tritopaulinas, mas também pela maior parte das
epístolas “católicas”.

I Tessalonicenses e a carta sinagogal helenística


Em relação ao formulário helenístico, os elementos novos intro-
duzidos por 1Tessalonicenses são os seguintes:
a) os destinatários não são apenas nomeados, mas teologica-
mente qualificados: “à Igreja dos Tessalonicenses que está
em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo” (lTs 1,1);
b) a fórmula de saudação é substituída por uma bênção: “A
vós, graça e paz” (lTs 1,1);
c) o corpo da epístola começa por uma ação de graças (lTs
1, 2 - 10);
d) a fórmula dos votos finais é precedida por uma oração de
intercessão e por um pedido da intercessão dos destinatá-
rios (lTs 5,23-25);
e) a fórmula dos votos finais é substituída, como a saudação
inicial, por uma bênção: “Que a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo esteja convosco” (lTs 5,28).
Todos esses elementos já se encontram, juntos ou separadamen-
te, nas cartas da sinagoga helenística (2 Mc 1 , 1 2 ;9 ‫ ־‬Mc 1,10-2,18;
Apocalipse siríaco de Baruc 78,2-86,3). Uns são antigos, provenientes
dos formulários epistolares hebraicos e aramaicos, e são equivalen-
tes das fórmulas helenísticas. A fórmula grega de saudação “salve”
(χαιρεΐν) é regularmente substituída pela saudação “paz” (ειρήνη).
Outros, em compensação, correspondem ao contexto eclesial no
qual as cartas são destinadas a ser lidas (lTs 5,27; cf mais tarde
Cl 4,16). E o caso da substituição das saudações por fórmulas de
bênção, da introdução de uma ação de graças e da oração de inter-
cessão recíproca concluindo o corpo epistolar. Com essa série de
transformações, o gênero da carta não só assume um caráter oficial
e litúrgico, mas também a importância teológica de uma revelação,
A literatura paulina

de uma exortação ou de uma advertência profética, em nome de


Deus, diante do quai se situa a comunicação epistolar.

A carta apostólica paulina


Herdeira da carta sinagogal, a carta apostólica paulina radicaliza
sua significação teológica:
a) Paulo se apresenta como servidor (Rm 1,1; Fl 1,1), prisio-
neiro (Filêmon) ou apóstolo (Rm 1,1; ICor 1,1; 2Cor 1,1; G1
1,1) de Jesus Cristo e de Deus Pai;
b) Paulo não escreve, geralmente, sozinho, mas com seus
colaboradores: com Sóstenes (ICor 1,1), com Timóteo
(2Cor 1,1; Fl 1,1; Fm 1) ou com todos os irmãos que estão
com ele (Gl 1,2);
c) não somente Paulo está qualificado por seu mandato, mas
também os próprios destinatários o são pela obra de salvação
operada neles por Deus; estes são “bem-amados de Deus”
(Rm 1,7), “santos pelo chamado de Deus” (Rm 1,7; ICor 1,2;
cf 2Cor 1,1; Fl 1,1), “santificados no Cristo” (ICor 1,2);
d) na bênção que substitui a saudação, Paulo introduz o con-
ceito programático de “graça”: em lugar de “a paz” ou
a “misericórdia e a paz estejam convosco”, Paulo escreve
“a graça e a paz”;
e) a bênção é dada “em nome de Deus nosso Pai e do Senhor
Jesus Cristo”; este complemento é uma novidade das car-
tas paulinas e está presente, com leves variações, em to-
das as epístolas posteriores a 1Tessalonicenses.
Por meio desse novo formulário epistolar, Paulo define, de modo ,
conseqüente, com base em sua compreensão do apostolado, o con-
texto de comunicação teológica de suas cartas. Do ponto de vista de
sua produção, o apóstolo não é o autor real das cartas: as epístolas
dirigidas às comunidades lhes são enviadas em nome de Jesus Cristo
e de Deus Pai, dos quais Paulo e seus colaboradores são apenas porta-
vozes. Do ponto de vista do conteúdo, elas se apresentam como envio
de “a graça e a paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus

200
O co rp u s paulíno

Cristo”, isto é, como acontecimento de salvação para as comunidades


destinatárias e para os leitores ulteriores (1Cor 1,2). Do ponto de vista
de sua recepção, elas constituem a identidade nova das “Igrejas” e dos
“santos” por meio da palavra de salvação que elas lhes transmitem.

4. B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
BULTMANN, Rudolf Theologie des Neuen Testaments. Tübingen, Mohr,
1948-1953 (NTG); reed.:Tübingen, Mohr, 1980 (UTB 630).
SENFT, Christophe. Jésus de Nazareth et Paul de Tarse. Genève, Labor et
Fides, 1985, p. 61-114 (Essais bibliques 11).

Coleções de cartas antigas


HERCHER, Rudolphus. Epistolographi Craeci. Paris [s.n.] 1883.
WHITE, John L. Light from Ancient Letters. Philadelphia, Fortress Press,
1986 (Foundations &- Facets).

Textos epistolográficos antigos


MALHERBE, Abraham J. Ancient Epistolary Theorists, Atlanta, Scholars
Press, 1988 (SBL Sources for Biblical Study 19).
ROBERTS, W. Rhys. Demetrius On Style. The Greek Text o f Demetrius De
Elocutione Edited after the Paris Manuscript. Cambridge [s.n.] 1902.

Sobre a carta e a epistolografia antiga


CUGUS1, Paolo. Evoluzione e forme dell’epistolografia latina nelta tarda re-
pubblica e nei primi due secoli dell’impero con cenni suliepistolografia
preciceroniana. Roma, Herder, 1983.
KOSKENN1EM1, Heikki. Studien zur Idee und Phraseologie desgriechischen
Briefes bis 400 n. Chr. Helsinki, Suomalainen Tiedeakatemia, 1956
(Annales academiae scientiarum fennicae. Ser. B !02,2).
SALLES, Catherine. Lépistolographie hellénistique et romaine. In:
SCHLOSSER, Jacques (éd.). Paul de Tarse. Paris, Cerf 1996, p. 79-
97 (LeDiv 165).

201
A literatura paulina

STOWERS, Stanley K. Letter Writing in Greco-Roman Antiquity, Philadel-


phia, Westminster Press, 1986 (Library o f Early Christianity 5).
ST1REWALT, M. Luther. Studies in Ancient Greek Epistolography. Atlanta,
Scholars Press, 1993 (SBL Resources for Biblical Study 27).
THRAEDE, Klaus. Grundzüge griechisch-rõmischer Brieftopik. München,
Beck, 1970 (Zetemata 48).

Coleções de cartas semíticas e judaicas


BRESCIANI, E., KAMIL, M. Le lettere aramaiche di Hermopoli. Atti della
Academia Nazionabe dei Lincei, Anno CCCLXII1. Memorie, Classe
di Scienze morali, storiche e filologiche XII (1965-1966). Roma, 1966.
COWLEY, Arthur B. Aramaic Papyri o f the Fifth Century B. C. Oxford,
Clarendon Press, 1923.
PARDEE, Dennis et al. Handbook o f Ancient Hebrew Letters. Chico, Scho-
lars Press, 1982 (SBL Sources for Biblical Study 15).
PFEIFFER, Robert H. State Letters o f Assyria. A "Transliteration and Trans-
lation o f 355 Official Assyrian Letters dating from the Sargonid Period
(722-625 B. C.). N ew Haven, American Oriental Society, 1935.

Sobre as cartas semíticas e judaicas


TAATZ, Irene. Frühjüdische Briefe. Die paulinischen Briefe im Rahmen der
offiziellen religiõsen Briefe des Frühjüdentums. Fribourg/Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1991 (NTOA 16).
WHITE, John L. (ed.). Studies in Ancient Letter Writing. Semeia 22
(1981).

Sobre a coleção das cartas paulinas


ALAND, Kurt. Die Entstehung des Corpus Paulinum. In: Neutestamentli-
che Entwürfe. München, Kaiser, 1979, p. 302-350 (ThB 63).
TROBISCH, David. Die Entstehung der Paulusbriefsammlung. Studien zu
den Anfangen christlicher Publizistik. Fribourg/Gottingen, Vanden-
hoeck und Ruprecht, 1989 (NTOA 10).
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202
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VON HARNACK, Adolf Die Brief sammlung des Aposteis Paulus und die
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Vorlesungen aus der altkirchlichen Literaturgeschichte. Leipzig,
Heinrich, 1926, p. 6-27.

Sobre a carta apostólica paulina


BERGER, Klaus. Apostelbriefund apostolische Rede I Zum Formular früh-
christlicher Briefe. Z/V147 65 (1974) 190-231.
BOSENIUS, Barbel. Die Abwesenheit des Aposteis als theologisches Pro-
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DAHL, Nils Alstrup. The Particularity o f the Pauline Epistles as a Problem
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DOTY, William G. Letters in Primitive Christianity. Philadelphia, Fortress
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KLAUCK, Hans-Josef Die antike Briefliteratur und das Neue Testament.
Paderborn, Schõningh, 1998 (UTB 2022).
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Sobre a pseudepigrafia
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KAESTLI, Jean-Daniel. Mémoire et pseudépigraphie dans le christianisme
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203
As epístolas de Paulo
CAPÍTULO

8
A epístola aos Romanos
François Vouga

Por sua extensão e pelo caráter sistemático da apresentação do


conteúdo, a epístola aos Romanos se apresenta como um escrito
teológico central do Novo Testamento. A argumentação constrói um
percurso histórico e temático que se desenvolve organicamente ao
longo de toda a epístola, abordando o conjunto de questões essen-
ciais da fé cristã. Ela serviu de modelo, com inúmeras variações, para
as apresentações clássicas da fé cristã (A instituição da religião cristã,
de Calvino, por exemplo): a existência sob a Lei, a revelação de Deus
em Jesus Cristo, a vida cristã, a relação do Evangelho com a promes-
sa, os fundamentos éticos da vida nova.
A força espiritual e intelectual de Romanos explica por que a en-
contramos presente nas grandes encruzilhadas da história da teo-
logia cristã. Ela determinou a teologia de Santo Agostinho. Com a
leitura dos Salmos, provocou o nascimento da Reforma, como mos-
tra o curso de Lutero de 15151516‫ ־‬. E o primeiro livro a ser comenta-
do por Calvino, em Strasburgo, e é ainda essa epístola que, em 1919
e 1922, está na origem da teologia dialética de Karl Barth.

1. A p r e s e n t a ç ã o
A importância atribuída a Romanos na recepção do Novo Tes-
tamento e na história da teologia cristã não é devida apenas à am-

207
As epístolas de Paulo

plitude formal de sua apresentação. Nela Paulo dá forma a uma das


reflexões teológicas mais coerentes e mais claras do cristianismo pri-
mitivo. A interpretação da morte e da ressurreição de Cristo como
acontecimento de revelação da justiça de Deus lhe serve de ponto
de partida e de fundamento lógico para sua compreensão do conjun-
to do cristianismo. E a partir daí que ele repensa sua relação com a
cultura grega, relê a história das promessas e da Escritura veterotes-
tamentárias, redefine sua identidade judaica. É também a partir daí
que reinterpreta os grandes conceitos teológicos de eleição, justiça,
Lei e pecado, e que assenta os fundamentos de um novo tipo de
comunidade e de uma nova ética. Para sustentar o todo, é ainda aí
que ele encontra a certeza de sua vocação missionária de apóstolo
dos gentios.

Estrutura e conteúdo
Após a saudação epistolar, semelhante às outras cartas, porém
mais desenvolvida (Rm 1,1-7), após a oração de ação de graças (1,8-
10) que se encontra no início de cada epístola, Paulo anuncia o as-
sunto imediato de sua carta: sua intenção de visitar a comunidade
de Roma (1,10-15). Anuncia também o tema de sua pregação, que
será o assunto do corpo da carta (1,18-15,13): o Evangelho da justiça
de Deus (1,16-17).
O corpo epistolar de Romanos (1,18-15,13) introduz o tema do
Evangelho da justiça de Deus começando por apresentar a condição
do homem sob a Lei (1,18-3,20). A tese defendida nesta primeira
parte é a seguinte: ninguém, nem grego, nem judeu, é justo diante
de Deus, os gregos (= os não-judeus) porque fazem mau uso do co-
nhecimento natural de Deus e da lei divina inscrita em seu coração'
(1,18-31), os judeus porque têm a Lei mas não a praticam (1,32-3,8).
A conseqüência dessa constatação é que ninguém pode ser justifi-
cado pelas obras da Lei; a Lei só pode manifestar a escravidão da
existência humana sob o pecado (3,9-20).
Esse desenvolvimento prepara a retomada, na segunda parte, do
tema próprio da carta: o Evangelho da justiça de Deus (3,21-4,25).
“Agora” com efeito, isto é, em Jesus Cristo, Deus revelou sua jus­

208
A epístola aos Romanos

tiça, que consiste nisto: Deus é justo porque justifica o pecador in-
condicionalmente; é o que foi revelado no acontecimento da morte
e da ressurreição de Jesus (3,21-31). O fato de Deus justificar pela
fé, isto é, pela simples confiança em sua justiça, e não pelas obras da
Lei, está atestado na própria Escritura pelo exemplo de Abraão, que
se torna o pai e protótipo de todo crente (4,1-25).
Sem transição, a terceira parte leva o leitor do tema da revela-
ção da justiça de Deus para o da existência crente como existên-
cia justificada (5,1-8,39). Justificados pela fé, os crentes estão em
paz porque estão reconciliados com Deus (5,111‫) ־‬. Assim como, por
Adão, estavam sob a dominação do pecado, assim também eles vi-
vem, agora, em Cristo, sob o poder da justiça (5,12-21). Paulo reto-
ma aqui uma idéia conhecida na exegese de Gênesis 1-2, atuante no
judaísmo helenístico, em Fílon de Alexandria por exemplo: Adão,
cuja modelagem é contada em Gênesis 2, é apenas a cópia terrena
de um primeiro Adão, criado e conservado no estado ideal (Gn 1).
Para Paulo, o primeiro Adão não permaneceu no estado de modelo
ideal; identificado com a pessoa de Cristo, ele se tornou o segundo
Adão, em quem a existência justificada recebe graça e vida. A argu-
mentação prossegue mediante dois desenvolvimentos paralelos: a
existência justificada não está mais sob o pecado, mas sob a justiça,
pois pelo batismo morremos com Cristo para viver uma vida nova
(6,1-23). Por outro lado, a existência justificada é vivida sob o poder
do Espírito e não mais sob a Lei, que o pecado desviou de sua função,
desde Adão, para fazer dela um instrumento de morte (7,1-8,39).
A quarta parte é consagrada ao problema teológico fundamental
posto pelo caso particular de Israel (9,1-11,36): se Deus justifica
pela fé e não pelas obras da Lei; se, por outro lado, Israel — na sua
grande maioria — permanece fiel à Lei e recusa o Evangelho, isso
significa que Deus se tornou infiel às promessas feitas a seu povo?
Paulo volta à questão várias vezes para chegar a uma solução coe-
rente com seu Evangelho e, por isso, convincente. Essa solução se
apresenta como uma recapitulação de seu Evangelho de justiça, tal
como o tinha apresentado nas duas primeiras partes de sua exposi-
ção: Deus encerrou todos os homens na desobediência (Rm 11,32a

209
As epístolas de Paulo

/ / Rm 1,18-3,20) para manifestar a todos sua misericórdia (Rm 11,


32b / / Rm 3,21-4,25)'.
Uma nova fórmula de introdução epistolar (12,1: “Eu vos exorto, ir-
mãos...”) anuncia a quinta parte como algo novo (12,1-13,14). Aapre-
sentação do Evangelho da justificação está terminada. Paulo passa às
consequências que se seguem para o comportamento dos crentes na
comunidade cristã e depois, progressivamente, na sociedade pagã à
sua volta. A obediência, na existência cotidiana, é o culto que devem
prestar a Deus (12,1-2); a imagem do corpo evoca a solidariedade dos
cristãos no mundo (12,3 ss.). As recomendações lembram ffeqüen-
temente as máximas do Sermão da Montanha (Mt 5-7); insensível-
mente (12,9-21) elas alargam a perspectiva até a célebre instrução de
13,1-7, que reconhece como querida por Deus a existência de uma
administração política e civil (13,1-7). Os grandes eixos e os funda-
mentos são dados no duplo mandamento de amar a si mesmo e amar
a seu próximo (Lv 19,18), que resume o conjunto da Lei (13,8-10), e na
consciência que têm os crentes de viver o fim dos tempos (13,11-14).
A sexta e última parte (14,1-15,13) parece consagrada a um pro-
blema próprio da comunidade destinatária de Roma: as tensões teo-
lógicas e práticas reinantes entre cristãos de origem judaica, preo-
cupados em conservar seus hábitos alimentares, e cristãos de origem
pagã. Paulo fecha, assim, o corpo da epístola lembrando que toda
vida pertence ao Senhor, e que ninguém tem, portanto, o direito de
julgar seu irmão; a fé cristã é liberdade, mas a liberdade começa com
a solicitude pelo outro.
Os relatos e projetos de viagens apresentados em Romanos
15,14-29 estão diretamente ligados ao anúncio feito por Paulo de
sua próxima visita a Roma, em 1,8-15. O apóstolo dos gentios, que\
se dera por regra só anunciar o Evangelho onde o nome de Cristo
é ainda desconhecido (15,20), vê-se num ponto crítico de sua em-
presa missionária: tendo concluído seu trabalho na Grécia e a leste

1 Uma explicação exemplar de Romanos 9 -ll se encontra em Christopher


SENFT Lélection d’lsrael et la justification (Romains 9-Π), in LEvangi-
le hier et aujourd’hui. Melanges F J. Leenhardt, Genève, Labor et Fides,
I968, I31-142.

210
A epístola aos Romanos

de Roma, ele deseja confirmar o resultado levando a Jerusalém a


coleta das Igrejas que fundou entre os pagãos (15,25-27.31); depois
ele espera encontrar em Roma uma nova base missionária, que lhe
permitirá recomeçar seu trabalho de desbravamento na Espanha
(15,22-24.28-29).
Romanos 15,3033‫ ־‬constitui um fim de carta paulina habitual,
com uma última exortação à comunidade destinatária para acompa-
nhar o apóstolo com suas orações e uma bênção final.
Depois de um conjunto tão ambicioso e ordenado, a anexação de
uma lista dupla de recomendações e saudações (16,1-23), interrom-
pida por uma exortação sem relação direta com os temas da epístola
(16,17-20) e concluída pela doxologia dos versículos 25-27, constitui
um enigma.

Plano da ep ísto la aos Rom anos


1,1-7 Endereço e saudação
1,8-17 Oração de ação de graças: o projeto de visita do
apóstolo a Roma. O motivo: ele é o apóstolo dos
gentios (dos gregos e dos bárbaros). Tese da epís-
tola: o Evangelho da justiça de Deus é um poder
(U6-17)

O Evangelho da justiça de Deus (1,18-11,36)


1,18-3,20 A necessidade da justiça de Deus
A cólera de Deus contra os pagãos (1,18-32); a
cólera de Deus contra os judeus (1,32-3,8); a có-
lera de Deus contra a humanidade (3,9-20)
3,21—4,25 A revelação da justiça de Deus
A manifestação da justiça de Deus (3,21-31); pro-
va na Escritura: a história de Abraão (4,1-25)
5.1-8,39 A realidade da justiça na existência crente.
A liberdade do poder da morte (5,1-21); a liber-
dade do poder do pecado (6,1-23); a liberdade da
servidão sob a Lei (7,1-25); a liberdade dos filhos
de Deus sob o poder do Espírito (8,1-39)
9.1- 11,36 A justiça de Deus e sua fidelidade à Promessa
A justiça de Deus e a eleição de Israel (9,1-29);
a desobediência de Israel em relação à justiça de
Deus (9,30-10,21); o mistério da história da sal-
vação (11,1-36)

211
As epístolas de Paulo

A existência cristã (12,1-15,13)


12.1-13,14 A vida cotidiana dos cristãos
Tese: a renovação do ser (12,1-2). Exortações
para a vida cotidiana e a vida na cidade (12,3-21);
o cristão e as autoridades da cidade (13,1-7). Eixo
fundamental da ética: o duplo mandamento de
amor a si mesmo e ao próximo, conteúdo essen-
ciai da Lei (13,8-10); o fundamento escatológico
da ética (13,11-14)
14.1-15,13 Os “fracos” e os “fortes” na comunidade: judeu-
cristãos e pagão-cristãos

Conclusão da carta (15,14-16,25)


15,14-29 Os planos de Paulo
Os princípios do apostolado paulino (15,14-21);
anúncio das viagens a Jerusalém, depois à Espa-
nha via Roma (15,22-29)
15,30-33 Oração e saudação
16.1- 25 Postscriptum
Recomendação de Febe (16,1-2); lista de sauda-
ções (16,3-16); últimas recomendações (16,17-20);
saudações (16,21-23); doxologiafinal (16,25-27)

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Unidade e integridade literária da epístola
Abstração feita dos problemas de crítica textual e de crítica lite-
rária levantados por Romanos 16, a integridade da epístola é objeto
apenas de discussões marginais ou sem importância.

1. Rudolf Bultman2 chamou sistematicamente a atenção para o


que poderíam ser glosas secundárias no texto de Romanos: av
infeliz transição de 2,1, a dissonância entre presente e futuro es-
catológico introduzida por 2,16, a ruptura do paralelismo entre
6,17a e 6,18 provocada pela expressão pouco pauiina de 6,17b, o
resumo inadequado de 7,7-25a em 7,25b-8,l e aquele, senten-
cioso, de 10,17.

* Rudolf BULTMANN, Glossen im Rómerbrief, ThLZ 72 (1947) 197- 202;


ou Exegetica, Tubingen, Mohr, 1967, 278-284.

212
A epístola aos Romanos

2. Walter Schmithals3, sensível à ausência de unidade entre os temas


dominantes de Romanos 1-11 e os de Romanos 12-15, propôs frag-
mentar Romanos em duas cartas originais, Uma primeira carta,
compreendendo apenas Romanos 12,1-15,33 e Romanos 16,21-23,
mas sem 15,8-13, teria sido enviada por Paulo relativamente cedo
a Roma para tentar resolver os problemas relativos às práticas ali-
mentares. Só mais tarde, no fim de suas viagens missionárias, é que
Paulo teria escrito a segunda carta, muito mais importante pela
extensão e pelo tema, e cujo texto está conservado em Romanos
1,1-11,36 e 15,13, situando-se Romanos 15,8-12 entre 11,31 e 32.

0 problema do capítulo 16
Os problemas suscitados pelo conjunto de Romanos 16 concer-
nem tanto à forma como ao conteúdo.
No que diz respeito à forma, a lista de recomendações e sau-
dações (Rm 16,1-23) não está integrada à carta, como as recomenda-
ções e saudações pessoais de 1 Coríntios 16,1420‫ ־‬estão no contexto
das recomendações finais de 1 Coríntios 16,1-20; ela constitui uma
anexação após a conclusão epistolar. Quanto ao conteúdo, há fraca
plausibilidade de que Paulo conheça, na comunidade de Roma, que
ainda não tinha visitado, tantas pessoas saudadas explicitamente em
Romanos 16; acrescente-se a isso que certos nomes, como os de
Priscila e Aquila, aparecem nas duas listas de Romanos 16 e 1 Corín-
tios 16, de sorte que é de pensar que eles se encontravam em Efeso
no momento da redação de 1 Coríntios 16; finalmente, Epêneto é
saudado, em Romanos 16,5, como primícias das Igrejas da Ásia.
Seria de imaginar, portanto, que Romanos 16 constitui uma men-
sagem que não tem nada a ver com a comunidade de Roma, mas
endereçada, sim, a Efeso. De fato, Paulo conhecia bem a comunida-
de de Efeso, pois acabara de passar quase três anos lá. Com muita
imaginação, pode-se pensar em um bilhete independente. Este, con-
tudo, por seu conteúdo e por sua forma, não se assemelharia a nada

3 Walter SCHMITHALS, Der Ròmerbrief. Ein Kommentar, Güttersloh,


Mohn, 1988; Die Briefe des Paulus in ihrer ursprünglichen Form, Zurich,
Theologischer Verlag, 1984.

213
As epístolas de Paulo

do que conhecemos da pena de Paulo, e o início de Romanos 16,1


(δε) parece se apoiar em um texto que o precede.

H á duas hipóteses mais plausíveis:


1) Romanos 16 constituía realmente o fim da carta destinada
a Roma. Em uma carta que prepara sua visita a Roma,
na qual se apresenta e apresenta seu Evangelho, Paulo,
para ser bem recebido lá, recomenda-se lembrando to-
dos os conhecidos que possa nomear. A mobilidade das
pessoas, grande no império romano, facilita-lhe a tarefa.
A imponente lista que ele consegue fazer compreende
colaboradoras e colaboradores que conheceu na Ásia ou
na Grécia (p. ex. Epêneto) e que, depois, se instalaram
em Roma. Entre elas e eles, alguns tinham sido expulsos
de Roma, pelo edito de Cláudio, e mudado suas oficinas,
seus comércios ou seus negócios, por algum tempo, para
Efeso ou Corinto, antes de se reinstalarem em Roma; seria
o caso de Priscila e Áquila, entre outros. Outras pessoas,
enfim, são nomeadas sem que Paulo as tenha encontra-
do pessoalmente; conheciam-se indiretamente mediante
conversas e saudações; a esse respeito, observa-se que há
meros nomes (16,10b-12a.l4-15) entre as personalidades
que estão ligadas ao apóstolo por verdadeiras recordações
pessoais (16,3-10a.l2b-13a).
2) Romanos 16 constitui uma mensagem em si mesma, que
não se deve imaginar como uma carta independente, mas
como um bilhete de saudação acompanhando o envio de
uma cópia de Romanos destinada a Efeso. Essa duplicata,
enviada com uma palavra pessoal, devia poder ser lida na
comunidade. Talvez também constituísse um exemplar
pessoal que Paulo queria ter à sua disposição ou, ainda,
que serviría de base para uma edição ulterior de Romanos
ou de várias epístolas. Nesse caso, a coincidência de no-
mes entre Romanos 16 e 1 Coríntios 16 se explica sem que
seja necessário postular deslocamentos de pessoas.

214
A epístola aos Romanos

Um problema que tanto a primeira hipótese como a segunda


deixam sem solução satisfatória é o da advertência, em 16,17-20,
contra os espíritos transviados e causadores de divisão. A epísto-
la não contém nenhuma informação sobre o cristianismo romano
que possa explicar tais recomendações. Também não se consegue
reconstituir a presença de um perigo grave que podería ameaçar
os efésios.

A questão da crítica literária concernente ao conjunto de Romanos 16


acrescentam-se a da tradição textual da segunda saudação (16,20b ou 16,24)
e a da doxologia (16,2527‫)־‬. Os dados são os seguintes: a) a saudação (16,20b
ou 16,24) e a doxologia (16,25-27) encontram-se juntas tanto no fim da epís-
tola como entre 15,33 e 16,1 (P46), e entre 14,23 e 15,1 (Texto majoritário)
ou, ainda, na conclusão de uma versão curta da epístola, em 14,23 (lat); b) a
doxologia é omitida em certos manuscritos (Fj G), ao passo que outros a re-
petem depois de 14,23 e depois de 16,23. A explicação mais plausível é que a
doxologia não pertencia à versão original da epístola, mas foi acrescentada a
uma versão marcionita curta.

2.2. As tradições pré-paulirtas


Diferentemente de 1 Coríntios (ICor 11,23; 15,3), Romanos não
contém nenhuma citação explícita de uma tradição pré-paulina.
Portanto, é apenas com base em analogias de forma e de história
literária que se supõe em Romanos 1,3-4; 3,25 e 4,25 o reemprego,
pela argumentação do apóstolo, de formulações existentes.

Romanos 3,25: “Foi a ele que Deus destinou para servir de expia-
ção, (pela fé), por seu sangue, para mostrar a sua justiça, perdoan-
do os pecados cometidos outrora, no tempo da sua paciência”.

Essa declaração de fé, expressa por uma frase excepcionalmente


complexa, é composta, essencialmente, de conceitos teológicos au-
sentes do vocabulário paulino: a interpretação da morte de Jesus por
meio do propiciatório de Levítico 16 só aparece aqui; com exceção de
duas outras formulações tradicionais de 1 Coríntios 10,16 e 11,25.27,
Paulo não fala do sangue, mas da cruz de Cristo, e o tema propria-

215
As epístolas de Paulo

mente paulino da justificação pela fé é uma construção acrescentada.


E provável, portanto, que a argumentação paulina se apóie aqui em
uma tradição de confissão cristológica retomada e assumida, porque
também ela interpreta o acontecimento da morte e da ressurreição
de Jesus por meio de um conceito da justiça de Deus: pela morte de
Jesus, Deus manifestou sua justiça perdoando os pecados passados e
restabelecendo sua aliança com seu povo. O comentário que Paulo
ajunta, no versículo 26, modifica consideravelmente a perspectiva: a
idéia do restabelecimento da Aliança e, portanto, implicitamente, da
Lei, cedeu lugar a uma justiça de Deus que justifica sem a Lei: Deus
enviou seu Filho “para mostrar sua justiça no tempo presente, a fim
de ser ele mesmo justo e de tornar justo aquele que vive pela fé de/
em Jesus”4.

Romanos 4,25: “Ele foi entregue por nossas faltas e ressuscitado


para a nossa justificação

O paralelismo formal dos dois membros, que joga com dois senti-
dos diferentes de δία + acusativo (por = “por causa de”, e para = “em
vista de”), dá a impressão de citar uma fórmula pronta, a primeira
parte da qual lembra Isaías 535. A isso se juntam duas particular!-
dades lingüísticas. Por um lado, são geralmente as tradições, citadas
por Paulo em suas cartas, que falam da morte de Jesus “por nossos
pecados”; Paulo escreve “por nós” e emprega o termo “pecado”, que
ele personaliza como poder, no singular. Por outro lado, o elo estabe-
lecido entre a justiça e a ressurreição de Jesus não é habitual nele.
Para concluir sua demonstração, a argumentação se apóia, de novo,
em uma fórmula existente que proclama a significação salvífica da
morte e da ressurreição de Jesus por meio do termo “justiça”.

4 Rudolf BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, Tübingen, Mohr,


1953, 49; Erns KÀSEMANNM, Zum Verstandnis von Rõm, 3,24-26,
Z N W 43 (1950/51) 150-154; ed. fr.: Pour comprendre Rom 3,24-26, in Es-
sais exégétique, Genève, Labor et Fides, 1972, 12-16.
5 Rudolf BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, Tübingen, Mohr,
1953, 49.

216
A epístola aos Romanos

Romanos 1,3-4: “seu Filho, nascido, segundo a carne, da descen-


dência de Davi, estabelecido Filho de Deus, pelo poder do Espíri-
to Santo por/depois de sua Ressurreição dentre os mortos, Jesus
Cristo, Nosso Senhor”.
No prefácio epistolar de Romanos, como no de Gálatas 1,4, o
apóstolo retoma provavelmente uma fórmula de confissão cristo-
lógica tradicional. Nas duas vezes, as representações teológicas e o
vocabulário são estranhos às concepções paulinas. O texto que está
na base de Romanos 1,3-4 concebe uma história da cristologia em
duas etapas e em dois estágios: de nascimento humano, mas messiâ-
nico, Jesus só se torna Filho de Deus por sua ressurreição6.

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. Ocasião da carta
A razão explícita que Paulo dá, em Romanos 15,13-29, de entrar
em contato epistolar com a comunidade de Roma, que ele não co-
nhece e pela qual não é conhecido (1,8-17; 15,22-24.28-29), é clara
e simples: Paulo, que desde o início organiza seu empreendimento
missionário a partir de centros que lhe dão suporte, busca uma base
para seu novo projeto de missão na Espanha; assim como as comu-
nidades de Antioquia e Efeso lhe permitiram estabelecer uma rede
de novas Igrejas na Ásia, na Macedonia e na Grécia, ele espera ser
enviado por Roma como missionário na Espanha. O objeto de seu
pedido em 15,24 é preciso e recorre à linguagem técnica dos missio-
nários itinerantes: “ser enviado” (προπέμττΐσθοα) não implica apenas
assumir a responsabilidade espiritual, mas também se encarregar do
equipamento do missionário, da participação em suas despesas e do
envio de cartas de recomendação para facilitar sua viagem e sua es-
tadia. E, portanto, provável que as intenções anunciadas em 1,10-15
— seu desejo, na qualidade de apóstolo dos gentios, devedor tanto
aos gregos como aos bárbaros, de ir a Roma para partilhar com seus

6 Discussões detalhadas em Franz J. LEENHARDTj LÉpitre de saint Paul


aux Romains, Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 21969, Compl., Append. 1.

217
As epístolas de Paulo

destinatários os frutos de sua obra missionária — estejam subordi-


nadas a uma estratégia apostólica mais ampla. Mas, se a ocasião da
carta é mesmo a citada em 1,1-7 e 15,14-29, qual é então a necessi-
dade de toda a exposição feita pelo apóstolo no corpo da epístola?
Uma primeira resposta, que a argumentação desenvolvida em
14,1-15,13 tende a tornar plausível, é que o apóstolo junta sua car-
ta de visita teológica à recomendação de seu apostolado que envia
a Roma. Desconhecido dos cristãos de Roma como missionário e
teólogo, Paulo quer que conheçam seu Evangelho, e o Evangelho
para o qual lhes pede ajuda. Esta resposta é suficiente para explicar
a amplitude da carta e da argumentação desenvolvida? Dois outros
elementos podem ser acrescentados.

A epístola aos Romanos, Roma e Espanha


O primeiro elemento concerne aos interlocutores de Paulo no seio
da comunidade de Roma. O conjunto da argumentação empreen-
dida pela epístola para expor seu Evangelho constrói um auditório
familiar com a Escritura e com a hermenêutica judaica helenística:
Abraão (4,1-25); os dois Adãos (5,12-21); a interpretação de Gêne-
sis 3 com base no termo cobiça (7,7-11); o resumo da Lei pela segun-
da tábua do Decálogo (13,8-10). Mas esse auditório está também
acostumado a refletir com os termos teológicos clássicos da Lei, da
justiça ou da eleição. Poder-se-ia concluir que o núcleo judeu-cristão
da comunidade de Roma constitui um possível centro de oposição
aos projetos do apóstolo e, por consequência, o auditório particular
no qual ele pensa ao redigir sua carta.
Mais radical é a reconstrução histórica e teológica de Ferdinand
Christian Baur7: segundo ele, Romanos teria sido um esforço pára
refutar as posições de um judeu-cristianismo conservador antipau-
lino, que teria rejeitado o universalismo do apóstolo e contesta­

7 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesub Christi. Sein Le-
ben und Wirken, seine Briefe und seine Lehre. Ein Beitrag zu einer kri-
tischen Geschichte des Urchristentums, Stuttgart, Becher und Müller,
1845, 332-416.
A epístola aos Romanos

do a acolhida dos pagãos no povo da promessa. O debate assim


continuado por Paulo explicaria a estrutura um tanto estranha da
epístola: terminada a exposição propriamente dogmática, em 8,39,
o apóstolo introduz, em 9,1-11,36, um novo desenvolvimento, des-
necessário em relação ao que o precede, mas que é um corolário
dele; ele aplica suas conseqüências ao problema controvertido da
relação entre a justificação paulina pela fé e a eleição de Israel. A
hipótese geral de F C. Baur, que concebe o conjunto da primeira
geração do cristianismo como dominada pela oposição entre o uni-
versalismo paulino e um judeu-cristianismo conservador, pertence
aos grandes modelos que marcaram a história da pesquisa. Aban-
donada em seu conjunto, essa hipótese reaparece de forma frag-
mentária e com diversas variações: a idéia de que a extensão da ar-
gumentação da epístola visa a convencer resistências judeu-cristãs
provenientes seja de uma propaganda antipaulina vinda do exterior,
seja das convicções próprias dos círculos judeu-cristãos das comu-
nidades romanas guarda sua plausibilidade e tem seus defensores.

A epístola aos Romanos, testamento de Paulo?


O outro elemento que pode explicar a importância incomum as-
sumida por Romanos é a perspectiva próxima da viagem a Jerusa-
lém, que o apóstolo deverá empreender antes de ir para Roma e
Espanha. Paulo vai lá para levar o produto da coleta feita nas comu-
nidades pagão-cristãs fundadas na Ásia (Galácia), na Macedonia e
na Grécia. O sentido que ele dá à operação transparece claramente
do que é dito em 15,25-27: ao participar da coleta e ao aceitá-la, as
novas Igrejas e a comunidade de Jerusalém marcam simbolicamente
sua pertença ao mesmo corpo (12,3-8). Ao recomendar sua viagem
às orações dos Romanos (15,30-31), Paulo deixa entrever as difi-
culdades previsíveis que acompanham seu projeto; obviamente, ele
não está seguro de receber um acolhimento favorável dos irmãos da
Judéia e prepara-se para uma confrontação difícil.
Quando redige Romanos, está Paulo pensando na viagem a Je-
rusalém e na defesa do Evangelho que deverá apresentar diante das
Igrejas da Judéia? Independentemente dos riscos pessoais e teoló-

219
As epístolas de Paulo

gicos a que ele e seus colaboradores estão expostos, a viagem a Je-


rusalém constitui uma virada importante no ministério do apóstolo.
A segunda grande etapa de seu apostolado está terminada, e o re-
sultado da coleta é sinal de seu acabamento.
A iminência da viagem a Jerusalém determina, certamente, a es-
critura da carta. Faz ele o balanço dos últimos anos ou se prepara
para se defender em Jerusalém?8

3.2. Os destinatários
Caso excepcional, Romanos é a única epístola dirigida por Paulo
a uma Igreja que ele não fundou e, ainda mais, que não conhece.
O contexto de comunicação não é a de um apóstolo dirigindo-se à
sua comunidade. E a de um missionário itinerante que, precedido
de uma reputação mais ou menos favorável, solicita a acolhida e o
sustento de uma comunidade estabelecida, dotada de suas próprias
tradições e que possui, atrás dela, uma história movimentada.

História da comunidade de Roma


O edito do imperador Cláudio que expulsa os judeus de Roma
data de 41 d.C., segundo a história romana de Díon Cássio (c. 155-
235), ou de 49 d.C., segundo o historiador cristão Orósio (séc. IV-
séc. V). Segundo Suetônio (Vida de Cláudio 25,4), Cláudio expulsou
os judeus de Roma porque, excitados por um certo Chrestus, eles
não cessavam de criar desordens. Essas informações coincidem com
a notícia de Atos segundo a qual Paulo, por ocasião de sua chegada a
Corinto, encontrara um casal, Áquila è Priscila, que acabava de che-
gar da capital, porque "Cláudio decretara que todos os judeus dfe-
viam sair de Roma” (At 18,2). Elas deixam supor que a primeira co-
munidade cristã de Roma surgiu muito cedo, entre fins do ano 30 e
metade dos anos 40, isto é, durante as primeiras viagens missioná­

8 Nesse último sentido, Gunther BORNKAMM, Der Romebrief ais Testa-


ment des Paulus, in Geshichte und Glaube //, Gesamelte Aufsàtze IV, Mün-
chen, Kaiser, 1971, 120-139.

220
A epístola aos

rias de Paulo à Síria e à Cilicia (G1 1,21) e muito antes do Concilio de


Jerusalém (Gi 2,1-10).
A comunidade romana nasceu em circunstâncias muito diferen-
tes das Igrejas fundadas pelo apóstolo. Ela surgiu, obviamente, na
Sinagoga e em torno dela, visto que sua aparição causou desordens
importantes no interior do judaísmo romano. Isso não significa que
tenha sido composta só de judeu-cristãos, mas que seu núcleo se
constituiu durante o serviço sagrado do sábado. O roteiro mais piau-
sível que se possa imaginar nos é sugerido pelo modelo de estratégia
missionária empregada pelos concorrentes de Paulo em 2 Coríntios
e que Lucas atribui (sem razão?) ao próprio Paulo: judeus da diás-
pora e talvez de Roma mesmo, que tinham ido em peregrinação a
Jerusalém, para a festa da Páscoa, lá encontraram Jesus de Nazaré;
lá, foram testemunhas dos últimos dias que precederam sua prisão,
sua morte e suas aparições pascais. Convertidos, encontram-se, pri-
meiro, em Antioquia, depois tomam o caminho de volta, passando
de sinagoga em sinagoga para pregar a fé cristã. Nas sinagogas, fo-
ram ouvidos pelos fiéis judeus, mas também pelos prosélitos e pelos
tementes a Deus, de origem pagã.
E, sem dúvida, a atividade desses pregadores judeus de língua
grega, que Lucas chama de “helenistas” (At 6,1), a responsável
pela primeira implantação do cristianismo nas sinagogas romanas.
Depois de ter criado raízes, uma primeira vez, na capital do impé-
rio, esses primeiros cristãos foram expulsos com todos os outros
judeus. Romanos é o primeiro testemunho de seu retorno às mar-
gens doTibre9.

A comunidade romana vista pelo apóstolo


Na medida em que ela nos autoriza a reconstituir, por pouco que
seja e de maneira indireta, a situação reinante na metade dos anos
50, a parênese de 14,1-15,13 nos permite constatar o retorno ou
uma nova chegada de cristãos a Roma; permite também observar

9 Obra de referência: Peter LAMPE, Die stadtrõmischen Christen in den er-


sten beiden Jahrhunderten, Tubingen, Mohr, 1987.
As epístolas de Paulo

que a comunidade (ou as comunidades) constitui (ou constituem)


uma entidade independente da Sinagoga. A separação da Sinago-
ga parece ter sido registrada rapidamente pela população, visto que
Nero poderá se apoiar em seu ódio aos cristãos para organizar, em
64 d.C., uma perseguição que atingirá apenas estes últimos.
Do ponto de vista de sua constituição interna, a cristandade de
Roma, à qual se dirige o apóstolo, parece reunir uma minoria influen-
te de judeu-cristãos, que, segundo 14,1-15,13 são apegados a seus
ideais de santidade, recusam-se a comer carne e consumir vinho, e
uma maioria de pagão-cristãos de tendência mais liberal.
Os dados de 16,1-23, se efetivamente concernem à Igreja de
Roma, não contradizem esse quadro: a lista de saudações contém
alguns nomes cuja origem judaica é explicitamente mencionada pelo
apóstolo. Por outro lado, ela atesta que o cristianismo não se reúne
mais na sinagoga, mas nas várias casas das comunidades.

3.3. Lugar e data da composição


Romanos foi escrita, com toda verossimilhança, em Corinto, em
55/56 ou 56/57. Paulo acaba de chegar de Efeso e da Macedonia
(2Cor 1,15-2,17). A evangelização da parte oriental do Império está
terminada (Rm 15,23), na medida em que Cristo foi anunciado nos
centros urbanos de onde o Evangelho poderá se espalhar pelos vi-
larejos. O apóstolo juntou a coleta da Macedonia e da Acaia (Rm
15,26) e prepara-se para embarcar para Jerusalém.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. Revelação e conhecimento natural de Deus x
A tese que fecha a primeira seção de Romanos é que ninguém
pode ser justificado diante de Deus pelas obras da Lei (3,20). Da
maneira como é formulada, essa tese se afirma como dotada de al-
cance universal (3,9-20), incluindo tanto os judeus (1,32-3,8) como
os pagãos (1,18-31). A razão pela qual os judeus não podem ser jus-
tificados pela Lei é claramente formulada: eles têm a Lei mas não a
praticam. A argumentação que busca demonstrar a injustiça dos pa­

222
A epístola aos

gãos parece mais complexa: embora não tendo a Lei, eles são ines-
cusáveis. As razões desse aparente paradoxo são dadas em 1,19-23
e em 2,12-15: por um lado, Deus revelou o que se pode conhecer
dele em sua criação; de outro lado, a lei, que os pagãos não recebe-
ram de Moisés, está inscrita em seu coração.
Duas idéias são necessárias para compreender essa argumenta-
ção.
A primeira idéia vem da filosofia helenística, particularmente da
física estóica. E a seguinte: o mundo e todos os seres que o habitam
são regidos por uma ordem cósmica; com base na observação des-
sa ordem e da regularidade de seus movimentos, a filosofia pode,
mediante a reflexão, chegar a conhecer seu criador e suas leis. A se-
gunda idéia vem da apologética do judaísmo helenístico e se encon-
tra explicitamente desenvolvida em Fílon de Alexandria. Ela explica
que, na medida em que contêm intuições verdadeiras, a sabedoria
dos pagãos e, particularmente, a filosofia grega são forçosamente
aproximações da revelação feita por Deus a Moisés; os filósofos gre-
gos foram, com efeito, os alunos de Moisés.
Pode-se notar que as concepções filosófico-político-teológicas
de Romanos 13,1-7 provêm do mesmo conjunto de representações.
As recomendações práticas de 13,7 mostram que a argumentação
não visa a legitimar os sistemas existentes, mas defende, antes, uma
posição de filosofia política para a qual a existência de uma ordem
política encarregada de gerir a vida social é um dom da Providência
divina. A idéia se encontra tanto em Platão, Aristóteles e Epicuro
como em Gálatas 3,19: a Lei foi dada por causa das transgressões,
isto é, para proteger e tornar possível a vida da cidade. O ponto de
vista oposto não seria a posição revolucionária, mas a posição anar-
quista segundo a qual toda ordem social é, por princípio, má e deve
ser rejeitada.
É nessas duas idéias que se baseia a crítica paulina do conhecí-
mento de Deus em Romanos 1-3. Mas a retomada paulina a faz
sofrer duas transformações essenciais. Primeiro: se Deus pode
ser conhecido através de sua criação, como pensam os estóicos
e a apologética judeu-helenística, é por sua própria iniciativa; é o
As epístolas de Paulo

próprio Deus que se fez conhecer, na medida em que o ser hu-


mano pode conhecê-lo (1,19). Segundo: a tese paulina não é que
os homens conheceram Deus, mas, ao contrário, é que, podendo
conhecê-lo, não o reconheceram; é a tese do fracasso do conhe-
cimento humano de Deus. Pela sabedoria, a sabedoria do mundo
não reconheceu a sabedoria de Deus (ICor 1,18-25); os homens
conheceram Deus, mas não o reconheceram, confundiram Cria-
dor e criatura e, em vez e em lugar de reconhecer o Criador, divi-
nizaram e adoraram a criatura10.
Abusando, portanto, do conhecimento que Deus tinha revela-
do de si mesmo, o homem se diviniza e se toma pelo Criador. A
conseqüência é que não há mais lugar para a justiça de Deus: Deus
não aparece mais senão como Deus de cólera. A manifestação da
cólera de Deus (1,18-3,20) é o inverso da revelação de sua justiça
(1,16-17; 3,21 -31): a cólera de Deus é Deus tal como aparece quan-
do o homem não quer viver de sua graça, e o humano fica então
entregue a si mesmo (1,24: “Por isso Deus os entregou às suas
concupiscências...”).

4.2. A revelação da justiça de Deus


A mensagem central de Romanos (1,17; 3,21) é a revelação da
justiça de Deus. A boa-nova que o apóstolo defende aí é a seguin-
te: o acontecimento da morte e da ressurreição de Jesus revelou
que a justiça de Deus não é, jamais foi, nem jamais será uma justiça
“pelas obras da Lei” (3,20); é uma justiça “sem a Lei” (3,21), uma
justiça “por graça” ou uma justiça exercida "gratuitamente” (3,24);
essa justiça de Deus é uma justiça “pela fé” (1,17; 3,26) ou “para a
fé” (1,17). A epístola aos Gálatas oferece uma formulação um pouco
diferente, mas equivalente: ninguém é justificado por Deus em ra-
zão das obras da Lei, mas pela fé em (ou pela fé de) Jesus Cristo (Gl
2,16). A terceira variante, abreviada, é a de Filípenses 3,9: não te­

10 Günther BORNKAMM, Die ofFenbarung des Zornes Gottes, Z N W 34


(I935) 239-262; ou Das Ende des gesetzes. Paulusstudien, Gesammelte
Aufsátze I, München, Kaiser, I958, 9-33.

224
A epístola aos Romanos

nho mais uma justiça em razão da Lei, mas a justiça pela fé de Cristo
ou em Cristo, uma justiça que vem de Deus para a fé.
O Evangelho paulino da justiça de Deus (Romanos) ou da justi-
ficação pela fé (Gálatas) é o resultado de uma revelação divina de
que Paulo foi o destinatário e que constituiu sua vocação de após-
tolo dos gentios. Seu Evangelho não vem nem da tradição, nem de
ensinamentos humanos (Gl 1,1), mas de uma revelação de Jesus
Cristo (Gl 1,10-12): Deus lhe revelou seu Filho (Gl 1,16). A formu-
lação é elíptica e deve-se, provavelmente, entender, com o auxílio
de Gálatas 2,19 e 3,13, que Deus o fez reconhecer Jesus de Naza-
ré, o Crucificado, como seu Filho. O acontecimento apocalíptico da
revelação de Deus em Jesus Cristo obriga Paulo a se converter ao
Deus que era o seu. Essa revelação significa, com efeito, uma trans-
formação radical da imagem de Deus (“um messias crucificado não
é um messias judeu”, F C. Baur); e acarreta também uma transfor-
mação radical da compreensão da bênção de Abraão, da promessa
e da justiça de Deus.
A compreensão paulina da justiça de Deus e da justificação de-
corre da descoberta de que o Deus de Abraão se revelou na pessoa
do Crucificado. Malgrado as descontinuidades radicais que implica,
ela parte de dois pressupostos que, apesar de implícitos, não são me-
nos decisivos para a compreensão da argumentação. Primeiro, o ter-
mo “justiça” (δικαιοσύνη) aparece 33 vezes em Romanos, uma vez
em 1 Coríntios, sete vezes em 2 Coríntios, quatro vezes em Gálatas
e quatro vezes em Fl; o adjetivo “justo” (δίκαιος) aparece sete vezes
em Romanos, uma vez em Gálatas e duas vezes em Filipenses; e o
verbo justificar (δικαιόω) aparece quinze vezes em Romanos, duas
vezes em 1 Coríntios e oito vezes em Gálatas — não são concei-
tos abstratos, mas termos relacionais. A questão não é a da filosofia
grega, que tenta definir o que são o belo, a verdade ou a justiça em
si, mas a do caráter adequado ou não de uma relação interpessoal.
Segundo: é claro, para Paulo, que é Deus quem justifica; é por isso
que a formulação paradoxal de Filipenses 3,9 deve ser entendida em
toda a sua força provocadora. Para ele, a questão não é saber se o
homem pode se justificar diante de Deus ou se não pode ser justi­

225
As epístolas de Paulo

ficado senão por Deus. A questão é bem outra: sob que condições
Deus justifica e sob que condições o homem é justificado por Deus?
O sentido do Evangelho paulino da justiça de Deus ou da justi-
ficação pela fé é que a relação adequada que se pode estabelecer
entre Deus e a existência humana é uma relação em que o ser hu-
mano vive na confiança de ser amado e reconhecido, como pessoa,
por seu Criador.
Os pressupostos dessa definição são os seguintes:
1. O valor gramatical do genitivo του Θ60ϋ (“de Deus”) que
se prende a essa justiça pode variar. Um genitivo absoluto
pode fazer da justiça uma característica de Deus que é a
de ser justo (3,26). Mas essa justiça de Deus se manifesta
imediatamente no fato de que Deus torna justo, e o geni-
tivo é mais geralmente um genitivo de autor: Deus é justo
porque faz reinar sua justiça e justifica. A interpretação
recente da teologia paulina da justiça de Deus foi domina-
da pelo debate entre duas posições: de um lado, a inter-
pretação existencial de Rudolf Bultmann, inscrita na tradi-
ção de Agostinho, Lutero e Kierkegaard, segundo a qual a
justiça de Deus é o fato de que Deus justifica a existência e
de que o crente compreende sua existência como existên-
cia justificada11; de outro lado, a interpretação apocalípti-
ca e cósmica que Ernst Kàsemann, J. Christian Beker e J.
Louis Martyn retomaram de uma tradição de leitura teo-
cêntrica e reformada: a justiça de Deus, de que Paulo teve
a revelação, é o estabelecimento por Deus da nova criação
que libera o mundo dos poderes que o sujeitavam12. Essas
interpretações evidenciam os dois momentos essenciais

11 Rudolf BULTMANN, Theoologie des Neuen Testaments, Tubingen, Mohr,


1953,§ 28-30.
12 Ernst KÀSERMANN, Gottesgerechtigkeit bei Paulus, ZThK 58 (I96I)
367-378; ou Exegetische Versuche und Besinnungen //, Gottingen, Vanden-
hoeck und Ruprecht, 1964, 181-193; J.Christian BEKER, Paul the Apostle,
the Triumph o f God in Life and Thought, Edimbrugh, Clark, 1980; J. Louis
MARTYN, Theological Issues in the Letters o f Paul, Nashville, Abingdon
Press, 1997.

226
A epístola aos Romanos

da teologia paulina: a novidade apocalíptica do Evangelho


e sua significação para a compreensão de si e para a des-
coberta do indivíduo13.
2. Ser justificado “por” ou “em razão das obras da Lei” signifi-
ca que a existência é justificada com base nas qualificações
que lhe acarretam o cumprimento da Lei. A interpretação
luterana de Paulo enfatizou o conceito de “mérito”, de sor-
te que querer ser justificado pelas obras da Lei significaria
querer obter a justificação pelos próprios méritos. E passar
ao lado de um elemento decisivo, que está, no entanto, no
centro da argumentação: querer ser justificado pelas obras
da Lei é, antes de tudo, em Romanos e Gálatas, se preva-
lecer do fato de pertencer ao povo da aliança e da Lei, que
tem sua marca identificadora e simbólica na circuncisão e,
em menor medida, nas regras de pureza alimentar14. Ser
justificado “por” ou “em razão das obras da Lei” significa,
portanto, antes de tudo, achar-se em uma relação justa
com Deus em razão de certas qualidades particulares cujo
privilégio é definido ou garantido pela Lei.
3. A força da teologia paulina da justiça de Deus ou de uma
justificação sem a Lei é que ela dissocia a questão da Lei
— das qualidades e dos privilégios que ela distribui — da
questão da relação justa da existência com Deus. É por
essa razão que Paulo não escreve: “Ninguém será justifi-
cado pelas obras da Lei, mas pela fé”, mas sim “Ninguém
será justificado pelas obras da Lei se não for pela fé” (G1
2,16). A justiça não tem nada a ver com a Lei. Quer dizer
que a justiça de Deus é o reconhecimento por Deus da
pessoa — portanto de cada pessoa — , independentemen-
te de suas qualidades.

13 Refinada discussão em LEENHARDT, LÉpitre de Saint Paul aux Romains,


Comp!., Append. II.
14 Ed Parish SANDER, Paul and Palestinian Judaism. A Comparison of Pat-
terns o f Religion, Minneapolis/London, SCM Press, 1977.

227
As epístolas de Paulo

4. A antítese “não pelas obras da Lei/mas pela fé” é apenas


aparente, e seria grave mal-entendido compreender a fé
como a nova condição da justiça. “Pela fé” significa sim-
plesmente “na confiança” que Deus reconhece (= justifi-
ca) cada pessoa independentemente de suas qualidades.
O genitivo “de Jesus Cristo” ou “em Jesus Cristo”, que
completa a expressão, retira a ambigüidade. A questão,
muito discutida, de saber se ele deve ser entendido como
genitivo objetivo (a fé em Jesus Cristo), como geralmente
se faz, ou se deve ser entendido como genitivo subjetivo
(a fé de Jesus Cristo), como é proposto cada vez mais15,
não passa, provavelmente, de uma alternativa aparente: a
fé de que se trata é confiança na (genitivo objetivo) con-
fiança que estava em Jesus Cristo (genitivo subjetivo).
A consequência da teologia paulina da justiça de Deus ou da jus-
tificação pela fé na fé de Jesus Cristo é não só o reconhecimento da
subjetividade individual e de “mim” independentemente das qualida-
des pessoais, mas também a fundação de um universalismo pluralis-
ta, cujo programa é dado por Paulo em Gálatas 3,28.

O problema da Lei na epístola aos Romanos


A afirmação central é que todos aqueles que crêem foram liber-
tados da Lei para pertencer a Deus, de sorte que não se encontram
mais sob o domínio do pecado, da letra e da morte (Paulo fala sem-
pre do pecado no singular, como pessoa e como poder, e jamais no
plural, no sentido das transgressões individuais); sobre eles reinam a
justiça (6,15-23) e o Espírito (7,1-6).
Essa afirmação distingue duas épocas, ligadas e separadas por
elementos tanto de descontinuidade como de continuidade.
Duas épocas são opostas: o éon antigo é caracterizado pelo com-
plô do pecado, da lei e da morte que, aliando-se, sujeitam a existên­

15 A tese defendida, outrora, de maneira isolada por Pierre VALLOTTON,


Le Christ et Ia foi: Etude de théologie biblique, Genève, Labor et Fides,
I960, tornou-se uma hipótese corrente na exegese americana.

228
A epístola aos Romanos

cia sob o seu domínio. O éon novo é marcado por uma mudança de
poder que se deu pela revelação da justiça de Deus. Essa compreen-
são do tempo implica uma concepção da antropologia segundo a
qual a existência humana jamais é autônoma, mas se acha sempre
determinada por um poder que a rege: ou a existência é sujeita ao
pecado e à morte, ou ela está sob o poder da justiça e do Espírito.
Pertencendo a Lei, como poder, ao tempo antigo, a passagem para
o tempo novo não significa apenas libertação do pecado e da morte,
mas também libertação da Lei.
Mas se a existência justificada está libertada da Lei é a fim de
poder cumprir as exigências da Lei (8,3-4). Os crentes, que se
compreendem como pessoas reconhecidas e amadas por Deus, são
chamados a amar a si mesmos e a amar o seu próximo (como pes-
soas e independentemente de suas qualidades) de maneira que se
cumpra toda a Lei (13,8-10, com uma citação de Lv 19,18). A afir-
mação segundo a qual Cristo é o fim ou o objetivo da Lei (τέλος,
10,4) é, portanto, ambivalente: de um lado, a revelação, em Cristo,
da justiça de Deus significa a libertação da Lei; de outro, essa li-
bertação da Lei é a condição necessária para que o ser novo possa
cumprir a Lei.
A dialética estabelecida entre a boa-nova da libertação da Lei e
a exortação para cumprir as exigências da Lei, tais como são resu-
midas no duplo mandamento de amor a si mesmo e ao próximo,
pressupõe uma ambivalência da Lei. A análise paulina da condição
da existência sob a Lei obriga a distinguir duas grandezas diferentes.
Primeiro: a Lei, em si mesma, é santa e boa (7,12); segundo, a Lei,
no próprio homem, leva à morte (7,7-25). A problemática antropo-
lógica descrita por Paulo consiste no seguinte mecanismo: o homem
que quer cumprir a Lei, e que faz da Lei a referência para sua exis-
tência, se vê necessariamente preso no círculo vicioso do desespero:
de um lado, quer cumprir a Lei que ele sabe ser vontade de Deus;
de outro lado, não pode fazer o que quer, e faz o que quer evitar. A
razão dessa infeliz situação reside no fato de que, contrariamente
ao que ele espera, a Lei não traça nenhum limite ao pecado, mas, ao
contrário, o pecado se serve da Lei. Ou o homem fracassa porque

229
As epístolas de Paulo

não consegue cumprir toda a Lei, ou fracassa porque é Deus que é


origem e poder justificador da existência, e não a Lei.

5 . P e r s p e c t iv a s n o v a s
A aparente novidade dos trabalhos atuais é devida, em grande
parte, à amnésia da pesquisa16. Essa amnésia leva freqüentemente
a uma supervalorização imerecida das discussões recentes, seja do
passado imediato ou do presente. A isso se acrescenta um fenôme-
no particular à recepção da epístola aos Romanos: a interpretação
da carta foi profundamente marcada pelos três comentários de Karl
Barth17 e pelos trabalhos de Rudolf Bultmann18; eles deixaram na
sombra as aquisições dos três séculos precedentes, particularmen-
te o questionamento histórico devido a Ferdinand Christian Baur e
seus alunos da escola de Tübingen19, sobre cuja importância Ernst
Kàsemann tinha insistido.
Em conseqüência, tanto nas questões históricas (as ligações da
teologia da epístola aos Romanos com o judeu-cristianismo e o pro-
blema das relações entre o cristianismo e Israel) como nas questões
teológicas fundamentais (a interpretação da justiça de Deus, as re-
lações da antropologia com a história, a ligação entre o Evangelho
e a ética), as perspectivas novas se abrem, paradoxalmente, para
o interior de um perímetro balizado pelos paradigmas representa-
dos por Santo Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino e, mais
recentemente, por Ferdinand Christian Baur, Adolf Deissmann20 e

16 A única introdução ao Novo Testamento que é facilmente acessível e ex-


põe, com certa amplitude, a história da pesquisa sobre as epístolas paulinas,
no século XIX e início do século XX, é Maurice GOGUEL, Introduction àu
Nouveau Testament. Paris, Ernest Leroux, 1925, 1926, 2 v.; v. IV: Lesépitres
pauliniennes.
17 Karl BARTH, Der Ròmerbrief, Berne [s.n.], I9l9; Der Rõmerbrief, neue Be-
arbeitung, München, Kaiser, 1922; Kurze Erklárung des Rõmebriefs, Zurich,
YVZ, 1956.
18 Rudolf BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, § 28-30.
19 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesub Christi.
20 Adolf DEISSMANN, Paulus: Eine kultur-und religionsgeschichtliche Skizze,
Tubingen, Mohr, 21925 [I. ed. 19 11].

230
A epístola aos Romanos

Albert Schweitzer21, bem como por S0ren Kierkegaard (por inter-


médio de Rudolf Bultmann).

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
CRANFIELD, Charles Ernest Burland. The Epistle to the Romans. Edinbur-
gh, Clark, 1975, 1979 (IC C ).2v.
KÀSEMANN, Ernst. An die Ròmer. Tübingen, Mohr, 41980 [1. ed. 1973]
(H N T 8a).
LEENHARDT Franz J. LÉpítre de saint Paul aux Romains. Neuchàtel,
Delachaux et Niestlé, 2I969 [I. ed. 1957] (CN T 6).
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diaspaul, 1995, p. 385-430.
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Estudos particulares
ALETT1, Jean-Noél. Israel et la Loi dans la lettre aux Romains, Paris, Cerf
1998 (LeDiv 173).
BEKER, J. Christian. Paul the Apostle. The Triumph o f God in Life and
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231
As epístolas de Paulo

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WEDDERBURN, Alexander J. M. The Reasons for Romans. Edinburgh·,
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232
CAPÍTULO

9
A prim eira epístola aos Coríntios
François Vouga

Se do ponto de vista da tradição manuscrita a epístola aos Ro-


manos foi visivelmente lida como uma exposição doutrinai do cris-
tianismo, a primeira epístola aos Coríntios se apresenta, em sua ver-
são canônica, como um manual de ética evangélica. O contexto de
comunicação estabelecido pelo apóstolo é, com efeito, paradoxal: a
carta é, em primeiro lugar, enviada a Corinto; responde a questões
precisas dos coríntios (7,1; cf 8,1; 12,1; 16,1.12) e reage a proble-
mas particulares surgidos em Corinto (1,11; 11,18; 15,12). Ao mes-
mo tempo, entretanto, Paulo a destina ao conjunto da cristandade.
E escrita para a Igreja de Deus que está em Corinto (1,2a), mas o
endereço alarga o círculo de seus destinatários para todos os que,
em qualquer lugar, invocam o nome do Senhor Jesus Cristo (1,2b).
A epístola constitui, assim, na história do cristianismo, um primeiro
manual católico e ecumênico da vida cristã.

1. A p r e s e n t a ç ã o
1.1. Estrutura
Quanto ao seu conteúdo, a primeira carta aos Coríntios é cia-
ramente estruturada. A primeira parte lembra qual o fundamento
do cristianismo e quais as condições de sua comunicação aposto-
lica (1,1-4,21); a segunda parte trata de uma série de questões éti-

233
As epístolas de Paulo

cas (5,1-11,1); a terceira parte é consagrada à vida cultuai da Igreja


(11,2-14,40); a última parte contém a reflexão mais desenvolvida de
Paulo sobre a ressurreição dos mortos (15).

1.2. Conteúdo
As quatro sequências da carta são clara e formalmente delimita-
das. Após o endereço, a saudação (ICor 1,1-3) e a oração de ação de
graças que contém o anúncio dos vários temas que serão retomados
no corpo da epístola (1,4-9), o apóstolo começa com uma reflexão
fundamental sobre a essência do cristianismo e as condições da pre-
gação apostólica do Evangelho (1,10-4,13). Motivado por informa-
ções recebidas pelo apóstolo, segundo as quais a Igreja de Corinto
seria lugar de divisão, com diferentes partidos invocando o teste-
munho de diferentes apóstolos, esse desenvolvimento constitui uma
das apresentações mais claras, mais densas e mais bem delineadas
do Evangelho paulino; a esse respeito, pode-se compará-la com as
partes centrais de Romanos e Gálatas. A exposição, que não é con-
cebida para judeu-cristãos, mas para ouvidos gregos e helenizados
de comunidades pagão-cristãs recém-criadas, não se serve das ca-
tegorias teológicas judaicas de justiça, Lei e fé, como é o caso em
Romanos 1,16-11,36, ou em Gálatas 2,11-5,12; argumenta com os
conceitos de sabedoria, loucura, poder e fraqueza. O Evangelho é
pregação da cruz. E loucura para os que se perdem e poder de Deus
para os que crêem. A idéia subjacente à teologia de Paulo é a seguin-
te: como o mundo não quis reconhecer Deus pela sabedoria e na
sabedoria, Deus decidiu se fazer de louco e se revelar no paradoxo
da comunicação da cruz (1,18-25). Essa loucura de Deus determina,
a constituição da comunidade de Corinto (1,26-31); ela é o mistério
do qual o apóstolo é portador (2,1-5), e ela é a verdadeira sabedoria
(2,6-3,4). As duas consequências dessa inversão da imagem de Deus
são, primeiramente, que os apóstolos não são mediadores, porque os
crentes são de Deus e sua relação com Deus passa pelo Espírito que
está neles (3,5-18); segunda conseqüência, o apóstolo só pode com-
preender sua obra como ministério do Crucificado (4,1-13). As exor­

234
A prim eira epístola ao s C oríntios

tações que concluem a argumentação (4,14-21) põem formalmente


fim a essa primeira parte, que constitui um todo em si mesma.
A segunda parte (ICor 5,1-6,20) é consagrada, sem transição, à
discussão dos três problemas surgidos em Corinto. De um lado, a
comunidade tolera em seu seio um irmão que vive com a mulher
de seu pai, quer dizer, tanto para a lei judaica como para o direito
romano em situação de incesto (5,1-13). Em seguida, irmãos estão
em litígio diante de tribunais pagãos (6,1-11). Finalmente, outros fre-
qüentam prostitutas (6,12-20). As instruções dadas pelo apóstolo
baseiam-se na santidade da comunidade (5,1-6,11), na valorização
do corpo como membro de Cristo e templo do Espírito (6,12-20)
e na concepção paulina da liberdade cristã: "ludo me é permitido,
mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas eu não me
deixarei escravizar por nada” (6,12).
A terceira parte, a mais longa (1Cor 7,1-14,40), parece estrutura-
da por uma série de perguntas que a Igreja de Corinto fez ao aposto-
lo. Em 1 Coríntios 7,1 se faz menção a uma carta dos coríntios: o “a
respeito de” (irepl ôé) que introduz vários dos temas seguintes po-
deria fazer de novo alusão a ela (7,25; 8,1; 12,1; 16,1.12). O primeiro
grupo de perguntas, feitas pelos coríntios em sua carta ao apóstolo,
concerne ao casamento e ao celibato (7,1-40). A argumentação do
apóstolo retorna ao tema da liberdade, desenvolvido, primeiro, de
um ponto de vista cristológico, depois de um ponto de vista escato-
lógico: cada um é chamado a ser livre no estado em que foi chamado
pelo Senhor, pois é porque é escravo de Cristo que ele é livre (7,17-
24); por outro lado, o tempo é curto, de sorte que cada um deve
guardar sua liberdade em relação àquilo que ele tem (7,29-31). O
segundo grupo de questões diz respeito à atitude a ser adotada em
relação ao consumo de carne (8,1-11,1). O conflito de consciência
de uma parte de cristãos de Corinto advém do fato de que uma boa
parte da carne posta à venda provém dos sacrifícios dos templos
pagãos, sem que se possa sempre identificá-la. Diversos problemas
parecem se colocar. Pode-se tomar a liberdade de comprar carne no
mercado? Como se comportar quando a pessoa se encontra em vi-
sita e é servida carne de origem ignorada? Que atitude adotar quan­

235
As epístolas de Paulo

do se é convidado para banquetes nos quais se realizam sacrifícios


pagãos?1 Três regras parecem ditar as respostas dadas por Paulo:
1) a fé que confessa um só Deus e um único Senhor Jesus Cristo
é livre, porque sabe que os outros deuses não existem (8,1-6); b)
mas a liberdade tem seu limite no respeito à consciência do outro
(8,7-9,23; 10,23-11,1): “Tudo é permitido, mas nem tudo convém;
tudo é permitido, mas nem tudo edifica” (10,23); não se trata de
retornar à idolatria: não se pode comer à mesa de Cristo e à mesa
dos demônios (10,1-22). O terceiro grupo de questões concerne à ce-
lebração do culto (11,2-14,40): as mulheres têm os mesmos direitos
que os homens de tomar a palavra e de profetizar, mas por razões de
decência elas não devem fazê-lo de cabeça descoberta (11,2-16); os
membros da Igreja devem esperar uns pelos outros para tomar a ceia
do Senhor (11,17-34); devem respeitar os carismas uns dos outros,
como membros de Cristo, em sua necessária complementaridade
(12,1-31 a); o dom das línguas deve estar submetido ao critério da
edificação da comunidade (14,1-40) e o conjunto dos dons do Espíri-
to ao critério do amor (12,31b-13,13).
A quarta parte constitui de novo, em si mesma, um desenvolví-
mento independente (ICor 15,1-58). O tema é o da ressurreição dos
mortos. Depois de ter lembrado que a confissão da morte e ressur-
reição de Jesus é o fundamento da fé cristã (15,1-11), Paulo mostra
que não tem sentido falar da ressurreição de Jesus se a ressurreição
dos mortos não existe (15,12-19), como alguns, em Corinto, pare-
cem afirmar (15,12). Na realidade, a ressurreição de Jesus é apenas
0 início da realização final na qual os mortos ressuscitarão e na qual
Cristo, tendo recebido autoridade sobre toda a criação, se subme-
terá, ele mesmo, a Deus (15,20-28). Assim, a ressurreição dos mor-
tos faz parte do acabamento da obra criadora de Deus (15,35-44a),
quando ele recriará incorruptíveis suas criaturas corruptíveis: todos
serão transformados (15,44b-58).

1 Informação detalhada em Dietrich-Alex KOCH, “Seid unanstõssig fur Ju-


den und fur Griechen und fur die Gemeinde Gottes” (l Kor 10,32), Christ-
liche Identitát im makellon in Korinth und bei Privateinladungen.in Paulus,
Apostei Jesu Chrísti. Festschrift G. Klein, Tübingen, Mohr, 1998, 35-54.

236
A prim eira epístola a o s C oríntios

A carta termina com algumas recomendações práticas relativas


à coleta (ICor 16,1-4), com o anúncio de alguns projetos e algumas
notícias pessoais (16,5-12); as saudações finais são, em parte, autó-
grafas (16,13-23).

Plano d a p rim eira ep ísto la aos C orín tios

1,1-3 Endereço e saudação


1,4-9 Oração de ação de graças

O Evangelho da cruz (1,10—4,21)


1,10-17 As divisões na comunidade
1,18-4,21 A sabedoria de Deus como loucura e como sa-
bedoria escondida. A palavra da cruz como crise
da sabedoria deste mundo (1,18-25); eleição divi-
na dos crentes de Corinto (1,26-31); fraqueza do
apóstolo, poder de Deus (2,1-5); a sabedoria es-
condida de Deus (2,6-3,4); a identidade de Pau-
lo e de Apoio (3,5—4,13); os apóstolos e a Igreja
(3,5-17); os ministros não são mediadores (3,18-
23); fidelidade e liberdade apostólica (4,1-5); o
apóstolo do Crucificado (4,6-13); exortações
conclusivas (4,14-21)

Manual de ética cristã (5,1-11,1)


5.1-13 O caso do incestuoso
6.1-11 Os processos diante dos tribunais pagãos
6,12-20 A freqüentação das prostitutas
7,1 -40 Casamento e celibato
Diretrizes gerais (7,1-7); casos particulares: ce-
libatários, viúvas, casamentos mistos (7,8-16); a
liberdade escatológica (7,17-24); as virgens e as
viúvas (7,25-40)
8,1-11,1 As carnes sacrificadas
Liberdade e amor (8,1-6); a liberdade e o respeito
pelo outro (8,7-13); primeiro exemplo: a liberda-
de do apóstolo (9,1-27); segundo exemplo: a ge-
ração do deserto (10,1-13); a mesa do Senhor e a
mesa dos demônios (10,14-22); liberdade e edifi-
cação (10,23-11,1)

O culto (11,2-14,40)
11,2-16 O comportamento das mulheres no culto
11,17-34 A ceia do Senhor
12,1-14,40 Os dons espirituais

237
As epístolas de Paulo

Diversidade e complementaridade dos dons (12,1-


31a); os dons espirituais e o amor (12,31-13,13);
glossolalia e profecia (14,1-40)

O Evangelho da ressurreição (15,1-58)


15.1-11 A certeza fundamental :Cristo ressuscitou
15.12- 34 Ressurreição de Jesus e ressurreição dos mortos
15,35-49 O corpo espiritual dos ressuscitados
15,50-58 A transformação final

Conclusão da epístola (16,1-24)


16.1- 4 A coleta para Jerusalém
16,5-12 Projetos e notícias pessoais
16.13-24 Recomendações finais e saudações2

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Unidade e integridade da epístola
Os problemas colocados pelo texto da epístola
A epístola, tal como está constituída, conserva, em seu estado
original, uma carta de Paulo a Corinto ou deve-se ver aí a edição,
por Paulo ou por um redator ulterior, de um manual da vida cristã
composto a partir de várias cartas diferentes?
As razões que levam a considerar 1 Coríntios uma combinação de
várias cartas são as seguintes;
1) 1 Coríntios 1,1-4,21 constitui um conjunto facilmente iso-
lável. 1 Coríntios 4,14-21 dá impressão de constituir o fim
de uma carta, à qual só falta a saudação final, e não prepa-
ra, de maneira alguma, o início de 1 Coríntios 5,1-13, que
começa abruptamente.
2) O final de 1Coríntios 4,14-21 entra em concorrência com a
conclusão canônica da carta (16,5-12). N o primeiro, Paulo
está prestes a ir para Corinto, ao passo que na segunda ele
anuncia sua visita para mais tarde.
3) Na maior parte de 1 Coríntios, Paulo responde às questões
dos coríntios, discute o comportamento deles e os instrui
como uma autoridade reconhecida, a ponto de lhes dizer,
sem receio, em 1 Coríntios 15,9, que não é digno de ser
chamado apóstolo. Ao contrário, em 1 Coríntios 1,1-4,21 e

238
A prim eira epístola a o s C oríntios

em 9,1-18 ele defende a autoridade de um apostolado que


ele sabe ser contestado.
4) 1 Coríntios 5,9 faz alusão ao conteúdo de uma carta que já
tinha escrito aos coríntios e na qual tinha prescrito que evi-
tassem os libertinos. Em virtude do conteúdo, não pode se
tratar do início de 1 Coríntios. leria Paulo já escrito uma
carta aos Coríntios antes de 1 Coríntios ou a carta mencio-
nada se encontra em 1 Coríntios (por exemplo em 6,1-11)?
5) A resposta sobre a atitude a ser adotada em relação ao
consumo de carnes sacrificadas emprega argumentos teo-
lógicos muito diferentes: a severa advertência contra a ido-
latria em 1 Coríntios 10,1-22 não parece compatível com a
afirmação de uma liberdade individual limitada apenas pela
consideração devida ao próximo (8,1-13 e 10,23-11,1).
6) Em 1 Coríntios 1,10-17 Paulo menciona notícias recebidas
de familiares de Cloé, que o obrigam a protestar contra
conflitos que dividem a comunidade: diversos partidos
parecem se filiar à influência de diferentes apóstolos que
trabalharam, direta ou indiretamente, em Corinto (Paulo,
Apoio e, talvez, Pedro). Em 1 Coríntios 11,17-34, ao con-
trário, ele só ouviu falar de divisões e crê que, em parte,
seja verdade (11,18).
7) O conjunto da epístola atesta a existência de vários vaivéns
entre Corinto e Efeso, lugar provável da expedição da car-
ta ou das cartas. Em 1 Coríntios 1,10-4,21 Paulo reage às
informações dos familiares de Cloé; em 7,1, ele responde
a uma carta dos coríntios, em 11,18 e 15,12 cita comentá-
rios de certos membros da comunidade; em 16,17-18, está
com membros de uma delegação oficial da comunidade.
Como explicar que Paulo tenha deixado acumular as difi-
culdades e as questões para depois dar resposta?

A epístola como coleção: hipóteses


Para resolver essas dificuldades e evitar essas contradições, várias
soluções foram propostas. São três as hipóteses mais clássicas:

239
As epístolas de Paulo

1) Johannes Weiss (19102) distingue três cartas:


A. A primeira se caracteriza por suas rigorosas tomadas de posição.
Paulo a redigiu em Éfeso em um momento em que as tensões no
interior da comunidade estavam ainda em um estado anódino. Ela
compreende I Coríntios IO,l-22(-23) + 6,12-20 + 9,24-27 + 11,2-
34 + 16,7b-9 + 16,15-20. A esta carta pertence ainda, provável-
mente, 2 Coríntios 6,14-7,1.
B. A segunda foi escrita na Macedonia (ICor 15,32; 16,l-7b). Com-
preende 1Coríntios 7-8, aos quais se encaixa muito bem o capítulo
13, e, depois, 1 Coríntios 10,24-11,1 + 9,1-23 + 12 + 14,1-16,7b.
C. 1 Coríntios 1,1-6,11 constitui uma unidade orgânica. Pela primeira
vez se faz sentir certa irritação do apóstolo, de sorte que esse frag-
mento corresponde a uma terceira carta independente, e não ao
início da carta B.
2) Walter Schmithals 1 (19562 3) distingue duas cartas:
A. A primeira corresponde, no conjunto, à carta A de Johannes Weiss.
A ela se acrescenta 1Coríntios 15, visto que este capítulo interrom-
pe inabilmente a sequência das respostas (π6ρί δ6, "a propósito de”,
ICor 12,1 e 16,1), e 1 Coríntios 15,1 se encadeia bem com 11,34, e
I Coríntios 15,12 corresponde a um estágio precoce das relações
entre Paulo e Corinto. Ela compreende, portanto, 2 Coríntios 6,14-
7.1 + 9,24-10,22 +6,12-20 +11,2-34 + 15 + 16,13-!445.
B. Para a segunda sobram: 1 Coríntios 1,1-6,11 + 7,1-9,23 + 10,23-
11.1 + 12,1-14,40+ 16,1-12.
3. Wolfang Schenk (1969s) e Christophe Senft (19796) distinguem
quatro cartas, vendo como duas unidades 1 Coríntios 1,1—4,21, de
uma parte, e, de outra, a série de respostas do apóstolo à carta
dos coríntios. Com algumas hesitações na reconstituição das duas
primeiras cartas (ICor 5,9 faz alusão a ICor 6,1-11) e algumas va-
riantes, eles propõem:

2 Johannes WEISS, Dererte Korintherbrief, Gottingen, 1910, XL1-XL1I.


3 Walter SCHMITHALS, Die Gnosis in Korinth. Eine Untersuchung zu den
Korintherbriefen, Gõtingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 21956, 84-89.
4 Segundo Walter SCHMITHALS, Die Briefe des Paulus in ihrer urspritng-
lichen Form, Zurich, Theologischer Verlag, 1984, as duas epístolas aos
Coríntios são uma combinação de treze cartas.
5 Wolfang SCHENK, Der erste Korintherbrief ais Briefsammlung, Z N W 60
(1969)219-243
6 Christophe SENFT La premiere épitre de saint Paul aux Corinthiens, Neu-
châtel, Delachauxet Niestlé, 1979, 17-19.

240
A prim eira epístola a o s C oríntios

A. 1Coríntios 6,1-11 + 15,1-58 + 16,13-24. Schenk acrescenta 1 Corín-


tios 11,2-34, enquanto Senft hesita em atribuir 1 Coríntios 6,12-20
e 11,2-34 a A ou a B.
B. 1 Coríntios 5,1-13 + 9,24-10,11. Schenk acrescenta 1 Coríntios
6,12-20 e 9,1-18.
C. 1 Coríntios 7,1-8,13 + 9,19-23 + 10,23-11,1 + 12,1-14,40 + 16,1-12.
Senft integra aí 1 Coríntios 9,1-18.
D. 1 Coríntios 1,1—4,21.

A epístola como unidade


Quatro razões em favor da unidade primitiva da epístola:
• A primeira razão é de ordem factual: nem a tradição manuscrita,
nem as citações patrísticas conservaram outra versão da epístola di-
ferente de sua forma canônica. Interpretar 1 Coríntios como uma
combinação de diversas cartas de Paulo pressupõe que estas tenham
desaparecido sem deixar traços e que só resta atestada a edição da
epístola inteira.
• A segunda razão baseia-se na história das formas literárias. A An-
tiguidade conhecia bem o gênero literário de coleção de cartas:
as cartas de Platão, de Epicuro, de Isócrates ou de Demóstenes
foram editadas como livros, e autores como Cícero, Sêneca ou Plí-
nio publicaram eles mesmos sua correspondência. Dessa maneira,
mesmo curtas mensagens são conservadas e postas à disposição
do público. A Antiguidade não conhecia, ao contrário, a existência
de coleção ou de combinação de cartas sob forma de uma carta.
• A terceira razão é de ordem metodológica: uma carta pode ser frag-
mentada indefinidamente em razão das representações ideais da crí-
tica literária. E por isso que os critérios empregados devem ser defi-
nidos de maneira precisa. Os argumentos teológicos ou ideológicos
não têm valor na medida em que pressupõem uma interpretação da
teologia paulina e de sua evolução anterior ao estabelecimento dos
textos. O corte de uma epístola em várias cartas só é lícito caso se
possa mostrar que o conjunto da argumentação não é compreensível
sem uma mudança do contexto de comunicação, e que ela pressupõe
várias situações históricas incompatíveis entre si. Ora, não é esse o
caso de 1 Coríntios7.

7 Hans COZELMANN, Der erste Briefan die Korinther, Gottingen, Vande-


nhoeck und Ruprecht, 1969; ed. ingi.: I Corinthians: A Commentary on
the First Epistle to the Corinthiens, Philadelphia, Fortress Press, 1985.

241
As epístolas de Paulo

‫ ־‬A quarta razão se prende à unidade formal e à coesão teológica de


1 Coríntios: o conjunto da argumentação da epístola é dominado
pela consciência apocalíptica, escatológica e missionária do após-
tolo; ela determina sua interpretação da cruz (ICor 1,1-4,21) e sua
cristologia (1,18-25 e 15,12-28), sua antropologia e sua valorização
do corpo como templo do Espírito e membro de Cristo (3,16-17;
6,12-20), sua insistência na necessidade da ruptura da Igreja com
o mundo antigo (5,1-6,11), sua compreensão da liberdade cristã
(6,12-8,13; 9,1-I88).

I Coríntios I4,33b-36
A ordem dada às mulheres de se calarem na assembléia (ICor
14,33b-36) é provavelmente uma glosa tardia, acrescentada por
ocasião da edição do corpus paulino para preparar 1Timóteo 2,8-15.
Ela interrompe o contexto consagrado aos profetas; é fabricada com
elementos discordantes emprestados dos versículos vizinhos; con-
tradiz 1 Coríntios 11,5 e emprega argumentos não-paulinos (“como
o diz a Lei”, 14,34).

2.2. A s tradições pré-paulinas


1 Coríntios é a única das cartas paulinas a se referir explicitamen-
te a fórmulas tradicionais9. Em 1 Coríntios 11,23 Paulo cita uma pa-
lavra que recebeu da parte do Senhor, e em 15,3a uma confissão de
fé igualmente recebida por ele e, depois, transmitida aos coríntios.
Paulo faz uma citação exata desses textos ou, às vezes, ele mesmo
reformula seu conteúdo?

8 Margaret M. MITCHELL, Paul and the Rethoric o f Reconciliation.


An Exegetical Investigation o f the Language and the Composition of
1 Corinthians, Louisvilee, Westminster/John Knox, 1992; Giuseppe
BARBAGLIO, La Prime lettera ai Corinzi, Bologna, Dehoniane, 1996;
Richard HAYS, First Coritnhians, Louisville, Westminster/John Knox,
1997.
9 1 Coríntios 7,10 cita, aliás, como 1 "Tessalonicenses 4,16-17, uma palavra
do Senhor. Enquanto o logion citado em 1Tessalonicenses 4,16-17 não tem
equivalente direto na tradição sinótica ou nos evangelhos apócrifos, 1 Co-
ríntios 7,10 é o paralelo direto de Marcos 10,11-12// Mateus 19,9.

242
A prim eira epístola ao s C oríntios

1 Coríntios 11,23-26
1 Coríntios 11,23a introduz uma citação de estilo indireto na qual
Paulo apoia, em seguida, suas recomendações aos coríntios (ώστ€,
“é por isso”, ICor 11,27). Essa citação contém, em todo caso, uma
dupla palavra do Senhor, depois provavelmente um comentário pós-
pascal, se a redação de 1 Coríntios 11,26 não for de Paulo:

"O Senhor Jesus, na noite em que fo i entregue, tomou o pão, e


após ter dado graças partiu-o e disse:
‘Isto é o meu corpo em prol de vós; fazei isto em memória de
mim ’.
Ele fez o mesmo quanto ao cálice, após a refeição, dizendo:
‘Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto todas as
vezes que dele beberdes, em memória de mim.
Pois todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste vi-
nho, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha’”.

Este relato da instituição da ceia do Senhor é paralelo ao que é


citado em Marcos 14,22-25. Provém, sem dúvida, de um cristianis-
mo de língua grega, e Paulo talvez o tenha tomado da comunidade
helenística de Antioquia.

/ Coríntios 15,3-5(-7?)
A construção é a mesma em 1 Coríntios 15,3a e em 11,23a. O
texto introduzido pela fórmula de citação compreende uma inter-
pretação da morte de Jesus (15,3b-4a), uma interpretação de sua
ressurreição (15,4bc-5a) e em seguida a enumeração de uma dupla
cadeia de testemunhas das aparições: Cefas, os Doze e os 500 ir-
mãos (15,5-6), depois Tiago e os apóstolos (15,7), aos quais Paulo se
junta (15,8). Em sua versão primitiva, a confissão de fé só continha,
provavelmente, os dois primeiros elementos:
“Cristo morreu — por nossos pecados — segundo as escrituras
— e foi sepultado,
ele ressuscitou — no terceiro dia — segundo as escrituras
— e apareceu... ”.

243
As epístolas de Paulo

Como as fórmulas nas quais talvez Paulo se apóie em Romanos


3,25 e 4,25, esta confissão de fé se concentra inteiramente no duplo
acontecimento da morte e da ressurreição de Jesus, para declarar o
seu efeito salvífico. A menção repetida da conformidade com as escri-
turas interpreta-a como a realização da promessa. A expressão “por
nossos pecados” não é paulina (Paulo escreve “por nós”); remete à
mesma simbólica que o propiciatório (Ιλαστήριον) de Romanos 3,25.

1 Coríntios 10-16
Não há aqui nenhum elemento de citação, lan to o paralelismo da
construção como a terminologia (“a taça da bênção”) soam como o
eco de uma fórmula litúrgica:

“A taça da bênção que nós abençoamos não é porventura uma


comunhão com o sangue de Cristo?
O pão que partimos não é uma comunhão com o corpo de Cristo?"

E surpreendente a inversão das espécies eucarísticas. Prende-se


Paulo a uma tradição diferente da dos relatos da instituição ou pre-
para ele, com o anúncio retardado do pão, a argumentação que se
segue?

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. A ocasião da carta
O conteúdo de 1 Coríntios é determinado, quase na totalidade,
pelas perguntas diretas dos coríntios ou pelas notícias que o apóstolo
recebeu de Corinto. Paulo indica, às vezes, a fonte de suas informa-
ções, como em 1 Coríntios 1,11. Em outros casos, ele cita somente
os comentários que ouviu (11,18; 15,12).

A carta de Corinto
Paulo só menciona, explicitamente, a carta dos coríntios a pro-
pósito do casamento e do celibato: “a propósito do que me escre-
vestes” (ICor 7,1). lodavia é provável que os outros π6ρΙ ôè (“a

244
A prim eira epístola a o s C oríntios

propósito de...”, ICor 7,25; 8,1; 12,1; 16,1.12) se refiram igualmente


a perguntas que lhe foram feitas nessa ocasião. Os temas resumida-
mente retomados e lembrados pelo apóstolo (“a propósito do que
me escrevestes”, 7,1; “a propósito das virgens”, 7,25; “a propósito
das carnes sacrificadas aos ídolos”, 8,1; “a propósito das manifesta-
ções do espírito”,12,1; “a propósito da coleta em favor dos santos”,
16,1; “a propósito do irmão Apoio”, 16,12) não permitem reconstruir
o teor preciso dessas questões. Em compensação, eles estruturam
toda a parte central da epístola:
7.1 e 7,15 introduzem 7,1-40
8.1 introduz 8,1-11,1
12.1 introduz 12,1-14,40
16.1 introduz 16,1-4
16,12a introduz 16,12b

A s informações sobre as tensões e os partidos


no interior da comunidade
Por duas vezes o apóstolo fala de informações recebidas sobre a
existência de facções ou partidos no interior da Igreja:

1 Coríntios 1,11 introduz 1,10-4,21


11,18 introduz 11,17-34 e talvez 11,2-16.

As primeiras notícias mencionadas provêm dos “familiares de


Cloé”, provavelmente em viagem de negócios, que contam a Paulo
os conflitos e rivalidades que dividem a Igreja. A partir das informa-
ções contidas na carta, podem-se reconstruir os seguintes elemen-
tos: vários grupos se formaram invocando, cada um deles, a auto-
ridade de um dos apóstolos que estiveram direta ou indiretamente
presentes em Corinto. Uma facção se liga a Apoio, uma outra pa-
rece se ligar a Cefas (embora não haja nenhum traço de uma pas-
sagem de Pedro por Corinto), e uma terceira permanece solidária
a Paulo, o fundador da comunidade. E difícil saber se o “partido de
Cristo” (1,12) representa uma tentativa fracassada de ultrapassar
os conflitos ou se é uma invenção de Paulo. Seja como for, a for-

245
As epístolas de Paulo

mação dessas divisões parece, por um lado, ligada ao batismo: os


novos convertidos têm relações de lealdade com os apóstolos que
os batizaram (1,13-17). Ela resulta, por outro lado, do eco diferen-
ciado da pregação dos apóstolos na comunidade. A autoridade de
Paulo podería sofrer a concorrência de Apoio. Pode-se, com efeito,
observar que as pessoas de Paulo e Apoio têm um papel central na
argumentação (3,4.5).
Paulo, obviamente, leva a sério a informação. Ele enquadra a
situação de duas maneiras. De um lado, lembra que a relação dos
crentes com Cristo passa pelo Espírito que está neles, e não pela
mediação dos apóstolos. De outro lado, ele distingue a atividade dos
apóstolos da acolhida deles pelos coríntios. E desejável, de um lado,
que Apoio prossiga com sua atividade em Corinto, mas é necessário
que os coríntios mudem a compreensão que têm de suas relações
com os apóstolos.
As segundas notícias (11,18) são mais difíceis de interpretar. A
consequência das cisões que dividem a ceia do Senhor é que os
membros da Igreja não esperam uns pelos outros para comer (11,33)
e cada um come e bebe o que trouxe (11,22a), de sorte que uns se
regalam enquanto outros ficam com fome (11,22b). Trata-se de sim-
pies divagem social ou o desprezo da comensalidade provém de uma
compreensão sacramentalista da ceia?10 Paulo vê aí um problema
teológico fundamental: enquanto os membros desprezarem o corpo
de Cristo constituído por eles (11,29) não haverá como tomar a ceia
do Senhor (11,20).

O problema da ressurreição dos mortos


O segundo e último grande desenvolvimento teológico da epísto-
la é o que Paulo consagra à ressurreição dos mortos (ICor 15,1-58).

10 Hans von SODEN, Sakrament und Ethik bei Paulus. Zur Frage der litera-
rischen und theologischen Einheittlichkeit von I Kor 8-10, in Urchristentum
und Geschichte I,Tübingen, Mohr, 1951,239-275; Günther BORNKAMM,
Herrenmahl um Kirchen bei Paulus, ZThK 53 (1956) 312 ss., reed, in Stu-
diem zu Antike Urchristentum, Gesammelte Aufsátze II, München, Kaiser,
1949, 138-176.

246
A prim eira epístola a o s C oríntios

Dois desenvolvimentos doutrinais, de caráter escatológico e apo-


calíptico (1,10-4,13: a revelação escatológica de Deus no paradoxo
da cruz; 15,1-58: a realização final da criação), enquadram, assim,
0 centro ético e eclesiológico de 1 Coríntios 5-14 e delimitam a ar-
quitetura do conjunto da carta. A intenção explícita do apóstolo é
lembrar aos coríntios a essência do Evangelho que receberam dele
(ICor 15,1). A respeito disso, a última parte duplica a primeira. Em
1 Coríntios 1,17 já se anunciava uma apresentação programática da
pregação paulina; uma segunda razão aparece, é verdade, em 15,12:
algumas pessoas na comunidade defendem a idéia de que não há
ressurreição dos mortos. À exceção dos argumentos ad personam
de 15,29-33, a argumentação do apóstolo tem mais o caráter de
uma exposição sistemática do que o de uma refutação.

3.2. Os destinatários
Corinto
A cidade de Corinto, na qual Paulo, acompanhado de Timóteo e
Silvano, introduziu o cristianismo, é uma cidade nova e rica. Destruí-
da em 146 a.C., foi reconstruída por Júlio César em 44 a.C. como
colônia para seus veteranos. Em 29 a.C., passou a ser a capital da
Acaia. Economicamente, a cidade é rica, graças, particularmente,
à sua situação geográfica. Do ponto de vista religioso, a população,
muito misturada, convive com pluralismo e sincretismo. A cidade
tem má reputação: já Aristófanes fala de “corintianizar” com o sen-
tido de levar uma vida dissoluta (κορι,νθίαζομαι, Fragm. 354).

A comunidade de Corinto: história, composição


religiosa e social
A história da fundação da Igreja de Corinto varia conforme se
a leia em 1 Coríntios e em 1 Tessalonicenses, ou no relato de Atos
18,1-17.
O prefácio epistolar da primeira epístola aos Tessalonicenses dá a
Timóteo e Silvano o título de co-autores (lTs 1,1). Visto que a carta
foi enviada de Corinto, como levam a pensar as menções a Acaia

247
As epístolas de Paulo

(ITs 1,7.8), pode-se supor que os três autores colaboraram na fun-


dação da comunidade coríntia. 1 Coríntios 16,15 designa a família de
Estéfanas como primícias da Acaia, quer dizer, como os primeiros
convertidos de Corinto. Estéfanas e sua família, Crispo e Gaio são,
aliás, as únicas pessoas que Paulo batizou em Corinto (ICor 1,14 e
16). Dessas três pessoas, a epístola só menciona o nome e o fato de
que a família de Estéfanas se dedicou imediatamente ao trabalho
apostólico (ICor 16,15).
O auditório construído pela argumentação da epístola é consti-
tuído de pagão-cristãos; 1 Coríntios 12,2 é explícito a respeito desta
questão: no passado, os membros da comunidade eram pagãos e
adoravam ídolos mudos. E igualmente significativo que toda a dis-
cussão sobre a carne sacrificada aos ídolos seja orientada de um
ponto de vista inteiramente pagão-cristão. Os “fortes” e os “fracos”
não são os pagão-cristãos e os judeu-cristãos, como em Romanos
14,1-15,13, mas os pagãos recém-convertidos, de consciência forte
ou fraca. As questões de pureza alimentar não têm nenhuma im-
portância e a história de Israel é considerada de um ponto de vista
exclusivamente exemplar e tipológico (ICor 10,1-22).
As análises sociológicas empreendidas para reconstituir a compo-
sição do cristianismo paulino em Corinto, apoiadas em grande par-
te nos dados dos Atos, convergem em suas descrições: a Igreja era
constituída de representantes de uma larga escala social, na maioria
pessoas simples (pequenos artesãos, pequenos comerciantes e es-
cravos) e uma minoria de personalidades influentes da cidade que
tinham um peso particular na comunidade11.

11 GerdTHEISSEN, La stratification sociale de Ia communauté corinthienne.


Contribution àla sociologie du christianisme primitifhellénistique (1974), in
ID., Histoire sociale du christianisme primitif, Genève, Labor et Fides, 1996,
91-138; ID., Les forts et les faibles à Corinthe. Analyse sociologique d’un
conflit théologique (1975), in ID., Histoire sociale du christianisme primitif,
Genève, Labor et Fides, 1996, 139-160; ID., Soziale Integration und sakra-
mentales Handeln. Eine Analyse von 1 Kor 11,17-34, N ovT24 (1974) 179-
205; ou Studiem zur Soziologie des Urchristentums, Tubingen, Mohr, 1979,
290-231; Wayne A. MEEKS, The First Urban Christians. The Social World
o f the Apostle Paul, New Haven/London, Yale University Press, 1983.

248
A prim eira epístola ao s C oríntios

3.3. Os interlocutores (o problema dos “adversários”)


1 Coríntios pressupõe a presença de adversários de
Paulo em Corinto?
Em suas respostas às questões dos coríntios e nas instruções
que dá, por sua própria iniciativa, para a vida cultuai da comunidade
(ICor 11,2-34) o apóstolo ensina com uma autoridade cujo reconhe-
cimento não é posto em dúvida. E diferente a situação quando ele
defende seu Evangelho e seu apostolado (ICor 1,10-4,13; 9,1-27 e
15,1-58)?
A recusa de certos membros da comunidade a crer na res-
surreição dos mortos (ICor 15,12) afirma um desacordo objetivo
com a posição defendida pelo apóstolo em continuidade com a
tradição (15,3-5). Por que dizem eles que não há ressurreição dos
mortos? A epístola não oferece uma resposta direta a esta ques-
tão, e três sugestões foram feitas: ou eles julgam que a nova cria-
ção já é realidade plena e não esperam mais outra realização além
da liberdade cristã já dada pelo Evangelho; ou são adeptos de re-
presentações mais conformes ao pensamento grego e defendem,
por exemplo, a idéia de uma imortalidade da alma; ou, ainda, eles
pura e simplesmente negam a idéia, julgada absurda, de uma res-
surreição dos corpos. N o primeiro caso, a argumentação tendería
a sublinhar a dimensão do “ainda não” da escatologia cristã. No
segundo, ela deveria se concentrar na afirmação do caráter cor-
poral e carnal da ressurreição. Conforme a terceira interpretação,
a mais provável, sua tarefa é tornar plausível uma transformação
dos corpos perecíveis em corpos imperecíveis como acabamento
da criação.
Os membros da comunidade que negam a ressurreição dos mor-
tos são os mesmos fortes que, nas questões éticas, julgam que tudo
é permitido (ICor 6,12; 10,23)? Pode-se reconstruir uma coerência
entre a oposição idealista e entusiasta à visão de uma ressurreição
corporal e, de outro lado, a idéia de que a liberdade cristã permite,
sem problema de consciência, freqüentar prostitutas, consumir a
carne sacrificada aos ídolos ou deixar as mulheres profetizarem de
cabeça descoberta?

249
As epístolas de Paulo

Adversários vindos do exterior ou membros da


Igreja de Corinto ?
A argumentação de I Coríntios 1,10-4,13, que adverte a Igreja,
ao mesmo tempo, contra uma incompreensão da sabedoria de Deus
e contra uma incompreensão dos apóstolos, talvez permita precisar
o objeto do debate. A interpretação mais simples dos dados é, de
fato, que a chegada de Apoio a Corinto, após a partida de Paulo,
teve uma repercussão considerável na vida da igreja. Caso se possa
confiar nas informações dos Atos, que nos apresentam Apoio como
um intelectual vindo de Alexandria e formado, como Fílon, na sabe-
doria e na filosofia judeu-helenística, ao mesmo tempo orador bri-
lhante e exegeta experimentado nos métodos da exegese alegórica,
pode-se compreender que tenha fascinado, se não toda, pelo menos
parte da Igreja de Corinto.
Ora, a crítica que, em 1 Coríntios 1,18-3,4, Paulo faz da retórica
e dos discursos de sabedoria não tem por alvo Apoio, como demons-
tra 16,12, mas, antes, a maneira como ele foi recebido em certos
meios do cristianismo coríntio. E de deduzir que a sabedoria à qual
se opõe Paulo não é a teologia egípcia, filosófica ou sapiencial de
Apoio, mas, muito ao contrário, a de sua recepção no interior da
Igreja de Corinto12.

3.4. Lugar e data de composição


Segundo 1 Coríntios 16,8, a epístola foi escrita em Efeso, durante
a permanência de Paulo na cidade, nos anos de 51/52 a 54/55; Atos
19,8.10 dá a essa estadia uma duração de dois anos e três meses.
Se a epístola resulta da combinação de várias cartas, ela reúne uma
correspondência que pôde se desenvolver ao longo de várias esta-
ções e implicar várias idas e vindas entre Efeso e Corinto. Antes de ir
para Corinto, ou a caminho de Corinto, Paulo teve tempo, todavia,
de enviar ainda a segunda epístola a Corinto.

12 Gerhard SELLIN, Der Streit um die Auferstehung der Totem, Gottingen,


Vandenhoeck und Ruprecht, 1986.

250
A prim eira epístola a o s C oríntios

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A “teologia da cruz ”
Nas cartas paulinas, a cruz é um term o técnico que interpreta
não só a morte, mas o duplo acontecimento da morte e da ressur-
reição de Jesus (ICor 1,17.18; Cl 5,11; 6,12.14; F1 2,8; 3,18). A cruz
designa o acontecimento da salvação em Jesus Cristo em seu con-
junto, de sorte que Cristo pode ser designado como o Crucificado
(ICor 1,23; 2,2a; 3,1) e a palavra da cruz é sinônima de Evangelho
(ICor 1,18).
A palavra da cruz se apresenta como um paradoxo que provo-
ca a fé ou o escândalo, porque é recebida ou como poder de Deus
ou como loucura (ICor 1,23; G1 5,11). Com efeito, é a maneira pela
qual se a recebe que lhe dá sentido: para a fé, ela é poder de Deus,
para o incrédulo, ela não passa de loucura. A idéia não é a de uma
predestinação que a uns daria a compreensão e a outros a recusaria.
Ao contrário: se alguns se perdem, é porque percebem a cruz como
loucura, ao passo que os outros são precisamente salvos porque a
recebem como poder de Deus.
O fato de a palavra da cruz ser paradoxal, de ser loucura para
uns e poder de Deus para outros, resulta de uma decisão de Deus
de tornar louca a sabedoria do mundo pelo paradoxo da cruz (ICor
1,21). Essa decisão de Deus se segue à história das infelizes relações
da sabedoria de Deus com a sabedoria do mundo. O objetivo da es-
tratégia divina é elevar a incompreensão da sabedoria humana à sa-
bedoria de Deus e salvar os que por causa da pregação — louca, aos
olhos do mundo — põem sua confiança em Deus.
O ponto de partida dessa virada apocalíptica encontra-se no fra-
casso da sabedoria do mundo em conhecer Deus em sua sabedoria.
O que Paulo pressupõe é que a sabedoria do mundo teria podido re-
conhecer Deus. Mas, assim como a existência que busca sua justiça
“pelas obras da Lei” investe na Lei aquilo que esta não pode dar e
cai no desespero (G1 3,11-12 e 3,21), assim o mundo abusou da sa-
bedoria para encontrar nela seu sentido e sua origem, de sorte que
a Lei e a sabedoria se tornaram obstáculos para o reconhecimento e

251
A s epístolas de Paulo

a compreensão de Deus. A estratégia posta em ação por Deus con-


siste em se revelar por um paradoxo da comunicação. De um lado,
a cruz é um escândalo para a sabedoria do mundo, na medida em
que ela constitui o impensável por excelência: Deus não se revela na
pessoa de um crucificado. De outro lado, ela é a manifestação ade-
quada de Deus que salva gratuitamente. A salvação daqueles que
crêem (ICor 1,18) não é outra coisa senão sua justificação. A fé não
é uma condição da salvação ou da justificação, mas simplesmente a
confiança pela qual a existência se abre à graça de Deus, a única que
pode dar ao ser seu sentido, sua identidade e sua origem.
A loucura da pregação da cruz funda o mesmo universalismo que
a justificação pela fé. Judeus e gregos são para Paulo os representan-
tes da mesma atitude existencial: eles esperam sinais que confirmem
sua obediência, porque fundam ilusoriamente sua existência em sua
Lei e em sua sabedoria, quer dizer, naquilo que define suas próprias
qualidades. Ora, as linhas de demarcação culturais e religiosas entre
judeus e gregos são precisamente ultrapassadas pela nova possibili-
dade de crer.

4.2. A liberdade cristã segundo Paulo


Foram Paulo e o evangelho de João que tiveram a iniciativa de
tomar emprestado da filosofia helenística o termo “liberdade” para
explicar a existência cristã. O conceito de liberdade vem da Grécia.
Pertence, primeiramente, à linguagem política e designa a indepen-
dência do cidadão e da cidade. Com os inícios do período helenístico,
ele se interioriza e toma no estoicismo o sentido de liberdade que o
sábio ganha em face do mundo exterior.
A compreensão paulina da liberdade define-se pelas seguintes ca-
racterísticas :
1) E Deus o autor da liberdade ou da libertação: é ele o autor
da promessa da criatura nova feita a Adão e a cada um que
crê (014,21-51; Rm8,21).
2) Para Paulo, a liberdade é a libertação da existência antiga
dos poderes que a sujeitam: o pecado (Rm 6,18.22) e a Lei
(Rm 8,2; G! 2,4; 5,1.13).

252
A prim eira epístola a o s C oríntios

3) Essa libertação não leva o sujeito à autonomia, porque ele


se tornaria, então, escravo do que é perecível, da carne
e, portanto, de si mesmo (Rm 8,21): a existência nova é
precisamente livre porque está a serviço da justiça (Rm
6,15-23) e de Cristo (ICor 7,17-24).
4) Porque a liberdade é a existência nova e porque está sob
o senhorio do Crucificado e sob o único julgamento de
Deus e de sua justiça, ela é nascimento da nova criatura,
amada e reconhecida como pessoa, independentemente
de suas qualidades (Rm 14,1-15,13).
5) E por essa razão que o programa da liberdade paulina
não é simplesmente “tudo é permitido”, o que levaria à
existência na escravidão da carne e da corruptibilidade;
a liberdade, segundo Paulo, encontra seu limite no reco-
nhecimento da pessoa e da consciência do outro: “Tudo é
permitido, mas nem tudo convém” ou “Tudo é permitido,
mas nem tudo edifica” (ICor 6,12; 10,23).

4.3. A ressurreição, acabamento da criação


A epístola, que começava pela proclamação apocalíptica do
Evangelho da cruz, termina com o texto mais importante do Novo
Testamento sobre a ressurreição dos mortos.
A idéia da ressurreição dos mortos vem da apocalíptica judaica.
Ela se distingue de outras interpretações da vida após a morte por-
que, diferentemente da imortalidade da alma ou da vida eterna, ela
implica uma dupla descontinuidade com a vida presente; trata-se, de
um lado, da destruição do ser pelo poder da morte e sua recriação
por um novo ato criador de Deus; de outro lado, esse novo ato cria-
dor de Deus é compreendido como ressurreição dos corpos. A res-
surreição dos mortos tem um lugar importante na teologia paulina.
Ela é objeto de controvérsia entre Jesus e os saduceus (Mc 12,18-27
par.) e serve de linguagem para a escatologia futurista do evangelho
de João (Jo 5,28-29; 6,39.40.44.54; 11,23-26).
Os desenvolvimentos paulinos sobre a ressurreição dos mortos
encontram-se no contexto de duas argumentações diferentes:

253
A s epístolas de Paulo

I) Em I Tessalonicenses 4,13-18, a ressurreição dos mortos


é, ao som da trombeta finai, o prelúdio do arrebatamento
e da ascensão dos vivos e dos mortos para o Senhor. O
fato de saber que os mortos serão arrebatados, com os
vivos, para ficar junto do Senhor é próprio da esperança
cristã. A explicação dada pelo apóstolo é a seguinte: ao
som da trombeta, Cristo vai descer do céu; primeiro, os
mortos vão ressuscitar; depois, Cristo vai levá-los para o
céu, junto com os vivos.
Em I Coríntios 15,1-58, a ressurreição dos mortos faz
parte da transformação final da criação corruptível em
criação incorruptível. A fé na ressurreição dos mortos é
fundada no querigma da morte e ressurreição de Jesus.
Ao som da trombeta (ICor 15,52), os mortos vão res-
suscitar, a fim de que todos, vivos e mortos, possam ser
transformados. O último inimigo de Deus, a morte, será
então vencido.

A construção dos dois textos é paralela:


• Introdução: I Coríntios I5,l-3a // I Tessalonicenses 4,13
• Fundamento no querigma da morte e ressurreição de Jesus: 1 Co-
ríntios I5,3b-I I / / I Tessalonicenses 4J4
• Argumentação teológica: I Coríntios 15,12-50 // I Tessalonicenses
4,15
• Revelação apocalíptica: I Coríntios 15,50-57 // I Tessalonicenses
4J6-17
• Recomendação final: I Coríntios 15,58 // I Tessalonicenses 4,18

Várias teses teológicas são comuns às duas argumentações: um ato de


salvação do Senhor (I Tessalonicenses) ou um último ato criador de Deus (1
Coríntios) vão concluir a história do mundo. Esse ato de salvação, ou esse úl-
timo ato criador, vai concernir a todos os seres humanos, sem distinção entre
crentes e não-crentes (ICor 15,22: “todos”; ITs 4,14: "os mortos”). A ressur-
reição dos mortos é o prelúdio ou a condição necessária para o arrebatamento
ou para a transformação final. A continuidade entre a existência presente e
mortal e a existência futura, eterna e imperecível reside na subjetividade pes-
soai dos indivíduos: "nós”.

254
A prim eira epístola a o s C oríntios

A força da argumentação apocalíptica de 1 Coríntios 15,158‫ ־‬re-


side em sua capacidade de unir a soteriologia com a teologia da cria-
ção. As etapas da demonstração são as seguintes:
1) I Coríntios 15,12-19: se Cristo ressuscitou, como procla-
ma o querigma que funda a fé cristã (15,3b-5), então há
uma ressurreição dos mortos. O caso particular prova a
verdade geral. O pressuposto do raciocínio, evidente para
o pensamento grego, é que o conceito de ressurreição não
pode existir se não existe a coisa.
2) I Coríntios 15,20-28: a ressurreição de Cristo é o início da
ressurreição dos mortos: todos os seres humanos que vão
morrer em Adão vão igualmente ressuscitar em Cristo,
que é o segundo Adão, ideal e divino. A idéia é que com
a ressurreição de Jesus começa o acabamento da criação
e sua submissão ao senhorio divino. Como em Romanos
5,21-23, Paulo pressupõe conhecida a exegese alegórica
de Gênesis 1-2, segundo a qual Adão (Gn 2) é a reprodu-
ção material de um original celeste e ideal (Gn 1).
3) 1 Coríntios 15,35-50: em toda a diversidade da criação, a
morte do que é perecível é a condição necessária para o re-
nascimento do que é imperecível. A idéia é que a ressurrei-
ção dos mortos é um novo ato criador, que recriará o que é
carnal e perecível em corpos espirituais e imperecíveis.
A força teológica e ética da argumentação paulina reside no fato
paradoxal de que a promessa da ressurreição tem por conseqüência
uma valorização da realidade presente, que torna o homem respon-
sável em relação a seu corpo mortal e à criação.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A interpretação recente desse “manual da vida cristã” (Christo-
phe Senft) foi marcada pela retomada, nos Estados Unidos em parti-
cular, de três questões às quais a pesquisa teológica e social alemã já
estava atrelada desde o último século até o início deste século.

255
As epístolas de Paulo

De um lado, reabriu-se, dos dois lados do Atlântico, o campo qua-


se abandonado dos estudos sociais destinados a reconstituir a vida
cotidiana dos primeiros cristãos, as condições reais da vida de suas
comunidades e, portanto, os pressupostos da parênese paulina.
De outro lado, a atenção dada, de novo, ao judaísmo helenístico
levou a uma reavaliação da ideologia religiosa com a qual o apóstolo
está em debate em Corinto. A “sabedoria” e a espiritualidade criti-
cadas por Paulo explicam-se menos por uma helenização da fé cristã
dos coríntios do que por uma interpretação do Evangelho marca-
da pelas escolas filosóficas judaicas de Alexandria e introduzidas na
Grécia por Apoio.
Enfim, a mesma atenção dada à teologia judaica de língua grega
levou a uma revalorização das influências apocalípticas sobre a teo-
logia da cruz do apóstolo. Disso resulta uma revitalização da inter-
pretação reformada da teologia da cruz (ICor 1-4).

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BARBAGLIO, Giuseppe. La Prima lettera ai Corinzi. Bologna, Dehoniane,
1995 (Scritti delle origin! cristiane 16).
CONZELMANN, Hans. Dererste Brief an die Korinther. Gottingen, Van-
denhoeck und Ruprecht, 1969 (KEK 5); ed. ingl.: / Corinthians. A
Commentary on the First Epistle to the Corinthians. Philadelphia,
Fortress Press, 1985.
FEE, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. Grand Rapids, Eerd-
mans, 1987 (NLCNT).
HAYS, Richard B. First Corinthians. Louisville, Westminster/John Knox,
1997 (Interpretation).
SEN FT, Christophe. La premiere épitre de saint Paul aux Corinthiens. Neu-
chatel/Paris, Delachaux et Niestlé, 1992 (CNT 7).
SOARDS, Marion L. I Corinthians. Peabody, Hendrickson, 1999 (NIBC 7).

256
A prim eira epístola aos C oríntios

Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapôtre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 221-300.
DUMORTIER, François. Croyants en terres paiennes. Première épitre aux
Corinthiens. Paris, Les Editions ouvrières, 1982.

Estudos particulares
ACFEB. Le corps et te corps du Christ dans la première épitre aux Corin-
thiens. Paris, Cerf, 1983 (LeDiv 114).
MURPHY-O’CO NNO R, Jerome. Corinthe au temps de saint Paul d ’après
les textes et Γ archéologie. Paris, Cerf, 1986.
PITTA, Antonio. II paradosso della croce. Saggi di teologia paolina. Spa,
Piemme, 1998.
RAKOTOHA-RINTS1FA, Andrianjatovo. Conflits a Corinthe. Église et
societé selon I Corinthiens. Analyse socio-historique. Genève, La-
bor et Fides, 1997 (Monde de la Bible 36).
SELL1N, Gerhard. Der Streit urn die Auferstehung der Toten. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1986 (FRLANT 138).
VOLLENWEIDER, Samuel. Freiheit ais neue Schõpfung. Eine Untersu-
chung zur Eleutheria bei Paulus und seiner Umwelt. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1989 (FRLANT 147).
W1LCKENS, Ulrich. Weisheit undTorheit. Eineexegetisch-religionsgeschicht-
liche Studie zu 1 Kor 1 und 2. Tübingen, Mohr, 1959 (BHTh 26).

257
CAPÍTULO

10
 segunda epístola aos Coríntios
François Vouga

Os dois grandes temas da epístola são a defesa do apostolado


paulino e a coleta empreendida pelo apóstolo, em favor de Jerusa-
lém, nas comunidades pagão-cristãs recém-fundadas.

1. A p r e s e n t a ç ã o
A segunda epístola de Paulo aos Coríntios atesta dificuldades en-
contradas pelo apóstolo em Corinto. Paulo anunciou e adiou, diver-
sas vezes, uma nova visita a Corinto (ICor 16,5-6; 2Cor 1,15-2,4),
o que causou alguma decepção. A isso se soma o fato de que outros
apóstolos passaram por lá depois de Paulo. Por um lado, parece que
eles impressionaram os coríntios (2Cor 11,1-15); por outro lado, pa-
rece que censuraram a coleta (2Cor 11,7-8; 12,16-18): Paulo, ao con-
trário deles, nunca quis pagamento ou sustento financeiro dos co-
ríntios, mas, dizem eles, era por esperteza; Paulo não quis ser pago
para que eles, depois, contribuíssem na coleta.
Segundo Gálatas 2,10, a coleta feita nas Igrejas paulinas teria
sido uma decisão tomada por Tiago, João, Pedro e Paulo, no final
do encontro em Jerusalém (Cl 2,1-10): as “colunas” da Igreja de
Jerusalém reconheceram a missão de Paulo junto aos pagãos, mas
pediam às novas Igrejas que manifestassem, com uma coleta, sua
solidariedade com as Igrejas-mãe da Judéia. A correspondência de

259
As epístolas de Paulo

Paulo com Corinto (ICor 16,1-4; 2Cor 7,5-9,15) e com Roma (Rm
15,25-27.30.32) mostra os esforços empregados pelo apóstolo para
assegurar o sucesso de seu empreendimento. A questão teológica e
eclesiológica da coleta é clara: trata-se, para Paulo, de manifestar,
simbolicamente, o reconhecimento mútuo das primeiras comuni-
dades, de modo particular o reconhecimento das comunidades ju-
deu-cristãs da Judeia, ainda muito ligadas ao judaísmo, e das novas
Igrejas pagão-cristãs e urbanas nascidas da missão e da pregação do
Evangelho paulino.
A defesa da coleta passa, portanto, necessariamente, pela defesa
do apostolado paulino. Assim, 2 Coríntios continua a argumenta-
ção esboçada na primeira apologia de 1 Coríntios 1,18-4,13; Paulo
foi chamado de apóstolo do Crucificado, e sua existência é determi-
nada pelo tesouro de que é portador, o Evangelho da cruz. A ques-
tão fundamental da epístola passa, então, a ser: qual é a condição
existencial de um apóstolo do Crucificado? Ou, para reformular a
mesma questão do ponto de vista da ética da comunicação: quais
são as condições necessárias e suficientes para a transmissão do
Evangelho?

1.1. Estrutura
A armação da epístola é feita pelos relatos de viagem do apóstolo
e pelos anúncios de sua próxima viagem a Corinto:
• Relato de viagem I: 1,8. Paulo fala dos perigos que correu na
Ásia.
* Relato de viagem 11: 1,15-17. O que foi projetado: Paulo que-
ria ir a Corinto, antes de ir para a Macedonia, e retornar a
Corinto.
• Relato de viagem UI: 2,12-13. Paulo chegou a Troas, ficou
preocupado por não encontrar Tito e prosseguiu para a Ma-
cedônia.
* Relato de viagem IV: 7,5-7. Paulo chegou à Macedonia, onde
encontrou todo tipo de dificuldades; mas a chegada de Tito
e as boas-novas que trouxe de Corinto tranqüilizaram-no.

260
A segunda epístola a o s C oríntios

• A n ún cio de visita I: 1,15-17. Paulo queria ir diretamente de


Efeso para Corinto.
• A n ú n cio de visita II: 1,23-2,4. Paulo não embarcou logo para
Corinto, porque queria, antes, resolver por carta o conflito
com os coríntios (1Cor 5,111‫)? ־‬.
• A n ún cio de visita III: 9,4. Paulo irá a Corinto, na companhia
de delegados da Macedonia, para buscar a coleta.
• A n úncio de visita IV: 10,2-11. Paulo irá a Corinto e será tão
forte nas palavras quanto nas cartas.
• A n ú n cio de visita V-VII: 12,14; 13,1-2; 13,10. Pela terceira vez
(cf 2Cor 1,15-17?), Paulo está prestes a ir a Corinto.

Plano da segunda ep ísto la aos C orín tios

1,1-2 Endereço e saudação


1,3-11 Oração de ação de graças

A reconciliação do apóstolo com os Coríntios (1,12-2,11)


1.12-14 Declaração de intenção do apóstolo
1,15-2,4 As razões do adiamento da visita
2,5-11 O perdão de Paulo àquele que o ofendeu em Corinto

O fundam ento da solicitação do apóstolo (2,12-7,4)


2.12—4,1 O ministério da Nova Aliança
A questão: a capacidade do apóstolo (2,14-17); os
coríntios são a carta de recomendação de Paulo
(3,1-3); o apóstolo capacitado por Cristo (3,4-4,1)
4.2- 16a O tesouro e as tribulações do apostolado
4, 16t>-5,10 A glória fu tura e a confiança presente
5,11-6,2 O ministério da reconciliação
6.3- 7,1 A exigência de justiça para o apóstolo e para os
seus destinatários

Paulo se regozija porque os coríntios se reconciliaram


com ele (7 ,5 1 6 ‫) ־‬

A solicitação apostólica (8,1-9,15)


8,1-9,15 A coleta
Por que os coríntios devem realizar a coleta (8,1-
15); recomendação dos representantes de Paulo
(8,16-9,5); por que os coríntios devem dar gene-
rosamente (9,6-14)

261
As epístolas de Paulo

A triste necessidade de se gloriar (10,1-13,13)


10,1-11 O apóstolo anuncia sua presença em Corinto
10,12-12,13 Maneira adequada e maneira louca de se gloriar
12,14-13,10 O apóstolo anuncia sua presença em Corinto
13,11-13 Conclusão da carta

1.2. C onteúdo
Nesse quadro, o apóstolo explica as razões que o levaram a adiar,
várias vezes, sua visita (2Cor 1,8-2,11). Defende seu apostolado
(2,12-6,13). Exorta seus destinatários a permanecer fiéis à graça re-
cebida (6,1-7,3 ; 6,1-13 e 7,2-3 combinam os dois momentos da apoio-
gia apostólica e da advertência). Lembra a reconciliação feita (7,4-16)
para, mais uma vez, convidar e encorajar os coríntios a participar da
coleta (os capítulos 8 e 9 retomam as recomendações de ICor 16,1-4
e são preparados, retoricamente, pelo “em tudo”, 2Cor 7,16).
O fim da epístola (2Cor 10,1-13,13) procede a uma divisão dos ou-
vintes: como já em 1Coríntios 15,12,0 apóstolo distingue do resto de
seus leitores e do conjunto da Igreja de Corinto um grupo de pessoas
(τι.ν6‫׳‬ς) cujos comentários ele cita na terceira pessoa do plural (2Cor
10,2.7.10). Faz, de novo, apologia de seu apostolado; ele é o após-
tolo do Senhor cujo poder se manifesta na fraqueza (11,16-12,10);
defende-se diante da ascendência que os missionários concorrentes
ganharam sobre os coríntios e contra suas maledicências a propósito
da coleta (11,7.12.20; 12,16-18); empenha-se para preparar sua che-
gada e sua acolhida em Corinto (10,1-11 e 13,1-10).

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia : u n id a d e e in t e g r id a d e da e p ís t o l a
Os problemas que se colocam quanto à unidade da epístola são
os seguintes:
a) 2 Coríntios 2,4 menciona uma carta escrita por Paulo aos co-
ríntios “em meio às lágrimas”. O problema é o mesmo que o
colocado em 1Coríntios 5,9: trata-se de uma carta perdida ou
deve-se procurá-la no interior da correspondência existente?
Nesse caso, pensa-se, deve-se procurá-la não em 2 Corín-
tios, mas em 1 Coríntios, por exemplo 2 Coríntios 10-13.

262
A seg u n d a epístola a o s C oríntios

b) A apologia do apostolado de 2 Coríntios 2,14-7,4 inter-


rompe 1,12-2,13 e 7,5-16, consagrados às relações entre
Paulo e os coríntios.
c) Os dois capítulos concernentes à coleta (8,1-24 e 9,1-15)
parecem ser duplicatas.
d) A transição entre 9,15 e 10,1 é abrupta. De toda maneira,
o tom da apologia de 10-13 surpreende, depois da atmos-
fera muito mais pacífica dos capítulos 1-9.

2 .I. A epístola como coleção de cartas


As hipóteses da crítica literária, que recorre ao modelo de epís-
tola como coleção de cartas, partem de uma série de postulados
que servem de critérios para a análise. Critério estético idealista:
uma carta deve apresentar uma unidade de forma e de conteúdo.
Critério lógico: as asserções e representações contrárias devem ser
separadas umas das outras. Critério evolucionista: a teologia paulina
se desenvolve de tal maneira que os estágios antigos e recentes são
fáceis de distinguir uns dos outros.
As tentativas de resolver o problema da unidade de 2 Corín-
tios, considerando-a uma coleção de cartas, partem de algumas
unidades consideradas homogêneas e coerentes, combinando-as
de maneira variada:
• a apologia do apostolado de 2,14-7,4;
• uma defesa do apostolado paulino em 10-13;
• uma carta de reconciliação combinando 1,1-2,13 e 7,5-16;
• os capítulos consagrados à coleta: 8,1-26 e 9,1-15.

As hipóteses clássicas são as seguintes:


1) Hipótese de Johann Salomo Semler (1776'; Charles K. Barret,
1973; Victor P Furnish, 1984): 2 Coríntios é a combinação de duas
cartas. A primeira compreendia 2 Coríntios 1-9 e a segunda, que
incluía 10-13, foi escrita depois que Paulo teve notícias alarmantes
de Corinto. Segundo esse recorte, e nessa ordem cronológica, a

’ Johann Salomo SEMLER, Paraphrasis II: Epistolae ad Corinthios, 1776,


incorporava Romanos 16 entre 2 Coríntios 8 e 9.

263
As epístolas de Paulo

carta “em meio às lágrimas” foi perdida e o conflito a propósito da


coleta, atestado em 10-13, é um eco da má repercussão de 2 Co-
ríntios 8-9 em Corinto.
2) Hipótese dos quatro capítulos, de Adolf Hausrath (I8702) e James
H. Kennedy (I9003; Charles H. Talbert, 198745): o recorte é o mes-
mo, mas a seqüência cronológica é invertida: 2 Coríntios 1-9 é a
carta de reconciliação que se segue àquela em meio às lágrimas
(10-13). Maurice Goguel (1926) e Jean Héring (1958*) retomam a
mesma hipótese, mas separando 2 Coríntios 9 da segunda carta,
para fazer uma terceira.
3) A hipótese de Hans Windisch (1924) é também uma variante da
hipótese de Semler. Distingue-se dela porque separa 2 Coríntios
8-9 da primeira carta: a carta I compreende os capítulos 1-7, a
carta II os capítulo 8-9 e a carta III os capítulos 10-13.
4) A hipótese de Rudolph Bultmann (I9516) retoma a de Hausrath,
mas liga a apologia de 2 Coríntios 2,14-7,4 com a de 10-13, de sor-
te que se obtém uma “carta em meio às lágrimas” composta de
2 Coríntios 2,14-7,4 + 10-13, à qual Bultmann junta 2 Coríntios
9, depois uma carta de reconciliação constituída pelos dois blocos
I, 1-2,13 + 7,5-8,24.
5) a hipótese de Günther Bornkamm (19617; Hans Dieter Betz, 1985)
oferece uma síntese das tentativas precedentes. Bornkamm distin-
gue cinco cartas. A primeira constituída pela apologia de 2 Corín-
tios 2,14-7,4. A segunda pressupõe um endurecimento da situação
e se encontra em 10-13. Segue-se a carta de reconciliação (1,1-2,13

2 Adolf HAUSRATH, Der Vier-Kapitel-Brief des Paulus and die Korinther,


Heildeberg [s.n.], 1870.
3 James H. KENNEDY, The Second and Third Epistles o f St. Paul to the Co-
rinthians, London [s.n.], 1900.
4 Charles H. TALBERT, Reading Corinthians. A Literary and Theological
Commentary on I e 2 Corinthians, New York, Crossroads, 1987.
5 Maurice GOGUEL, Introduction au Nouveau Testament IV/2\ Les épitres
pauliniennes, deuxième partie, Paris, Leroux, 1926, p. 86; Jean HERING,
La seconde épitre de saint Paul aux Corinthiens, Neuchâtel, Delachaux et
Niestlé, 1958.
6 O manuscrito do curso do semestre de verão de 1951 foi publicado por Eric
Dinkier: Rudolph BULTMANN, DerZweite Brief an die Korinther, Gòttin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1976; ed. ingl.: The Second Letter to the
Corinthians, Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1985.
7 Günther BORNKAMM, Die Vorgeschichte des sogenannten Zweiten Ko-
rintherbriefes (1961), in Ceschichte und Glaube II. Gesammelte Aufsãtze
IV, München, Kaiser, 1971, 162-194.

264
A segunda epístola a o s C oríntios

+ 7,5-16), depois as cartas concernentes à coleta (primeiro 8,1-24,


depois 9,1-15).

As diferentes hipóteses propostas desmembram e reestruturam,


cada uma à sua maneira, a série dos relatos de viagens (1,8.15-16;
2,12-13; 7,5-7) e de anúncios de visita (1,15-16; 1,23-2,4; 9,4; 10,2-
11; 12,14; 13,1-2.10) do apóstolo. Com isso, elas implicam uma multi-
plicação de viagens de Paulo entre Efeso e Corinto.

2.2, A epístola como unidade literária


Considerar a epístola como a combinação e a edição de fragmen-
tos de diferentes cartas de Paulo se choca com diversas dificuldades
metodológicas.
a) As cartas paulinas são transmitidas pela tradição manus-
crita só sob sua forma canônica8.
b) Conforme a epistolografia antiga, a falta de sistemática e a
ausência de unidade temática fazem parte da definição da
carta. A carta tem por intuito, com efeito, substituir um
diálogo, e por essa razão assume a forma de uma meio-
conversa9.
c) As cartas paulinas não pertencem ao gênero de cartas
pessoais, mas ao de cartas didáticas. A esse respeito, 2
Coríntios é comparável, por sua extensão, pela diversi-
dade de temas abordados e pelas mudanças de tom, com
as epístolas de Platão, de Epicuro ou de Sêneca. A mesma
estrutura literária se encontra na sétima carta de Platão:
o relato dos vaivéns do filósofo entre Atenas e Siracusa
fornece o contexto formal no qual são inseridos, alterna-
damente, apologias, ensinamentos e exortações10.

Kurt ALAND, Die Entstehung des corpus paulinus, in Neutestamentliche


Entwürfe, München, Kaiser, 1979, 302-350.
9 Klaus THRAEDE, Grundzüge grieschich-rõmischer Brieftopik, München,
Beck, 1970.
0‫ י‬François VOUCA, Der Brief ais Form der apostolischen Autoritãt.in Klaus
BERGER et al. (Hrsg.), Studien und Texte zur Formgeschichte, Tübingen,

265
As epístolas de Paulo

d) A história da literatura conhece o gênero da correspondên-


cia ou da coleção de cartas (Cicero, ad Atticus ló,l[5],5;
9,ll[10],4; I5,20[2I],5; 16,17,1; Sêneca, Epístolas 8,2;
21,3-5; 33,1; Plínio, Epístolas 1,1), mas não a coleção de
cartas em forma de carta única.
Considerar a carta uma unidade literária pressupõe levar em con-
ta o caráter irênico da apologia de 2 Coríntios 2,12-7,4, que prepara
o pedido de coleta (8,1-9,15) e implica uma cordialidade recíproca
entre o apóstolo e a comunidade em seu conjunto; mas a unidade da
carta faz também aparecer uma intensificação da oposição antipau-
lina, que Paulo desvaloriza ao atacá-la só no fim da carta (10-13).

2.3. 2 Coríntios 6,14-7,1


Essa advertência contra a idolatria faz parte de 2 Coríntios
6 ,3-7,4? Por um lado, ela interrompe, sem transição, o contexto
(7,2 se inscreve na continuidade direta de 6,13). Por outro lado,
contém inúmeros termos e expressões freqüentes nos Testamentos
dos 12 Patriarcas ou em Qumran11, mas que jamais se encontram
em Paulo; o apóstolo nunca chama Satã de “Beliar”, nem Deus de
“Pantocrator”, e jamais fala de “impureza da carne e do espírito”.
Ou o apóstolo cita um texto judeu-cristão, ou então um fragmen-
to de uma carta antiga de Paulo, aparentada a I Coríntios 5-6,
foi desajeitadamente colado aqui; pode tratar-se também de uma
anexação editorial.

Francke, 1992, 7-58. Textos teóricos de epistológrafos antigos reunidos por


Abraham J. MALHERBE, Ancient Epistolary Theorists, Atlanta, Scholars
Press, 1988.
11 Hoseoh A. FITZMYER, Qumran and the Interpolated Paragraph in 2 Cor
6,14-7,1, CBQ 23 (1961) 271-280; Hans Dieter BETZ, 2 Cor 6,14-7,1: An
Antipauline Fragment?, JBL 92 (1973) 88-108.

266
A segunda epístola a o s C oríntios

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3 .1. A ocasião da carta
A coleta
Quer se considere a epístola uma unidade ou uma coleção de
cartas, a retomada da coleta que Paulo tinha organizado, com ins-
truções precisas, em 1 Coríntios 16,1-4, e para a qual delegou seu
colaborador Ti to (2Cor2,13; 7,6.13.14; 8,6.16.23; 12,18), constitui
um dos assuntos centrais do texto. Uma primeira alusão se encon-
tra, sem dúvida, em 2,12-13, na preocupação do apóstolo com a
demora de Tito, depois uma segunda, explícita, em 7,16. Após ter
sido diretamente o objeto da solicitação em 8,1-9,15, a coleta faz
parte das críticas de que se defende o apóstolo em 10-13. Vozes se
levantaram contra Paulo, em Corinto, para acusá-lo de ter agido por
esperteza; se ele não aceitava ser pago, diziam, era em previsão da
coleta (11,7-9 e 12,16-18)!

A decepção dos coríntios


Quer se considere a epístola uma unidade ou uma coleção de car-
tas, um outro assunto principal de 2 Coríntios é o esclarecimento de
uma série de mal-entendidos entre Paulo e sua comunidade. Um pri-
meiro objeto de conflito parece ter sido a “ofensa” feita ao apóstolo,
que é o assunto de 2,5-11. De que se trata? A tristeza de que fala 2,1-4
é devida às repercussões de 1 Coríntios 5? Seja como for, a recusa do
apóstolo de voltar, em pessoa, a Corinto antes de o conflito ser resol-
vido causou na Igreja de Corinto um segundo mal-entendido: Paulo
tinha, repetidamente, prometido voltar logo a Corinto (2 Cor 1,12 s.),
mas continuou a adiar a viagem para mais tarde. As explicações deta-
lhadas que Paulo dá em 1,12-2,11 mostram que ele vê a necessidade
de desfazer a incompreensão que reina a esse respeito.

A contestação da autoridade do apóstolo


O contraste entre a fraqueza apostólica do apóstolo e a autorida-
de que ele mostra em suas cartas (ICor 5,1-14,40!) suscitou alguma
irritação em Corinto (2Cor 10,2.10). A atitude paradoxal de Paulo

267
As epístolas de Paulo

contrasta, por sua vez, com o sucesso evidente dos superapóstolos.


O terceiro objetivo de 2 Coríntios, quer se considere a carta unidade
ou uma combinação de fragmentos, é explicar a necessidade desse
paradoxo: é na fraqueza do apóstolo que se manifesta o poder do
Evangelho (2Cor 2,12-7,4 e 10,1-13,10).

3.2. Os interlocutores (o problema dos “adversários‫)״‬


O contexto de comunicação estabelecido pela epístola pressupõe
a presença de três grupos de interlocutores do apóstolo. Os destina-
tários da epístola, ou das diferentes cartas que a constituem, são os
membros da Igreja de Corinto em seu conjunto. A Igreja de Corinto
esteve em conflito com o apóstolo; 2 Coríntios 1,12-2,12 e 7,5-16,
entretanto, oferecem e registram, da parte de ambos os lados, uma
reconciliação, que se pode considerar provisória caso 10-13 faça par-
te de uma carta mais tardia, ou definitiva em caso contrário. Um se-
gundo grupo é constituído por “alguns”, que a argumentação distingue
do resto da comunidade; eles parecem representar uma facção que se
opõe ao apóstolo (10,2.10). Enfim, Paulo se confronta, indiretamente,
com outros apóstolos que, durante sua ausência prolongada, foram
acolhidos com entusiasmo em Corinto; eles parece ter se posto em
concorrência com ele e alimentado as críticas a seu respeito.

Os apótolos concorrentes
As informações que 2 Coríntios contém sobre os apóstolos con-
correntes (os “superapóstolos” (2 Cor 11,5) são as seguintes:
• São judeu-cristãos helenizados (11,23-33), como Paulo.
• São missionários itinerantes (10,12-18), como Paulo.
• São apóstolos respeitados em razão de suas palavras e de
seus atos milagrosos (11,5; 12,11), como Paulo (12,12).
• Eles se recomendam a si mesmos (3,1; 10,12.18).
• Eles se fazem pagar pelos coríntios (11,7).
• Eles criticaram a coleta: Paulo, astuciosamente, não se fez
pagar na hora (11,7-9), para depois obter dos coríntios a co-
leta (11,12.20; 12,16-18).

268
A segunda epístola a o s C oríntios

A argumentação do apóstolo pressupõe uma compreensão muito


clara do apostolado, que Paulo desenvolve, de maneira conseqüen-
te, com base em sua teologia da cruz (cf ICor 2,1-5, no contexto de
ICor 1,17-3,4). E evidente, por suas práticas recíprocas, que a con-
cepção que Paulo tem de seu apostolado e da ética da comunicação
do Evangelho difere da teologia dos “superapóstolos”: as diferenças
aparecem na relação que uns e outros estabelecem com seus cole-
gas (Paulo evita a situação de concorrência, ICor 3,5-4,13), com
suas comunidades (os “superapóstolos” se fazem pagar por seu en-
sinamento12) ou com sua própria autoridade: os “superapóstolos”
produzem cartas de recomendação encomendadas; o apóstolo, por
seu lado, só recorre ao Crucificado e só tem uma carta de recomen-
dação: os próprios coríntios (2Cor 3,1-4).
Diferentemente da epístola aos Gálatas, 2 Coríntios não desen-
volve um debate teológico fundamental sobre a compreensão que os
missionários, que passaram por Corinto, têm do cristianismo. Tanto
a apologia do apostolado da Nova Aliança (2Cor 2,12-7,4) como
a defesa do apóstolo (2Cor, 10,1-13,10) se desenvolvem segundo a
lógica própria de sua teologia da cruz. Convém, nessas condições,
reconstruir, como por reflexo, um perfil ideal da teologia dos concor-
rentes? Os modelos adotados são um pré-gnosticismo entusiasma-
do e libertino13, uma apologia judaica helenística14 ou uma tentativa
de tomada de controle judeu-cristão por parte da comunidade-mãe
de Jerusalém?15

12 Em sua defesa, Paulo prende-se à tradição socrática, enquanto assemelha


seus concorrentes aos sofistas: Hans Dieter BETZ, Der Apostei Paulus und
diesockratische Tradition. Eine Exegetische Untersuchung zu seiner Apoio-
gie 2 Korinther 10-13, Tübingen, Mohr, 1972.
13 Wilhelm LÜTGERT, Freiheitspredigt und Schwarmgeister in Korinth,
Güthersloh [s.n.], 1908; Walter SCHIMITHALS, Die Gnosis in Korinth.
Eine Untersuchung zu den Korintherbriefen, Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 21965, 3I969 [1. ed. 1965].
14 Dieter GIORGI, The Opponents o f Paul in Second Cornthians, Edimburgh,
Clark, 1987.
15 Ernst KÀSEMANN, Die Legitimitat des Aposteis. Eine Untersuchung zu
2 Korinther 10-13, Z/VW41 (1942) 33-71.

269
As epístolas de Paulo

A divisão da comunidade e a facção crítica em relação ao apóstolo


A passagem dos “superapóstolos” por Corinto teve um impac-
to considerável na comunidade e em suas relações com Paulo. As
cartas de recomendação que eles traziam impressionaram muito (2
Cor 3,1; 4,2; 5,12; 10,12-18), assim como os relatos de seus prodígios
(12,12), sua ciência e sua eloqüência (11,6). Primeira consequência:
os coríntios se deixam persuadir e perdem sua segurança de julga-
mento (11,1-15). Segunda consequência: a confiança no apóstolo se
vê abalada, pelo menos em alguns, de modo que, por isso, os confli-
tos já mencionados em 1 Coríntios 1,10-17, ou conflitos do mesmo
gênero, se vêem reforçados (2Cor 10,1-11).

3.3. Lugar e data de composição


De acordo com os projetos de viagem mencionados na própria
epístola, Paulo queria ir diretamente de Efeso para Corinto (1,15-
16); mas por causa do atraso de Tito ele foi primeiro para Trôade
( 12 - 13) e para a Macedonia (7, 5) . Se a epístola foi enviada a Corinto
sob sua forma canônica (com exceção eventual de 6,14-7,1), ela foi
escrita pouco antes de Paulo embarcar, enfim, para Corinto, depois
da Macedonia; conforme o sobrescrito do Vaticanus (B1) e de P se-
ria de Filipo; se 2 Coríntios é a combinação de várias cartas, estas
foram escritas sucessivamente em Éfeso e a última na Macedonia.
Se a epístola forma, desde a origem, uma unidade epistolar en-
viada da Macedonia para Corinto, então foi redigida pouco antes
da epístola aos Romanos (55-57 d.C.). Se 2 Coríntios é uma com-
pilação, a redação do conjunto da correspondência que ela contém
estendeu-se por todo o período entre a estadia em Efeso (envio de 1
Coríntios) e a etapa na Macedonia (53-57 d.C.).

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A compreensão paulina do apostolado
A compreensão que o apóstolo tem de seu apostolado decorre
imediatamente de sua compreensão do Evangelho como revela-

270
A segunda epístola a o s C oríntios

ção do poder da justiça de Deus, no acontecimento da cruz. Sua


consciência apostólica encontra expressão imediata na forma que
ele deu ao endereço e à saudação de suas cartas:
• Paulo escreve como apóstolo de Jesus Cristo.
• Como já fizera, antes dele, a Sinagoga de língua grega (cf
Apocalipse siríaco de Baruc 78,1-3; 2Mc 1,1-2,18), ele subs-
titui a saudação por uma bênção, mas acrescenta a essa
bênção uma fórmula que faz de Deus e de Jesus Cristo os
doadores reais da graça e da paz.
O Evangelho paulino é “palavra da cruz” no sentido em que ates-
ta a revelação de Deus na pessoa do Crucificado (Deus se manifesta
na pessoa que perdeu toda qualidade) e em que essa revelação põe
em xeque tanto a Lei como a sabedoria, duas instâncias pelas quais
a existência humana espera encontrar em si mesma sua origem e
seu sentido.
O apóstolo é apóstolo do Crucificado e não pode ser outra coi-
sa senão o apóstolo do Crucificado (ICor 2,1-5; 2Cor 2,12-7,4). O
Evangelho é poder de Deus pelo fato de tornar contemporânea a
força transformadora da revelação da cruz. Segue-se daí que a for-
ça da pregação apostólica não reside na força do apóstolo, mas no
poder do Evangelho que ela transmite. A fraqueza do apóstolo, con-
forme à loucura da cruz, é o veículo necessário do poder libertador
da pregação apostólica: ela implica uma clara distinção entre a sa-
bedoria de Deus, que só pode aparecer como loucura, e a sabedoria
louca deste mundo.
A conseqüência da compreensão do apostolado como pregação li-
bertadora da cruz e do Evangelho de Deus é uma necessária distinção
entre a interioridade (“o homem interior”) do apóstolo, quer dizer, sua
existência diante de Deus e por Deus, e sua exterioridade (“o homem
exterior”), quer dizer, sua aparência visível (2Cor 4,16-18; 12,1-10).
a) O apóstolo aparece em sua fraqueza. E por isso que seria
absurdo e loucura recomendar-se ou gloriar-se, como fa-
zem os "superapóstolos”, que querem dar provas de sua
interioridade por demonstrações exteriores.

271
As epístolas de Paulo

b) Em sua fraqueza se revela o poder libertador da graça de


Deus; é por isso que o apóstolo só pode se gloriar do Cru-
cificado e de seus sofrimentos (11,16-12,10).

4.2. A eclesiologia paulina e a coleta


O batismo constrói simbolicamente a comunidade dos crentes
que, mortos com Cristo, nasceram para uma vida nova (Rm 6,1-14);
eles receberam o dom do Espírito (Gl 4,6-7) e formam uma unidade
onde não há mais judeus, nem gregos, nem escravo, nem homem
livre, onde não há mais homem e mulher (Gl 3,28). Quer dizer que
o Evangelho, que confere uma identidade nova ao sujeito individual
enquanto pessoa, funda também um tipo novo de sociedade huma-
na. O batismo define, com efeito, um espaço social caracterizado
pelo reconhecimento mútuo de seus membros, independentemente
de suas qualidades, de sua pertença ou de suas lealdades. Esse reco-
nhecimento mútuo implica tanto a abertura universalista da Igreja
como o pluralismo, que é a forma de sua unidade.
O universalismo pluralista que a pertença a Cristo acarreta en-
contra sua expressão na metáfora adequada do corpo de Cristo,
que Paulo emprega em 1 Coríntios 12,1-30 para descrever a Igreja de
Corinto. Essa metáfora implica que cada membro da comunidade é
qualificado pelos dons que lhe foram feitos pelo Espírito; ela significa
que esses dons, todos indispensáveis, diferem uns dos outros e subli-
nha que a função que cada pessoa é chamada a cumprir só encontra
seu sentido na unidade do corpo. Mesmo que certas funções sejam
mencionadas de modo especial, porque sua presença é constitutiva
da identidade própria da comunidade cristã, como é o caso dos após-
tolos, dos profetas e dos que ensinam (ICor 12,28-31), qualquer idéia
de uma distinção significativa além do batismo e do dom é excluída.
A mesma metáfora do corpo se encontra, em uma perspectiva
mais ampla, em Romanos 12,3-8. Ela não define mais a comunidade
local, mas a pertença comum do apóstolo dos gentios e dos irmãos
e irmãs da Igreja de Roma ao mesmo Senhor. A concepção funda-
mental permanece a mesma: todos têm dons; esses dons são dife-
rentes, mas eles constituem um só corpo em Cristo.

272
A seg u n d a epístola a o s C oríntios

Essas mesmas implicações da unidade pluralista em que onde


crentes e Igrejas se reconhecem, em sua diversidade, membros do
mesmo corpo determinam a concepção paulina da coleta: se os pa-
gãos da Galácia, da Macedonia e da Acaia participaram dos bens
espirituais dos santos de Jerusalém, eles devem, por sua vez, prover
às suas necessidades materiais (Rm 15,27).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Entre todas as cartas paulinas, é nesta epístola que a teologia do
apóstolo se exprime com o maior radicalismo. Não é, portanto, de
surpreender que se assista a uma certa estagnação da pesquisa. As
últimas grandes interpretações continuam a ser as de Rudolf Bult-
mann e seu aluno Ernst Kãsemann16.
Duas aberturas originais devem ser assinaladas. Elas permitem
relativizar a impressão de que a situação da pesquisa, dominada
pelas discussões históricas e literárias sobre a unidade da epístola,
sobre a cronologia paulina e sobre a identidade religiosa dos “supe-
rapóstolos”, não evoluiu muito em um século.
A primeira é a de Hans Dieter Betz17, que, interpretando o con-
flito entre Paulo e os “superapóstolos” na perspectiva da história
da recepção da controvérsia entre Sócrates e os sofistas, reintro-
duziu, com força, as pesquisas sobre a retórica antiga nos estudos
neotestamentários.
A outra, de dimensões mais modestas, vem da Suíça francesa.
Marc-André Freudiger18 se inspira, por um lado, nos trabalhos de
Rudolf Bultmann e Hans Dieer Betz e, de outro, nas análises da
pragmática da comunicação empreendidas por Paul Watzlawick para
explicar a reflexão do apóstolo sobre as condições do apostolado e
da pregação cristã.

17 BETZ, Der Aposte! Paulus und die sockratische Tradition.


18 Marc-André FREUDIGER, Largumentation de Paul dans II Co 10-13 com-
me stratégie de changement, escrito inédito, 1962. Suas intuições são par-
tilhadas e prolongadas por Daniel MARGUERAT, 2 Corinthiens 10-13:
Paul et Texpérience de Dieu, ETR 63 (1988) 497-519.

273
A s epístolas de Paulo

6. B ib l io g r a f ia
Comentários
BARRETT, Charles K. The Second Epistle to the Corinthians. London [s.n.],
1976 (Black’s NTC).
BETZ, Hans Dieter. 2 Corinthians 8 and 9. Philadelphia, Fortress Press,
1985 (Hermeneia).
CARREZ, Maurice. La deuxième épitre de saint Paul aux Corinthiens.Ce-
néve, Labor et Fides, 1986 (CNT 8).
FURNISH, Victor P II Corinthians. N ew York, Doubleday, 1986 (AB
32 A).
TALBERT, Charles H. Reading Corinthians. A Literary and Theological
Commentary on 1 and 2 Corinthians. N ew York, Crossroad, 1987.
WIND1SCH, Hans. Der zweite Korintherbrief. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1924 (ΚΕΚ VI).

Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapotre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 221-281.

Situação da pesquisa
SUMNEY, Jerry L. Identifying Pauls Opponents: The Question 91 Method
in 2 Corinthians. Sheffield, JSOT Press, 1990 (JSNTSS 40).

Bibliografia exaustiva
BIERINGER, Reimund. Bibliography. In: BIER1NGER, Reimund, LAM-
BRECHT, Jan. Studies on 2 Corinthians. Leuven, Leuven University
Press/Peeters, 1994, p. 3-66 (BEThL 112).

Estudos particulares
BETZ, Hans Dieter. Der Apostei Paulus und die sokratische Tradition. Eine
exegetische Untersuchung zu seiner Apologie 2 Korinther 10-13.
Tübingen, Mohr, 1972 (BHTh 45).

274

j
A segunda epístola a o s C oríntios

BIERINGER, Reimund, LAMBRECHT, Jan. Studies on 2 Corinthians.


Leuven, Leuven University Press/Peeters, 1994 (BEThL 112).
BONNARD, Pierre. Faiblesse et puissance du chrétien selon saint Paul.
ETR 33 (1958) 61-70; ou Anamnesis. Recherches sur le Nouveau
Testament. Genève/Lausanne, 1980, p. 159-167 (Cahiers de la RTh-
Ph 3).
COLLANGE, Jean-François. Enigmes de la deuxième épitre de Paul aux
Corinthiens. Etude exégétique de 2 Cor. 2,14-7,4. Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1972 (SNTS.MS 18).
FUCHS, Eric. La faiblesse, gloire de 1’apostolat selon Paul. Etude sur 2
Corinthiens 10-13. ETR 55 (1980) 231-253.
MARGUERAT, Daniel. 2 Corinthiens 10-13: Paul et I’expdrience de Dieu.
ETR 63 (!988) 497-519.
QUESNEL, Michel. Circonstances de composition de la seconde épitre
aux Corinthiens. N T S 43 (1997) 256-267.

275
CAPITULO

11
A epístola aos Gaiatas
François Vouga

A epístola aos Gálatas constitui, como a epístola aos Romanos,


uma apresentação sistemática do Evangelho paulino. A construção
geral das duas cartas é a mesma: uma primeira parte, consagrada à
apresentação do Evangelho da justiça de Deus (Rm 1,16-11,36) ou
da justificação pela fé (G1 1,10-5,12), constitui a base de uma segun-
da, consagrada à existência cristã (Rm 12,1-15,13) e à vida segundo
o Espírito (G1 5,13-6,18). A revelação apocalíptica da cruz significa o
fim da maldição da existência sob a Lei e a boa-nova da justificação
pela fé (G1 2,14b-2,21), isto é, acriação nova (G1 6,15) da pessoa re-
conhecida por Deus, independentemente de suas qualidades; assim
a Lei se cumpre no duplo mandamento do amor a si mesmo e do
amor ao próximo como reconhecimento de sua pessoa (Rm 13,8-10;
G1 5,13-15).
Apesar dos paralelismos, as duas epístolas apresentam grandes
diferenças. A primeira, quanto às dimensões: ao caráter quase en-
ciclopédico dos temas tratados em Romanos corresponde a simpli-
cidade adotada em Gálatas. A segunda diz respeito ao tipo de argu-
mentação empregada nas duas cartas: a retórica de Romanos entra
em debate com o leitor e às vezes procura seu caminho (Rm 5,12-14;
9,1-11,32), ao passo que a exposição de Gálatas se concentra em
apontar as íncompreensões (GI 3,1) e na explicação lógica do Evan­

277
As epístolas de Paulo

gelho. A terceira concerne ao contexto de comunicação estabelecí-


do: Romanos quer apresentar e defender a compreensão paulina do
cristianismo para uma comunidade desconhecida, da qual o apóstolo
espera apoio, ao passo que Gálatas se esforça por clarificar as idéias
de Igrejas perturbadas pela intervenção desestabilizadora de novos
missionários.

1. A p r e s e n t a ç ã o
O itinerário teológico proposto por Gálatas é claro: uma revelação,
pela qual Deus apresentou ao apóstolo o Crucificado como seu Filho
(G1 1,12.16), determina uma ruptura apocalíptica da história que põe
fim ao reino da Lei (3,19) e abre o tempo do Espírito (3,1-5; 4,1-7).
Essa ruptura apocalíptica significa, primeiramente, uma mudança na
compreensão de Deus e na compreensão da existência: Deus não
justifica pelas obras da Lei, isto é, em virtude dos privilégios da cir-
cuncisão e da pertença ao povo da Aliança, mas pela fé, isto é, pela
confiança em Deus que já estava em Jesus Cristo (1,10-2,21). Mas
a revelação apocalíptica de Deus em Jesus Cristo obriga também a
uma reinterpretação da Escritura como história da promessa (3,6-
5,1). Baseado nessa revelação de Deus e da ruptura que ela implica,
o apóstolo exorta seus destinatários a viver no tempo da nova cria-
ção, a produzir frutos do Espírito e não retornar aos tempos antigos
e passados da circuncisão, da carne e da Lei, ao contrário do que
lhes sugerem os novos missionários (5,16-6,18). A unidade da men-
sagem da epístola reside, por conseqüência, na pergunta feita aos
Gálatas: “qual é a hora?”1.

Estrutura e conteúdo
A estrutura de Gálatas, classicamente proposta, distingue três
partes: uma primeira autobiográfica e histórica (1,1-2,21), uma se-1

1 J. Luis MARTYN, Apocalyptic Antinomies in Pauls Galatians, N TS 31


(1985) 410-424; ou Theological Issues in the Letters o f Paul, Edinburgh, Cla-
rk, 1997, 111-123.

278
A epístola a o s G álatas

gunda teológica e doutrinai (3,1-4,21), uma terceira ética (5,1-6,18).


Essa divisão prática tem o defeito de esconder a unidade fundamen-
tal do conjunto da epístola: a tese teológica, que funda e domina o
conjunto da argumentação, encontra-se, com efeito, em 1,10-12, na
parte dita histórica, e o conteúdo do fim da carta não é a aplicação
das teses dogmáticas de Gálatas 3—4, mas constitui, ao contrário, o
ponto culminante da argumentação teológica de 3,1-6,182.
O endereço e a saudação começam por anunciar o programa da
epístola: Paulo não é apóstolo da parte dos homens nem por um
homem, mas pelo Deus que fez Jesus Cristo passar da morte para
a vida (1,1-5). Segue-se, imediatamente, pelo menos na versão ca-
nônica, uma declaração sobre os motivos da carta: os gálatas estão
confundindo o Evangelho de Deus com um pseudo-evangelho que
não passa de palavra humana. A partir daí, o apóstolo anuncia a tese
da epístola: o Evangelho que ele recebeu e que proclama não tem
nada a ver com tradições humanas: é revelação do próprio Deus.
Todo o relato histórico e biográfico é a ilustração disso: o Evange-
lho e o apostolado paulino junto aos pagãos não têm necessidade de
nenhuma legitimação3, porque receberam sua autoridade do próprio
Deus (1,13-2,21). A isso não puderam se opor nem as comunidades
da Judéia (1,22-24), nem os que são considerados colunas de Je-
rusalém (2,1-10). Quanto ao que constitui sua mensagem central,
Paulo teve de lembrá-lo a Pedro por ocasião de seu encontro em
Antioquia (2,14b-21).

2 Frank J. MATERA, The Culmination of Paul’s Argument to the Gal: Gal


5,1-6,7, JSN T 32 (1988) 79-91.
3 Bernard LATEGAN, Is Paul Defending his Apostelship in Gal?, N TS 34
(1988) 411-430; Hans Dieter BETZ, Galatians, Phildelphia, Fortress Press,
1979, interpreta o conjunto de Gálatas conforme as definições do discurso
apologético dadas pela retórica: Gálatas 1,10-2,14 é uma narratio, isto é,
apresentação de caso, Gálatas 2,15-21 a propositio, isto é, a tese da epís-
tola, Gálatas 3,1-4,31 a probatio, isto é, a demonstração. A esse conjunto
Paulo acrescentou uma exortação que não pertence ao mesmo gênero li-
terário, como mostrou George A. KENNEDY, New Testament Interpreta-
tion through Rhetorical Criticism, Chapel Hill, University of North Carolina
Press, 1984, 144-152.

279
As epístolas de Paulo

A revelação de Deus em Jesus Cristo convida a viver no tempo


novo, determinado pelo dom do Espírito, e a não recair no tempo
antigo quando se confundiam as criaturas e o Deus criador; as cria-
turas são tanto os ídolos pagãos como a Lei, totalmente incapaz de
justificar porque não pode dar a vida (Gl 3,21). Essa distinção entre
duas épocas e dois regimes torna-se evidente pela reinterpretação
necessária da Escritura, que, em virtude da revelação da cruz, do-
ravante deve ser lida não como lei, mas como promessa (3,6-29 e
4,21-5,1). Gaiatas 4,7-20 e 5,2-12 são dois apelos aos gálatas para
que vivam na nova realidade.
A terceira parte da carta (5,13-6,18) contém o essencial de sua
mensagem: convocar os gálatas, que foram batizados e receberam o
Espírito (3,23-29), a se deixar conduzir pelo Espírito; sem isso eles
se condenarão ao desespero, ao se colocarem sob o poder de dois
mestres de lógicas contraditórias: o Espírito, de um lado, a carne e
a lei, de outro. Sua liberdade só pode, com efeito, resultar da deci-
são de se tornarem aquilo em que já foram transformados: a criação
nova, a partir da qual o apóstolo pode afirmar que não é mais ele que
vive, mas Cristo que vive nele (2,20).

Plano da epístola aos Gálatas


1,1-5 Endereço e saudação
1,6-9 Assunto da carta: a distinção necessária entre o
que é o Evangelho e o que não é.
1, 1 0 - 1 2 Tese da carta: 0 Evangelho paulino é Evangelho de
Deus

Paulo, apóstolo do Evangelho


de Deus para as nações (1,13-2,21)
1,13-14 A vida passada de Paulo no judaísmo
1,15-17 A vocação do apóstolo dos gentios
1,18-20 Primeira visita a Jerusalém
1,21-24 A alegria das Igrejas da Judéia diante do sucesso
da missão paulina
2 , 1-1 0 A segunda visita a Jerusalém
2 , 11-21 Conflito e discurso de Paulo em Antioquia: con-
seqüências e verdade do Evangelho

280
A epístola a o s G aiatas

O apelo da liberdade: morrer e viver com Jesus Cristo (3,1-5,12)


3.1-5 Recordação da experiência do Espírito que os
Cãlatas tiveram
3,6-29 Explicações exegéticas e teológicas do Evangelho
Primeira redefinição da Promessa: ser filhos de
Abraão e abençoados pela fé (3,6-9); segunda
redefinição da Promessa: passar da maldição da
Lei para a fé, para a bênção e para a promessa
do Espírito (3,10-14); terceira redefinição da
Promessa: passar da Lei para a Promessa, para
a Aliança e para a herança de Abraão (3,1518‫;) ־‬
quarta redefinição da Promessa: função e subor-
dinação da Lei sob a Promessa (3,19-22); quinta
redefinição da Promessa: para Paulo e os crentes
da primeira geração, a finalidade do passado sob
a Lei foi a justificação pela fé (3,23-29)
4.1-20 Advertência aos gaiatas contra um retorno ao
tempo antigo. Os gálatas não são mais escravos,
mas filhos e herdeiros (4,1-7); todo progresso não
passaria de uma volta para trás (4,8-11); primeira
recomendação: os gálatas devem imitar o aposto-
lo (4,12-20)
4,21-5,1 A razão: a liberdade escatológica
5,2-12 Segunda recomendação: os gálatas devem per-
manecer na liberdade.

A existência no Espírito no tem po novo (5,13-6,10)


5,13-15 Transição: liberdade, existência sob o poder da
carne e amor mútuo
5,16-24 Os cristãos devem viver no Espírito
5,25-6,6 Os cristãos que vivem no Espírito devem se amar
uns aos outros
6,7-10 O horizonte escatológico da decisão dos gálatas

Postscrjptum au tógrafo: a nova criação (6,11-18)_____________________

2. C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
Gálatas se apresenta como uma carta circular do apóstolo, único
signatário dela, às Igrejas da Galácia. Nenhuma informação conti-
da na epístola, nenhum paralelo literário ou histórico permitem re-
constituir a distribuição às diversas comunidades destinatárias. Foi
enviado um mensageiro com a carta, para levá-la de uma comuni­

281
As epístolas de Paulo

dade a outra? Por que Gálatas não o recomenda? Paulo enviou um


exemplar que devia circular entre as comunidades? Por que a carta
não contém instrução semelhante à de Colossenses 4,16? O apósto-
Io multiplicou as cópias para fazê-las chegar aos diferentes lugares?
Nesse caso, o conteúdo pôde variar de uma para outra, Paulo pôde
adaptar uma oração de ação de graças por aquilo que ele sabia de
cada situação particular, e a edição canônica se baseia em uma cópia
padrão deixada ou enviada a Efeso, a Corinto ou a Roma.

2.2. A s tradições pré-paulinas


Gálatas 1,4-5
O prefácio epistolar de Gálatas, como o de Romanos, cita pro-
vavelmente uma fórmula pré-paulina: “Jesus Cristo, que se deu por
nossos pecados, a fim de nos arrancar a este mundo mau, de acordo
com a vontade de Deus, que é nosso Pai. A ele seja dada a glória
pelos séculos dos séculos. Amém”. A origem tradicional é evidente:
Paulo não escreve que Jesus se “deu”, mas que se “entregou”; não
diz “por nossos pecados”, mas “por nós”; ele não emprega “peca-
dos” no plural; ele não utiliza “arrancar”, nem a expressão “desse
mundo mau”4. Ele cita esse texto cristológico e soteriológico porque
lhe fornece o contexto apocalíptico que será o da argumentação da
carta toda.

Gálatas 3,28
A fórmula “não há mais nem judeu nem grego, nem escravo nem
homem livre, já não há mais o homem e a mulher” encontra-se, com
variações, em 1 Coríntios 12,13, em Colossenses 3,10-11 e no Trata-
do tripartite (N H C 1,4 132,16-28). Trata-se de um programa paulino

4 François BOVON, Une formule prépaulinienne dans 1’épitre aux Galates


(Ga 1,4-5), in Paganisme, judaisme, christianisme. Influences et affronte-
ments dans le monde antique. Mélanges Marcel Simon, Paris, De Boccard,
1978, 91-107; ou Révélations et écritures. Nouveau Testament et littérature
apocriphe chrétienne, Genève, Labor et Fides, 1993, 13-29.
A epístola aos

retomado, em seguida, mais amplamente ou Paulo cita aqui uma li-


turgia batismal?5

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3. /. A ocasião da carta
As Igrejas da Galácia foram fundadas pela pregação paulina (G1
4,12b-14.19; cf 1,9; 3,lb-2; 4,11). Evidentemente, Gálatas 4,13 não
significa que o apóstolo teve de fazer um desvio imprevisto pela Ga-
lácia por motivo de uma doença qualquer, mas sim que o poder do
Evangelho se manifestou, na Galácia como em Corinto (ICor 2,1-5;
2Cor 12,1-10), na fraqueza do apóstolo. Os membros dessas Igrejas
eram pagãos que só conheceram o Deus judeu e cristão depois de
sua conversão (G1 4,8-9; cf 4,3).
E impossível saber se antes da carta Paulo lhes fizera uma segun-
da visita: xò ‫׳‬FTpóxepov (4,13) pode significar tanto “a primeira vez”
como “outrora”. O que é certo é que ele está bem informado sobre
a evolução da comunidade: missionários apareceram na Galácia e
perturbaram os gálatas. Tentaram persuadi-los a se fazer circuncidar
(5,7.12; 6,12) e já tinham convencido alguns (5,2-4), que agora pres-
sionam os outros (6,13). A carta enviada por Paulo tem por intuito,
primeiramente, clarear o espírito dos gálatas: o evangelho dos novos
missionários não tem nada a ver com o Evangelho de Deus; é objeti-
va, em seguida, afastar os gálatas dos novos missionários reforçando
suas convicções.

3.2. Os destinatários
A dificuldade da identificação exata dos destinatários da epísto-
Ia decorre do fato que “Galácia” designa, no tempo de Paulo, duas
áreas geográficas diferentes. A Galácia é, antes de tudo, uma re­

5 Wayne A. MEEKS, The Image o f the Androgyne: Some uses o f a Symbol


in earliest Christianity, HR 13 (1974) 165-208; Michel BOUTTIER, Com-
plexio Oppositorum: sur les formules de 1 Cor 12,13; Gal 3,26-28; Col
3,10.11, N TS 23 (1976/1977) 1-19.
As epístolas de Paulo

gião, cujo nome vem da origem celta de seus habitantes. Mas essa
região, cujo centro é Ancira (hoje Ankara), e que se estende dos pia-
naltos da Anatólia até o mar Negro, deu seu nome a uma província
romana que inclui várias províncias ao sul da Galácia propriamente
dita. Fala-se, por esse motivo, de hipótese “galática do norte”, caso
se entenda que Gaiatas foi enviada aos gálatas da região da Galácia,
ou de hipótese “galática do sul”, caso se pense que os destinatá-
rios da epístola eram os habitantes da província romana da Galácia,
situada mais ao sul.

A Galácia e os gálatas
A Galácia é a região em volta da bacia do Halis, entre a Capadócia
e o Ponto; compreendia, entre outras, a cidade de Ancira, Tavium
e Pessinonte. Foi ocupada em 277 a.C. por três tribos gaulesas, os
tolistoboges, os trocmes e os tectosages (Pausânias 10,23; Estrabão
12,5,1-3; Tito Lívio 38,16). Vencidos, em 189 a.C., pelo cônsul Man-
lius (Políbio 21,37-41; Tito Lívio 38,17-27; Estrabão 13, 1-27), eles
se helenizaram progressivamente e conservaram sua liberdade sob o
protetorado romano até serem integrados no império sob Augusto,
em 25 a.C.
Os Atos dos Apóstolos mencionam duas viagens de Paulo pela
região gálata: Atos 16,6 e 18,23. Desde a Antiguidade patrística até
o século XVII, identificar a Galácia de Gálatas 1,2 e os gálatas de
Gálatas 3,1 com a região gálata e seus habitantes não despertava
dúvida alguma.

A história da hipótese dita “galática-do-sul”


A evidência foi abalada por J. J. Schmidt, em 17486, depois por J.-P Myns-
ter (conhecido graças a Kierkegaard) e, em francês, por Ernest Renan (1869).
Segundo Schmidt, Gálatas 2,5 implica que os gálatas eram já convertidos ao
Evangelho paulino antes da segunda viagem do apóstolo a Jerusalém, o que
supõe que os gálatas devem ser buscados nas regiões designadas em Gálatas
1,21. Segue-se, daí, que a Galácia não designa, aqui, a região gálata, mas a pro-

6 J. J. SCHMIDT Prolusio de Galatis, adquos Paulus literas misit.

284
A epístola aos G aiatas

víncia romana da Galácia, que compreendia, efetivamente, a Licônia, a Isauria,


o distrito a sudeste da Frigia e uma porção da Pisídia. Em 6/5 a.C. foi-lhe ainda
acrescentada a Paflagônia, e em 3/2 a.C. o Ponto gálata.
Se a Galácia de Gálatas 1,2 designa a província e se seus habitantes estão
prontos a tomar para si o insulto de Gálatas 3 , 1 , 0 que é pouco provável, então
a evangelização dos gálatas podería corresponder ao relato de Atos 14,6-24.
A vantagem da hipótese galática do sul residiría no fato de ser bem atestada a
presença de colônias judaicas na província7. Mas nada indica que os missioná-
rios em atuação na Galácia tenham agido em ligação com a Sinagoga, e a falta
de contato das Igrejas da Galácia com o judaísmo explica que tivessem sido
desarmados por sua argumentação.

3.3. Os interlocutores (o problema dos “adversários”)


A argumentação de Gálatas distingue as Igrejas da Galácia, às
quais se destina a carta, dos missionários, que, de maneira conse-
qüente e sistemática, são designados pela terceira pessoa do plural.
Por essa construção do contexto de comunicação, que dissocia os
gálatas dos missionários em atuação entre eles, Paulo tenta reforçar
a comunhão de espírito entre as comunidades que fundou e ele mes-
mo; e tem por intuito, se necessário, revidar às duas frentes.
Nessa argumentação triangular, os missionários são identifica-
dos somente de maneira impessoal: “alguns” (G1 1,7) ou “quem?”
(3,1; 5,7). Paulo só os designa com julgamentos de valor negati-
vos sobre o que fazem, sobre o que fizeram e o que querem (4,17;
5,10.12; 6,12-13); eles reviram o Evangelho em sentido contrário
(1,7); seduzem os gálatas (3,1); cuidam deles, mas a fim de os pren-
der a si e de os isolar de outras influências exteriores (4,17-18); im-
pedem que eles sigam a verdade (5,10). A pilhéria de 5,12 (“Melhor
se mutilem totalmente [i.é. castrar-se] aqueles que semeiam a de-
sordem no vosso meio!”) estabelece a primeira ligação entre a ati-
vidade dessas pessoas e o problema da circuncisão. Este reaparece
em 6,12: eles se empenham em obrigar os gálatas a se fazerem cir-
cuncidar para evitar que eles mesmos sejam perseguidos por causa

7 Cilliers BREYTENBACH, Paulus und Barnabas in der Provinz Galatien.


Studies zu Apostelgeschichte 13f; 16,6 und den Adressaten des Galater-
briefes, Leiden, Brill, 1996.

285
A s epístolas de Paulo

da cruz de Cristo. Esta última observação é interessante: mostra


que esses missionários não são livres, mas sofrem, eles mesmos,
pressões externas.
Os resultados do trabalho empreendido pelos novos missionários
na Galácia são evidentes; os gálatas estão prestes a voltar as costas
para o Evangelho paulino (3,1-5), a se submeter a novas prescrições
(4,8-11), atrair sua lealdade para com o apóstolo (4,12-20) e, alguns,
a se fazer circuncidar (5,2-4) e a exercer pressões sobre os outros
membros das comunidades (6,13).

Emissários judeu-cristãos na Galácia


A hipótese clássica vê nos missionários da Galácia judeu-cristãos
conservadores, emissários, por exemplo, do grupo de Tiago em Je-
rusalém, que querem restabelecer a Lei nas comunidades pagão-
cristãs fundadas pelo apóstolo. Duas variantes pagão-cristãs dessa
hipótese clássica sugerem ou que os missionários sejam pagão-cris-
tãos recém-convertidos que se pretendem zelosos da Lei ou estra-
tegistas que buscam obter assimilação dos cristãos à Sinagoga, a fim
de garantir a segurança política das Igrejas8.

A hipótese da dupla frente


Uma terceira variante da hipótese clássica é a hipótese dita da
dupla frente: a epístola alerta os gálatas não somente contra os mis-
sionários judeu-cristãos, o que aparece claramente na discussão da
circuncisão e da Lei, mas também (particularmente na parênese de
G1 5,13-24) contra tendências espiritualistas gnósticas no interior
das comunidades pagão-cristãs gálatas9. A fraqueza dessa hipótese
é não ver a relação provocadora estabelecida por Paulo, em Gála-
tas 5,13-6,18, entre a Lei, a circuncisão e a carne: “viver segundo a

Guy WAGNER, Les motifs de Ia rédaction de 1’Epitre aux Gaiatas, ETR 65


(1990) 321-332.
9 Wilhelm LÜTGERT, Gesetz und geist. Eine Untersuchung zur Vorge-
schichter des Galaterbriefes, Gütersloh, Bertesmann, 1919; James H. RO-
PES, The Singular Problem o f the Epistle to the Galatians [S.I.: s.n.], 1929.

286
A epístola a o s G aiatas

carne”, em Gálatas, não significa nada mais que viver “sob a Lei” ou
“procurar ser justificado pelas obras da Lei”.

Os adversários gnósticos
A necessidade de uma dupla frente cai se se pressupõe que os
missionários não sejam judeu-cristãos conservadores, mas judeu-
cristãos de tendência gnóstica que tentam reintroduzir tanto a
circuncisão como os calendários de tipo astrológico (G1 4,8-11)10.
Mas o conceito dos “elementos do mundo” (4,3.9) designa simples-
mente o fogo, o ar, a terra e a água como elementos constitutivos
da natureza criada; em consequência, 4,8-11 afirma o caráter equi-
valente e profano das observâncias judaicas, que os gálatas estão
prestes a adotar, e das observâncias pagãs, que ao se converter
abandonaram.

O legalismo da aliança e o evangelho da Lei


A fraqueza da hipótese clássica reside no fato de que os missio-
nários não se opõem de maneira alguma à missão junto aos pagãos,
ao contrário das tendências judeu-cristãs conservadoras que se
exprimem em Mateus 10,5-6: eles julgam necessária a circuncisão
dos pagãos convertidos. Por outro lado, causa surpresa constatar
que eles não estão interessados em promover, junto aos gálatas,
a observância do conjunto da Lei (G1 5,3), mas somente os man-
damentos que marcam a identidade judaica: circuncisão, sábado e
festas anuais (G1 5,3 e 4,10). A hipótese mais provável é, portanto,
a seguinte: os missionários defendem o ponto de vista judaico clás-
sico segundo o qual o fim dos tempos coincidirá com a abertura da
Aliança aos pagãos. Seu ponto de acordo com Paulo está no reco-
nhecimento da proclamação pascal como acontecimento escato-
lógico que inaugura o novo éon. Seu ponto de desacordo reside no
fato de que sua escatologia implica a entrada dos pagãos no povo

10 Walter SCHMITHALS, Paulus und die Cnostiker. Untershungen zu den


kleinen Paulusbriefen, Hamburg/Bergstedt, Reich, 1965.

287
A s epístolas de Paulo

da Aliança e, portanto, a circuncisão". Ora, essa exigência, para


Paulo, é característica do antigo éon.

3.4. Lugar e data de composição


As dificuldades ligadas à datação e à localização de Gálatas devem-
se à ausência de dados precisos e utilizáveis na própria epístola.
1) Paulo menciona a coleta em Gálatas 2,10. Ora, 1 Corín-
tios 16,1 informa os coríntios que Paulo dera instruções às
Igrejas da Galácia sobre o assunto. Por que Gálatas não
faz nenhuma alusão a isso: a operação de coleta não tinha
ainda realmente começado? Desenvolve-se sem proble-
ma, de sorte que não há necessidade de falar dela (salvo,
talvez, uma alusão em G1 5,25-6,6?)? Ou ela já tinha aca-
bado havia muito tempo?
2) A formulação de Gálatas 4,13 é ambivalente, de sorte que
é impossível decidir se Paulo esteve uma ou duas vezes
na Galácia antes de escrever a carta. Além disso, a data
provável dessa única visita, ou dessas duas visitas, varia
segundo se opte pela hipótese galática do sul ou pela hipó-
tese galática do norte.
• Caso se opte pela hipótese galática do sul e que Paulo
só passou uma vez pela Galácia (= At 14,6-24), a epís-
tola pode ter sido escrita logo depois da segunda visita
a Jerusalém e do incidente de Antioquia. Gálatas pode,
então, ser considerada a carta mais antiga de Paulo, an-
terior mesmo à primeira epístola aos Tèssalonicenses.
• Caso se opte pela hipótese galática do sul e que Paulo
passou duas vezes pela Galácia, ou se opte pela hipó-
tese galática do norte, mas que Paulo só passou uma
vez pela Galácia, a epístola pode ter sido escrita de-
pois de Atos 16,2-5 ou Atos 16,6, a partir, portanto,

J. Luis MARTYN, A Law-Observant Mission to Gentiles: The Back-


ground o f Gal, MQR 22 (1983) 221-236; ou Theological Issues in the Letters
o f Paul, Edinburgh, Clark, 1997, 7-24.

288
A epístola a o s G álatas

de 50-52 e, eventualmente, ao mesmo tempo em que


1Tessalonicenses.
• Caso se opte pela hipótese galática do norte e que Paulo
passou duas vezes pela Calácia, a epístola só pode ter
sido escrita depois de Atos 16,6 e Atos 18,23, isto é,
em Efeso ou na Macedonia, paralelamente a 1 e 2 Co-
ríntios, em 51-56, em Corinto12, pouco antes ou pouco
depois de Romanos, em 55-57, ou durante a viagem a
Jerusalém13, ou ainda mais tarde, em Roma.
3) O único terminus a quo absoluto é dado pelo relato de Gala-
tas 2,1-21: a epístola só pode ter sido escrita após o segun-
do encontro de Jerusalém e o incidente de Antioquia.

A hipótese tradicional
Tanto segundo a tradição manuscrita (subscriptio dos manuscritos
B1K L 0278 1739 1881, do texto majoritário e das traduções siríacas
e coptas) como segundo a tradição patrística (Teodoreto, Jerônimo,
Eusébio de Emeso), Gálatas é uma epístola tardia: ela é considerada
a primeira ou a última das cartas do cativeiro escritas de Roma por
Paulo. Um argumento citado em favor dessa hipótese tradicional é
que ela torna compreensível a impossibilidade, em que Paulo declara
estar, de ir à Galácia (G1 4,20). Pode-se a isso acrescentar que Gála-
tas oferece um resumo, ao mesmo tempo claro e bem delineado, das
grandes cartas paulinas14.

A hipótese clássica
Os inúmeros paralelos lingüísticos e teológicos constatáveis en-
tre Gálatas e 2 Coríntios, de um lado, e entre Gálatas e Romanos,

1Z François REFOULÉ, Date de 1’épitre aux Galates, RB 95 (1988) 161-183.


13 Walter FOESTER, Abfassungszeit und Ziel des Gals, in Apophoreta. Fest-
schrift E. Haenchen, Berlin, Tõpelmann, I964, 135-14I.
14 François VOUGA, Der Galaterbrief: kein Brief an die Galater? Essay liber
den literarischen Charakter des letzten groBen Paulusbriefes, in Schrift und
Tradition. Festschrift J. Ernst, Paderborn, Schõningh, 1996, 243-258.

289
As epístolas de Paulo

de outro, contribuíram para se estabelecer um relativo consenso em


favor de uma redação de Gálatas contemporânea de 2 Coríntios
ou ligeiramente anterior a Romanos15. Conforme se valorizem as
afinidades com 2 Coríntios ou com Romanos, a epístola teria sido
enviada de Efeso, da Macedonia ou, eventualmente, de Corinto,
entre 55 e 57 d.C.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4 .1. A vocação do apóstolo e a verdade do Evangelho
Uma dupla convicção fundamental caracteriza a essência do
Evangelho proclamado pelo apóstolo. De um lado, a existência do
apóstolo foi partida em duas, por um acontecimento que ele inter-
preta como sendo uma revelação de Deus (G1 1,1516‫) ־‬, e que o faz
portador de uma verdade à qual vai permanecer fiel, independente-
mente de qualquer sistema de verdade existente, seja o do judaísmo
fariseu, de onde ele vem, seja o de outras tradições cristãs (1,1.10-
12). Por outro lado, esse acontecimento, doravante fundador, é a
revelação, por Deus, do Crucificado como seu filho (1,12.16)16. O
fato de o transgressor da Lei, que come com os coletores de impos-
tos e com os pecadores, ser reconhecido como Filho de Deus é a
revelação ao mesmo tempo teológica e antropológica de que o Deus
da promessa a Abraão não é um Deus que reconhece o homem em
virtude das obras da Lei, quer dizer, de suas qualidades.
Essa dupla convicção fundamental tem duas conseqüências.
A primeira consiste no universalismo do Evangelho paulino: a ver-
dade que constitui o apóstolo em sua nova identidade (“não sou mais
eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim”, 2,19-20) não será ver-
dade se não for verdade para cada indivíduo. E por isso que o Evan-
gelho é incompatível com qualquer definição da pessoa segundo o
critério de categorias abstratas (judeu, grego, escravo, pessoa livre,
homem, mulher) ou em virtude de sua qualificação por uma eleição
particular, como faz o “outro evangelho” dos missionários (1,6-9).

15 Udo BORSE, Der Standort des Galaterbriefes, Bonn, Hanstein, 1972.


16 Alain BADIOU, Saint Paul, la fondation de 1’universalism, Paris, Presses
Universitaires de France, 1997.

290
A epístola a o s G aiatas

A segunda consiste no pluralismo da eclesiologia paulina: o reco-


nhecimento das pessoas como subjetividades individuais implica, de
um lado, que cada um é chamado com a identidade e a condição que
são as suas próprias (3,28; ICor 7,17-24) e, de outro, que a diversida-
de dos membros da comunidade dos batizados reforça sua unidade.
A ligação do Evangelho com um acontecimento de revelação di-
vina e com a certeza subjetiva da vocação do apóstolo mostra que o
Evangelho manifesta sua verdade e sua autoridade quando judeus e
gregos são libertados deste mundo mau (G11,4-5), quando recebem
o Espírito (4,6-7) e são transformados em nova criação (6,15); mas
faz também compreender que é vã toda tentativa de legitimação no
mundo antigo (2,1-21).

4.2. A Lei na epístola aos Gálatas


A afirmação central de Gálatas sobre a Lei é que ninguém será
justificado pelas obras da Lei se não for pela fé de (ou em) Jesus
Cristo (2,16); essa confiança na confiança de Jesus Cristo é a atitude
existencial pela qual a existência se vê transformada em nova criatu-
ra (“não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim”, 2,19-20)
e pela qual recebe o Espírito (4,6-7).
Um primeiro pressuposto dessa afirmação consiste na concepção
apocalíptica da história desenvolvida pela epístola. A revelação de Deus
em Jesus Cristo, na interpretação dada em Gálatas, dividiu a história
em dois: significa uma mudança de época, o fim do tempo antigo no
qual reinava a Lei (3,19) e o início dos novos tempos que são os tempos
do Espírito (4,6-7). A conseqüência é que os crentes não estão mais
sob a Lei, mas no Espírito, e que são chamados a se deixar conduzir
pelo Espírito e a produzir os frutos do Espírito (5,16-24; 6,7-10).
Ora, esse esquema histórico deixa em aberto duas questões: o que
fez da existência sob a Lei uma existência sob a maldição (3,10-14)?
O que vem a ser a Lei na nova época (5,13-15)? A existência sob
a Lei está condenada ao desespero porque ela supervaloriza a Lei:
se tivesse sido dado à Lei o poder de dar a vida, então a Lei teria o
poder de justificar (3,21). Ora, a Lei foi dada por um tempo limita­

291
As epístolas de Paulo

do e para ordenar a cidade (3,19). A existência sob a Lei se vê, por


conseguinte, diante da alternativa infeliz de se ver maldita, seja por-
que não consegue cumprir toda a Lei, seja porque consegue cumprir
toda a Lei, pois nem por isso ela é justificada, visto que só Deus, e
não a Lei, tem o poder de dar a vida e de justificá-la.
Doravante, a Lei se vê cumprida no duplo mandamento do amor a
si mesmo e do amor ao próximo. O sentido dessa “palavra” (G1 5,14)
não é outro senão o de tornar real a justificação pela confiança: aque-
le que se sabe justificado por Deus é autorizado e chamado a se amar
a si mesmo; ora, a descoberta de si mesmo como pessoa independen-
temente das próprias qualidades é inseparável do reconhecimento do
outro. Mas qual é a relação entre essa palavra e a Lei? O conceito de
cumprimento implica uma dupla relação de continuidade e de des-
continuidade, que Gálatas esclarece distinguindo os três conceitos de
Escritura (3,8.22; 4,30), promessa e Lei. O termo neutro é Escritura;
ora, a Escritura aparece sob o aspecto da Lei se a lemos na perspec-
tiva dos tempos antigos e da existência sob a Lei; se a lemos, porém,
da perspectiva da revelação de Deus em Jesus Cristo e da existência
na confiança ela aparece sob o aspecto da promessa.

4.3. A carne e o Espírito com o determ inações da existência


A oposição antitética carne/Espírito equivale à oposição homem/
Deus que domina a argumentação desde Gálatas 1,1; 1,6-9 e 1,10-12.
O homem e a carne são passageiros e pertencem ao mundo da cria-
ção, ao passo que Deus e o Espírito têm a força de fazer viver (3,21),
de justificar e de dar a vida eterna (6,8-9).
Conforme uma primeira perspectiva, a carne e o Espírito apare-
cem como duas forças contraditórias que determinam duas atitudes
existenciais contrárias (3,1-5). A existência que recebe sua justiça
pela fé encontra-se sob o poder do Espírito, ao passo que viver sob
o poder da carne é sinônimo de procurar ser justificado pelas obras
da Lei17.

17 C f capítulo 8 , seç. 4.2.

292
A epístola a o s G álatas

Conforme uma segunda perspectiva, a carne e o Espírito caracte-


rizam duas épocas da história da salvação (4,1-7): a carne é o poder
deste mundo que passa, ao passo que o Espírito é o da nova criação.
Conforme uma terceira perspectiva, a decisão de crer e de se
deixar conferir uma nova identidade, simbolizada pelo batismo, cria
uma mudança sem retorno: os gálatas que creram e se fizeram bati-
zar tornaram-se filhos e vivem no Espírito (3,26-29). A conseqüên-
cia dessa transformação é que aquele que creu e quer voltar a viver
sob a Lei se vê em tensão, preso entre os campos de força dos dois
poderes; perde o controle de sua existência (5,16-24). Conseqüên-
cia, os gálatas, que estão no Espírito, devem se deixar conduzir pelo
Espírito e deixar o Espírito produzir seus frutos neles (5,16-6,10).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
De um ponto de vista histórico, abre-se de novo o debate, que foi
muito intenso até o início do século XX18, sobre o lugar da epístola
na vida e na evolução teológica do apóstolo. Resulta daí que se é
mais prudente hoje sobre o assunto, e menos afirmativo, do que por
ocasião do aparente consenso instalado desde 1950.
De um ponto de vista teológico, a interpretação da epístola foi, du-
rante muito tempo, dominada pelos debates confessionais entre ca-
tólicos e protestantes sobre a justificação pela fé. Os últimos grandes
testemunhos dessa leitura fraternalmente conflituosa são os comen-
tários de Pierre Bonnard19e de Franz Mussner20. A atenção se voltou,
depois, para o problema da unidade da epístola: qual é a ligação teoló-
gica entre as exortações de Gálatas 5,13-6,10 e o início autobiográfico
e “dogmático” de Gálatas 1,6-5,12? Trabalha-se com a dialética entre
a antropologia e a concepção da história: como se articula a concep-
ção da cruz, como fim da Lei, com a oposição entre justificação pela

18 Maurice GOGUEL, Introduction au Nouveau Testament IV. Les épitres


pauliniennes (Deuxième partie), Paris, ErnetLeroux, 1926, 147-201.
19 Lépitre de Saint Paul aux Galates, Neuchâtel/Paris, Delachaux et Niestlé,
21972 [l. ed. !952],
10 Der Galatebríef Freiburg, Herder, 1974.

293
A s epístolas de Paulo

Lei e justificação por Jesus Cristo? Indaga-se sobre a continuidade,


estabelecida por Paulo, entre a revelação divina, da qual foi destinatá-
rio (G1 1,12-17), e sua visão da teologia judaica (G1 3,6-5,1).

6. B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre. Lépitre de saint Paul aux Calates. Neuchâtel/Paris,
Delachaux et Niestlé 21972 [1. ed. 1952] (CNT 9).
BETZ, Hans Dieter. Galatians, Philadelphia, Fortress Press, 1979 (Her-
meneia).
LÜHRMANN, Dieter. Der Brief an die Galater. Zurich, Theologischer
Verlag, 1978 (ZBKNT 7); ed. ingl.: Galatians, A Continental Com-
mentary. Minneapolis, Fortress Press, 1992.
MATERA, Frank J. Galatians. Collegeville, Liturgical Press, 1992 (Sacra
Pagina 9).
MARTYN, J. Louis. Galatians. N ew York, Doubleday, 1997 (AB 33A).
VOUGA, François. A n die Galater. Tübingen, Mohr, 1998 (H N T 10).

Leitura prioritária
COTHENET, Edouard. Lépitre aux Galates. Cahiers Evangile, Paris,
Cerfi 34 (1980).
RUEGG, Ulrich, RORDORfi Bernard. Lépitre de Paul aux Galates. Bulle-
tin du CPE, Genève, 35 (1983) 7-8.

Estudos particulares
BADIOU, Alain. Saint Paul, la fondation de I’universalisme. Paris, Presses
Universitaires de France, 1997 (Les Essais du Collège international
de Philosophie).
ECKERT, Jost. Die urchristliche Verkündigung im Streitzwischen Paulus undsei-
nen Gegnern nach dem Galaterbrief. Regensburg, Pustet, 1971 (BU 6 ).
LATEGAN, Bernard. Is Paul Defending his Apostleship in Gal? N T S 34
(1988)411-430.

294
A epístola a o s G aiatas

LAMBRECHT Jan (ed.). The Truth o f the Gospel (Galatians 1,1-4,11),


Roma, “Benedictina” Publishing St. Paul’s Abbey, 1993 (Monogra-
phic Series o f “Benedictina”. Bibl.-Ecumenical Section 12).
MATERA, Frank J. The Culmination o f Paul’s Argument to the Gal: Gal
5,1-6,7. J S N T 3 2 (1988) 79-91.

295
CAPÍTULO

12
A epístola aos Filipenses
François Vouga

De todas as cartas paulinas Filipenses é a que, pelo gênero de


conversação que estabelece com seus destinatários e pela diversi-
dade dos temas que aborda, se assemelha mais a uma carta normal
antiga (Sêneca, Cícero*1) ou moderna. Diferentemente das grandes
cartas paulinas — Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas — , ela não
apresenta uma argumentação teológica centrada numa questão
fundamental (Romanos: a justiça de Deus; 1 Coríntios: a existência
cristã; 2 Coríntios: a condição do apóstolo; Gálatas: o Evangelho
de Deus). Mesmo os grandes conceitos da teologia paulina só estão
presentes de maneira alusiva, como o da glorificação, em Filipenses
3,3, ou o da justificação, em Filipenses 3,9; é compreensível, então,
que Ferdinand Christian Baur tenha visto Filipenses como uma fra-
ca contrafação das grandes epístolas paulinas2. Em contrapartida, a
unidade da epístola encontra-se no tom pessoal e confiante que de-
corre da participação dos filipenses na obra do apóstolo; encontra-
se também numa reflexão existencial sobre a condição do crente
que vive sob o senhorio do Crucificado, e na repetição paradoxal de

1 Peter WICK, Der Philipperbrief. Der formulae des Briefs ais Sclüssel zum
Verstandnis seines Inhalts, Stuttgart, Kohlhammer, 1994.
1 Ferdinand Christian BAUR, Paulus, der Apostei Jesu Christi. Sein Leben und
Wirken, seine Briefe und seine Lehre. Ein Beitrag zu einer kritischen Ger-
schichte des Unchristentums, Stuttgart, Becherund Müller, 1845, 458-475.

297
As epístolas de Paulo

expressões de felicidade e de apelos à alegria nas eventualidades da


vida cotidiana.

1. A p r e s e n t a ç ã o
1. /. Estrutura
Depois do prefácio epistolar (1,12‫ )־‬e da oração de ação de gra-
ças, a epístola se compõe de três partes. A primeira (1,12-2,18) e a
terceira (4,10-20) exprimem a alegria que significa, para o apósto-
lo, a participação dos filipenses em sua obra apostólica, enquanto
a segunda parte (3,1-4,1) é um convite aos filipenses para imitar e
participar de sua alegria. As duas primeiras partes são construídas
de maneira paralela: um resumo da compreensão do apóstolo de seu
apostolado (1,12-26 / / 3,2-15) introduz um apelo a viver, como o
apóstolo, sob o senhorio de Jesus Cristo (1,27-2,5 / / 3,17-20; cf
TOÀLTeúeaOt, 1,27 // πολιτ6υμα, 3,20); dois hinos cristológicos afir-
mam que tudo foi submetido a Cristo e que tudo vai ser a ele sub-
metido (2,6-11 // 3,21). Cada uma das partes termina com um apelo
aos filipenses para que se alegrem (2,12-18 // 4,1).

1.2. Conteúdo
A mensagem essencial da primeira parte (1,12-2,18) é introduzí-
da pela oração de ação de graças, cuja função é interpretar teolo-
gicamente a participação dos filipenses no ministério apostólico: a
obra que Deus começou, ele a cumprirá até o dia de Cristo (1,3-11).
O corpo da carta, que começa em 1,12 (“Quero que saibais”), conti-
nua com as notícias que Paulo dá de seu apostolado: ele se encontra
na prisão, mas seu cativeiro encoraja a comunidade e Cristo é anun-
ciado, o que é, para ele, uma primeira fonte de alegria (l,12-19a); a
segunda razão de se alegrar é a convicção do apóstolo de que isso
resultará em sua salvação, pois, de qualquer maneira, por sua morte
ou por sua vida, Cristo será manifestado nele; na realidade, ele tem
a convicção de que permanecerá vivo, o que lhe permitirá trabalhar
para a edificação e para a alegria dos filipenses (l,19b-26). Esse rela-
to fundamenta dois pedidos: primeiro, que os filipenses permaneçam

298
A epístola aos Filipenses

firmes na fé do Evangelho, pois lhes foi dado participar não apenas


na fé, mas também nos sofrimentos de Cristo (1,27-30); em segui-
da, que os filipenses cumulem a alegria do apóstolo vivendo, como
ele, sob o senhorio do Crucificado (2,1-11). Filipenses 2,12-18 conclui
recomendando-lhes que ponham em obra a sua salvação, por um
lado por causa da obra de Deus neles, por outro em razão de sua
responsabilidade no mundo, e isso tanto para a alegria do apóstolo
como para a alegria deles mesmos.
As duas palavras de recomendação a Timóteo e Epafrodito cons-
tituem uma primeira transição. Timóteo é o colaborador de Paulo
que irá a Filipos como representante do apóstolo (2,19-24), ao passo
que Epafrodito era o enviado da comunidade de Filipos para junto de
Paulo, encarregado, entre outras coisas, de levar ao apóstolo o apoio
financeiro pelo qual Filipenses 4,10-20 agradece. Doente, Epafrodito
deve voltar prematuramente e os filipenses são solicitados a recebê-
lo com alegria (2,25-30).
A segunda parte (3,14,1‫ )־‬apresenta a existência do apóstolo
como um paradigma para a interpretação da existência crente. O
tempo dessa existência é marcado: pela ressurreição de Cristo, pela
comunhão em seus sofrimentos e em sua morte e pela espera da
ressurreição dos mortos (3,2-11); pelo percurso do caminho a que foi
chamado, do alto, por Deus, em Jesus Cristo (3,12-16); pela espera
do Senhor Jesus que transformará seu corpo humilhado em corpo
glorioso (3,17-21). Será imitando o apóstolo (3,17) que os filipenses
encontrarão a alegria (3,1), e é sua firmeza nesse caminho que pro-
voca a alegria do apóstolo.
Uma segunda transição é constituída pelos pedidos feitos a Evó-
dia, a Síntique e ao fiel colega (4,2-3), por um novo apelo, em 4,8-9,
aos filipenses para que se alegrem e se entreguem à graça de Deus
(4,47), e por uma repetição das exortações de Filipenses 2,1-4.
Sob muitos aspectos, a terceira parte (4,10-20) é simétrica à pri-
meira. Concretamente, Paulo agradece aos filipenses a renovação
de seu apoio financeiro. Mas, como no início da carta, o apóstolo
exprime sua alegria diante da participação dos filipenses na obra que
Deus realiza em seu apostolado.

299
As epístolas de Paulo

P lano d a ep ísto la aos F ilipenses

1,1-2 Endereço e saudação


1,3-11 Ação de graças

A alegria do apóstolo e dos filipenses na obra de Deus (1,12-2,30)


1,12-26 As notícias do apóstolo
O anúncio de Cristo durante a prisão do apósto-
Io (l,12-19a); a glorificação de Cristo como única
perspectiva do futuro do apóstolo (l,19b-26)
1,27-2,11 Os pedidos do apóstolo aos filipenses
Permanecer firme na fé (1,27-30); comportar-se
como convém em Jesus Cristo (2,1-11)
2,12-18 Apelo aos filipenses a deixar a obra de Deus agir neles
2,19-30 Recomendações de Timóteo e de Epafrodito

A compreensão apostólica da existência como modelo para os crentes


(3,1-4,9)
3,1 O tema: apelo à alegria
3,2-4a Advertência contra os maus exemplos
3,4b-ll A comunhão do apóstolo na ressurreição e nos
sofrimentos do Crucificado
3,12-16 A verdadeira perfeição: a caminho, chamado por
Deus em Cristo
3,17-4,1 Apelo a imitar o apóstolo na espera do Senhor Je-
sus Cristo
4,2-9 Recomendações a Evódia, a Síntique e ao fiel co-
lega, apelo à alegria e à vida em Cristo

A alegria do apóstolo causada pela participação dos filipenses na obra de


Deus (4,10-20)
4,21-23 Conclusão epistolar

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
A leitura da epístola levanta três problemas:
a) a dupla advertência de Filipenses 3,2 e 3,18 contra os
maus missionários, e contra uma multidão de pessoas que
se conduzem como os inimigos da cruz de Cristo, contras-
ta com o tom confiante e alegre do conjunto;
b) tanto as duas fórmulas de bênção de Filipenses 4,7 e 4,9
como o apelo à alegria de 4,4-6 e as recomendações de

300
A epístola aos Filipenses

4,8-9a têm a forma de conclusões epistolares e poderíam


concluir uma carta;
c) após esse duplo final, a carta de agradecimentos de Filipen-
ses 4,10-20, introduzida, de novo, pelo leitmotiv da alegria
(4,10), dá a impressão de ser um elemento acrescentado.

Filipenses como montagem de duas cartas


Uma possível maneira de resolver esses problemas pela crítica li-
terária consiste, primeiro, em atribuir Filipenses 1,1-3,1 + Filipenses
4,10-20 e 3,2-4,1 a duas cartas diferentes; depois, em repartir os
dois finais, 4,4-7 e 4,8-9, entre as duas cartas assim distinguidas.
Considera-se que a carta constituída por Filipenses 1,1-3,1 + 4,10-
20, que não parece ter ainda consciência do perigo representado
pelos “maus operários” e pelos “inimigos da cruz”, precede a outra.
Se as recomendações a Evódia, a Síntique e ao fiel colega (F1 4,2-3)
puderem ser ligadas tanto a uma carta como à outra, as três varian-
tes possíveis da hipótese são:
1) Carta A = Filipenses 1,1-3,1 + 4,10-23; carta B = Filipen-
ses 3,2-4,93.
2) Carta A = Filipenses 1,1-3,1 + 4,4-7 + 4,10-23; carta B =
Filipenses 3,2-4,1 + 4,8-94.
3) Carta A = Filipenses 1,1-3,1 + 4,8-23; carta B = Filipenses
3,2-4,7.

Filipenses como coleção de três cartas


Uma variante dessa hipótese consiste em repartir o texto da
epístola em três cartas diferentes; o bilhete de agradecimento pelo
apoio financeiro dos filipenses constitui, em si mesmo, uma primeira
carta independente, porque Filipenses 4,10-20 deve preceder 1,1-3,1

3 Gerhard FRIEDRICH, Der Brief an die Philipper, in Jürgen BECKER,


Hans CONSELMANN, Gerhard FRIEDRICH, Die Briefe an die Galate,
Epheser, Philipper, Kolosser, Thessalonicher und Philemon, Gottingen, Van-
denhoeckund Ruprecht, 1976, 125-175.
4 Joachim GNILKA, Der Philipperbrief Freitburg, Herder, 1968.

301
As epístolas de Paulo

(Epafrodito, cuja volta Paulo anuncia em 2,25-30, tinha sido enviado


de Filipos para levar-lhe o apoio financeiro dos filipenses: c f 4,18).
Como as saudações de 4,21-22 e 4,23 podem, de novo, ser distribuí-
das diversamente entre as três diferentes cartas, as três variantes
possíveis da hipótese são:
1. Carta A = Filipenses 4,10-20; carta B = Filipenses 1,1-3,1;
carta C = Filipenses 3,2-4,95.
2. Carta A = Filipenses 4,10-20; carta B = Filipenses 1,1-3,1
+ 4,4-7; carta C = Filipenses 3,2-4,1 + 4,8-96.
3. Carta A = Filipenses 4,10-20; carta B = Filipenses 1,1-3,1
+ 4,8-9; carta C = Filipenses 3,2-41 + 4,4-7

Filipenses como unidade literária


As hesitações em considerar a epístola como a compilação de vá-
rias cartas baseiam-se, primeíramente, nas mesmas razões que para
as cartas aos coríntios: a tradição manuscrita não atesta nenhuma
outra versão de Filipenses além da que é transmitida no cânon; su-
põe-se, portanto, que as epístolas autênticas de Paulo nunca foram
postas em circulação sob forma diferente da sua edição redacional.
Uma segunda razão é que a Antiguidade, que conhecia bem o gê-
nero literário da coleção de cartas ou da correspondência editada
e vendida como livro, não oferece nenhum exemplo de cartas ou
de fragmentos epistolares combinados ou re-redigidos sob forma de
carta. Terceira razão: a argumentação de Filipenses não implica mu-
dança de contexto de comunicação. A isso se acrescenta que o hino

5 Gunther BORNKAMM, Der Philipperbrief ais paulinische Briefsamm-


lung, in Neotestamentica et Paristica (Festschrift O. Cullmann), Leiden,
Brill, 1962, 192-202; ou Geschichte und Glaube II. Gesammelte Aufsátze
IV, München, Kaiser, 1971, 195-205 (BevTh 53); Nikolaus WALTER, Der
Brief an die Philipper, in ID., Eckart REINMUTH, Peter LAMPE, Die
Briefe an die Philipper, Thessalonicher und an Philemon, Gottingen, Van-
denhoeckund Ruprecht, 1998, 11-101.
6 Jean-François COLLANGE, Lépitre de saint Paul aux Philippiens, Neu-
chãtel, Delachaux et Niestlé, 1973; Wolfgang SCHENG, Die Philipper-
briefe des Paulus. Kommentar, Stuttgart, Kohlhammer, 1984.

302
A epístola aos Filipenses

cristológico de Filipenses 2,6-11 e sua retomada em Filipenses 3,20-


21 unem intimamente os capítulos 1-2 e 3.
Ler a carta como uma unidade literária leva a observar que a du-
pia advertência de Filipenses 3,2 e 3,18 não cria muita surpresa, pois
se acha, de certa maneira, anunciada pelo relato de Filipenses 1,15-
16: o trabalho apostólico, que encontra dificuldades reais no interior
da comunidade, no lugar e por ocasião do cativeiro do apóstolo, po-
deria também encontrá-las na Igreja de Filipos, vindas, dessa vez,
de fora.
A leitura da carta como unidade literária leva igualmente a notar
que, conforme as formulações da própria carta, os “maus operários”
e “os inimigos da cruz de Cristo” não representam um perigo atual
para seus destinatários; constituem, antes, com os pregadores evo-
cados em Filipenses 1,15a, um contramodelo construído pela argu-
mentação: os leitores são chamados, ao inverso, a compreender sua
fé e a se conduzir como o faz o apóstolo (F1 3,17 e 4,1).

2,2. A s tradições pré-paulmas


O hino de Filipenses 2,6-11
Com base na análise detalhada de Ernst Lohmeyer7, o caráter
pré-paulino desse hino é objeto de um acordo amplamente partilha-
do. As razões se referem ao ritmo poético das afirmações cristoló-
gicas, à forma simétrica da arquitetura (F1 2,6-8: rebaixamento; F1
2,9-11: elevação), à ausência de dimensão soteriológica e ao caráter
pouco paulino dos conceitos cristológicos e do vocabulário:

(6>ele, que é de condição divina,


não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus,
<7} mas despojou-se,
tomando a condição de servo,
tornando-se semelhante aos homens,
reconhecido como homem;

7 Ernst LOHMEYER, Kyruis Jesus. Eine Untersuchung zu Phil 2,5-11, Hei-


delberg, Winter, 1928.

303
As epístolas de Paulo

(8>ele se rebaixou,
tornando-se obediente até a morte,
(a morte da cruz)
(9) Foi por isso que Deus o exaltou soberanamente
e lhe conferiu o Nome que está acima de todo nome
(W>a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre
nos céus, na terra e debaixo da terra,
<n>e toda língua confesse
que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória do Pai.

Há consenso tanto sobre a significação do hino, que confessa o


senhorio cósmico do Filho encarnado e rebaixado, como sobre a in-
terpretação proposta por Paulo ao citá-lo para fundamentar as reco-
mendações de Filipenses 2,1-4. De um lado, ele radicaliza seu alcance
ao acrescentar a menção da cruz (F1 2,8c), de sorte que o Senhor é
o Crucificado; de outro lado, ele o introduz menos como a apresen-
tação de um ideal religioso e moral de rebaixamento do que como a
confissão de um senhorio que determina a existência presente.
Em compensação, são controvertidas tanto a reconstrução estro-
fica do hino como sua proveniência teológica (pensa-se em recepção
dos cantos do servo de Deus de 1saias 42-53 ou em uma retomada
das especulações sobre a sabedoria, em uma variação sobre a figura
apocalíptica do Filho do homem ou sobre a figura helenística ou pré-
gnóstica do salvador divino). As opiniões divergem mais claramente
sobre a parte que coube ao apóstolo na redação do hino.

Filipenses 3,20-21, sequência ou repetição do hino?


lan to do ponto de vista formal como do ponto de vista do con-
teúdo, a confissão cristológica que conclui o apelo à imitação, de
Filipenses 3,17-21, podería recorrer, ela também, a uma tradição
pré-paulina.
Esperamos nosso Salvador Jesus Cristo,
que transformará nosso corpo humilhado,
tornando-o semelhante a um corpo de glória
pelo poder que ele tem de submeter todas as coisas.

304
A epístola aos Filipenses

Tanto a representação cristológica que liga o caráter soteriológico


de Jesus à transformação final dos corpos como o conjunto da ter-
minologia são notavelmente pouco paulinos. Em compensação, ou-
tros temas são comuns a Filipenses 2,6-11 e 3,20-21: a afirmação da
submissão de todas as coisas ao “Senhor Jesus Cristo”, bem como
os conceitos de condição e semelhança (μορφή // σύμμορφος), de
obediência e espera (ύ1τάρχ€ΐν), de tomar forma e transformação
(σχήμα / / μ€τασχηματίσ6ι)8.

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3. L A ocasião da carta
Agradecimentos, notícias pessoais e recomendações
do apóstolo
Do ponto de vista formal, Filipenses apresenta-se como uma car-
ta convencional que aborda diversos assuntos concernentes, de per-
to ou de longe, a um ou outro dos parceiros.
Os temas que se referem à pessoa e às preocupações do apóstolo
são:
• agradecimento pela participação dos filipenses na obra apos-
tólica de Paulo e, particularmente, por seu apoio financeiro
(1,2-H; 4,10-20);
• o anúncio do envio de Timóteo (2,19-24);
• o anúncio do retorno de Epafrodito (2,25-30);
• as notícias pessoais da prisão de Paulo (1,12-26).

A edificação da comunidade
O tema constante da epístola concernente aos destinatários é
a continuidade da obra de Deus na comunidade até o dia de Cris-
to (1,6). Esta se efetua na lembrança da obra realizada por Deus
em seu favor (1,2-11), nas recomendações que faz o apóstolo de se

8 Erhardt‫־‬eÜTTGEMANNS, Der teidende Apostei und sein Herr. Studies


zur paulinischen Christologie, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht,
1996, 240-247.

305
As epístolas de Paulo

colocarem sob o senhorio do Crucificado (1,27-2,11), no exemplo


que dá Paulo de sua compreensão da vida em Cristo (3,2-4,1) e nas
exortações pessoais dirigidas a alguns de seus membros. Essas exor-
tações têm valor de exemplo? E de notar que os nomes próprios de
Filipenses 4,2-3 têm, todos, significados que fazem deles verdadei-
ros programas.

3.2. Os destinatários
Em 358/357 a.C., Filipe da Macedonia se apossa da região dos
Crenidos, habitada originalmente pelos trácios, para aí fundar uma
cidade grega sob o nome de Filipos. Após a derrota de seu último
rei, em 168 a.C., a Macedonia se torna, em 146 a.C., província ro-
mana. Em 42 a.C., Antônio, que acabara de vencer os dois assassi-
nos de César, Cássio e Brutus, fez de Filipe uma colônia para seus
veteranos. Augusto, depois da batalha de Actium (31 a.C.), aumen-
tou a população com novos soldados. Desde 27 a.C. a cidade leva
o nome de Colonia Julia Augusta Philippensis. A maior parte das
inscrições aí descobertas é em latim: embora trácios e gregos ain-
da nela habitem, trata-se de uma cidade essencialmente romana,
regida pelo ius italicum. Sua importância não decorre de seu papel
administrativo (Filipos não era nem capital de província, nem cidade
principal), mas de sua situação geográfica na via Egnatia, que liga a
Ásia Menor a Roma9.

História e composição da comunidade


A Igreja de Filipos parece ter sido a primeira comunidade fundada
por Paulo na Europa (F14,15). Conforme as alusões contidas em Fili-
penses 1,30 e no resumo de 1Tessalonicenses 2,2, a estada do após-
tolo parece ter terminado mal (cf At 16,11-40). De lá, Paulo pros-
seguiu em seu caminho, indo para Tessalônica (F1 4,16), depois para
Atenas (lTs 3,19) e para Corinto (lTs 1,7-8). Filipenses 4,14-16 dá a

9 Peter P1LHOFER, Philippi I: Die erste christliche Gemeinde Europas, Tü-


bingen, Mohr, 1995.

306
A epístola a o s Filipenses

entender que, depois dessa primeira missão, os filipenses deram-lhe


regularmente apoio financeiro. Em eco, 2 Coríntios 8,3 menciona,
na Macedonia, onde Paulo se encontra provavelmente pela segunda
vez, a generosidade de que dão prova as Igrejas da Macedonia —
isto é, Tessalônica e Filipos — com sua contribuição para a coleta.
Ora, antes disso, foram elas que arcaram com as despesas da missão
paulina em Corinto, enviando irmãos para prover às necessidades do
apóstolo (2Cor 11,9).

3.3. Os interlocutores (oproblema dos “adversários”)


Filipenses 3,2 e 3,18 são as duas passagens em que o aposto-
lo nomeia seus adversários. Em 3,2, a descrição é suficiente para
identificá-los: o termo “operário” (Ιργάτης) é, no cristianismo
primitivo, um termo técnico para designar os missionários (2Cor
11,13; Mt 9,37-38; 10,10). A razão de sua desqualificação é dada
pelo jogo de palavra que se segue (cf Gl 5,12): κατατομή significa
a mutilação, mas se aplica à circuncisão que se encontra desacre-
ditada, uma segunda vez, pela oposição que o apóstolo estabele-
ce com a verdadeira circuncisão; esta é a circuncisão do apóstolo
e dos filipenses (F1 3,3), isto é, daqueles que põem sua confiança
em Jesus Cristo e não na carne. A antítese “pôr sua confiança em
Jesus Cristo”/ “pôr sua confiança na carne” é uma terceira des-
qualificação dos adversários, que reduz o que deveria ser o sinal da
Aliança ao domínio da carne. Paulo dá, em seguida, uma lista de
boas razões pelas quais podería pôr sua confiança em sua própria
carne. Todas elas fazem dele um judeu exemplar por sua origem,
pela educação que lhe foi dada, por sua obediência e por seu zelo
religioso; esse inventário corresponde ao retrato de seus adversá-
rios: trata-se de missionários judeu-cristãos que se parecem com
os missionários ativos na Galácia, isto é, os judeu-cristãos conser-
vadores que exigem a circuncisão dos pagãos recém-convertidos10,

10 Pierre BONNARD, Lépitre de saint Paul aux Filippiens, Neuchãtel, Del-


achaux et Niestlé, 1950; Ulrich B. MÜLLER, Der rief des Paulus an die
Philipper, Leipzig, Evangelische Verlagsanstalt, 1993.

307
As epístolas de Paulo

ou com os superapóstolos judeus helenísticos com os quais Paulo


teve de se haver em Corinto, e que se gabam de sua origem judaica
(FI3,4b-6 / / 2Cor 11,22)".
Os “inimigos da cruz de Cristo” são os mesmos que os “maus
operários”? O ideal de perfeição com o qual Filipenses 3,12-16
opera a crítica parece justificar a definição de uma segunda frente
contra a qual a epístola pretende alertar os filipenses: não seriam
somente os missionários judeu-cristãos que, vindos de fora, pode-
riam desestabilizar sua Igreja, mas também, no interior da comuni-
dade, tendências fanáticas ou libertinas poderíam agir, semelhah-
tes àquelas que, suspeita-se, existiam na Igreja de Corinto (ICor
5,1-14,40)1112.
Essas frentes formam uma só ou duas? Walter Schmithals13 de-
fendeu a tese, depois retomada por outros, de que os adversários
de Filipenses são judeu-cristãos heterodoxos de tendência gnóstica,
como os da epístola aos Gálatas. Nesse caso, os “maus operários”
e os “inimigos da cruz de Cristo” formam um grupo só. Ernst Loh-
meyer14, ao contrário, retomou a idéia de uma terceira frente: os
filipenses são ameaçados não somente por judeu-cristãos conserva-
dores (F1 3,2-11) e de tendências fanáticas (3,12-16), mas também
pela apostasia (3,17-21), de sorte que os “inimigos da cruz de Cristo”
são os irmãos e irmãs infiéis.

Os adversários apresentam um perigo imediato?


Os dados da epístola são paradoxais na medida em que compor-
tam juízos de valor sobre os adversários sem fornecer indícios de sua
presença real.

11 GNILKA, Der Phitipperbrief COLLANGE, Lépitre de saint Paul aux Philip-


piens.
12 Martin DIBELIUS, An die Thessalonicher I-ll, an die Philipper, Tübingen,
Mohr, 1925.
13 Walter SCHMITHALS, Paulus und die Cnostiker. Untursuchungen zu
den kleinen Paulusbriefen, Hamburg, Reich, I965, 47-88.
14 Ernst LOHMEYER, Die Briefe an die Philipper, an die Kolosser und an Phi-
lemon, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1930.

308
A epístola a o s Filipenses

De um lado, o apóstolo põe os filipenses em guarda contra “maus


operários”, defensores da circuncisão (F1 3,2), e contra os “inimigos
da cruz de Cristo” (3,18), o que dá a entender que tais pessoas exis-
tem. O fato de que Paulo o menciona “chorando” (3,18) pressupõe
que o problema, do qual Paulo já estava consciente por ocasião de
seus últimos contatos com os filipenses, torna-se, nesse meio-tem-
po, agudo, em todo caso para o próprio apóstolo, seja na Galácia,
seja em Corinto. Nada, ao contrário, permite supor que missionários
judeu-cristãos estivessem efetivamente presentes em Filipos. “Pau-
lo parece mais prevenir um mal real, mas longínquo, que combater
adversários agindo em Filipos.”15
Quanto ao esclarecimento do ideal de perfeição (F1 3,12-16), ele
exprime a reserva escatológica que acompanha necessariamente a
esperança de Paulo de chegar à ressurreição dos mortos (3,11).

3.4. Lugar e data de composição


Os dados são os seguintes: Paulo escreve da prisão (F11,7.13.17);
já ocorrera uma primeira série de comparecimentos diante do tribu-
nal (1,7.13), e Paulo antecipa ter logo clareza de seu destino (2,23).
No cativeiro, parece que ele não só goza de contatos relativamente
fáceis com o exterior, mas também pode manter correspondência
regular com Filipos: Epafrodito lhe foi enviado com o apoio finan-
ceiro e espiritual dos macedônios e Paulo o envia de volta para casa.
Paulo, ademais, tem certeza de poder fazer em breve uma nova vi-
sita aos filipenses (1,26; 2,24).
Três localizações e datas teoricamente possíveis são discutidas.
A epístola data:
• ou do cativeiro romano e dos últimos anos do apóstolo (cf
At 28,30);
• ou dos anos da prisão em Cesaréia (cf At 23,23-26,32);
• ou da estada em Efeso, onde parece que Paulo também este-
ve preso e se viu em perigo de morte (ICor 15,32; 2Cor 1,8).

15 BONNARD, Lépitre de saint Paul aux Philippiens, 9.

309
As epístolas de Paulo

Hipótese tradicional: Filipenses como carta do cativeiro


Conforme a tradição do texto da epístola e segundo um consenso
que só foi posto em questão no século XVIII, ela foi escrita em Roma
(άπό'Ρώμης, “de Roma”, subscriptio de BI 6); segundo alguns tes-
temunhos, Epafrodito parece ter servido de escriba, de mensageiro
ou, sucessivamente, dos dois (διά Έτταφροδίτου, “por Epafrodito”,
conforme os manuscritos 075 1739 e 1881). Se essa tradição for exa-
ta, Filipenses teria sido escrita nos inícios dos anos 60; ela é sensível-
mente posterior a Romanos e constitui a última carta ou faz parte
das últimas cartas do apóstolo. Essa localização e essa datação tar-
dia não se impõem: nem o termo pretório (F1 1,13), nem a presença
de escravos do imperador (4,22) obrigam a uma localização roma-
na16; são, contudo, plausíveis. A distância entre Filipos e Roma não
é tão grande a ponto de tornar impossíveis os vaivéns que a carta
faz supor: os filipenses são informados da situação do apóstolo, en-
viam Epafrodito, ficam sabendo da doença de Epafrodito (F1 2,26),
e Paulo manda Epafrodito de volta; pela via Egnatia, Brindisi e via
Appia, a viagem deveria levar cerca de quatro semanas, e de barco a
metade desse tempo. A única dificuldade real reside na contradição
introduzida entre os projetos de viagens a Filipos (F1 1,26; 2,24) e
a declaração de intenção de Romanos 15,14-29, segundo a qual o
apóstolo terminou sua obra a leste de Roma e deseja se consagrar à
evangelização da Espanha.

Hipótese clássica: Filipenses como escrito do período efésio


Embora ocasionalmente defendida17, a hipótese de uma redação
em Cesaréia não é mantida: ela apresenta uma parte das dificuldades
da localização em Roma (a distância entre Cesaréia e Filipos é ainda
maior do que entre Roma e Filipos), sem ter o apoio da tradição. Por
isso, a verdadeira alternativa é a oferecida por Efeso, cidade muito
mais próxima de Filipos. Por um lado, Efeso é a capital da província

16 Gustav-Adolf DE1SSMANN, Licht vom Osten, Tubingen, Mohr, 41923,


202 .
17 LOHMEYER, Die Briefe an die Philipper, an die Kolosser und an Philemon.

310
A epístola a o s Filipenses

da Ásia, o que torna plausível tanto um processo como um cativeiro


do apóstolo. Por outro lado, no caso de Paulo estar no cativeiro em
Efeso, é natural que pense em ir para Filipos após sua libertação, e
que vá aTessalônica ou a Corinto (2Cor 1,15-16; 2,12-13; 7,5). Nes-
se caso, a redação de Filipenses precedeu, ou seguiu de perto, a de 1
Coríntios, entre 51/52 e 54/55.

4. A INTENÇÃO TEOLÓGICA
4.1. O apóstolo e sua comunidade
Desde a ação de graças, a argumentação da epístola estabelece
entre o apóstolo e sua comunidade uma relação sistematicamente
mediatizada pela obra de Deus. Se os filipenses são fiéis, se parti-
cipam ativamente da obra apostólica, Paulo se alegra e dá graças a
Deus, que continua, neles, o que ele começou. Do mesmo modo,
o apóstolo não agradece os filipenses por seu apoio financeiro (F1
4,10-20), mas se alegra (4,10) pelo fruto que cresce a crédito deles
(4,17); é, com efeito, de Jesus Cristo que vem o fruto de justiça
(1,11) e é Deus que é o destinatário real da generosidade deles e que
os cumula de bens (4,18-19). O objetivo tanto da primeira (1,3-2,18)
como da terceira parte da carta (4,10-23) é incluir o apóstolo e sua
comunidade na história de uma relação triangular da qual Deus é, ao
mesmo tempo, o autor e a origem, e da qual Jesus é o fim.
O que vale para os filipenses vale, de fato, também para o após-
tolo. Paulo convida seus destinatários a imitá-lo (F1 4,17). Ora, a
argumentação põe imediatamente em evidência que o apóstolo
não se apresenta nem como modelo, nem como ideal de perfeição.
Com efeito, aquilo em que o apóstolo é exemplar e no que deve ser
imitado pelos filipenses é a obra que Cristo realizou nele (3,7-11).
Portanto, é entender Paulo de modo totalmente errado pensar que
ele se apresenta como o ser perfeito, por sua fé e por seu compor-
tamento. Se a existência do crente e do apóstolo consiste em ser
achado em Cristo (3,9a), com uma justiça que só pode vir de Deus
e da confiança posta nele (3,9b), então o conhecimento do poder
da ressurreição, a comunhão nos sofrimentos de Cristo e em sua

311
As epístolas de Paulo

morte (3,10) são o questionamento radical e a inversão de todo


ideal de perfeição.

4.2. A existência em Cristo e o paradoxo da alegria


"Tanto o tempo do Apóstolo como o de seus destinatários são de-
terminados por um ato passado de Deus, que lhes concedeu a graça
de crer ou de conhecer Jesus Cristo (F1 1,29; 3,12); são também
determinados pelo senhorio presente do Crucificado (2,6-11) e pela
expectativa do Dia de Cristo (1,6.10-11; 1,19-26; 2,14-18; 3,11; 3,14),
pela expectativa da ressurreição dos mortos (F1 3,11) e da transfor-
mação dos corpos humilhados em corpos de glória (3,20-21). Essa
tríplice marcação da existência, estruturada pelo passado fundador
no qual ela foi alcançada por Jesus Cristo (3,12) e pelo chamado do
alto que Deus dirige em Jesus Cristo (3,14) — isto é, pela obra de
Deus nela — , lhe dá o sentido de um caminho em direção a um fim
e, por outro lado, define sua verdadeira perfeição (3,16) e constitui
sua alegria.
A alegria que caracteriza o apóstolo e à qual ele convida os fili-
penses (F1 1,18.25; 2,2.17.18.28.29; 3,1; 4,1.4.10) não é a do fim do
caminho; ao contrário, ela é a de conhecer a ressurreição de Jesus
(3,10) e de esperar estar com Cristo (1,23, c f 3,11.20-21), na comu-
nhão com seus sofrimentos e com sua morte (3,10).

4.3. O passado fariseu do apóstolo e seu combate atual


A renúncia ao ideal de perfeição no intuito de produzir os frutos
da justiça que Cristo faz brotar em nós (F1 1,11; 4,17) constitui o
essencial do relato que o apóstolo faz de sua conversão em 3,4b-l 1.
Duas compreensões da existência são opostas uma à outra, simboli-
zadas por duas maneiras de se gloriar (gloriar-se em Cristo Jesus ou
pôr sua confiança na carne, 3,3) e por duas concepções da justiça
(sua própria justiça, que é pela Lei, e a justiça de Deus, que é pela
fé, 3,6.9). A primeira compreensão se qualifica e encontra sua per-
feição nos três ideais, definidos e sancionados pela Lei, da origem,
da obediência e do zelo (3,4b-6). A segunda se apresenta como um

312
A epístola a o s Filipenses

progresso do conhecimento (3,8); para ela, essas três qualidades


não têm valor, porque o sentido da vida não se atinge por ideais de
perfeição, mas é oferecido como um dom (3,7-11).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Do ponto de vista histórico, a discussão — viva até o início do
século XX'8 — sobre o lugar da epístola na vida e na evolução teo-
lógica do apóstolo foi aberta de novo. Em conseqüência, o aparente
consenso, instalado desde 1950, foi abalado. A epístola é contem-
porânea da que Paulo escreveu de Efeso, ao mesmo tempo, aos co-
ríntios e, talvez, aos gaiatas? Ou ela é um testemunho dos últimos
desenvolvimentos da teologia paulina, por ocasião de sua estada
em Roma?
Hino de Filipenses 2,6-11. Desde os estudos da história das formas,
a pesquisa se concentrara sobre as origens literárias e religiosas do
hino. Hoje, a atenção tende a se deter na homogeneidade de Filipen-
ses 2,1-18, nos laços que ligam organicamente o hino à parênese (F1
2,1-4 e 2,12-18) e na função desse episódio narrativo no conjunto da
argumentação paulina. Daí a questão levantada por Ralph Brucker1819:
Paulo cita realmente um hino? Poder-se-ia de preferência pensar que
ele mesmo compôs uma meditação cristológica que serve de estru-
tura para as exortações de Filipenses 1,12-2,30.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BONNARD, Pierre, llépitre de saint Paul aux Philippiens (CNT 10), Neu-
châtel, Delachaux et Niestlé, 1950.
COLLANGE, Jean-François. llépitre de saint Paul aux Philippiens (CNT
10a), Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1973.

18 Maurice GOGUEL, Introduction au Nouveau Testament IV. Les épTtres


pauliniennes (Première partie), Paris, Ernest Leroux, 1925, 369-417.
19 Ralph BRUCKER, "Christushymnen”oder “epideiktische Passagen”? Gõtin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1997.

313
As epístolas de Paulo

FEE, Gordon D. Paul’s Letter to the Philippians (NICNT), Grand Rapids,


Eerdmans, 1995.
GNILKA, Joachim. Der Philipperbrief (HThK 10/3), Freiburg, Herder,
1968.
MULLER, Ulrich B. Der Brief des Paulus an die Philipper (ThH N T 11/1),
Leipzig, Evangelische Verlagsanstalt, 1993.
SCHENK, Wolfgang. Die Philipperbriefe des Paulus. Kommentar, Stuttgart,
Kohlhammer, 1984.
WALTER, Nikolaus. Der Brief an die Philipper, em: WALTER, Nikolaus,
REINMUTH, Eckart, LAMPE, Peter. Die Briefe an die Philipper,
Thessalonicher und an Philemon (NTD 8/2), Gottingen, Vanden-
hoeckund Ruprecht, 1998, p. 11-101.

Leitura prioritária
BECKER, Jurgen. Paul, «Lapôtre des nations», Paris/Montreal, Cerf/Me-
diaspaul, 1995, p. 355-384.
LEGASSE, Simon. LépTtre aux Philippiens. LépTtre à Philémon, Cahiers
Evangile 33, Paris, Cerf, 1980, p. 5-50.

Estudos particulares
BLOOMQU1ST, L. Gregory. The Function o f Suffering in Philippians
(JSNTSS 78), Sheffield, JSOT Press, 1993.
CUVILLIER, Élian. Lintégrité de 1’építre aux Philippiens, em: J. SCHLOS-
SER, ed., Paul de Tarse (LeDiv 165), Paris, Cerf, 1996, p. 65-77.
SCHLOSSER, Jacques. La figure de Dieu selon 1’Építre aux Philippiens,
N T S 41, 1995, p. 378-399.
WICK, Peter. Der Philipperbrief Der formale Aufbau des Briefs ais Schlüssel
zum Verstándnis seines Inhalts (BWANT 135), Stuttgart, Kohlham-
mer, 1994.

314
CAPÍTULO

13
À prim eira epístola aos
T essalonicenses
François Vouga

Por sua aparência, a primeira epístola aos Tessalonicenses se


apresenta como uma carta anterior às grandes cartas de Paulo aos
Coríntios, aos Romanos e aos Gaiatas. O prefácio epistolar, ao qual
falta o “da parte de Deus nosso Pai e de nosso Senhor Jesus Cris-
to” paulino, ainda não é o das cartas apostólicas, mas uma variação
das cartas sinagogais. E também por seu conteúdo 1Tessalonicenses
se apresenta como uma carta pré-apostólica1. Faltam os conceitos
teológicos-chave: justiça, cruz, lei, pecado, morte, corpo, liberdade,
vida. Também não há nela qualquer citação do Antigo Testamen-
to. Em compensação, tanto por seu vocabulário como por vários
de seus temas centrais, ela manifesta evidentes afinidades com a
apologética judeu-helenística e com a filosofia moral helenística dos
filósofos cínicos e estóicos2. Como a epístola toda é escrita com o
pronome “nós”, à exceção de 2,18, 3,5 e 5,27, em que o “eu” dis-
tingue Paulo dos co-signatários da carta, e, por outro lado, devido a
seu caráter pouco paulino e em virtude dos parentescos literários e

1 C f cap. 7, seç. 3.
2 Abraham J. MALHERBE, Paul and the Thessalonians. The Philosophic
Tradition of Pastoral Care, Philadelphia, Fortress Press, 1987.

3I5
A s epístolas de Paulo

teológicos que a ligam a 1 Pedro, Edward G. Selwyn se perguntou se


ela não teria sido redigida por Silvano, em nome de Paulo3.

1. A p r e s e n t a ç ã o
O início de 1 Tessalonicenses se dá por uma ação de graças par-
ticularmente desenvolvida (1,2-10). Em torno da tríade fé, amor e
esperança, ela anuncia o conjunto dos temas da epístola: os des-
tinatários foram escolhidos por Deus, de modo que o Evangelho
mostrou seu poder neles; ao imitar os apóstolos, os tessalonicenses
tornaram-se, por sua vez, modelo para todos, pois renunciaram aos
ídolos para adorar o Deus vivo cujo Filho nos livra da cólera vin-
doura. A carta continua com uma apresentação da atividade dos
apóstolos, que tem uma função mais parenética do que apologética:
oferece um modelo para a compreensão que a comunidade tem dela
mesma e para seu comportamento missionário (2,1-12). Em l Tes-
salonicenses 2,13-16 há uma segunda ação de graças pela fidelidade
dos tessalonicenses na perseguição. O pesar do apóstolo por não ter
podido ir em pessoa a Tessalônica (2,17-20) prepara o relato do en-
vio de Timóteo em seu nome (3,1-5) e da notícia reconfortante que
este trouxe de volta da Macedonia (3,6-10). Essa primeira parte da
epístola termina com uma longa bênção final em forma de interces-
são (3,11-13).
O corpo da epístola é enquadrado por dois pedidos dos apóstolos.
O primeiro pedido (a expressão de lTs 4,1, “nós vos pedimos e vos
exortamos” combina dois termos técnicos de cartas de pedido) é que
os tessalonicenses vivam na santidade (4,1-3a). O que os apóstolos
entendem por isso concretiza-se em uma série de exortações morais
convencionais (4,3b-8). Quanto ao segundo pedido (“pedimo-vos”,
5,12), é um apelo à gratidão e à edificação mútua na comunidade
(5,12-22). Entre esses dois pedidos, os apóstolos respondem a uma
série de questões “sobre o amor fraterno” (4,9-12), “a respeito dos
mortos” (4,13-18) e “quanto aos tempos e momentos” (5,1). Essas

3 Edward G. SELWYN, The First Epistle o f St. Peter, London, Macmillan,


1945.

3 16
A prim eira epístola a o s T essalonicenses

questões, que estruturam 1Tessalonicenses 4,9-5,11, lembram, por


seu conteúdo e por sua forma, as dos coríntios em 1 Corintios 7-14 e
16. Foram relatadas a Paulo por Timóteo? Timóteo foi encarregado
pelos tessalonicenses de transmiti-las a Paulo?
A resposta à primeira questão concerne a vários aspectos da so-
lidariedade e da vida prática dos cristãos: apoio financeiro a outras
Igrejas na Macedonia (ITs 4,10), trabalho manual de cada um para
evitar depender uns dos outros (4,11), conduta decorosa aos olhos
dos não-cristãos (4,12a), liberdade da comunidade em relação ao
seu meio social. A resposta à segunda questão tranqüiliza os tes-
salonicenses sobre a sorte dos mortos (4,13-18): ao contrário dos
pagãos, os cristãos que confessam a morte e a ressurreição de Jesus
sabem que, quando soar a trombeta final, todos os mortos serão,
como os vivos, arrebatados pelo Senhor e levados para o céu para
junto de Deus Pai. Quanto à resposta à terceira questão, é um apelo
à vigilância (5,1-11).

Plano d a p rim eira ep ísto la a o s Tessalonicenses

1,1 Endereço e saudação


1,2 - 1 0 Oração de ação de graças pela eleição e pelo
comportamento exemplar dos tessalonicenses

Narração da atividade apostólica e da relação entre a comunidade


apóstolos (2,1-3,13)
2 , 1 -1 2 A atividade dos missionários como modelo pare-
nético
2,13-16 Ação de graças pela fidelidade dos tessalonicen-
ses na perseguição
2,17-20 As tentativas fracassadas de uma nova viagem de
Paulo a lessalônica
3,1-10 A viagem de Timóteo
O envio (3,1-5)
As notícias de Timóteo no seu retorno (3,6-10)
3,11-13 lntercessão final

Parênese (4,1-5,22)
4,1-12 Recomendações morais: santidade e concórdia
4,13-18 A esperança: a ressurreição dos mortos e o arre-
batamento dos vivos e dos mortos

31 7
As epístolas de Paulo

5,1-11 Apelo à vigilância na expectativa da parusia


5,1222‫־‬ Recomendações para a vida da comunidade

Conclusão epistolar (5 ,2 3 2 8 ‫)־‬


5,23-25 Intercessão epedido de intercessão
5.26 Saudações
5.27 Instruções relativasà leitura da carta
5.28 Bênção final

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2.1. Unidade e integridade da epístola
A epístola levanta três problemas para a crítica literária.
O primeiro concerne a 1Tessalonicenses 2,14-16: a dificuldade de
harmonizar as afirmações antijudaicas de 1 Tessalonicenses 2,15-16
com as considerações de Romanos 9,1-11,36 sobre Israel; o acúmulo
de expressões não-paulinas e o emprego surpreendente de temas
antijudaicos conhecidos, mas dos quais Paulo jamais se serve, são
outros tantos indícios em favor da hipótese de uma interpolação de
2,14-16 no texto da epístola.
O segundo problema concerne à arquitetura do conjunto da car-
ta: em sua forma canônica, o corpus epistolar constituído por 1Tes-
salonicenses 4,1-5,11 parece precedido de uma ação de graças de
uma extensão desproporcionada (1,2-3,13).
O terceiro concerne às evidentes duplicatas de dois inícios de
carta, em 1,2-10 e 2,13-16, e de dois fins de carta, em 3,11-13 e
5,23-28.

a) 1 Tessalonicenses 2,14-16: uma interpolação?


A ação de graças compara, aqui, a situação dos tessalonicenses
com a dos judeu-cristãos da Judéia: uns e outros sofrem da parte de
seus respectivos compatriotas. Os judeus são objeto de uma série de
queixas: eles mataram Jesus e os profetas, perseguem os apóstolos,
não agradam a Deus, são inimigos de todos os homens e querem
impedir que os pagãos sejam salvos.

318
A prim eira epístola a o s T essalonicenses

Dois motivos estão combinados. O primeiro é o da concepção


deuteronomista da história, que só se encontra aqui em Paulo, mas
que aparece na fonte Q (Lc 6,23.26; 11,47-51; 13,33-34): a morte
de Jesus deve ser compreendida no quadro de uma lógica de incre-
dulidade de Israel, do endurecimento do povo que termina por as-
sassinar os profetas, em resposta as iniciativas e às repetidas ofertas
de salvação de Deus4. O segundo tema é o do anti-semitismo das
elites romanas “esclarecidas”, que censuram aos judeus seu parti-
cularismo e seu sectarismo, isto é, seu odium humarti generis. Esse
lugar-comum é retomado, em 1 Tessalonicenses 2,16, em sentido
muito preciso e diretamente ligado ao problema puramente cristão
da abertura da missão aos pagãos: os judeus se opõem à missão uni-
versai do cristianismo pagão-cristão ou paulino.

b) 1 Tessalonicenses como coleção de cartas?


Um modo de evitar as desproporções e as repetições da epístola
é enxergá-la como uma coleção de cartas. Várias hipóteses foram
propostas:

1. A apologia de 1 Tessalonicenses 2,1-12 constitui o corpo de uma


primeira carta (K.-G. Eckart, 19615): uma carta A é constituída de
1Tessalonicenses 1,1-2,12 + 2,17-3,4 + 3,11-13, uma carta B com-
preendendo 1Tessalonicenses 3,6-10 + 4,9-10a + 4,13-5,11 + 5,23-
26.28. A redação pós-paulina é responsável por 1Tessalonicenses
2,13-16; 3,5; 4,1-8; 4,10b-12; 5,12-22 e 5,27.
2. Hans-Martin Schenke e Karl Martin Fischer (19786) propõem
uma variante dessa hipótese, repartindo 1Tessalonicenses 2,13 +
2,1-12 + 2,17-3,4 + 2,14 + 4,1-8 + 3,11-13 na carta A e 1Tessalo-

4 Odil Hannes STECK, Israel und das gewaltsame Geschick der Propheten.
Untersuchungen zur Überlieferung des deuteronomistíschen Geschichts-
bildes im Alten Testament, Spátjudentum un Christentum, Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener Verlag, 1967.
s K.-G. ECKART, Der zweite echte Brief na die Thessalonicher, ZThK 58
(1961) 30-40.
6 Hans-Martin SCHENKE, Karl Martin FISCHER, Eileitung in die Schriften
des Neuen Testaments I: Die Briefe des Paulus und Schriften des Paulinis-
mus, Berlin/Gütersloh, Mohn, 1978.

319
As epístolas de Paulo

nicenses 1,1-10 + 3,6-10 + 4,13-17 + 5,1-11 + 4,9-12 + 5,12-22 +


5,23-26.28 na carta B.
3. O envio de Timóteo e a preocupação de Paulo com sua comunida-
de (3,1-10) constitui o corpo de uma primeira carta (Earl J. Richard,
1995). Essa carta A é praticamente conservada inteira em 1Tessa-
Ionicenses 2,13 + 2,17—4,2, sendo 1 lessalonicenses 2,14-16 uma
interpolação. A carta B contém os dois blocos do início (1,1-2,12) e
do fim (4,3-5,28) da epístola canônica.
4. Uma hipótese semelhante já tinha sido proposta por Walter Sch-
mithals (19647), que lia 1Tessalonicenses 1,1-2,12 + 4,2-5,28 como
uma primeira carta aos tessalonicenses, depois 1 lessalonicenses
2,13-4,1 como uma quarta, em seguida a duas cartas conservadas
em 2 Tessalonicenses.

c) I Tessalonicenses como uma unidade literária


As razões que levam a renunciar a uma divisão da epístola em
várias cartas são, para 1 lessalonicenses, as mesmas que para as
epístolas aos Coríntios e aos Filipenses: 1) a tradição manuscrita não
contém nenhum traço das diferentes cartas reconstruídas pela crí-
tica literária; 2) a Antiguidade conhecia bem o gênero da coleção de
cartas, mas não o da coleção em forma de carta; 3) a argumentação
de 1Tessalonicenses não pressupõe mudança de contexto de comu-
nicação no interior do corpo da epístola.
A leitura da carta como uma entidade literária leva a ver os ca-
pítulos 1-3 como o indicativo que precede o imperativo da parênese
nos capítulos 4-5. Desse modo, a ação de graças (1,2-10), a apresen-
tação dos apóstolos como figuras exemplares da vida cristã (2,1-12),
a evocação da paciência dos tessalonicenses nas provações (2,13-16)
e de sua fidelidade na nova fé (2,17-3,10) são a base sobre a qual
se desenvolvem as exortações (4,1-8; 5,12-22) e os ensinamentos
(4,9-5,11) dos apóstolos.

7 Walter SCHMITHALS, Die Thessalonicherbriefe ais Briefkomposition,


inZeit und Geschichte (Festschrift R. Bultmann), Tübingen, Mohr, 1964,
295-315.

320
A p rim eira epístola a o s "Tessalonicenses

2.2. A s tradições pré-paulirtas


l Tessalonicenses 1,9b-10
Do ponto de vista formal, esta passagem constitui uma unidade
rítmica. Do ponto de vista do conteúdo, ela contém um acúmulo de
termos e fórmulas não-paulinas, mas de tradição judaica helenística,
e muitas vezes aparentados à Septuaginta8:

“Como vos voltastes para Deus, abandonando os ídolos,


para servir ao Deus vivo e verdadeiro
e para esperar dos céus o seu Filho
a quem ele ressuscitou dos mortos,
Jesus que nos livra da ira que está vindo

Ou se trata, de fato, de um sumário da missão judeu-cristã junto


aos pagãos, ou a epístola, na realidade, retoma um hino batismal de
acolhida dos novos convertidos na comunidade.

1 lessalonicenses 4,16-17
Os autores da carta anunciam, em 1Tessalonicenses 4,15a, uma
palavra do Senhor. A questão levantada pelo texto que se segue é
saber onde se encontra essa citação e onde se acha seu comentário.
Teoricamente, 4,15b podería ser a palavra do Senhor comentada e
desenvolvida em 4,16-17. O inverso é, entretanto, mais provável:
4 ,15b comenta e resume o sentido de uma palavra adaptada ao con-
texto e citada em 4,1617‫ ־‬:
“Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e
ao toque da trombeta de Deus, descerá do céu: então os mortos
ressuscitarão primeiro em Cristo9; em seguida nós, os vivos que
tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens,

8 1
Argumentação detalhada: Earl J. RICHARD, First and Second Thessalo-
nians, Collegeville, Liturgical Press, 1995.
9 Por razões dogmáticas, certas traduções ligam o complemento “em Cris-
to” ao substantivo “os mortos”, o que é uma incorreção gramatical, em
lugar de construí-lo muito simplesmente com o verbo “ressuscitarão”.

321
A s epístolas de Paulo

ao encontro do Senhor, nos ares, e assim estaremos sempre com


o Senhor”.

Quanto ao seu conteúdo, essa palavra apocalíptica tem seu equi-


valente no “mistério” de 1 Coríntios 15,50-58; quanto à forma e ao
conteúdo, podemos aproximá-la de Marcos 13,24-27.

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
3.1. A ocasião da carta
A razão pela qual a carta foi escrita aparece em suas duas partes
complementares. De um lado, ela reside na insegurança criada pela
ausência prolongada do apóstolo (lTs 2,17-20), em sua preocupação
paternal com a nova comunidade (2,1-12) e na vontade de confirmar
seus destinatários em sua fidelidade ao Evangelho (3,1-10). Por ou-
tro lado, a carta quer reforçar suas convicções. Os apelos à santida-
de (4,1-8) e à edificação mútua na vida comunitária (5,12-22), que
visam a confirmar a Igreja em sua identidade própria, enquadram a
resposta a três questões que podem ter sido, talvez, propostas pelos
tessalonicenses (4,9-12; 4,13-18; 5,1-11). Duas delas dizem direta-
mente respeito à parusia:
a) 1Tessalonicenses 4,13: qual vai ser a sorte dos mortos? A
resposta à questão permite compreender seu sentido: os
autores entendem que serão surpreendidos, ainda vivos,
pelo som da trombeta e transportados, nas nuvens, ao en-
contro do Senhor (4,17). A incerteza a que dá lugar essa
convicção concerne ao futuro reservado aos irmãos e às
irmãs da comunidade, mas também aos parentes, mortos
antes do arrebatamento final: morreram eles cedo demais
para ser salvos com os vivos?
b) 1 Tessalonicenses 5,1 coloca a questão complementar: se
irmãos e irmãs, ou parentes, dentro ou fora da comunida-
de, morrerem antes que intervenha a parusia, esta acon-
tecerá efetivamente?
As duas questões põem em dúvida a credibilidade da mensagem
dos apóstolos, de modo que o conjunto da carta podería ter sido es­

322
A prim eira epístola a o s T essalonicenses

crito para refutar a dupla objeção formulada por elas10. A resposta se


encontra no anúncio da ressurreição dos mortos (4,15-16), no apelo
à vigilância (5,1-11) e na exortação à edificação mútua dos membros
da comunidade (4,18; 5,11).

3.2. Os destinatários
Tèssalônica
A cidade foi fundada em 315 a.C. por um general de Alexandre;
em 42, obteve de Marco Antônio o estatuto de cidade livre. Ela era
a capital da província da Macedonia. Porto importante, situado na
via Egnatia, Tèssalônica, chamada hoje Salônica, era uma grande ci-
dade cosmopolita habitada por uma diversidade de povos.

História e composição da comunidade


Diversamente das grandes epístolas, em que o apóstolo fala de
si mesmo tanto na primeira pessoa do singular como na do plural,
em 1Tessalonicenses o “nós” representa os três signatários da carta
(lTs 1,1); a comunidade foi fundada por Paulo e seus dois colabora-
dores, Silvano e Timóteo. Parece que os três apóstolos ficaram por
algum tempo em Tèssalônica. Aí trabalharam até com as próprias
mãos para prover ao seu sustento (2,9, c f 4,11) e converteram um
pequeno grupo de crentes bastante restrito e íntimo, de forma que
podiam tratar cada um deles como um pai a seus filhos (2,11).
As passagens de 1Tessalonicenses 1,9-10 e 2,14-16 (se esta última
não for uma interpolação) mostram que os membros da comunidade
destinatária são antigos pagãos, e não judeus e pagãos simpatizantes
da Sinagoga, como dá a entender o relato de Atos 17,1-9; este último
texto é, em grande parte, composto de estereótipos da teologia luca-
na da missão: primeira pregação dos apóstolos na sinagoga, sucesso
junto aos ricos simpatizantes e partidários pagãos, depois ciúme dos
judeus que amotinam a população e as autoridades locais.

10 Bruce C. JOHANSON, To all the Brethren. A Text-linguistic and Rhetori-


cal Approach to l Thessalonians, Stockholm, Almqvist et Wiksell, 1987.

323
A s epístolas de Paulo

3.3. Lugar e data da composição


Que lugares são nomeados na carta? Encontramos aí Filipos
(onde esteve Paulo antes de fundar a Igreja de Tessalônica: lTs 2,2),
Atenas (de onde Paulo, não podendo ir ele mesmo à Macedonia,
enviou Timóteo: 3,1-2), depois Macedonia e Acaia, isto é, a Grécia
inteira (onde a fé dos tessalonicenses se tornou modelo para todos:
1,7-8). Timóteo está, agora, de volta de Tessalônica (3,6-10) e sejun-
ta a Paulo e Silvano para escrever a carta. Pela menção de “todos os
crentes da Acaia” (1,7) e malgrado a subscriptio dos manuscritos A B1
que comporta “de Atenas”, pode-se pensar que eles se encontram
em Corinto, onde, provavelmente, a Igreja acaba de ser fundada.
Se 1Tessalonicenses é escrita de Corinto, e se o comparecimento
de Paulo diante de Galião é um fato histórico (At 18,12-17), então
sua datação é a mais segura de todas as cartas paulinas. A estada
de Paulo em Corinto, que segundo Atos 18,11 durou dezoito meses,
deu-se entre fins de 49 e início de 52; conseqüentemente, a carta
foi, sem dúvida, enviada em 50-51.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Em seu conjunto, a carta parece ser uma repetição dos temas da
pregação apostólica:
1) A confissão do Deus vivo (1,9-10).
2) A ética. Suas linhas diretrizes se exprimem, por um lado,
na interpretação metafórica e moral das categorias de
santidade e pureza e, por outro lado, no apelo à concórdia
(philadelphie) como a uma forma helenística do manda-
mento do amor (4,1-12).
3) A certeza da salvação diante da morte (4,13-18).
4) A determinação escatológica do presente (5,1-11).

4. L A conversão ao Deus vivo


A conversão do paganismo à fé cristã não é apresentada como a
de uma passagem esclarecida do politeísmo pagão para o monoteís-
mo, mas antes compreendida como uma decisão pessoal, individual

324
A prim eira epístola aos T essalonicenses

e confessante de romper com o monoteísmo racional do helenismo,


para só adorar o Deus vivo. No ecumenismo monoteísta, aberto e
pluralista do mundo religioso helenístico, esse processo não é habitual.
Pressupõe, antes de tudo, a recusa de uma concepção avançada do
monoteísmo: rejeita a idéia geral da existência de um deus único, que
integra em si mesmo a pluralidade de divindades que aparecem nas
diversas religiões, para afirmar que o mundo é povoado de deuses e
que, entre os deuses, é preciso escolher. E é preciso escolher porque
Deus se manifestou no paradoxo da morte e da ressurreição de Jesus
(lTs 4,14); e ele é o Deus verdadeiro e o Deus vivo, porque escolheu
aqueles que crêem nele e os santificou (1,2-10). A pregação cristã
não consiste na oferta de uma encarnação suplementar do religioso,
mas na rejeição dos ídolos, isto é, numa decisão de excluir todos os
deuses salvo um. Ora, ao se colocar na posição de ter de escolher
seu Deus, a consciência humana se escolhe a si mesma e o indivíduo
se constitui a si mesmo como sujeito responsável".

4.2. A existência cristã: eleição e santidade


A descrição da existência cristã nas categorias da eleição (lTs
1,4) e da santidade (4,3.4.7) conferidas pelo poder do Espírito Santo
(1,5.6; 4,8) parece estranha à teologia do apóstolo; é verdade que
0 termo santidade aparece ocasionalmente nas grandes epístolas,
mas ligado, então, ao termo, agora tipicamente paulino, justiça (Rm
6,19.22; ICor 1,30). Santidade implica a idéia de uma dissidência no
mundo, fundada na consciência de ser posto à parte e encarrega-
do de uma responsabilidade particular. Ora, essa eleição, diferen-
temente da compreensão do Antigo Testamento e do judaísmo, é
incondicional: resulta da decisão pessoal de renunciar aos ídolos para
escolher o Deus vivo (1,2-10). Por outro lado, ela liberta o indivíduo
dos poderes que o escravizam; ela o obriga à φιλαδβλφία, isto é, ao
amor e ao respeito mútuo aos irmãos e irmãs no interior da comu-
nidade, à solidariedade com as outras Igrejas e a uma coexistência

11 François VOUGA, Uattrait du christianisme primitif dans le monde anti-


que, RThPh 130 (1998) 257-268.

325
As epístolas de Paulo

livre e tranquila com o resto da cidade (4,9-12). A existência pessoal


e a vida comunitária se vêem assim estruturadas de uma maneira
que corresponde à concepção da justiça ou da justificação das gran-
des epístolas.

4.3. O caráter comunitário da parênese


Deve-se notar que cada um dos ensinamentos de 1Tèssalonicen-
ses 4,9-5,11 termina com uma recomendação que remete os leito-
res à vida comunitária: os membros da Igreja são chamados a viver
uma vida decorosa aos olhos das pessoas de fora, provendo às suas
necessidades com o seu próprio trabalho — e não com a mendicân-
cia dos pregadores itinerantes (4,1-12); eles hão de se reconfortar
uns aos outros com o ensino escatológico do Evangelho (4,13); eles
hão de se edificar e se aconselhar mutuamente (5,11). As condi-
ções da existência comunitária são definidas pelas exortações que
enquadram esses ensinamentos dos apóstolos (4,1-8 e 5,12-22): é
importante que os crentes permaneçam fiéis à sua eleição (4,8) e se
mantenham longe de todo mal (5,22). A ética paulina, seja ela fun-
damentada nos conceitos de eleição e santidade, como é o caso em 1
Tessalonicenses, seja no de liberdade, como em 1 Coríntios, seja nos
de justiça de Deus e vida no Espírito, como em Romanos ou Gálatas,
define um duplo espaço: o espaço da comunidade, que é o lugar do
amor fraterno, do reconhecimento das pessoas, da edificação mútua
e de uma solidariedade espiritual e material, e o espaço do mundo,
que tem suas próprias leis, e em relação ao qual a comunidade é
chamada a exercer suas responsabilidades.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Do ponto de vista literário, as relações entre a primeira e a segun-
da epístola aos "Tessalonicenses, que pareciam resolvidas na medida
em que se considerava 1 Tessalonicenses a mais antiga das cartas
protopaulinas e 2 Tessalonicenses um documento deuteropaulino
destinado a corrigi-la ou substituí-la, são objeto de novas discussões:

326
A prim eira epístola a o s T essalonicenses

caso se confirme que as duas cartas aos Tessalonicenses são, tanto


uma como a outra, coleções de cartas, é possível que se encontrem,
em ambas, fragmentos antigos e novos.
Do ponto de vista da história da teologia, recoloca-se a questão
dos autores da carta. Pode-se dizer, simplesmente, como quer o con-
senso estabelecido desde 1950, que 1Tessalonicenses é a carta mais
antiga de Paulo? A saudação de 1Tessalonicenses 1,1 é, com efeito,
assinada por três remetentes (Paulo, Silvano e Timóteo), e, diferen-
temente das outras epístolas, nas quais Paulo fala de si mesmo usan-
do tanto “nós” como “eu”, o “eu” afirmado do apóstolo (ITs 2,18;
3,5; 5,27) parece se distinguir do “nós” coletivo dos autores. Quem
e o que representam, então, as declarações teológicas da carta?
Do ponto de vista teológico, os problemas discutidos são especial-
mente: a) as relações entre as afirmações de 1 Tessalonicenses 1-3
e a parênese de 1 Tessalonicenses 4-5; b) as diferenças e as equi-
valências entre a teologia da justiça, desenvolvida em Romanos e
Gaiatas, e a teologia da santificação presente em 1Tessalonicenses;
c) a questão de uma eventual evolução da teologia e da escatologia
paulinas entre 1Tessalonicenses e as grandes cartas subsequentes.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
HOLTZ, Traugott. Der erste Brief die Thessalonicher. Zurich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 21990 (EKK 13).
LEGASSE, Simon. Les építresde PaulauxThessaloniciens. Paris, Cerf, 1999
(LeDiv. Commentaires 7).
MASSON, Charles. Les deux épitres de saint Paul aux Thessaloniciens. Neu-
châtel/Paris, Delachaux et Niestlé, 1957 (CNT 11a).
RICHARD, Earl J. First and Second Thessalonians, Collegeville, Liturgical
Press, 1995 (Sacra Pagina 11).
R1GAUX, Béda. Saint Paul, Les épires aux Thessaloniciens. Paris/Gem-
bloux, Gabalda/Duculot, 1956 (Etudes Bibliques).
WANAMAKER, Charles A. The Epistles to the Thessalonians. Grand Ra-
pids/Exeter, Eerdmans/Paternoster, 1990 (N1GTC).

327
As epístolas de Paulo

Leitura prioritária
BECKER, Jürgen. Paul, “Lapôtre des nations". Paris/Montréal, Cerf/Mé-
diaspaul, 1995, p. 157-168.
TR1MAILLE, Michel. La premiere lettre aux Thessaloniciens. Cahiers
Évangile, Paris, Cerf, 39 (1982).

Situação da pesquisa
RICHARD, Earl J. Contemporary Research on 1 (&- 2) Thessalonians.
BTB 20(1990) 107-115.
WE1MA, Jeffrey A. D., PORTER, Stanley E. A n Annoted Bibliography o f
I and 2 Thessalonians. Leiden, Brill, 1998.

Estudos particulares
BOSCH, Jorge Sanchez. La chronologie de la première aux Thessaloni-
ciens et les relations de Paul avec d’autres églises. N T S 37 (1991)
336-347.
COLLINS, Raymond E Studies on the First Letter to the Thessalonians. Leu-
ven, Leuven University Press/Peeters, 1984 (BEThL 66).
--------- (ed.). The Thessalonian Correspondence. Leuven, Leuven Univer-
sity Press/Peeters, 1990 (BEThL 87).
JEW ETT Robert. The Thessalonian Correspondence. Pauline Rhetoric and
Millenarian Piety. Philadelphia, Fortress Press, 1986 (Foundations
and Facets).
JO H A N SO N , Bruce C. To A ll the Brethren. A Text-linguistic and Rheto-
rical Approach to 1Thessalonians. Stockholm, Almqvist et Wiksell,
1987 (CB NTS 16).
MALHERBE, Abraham J. Paul and the Thessalonians. The Philosophic
Tradition o f Pastoral Care. Philadelphia, Fortress Press, 1987.
MARGUERAT, Daniel. Lapôtre, mère et père de la communauté (ITh
2,1-12), ETR 75(2000) 373-389.
(SCHLUETER, Carol J. Flying up the Measure. Polemical Hyperbole in
1 Thessalonians 2,14-16. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994
(JSNTSS 98).

328
CAPÍTULO

14
À epístola a Fllêmon
François Vouga

O corpo epistolar da epístola a Filêmon se apresenta, quanto à for-


ma, às dimensões e ao conteúdo, como uma típica carta de recomen-
dação. Em Epístola 1,9 Horácio oferece uma paródia espiritual desse
gênero literário e, ao mesmo tempo, revela seus elementos constitu-
tivos: uma pessoa, que goza de certo prestígio, faz valer as qualidades
dela que lhe permitem intervir junto a uma autoridade, para interceder
por um protegido do qual faz o elogio ou toma a defesa. Em nossa
epístola, Paulo se dirige a Filêmon, que lhe deve sua conversão ao cris-
tianismo (Fm 19); escreve-lhe a respeito de seu escravo Onésimo, que,
em busca de ajuda e apoio, se refugiou junto ao apóstolo (Fm 10).

1. A p r e s e n t a ç ã o
Se o corpo da carta é o clássico de uma carta de recomendação, o
formulário epistolar que o envolve e o contexto de comunicação que
estabelece são os das grandes epístolas apostólicas. Os signatários
da carta são Paulo e Timóteo (Fm I, c f 2 Cor 1,1; Fl 1,1). Seria de
esperar que ela fosse dirigida a Filêmon; entretanto, o círculo de seus
destinatários compreende Apia, Arquipo e toda a Igreja que se reú-
ne em casa de Filêmon (Fm 1-2). As saudações, no início e no fim da
carta, são substituídas pelas bênçãos típicas das cartas do apóstolo
(vv. 3 e 25); todo um grupo de colaboradores se associa à sua ini-

329
As epístolas de Paulo

ciativa: Epafras, seu companheiro de cativeiro, e Marcos, Aristarco,


Dermas e Lucas, seus colaboradores.

Estrutura e conteúdo
A carta começa por uma impressionante ação de graças, cuja
função argumentativa aparece claramente a partir do pedido de Fi-
lêmon 8-10: tanto a lembrança do amor e da fé de Filêmon, de que
o apóstolo não cessa de ouvir falar e pelos quais dá graças a Deus (v.
5), como a exortação apostólica a dar a conhecer todo o bem que
os crentes podem realizar em Jesus Cristo (v. 6) constituem a base
sobre a qual Paulo apresenta, a seguir, seus pedidos.
São três os pedidos do apóstolo. Em primeiro lugar, Filêmon é
solicitado a receber Onésimo como um irmão bem-amado. Isso sig-
nifica que a relação mestre-escravo deve ser transformada em uma
relação simétrica e fraterna (v. 16a-17). Em segundo lugar, Paulo lhe
roga que o receba como um irmão bem-amado “segundo a carne e
segundo o Senhor”. A fraternidade no Senhor determina a qualida-
de da relação fraterna; a fraternidade na carne não pode, provável-
mente, significar outra coisa que a ordem social: Filêmon libertará
seu escravo. Em terceiro lugar, Filêmon fará, sem dúvida, ainda mais
(v. 21b) e pensará em enviar de volta seu irmão Onésimo para junto
do apóstolo (v. 13-14).

Plano da epístola a Filêmon

1-3 Endereço e saudação


4-7 Ação de graças: o amor e a fé de Filêmon

Os pedidos do apóstolo (8-21)


8-9 A autoridade do apóstolo
10-12 O beneficiário do pedido: Onésimo
13-14 A sugestão do apóstolo: que Filêmon envie de
volta Onésimo para junto dele
15-17 O pedido do apóstolo: que Filêmon receba Oné-
simo como irmão
18-19 Paulo fica como fiador de Onésimo
20-21 A confiança do apóstolo na decisão de Filêmon

330
A epístola a Filêm on

Conclusão epistolar (22-25)


22 Anúncio de uma visita
23-24 Saudações

2 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
2.1. A ocasião da carta
E difícil reconstituir a seqüência dos acontecimentos que prece-
deram e ocasionaram a carta sem sobrecarregar de sentido as alu-
sões que ela contém.

Os personagens em cena
Os fatos evidentes são os seguintes: Filêmon, que recebeu de Pau-
lo o Evangelho e se converteu ao cristianismo (Fm 19), acolhe desde
então uma Igreja em sua casa (v. 2). De seu lado, o apóstolo se encon-
tra momentaneamente na prisão (w. 1, 10 e 13) e aí recebeu a visita
de Onésimo, o escravo de Filêmon (w. 11 e 15). Ora, Onésimo, por
sua vez, durante sua estada junto de Paulo, converteu-se ao Evange-
Iho (v. 10). Paulo, que desejava conservar Onésimo junto de si (v. 13),
decidiu, entretanto, nada fazer sem o consentimento de Filêmon (v.
14). Vai, então, enviar Onésimo de volta a Filêmon, munido da epís-
tola a Filêmon como carta de recomendação.
As razões pelas quais Onésimo se encontra junto de Paulo não
são claras. Tem-se frequentemente interpretado Filêmon 18 como
indício de que Onésimo teria cometido um furto em casa de Filê-
mon, ou que fugiu, ou que, combinando os dois, fugiu com o di-
nheiro. Ao propor a Filêmon que debite em sua conta as faltas ou
as dívidas de Onésimo, o apóstolo se comprometería a reparar os
prejuízos causados ao senhor pelo escravo fugido. Mas pode-se mui-
to bem pensar, ainda, em uma situação muito mais banal. Era, com
efeito, corrente e legal, no primeiro século de nossa era, que um
escravo, temendo a cólera de seu amo, buscasse proteção em casa
de um amigo deste. Nesse caso, o escravo não era considerado fugi-
tivo. Pode-se imaginar, portanto, que Onésimo muito simplesmente

331
A s epístolas de Paulo

buscou refúgio junto ao apóstolo após uma discussão com Filêmon,


e que Paulo promete a este último pagar uma compensação pelo
tempo que Onésimo passou junto de si1.

O argum ento
A estratégia argumentativa da epístola consiste em opor, umas
às outras, três hierarquias que presidem as relações entre Filêmon,
Paulo e Onésimo.
Segundo a ordem jurídica, Onésimo não só é escravo de Filê-
mon, mas também seu devedor pelo tempo passado junto de Paulo.
Quanto a Paulo, ele é, em princípio, o igual de Filêmon, mas é co-
responsável pela ausência de Onésimo (Fm 18).
Segundo a ordem eclesiástica, Paulo gerou Onésimo na prisão
(Fm 10); mas Filêmon lhe deve, também, a fé (v. 9b), de sorte que
0 apóstolo tem autoridade sobre o senhor (v. 8) assim como sobre o
escravo, que são seus filhos (v. 9).
Segundo a ordem cristológica, enfim, Paulo e Filêmon (Fm 17 e
20) são irmãos, tanto quanto Paulo e Onésimo, bem como Filêmon
e Onésimo (v. 16).
A argumentação da epístola funciona em diversos níveis. Por um
lado, dá a compreender a Filêmon que Paulo está pronto, se necessá-
rio, a pagar-lhe o que ele e Onésimo lhe devem (Fm 18-19a). Por outro
lado, empreende uma dupla reestruturação de valores. De um lado,
Paulo sugere a Filêmon que, em razão de sua autoridade de apóstolo,
podería lhe ordenar que deixasse Onésimo a seu serviço (vv. 8 e 13-
14); assim ele opõe a hierarquia eclesiástica à ordem jurídica, e em
nome da primeira suspende a segunda. De outro lado, Paulo se apre-
senta como irmão de Filêmon e, como tal, renuncia à sua autoridade
apostólica (vv. 8-9) para lhe pedir que receba Onésimo, convertido
nesse entremeio, como irmão e não mais como escravo (vv. 16-17);
assim ele opõe à hierarquia eclesiástica uma outra hierarquia, que a

1 Peter LAMPE, Der Brief an Philemon, in Nikolaus WALTER, Eckart


REINMUTH, Peter LAMPE, Die Briefan die Philipper, Thessalonicher und
an Philemon, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1998.

332
A epístola a Filêm on

fundamenta, segundo a qual tanto Paulo e Filêmon como Onésimo


são os servidores de Cristo; segundo essa hierarquia, a única relação
possível entre Paulo, Filêmon e Onésimo é a de irmãos2.

2.2. Os destinatários
Curiosamente, os nomes de Filêmon e Onésimo constituem,
como os de Evódia e Síntique, em Filipenses 4,2, e eventualmente o
de Sízigo (se é que é um nome próprio) em Filipenses 4,3, um pro-
grama em si mesmos: Filêmon significa “amável” e Onésimo, “útil”.
De Filêmon, não se sabe nada além das informações fornecidas
pela epístola. Em compensação, tanto os nomes de Onésimo (Cl
4,9) e Arquipo (Fm 2 // Cl 4,17) como os de Epafras (Fm 23 // Cl
1,7; 4,12), Lucas e Demas (Fm 24 / / Cl 4,15) se encontram de novo
na epístola aos Colossenses. Segundo as informações dadas por Co-
lossenses 4,17, Arquipo faz, novamente, parte dos destinatários de
Colossenses, ao passo que, conforme Colossenses 4,9, Onésimo é
também de Colossos e se reuniu ao apóstolo e seus colaboradores
no lugar de seu cativeiro; estes são, em grande parte, os mesmos
que o cercavam por ocasião da redação de Filêmon.
Conforme o enredo proposto por Colossenses, Filêmon acolhe
em sua casa a Igreja ou uma comunidade da Igreja de Colossos. Ten-
do recebido bem a carta do apóstolo trazida por Onésimo, enviou
este de volta a Paulo, como lhe fora sugerido.

2.3. Lugar e data da composição


Em razão das repetidas menções do cativeiro do apóstolo (Fm
1.9.13.22), a carta pode ter sido escrita, como a epístola aos Fili-
penses, em Efeso, ou na Cesaréia, ou em Roma. A tradição ma-
nuscrita pleiteia Roma (subscriptio dos manuscritos P e 048), mas a
proximidade geográfica necessária para que Onésimo pudesse, sem
dificuldade, ir buscar refúgio junto a Paulo torna Efeso mais plausí­

2 Norman R. PETERSEN, Rediscovering Paul. Philemon and the Sociology


o f Paul’s Narrative World, Philadelphia, Fortress Press, 1985.

333
As epístolas de Paulo

vel. Filêmon provavelmente data, portanto, da estada do apóstolo


na Ásia, entre 51/52 e 54/55.

3 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
3. 1. Casa cristã e escravatura
O pedido da carta, que se refere ao reconhecimento fraterno de
Onésimo por Filêmon e à libertação do escravo, é coerente com o
princípio paulino de Gálatas 3,28, segundo o qual não há mais, em
Cristo, nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, nem
homem nem mulher. A comunidade que vive sob o senhorio do Cru-
cificado distingue-se do mundo que o cerca pelo fato de que, nela, as
diferenças são constatadas e nomeadas, mas cada um é reconhecido
e amado como uma pessoa, independentemente de sua condição ou
de suas qualidades. O reconhecimento e o amor mútuos não são,
entretanto, compatíveis com as relações senhor-escravo; o batismo
de Onésimo acarreta, portanto, sua libertação por Filêmon.
A argumentação que conduz à alforria de Onésimo é a idêntica à
que convida os escravos cristãos a viver a liberdade cristã em sua con-
dição de escravos (ICor 7,17-24). E necessário, com efeito, distinguir
dois problemas éticos fundamentalmente diferentes: não se trata, em
1 Coríntios 7,17-24, de relações entre batizados no interior da comu-
nidade e de uma casa cristã, como é o caso em Gálatas 3,26-29 e Fi-
lêmon; 1 Coríntios 7 trata, antes, do comportamento que os escravos
cristãos hão de adotar no mundo pagão. Confessando Jesus Cristo
como Senhor, são todos escravos de Cristo; é a pertença a Cristo que,
no interior da comunidade, estabelece, entre os membros, relações de
irmãos e irmãs, e que no exterior da comunidade permite viver, na
liberdade, as obrigações da vida cotidiana. A fé leva os cristãos a inven-
tar novos comportamentos em sua existência e no espaço de liberdade
constituído pela Igreja; ela não lhes permite transformar a sociedade.

3.2. A comunidade cristã como lugar de discussão ética


Um paradoxo formal se manifesta no contraste entre o objeto da
epístola, que requer uma decisão pessoal de Filêmon, e o contexto

334
A epístola a Filêm on

de comunicação que ela estabelece. Os autores da carta são Paulo


e Timóteo, mas também, indiretamente, Epafras, Marcos, Aristar-
co, Demas e Lucas. O círculo de destinatários engloba, à volta de
Filêmon, Apia, Arquipo e toda a Igreja que se reúne em casa dele.
Esse duplo alargamento do círculo de autores e de leitores não é, em
si mesmo, surpreendente: é, ao contrário, característico do gênero
da carta apostólica tal como inventada por Paulo. Aqui, entretanto,
causa espanto, em virtude do objeto particular, e aparentemente li-
mitado, do pedido do apóstolo. Esse pedido necessitava ser oficiali-
zado por uma carta apostólica?
Ora, o gênero literário da carta apostólica institui a comunidade
em lugar de discussão e de decisão ética de seus membros. A relação
de Filêmon com Onésimo não é um assunto privado; implica um re-
conhecimento que define a identidade da Igreja cristã como corpo,
ou como lugar do senhorio de Cristo. Depois, a oficialização do pe-
dido — assim como o nome programático dos principais protagonis-
tas — mostra que seu objeto não se restringe à sorte particular de
Onésimo, mas concerne à atitude tomada em relação à escravidão
no interior das comunidades cristãs. Esta última observação obri-
ga, enfim, a perguntar se convém considerar Filêmon um bilhete do
apóstolo ou se a redação da carta deve ser compreendida como uma
forma de fixar a posição geral de Paulo a respeito da escravidão em
uma carta apostólica, forma típica da expressão de sua autoridade.

4 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
As novas perspectivas são de tendências opostas umas às outras;
põem em questão consensos que pareciam adquiridos.
Uma primeira tendência se interessa pela realidade material dos
acontecimentos que servem de ocasião para a epístola. Esforça-se
por precisar as condições históricas e jurídicas da argumentação de
Paulo, e as implicações sociais, simbólicas e teológicas de seu pedido
a Filêmon.
Uma segunda tendência se concentra na carta considerada em
sua dimensão puramente literária. A epístola a Filêmon é encarada,

335
As epístolas de Paulo

então, como a formalização programática, a partir de um caso real,


ou talvez mesmo fictício, da posição paulina sobre o problema da
escravidão: as relações fraternas que existem, em Cristo, no interior
da comunidade cristã são incompatíveis com relações entre senhor
e escravo.

5 . B ib l io g r a f ia
Comentários
Jean-François COLLANGE. 11 ép?tre de saint Paul à Philemon. Genève,
Labor et Fides, 1987 (CNT 10c).
Peter LAMPE, Der Brief an Philemon. In: WALTER, Nikolaus, REIN-
MUTH, Eckart, LAMPE, Peter. Die Brief an die Philipper, Thessa-
lonicher und an Philemon. Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht,
1998, p. 205-232 (NTD 8/2).
LEHMANN, Richard. Epitre à Philémon. Le christianisme primitif et Γ es-
clavage. Genève, Labor et Fides, 1978 (Commentaires bibliques).
STUHLMACHER, Peter. Der Brief an Philemon. Zurich/Neukirchen,
Benziger/Neukirchener Verlag, 21981 (EKK 18).

Leitura prioritária
LEGASSE, Simon. Lépítre aux Philippiens. Lépítre à Philémon. Cahiers
Évangile, Paris, Cerf 33 (1980) 51-62.
PRE1SS, Théo. Vie en Christ et éthique sociale dans Tépítre à Philémon.
In:Aux sources de la tradition chrétienne (MélangesM. Goguel). Neu-
châtel, Delachaux et Niestlé, 1950, p. 171-179; ou La vie en Christ.
Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1951, p. 65-73 (Bibliothéque théo-
logique).

Estudos particulares
BARCLAY, John M. G. Paul, Philemon and the Dilemma o f Christian Sla-
ve-Ownership. NTS 37 (1991) 161-186.
PETERSEN, Norman R. Rediscovering Paul. Philemon and the Sociology
o f Paul’s Narrative World. Philadelphia, Fortress Press, 1985.

336
As epístolas deuteropauiinas
CAPÍTULO

15
A epístola aos C olossenses
Andreas Dettwiler

A epístola aos Colossenses se apresenta como um escrito de


Paulo. A pesquisa, no entanto, mostrou — com um grau de proba-
bilidade ainda indefinido — que a carta não foi escrita pelo próprio
Paulo, mas por alguém muito familiarizado com seu pensamento.
Esse personagem desconhecido ambicionava prosseguir a reflexão
teológica no espírito de seu mestre. Mais precisamente, o autor lem-
bra à comunidade destinatária os seus inícios e o fundamento teoló-
gico de sua identidade cristã. Empreende este trabalho de anamnese
para fortalecer a fidelidade da comunidade no que concerne à he-
rança paulina e para adverti-la contra uma corrente de pensamento
— a “filosofia colossense” — que, ele estava persuadido, destruiría
a liberdade cristã. Mediante o meio literário da pseudepigrafia, um
procedimento perfeitamente legítimo na época para transmitir as
tradições de escolas, o autor do escrito submeteó-se inteiramente
à voz e à autoridade de seu mestre e modelo1. A epístola aos Colos-
senses testemunha, assim, a segunda presença de Paulo após a morte
do apóstolo12.

1 Sobre o fenômeno da pseudepigrafia, ver acima p. 184-186.


2 Conforme a bela formulação de um artigo de Hans Dieter BETZ, Paul’s
“Second Presence” in Colossians, in lord FORNBERG, David HEL-
LHOLM (eds.), Texts and Contexts: Biblical Text in Their Textual and Situ-

339
A s epístolas deuteropaulinas

1. A p r e s e n t a ç ã o
Após o endereço e a saudação (1,1-2), o prefácio epistolar é segui-
do de quatro elementos. Primeiro, a ação de graças (1,3-8), de cará-
ter fortemente anamnésico: partindo da estrutura fundamental da
existência cristã (retomada da tríade paulina “fé-amor-esperança”),
são lembrados, à comunidade, seus inícios cristãos e sua participação
no agir universal do Evangelho transmitido por Epafras. A ação de
graças se acrescenta uma intercessão (1,9-14), ampliada em seguida
pelo texto teológico fundamental de Colossenses: o hino a Cristo
(1,15-20). O quarto elemento (1,21-23) aplica as afirmações do hino
à comunidade destinatária e assim conclui a parte introdutória.
A unidade textual seguinte (1,24-2,5) ocupa a função de articula-
ção entre a introdução e o corpo da carta: ela constitui a auto-reco-
mendação do autor. De maneira programática, descreve a função de
Paulo no processo da revelação: ser o servidor da Igreja e do Evan-
gelho. É possível, no máximo, ver o início do corpo de Colossenses
na auto-recomendação; nesse caso, ele se estendería de 1,24 a 4,1.
O corpo da carta (2,6-4,1) se abre com a indicação do tema
(2,6-8). Pode-se ver aí uma espécie de composição em quiasmo:
2,6-7 (“Prossegui pois o vosso caminho em Cristo, Jesus o Senhor,
tal como o recebestes...”) se referiría à parte ética (capítulo 3), en-
quanto 2,8 indicaria, de preferência, a parte dogmática ou polêmi-
ca (capítulo 2). Assim, com 2,8 o tom muda. A comunidade des-
tinatária é advertida contra um movimento que o autor chama de
“filosofia”, imediatamente por ele desqualificado (“Vigiai para que
ninguém vos apanhe no laço da filosofia, esse vão embuste fundado
na tradição dos homens, nos elementos do mundo, e não mais em
Cristo”). Surpreendentemente, em seguida se explica primeiro, de
novo, o fundamento da identidade cristã (2,9-15), antes de passar à
polêmica (2,16-23). Nessa parte, o autor refuta as pretensões con-
trárias, insistindo na liberdade cristã (2,20: “Já que estais mortos
com Cristo, e, assim, subtraídos aos elementos do mundo, por que

ational Contexts. Festschrift L. Hartman, Oslo, Scandinavian University


Press, 1995, 507-518.

340
A epístola a o s C olossenses

vos submeterdes às normas, como se a vossa vida ainda dependesse


do mundo?”), liberdade que torna anacrônica as exigências que os
adversários tendem a impor à comunidade. Uma função de articu-
lação entre a parte dogmática e a parte ética é assumida por 3,1-4,
que convida os destinatários a se orientar para “o que está no alto, lá
onde se encontra Cristo” (3,1). A exortação ética compreende duas
partes: 3,5-17 convida a passar do “velho homem” para o “homem
novo” (com catálogos de vícios e virtudes), nova existência que cul-
mina no amor mútuo; 3,18-4,1 contém os códigos domésticos que
descrevem as obrigações mútuas dos membros da família cristã.
A conclusão da carta compreende os seguintes elementos: às
exortações finais (4,2-6) se acrescenta o que é denominado parusia
apostólica (4,7-9: a ausência de Paulo, impedido de visitar Colossos,
“substituído” por seus colaboradores, Títico e Onésimo, que trans-
mitirão as notícias). A carta termina com uma longa lista de sauda-
ções (4,10-17), muito próxima da de Filêmon, e a bênção (4,18).

Plano da epístola aos Colossenses

Introdução (1,1-2,5): a anamnese da identidade cristã:

a obra de Paulo
1,1-2 Endereço e saudação
1,323‫ ־‬Parte introdutória
1,3-8 ação de graças
1,9-14 intercessão
1,15-20 o hino a Cristo, a imagem de Deus e pri-
mogênito dentre os mortos
1,21-23 aplicação do hino aos destinatários e
conclusão de 1,3-23
1,24-2,5 Auto-recomendação doautor: Paulo,servidor da
Igreja e do Evangelho

Corpo da carta (2,6-4,1): manter a liberdade


2,6-8 Tema: apelo a permanecer em Cristo; advertência
contra a “filosofia”
2,9-15 Lembrança: em Cristo, a comunidade já tem acesso
à plenitude da salvação
2,16-23 Refutação: a comunidade não tem necessidade de
outras doutrinas de salvação

341
As epístolas deuteropaulinas

3.1-4 Convite: orientar-se pelo Cristo que está no alto


3,5-4,1 Exortação ética
3,5-17 do homem velho ao homem novo
3,18-4,1 os códigos domésticos:
• mulheres — homens
• filhos — pais
• escravos — senhores

Conclusão (4,2-18): exortações e saudações finais


4.2- 9 Exortações finais e parusia apostólica
4,10-17 Saudações finais
4,18 Palavra do próprio punho e bênção

2. M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2 .1. A questão do autor
A questão do autor histórico de Colossenses é assunto de debate
desde a metade do século XIX. Hoje, a maioria dos exegetas pensa
que Colossenses não foi escrita pelo próprio Paulo; os argumentos
são de ordem literária e teológica.

Os argumentos literários
Colossenses contém 34 hapaxlegomena (palavras que só se en-
contram uma vez no Novo Testamento) e 28 palavras desconhecí-
das das outras epístolas cuja atribuição a Paulo não cria problemas
(Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e
Filêmon); contam-se dez termos que, no contexto do Novo Testa-
mento, aparecem somente em Colossenses e Efésios; quinze outras
palavras só se encontram, no contexto do corpus paulino, em Colos-
senses e Efésios. Convém constatar, também, que em vão se busca
um bom número de expressões típicas do vocabulário paulino3. E

3 “Pecado” (αμαρτία) no singular; “justiça” (δικαιοσύνη) ou “justificar”


(δικαιοϋν); “liberdade” (èXeoGepía) ou "libertar” (èXeofiepoôv); “promes-
sa” (έπαγγέλία); “lei” (νόμος); “crer” (tTiaxeóeiv); "salvação” (σωτηρία)
ou “salvar” (σω(6 ιν) etc. Para uma avaliação crítica desta observação, ver
Eduard LOHSE, Die Briefe art die Koloser und an Philemon, Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 21977, 135.

342
A epístola a o s C o lossenses

verdade que essa análise lexicográfica não resolve ainda a questão


de maneira definitiva.
Mais revelador é o estilo de Colossenses. A contribuição decisiva
aqui é dada por Walter Bujard, que não se contenta em enumerar
algumas observações lexicológicas e estilísticas; o autor demonstra
a heterogeneidade de Colossenses em relação às cartas de Paulo por
uma abordagem coordenada do estilo e do movimento argumenta-
tivo da epístola: uso diferente das conjunções, dos infinitivos, das
construções partícipíais, das proposições subordinadas, bem como
das figuras retóricas. O estilo de pensamento se revela menos anti-
tético, mais associativo e claramente mais enfático.

Os argumentos teológicos
Observamos algumas diferenças entre Colossenses e as epístolas
cujo caráter protopaulino não é posto em dúvida. Deve-se, é claro,
tomar cuidado para não acentuar demais cada traço teológico es-
pecífico de Colossenses; as cartas paulinas apresentam uma con-
siderável flexibilidade quando se trata de anunciar o querigma em
contextos históricos diferentes. Entretanto, é interessante consta-
tar que as diferenças entre Colossenses e as cartas protopaulinas
se encontram em todos os domínios do pensamento teológico de
Colossenses e formam um conjunto coerente. Eis as diferenças mais
eloqüentes:
• A figura deuteropaulina do apóstolo Paulo. Paulo é designado
como ministro da Igreja universal (1,24-2,5). A modificação
em relação ao Paulo histórico é significativa: segundo Co-
lossenses, o conceito-chave não é mais o Evangelho, mas o
“mistério”, a saber, “Cristo no meio de vós/em vós” (1,27).
O termo mistério não resume somente o conteúdo do
Evangelho paulino (a cruz e a ressurreição de Cristo como
acontecimento decisivo da salvação); compreende também
a proclamação universal do Evangelho operada por Paulo.
Doravante, o próprio Paulo pertence ao conteúdo da pre-
gação e se torna um elemento constitutivo do “mistério”; a

343
As epístolas deuteropaulinas

figura de Paulo torna-se, portanto, parte integrante do pro-


cesso de revelação. A afirmação, absolutamente singular,
sobre o sofrimento do apóstolo sublinha bem isso: “Agora
encontro minha alegria nos sofrimentos que suporto por
vós; e o que falta às tributações de Cristo, eu o completo em
minha carne em favor do seu corpo que é a Igreja” (1,24).
Deve-se notar, ainda, que a temática da tradição (2,7) e do
“permanecer” (1,23; 2,5.7) corresponde bem a essa imagem
colossense de Paulo.
• A acentuação cosmológica da cristologia. O fato de a figura
de Cristo ser interpretada por meio de representações cos-
mológicas não é uma especificidade de Colossenses (como
mostram, p. ex., lCor8,6; 2Cor4,4; F1 2,6-11). Entretanto,
a diferença é bem perceptível. Em Paulo, essas afirmações
cosmológicas só se encontram esporadicamente e assu-
mem funções argumentativas diferentes e bem limitadas;
em Colossenses, ao contrário, a interpretação cosmológica
de Cristo (1,15-20) se torna a base de toda a argumentação
(compare-se, por exemplo, a inserção literária e a função
argumentativa diferentes do hino cristológico de F1 2,6-11,
posto a serviço da parênese). De modo mais geral, consta-
ta-se uma significativa mudança entre as estruturas de pen-
sarnento em Colossenses e as das epístolas protopaulinas:
enquanto o pensamento paulino recorre antes de tudo às
categorias temporais, Colossenses se utiliza de categorias
espaciais (cf p. ex. 3,1 s.) para interpretar o acontecimento
cristológico e a condição do crente no mundo.
• A eclesiologia. A metáfora eclesiológica central em Colos-
senses é a do corpo (1,18.24; 2,19; 3,15), do qual Cristo é a
cabeça. A diferença em relação às epístolas protopaulinas é
clara: enquanto Paulo distingue vários membros e um cor-
po (Rm 12,4-8; ICor 12,12 ss.), Colossenses distingue um
corpo e uma cabeça; Colossenses não se interessa mais pela
distinção intracomunitária, isto é, pela noção de “membros”.
Além disso, em Colossenses, a metáfora do corpo de Cristo

344
A epístola a o s C olossenses

é uma categoria universal. O Paulo histórico fala, antes de


tudo, da Igreja local (em Roma, Corinto etc.), ao passo que
Colossenses visa à Igreja universal (únicas exceções: 4,15-
16). A acentuação cosmológica da cristologia corresponde
a transformação universalista da metáfora da Igreja como
corpo de Cristo elevado.
• O batismo e a escatologia. A concepção escatológica de Co-
lossenses é a do momento presente: todo o peso é colocado
na experiência da salvação no ato atual da fé. Como Cristo já
triunfa inteiramente sobre os poderes do cosmo, os crentes
já foram arrancados ao poder das trevas e transferidos para
“o reino do Filho do seu amor” (1,13). Essa compreensão do
ato do batismo é confirmada e intensificada em Colossenses
2,12 s.: sepultados com Cristo no batismo, os crentes já res-
suscitaram. A diferença em relação ao texto de Romanos
6,3-11 salta aos olhos: lá, por razões éticas, Paulo insistia
na assimetria entre Cristo ressuscitado e a vida nova dos
crentes, que se caracteriza pela esperança na ressurreição
dos mortos, no futuro4. A especificidade da escatologia de
Colossenses aparece claramente em 3,1-4; ela será desen-
volvida mais abaixo (em 4.3).
• A ética. Na parênese, Colossenses introduz um novo gêne-
ro literário, o dos códigos domésticos; eles determinam, de
maneira relativamente conservadora, as relações mútuas
dos membros da família cristã (3,18-4,1; ver abaixo 4.4)
Deve-se então concluir que Colossenses pertence ao período
pós-paulino? Essa questão é muito debatida. Foi proposta a hipó-
tese de Colossenses ter sido escrita por um colaborador de Paulo,
durante a vida do apóstolo, e autenticada por ele com uma palavra
autográfica (4,18); pensa-se em Timóteo, pois ele é mencionado no
prefácio colossense5. A questão depende, entre outras coisas, da in-

4 Ver 1 Coríntios 15,12-58 e o capítulo 9, p. 254-256.


5 C f Eduard SCHWEISER, Der Brief an die Kolosser, Zürich/Neukierchen-
Vluyn, Bensiger/Neukirchener Verlag,21980, 20-27; James D. G. DUNN,
The Epistles to the Colossians and to Philemon, Grand Rapoids/Carlisle,

345
As epístolas deuteropaulinas

terpretação da lista de saudações (Cl 4,10-17); ela comporta, com


efeito, laços muito estreitos com a de Filêmon. Conforme os adep-
tos da hipótese do “secretário", a lista colossense não é uma imitação
literária da de Filêmon e, portanto, não faz parte da ficção literária
de Colossenses. A semelhança entre as duas listas de saudações se
explicaria pelo fato de que Colossenses teria sido redigida logo de-
pois de Filêmon. O que concluir? A hipótese do secretário tem a
vantagem de respeitar, por um lado, os resultados da análise crítica
do estilo de Colossenses e, por outro lado, de propor uma explicação
simples para a lista de saudações de Colossenses6. No entanto, por
duas razões ela deve, a nosso ver, ser problematizada. Primeiro, é
difícil admitir que uma carta de perfil teológico tão original pudesse
ter sido aprovada, simplesmente, por Paulo. Segundo, a imagem de
Paulo desenvolvida em Colossenses — para falar apenas dessa par-
ticularidade teológica de Colossenses — remete claramente à época
pós-apostólica.
Conclui-se, portanto, que o autor de Colossenses permanece
desconhecido para nós. Entretanto, ele era, certamente, um mem-
bro da escola paulina, porque seu escrito revela laços teológicos es-
treitos com o pensamento do apóstolo.

Foram analisadas com mais detalhes as referências comuns a Colossen-


ses e às cartas protopaulinas levando em conta apenas os temas que apare-
cem pelo menos em duas dessas cartas e estão presentes pela primeira vez no
Novo "Testamento sob a pena de Paulo7. O inventário compreende: a metáfora
eclesiológica do corpo de Cristo (Rm 12,5; ICor 10,17; 12,12 ss. — Cl 1,18.24;
2,19; 3,15), a expressão “em Cristo/no Senhor” (muito frequente em Paulo —
Cl 2,6 s.10-12; 3,18.20; 4,7.17), a tríade “fé-amor-esperança” (lTs 1,3; 5,8;

Eerdmans/Paternoster, 1996, 3 5 3 9 ‫־‬. Discussão equilibrada em Ulrich


LUZ, Der Brief an die Kolosser, in Jürgen BECKER, Ulrich LUZ, Die Brief
an die Galater, Epheser und Kolosser, Gottingen, Vandenhoeck und Rup-
recht, 1998, 185-190.
6 As epístolas pastorais, contudo, mostram que um autor de tradição paulina
podia se servir de notícias pessoais detalhadas para sustentar a ficção da
autenticidade de seu escrito.
7 Michael WOLTER, Der Brief an die Kolosser. Der Brief an Philemon, Gü-
tersloh/Würzburg, Gütersloher/Echter, 1993, 31 s.

346
A epístola ao s C olossenses

ICor 13,13 — Cl 1,4 s.), a afirmação de Gaiatas 3,28 (ver Cl 3,11) etc. Essa
constatação é confirmada por outras ligações íntimas, tais como as afirmações
sobre o batismo (Rm 6,4 — Cl 2,12) ou as passagens parenéticas (G1 5; Rm
12-13 etc. — Cl 3,5-17).

2.2. Circunstâncias e finalidade do escrito


Colossenses é uma carta de circunstância que, muito provável-
mente, revela uma situação conflituosa específica. O escrito tem por
finalidade imunizar a comunidade destinatária contra uma corrente
de pensamento chamada φιλοσοφία (2,8). A reconstrução dessa “fi-
losofia" de Colossos é muito difícil. Inúmeras propostas foram feitas
para resolver o enigma colossense8. Metodologicamente, convém
concentrar-se na passagem polêmica de Colossenses 2,8.16-23; as
outras indicações textuais que entram em consideração (p. ex. 2,11)
deveríam ser tratadas com a maior precaução.
A corrente de pensamento atacada por Colossenses comporta
traços ascéticos. A ascese propagada pela “filosofia” — trata-se, an-
tes de tudo, de um tipo particular de abstinência alimentar perma-
nente (ver 2,16.21-22) — tem um valor religioso e, mais particular-
mente, soteriológico. A prática ascética, compreendida como um
ato religioso de purificação, condiciona o acesso ao mundo celeste.
Tem por finalidade o distanciamento das pressões do mundo e, final-
mente, a libertação delas. Mas e a veneração dos anjos, mencionada
em 2,18, que parece ligada a experiências visionárias? Uma possível
leitura dessa passagem difícil consiste em admitir que os seres angé-
licos têm por função soteriológica decidir sobre o acesso ao mundo
superior, função que justificaria sua veneração.
Qual a consequência disso para a questão da identificação da
“filosofia colossense” no contexto religioso da época? Sublinha-se,
frequentemente, que a “filosofia” revela traços sincréticos. De um
lado, 2,16 mostra que os adversários foram influenciados por tradi-

8 Para uma rápida visão geral das posições defendidas, ver ibid., 155-163; e
John M. G. BARCLAY, Colossians and Philemon, Sheffield, Sheffield Aca-
demic Press, 1997, 39-48.

347
As epístolas deuteropaulinas

ções judaicas: “que ninguém vos condene por questões de comida


ou bebida, a respeito de uma festa, de uma lua nova ou do sábado”.
Nesse caso, não se trataria do judaísmo majoritário da diáspora,
mas de um grupo judeu que sublinhava a importância da ascese. De
um outro lado, pensou-se em influências pagãs: o tipo de abstinên-
cia alimentar propagada pelos adversários de Colossos foi compa-
rado à tradição pitagórica, cujo sinal distintivo é precisamente um
comportamento de vida ascética (vegetarianismo etc.); além disso,
Colossenses 2,18 podería refletir a influência de cultos de mistérios,
muito difundidos na Ásia Menor. Mas a ligação com esses cultos
permanece incerta; a veneração dos anjos é igualmente atestada
nos textos judaicos e parece bastante difundida na piedade popular
judaica da época.

2.3. Os destinatários
Os destinatários são, em primeiro lugar, os membros da Igreja de
Colossos. “Paulo” se dirige a uma comunidade que não foi fundada
por ele, mas por Epafras (1,7; 4,12). A cidade de Colossos estava
situada na Ásia Menor, mais precisamente no vale do Lico, na Frígia,
cerca de 170 quilômetros a leste de Efeso. Outrora cidade grande e
próspera, tinha perdido importância sob o império romano; Laodi-
céia, a cidade vizinha (a cerca de quinze quilômetros de Colossos; cf
Cl 2,1; 4,13-16), havia assumido o papel preponderante na região. A
existência de comunidades judaicas nas cidades da região da Frígia
é atestada (Flávio Josefo, Antiguidades judaicas 12,147-153; Cícero,
Pro Flacco 28). Mas Colossenses se dirige prioritariamente a pagão-
cristãos (cf p. ex. 1,21.27; 2,13). Tácito conta que no ano 60/61
d.C. a cidade de Laodicéia foi destruída por um terremoto (Anais
14,27,1). A proximidade geográfica de Laodicéia e Colossos torna
possível que esta última tenha também sofrido estragos. A cidade
não é mais mencionada na literatura antiga depois disso. Entretanto,
ela continuou a existir, como provam as inscrições e moedas encon-
tradas em Colossos. O terremoto de 60/61 não permite, portanto,
tirar conclusões definitivas sobre a autenticidade da carta aos Co-
lossenses ou sobre o caráter fictício da indicação dos destinatários

348
A epístola a o s C o lossenses

(a Igreja de Colossos). Seja como for, a recomendação de Cl 4,16 é


que se lesse também a carta na Igreja vizinha de Laodicéia mostra
que Colossenses visa a um público maior do que a comunidade de
Colossos (ver também, em Colossenses 4,13, a menção de outra
cidade vizinha, Heliopolis).

2.4. Data e lugar da redação


Se a carta foi escrita pelo próprio Paulo ou por um colaborador
durante a vida do apóstolo, três possibilidades se apresentam. De
fato, conforme Colossenses 4,18 (cf 1,24; 4,3), o autor se encon-
tra na prisão: trata-se do cativeiro de Paulo em Cesaréia, em Roma
ou em Efeso (a última não é mencionada nos Atos, mas pode, até
certo ponto, ser reconstruída com base em ICor 15,32; 2Cor 1,8 s.;
11,23)7 A proximidade de Colossenses com Filêmon pleiteia em fa-
vor de um cativeiro durante a estada em Efeso, entre 53 e 55. Se,
pelo contrário, a carta foi escrita por um membro da escola paulina,
depois da morte de Paulo, o lugar da redação permanece incerto;
pensa-se na Ásia Menor, mais precisamente em Efeso, lugar presu-
mível da escola paulina. A data mais provável seria, então, 70-80.
Seja como for, Colossenses foi escrita antes de Efésios, com a qual
mantém laços estreitos.

3 . F o n t e s e p r in c ip a is t r a d iç õ e s
3.1. A s relações intertextuais entre Colossenses e as epístolas
protopaulinas
O autor de Colossenses conhecia, sem dúvida, as cartas paulinas.
Prova-o a repetição, por Colossenses, do formulário epistolar das
cartas paulinas (prefácio; ação de graças; parte final). Mas que cartas
o autor de Colossenses retomou? Certamente Filêmon, pois as duas
cartas manifestam ligações muito íntimas, sobretudo no início e no
fim (Cl 1,3 s. // Fm 4 s.; Cl 4,10-14 // Fm 23 s.). As ligações entre Co-
lossenses e as outras epístolas, essencialmente Filipenses e Romanos,
são muito mais pontuais e difíceis de interpretar (ver p. ex. Cl 1,9-11
// F! 1,9-11; Cl 1,24 / / F1 2,30; Cl 2,12 s. / / Rm 6,4; Cl 3,24; 4,2 //

349
As epístolas deuteropaulinas

Rm 12,11 s.). Elas não permitem endossar com suficiente certeza a


hipótese de dependências literárias no sentido estrito9.

3.2. O hino a Cristo


O texto de Colossenses 1,15-20 reflete uma tradição cristã pré-
colossense. Devia já ser familiar à comunidade destinatária e talvez
até fizesse parte de sua liturgia. Os exegetas estão geralmente de
acordo em pensar que o autor de Colossenses modificou o hino por
meio de duas anexações. Em primeiro lugar, ao acrescentar “que é a
Igreja” no versículo 18a (genitivo explicativo τής Εκκλησίας), o autor
sublinhou sua compreensão da Igreja como corpo de Cristo. Em se-
gundo lugar, ao acrescentar “pelo sangue de sua cruz”, no versículo
20 b, ele ligou a pacificação do cosmo ao acontecimento histórico da
morte de Jesus (cfi também 1,22; 2,13 s.). A identificação de outros
elementos redacionais continua muito discutida. Deve-se notar, além
disso, que o autor de Colossenses retomou e “reescreveu” o hino na
seqüência da carta: por um lado, aplicou as afirmações do hino à
situação da comunidade destinatária, em 1,21-23; por outro, subli-
nhou de novo os fundamentos da existência crente em 2,9 ss.

3.3. Os códigos domésticos


Colossenses 3,18-4,1 reflete, igualmente, um estágio tradicional
anterior à redação de Colossenses (ver também abaixo 4.4). Do
ponto de vista do estilo, da composição e do conteúdo, o texto se
distingue claramente de seu contexto literário imediato.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4 .1. A cristologia — o hino a Cristo (Cl 1,15-20)
Já demonstramos que Colossenses, comparada com as epístolas
de Paulo, acentua a dimensão cósmica da figura de Cristo. O tex­

9 Argumentação detalhada em Angela STANDHARTINGER, Studien zur


Entstehungsgeschichte und Intention des Kolosserbríefs, Leiden, Brill, 1999,
61-89.

350
A epístola aos

to de referência é o hino a Cristo (1,15-20). Ao retomar essa tradi-


ção comunitária e ao integrá-la à sua carta, o autor de Colossenses
lhe outorgou um estatuto argumentative específico no conjunto do
escrito: o senhorio universal de Cristo constitui, de fato, arma de-
cisiva para combater a “filosofia” adversa. O solus Christus (Cristo
só) torna caduca toda pretensão dos poderes sobrenaturais sobre
o homem. A primeira estrofe do hino (vv. 15-18a) descreve Cris-
to, “imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura”, como
mediador da criação, ao passo que a segunda estrofe (vv. 18b-20)
louva Cristo como mediador da reconciliação universal. Cosmologia
e soteriologia, protologia e escatologia estão assim estreitamente li-
gadas. Existencialmente, o hino traz uma mensagem de reconforto
diante da convicção, muito difundida no mundo helênico, de que os
elementos e os poderes do cosmo se confrontam em permanente
conflito; essa convicção se alimenta da experiência angustiante de
viver em um mundo instável e frágil. O hino propõe, então, uma
espécie de contra-experiência religiosa que consiste em dizer que
o Cristo preexistente e ressuscitado garante e mantém a coerência
do cosmo. Torna possível, assim, uma nova experiência do mundo
como criação boa de Deus.

4.2. A Igreja
A metáfora eclesiológica central de Colossenses é a do "corpo”
com Cristo como “cabeça” (1,18; 2,19; c f 1,24; 3,15). É evidente
que a concepção colossense da Igreja decorre diretamente da ecle-
siologia cosmológica de Colossenses (ver o hino a Cristo, 1,15-20).
Qual é a relação entre a Igreja e o mundo? Cristo é Senhor de todo o
cosmo (1,15-20; 2,10), mas é só a Igreja que, propriamente falando,
constitui seu corpo. Pois a Igreja é esse espaço, no mundo, que re-
conhece a primazia de Cristo sobre todos os elementos do universo.
Entretanto, Igreja e mundo não são esferas completamente isoladas
uma da outra: o Evangelho deve ser proclamado “a toda criatura
debaixo do céu” (1,23); ele deve crescer e produzir fruto, como indi-
cam as metáforas sobre o crescimento (1,6.10; 2,19).
As epístolas deuteropaulinas

4.3. O batismo e a escatologia


Colossenses acentua fortemente o presente da fé. A comunidade
cristã já está salva por seu batismo e já participa do mundo celeste
(1,13 s.2l s.; 2,10-12; 3,1; ver, sobretudo, 2,12-13 comparado com
Rm 6,3-11). A tensão dialética entre o presente e o futuro, que es-
trutura de modo fundamental a teologia de Paulo, não existe mais
— ou não mais da mesma maneira. Qual é então a compreensão
do futuro ? Colossenses não defende uma compreensão exaltada do
homem. A vida nova da comunidade é uma experiência escondida‫׳‬,
ela só será inteiramente manifesta no tempo da epifania de Cris-
to (3,3-4: “De fato, estais mortos e vossa vida está escondida com
Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer, então vós
também aparecereis com ele em plena glória”). Mas a diferença em
relação às epístolas protopaulinas é clara: o futuro não vai trazer
nada de qualitativamente novo (compare-se ICor 15,12 ss. com esta
concepção). O futuro manifestará unicamente o que já existe. O fu-
turo será, assim, a epifania do presente.

4.4. A ética
Segundo Colossenses, a ética tem um valor eminentemente teo-
lógico (3,5-17). Ela é o espaço no qual a realidade da ressurreição,
que é principalmente uma realidade escondida (cf 3,1-3), torna-se,
de modo fragmentário, uma realidade que se exprime na vida coti-
diana da comunidade. Nesse sentido, o autor de Colossenses revela-
se um fiel discípulo de Paulo, fato que se verifica pelo enraizamento
da ética na cristologia e na primazia do amor.
Para descrever os deveres mútuos dos membros da casa cristã,
o autor de Colossenses utiliza uma tradição que aparece aqui pela
primeira vez no corpus paulino: os códigos domésticos (3,18-4,1; ver
em seguida Ef 5,21-6,9). Os códigos são marcados por uma tradição
helenística da época, a gestão da casa10. Essa tradição defende um
modo de vida social que, considerada em seu contexto, se carac­

10 Ver a bibliografia seletiva à p. 409, nota 3.

352
A epístola a o s C olossenses

teriza por uma visão patriarcal e um conservadorismo moderado;


ela ocupa uma posição intermediária entre a concepção patriarcal
romana clássica e as tendências emancipadoras mais recentes. Co-
lossenses retoma essa tradição e a retoca muito de leve.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A retórica antiga. O interesse pela retórica também influenciou
a exegese de Colossenses. Contribuições recentes têm utilizado as
categorias da retórica antiga para determinar as funções argumen-
tativas de uma parte importante da carta (J.-N. Aletti; M. Wol-
ter). Entretanto, os resultados dessas pesquisas não convergem. A
aplicação das categorias retóricas se mostra frutuosa para esclare-
cer, antes de tudo, a parte polêmica da carta (2,6-23), mas parece
prudente não querer submeter, de maneira rígida, o conjunto desta
ao sistema retórico greco-romano. Uma outra questão intimamen-
te ligada à investigação retórica é saber que peso argumentative se
deve atribuir à parte polêmica de Colossenses 2 e, portanto, à ques-
tão da “filosofia” colossense: a compreensão dessa parte determina
a do conjunto da carta ou é apenas uma parte, embora importante,
entre outras?
A “filosofia " de Colossos. A reconstrução da “filosofia” de Colos-
sos não cessa de despertar um vivo interesse. Mas até o presente
nenhuma proposta parece se impor. Em vez de, apressadamente
demais, pôr tal passagem de Colossenses em relação com tal siste-
ma religioso da época, conviría analisar cuidadosamente a estratégia
argumentativa da carta; paralelamente, convém indagar, de maneira
metodológica, sobre a possibilidade de circundar com mais precisão
o fenômeno religioso da “filosofia” colossense.
A escola paulina. Embora a questão do autor goze de um consenso
relativamente grande em favor do caráter deuteropaulino de Colos-
senses, persiste a tarefa de determinar a relação entre Colossenses
e as sete cartas protopaulinas, sobretudo no nível argumentative e
teológico (H. Merklein; R Muller). Colossenses constitui o primeiro
exemplo da recepção da teologia paulina; ela se situa provavelmente

353
A s epístolas deuteropaulinas

no período pós-apostólico. Uma reflexão mais aprofundada sobre o


funcionamento desse processo original de recepção permitiría, entre
outras coisas, compreender melhor o que era a escola paulina.

6. B ib l io g r a f ia
Comentários
ALETT1, Jean-Noel. Saint Paul, Epitre aux Colossiens: Introduction, traduc-
tion et commentaire. Paris, Gabalda, 1993 (EtB, nouvelle série 20).
DUNN, James D. G. The Epistles to the Colossians and to Philemon. Grand
Rapids/Carlisle, Eerdmans/Paternoster, 1996 (N1GTC).
LOHSE, Eduard. Die Briefe an die Kolosser und an Philemon. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 21977 [1. ed. 1968] (KEK 9/2); ed. ingl.:
Colossians and Philemon. Philadelphia, Fortress Press, 1971 (Herme-
neia).
SCHWE1ZER, Eduard Der Brief an die Kolosser. Zürich/Neukirchen-
Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 21980 [I. ed. 1976] (EKK 12);
ed. ingl.: The Letter to the Colossians: A Commentary. Minneapolis,
Augsburg, 1982.
WOLTER, Michael. Der Brief an die Kolosser. Der Brief an Philemon. Gü-
tersloh/Wurzburg, Güttersloher/Echter, 1993 (OTBK 12).

Leitura prioritária
BARCLAY, John M. G. Colossians and Philemon. Sheffield, Sheffield Aca-
demic Press, 1997, p. 18-96 (NewTestam ent Guides).

História da pesquisa
SCHENK, Wolfgang. Der Kolosserbrief in der neueren Forschung (1945‫־‬
1985). A N R W Berlin/New York, de Gruyter, 11.25.4 (1987) 3.327-
3.364.

Bibliografia exaustiva
Ver os comentários recentes.

354
A epístola a o s C o lossenses

Estudos particulares
ARNOLD, Clinton B. The Colossian Syncretism. The Interface between
Christianity and Folk Belief at Colossae. Tubingen, Mohr, 1995
(W U N T 2.77).
BUJARD, Walter. Stilanalytische Untersuchungen zum Kolosserbrief als
Beitrag zur Methodik von Sprachvergleichen. Gottingen, Vanden-
hoeckund Ruprecht, 1973 (StUNT 11).
DEMARIS, Richard E. The Colossian Controversy: Wisdom in Dispute at
Colossae. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1994 (JSNTS 96).
MERKLEIN, Helmut. Paulinische Theologie in der Rezeption des Kolos-
ser- und Epheserbriefes. In: KERTELGE, Karl (ed.). Paulus in den
neutestamentlichen Spátschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen
Testament. Freiburg, Herder, 1981, p. 25-69 (QD 89).
MULLER, Peter. Anfdnge derPaulusschule: Dargestellt am zweitenThessalo-
nicherbrief und am Kolosserbrief Zürich, TVZ, 1988 (AThANT 74).
WILSON, Walter T The Hope o f Glory: Education and Exhortation in the
Epistle to the Colossians. Leiden, Brill, 1997 (N TS 88 ).

355
CAPÍTULO

16
A epístola aos Efésios
Andreas Dettwiler

Desde a primeira leitura, a comparação entre Efésios e Colossen-


ses revela a intensidade de laços literários e teológicos que as aproxi-
mam. Colossenses pertence, provavelmente, à época pós-apostólica,
Efésios certamente; essas duas epístolas constituem, assim, a coluna
vertebral daquilo que chamamos de escola paulina, a saber, um grupo
de discípulos ou colaboradores de Paulo que assumem a tarefa de pre-
encher o vazio deixado pela morte do grande apóstolo. Os exegetas
têm tentado definir a ligação entre esses dois escritos da escola pauli-
na. Sua relação foi definida, por exemplo, como transição de um esbo-
ço (Colossenses) para uma realização plenamente acabada (Efésios),
ressaltando que a última seria teologicamente mais coerente e mais
sistemática do que a primeira. Seja como for, parece claro que Efésios
inspirou-se muito em sua “irmã mais velha”, embora perseguindo uma
linha teológica bem específica. Esta epístola se caracteriza sobretudo
por uma reflexão aprofundada sobre a natureza e a tarefa da Igreja
una e universal; essa reflexão teológica não tem nada comparável no
cânon neotestamentário.1

1. A p r e s e n t a ç ã o
A introdução, que abre o primeiro capítulo, compreende três ele-
mentos principais. A carta se abre com o endereço e a saudação, que

357
As epístolas deuteropaulinas

se inserem na tradição epistolar paulina; entretanto, a ausência de


menção do lugar dos destinatários nos manuscritos mais antigos é
surpreendente (ver 2.2). O endereço e a saudação são seguidos, em
1,3-14, por uma longa bênção (ver também 2Cor 1,3 ss.), que é um
hino de louvor a Deus pela graça que os destinatários e Paulo re-
ceberam no passado, graça que continua a determinar a existência
cristã no presente e no futuro; essa bênção antecipa quase todos os
conceitos teológicos que terão papel determinante na continuação
da carta. A bênção se acrescenta uma ação de graças (1,15-23) e
uma intercessão de Paulo pelos destinatários para que tenham um
conhecimento mais aprofundado de Deus e de Cristo soberano, ca-
beça da Igreja universal.
O corpo da carta (2,1-6,9) se divide entre uma parte mais dogmá-
tica (2-3) e uma parte parenética (4,1-6,9); retoma, assim, a estru-
tura geral de Romanos, Gálatas ou Colossenses.
A parte dogmática (2-3) compreende uma forte ênfase retrós-
pectiva; 2,1-10 relembra primeiro o passado, depois o presente dos
destinatários. É a atividade criadora de Deus, que por seu “grande
amor” (2,4) lhes deu a vida. A passagem sublinha dois períodos da
existência: o passado pagão é qualificado pela morte e pela alie-
nação dos poderes celestes; o dom da vida em Cristo é descrito
como uma ressurreição dentre os mortos. Em 2,11-22, o autor da
carta retoma esta antítese “outrora-mas agora”, aprofundando-a
na perspectiva da história da salvação: Cristo, por sua cruz, uni-
ficou o que estava dividido, ao destruir “o muro da separação”
(provavelmente a Lei judaica). Ele criou “um só homem novo”,
a saber, o corpo de Cristo, nova entidade que se compõe de ju-
deus e pagãos. A unidade textual seguinte (3,1-13) compreende
a anamnese de Paulo. O texto recorda a função decisiva de Paulo
no processo da revelação; Paulo é aí retratado como o servidor do
mistério da revelação, mistério que tem por conteúdo a integração
dos pagãos no corpo de Cristo (3,6); a ligação com a seqüência
precedente é, assim, bem perceptível. A parte dogmática termina
com uma intercessão, seguida de uma doxologia (3,14-21); os dois
elementos retomam, de maneira inversa, a bênção e a ação de

358
A epístola a o s Efésios

graças do início da carta (1,3-23), sublinhando assim a importância


do louvor e da oração.
A parte parenética surpreende por sua extensão e por seus laços
estreitos com a parte correspondente de Colossenses. O fundamen-
to da parênese em Efésios 4,1-16 põe toda a ênfase na unidade da
Igreja, que o autor formula no estilo da aclamação litúrgica (4,4-6):
um só corpo, um só espírito, uma só esperança, um só Senhor, um
só batismo, um só Deus e Pai de todos. Os diferentes ministérios
mencionados em seguida (v. II: apóstolos, profetas, evangelistas
pastores e docentes) permitem que a Igreja realize aquilo a que está
destinada: a unidade na fé. A esse fundamento se junta uma parêne-
se dirigida à comunidade dos batizados. Ela compreende pelo menos
duas partes principais: 4,17-24 é uma exortação geral, que enfatiza
o necessário distanciamento da vida paga e esclarece, assim, a rela-
ção da Igreja com o mundo ambiente; a parte seguinte (4,25-5,20)
resiste a uma estruturação mais pertinente; as exortações se tor-
nam mais concretas, o estilo mais associativo e redundante. A parte
conclusiva (5,21-6,9), ao contrário, constitui uma unidade textual
bem delimitada: trata-se de códigos domésticos, que descrevem três
tipos de relações dos membros da família cristã; o texto paralelo é
Colossenses 3,18-4,1.
O fim da carta compreende, antes de tudo, a exortação final
(6,10-20), concentrada na necessidade de combater “os espíritos do
mal que estão nos céus”, invocando especialmente a imagem da ar-
madura de Deus. A intercessão dos destinatários da carta em favor
de “todos os santos, por mim também” (6,18 s.) faz, evidentemente,
eco à intercessão de Paulo em favor dos destinatários em 1,15-23 e
3,14-19. A carta termina com uma breve nota sobre o envio de Tí-
quico, colaborador de Paulo, à qual se seguem a saudação e a bênção
final. Efésios não contém lista de saudações.

359
As epístolas deuteropaulinas

Plano da epístola aos Eféstos


Introdução (1,1-23)
1,1-2 Endereço e saudação
1,3-14 Bênção: hino de louvor a Deus por sua obra de
salvação
1,15-23 Ação de graças: intercessão por um conhecimen-
to mais aprofundado de Deus e de Cristo sobera-
no, cabeça da Igreja

Corpo da epístola (2,1-6,9): a Igreja una e universal


Parte dogmática: um mesmo corpo (2,1-3,21)
2,1-10 Lembrança do passado pagão e do presente dos
destinatários
2,11-22 Instrução sobre a Igreja: todos reunidos em Cris-
to para aceder a Deus
3,1-13 Anamnese de Paulo (auto-recomendação do
autor): o apóstolo como servidor do mistério da
revelação, a saber, a integração dos pagãos no
“mesmo corpo”
3,14-21 Intercessão de Paulo pelos destinatários e do-
xologia
Parte ética: viver nesse corpo (4,1—6,9)
4,1-16 O fundamento: a Igreja, corpo de Cristo, como
lugar da existência cristã
A unidade da Igreja (4,1-6): os diferentes serviços
no seio da Igreja (4,7-16)
4,17-5,20 A vida cristã em um contexto não-cristão
Do velho homem ao homem novo (4,17-24); di-
versas exortações (4,25-5,20)
5,21-6,9 Os códigos domésticos:
• mulheres — homens (análogo à Igreja/cor
po — Cristo/cabeça)
• filhos — pais
• escravos — senhores

Conclusão (6,10-24) : exortações e saudações finais


6,10-20 Exortação final
6 ,21-22 Envio de Tíquico
6,23-24 Saudação final; bênção

360
A epístola a o s Efésios

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2 .1. A questão do autor
A questão do autor de Efésios se coloca desde o fim do século
XVIII. Deve-se notar que Erasmo de Rotterdam (1469-1536) já ti-
nha observado a originalidade estilística desta epístola em relação
às outras cartas paulinas. Hoje, seu caráter deuteropaulino é quase
unanimemente aceito1, independentemente da identidade confes-
sional dos pesquisadores. Os argumentos em favor do caráter deu-
teropaulino de Efésios são de dois tipos diferentes.

Os argumentos literários
Trata-se, de um lado, de observações sobre o vocabulário e o
estilo; de outro, de considerações sobre a relação específica entre
Colossenses e Efésios.
• Vocabulário. Efésios contém 35 hapaxlegomena (palavras
que se encontram uma vez só no NT), 41 termos que não
se encontram no corpus paulino e 25 outros atestados uni-
camente por Colossenses e Efésios. Um bom número de
expressões que não se encontram nas cartas protopaulinas
têm papel preponderante na teologia da carta (Ef 1,4: “a
fundação do mundo”; 1,9: “o mistério da sua vontade” etc.).
Essas observações lexicográficas não são, todavia, decisivas
se se lembra que Filipenses, 1 Coríntios e Romanos pos-
suem, respectivamente, quarenta, 84 e 115 hapaxlegomena.
• Estilo. Muito mais reveladoras são as observações sobre
o estilo. Efésios prefere frases muito longas (ler, p. ex., Ef
1,3-14; 1,15-23; 2,1-7!). A linguagem apresenta inúmeras
redundâncias, um acúmulo de sinônimos, de verbos com
múltiplos complementos, de genitivos sucessivos etc. Esse
estilo “litúrgico” é ainda mais desenvolvido do que em Co-

1 Duas exceções importantes: Heinrich SCHLIER, Der Brief an die Epheser,


Düsseldorf Patmos, 1971; Markus BARTH, Ephesians, New York, Dou-
bleday, 1974.

361
A s epístolas deuteropaullnas

lossenses. As observações sobre o estilo de Colossenses2


são ainda mais válidas no caso presente; elas confirmam o
caráter específico de Efésios se comparamos esta epístola
com a correspondência paulina.
• Dependência literária de Colossenses. As relações literárias e
teológicas de Efésios com Colossenses são muito estreitas.
Os pesquisadores, em sua grande maioria, estão de acordo
quanto ao fato de que só uma hipótese de dependência li-
terária, postulando a prioridade de Colossenses em relação
a Efésios, permite explicar de maneira satisfatória os dados
textuais. Em primeiro lugar, observam-se contatos estrutu-
rais nas linhas gerais das duas cartas. E verdade que, para a
primeira parte de Efésios (1-3), a constatação deve ser ma-
tizada: o autor de Efésios retoma, aqui e ali, expressões de
Colossenses 1— sobretudo do hino a Cristo de Colossenses,
1,15-20 — , mas, no resto, desenvolve seu pensamento de
maneira relativamente independente; somente a anamnese
de Paulo em Efésios 3,1-13 repete, em boa parte, a de Co-
lossenses 1,24-29. A parte parenética de Efésios, em com-
pensação, denota laços muito mais estreitos com a de Co-
lossenses; Efésios 4,17-6,20 pode ser considerada uma nova
edição remanejada de Colossenses 3,5-4,6. Em segundo
lugar, notam-se contatos estilísticos e temáticos entre Efésios
e Colossenses (Efésios repete cerca de um terço do vocabu-
lário de Colossenses). Em terceiro lugar, observam-se conta-
tos terminológicos, a despeito de sua diferença no pensamento
(p. ex. o termo “mistério” em Cl 1,26 s. / / Ef 3,3 ss.).

Os argumentos teológicos
A teologia da epístola revela, por um lado, diferenças significa-
tivas em relação às cartas protopaulinas e, por outro, semelhanças
com a de Colossenses.

2 Ver acima p. 344.

362
A epístola a o s Efésios

A figura deuteropaulina do apóstolo Paulo. Em relação a Co-


lossenses, a importância da tradição e a função constitutiva
do apóstolo são ainda mais acentuadas. O texto-chave é a
anamnese de Paulo em 3,1-13, que reflete sobre sua pessoa e
sua teologia na perspectiva da história da salvação. Com “os
santos apóstolos e profetas” (2,20; 3,5), o apóstolo se torna o
portador por excelência da revelação do “mistério de Cristo”
(3,4), isto é, a Igreja una, constituída ao mesmo tempo de ju-
deus e pagãos. Em Efésios não aparece mais a contestação do
estatuto do apostolado paulino (p. ex. ICor 9; 2Cor 10-13),
nem os graves conflitos entre judeu-cristãos e pagão-cristãos
refletidos nas cartas protopaulinas. Outras passagens refor-
çam a idéia de tradição: segundo Efésios 2,19-22, apóstolos
e profetas constituem o fundamento da Igreja da qual Cristo
é a pedra mestra — uma afirmação dificilmente concebível
para Paulo (segundo ICor 3,11, Jesus Cristo é o fundamento
exclusivo da Igreja). A lista de serviços, em Ef 4,11, reflete um
processo de seleção e acentuação específicas em compara-
ção com as listas paulinas dos carismas (cf ICor 12,8-11.28-
31; Rm 12,6-8); apenas os carismas de pregação e de direção
são repetidos em Efésios, o que denota uma estrutura ecle-
sial diferente da estrutura do tempo de Paulo.
A acentuação cosmológica da cristologia, já constatada em
Colossenses, é ainda mais manifesta em Efésios. A autori-
dade cósmica de Cristo é sublinhada.
A eclesiologia, o tema teológico dominante de Efésios, é
particularmente desenvolvida, em comparação com as epís-
tolas protopaulinas.
A soteriologia. A doutrina da justificação pela fé em Efé-
sios (2,5.8 s.) sofre modificações em comparação com as
epístolas protopaulinas, como se vê na compreensão dife-
rente da Lei (ver Ef 2,15, única menção do termo νόμος).
Além disso, a justificação do homem pecador pela fé já
faz parte, aqui, da tradição paulina e não aparece mais em
contexto polêmico.

363
As epístolas deuteropaulinas

• A escatologia é nitidamente fato presente; toda a ênfase re-


cai na experiência da plenitude da salvação no presente.
• A compreensão do casamento (Ef 5,22 ss.) se distingue de
maneira significativa da de Paulo (ver abaixo 5.4).
Do conjunto dessas observações pode-se concluir que a epístola
aos Efésios não foi escrita nem por Paulo, nem por um secretário
durante a vida de Paulo. O autor é desconhecido. Ele deve ser distin-
guido do autor de Colossenses, sobretudo por causa das diferenças
teológicas entre esses dois escritos. O problema de saber se era ju-
deu-cristão ou pagão-cristão não pode ser resolvido com suficiente
clareza; a familiaridade do autor com o pensamento judaico, entre-
tanto, leva a pensar em um cristão oriundo do judaísmo helenístico.
Vários indícios apontam nessa direção: a passagem de Efésios 2,15-
18; a linguagem da oração, presente nos gêneros literários como a
bênção ou a doxologia em Efésios 1,3-14 e 3,20 s.; as tradições exe-
géticas judaicas em Efésios 4,8 e 6,14-17. A intensidade com a qual o
autor retoma e repensa a teologia paulina (ver abaixo 5) torna muito
provável a hipótese de se tratar de um membro da escola paulina,
situada na Ásia Menor.

2.2. A questão do gênero literário; os destinatários


Efésios é uma carta, pois compreende uma estrutura epistolar
bem definida (endereço e saudação, bênção e ação de graças; corpo
da carta; parte final). Contudo, Efésios não é um escrito de circuns-
tância em sentido estrito. Ela não atesta uma relação específica en-
tre Paulo e uma ou várias comunidades cristãs locais: praticamente
nenhuma informação concreta nos é dada sobre os destinatários da
carta, exceto o fato de serem pagão-cristãos (2,11); as informações
epistolares, no fim, estão reduzidas ao mínimo; não há lista de sau-
dações. Além disso, é difícil detectar problemas específicos que ti-
vessem requerido a intervenção do apóstolo.
A dificuldade de situar o meio histórico de produção é agrava-
da pelo fato de o endereço πρός’Εφεσίους (“aos efésios”) ter sido
acrescentado posteriormente; ele não figura nos manuscritos mais

364
A epístola a o s Efésios

antigos. Somos obrigados, portanto, a extrair as informações sobre


os destinatários somente do texto do escrito, fazendo abstração do
título. Ora, a menção dos destinatários — o adscriptio — ev Εφέσω,
“a Efeso”, em Efésios 1,1, falta nos manuscritos mais confiáveis e
mais antigos (P46, x*,B*). Além do mais, se omitimos o adscriptio
êv Έφέσω, o texto residual deixa de ser realmente compreensível
e levanta um problema de sintaxe: τοίς άγίοις τοΐς οΰσιν‫ ׳‬και
πιστοις 6ν Χριστώ Ίησου. De qualquer forma, Efésios constitui
um caso único no endereço das cartas neotestamentárias. Uma ex-
plicação desse fato perturbador podería ser a seguinte: tratava-se
de uma carta circular, e uma lacuna permitia escrever o nome dos
destinatários. Cada Igreja recebia seu exemplar, sendo o nome do
lugar acrescentado pelo portador da carta. Outros pesquisadores
objetam que a carta simplesmente não continha indicação de des-
tinatários, e consideram que o problema filológico não é um obstá-
culo insuperável3. Seja como for, o caráter geral desse escrito leva a
supor que se trata de uma carta aberta, destinada não a uma única
Igreja, mas a um grupo mais vasto de Igrejas, provavelmente situado
na Ásia Menor.
Mas por que alguns manuscritos atestam precisamente a indica-
ção “a Efeso” e não o nome de uma outra Igreja da época? A essa
pergunta podemos dar duas respostas. De um lado, o colaborador
Tíquico, mencionado em Efésios 6,21, é originário da Asia (At 20,4);
2 Timóteo 4,12 situa-o em Efeso. De outro lado, o fato de Paulo
não ter jamais escrito uma carta a essa comunidade importante do
cristianismo primitivo, embora tenha residido e trabalhado ali por
muito tempo, pode ter parecido surpreendente; não é, portanto, de
estranhar que a tradição tenha escolhido esse nome para inseri-lo no
cânon das epístolas paulinas.
E possível precisar o caráter da carta? Tem sido freqüentemente
proposto definir Efésios como uma espécie de tratado teológico (E

3 Ver a discussão em Rudolf SHNACKENBURG, Der Brief an die Epheser,


Zürich, Bensiger/Neukirchener, 1982, 37-39, que propõe a seguinte tra-
dução: “Paulo apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus, aos santos e
fiéis de longe em Jesus Cristo”.

365
As epístolas deuteropaulinas

Mussner). Outros pesquisadores falaram de discurso de sabedoria (H.


Schlier fala de meditação da sabedoria do mistério de Cristo), de homi-
lia (J. Gnilka, E. Best) ou de carta de oração (U. Luz). Mas se reconhe-
ce ser difícil definir o gênero literário da carta. Pode-se falar de tratado
teológico, mas sob a condição de sublinhar a importância da parênese
(ver a longa parte parenética de Ef 4-6) e da oração nesse escrito.

2.3. Circunstância e finalidade do escrito


Vimos que Efésios não pode ser considerada uma carta de cir-
cunstância no sentido estrito. Será possível, contudo, definir a pro-
blemática histórica que suscitou a redação dessa carta e explicaria
sua finalidade? O número considerável de soluções propostas mos-
tra o embaraço em que se encontram os exegetas a respeito do as-
sunto e confirma, indiretamente, o caráter geral da carta. Tem-se
frequentemente insistido na passagem de Efésios 2,11-22, que fala
da superação do antagonismo entre judeus e pagãos. K. M. Fisher
discernia aí um conflito entre os judeu-cristãos e os pagão-cristãos.
Tornando-se cada vez mais numerosos, nas comunidades cristãs da
Ásia Menor, os pagão-cristãos teriam tido a tendência a desprezar
os grupos judeu-cristãos. Uma das principais finalidades de Efésios
consistiría, assim, em contrapor-se a uma crescente emancipação da
tradição judeu-cristã e, mais concretamente, em obrigar os pagão-
cristãos a aceitar os judeu-cristãos como parceiros iguais. Segundo
E Mussner, é possível que no pano de fundo da carta estivesse o
antagonismo entre judeus e pagãos, de novo desencadeado por oca-
sião da Guerra Judaica de 66-70. A finalidade da carta seria, então,
ultrapassar esse antagonismo, insistindo na reconciliação dos dois
grupos em Cristo. Uma avaliação crítica das proposições que foca-
lizam a relação “judeus/pagãos” ou “judeu-cristãos/pagão-cristãos”
leva a notar que, por um lado, a passagem-chave — Efésios 2,11-22
— se presta a diferentes interpretações; de outro lado, na continua-
ção da carta, e particularmente na longa passagem exortativa (4-6),
essa questão não é mais explicitamente abordada, embora a idéia da
unidade da Igreja seja fortemente acentuada. Decorre daí que a pro-

366
A epístola a o s Efésios

blemática desenvolvida em Efésios 2 é, com certeza, um elemento


importante da carta, sem constituir, entretanto, a razão principal da
redação de Efésios.
Malgrado a impossibilidade de detectar uma razão histórica pre-
cisa para a redação de Efésios, pode-se, avançar que a carta reflete
dois problemas maiores com os quais se defrontavam as comunida-
des cristãs no fim do primeiro século. Primeiro problema: a questão
da unidade da Igreja. A morte do apóstolo Paulo, figura de autorida-
de e laço unificador por excelência das Igrejas paulinas, tinha gera-
do um sentimento de insegurança; falou-se até de crise da direção
eclesial. Doravante órfãs, as Igreja paulinas corriam o perigo de se
fragmentar em pequenos círculos religiosos. A existência de gru-
pos rivais no interior das comunidades paulinas já durante a vida do
apóstolo (cf ICor 1,10-17; 3,1-4) nos dá uma idéia da gravidade dos
problemas eclesiais a que estavam expostas essas jovens comuni-
dades no período pós-apostólico. Segundo problema: a insistência
no contraste da vida cristã com a vida pagã atravessa, como linha
mestra, a longa parênese de Efésios. A carta acentua o necessário
distanciamento das comunidades cristãs destinatárias em relação ao
mundo ambiente que lhes era familiar e tenta, assim, prevenir as
comunidades paulinas contra uma aculturação levada longe demais
ou mal compreendida.

2.4. Data e lugar de composição


Efésios foi escrita depois de Colossenses. As cartas de Inácio de
Antioquia (por volta de 110) parecem refletir um conhecimento da
epístola. A datação entre 80 e 100 é, portanto, plausível. O lugar da
redação permanece desconhecido; pensa-se, de modo geral, na Ásia
Menor, mais precisamente em Éfeso, se o autor faz parte da escola
paulina.

3. A s FONTES E AS PRINCIPAIS TRADIÇÕES


O conhecimento detalhado de Colossenses é muito provável, dada
a intensidade dos laços literários entre os dois escritos.

367
As epístolas deuteropaulinas

As relações intertextuais entre Efésios e as epístolas protopaulinas


são consideráveis4. A hipótese de uma fonte comum em que Paulo e
o autor de Efésios teriam se abeberado, independentemente um do
outro, não é convincente: o autor de Efésios não só era familiarizado
com a tradição paulina oral, mas conhecia várias cartas do apóstolo.
Parece até que o autor conhecia todas as epístolas protopaulinas,
com exceção, provavelmente, de Filipenses.
Efésios demonstra igualmente laços bastante fortes com / Pedro.
Todavia, a hipótese de uma dependência literária não se impõe. Os
temas comuns retomados por Efésios e 1 Pedro remontam, certa-
mente, a tradições litúrgicas e parenéticas bem conhecidas do cris-
tianismo primitivo.
Parece, além disso, que Efésios tenha se inspirado nas tradições de
hinos. As passagens frequentemente citadas na literatura exegética
são: Efésios 1,3-14; 1,20-23; 2,4-7; 2,14-18; 4,5 s.; 4,8; 5,2; 5,14. Em
4,8 e 5,14 (provavelmente um hino batismal), o autor menciona ex-
plicitamente que recorre a material já existente. Em compensação,
por razões metodológicas evidentes, a demilitação e a reconstrução
exata de elementos tradicionais nas outras passagens mencionadas
permanecem muito mais discutidas.

4 . O PANO DE FUNDO RELIGIOSO


Saber que sistemas de pensamento influenciaram Efésios é uma
questão muito complexa. Ao se tentar sistematizar e simplificar um
pouco as diferentes proposições da literatura exegética, parece que
quatro correntes importantes teriam podido influenciar o pensa-
mento do autor.
• A gnose. O modelo clássico, difundido na escola bultmania-
na, é o da gnose (H. Schlier, E. Kásemann; mais recente-
mente, A. Lindemann, D. M. Fischer e R Pokorny). Termos
como “plenitude”, “homem novo”, “muro de separação”

4 Discussão da problemática em Michael GESE, Das Vermáchtnis desApos-


tels. Die Rezeption der paulinischen Theologie in Epheserbrief Tübingen.
Mohr, 1997, 54-85 (com uma boa classificação das passagens em 76-78).

368
A epístola a o s Efésios

(2,14) têm papel importante nos mitos gnósticos; são fre-


qüentemente evocados para mostrar os laços de Efésios
com a gnose. Outras representações, tais como a ascensão
dos crentes ressuscitados, com Cristo, ao céu (2,6), a opo-
sição luz/trevas (5,8.14 etc.) ou o combate contra os po-
deres sobrenaturais do mal (6,10-17), parecem igualmente
reforçar a hipótese da proximidade de Efésios com a corren-
te gnóstica. O problema metodológico que se coloca aqui
é que a referência a este ou àquele termo não é suficiente
para demonstrar parentesco de uma estrutura de pensa-
mento entre os sistemas gnósticos e a teologia de Efésios. A
maioria dos termos e das representações mencionadas en-
contra-se, com efeito, em outras correntes de pensamento
(tradições do cristianismo primitivo, corrente apocalíptica,
Qumran, judaísmo helenístico). Além disso, a datação dos
escritos gnósticos (nenhuma atestação segura antes do sé-
culo II d.C.) constitui um obstáculo nada desprezível.
O judaísmo helenístico. Os escritos de Fílon de Alexandria
apresentam paralelos impressionantes com a representa-
ção do corpo cósmico que Efésios, por seu lado, aplica a
Cristo. O filósofo judeu fala, por exemplo, do logos como
cabeça do corpo cósmico, ou descreve o cosmo como o
“homem perfeito” (τέλ6ιος άνθρωπος: Ef 4,13; De Migra-
tione Abrahami 220); a mesma constatação vale para a re-
presentação da plenitude.
O judaísmo de Qumran. E. Mussner e outros chamaram a
atenção para as semelhanças de concepções de Efésios com
os escritos de Qumran. E bem atestada neles a metáfora
eclesiológica do Templo, bem como as noções de “santos”,
de “mistério” ou a forte acentuação na dimensão da predes-
tinação e da eleição (cf Ef 1,3-14).
A influência das correntes filosóficas da época helenístico.
Para elucidar o pano de fundo da cristologia do senhorio (ver
abaixo 5.1) e, antes de tudo, a dualidade metafórica “cabe-
ça/corpo”, recorreu-se à filosofia política da época greco-

369
As epístolas deuteropaulinas

romana. Alguns pesquisadores discernem também influên-


cias da filosofia popular estóica.
Esse breve resumo permite três conclusões. Primeira: deve-se
evitar adotar um modelo que pretenda dar uma explicação exausti-
va e, portanto, exclusiva do pano de fundo religioso; um modelo que
pressuponha a influência de diversas correntes de pensamento pare-
ce mais adequado para explicar a complexidade de Efésios. Segunda:
a hipótese gnóstica, por muito tempo a favorita, atualmente perdeu
força. Terceira: a tradição judaica, mais precisamente o judaísmo
helenístico (Fílon), e Qumran foram, provavelmente, as maiores
influências do sistema de pensamento de Efésios. Não nos esque-
çamos, entretanto, que o autor de Efésios se inspirou, em grande
parte, em Colossenses e, em grau menor, nas cartas protopaulinas.

5 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
5 . 1. A cristologia cósmica
Efésios é marcada por uma visão espacial do mando. Deus, o criador
de toda realidade visível e invisível, e Jesus Cristo reinam sobre todas
as coisas desde a esfera celeste. Os éons, os anjos e os poderes demo-
níacos dominam uma esfera intermediária, ao passo que o mundo dos
seres humanos e dos mortos constitui a região inferior. No contexto
dessa concepção do cosmo, Efésios desenvolve uma cristologia do se-
nhorio. Ressuscitado, Cristo está sentado à direita de Deus (1,20; cf
4,8.10); Deus "pôs tudo sob seus pés” (1,22) e encheu o cosmo com
sua plenitude de vida (1,23). Entretanto, essa cristologia de senhorio
é um tanto contrabalançada ou, antes, aprofundada pela referência à
cruz. Conforme 2,13.16, a cruz de Cristo é compreendida como um
ato de reconciliação de judeus e pagãos com Deus em um só corpo, a
Igreja. Note-se que a concepção cristológica de Efésios é claramente
influenciada por Colossenses (ver, p. ex., Cl 1,15-20 / / Ef 1,20-23).

5.2. A Igreja
O tema teológico central de Efésios é a Igreja. Quando o autor
fala da Igreja, trata-se sempre da Igreja universal e não da Igreja lo­

370
A epístola a o s Efésios

cal. Essa mudança de perspectiva já fora preparada por Colossenses.


A unidade da Igreja é fortemente acentuada (4,116‫) ־‬. As principais
metáforas eclesiológicas utilizadas pela epístola são as seguintes: a
Igreja universal é compreendida como a “construção” ou o “templo
santo” (2,20-22), como o “novo ser humano” ou “o homem perfei-
to” (2,14-16), como a “esposa” de Cristo (5,22-23), como a “pleni-
tude” de Cristo (1,23 etc.) e, sobretudo, como o “corpo” cósmico de
Cristo, corpo do qual ele é a “cabeça” (1,22-23; 4,15-16). A Igreja é,
portanto, percebida como um “ser em Cristo” e não, prioritariamen-
te, como uma entidade empírica, institucional ou sociologicamente
identificável. A Igreja universal não é a soma de todas as comunida-
des cristãs locais, mas uma entidade à qual elas estão subordinadas.
A questão suscitada por essa impressionante concepção eclesio-
lógica é se a Igreja se torna, assim, a mediadora entre o mundo ter-
restre e o céu, se ela é provida de uma função soteriológica. Baseada
no fundamento dos apóstolos e dos profetas, ela seria o espaço ex-
clusivo no qual a salvação é oferecida ao mundo. E preciso, entretan-
to, estar atento para não opor exageradamente a eclesiologia de Efé-
sios ao cristocentrismo das epístolas protopaulinas: Efésios defende
igualmente a primazia cristológica em relação à eclesiologia.
Um elemento novo, importante na eclesiologia de Efésios, com-
parada com a de Colossenses, salta aos olhos. Cristo reconciliou os
dois grupos da humanidade, judeus e pagãos, e fez deles “um só ho-
mem novo”: a Igreja (2,11-22). Este texto é capital para a compreensão
da relação entre Israel e a Igreja em Efésios. Duas compreensões são
possíveis aqui5. Conforme uma primeira interpretação, os pagãos
são integrados em Israel por Cristo, o Messias de Israel (2,12), e par-
ticipam, doravante, das promessas e da esperança de Israel. Nessa
leitura, a Igreja é a nova manifestação de Israel ou constitui, com
Israel, o atual povo de Deus (M. Barth, E Mussner). Uma outra in-
terpretação acentua o fato de que é na Igreja que os pagãos, outrora

5 Ver Ulrich LUZ, Der Brief an die Epheser, in ID., Jurgen BECKER, Die
Briefe an die Calater, Epheser und Kolosser, Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1998, 137. Síntese equilibrada da problemática em Ernest BEST
Ephesians, Edinburgh, Clark, 1998, 267-269.

371
As epístolas deuteropaulinas

“sem esperança e sem Deus” (2,12), são reconciliados com Deus.


Segundo esta segunda leitura, a Igreja seria uma nova entidade em
relação ao paganismo e a Israel, como parece sugerir a metáfora do
“homem novo” (2,15).

5.3. A escatologia
A concepção escatológica de Efésios está intimamente ligada à
visão de mundo do autor e à sua cristologia eclesial. O escrito põe
toda a ênfase no presente: “Cristo nos ressuscitou e nos fez sentar
nos céus” (2,5-6; cf Cl 2,12-13; a diferença é clara em relação a Rm
6,5.8). Não há mais reserva escatológica no sentido paulino (tensão
dialética temporal entre o “já” e o “ainda não”). O futuro não tra-
rá nada de novo, mas apenas revelará o que já é realidade. Efésios
compartilha, portanto, o conceito escatológico da epístola aos Co-
lossenses. O que resta a fazer no presente é que a Igreja histórica
venha a ser o que ela já é, teologicamente, em Cristo. As expressões
“cumprir”, “crescer”, “construir” (cf 4,12 s. etc.) sublinham esse as-
pecto dinâmico.

5.4. A ética
A longa parte parenética da epístola se caracteriza pela ênfase
na idéia da unidade da Igreja e pelo necessário distanciamento em
relação ao mundo ambiente pagão. O comportamento ético, conse-
qüência da nova identidade religiosa dos cristãos, é considerado uma
batalha contra os poderes sobrenaturais “deste mundo de trevas”
(6,10-17); a impressão de uma imagem triunfalista ou exaltada da
Igreja é, assim, atenuada.
O autor retomou e recompôs integralmente os códigos da vida
doméstica (Ef 5,21-6,9) de Colossenses 3,18-4,l6. A nova ênfase
do texto de Efésios reside na importância e na interpretação nitida-
mente teológica do casamento (Ef 5,22-33). Por que tal insistência

6 A · ·
Sobre esse gênero literário, que aparece pela primeira vez na tradição deu-
teropaulina, ver acima p. 354.

372
A epístola a o s Efésios

no casamento? Segundo U. Luz, o autor queria fazer frente à des-


qualificação ascética do casamento, atitude que devia estar difundi-
da nos círculos judeu-cristãos e pré-gnósticos da Ásia Menor (cf 1
Tm 4,3) e noutros lugares (cf Mt 19,12)7. Mas deve-se notar que a
concepção do casamento é, aqui, sensivelmente diferente daquela
pregada por Paulo em 1 Coríntios 7. Enquanto Paulo tinha uma ati-
tude mais pragmática em relação ao casamento (ICor 7,9: “é melhor
casar-se do que ficar ardendo”) e preferia pessoalmente permanecer
celibatário, o autor de Efésios concede ao casamento um estatuto
teológico eminente: a relação conjugal é análoga à relação Cristo-
Igreja e se compreende a partir dela.

6 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Contexto histórico. Continua sempre a tentativa de elucidar e
definir a situação histórica na qual Efésios se exprimiu. A pesquisa
atual tende a não mais ver na relação “judeus/pagãos” ou “judeu-
cristãos/pagão-cristãos” o elemento essencial para compreender o
conjunto da carta. Entretanto, a passagem de Efésios 2,11 s. conti-
nua a despertar interesse; E. Faust8, por exemplo, tentou esclarecer
os problemas sociológicos e teológicos de Efésios 2 à luz da ideologia
romana do culto imperial da época.
Um processo de recepção. A pesquisa recente focalizou a aten-
ção em Efésios como testemunho de um processo de recepção (H.
Merklein, M. Gese). Por um lado, visto que a carta retoma e reela-
bora Colossenses e é, ela mesma, uma primeira recepção da teolo-
gia paulina, Efésios deve ser considerada uma recepção em segundo
grau, isto é, uma recepção da recepção de Paulo. Por outro lado,
independentemente de Colossenses, Efésios se serviu dos topoi das
cartas protopaulinas (Ef 2,8-10: a justificação pela fé; 2,12: o status

7 Cf. LUZ, Der Brief an die Epheser, 171.


8 Eberhard FAUST, Pax Christi et Pax Caesaris. Religionsgeschichtliche,
traditionsgschichteliche und sozialgeschichtliche Studien zum Epheser-
brief, Fribourg/Gottingen, Universitátsverlag/Vandenhoeck und Rup-
recht, 1993.

373
As epístolas deuteropaulinas

preponderante de Israel etc.). Como descrever mais precisamente


a articulação desses dois modos de releituras? De modo mais ge-
ral, como se deve interpretar o fenômeno de descontextualização,
característico da maneira pela qual o autor de Efésios trabalhou? E
justicável ver em Efésios uma espécie de “suma” da teologia paulina
para o tempo pós-paulino (M. Gese)?

7 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BEST Ernest. Ephesians. Edinburgh, Clark, 1998 (ICC).
BOUTTIER, Michel. L Epitre de saint Paul aux Ephésiens. Genève, Labor
et Fides, 1991 (CNT 9b).
LUZ, Ulrich. Der Brief an die Epheser. In: ID., BECKER, Jürgen. Die Briefe
an die Calater, Epheser und Kolosser. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1998, p. 105-180 (NTD 8/1).
MUSSNER, Franz. Der Brief an die Epheser. Gütersloh/Würzburg, Güter-
sloher/Echter, 1982 (OTBK 10).
SCHL1ER, Heinrich. Der Brief an die Epheser. Düsseldorf Patmos, 1971
[L ed. 1957],
SCHNACKENBURG, Rudolf Der Brief an die Ephese. Zürich, Benziger/
Neukirchener, 1982 (EKK 10); ed. ingl.: The Epistle to the Ephesians.
Edinburgh, Clark, 1991.

Leitura prioritária
FURN1SCH, Victor Paul. Ephesians. ABD 2 (1992) 535-542.
MUSSNER, Franz. Epheserbrief TRE 9 (!982) 743-753.

História da pesquisa e bibliografia exaustiva


BEST, Ernest. Ephesians. Edinburgh, Clark, 1998 (ICC) (veras diferentes
bibliografias).
MERKEL, Helmut. Der Epheserbrief in der neueren exegetischen Diskus-
sion. ANRW, Berlin/New York, de Gruyter, 11.25.4 (1987) 3.156-
3.246.

374
A epístola aos Efésios

Estudos particulares
FISCHER, Karl Martin. Tendenz undAbsicht des Epheserbriefes. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1973 (FRLANT 111).
GESE, Michael. Das Vermãchtnis des Aposteis. Die Rezeption der pauli-
nischen Theologie im Epheserbrief Tubingen, Mohr, 1997 (W UN T
2.99).
LINCOLN, Andrew T The Theology o f Ephesians. In: ID., WEDDER-
BURN, Alexander J. M. The Theology o f the Later Pauline Letters.
Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 73-166 (NewTes-
tament Theology).
MERKLE1N, Helmut. Paulinische Theologie in der Rezeption des Kolos-
ser- und Epheserbriefes. In: KERTELGE, Karl (ed.). Paulus in den
neutestamentlichen Spàtschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen
"Testament. Freiburg, Herder, 1981, p. 25-69 (QD 89).
REYN1ER, Chantal. Evangile et Mystère. Les enjeux théologiques de Ι’έρΐ-
treaux Éphésiens. Paris, Cerf 1992 (LeDiv !49).

375
CAPÍTULO

17
A segunda epístola aos
T essalonicenses
Andreas Dettwiler

O título define este escrito como a segunda carta de Paulo dirigida


à comunidade de lessalônica. Ora, nesse procedimento, aparente-
mente banal, concentram-se quase todos os problemas de interpre-
tação dessa pequena epístola. O título, com efeito, foi juntado pos-
teriormente ao escrito e não faz parte, portanto, do texto original.
Trata-se realmente, então, de uma segunda carta de Paulo dirigida à
comunidade de Tessalônica? E, de modo mais geral, como compre-
ender os laços muito estreitos que unem a “primeira” e a “segunda”
carta de Paulo aos Tessalonicenses?1

1. A p r e s e n t a ç ã o
/. 1. Conteúdo e gênero literário
No nível do conteúdo propriamente dito, é a questão da vinda
(parusia) de Cristo no fim dos tempos que domina o escrito. Em con-
cordância com outros textos neotestamentários, a passagem de 2
Tessalonicenses 2,1-12, que utiliza quase inteiramente conceitos e
imagens do movimento apocalíptico da época, exerceu uma fortíssi-
ma influência na elaboração de uma escatologia cristã. Pense-se, por
exemplo, no conceito de “o Homem da impiedade” (logo identifica-
do com a figura do Anticristo), ou no misterioso “poder retardador”.
Vista nessa perspectiva, mas somente nessa perspectiva, 2 Tessalo-
As epístolas deuteropaulinas

nicenses deve ser considerada um dos textos que mais influenciaram


“a presença no mundo” de inúmeras gerações de cristãos1.
E o gênero literário de 2 Tessalonicenses? A pesquisa hesita neste
ponto. Duvidou-se, às vezes, do caráter epistolar de 2 Tessalonicen-
ses. Foi dito que não se tratava de uma verdadeira carta, mas de um
escrito polêmico sob forma epistolar. Entretanto, dois argumentos
contrariam essa suspeita: de um lado, a estrutura epistolar de 2 Tes-
salonicenses insere-se perfeitamente na tradição epistolar de Paulo;
de outro, a passagem central (2,1-12) demonstra que a carta fala de
uma situação histórica clara.

1.2. Estrutura
O plano e o conteúdo de 2 Tessalonicenses são fáceis de perce-
ber. Após o endereço (1,1-2), que menciona, como autor, Paulo com
seus colaboradores Silvano e Timóteo, vem uma ação de graças de
pronunciado teor escatológico (1,3-12; c f w . 5-10: dupla retribuição
por ocasião do julgamento escatológico de Deus).
O corpo da carta cobre o essencial dos capítulos 2 e 3 (2,1-3,13).
Está dividido em três partes. A primeira parte (2,1-12) constitui o
centro temático e permite descobrir as circunstâncias históricas que
levaram à redação da carta. A abertura dessa parte (2, ls.) menciona,
primeiramente, o tema central a ser tratado — a vinda (παρουσία)
de Cristo e “nossa reunião junto dele” — , para em seguida advertir a
comunidade destinatária do efeito desestabilizador de informações
de origem duvidosa. A posição adversa se caracteriza por uma esca-
tologia já presente (2,2: “o dia do Senhor chegou”). Essa pretensão
é combatida pela descrição de uma série de acontecimentos escato-
lógicos que devem acontecer antes da vinda de Cristo (2,3-12). Os
destinatários, recorrendo à sua própria experiência de vida, podem
facilmente se convencer de que esses acontecimentos ainda não
se deram; a posição adversa é, assim, refutada. A segunda parte do
corpo da carta dá impressão de heterogeneidade. Compreende uma1

1 C f Wolfgang TRILLING, Der Zweite Brief an die Tessalonicher, Neu kir-


chen-Vluyn, Neuekirchener, 1980, 31.

378
A seg u n d a epístola a o s T essalonicenses

segunda ação de graças (!) seguida de recomendações e de uma ora-


ção (2,13-3,5). A terceira parte (3,6-13) tem por centro de gravidade
uma exortação a respeito de “todo irmão que leva uma vida desor-
denada e contrária à tradição” (v. 6); insiste, sobretudo, no papel
exemplar de Paulo, modelo a ser seguido (vv. 7-10).
A carta termina com um pequeno epílogo focalizado na recepção
da carta (3,14-16), seguido da saudação final (3,17-18). A menção da
saudação autografa como sinal de autenticação surpreende, porque
nas ocorrências paralelas (ICor 16,21; G1 6,11; Fm 19) essa função
não é ainda perceptível.
O esboço da estrutura e do conteúdo da carta suscita a seguinte
interrogação: deve-se considerar que 2 Tessalonicenses contém um
só tema ou vários? Para responder, convém examinar as considera-
ções desenvolvidas pelo autor sobre os “desordenados” do capítulo 3:
elas podem, ou devem, ser postas em relação direta com a temática
escatológica do capítulo 2? Veremos que a questão deve permanecer
em aberto (ver abaixo 2.2). Não há, entretanto, dúvida nenhuma de
que a temática dominante da carta é a questão escatológica.

Plano d a segunda ep ísto la aos Tessalonicenses

Introdução (1,1-12)
1.1-2 Endereço e saudação
1,3-12 Ação de graças (1,5-10): instrução sobre o julga-
mento escatológico

Corpo da carta (2,1-3,13): instrução escatológica, seguida de outras


exortações
2.1-12 Instrução escatológica: a parusia do Senhor após
uma série de acontecimentos prévios
2,13-3,5 Segunda ação de graças (2,13-14); exortação e in-
vocação do Senhor (2,15-17); intercessão mútua
(3,1-5)
3,6-13 Instrução apostólica a propósito dos "desordena-
dos” (3,6-12); exortação geral (3,13)

Conclusão (3,14-18)
3,14-16 A recepção da carta
3,17-18 Saudação autografa e bênção

379
As epístolas deuteropaulinas

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. A questão do autor
A questão do autor histórico de 2 Tessalonicenses é discutida des-
de o início do século XIX. O estudo de William Wrede (1903), que
pela primeira vez analisou de maneira conseqüente a relação entre 1
Tessalonicenses e 2 Tessalonicenses, e, depois, os trabalhos de Wolf-
gang Trilling deram à tese do deuteropaulinismo da carta uma feição
decididamente científica. A idéia segundo a qual 2 Tessalonicenses
não teria sido redigida nem por Paulo, nem por um secretário duran-
te a vida de Paulo, mas sim por uma pessoa desconhecida, no período
pós-paulino, é hoje quase unanimemente aceita na exegese alemã.
A exegese anglófona continua mais prudente, embora importantes
contribuições recentes defendam igualmente o caráter deuteropau-
lino de 2 Tessalonicenses. As contribuições da exegese francófona
são mais variadas. Como situar o debate? Três registros de argumen-
tação sustentam, a nosso ver, a hipótese deuteropaulina.

a) A relação literária entre I Tessalonicenses e 2 Tessalonicenses


As relações literárias entre as duas cartas dirigidas aos Tessaloni-
censes são de uma densidade sem igual no corpus paulino. Elas com-
preendem, ao mesmo tempo, paralelos na estrutura do conjunto e
fortes semelhanças em suas formulações. O esquema abaixo apre-
senta algumas das semelhanças no plano da estrutura global e do
vocabulário.

1Tessalonicenses 2 Tessalonicenses
Endereço:
1,1: Paulo, Silvano e Timóteo à Igreja 1,1-2: Paulo, Silvano e Timóteo à igreja
dos Tessalonicenses que está em Deus dos Tessalonicenses que está em Deus
Pai e no Senhor Jesus Cristo. A vós, nosso Pai e no Senhor Jesus Cristo. A
graça e paz. vós graça e paz da parte de Deus o Pai
e do Senhor Jesus Cristo.

380
A segunda epístola a o s T essalonicenses

1”Tessalonicenses 2 Tessalonicenses
Primeira ação de graças:
1,2-3: Damos continuamente graças 1,3-4: Devemos dar continuamente
a Deus por vós todos...; sem cessar, graças a Deus por vós, irmãos, e é bem
(3) conservamos a lembrança de vos- justo, pois vossa fé faz grandes pro-
sa fé, de vosso amor sacrificado e de gressos e o amor que tendes uns para
vossa perseverante esperança (και τής com os outros cresce em cada um de
υπομονής τής Ιλπίδος) ... todos vós, (4) a ponto de serdes nosso
orgulho entre as Igrejas de Deus, por
causa da vossa perseverança (ímep τής
1,6: ... acolhendo a palavra em meio a υπομονής υμών) e da vossa fé em todas
muitastribulações (èv Θλίψ6ι πολλή) ... as perseguições e provações (4v πάσιν
... θλίψίοιν) que suportais...
[1,2: ... continuamente por todos vós 1,11: Eis por que oramos continuamen-
quando fazemos menção a vós em te por vós, a fim de que nosso Deus
nossas orações... vos encontre dignos da vocação (τή
1,3: ... de a obra da fé (του 6ργου τής ςκλήσςως) a que vos chamou; que pelo
1τιστ€ως) seu poder vos conceda realizar todo
1,4: ... vossa eleição (την Ικλογή o bem desejado e a obra da fé (epyov
νομών)...] πίστ6ως), em poder.
Segunda ação de graças:
2,13: Eis por que, da nossa parte, da- 2,13: Quanto a nós, devemos dar con-
mos graças a Deus sem cessar... tinuamente graças a Deus...
Transição para a parênese:
3,11.13: Que o mesmo Deus, nosso Pai, 2,16.17: Que 0 próprio Senhor Jesus
e nosso Senhor Jesus dirijam nosso ca- Cristo e Deus, nosso Pai... (17) conso-
minho para vós lem vossos corações e os confirmem...
... Que ele fortaleça assim vossos co-
rações...

381
As epístolas deuteropaulinas

1Tessaionicenses 2 Tessaionicenses
Oração, exortação (os “desordenados ”):
4.1: De resto, irmãos, eis nossos pedi- 3, l : De resto, irmãos, orai por nós, a
dos e nossas exortações no Senhor fim de que...
Jesus: vós aprendestes de nós como 3,6: ... nós vos ordenamos, irmãos,
proceder... que guardeis distância de todo irmão
5,14: A isso vos exortamos, irmãos: que leva uma vida desordenada e con-
corrigí aqueles que vivem de maneira traria à tradição que recebestes de
desordenada (1ταρακαλο0 μ6 ν ôt υμάς, nós (παραγγύλλομίν ôè ύμΐν, αδελφοί,
άδ^λφίΑ, νουθοτβΐτε τους άτακτους...) ... στέλλίσθαι ύμας από παντός άδΤ
φοΟ άτάκτως ττ6ριπατοΰντος . .. ) — cf
também w . 7 ell
Conclusão:
5,23: Que 0 Deus da paz, ele mesmo... 3,16: Que o Senhor da paz, ele mesmo...
(αυτός ôè ό Θ6ός τής «ίρήνης ...) (αυτός ôè ό κύριος τής 6ίρήνης ...)
5,28: Que a graça de nosso Senhor Je- 3,18: Que a graça de nosso Senhor Je-
sus Cristo esteja convosco. sus Cristo esteja com todos vós.

O esquema mostra as fortes semelhanças entre as duas cartas no


nível da estrutura epistolar (endereço, ação de graças, conclusão).
A presença de uma segunda ação de graças ( lT s 2 ,1 3 //2 T s 2 ,1 3 )é
igualmente surpreendente. Com exceção do tratamento específico
reservado ao tema da escatologia, dominante em 2 Tessaionicenses
(cf 1,5-10; 2,1-12), cada passagem comporta paralelos de conteú-
do ou de forma com 1 Tessaionicenses. Note-se que semelhanças
impressionantes se encontram igualmente nas passagens diferente-
mente situadas na estrutura global das duas cartas (p. ex. 1Ts 2,9 //
2 Ts 3,8b). Como explicar esse fenômeno literário? Poder-se-ia ar-
gumentar que Paulo, logo depois de ter escrito 1Tessaionicenses, se
lembrasse ainda desta ou daquela fórmula. Poder-se-ia também in-
vocar o acaso. Mas essas hipóteses só explicam elementos pontuais,
sem oferecer solução satisfatória para o conjunto dos parentescos
literários... pois o verdadeiro acaso, que consiste em pressupor que
todos os acasos convergem para a produção de 2 Tessaionicenses,
não existe (William Wrede)! Somente a hipótese da dependên-
cia literária oferece uma explicação satisfatória. Mas se há depen­

382
A segunda e pístola a o s T essalonicenses

dência literária uma das duas cartas dirigidas aos Tessalonicenses


deve ser pseudônima, pois é impensável que Paulo tenha copiado
sua própria carta de maneira tão “mecânica" (temos como prova sua
múltipla correspondência para a comunidade de Corinto). Como há
pouca dúvida de que 1Tessalonicenses seja a primeira carta de Paulo
dirigida aos Tessalonicenses, então a ordem canônica 1-2 Tessalo-
nicenses é historicamente correta. 2 Tessalonicenses é, por conse-
guinte, uma carta deuteropaulina.

b) Os desvios teológicos
As concepções teológicas em 1 Tessalonicenses (4,13-18; 5,1-11)
e 2 Tessalonicenses (2,1-12) divergem nitidamente: I Tessalonicen-
ses caracteriza-se pela espera iminente da vinda de Cristo, ao passo
que 2 Tessalonicenses se opõe à opinião segundo a qual “o dia do Se-
nhor já chegou” (2,2); 2 Tessalonicenses reflete o problema do atra-
so da parusia, servindo-se, entre outras, da figura de um antagonista
de Cristo (2,3 ss.: “o Homem da impiedade”) — ora, essa figura é
desconhecida de Paulo; além disso, 2 Tessalonicenses 1,5-10 e 2,3-
12 acentuam fortemente a dimensão da dupla retribuição no âmago
do julgamento escatológico; 1Tessalonicenses 4,13-18, ao contrário,
não evoca absolutamente essa dimensão crítica, e focaliza exclusi-
vamente a sorte dos membros — vivos ou já mortos — da comuni-
dade cristã. A diferença essencial entre os conceitos escatológicos
de 1 e 2 Tessalonicenses pode ser resumida assim: a escatologia pau-
lina se caracteriza pela tensão dialética entre o “já” e o “ainda não”,
ao passo que a estrutura da argumentação de 2 Tessalonicenses é
“ainda não”/ “mas no futuro”2.

c) Os desvios de vocabulário e de estilo


Embora 2 Tessalonicenses utilize 1 Tessalonicenses, seu estilo se
caracteriza por certos traços específicos (W. Trilling). Percebe-se

2 Cf. Peter MÜLLER, Anfange de Paulusschule: Dargestellt am zweitenTes-


salonicherbrief und am Kolosserbrief Zürich, TVZ, 1988, 66.

383
A s epístolas deuteropaulinas

um deslizamento semântico significativo no uso de termos centrais


tais como “revelação" (2Ts 1,7: άποκάλυψις) ou “vocação” (2Ts
1,11: κλήσις) e na ligação entre parusia e epifania (2Ts 2,8: παρουσία
- 6πι,φοα€1‫׳‬α).
Os defensores da autenticidade de 2 Tessalonicenses propuseram
como alternativa dois tipos de explicação. Primeira: sugeriu-se uma
rápida mudança da situação em Tessalônica; a hipótese da autenti-
cidade requer, com efeito, diminuir para alguns meses apenas a dis-
tância entre 2 Tessalonicenses e 1Tessalonicenses, o que é admitido
pelos defensores dessa hipótese (p. ex. R. Jewett). Note-se que,
em princípio, uma mudança histórica assim tão abrupta é possível,
mas será provável? Essa hipótese tende a subestimar a diferença de
fundo entre as concepções escatológicas das duas cartas; além dis-
so, o problema da imitação quase mecânica de 1Tessalonicenses por
2 Tessalonicenses permanece intacto. Segunda: pretendeu-se dife-
renciar 1 e 2 Tessalonicenses do ponto de vista dos destinatários (A.
von Harnack). Mas essa hipótese cria mais problemas do que resol-
ve; 2 Tessalonicenses não permite introduzir tais distinções no nível
dos destinatários da carta.
Concluímos. Os três registros de argumentação sustentam, in-
dependentemente um do outro, a hipótese deuteropaulina. O argu-
mento determinante é o da relação literária entre 1e 2 Tessalonicen-
ses, em combinação com os desvios teológicos. O critério estilístico,
não decisivo por si só, corrobora os resultados da argumentação
precedente. Uma vez que se admite a hipótese deuteropaulina,
podemos constatar que o autor de 2 Tessalonicenses utilizou três
procedimentos redacionais para compor sua carta: a repetição ou
imitação, a eliminação e a adjunção. Primeiro, 2 Tessalonicenses re-
pete, quase integralmente, um bom número de frases e expressões
de 1 Tessalonicenses; mais significativo ainda, a epístola imita, de
maneira quase mecânica, a estrutura global de 1 Tessalonicenses.
Segundo, o autor de 2 Tessalonicenses eliminou todas as passagens
de 1 Tessalonicenses que refletem a relação pessoal entre Paulo e
sua comunidade: ver 1 Tessalonicenses 2,1-3,10 (com exceção de
2,9) e 5, 12-22 (com exceção de 5,14). Terceiro, as únicas passagens

384
A seg u n d a epístola a o s T essalonicenses

novas em 2 Tessalonicenses são as relacionadas com a questão es-


catológica (1,5-10 e 2,1-12).

2.2. A s circunstâncias e a finalidade do escrito


Em três passagens, o autor de 2 Tessalonicenses revela como
ele vê a situação da comunidade destinatária: perseguição (1,4),
incertezas quanto ao momento da vinda de Cristo (2,2), presença
dos “desordenados” (3,6-11). As indicações sobre as perseguições
permanecem muito vagas (ver, como comparação, lTs 2,14-16).
O problema ético dos “desordenados” é igualmente difícil de si-
tuar. Resta a questão escatológica de 2 Tessalonicenses 2, que
permite concretizar as circunstâncias históricas e a finalidade do
escrito.
O anúncio profético da presença do “dia do Senhor”, isto é, a
parusia do Cristo celeste, provocou preocupação e incerteza entre
os destinatários. Os representantes dessa escatologia presencial
baseiam-se em revelações espirituais, mas também em uma pala-
vra (provavelmente da pregação) e numa carta (fictícia ou real) de
Paulo. 2 Tessalonicenses 2,1-2, traduzida literalmente: "... nós vos
pedimos... não vos deixeis abalar, fora da razão, nem ficar alarma-
dos, nem por um espírito, nem por uma palavra, nem por uma carta,
como [vinda] de nós (ôt’ έτηστολής ώς δι’ ήμώ^‫)׳‬, como [se]: ‘o dia
do Senhor chegou’ (kνέστηκαν ή ήμέρα τοϋ κυρίου)”. A finalidade
de 2 Tessalonicenses é acalmar essas agitações mediante o desen-
volvimento de um contramodelo escatológico, uma espécie de “ho-
rário apocalíptico” que refuta a posição adversa (2,3-12). O fato de
os adversários recorrerem à tradição paulina, mais precisamente a
uma carta de Paulo (2Ts 2,2), e o de o autor de 2 Tessalonicenses,
por seu lado, recorrer também à tradição de Paulo3 mostram que
nos defrontamos, aqui, com um conflito de interpretação no seio da
tradição paulina.

3 Ver a escolha literária da pseudepigrafia, que se serve da autoridade in-


contestada de Paulo; o procedimento de imitação de 1 Tessalonicenses;
igualmente a referência à tradição epistolar em 2 Tessalonicenses 2,15.

385
A s epístolas deuteropaulinas

Retomemos o problema ético dos “desordenados”. Têm -se


frequentemente visto uma ligação entre a problemática escatoló-
gica e a advertência contra os que vivem “uma vida desordenada”
(3,6-12). Esses membros da comunidade destinatária não seriam,
então, simplesmente “preguiçosos”, mas crentes a tal ponto en-
tusiasmados com a iminência dos acontecimentos escatológicos
que teriam mudado radicalmente seu modo de vida. Essa inter-
pretação de 2 Tessalonicenses seria possível, mas choca-se con-
tra o fato de o próprio texto não estabelecer explicitamente essa
ligação; não há nenhum traço perceptível de uma “desordem ca-
rismática”.

2.3. O autor e seus destinatários


Caso se admita a hipótese deuteropaulina (ver acima 2.1), o autor
e seus destinatários nos são desconhecidos. Saber se o autor era um
membro da escola paulina depende, em parte, do que se compreen-
de por esse termo (ver abaixo 5). De qualquer forma, o autor de 2
Tessalonicenses se distingue consideravelmente, pelas escolhas lite-
rárias e teológicas, das outras epístolas deuteropaulinas, Colossen-
ses e Efésios. A identificação histórica da comunidade destinatária
deve permanecer em aberto. Não é necessário pensar que se tratava
da comunidade de Tessalônica; podería ser qualquer comunidade ou
região familiarizada com a tradição paulina, e que conhecesse ou se
lembrasse ainda de 1Tessalonicenses.

2.4. Lugar e data de redação


O lugar da redação de 2 Tessalonicenses permanece desconhe-
cido para nós. O problema principal em 2 Tessalonicenses, a saber,
a efervescência escatológica e a consciência da demora da parusia,
leva a situar a data da redação por volta do fim do século I, entre 80
e 100 (problemática análoga em 2 Pd 3,1-13). Mas não se deve ex-
cluir uma datação mais antiga — entre 70 e 80. O terminus adquem
é, em todo caso, o fim do primeiro século, porque 2 Tessalonicenses
foi integrada na coleção das cartas paulinas.

386
A seg u n d a e pístola ao s T essalonicenses

3. A s FONTES
O autor de 2 Tessalonicenses conheceu 1 Tessalonicenses ver-
batim. Em compensação, é muito difícil saber se ele utilizou outras
cartas paulinas. Parece que utilizou 1 Coríntios (cf ICor 16,21 / / 2Ts
3,17; ICor 9,4 // 2Ts 3,9). 2 Tessalonicenses 3,17 pressupõe o co-
nhecimento de diversas cartas de Paulo, talvez já de uma primeira
coleção. Se ele conhecia outras cartas, é de surpreender que não te-
nha se servido delas para sustentar sua argumentação escatológica.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
A intenção de 2 Tessalonicenses concentra-se inteiramente na
vontade de reavaliar o tempo presente. A ênfase principal recai na
questão escatológica.

Ordem provável dos acontecimentos apocalípticos segundo 2


Tessalonicenses 2,3-12
1) Aparecimento da apostasia (3b) e atividade do ‘homem da
impiedade’; o ‘mistério da impiedade já está em ação’ (7a),
mas se exerce de maneira oculta pois algo ou alguém ainda o
retém (6a, 7b: poder retardador: TO κατέχον/ό κατέχων)
2) Revelação pública do ‘ímpio’ (8a; idêntico a 'o homem da
impiedade’), acompanhada de sinais miraculosos, porém
enganadores (9-10)
3) Revelação do ‘Senhor (o Cristo) celeste e destruição do ‘ímpio’
(8b, c)
4) Condenação escatológica dos ímpios (12; cf 1,8)

Em 2,1-12, as imagens e a terminologia provêm da apocalíptica


judaica (ver os termos “revelar”, “apostasia”, “o Homem da impie-
dade” ou o “Filho da perdição etc.4). Não é necessário, nem possí-
vel, ver na figura do poder retardador — o ponto de partida dessa
tradição é eventualmente Habacuc 2,3 — um determinado perso-
nagem ou determinado acontecimento histórico da época. Mas a
função argumentativa e a convicção teológica subjacente são claras:

4 No que concerne às ligações com a tradição apocalíptica, ver o comentário


de TRILLING, DerZweite Brief an die Tessalonicher.

387
A s epístolas deuteropaulinas

por trás desse poder enigmático encontra-se Deus, que determina


o tempo por sua atividade e se mostra, assim, Senhor da história e
de seu fim.
A ênfase da passagem recai no “antes” (2,3). O autor de 2 Tes-
salonicenses quer criar um espaço para o momento presente que
tenha uma qualidade sui generis. Por um lado, o tempo presente não
pertence aos “últimos tempos”, mas é claramente distinto deles. Por
outro, o tempo presente não é, de alguma forma, um tempo vazio;
ele está sujeito ao agir poderoso do “mistério da impiedade” (2,7).
O presente da fé é, portanto, qualificado não como o tempo da rea-
lização, mas como o tempo da espera e da decisão, ou ainda como
o tempo da perseverança; carrega, portanto, intrinsecamente, uma
distinta ênfase ética.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Abordagens retóricas. Algumas contribuições recentes utilizaram
os instrumentos da retórica para chegar a uma estruturação mais
convincente da carta (R. Jewett, G. S. Holland, F W. Hughes). As
análises convergem em alguns pontos. De modo geral, elas confir-
mam e refinam as proposições clássicas. As abordagens retóricas são
interessantes na medida em que põem mais claramente em relevo
a coerência e a estratégia argumentativa do conjunto de 2 Têssalo-
nicenses.
Intenção da carta. A questão das circunstâncias exatas que
resultaram na redação de 2 Tessalonicenses, e a questão de sua
intenção central não foram ainda completamente resolvidas. A
pergunta que se faz é a seguinte: 2 Tessalonicenses queria somen-
te opor-se a uma falsa interpretação da instrução escatológica
de 1 Tessalonicenses 4,3-18 (W. Trilling)? Ou 2 Tessalonicenses
tem a intenção de refutar diretamente 1Tessalonicenses? Não se
trataria, então, para o autor, não somente de aprofundar o en-
sinamento escatológico de 1 Tessalonicenses mas de corrigir, de
maneira substancial, o Paulo histórico pelo Paulo fictício de 2 Tes-
salonicenses? N este caso, 2 Tessalonicenses seria uma forma de

388
A segunda epístola a o s T essalonicenses

“contracontrafação”5, oposta a 1 Tessalonicenses tomada como


uma falsificação do pensamento de Paulo. A tese é concebível,
mas é preciso admitir que, ao querer substituir 1 Tessalonicenses
pela única “verdadeira” carta aos Tessalonicenses (2 Tessalonicen-
ses), o autor se veria privado da legitimação apostólica conferida
pela autenticidade de 1Tessalonicenses.
A escola paulina. A pertença de 2 Tessalonicenses a uma escola
paulina é discutida. W. Trilling, observando que 2 Tessalonicenses
não contém sinais de um desenvolvimento e de uma transformação
inovadora e criadora da teologia paulina, contesta essa pertença6.
Se quisermos manter o conceito de escola paulina, será preciso fa-
lar de diferentes “classes” no seio da escola. R Muller, embora não
abandone o conceito de escola, acentua a diversidade e a flexibilida-
de no desenvolvimento da tradição paulina.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
LEGASSE, Simon. Les Epítres de Paul aux Thessaloniciens. Paris, Cerf
1999 (LeDiv. commentaires 7).
MARXSEN, Willi. Der zweite Thessalonicherbrief Zürich, TVZ, 1982
(ZBK.NT 11/2).
TRILLING, Wolfgang. Der zweite Brief an die Thessalonicher. Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener, 1980 (ΕΚΚ 14).
WANAMAKER, Charles A. The Epistles to the Thessalonians. Grand Ra-
pids, Eerdmans, 1990 (NIGTC).

5 Tese antiga relançada por Andreas LINDEMANN, Zum Abfassungszwe-


ck des zweiten Thessalonicherbriefes, ZN W 68 (1977) 35-47; retomada
e aprofundada pelo comentário de Willi MARXSEN, Der zweite Thessa-
lonicherbrief, Zurich, TVZ, 1982, 80-105. Peter MÜLLER, Anfange de
Paulusschule..., 319, propõe uma terceira solução, quando caracteriza 2
Tessalonicenses como uma espécie de “segunda edição melhorada” de 1
Tessalonicenses.
6 C f TRILLING, Der zweite Brief an die Thessalonicher, 27, 162.

389
As epístolas deuteropaulinas

Leitura prioritária
TRILLING, Wolfgang. Der zweite Briefan die Thessalonicher. Neukirchen-
Vluyn, Neukirchener, 1980, p. 21-32 (EKK 14).

História da pesquisa
TRILLING, Wolfgang. Die beiden Briefe des Aposteis Paulus an dieThes-
salonicher. Eine Forschungsübersicht. ANRW, Berlin, de Gruyter,
11.25.4(1987) 3.365-3.403.

Bibliografia exaustiva
WEIMA, Jeffrey A. D., PORTER, Stanley E. An Annotated Bibliography
o f l & 2 Thessalonians. Leiden, Brill, 1998 (NTTS 26).

Estudos particulares
COLLINS, Raymond E (ed.). The Thessalonian Correspondence. Leuven,
Leuven University Press, 1990, p. 373-515 (BEThL 87).
HOLLAND, Glenn S. The Tradition that You Receivedfrom Us: 2 Thessalo-
nians in the Pauline Tradition. Tubingen, Mohr, 1988 (HUTh 24).
HUGHES, Frank W. Early Christian Rhetoric and 2 Thessalonians. Shef-
field, Sheffield Academic Press, 1989 (JSNT.SS 30).
JEWETT, Robert. The Thessalonian Correspondence: Pauline Rhetoric and
Millenarian Piety. Philadelphia, Fortress Press, 1986 (Foundations
and Facets).
MULLER, Peter. Anfange der Paulusschule: Dargestellt am zweiten Thes-
salonicherbrief und am Kolosserbrief Zurich, TVZ, 1988 (AThANT
74).
TRILLING, Wolfgang, Untersuchungen zum zweiten Thessalonicherbrief.
Leipzig, St. Benno/Verlag, 1972 (EThSt27).

390
Às epístolas pastorais
CAPÍTULO

18
Às epístolas pastorais
(1 e l Timóteo; Tito)
Yann Redalié

1. TRÊS CARTAS — UM CORPUS

1.1. Um discurso indireto


Embora endereçadas a indivíduos, as duas epístolas a Timóteo e
a epístola a Tito contêm, sobretudo, instruções para um responsável
por uma comunidade: as qualidades necessárias, como organizar, os
desvios a evitar. Essa preocupação eclesial, assinalada desde o fim
do século II no cânon de Muratori, valeu-lhes, no início de século
XVIII, a qualificação de “epístolas pastorais”, que as designa, ainda
hoje, como um conjunto.
Não só pelo conteúdo e pela composição literária estão as pasto-
rais ligadas entre si, mas também por seu “discurso indireto”. Timó-
teo e Tito são exortados a exortar, convidados a ensinar, a recuperar
quem se desviou. Paulo intervém em suas comunidades não direta-
mente, mas por intermédio de seus dois colaboradores convidados
a representar, tanto por seu ensinamento como por seu comporta-
mento, um modelo de vida coerente com a mensagem do apóstolo
para as comunidades pelas quais eles se tornaram responsáveis. As
instruções têm um caráter geral e duradouro.
A questão do autor dessas epístolas tornou-se, desde o início do
século XIX, determinante para a interpretação de seu conteúdo e de
sua intenção. A maioria dos comentadores modernos considera-as

393
A s epístolas pastorais

escritas não por Paulo, mas por um de seus discípulos, entre o fim do
século I e o início do século II de nossa era. Antes de retomar essa
questão mais detalhadamente (ver abaixo 2), apresentaremos pri-
meiro cada uma das três epístolas tal como são propostas ao leitor.

1.2. 1 Timóteo
Partindo para a Macedonia, Paulo saiu de Efeso, onde deixou Ti-
móteo com o encargo de dirigir a Igreja e lutar contra os que ensinam
uma outra doutrina (1,3). As instruções contidas na carta deveríam
permitir a Timóteo enfrentar a tarefa, mesmo no caso de Paulo pro-
longar sua ausência (3,15:4,13).

Plano d a p rim eira ep ísto la a Tim óteo

1,1-2 Saudação

O mandato de Timóteo (preâmbulo) (1,3-20)


Lutar contra a “outra doutrina” (1,8 ss., a Lei)
(1,3-10); a experiência inaugural de Paulo (1,11-
17); o mandato de Timóteo (1,18-20)
Instruções para a conduta da comunidade (2,1-3,16)
Exortação à oração universal, motivação sote-
riológica (2,1-7); orações dos homens e com-
portamento das mulheres na assembléia cultuai
(2,8-15); critérios para candidatar-se aos minis-
térios (3,1-13); finalidade da carta: saber “como
proceder na casa de Deus” (3,14-15); hino sobrea
manifestação de Cristo (3,16).
Timóteo como líder (4,1-5,2)
Refutar os ensinamentos deformados (4,1-11);
tornar-se modelo para os crentes (4,12-16); si-
tuar-se diante dos diversos grupos de idade da
comunidade (5,1-2)
Instruções relativas aos grupos que compõem a comunidade (5,3-6,2)
As viúvas (5,3-16); os anciãos (5,17-22); os escra-
vos (6,1-2)
Instruções finais (6,3-21)
Crítica da “outra doutrina” (6,3-10); a tarefa do
homem de Deus (6,11-16); exortação aos ricos
___________________ (6,17-19); advertência final (6,20-21)__________

394
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)

No que concerne à forma epistolar, note-se que a ação de graças


(1,12-17) não se segue à saudação (1,1-2), mas é precedida pela for-
mulação do mandato de Timóteo contra os falsos doutores (1,3-11).
Além disso, ela não trata da fé do destinatário, mas da experiência
inaugural do próprio Paulo e sua significação para o conjunto dos
crentes. Por outro lado, uma última instrução substitui a saudação
final (6,20 ss.).
As sequências marcadas pela polêmica (1,3-20; 4,1-16; 6,3-16)
se alternam com instruções relativas à organização da comunidade
(2,1-3,16; 5,3-6,2). Nas primeiras, a denúncia virulenta dos falsos
doutores (1,3-10; 4,1-5; 6,3-10) precede uma exortação, em contras-
te, a Timóteo; este deve se tornar, pelo exercício de sua responsa-
bilidade e de seu ensino, a resposta decisiva às ameaças de desvio
(1,3.18-20; 4,6-16; 6,11-14). As segundas distribuem suas instruções
conforme os grupos da comunidade (epíscopos, diáconos, homens,
mulheres, viúvas, anciãos, escravos, ricos). Enfim, essas admoesta-
ções recebem sua motivação teológica de duas maneiras: por fórmu-
Ias tradicionais (credo, catequese, hino: 1,15; 2,5 s.; 3,16; 6,14 ss.) ou
por uma lembrança da figura fundadora de Paulo, a quem foi confiado
■o Evangelho da iniciativa salvífica de Deus (lTm 1,11; 2,7; 3,14 s.).

1.3. 2 Timóteo
Segundo 2 Timóteo, Paulo está na prisão em Roma (1,8.16 s.) e
seu fim está próximo (4,6-8). A exceção de Lucas (4,11) e de One-
síforo (1,16 s.), todos os seus companheiros o abandonaram (1,15).
Foi sozinho que ele já apresentou sua primeira defesa (4,16). Paulo,
então, convida Timóteo, que se supõe encontrar-se ainda em Éfeso,
a vir ter com ele (4,9.21) junto com Marcos (4,11).

395
As epístolas pastorais

Plano d a segunda ep ísto la a Tim óteo

1,1-2 Saudação

Preâmbulo: Tim óteo, o discípulo (1,3-18)


Ação de graças (1,3-5); sofrer pelo evangelho,
como Paulo (1,6-14); prisioneiro em Roma, aban-
donado por todos (com exceção de Onesíforo)
(1,15-18)

Exortações a T im óteo (2,1-4,8)


Evangelizar malgrado os sofrimentos (2,1-13);
comportar-se como homem de experiência (2,14-
26); desviar-se dos corrompidos dos últimos
tempos (3,1-9); fundamentar-se na experiência
partilhada com Paulo e na educação por meio
das Sagradas Escrituras (3,10-17); proclamar a
Palavra (4,1-5); testamento de Paulo (4,6-8)

Ultimas recom endações e notícias pessoais (4,9-18)


Situação do apóstolo, solicitação de serviço, ad-
vertência (4,9-15); notícia do processo e expres-
são da confiança em Deus (4,16-18)
4,19-22 Saudações finais.

De tom mais pessoal (1,3-5; 2,1-3; 3,10-17; 4,1-2.6-8.9-22), 2


Timóteo apresenta todas as características de uma carta. A ação
de graças motivada pela fé do destinatário e de sua família (1,3-5)
segue-se regularmente à saudação inicial (1,1-2). O preâmbulo con-
tinua com a exortação a Timóteo, que apresenta certos aspectos
de auto-recomendação no lugar certo, no início da carta. Em con-
clusão, após alguns traços testamentários em 4,6-8, as informa-
ções pessoais (4,9-18) precedem, conforme as regras epistolares, a
saudação final.
E mais difícil encontrar uma acentuação para o corpo da carta.
2 Timóteo não contém instruções para os grupos da comunidade.
Encontram-se, de novo, a alternância de denúncias contra os falsos
doutores (2,14.16-18,26; 3,1-9) e exortações a Timóteo para se tor-
nar o modelo oposto a eles (1,6-8; 2,1-7.15.22-25; 3,10-4,5). A mo-
tivação teológica se exprime segundo as duas formas já indicadas:
enunciados tradicionais (1,9-10; 2,8-13) e a figura de Paulo como

396
A s epístolas pastorais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)

fundamento e modelo para o responsável pela comunidade e para o


crente (1,11 ss.; 2,8b.9; 3,11b; 4,6-8). 2 Timóteo desenvolve, a este
respeito, o motivo do sofrimento de Paulo (1,8.12.16:2,3.8-13:3,10-
12:4,6.9-10.14-18).

1.4. Tito
Plano da epístola a T ito

1,1-4 Saudação
1,5-9 A tarefa de Tito: organizar a Igreja de Creta, es-
colher os anciãos

Exortações (1,10-2,15)
Contra os que ensinam falsas doutrinas (1,10-16);
exigências para os grupos da comunidade (ho-
mens e mulheres segundo sua idade, escravos)
(2,1-10); motivação soteriológica (2,11-14); a ta -
refadeTito (2,15).

Exortações (3,1-11)
Em relação às autoridades civis (3,1-2); motiva-
ção soteriológica (3,3-7); a tarefa de Tito (3,8);
contra o “herético” (3,9-11)
3,12-15 Recomendações e saudações finais

Foi em Creta que Paulo deixou Tito com a tarefa de lá completar


a organização da Igreja (1,5). De Nicópolis (em Epiro?), de onde es-
creve, Paulo pede a Tito que venha a ter com ele, quando Artemas
ouTíquico o tiverem substituído (3,12).
Do ponto de vista epistolar, ressalta-se a ampla saudação, que
se torna um verdadeiro enunciado teológico (1,1-4), e a ausência de
ação de graças.
O corpo da carta se organiza em duas sequências centrais de exor-
tações, de extensão desigual e próximas quanto aos temas: os ad-
versários, a comunidade, a motivação soteriológica, a tarefa de Tito.
Nota-se, então, um parentesco com 1Timóteo, tanto na situação de
comunicação como no conteúdo, embora a exortação direta a Tito seja
reduzida (2,7.15: 3,8). Enfim, dos três enunciados soteriológicos (1,1-4;
2,11-4; 3,3-7), só o primeiro é posto em relação explícita com Paulo.

397
As epístolas pastorais

1.5. Tradição manuscrita e ordem das cartas


Hesita-se quanto à interpretação a dar à ausência das pastorais
em P46 (Chester Beaty, c. 200) e no Vaticanus (B, século IV); trata-
se de um argumento em favor de uma redação tardia ou de aciden-
tes (falta de lugar ou páginas perdidas no fim do manuscrito)? Do
mesmo modo, a ausência das pastorais no cânon de Marcião pode
ser interpretada de diversas maneiras: conhecidas e recusadas por
Marcião ou ainda não disponíveis. P32 (século 111) contém Tito 1,11-
15:2,3-8.

A ordem canônica é mencionada no códice Claromontanus (D, séculos III


e IV), enquanto o cânon de Muratori e o Ambrosiater indicam primeiro Tito,
depois 1 e 2 Timóteo. Muitos seguem essa sequência antiga. 2 Timóteo é ge-
ralmente considerada a última: discurso de despedida de Paulo ao fim de sua
existência (2Tm 1,8.16 s.; 2,9; 4,6-8). Outros pensam que 1Timóteo 1,3-20,
que remonta até a biografia pré-cristã de Paulo, situa-se melhor como intro-
dução ao corpus do que Tito 1,1-3. Tito é um complemento, que muitas vezes
faz eco a 1Timóteo.

/. 6. Gêneros literários
l Timóteo e Tito
As particularidades epistolares de 1Timóteo e Tito orientaram
a pesquisa para o uso da forma epistolar na literatura de exorta-
ção. Este gênero de texto visa transmitir uma experiência ou uma
arte de viver a jovens de importante situação social, a funcionários
recentemente nomeados, a novos membros de uma associação;
serve-se não somente de códigos de virtudes e deveres ou de ca-
tálogos de vícios, mas também de anotações autobiográficas, re-
comendações pessoais, exemplos existenciais, citações litúrgicas
tradicionais.
Por outro lado, a ênfase na legitimação dos destinatários e de seu
mandato, o conteúdo das instruções a Timóteo e a Tito, bem como
o caráter indireto da comunicação levaram ao estudo de cartas ad-
ministrativas enviadas por um alto funcionário, um rei ou imperador
a seus representantes na província, durante o seu tempo no cargo.

398
A s epístolas pasto rais (I e 2 T im ó teo ; T ito)

Suas instruções cobriam o domínio das responsabilidades do desti-


natário e indicavam as qualidades de que deveria dar prova.

2 Timóteo
N o amplo contexto da literatura de exortação, 2 Timóteo, em-
bora em forma epistolar, é mais comparável com os testamentos
ou discursos de despedida. Nos “testamentos”, o que vai morrer
procura transmitir a "seus filhos” uma herança de experiências e
exemplos. O gênero, que se difundiu no judaísmo por ocasião de sua
helenização, veicula a preocupação com a tradição. Liga estreita-
mente a ameaça da perda da salvação com o esquecimento da dou-
trina transmitida. Como elementos testamentários em 2 Timóteo
ressaltam-se: o depósito e a doutrina a ser guardada (1,13 s.; 3,14),
a transmissão da mensagem para outros (2,2.9 s.; 4,7 s.), as pre-
dições sobre os falsos doutores (3,1-9.13; 4,3 s.), o testador como
modelo a ser imitado (1,8.12; 4,5), os maus exemplos a ser evitados
(2,16.23; 3,5).

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
2.1. A questão do autor
A discussão crítica que no decorrer dos últimos duzentos anos
contestou a atribuição a Paulo da redação das epístolas a Timóteo e
a Tito desenvolveu-se principalmente em cinco direções.
a) As pesquisas sobre a língua e o estilo das pastorais eviden-
ciaram a unidade do corpus das três epístolas do ponto de
vista linguístico e seu desvio em relação às outras epístolas
de Paulo: presença de palavras compostas; expressões sole-
nes; uso diferente das preposições e de certas construções
sintáticas; emprego de termos-chave ausentes nas outras
epístolas mas conhecidos da filosofia da época, da lingua-
gem religiosa do império e dos autores cristãos do século II.
b) A certas contradições internas às situações supostas pelas
pastorais se acrescenta a dificuldade de enquadrar os da-
dos biográficos de nossas epístolas com o que se sabe, por

399
A s epístolas pastorais

outro lado, de Paulo. A ausência de Paulo é longa ou breve


(lTm 3,14; 4,13)? A ameaça dos falsos doutores presente
(lTm 1,3-7) ou futura (lTm 4,1)? A situação suposta em
2 Timóteo, em que Paulo está próximo do fim, não pare-
ce tampouco corresponder às recomendações ministeriais
(2Tm 1,6-14; 2,1-7.14-21; 3,1-17), nem aos dados pessoais
de 2 Timóteo 4,6 ss.10.13.18.21, nem à apresentação de
um Timóteo jovem e sem experiência (2Tm 2,5.22; lTm
3,15; 4,12). Em 1 Timóteo 1,12-17, Paulo nos apresenta
um passado de ruptura, em 2 Timóteo 1,3-5, de continui-
dade etc. Em seguida, segundo Atos 19,21 s., 2 Coríntios
1,1 e Romanos 16,21, não parece que Paulo tenha deixado
Timóteo em Efeso (1Tm 1,3). Não se sabe nada de missão
em Creta (Tt 1,5); a ilha é mencionada como uma etapa
no caminho para Roma em Atos 27,7 s. E difícil juntar o
cativeiro em Roma segundo Atos 28, o itinerário de Atos
20 s., 2 Timóteo 4,13.20 e as informações de 1 Timóteo
1,18 e 2 Timóteo 4,19. Em 2 Timóteo 4,20, Trófimo está
doente em Mileto; em Atos 20,4 e 21,29 ele acompanha
Paulo em Jerusalém etc.
c) A propósito dos adversários, nota-se que, contrariamente
ao que acontece nas outras epístolas de Paulo, as pastorais
não entram em debate sobre o conteúdo de seu ensina-
mento (1Tm 4,1 -5 e 2Tm 2,18 são exceções); de qualquer
maneira, a polêmica a seu respeito dá testemunho de con-
fiitos posteriores àqueles que animam as epístolas autênti-
cas (ver abaixo o boxe “Os falsos doutores”).
d) No que concerne à teologia, a apresentação da encarnação
como epifania (€1Tuj)áe1.a) e a designação de Cristo como
Salvador (σωτήρ) são as novidades terminológicas de uma
linguagem teológica marcada pelo helenismo, na qual estão
ausentes inúmeros temas centrais da teologia paulina (Cris-
to como Filho, a cruz, a aliança, a justiça, a liberdade etc.).
e) Enfim, inúmeros indícios refletem a realidade de uma Igreja
cujo estado de desenvolvimento se mostra mais avançado

400
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)

do que o das comunidades às quais Paulo se dirige nas ou-


tras cartas (ver abaixo o boxe “Ministros e ministérios”).
Seja qual for a posição adotada, todos os comentadores ressalta-
ram as continuidades e as diferenças entre as pastorais e as epístolas
cuja autenticidade paulina não é mais posta em questão. Enquanto
os defensores da autenticidade das pastorais atribuem as diferen-
ças a uma evolução interna do ministério de Paulo (as circunstâncias
mudaram, no fim de sua vida Paulo se preocupa com a duração, com
0 ministério etc.), certos comentadores tentaram igualmente expli-
cá-las pela hipótese de um “secretário” ao qual seria atribuída a res-
ponsabilidade da redação dos textos. Nessa mesma direção de au-
tenticidade matizada situa-se a hipótese de “fragmentos autênticos”
de cartas de Paulo conservados no interior de uma obra posterior.
Do lado da pseudepigrafia, certas afinidades de linguagem e temas
teológicos com Lucas-Atos levaram a atribuir a Lucas a redação de
nossas epístolas. Finalmente, vários estudos recentes enfatizam os
pontos de contato entre tradições reelaboradas pelos Atos apócri-
fos de Paulo (século 11) e certos temas e personagens das pastorais
(Onesíforo e sua família: 2Tm 1,15 e AtosPaulo 3,2.7.23.26.42;
Hermógenes: 2Tm 1,15 e AtosPaulo 3,1. 4.12.14.16; as discussões a
propósito da ressurreição: 2Tm 2,18 e AtosPaulo 14,1-3 etc.).
Embora nenhum dos argumentos apresentados seja, por si só,
decisivo, o acúmulo de indícios nos parece de peso determinante
para concluir a favor de uma redação das três cartas por um discípu-
lo de Paulo pertencente à terceira geração cristã. Como assinalare-
mos mais abaixo (em 5), o debate não está concluído.

2.2. Os destinatários, Timóteo e Tito


Timóteo é o colaborador de Paulo mais conhecido. Enviado, em
nome do apóstolo, aTessalônica (lTs 3,2), a Filipo (F1 2,19-22), e
a Corinto como seu “filho querido e fiel no Senhor” (ICor 4,17; cf
16,10), Timóteo é co-remetente em 2 Coríntios 1,1, Filipenses 1,1 e
1 lessalonicenses 1,1 (Cl 1,1; 2Ts 1,1); ele saúda em Romanos 16,21.
Nascido de pai grego e mãe judia, segundo os Atos, encontrado em

401
As epístolas pastorais

Listra (At 16,1-2), Timóteo se torna colaborador de Paulo depois


que este se separou de Barnabé (At 15,37 ss.).
Tito é o homem das missões delicadas: a procura da reconciliação
na crise coríntia (2Cor 7,6-16; cfi 2,13; 12,18) e a organização da
coleta (2Cor 8,6.12.16 s.23). Segundo Gálatas 2,1.3, ele acompanha
Paulo e Barnabé por ocasião de seu encontro com Pedro, Tiago e
João, em Jerusalém; e, embora grego, não é obrigado a submeter-se
à circuncisão.
Nas pastorais, a relação com Paulo muda. De itinerantes enviados
por Paulo em missão especial, ou acompanhando-o em seus desloca-
mentos, Timóteo e Tito aparecem agora como ministros residentes,
deixados por Paulo quando de sua partida para a Macedonia ou para
Nicópolis (lTm 1,3; Tt 1,5). Embora sejam convidados a ir ter com
ele, assumem, por um período, a responsabilidade da comunidade.
Na perspectiva pseudepigráfica, essa qualidade de ser colaborador
e enviado pelo apóstolo, que se deduz da correspondência de Pau-
Io, predispõe Timóteo e Tito a se tornar, por um lado, as figuras da
presença do apóstolo quando sua ausência se tornou definitiva e, por
outro, os modelos de ministros fiéis à origem apostólica, capazes de
ensinar também a outros o que receberam de Paulo (2Tm 2,2).

2.3. Cristãos da terceira geração?


O conjunto dos argumentos apresentados no debate sobre o au-
tor e os destinatários levou a enxergar as epístolas pastorais como
escritos pseudepigráficos, redigidos provavelmente na virada do sé-
culo 1 de nossa era, na Ásia Menor (perto de Efeso?), por um res-
ponsável por comunidades paulinas. A pseudepigrafia é o procedí-
mento de escritura, corrente na Antiguidade, que põe em circulação
uma obra nova sob o nome de uma figura gloriosa do passado; ela
permitia confirmar a fidelidade do autor ao apóstolo e responder à
necessidade de atualizar sua mensagem para uma situação eclesial
diferente. Pode-se precisar melhor e identificar alguns traços mar-
cantes dessas comunidades e de seu pastor?

402
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)

Antes de tudo, as pastorais revelam uma forte consciência do


tempo que passa: tempo de uma comunidade que se conhece segun-
do as gerações e as idades (iTm 5,1-16; T t 2,10), tempo necessário
para uma boa escolha de ministros (ITm 3,6.10; 5,22), ou para a
formação de base do jovem líder (2Tm 3,3-5.11.15). Além do mais,
a continuidade da comunidade precisa ser consolidada à medida
que se distancia de sua origem e de seu fundador; numerosas são as
exortações a “resistir”, a “guardar”, a “manter”.
Em seguida, as pastorais reagem contra o que percebem como
uma ameaça (ver abaixo o boxe “Falsos doutores”). Em público, os
adversários se apresentam como carismáticos que criam disputas
(ITm 6,4; 2Tm 2,23; T t 3,9). Em particular, fazem trabalho de sapa
nas famílias (ITm 5,15; 2Tm 3,6; T t 1,11). Certos indícios revelam a
extensão da ameaça: a perturbação das casas (2Tm 3,6; T t 1,11), os
numerosos insubmissos (Tt 1,10), a maneira de falar, como de fato
comum, de contestadores e de heréticos (ITm 1,20; 2Tm 2,17 s.;T t
3,10). Além disso, um certo radicalismo percebido como desordem
“antidoméstica” podería expor a comunidade a denúncias junto às
autoridades.
Ademais, a questão dos comportamentos é de grande atualidade,
visto que, por um lado, a composição social se diversifica: no plano
econômico (ITm 6,17-19), segundo a situação familiar, a idade, o es-
tado civil, o estado social (viúvas, ITm 5,3-16; escravos, ITm 6,1-2;
Tt 2,9 s.), segundo as aspirações de certos grupos (comportamento
das mulheres ou dos escravos, lT m 2 ,ll ss.; 3,11; 6,1 s.; 2Tm 1,5; 3,7;
Tt 2,4). Por outro lado, essas comunidades sentem a necessidade de
se inscrever na sociedade que as envolve. O mundo não está perto de
desaparecer, é preciso coabitar, levar em conta a consideração “dos
de fora” (ITm 2,1 s.; 3,7; 4,3 s.; 5,23; 6,17 ss.; T t 3,1 s.).

403
A s epístolas pastorais

Os falsos doutores1

A polêmica contra os adversários atravessa as três epístolas. Na realidade,


é a prática do conjunto das instruções que responde à ameaça dos desvios: a
organização eclesiástica, o comportamento dos ministros e dos diversos gru-
pos da comunidade, a conservação da sã doutrina. Diferentemente das outras
epístolas, as pastorais não entram em debate com os argumentos dos adversá-
rios. O autor alerta. Já codificado, o conflito se expressa nas fórmulas “outra
doutrina” (ITm 1,3; 6,3) contra a “sã doutrina” (ITm 1,10; 6,3); trata-se de
corrigir os que “se desviaram” da verdade ou da fé (ITm 1,9 s.; 4,1; 6,5; 2Tm
2,17 s.; 3,8; Tt 1,10 s.). Aos rótulos positivos que designam a doutrina da Igreja
(“na fé”, “conforme a piedade”, “conforme o conhecimento da verdade”, "se-
gundo o evangelho”) respondem as etiquetas coladas às heresias, aliás muitas
vezes emprestadas da filosofia popular: "fábulas ou falatórios ímpios” (ITm
4,7; 6,20; 2Tm 2,16), “falsa ciência” (ITm 6,20), “controvérsias vãs e estú-
pidas" (2Tm 2,23; Tt 3,9), “rixas inúteis” (2Tm 2,14; Tt 3,9), “bisbilhotices
de mulher velha” (ITm 4,7), “palavreado oco” (ITm 1,6; Tt 1,10). À desqua-
lificação do ensinamento se acrescenta a do docente, segundo uma coleção
polêmica utilizada pelos doutores das diferentes escolas filosóficas, acusando-
se reciprocamente dos mesmos defeitos: cupidez (ITm 6,5; 2Tm 3,2; Tt 1,11),
intenção enganadora (2Tm 3,13), inautenticidade (ITm 1,19; 4,3; 2Tm 3,5; Tt
1,16; 3,8 s.), imoralidade (ITm 1,9 s. 2Tm 3,2 ss.), sucesso entre as mulheres
(2Tm 3,6).
Uma vez descartada a parte da polêmica, muito utilizada para fins de iden-
tificação dos adversários, a pesquisa se esforça para explicar a coexistência
das duas séries de enunciados, os que conotam aspectos espiritualistas ou de1*

1 Aos excursos que os comentários consagram aos adversários, pode-se


acrescentar: Günter HAUFE, Gnostiche Irrlehre und ihre Abwehr in den
Pastoralbriefen, in K.W. TROGER (ed.), Gnosis und Neuen Testament,
Berlin, Evangelische Verlaganstalt, 1973, 325-339; Robert J. KARRIS, The
Background and Significance o f the Polemic of the Pastoral Epistles, JBL
92 (1973) 549-564; Dennis R. McDONALD, The Legend and the Apostle:
the Battle for Paul in Story and Canon, Philadelphia, Westminster Press,
1983, 56 et passim; Yann REDALIE, Paul après Paul. Le temps, le salut, la
morale selon les építres à Timothée etTite, Genève, Labor et Fides, 1994,
365-402; Jürgen ROLOFE Der Kampf gegen die Irrlehrer. Wie geht man
miteinander urn?, BibKirch 46 (I99l) 1I4-I20; Egbert SCHLARB, Die ge-
sunde Lehre: Haresie und Wahrheit im Spiegel der Pastoralbriefe, Marburg,
Elwert Verlag, 1990, 14-I41; Gerhard SELLIN, “Die Auferstehung ist
schon geschehen”. Zur Spiritualisierung apokalyptischer Terminologie im
Neuen Testament, N T 25 (1983) 220-237; Philipp H. TOWNER, Gnosis
and Realized Eschatology in Ephesus (of the Pastoral Epistles) and the Co-
rinthian Enthusiasm, J S N T 3I (1987) 95-124.

404
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)

tendências “gnósticas” e os que indicam traços judaizantes. Traços espiritua-


listas: o conflito como problema de docentes e de doutrina, de conhecimento
(lTm 6,20; 2Tm 3,7; Tt 1,16), os traços ascéticos discutidos (ITm 4,1-5), a
afirmação de que a ressurreição já aconteceu (2Tm 2,18), as genealogias (ITm
1,4 e T t 3,9). Traços judaizantes; os oponentes como “doutores da Lei” (ITm
1,7 ss.), as “controvérsias sobre a Lei” (Tt 3,9), “eles vêm da circuncisão” (Tt
1,10), os mitos judaicos (Tt 1,14), as prescrições alimentares (ITm 4,3) o puro
e o impuro (Tt 1,15). Há grande consenso na conclusão por uma gnose primi-
tiva influenciada por elementos judaicos ou judeu-cristãos.
A afirmação de 2 Timóteo 2,18, atribuída a Himeneu e a Filetos — “a
ressurreição já aconteceu” —, é o único enunciado teológico explicitamente
posto na boca dos adversários, e considerado o âmago do debate teológico
com eles. Sua interpretação se orienta em duas direções. Os que olham para
a frente, no tempo, observam que, na gnose, o conhecimento, enquanto des-
coberta do eu divino, esquecido, perdido ou oculto, é uma ressurreição com-
preendida em sentido espiritual; os adversários, portanto, seriam, no mínimo,
protognósticos. Outros, por sua vez, remontam a Paulo e à tradição paulina,
ao conflito com os adversários de Corinto, cuja agitação se apoiava na visão
de uma escatologia já realizada (ICor 7,2-16; 11,3-16; 14,33b-35). Mas, de um
outro lado, essa representação da ressurreição já efetuada podería resultar de
uma radicalização unilateral do próprio ensino de Paulo sobre o batismo (Rm
6,1-14), interpretado como antecipação da ressurreição. A tese de um debate
no interior da herança paulina em torno da compreensão da ressurreição, de
que 2 Timóteo 2,18 seria eco, estaria confirmada pela presença nos Atos apó-
crifos de Paulo de conflitos em torno dos temas da ressurreição, já ou ainda não
realizada, e da ascese de Paulo (AtosPaulo 3,5.12.14).
Além disso, à salvação compreendida como conhecimento e à ressurrei-
ção já vivida corresponde uma ética rigorista que concretiza sua atualidade
no cotidiano (ITm 4,3; Tt 1,15). De novo, essas práticas ascéticas podem se
apresentar como radicalização de uma tradição paulina; não tem Paulo a ten-
dência em 1 Coríntios 7,1.7 a preferir o não-casamento? Quanto às pastorais,
elas insistem em sua necessidade (ITm 3,4-12; 5,14; Tt 1,6). Não intervinha
ele, igualmente, nas questões alimentares, com uma certa compreensão, en-
quanto outros desdenhavam os escrúpulos dos “fracos” (Rm 14,2.21; cf 1 Cor
8)? No esforço de identificação dos adversários, a tendência é reconhecer
como dominantes os traços ascéticos, uma atitude negativa diante da criação,
a propensão às especulações teológicas, e a considerar secundários os traços
judaicos sem, no entanto, considerá-los apenas literários.

3 . F o n t e s e t r a d iç õ e s
3.1. Tradição paulina
A continuidade da tradição paulina se exprime, primeiramente, no
plano literário, na forma das epístolas, que segue o modelo das car-

405
A s epístolas pastorais

tas autênticas (Romanos, I Corihtios, talvez Gálatas). Em seguida,


há a retomada de certo número de temas importantes das epístolas
cuja autenticidade não é discutida; reencontramos a autodesigna-
ção de Paulo como apóstolo, a proposta ao destinatário de imitar seu
exemplo, sua íntima relação com o Evangelho, seus sofrimentos, sua
vontade de estar presente junto a suas comunidades e de transmitir
a elas suas disposições.

Entre as referências e alusões possíveis, reteremos as seguintes: 1Timóteo


1,2 e 1 Coríntios 4,17: “meu filho”; 1Timóteo 1,8 e Romanos 7,12.16: “a Lei
é boa”; I Timóteo 20 e 1 Coríntios 5,5: “entregue a Satanás”; 1Timóteo 2,7
e Romanos 9,1: “falo a verdade, não minto”; 1Timóteo 2,11-15 e I Coríntios
14,33b-36: as mulheres na assembléia; 2 Timóteo 1,7 e Romanos 8,15: o es-
pírito recebido contra o medo; 2 Timóteo 2,8 e Romanos 1,3: o Cristo da li-
nhagem de Davi e o Evangelho de Paulo; 2 Timóteo 2,11-13 e Romanos 6,3 s.:
morrer e viver em Cristo; 2 Timóteo 4,6-8 e Filipenses 2,17; 4,1: o tema da
coroa e da corrida etc.

Enfim, pode-se assinalar algo como “slogans paulinos”, sob forma


de breves fórmulas de vulgarização do paulinismo em circulação nas
comunidades (lTm 1,8, “A Lei é boa”; Tt 1,15, “Tudo é puro para os
que são puros”).

3.2. A s tradições parenéticas


Ao lado dessas repetições de Paulo, as Pastorais utilizam tradi-
ções éticas helenísticas, muitas vezes já acolhidas no discurso cristão,
por sua vez apresentadas aqui como tradição paulina. As qualidades
requeridas para o acesso ao ministério eclesiástico (lTm 3,1-7.8-13;
T t 1,6-9) lembram os preceitos relativos aos perfis profissionais que
na época helenística “qualificavam o candidato a um posto oficial
menos por uma competência apropriada do que pelas virtudes de
homem honesto”2. Os catálogos de vícios e virtudes empregados
pelas pastorais no conflito com os falsos doutores (1Tm 1,8-10; 6,11;
2Tm 2,22; 3,2.10; T t 2,2.5.6-8; 3,3) encontram-se na polêmica en­

2 Ceslas SP1CQ, Les Épitres pastorales, Paris, Gabalda, 41949, 427, 2 v.

406
A s epístolas pasto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)

tre escolas filosóficas. Do mesmo modo, as listas de deveres relativos


a categorias sociais (lTm 2,8-15; 6,1-2; 6,17-19; T t 2,1-10) lembram
os códigos domésticos de Efésios 5,21-6,9, Colossenses 3,18-4,1 e
1 Pedro 2,13-3,7. Situa-se a origem dessas instruções no filão da
literatura grega que trata da administração doméstica e do governo
da casa (οικονομία, desde antes de Platão, República 4, 433; Aristó-
teles, Política 125a, 1-7 etc.)3.

3.3. A s tradições soteriológicas


Os enunciados soteriológicos e teológicos que motivam a exor-
tação são de proveniência tradicional: hinos e doxologias (lTm 3,16;
6,7-8.15-16; 2Tm 2,11-13), fórmulas catequéticas e querigmáticas
(lTm 2,4-6; 2Tm 1,9-11; T t 2,11-14; 3,4-7), confissões de fé (lTm
1,15), ditos de caráter sapiencial (lTm 4,8; 5,24-25; 6,6-8). A cris-
tologia das pastorais se exprime por fórmulas de origens diversas,
nas quais se reconhecem vários elementos do futuro Símbolo dos
Apóstolos (encarnação, lTm 3,16; paixão sob Pôncio Pilatos, lTm
6,13; ressurreição, 2Tm 2,8; manifestação final, 2Tm 4,1).

4 . U m a l in h a t e o l ó g ic a ?
As pastorais têm pouco espaço nas teologias do Novo Testamen-
to. Por um lado, porque são consideradas sobretudo exortações, é o
caráter prático de suas instruções que tem sido ressaltado, a ética, os
ministérios; por outro lado, duvida-se de que as diferentes fórmulas
soteriológicas constituam uma teologia. Os estudos recentes sobre
a teologia das pastorais retomaram esses dois aspectos (cf abaixo

3 Sobre os códigos domésticos: David C. VERNER, The Household o f Cod:


the Social World of the Pastoral Epistles, Chico, Scholars Press, 1983,
87 s.; Marlis G1ELEN, Tradition und Theologie neutestamentlicher Haus-
tafelethik: ein Beitrag zur Frage einer christlichen Auseinendersetzung
mit gesellschaftlichen Normen, Frankfurt am Main, Hain, 1990; Dieter
LÜHRMANN, Neutestamentliche Hastafeln und antike Oekonomie,
N TS 27 (1981) 83-97; Marie-Louise LAMAU, Des chrétiens dans le monde,
Paris, Cerf 1988, 153-230; Klaus BERGER, Formgeschichte des Neuen Tes-
laments, Heidelberg, Quelle und Meyer, 1984, 135-141.

407
As epístolas pastorais

5.1). Primeiramente, a teologia das pastorais se exprime justamente


na articulação da exortação com a soteriologia que a motiva. Em
seguida, a teologia das pastorais, certamente determinada pelo con-
flito com “aqueles que ensinam outra coisa” (lTm 1,3), apresenta-
se como sã doutrina e bom depósito, transmissão fiel da doutrina do
apóstolo (lTm 1,18; 6,20; 2Tm 1,12.14). Ela não somente utiliza as
tradições como pretende ser a tradição.

4.1. Epifania da salvação


Cada uma de nossas três cartas evoca, em seu preâmbulo, um
plano divino: a economia de Deus em 1Timóteo 1,4, seu desígnio em
2 Timóteo 1,9, a promessa do Deus que não mente em Tito 1,2. Esse
tema convida a examinar os diferentes enunciados soteriológicos4
pelo ângulo da representação global do tempo.
Deus é um Deus Salvador, que “desde toda eternidade” oferece
sua graça aos homens (2Tm 1,9; T t 1,2 s.). Ora, essa decisão eterna
de salvação se manifesta e entra em contato com a história. A comu-
nicação se exprime pelo termo epifania. O tema é corrente no mundo
helenístico, onde ele indica a irrupção do divino na história, a manifes-
tação benéfica do deus por ocasião de vitórias militares, mas também
por ocasião de curas ou de outros acontecimentos extraordinários5.
Nas pastorais, essa manifestação advém nos “tempos fixados”
(lTm 2,6; 6,15; T t 1,3; c f 2Tm 1,10). De um lado, trata-se de um
tempo passado, quando essa vontade eterna de salvação de Deus se

4 1Timóteo 1,15 s.; 2,3-7; 3,16; 6,14 s.; 2 Timóteo 1,9 ss.; 2,8-13; 4,6-8; Tito
1,1-4; 2,11-14; 3,3-7.
s Lorenz OBERLINNER, Die Epiphaneia des Heilswillens Gottes in Chri-
stus Jesus. Zur Grundstruktur der Christologie der Pastoralbriefe, Z N W
71 (1980) 192-213; Dieter LÜHRMANN, Epiphaneia. Zur Bedeutungs-
geschichte eines griechischen Wortes, in Joachim JEREMIAS et al., Tra-
dition und Claube. Festgabe K. G. Kuhn, Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1971, 185-199; Viktor HASLER, Epiphanie und Christologie in
den Pastoralvriefen, ThZ 33 (1977) 193-209; Philip H. TOWNER, The
Presente Age in the Eschatology of the Pastoral Epistles, N T S 32 (1986)
427-448; Andrew Y. LAUB, Manifest in Flesh. The Epiphany Christology
o f the Pastoral Epistles, Tübingen, Mohr, 1996.

408
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó teo ; T ito)

manifestou em Cristo. Nesse caso, o tema da epifania reinterpreta


tradições cristológicas. Aplicada à encarnação, a epifania condensa,
em um só termo, as diferentes etapas do itinerário de Cristo (minis-
tério, paixão, morte, ressurreição) e sua pregação. Por outro lado,
os tempos fixados são tempos futuros em que Deus manifestará, de
novo, de maneira definitiva, a salvação (lTm 6,15). E ainda o tema
da epifania que exprime a manifestação final do Senhor (lTm 6,14;
2Tm 4,1; T t 2,13).
N o interior desse “entre-dois”, a atualidade da comunidade
se inscreve em uma história “paulina”. O próprio Paulo articula
a exortação e a experiência da salvação. Por um lado, ele formula
as exortações com autoridade, por outro ele é aquele em quem
a salvação foi recebida pela primeira vez na história (“o primeiro
salvo”, lTm 1,15).

4.2. Paulo, arauto, apóstolo e doutor


Paulo se apresenta como a passagem obrigatória do anúncio da
salvação, o centro da transmissão correta. O conflito com os adver-
sários é um conflito entre docentes; gira em torno do conhecimento.
Em face das pesquisas vãs e das genealogias sem fim (lTm 1,4; 2Tm
2,23; T t 1,14; 3,9), as pastorais se esforçam por traçar uma linha que
da origem em Deus se junta ao presente da comunidade. O saber
da salvação não é misterioso, sua linha é clara; Deus decidiu, desde
sempre, salvar os homens; essa decisão, tornada realidade manifes-
tada em Cristo, é o conteúdo do querigma confiado a Paulo (lTm
1,11 ss.; 2,6 s.; 2Tm 1,9 ss.; 2,8 ss.; T t 1,1-4). Paulo o relembra a Ti-
móteo eT ito como motivação final do bom depósito e da sã doutrina
(lTm 1,10-11; 2Tm 4,3; T t 1,9; 2,1). Timóteo eT ito devem, por sua
vez, escolher as pessoas justas para continuar: “O que aprendeste
de mim na presença de numerosas testemunhas, confia-o a homens
fiéis que, por sua vez, serão capazes de ensiná-lo a outros mais”
(2Tm 2,2). Fora dessa genealogia comunicativa de origem controla-
da — “bom depósito”, “sã doutrina” — encontram-se a pesquisa vã
e o erro. O canal é a mensagem.

409
A s epístolas pastorais

4.3. Paulo, o primeiro salvo


Mas Paulo é também o lugar em que a salvação de Deus se torna
visível. Desde a abertura de I Timóteo, o divino é imediatamente li-
gado a Paulo. “Digna de confiança é esta palavra e merece ser plena-
mente acolhida por todos: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os
pecadores, dos quais eu, em especial, sou o primeiro. Mas, se me foi
concedida misericórdia, foi para que em mim, o primeiro, Cristo Je-
sus demonstrasse toda a sua generosidade, para que eu servisse de
modelo [arquétipo] para os que iriam crer nele, em vista de uma vida
eterna” (lTm 1,15-16). A tradição cristológica antiga sobre a vinda
de Cristo ao mundo, introduzida por uma fórmula que a assinala (cf
lTm 3,1; 4,9; 2Tm 2,11; T t 3,8), é interpretada pela experiência de
Paulo, apresentado como primeiro pecador, primeiro salvo. A salva-
ção de Paulo inaugura a história dos que vão crer em Cristo em vista
da vida eterna. Note-se, de passagem, a diferença da apresentação
dos inícios cristãos de Paulo segundo as outras epístolas: em 1 Corín-
tios 15,8 s. ele fala de si como “o último”.
Paulo precede os crentes e os ministros como pecador justificado e
como docente. Do mesmo modo, no dia do juízo, Paulo é ainda o para-
digma do cristão responsável recompensado que precede todos os que
anseiam pela epifania do Senhor (2Tm 4,8). Ele é, também, o protóti-
po do crente fiel na continuidade da educação familiar (2Tm 1,3). Ele
é, enfim, o modelo, a ser seguido, daquele que sofre pela pregação do
Evangelho (2Tm 1,12; 2,9), mas que já é vitorioso (2Tm 4,18). Ele já
passou por todas as etapas do percurso indicado na exortação.

4.4. Como se comportar na casa de Deus


Mas Paulo já não está lá. “Escrevo-te isso, embora espere encon-
trar-te em breve, a fim de que, caso eu demore, saibas como proceder
na casa de Deus, que é a Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo
da verdade” (lTm 3,14-15). “Enquanto esperas minha chegada, apli-
ca-te à leitura [da Escritura], à exortação, ao ensino. Não descuides
o dom da graça que há em ti, que te foi conferido por uma interven-
ção profética, acompanhada da imposição das mãos pelo colégio dos
anciãos” (lTm 4,13 s.).

410
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)

A dilatação do tempo presente — demora, espera — dá lugar


a e requer uma ocupação significativa do espaço social: “a casa de
Deus” torna-se o quadro de referência da exortação, o lugar concre-
to da articulação entre parênese e teologia. Comportar-se segundo
as instruções de Paulo na “casa de Deus” é a maneira de afirmar a
ligação viva com o apóstolo em sua ausência. A prática ministerial
ocupa o lugar que ele deixou. Ordenação, educação familiar, ensi-
no, exortação, comportamento adequado equivalem, hoje, à ação
contada e outrora realizada pelo apóstolo, quando Timóteo escu-
tava suas palavras ou partilhava suas “aventuras”. O mandato de
Timóteo e Tito tem o contorno das tarefas ministeriais atuais, e sua
origem está situada no itinerário de Paulo.
A ética das pastorais se apresenta como uma moral social, para
a qual o comportamento se relaciona com os diferentes lugares da
vida cotidiana. A imagem da casa (lTm 3,5.15; 2Tm 2,19 s.) orga-
niza o comportamento conforme a articulação dos espaços: de um
lado, a casa “particular”; de outro, a Igreja como casa de Deus onde
cada um tem seu lugar; em terceiro lugar, “os de fora”, a sociedade
que observa e julga (lTm 3,7; T t 2,5.8.10).

Ministros e ministérios
Diversas tensões levam a colocar a questão das relações entre a figura do
bispo e a dos anciãos6: as funções de ensino e de direção atribuídas tanto aos
bispos como aos anciãos, o emprego pelas Pastorais do termo bispo no singular

6 Uma apresentação desses debates se encontra em: Hermann VON LIPS,


Claube, Gemeinde, Amt. Zum Verstandnis der Ordination in den Pastoralbriefen,
Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1979, 112 s.; Jürgen ROLOFfi Der
erste Briefan Timotheus, Zürich/Neukirchen-Vluyn, Benziger/Neukirchener
Verlag, 1988, a 169-189; Hans-Josef KLAUCK, Hausgemeinde und Hauskir-
che im früen Christentum, Stuttgart, Katolisches Bibelwerk, 1981, 6 2 6 8 ‫ ;־‬Ray-
mond E. BROWN, Léglise héritée des apôtres, Paris, Cerfi 1987, 48-53; John
P MEIER, Presbyteros in the Pastorals Epistles, CBQ 35 (1973) 324-339;
Peter TRUMMER, Gemeindeleiter ohne Gemeinden? Nachbemerkungen
zu den Pastoralbriefen, BibKirchi 46 (1991) 121-126; Lorenz OBERL1NNER,
Die Pastoralbriefe. Kommentar zum Titusbrief Freiburg, Herder, 1996, 74-
101 (Exkurs: Gemeinde, Amt und Kirche nach den Pastoralbriefen).

411
As epístolas pastorais

(lTm 3,2; Tt 1,7) e de anciãos no plural (lTm 5,17; Tt 1,5), a identificação


entre bispo e anciãos que parece admitida em Tito 1,5 ss., ao passo que 1Ti-
móteo não os põe em relação. Alguns viram, já aí, um episcopado monárquico,
em que o bispo (no singular), claramente diferenciado dos anciãos (no plural),
dirige a Igreja local. Para outros, o bispo preside o colégio dos anciãos que o es-
colheu para essa tarefa (lTm 4,14), o que explica, ao mesmo tempo, o singular
que o distingue e sua estreita relação com os anciãos em Tito 1,5-7. Outros,
ainda, interpretam o singular empregado para o bispo em um sentido geral,
determinado pela fonte utilizada (um catálogo de qualidades requeridas), e que
se referiría a um subgrupo dos anciãos, mais bem “pagos”, “os que presidem”
(ιτροβστώτες, ITm 5,17), pregam e ensinam. Enfim, alguns pensam que o minis-
tério do bispo é idêntico ao dos anciãos.
Na realidade, percebe-se aqui o encontro de duas tradições, a dos anciãos,
ausente em Paulo, de origem judeu-cristã, e a do bispo e diáconos, veiculada
pelas comunidades paulinas. Se a tradição dos anciãos, orientada para o con-
junto da comunidade, se adapta bem ao fortalecimento da comunidade local,
a dos bispos e diáconos, por suas ligações com a casa e sua organização, corres-
ponde melhor à definição de tarefas precisas e à estruturação da comunidade.
O processo de unificação, de que dão testemunho as pastorais, se completa
em fins do século I (mesma tendência à unificação em At 14,23; 20,17; lPd
5,1-5; / Clemente 40-44).
Nas pastorais são propostas as duas constituições: em I Timóteo 3,1-13,
bispos e diáconos; em 1 Timóteo 5,17-22 e Tito 1,5 s., os anciãos; em Tito
1,7-9, o bispo. O autor das pastorais favorecería a linha bispo/diácono: em 1Ti-
móteo 3,1, é uma boa coisa aspirar ao episcopado; em 1Timóteo 5,17, alguns
anciãos se desligam de um papel tradicional de notáveis para exercer realmen-
te uma função de bispo; em Tito 1,5-9, o autor se dirige aos anciãos como a
bispos. Uma parte dos anciãos parece já funcionar como epíscopos de comuni-
dades domésticas, e a intenção das pastorais seria fazer passar essa função do
âmbito doméstico para o conjunto da comunidade local. Daí o uso da metáfora
da Igreja como casa de Deus (lTm 3,15) e talvez, também, o emprego siste-
mático do singular para epíscopo. O autor estava interessado em uma nova
compreensão teológica do bispo, sem fazer disso, no entanto, um programa,
uma obrigação ou uma norma. As pastorais, portanto, transmitem tradições
ministeriais diferentes, que dinamizam de duas maneiras, por meio do tema da
Igreja como casa bem organizada e pelas exortações aos dois destinatários.5*

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Tradições paulinas. Inúmeros são os estudos sobre a transmissão, a
recepção e o tratamento das tradições paulinas que alargaram o cam-
po da pesquisa para além das estritas questões de contatos ou de
dependências literárias, dando lugar, de um lado, às tradições orais,

412
A s epístolas pastorais (1 e 2 T im ó teo ; T ito )

aos midrashim, aos amálgamas de tradições e, de outro, à reinter-


pretação dessas tradições pelas pastorais7.
Pseudepigrafia e deuteropaulinismo. O clássico debate sobre o au-
tor das pastorais se aprofundou em duas direções. De um lado, os
estudos recentes sobre a pseudepigrafia se aplicam em pôr em foco
a complexidade do fenômeno e a diversidade de suas causas, de suas
formas e de suas motivações8. De um outro lado, o consenso sobre o
caráter deuteropaulino das pastorais é discutido por alguns comen-
tadores com base em questões de método9. A força dos argumen-
tos clássicos em favor da pseudepigrafia advém de sua acumulação
e do fato de tratarem as pastorais, desde o início, como um corpo
homogêneo. Sugere-se, agora, que se estude cada uma das três car-
tas separadamente e que se distinga particularmente 2 Timóteo das
outras duas epístolas.
Estudos sócio-históricos. O desenvolvimento dos estudos sócio-
históricos sobre o cristianismo primitivo renova os roteiros possí-

7 Ver Gerhard LOHFINK, Die Vermittlung des Paulinismus zu den Pasto-


ralbriefen, BZ 32 (1988) 169188‫ ;־‬ID., Paulinische Theologie in der Rezep-
tion der Pastoralbriefe, in Karl KERTELGE (Hrsg.), Paulus in den neute-
stamentlichen Spátschriften. Zur Paulusrezeption im Neuen Testament,
Freiburg, Herder, 1981, 70-121; Peter TRUMMER, Die Paulustradition der
Pastoralbriefe, Frankfurt, Peter Lang, 1978; Michael WOLTER, Die Pasto-
ralbriefe als Paulustradition, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1988.
8 Richard BAUCKHAM, Pseudo Apostolic Letters, JBL 107 (!988) 469-
494; Lewis R. DONELSON, Pseudepigraphy and Ethical Arguments in the
Pastoral Epistles, Tübingen, Mohr, 1986, 7-66; Jean-Daniel KAESTLI, Mé-
moire et pseudépigraphie dans le christianisme de fâge post-apostolique,
RThPh 125 (1993) 41-63; David G. MEADE, Pseudonymity and Canon.
An Investigation into the Relationship of Authorship and Authority in
Jewish and Earliest Christian Tradition, Tübingen, Mohr, 1986, 2-15; Peter
TRUMMER, Die Paulustradition der Pastoralbriefe, 57-100.
9 Luke T JOHNSON, Letters to Pauls Delegate: I Timothy, 2 Timothy, Ti-
tus, Valley Forge, Trinity Press International, 1996; Jerome MURPHY
O ’CONNOR, 2 Timothy Contrasted with 1 Timothy and Titus, RB 98
(1991) 403-418; Hervé PONSOT, Les Pastorales seraient-elles les premiè-
res lettres de Paul?, Lumière et Vie 231 (1997) 83-93; 232 (1997) 79-90;
233 (1997) 83-89; Michael P PRIOR, Paul the Letter Writer and the Second
Letter to Timothy, Sheffield, JSOT Press, 1989.

413
A s epístolas pastorais

veis para compreender a situação que deu nascimento às pastorais.


Fala-se de “consolidação”, de “confirmação”, de “inculturação” das
comunidades diante dos conflitos, tanto sociais como religiosos. He-
resia e ortodoxia se distinguem mutuamente, tanto pelas incompa-
tibilidades de estilo de vida como pelos conflitos de crenças ou de
doutrina. Nessa perspectiva, vários estudos examinam a função do
tema da “casa” e da moral doméstica101. Outras perspectivas expli-
cam a gênese das pastorais pela vontade de se opor às representa-
ções de Paulo difundidas por lendas que os Atos apócrifos de Pau-
lo retomarão no fim do século 11“. Essas lendas teriam estado em
voga nos grupos contestadores da moral doméstica e dispostos a
promover o ministério das mulheres e seu celibato, compreendido
como independência em relação à autoridade masculina. Em uma
outra direção, enfim, alguns estudos retomaram o tema da christlis-
che Bürgerlichkeit, cristianismo burguês ou civil, que para Dibelius
exprimia a vontade das pastorais de inserir a comunidade no mundo,
contra as tendências fanáticas (cf lTm 2,2)12.
Leitura feminista. Em seu volume programático En mémoire
d ’elle: essai de reconstruction des origines chrétiennes selon la théo-
logie féministe (Paris, Cerf, 1986 [Cogitatio fidei 136]), Elisabeth

10 Além dos títulos citados na nota 4, ver: Margaret Y. MCDONALD, The


Pauline Churches. A Socio-Historical Study of Institutionalization in the
Pauline and Deutero-Pauline Writings, Cambridge, Cambridge University
Press, 1988.
11 Dennis R. McDONALD, The Legend and the Apostle: the Battle for Paul
in Story and Canon, Philadelphia, Westminster Press, 1983; Willy ROR-
DORfi Nochmals: Paulusakten und Pastoralbriefe, in G. E. HAMTHOR-
NE, O. BETZ (eds.), Tradition and Interpretation in the New Testament.
Essays in Honour o f E. Earle Ellis, Grand Rapids/Tübingen, Eerdmans/
Mohr, 1987, 319-327.
12 Reggie M. KIDO, Wealth and Beneficience in the Pastoral Epistles: a "Bour-
geois" Form o f Early Christianity?, Atlanta, Scholars Press, 1990; Lorenz
OBERLINNER, Ein ruhiges und ungestõrtes Leben fuhren. Ein Ideal
fur christliche Gemeinden?, BibKirch 46 (l991) 98-I06; Marius REISER,
Bürgerliches Christentum in den Pastoralbriefen?, Bib 74 (1993) 27-44;
Roland SCHWARZ, Bürgerliches Christentum im Neuen Testament? Eine
Studie zu Ethik, Amt und Recht in den Pastoralbriefen, Klosterneuburg,
Oesterreichisches Katholisches Bibelwerk, 1983.

414
A s epístolas p asto rais (1 e 2 T im ó te o ; T ito)

Schüssler-Fiorenza consagra às pastorais uma boa parte de seu ca-


pftulo 8 sobre a “família patriarcal de Deus”, ao abordar a questão
do patriarcalismo da Igreja e do ministério. Nossas epístolas marcam
uma virada nessa evolução. Acompanhando essa exegese, um gran-
de número de pesquisas tomou por alvo principalmente 1 Timóteo
2,9-15 (sobre o não-ensino e a salvação da mulher pela maternida-
de) e I Timóteo 5,3-16 (sobre as viúvas)13.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BROX, Norbert. Die Pastoralbriefe. Regensburg, Pustet, 1969 (RNT 7/2).
DIBEL1US, Martin, CONZELMANN, Hans. Die Pastoralbriefe. Tübin-
gen, Mohr,31955 (H N T 13).
JO H N SO N , LukeT Letters to Paul’s Delegates: I Timothy, 2 Timothy, Titus.
Valley Forge, Trinity Press International, 1996.
KARRIS, Robert J. The Pastoral Epistles. Wilmington, Michael Glazier,
1979 (NTM e 17).
MERKEL, Helmut. Die Pastoralbriefe. Gottingen, Vandenhoeck und Ru-
precht, 1991 (NTD 9/1).
OBERLINNER, Lorenz, Die Pastoralbriefe. Kommentar zum ersten Ti-
motheusbrief Freiburg, Herder, 1994 (HKNT 11,2,1).
--------- . Die Pastoralbriefe. Kommentar zum zweiten Timotheusbrief Frei-
burg, Herder, 1995 (HKNT 11,2,2).

13 John W. KLEINIG, Scripture and the Exclusion of Women from the Pas-
torate, LTJ 29 (1995) 74-81; 123-129 (a propósito de lTm 2,11-15); Mary
LOW, Can a Woman teach? A Consideration of Arguments from I Tim
2,1-15, Trinity Theological Journal 3 (1994) 99-123; Linda M. MALÔNEY,
The Pastoral Epistles: Searching the Scripture. New York, 1994, 361-380;
v. 2: A Feminist Commentary. Sobre a questão das viúvas, ver: Otto BAN-
GERTER, Les veuves des építres pastorales, modèle d’un ministère fémi-
nin dans I’eglise ancienne, Foi et Vie 83/1 (1984) 27-45; Jouétte M. BAS-
SLER, The Widows’ Tale; a Fresh Look at 1 Tm 5,3-16, JBL 103 (1984)
23-41; Bonnie Bowman THURSTON, The Widows. A Women’s Ministry
in the Early Church, Minneapolis, Fortress Press, 1989, 36-55; Dennis R.
McDONALD, The Legend and the Apostle..., 73-77; Margaret Y. McDO-
NALD, The Pauline Churches..., 187 ss.

415
As epístolas pastorais

--------- . Die Pastoralbriefe. Kommentar zum Titusbrief Freiburg, Herder,


1996 (HKNT 11,2,3); ed. it.: Brescia, Paideia, 1999, v. 1-2.
ROLOFp Jurgen. Dererste Brief an Timotheus. Ziirich/Neukirchen-Vluyn,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1988 (EKKXV).
SP1CQ, Ceslas. Les Épitres pastorales. Paris, Gabalda, 41969 (EtB). 2 v.

Leitura prioritária
REDALIE, Yann. Paul après Paul. Le temps, le salut, la morale selon les
épitres àTim othée et àTite. Genève, Labor et Fides, 1994 (Monde
de la Bible 31).
COTHENET, Etienne. Les épitres pastorales. Cahiers Evangile Paris,
Cerf, 72 (1990).

História da pesquisa recente


SCHENK, Werner. Die Briefe andThimoteus 1und II und an Titus (Pasto-
ralbrief) in der neuren Forshung (1945-1985). A N R W , Berlin/New
York, de Gruyter, 11,25.4 (1987) 3.404-3.438.
REDALIE, Yann. Paul pres Paul. Le temps, le salut, la morale selon les épí-
tres àT him otée et àT ite. Genève, Labor et Fides, 1994, p. 11-47
(Monde de la Bible 32).

416
Hebreus
CAPÍTULO

19
A epístola aos Hebreus
François Vouga

Hebreus se apresenta como um sermão ou uma homília (uma


“palavra de exortação”, Hb 13,22): entre uma breve introdução
(1,1-4) e uma bênção final (13,20-21), o autor ordena sua argumen-
tação em seqüências temáticas. Reúne, a cada etapa, uma série de
textos bíblicos (Antigo Testamento) que cita e, depois, comenta e
atualiza, com a finalidade de lembrar a seus leitores a importância e
a significação da obra de salvação realizada em Jesus Cristo.

1. A p r e s e n t a ç ã o
Pode-se distinguir, na exposição, uma segunda parte, parenética
(10,19-13,21), que, ocasionalmente, faz referência à situação dos
destinatários (ver 10,32-34 e, de modo mais convencional, 12,4);
uma primeira parte doutrinai, soteriológica e cristológica, apre-
senta sistematicamente o acontecimento da salvação (1,5-10,18).
Uma exposição geral apresenta Jesus, logo de início, como o Filho
de Deus que traz a seus irmãos, os homens, o repouso escatológi-
co e como o sumo sacerdote fiel e misericordioso (1,5-5,10). Uma
transição anuncia a seqüência da exposição, que passa então dos
“temas elementares” e “dados fundamentais” da fé cristã à dou-
trina para os “perfeitos” (5,11-6,20; c f 6,1). A segunda seção da
exposição doutrinai é consagrada à significação da morte e da ele­

419
H ebreus

vação de Jesus, sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec:


Jesus é, como sumo sacerdote escatológico e celeste, o mediador
da nova aliança (9,15) que abre aos crentes o acesso ao mundo do
Pai (7,1-10,18).
O final epistolar (13,22-25), que se apresenta como umpostscrip-
tum (13,22), sai do quadro literário do sermão. Ao mencionar Timó-
teo (12,23), liga Hebreus ao corpus das cartas paulinas; ao apresen-
tar as saudações aos irmãos da Itália (13,24), transplanta o livro para
a bacia ocidental do cristianismo.

Plano d a ep ísto la aos H ebreus

Prólogo: A revelação em Jesus Cristo (1,14‫)־‬


l,l-2a Deus falou outrora pela boca dos profetas;
agora, no período final, ele fala pelo seu Filho
l,2b-4 O Filho foi estabelecido herdeiro de tudo
1,4 Anúncio do tema de 1,5-2,18

O Filho de Deus rebaixado e elevado (1,5-2,18)


1,5-14 O Filho foi elevado acima dos anjos
1,14 Anúncio do tema de 2,1-8
2,1-4 Conseqüências parenéticas: levar a sério a men-
sagem
2,5-18 O Filho elevado, ao qual tudo está submetido, se
rebaixou e se tornou o promotor da salvação
12,17-18 Anúncio do tema de 3,1-5,10

O sumo sacerdote fiel e misericordioso (3,1-5,10)


3,M ,13 Sermão sobre o tema da fé; exortação à fé fiel e
advertência contra a apostasia
4,14-5,10 O Filho como sumo sacerdote misericordioso;
exortação a permanecer fiel à fé professada
(5,6-10 Anúncio do tema de 5,11—10,18)

A doutrina perfeita (5,11-10,18)


5,11-6,20 Prelúdio parenético: a doutrina perfeita (6,1) é di-
fícil de compreender (5,11)
Os destinatários são ainda iniciantes (5,11-14); por
isso o que se segue é destinado a leitores avança-
dos (6,1-3)
Razão da advertência: uma segunda conversão é
impossível (6,4-8)

420
H ebreus

Exortações finais (12,14-13,19)


12,14-29 Advertência contra a apostasia
13,1-19 Exortações gerais concernentes à vida
comunitária

Dupla bênção final (13,20-25)


13,20-21 Bênção final
13,22-25 Final paulino

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
Tanto o meio de origem e a data como o autor e os destinatários
da epístola aos Hebreus continuam a ser um enigma para a pesquisa
histórica e literária. Em razão de seus temas e do gênero da argu-
mentação desenvolvida, a qual se assemelha às leituras alegóricas de
exegetas judeus helenizados como Fílon, a hipótese mais plausível
vê nesse sermão o produto de uma teologia alexandrina do terceiro
terço do século I d.C.

2.1. O lugar de origem


O único indício que o texto oferece para sua localização encon-
tra-se na saudação secundária contida na segunda bênção final: “os
da Itália vos saúdam” (13,24). O autor autoriza, assim, a pensar que
o lugar de origem e de expedição de nossa carta seria a Itália, prova-
velmente Roma.
Duas razões, entretanto, obrigam à prudência. A primeira diz
respeito ao teor da própria informação. “Os da Itália” pode, com
efeito, designar tanto os membros de uma comunidade cristã esta-
belecida na Itália como um círculo italiano no interior de não importa
qual comunidade do cristianismo primitivo. A segunda está ligada
ao problema literário colocado pelo desdobramento da bênção fi-
nal do escrito (13,20-21 e 13,22-25). Esse caso de desdobramento
não é único na história da literatura do cristianismo primitivo (ver
Jo 20,30 s. e 21,24 s.). Pressupõe a atividade de um editor indepen-
dente do autor do escrito (esse é visivelmente o caso do Evangelho
dos Egípcios, N H C 111,2), que deve ser lido como um postscriptum
autógrafo (como talvez seja o caso de IJo 5,13-21).

422
A epístola a o s H e b reu s

Evidentemente, 13,22-25 é um final epistolar paulino, que tan-


to por sua forma como pela menção de Timóteo liga a epístola aos
Hebreus ao corpus das cartas paulinas (Rm 16,21; ICor 4,17; 16,10;
2Cor 1,1.19; F1 1,1; 2,19; Cl 1,1; ITs 1,1; 3,2.6; 2Ts 1,1; ITm 1,2.18;
6,20; 2Tm 1,2; Fm 1). A ligação assim estabelecida entre a epístola
e o apóstolo dos gentios corresponde à história de sua transmissão:
a tradição escrita faz dela a décima quarta carta da coleção pauli-
na1. Deduz-se daí que ou o autor ou o editor da epístola tentaram,
por esse meio, colocá-la sob a autoridade do apóstolo. Segundo a
ficção literária assim criada, Hebreus aparece como uma carta do
cativeiro, escrita por Paulo em Jerusalém. Essa tentativa de colo-
car a epístola sob a responsabilidade de uma autoridade reconhecida
demonstra os esforços empreendidos para assegurar sua recepção
no cristianismo pós-apostólico. Não nos ajuda muito, em compen-
sação, a reconstituir o lugar de origem de sua redação.

2.2. D ata de composição


Com toda probabilidade, a redação de Hebreus se deu entre os
anos 60, data da morte dos apóstolos da primeira geração, e os anos
80-90.
A primeira possível referência à epístola se encontra, provável-
mente, na epístola aos coríntios de Clemente de Roma. I Clemente
36,2-6 não se apresenta explicitamente como uma citação de He-
breus; trata-se mais de uma paráfrase comentada de Hebreus 1,3-
5.7.11, como faz geralmente I Clemente quando remete à Escritura
(Antigo Testamento ou Novo Testamento). Entretanto, essa utili-
zação da epístola por / Clemente (provavelmente escrita em Roma,
no último decênio do século I) fornece o terminus ad quem da com-
posição de Hebreus.
Hebreus não é um escrito da primeira geração cristã. De um
lado, o próprio autor se apresenta como pertencente à segunda
geração dos apóstolos: as testemunhas da primeira geração confir­

1 Ver acima capítulo 7.

423
H ebreus

maram a salvação anunciada pelo Senhor (Hb 2,3). De outro lado,


os destinatários se converteram há muito tempo (5,12) e o autor os
exorta a se lembrar dos inícios de sua existência cristã (10,32). O
fato de terem feito a experiência de perseguições (10,32-34) não
ajuda em nada para a determinação da data do escrito: o estado de
tensão entre as comunidades cristãs e seu meio ambiente judaico
ou pagão faz parte da experiência cotidiana dos cristãos dos primei-
ros séculos. Em compensação, se Hebreus 8,13 for compreendido
como uma alusão à Guerra Judaica ou à destruição do Templo de
Jerusalém, teremos aí uma indicação mais precisa para estabelecer
o terminus a quo do escrito.

2.3. Autor
A questão do autor constitui um enigma desde os inícios da re-
cepção da epístola no cristianismo antigo. A impossibilidade de en-
contrar seu traço na historiografia cristã provocou a multiplicação
de hipóteses plausíveis mas pouco convincentes.

Paulo
A segunda bênção final (13,22-25) e a tradição manuscrita (P46
etc.) colocam a epístola sob a responsabilidade literária do apóstolo
Paulo. O mesmo se dá na tradição patrística mais antiga, embora
ela o faça com precaução: Clemente de Alexandria (c. 150-215) e
Orígenes (185-253) sugerem que o apóstolo seja o responsável pelo
conteúdo, enquanto a redação teria sido assegurada por um tradu-
tor que Clemente identifica com Lucas; Orígenes hesita entre Lu-
cas e Clemente de Roma (Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica
VI, 14,13; 25,12; 25,14). Os dois reconhecem a qualidade do escri-
to, mas ambos constatam que nem a forma literária nem o estilo
são os das outras epístolas paulinas. Pode-se constatar, com efeito,
a ausência de todos os principais temas paulinos (teologia da cruz,
problema da justiça, questão da Lei, discussão sobre a liberdade),
bem como a presença de categorias cultuais totalmente ausentes
das cartas paulinas (Melquisedec, Jesus como sumo sacedote, a

424
A epístola a o s H e b reu s

interpretação sacrifical da morte de Jesus); ela revela, além disso,


um modo de argumentar, por comentário e atualização exegética,
sem paralelo no Novo Testamento. Ora, malgrado a prudência de
Clemente e de Orígenes, e apesar das reticências do cristianismo
ocidental (a epístola aos Hebreus não é mencionada no Canon de
Muratori, por volta de 200 d.C.), a idéia da autenticidade paulina,
caucionada por Agostinho e por Jerônimo, se impôs até o Renascí-
mento e a Reforma.

Barnabé e Apoio
Uma primeira alternativa à atribuição tradicional foi proposta por
Tertuliano (c. 155-220, De Pudicita 20): Barnabé. Em favor dessa
hipótese pleiteia a origem helenista do primeiro companheiro de
Paulo; contra ela, a oposição entre a fidelidade de Barnabé à Lei
judaica (G1 2,11-14) e o distanciamento dela em Hebreus 7,11-19,
9,9 s. e 13,9. Uma outra proposta emana de Martinho Lutero (WA
44,709; 45,389): Apoio. As raras informações sobre ele dadas por
Paulo (ICor 1,12; 3,4.5.6.22; 4,6; 16,12) e o retrato que dele faz Lu-
cas (At 18,24; 19,1) correspondem bem à imagem que se pode fazer
do autor da Epístola: Apoio vinha da Alexandria, como Fílon, era
versado na interpretação das Escrituras e atraía a adesão por sua
inteligência e sua arte oratória. Eles não bastam, entretanto, para
estabelecer uma identidade entre os dois.
Aos nomes de Barnabé e Apoio tentou-se acrescentar outros, na
maioria procedentes do círculo direta ou indiretamente ligado à mis-
são paulina: Silvano, Priscila, (Adolf von Harnack, 1900), Aristion (o
Ancião mencionado por Papias: Eusébio, História eclesiástica 111,39),
Timóteo, o diácono Filipe, Maria, mãe de Jesus, etc.

Um autor anônimo
Para evitar as aproximações e identificações sempre possíveis,
mas arbitrárias, nossos conhecimentos se resumem aos seguintes
elementos: o autor se apresenta como homem (e não mulher, como
demonstra o particípio διηγύμ6ν‫׳‬ον em 11,32), pagão-cristão ou ju­

425
H ebreus

deu-cristão, experiente na leitura alegórica da Escritura tal como era


praticada no judaísmo helenístico, influenciado pelas escolas filosófi-
cas estóicas e neoplatônicas (cf abaixo "3. Composição literária”).
Talvez fosse originário da Alexandria ou de um outro centro intelec-
tual do Mediterrâneo oriental (o que não significaria que Hebreus
tenha sido redigido na Alexandria: o próprio Apoio foi mais longe do
que Corinto; c f ICor 16,12). Ele faz parte da segunda geração cris-
tã (Hb 2,3) e trabalha com base em tradições teológicas das quais
outros traços se encontram em Fílon, em Qumran ou na literatura
gnóstica do Egito.

2.4. Destinatários
A localização tradicional da epístola situa seus destinatários na
Palestina ou em Jerusalém mesmo (João Crisóstomo, A d Chenas,
PG 63,9-14; Teodoro de Mopsuéstia, A d Butefas, PG 66,952; Je-
rônimo, A d Timotheum V,23 PL 23,617; Teodoreto, A d Julienas, PG
82,676). Uma proposta alternativa sugere uma comunidade particu-
lar no interior da Igreja de Roma. Aqui também a ausência de dados
no próprio texto provoca a multiplicação de conjecturas: pensou-se
em Samaria, Antioquia, Chipre, Efeso, Colossos, Bitínia e Ponto, ou
ainda em Corinto.
A epístola é conhecida em Alexandria desde a metade do século
II como epístola “aos Hebreus”, antes mesmo de esse título ter sido
atestado pela tradição manuscrita (Clemente de Alexandria, cita-
do por Eusébio, História eclesiástica VI,14,4). Isso quer dizer que os
destinatários deviam, pelo menos, ser judeu-cristãos? E possível. A
finalidade da exortação teria sido, por exemplo, impedi-los de aban-
donar o cristianismo para retornar ao judaísmo. Mas também pode-
se imaginar um roteiro inverso: a carta seria um esforço de revigorar
um sistema de convicção pagão-cristão da perspectiva das tradições
intelectuais do judaísmo helenístico. As repetidas advertências so-
bre a impossibilidade de uma segunda conversão (6,4-6; 10,26) e a
perspectiva de um possível afastamento do Deus vivo (3,12) tendem
a confirmar a hipótese de destinatários pagão-cristãos.

426
A epístola a o s H e b re u s

As informações fornecidas pelo próprio escrito são, de novo, ex-


tremamente modestas. Os destinatários não são cristãos da primeira
geração (2,3-4; 10,32). Eles aprenderam os rudimentos do catecis-
mo há muito tempo (a fé em Deus, a doutrina do batismo e da impo-
sição das mãos, ressurreição e último julgamento), parecem perder a
convicção e têm necessidade, segundo o autor, de alimentos sólidos
(5,11-6,12). A menção de perseguições, espoliações e prisões (10,32-
34) pode, é verdade, fazer alusão às perseguições dos cristãos em
Roma, por Nero (64 d.C.), mas nada obriga a essa identificação,
tanto mais que uma destinação romana explica mal a recepção reti-
cente da epístola no cristianismo ocidental.

3 , C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
O ponto de partida do autor e de seu sermão não é o culto judai-
co nem a realidade dos sacrifícios no Templo de Jerusalém, mas o
texto grego do Antigo Testamento. Sua argumentação não deixa em
nenhum momento transparecer a impressão de uma relação pessoal
com a religião judaica e com sua prática. A argumentação da epís-
tola não opõe dois cultos, o culto da primeira aliança (Hb 9,15) e o
da nova (8,8; 9,15, c f 12,24), mas busca o verdadeiro sentido das
prescrições veterotestamentárias. Em resumo: o autor é, antes de
tudo, um exegeta e um pregador. Ele trabalha com a ajuda de certos
métodos de leitura aplicados a textos e temas que escolheu pregar,
comentar e atualizar.

3 .1. Novo e antigo: a exegese alegórica


Os métodos exegéticos utilizados correspondem ao sistema de
convicção desenvolvido no sermão. Os pressupostos hermenêuticos
são herdados da releitura dos mitos homéricos nas escolas filosófi-
cas helenísticas, particularmente nas neoplatônicas e estóicas, e da
leitura do Antigo Testamento nos meios intelectuais e internaciona-
listas do judaísmo helenístico. Esses pressupostos são os seguintes:
o mundo perceptível e terrestre não é mais que a imagem (10,1), a
figura (8,5), a parábola (9,9), a cópia (9,24) ou a sombra (8,5; 10,1),

427
H ebreus

imperfeitas, provisórias e passageiras, da realidade eterna e celeste


que lhes serve de modelo (8,5). A primeira conseqüência dessa re-
lação idealista com a realidade é a necessidade de uma leitura alegó-
rica dos textos: a verdade não está na letra, mas no espírito do qual
ela é a imagem. Nessa perspectiva, ler significa procurar a verdade
do espírito através e além da aparência apenas da letra. A segunda
conseqüência é a suspensão da história: o que é terrestre é, na ver-
dade, mortal e perecível (8,13). As realidades celestes são, ao con-
trário, eternas. Segue-se daí uma inversão dos esquemas temporais:
o Templo terrestre é construído à imagem de seu modelo celeste e a
primeira aliança é a sombra ou a figura da nova, de sorte que a nova
era antes de a primeira ser (8,5).

3.2. Melquisedec
Hebreus não é o primeiro escrito judaico ou cristão a explorar
a figura de Melquisedec (cf Fílon, De Specialibus legibus III, 79-83;
Flávio Josefo, Guerra dos judeus 6,438; Antiguidades judaicas 1,177-
182; / Henoc [eslavo] 71 s.; 1IQI3 = II QMetquisedec; N H C IX, I Mel-
quisedec). Melquisedec aparece duas vezes, de modo enigmático, no
Antigo Testamento. Na primeira vez, ele traz pão, vinho e bênção
para Abraão (Gn 14,18-20). Enviado misterioso, ele é ao mesmo
tempo rei de Jerusalém e sacerdote de Deus Altíssimo. Na segunda
vez, seu nome é pronunciado nas promessas messiânicas do Salmo
110: o Messias anunciado será sacerdote para toda a eternidade, à
maneira de Melquisedec (SI 110,4).
Nesses dois textos do Antigo Testamento, Hebreus encontra os
elementos necessários para a caracterização de Jesus como sumo
sacerdote. E o Salmo 110 que, citado no anúncio do tema, em He-
breus 5,6, introduz o personagem de Melquisedec. Melquisedec é
uma figura messiânica, seu sacerdócio é eterno e o sumo sacerdote
de sua ordem é eterno, santo e sem pecado. O texto de Gênesis
14,18-20 é introduzido como ponto de partida para o comentário de
Hebreus 7,1-28: Melquisedec é a figura do enviado celeste do Altís-
simo. A combinação desses dois textos faz de Melquisedec o protó­

428
A epístola a o s H e b reu s

tipo ideai de um sacerdócio celeste e perfeito que se opõe à ordem


sacerdotal, terrestre e imperfeita, das ordens levíticas. A ordem ce-
leste e perfeita de Melquisedec, conforme à qual Jesus, sumo sacer-
dote, celebra de uma vez por todas o sacrifício de sua vida (10,10), é
o modelo do qual o culto veterotestamentário era a parábola imper-
feita e terrestre.

3.3. O sumo sacerdote divino e escatológico


A cristologia sacerdotal de Hebreus parece cair do céu. Nada nas
tradições teológicas do cristianismo antigo, com possível exceção de
João 19,23b, parece preparar o emprego do título “sumo sacerdote”
como atributo cristológico. Os pressupostos dessa atribuição são os
seguintes:
a) um suficiente distanciamento geográfico e ideológico de
Jerusalém e da realidade do Templo e de seu culto: Jesus
não faz parte da família sacerdotal e não teria podido ser,
segundo a lei judaica, sumo sacerdote;
b) um suficiente distanciamento geográfico e ideológico de
Jerusalém e do culto sacrifical para que o autor pudesse
desenvolver uma leitura alegórica dos textos veterotesta-
mentários concernentes à Tenda do encontro e ao Templo
sem que se estabelecesse, automaticamente, uma relação
com o lem plo realmente existente (ou não mais existen-
te) em Jerusalém. A única possível exceção se encontra
em Hebreus 8,13;
c) a interpretação alegórica da figura do sumo sacerdote
no judaísmo alexandrino. No seu comentário de Levítico
35,28, Fílon recusa uma interpretação histórica, que não
pode levar à verdade, optando por uma leitura alegórica
conforme à natureza do texto e de seu objeto. O sumo sa-
cerdote não é um homem, mas o Logos divino, gerado por
Deus e por sua sabedoria (Fílon, De Fuga e inventione 108-
119, c f 115-118). Interpretação semelhante se encontra no
Testamento de Levi (TestLev 18,1-14).

429
H ebreus

Em Hebreus, o sumo sacerdote é o Salvador. Mas o Salvador é,


segundo o roteiro da epístola, o primeiro a ser salvo por sua obra de
salvação (Hb 13,20): santificador e santificados têm a mesma origem,
de sorte que ele chama os crentes de seus irmãos (2,11.14). Ele é o ini-
ciador da fé (12,2), o iniciador da salvação (2,10) e o primeiro a ter sido
elevado (13,20) depois de ter aberto, para si mesmo e para seus irmãos,
a cortina que separava o mundo terrestre do mundo divino (10,19-20).

3.4. A dupla metáfora do Templo


A obra da salvação é descrita na epístola pela combinação origi-
nal de duas diferentes metáforas do Templo.

O templo terrestre como imagem do Templo celeste


(Hb 8,1-5; 9,11-12; 9,23)
O ponto de partida desta primeira metáfora se encontra no pró-
prio Antigo Testamento: o Templo foi construído conforme o mo-
delo celeste mostrado a Moisés (Ex 25,40). Desse texto fundador
nasceu, no judaísmo helenístico, a idéia segundo a qual o Templo de
Jerusalém é a reprodução do Templo celeste e eterno. Essa idéia,
que se encontra no Apocalipse de Henoc (Hen. etíope 14,10-20) e no
Testamento de Levi (TestLev 3,1-10), é desenvolvida sistematicamen-
te por Fílon (De vita Mosis 11,74) e se encontra em Hebreus 9,11-12.
Segundo essa metáfora, dois templos e dois cultos se opõem: o
culto celeste e o culto terrestre, a verdade e sua sombra, o modelo
e sua réplica, a eternidade escatológica e o provisório do presente.
Segundo Hebreus, fazem parte do Templo celeste o sumo sacerdote
celeste e a perfeição do sacrifício que, por essa razão, só é oferecido
uma única vez (7,27; 9,12; 10,10).

O Templo como metáfora do cosmo (Hb 6,19-20; 9,24; 10,19-20)


A salvação reside na entrada do Salvador e de seus irmãos no
Santo dos Santos, e Jesus é o Salvador porque entrou para trás da
cortina do Templo e a abriu para seus irmãos. A imagem do Templo
pressuposta por essas formulações é diferente daquela da corres­

430
A epístola aos H e b reu s

pondência entre o "Templo celeste e o Templo terrestre. A idéia aqui


retomada encontra-se, por exemplo, em Sêneca {De beneficiis VII,
7,3): o mundo tem a estrutura de um templo. Segundo Fílon, o cos-
mo todo é construído como um templo vertical, sendo o céu consti-
tuído pelo Santo dos Santos {De specialibus legibus 1,66).
E bem essa a imagem retomada pela argumentação da epístola: o
Templo celeste é, de fato, o cosmo. O mundo terrestre é a parte do
Templo acessível aos humanos, em frente da cortina. É o espaço das
realidades temporais e terrestres. Quanto ao Santo dos Santos, que
se encontra atrás da cortina, é o domínio celeste e divino, que quer
dizer, também, o da presença de Deus e do repouso escatológico
prometido aos crentes. A obra da salvação consiste, para o Salvador,
em conduzir os irmãos através da cortina do Templo (Hb 6,19; 9,3;
10,20), isto é, do espaço terrestre para o domínio celeste; ele lhes
dá, assim, acesso ao mundo divino.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. O sermão, palavra de exortação
O ponto de partida do sermão é o texto bíblico. O texto vetero-
testamentário é o da Septuaginta, isto é, da Bíblia cristã, que o autor
apresenta como a palavra de Deus (Hb 1,1; 4,12 s.). Essa palavra é o
ponto de partida daquilo que o autor, ou seu editor, chama em 13,22
de uma “palavra de exortação" (λόγος τής παρακλήσ^ως). A fun-
ção dessa pregação é definida explicitamente pelo autor: trata-se de
restituir a razão de crer e de esperar a cristãos que os elementos da
teologia que receberam não alimentam mais (5,11-6,12). Como se
esgotou uma teologia, a fé deve ser reanimada por uma nova idéia.

4.2. A nova e a primeira aliança


O tema do sermão, mas também o da própria Escritura, é o acon-
tecimento salvífico ligado ao envio e ao sacrifício do Filho (1,3-4).
O método alegórico da leitura dos textos é posto a serviço de uma
leitura sistematicamente cristológica da Escritura. O método da ale-
gorização, que consiste em ler alegoricamente textos não-alegóri-

431
H ebreus

cos, é um empreendimento especulativo. Mas é o próprio objeto a


ser interpretado que torna necessária a especulação: o texto e seu
conteúdo são as figuras terrestres das realidades celestes; ora, as
realidades celestes foram anunciadas pelo Filho, de sorte que a sal-
vação anunciada pelo Filho (1,2; 2,3) é, necessariamente, ao mesmo
tempo o sujeito e a chave de interpretação da palavra de Deus ates-
tada pelos “profetas” (1,1).
A primeira conseqüência dos princípios hermenêuticos adotados
reside neste paradoxo temporal: a morte de Jesus sela uma nova
aliança (8,8; 9,15; c f 12,24), mas essa nova aliança é o modelo ideal
e celeste segundo o qual foi instituída a primeira aliança (8,5; 9.15).
Em sua essência, a primeira aliança e a ordem veterotestamentária
do culto são a sombra e a parábola da aliança celeste e eterna selada
de uma vez por todas pelo Filho (7,27; 9,12; 10,10).
A segunda conseqüência reside em uma interpretação radical-
mente anti-sacrifical da morte de Jesus: a nova aliança foi selada de
uma vez por todas, de maneira definitiva e perfeita; ela proclama,
portanto, o fim da primeira aliança, a dos ritos sacrificais (8,13), do-
ravante abolida.

4.3. Promessa e realização: a f é e a esperança


Os patriarcas, Moisés e os profetas são os heróis da fé. Eles creram
(11,1-38), operaram prodígios (ll,33-35a) e pagaram o preço de suas
convicções (11,35b-38). São, no sermão, os modelos de fé e a nuvem
de testemunhas (12,1) dados como exemplo para os destinatários. A
razão pela qual são o protótipo da existência crente decorre da defi-
nição da “fé” dada pela epístola (4,2; 6,1.12; 10,22.38 s.; 12,2; 13,7, e
25 ocorrências em Hb 11): “A fé é um modo de possuir desde agora
o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se vêem ”
(11,1). A fé é a condição indispensável para a obtenção da paz escato-
lógica; ela é a visão do mundo divino e, por isso, o conhecimento é a
base sobre a qual repousa a esperança (3,6; 6,11.18; 7,19; 10,23).
Diferentemente de Paulo, que pode considerar Abraão como uma
figura contemporânea da fé cristã (Rm 4,1-25), o autor de Hebreus

432
A epístola ao s H e b reu s

mantém uma clara distância entre seus destinatários e si mesmo, de


um lado, e os “ancestrais” do outro (Hb 11,2). Essa distância é devida
à sua concepção das duas alianças e à visão da história que dela de-
corre: os ancestrais creram, mas não obtiveram a realização da pro-
messa. Deus previa melhor ainda: o envio de seu Filho, de sorte que os
ancestrais não conheceram a realização antes do autor e de seus des-
tinatários cristãos (11,39-40). A superioridade do Filho sobre os anjos
e à da nova aliança sobre sua réplica (doravante abolida) corresponde
a superioridade da salvação anunciada em relação ao período das tes-
temunhas antigas. A demonstração da evidência do caráter precioso
e único dos bens prometidos pela palavra de Deus deveria dissuadir os
destinatários do sermão de se desencorajar e abandonar a fé.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Os trabalhos de Albert Vanhoye2 sobre a estrutura literária e for-
mal da epístola deram decisivo impulso à pesquisa recente.
A outra fonte de renovação da interpretação histórica, religiosa e
teológica da epístola vem da descoberta dos textos de Qumran so-
bre o Templo e sobre Melquisedec e, em medida ainda muito maior,
dos códices de Nag Hammadi. As profundas relações de parentesco
com a exegese judaica helenística, representada por Fílon de Ale-
xandria, devem ser estendidas até as primeiras interpretações gnós-
ticas do cristianismo.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
ATTRIDGE, Harold W. The Epistle to the Hebrews. Philadelphia, Fortress
Press, 1989 (Hermeneia).
M A cLACH LAN W ILSO N, Robert. Hebrews. Grand Rapids, Eerdmans,
1987 (N e w Century Bible Commentary). 1

1 Albert VANHOYE, La structure littéraire de 1'épitre aux Hébreux, Paris,


Desclée de Brouwer, 21976 [1. ed. 1963]; ID., Situation du Christ. Hébreux
1-2, Paris, Cerf 1969.

433
H ebreus

MICHEL, O tto. Der Brief an die Hebrãer. Gottingen, Vandenhoeck und


Ruprecht, '2I960 (KEK 13).
SPICQ, Ceslas. L épitre aux Hébreux. Paris, Gabalda, 1977 (Sources Bibli-
q ues).
W EISS, Hans-Friedrich. Der Brief an die Hebràer. Gottingen, Vanden-
hoeckund Ruprecht, 1991 (KEK 13).

Leitura prioritária
MACRAE, George W. Heavenly Temple and Eschatology in the Letter to
the Hebrew s. Semeia 12 (1978). 179-199.
VANHO YE, Albert. Le message de Γépitre aux Hébreux. Cahiers Evan-
gile, Paris, Cerf) 19 (1977).

Situação da pesquisa
M ICHAUD, Jean-Paul. Lépitre aux H ébreux aujourd’hui. In: ACEBAC,
“De bien des manières”. La recherche hiblique aux abords du XXI
siècle. Montréal/Paris, Fides/Cerfj 1995, p. 391-431 (LeDiv 163).

Estudos particulares
BACKHAUS, Knut. Der Neue Bund und das Werden der Kirche. Die Dia-
theke-Deutung des Hebráerhriefes im Rahmen der friihchristlichen
Theologiegeschichte. Münster, AschendorfF, 1996 (NTA 29).
BO VO N, François. Le Christ, la foi e t la Sagesse dans 1’épitre aux H é-
breux. In: Révélations et Ecritures. G enève, Labor e t Fides, 1993, p.
77-93 (Monde de la Bible 26).
KASEM ANN, Ernst. Das wandernde Cottesvolk. Eine Untersuchung zum
Hehraerbrief Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 4196I [1. ed.
1939] (FRLANT 55).
VANHOYE, Albert. La structure littéraire de Lépitre aux Hébreux. Paris,
D esclée de Brouwer, 2I976 [I. ed. 1963].
--------- . Situation du Christ. Hébreux 1-2. Paris, Cerf, 1969 (LeDiv 58).

434
A tradição joanina
CAPITULO

20
0 evangelho segundo João
Jean Zum stein

A tradição da Igreja primitiva, Ireneu de Lião em particular, atri-


bui cinco escritos neotestamentários ao apóstolo João, o Zebedeu.
Trata-se do evangelho de João (o quarto), das três epístolas, I João,
2 João, 3 João, e do Apocalipse de João. Seja qual for o valor histó-
rico dessa atribuição, esses cinco documentos são, desde o século
11 d.C., associados um ao outro na história da Bíblia cristã e consti-
tuem o que se convencionou chamar de tradição joanina.

1. A presen ta çã o
/. /. João e os sinóticos
Uma rápida comparação do evangelho segundo João com os sinó-
ticos permite ressaltar sua originalidade. Com efeito, constatam-se
alguns pontos em comum, mas sobretudo diferenças substanciais.
Quatro pontos comuns merecem ser assinalados:
a) O mesmo gênero literário. Como os sinóticos, João recorre
ao gênero literário do evangelho. Para transmitir a fé, ele
conta a história de Jesus terrestre partindo do testemu-
nho de João Batista e terminando seu relato pela história
da paixão e da Páscoa.

437
A tradição joanina

b) Algumas unidades narrativas comuns. Na primeira parte do


evangelho, contam-se cinco relatos que aparecem igual-
mente nos sinóticos. Trata-se da purificação do Templo
(2,13-22), da cura de um funcionário régio (4,46-54), do
milagre dos pães (6,1-13), do andar sobre as águas (6,16-
21) e da unção em Betânia (12,1-8).
c) Alguns logia comuns. Os exemplos mais claros de logia com
paralelo nos sinóticos são 1,27.33.51; 2,19; 3,35; 4,44;
12,25 e 15,20.
d) A história da paixão. A principal convergência com os si-
nóticos se verifica na própria estrutura narrativa à qual se
acrescentam alguns episódios comuns (p. ex., o anúncio da
traição de Judas e a negação de Pedro, 13,21-30.36-38).
A esses quatro pontos comuns se opõem quatro diferenças subs-
tanciais:
a) O plano do quarto evangelho. O plano de Marcos (que está
na base dos evangelhos de Mateus e Lucas) pode ser resu-
mido assim: a atividade pública de Cristo dura um ano; ela
se desenvolve, essencialmente, na Galiléia e termina com
uma única viagem a Jerusalém; Jesus passa uma semana
na Cidade santa antes de ser preso, julgado e executado; a
descoberta do túmulo vazio encerra a narração.
O plano de João se caracteriza por uma outra concep-
ção geográfica e cronológica. A atividade pública de Je-
sus dura não um, mas três anos (três festas sucessivas da
Páscoa são assinaladas: 2,13; 6,4; 11,55). O centro do mi-
nistério de Jesus não é mais a Galiléia, mas Jerusalém (o
Cristo joanino faz quatro viagens a Jerusalém). Por outro
lado, João relata menos acontecimentos da vida de Je-
sus e conta-os numa ordem diferente (exemplo clássico:
a purificação do Templo abre a atividade pública de Jesus
e não a paixão).
b) Os relatos joaninos. João contém um número apreciável de
relatos que não têm equivalente nos sinóticos. Entre eles,
é preciso assinalar, em primeiro lugar, os relatos de mila­

438
O evangelho segundo Jo ã o

gres que o evangelho apresenta como sinais (σημ6ια). En-


tre os relatos próprios de João, convém mencionar Caná
(2,1-12), Nicodemos (3,1-21), a samaritana (4,1-42), opa-
ralítico na piscina de Betesda (5), Jesus e seus irmãos (7,1-
10), o cego de nascença (9), a ressurreição de Lázaro (11),
Jesus e os gregos (12,20-23), o lava-pés (13,4-11), o ciclo
pascal (20) com a corrida ao túmulo, a aparição a Maria de
Mágdala e o episódio de lom é.
c) Os discursos. Os discursos do Cristo joanino constituem
a matéria principal dos capítulos 1-17. Eles se revelam
profundamente diferentes dos discursos de Cristo nos si-
nóticos. Nos três primeiros evangelhos, o Jesus terrestre
se exprime por meio de sentenças curtas, parábolas, afo-
rismos. No quarto evangelho, Cristo faz longos discursos
caracterizados por uma grande unidade de conteúdo. O
tema recorrente é o seguinte: Jesus é o enviado do Pai;
aquele que crer nele tem a vida eterna. Trata-se de discur-
sos cristológicos que culminam nas célebres declarações
com “Eu sou” (6γώ 61μι) e cuja intenção é formular a sig-
nificação da vinda do Revelador ao mundo.
d) Os temas. Segundo os sinóticos, o Cristo é, em primeiro
lugar, aquele que se dirige aos pobres e aos excluídos de
Israel para os libertar. Essa libertação é figurada no anún-
cio da proximidade do Reino de Deus e na interpretação
renovada da lorá. Em João, ao contrário, tanto a temática
do Reino de Deus como a da reinterpretação da Torá são
marginais. Toda a atenção se concentra na revelação da
glória do Filho.

1. 2. A estrutura do quarto evangelho


A macroestrutura do evangelho de João é relativamente fácil de
estabelecer. O prólogo (1,1-18) se distingue do corpo do escrito que
ele introduz sem, no entanto, dele fazer parte. De modo análogo, o
epílogo (21), posto após a conclusão do evangelho (20,30-31), apre­

439
A tradição joanina

senta-se explicitamente como um acréscimo e deve ser lido como


tal. Como indicam sucessivamente o epílogo de 12,37-50, que faz o
balanço da atividade pública do Cristo joanino, e a menção solene da
entrada na Paixão, em 13,1, o corpo do evangelho (1,19-20,31) com-
preende duas grandes partes: 1,19-12,50, que descreve a revelação
de Cristo diante do mundo, e 13,1-20,31, que evoca revelação de
Cristo diante dos seus.
A estruturação da primeira parte é difícil, porque o enredo não
é dramático, mas temático. Não se trata, para o evangelista, de
apresentar o desenvolvimento histórico, ou mesmo psicológico,
da vida de Cristo, mas de mostrar, ao longo de uma sucessão de
episódios, como, de um lado, a revelação cristológica se oferece
ao mundo e convoca à fé e, de outro, a variedade de respostas
que suscita. Devem-se notar, no entanto, dois elementos de pro-
gressão dramática no enredo dos capítulos 1-12. Antes de tudo,
os sete “sinais” (termo joanino que designa os relatos de milagre)
seguem uma curva ascendente e culminam, com a ressurreição
de Lázaro (11), no milagre por excelência, que é o dom da vida.
Em seguida, desde o capítulo 5, o conflito do Cristo joanino com
as autoridades judaicas aumenta progressivamente em violência
para desembocar na decisão do Sinédrio de decretar-lhe a mor-
te (11,45-54). Essa crescente violência do enfrentamento entre o
revelador e os “judeus” faz dos capítulos 11-12 um espaço em que
a morte de Cristo, doravante certa, se torna o assunto central da
reflexão e onde é feito o balanço, em forma de fracasso, da ativi-
dade de Cristo.
O plano da segunda parte é mais fácil de estabelecer. A última ceia
de Jesus com os seus é, ao mesmo tempo, o contexto do lava-pés
(13,1-20), do anúncio da traição de Judas (13,21-30), dos doisdiscur-
sos de despedida (13,31-14,31; 15-16) e da oração sacerdotal (17).
Comparada com os outros evangelhos, essa seqüência é de grande
originalidade, porque, tendo em vista o desaparecimento do Jesus
terrestre prestes a ocorrer, ela se interroga sobre o possível futuro
da revelação. A despedida de Cristo segue-se o relato da paixão (18-
19) e, depois, o ciclo pascal (20).

440
O evangelho segundo Jo ã o

Plano d o evangelho segundo João

Prólogo (1,1-18)
A revelação do Filho diante do mundo ou o livro dos
sinais (1,19-12,50)
1,19-2,22 Os inícios
O Batista e os primeiros discípulos (1,19-51); os
dois atos programáticos: Caná (2,1-12) e a purifi-
cação do Templo (2,13-22)
2,23-3,36 Nicodemos
O diálogo com Nicodemos (2,23-3,21); o debate
sobre a purificação (3,22-30); Aquele que vem
do alto (3,31-36)
4.1- 42 A samaritana
4,43-54 A cura do filho do funcionário régio
5.1- 47 A cura de um paralítico
A cura em dia de sábado (5,1-18); o poder do Fi-
Iho de Deus (5,19-30); a legitimidade do Revela-
dor (5,31-47)
6 O pão da vida
O milagre dos pães (6,1-15); o andar sobre as
águas (6,16-21); o discurso sobre o pão da vida
(6,22-50); o discurso de Jesus sobre sua carne e
seu sangue (6,51-59); escândalo e confissão de fé
de Pedro (6,60-71)
7-8 A rejeição de Jesus na festa das Tendas
Antes da festa (os irmãos de Jesus 7,1-13); o meio
da festa (7,14-36); o último dia da festa (7,37-
52); a mulher adúltera (7,53-8,11); Jesus luz do
mundo (8,12-20); a partida de Jesus (8,21-30); a
verdadeira posteridade de Abraão (8,31-59)
9-10 Confronto em Jerusalém antes e durante a festa
da Dedicação. A cura do cego de nascença (9,1-
41); o bom pastor (10,1-21); controvérsia com os
judeus (10,22-42)
11,1-54 A ressurreição de Lázaro
O sinal da ressurreição de Lázaro (11,1-44); o Si-
nédrio decide a morte de Jesus (11,45-54)
11,55-12,50 A última aparição pública de Jesus antes da
Páscoa
A unção em Betânia (11,55-12,11); a entrada em
Jerusalém (12,12-19); o discurso aos gregos — a
glória e a cruz (12,20-36); epílogo da primeira
parte do evangelho (12,37-50)

441
A tradição joanina

A revelação do Filho diante dos discípulos ou a hora da glorificação


(13-20)
13-17 Cristo se despede dos seus
A última ceia de Jesus: o lava-pés e sua explicação
(13,1-20): o anúncio da traição de Judas (13,21-30)
Os discursos de adeus: primeiro discurso de des-
pedida (13,31-14,31); último discurso de despedi-
da (15-16); a oração sacerdotal (17,1-26)
18-20 A Paixão e Páscoa
Prisão, processo e crucificação de Jesus (18-19);
ciclo pascal (20,1-29); conclusão do evangelho
(20,30-31)

Epílogo (21)

1.3. A recepção do quarto evangelho na Igreja primitiva


A recepção de João no cristianismo primitivo reserva uma surpresa.
Os testemunhos mais antigos da leitura e da utilização do evangelho
de João emanam, com efeito, dos círculos gnósticos do século 11 e,
particularmente, da gnose valentiniana. O Evangelho da verdade
(140-150) e o Evangelho de Filipe conhecem João, Heracleon o co-
menta. Quanto à Igreja primitiva, é preciso esperar por Teófilo de
Antioquia e lreneu de Lião, em fins do século II, para se descobrir as
primeiras citações indiscutíveis de João. O papiro Egerton 2 confir-
ma a recepção eclesial do quarto evangelho.

O texto de João é tão bem conservado quanto o dos evangelhos sinóticos.


Ele não só aparece nos grandes unciais dos séculos IV/V (Sinaítico, Vaticanus,
Códice de Beza), mas, antes disso, ele é igualmente transmitido por papiros. O
P52, o mais antigo papiro neotestamentário (= Jo 18,31-33.37-38), prova que o
evangelho estava em circulação no Egito por volta de 130. Os papiros P66 (= Jo
1-5; extrato do cap. 6; 7-13; extratos dos caps. 14.15.16; 17-19; extratos dos
caps. 20-21) e P75 (= Jo 1-12; extratos dos caps. 13; 14; 15), que datam respectí-
vamente da metade do século II e do início do século III, nos fazem descobrir o
estado do texto do evangelho nessa época recuada.

A presença de João nas grandes listas canônicas é constante e


indiscutível desde o cânon de Muratori (c. 200) até a epístola de
Atanásio (367), passando por Orígenes, Eusébio de Cesaréia, o câ-

442
O evangelho segundo Jo ã o

non do Códice Claromontanus, Cirilo de Jerusalém, os sínodos de


Laodicéia e de Cartago.

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
2.1. A questão da integridade literária
Tanto a crítica textual como a crítica literária mostram que
o evangelho em sua forma canônica não é um texto contínuo, mas o
resultado de um longo e complexo processo de composição.
A crítica textual revela que 5,3b-4 e 7 ,5 3 -8 ,11 (o episódio da mu-
lher adúltera) constituem seqüências que vieram a ser enxertadas
posteriormente no texto de João. Essas duas seqüências, portanto,
não fazem parte da obra em sua forma primitiva, mas dependem da
história de sua recepção.
Uma leitura atenta da obra mostra que, pelo menos em um caso
— trata-se da sequência dos capítulos 5 a 7 — , a ordem da narração
parece ter sido subvertida. A indicação topográfica de 6,1 (“Jesus
passou para a outra margem do mar da Galiléia”) cabe mal no con-
texto, porque o conjunto do capítulo 5 se desenrola em Jerusalém.
Pelo contrário, invertendo-se a ordem dos capítulos 5 e 6 recupera-
se a coerência do quadro geográfico. Além disso, o discurso proferi-
do pelo Cristo joanino por ocasião da festa das Tendas, em 7,15-24,
evoca a intenção dos “judeus” de suprimir Jesus, acusado de trans-
gredir o sábado. Por isso, essa passagem parece fazer eco à cena de
5,1-18 e constituir a continuação lógica de 5,19-47. Combinando-se
essas duas observações, chega-se a reconstruir a ordem inicial des-
ses capítulos da seguinte maneira: 4.6.5.7,15-24.1-14.25 ss.
O evangelho não parece ter sido composto de uma só vez, mas
ter sido objeto de várias redações. Quatro observações vêem em
apoio dessa hipótese.
• As duas conclusões do evangelho. O evangelho não tem uma
conclusão, mas duas. A primeira, em 20,30-31, é a conclusão
inicial da obra, enquanto a segunda, em 21,25, constitui a úl-
tima palavra do epílogo (capítulo 21). Ora, a voz que se expri-
me em 21,24 se distingue explicitamente do autor do evange-

443
A tradição joanina

Iho mesmo (“É este discípulo que testemunha essas coisas e


as escreveu, e nós sabemos que seu testemunho é conforme
à verdade”). As duas conclusões não seriam, portanto, da
mesma pessoa e abonam, sem a menor dúvida, a hipótese de
uma dupla redação. Aliás, o conjunto do capítulo 21 parece
ser um exemplo privilegiado da redação final de João.
• As glosas. O fenômeno de dupla redação é sustentado pela
existência de toda uma série de glosas secundárias no texto
do evangelho. Algumas esclarecem um detalhe (p. ex .p4,2),
outras comentam teologicamente o relato (p. ex., 4,44;
7,39b; 12,16).
• Os acréscimos secundários no relato. Às vezes, algumas pa-
lavras são inseridas — sem qualquer indicação — no relato
inicial para enquadrar o propósito teológico (como as notí-
cias escatológicas em 5,28 s.; 6,39.40.44.54; 12,48).
• Os trechos acrescentados. No fim de algumas seqüências, fo-
ram acrescentados trechos que interrompem e retardam o
desenvolvimento da narração. Assim, no fim do capítulo 3,
o círculo editor da obra incluiu — sem ligação aparente nem
com o que precede, nem com o que se segue — um pequeno
trecho cristológico (3,31-36). No fim do capítulo 12, a conclu-
são da primeira parte (12,37-43) é, igualmente, completada
por uma pequena passagem cristológica (12,44-50). O relato
do lava-pés comporta duas interpretações (13,6-11.12-20).
Enfim, o primeiro discurso de despedida termina em 14,31
com a célebre injunção: “Levantai-vos, partamos daqui!”.
Essa ordem, no entanto, só é executada em 18,1, que marca
o início do relato da paixão. Parece, portanto, que os capí-
tulos 15-17 foram posteriormente colocados entre 14,31 e
18,1. Em todos esses exemplos, a escola joanina parece ter
completado uma versão inicial da obra, aumentando-a com
a adjunção de pequenos conjuntos tipicamente joaninos.
Como explicar o conjunto desses fenômenos? E possível recons-
truir a história da composição do quarto evangelho e, em caso afir-
mativo, como?

444
O evangelho segundo Jo ã o

2.2. Três modelos de composição literária


A pesquisa exegética tentou, no século XX, explicar a gênese do
quarto evangelho propondo três grandes modelos distintos.
a) O modelo da unidade de composição. Nessa hipótese, afir-
ma-se que o evangelho, em seu conjunto, é obra de um só
e único autor. O argumento invocado é de natureza estilís-
tica (E. Ruckstuhl, E. Schweizer)1. E, com efeito — mos-
tra a estatística terminológica — , a mesma linguagem que
domina, de uma ponta à outra, o relato joanino. Para os
defensores desse modelo, as eventuais tensões surgidas ao
longo da obra se explicam por uma hipótese complemen-
tar: é o mesmo autor que, em várias revisões, reelaborou
seu texto inicial (B. Lindars, U. Wilckens)2.
Esse modelo cai sob o golpe de uma dupla crítica. De um lado,
a unidade de estilo não remete, necessariamente, a uma individua-
lidade, mas pode bem ser o sinal distintivo de um meio sociológico
homogêneo e estruturado, uma escola por exemplo. De outro lado,
não se explica por que um autor, ao retocar sua obra, acaba por criar
tensões tanto no nível literário como no nível teológico.
b) O modelo do evangelho primitivo. Essa teoria, muito em
voga por volta de 1900 (J. Wellhausen)3, foi retomada e
desenvolvida na segunda metade do século (R. E. Brown,
W. Langbrandtner, G. Richter etc.)4. A idéia principal

1 C f Eugen RUCKSTUHL, Die literarische Einheit des Johannesevangel-


kiums, Freigburg, Gottingen Universitátsverlag/Vandenhoeck und Rup-
recht, 1987; Eduard SCHWEIZER, Ego Eimi. Die religionsgeschichtliche
Herkunft und theologische Bedeutung der johanneischen Bildreden, zu-
gleich ein Beitrag zur Quellenfrage des vierten Evangeliums, Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1939.
1 Barnabas LINDARS, Behind the Gospel, London, SPCK, 1971, 27-42; Ul-
rich WILCKENS, Die Entstehungsgeschichte des vierten Evangeliums, Zolli-
kon, Evangelischer Verlag, 1958.
3 Julius WEELHAUSEN, Erweiterungen und Ànderungen im vierten Evan-
gelium, Berlin, 1907.
4 W. LANGBRANDTNER, Weltferner Gott oder Gott der Liebe, Frankfurt
am Main, Peter Lang, 1977; G. RICHTER, Sudien zum Johannesevangeli-
um, Regensburg, Pustet, 1977.

445
A tradição joanina

desse modelo consiste em postular a existência de um


evangelho primitivo, na origem da tradição joanina, o
qual foi, em seguida, objeto de sucessivas reinterpreta-
ções e ampliações.
A força dessa hipótese reside no fato de apresentar a história da
composição do quarto evangelho sob a forma de um processo teo-
lógico e literário dinâmico, ampliando e aprofundando o relato joa-
nino. Sua fraqueza é dupla. De um lado, não há nenhum consenso
concernente à delimitação do evangelho primitivo. De outro lado,
para que houvesse evangelho primitivo, isto é, um relato da vida e da
morte de Cristo, seria preciso que, no mínimo, os relatos de milagres
e o da Paixão tivessem formado uma unidade desde o início do pro-
cesso literário. Ora, a leitura atenta do evangelho não favorece essa
hipótese: parece, antes, que foi o evangelista que ligou esses dois
conjuntos tradicionais muito diferentes um do outro.
c) O modelo das fontes. Essa posição, formulada de manei-
ra programática por Bultmann, goza ainda hoje de amplo
apoio (J. Becker, R.Schnackenburg etc.). Ela depende de
duas afirmações complementares. De um lado, para com-
por seu evangelho, o evangelista dispunha (I) de um relato
da Paixão, (2) de um conjunto de relatos de milagres e (3)
de logia, particular mente reelaborados por ele nos seus
grandes discursos. De outro lado, a obra elaborada pelo
evangelista foi retomada, ampliada e aprofundada pela es-
cola joanina (= redação final).
Essa hipótese — assim formulada — retoma a idéia-força de
Bultmann, corrigindo-a em vários pontos. A existência de um re-
lato pré-joanino da paixão, recebido e reformulado pelo evange-
lista, quase não é contestada. Do mesmo modo, a crítica, em seu
conjunto, admite que o evangelista tenha integrado em sua nar-
ração uma série de relatos de milagres preexistentes e, em parte,
próprios do meio joanino. As opiniões se separam, em compensa-
ção, quando se trata de saber se esses relatos de milagres forma-
vam uma fonte coerente tanto do ponto de vista literário como
do teológico — chamada de fonte dos sinais ou das semeia (por

446
O evangelho segundo Jo ã o

Bultmann, seguido, p. ex., por J. Becker e R. Schnackenburg) — ,


ou se, de preferência, deve-se pensar em relatos de milagres de
diversas proveniências (p. ex. D. Marguerat, U. Schenelle)5. Em
compensação, a pesquisa abandonou a idéia de uma fonte de dis-
cursos de revelação de origem pré-cristã e de tendência gnóstica
(as Offenbarungsreden, segundo Bultmann) e prefere postular a
existência de uma coleção de logia cristãos, transmitidos no meio
joanino, e que teria constituído a matéria reelaborada nos discur-
sos e diálogos do evangelho (ex.: as palavras com “Eu sou” ou as
palavras sobre o Paráclito).
O trabalho da redação final não é contestado. Ela colocou (uma
ou várias vezes?) acréscimos nos pontos que marcam o fim de
uma seção: o epílogo (capítulo 21) após a primitiva conclusão do
evangelho (20,30-31); o segundo discurso de despedida (15-16) e a
oração sacerdotal após o primeiro discurso de despedida; 12,44-50
após a conclusão da primeira parte do evangelho (12,27-43); 3,31-
36 após o ciclo sobre Nicodemos e uma sequência sobre o Batista;
10,1-18 após a cura do cego de nascença (9). A essas adições subs-
tanciais devem-se juntar glosas introduzidas em dado relato ou
dado discurso (1,29b; 5,28-29; 6,5lc-58; ver também acima 2.1)
e as notas escatológicas. Essa simples enumeração permite cons-
tatar que os remanejamentos mais importantes afetam a segunda
parte do evangelho.
Note-se, enfim, que o alcance exato da redação final é contro-
vertido: trata-se de um trabalho teológico coerente e planejado que
testemunha certo distanciamento em relação à posição do evange-
lista (p. ex., R. Bultmann, J. Becker)? Ou seria antes um trabalho
de releitura que tem por intuito aprofundar e atualizar a posição do
evangelista (J. Zumstein)?

5 Daniel MARGUERAT, La source des signes existe-elle? Reception des re-


cits de miracle dans 1’évangile de Jean, in Jean-Daniel KAESTLI, Jean-
Michel POFFET, Jean ZUMSTEIN (éds.), La communauté johannique et
son histoire, Geneve, Labor et Fides, 1990, 69-93; Udo SCHNELLE, An-
tidoketische Christologie im Johannesevangelium, Gottingen, Vandenhoeck
umd Ruprecht, 1987, 168-180.

447
A tradição joanina

2 .3. João e os sinóticos


Não se pode tratar da questão das fontes utilizadas por João sem
evocar a relação de João com os evangelhos sinóticos. Duas teses se
confrontam.
a) A tese muito antiga da dependência literária volta hoje a
ser apreciada (cf C. K. Barret, E Neirynck e a escola de
Louvain, U. Schnelle)6. Ela postula que João conheceu
um ou vários dos evangelhos sinóticos e que os utilizou
como fonte. Queria, assim, completar, superar e até
mesmo substituir (H. Windish)7 os evangelhos sinóticos.
Em favor dessa tese são apresentados os seguintes argu-
mentos. Primeiro, para proclamar a fé em Jesus Cristo
(20,30-31), João recorre ao mesmo gênero literário dos
sinóticos — o gênero literário do evangelho. A semelhan-
ça deles, redige uma narrativa que começa pelo teste-
munho de João Batista, prossegue evocando a pregação
e os milagres de Jesus, termina pela lembrança de sua
paixão, morte e ressurreição. Em segundo lugar, consta-
ta-se em João a presença de seqüências narrativas que
apresentam os episódios na mesma ordem que Marcos
(ex.: Jo 6; Jo 18-19). Em terceiro lugar, enfim, nota-se
a existência de algumas identidades verbais entre João e
os sinóticos8.
b) A tese da independência literária de João em relação aos si-
nóticos (R Gardner-Smith)9 teve grande aceitação, apoia-
da como foi por Bultmann e Dodd. Ela postula que João

6 Adalbert DENAUX (ed.), John and the Synoptics, Leuven, Leuven Uni-
versity Press, 1992; Udo SCHNELLE, Johannes und die Synoptiker, in
Franz VAN SEGBROECK et al. (eds.), The Four Gospels. Festschrift F
Neirynck, Leuven, Leuven University Press, 1992, 1.799-1.814.
7 Hans WINDISCH, Johannes und die Synoptiker, Leipzig [s.n.], 1926.
8 Inventário, c f Udo SCHNELLE, Einfiihrung in das Neue Testament, Got-
tingen, Vandenhoeck und Ruprecht, *1996, 563-566.
9 Percival GARDNER-SMITH, St. John and the Synoptic Gospels, Cambrid-
ge, Cambridge University Press, 1938.

448
O evangelho segundo Jo ã o

não conheceu nem utilizou os sinóticos sob a sua forma


literária, mas que, em compensação, alimentou-se em um
fundo de tradições comuns aos meios pré-joanino e pré-
sinótico (exemplo clássico: os relatos de milagres, o rela-
to da paixão). Nesse caso, a dependência não se situa no
nível literário, mas está ligada à história das tradições, de
forma que João teria inventado, pela segunda vez, com
toda independência, o gênero literário do evangelho. Os
argumentos em favor desta tese são os seguintes: 1) o tipo
de intertextualidade que prevalece entre os sinóticos (p.
ex., a maneira como Mateus retoma Marcos) não se en-
contra em João; 2) as identidades verbais nas seqüências
narrativas, que são um argumento decisivo em matéria de
dependência literária, são quase inexistentes; 3) as diferen-
ças na matéria apresentada são consideráveis; João ignora
tudo a respeito dos relatos da infância, das parábolas, das
controvérsias, dos logia reunidos na fonte Q, do apocalip-
se sinótico, da pregação de Jesus sobre o Reino de Deus;
4) quando aparecem elementos comuns, as diferenças são
também consideráveis (comparar respectivamente em
João e nos sinóticos: o testemunho de João Batista, a lista
de relatos de milagres, a formulação do mandamento do
amor, os anúncios da paixão).
Pode-se decidir entre essas duas hipóteses? N o estado atual
de nossos conhecimentos e de nossa documentação, só é possível
uma resposta parcial. A pesquisa recente10 demonstrou que o tipo
de intertextualidade que prevalece entre os sinóticos (cf a teoria
das duas fontes) não se encontra no caso de João. O argumento
decisivo é do seguinte teor: no caso de relatos paralelos (Jr 4,46b-
54//M t 8,5-13, Lc 7,1-10; Jo 6 ,1-15//Mc 6,32-44, Mt 14,13-21, Lc
9,10-17; Jr 6,16-21//M c 6,45-52, Mt 14,22-33), a versão joanina

10 Stephan LANDIS, Das Verhàltnis des Joannesevangeliums zu den Synop-


tikern, Berlin, Tòpelmann, 1992; Christian RINIKER, Jean 6,1-21 et les
évangiles synoptiques, in KAESTLI, POFFET, ZUMSTEIN (eds.), La
communauté johannique et son histoire, 41-67.

449
A tradição joanina

não comporta, jamais, elementos redacionais característicos das


versões sinóticas paralelas; essa carência indica, de forma absolu-
ta, que não há dependência literária de João em relação aos sinó-
ticos. Esse argumento — que exclui uma relação de dependência
literária — não significa, contudo, que João não tenha conhecido
os sinóticos; indica apenas que não os utilizou como fonte. Com
efeito, pode-se muito bem supor que João estivesse a par da exis-
tência dos sinóticos. Talvez tivesse mesmo lido um ou vários de-
les. O fato decisivo é que ele elaborou seu evangelho com base
em materiais tradicionais que circulavam em seu meio, apoiando-
se em sua própria concepção teológica. Conhecidos ou desconhe-
cidos, os evangelhos sinóticos não pesaram nem na escolha das
tradições postas por escrito, nem na concepção teológica global
(D. M. Smith)11.

2.4. Particularidades e origem da linguajem joanina


A linguagem joanina
A comparação de João com os evangelhos sinóticos (cf em 1)
revela a singularidade da linguagem joanina.
a) O vocabulário utilizado no evangelho de João, mas igual-
mente nas epístolas joaninas, é distinto do utilizado nos
evangelhos sinóticos. A estatística terminológica mostra
que os termos caros a João (p. ex., amar, a verdade, co-
nhecer, a vida, os judeus, o mundo, julgar, testemunhar,
o Pai, enviar, guardar, manifestar, a luz, permanecer etc.)
raramente aparecem nos sinóticos; inversamente, as no-
ções caras aos sinóticos (o batismo, o Reinado/Reino, o
demônio, ter piedade, purificar, proclamar, o evangelho,
converter-se, a parábola, a oração etc.) só excepcional-
mente se encontram em João12.

11 D. Moody SMITH, Johannine Christianity, Columbia, University of South


Carolina Press, 1984, 95-172.
12 C f os quadros estatísticos em Charles K. BARRET, The Gospel according
to St.John, Philadelphia, Westminster Press, 1978, 5-6.

450
O evangelho segundo Jo ã o

b) O estilo, ao mesmo tempo simples e solene, caracteriza-


se por particularidades freqüentemente salientadas (E.
Schweizer, E. Ruckstuhl).

I) Enquanto, em regra geral, o grego se distingue por seu uso


complexo das preposições, João chama a atenção por seu
gosto pela parataxe, feita de curtas proposições simplesmente
ligadas pela conjunção “e ” (καί). 2) ele recorre, também fa-
cilmente, ao assíndeto (ausência de ligação por uma conjun-
ção entre duas proposições). 3) Fato digno de nota, ele utiliza
cerca de trezentas vezes a partícula “então” (ouv), que tem
simplesmente função copulativa, sem outro significado. 4) As
conjunções “a fim de que” (,iva) e “que/porque” (ότι) têm fre-
qüentemente uma função explicativa. 5) A construção “não...
mas” (οΰ μή ... άλλά), também freqüente, aparece 75 vezes.
6) A esses elementos sintáxicos se acrescentam algumas locu-
ções típicas do estilo joanino: o pronome demonstrativo 4kíI
voç, por exemplo, é empregado 44 vezes, mas somente 21 ve-
zes no resto do Novo Testamento; João se serve comumente
do adjetivo possessivo 6μός (39 vezes, isto é, muito mais do que
no resto do Novo !estamento, que recorre mais comumente
à forma μου); a expressão άφ’ ίαυτου/àtr’ ίμαυτοϋ aparece tre-
ze vezes em João (mas somente três vezes no resto do Novo
Testamento ); a preposição ík é muito freqüente no quarto
evangelho (42 vezes).

c) Três procedimentos literários são freqüentemente usados


no quarto evangelho. Sua função é alimentar o comenta-
rio implícito que sustenta a narração (R. A. Culpepper).
Em primeiro lugar, deve ser citado o mal-entendido (ex.:
3,3-5; c f H. Leroy13). Esse procedimento joga com a am-
bivalência que caracteriza certas declarações do Cristo
joanino. O mecanismo empregado é o seguinte: o interlo-
cutor se engana sobre o sentido de uma palavra de Cristo,
interpretando-a em relação às certezas que prevalecem
no mundo. Essa incompreensão permite então ao Cristo

13 Herbet LEROY, RátselundMissverstándnis. Ein Beitragzur Formgeschich-


te des Johannesevangeliums, Bonn, P Hanstein, 1968.

451
A tradição joanina

joanino reformular e esclarecer o sentido da revelação de


que é portador. Em segundo lugar, deve-se mencionar a
linguagem simbólica (p. ex., as palavras com “Eu sou”, o
uso de noções tais como “água viva”, "pão”, “luz” “videi-
ra/ramos”, “porta” etc.). Explorando o sentido duplo ine-
rente a esse tipo de linguagem (o sentido primeiro aponta
para um sentido segundo), o símbolo fornece o reserva-
tório semântico necessário para a expressão da revelação.
Enfim, a ironia (p. ex. 11,47-50 e o relato da paixão) ex-
piora a discrepância entre o sentido aparente de um acon-
tecimento e seu sentido oculto — que é, de fato, seu sen-
tido verdadeiro.
d) Os pares de conceitos antitéticos (ex. luz/trevas, verdade/
mentira, no alto/embaixo, liberdade/escravidão, vida/
morte etc.) constituem, enfim, um elemento teologica-
mente importante da linguagem joanina, porque permitem
o conseqüente desenvolvimento do dualismo que através-
sa o quarto evangelho.

O pano de fundo religioso de João


A linguagem tão particular de João levanta o problema de sua ori-
gem. Trata-se de uma linguagem sem analogia no mundo religioso da
Antiguidade no Oriente Médio? Ou, ao contrário, é possível identi-
ficar ligações, paralelos ou influências de outros meios religiosos que
nos são conhecidos?
E preciso ter o cuidado de não dar uma resposta unilateral a essa
questão, propondo um modelo unívoco de explicação. O evangelho
segundo João situa-se na encruzilhada de diversos mundos religio-
sos, portadores de linguagens e representações bem específicas.
a) O primeiro meio que alimentou a linguagem joanina e seu
universo de representação foi o próprio cristianismo primi-
tivo. O essencial da matéria narrativa (relatos de milagres
e história da paixão), os logia integrados nos diálogos e nos
discursos (p. ex. as palavras com “Eu sou”), os títulos cris-

452
O evangelho segundo Jo ã o

tológicos ou o hino ao Logos (1,1-18) constituem tradições


que tomaram corpo no cristianismo primitivo antes de ser
integradas no evangelho. Uma vez mencionado esse en-
raizamento prioritário, e somente então, pode-se colocar
a questão das relações de João com meios exteriores ao
cristianismo nascente.
b) O evangelho faz eco ao conflito do cristianismo joanino
com a Sinagoga farisaica (9,22; 12,42; 16,2). A violência
mesma do confronto deixou traços no evangelho, que
remete a uma ligação certamente passada, mas íntima,
com o judaísmo palestino. Assim, certas passagens do
evangelho traem um admirável conhecimento da geogra-
fia palestina: 4,6 (Sicar); 5,2 (Betesda); 18,1 (Cedron).
As festas e as peregrinações delas decorrentes estrutu-
ram a narração joanina (2,13; 6,4; 7, 2.8.37; 10,22; 18,28;
19.31.42) . As prescrições daTorá, particularmente a ob-
servância do sábado (5,9-10; 7,22-24; 9,14.16), se con-
tam entre as convicções que se supõem conhecidas, as-
sim como a esperança messiânica judaica (p. ex. 1,20 ss.;
7.27.42) .
A influência do judaísmo palestino em João, por mais in-
contestável que seja, deve ser ponderada de uma tríplice
maneira. Antes de tudo, ela é parte constitutiva de toda
tradição sobre Jesus. Em seguida, pertence ao passado
das comunidades joaninas. Por fim, as problemáticas cen-
trais do judaísmo palestino (p. ex. a Lei ou o Templo) não
são mais questões centrais para a teologia joanina.
c) A descoberta dos manuscritos de Qumran permitiu lançar
nova luz sobre as ligações entre João e o judaísmo pales-
tino. Com efeito, a linguagem dualista, uma das caracte-
rísticas da conceituação joanina, está muito presente na
literatura qumraniana (por ex. a oposição luz/trevas ou
verdade/mentira).
Mesmo que os campos semânticos sejam muito próximos,
deve-se ter o cuidado de não concluir por uma influência

453
A tradição joanina

"18... E ele dispôs neles dois Espíritos para que andasse neles até o momento de sua
Visita: são os [dois] Espíritos de verdade e de perversão. 19 Em uma fonte de luz está
a origem da Verdade, e de uma nascente de trevas está a origem da perversão. 20 Na
mão do Príncipe das Luzes está o império sobre todos os filhos de justiça; pelos cami-
nhos da luz eles andam; e na mão do Anjo 21 das trevas está todo o império sobre os
filhos da perversão: e nos caminhos das trevas eles andam" (/ Q S III, 18-20).

determinante de Qumran em João. Com efeito, se a pe-


dra angular do dualismo qumraniano se mantém na pro-
blemática da lei (é a obediência ética à Torá que separa os
homens em dois campos), o dualismo joanino se origina
na cristologia (é a fé em Cristo, luz do mundo, que ope-
ra a separação entre os homens). A contrario, o dualismo
qumraniano nunca se situou em relação com a esperança
messiânica. Tira-se dessa observação uma dupla conclu-
são. De um lado, os textos de Qumran não fornecem o
pano de fundo religioso que permitiría situar facilmente a
literatura joanina na esteira do movimento essênio. Mas,
de outro lado, a linguagem dualista, típica do evangelho
de João, o aproxima mais do judaísmo heterodoxo do que
do judaísmo rabínico fariseu, preponderante após 70. Esse
julgamento é sustentado pela maneira como João se situa
em relação a um outro movimento heterodoxo judeu do
século I: João Batista e seus discípulos,
d) O início do evangelho de João conserva ainda a lembrança
de um confronto sem piedade com os círculos batistas. O
autor do evangelho de João não cessa, desde o início de
sua narração, de deixar clara a relação entre João Batista
e Jesus: o Batista não é mais do que o precursor de Cristo
(1,6-8); seu único papel consiste em ser a testemunha que
designa o Cordeiro e o Filho de Deus na pessoa de Jesus
(1,19-36); a superioridade de Cristo, diante da qual o Ba-
tista deve desaparecer, não deixa a menor dúvida (3,30;
5,36; 10,41). Essa clarificação se faz tanto mais necessária
porque, a se crer em João, os primeiros discípulos de Jesus
saíram dos círculos batistas (1,35 ss.).

454
O evangelho segundo Jo ã o

Esse trabalho de memória feito pelo autor do evangelho


deve prender a atenção por três razões. Primeiro, o meio
religioso judaico de onde emana Jesus é incontestável-
mente o movimento batista (cf o batismo de Jesus por
João Batista). Depois, esse meio batista, tão importante
aos olhos de João, visto que Jesus e seus primeiros disci-
pulos provêm dele, é parte integrante do judaísmo hetero-
doxo. Por fim, como mostra a história da gnose mandea-
na, os círculos batistas são um dos lugares de surgimento
da gnose.
e) O judaísmo palestino, com suas diferentes facetas, não
exclui, no entanto, um possível parentesco de João com
o judaísmo helenístico. As tradições sapienciais — e em
particular o mito da Sabedoria — , perceptíveis em João,
sobretudo no prólogo (1,1-18), são sua incontestável de-
monstração. Fílon de Alexandria, por exemplo, identifica
a Sabedoria com o Logos.
f) Entretanto, na exegese contemporânea, o debate cen-
trai sobre o enraizamento histórico-religioso do quarto
evangelho incide na relação de João com a gnose. "lanto o
dualismo que impregna a narração joanina como sua con-
cepção cristológica centrada na figura do enviado celeste
favoreceram essa hipótese. Bultmann, em particular, jul-
gou ver na figura do Filho preexistente, que vem revelar
a salvação entre os homens imersos nas trevas e, depois,
retorna para junto do Pai celeste, uma retomada crítica
do mito gnóstico do redentor. Deve-se, então, considerar
o evangelho de João constitutivamente tributário do uni-
verso de pensamento gnóstico que ele teria reinterpretado
de maneira fundamental (R. Bultmann), ou ao qual teria
sucumbido (E. Kásemann, L. Scotroff M) ou, ainda, com14

14 Ernst KÁSEMANN, Jesu letzter Wille nacht Johannes 17, Tubingen,


Mohr, 41980; Luise SCHOTTROFE Der Clauende und die feindliche
Welt. Beobachtungen zum gnostischen Dualismus und sener Bedeutung

455
A tradição joanina

quem ele estaria em uma ligação de íntima proximidade (J.


Becker)?
A resposta a essa questão é difícil por três razões. Em primeiro
lugar, a própria definição do que se deve entender por “influência
gnóstica” é problemática. Não basta, de fato, detectar no evange-
Iho um conceito ou uma representação que mais tarde aparecerão
nos sistemas gnósticos para concluir por uma ligação de pertença.
Esse conceito ou essa representação devem se integrar em uma
concepção gnóstica global, explicitamente identificável, para que
tal julgamento seja autorizado. Em segundo lugar, a definição mes-
ma do termo "gnose” se revela espinhosa. Trata-se de uma com-
preensão imaginária da existência que emerge do sincretismo an-
tigo e atravessa vários sistemas de pensamento (H. Jonas15)? Ou
se deve, antes, pensar em sistemas constituídos, formulados em
documentos hoje acessíveis (J. M. Sevrin)?16 Se é este o caso — e é
o terceiro ponto — , é forçoso então constatar que os documentos
literários gnósticos mais antigos que possuímos datam do século II
(o mito do redentor, por exemplo, só aparece em uma fase ulterior
do gnosticismo e de modo algum em suas origens). Esse diagnósti-
co se verifica para o evangelho de João; os documentos gnósticos
mais intimamente ligados a ele (p. ex. o hino da Pronoia transmitido
no Apocryphon de João) aparecem no século II, ou seja, depois da
redação do evangelho.
O que se deve concluir desse rápido sobrevoo? Só uma resposta
nuançada é aceitável. Por um lado, não há um confronto explícito
entre a gnose e a fé cristã no evangelho de João. Os elementos dos
grandes sistemas gnósticos do século II (particularmente a cosmolo-
gia) não são encontrados em João. Mais ainda, como mostra a noção

fur paulus und das Johannesevngelium, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener


Verlag, 1970.
15 Hans JONAS, Gnosis und spátantiker Geist, Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprech, 3I964, v. I; 2I966, v. Il/I.
16 Jean-Marie SEVRIN, Le quatrième évangile et le gnosticisme: questions
de méthode, in KAESTLI, POFFET ZUMSTEIN (éds.), La communauté
johannique et son histoire, 251-268

456
O evangelho segundo Jo ã o

de criação (cf o prólogo) ou ainda o primeiro discurso de despedida


(cf p. ex. 14,23), o quarto evangelho é agnóstico (H. Kõster)17. Por
outro lado, a história da recepção mostra que João se presta a uma
leitura gnóstica (cf por ex. a gnose valentiniana). Essa possibilidade
de leitura se explica pelo fato de que o evangelho de João nasceu
em um espaço religioso — a Síria — que iria se revelar como um dos
terrenos propícios à gnose. Mesmo que a expressão “pré-gnóstico”
se preste à discussão, ela define bem o ambiente religioso no qual a
escola joanina desenvolveu sua reflexão.

3 . O MEIO DE PRODUÇÃO
A comparação de João com os evangelhos sinóticos revela sua
especificidade. Malgrado algumas semelhanças (gênero literário, re-
lato da paixão, alguns relatos e logia em comum), João se impõe por
sua originalidade (plano, temas principais, relatos desconhecidos dos
sinóticos, discursos cristológicos). Essa originalidade significa que
João não é um fenômeno secundário na literatura neotestamentá-
ria, mas que ele constitui uma linha de desenvolvimento específico
na história do cristianismo primitivo. Nesse caso, como se pode des-
crever o meio de produção que está na origem do evangelho?

3.1. A escola joanina


O trabalho literário e teológico que levou à redação de João se
estende por vários decênios. Supõe a existência de um meio estável
no qual as tradições próprias das Igrejas joaninas foram recolhidas,
cotejadas, reinterpretadas e transmitidas, um meio em que esse tra-
balho teológico e literário desembocou na redação progressiva do
evangelho e, depois, das epístolas. E, portanto, legítimo supor que
essa tarefa tenha sido cumprida por um círculo teológico — a es-
cola joanina — cuja figura fundadora é, provavelmente, o discípulo

7‫ י‬Helmut KÕSTER, Les discours d'adieu de 1'évangile de Jean: leur trajetoi-


re au premier et au deuxième siècle, in KAESTLI, POFFET, ZUMSTEIN
(éds.), La communauté johannique et son histoire, 269-280.

457
A tradição joanina

bem-amado (13,23-25; 19,26-27; 20,1-10; 21,2-8.20-24; cf também


18,15-16; 19,34b-35).
N o contexto da escola joanina, quem é então o autor do quarto
evangelho? Se o discípulo bem-amado é o fundador da escola joa-
nina, é pouco provável, em compensação, que seja ele o autor do
evangelho. E preciso pensar em um redator distinto dele, alguém de
uma geração mais jovem, comumente denominado o evangelista. A
contribuição decisiva do evangelista é ter posto por escrito a tradição
joanina e, particularmente, concebido uma história de Jesus orienta-
da para a cruz. Os temas redacionais da “hora”, da “elevação” e da
“glorificação” que põem o conjunto da narrativa em relação com a
cruz apóiam esse juízo; os discursos de despedida que versam sobre
a partida de Jesus vão na mesma direção.
Convém, entretanto, levar em consideração o fato de que o
evangelho canônico não é a obra do evangelista, mas do redator fi-
nal (deve-se pensar em um indivíduo ou em um grupo?); este deu a
última demão no evangelho, acrescentando-lhe especificamente o
capítulo 21 e inserindo diversas glosas no texto (cf acima 2.2). As
razões que motivaram esta última releitura devem ser buscadas na
mudança de situação das Igrejas joaninas após o seu provável deslo-
camento da Síria para a Ásia Menor e em sua procura de integração
na grande Igreja.

3.2. Data de composição


É possível precisar quando o evangelista compôs sua obra? O
único contexto histórico explicitamente evocado em João é o con-
fronto entre os discípulos e a Sinagoga e, em particular, sua exclusão
dela (9,22; 12,42; 16,2). Qualquer que tenha sido sua forma, essa
exclusão se situa nos anos 80-90; ela mergulhou suas vítimas, os
judeu-cristãos, em uma situação religiosa e social muito difícil. Não
é, portanto, exagero supor que essa ruptura culminou em uma crise
de identidade. Para a fé dos cristãos joaninos, a confusão, o desâni-
mo, o fracasso foram uma dura provação. O evangelho se inscreve

458
O evangelho segundo Jo ã o

nessa situação; ele tenta reestruturar a fé enfraquecida das comu-


nidades joaninas.
A indicação do contexto polêmico no qual se situa o evangelho
permite sua datação. João foi composto depois da ruptura com a
Sinagoga dos fariseus, isto é, após 85. Por outro lado, um papiro en-
contrado no Egito em 1935 — o P52, que contém alguns versículos
do capítulo 18 — permite fixar o terminus adquem . Esse papiro, que
data de cerca de 125, mostra que nessa época o quarto evangelho
era conhecido no Egito. É portanto razoável propor o fim do século 1
como data de composição.

3.3. Lugar de composição


Para determinar o lugar provável em que foi composto o evan-
gelho, é preciso levar em conta seis fatores. Dever ser: 1) um lugar
onde a sinagoga dos fariseus tinha um papel importante e onde lhe
fosse possível impor medidas disciplinares; 2) um lugar onde o judaís-
mo heterodoxo ainda era florescente; 3) um lugar onde os discípulos
de João Batista veneravam seu falecido mestre; 4) um lugar onde a
gnose iria poder se desenvolver; 5) um lugar onde o grego era de uso
corrente; 6) um lugar onde as figuras de Pedro e de Tomé desem-
penhavam um papel eclesial de primeiro plano. A Síria constitui um
espaço onde essas seis condições se reúnem, mas nem por isso se
pode excluir a Ásia Menor. A isso se deve acrescentar que a even-
tual localização do evangelho na Síria só valería para o trabalho do
evangelista; a redação final desse mesmo evangelho e a das epístolas
joaninas devem ser situadas provavelmente na Ásia Menor.

3.4. O autor
O evangelho não é obra de uma testemunha ocular. A crer no
capítulo 21, é o discípulo bem-amado que seria o autor (21,24). Essa
identificação, que só intervém no epílogo do evangelho, reclama duas
observações. Em primeiro lugar, levando-se em conta que em João
existe uma certa rivalidade entre Pedro e o discípulo amado e, ainda
mais, que a morte do discípulo bem-amado parece ter constituído

459
A tradição joanina

um problema para os círculos joaninos, conclui-se que o discípulo


amado não deve ser considerado uma figura puramente simbólica,
sem consistência histórica; trata-se de uma figura conhecida nos cír-
culos joaninos, mais precisamente como o fundador da tradição e da
escola joanina. Em segundo lugar, ao contrário do discípulo amado,
o redator do evangelho é provavelmente um homem da segunda ou
da terceira geração. Ele escreve em nome do discípulo amado, e se
esforça por expor sob a forma de um evangelho a interpretação da
fé cristã esboçada pelo discípulo amado.

A atribu ição do q u arto evangelho a João, o Z ebedeu

Na história da exegese moderna (século XIX e primeira metade do século


XX), a questão da identificação do autor do quarto evangelho constituía a
questão joanina propriamente dita. Do resultado desse debate apaixonado
dependia, acreditava-se, a autoridade teológica e a credibilidade desse es-
crito. A demonstração de sua atribuição ao apóstolo João assegurava seu
crédito, a colocação em dúvida o arruinava. Hoje essa problemática perdeu
o essencial de sua significação, porque o critério da apostolicidade não é mais
determinante na avaliação da autoridade teológica de um escrito neotesta-
mentário.
Do ponto de vista histórico, quais são os documentos que operam a identi-
ficação que o evangelho se recusou a fazer, a saber, a identificação do discípulo
amado com João, o Zebedeu?
Essa atribuição aparece, em primeiro lugar, na tradição manuscrita do
evangelho de João. A inscriptio do P66, que data talvez da segunda metade
do século II, prova que já nessa época o quarto evangelho era atribuído a
João, o Zebedeu. Ireneu de Lião (c. 180) é a primeira testemunha segura na
Igreja primitiva — que será seguido por Eusébio de Cesaréia (História eclesi-
ástica V, 8,4) — que professa essa opinião. Em seu tratado Contra as heresias
(111,1.1), ele afirma: "Em seguida, João, o discípulo do Senhor, o mesmo que
repousou sua cabeça no seu peito, publicou também o evangelho durante
sua estada em Efeso”. Para apoiar sua posição, Ireneu invoca o testemunho
dos presbíteros da Ásia Menor que conviveram com João (Contra as here-
sias 11,22,5), e em particular o de Papias de Hierápolis e o de Policarpo de
Esmirna. Se Papias— a crer em Eusébio de Cesaréia (História eclesiástica III,
39,1) — afirma ter conhecido o apóstolo João e o presbítero João, ele não
declara em parte alguma que um dos dois teria escrito o quarto evangelho.
Quanto a Policarpo, que morreu mártir, em 155, aos 86 anos, Ireneu pre-
tende tê-lo ouvido falar, pessoalmente, de sua relação com o apóstolo em
vida (Contra as heresias III, 3,4; c f também Eusébio de Cesaréia, História

460
O evangelho segundo Jo ã o

eclesiástica IV, 14, 3-6). Entretanto, por um lado, Ireneu, em sua evocação
da relação entre Policarpo e João, não menciona nenhum dado concreto so-
bre a redação de João; por outro lado, os escritos de Policarpo calam sobre
seu pretenso conhecimento do Zebedeu. A conclusão é clara: o testemu-
nho de Ireneu repousa, certamente, sobre uma tradição, mas é impossível
reconstruí-la e autenticá-la.
Contra a tradição da Igreja primitiva, dois argumentos são constantemente
invocados para se opor a que João, o Zebedeu — e, mais geralmente, uma
testemunha ocular — , seja o autor do quarto evangelho. De um lado, a crer
em Marcos 10,35-40 (vaticinium ex eventul), João, o Zebedeu, seria morto
mártir precoce, e não um venerável ancião sob o reinado de Trajano, em Efeso
(conforme Ireneu, Contra as heresias II, 22,5). Se a tese de um martírio co-
mum com seu irmão Tiago (At 12,2) sob o reinado de Herodes Antipas não é
demonstrável, é forçoso constatar que se perde o rasto de João, o Zebedeu,
depois da assembléia de Jerusalém (Ga 2,9). Entre João, o Zebedeu, com-
panheiro da primeira geração, e o redator do evangelho, no fim do século 1,
subsiste uma lacuna temporal impossível de ser preenchida. Por outro lado, a
comparação com os evangelhos sinóticos (cf 1) mostra que tanto a linguagem
como a teologia do quarto evangelho não têm mais uma ligação de proximi-
dade com o mundo de Jesus histórico e de seus primeiros discípulos. Uma
longa história da tradição separa a vida e o ensino de Jesus de sua retomada
no quarto evangelho.
Não podendo atribuir o quarto evangelho ao Zebedeu, alguns (p. ex. M.
Hengel18) viram no presbítero João, mencionado por Eusébio (História eclesiás-
tica III, 39,4: ό πρ^σβύτ6ρος ’Ιωάννης), o autor do evangelho e das três
epístolas (2 João e 3 João se apresentam explicitamente como cartas escritas
por “o Ancião” [ττρησβυτ6ρ0ς]). Essa hipótese engenhosa, que combina da-
dos esparsos, não é sustentada nem pelo quarto evangelho, nem por nenhum
testemunho explícito da tradição da Igreja primitiva. Deve ser abandonada.

3.5. A função pragmática do evangelho


Do ponto de vista da pragmática da comunicação, o evangelho
segundo João tem a intenção de reestruturar a fé dos crentes. Pre-
tende fazê-los passar de uma fé enfraquecida e abalada para uma fé
consolidada e claramente formulada. Essa reestruturação da fé re-
sulta do fato de que o evangelho, em cada uma de suas partes, utiliza
uma hermenêutica disposta em escalas. Quer dizer: os crentes são
tomados em sua fé elementar e enfraquecida para ser encaminha-
dos em direção a uma concepção mais perfeita.

18 Martin HENGEL, Die Johanneische Frage, Tubingen, Mohr, 1993.

461
A tradição joanina

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
O quarto evangelho deixa claro, nos discursos de despedida (14-
16), o lugar teológico a partir do qual a história de Cristo é contada.
Esse ato de anamnese é empreendido na perspectiva da fé pascal
(2,17.22; 12,16; 13,7; 20,9) e o agente desse trabalho de memória é
o Paráclito (= o Espírito Santo). Somente o Paráclito (14,15-17.26;
15,26:16,7-11.13.15), com efeito, é a testemunha fiel e o hermeneuta
qualificado da vida e da obra do Cristo joanino. Somente a retrós-
pectiva pascal, operada pelo Espírito, permite descobrir o sentido
completo da encarnação, do ministério terrestre, da Paixão e da
elevação do Filho. Portanto, o evangelho é, por excelência, um tes-
temunho do Cristo encarnado, na força do Espírito que, ao mesmo
tempo, conserva a lembrança do Cristo terrestre e manifesta sua
atualidade para o hoje da fé.
Essa descrição da atividade do Paráclito deixa logo prever que
o relato joanino é fundamentalmente um relato cristológico: a pes-
soa de Cristo, sua história e sua significação são o objeto central do
evangelho. Qual é, então, a concepção cristológica defendida por
João? O Cristo joanino é fundamentalmente apresentado como o
Revelador de Deus no mundo. Essa função reveladora é desenvolvia
de dois modos.

4.1. A cristologia da encarnação


O quadro hermenêutico no qual o relato da vida do Jesus terres-
tre deve ser lido é dado no prólogo (1,1-18). A tese fundamental é a
de uma cristologia da encarnação. O que isso quer dizer? O movi-
mento constitutivo subjacente ao hino ao Logos é o da vinda de Deus
entre os seus, da consagração de Deus para os seus, isto é, todos
os seres humanos. O Logos, mais precisamente o Filho preexistente
de Deus que vive em unidadè com o Pai e é o mediador da criação,
assume a carne (1,14). Ele tem um nome, Jesus de Nazaré, e uma
história, a que vai ser contada no evangelho. Na pessoa de Cristo,
Deus se faz proximidade amorosa e presença no seio da criação e da
humanidade. Jesus é a Palavra de Deus feita carne. A história toda

462
O evangelho segundo Jo ã o

do homem Jesus — suas palavras, seus atos, sua vida, sua morte —
deve ser lida da perspectiva dessa afirmação primeira.

4.2. A cristologia do enviado


O corpo do evangelho desenvolve uma cristologia do enviado. Tal
cristologia não está em tensão ou em desacordo com a cristologia
da encarnação, mas constitui seu desenvolvimento e sua explica-
ção, com uma outra linguagem. Precisamente porque Jesus é o Filho
preexistente que se fez carne é que seu destino histórico pode ser
apresentado como uma vinda, como um envio.
a) A semântica do envio deve ser compreendida em referência
ao direito de envio no antigo Oriente Médio. Um enviado
era um mensageiro devidamente legitimado que represen-
tava seu soberano junto a uma corte estrangeira. A catego-
ria central ligada à figura do enviado era a da representação;
situava-se, na dialética, entre unidade e diferença: o em-
baixador representava plenamente seu rei sendo diferente
dele. A potencialidade de sentido dessa representação para
a cristologia salta aos olhos. Na qualidade de enviado do
Pai, Cristo o representa no mundo. Ele não pronuncia suas
próprias palavras, mas as palavras de seu Pai (3,34; 14,10;
17,8.14); ele não efetua suas próprias obras, mas as obras
de seu Pai (4,34; 5,17.19 ss.30.36; 8,28; 14,10; 17,24.34).
Ele não faz sua própria vontade, mas a vontade de seu Pai
(4,34; 5,30; 6,38; 10,25.37). Ele não quer ser outra coisa
senão a voz e a mão de Deus entre os homens. Na lógica
joanina, Cristo é verdadeiramente Deus na medida em que
é seu enviado — ao mesmo tempo plenamente um com ele
e, no entanto, diferente dele. Essa afirmação é de impor-
tância decisiva, pois ninguém jamais viu Deus (1,18).
b) A significação do envio. O envio do Filho deve ser entendí-
do como o amor de Deus em ato (3,16). Na medida em que
acolhe Cristo, o homem é beneficiado com esse amor. Esse
amor manifestado não é um acontecimento entre outros;

463
A tradição joanina

tem um caráter único e decisivo. Constitui, por um lado, a


realização da promessa veterotestamentária; nele se reali-
za, por outro lado, o juízo do mundo (3,18 s.; 5,24 s.; 9,39).
Na medida em que afirma que o juízo advém com a vinda
do Filho, João se distancia da concepção apocalíptica do
juízo. A escatologia se dá na história: o juízo não é mais uma
sanção que intervém no fim dos tempos, mas se realiza no
encontro do Filho. E, com efeito, em face do Filho, na fé
dada ou recusada, que se realiza a separação entre crentes
e descrentes. Fala-se, então, de escatologia presenteísta.
c) O dualismo. O envio do Filho ao mundo desemboca numa
visão dualista do mundo. A vinda do Revelador desve-
la, com efeito, as trevas nas quais vivem os homens. Se
a ordem da revelação se caracteriza como luz, verdade,
liberdade e vida, a esfera do mundo se mostra como es-
paço das trevas, da mentira, da carne, da escravidão e da
morte. Esse dualismo não é ontológico, mas histórico: é
provocado pela vinda do Filho.
d) O percurso do enviado. Como se efetua então, concreta-
mente, o envio do Filho cuja significação última acabamos
de sublinhar? Podem-se distinguir três momentos no per-
curso do enviado:
• a primeira etapa do envio compreende a preexistência
e a encarnação. Essas duas noções não devem ser in-
terpretadas de maneira que se tornem objetivas; elas
qualificam Jesus como o Revelador do Pai. Sua verda-
deira origem situa-se junto de Deus.
• O segundo momento é o do cumprimento da missão.
O Cristo joanino, antes de tudo, efetua sua missão
realizando milagres. Para João, os milagres são sinais
(σημ€1α), isto é, atos que remetem para além deles
mesmos, para a realidade decisiva que Jesus desvela:
um Deus criador e doador da vida superabundante. O
Cristo joanino realiza, em seguida, sua função de Re-
velador por seus discursos. Diferentemente dos sinóti-

464
O evangelho segundo Jo ã o

cos, o conteúdo de seus discursos é estritamente cris-


tológico (cf as palavras com “Eu sou”). Na qualidade
de enviado do Pai, Jesus atende às necessidades mais
fundamentais que se manifestam em toda existência
humana: ele as satisfaz plenamente.
• O terceiro momento no percurso do enviado é o re-
torno. Esse retorno se efetua na cruz que, no quarto
evangelho, é interpretada como o lugar da elevação e
da glorificação.
Se o propósito do evangelho é estritamente cristológico, sua con-
clusão (20,30-31) sublinha que cristologia e soteriologia vão a par. A
confissão do enviado do Pai na pessoa do homem Jesus dá acesso
à vida eterna, isto é, à vida tal como Deus a oferece em plenitude.
Dom do Filho e dom da vida são um só e mesmo acontecimento:
eles constituem o conteúdo do evangelho que convida à fé.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A escola joanina. A famosa “questão joanina”, isto é, a questão
da identidade do autor do evangelho, durante muito tempo domi-
nou a pesquisa joanina. Sem estar hoje totalmente abandonada (cf
M. Hengel), ela se apaga diante de uma nova problemática. Não se
trata mais, em primeiro lugar, de saber se foi João, o Zebedeu, ou o
presbítero João quem compôs o quarto evangelho; o interesse agora
se volta para o círculo que está na origem da literatura joanina (João,
1João, 2 João, 3 João), a saber, a escola joanina (R. A. Culpepper)19.
A maneira pela qual esse grupo sociologicamente estruturado e teo-
logicamente consistente transmitiu, interpretou e fixou por escri-
to, em obras sucessivas, a tradição joanina mobiliza a atenção (J.
Zumstein)20.

19 R. Alan CULPEPPER , The Johannine School: an Evaluation of the Jo-


hannine-School Hypothesis Based on an Investigation of the Nature of
Ancient Schools, Missoula, Scholars Press, 1975.
20 Jean ZUMSTEIN, Le processus de relecture dans la littérature johanni-
que, ETR 73 (1998) 161-176.

465
A tradição joanina

A história do cristianismo joanino. Esse interesse peio trabalho


teológico e literário da escola joanina é inseparável de uma renovada
atenção à história do cristianismo joanino (J. Becker, R. E. Brown,
K. Wengst). O evangelho e as epístolas joaninas fazem parte de uma
história cujas etapas vale a pena reconstruir. A análise da gênese
do Evangelho, de suas sucessivas redações, depois a das epístolas
fornecem indicações que permitem descrever as diferentes fases de
uma linha de desenvolvimento específico no seio do cristianismo pri-
mitivo (H. Kõster, J. M. Robinson)21.
Relações com o cristianismo nascente. As relações do cristianismo
joanino e, em particular, do evangelho com o cristianismo nascente,
em seu conjunto, e com o mundo ambiente são controvertidas.
Um primeiro debate concerne à ligação de João com os sinóti-
cos. Se, nos passos de R Gardner-Smith, houve algum consenso para
afirmar que João não conhecera os evangelhos sinóticos como obras
literárias (R. Bultmann, J. Becker etc.), mas hauria, como eles, de
um fundo tradicional comum (= pré-joanino e pré-sinótico), assistí-
mos, nas últimas décadas, a várias formas de renascimento da hipó-
tese de uma dependência literária de João em relação aos sinóticos
(C. K. Barrett, escola de Louvain, U. Schnelle).
Um segundo debate incide sobre a relação de João com o mun-
do religioso ambiente. Se, nos passos de Bultmann, especialmente
em seus estudos sobre os mandeanos, a questão da relação de João
com a gnose se tornou central na exegese joanina (E. Kásemann,
L. Schottroff W. Schmithals)22, algumas vozes se fazem ouvir para
reclamar um exame desse dossiê. Três razões são invocadas. Primei-
ro, um conhecimento mais exato da gnose (cf as pesquisas de Nag
Hammadi) revela que os escritos gnósticos propriamente ditos mais
antigos datam do século II e são, portanto, posteriores à redação
do evangelho. Constata-se que o mito do redentor, em particular, é

Helmut KÕSTER, James M. ROBINSON, Entwicklungslinien durch die


Welt des frühen Chrístentums, Tübingen, Mohr, 1971.
22
Walter SCHMITHALS, Neues Testament und Gnosis, Darmstadt, Wis-
senschaftliche Buchesellschaft, 1984.

466
O evangelho segundo Jo ã o

uma hipótese crítica mais do que uma realidade textual (C. Colpe)23.
Segundo, o contexto histórico determinante na hora da redação do
evangelho é o de conflito entre as Igrejas joaninas e a Sinagoga fa-
risaica (J. L. Martyn)24. Terceiro, os problemas que levaram à re-
cepção e à interpretação gnóstica do evangelho, no século II (p. ex.
Heracleon), decorrem, em primeiro lugar, de um conflito de inter-
pretação do próprio seio das comunidades joaninas.
Como se deve então colocar a questão do contexto histórico-reli-
gioso de João? A pesquisa recente, em sua maioria, concorda sobre
dois pontos. Por um lado, a linguagem e as representações religiosas
típicas do evangelho de João dão testemunho de um grande paren-
tesco com o judaísmo heterodoxo (Qumran, judaísmo samaritano,
círculos batistas), que no fim do primeiro século iria se tornar o ter-
reno fértil da gnose (O. Cullmann)25. Por outro lado, é preciso re-
nunciar a uma explicação unívoca e admitir que o universo histórico-
religioso de João está situado na confluência de diversas correntes
(judaísmo sapiência! e heterodoxo, sincretismo helenístico, grupos
de tendências gnósticas).
A gênese do evangelho. Se a questão do meio ambiente histórico-
religioso continua debatida, o mesmo se dá com a da gênese do
evangelho. A ausência de consenso (cf acima 2.2) — devida em
grande parte à natureza da documentação — não pode fazer esque-
cer dois aspectos promissores da pesquisa atual: a) se é possível que
a questão das fontes permaneça um enigma insuperável da pesquisa
joanina, o mesmo não acontece com o fenômeno da redação múl-
tipla do evangelho. O título do evangelho, as glosas, as adições nas
junturas da narrativa, o epílogo são testemunhos de um fenômeno
de releitura (J. Zumstein, A. Dettwiller)26 característica da escola

23 Carsten COLPE, Gnosis (religionsgeschichtlich), RCG3 II, col. 1648-1652.


24 J. Louis MARTYN, History and Theology in the Fourth Gospel, Nashville,
Abingdon, 21979.
2s Oscar CULLMANN, Der Johanneische Kreis. Zum Ursprung des Johan-
nesevangeliums, Tübingen, Mohr, 1975.
26 Andreas Dettwiller, Die Gegenwart des Erhôten: eine exegetische Studie
zu den johanneischen Abschiedsreden (Joh 13,31-16,33) unter besonderer

467
A tradição joanina

joanina; b) vozes se elevam, na pesquisa recente, para renunciar a


uma leitura diacrônica de João, preferindo uma leitura prioritária-
mente sincrônica (R. A.Culpepper, X. Léon-Dufour, F J. Moloney,
L. Schenke, H. Thyen)27. Essa abordagem narrativa permite, sem
dúvida, fazer mais justiça à construção do enredo, aos procedimen-
tos literários utilizados (símbolos, ironia, mal-entendidos) e à prag-
mática do relato. Em compensação, põe entre parênteses o fato
de que o evangelho carrega os traços indeléveis da história de sua
constituição que, eles também, requerem interpretação.
A teologia de João. Um último deslocamento na pesquisa concerne
à teologia joanina. Se o ponto de partida da cristologia joanina con-
tinua a ser a encarnação do Filho (R. Bultmann), duas linhas de pes-
quisa merecem ser mencionadas. De um lado, a revelação de Deus
ligada à vinda do Filho é desenvolvida numa cristologia do envio (J.
Becker, J.-A. Bühner, E. Haenchen28; c f acima 4): é na qualidade de
enviado do Pai que o Filho revela o Pai. Por outro lado, reagindo con-
tra a tese de Kàsemann, que via na paixão um apêndice, obrigatório,
mas não significativo, do evangelho, a pesquisa recente sublinha que o
conjunto da narrativa joanina é orientado para a cruz, que constitui o
acabamento da revelação (U. Knõpfler, U. Schenelle, J. Zumsteín)29.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BARRETT, Charles K. The Gospel according to St. John. Philadelphia,
Westminster Press, 21978.

Beriicksichtigung ihres Relecture-Charakters, Gottingen, Vandenhoeck


und Ruprecht, 1995.
27 Ludger SCHENKE, Johanes: Kommentar, Düsseldorf Patmos Verlag,
1998.
28 Ernst HAENCHEN, Der Vater, der mich gesandt hat, in ID., Gott und
Mensch, Gesammelte Aufsàtze, Tubingen, Mohr, 1965, 68-77; Jan-A.
BUHNER, Der Gesandte undsein Weg im 4. Evangelium, Tübingen, Mohr,
1977.
29 Thomas KNÒPPLER, Die theologia crucis des Johannesevangeliums, Neu-
kirchen-VIuyn, Neukirchener Verlag, 1994.

468
O evangelho segundo Jo ã o

BECKER, Jürgen. Das Evangelium nach Johannes. Gütersloh/Würzburg,


Mohn/Echter Verlag, 31991 (OTK 4/1-2). 2 v.
BLANK, Josef Das Evangelium nach Johannes. Düsseldorf Patmos, 1981,
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469
A tradição joanina

Hartwig THYEN, Aus der Literatur zum Johannesevangelium. ThR 39


(1974) 1-69, 222-252, 289-330; 42 (1977) 211-270; 43 (1978) 328-
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Bibliografia exaustiva
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ZUMSTE1N, Jean. Miettes exégétiques. Genève, Labor et Fides, 1991, p.
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--------- . Kreative Erinnerung. Relecture und Auslegung im Johannesevan-
gelium. Zurich, Pano-Verlag, 1999.

470
CAPÍTlíLO

21
As epístolas joaninas
Jean Zumstein

O corpus joanino compreende não somente um evangelho, mas


ainda três cartas. Quando e em que circunstâncias elas foram
compostas? Qual é sua relação com o evangelho? Que questões
abordam?

A . A P r im e ir a E p ís t o l a d e J o ã o (1 J o ã o )
1 João é conhecido e lido, na Igreja primitiva, desde a metade do
século 11. Seu texto é bem conservado e sua admissão no cânon se
efetuou muito rapidamente.

1. A presen ta çã o
/. /. O plano do escrito
E difícil discernir uma estrutura clara em 1 João. A hipótese
mais freqüentemente sustentada na crítica recente (H.-J. Klau-
ck, G. Schunack1 e K. Vengst) repousa em duas observações. De
um lado, convém distinguir o corpo central da carta (1,5-5,12) de
seu prólogo (1,14‫ )־‬e de sua conclusão-epílogo (5,13-21). De outro

1 C f Gerd SCHUNACK, Die Briefe des Johannes, Zürich, Theologischer


Verlag, 1982.

471
A tradição joanina

lado, o corpo central assim delimitado pode ser dividido em três


partes principais. Com efeito, tanto 2,18 como 4,1 introduzem ce-
suras no processo argumentative e abrem, a cada vez, o caminho
para um novo desenvolvimento (nos dois casos, os destinatários
são interpelados e explicitamente alertados contra os opositores).
A primeira parte (1,5-2,17) mostra que comunhão com Deus e
conhecimento de Deus só se tornam realidade autêntica no amor
ao irmão. A segunda parte (2,18-3,24) situa o aparecimento dos
opositores no contexto da expectativa do fim e convida os desti-
natários a permanecer firmes em sua confissão de fé e na espe-
rança. A terceira parte (4,1-5,12) estabelece íntima ligação entre
amor e fé.

Piano da p rim eira ep ísto la de João

Prólogo (1,1-4): A palavra de vida

Corpo da carta (1,5-5,12)


1,5-2,17 A realidade da comunhão com Deus e do conhe-
cimento de Deus no amor ao irmão
2,18-3,24 A esperança escatológica se vive num amor cons-
tante
4,1-5,12 A ligação entre o amor e a fé como critério da
existência cristã autêntica

Conclusão da carta (5,13)

Epílogo (5,14-21)
A oração e seu atendimento, o pecado mortal, a
certeza da fé

Outros autores (p. ex. R. E. Brown), ao sublinhar que 1 João se


inspira no evangelho e imita sua estrutura, privilegiam um plano bi-
partido. Deixando de lado o prólogo (1,1-4) e a conclusão (5,13-21),
o corpo da carta se subdivide, como o evangelho, em duas grandes
partes; elas são introduzidas, a cada vez, pela expressão 6στιν αυτή
ή άγγ6λίa (“tal é a mensagem”). A primeira parte (1,5-3,10) de-
senvolve o tema da luz (“Deus é luz e devemos caminhar na luz”),
ao passo que a segunda (3,11-5,12) é colocada sob o signo do amor

472
A s epístolas joaninas

(“caminhar como filhos de Deus que nos amou em Cristo”). Não é


evidente, no entanto, que 3,11 marque uma cesura tão decisiva no
corpo da carta, nem que o autor de 1João tenha conhecido o evan-
gelho sob sua forma canônica (capítulo 21 inclusive).
Convém assinalar, enfim, a tentativa de estruturar 1 João recor-
rendo à análise retórica (F Vouga). Nessa visão, o corpo da carta
pode ser lido como um discurso: 1) captatio benevolentiae (1,5-2,17);
2) narratio (2,18-27); 3) propositio (2,28-29); 4) probatio (3,1-24);
5) exhortatio (4,1-21); 6) peroratio (5,1-12). Embora seja uma hipó-
tese estimulante, cabe lembrar, por um lado, que o corpo da carta
não é, em sentido estrito, um discurso a que se possa aplicar, sem
mais, as regras que presidem a essa estruturação esquemática de
um discurso antigo (dispositio); por outro lado, os antigos teóricos
da retórica não retomaram o esquema da dispositio para introduzi-lo
na epistolografia.

1.2. O gênero literário


Desde as primeiras vezes em que a Igreja primitiva a menciona,
1 João é considerada uma carta. Mas será, de fato, esse o gênero
literário a que pertence esse escrito? A crítica moderna hesita. Para
alguns, trata-se mesmo de uma autêntica carta; para outros, é pre-
ferível falar de tratado, manifesto, encíclica, homília, comentário ou
mesmo escrito combativo.
E então? 1 João é uma carta? Uma leitura atenta do documento
chega a um resultado com muitos contrastes. De um lado, o formu-
lário epistolar clássico (endereço e saudação inicial, saudações na
conclusão), que permite identificar, com toda certeza, uma carta,
está faltando (não obstante 1,4 e 5,13). Além disso, é difícil detectar
relações pessoais substanciais entre o autor e os destinatários. Mas,
por outro lado, esse mesmo autor pretende escrever a destinatários
precisos (γράφω ύμιν, várias vezes em 2,1-13; 6γραψα υμιν, várias
vezes em 2,14-26 e em 5,13). Ele os chama de seus “filhinhos” e
“amados”. Denuncia um desvio preciso e concreto da fé cristã (tra-
ta-se de uma situação de fato e não de um possível perigo!). Nesse

473
A tradição joanina

sentido, a intenção profunda do gênero epistolar é realizada: com-


pensar a ausência do autor junto aos destinatários com uma men-
sagem escrita, a qual faz eco a uma situação histórica determina-
da. Autor e destinatários estão ligados por uma história comum, e
o papel da carta é — malgrado a separação — intervir nessa história
comum e fazê-la evoluir.
Qual é, então, a função dessa carta? Uma observação atenta das
características literárias de 1 João, precisamente as que não obe-
decem ao cânon epistolar clássico, permite progredir na análise. O
autor de 1 João se inspira no evangelho para imitar sua estrutura
global. Começa sua carta com um prólogo que lembra a abertura
do evangelho (comparar Jo 1,1-18 com 1 Jo 1,1-4); igualmente, sua
conclusão faz eco à do evangelho (Jo 20,30-31 e 1 Jo 5,13). Como
interpretar essa analogia deliberada? I João é provavelmente diri-
gida a um grupo de destinatários que adotou o quarto evangelho
como escrito de referência. Mais ainda: 1 João só é plenamente
compreensível para os leitores que vêem no evangelho de João o
escrito fundador de sua fé. Ao imitar alguns elementos caracterís-
ticos do evangelho, o autor de I João justifica a idéia de que ele se
mantém na esteira do evangelho, de que reconhece sua autoridade
e cultiva sua herança.
Como veremos na seção 3, esse posicionamento é intencional. O
autor, com efeito, combate um grupo que provém do mesmo meio
que ele, que igualmente adotou o evangelho como livro de fé, mas
que propõe uma outra leitura dele. No conflito de interpretação, o
autor quer mostrar que sua obra defende a verdade do evangelho,
que perpetua sua autêntica concepção teológica. Nesse sentido,
concordando com R. E. Brown, pode-se ver em 1 João uma espé-
cie de guia de leitura do quarto evangelho. Em outras palavras, 1
João quer indicar, com precisão, o contexto hermenêutico no qual
deve ser lido o evangelho. Para esse fim, ele denuncia uma falsa
compreensão da tradição joanina recolhida no evangelho e esclarece
seu sentido autêntico. Esse arrazoado não é dirigido aos opositores,
mas aos cristãos joaninos que se sentem solidários com o autor (ou,
se se preferir, com a escola joanina).

474
A s epístolas joaninas

Essa descrição da função de 1 João autoriza uma definição mais


exata de seu gênero literário: 1 João quer aconselhar, exortar e, si-
multaneamente, alertar; nesse sentido, trata-se de uma carta pare-
nética.

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
Será que o autor de 1 João utilizou fontes identificáveis por oca-
sião da redação de sua carta? Essa questão, muito discutida na pri-
meira metade do século XX, tem sido objeto de inúmeras e impor-
tantes pesquisas (cf E. von Dobschütz, R. Bultmann e H. Braun)2.
O ponto de partida desses trabalhos de crítica literária é clássico:
apóia-se nas freqüentes rupturas de estilo, nas mudanças de ritmo e
nas incessantes reformulações que ocorrem ao longo dos capítulos.
Esses fenômenos literários — incontestáveis — devem ser levados
a sério; são o indício não tanto da recepção seletiva de uma fonte
escrita (gnóstica pré-cristã segundo R. Bultmann; cristã primitiva
segundo H. Braun), mas de fragmentos tradicionais, frutos do tra-
balho da escola joanina. infelizmente, não é mais possível delimitar
com precisão a amplidão e o contorno exato das tradições utilizadas.
Com toda probabilidade, o autor tomou e recompôs, à luz da situa-
ção concreta com que se defrontava, elementos que faziam parte
do tesouro tradicional da corrente teológica a que se filiava. Nessa
hipótese, 1 João constituiría uma reformulação da tradição joanina
na aurora do século 11.
A segunda questão a respeito da composição literária concerne
à redação da epístola: 1 João é um texto ininterrupto? Ou se deve,
como no caso do evangelho, contar com uma dupla redação?

2 Ernst VON DOBSCHÜTZ, Johanneische Sudien 1, Z N W 8 (1907) 1-8;


Rudolf BULTMANN, Analyse des ersten Johannesbriefes, in Exegeti-
ca. Aufsàtze zur Erforschung des Neuen Testaments, Tubingen, Mohr,
1967 [1. ed. 1927], 105-123; ID., Die Kirchliche Redaktion des ersten Jo-
hannesbriefes, in Exegetica, 381-393; Herbert BRAUN, Literar-Analyse
und theologische Schichtung im ersten Johannesbrief, in Gesalmme-
te Aufsàtze zum Neuen Testament und seiner Umwelt, Tübingen, Mohr,
1962, 210-242.

475
A tradição joanina

Bultmann, retomando a hipótese que defendera a propósito do


evangelho, defende essa última possibilidade: um “redator eclesiás-
tico” teria corrigido a carta, introduzindo nela a escatologia tradi-
cional (2,28; 3,2; 4,17) e a interpretação sacrifical da morte de Jesus
(1,7b; 2,2; 4,10b); ele teria, ainda, acrescentado o epílogo (5,14-21).
O texto canônico da carta, todavia, é perfeitamente coerente, tan-
to do ponto de vista argumentative como da perspectiva teológica,
de modo que uma “correção dogmática” ulterior da epístola é mui-
to improvável.
A única passagem que é exceção é o epílogo (5,14-21). Esses ver-
sículos constituem, possivelmente, um acréscimo secundário pelas
quatro razões seguintes: a) 5,13 é incontestavelmente uma fórmula
de conclusão; b) a distinção (5,16 s.) entre duas classes de pecado
— o “pecado que não conduz à morte” (αμαρτία μή προς θάνατον)
e ο “pecado que conduz à morte” (αμαρτία προς θάνατον) — não
está de acordo com a noção de pecado tal como desenvolvida no
corpo da carta; de outro lado, a definição de pecado em 5,17 não
combina com a concepção dialética do pecado esboçada em 1,5 ss.;
c) em 5,14-21 aparecem muitos hapaxlegomena e representações
estranhas ao resto da carta; d) a advertência contra a idolatria, que
conclui o epílogo (5,21), pressupõe uma outra situação dos destina-
tários, diferente da sugerida na carta.
Uma última particularidade merece menção: a celebre coma joa-
nina. Em alguns manuscritos tardios, os versículos 7 e 8 do capítulo
5 são ampliados e desenvolvem uma interpretação trinitária do texto
inicial. Essa interpretação trinitária é secundária e não tem nenhuma
base no texto primitivo.

O conteúdo do texto primitivo é o seguinte: “7Pois são três os que dão


testemunho, 8o Espírito, a água e o sangue, e os três fazem um”. Em três
manuscritos gregos tardios (do século XIV ao XVI), em alguns manuscritos
da Vulgata, em Erasmo e nas edições oficiais da Vulgata, de 1590 e de 1592,
os versículos 7-8 têm (com algumas variantes) o seguinte teor: “Pois há três
que testemunham no céu o Pai, o Verbo e o Espírito Santo; e esses três são um.
E há três que testemunham na terra, o Espírito, a água e o sangue; e os três
são um”.

476
A s epístolas joaninas

3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3 .1. A relação entre 1 João e o quarto evangelho
Um inegável parentesco — seja no nível da terminologia/estilís-
tica, seja no nível teológico — une 1João a João3. Essa proximidade
não tem nada de surpreendente, já que tanto João como 1 João
emanam de uma mesma escola teológica e partilham, portanto, a
mesma linguagem — uma linguagem muito original, aliás, no am-
biente do cristianismo nascente. Essa grande afinidade entre os dois
escritos suscita a questão do autor: terá sido a mesma pessoa que
escreveu as duas obras? Ou estamos diante de duas personalidades
distintas?
O fato de surgirem diferenças substanciais tanto no vocabulário
utilizado como nas representações teológicas não constitui um ar-
gumento que exclua, de uma vez, a hipótese de um só autor para os
dois escritos. De fato, temos o direito de supor que tais mudanças
possam resultar de situações, de gêneros literários e de estratégias
argumentativas diferentes.
Uma observação, no entanto, permite decidir com alguma proba-
bilidade essa difícil questão. Acontece que as mesmas noções podem
ter um sentido diferente segundo o escrito no qual aparecem. Al-
guns exemplos: a) no prólogo de 1 João, os conceitos 'no princípio”
e a “palavra (de vida)” não têm mais o mesmo sentido de que se
revestiam no prólogo do evangelho (Jo 1,1-18): em 1 João, trata-se
do início da revelação cristológica, e não mais do início desde antes
da fundação do mundo; por outro lado, o Logos não é mais uma pes-
soa, mas uma mensagem; b) 1 João atribui a Deus propriedades que
no evangelho pertencem a Jesus: assim, Deus — e não mais Cristo
— é luz (Uo 1,5 e Jo 8,12; 9,5); assim ainda, em 1 João é Deus que
dá o mandamento do amor e não Cristo (Uo 4,21; Jo 13,34; 15,12
s.); c) enquanto no evangelho o Paráclito tem um papel decisivo nos
discursos de despedida, designando nele o Espírito Santo, ele jamais
tem essa significação em 1João, onde a única ocorrência se refere a

Em seu comentário (The Epistles o f John, New York, Doubleday, 1982, 757-759),
R. E. Brown redigiu uma lista exaustiva das semelhanças entre João e 1João.

477
A tradição joanina

Cristo (2,1); d) se a fórmula de imanência em João descreve, prio-


ritariamente, a relação que une o Pai ao Filho, e o Pai e o Filho ao
crente, em 1 João essa mesma fórmula caracteriza a única relação
entre Deus e o crente; e) enquanto a escatologia presencial domina
o evangelho (sem, por isso, negar a presença de alguns elementos da
escatologia tradicional), é a escatologia tradicional apocalíptica que
impregna 1 João.
Como interpretar esse desacordo de sentido no uso dos mes-
mos conceitos fundamentais? Esse desacordo sugere, ao mesmo
tempo, a existência de dois autores distintos e um espaço crono-
lógico significativo entre a composição de um escrito e a do outro.
Se a hipótese de dois autores trabalhando em períodos diferentes
parece se impor, qual é ordem do surgimento histórico desses dois
escritos? O evangelho precede 1 João ou devemos considerar a or-
dem inversa? A anterioridade do evangelho parece se impor pelas
seguintes razões: a) é perceptível uma mudança de situação en-
tre os dois escritos; o conflito com o judaísmo, predominante no
evangelho, está totalmente ausente em 1 João, substituído por um
outro: é no interior das comunidades joaninas que se situa o con-
fronto (cf 3,12); b) o evangelho se basta a si mesmo, enquanto 1
João se compreende melhor contra o fundo do evangelho (cf p. ex.
os dois prólogos); c) é 1 João que imita, em sua estrutura global, o
evangelho, e não o inverso; d) de modo significativo, o parentesco
teológico mais íntimo entre João e 1 João aparece nas passagens
do evangelho que são o fruto de um trabalho de releitura: as glosas
sacramentais e escatológicas, o segundo discurso de despedida (Jo
15-16) e o epílogo (Jo 21).

E forçoso constatar que I João não comporta citações explícitas do evan-


gelho. Isso não significa que 1 João não conhecia a existência do evangelho e
não se refira a ele. *Três argumentos suportam essa opinião: a) o trabalho da
escola joanina mostra que um autor pode conhecer um escrito sem, por isso,
citá-lo (cf a relação entre João e os sinóticos); b) desde o instante em que o
evangelho se tornou lugar de conflito de interpretações, a simples citação de
uma de suas passagens não basta para dirimir um debate; c) é bem possível
que 1João faça alusão a João, designando-o não com o termo “evangelho” (a

478
A s epístolas joaninas

designação “evangelho” para João pertence à história de sua recepção), mas


com o termo "mensagem” (αγγελία).

Se a composição de 1 João se situa depois da composição do


evangelho, isso significa que os conceitos teológicos fundamentais
utilizados pelo evangelista foram reinterpretados em 1 João. Em ou-
tras palavras, o autor de 1 João, apoiando-se no evangelho como
numa tradição estabelecida, tenta dizer de novo o seu sentido numa
situação nova. Qual é então essa situação nova?

3.2. A crise das Igrejas joaninas


Se a maior prudência é recomendável quando se trata de reconsti-
tuir a situação histórica na qual foi escrita uma carta pertencente ao
Novo Testamento, nem por isso deixa de ficar claro que 1João se faz
eco de um conflito que assolou as comunidades joaninas.

Os dados da carta
Quais são os dados da carta que sustentam a hipótese de uma
crise?
Declara 1 João 2,18 s.: “Meus filhinhos, é chegada a última hora.
Ouvistes anunciar que vem um anticristo; pois agora muitos anticris-
tos estão aí; nisto reconhecemos que é a última hora. Do nosso meio é
que saíram, mas não eram nossos”. Essa passagem fala de dois grupos
em conflito no cristianismo joanino: de um lado, o círculo do qual 1
João se faz porta-voz; de outro lado, um círculo acusado de ter aban-
donado a fé autêntica e rompido a unidade eclesial. Não é mais possí-
vel saber quem tomou a iniciativa da ruptura, nem que relação de for-
ças prevalece entre os dois grupos. O que é claro, em compensação, é
que a pertença a um ou outro grupo se decide com base no conteúdo
da confissão de fé à qual se adere (cf 4,2 s.). A retidão da confissão de
fé se torna o critério da autenticidade da fé. Nesse sentido, 1 João é
um dos primeiros testemunhos do nascimento da noção de ortodoxia.
Em 1 João, o que distingue a confissão de fé “ordoxa” da dos
opositores? O litígio é de natureza cristológica. Como demonstram

479
A tradição joanina

2,22 s. e 4,2-3.15, oque estáem debate é a significação exata da en-


carnação e da pessoa do Jesus terrestre. Enquanto a escola joanina,
que se exprime em 1 João, sublinha a importância decisiva da encar-
nação e o fato de que o Cristo de Deus é indissociável do homem Je-
sus, os opositores tendem a distinguir o Cristo enviado por Deus do
homem Jesus. Segundo eles, o enviado do Pai teria feito sua morada
na pessoa de Jesus, no batismo, e o teria abandonado desde antes
da cruz (cf 5,6). Nessa perspectiva, a pessoa do homem Jesus teria
sido o mero veículo da revelação do Filho de Deus, só ela decisiva.
Em contrapartida, a história do homem Jesus e, particularmente,
sua morte na cruz não teriam nenhuma importância soteriológica
(1,7; 2,1; 4,10; 5,6).
Esse conflito cristológico parece ser a questão central. E difícil
saber se temos o direito de estabelecer uma ligação estreita com ou-
tras afirmações polêmicas da carta, pertinentes à ética e à pneuma-
tologia. Observando-se a prudência necessária, tem-se, entretanto,
o direito de pensar que os opositores se prevaleciam da presença do
Espírito, conferido no batismo (2,27), para pretender ter um pleno
conhecimento de Deus e uma plena comunhão com ele. Essa cer-
teza da inabitação do Espírito lhes dava a convicção de estar sem
pecado (1,8.10; 3,4-6); para eles, o universo da carne — e, com isso,
o lugar da ética — tinha perdido qualquer importância, e tinham se
tornado seus próprios profetas e mestres (4,1.5.6).

Tentativas de identificação dos opositores


É possível situar mais precisamente os opositores no contexto do
cristianismo primitivo e de seu ambiente religioso? Várias hipóteses
foram propostas.
a) A proposição que vê nos opositores judeus em polêmica
contra a messianidade de Jesus é pouco provável. De um
lado, com efeito, o grupo combatido pelo autor de 1 João
não contesta a significação eminente de Cristo, mas re-
lativiza a importância da encarnação; de outro lado, esse
grupo é constantemente apresentado como possuidor de

480
A s epístolas joaninas

um passado de fé comum com o círculo reagrupado em


torno do autor da epístola. Formulação da fé cristã à par-
te, estão em questão sua conduta ética e sua concepção
do Espírito.
b) Numerosos são os exegetas que suspeitam da influência
de Cerinto (c. 100/120) sobre os opositores. Segundo Ire-
neu, Cerinto tinha, com efeito, elaborado uma cristologia
que apresentava fortes analogias com a denunciada em 1
João. O Cristo celeste e espiritual associara-se ao homem
Jesus apenas por um período provisório que ia do batismo
ao início da paixão.

“Um certo Cerinto, na Ásia, ensinou a seguinte doutrina. Não foi o primei-
ro Deus que fez o mundo, mas uma Potência separada por uma distância con-
siderável da Potência Suprema, que está acima de todas as coisas, e ignorante
do Deus que está acima de tudo. Jesus não nasceu de uma virgem — pois isso
lhe parecia impossível — , mas era o filho de José e de Maria por uma geração
semelhante à de todos os outros homens, e ele sobressaiu a todos pela justiça,
prudência e sabedoria. Após o batismo, o Cristo, vindo de junto da Potência
Suprema, que está acima de todas as coisas, desceu sobre Jesus em forma de
pomba; e foi então que o Cristo anunciou o Pai desconhecido e realizou mi-
lagres; depois, no fim, saiu de Jesus: Jesus sofreu e ressuscitou, mas o Cristo
permaneceu impassível pelo fato de ser pneumático” (Ireneu de Lião, Contra
as heresias I, 26,1).

Se essa “cristologia da separação” pregada por Cerinto


se assemelha à dos opositores, é forçoso constatar que os
elementos propriamente gnósticos de sua posição (p. ex. a
distinção entre o criador do mundo e o Deus verdadeiro)
não aparecem em 1João. Nessas condições, pode-se pen-
sar que Cerinto pertence à história da recepção do quarto
evangelho e que sua “cristologia da separação” retoma o
tema sapiencial da inabitação do Logos no mundo (cf Jo 1,
1-18) para interpretá-lo à sua maneira,
c) A hipótese doceta também tem inúmeros partidários. Os
opositores teriam pretendido que Cristo não teria tido um
verdadeiro corpo de homem, mas que, ao contrário, teria

481
A tradição joanina

se manifestado sob a aparência fictícia de um corpo, a fim


de poder comunicar sua mensagem de revelação aos ho-
mens. Contra essa conjectura é preciso ressaltar que os
opositores de 1 João jamais contestaram a radical huma-
nidade do homem Jesus, mas, em contrapartida, puseram
em dúvida seu papel na dramaturgia da salvação.
d) Para a Igreja antiga (Ireneu, Tertuliano), os opositores
eram gnósticos. Essa opinião, retomada pela crítica mo-
derna, se expõe a uma dupla objeção: de um lado, os ele-
mentos constitutivos dos sistemas gnósticos (a cosmolo-
gia, a antropologia, a concepção do mundo celeste, a da
salvação...) não aparecem no retrato que 1 João faz dos
opositores; de outro lado, as primeiras atestações literárias
desses sistemas são mais tardias do que 1João. Essa reser-
va, entretanto, não exclui de modo algum que elementos
da concepção combatida por 1 João possam reaparecer
nos sistemas gnósticos ulteriores, nem que os adversários
tivessem estado próximos dos meios judaicos heterodoxos
onde a gnose ia encontrar seu solo fértil.
e) Finalmente, convém evocar uma hipótese que tem o du-
pio mérito da simplicidade e da probabilidade. Ela vê nos
opositores ultrajoaninos, isto é, um círculo de crentes das
comunidades joaninas que, explorando a ambivalência de
uma série de passagens do evangelho, radicaliza demais
certos elementos da fé comum (a interpretação joanina
do batismo de Jesus, da cruz, do Paráclito etc.). Nessa
perspectiva, nós nos encontraríamos no centro de um
conflito de interpretações concernentes ao próprio evan-
gelho, de um debate teológico interno ao meio joanino. A
uma leitura “ortodoxa” defendida pela escola joanina, que
sublinharia a encarnação radical da revelação e a histori-
cidade da fé, se oporia um grupo que favorecia uma leitu-
ra “desencarnada”, até mesmo de tendência gnóstica, do
evangelho. Não é de se excluir que, nessa circunstância, o
ambiente religioso — especialmente a progressiva emer­

482
A s epístolas joaninas

gência da gnose nos meios judaicos heterodoxos (p. ex. os


círculos batistas ou os meios cultores do mito da Sabedo-
ria) — tenha sido um dos fatores que contribuíram para a
explosão dessa crise.

3 .3 . Lugar e data de composição


De um lado, 1João foi composto depois do quarto evangelho, que
data do fim do século I. De outro lado, essa epístola já é mencionada
por Papias e por Policarpo de Esmirna em sua segunda carta aos fili-
penses (7,1), o que exclui uma datação posterior a 130. E, portanto,
razoável situar a redação de 1João entre 100 e 110.
Se o evangelho segundo João pode ter sido redigido na Síria, pelo
menos em sua primeira versão, 1 João provavelmente surgiu na par-
te ocidental da Ásia Menor, talvez em Éfeso. Dois argumentos são
favoráveis a essa localização. De um lado, os primeiros testemunhos
que atestam a existência de 1 João provêm dessa região (Policarpo,
Papias, Justino etc.); de outro lado, o movimento gnóstico conduzí-
do por Cerinto também se situa nessa região.
O nome do autor não é mencionado na carta; permanece desco-
nhecido. "Trata-se, provavelmente, de um membro da escola joanina.4

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
A concepção teológica desenvolvida em 1 João se inscreve num
processo histórico. Ela pressupõe a existência já longa da tradição
joanina e, particularmente, a de sua expressão literária mais impor-
tante, o quarto evangelho. A finalidade de 1 João não é introduzir
um novo projeto teológico, mas explicitar e esclarecer certos aspec-
tos da tradição joanina, resolver um conflito de interpretação gerado
pela pluralidade de leituras induzidas pelo próprio evangelho. Nesse
sentido, 1 João opera o reenquadramento “ortodoxo” da teologia
joanina.
Essa vontade de definir o sentido normativo da tradição joanina
se manifesta de diferentes maneiras. Antes de tudo, pela invoca-
ção da origem fundadora: trata-se de relembrar o sentido que tinha

483
A tradição joanina

a tradição “no princípio” (1,1; 2,7.13.14.24; 3,11). Depois, pelo uso


de formulações antitéticas (2,10 s.23; 5,12): a oposição entre con-
cepção justa e falsa permite precisar a correta interpretação da fé.
Em seguida, pela recorrência de asserções iniciadas com a expres-
são “nisto sabemos que” (2,3.5; 3,16.19; 4,2.13; 5,2), expressão que
traduz a firme intenção de formular com exatidão a importância da
fé. Enfim, pelas asserções que começam com a fórmula “aquele que
diz” (p. ex. 4,2 s.): uma tese teológica se encontra assim citada para,
imediatamente, ser sublinhada a sua conformidade ou mostrado seu
erro. A intenção argumentativa é clara: não se trata mais, como no
evangelho, de colocar o leitor diante da decisão da fé, mas de ganhá-
lo para uma justa interpretação da confissão de fé em uso na Igreja.
Quais são então os principais elementos dessa exegese da fé co-
mum? A primeira clarificação concerne à cristologia. Apoiando-se
no prólogo do evangelho, 1 João pleiteia uma compreensão conse-
quente da encarnação. O Cristo não é outra pessoa diferente do
homem Jesus (2,22; 5,1.15), e precisamente por isso sua morte se
reveste de uma significação decisiva. Ela é o lugar onde se manifesta
a salvação. A reaparição de fórmulas expiatórias sublinha esse as-
pecto (1,7; 2,2; 4,10; 5,6).
A segunda clarificação concerne à ética. Os opositores parecem
ter pretensão à impecabilidade (1,6.8.10) e também ter negligencia-
do sua responsabilidade ética (2,3 s.). Assim como o Cristo cumpriu
sua missão sendo plenamente homem, assim acontece com os cren-
tes: sua impecabilidade não é um estado, mas uma vocação que a
eles cabe concretizar na fidelidade e, particularmente, no amor ao
irmão (3,23 s.; 5,2 s.). A fé desconectada do amor é uma ilusão.
A terceira clarificação concerne à escatologia. Certamente, o au-
tor de 1João está — como o evangelho e como os opositores — con-
vencido de que a salvação se manifestou plenamente no presente (es-
catologia presenteísta). Mas sua insistência em apresentar a crise que
afeta sua Igreja como o sinal da irrupção dos últimos tempos (2,18.22;
4,1), sua referência à parusia futura do Cristo (2,28; 3,2; 4,17), enfim,
sua acentuação da escatologia tradicional objetivam sublinhar a im-
portância da história como espaço de vida e de fidelidade.

484
A s epístolas joaninas

Uma quarta correção concerne ao papel do Espírito. O conhecí-


mento que salva não é fruto único da experiência imediata do Espíri-
to, mas deve estar de acordo com a tradição transmitida e interpre-
tada na escola joanina (4,2 s.); ele também não deve pôr em perigo
a comunhão eclesial.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na pesquisa recente sobre 1João, notam-se quatro deslocamen-
tos significativos.
Ligação com o evangelho. 1 João não deve ser lido como um do-
cumento literário isolado, mas tem de ser considerado um elemento
importante na história do cristianismo joanino. 1João é posterior ao
evangelho, pressupõe sua existência e sua leitura; toda a força e toda
a pertinência da argumentação nele desenvolvida vêm de sua ligação
com o evangelho.
Gênero literário. Um certo consenso parece estar surgindo na
questão do gênero literário: embora lhe falte o formulário epistolar
clássico, 1 João é uma carta no sentido pleno da palavra. Sua forma
original (prólogo, conclusão, epílogo) se deve à ligação absolutamen-
te familiar que ela quer tecer com o evangelho.
Autor. O debate sobre o autor de 1 João, especialmente sua pos-
sível atribuição a João, o Zebedeu, ao presbítero João, e mesmo ao
Ancião, deixou de ser importante. Prefere-se atribuir esse escrito
anônimo não mais a uma pessoa, mas à escola joanina como tal.
A questão dos opositores. Essa questão evoluiu de duas manei-
ras. De um ponto de vista metodológico, sem negar ou minimizar a
existência do conflito intraeclesial indicado por 1 João, hesita-se em
fazer sistematizações e em combinar, sem qualquer precaução, to-
das as afirmações polêmicas que afloram na carta. De outro lado, é
com a maior prudência que se usam categorias tais como docetismo,
gnosticismo, valentinismo para identificar os opositores. Prefere-se
imputar às próprias comunidades joaninas, à ambivalência do evan-
gelho e à pressão do mundo religioso circundante (judaísmo hetero-
doxo, sincretismo antigo) a emergência de uma leitura que culmina-
rá, no século II, na recepção gnóstica do evangelho.

485
A tradição joanina

6. B ib l io g r a f ia
Com entários
BONNARD, Pierre. Les építres johanniques. Genève, Labor et Fides, 1983
(CNT 13c).
BROWN, Raymond E. The Epistles o f John, N ew York, Doubleday, 1982
(AB 30).
BULTMANN, Rudolf Die drei Johannesbriefe, Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1967 (KEK 14).
KLAUCK, Hans-Josef Der erste Johannesbrief. Zürich/Neukirchen-Vluyn,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1991 (EKK23/1).
SCHNACKENBURG, Rudolf Die Johannesbriefe. Freiburg, Herder,71984
(HThK 13/3).
STRECKER, Georg. Die Johannesbriefe. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1989 (KEK 14).
VOUGA, François. Die Johannesbriefe. Tübingen, Mohr, 1990 (H NT
15/3).
W ENG ST Klaus. Der erste, derzweite undderdritte Johannesbrief. Güters-
loh/Würzburg, Gütersloher Verlagshaus Mohn/Echter Verlag, 1978
(ÒKT 16).

Leitura prioritária
BROWN, Raymond E. La communauté du disciple bien-aimé. Paris, Cerf
1983 (LeDiv 115).
BULTMANN, Rudolf Johannesbriefe. RCC3 III, col. 836-839.
BOISMARD, Marie-Émile, COTHENET, Etienne. La tradition Johanni-
que. In: GEORGE, André, GRELOT, Pierre. Introduction à la Bible
— Edition nouvelle. Paris, Desclée, 1977, t. 111.
THYEN, Hartwig. Johannesbriefe. TRE, Berlin, de Gruyter, XVII (1988)
186-200.

H istória da pesquisa
BEUTLER, Johannes. Die Johannesbriefe in der neuesten Literatur.
A N R W , Berlin, de Gruyter, 11.25.5 (1988) 3.773-3.790.

486
A s epístolas joaninas

KLAUCK, Hans-Josef Die Johannesbriefe. Darmstadt, Wissenschaftliche


Buchgesellschaft, 1991 (Ertràge der Forschung; Bd276).
WENGST, Klaus. Probleme der Johannesbriefe. ANRW, Berlin, de Gruy-
ter, 11,25.5 (1988) 3.753-3.772.

Bibliografia exaustiva
Klauck, Hans-Josef Der erste Johannesbrief. Zürich/Neukirchen-Vluyn,
Benziger/Neukirchener Verlag, 1991 (EKK23/1).

Estudos particulares
BONNARD, Pierre. La première Epitre de Jean est-elle johannique?. In:
De JONGE, Marinus (ed.). LEvangile de Jean. Sources, redaction,
théologie, Leuven/Gembloux, Leuven University Press, 1977, p.
301-305 (BEThL 44); ou Anamnesis: recherches sur le Nouveau Tes-
tament. Genève/Lausanne [s.n.], 1980.
CONZELMANN, Hans. Was von Anfang war. In: Theologie als Schnf-
tauslegung. Aufsàtze zum Neuen Testament. München, Kaiser,
1974, p. 207-214 (BevTh 65).
LIEU, Judith M. The Theology o f the Johannine Epistles. Cambridge, Cam-
bridge University Press, 1991 (New Testament Theology).
KLEIN, Günther. “Das wahre Lieht scheint schon”. Beobachtungen zur
Zeit- und Geschichtserfahrung einer urchristlichen Schule. ZThK 68
(1971)261-326.
VOUGA, François. La reception de la théologie johannique dans les
épTtres. In: KAESTLI, Jean-Daniel, POFFET, Jean-Michel,
ZUMSTEIN, Jean (éds.). La com munauté johannique et son his-
toire, G enève, Labor el Fides, 1990, p. 283-302 (Monde de la
Bible 20).

B. A S e g u n d a e a T e r c e ir a E p ís t o l a s d e J o ã o
A existência e a leitura de 2 João e 3 João só tardiamente são
atestadas na Igreja antiga. Sua admissão no cânon gerou contro-
vérsia.

487
A tradição joanina

I. A pr e se n t a ç ã o das duas cartas


2 João e 3 João são escritos extremamente breves. Trata-se de
verdadeiras cartas.
2 João é uma carta parenética dirigida a uma comunidade. Após
uma breve recordação da fé joanina, o Ancião formula uma adver-
tência contra os heréticos. Ele ordena, em seguida, que se recuse
entrada na comunidade aos enviados itinerantes que não partilhem
sua concepção teológica.

P lano d a segunda ep ísto la de João

1-3 Endereço
4 Introdução

Corpo da carta (5-11)


5-6 Recordação do mandamento de amor
7-9 Advertência contra os heréticos
10-11 Comportamento recomendado diante dos heré-
ticos
12-13 Conclusão da carta (projeto de viagem e saudação)

3 João é uma carta de recomendação dirigida a uma pessoa par-


ticular. O Ancião escreve a um tal Gaio para lhe pedir que conceda
hospitalidade a um pregador itinerante chamado Demétrio.

P lano da terceira epísto la de João

I Endereço
2-4 Introdução (votos de saúde e expressão de alegria)

Corpo da carta (5-12)


5-8 Gaio é convidado a continuar a dar apoio aos pre-
gadores itinerantes
9-10 O comportamento hostil de Diótrefes é denun-
ciado
11-12 Exortação a Gaio e recomendação de Demétrio
13-15 Conclusão da carta (projeto de viagem; votos de
paz; saudação)

488
A s epístolas joaninas

2 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
Nos dois casos, o autor se nomeia “o Ancião” (ò πρ€σβύτφ0ς).
Como no evangelho, o autor não é designado por seu nome, mas por
um título. O título ”Ancião” não é, entretanto, utilizado pelo evan-
gelho, nem por 1 João. Enquanto o evangelho atribui sua existência
à figura do discípulo bem-amado e 1 João permanece totalmente si-
lencioso sobre a questão de seu autor, a pessoa do “Ancião” deve ser
considerada uma terceira figura eminente da escola joanina. Essa fi-
gura delineada e reconhecida goza de grande autoridade, pois ela se
considera legitimada para se dirigir às Igrejas joaninas e doutriná-las. 2
João e 3 João são de sua lavra e constituem um bom exemplo de sua
atividade pastoral. Não se deve, no entanto, ver no título “Ancião” a
designação de uma função ministerial dotada de poderes institucionais
determinados, mas sim a marca do respeito de que goza essa figura
nas comunidades joaninas. A identificação, freqüentemente propos-
ta, do Ancião com o presbítero João permanece pura conjectura.
2 João e 3 João são, provavelmente, o último estágio da produção
da escola joanina de nosso conhecimento. Essas cartas são também
oriundas da Ásia Menor, talvez de Efeso, e foram redigidas por volta
de 110. 2 João e 3 João se inscrevem no contexto da crise descrita
em 1 João. 2 João se situa, entretanto, depois de 1 João (2Jo,5-7
retoma Uo 2,7 s.18 s.; 4,1 s.). Não é mais possível saber se 3 João foi
escrita antes ou depois de 2 João.

3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia e t e o l ó g ic a
3.1. A relação de 2 e 3 João com 1 João
Que ligação há entre 2 e 3 João, de um lado e, de outro, 1João? E
preciso, antes de tudo, levar em conta um incontestável parentesco.
Os dois temas principais de 1 João, a saber, a explosão de uma crise
no seio das Igrejas joaninas e a exortação a amar o irmão, reapare-
cem em 2 e 3 João. Mas não se podem ignorar diferenças substan-
ciais. O gênero literário é um primeiro exemplo. Enquanto 1 João é
uma carta destinada a defender a autêntica interpretação da tradi-
ção joanina, 2 e 3 João tratam de questões de política eclesial. Em

489
A tradição joanina

segundo lugar, a natureza da argumentação utilizada transformou-se


totalmente. 1 João utiliza uma argumentação teológica substancial;
2 e 3 João não seguem por essa via, mas recorrem a argumentos
formais e institucionais.
Qual é então a problemática abordada em cada uma das duas
cartas?

3.2. A problemática de 2 João


Provavelmente, 2 João é dirigida a uma igreja distante da co-
munidade de Efeso (?) — talvez a uma Igreja doméstica. Essa comu-
nidade local não foi ainda tocada pela crise denunciada em 1 João.
Entretanto, pregadores itinerantes, oriundos do campo dos oposito-
res denunciados em 1 João (cf 2 Jo 7), estão a caminho. O Ancião,
com sua carta, toma a dianteira. Invocando a fé tradicional, ele con-
vida os destinatários a recusar todo contato com os representantes
de uma leitura “desencarnada” da tradição joanina. Valendo-se de
seu prestígio, apela para o boicote dos opositores com a intenção de
impedir toda propagação do que julga ser uma heresia. A argumen-
tação teológica sucede o gesto disciplinar.

3.3. A problemática de 3 João


É totalmente diferente a situação refletida por 3 João. A des-
peito de um pedido expresso formulado pelo Ancião, o dirigente de
uma Igreja local, Diótrefes, recusa-se a dar acolhida aos pregadores
itinerantes próximos da escola joanina. E ameaça com as mais seve-
ras sanções os membros de sua comunidade que infringirem essa or-
dem. O Ancião também é vítima da crítica de Diótrefes. Ele se vê,
então, obrigado a se dirigir a uma pessoa particular, Gaio, membro
de uma Igreja vizinha (?), para providenciar acolhida para os missio-
nários itinerantes e, mais particularmente, para um chamado De-
métrio. Como interpretar esse conflito e, especialmente, essa perda
de influência do Ancião e, por intermédio dele, da escola joanina?4

4 Sobre a história da pesquisa concernente ao conflito entre o Ancião e


Diótrefes, ver Hans-Josef KLAUCK, Der Zweite und dritte Johannes-

490
A s epístolas joaninas

A disputa entre o Ancião e Diótrefes não é de natureza doutrinai.


3 João não acusa Diótrefes de heresia em matéria cristológica, mas
denuncia seu gosto pelo poder, seu menosprezo pelo ancião e sua
recusa a acolher os missionários itinerantes, particularmente os da
escola joanina. Cum grano salis, poder‫־‬se-ia dizer que Diótrefes não
faz mais que aplicar o apelo ao boicote lançado pelo Ancião em 2
João! Mais fundamentalmente, o conflito entre o Ancião e Diótre-
fes anuncia — talvez — uma guinada na maneira de dizer a verdade
de fé nas Igrejas joaninas. A escola joanina, que privilegia a ação do
Espirito, conferido a todos os crentes (1 Jo 3,10-24) e intérprete vivo
da tradição, se opõe, doravante, a autoridade do dirigente que guia
sua comunidade, afastando-a das influências exteriores, especial-
mente das ameaças de cisma.

4 . B ib l io g r a f ia
Ver acima a bibliografia de 1 João, à qual se deve acrescentar:

Comentário e bibliografia exaustiva


KLAUCK, Hans-Josef DerZweite undderdritteJohannesbrief Zürich/Neu-
kirchen-VIuyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1992 (EKK23/2).

Estudos particulares
BONSACK, Bernhard. Der Presbyter des dritten Briefes und der geliebte
Jünger des Evangeliums nach Johannes. ZN W 79 (1988) 45-62.
BORNKAMM, Günther. ττρέσβυς, κτ Th W N T Stuttgart, Kohlhammer,
VI (1959) 650-683.
LIEU, Judith M. The Second and Third Epistles o f John. Edinburgh, Clark,
1986.
KASEMANN, Ernst. Ketzer und Zeuge. In: Exegetische Versuche und Be-
sinnungen /. Gòttingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 61970, p. 168-
187.

brief, Zürich/Neukirchen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1992,


106-110.

491
A tradição joanina

TAEGER, Jens-W. Der konservative Rebell. Zum Widerstand des Diotre-


phes gegen den Presbyter. ZN W 78 (1987) 267-287.
VOUGA, François. The Johannine School: A Gnostic Tradition in Primiti-
ve Christianity? Bib 69 (1988) 371-385.

492
CAPÍTULO

22
O apocalipse de João
Elian Cuvillier

1. A p r e s e n t a ç ã o
1. I. Gênero literário
As primeiras palavras do livro, “Revelação de Jesus Cristo
(’Αποκάλυψις Τησοϋ Χρίστου), e, de modo mais geral, seu conte-
údo o designam como pertencente à literatura apocalíptica. Trata-
se de uma literatura dotada de uma organização narrativa na qual
é transmitida uma revelação divina, mais freqüentemente por um
anjo, a um homem previamente escolhido. A revelação concerne a
uma realidade transcendente, ao mesmo tempo temporal, na medi-
da em que considera uma salvação escatológica, e espacial, na me-
dida em que anuncia a vinda de um mundo novo1.

1.2. Estrutura
E difícil desvelar um plano coerente para o conjunto das visões do
Apocalipse de João. As vezes as visões se repetem sem progresso
visível na narração, ou se seguem sem uma ligação lógica eviden-
te, a menos que apareçam certas contradições entre elas. Estrutura

1 Essa definição se inspira livremente em John J. COLLINS, Introduction:


Towards the Morphology of a Genre, in Apocalypse: The Morphology of a
Genre, Semeia 14 (I979) 1-19 (9).

493
A tradição joanina

concêntrica, estrutura a partir dos setenários, procedimento de su-


cessivos encaixes, divisão em quatro visões principais: as numerosas
abordagens propostas, e as reconstituições às vezes muito diferen-
tes que delas resultam, levaram alguns a renunciar a extrair do Apo-
calipse um plano bem ordenado e a se contentar em recensear as
unidades literárias identificáveis.
A estrutura abaixo ressalta as unidades literárias do texto ao ar-
ticular a progressão narrativa em torno de duas seções principais de
visões (Ap 4-11 e Ap 12-21). A primeira é centrada em sua dimen-
são cósmica, a segunda em sua dimensão histórica. Anteriormente
a essas duas seções principais, o escrito se abre com uma parte que
adota a forma epistolar (Ap 2-3), preparada, ela mesma, por uma
visão inaugural do conjunto da obra (Ap 1,9-20).I,

Plano do A pocalipse de João

Prefácio (1,1-3)

Visão inaugural e cartas às Igrejas (1,4-3,22)


1,4-8 Endereço da obra
I,9-20 Primeira visão (Filho do homem)
2.1-3,22 Cartas às sete Igrejas

Primeira série de visões — o cosmos e a criação (4,1-11,19)


4.1- 5,14 Culto celeste: perspectiva teocêntrica (4,1-11);
perspectiva cristocêntrica, anúncio dos sete selos
(5,1-14).
6.1-17 Abertura dos seis primeiros selos
7.1-17 Apresentação dos eleitos: os 144.000 (7,1-8); a
multidão inumerável (7,9d7)
8.1-9,21 O sétimo selo (8,1-5) e as seis primeiras trombe-
tas (8,6-9,21).
10.1-11,14 O livrinho (10,1-11) e as duas testemunhas (11,1-14).
II,15-19 A sétima trombeta

Segunda série de visões — a história da humanidade (12,1-22,5)


12.1-18 Visão inaugural: a mulher, o filho e o dragão
13.1-18 A primeira besta (13,1-10); a segunda besta (13,11-18).

494
O apocalipse de Jo ã o

14.1- 20 O cordeiro e os redimidos (14,1-5); anúncio do


julgamento e ceifa (14,6-20)
15.1- 16,21 O julgamento sobre a natureza, os homens, a
criação; os sete anjos e as últimas pragas (15,1-8);
as sete taças (16,1-21)
17.1- 19,10 Julgamento de Babilônia: a grande prostituta
(17,118‫ ;)־‬a queda de Babilônia (18,1-24); procla-
mação de vitória (19,1-10).
19,11-21 Vitória do Messias sobre a besta e o falso profeta
20.1- 15 Vitória sobre Satanás, Milênio, julgamento final
21.1-22,5 A nova criação

Epílogo (22,6-21)

1.3. Conteúdo
A introdução geral do livro (1,1-3) indica a origem das visões (Deus
e Jesus Cristo), a mediação pela qual vieram (o anjo), os destinatá-
rios (o “servo João” e “aqueles que lêem e escutam”) e seu objeto
(“o que deve acontecer em breve”).
O endereço da obra (1,4-8) explicita os destinatários aos quais
se dirige historicamente João (cf v. 4; “às sete Igrejas que estão
na Ásia”). A partir de 1,9 começa a visão inaugural do escrito (1,9-
20). O “Filho do homem” (1,13) aparece aí revestido de atributos
que manifestam seu poder divino. Sua morte e sua ressurreição lhe
conferem uma autoridade que ele exerce, em primeiro lugar, sobre
a Igreja (1,8): o acontecimento pascal está no coração da escritura
apocalíptica de João. Os capítulos 2-3 constituem a parte episto-
lar. O conjunto das cartas é indistintamente dirigido às comunidades
asiáticas. Ao lado dos perigos externos que ameaçam as Igrejas (2,9;
2,13; 3,9), o autor insiste essencialmente no risco que correm, se-
gundo ele, as comunidades destinatárias: consentir com a realidade
do mundo presente (2,4; 2,14; 2,20; 3,1; 3,17).
A primeira seção de visões (4,1-11,19) começa com uma celebra-
ção cultuai cósmica (4-5) na qual, de cada vez, são adorados Deus e
o Cordeiro. Em seguida, articulada em torno do setenário dos selos
(6,1-17; 8,1-5) e das trombetas (8,6-9,21; 11,15-19), vem a apresen-
tação do julgamento do mundo como sinal da cólera de Deus. So-

495
A tradição joanina

mente duas cenas interrompem essa série de catástrofes: Apocalip-


se 7 (apresentação dos 144.000 eleitos e das multidões incontáveis)
e Apocalipse 10,1-11,14 (o iivrinho aberto e as duas testemunhas,
duas cenas pelas quais é sublinhada a imperiosa necessidade do tes-
temunho; cf 10,11 e 11,3).
A segunda série de visões (12,1-21,5) apresenta, no registro sim-
bólico, o combate escatológico que opõe Deus, Cristo e seu povo às
potências deste mundo sob o poder de Satanás. A visão de Apoca-
lipse 12,1-6 inaugura a seção: essas potências que afrontam a “des-
cendência da mulher” (12,17) são inspiradas por Satanás. Em segui-
da os protagonistas são apresentados (12,7-14,5). Satanás suscita
as perseguições do império romano idólatra (13,1-10). O sistema im-
perial domina por toda parte e ameaça a existência de todos aque-
les que se recusam a submeter-se às suas regras (13,11-18). Dian-
te de Satanás e de seus representantes se encontra a comunidade
do Cordeiro. A comunhão com o Cordeiro é garantia da vitória
(14,1-5). Em 14,6-20, temos a descrição do julgamento de Satanás
e das potências que lhe estão sujeitas. De novo (cf 8-9) sete anjos
e suas pragas (15-16). Depois (17-18) julgamento de Roma e do im-
pério. Malgrado os artifícios de Satanás, especialmente os milagres
que ele podería realizar (cf 17,8, alusão ao mito do Nero redivivus),
a certeza dos crentes na vitória deve permanecer intacta. Pode-se,
então, lamentar Roma (cf Ap 18), como outrora os profetas lamen-
taram as cidades idólatras; suas riquezas não passam de bens frá-
geis e efêmeros. Em 19,1-10 os crentes proclamam a vitória. Depois,
em 19,11-20, o julgamento torna-se cósmico e ultrapassa o império
romano: é a própria vitória do Messias. Enfim, depois de Roma, de-
pois da Besta e do falso profeta (19,20-21), é a vez do instigador da
revolta: Satanás. Somente então pode descer do céu o mundo novo
(21,1-22,5).
Apocalipse 22,6-21 constitui o epílogo da obra. O programa ini-
ciai foi cumprido: o livro apresentou a vitória de Cristo sob todos os
seus aspectos. A expectativa da plena manifestação cósmica dessa
vitória de Cristo encontra sua expressão na liturgia do culto da co-
munidade, pela qual esta encontra a força de viver e de assumir o

496
O apocalipse de Jo ã o

presente. A certeza da realização se exprime na proclamação litúr-


gica final: “Maranatha, vem Senhor Jesus” (22,21).

2 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
2 .1. Integridade literária
As cartas às Igrejas (Ap 2-3) não pertencem ao gênero literário
apocalíptico. Além disso, o Apocalipse contém inúmeras duplicatas
(comparar, por exemplo, 13,1.3.8 com 17,3.8; 14,8 com 18,2; 12,9.12
com 20,2 s.). Esses indícios poderíam atestar que o Apocalipse é o
resultado de uma compilação de várias obras outrora distintas, ou
que se trata de uma obra sujeita a sucessivas reedições. A hipótese
segundo a qual um autor cristão teria retomado e “cristianizado” um
documento judaico é hoje geralmente abandonada. De toda manei-
ra, é impossível determinar com precisão as tradições utilizadas ou o
teor exato de uma hipotética versão anterior da obra.

2.2. Fontes
A principal fonte de inspiração do Apocalipse é o Antigo Testa-
mento, ao qual se faz alusão, direta ou indiretamente, mais de qui-
nhentas vezes (sobre tudo Ezequiel, Isaías, Jeremias, Daniel e os
Salmos). O autor utiliza igualmente as tradições litúrgicas das co-
munidades cristãs primitivas. Entre elas as doxologias (1,6; 4,9; 5,13;
7,12), as aclamações (4,11; 5,9b-10; 5,12), as orações de ação de
graças (11,17 s.), as lamentações de mártires (6,10) e os hinos de lou-
vor (12,10; 15,3 s.; 16,5; 18,20; 19,1-8). Saber se o autor trabalhou a
partir de fontes escritas ou com tradições orais é uma questão que
continua em aberto.

2.3. O contexto apocalíptico


O Apocalipse pertence, como vimos, à literatura apocalíptica,
muito difundida por volta da era cristã. Substituta da profecia vete-
rotestamentária, essa literatura de resistência se desenvolve primei-
ro no judaísmo. Por esse meio, os visionários passam uma mensagem

497
A tradição joanina

de esperança e de interpelação. Mensagem de esperança na medida


em que o autor do apocalipse se dirige a grupos minoritários que vi-
vem em condição fragilizada, expostos a uma opressão real ou sen-
tida. Interpelação na medida em que o autor do apocalipse sempre
lança um olhar crítico aos poderes deste mundo e à sociedade em
que vivem.

Um a litera tu ra abundante

Numerosos textos judaicos e cristãos pertencentes, de perto ou de longe,


à literatura apocalíptica foram conservados.
• No Antigo Testamento encontram-se temas próximos do apocalípti-
co em certos textos proféticos pós-exílicos. Por exemplo, Isaías 24-27,
chamado, às vezes, de o “grande apocalipse de Isaías”; Isaías 34-35, o
“pequeno apocalipse de Isaías”. Igualmente, no Dêutero-Zacarias (Zc
9-14) ou no livro de Ezequiel (particularmente Ez 38-39, combate de
Israel contra Gog e Magog). Mas é sobretudo o livro de Daniel (em sua
última parte, Dn 7-12) que oferece as características de um apocalipse
tradicional.
• Não é possível dar aqui uma lista exaustiva dos apocalipses judaicos ex-
trabíblicos. Mencionamos alguns exemplos significativos: Apocalipse de
Abraão, 4 Esdras, 2 Baruc, Henoc, Livro dos Jubileus, 2 Henoc (ou Hertoc
escravo), 3 Baruc (ou Apocalipse grego de Baruc), Testamento de Abraão.
Encontram-se fragmentos apocalípticos também em outros escritos
(como no Testamento dos 12 Patriarcas) bem como em certos escritos de
Qumran;
• No Novo Testamento, além do Apocalipse de João, Marcos 13 (// Mt
24; Lc 21) constitui o que é chamado "o apocalipse sinótico”. Do mes-
mo modo, alguns textos do corpus paulino (por exemplo, ITs 4 ,13 -5 ,11;
2Ts 2,1-12), a epístola de Judas e certas passagens de 2 Pedro têm rela-
ção com o gênero apocalíptico.
• Na literatura apócrifa cristã e/ou gnóstica, podem-se citar: o Apocalipse
apócrifo de João, as Questões de Bartolomeu, os dois Apocalipses de Tia-
go, o Apocalipse de Pedro, o Apocalipse de Paulo, o Apocalipse de Adão.

2.4. Simbolismo
Uma das características do Apocalipse de João é o emprego da
linguagem simbólica. Isso se pode explicar de várias maneiras com-
plementares. Falar do advento do mundo novo supõe um discurso
sobre o indizível, sobre a própria ação de Deus. A linguagem simbóli­

498
O apocalipse d e Jo ã o

ca tenta, assim, representar a realidade transcendente pretendendo


explicá-la. Com isso, a linguagem simbólica abre para uma realidade
mais profunda do discurso: para além das descrições propostas, o
autor sugere uma específica compreensão de Deus e do mundo.
Num plano mais pragmático, a linguagem simbólica e os códigos
que ela supõe procuram atingir um auditório particular. Na literatura
apocalíptica, somente os eleitos podem compreender as imagens, os
símbolos, as visões. Esse simbolismo, muito presente no Apocalip-
se de João, não assume, entretanto, ares de um discurso esotérico.
Para os ouvintes do século I, habituados às Escrituras judaicas, a
maior parte das imagens utilizadas faz eco aos textos veterotesta-
mentários ou a um universo simbólico freqüentemente límpido no
contexto histórico e cultural da época.
A onipresença da linguagem simbólica desqualifica qualquer in-
terpretação literária do Apocalipse. O fim perseguido pelo autor não
é a descrição de um desenvolvimento cronológico dos acontecimen-
tos. Mais fundamentalmente ele anuncia, na história dos homens,
a vitória de Deus e de seu Cristo sobre o mal e sobre Satanás. Essa
vitória é uma realidade da fé à qual o crente só tem acesso pelo re-
gistro simbólico, que no contexto específico do Apocalipse de João
toma a forma particular da liturgia cristã (cf abaixo 4).

A linguagem sim bólica no A pocalipse

A simbólica numérica. Três e meio (metade de sete): imperfeição, tempo de


perseguição; mesmo sentido para 42 meses ou 1.260 dias (3 anos e meio). Ex:
Apocalipse 11,9: “verão seus cadáveres durante três dias e meio...”; versículo
11: “depois desses três dias e meio, um espírito de vida, vindo de Deus, pene-
trou-os...”. Quatro: o mundo criado (os 4 pontos cardeais); Apocalipse 7,1: “vi
quatro anjos em pé, nos quatro cantos da terra”. Seis: imperfeição total (7-1!);
daí o 666, o número da besta; os inúmeros cálculos para descobrir o sentido
desse número misterioso (Ap 13,18) são sempre aleatórios. O mais plausível
seria o cálculo pelo valor numérico das letras (gematria); assim, a adição des-
se valor para a expressão César Nero (Qesar Neró) daria 666. Teríamos uma
alusão à imagem de Nero que permanecia gravada na memória coletiva dos
cristãos como a besta perseguidora. Sete: perfeição; número divino (sete taças,
sete trombetas...). Doze (4 x 3): antigo (12 tribos) e novo (12 apóstolos) Israel;
ver também os múltiplos (24 anciãos, em 4,4). 1.000: grande quantidade, idéia

499
A tradição joanina

de plenitude, estada paradisíaca (cf Ap 20). 144.000: o quadrado de 12 (nú-


mero do povo de Deus) multiplicado por 1.000 (grande quantidade) exprime o
“resto” dos crentes oriundos do povo de Israel, ao qual vem se juntar a “imen-
sa multidão, que ninguém podia contar”, em outras palavras, a dos crentes de
“todas as nações, tribos, povos e línguas” (cf Ap 7,9).
Figuras e representações simbólicas. Cordeiro contra besta: Cristo contra Sata-
nás. Grande prostituta/Babilônia (Roma e o Império) contra a esposa (Igreja). O
dragão, a serpente (alusão ao relato das origens), o tentador (12 e 20): imagens
de Satanás. Chifre: poder. Cabelos brancos: eternidade, e não velhice. Túnica
longa: dignidade sacerdotal. Cinto de ouro: poder régio. Branco: pureza, vitória.
Vermelho: assassínio, violência, sangue dos mártires. Negro: impiedade. Existe
uma "trindade"diabólica: Dragão, besta, falso profeta. O mar é símbolo do mal
(Israel é um povo de camponeses: não haverá mar na nova Jerusalém); do mar
vêm os invasores; o mar é, portanto, o lugar onde reside a besta (abismo). Ao
contrário, o céu é o lugar onde reside Deus; quanto à terra, é o lugar onde se
defrontam céu e mar, Deus e Satanás.

2.5. Contexto onírico


Como nos apocalipses judaicos, o Apocalipse de João nos propõe
uma verdadeira viagem no além. O vidente contempla realidades
celestes, é “arrebatado em espírito” (1,10) para ver o que deveria
acontecer depois. O visionário não cessa de dizer que vê. Mas o que
vê ele, e o que dá origem a esse olhar? A segunda questão pode-se
responder que — na lógica de João — esse ver não seria possível sem
um “acontecimento” inexplicável mas, entretanto, fundamental na
existência de João de Patmos: o acontecimento pascal. A primei-
ra questão pode-se responder que as visões no Apocalipse de João
são sempre mais ou menos cristocêntricas. A conseqüência direta é
que as visões de João não “mostram” nada mais que a representa-
ção simbólica dessa vitória pascal de Cristo. N o Apocalipse trata-se,
finalmente, “de ouvir com os olhos”. Trata-se de representar, por
meio da visão, o querigma da Igreja primitiva segundo o qual Cristo
obteve a vitória sobre a morte e sobre as potências.

2.6. Ausência da pseudonímia


Enquanto habitualmente a prática da pseudonímia é de regra nos
apocalipses, sua ausência é um traço característico do Apocalipse de

500
O apocalipse de Jo ã o

João, que o distingue, imediatamente, da literatura apocalíptica. O


visionário não sente a necessidade de se apropriar da autoridade de
um grande personagem do passado. E que para ele só a autoridade
de Cristo fundamenta a proclamação do advento do mundo novo no
coração mesmo do antigo. Só ela permite a invocação do passado, o
olhar lúcido sobre o presente e o anúncio da realização futura daqui-
lo que, para a fé, a proclamação pascal deixa entrever.

3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3.1. A u to r
O autor do Apocalipse se nomeia João (1,1). Foi Justino (Diálogo
81,4) o primeiro a identificar João com o filho de Zebedeu. Em se-
guida, Ireneu liga o Apocalipse, assim como o evangelho e as cartas
joaninas, a João, discípulo de Jesus. Essa paternidade joanina prova-
velmente desempenhou papel importante na aceitação, aliás difícil,
da obra no cânon2. Entretanto, o testemunho do Apocalipse leva a
se opor à opinião da tradição. Nada permite identificar João de Pat-
mos ao apóstolo. Não só ele jamais reivindica esse título, dizendo-
se, simplesmente, “servidor”, como o grupo dos apóstolos pertence
para ele ao passado (cf Ap 18,20 e 21,14). E também pouco pro-
vável que João de Patmos possa ser identificado com “o Ancião”
(πρ^σβύτ6ρος) de que fala Papias, visto que esse título jamais é uti-
lizado pelo autor. Deve-se lembrar, finalmente, que o Apocalipse é
o único escrito do Novo Testamento a ter um autor denominado
João! Deve tratar-se de um personagem importante das comunida-
des asiáticas do fim do século I, talvez um membro influente de um
círculo de profetas cristãos itinerantes (cf Ap 22,6); os destinatários
pertencem ao conjunto da Ásia Menor.

3.2. Ligação com o meio joanino


Além das estatísticas de vocabulário que permitem algumas apro-
ximações, os pontos de contato com o quarto evangelho são, quanto

2 C f abaixo cap. 27, p. 598-600.

501
A tradição joanina

ao essencial, os seguintes: o tema da “água viva” (Ap 7,16 s.; 21,6;


22,1.17 / / Jo 4,10.13 s.; 7,37-39), a designação de Jesus como “Pa-
lavra de Deus” (Ap 19,13, cf Jo 1,1) e o título cristológico “Cordeiro”
(29 vezes no Apocalipse, cf Jo 1,29.36). Essas aproximações não
são, contudo, decisivas: as comparações de vocabulário não signifi-
cam nada em si mesmas; aliás, os temas paralelos, que podem provir
de tradições às quais teriam tido acesso tanto o Apocalipse como
o quarto evangelho, são tratados diferentemente por esses dois es-
critos. As diferenças na cristologia, na eclesiologia e na escatologia
parecem militar a favor de autores e um meio teológico diferentes3.

3.3. Lugar de redação


João escreve da ilha de Patmos, onde está exilado “por cau-
sa (διά) da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1,9).
Essa expressão podería ser compreendida como “o fim de difundir
a Palavra”; entretanto, διά nunca tem esse sentido no Apocalipse.
Constata-se, além disso, que Apocalipse 6,9 e 20,4 estabelecem
uma relação direta entre, de um lado, a palavra e o testemunho e, de
outro, o martírio. É sob o signo do exílio forçado ou, em linguagem
moderna, do “delito de opinião” que o autor implícito (aquele que se
dá a conhecer no texto) se apresenta ao leitor. Seja qual for a rea-
lidade histórica desse exílio (João pode ter ido para Patmos por sua
própria iniciativa), somos levados a indagar: a que contexto histórico
corresponde essa situação?

3.4. Data da redação


Duas datações são geralmente propostas para a composição do
Apocalipse:
• entre 68 e 70, sob o reinado de Nero. Embora o Apocalipse
não pareça ter sido escrito em período de perseguição san-

3 Argumentos em defesa do caráter joanino do Apocalipse de João serão


encontrados em Jens-W. TAEGER, Johannesapocalypse und Johanneis-
cher Kreis, New York/Berlin, de Gruyter, 1989.

502
O apocalipse de João

grenta, nele se fala frequentemente dos mártires; não seria


por causa da recente perseguição sob Nero, isto é, em 64-65?
Segundo Tácito, Nero perseguiu os cristãos para não ser acu-
sado pelo incêndio de Roma em 644. O Apocalipse de João
guarda uma lembrança desse período; Apocalipse 13,3.12 e
17,8 fazem alusões ao mito do Nero redivivus: Nero tinha de
tal modo marcado sua época que circulava uma lenda a seu
respeito afirmando que ele não teria morrido realmente; para
os cristãos, ele representava a figura do Anticristo5;
• entre 89 e 96, sob o reinado de Domiciano. Para a maio-
ria dos exegetas, é o reinado de Domiciano que se enqua-
dra melhor no contexto de comunicação do Apocalipse
de João. Domiciano, de fato, desenvolveu o culto imperial
mais intensamente do que Vespasiano, Tito ou Nerva. Ora,
historicamente, a Ásia Menor parece realmente ter sido
o terreno privilegiado desse desenvolvimento. Além disso, o
Apocalipse de João faz freqüentes alusões a esse fenômeno
(cf Ap 2,13 e Ap 13). A hipótese de uma datação sob Domi-
ciano parece, hoje, a mais verossímil.

3.5. Contexto histórico


A historiografia tradicional reconstitui o Sitz im Leben do Apocalip-
se de João insistindo na situação de perseguição dos destinatários. O
texto é interpretado como uma mensagem de encorajamento, dirigí-

4 Cf TÁCITO, Anais XV,44: “Mas nenhum meio humano, nem as liberali-


dades do príncipe, nem as satisfações oferecidas aos deuses dissipavam as
suspeitas e impediam de crer que o incêndio fora provocado por ordem.
Então, para fazer calar os rumores, Nero apresentou acusados e mandou
submeter aos castigos mais requintados indivíduos detestados por suas
abominações, que o vulgo chamava de cristãos”. Sobre esse assunto, cf
Jean BEAUJEU, L incendie de Rome en 64 et les chrétiens, Bruxelles/Ber-
chen, Latomus, I960; Jacques MOREAU, La persécution du christianisme
dans 1'empire romain, Paris, PUE 1956, 31-35.
5 Sobre esse tema, cf Martin BODINCER, Le mythe de Néron. De 1’Apo-
calipse de saint Jean au Talmud de Babylone, RHR 206 (1989) 21-40.

503
A tradição joanina

da a uma comunidade sujeita a um sistema totalitário e opressor cuja


manifestação mais visível é a do culto imperial, denunciado como ido-
latria pelo visionário. Pesquisas recentes retocam essa reconstituição
do Sitz im Leben do Apocalipse, sem invalidá-la totalmente. A inves-
tigação histórica leva, de fato, a relativizar a idéia de uma perseguição
ativa de que seriam vítimas os destinatários do Apocalipse.

1. Nenhuma perseguição sistemática contra os cristãos é histórica-


mente atestada sob o reinado de Domiciano. Os especialistas em
império romano6, reexaminando os testemunhos dos historiado-
res do século II7, evidenciam os seguintes pontos: a) o reinado de
Domiciano é marcado por um absolutismo caracterizado parti-
cularmente pela incrementação do culto imperial, b) Esse abso-
lutismo provoca a oposição dos intelectuais e senadores, com os
quais começará, no final de seu reinado (a partir de 93), a prova
de força: perseguição sangrenta de senadores (mas o número dos
condenados à morte não parece ter sido muito grande), expulsão
de filósofos de Roma e da Itália, c) Tanto no plano da administra-
ção como nos planos militar e econômico, seu reinado é marcado
pela continuidade, isto é, pela consolidação da estabilidade, da
Pax romana.
2. Sobre a questão das perseguições, o próprio Apocalipse leva a fazer
duas observações complementares: a) Se a presença de João em Pat-
mos for considerada o resultado de um exílio forçado, então a "perse-
guição” que ele sofreu está ligada à prática, corrente sob Domiciano,
que consiste em afastar dos centros políticos importantes as persona-
lidades cujas palavras possam parecer incômodas. Isso prova, então,
que João é um personagem importante e, sem dúvida, relativamen-
te conhecido da administração romana da Ásia Menor. Isso não de-
monstra uma perseguição sistemática contra os cristãos (tal como se
conhecerá nos séculos II e III até Diocleciano). b) João de Patmos não
parece ser capaz de mencionar outro nome de mártir além do de An-

6 Como Marcel LE GLAY, Jean-Louis VOISIN, Yann LE BOHEC, Histoire


romaine, Paris, PUE 1991, 273-280.
7 Convém considerar com prudência os testemunhos muito negativos de
Suetônio (Domiciano 1,3), Tácito (História natural 4,68) e Plínio (Pane-
gírico 48,3) sobre a personalidade de Domiciano. Esses três autores des-
crevem Domiciano de maneira negativa para fazer melhor a apologia do
reinado delrajano (98-107), que eles interpretam como uma nova era em
ruptura com o período precedente.

504
O apocalipse de João

tipas (cf Ap 2,13). As alusões aos mártires não parecem se referir ao


presente dos ouvintes de João. Assumem, mais ffeqüentemente, a
forma de evocação de mártires do passado (os do Antigo Testamento
e, talvez, os da época de Nero) ou de representações idealizadas do
testemunho (espécie de “clichês”).
3. O culto imperial se apóia numa certa piedade popular cuja impor-
tância religiosa não se deve superestimar. Ele é antes de tudo e
principalmente um fator de estabilidade social e política. As afir-
mações sobre a divindade do imperador não têm, aliás, o sentido
teológico forte que cristãos e judeus terão tendência a lhe atri-
buir. O recurso à palavra “deus” denota apenas que uma ação,
uma conduta humana excepcional manifestam uma inspiração,
um impulso extraordinário e sobrenatural. Parece, realmente,
que a administração romana limitava suas exigências ao cumpri-
mento de determinadas ações ligadas ao culto imperial. De seu
ponto de vista, tais imperativos não podiam afetar a convicção
religiosa de ninguém.
4. A atitude apocalíptica, muito crítica em face do sistema imperial,
não é a única voz que o Novo Testamento faz ouvir. As epístolas
pastorais, escritas provavelmente na mesma época e no mesmo es-
paço geográfico (Efeso, fim do século I), fazem a apologia de uma
integração das comunidades cristãs na sociedade romana. Essas
posições diferentes mostram que as comunidades cristãs nascentes
se viram confrontadas com a difícil questão da atitude a ser adotada
em relação ao poder romano. Numa situação caracterizada pela
precariedade, elas sofriam provavelmente pressões tanto sociais
(ver já antes de 70 a questão das carnes sacrificadas, em Corinto)
como políticas, e estavam divididas entre um desejo de adaptação
e a preocupação com a fidelidade ao Evangelho que pode levar ao
martírio.
5. Enfim, o tom geral da obra deve ser levado em conta. E mais do
que um encorajamento a uma comunidade perseguida: João de
Patmos não cessa de censurar a seus ouvintes uma “instalação” na
sociedade da época (cf as severas advertências do autor às Igrejas
destinatárias em Ap 2-3). Ao convidar seus ouvintes a olhar de
maneira muito crítica a sociedade romana e o poder imperial, João
de Patmos toma em sentido contrário a própria vida das comu-
nidades, tal como as “cartas às Igrejas” permitem reconstruir. O
Apocalipse de João é uma tentativa de responder às pressões que
sofrem as comunidades cristãs e, ao mesmo tempo, ao desejo que
elas têm de se conformar às práticas sociais tradicionais nas provín-
cias romanas da Ásia Menor.

505
A tradição joanina

Talvez não seja a sociedade romana que esteja, em primeiro lugar,


em conflito com a Igreja nascente, mas seja João que está em conflito
com Roma e convida seus ouvintes a se verem do mesmo modo. Isso
faz parte de sua visão do mundo antes mesmo de ser uma realidade
social. A situação de crise do Apocalipse de João é uma característica
do gênero apocalíptico; não está forçosamente ligada a circunstâncias
políticas particulares. Uma dupla convicção motiva o escrito de João de
Patmos: no plano externo, um olhar crítico sobre os poderes humanos;
no plano interno, o questionamento da comunidade cristã, quando ela
“se instala” no mundo, quando abandona a imperiosa necessidade de
proclamar o advento do tempo novo inaugurado, no próprio âmago do
antigo estado de coisas, pelo acontecimento de Páscoa.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. O fundamento apocalíptico
Teologicamente, a literatura apocalíptica e o movimento que lhe
é ligado são caracterizados pela convicção de que o mundo antigo
chegou ao seu fim e o mundo novo está prestes a advir. A linha divi-
sória entre os dois é a intervenção escatológica de Deus, que julgará
os ímpios e recompensará seus eleitos, que passaram pela tribula-
ção dos últimos tempos. No contexto específico do Apocalipse de
João, a apocalíptica é posta a serviço de uma convicção: o fim do
mundo antigo (aquele no seio do qual vivem João de Patmos e seus
ouvintes) e a vinda de um mundo novo são inaugurados no aconte-
cimento pascal. Essa convicção constituiu João e os crentes como
testemunhas. A dimensão cristológica é, portanto, uma chave de
entrada privilegiada para compreender o Apocalipse de João.

4.2. O fundamento crístológico


Quanto à forma, o Apocalipse de João utiliza o conjunto de dados
do gênero apocalíptico tradicional, com a notável exceção da pseu-
donímia. Entretanto, uma diferença fundamental atravessa toda
essa retomada formal e, às vezes, teológica do modelo apocalíptico.
A essência dessa diferença se encontra nas primeiras palavras do

506
O apocalipse de João

livro, que são o título verdadeiro, a verdadeira dedicatória e indicam


o verdadeiro autor do livro: “Revelação de Jesus Cristo”. Mais do
que revelar o futuro ou o fim dos tempos como realidade objetiva,
o que o Apocalipse de João procura é proclamar o advento desse fim
dos tempos no acontecimento Jesus Cristo, com a crítica do mundo
presente que isso implica. Em Jesus, o Cristo, o “Cordeiro imolado
que se encontra no trono” (Ap 5,6), o crente é convidado a reco-
nhecer aquele que venceu as potências de morte, das quais Roma é,
nessa época, para João de Patmos, a representação por excelência.
Para João, o fim dos tempos, compreendido como o fim das potên-
cias, é, sem dúvida, uma expectativa futura, mas igualmente uma
realidade presente na fé. O eixo central do Apocalipse de João não
é, portanto, a volta de Cristo, mas sua encarnação já ocorrida. Esse
acontecimento muda radicalmente o curso da história e dá sentido
ao presente e ao futuro. Não se trata de fixar o olhar no futuro a
ponto de esquecer a realidade do mundo presente mau; trata-se,
antes, de estimular a esperança e a perseverança no presente. Para
João, a esperança se ancora nessa certeza: o mundo antigo mau já
está vencido, e Roma não passa de uma potência em decadência.

4.3. A escatologia e o julgamento


O Apocalipse de João se propõe, contudo, “mostrar o que deve
acontecer em breve” (1,1). O tema do julgamento futuro é, por ou-
tro lado, o assunto de um grande número de visões. A uma primeira
leitura, somos tentados a pensar que o autor apocalíptico elabora
um verdadeiro calendário escatológico. Entretanto, o leitor atento
é levado a se perguntar sobre a lógica que preside à sucessão das
visões. Estas parecem se sobrepor, se repetir, até mesmo se contradi-
zer. Embora a visão de Apocalipse 21-22 marque realmente o coroa-
mento da ação de Deus, é impossível descobrir um desenvolvimento
cronológico coerente na parte central da narração (Ap 4-20). A su-
cessão aparente dos acontecimentos não passa de um quadro fictício
no interior do qual o autor quer apresentar os múltiplos aspectos do
triunfo de Cristo, da condição da Igreja e do julgamento do mundo. A
vitória de Cristo: ela está presente desde o primeiro capítulo, mas se

507
A tradição joanina

repete ao longo do livro (no culto celeste, nos capítulos 7, 11, 12, 19
e 20). A condição da Igreja: ela reina com o Cordeiro e, no entanto,
deve lutar neste mundo (1,9; 7; 14; 20). O julgamento do mundo: ele
é iminente, já se realizou e é futuro (comparar 6 e 7; 8-9; 18).
João faz uma verdadeira confusão com a sucessão cronológica
passado/presente/futuro. Não se sabe mais, realmente, a que perío-
do da história pertence aquilo de que fala o autor apocalíptico. O
fenômeno é particularmente sensível no capítulo 18, em que a utili-
zação dos tempos para anunciar a queda de Babilônia desafia qual-
quer lógica: versículo 2: atualidade; versículo 4: futuro; versículo 8:
futuro; versículo 10, passado; versículo 11: atualidade; versículo
16: futuro; versículo 17: passado; versículo 21: futuro (fenômeno
similar em Ap 21,1-22,5). Objetivamente, Roma ainda é triunfan-
te (situação à qual as comunidades destinatárias parecem se con-
formar). Entretanto, se João quer ser fiel ao acontecimento que o
constitui como testemunha (a saber, a vitória de Cristo), ele deve
proclamar, desde já, o fim do poder orgulhoso de Roma, símbolo do
império: Satanás triunfa, mas é um perdedor virtual. A “confusão”
cronológica expressa, no plano narrativo, a convicção segundo a
qual o mundo novo acontece no coração mesmo do antigo.

4.4. A eclesiologia
O Apocalipse de João é escrito “às Igrejas” (1,11). Ele se apresen-
ta não só como um texto de encorajamento, mas, em primeiríssimo
lugar, como uma interpelação radical às comunidades cristãs. No fi-
nal do século I, João de Patmos constata que nas comunidades asiá-
ticas a proclamação do advento do tempo novo dá lugar a uma pre-
ocupação de compromisso. João, então, não cessa de afirmar que o
que constitui o sujeito cristão é o testemunho dado ao acontecimen-
to pascal como contestação do mundo. Essa proclamação institui o
crente em ruptura com a sociedade. Como então viver essa situação
especial? Como manifestar no mundo antigo o advento do mundo
novo? A dimensão cultuai do Apocalipse dá a chave: é a comunidade
cultuai que atualiza e torna presente ao mundo a vitória do Cordeiro
sobre os poderes (cf Ap 4-5).

508
O apocalipse de João

Estudos têm mostrado o enraizamento da escritura de João de


Patmos na liturgia da Igreja antiga (o próprio autor afirma ter re-
cebido suas revelações no “dia do Senhor”; c f 1,10: kv rfj κυριακη
ήμφα). A dimensão simbólica, própria da linguagem litúrgica, permi-
te olhar de maneira diferente a realidade: esta não se reduz ao que,
à vista humana, se pode constatar; por consequência, a liturgia, e a
visão hão são, na lógica de João de Patmos, desinteresse ou fuga do
mundo. Elas constituem uma linguagem que faz uma ruptura mas as-
sume a história com toda a sua complexidade (contra uma lógica do
puro afastamento). A linguagem litúrgica do Apocalipse é uma outra
maneira de habitar o mundo. Trata-se de se manter em um lugar sim-
bólico, que não é geográfico, mas espiritual: estar no mundo, partici-
pando do que não é do mundo, isto é, da liturgia celeste de adoração
do Cordeiro, cuja importância política não deve ser ocultada.

4.5. Critica do político


João de Patmos desenvolve uma leitura crítica da sociedade na
qual vive. Em suas linhas gerais, ela pode ser definida assim: no mun-
do romano, e particularmente na cidade romana, toda a existência
humana se resume à ordem política e econômica imperial. Não é
uma ordem forçosamente persecutória, mas certamente sedutora.
Ela convence todos de que não há vida possível fora dos limites do
império e fora das esferas do político e do econômico, entendidos
como englobando a totalidade da existência humana. Diante disso,
João afirma que é possível e necessário habitar o mundo, Roma e
o império de uma outra maneira. Ele nos convida a habitá-lo como
pessoas “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7,9) cujo
nome só é conhecido daquele que o recebe (2,17) — isto é, cuja
integridade está protegida contra os poderes — e está inscrito “no
livro da vida” (3,5; 13,8; 17,8; 20,15; 21,27). Indivíduos cuja identi-
dade reside em outro lugar fora da realidade da cidade, do Império e
das hierarquias compartimentadas que isso implica. Esse outro lu-
gar é situado por João “nos céus”, na “Nova Jerusalém” (21,2.10),
expressões que não designam espaços geográficos, mas lugares
simbólicos.

509
A tradição joanina

O caráter profundamente litúrgico do Apocalipse indica que para


João não se trata de opor um lugar ao outro, mas de afirmar que
existe uma linguagem, a da fé, que permite ao crente habitar a cida-
de de uma outra maneira. De tal maneira que “sair” de Babilônia (cf
17,4) tem uma dimensão antes de tudo e essencialmente simbólica;
trata-se, para o crente que habita na cidade (na época, as comuni-
dades cristãs eram comunidades urbanas), de não se deixar seduzir
pelo discurso ideológico sobre o poder e o sucesso da cidade e, mais
ainda, do império. Trata-se, para as comunidades asiáticas, de viver
no coração mesmo das cidades imperiais sem sucumbir à sedução
que o império exerce através delas, sabendo que a cidade verdadeira
está noutro lugar.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Constata-se um questionamento da reconstituição tradicional do
Sitz im Leben do Apocalipse como mensagem dirigida a comunida-
des perseguidas8. O novo olhar sobre o contexto histórico tem con-
seqüências para um certo número de campos de pesquisas, clássicos
ou mais recentes, ligados ao Apocalipse de João.
Apocalipse e situação de crise. Estudos recentes se interessam pela
função da escritura apocalíptica. Passa-se da noção de “literatura de
crise” (no sentido de que respondería a uma situação de perseguição)
à idéia segundo a qual é a escritura apocalíptica de João de Patmos
que faz surgir a crise (no sentido de que lança um olhar crítico sobre
a sociedade num período de consenso)9.
A heresia nas “cartas às Igrejas". Considera-se, às vezes, que as
cartas às Igrejas apontam para um risco de heresia representado,
no interior mesmo das comunidades asiáticas, por um grupo de-
nunciado como particularmente perigoso (cf 2,2: "os que se dizem

8 Leonard L. THOMPSON, The Book o f Revelation‫׳‬. Apocalypse and Em-


pire, New York/Oxford, Oxford University Press, 1990; Thomas B. SLA-
TER, On the Social Setting of the Revelation to John, N TS 44 (1998)
232-256.
9 lain PROVAN, Foul Spirits, Fornication and Finance: Revelation 18 from
an Old Testament Perspective, JSN T 64 (1996) 81-100 (97).

510
O apocalipse de João

apóstolos e não o são”; 2,6: “os nicolaítas”; 2,14: “os que se ape-
gam à doutrina de Balaão”; 2,20: "a profetisa Jezabel”; e 2,24: “os
que conheceram as profundezas de Satanás”). Mas pode-se indagar
também se não se trata de uma encenação da realidade tal como a
interpreta João de Patmos. Essas expressões seriam, sob sua pena,
figuras retóricas que designam o compromisso com a sociedade ro-
mana e suas práticas.
Leituras narrativas. Numa área próxima, convém reabrir, hoje, o
dossiê do Apocalipse de João com o olhar nas perspectivas recentes
suscitadas pelas leituras narrativas101. Uma leitura narrativa do Apo-
calipse podería confirmar que João de Patmos constrói uma repre-
sentação simbólica da realidade, com a finalidade de desconstruir o
mundo de seus leitores.
Perspectivas da Wirkungsgeschichte. Não se deve esquecer, en-
fim, o lugar particular que o Apocalipse assume na história da Igreja
e, mais amplamente, na história dos movimentos dissidentes. Cer-
tas passagens do Apocalipse têm sido objeto de uma recepção toda
particular. Mencionamos Apocalipse 12 e suas três figuras simbóli-
cas (a mulher, a criança e o dragão) ou, ainda, Apocalipse 20 e sua
apresentação do milênio. Deve-se assinalar, igualmente, a impor-
tância do Apocalipse na história da arte. Tudo isso leva a fazer da
história da recepção do texto (Wirkungsgeschichte) do Apocalipse
um capítulo especial da pesquisa, que vai muito além do quadro es-
trito da exegese".

6. B ib l io g r a f ia

Comentários
AUNE, David E. Revelation. Waco, Word Books, 1997-1998 (WBC 52). 3 v.
BEALE, Gregory K. The Book o f Revelation. Grand Rapids, Eerdmans,
1998.

10 James L. RESSEGUIE, Revelation Unsealed. A Narrative Critical Approa-


ch to John’s Apocalypse, Leiden, Brill, 1998.
11 O comentário de Charles BRUTSCH, La Clarté de !'Apocalipse, Genève,
Labor et Fides, 1966, permanece, nesse domínio, indispensável.

511
A tradição joanina

BEASLEY-MURRAY, George-Raymond. The Book ofRevelation. London,


Oliphants, 1974 (NCBC).
BRUTSCH, Charles. La Clarté de lApocalypse. Genève, Labor et Fides,
1966 (Commentaires bibliques).
KNIGHT, Jonathan. Revelation. Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999
(Readings).
KRAFT, Heinrich. Die Offenbarung des Johannes. Tübingen, Mohr, 1974
(H N T 16a).
LOHSE, Eduard. Die Offenbarung des Johannes. Gottingen, Vandenhoeck
und Ruprecht, 1971‫( ג‬NTD 1).
PRIGENT, Pierre. LApocalypse selon St Jean. Genève, Labor et Fides,
320 00 (CN T14).
ROLOFE Jürgen. Die Offenbarung des Johannes, Zürich, Theologischer
Verlag, 1984 (ZBK N T 18); ed. ingl.: The Revelation o f John: A conti-
nental Commentary. Minneapolis, Fortress Press, 1993 (Continen-
tal Commentaries).
SCHUSSLER-FIORENZA, Elisabeth. The Book o f Revelation: Justice and
Judgment. Philadelphia, Fortress Press, 1985.
SWEET, John Philipp M. Revelation. London, SCM Press, 1990 (TPI New
Testament Commentaries).

Leitura prioritária
BAUCKHAM, Richard J. The Theology o f the Book o f Revelation. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1993 (N ew Testament Theo-
logy).
CUV1LL1ER,Elian. Les apocalypses du Nouveau Testament. Cahiers
Évangile 110 (1999).
PREVOST, Jean-Pierre. Pour lire Γ Apocalypse. Paris/Ottawa, Cerf/No-
valis, 1991.

História da pesquisa
FEUILLET André. LApocalypse. Etat de la question. Paris-Bruges, Des-
clée de Brouwer, 1963 (Studia Neotestamentica. Subsidia 3).

512
O apocalipse de João

PRÉVOST, Jean-Pierre. LApocalypse (1980-1992). In: ACEBAC, “De


bien des manières”. La recherche biblique aux abords du XXI siècle.
Montréal/Paris, Fides/Cerf, 1995, p. 433-457 (LeDiv 163).
PR1GENT, Pierre. Linterpretation de 1’Apocalypse en débat. ETR 75
(2000) 189-210.
VANNI, Ugo. LApocalypse johannique. Etat de la question. In: LAM-
BRECHT Jan (éd.). LApocalypse johannique et I’Apocalyptique dans le
Nouveau Testament. Gembloux, Duculot, 1980, p. 21-46 (BEThL 53).

Estudos particulares
BAUCKHAM, Richard J. The Climax o f the Prophecy: Studies on the Book
of Revelation. Edinburgh, Clark, 1993.
Bovon, François. Le Christ de 1’Apocalypse. In:-------- . Revelations et écri-
tures. Nouveau Testament et littérature apocryphe chretienne. Ge-
nève, Labor et Fides, 1993, p. 113-129 (Monde de la Bible 26).
-------- . Possession ou enchantement. Les institutions romaines selon
!’Apocalypse de Jean. In: —!---- . Révélations et écritures. Nouveau
Testament et littérature apocryphe chretienne. Genève, Labor et
Fides, 1993, 131-146 (Monde de la Bible 26).
HEMER, Colin J. The Letters to the Seven Churches o f Asia in Their Local
Setting. Sheffield, JSOT Press, 1986 (JSNTSS 11).
KARRER, Martin. Die Johannesoffenbarungals Brief Studien zu ihrem lite-
rarischen, historischen und theologischen Ort. Gottingen, Vanden-
hoeck und Ruprecht, 1986 (FRLANT 140).
KRAYBILL, J. Nelson. Imperial Cult and Commerce in John’s Apocalypse.
Sheffield, Sheffield Academic Press, 1996 (JSNTSS 132).
PRIGENT Pierre. Apocalypse et Liturgie. Neuchâtel, Delachaux etNiestlé,
1972 (Cahiers théologiques 52).
-------- . Au temps de !’Apocalypse. 1. Domitien. RHPR 54 (1974) 455-483.
-------- . Au temps de 1’Apocalypse. II. Le culte imperial. RHPR 55 (1975)
215-235.
-------- . Au temps de l’Apocalypse. III. Pourquoi les persécutions? RHPR
55 (1975) 341-363.

513
A tradição joanina

THOM PSON, Leonard L. The Book o f Revelation: Apocalypse and Em-


pire. N ew York/Oxford, Oxford University Press, 1990.

Coleção de artigos
LAMBRECHT, Jan (éd.). LApocalypse johannique et I’Apocalyptique dans
le Nouveau Testament. Gembloux, Duculot, 1980 (BEThL 53).

514
Λ

As epístolas católicas
CAPITULO

23
A epístola de Tiago
François Vouga

Rotulada de “epístola de palha” por Lutero, por causa da perí-


cope aparentemente antipaulina de Tiago 2,14-26, em que o autor
alerta contra uma “fé sem obras”', escolhida, por causa de sua ética
da pobreza, como um dos textos fundadores do movimento refor-
mador valdense de Pierre Valdes, em fins do século XII e início do
século XIII12, a epístola de Tiago constitui, sob muitos aspectos, um
texto único no Novo Testamento. Parece estar ausente nela qual-
quer reflexão explícita sobre a cristologia, sobre a paixão, a morte
e a ressurreição de Jesus e sobre o anúncio da salvação. Por essa
razão, às vezes até mesmo se duvidou de sua proveniência cristã e
se imaginou que as duas formulações cristológicas explícitas de Tia-
go 1,1 e 2,1 fossem interpolações com o intuito de “cristianizar” um

1 Martin LUTHER, Preface à la traduction du Nouveau Testament, 1522,


WA, DB 7, 384-385.
2 Giovanni GONNET (ed.), Enchiridion fontium valdensium, Collana della
Facoltá Valdese di Teologia, Torre Pellice, Claudiana, 1958, v. I, 32 ss.:
“Profession de foi de Valdes" (Madrid, Bibl. Nat., ms 1114, f lra-2ra). Esse
texto cita Tiago 2,26: “Et quia fides secundum iacobum apostolum ‘sine ope-
ribus mortua est’, século abrenunciavimus, et que abebamus, velut a domino
consultum est, pauperibus erogavimus et puperes esse decrevimus, ita ut de
crastino solliciti esse non curamus, nec aurum nec argentum vel aliquidtale
preter victum et vestitum cotidianum a quoquam accepturi sumus” (35).

517
A s epístolas católicas

escrito proveniente do judaísmo helenístico3; em compensação, ela


constitui um dos textos éticos mais interessantes e o mais sugestivo
do Novo Testamento.

1. A p r e s e n t a ç ã o
A epístola de Tiago lança um olhar abrangente sobre a vida eco-
nômica e social que envolve o cristianismo primitivo; ela oferece às
comunidades cristãs uma lição de ética social de grande acuidade.
Sua linguagem não é especulativa; parte de uma observação precisa
da vida cotidiana dos cristãos, mas também do homem do início do
império. A cultura única e a unidade de língua herdadas do helenis-
mo, a paz assegurada por Roma em toda a bacia mediterrânea fazem
do mundo ocidental um grande espaço de prosperidade econômica
e de trocas intensivas de mercadorias, idéias e pessoas. Engajadas,
material e espiritualmente, na mobilidade de uma sociedade que pro-
mete tanto as ascensões vertiginosas como a miséria, as pessoas cuja
existência Tiago evoca perdem sua identidade e deixam esboroar-se
o que constitui o essencial de sua vida (Tg 4,13-5,6). Enraizado numa
espiritualidade veterotestamentária e numa tradição de palavras de
Jesus, frequentemente semelhantes às do Sermão da Montanha (Mt
5-7), Tiago opõe à ideologia dominante uma ética da pobreza; a quem
a ela aderir ele promete não somente a salvação escatológica (1,21;
2,14; 4,12.15; 5,20), mas o lucro da vida e da felicidade presente.

/. 1. Gênero literário
Do ponto de vista literário, a epístola de Tiago se apresenta, antes
de tudo, como uma enciclica, isto é, como uma carta circular destina-
da à Igreja universal, enviada por Tiago, servidor de Deus e do Senhor
Jesus Cristo, às doze tribos da diáspora. Essa denominação dos desti­

3 L. MASSÉB1EAU, LÉpítre de Jacques est-elle I’oeuvre d’un chrétien?,


RHR 32 (1895) 249-283; Friedrich SPITTA, Der Briefdes Jakobus, Gottin-
gen [s.n.], 1896; Arnold MEYER, Das Rátsel des Jakobusbriefes, Giessen,
Tõpelmann, 1930.
A epístola de Tiago

natários deve certamente ser compreendida de modo metafórico: os


leitores para os quais nosso escrito é redigido são, sem dúvida, os cris-
tãos dispersos no universo ideológico, econômico e social do império.
Em seguida, o corpo da epístola continua a se dirigir aos “irmãos”, a
“seus irmãos” ou a seus “irmãos muito amados” (1,2.16.19; 2,1.5.14;
3,1.12; 4,11; 5,7.9.10.19), perdendo ao mesmo tempo, aliás, seu cará-
ter de carta. Não há nenhuma alusão clara à situação particular dos
destinatários, nenhuma menção de relações pessoais ligando o autor
a eles, e no fim do escrito nenhuma conclusão epistolar (saudações
diretas ou indiretas, votos). Em vez disso, sem nem sempre estar ex-
plicitamente ligados entre si, sucedem-se aforismos, ensinamentos
morais que lembram, pela forma, a diatribe dos filósofos e dos prega-
dores populares das escolas filosóficas helenísticas (cínicos, estóicos),
bem como advertências e inventivas proféticas.

1.2. Estrutura
Saber se a apresentação dos argumentos segue ou não uma ordem
sistemática permanece uma questão em aberto. Se há uma unidade
na demonstração, ela é de ordem temática e permanece implícita. Di-
ferentemente das epístolas de Paulo, de Pedro ou de João, Tiago se
contenta em justapor os elementos que constituem sua parênese.

Plano da epístola de Tiago


1.1 Endereço e saudação epistolar

Suportar as provações (1,2-19a)


1,2-4 O tema: a provação da fé
1,5-8 Resistir à dispersão
1,9-11 Resistir às riquezas
1,12 Bem-aventurança daquele que suporta a provação
1.13-19a Resistir aos determinismos

Realizar a palavra e resistir às relações de força (l,19a-3,18)


I, I9b-27 O tema: a obediência da fé
2.1-13 Resistir aos poderes de discriminação
2.14-26 Arriscar sua fé: a fé e suas obras
3.1- 12 Vigiar a língua
3,13-18 Serviço e dominação da sabedoria

519
A s epístolas católicas

-Testemunhar a providência de Deus diante dos poderes (4,1-5,20)


4,1-10 O tema: a fidelidade da fé
4,11-12 A palavra e o respeito
4,13-5,11 Advertências proféticas
Palavras aos homens de negócio (4,13-17)
Palavras aos ricos (5,1-6)
Palavras aos crentes (5,7-11)
5,12 Viver na verdade e na claridade
5,13-18 Acompanhar os doentes e curar os pecadores
5,19-20 Reconduzir os extraviados

2 . C o m p o s iç ã o
Por estranho que pareça no interior do cânon neotestamentário,
o gênero argumentative que dá à epístola de Tiago sua estrutura
fragmentada e seu estilo figurado, realista e concreto é bem o estilo
tanto da pregação moral dos filósofos helenísticos como da tradição
sapiencial do Sirácida ou do livro da Sabedoria. Pode-se encontrá-lo
no relato que os Fragmentos de Teles fazem do ensino cínico de Bion
sobre a pobreza, também nos propósitos de Diógenes e Antístenes,
citados por Diógenes Laércio, além de na pregação de Jesus, pelo
menos na forma que lhe conferem o Evangelho segundo Tomé, a Fon-
te Q ou o Sermão da Montanha (H. Kòster4). O pensamento não se
constrói por uma série de silogismos e de demonstrações lógicas; ele
associa cenas curtas de diálogo fictício a seqüências de paradoxos,
que por sua ironia e sua exatidão às vezes beiram a pilhéria. Vê-se
que o autor da epístola é uma pessoa culta e instruída na escola he-
lenística da retórica.
Em todo o Novo Testamento, o vocabulário de Tiago é o mais
rico (encontram-se nele 63 hapax neotestamentários); é também
o mais culto. Tiago não hesita em forjar termos novos (13 termos
gregos parecem aparecer nele pela primeira vez). Ele se serve de
um grande repertório de conhecimentos literários e filosóficos
para aclarar o mundo que o cerca e interpretar a realidade que

4 Helmut KÕSTER, Einfúhrung in da Neue Testament, Berlin, de Cruyter,


1980, 591-505; ed. ingl.: Introduction to the New Testament, Philadelphia/
Berlin, Fortres Press/de Cruyter, 1982, 156-160.

520
A epístola de Tiago

descreve. As referências ao Antigo Testamento grego (o autor


trabalha visivelmente com base na Septuaginta) se misturam com
alusões às tradições de Epitecto e de Sêneca; suas frases de sa-
bedoria ou suas invectivas proféticas se enfeitam com expressões
emprestadas da literatura hipocrática ou de Sófocles. Esse amplo
leque de referências não significa, necessariamente, que o autor
tenha acesso ao conjunto da literatura que utiliza. E possível que
se sirva, tanto para a Septuaginta (W. Popkes5) como para os au-
tores clássicos e helenísticos, dos florilégios de textos ou de ma-
nuais de citações.

A competência lingüística de que o autor visivelmente dispõe corresponde


à sua arte de manejar a retórica (Wilhelm Wuellner, 1978; Franz Schnider,
1987). Ele domina o ritmo (Tg 1,2.13.20; 2,8.9.15.18; 3,3.5.8.14; 4,4; 5,10 s.),
a rima (1,6.14; 2,18; 3,17; 4,8), a aliteração e a assonância (1,2; 3,2.5.6.8.17;
4,1). Emprega os jogos de palavras (1,1 s.; 2,4.13.20; 3,17 s.; 4,14). Serve-se de
figuras de sintaxe, como os paralelismos (3,6 s.; 5,2 s.5), as inclusões (1,2-4 e
1,12; 1,17 e 1,27; 2,14 e 2,26) e a antítese (1,4 e 1,5 etc.), e de figuras semân-
ticas, como o pleonasmo (3,7), os sinônimos (1,5.25; 3,15; 4,9), o exemplo
(2,2-4; 3,7; 5,7), a comparação e a parábola (1,6.10-11.23 s.; 3,3 s.), as me-
táforas (3,2.6) e a ironia (2,14; 5,5). As formulações interpelantes desempe-
nham um papel importante em sua argumentação: ele usa freqüentemente a
indagação retórica, o imperativo da apóstrofe direta ("irmãos!”), mas também
interpelações inesperadas como “adúlteros” ou “pecadores” (4,4.8) e a ficção
do diálogo (2,18).

3 . M e io e c ir c u n s t â n c ia s h is t ó r ic a s d e p r o d u ç ã o
Tanto o meio de origem e data como o autor e os destinatários da
epístola de Tiago constituem um enigma para a pesquisa histórica
e literária. As hesitações dos pesquisadores estão ligadas à estra-
nheza do escrito em relação ao desenvolvimento do corpus paulino
(malgrado Tg 2,14-26), à história da missão apresentada pela obra
lucana e à história do judaísmo, da Guerra Judaica e da destruição
do Templo (que nos servem de marcos para estabelecer a cronolo-*45

s Wiard POPKES, James and Scripture: An Exercise in Intertextuality, NTS


45 (1999)213-229.
A s epístolas católicas

gia e a geografia da produção literária cristã no século I). Mesmo


os parentescos literários com o Sermão da Montanha e o evange-
Iho de Mateus (Tg 5,12 / / Mt 5,34-37; Tg 5,19 s. // Mt 18,15-20)
não permitem uma reconstrução da história das tradições que leve
a conclusões unívocas.

3 .1. Autor
A própria epístola se apresenta como a obra de “Tiago, servo de
Deus e do Senhor Jesus Cristo” (1,1); mas essa assinatura mais cau-
sa do que resolve os problemas.

A epístola de Tiago e os "Tiagos”do cristianismo primitivo


A primeira questão diz respeito à identidade do “Tiago” a que
se refere a epístola. O Novo Testamento, de fato, conhece vários
Tiagos. O primeiro é Tiago, irmão de João, filho de Zebedeu. Segun-
do o relato dos três primeiros evangelhos, ele faz parte dos quatro
primeiros discípulos chamados por Jesus (Mc 1,19 / / Mt 4,21// Lc
5,10), que constituem o primeiro grupo da lista dos Doze (Mc 3,16-
18 // Mt 10,2 / / Lc 6,14 // At 1,13). Esse primeiro Tiago tem um
papel de primeiro plano nos relatos evangélicos; ele faz parte tanto
do grupo dos três como do grupo dos quatro companheiros íntimos
de Jesus, mas sua atividade na história do cristianismo pós-pascal
não deixou traços. Segundo Atos 12,2, Herodes Agripa mandou
decapitá-lo por volta de 44 d.C. Se não consideramos um segundo
Tiago mencionado na lista dos Doze (Mc 3,18 // Lc 6,15 / / At 1,13;
nomeado, em Mt 10,3, Tiago filho de Alfeu), um Tiago neto de
uma certa Maria (Mc 15,40) e um Tiago pai do apóstolo Judas (Lc
6,16 // At 1,13), dos quais só os nomes nos são conhecidos, o ou-
tro Tiago que assumiu uma importância considerável nas primeiras
Igrejas cristãs é Tiago, o irmão do Senhor. Os evangelhos não falam
dele a não ser como um membro da família incrédula de Jesus, pre-
sente em Nazaré (Mc 6,3 / / Mt 13,55), mas a tradição pré-paulina
de 1 Coríntios 15,3-7 cita-o encabeçando a segunda série de teste-
munhas do Ressuscitado (Pedro, os Doze, os 500, depois Tiago e

522
A epístola de Tiago

todos os apóstolos; I Cor 15,5-7); Paulo declara tê-lo encontrado


várias vezes (Gl 1,19 e 2,9), e sabe que é considerado uma das co-
lunas do cristianismo nascente (Gl 2,9). Representante dos meios
judeu-cristãos palestinos, Tiago, dito “Tiago, o justo” (Evangelho
de Tomé, logion 12), parece ter rapidamente destituído Pedro de
seu posto à testa das Igrejas de Jerusalém e da Judeia (At 12,17;
15,13-21; 21,18). Flávio Josefo, nas Antiguidades judaicas (20,200),
sublinha sua piedade fiel em relação a seu povo judeu e conta sua
morte como martírio ordenado pelo sumo sacerdote Ananias II,
em 62 d.C.
Uma literatura importante invoca Tiago, o irmão do Senhor, par-
ticularmente a epístola de Judas, atribuída a “Judas, servidor de Je-
sus Cristo, irmão de Tiago” (Jd 1), o Evangelho de Tomé, que faz de
Tiago o representante pós-pascal de Jesus (logion 12) e A epístola
apócrifa de Tiago, encontrada em Nag Hammadi (N H C 1/2).
A qual Tiago a epístola canônica se refere? Constata-se, por um
lado, que a apresentação de Tiago como “servo de Deus e do Senhor
Jesus Cristo” (Tg 1,1) é muito vaga. Pode se referir a Tiago como a
figura bem conhecida do irmão do Senhor, mas também a qualquer
outro Tiago conhecido ou desconhecido do cristianismo primitivo.
Por outro lado, a ligação entre a epístola e a personalidade de Tiago,
o irmão do Senhor, foi se estabelecendo muito lentamente na tra-
dição patrística e na historiografia cristã. Foi só no fim do século II
que se começou a atribuí-la ao irmão do Senhor. Orígenes conhece
uma carta de Tiago da qual cita passagens como palavra da Escri-
tura6. Hegesipo, no entanto, não conhece nada disso. O cânon de
Muratori nem faz menção da epístola, e Eusébio (morto em 399
d.C.) menciona o caráter ainda controvertido de sua autoridade nas
Igrejas (História eclesiástica 11,23,24-25; 111,25,3).
Da história da recepção da epístola e de seu reconhecimento tar-
dio na Igreja antiga, pode-se deduzir que seu autor não deve, pro-
vavelmente, ser identificado nem com Tiago filho de Zebedeu, nem

6 Comm, in Joan. XIX,6 ; Select, in Ps 30,6; Select, in Ps 118,153; Comm, in


Rom. IV 8 .

523
A s epístolas católicas

com Tiago irmão do Senhor, que são as duas personalidades do cris-


tianismo primitivo conhecidas pelo nome de Tiago. Ou a epístola de
Tiago é pseudepigráfica, isto é, dá ao autor um nome que não é o
seu, ou é obra de um Tiago desconhecido.

O autor desconhecido da epístola de Tiago


Diferentes observações de ordem literária e teológica confirmam o
caráter improvável da redação da epístola por Tiago irmão do Senhor
e permitem formular hipóteses quanto à localização do mundo cultu-
ral do autor na geografia e na história do cristianismo primitivo.
Em primeiro lugar, a epístola argumenta com um conceito de lei
carregado de representações vindas do estoicismo e do cristianismo
helenístico (a “lei perfeita da liberdade”, Tg 1,25; a “lei régia”, 2,8,
encontram sua expressão no mandamento do amor de Lv 19,18).
Não há nenhum parentesco com a insistência na circuncisão e na
observância das regras de pureza alimentares à qual Paulo liga, em
Gálatas 2,1-21,0 nome de Tiago.
Em segundo lugar, é singular que a epístola jamais argumente com
base em tradições concernentes à vida, ao ensino ou à ressurreição
de Jesus.
Em terceiro lugar, é surpreendente que o autor não se sirva nem
do texto hebraico do Antigo Testamento, nem das versões aramai-
cas. Quando se refere ao texto bíblico, ele faz com o auxílio da Sep-
tuaginta ou de testimonia (florilégios) dependentes dela.
Enfim, pode-se constatar que os parentescos literários mais pró-
ximos da epístola vêm dos pseudepigráficos do Antigo Testamento
e da literatura judaica helenística (Sirácida, 7estamento dos 12 Pa-
triarcas, Fílon de Alexandria) ou de escritos como o evangelho de
Mateus, a Epístola de Clemente de Roma, a Epístola de Barnabé, o
Pastor de H ermas ou a Didaché; trata-se de obras helenizadas do fim
do século I e início do século II, que se ligam, de perto ou de longe,
às tradições judeu-cristãs.
Dessas observações e do caráter literário da epístola, deduz-se
que o autor é uma pessoa de língua grega instruída na escola helenís-
tica; ele se refere à Escritura veterotestamentária e às tradições ju-

524
A epístola de Tiago

daicas como a uma documentação literária revestida, sem dúvida, de


uma autoridade particular, mas que, assim como as palavras de Jesus
ou as sentenças de sabedoria helenística, dão forma à “lei régia” ou à
“lei perfeita de liberdade”. Trata-se, sem dúvida, de um cristão culto
de origem pagã da segunda ou da terceira geração cristã.

3 .2 . Data da composição
O terminus a quo da datação da epístola é sugerido pela argumen-
tação de 2,14-26; essa passagem retoma tão maciçamente a termi-
nologia das grandes cartas paulinas que é difícil não supor no autor
um conhecimento da epístola aos Romanos e, talvez, da epístola aos
Gaiatas. Quatro razões:
a) a epístola de Tiago emprega aqui (2,21.24.25) o verbo jus-
tificar, central (24 ocorrências) na teologia das cartas pau-
linas;
b) o substantivo da justiça, que aparece umas cinquenta ve-
zes em Paulo, só aqui é utilizado no sentido da justificação
(2,23), ao passo que 1,20 e 3,18 lhe conferem uma signifi-
cação diferente;
c) o conceito de fé, que se repete cinco vezes no resto da
epístola (1,3.6; 2,1.5; 5,15), só aqui é oposto a obras
(2,14.17.18.18.18.20.22.24.26);
d) o exemplo de Abraão (2,20-24) retoma, invertendo-a, a
argumentação exegética de Paulo em Romanos 4,1-12 e
Gálatas 3,6-9.
Segue-se daí que a epístola de Tiago muito provavelmente foi
redigida, no mínimo, no fim dos anos 50 ou no início dos anos 60.
Franz Mussner (1964)7, Peter H. Davids (1982) e Luke Timothy Jo-
hnson (1995) defendem uma datação alta.
Um terminus ad quem é sugerido pela imagem das Igrejas dada
pela epístola. Nela não transparece nada do desenvolvimento dos
ministérios observável nas epístolas deuteropaulinas e nas pastorais.

7 Franz MUSSNER, Der Jakobusbríef Freiburg, Herder, 1984.

525
A s epístolas católicas

Tiago parece conhecer apenas, nas comunidades às quais se dirige,


uma estrutura análoga à da Sinagoga. Encontram-se nelas os que
ensinam (3,1) e um colégio de anciãos (5,14).
É preciso, todavia, levar em consideração, na apreciação desses
dados, a diversidade de estruturas de Igrejas e de eclesiologias do
cristianismo primitivo. O colégio de anciãos é uma forma de direção
de Igreja que os Atos conhecem bem, e é a forma de direção de
Igreja que governou as comunidades de Corinto até pouco antes da
redação da epístola de Clemente de Roma, isto é, provavelmente
nas últimas décadas do século I.
A data da redação da epístola é fixada, por conseqüência, por vol-
ta de fins do primeiro século ou, caso se valorize o parentesco com
os Padres apostólicos (/ Clemente, a Epístola de Barnabé, a Didaché,
o Pastor de Hermas, Inácio de Antioquia), até o primeiro terço do
século II. James H. Ropes (1916), Martin Dibelius (1921) e Sophie
Laws (1980) defendem uma datação relativamente baixa.

3.3. Lugar de origem


Os fatores decisivos para a determinação do lugar de origem são,
de um lado, a educação do autor e, de outro, seu conhecimento dos
meios portuários dos centros urbanos bem como das casas de campo
dos cidadãos ricos. Tiago 1,5-8 mostra que Tiago conhece o mundo
do mar; 4,13-17 deixa entrever, com muita precisão, o universo dos
homens de negócio em viagens; 5,1-6 menciona as relações que po-
dem reinar nas propriedades dos notáveis; 2,1-13 adverte contra o
sistema ambivalente de padroado e de proteção que suas organiza-
ções podem oferecer aos pequenos.
Os comentadores que fazem questão absoluta de ler a epístola
como a obra de Tiago irmão do Senhor são obrigados a fixar sua re-
dação na Palestina8. Salvo isso, pode-se pensar prioritariamente em
Antioquia, Alexandria, Cesaréia (J. H. Ropes, 1916) ou até mesmo
Roma (S. Laws, 1980).

8 Peter H. DAVIDS, The Epistle o f James, Exeter, Paternoster, 1982.

526
A epístola de Tiago

3.4. Destinatários
O endereço designa os destinatários como as “doze tribos que
vivem na dispersão”. E claro que esse endereço não deve ser enten-
dido ao pé da letra: os leitores aos quais se dirige a argumentação
não são judeus, mas cristãos. A ausência na epístola de qualquer
alusão às problemáticas próprias do judeu-cristianismo (observân-
cia da circuncisão, do sábado e das regras de pureza alimentar; cf
Cl 2,1-21, Rm 14,1-15,13 etc.) permite pensar que ela é escrita para
pagão-cristãos ou para comunidades nas quais a origem judaica ou
pagã não cria mais conflitos de identidade.
A noção de dispersão na diáspora implica o universalismo da car-
ta. O endereço não constrói um círculo de destinatários reunidos
geograficamente, como o fazem todas as epístolas paulinas ou a pri-
meira epístola de Pedro, mas implica, ao contrário, sua difusão no
mundo pagão.
Se a epístola não conhece fronteiras geográficas, ela estabelece,
em compensação, fronteiras sociais. A linguagem da epístola cons-
trói, com efeito, uma relação contraditória entre a riqueza e a as-
sociação aos “irmãos”; aos “ricos” se opõem os irmãos pobres (1,9-
11), e os ricos não são jamais chamados de irmãos. A razão disso é
teológica: foi aos pobres que Deus escolheu para torná-los ricos na
fé (2,1-13; 5,1-11). Assim também a epístola é dirigida aos pobres.
A ausência de qualquer alusão às relações senhor-escravo e as di-
ficuldades sociais evocadas correspondem a pessoas que vivem em
situações precárias, mas são livres. São pobres (2,6), mas devem
prover à sua subsistência (2,15-17). São tentadas pelo conforto dos
ricos (2,1-13; 5,1-6), mas se encontram, ao mesmo tempo, desarma-
das diante do poder deles (2,1-13). São, sem dúvida, pessoas simples,
os pequenos9, que se recrutam entre os pequenos camponeses ou,

9 Jerôme CARCOPINO, La vie quotidienne à Rome à íapogée de !'Empire,


Paris, Hachette, 1939, 72-73, 210-211, faz a lista das corporações em
Roma. Ela compreende, por exemplo, os atacadistas do trigo, do vinho, do
azeite, os armadores, mas também os comerciantes de frutas, de legumes,
de peixes, os taberneiros, padeiros, pasteleiros, confeiteiros, estalajadeiros,
droguistas, espelheiros, floristas, eborários, ourives, alfaiates, sapateiros,

527
A s epístolas católicas

nas cidades, entre os pequenos comerciantes ou pequenos artesãos.


Eles vivem sem bens, longe da vida pública ou das honras, mal de-
fendidos pela lei, que defende sobretudo as famílias da classe alta.
Não têm nenhuma ligação com as esferas do poder (não há, portan-
to, motivo para uma parênese do tipo de Rm 13 ou Ap 13), mas se
sentem lisonjeados com a presença ocasional de cavalheiros ou no-
táveis (2,1-13). Não têm os meios para uma vida desordenada, mas
olham com inveja os favorecidos pela fortuna (1,5-11; 4,13-5,6).

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
4.1. A fé e as obras: Tiago e Paulo
O conjunto da argumentação de Tiago 2,14-26, que se apresen-
ta como uma espécie de digressão entre 2,1-13 e 3,1-13, tende visi-
velmente a se opor a uma compreensão da fé cristã que pretende
distinguir fé e obras. Para Tiago, a fé sem as obras é inútil, vazia,
morta (2,18.20.26); ela não pode salvar (2,14) e, segundo a fórmula
provocativa e paradoxal de 2,26, ela é como o corpo sem a alma.
Para entender o sentido da argumentação, é importante observar
quais são suas premissas. De um lado, o termo fé, que em todo o
resto da epístola designa a confiança ativa dos crentes (1,3.6; 2,1.5;
5,15), torna-se em 2,14-26 a demonstração verbal de uma confis-
são puramente formal, à qual os próprios demônios podem se as-
sociar (2,19). Segue-se daí que a fé ativa nas obras, e que as obras
concretizam (2,22), é a fé que se deve pedir na oração (1,6); é isso
que Paulo entende por “a fé que age pelo amor” em Gálatas 5,6. A
segunda premissa da argumentação é a existência de uma oposição
que podería ser estabelecida pelos irmãos entre fé e obras. Ora, é
importante notar que também essa oposição é estranha ao pensa-
mento paulino. Com efeito, nas epístolas aos Romanos e aos Gála-

fabricantes de botas, tintureiros, bordadores, curtidores, peleiros, cordoei-


ros, marceneiros, ebanistas, empreiteiros de demolição, carpinteiros, pe-
dreiros, muleteiros, carreiros, cocheiros, barqueiros, remadores, operários
encarregados de transporte de madeira por flutuação, doqueiros, guardas,
mensageiros, carregadores, descarregadores etc.

528
A epístola de Tiago

tas o apóstolo não opõe “justificação pela Lei” e "justificação pelas


obras”, mas sim “justificação pela Lei” (ou “em virtude da Lei”) e
“justificação pela confiança em Jesus Cristo” (ou “pela confiança de
Jesus Cristo”). A distinção feita por Paulo em Romanos 3,1-4,25 e
em Gaiatas 2,14-21 não é, de fato, uma dissociação da fé e das obras,
mas uma oposição entre a ação justificadora de Deus e os privilégios
conferidos pela Lei.
Disso tudo se conclui que a epístola de Tiago retoma uma parte
da terminologia paulina e parece querer refutá-la quando o proble-
ma que ela levanta é estranho à reflexão paulina. Ou a epístola de
Tiago compreendeu mal a argumentação do apóstolo ou, o que é
mais provável, ela não visa, realmente, à compreensão paulina do
Evangelho, mas à sua recepção vulgar que invoca, sem razão, o
paulinismo para recusar ver as implicações interpessoais e sociais da
existência crente.
De resto, a epístola de Tiago, ao opor justificação “pela fé somen-
te” (2,24) e justificação “pelas obras” (2,21), se revela como elo in-
dispensável entre a teologia paulina da justiça de Deus e a doutrina
luterana da justificação.

4.2. O cristianismo dos pobres


Não há ortodoxia para a epístola de Tiago; há uma ortopraxia
da fé cristã. A linha de demarcação passa pela escolha existencial e
real da pobreza. Não se trata, em Tiago, de um “pauperismo senti-
mental”, como é eventualmente o caso na obra lucana (É. Trocmé,
1964), mas de uma atitude existencial que tem valor de confissão de
fé e se exprime na realidade da prática cotidiana.
Tiago retoma, por sua conta, e combina, à sua maneira, três idéias
da pobreza. A primeira é a da tradição espiritual veterotestamentária
e judaica dos “pobres de Deus”, que vivem da mão do Criador. A se-
gunda é a da doutrina dos filósofos cínicos e estóicos, segundo a qual
aquele que abandonou tudo e não tem mais nada a perder está livre
de tudo. A terceira é a da tradição evangélica do ensino de Jesus, que
convida a multidão e os discípulos a segui-lo, abandonando suas pos-

529
A s epístolas católicas

ses para entrar na liberdade convivial do Reino. A partir daí, ele em-
preende uma crítica teológica e antropológica da pobreza; enquanto
os ricos apodrecem no desespero e na miséria a que os condenam
suas riquezas (4,13-5,6), Deus escolheu os pobres para torná-los
ricos na fé (2,1-13). Ele reformula também o Evangelho como uma
obediência paciente ao apelo que Deus dirigiu a seus destinatários.
A razão pela qual a epístola insiste na vocação dos cristãos à po-
breza não é, prioritariamente, uma preocupação de ética social. A
injustiça econômica é, de fato, para Tiago, uma conseqüência da des-
graça existencial a que a riqueza condena (5,1-6). A análise de Tiago é
mais de ordem antropológica. A busca da riqueza é uma procura de
instabilidade (1,5-8), porque a posse da riqueza é um bem perecível
(1,9-11), que leva as pessoas a passar ao largo da vida (4,13-17); ao
mesmo tempo em que lhes dá a ilusão da segurança e do conforto,
ela os consome e os embota por dentro (5,1-6).
Seria, contudo, um equívoco entender a ética de dissidência social
da pobreza, preconizada pela epístola de Tiago, como um apelo à
ascese. O convite à pobreza é, ao contrário, a oferta evangélica de
viver na liberdade que resulta da confiança na providência de Deus;
é ela que dá o fruto precoce e o fruto temporão (5,7-11). Essa certe-
za é a força que permite manter sua identidade em face do confor-
mismo social, da ambição e do arrivismo; ela torna capaz de resistir
à fascinação dos poderes do mundo (4,1-10); ela permite enfrentar
fielmente, e na perseverança, a precariedade do real (1,2-4; 5,7-11).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
O paradigma do comentário de Martin Dibelius10e a discussão do
conjunto de suas teses permanecem no centro da pesquisa recente.
Segundo Martin Dibelius, a epístola de Tiago se apresenta como
um discurso moral de alcance geral, que não pressupõe nem con-
texto de comunicação, nem mensagem particular. A parênese é
constituída, à semelhança do A d Demonicum do Pseudo-lsócrates,

10 Der Brief des Jakobus, Gottingen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1964.

530
A epístola de Tiago

de textos sapienciais do Antigo Testamento e da literatura moral do


judaísmo helenístico, de uma série de máximas independentes umas
das outras, introduzidas sem plano particular e sem outras ligações
além das associações de idéias ou de palavras-gancho.
Diante dessa leitura da carta, os pesquisadores tentam, com o
auxílio da retórica ou da pragmática da comunicação, reconstituir
um plano e uma lógica da exposição. Paralelamente, eles se esforçam
por descobrir uma intenção da argumentação e um pensamento teo-
lógico que não se limitem ao ensino moral, nem à única perspectiva
da ética social, mas contenham os elementos de uma soteriologia e
de uma cristologia próprias.

6 . B ib l io g r a f ia

Comentários
BURCHARD, Christoph. Der Jakobusbrief. Tübingen, Mohr, 2000 (H NT
15,1).
CANT1NAT, Jacques. Les Epítres de Saint Jacques et de Saint Jude. Paris,
Gabalda, 1973 (Sources bibliques).
D1BEL1US, Martin. Der Brief des Jakobus. Gottingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, "1964 [1921]; ed. ingl.: DIBELIUS, Martin, GREEVEN,
Heinrich. James, A Commentary on the Epistle o f James. Philadel-
phia, Fortress Press, 1976 (Hermeneia).
JO H N SO N , LukeT The Letter o f James. N ew York, Doubleday, 1995 (AB
37 A).
LAWS, Sophie. A Commentary on the Epistle o f James. London, Black,
1980 (Harper’s NTC).
ROPES, James H. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle o f
St. James. Edinburgh, Clark, 1916 (ICC).
SCHN1DER, Franz. Der Jakobusbrief. Regensburg, Pustet, 1987 (RNT).
SIMON, Louis. Une éthique de la sagesse. Commentaire de Γépítre de Jac-
ques. Genève, Labor et Fides, 1961.
VOUGA, François. L épitre de saint Jacques. Geneve, Labor et Fides, 1984
(CNT 13a).

531
A s epístolas católicas

Leitura prioritária
BOUTTIER, Michel, AMPHOUX, Christian-Bernard. La predication de
Jacques le Juste. £77? 54 (1979) 5-16.
TROCME, Etienne. Les Eglises pauliniennes vues du dehors: Jacques
2,1-3,13. StEv 18 (1964) 660-669.

Estudos particulares
CO TH ENET Edouard. La Sagesse dans Ia lettre de Jacques. In: TRU-
BLET, Jacques (éd.). La Sagesse biblique. De Γ Ancien au Nouveau
Testament. Paris, Cerf, 1995, p. 413-419 (LeDiv 160).
KONRADT, Matthias. Christliche Existenz nach dem Jakobusbrief. Gõttin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1988 (SUNT 22).
POPKES, Wiard. Adressaten, Situation und Form des Jakobusbr. “A Ia re-
cherche du temps de Jacques”. In: MARGUERAT, Daniel, ZUMS-
TEIN, Jean (éds.). La mémoire et le temps. Mélanges P Bonnard.
Genève, Labor et Fides, 1991, p. 235-257 (Monde del la Bible 23).

532
CAPITULO

24
A primeira epístola de Pedro
Jacques Schlosser

As questões suscitadas pela primeira epístola de Pedro são inú-


meras e permanecem inteiramente em aberto. Será efetivamente
de Pedro o escrito, e de quando data exatamente? Supõe uma si-
tuação de perseguição ou simplesmente reflete brigas de vizinhos?
Deve-se colocá-lo na dependência de Paulo ou, na verdade, suas
analogias com o apóstolo são apenas superficiais? O vocabulário
do estrangeiro, tão característico de 1 Pedro (1,1.17; 2,11), é posto
a serviço de uma espiritualidade do homo viator (homem viajante) a
caminho da pátria verdadeira, a pátria celeste, ou na verdade indica,
logo de saída, a dura condição de pessoas que não se sentem em
casa onde habitam?

1. A p r e s e n t a ç ã o
/. 1. Gênero literário
Sob a influência das hipóteses que associaram muito intimamente
I Pedro ao batismo, até mesmo à celebração do batismo, classifica-
se, às vezes, I Pedro de "homília”. Para o texto de que dispomos
é preciso renunciar a essa qualificação. Com efeito, em I Pedro se
identificam facilmente características formais análogas às das cartas
paulinas, tanto no início (remetente, destinatários, saudação) como
no fim do escrito (saudações, indicações biográficas, votos de paz).

533
A s epístolas católicas

Conforme 5,12, Pedro escreveu sua carta circular para exortar e para
testemunhar. Esses dois verbos correspondem bem ao conteúdo e à
maneira da carta: ela mistura a exortação ética e a recordação dos
grandes eixos do querigma cristão.

1.2. Plano
O plano da carta é claramente descoberto se se observa a repeti-
ção de certos elementos formais: “caríssimos” (2,11 e 4,12), “porque”
(1,16.24; 2,6) ou “por isso” (1,13), "portanto” (2,1; 4,1.7; 5,1.6) e o ver-
bo “submeter-se” (2,13.18; 3,1.5). O esquema de composição, muito
freqüente na epístola, consiste em opor a um enunciado negativo uma
afirmação positiva (“não... m as...”); ele é útil para a detecção das
unidades menores. Deve-se prestar atenção, também, à repartição
desigual dos inúmeros imperativos. As indicações mais úteis, porém,
são fornecidas pela coerência temática da maior parte das unidades.

Plano da prim eira ep ísto la de Pedro

U -2 Prefácio epistolar

Abertura (1,3-12) Deus e o mistério da salvação em Cristo


1,3-5 Bênção
1,6-9 Aflição presente e salvação futura
1 ,1 0 - 1 2 Teologia da Escritura

Corpo da carta (1,13-5,11): o querigma e suas exigências éticas


Primeira parte (1,13-2,10): um povo santo obtendo sua vida de Cristo
1,13-25 Apelo à santidade e motivação pela Escritura e
pelo querigma
2 , 1-1 0 A Igreja fundada em Cristo
Segunda parte (2,11—4,11): os cristãos em seu meio ambiente social
2,11-3,12 A vida cristã nas estruturas da sociedade
3,13-4,6 Os cristãos difamados em seu meio social
4,7-11 Novo apelo à caridade na comunidade
Terceira parte (4,12-5,11‫)־‬: os sofrimentos infligidos aos cristãos e sua vida
em comunidade
4,12-19 Os cristãos expostos à hostilidade oficial
5,1-5 As relações na comunidade cristã
5,6-11 Parênese final no horizonte escatológico
5,12-14 Conclusão epistolar

534
A primeira epístola de Pedro

/. 3. Unidade da carta
Boa no conjunto, a organização da carta, todavia, surpreende
eventualmente. A promessa do socorro divino (4,10) é seguida de
uma doxologia (4,11), com a qual a carta podería terminar. A com-
paração de 3,13-17 com 4,12-19 revela um tema geral comum, vocá-
bulos temáticos idênticos ou aparentados, particularmente o verbo
ττάοχω (“sofrer”) e a expressão “a vontade de Deus” (3,17; 4,19).
Mas o tema comum parece se acompanhar de variações: no segun-
do texto (4,12-19), a situação dos cristãos parece mais angustiante.
De modo mais geral, julga-se poder constatar que 1 Pedro 1,1—4,11 é
rico em alusões batismais, ao passo que não é esse o caso a partir de
4,12. Baseados nas observações assim resumidas, diversos autores
julgaram, seguindo R. Perdelwitz (1911), que 1 Pedro era compositor
uma homília batismal (1,3-4,11) teria sido juntada a uma carta (1,1-2
+ 4,12-5,14), redigida em reação a uma situação crítica. Essa hipó-
tese, que conheceu em suas diversas variantes um grande sucesso
na pesquisa antiga, não é mais sustentada hoje, porque os indícios
invocados não parecem suficientemente probantes. Primeiramente,
uma doxologia pode se encontrar em lugar diferente do fim de um
escrito (ver, por exemplo, Rm 9,5; Ef 3,21). Em seguida, as ligações
entre 1,3-4,11 e o resto são inúmeras; as diferenças entre 3,13-17 e
4,12-19 parecem devidas menos à objetividade dos fatos do que à
estratégia de um autor que adota pontos de vista sucessivos, mas
complementares, e além disso se compraz em dramatizar.

2 . M e io h is t ó r id o d e p r o d u ç ã o
2.1. Lugar
O autor parece conhecer bem a situação concreta das comunida-
des da Ásia Menor às quais se dirige, o que ficaria explicado caso se
admitisse que ele é de lá. A história da recepção de 1 Pedro aponta
no mesmo sentido: os primeiros traços nítidos aparecem nos autores
da Ásia Menor (Policarpo de Esmirna, Aos filipenses 1,3; 8,2,1 etc.),
assim como a primeira atribuição explícita da carta a Pedro (Ireneu,
Contra as heresias IV, 9,2; 16,5; V,7,2). Há, portanto, bonsargumen-

535
As epístolas católicas

tos para pensar na Ásia Menor como o lugar de composição. A pró-


pria carta, no entanto, fornece uma indicação precisa que remete
muito provavelmente a Roma. E, realmente, como designação cifra-
da de Roma que se compreende melhor a menção de Babilônia em
5,13: na tradição judaica (sobretudo 2 Baruc 11,1-2; 67,7) e no Apo-
calipse de João (Ap 14,8), a ruína do Templo de Jerusalém em 587
a.C. é assimilada à de 70 de nossa era, o que estabelece uma corres-
pondência entre as duas potências responsáveis por esses desastres.
Na hipótese da pseudonímia (ver abaixo 2.4) a escolha de “Pedro”
se explica melhor em Roma do que em qualquer outro lugar. Enfim,
as ligações entre 1 Pedro e / Clemente, embora não sejam úteis para
estabelecer qualquer dependência literária, pleiteiam Roma. Sem se
impor verdadeiramente, a hipótese romana parece a mais forte.

2.2. Destinatários
As precisões geográficas fornecidas por 1 Pedro 1,1 situam os
destinatários nas províncias romanas (de preferência a regiões não-
administrativas) que abrangem uma grande parte da Ásia Menor;
duas delas (Ásia, Galácia) são terras da missão paulina.
A imagem do perfil sócio-religioso1 dos destinatários dada pela
epístola parece um pouco confusa. Os traços mais nítidos estabe-
lecem claramente sua proveniência pagã, marcada — segundo uma
terminologia tradicional — por ignorância, imoralidade e idolatria
(1,14.18; 2,25; 4,3 s.; ver 2,10). Mas o importante recurso ao Antigo
Testamento, que vai da alusão discreta à citação formal, servindo
de base para a argumentação, leva certos críticos a admitir que as
comunidades a que se dirigia eram mistas (pagão-cristãs e judeu-
cristãs); isso não seria de estranhar na Ásia Menor. Mas outras ex-
plicações continuam possíveis: 1) antes de sua adesão ao Evangelho,
esses pagãos estavam já às margens do judaísmo, admirando seu
monoteísmo e sua moral elevada; 2) a iniciação nas raízes judaicas1

1 Para um apanhado mais amplo dos aspectos sociais, ver John ELLIOT,
Social-Scientific Criticism o f the New Testament. An Introduction, London,
SOCK, 1995, 70-86.

536
A primeira epístola de Pedro

da fé cristã pôde ser feita na catequese cristã pré e pós-batismal, que


recorria muito ao Antigo Testamento, única Escritura de referência.
Os pagãos convertidos, com efeito, não poderíam ou não quereríam
se isolar completamente de seus concidadãos: as mulheres têm es-
posos pagãos (3,2); os escravos ou domésticos cristãos de 2,18-20
estão, aparentemente, a serviço de senhores pagãos.
As comunidades enfrentam uma hostilidade difícil de discernir.
O autor se refere a ela, regularmente, como a um “sofrimento”
(sobretudo pelo verbo πάσχω). Em vários textos, fala-se manifesta-
mente de injúrias: os servidores as suportam da parte de seu senhor
(2,18-20); as calúnias magoam os cristãos (2,12; 3,16). Esse tipo de
hostilidade do meio ambiente resulta, sem dúvida, do fato de que
os cristãos não participam mais dos excessos ligados à celebração
das grandes festas do paganismo (4,3 s.); eles contestam, assim, não
apenas a religião tradicional mas também a ordem social. Em resu-
mo, eles perturbam, e seus compatriotas os fazem saber disso; há
discriminação social. No entanto, algumas indicações levam a pen-
sar numa oposição mais oficial: é possível que a palavra απολογία
("defesa”) se refira a uma ação judicial (3,15); não se pode ter de
sofrer “como homicida ou ladrão” se não se foi condenado por um
tribunal; ora, uma das ofensas consideradas não é outra senão o fato
de ser cristão (4,14 s.). Deve-se, então, falar de perseguições?

2.3. Data de composição


A questão que acabamos de apresentar desempenha um papel
importante na discussão relativa à data de composição de 1 Pedro.
Rigorosamente, não há por que empregar aqui a palavra “persegui-
ção” no sentido preciso que ela assumiu na história do cristianismo,
porque as perseguições maciças e organizadas pelo poder central só
começam com Décio, em 240-251. Entretanto, o termo pode tam-
bém referir-se a uma ação oficial, mas circunstancial, que pode che-
gar até a morte dos cristãos. E manifestamente o caso da repressão
de Nero aos cristãos em 64; simplesmente local, essa perseguição
não pode ser usada para datar 1 Pedro. Ao contrário, por causa dos

537
As epístolas católicas

destinatários da carta, mencionados em 1,1, devem-se levar em con-


sideração os dados históricos disponíveis sobre a Ásia Menor; eles
são suscetíveis de nos esclarecer a respeito da datação da epístola.
Assim como a repressão ordenada por Nero, as ações contra os cris-
tãos levadas a cabo por Plínio, o Jovem, sob a autoridade de Trajano
(97-117), não fazem parte de um plano global — são locais. Situam-
se em uma das províncias mencionadas no endereçamento de I Pe-
dro, a Bitínia, aonde Plínio deve ter chegado por volta de 110. Por
um lado, as indicações da famosa carta de Plínio a Trajano (Cartas
X, 96) estão de acordo com as de 1 Pedro. Plínio pergunta a Trajano
se o “nome mesmo [de cristão]” {nome ipsum) é motivo suficiente
de condenação, o que está bem próximo de I Pedro 4,16. Mas o
culto imperial e a maldição de Cristo exigida por ocasião do interro-
gatório, sobre os quais Plínio insiste fortemente, não são objeto de
nenhuma alusão em I Pedro. Seria, portanto, imprudente apoiar-se
diretamente em Plínio para datar 1 Pedro; uma data tão tardia como
110-120 não tem, além disso, outros pontos de apoio em 1 Pedro. O
próprio Plínio faz referência a pessoas que lhe disseram ter abando-
nado a fé cristã já “há vinte anos”.
Isso nos leva ao reinado de Domiciano (81-96). A tradição cristã
fez desse imperador um perseguidor furioso dos cristãos, um segundo
Nero, ilustrando assim a tese segundo a qual só os maus imperado-
res eram perseguidores. Os dados obrigam a uma maior sobriedade:
também sob Domiciano não houve perseguição oficial e sistemática.
Todavia, ao final de seu reinado, ele se comportou como déspota
cruel que mandou eliminar, pelo exílio ou pela morte, os opositores
de toda categoria, inclusive membros de sua família. Entre eles, havia
também cristãos. Domiciano é conhecido sobretudo por ter exigido
que lhe dessem títulos divinos, particularmente, segundo Suetônio
{Vidas, VIII: Domiciano, 13,2), o de “deus et dominus noster". En-
quanto o culto imperial tem um papel importante no Apocalipse de
João, 1 Pedro não fala dele; isso dissuade de estabelecer uma ligação
direta entre a época de Domiciano, sobretudo o fim, e 1 Pedro. Em
suma, os cruzamentos com a grande história não fornecem muitos
elementos para da datação de 1 Pedro. As perseguições, menciona­

538
A primeira epístola de Pedro

das na carta, eram de fato possíveis sob não importa qual rei, por
iniciativa das autoridades locais, que podiam reivindicar aquilo que o
direito romano lhes reconhecia: a coercitio, de modo geral um poder
de polícia destinado a manter a ordem, como mostra muito bem o
exemplo de Plínio, o Jovem2.
Outras indicações devem ser levadas em consideração. 1) O em-
prego do pseudônimo “Babilônia” para designar Roma é difícil de
se imaginar antes de 70. 2) A presença de presbíteros (lPd 5,1-5)
nas comunidades da Ásia Menor supõe um estágio bem posterior
a Paulo, mas a coabitação entre esses ministros e os portadores de
carismas (I Pd 4,10 s.) dá a entender que ainda não estamos no nível
das pastorais. 3) A difusão do Evangelho no norte da Ásia Menor vai
muito além das províncias já alcançadas no tempo de Paulo, o que
supõe tempo, tanto mais que, diferentemente das primeiras provín-
cias evangelizadas, as do Norte eram mais rurais que urbanas.
Parece preferível, no fim das contas, colocar nossa carta entre
70 e 90.

2.4. Autor
"Pedro, apóstolo de Jesus Cristo” (1,1), deve manifestamente
designar Simão Pedro. Pode-se confiar nessa informação ou deve-
se contar com um procedimento de pseudonímia? A questão seria
resolvida se pudéssemos considerar absolutamente certas tanto a
data que acaba de ser proposta como a tradição que fixa a morte de
Pedro por ocasião da perseguição de Nero; mas mesmo sobre esse
segundo ponto a certeza não é total.
Na própria carta, nada confirma diretamente que o apóstolo
Pedro seja o autor. As referências às palavras de Jesus (p. ex. IPd
2,12 / / Mt 5,16; IPd 3,14 + 4,14 / / Mt 5,10-12) não supõem nada
mais do que um contato com a tradição evangélica. Quanto à forte
pretensão do autor de ser “testemunha do sofrimento de Cristo”
(IPd 5,1), ela é expressa mediante uma longa aposição ao sujeito,

2 Ver Paul J. ACHTEMEIER, / Peter, A Commentary on First Peter, Minne-


apolis, Fortress Press, 1996, 34.

539
A s epístolas católicas

desprovida de verbo; não comporta, portanto, referência explíci-


ta ao passado e designa, sem dúvida, o testemunho existencial do
confessor mais do que o testemunho ocular daquele que se encon-
trava lá na hora certa.
Alguns dados parecem, além disso, tornar difícil a hipótese da
autenticidade estrita. Além da indicação fornecida por “Babilônia”,
duas objeções de peso devem ser feitas. A primeira é a boa qualidade
do grego; esta é sensível, por exemplo, na série de três adjetivos com
alpha privativo de 1,4, na série das três palavras iniciando por a em
1,19, ou nos cinco termos em υ de 2,21, nos numerosos empregos
do genitivo encravado, na notável utilização (3,14.17) do optativo
potencial ou no uso do particípio futuro, raro no Novo Testamento e
na língua helenística em geral (3,13). A segunda objeção se encontra
no manejo da Escritura: de ordinário Pedro se apóia na Septuaginta,
mas é sobretudo a maneira quase profissional de seu trabalho de
exege que surpreende.

Uma apresentação simplificada de 1 Pedro 2,4-10, a famosa passagem so-


bre a pedra e as pedras, permite ilustrar com que habilidade esse exegeta tira
sua mensagem da Escritura e, ao mesmo tempo, interpreta a Escritura antiga
à luz dos fatos novos. Construída de maneira muito elaborada, essa unidade
se articula em duas partes, o anúncio do tema (2,4 s.) e seu desenvolvimen-
to fundado na Escritura (2,6-10), de tal forma que o aspecto cristológico e o
aspecto eclesiológico são tratados em paralelo. Entre as numerosas conexões
lexicais que garantem ao texto uma coesão formal e temática impressionante,
o quadro ressalta as que dizem respeito às citações ou alusões bíblicas. No
quadro, citações e alusões estão em itálico; os elementos retomados e valori-
zados pelo autor estão em itálico e sublinhados.

Mesmo que não se tenha como certa a informação de Atos 4,13,


que classifica Pedro e João na categoria de “homens sem instrução”,
tem-se dificuldade em ver nesse trabalho exegético esmerado a obra
de um pescador do lago da Galiléia. Por outro lado, a possibilidade
de que Pedro tenha confiado a redação de sua carta a um secretário
não pode, certamente, ser descartada, mas a hipótese é inverificá-
vel. Silvano, em todo caso, não é provavelmente apresentado como
tal em 5,12, porque a expressão grega γράφ^ιν διά τίνος (“escre-

540
A primeira epístola de Pedro

1) Anúncio do tema (4-5)


Al (41 anroximam-se dele. pedra BI (5) vós também, como pedras
viva. reieitada pelos homens, escolhí- vivas, deixai-vos edificar (οίκοδουβω)
da. Dreciosa/honrada por Deus em casa (οίκος) espiritual para um
sacerdócio santo a fim de oferecer
sacrifícios espirituais agradáveis a
Deus por Jesus Cristo.
11) Desenvolvimento (6-10) (é porque está na Escritura)
A) Cristologia (6 - 8 ) B’) Eclesiologia (9-10)
Eis que ponho em Sião uma pedra mas vós ísots'! um raça escolhida, um
angular, escolhida e preciosa/honrada sacerdócio régio, uma nação santa,
e quem nela crê não será confundido, a um povo oor aauisicão. a fim de aue
vós aue credes, oortanto. honra anuncieis os altos feitos daquele que
Para os que não crêem a pedra que vos chamou das trevas para sua
os construtores (οίκοδομίω) rejeitaram admirável luz
tornou-se a pedra angular e pedra de aqueles que outrora não (éreis) povo
tropeço, uma pedra de escândalo, (os apora (são') oovo de Deus. os não-
que não crêeml se ferem ao não crer agraciados
na nalavra. e nor isso foram destinados apora foram agraciados

ver por alguém”) designa mais freqüentemente o portador de uma


carta, não seu autor ou um secretário.
Em suma, os dados relativos à data, à língua da carta e à exege-
se praticada favorecem a hipótese de que a carta seja obra de um
membro judeu-cristão da comunidade de Roma. Ele reivindica o pa-
tronato de Pedro e escreve como representante da comunidade ro-
mana, cujo nome mesmo, a “co-eleita” (5,13), marca a solidariedade
com as comunidades da Ásia Menor.
Resta indagar por que a epístola foi posta sob o patronato de
Pedro. O fato de se ter recorrido a ele como autor fictício de uma
carta destinada às comunidades da metade oriental do Império sig-
nifica, por si só, que sua importância era reconhecida tanto pelos
destinatários como pelo autor real. E possível, aliás, que razões
históricas tenham guiado a escolha deste último. De fato, parece
que certo número de cristãos da Palestina, para quem a pessoa de
Pedro devia ser muito importante, tinha emigrado para a Asia Me-
nor depois da tomada de Jerusalém em 70. Á sua maneira, nossa

541
A s epístolas católicas

epístola confirma o que a redação dos evangelhos leva a supor, a


saber, a valorização da pessoa de Pedro uns quinze ou vinte anos
após a sua morte. O reconhecimento de sua autoridade ultrapas-
sa o contexto local. Nossa epístola, entretanto, é muito discreta
ao pôr em relevo essa autoridade: “Pedro” não se comporta como
chefe que distribui ordens e instruções, e o título que ele reivindica
em 1 Pedro 5,1 (συμπρ^σβύτ6ρος, "co-ancíão”) coloca-o com e não
acima. Seu papel se reduziría a ser apenas o expositor da comuni-
dade romana, um pouco como Clemente, que intervém, um pouco
mais tarde, nos problemas de Corinto? I Pedro sugere, no entan-
to, três aspectos que caracterizam a imagem do personagem: a)
o privilégio de testemunha e de participante, afirmado em 1 Pedro
5 ,1, habilita “Pedro” a ser o fiador da tradição; b) ao mesmo tempo
em que se coloca na mesma posição dos outros e esclarece que o
verdadeiro pastor é Cristo, “Pedro” exorta com vigor os presbíteros
a exercer sua função pastoral e, como João 21, aparece de alguma
forma como o “presbítero-pastor principal”3; c) ao fazê-lo escrever
a destinatários que habitam regiões nas quais ele não tinha, prova-
velmente, jamais trabalhado e que pertencem, por um lado, à área
paulina; ao lhe atribuir, por outro lado, uma língua e uma teologia
que têm relação com Paulo, o autor real valoriza, na pessoa de Pe-
dro, a dimensão ecumênica.

3 . C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Convencido de que os profetas de antanho estavam a serviço da
geração escatológica e expressavam antecipadamente o Evangelho
(ver lPd 1,10-12), Pedro podia facilmente recorrer ao Antigo Testa-
mento; ele o faz abundante e explicitamente (1,16; 2,6; ver também
1,24). Esta é, de fato, a única herança expressamente reivindicada.
Mas, desde que muitos elementos veterotestamentários são integra-
dos, sem mais, no texto produzido por nosso autor, por que não se
daria o mesmo com elementos de outras fontes? No passado, havia

3 Raymond E. BROWN, Karl DONFRIED, John REUMANN (éds.), Saint


Pierre dans le Nouveau Testament, Paris, Cerf, 1974, 189.

542
A primeira epístola de Pedro

muito interesse por essa questão, sobretudo no que diz respeito aos
contatos com as cartas de Paulo. Admitia-se, geralmente, a depen-
dência literária entre 1 Pedro e Efésios, e mais ainda entre 1 Pedro
e Romanos. As recentes revisões da questão levaram a conclusões
menos seguras e põem mais freqüentemente em dúvida a realida-
de dos contatos literários. Mas a questão do “paulinismo” de Pedro
continua em pé. Com efeito, 1 Pedro utiliza4 termos ou expressões
teologicamente significativos que parecem provir do mundo de Pau-
lo; por exemplo, “em Cristo” (IPd 3,16; 5,10.14), ou palavras como
“graça (χάρις)”, "apocalipse (άποκάλυψις)”, “chamar (καλέω)”,
“obediência (ύπακοή)”. Podem-se também sublinhar traços mais ge-
rais, especialmente a reflexão sobre o sofrimento dos cristãos como
participação no sofrimento de Cristo (ver abaixo 4) ou a dialética
entre o indicativo da salvação e o imperativo convidando à ação (por
exemplo, IPd 1,17 s.; 1,22 s.). As diferenças, contudo, são conside-
ráveis. Por exemplo: a metáfora eclesial do “corpo”, tão importante
em Paulo, está ausente em 1 Pedro; a questão da Lei e da relação
com Israel não aparece em 1 Pedro, lalvez se tenha razão de situar
1 Pedro sob a influência paulina5, mas que se evite de fazer dela um
escrito quase paulino. O parentesco deve ser procurado, talvez, do
lado das raízes comuns.
A pesquisa detectou nas cartas paulinas alguns enunciados de fé
e elementos de hinos provenientes, sem dúvida, da primeira geração
cristã, antes dos escritos6. Em 1 Pedro também as características
estilísticas (emprego de relativos e de particípios, paralelismo etc.)
chamam a atenção para fragmentos que sem dúvida têm a mesma
procedência: 1,18-21; 2,21-25; 3,18-22. Houve um tempo em que se
pensava poder restituir, quase detalhadamente, esses empréstimos

4 Ver o dossiê aprsentado por Klaus BERGER, Theologiegeschichte des Ur-


christentums. Theologie des NeuenTestaments, Tubingen, Francke, 21995,
419-430.
5 Hans HUBNER, Die Theologie des Paulus und ihre neutestamentliche Wir-
kungsgeschichte, in ID., Biblische Theologie des Neuen Testaments, Gõttin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1993, v. 2, 387-395, o faz de modo mui-
to decidido.
6 Ver acima capítulo 7, p. 182.

543
A s epístolas católicas

do autor à tradição lítúrgica e catequética7. Hoje se é mais pruden-


te. E preciso, no entanto, reconhecer que entre o vago parentesco
temático e o empréstimo literário direto há lugar para a influência
das tradições cuja expressão tomou uma consistência sólida desde
então. Bom exemplo disso são as passagens de 1 Pedro que acaba-
mos de assinalar.
Definitivamente, 1 Pedro situa-se “no cruzamento das teologias
do Novo Testamento”8; muitos outros contatos (com a tradição si-
nótica, Tiago, Hebreus) juntam-se, de fato, aos que foram indicados
aqui9.

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Dirigindo-se a destinatários que sofrem a opressão do meio am-
biente em sua vida cotidiana, o autor os "encoraja” (5,12) ao subli-
nhar, principalmente, dois pontos: o sentido do sofrimento e o valor
e a dignidade da existência cristã aos olhos de Deus.
Entre os diversos termos que evocam o que os cristãos têm de
sofrer em sua existência, o verbo πάσχω (“sofrer”) e o substantivo
correspondente πάθημα (“sofrimento”) se destacam nitidamen-
te. O verbo é empregado oito vezes (2,19.20; 3,14.17; 4,lb.I5.19;
5,10) a que se junta o emprego do substantivo (5,9). As mesmas
palavras designam a paixão e morte de Cristo, três vezes o subs-
tantivo (1,11; 4,13; 5,1) e quatro vezes o verbo (2,2lb.23; 3,18; 4,1).
A justaposição, já por si mesma, sugere uma ligação entre Cristo e
os crentes. Mas nosso autor não se priva de explicar essa relação.
No âmbito de uma grande unidade, ele o faz ao articular o sofri-
mento inocentemente suportado pelos empregados domésticos

7 Marie-Émile BOISMARD, Quatre Hyrrmes Baptismales dans la premiere


épttre de Pierre, Paris, Cerfi 1961.
8 Albert VANHOYE, 1 Pierre au carrefour des théologies do NouveuaTes-
tament, in Charles PERROT (éd.), Etudes sur la premiere lettre de Pierre.
Congrèsde Γ ACFEB, Paris 1979, Paris, Cerf, 1980, 97.
9 O comentário já antigo de Edward G. SELWIN, The First Epistle o f St.
Peter, London, Macmillan, 1977 [2. ed. 1947], continua indispensável para
o estudo desta questão.

544
A primeira epístola de Pedro

e o que Jesus assumiu, quando não havia nele nem pecado, nem
falsidade (2,18-21a + 21b-25). A conexão é valorizada também,
e de diversas maneiras, nas unidades menores: o sofrimento não
merecido deve ser aceito porque essa foi a atitude de Cristo (3,17
s.); o que importa é ter a mesma convicção que tinha Cristo para
aceitar a necessidade da passagem pelo sofrimento; sobretudo, e é
aqui que Pedro mais se aproxima de Paulo (Fl 3,10), as provações
suportadas são uma “participação” (κοινωίω) nos sofrimentos de
Cristo, e essa via desemboca também na glória (4,13), como no
caso de Cristo (4,13; 5,1). Essa perspectiva escatológica é, aliás,
um reconforto que Pedro não hesita em propor a seus destinatários
desde a entrada no assunto (1,3-5.7.9.13) e em relembrar no fim de
sua carta (5,6.10).
Na penosa situação em que se encontram, os cristãos da Asia
Menor devem encontrar reconforto na consciência de pertencer
a um vasto conjunto, mais exatamente, a uma fraternidade, que é
das dimensões do mundo (5,9). Mais profundamente, o sofrimen-
to representado pelo fato de ser “sem verdadeira morada” (2,11:
πάροικος; 1,17: παροικία) é neutralizado pela consciência de terem
se tornado, pela união com Cristo, uma morada (οίκος) espiritual,
templo e família ao mesmo tempo (2,5). Já chamamos a atenção
para a importância de 2,5.9-10. A rejeição contrapõe-se uma se-
paração benéfica, à marginalização sofrida no plano social corres-
ponde antiteticamente a eleição divina, à desonra acarretada pelas
suspeitas, calúnias e injúrias se opõe a participação na glória de
Cristo. Seu nome é, sem dúvida, para eles uma fonte de dificulda-
des, mas eles o carregam com alegria e orgulho (4,14), porque ele
abriga sua esperança.

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
A interpretação, outrora dominante10, do vocabulário do es-
trangeiro apoiava-se em diversos paralelos (Fl 3,20; Hb 3,14) para

Ver por exemplo Karl Hermann SHELKLE, Die Petrusbrief. Der Judas-
brief Freiburg, Herder,31970, 19: "Heimatlosigkeit in Zeit und Welt”.

545
As epístolas católicas

privilegiar uma leitura espiritualista: os cristãos não têm aqui sua


verdadeira cidade, porque uma pátria celeste os aguarda. Na pró-
pria epístola, ela pode se apoiar na considerável retomada de ca-
tegorias veterotestamentárias, sobretudo aquelas que refletem o
tema do êxodo. A caminhada de Israel para a Terra prometida tem
sua correspondência na peregrinação dos cristãos para a Cidade
celeste. Coube a John Elliott (1981) o mérito de introduzir, com
vigor, um outro paradigma, inspirado pelas ciências sociais e, sin-
gularmente, pela análise sociológica da seita. Segundo ele, o vo-
cabulário do estrangeiro remete, muito concretamente, à situação
efetiva dos destinatários; eles pertencem às diversas categorias
que, na cidade, têm uma posição marginal e direitos limitados. Essa
tese, que tem implicações fundamentais para o conjunto da carta,
foi recebida favoravelmente, mas não integralmente. O modelo da
seita não é suficiente para explicar vários aspectos da eclesiologia
petrina: a responsabilidade pelos de fora, a recusa de demonizar o
mundo, a consciência que têm os cristãos de sua imperfeição11. O
vocabulário do estrangeiro foi escolhido, a partir de sua utilização
na Septuaginta, para ilustrar o que os destinatários se tornaram ao
aderir ao Evangelho e ao fazer de suas exigências a regra para sua
vida ética: não se pode mais viver como antes, e a consequência é
a marginalização12.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
ACHTEMEIER, Paul J. / Peter, A Commentary on First Peter. Minneapolis,
Fortress Press, 1996 (Hermeneia).
BROX, Norbert. Der erste Petrusbrief. Zürich/Einsiedeln/Koln, Neukir-
chen-Vluyn/Benzigerf/Neukirchener Verlag, 21986 [I. ed. 1979]
(EKK XXI).

11 Ver sobretudo Reinhard FELDMEIER, Die Christen als Fremde. Die Meta-
pher dr Fremde in der antiken Welt, im Urchristentum und im I.Petrusbrief!
Tübingen, Mohr, 1992, 187-192.
12 Ver ACHTEMEIER, / Peter..., sobretudo 56, 7I, 82, nota 42, I25, I74.

546
A primeira epístola de Pedro

GOPPELT, Leonhard. Der erste Petrusbrief, Gottingen, Vandenhoeck und


Ruprecht, 1978 (ΚΕΚ XII, 1); ed. ingl: A Commentary on I Peter.
Grand Rapids, Eerdmans, 1993.
MICHAELS, J. Ramsey. I Peter. Waco, Word Books, 1988 (WBC 49).
SPICQ, Ceslas Les Epltres de saint Pierre. Paris, Gabalda, 1966 (Sources
Bibliques).

Leitura prioritária
CHE VALUER, Max-Alain. Condition et vocation des chrétiens en dias-
pora. Remarques exégétiques sur la 1* EpTtre de Pierre. RevSR 48
(1974) 387-398.

História da pesquisa
COTHENET, Edouard. La Premiere de Pierre: bilan de 35 ans de recher-
ches. A N R W , Berlin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.685-3712.

Bibliografia exaustiva
CASURELLA, Anthony. Bibliography o f Literature on First Peter. Leiden,
Brill, 1996 (NTTS 23).

Estudos particulares
BOVON, François. Foi chrétienne et religion populaire dans Ia première
Építre de Pierre. ETR 53 (1978) 25-41.
ELLIOTT, John H. A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis o f 1
Peter, its Situation and Strategy. Philadelphia, Fortress Press, 21990
[L ed. 1981].
FELDMEIER, Reinhard. Die Christen als Fremde. Die Metapher der Frem-
de in der antiken Welt, im Urchristentum und im 1. Petrusbrief Tii-
bingen, Mohr, 1992 (W UNT 1,64).
LAMAU, Marie-Louise. Des chrétiens dans le monde. Communautés pétri-
niennesau lersiècle. Paris, Cerf, 1988 (LeDiv 134).
PERROT, Charles (éd.). Etudes sur la première lettre de Pierre. Congrès de
Γ ACFEB, Paris 1979. Paris, Cerf, 1980 (LeDiv 102).

547
A s epístolas católicas

SCHLOSSER, Jacques “Aimez la fraternité” (I P 2,17). A propos de I’ec-


clésiologie de la première lettre de Pierre. In: PERRONI, Marinella,
SALMANN, Elmar (éds.). Patrimonium fidei. Traditionsgeschicht-
liches Verstehen am Ende? Festschrift Magnus Lõhrer und Pius
Ramon Tragan. Roma, Centro Studi S. Anselmo, 1997, p. 525-545
(Studia Anselmiana 124).
SCHMIDT, Karl Matthias. Mahnung und Erinnerung im Maskenpiel. Epis-
tolographie, Rhetorik und Narrativik der pseudepigraphen Petrus-
briefe. Freiburg, Herder, 2003 (HBS 38).

548
CAPITULO

25
A segunda epístola de Pedro
Jacques Schlosser

O autor de 1 Pedro recomendava a seus leitores que fizessem a


apologia de sua fé "com mansidão e respeito”. Esse não é, manifes-
tamente, o clima da segunda epístola de Pedro, em que a polêmica
assume um tom muito violento. Quanto ao fundo, o autor, “Simão
Pedro” (1,1), parece responder a um questionamento de elementos
fundamentais da fé recebida. A contestação, ao que parece, provém
de meios cultos da sociedade helenística; o autor, sensível ao choque
de culturas, toma emprestado algo de seu vocabulário (por exemplo,
"o conhecimento”) e categorias (por exemplo, a “natureza divina”),
para responder ao desafio e tentar exprimir a fé tradicional com uma
linguagem nova.

1. A p r e s e n t a ç ã o
/. /. Gênero literário
Ao contrário de 1 Pedro ou das cartas paulinas, 2 Pedro não tem
saudações finais; mas, como esses escritos, abre-se com um prefácio
(1,12‫ )־‬que permite classificá-la entre as cartas do Novo Testamen-
to, de acordo com a indicação expressa de 3,1 (επιστολή, “carta”).
No entanto, a alusão à sua morte próxima (1,14), a insistência na
memória e a preocupação manifestada com o tempo da ausência
pressentida (1,12-15; 3,1 s.) dão nitidamente a esta carta o colorido

549
A s epístolas católicas

de um testamento. Nosso escrito se apresenta como uma carta tes-


tamentária ou um testamento sob forma de carta.

1.2. Plano
O plano, em linhas gerais, sobre o qual os especialistas não diver-
gem muito, baseia-se nas indicações de conteúdo, mas sobretudo
nas observações formais (características epistolares, pronomes pes-
soais, conjunções, vocativos em referência aos destinatários, recor-
rências dos mesmos vocábulos...).

P lano da segunda epístola d e Pedro

1,1-2 Prefácio epistolar

Exórdio (1,3-11): a grandeza do dom divino e da vocação cristã


1,3-4 O dom divino da salvação
1,5-7 Imperativo ético
1,8-9 Motivação
1,10-11 Apelo à fidelidade na perspectiva escatológica

Corpo da carta (1,12-3,16): o debate sobre a parusia


1,12-15 O trabalho de memória
1,16-21 A qualificação das testemunhas
2,1-22 Os falsos doutores
Anúncio de sua vinda e de sua ruína (2,1-3); con-
firmação pelas lições da história (2,4-10a); a de-
pravação moral dos adversários (2,10b-22)
3,1-16 A parusia
Evocação da função testamentária (3,1 -3); as ob-
jeções dos que negam a parusia e sua refutação
(3,4-10); a expectativa cristã (3,11-13); o teste-
munho concorde de Paulo (3,14-16)
3,17-18 Conclusão epistolar

Assim, 2 Pedro aparece como um escrito bem organizado e mui-


to coerente, cuja unidade não tem por que ser posta em causa.

2. C o m p o s iç ã o l it e r á r ia
Em 2 Pedro 3,10 autor se refere, muito provavelmente, à primeira
epístola de Pedro e não a qualquer carta perdida de sua própria lavra.

550
A segunda epístola de Pedro

Mas, a despeito dos contatos observáveis entre esses dois escritos


(p. ex. a saudação em lPd 1,2 e em 2 Pd 1,2), 1 Pedro certamente
não comandou de maneira determinante a composição literária e
teológica de 2 Pedro Os acordos, numerosos e precisos, entre a epís-
tola de Judas e 2 Pedro, são muito mais importantes. Eis a lista dos
contatos mais seguros:

Judas 2 Pedro
4: apresentação dos adversários... 2,1-3: apresentação dos adversários.
“negam nosso único (δεσπότην) So- “negando o Senhor (δεσπότην) que os
berano e Senhor Jesus Cristo” resgatou”
5: quero "recordar-vos” embora 1,12: tenho intenção de “recordar-
“saibais” vos” embora já o "saibais”
6: os anjos decaídos, Deus “os man- 2,4: os anjos culpados "nos antros
tém” nas "trevas para o julgamento tenebrososs” são “guardados para o
do grande dia” julgamento”
7: “exemplo” de Sodoma e Gomorra 2,6 o mesmo “exemplo”
8: os adversários caracterizados pela 2,10: os adversários têm as mesmas ca-
carne, imundície, blasfêmia racterísticas; recorrência de palavras
raras como “soberania” ou "glórias”
9: o arcanjo Miguel “não se atreveu a 2,11: os anjos “não proferem... juízos
lançar um juizo ofensivo” ofensivos”
10: assimilação dos adversários a 2,12: mesmo tema, vários elementos
"animais irracionais” léxicos comuns
11b: exemplo do extravio de Balaão 2,15: exemplo de Balaão associado
ao tema do extravio
12a-c: as festanças dos adversários 2,13: mesmo tema geral com coinci-
dência de algumas palavras raras
I2d-I3: comparação dos adversários 2,17: comparações análogas; a ex-
com fenômenos naturais, especial- pressão “para quem é destinada a
mente com astros “votados para a escuridão das trevas” é utilizada para
eternidade à profundidade das trevas". os heréticos.
16: retrato dos adversários 2,18: retrato dos adversários,
17: lembrança das “palavras ditas de coincidência do termo raro υπέρογκα
antemão pelos apóstolos de nosso (enormidades)
Senhor Jesus Cristo” 3,2: lembrança das "palavras ditas
18: anúncio da vinda, “no fim dos de antemão pelos santos profetas";
tempos”, de "zombadores guiados menção dos “apóstolos”
por suas próprias paixões ímpias” 3,3: vinda “nos últimos dias” de
25: doxologia (dirigida a Deus) "zombadores levados por suas pai-
xões pessoais”
3,18: doxologia (dirigida a Cristo)

551
A s epístolas católicas

O número e a afinidade desses acordos e, mais ainda, a ordem


bastante comum em que aparecem supõem uma dependência literá-
ria. Com a grande maioria dos críticos, mantemos como explicação
mais evidente uma dependência de 2 Pedro em relação a Judas, par-
ticularmente porque várias dificuldades de compreensão em 2 Pedro
(p. ex. 2,13) se esclarecem se nos referimos à passagem paralela de
Judas. Na perspectiva da história da redação, os distanciamentos
poderão ser lidos, com a devida1prudência, como indícios que reve-
Iam a interpretação que o autor de 2 Pedro impõe à sua tradição.

3 . O MEIO HISTÓRICO DE PRODUÇÃO


3.1. A u to r
Usando o nome de “Simão”, decalque do nome semítico do per-
sonagem (1,1), o autor se diz Pedro, “o apóstolo de Jesus Cristo”.
Com poucas exceções, a crítica moderna não dá crédito a essa infor-
mação; a carta é considerada, quase unanimemente, pseudepigráfi-
ca. Essa opinião se baseia em várias observações: a diferença muito
nítida de 1 Pedro, a data (ver 3.2), a espantosa familiaridade com a
cultura helenística. Quanto à língua, ela se manifesta com um voca-
bulário requintado (número relativamente muito elevado de expres-
sões únicas, os hapaxlegomena12, e de palavras compostas); o estilo se
caracteriza por certa pretensão literária (p. ex. os numerosos geni-
tivos encravados). O autor real tinha também algum conhecimento
das idéias e da espiritualidade helenística, como mostram sua pro-
pensão ao uso de “conhecimento” (quatro empregos de €1τίγν‫׳‬ωσις
e dois empregos, em 2,21, do verbo correspondente), seu interesse
pelas virtudes gregas (apresentadas segundo um encadeamento tipi-
camente helenístico: 1,5), bem como o emprego de um termo téc-
nico dos mistérios (1,16). Reconhece-se também nele, sem que se
possa precisar bem, certa qualificação para a filosofia popular. Como

1 Ver Henning PAULSEN, DerZweite Perusbriefundder Judasbrief Góttin-


gen, Vandenhoeck und Ruprecht, I992, 99.
2 Ver a lista na Concordância de Kurt ALAN D, Vollstàrtdige Konkordanz zum
griechishchen Neuen Testament, Berlin, de Gruyter, I978-I983, 459.
A segunda epístola de Pedro

ele mostra, ao mesmo tempo, familiaridade com a tradição bíblica


judaica, embora não faça jamais uma citação formal, deve-se, sem
dúvida, ver por trás do pseudônimo um judeu-cristão helenístico.

3.2. Data de composição


Como a data desses mesmos escritos ainda é discutida, a depen-
dência literária de nossa carta em relação a Judas e seu conhecí-
mento de I Pedro não permitem fixar uma data muito precisa para 2
Pedro; a provável referência de 2 Pedro 1,14 à tradição relatada em
João 21,18 não é diretamente explorável. O terminus ad quem não
pode ir muito além de 200. Com efeito: o P72, que contém Judas e as
duas epístolas de Pedro, é datado do terceiro século; Orígenes (mor-
to em 253-254) conhece a existência das duas epístolas de Pedro
(In librum Jesu nave 7,1; In Johannem 5 ,3); o Atos de Pedro, habitual-
mente situado por volta de 200, parece depender de 2 Pedro para
a evocação da transfiguração (comparar Atos de Pedro 20-21 e 2Pd
1,17 s.). A consideração de um outro escrito apócrifo, o Apocalipse de
Pedro, que deve ter sido escrito por volta de 135, ligado com a revol-
ta de Bar Kochba, permite remontar sensivelmente a data-limite na
medida em que essa obra depende literariamente de 2 Pedro. Sobre
esse ponto, entretanto, se impõe a prudência, pois as convergências
ressaltadas pela crítica “não permitem nem excluir totalmente uma
relação de dependência literária, nem supô-la com segurança”3.
Para determinar o terminus a quo, consideram-se as indicações
da epístola que supõem uma situação evoluída; assim, a referência
a “todas as cartas” de Paulo (3,16) dá a entender a existência de
uma coleção já pronta, o que é impensável antes do fim do século
I. Fazem-se, além disso, alusões a divergências na interpretação das
cartas de Paulo, e a tendência é pôr essas cartas no mesmo pé que
“as outras escrituras”. Em sua repetição de Judas, “Simão Pedro”
omite a citação de / Henoc 1,9 (Jd 14), o que talvez seja sina! de uma
consciência “canônica” em processo de formação. Ao lado de Pedro,

3 Christian GRAPPE, Images de Pierre aux deux premiers siècles, Paris, PUF;
1995,146.

553
As epístolas católicas

Paulo é, para o autor, a segunda autoridade, um pouco à maneira do


que se constata em I Clemente 5. Os que negam a parusia (ver abai-
xo 4) apoiam, sem dúvida, suas posições sobre o desaparecimento
efetivo do corpo apostólico. Por todas essas razões, tem-se o século
11 como datação folgada.
Levando em conta essas diversas observações e a atestação, pelo
menos possível, de nossa carta no Apocalipse de Pedro, propõe-se
como data provável os anos 125-130.

3.3. Lugar
O lugar de composição só pode ser determinado por via indireta.
As opiniões favoráveis são mais frequentes para Roma ou Alexandria.
Em favor do Egito, pode-se invocar, com legitimidade, a atestação do
escrito de Orígenes e o P72, e também do Apocalipse de Pedro, caso
esse escrito provenha efetivamente do Egito4; negativamente, subli-
nha-se a ausência de atestação em Roma mesmo, por exemplo, no
cânon de Muratori. Levando-se mais em conta os dados internos, a
preferência será por Roma: a escolha de “Pedro” como pseudônimo,
o testamento de Pedro e a alusão transparente à sua morte em 1,14,
a justaposição pacífica de Pedro e Paulo como fiadores da tradição, a
referência clara a 1 Pedro são os traços principais que convidam a ver
em 2 Pedro um escrito oriundo da comunidade cristã de Roma; a
afinidade difusa com / Clemente apóia essa hipótese.

3.4. Destinatários
Os destinatários da carta são “aqueles que receberam, pela jus-
tiça de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, uma fé do mesmo valor
que a nossa” (1,1), o que quer dizer: o conjunto dos cristãos, numa
perspectiva decididamente “católica”. Mas o conhecimento das car-
tas de Paulo, atribuído indiretamente aos destinatários, e a referên­

4 Essa é a opinião de C. Detlev C. MÜLLER, in Wilhelm SCHNEEMEL-


CHER (Hrsg.), Neutestamentliche Apocryphen in deutscher Ubersetzung,
Tübingen, Mohr, *1989, v. II, 566.

554
A segunda epístola de Pedro

cia de 2 Pedro a 1 Pedro dão a entender que o autor se dirige, de fato,


aos cristãos das terras paulinas (Grécia e Ásia Menor). Algumas in-
dicações, na verdade muito gerais, levam a pensar que se trata de
antigos pagãos (1,4; 2,18.20).

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Em 3,4, o autor reproduz, em estilo direto, o questionamento
da parusia que ele atribui aos “enganadores” (3,3); para tratar das
intenções teológicas do escrito, convém, portanto, evocar conjun-
tamente a questão dos opositores. Estes são qualificados de “fal-
sos doutores” (2,1). Por falta de indicações mais concretas e porque
nosso autor não argumenta, realmente, com eles, suas teses perma-
necem inapreensíveis; seu perfil espiritual e seus pressupostos não
podem ser definidos com precisão. Por um lado, eles parecem ser
animados por concepções de tendência gnóstica: insistência na rea-
lização já plena da salvação e reivindicação de uma liberdade (2,19)
que leva à indiferença no que diz respeito às exigências éticas da fé.
Mas isso não explica tudo. Devem-se levar em conta também os
efeitos de uma filosofia popular, marcada sobretudo pelo epicurismo,
que prescindia da transcendência e não se interessava por especu-
lações sobre o além; a segunda dessas características valia também
para as correntes judaicas próximas dos saduceus, como ilustram,
por exemplo, os termos que o Targum de Gênesis 4,8 põe na boca de
Caim: "Não há nem julgamento nem um outro mundo! Nada de re-
compensa para os justos, nem de castigo para os maus”. Em vez de
imaginar um grupo definido de opositores, vindos do exterior para
criar confusão nas comunidades cristãs, devemos contar com obje-
ções nascidas no interior delas5.
Os “falsos doutores” negadores da parusia são opostos aos após-
tolos cuja mensagem dizia respeito, precisamente, a “o poder e a
parusia [entenda-se: a manifestação no poder] de nosso Senhor Je-
sus Cristo” (1,16); a transfiguração do Senhor é lida aqui como uma

5 Hubert FRANKENOLLE. I. Petrusbrief, 2. Petrusbrief Judasbrief, Würz-


burg, Echter Verlag, 21990, 77-78.

555
A s epístolas católicas

figura antecipada dessa poderosa parusia final. Longe de aparecer


como um traço particular ou mesmo marginal, a insistência na pa-
rusia, com sua dupla dimensão de salvação realizada e de condena-
ção definitiva, é incontestavelmente o tema teológico central de 2
Pedro; ele já está presente nas “grandes promessas” de 1,4. Para o
autor, negar esse ponto significa solapar os fundamentos mesmos
da teologia. A julgar pelas conexões por ele tecidas, a negação da
parusia implica, de fato, uma desconfiança fundamental de Deus:
duvida-se de sua fidelidade; questiona-se sua capacidade de intervir
na história do mundo; não se crê mais no poder do juiz (2,10) nem
em sua vontade de agir com justiça (2,5-9); a prática do bem perde
seu fundamento, e a redenção já realizada por Jesus Cristo parece
ser, ela mesma, esvaziada de sua substância (2,1).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na exegese protestante alemã dos anos 1950-1970, a teologia de
2 Pedro — e a de Judas — parecia muito suspeita por causa de seu
“protocatolicismo”6; entende-se por essa expressão uma coisifica-
ção da fé em corpo de doutrinas, um valor determinante atribuído
à tradição eclesial, uma sacralização das especulações apocalípticas à
custa da cristologia e a substituição dos carismas pelos ministérios
institucionalizados. Esse julgamento está atualmente em processo
de revisão, por uma consideração mais matizada da situação con-
ereta e dos objetivos pastorais perseguidos por “Simão Pedro”7.
Ressaltar-se-á, de modo particular, a riqueza da substância cristoló-

6 Boas apresentações sobre a problemática geral do protocatolicismo em:


François VOUCA, Les premiers pás du christianisme. Les écrits, les acteurs,
les débats, Genève, Labor et Fides, 1997, 205-212; Vittorio FUSCO, La
discussione sul protocattolicesimo nel Nuovo Testamento. Un capitolo di
storia dell’esegesi, ANRW, Berlin, de Gruyter, 11,26.2 (1995) 1.645-1.691.
7 Ver Hans HÜBNER, Die theologie des Paulus un ihre neutestamentlíche Wir-
kungsgeschichte, in ID., Biblische Theologie des Neuen Testaments, Gõttin-
gen, Vandenhoeck und Ruprecht, 1993, v. 2, 399-410; Udo SCHNELLE,
Einleitung in das Neue Testament, Gottingen,Vandenhoeck und Ruprecht,
1994, 494-494; Peter MÜLLER, Der Judasbrief ThR 63 (1998) 288-298
(a propósito de Judas).

556
A segunda epístola de Pedro

gica: a morte salvífica é bem evocada (2,1); a soteriologia encontra


uma expressão forte na valorização do título cristológico “salvador”
(1,1.11; 2,20; 3,2.18); a unidade do ser e da ação de Cristo e de Deus
é marcada de diversos modos, e já pela atribuição, absolutamente
excepcional no Novo Testamento, do título Oeóç a Cristo (1,1); o "dia
de Deus” (3,12) se confunde, muito provavelmente, com “o dia do
Senhor” (3,10); o lugar da salvação escatológica é, também aí de
maneira inabitual, designado como reino de Cristo (1,11); a doxolo-
gia final também é cristológica.

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BAUCKHAM, Richard J. Jude, 2 Peter. Waco, Word Books, 1983 (WBC
50).
FRANKEMOLLE, Hubert /. Petrusbrief, 2. Petrusbrief Judasbrief.
Wurzburg, Echter Verlag, 21990 (NEB.NT 18/20).
FUCHS, Eric, REYMOND, Pierre. La deuxième Építre de saint Pierre —
Lépttre de saint Jude. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1980 (CNT
13b).
VÒGTLE, Anton. Der Judasbrief, der 2. Petrusbrief. Solothurn/Neukir-
chen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1994 (EKKXXII).

Leitura prioritária
COTHENET, Edouard. La tradition selon Jude et 2 Pierre. N TS 35 (1989)
407-420.

História da pesquisa
BAUCKHAM, Richard J. 2 Peter: An Account o f Research. ANRW , Ber-
lin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.713-3.752.

Estudos particulares
DSCHULNIGG, Peter. Der theologische Ort des zweiten Petrusbriefes.
BZ 33 (1989) 161-177.

557
As epístolas católicas

FORNBERG, lord. An Early Church in a Pluralistic Society. A Study o f 2


Peter. Lund, Gleerup, 1977 (CB.NT 9).
KASEMANN, Ernst. Eine Apologie der urchristlichen Eschatologie. In:
---------. Exegetische Versuche und Besinnungen I. Gottingen, Vanden-
hoeck und Ruprecht, I960, p. 135-157; trad, fr.: Bulletin du Centre
Protestant d'Etudes, Geneve, 27, n. 1-2 (1975) 19-45.
KLAUCK, Hans-Josef Die antike Briefliteratur und das Neue Testament.
Ein Lehr-und Arbeitsbuch. Paderborn, Schòningh, 1998, p. 306-314
(UTB 2022).
MARTIN, François. Pourune théologiede la lettre. L inspiration des Ecritu-
res. Paris, Cerf 1996 (Cogitatio Fidei 196).

558
CAPÍTULO

26
A epístola de Judas
Jacques Schlosser

Segundo uma fórmula que se tornou clássica, a carta de Judas


é o escrito do Novo Testamento mais negligenciado pela pesquisa;
pode-se supor que ela não prenda muito a atenção na leitura indi-
vidual. As coisas, no entanto, estão em vias de mudar. O interesse
propriamente teológico desse texto, estranho sob vários aspectos, é
maior atualmente, de modo particular na reflexão sobre a tradição.1

1. A p r e s e n t a ç ã o
1. 1. Gênero literário
Por causa da abundância de elementos bíblicos em Judas, há
alguma razão de aproximar o escrito do comentário bíblico (ho-
milia, midrash, pesher). A insistência do versículo 3 na expressão
“vos escrever” confirma, no entanto, a indicação fornecida pelos
versículos 1-2:0 gênero literário é o da carta. Os versículos 3-4 dão
a entender que o autor, por assim dizer, mudou de assunto no meio
do caminho: ele queria escrever a seus correspondentes a propó-
sito de “nossa salvação comum”, mas a urgência leva-o a reagir à
situação criada nas comunidades por agitadores. Vê-se, às vezes,
nesse traço um eco da história e, às vezes, o que parece mais pro-

559
As epístolas católicas

vável1, uma encenação literária. Nos dois casos podemos descobrir


aí uma indicação do gênero epistolar do escrito.

1.2. Plano
Presentes em grande número, os marcadores formais são revelado-
res da organização do conjunto. Podem-se notar as palavras-gancho, a
alternância de passado e presente nos tempos dos verbos, a relevância
do pronome “vós” (particularmente em 17 e 20), a recorrência de cer-
tos termos e, especialmente, da fórmula “e/ou esses” (8.10.12.16.19), a
designação “bem-amados”, a repetição do tema importante recordar/
lembrar-se (5.17). Considerando-se, além disso, o conteúdo, observa-
se o procedimento que consiste em propor um “texto” procedente de
uma autoridade seguido de um comentário que o atualiza (5-7 + 8; 9 +
10; 11 + 1 2 1 9 + 17-18 ;16 + 14-15 ;13‫) ־‬. O plano proposto le
esses indícios, aliás às vezes em tensão entre eles.

Plano da epístola de Judas


1-2 Prefácio epistolar
3-4 Ocasião e finalidade

Polêmica contra os adversários (5-16)


5-7 Castigo divino sobre três coletividades pecadoras
8-10 Comentário atualizando
11 Evocação de três indivíduos pecadores
12-13 Comentário
14-15 Profecia de Henoc
16 Comentário

Mensagem para a comunidade (17-23)


17-18 Recordação da pregação apostólica
19 Comentário atualizando
20-21 Exortação aos fiéis
22-23 Três diretrizes pastorais
24-25 Doxologia final

1 Ver Anton VÒGTLE, Der Judasbrief, der 2.Petrusbrief, Solothurn/Neukir-


chen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1994, 20-23.

560
A epístola de Judas

A integridade de Judas não é questionada. A hipótese do caráter


secundário do contexto epistolar não conseguiu se impor, e a unida-
de do escrito é comumente admitida.

2 . C o m p o s iç ã o
Judas se aproveita de uma rica herança. Para Judas 5-7, a fon-
te é o Antigo Testamento: o pecado dos anjos (Gn 6) e o crime de
Sodoma e Gomorra (Gn 18) são facilmente reconhecíveis; o castigo
do povo infiel, depois da saída do Egito (Jd 5), evoca, sem dúvida,
os acontecimentos de Números 14. Mas nosso autor lê o Antigo
Testamento à luz da tradição judaica, como mostram as seguintes
observações: a) a tradição judaica manifestava um vivo interesse pe-
los julgamentos exemplares, entre os quais figuravam, em primeiro
lugar, precisamente Sodoma e o dilúvio12; b) em vários pontos, a lei-
tura de I Henoc 6-19 é indispensável para a compreensão do texto de
Judas; c) a tradição judaica também oferece um esclarecimento pre-
cioso para o retrato dos indivíduos evocados em Judas 11, particular-
mente para Balaão, que se tornou o tipo do profeta venal; d) nosso
autor, caso único no Novo Testamento, chega até a propor (Jd 14)
uma citação formal de / Henoc 1,9. A esse empréstimo apocalíptico
absolutamente claro talvez se deva juntar a referência à negociação
empreendida pelo arcanjo Miguel, figura eminente na apocalíptica,
a respeito dos despojos de Moisés (Jd 9); mas a questão é complexa
demais e não pode ser resolvida de forma absoluta3. Deve-se, pelo
menos, reter que Judas se inspira em especulações apocalípticas do
judaísmo antigo.
Segundo sua própria indicação, o autor cita explicitamente uma
profecia tirada das “palavras que vos foram ditas de antemão pelos
apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 14 s.). Procura-se em
vão essa profecia nos escritos cristãos que subsistem, mas ela tem

1 Ver Jacques SCHLOSSER, Les jours de Noé et de Lot. À propos de Lc


XVII, 26-30, RB 80 (1973) 13-26.
3 Estudo detalhado em Richard J. BAUCKHAM, Jude and the Relatives o f
Jesus in the Early Church, Edinburgh, Clark, 1990, 235-280.

561
A s epístolas católicas

paralelos temáticos muito próximos em diversas passagens apoca-


lípticas do Novo Testamento nas quais o anúncio de sedutores é um
topos (Mc 13,6.22; At 20,29 s.; ITm 4,1; 2Tm 3,1.6; 4,3). Os quali-
ficativos atribuídos, no prefácio epistolar, ao autor (“servo de Jesus
Cristo”) e aos destinatários (“amados”, “chamados”) vêm também,
sem dúvida, da tradição cristã.
Para as relações com 2 Pedro, ver a introdução a essa epístola.

3 . M e io h is t ó r ic o d e p r o d u ç ã o
3.1. Autor
Não faltam no Novo Testamento personagens denominados
’Ιούδας, de modo que se deve prestar atenção ao qualificativo suple-
mentar “irmão de Tiago”. A associação dos dois nomes se apresenta
de forma elíptica, ’Ιούδας’ Ιακώβου, nas duas versões lucanas da lista
dos apóstolos (Lc 6,16; At 1,13); um genitivo de pertença pode desig-
nar a relação de fraternidade. Um Judas irmão de Tiago podería, en-
tão, ter feito parte do grupo dos Doze (ver Jo 14,22). Mas o genitivo
mencionado exprime mais habitualmente a relação de filiação: “Judas,
filho de Tiago”. Buscaremos, então, de preferência, uma outra série
de textos em que Judas aparece em companhia de Tiago, e em que
a relação de fraternidade é indiscutível: Marcos 6,3; Mateus 13,55.
Hegesipo, por seu lado, confirma que Judas era chamado “irmão do
Senhor segundo a carne” (Eusébio, História eclesiástica 111,20,1).
O autor de nossa epístola se apresenta, portanto, implicitamente
como irmão de Jesus. Boas razões para confiar nele são seu conhe-
cimento global da tradição bíblica e judaica, sua familiaridade com a
Bíblia hebraica e até com a versão aramaica de 1 Henoc; ele mani-
festa, ademais, desembaraço nas técnicas exegéticas, especialmente
na do comentário atualizador, análogo ao pesher de Qumran. Mas
apresentam-se duas objeções sérias. Por um lado, se a carta deve ser
datada do período subapostólico (ver 2.1), sua atribuição a Judas se
torna mais difícil — embora não impossível, sobretudo se Judas era
um irmão mais novo de Jesus, como sugere seu lugar (último ou pe-
núltimo) nas duas listas evangélicas (Mt 13,55 e Mc 6,3). Mais grave,

562
A epístola de Judas

se não decisiva, é a objeção ligada à língua da epístola e, mais geral-


mente, à sua qualidade literária e retórica: o vocabulário é rico e re-
buscado; o domínio da gramática é bom, por exemplo na gestão das
partículas e dos particípios; encontram-se assonâncias e aliterações
(por exemplo, as oito palavras em ‫ זו‬utilizadas na exposição: 3-4)4. A
atribuição de semelhante qualidade de estilo ao "irmão do Senhor” é,
francamente, pouco provável. Por essa razão é que se aceitará, com
a maioria dos autores recentes, a hipótese da pseudonímia.

3.2. Data da composição


As datas pressupostas pela crítica moderna escalonam-se entre 54
e I80!5 A parte a retomada de Judas por 2 Pedro, que praticamente
obriga a não situar a carta de Judas mais tarde do que o fim do século
1, não temos nenhuma indicação externa. Ora, os dados internos são
difíceis de ser utilizados com rigor. Os do versículo 17 s., no entanto,
parecem exploráveis e não favorecem uma datação alta. De fato, nele
se incita a recordar, o que implica uma distância temporal já impor-
tante. Há aí referência aos apóstolos como a um conjunto claramen-
te identificável de pessoas revestidas de uma grande autoridade, mas
que não estão mais lá para se exprimir diretamente; rememoram-se
as palavras que eles "diziam” outrora e o conteúdo dessas palavras
evoca de perto as pastorais (lTm 4,1; 2Tm 3,1.6). Em consequência,
a data de composição mais provável situa-se entre 80 e 100.

3.3. Destinatários e opositores


Nossa epístola não oferece nenhum dado concreto que permita
identificar, com toda certeza, os destinatários e situá-los no espaço.
Estamos, portanto, reduzidos às considerações indiretas, que não
vão todas no mesmo sentido.

4 Eric FUCHS, Pierre REYMOND, La deuxième építre de saint Pierre. L! ép?-


tre de saint Jude, Neuchàtel, Delachaux et Niestlé, 1980, 137 s., 139 s.
5 Ver BAUCKHAM, Jude and the Relatives o f Jesus in the Early Church,
168-169.

563
A s epístolas católicas

A maneira alusiva pela qual o autor se refere à história bíblica e


a suas releituras bíblicas leva a pensar que os leitores se sentem em
casa nessa tradição e a identificá-los como judeu-cristãos. A valori-
zação da personagem de Tiago vai no mesmo sentido. E capaz essa
hipótese de explicar o interesse que, a julgar pela violência da reação
de Judas, os opositores devem ter despertado nas comunidades?
A identificação desses opositores é difícil, como sempre aconte-
ce quando dispomos somente de informações internas a ser extraí-
das da própria epístola. A crítica mais fundamentada diz respeito às
deficiências morais dos adversários: não dão frutos (v. 12), deixam-se
guiar por suas paixões (vv. 16.18) e vivem uma sexualidade desen-
freada (w. 7 s. 10). Mas a polêmica anti-herética recorre freqüente-
mente à detração dos adversários no plano ético; trata-se quase de
clichês, e o detalhe das críticas se revela difícil de ser utilizado para
a reconstituição histórica. Parece que os intrusos têm seu lugar nas
comunidades, pois participam dos ágapes (12); julga-se perceber to-
ques carismáticos, especialmente no versículo 19, onde Judas nega
aos opositores aquilo que eles, particularmente, reivindicam, a saber,
ο πνεύμα (“espírito”); no versículo 8 ele ridiculariza suas pretensas
revelações especiais; os intrusos parecem propor um ensino inovador
(v. 3b) do qual devia fazer parte a depreciação dos anjos. Essas críti-
cas de nosso autor convidam a completar a imagem dos destinatários.
Pode-se admitir, realmente, que as idéias dos opositores, e, talvez,
seus comportamentos transviados não atraíam muito os judeu-cris-
tãos; ameaçavam, ao contrário, seduzir os cristãos de origem pagã.
Em outras palavras: a virulência da polêmica leva a pensar que as co-
munidades destinatárias não eram compostas só de judeu-cristãos. E
de se admitir, portanto, que Judas se dirige a comunidades mistas, e
se fôssemos nos arriscar a indicar um lugar ele seria a Ásia Menor.4

4 . I n t e n ç ã o t e o l ó g ic a
Qual é, então, a fé na qual e pela qual os destinatários devem se
engajar firmemente? Os dissidentes parecem ter posto em dúvida a
importância do futuro na soteriologia; teriam negado, particularmen-

564
A epístola de Judas

te, o julgamento e contestado a fé tradicional na parusia de Cristo.


Indícios nesse sentido se deixam descobrir6 no final do versículo 8: o
“senhorio” rejeitado seria o de Cristo (cf v. 4); as “glórias”, objetos
de blasfêmia, que são muito provavelmente anjos, fazem pensar nos
anjos que acompanham o Juiz, conhecidos na apocalíptica judaica
(da qual I Ηβη 1,9 citado em Jd 14) e no Novo Testamento (2Ts 1,7
e tc .). Judas, em todo caso, está convencido disso: os “ímpios” serão
castigados. Ao introduzir no texto de / Henoc 1,9 o sujeito κύριος
(senhor), suscetível de uma interpretação cristológica, Judas faz um
anúncio da parusia sob o seu aspecto terrível. A presença diante
da glória (Jd 24; ver lTs 3,13) tem a mesma referência, mas agora
Judas sublinha o aspecto salvífico do encontro. Ele o faz mais ainda
quando recomenda "esperar a misericórdia de nosso Senhor Jesus
Cristo para a vida eterna” (v. 21). Sem dúvida, em reação à posição
dos adversários que insistem no presente e desvalorizam o futuro,
nosso autor compartilha a discrição escatológica de Paulo.
Quanto à soteriologia, nota-se de maneira repetida no escrito
a associação de Jesus Cristo e Deus Pai na obra salvífica (w. Ib;
4cd; 21). O Espírito Santo aparece numa fórmula ternária digna de
interesse (v. 20 s.). Diferentemente do que se constata em 2 Pe-
dro, o próprio Cristo não recebe os títulos de Deus e salvador; eles
permanecem reservados a Deus (v. 25), a quem é dirigida a doxo-
logia final. Entretanto não é duvidoso que o “Senhor” Jesus (vv.
4 . [14],17.21.25), que foi ativo na inauguração da salvação (vv. 1b. 17),
o seja ainda por ocasião de sua perfeição (v. 21b).

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s
Na exegese de Judas, como de resto para o conjunto constituído
pelas sete epístolas pastorais, parece que, aos poucos, começa a ga-
nhar terreno uma abordagem nova, a saber, a leitura canônica. Ela
consiste em ler e explicar cada epístola não mais somente em si mes-
ma, mas à luz do corpus das sete epístolas não-paulinas e em ligação

6 Com VÕGTLE, Der Judasbrief, der 2. Petrusbrief 47-59.

565
A s epístolas católicas

com os Atos dos Apóstolos. Um acréscimo de sentido decorre dessa


abordagem. No caso de Judas, o enriquecimento semântico decorre
particularmente da posição final ocupada por essa carta no setenário;
pode-se ver o ensaio de Robert W. WALL, A Unifying Theology o f
the Catholic Epistles. A Canonical Approach (in Jacques SCHLOS-
SER [ed.], The Catholic Epistles and the Tradition, Leuven, Leuven
University Press/Peeters, 2004, 43-71 [BEThL 176]).

6 . B ib l io g r a f ia
Comentários
BAUCKHAM, Richard J. Jude, 2 Peter. Waco, Word Books, 1983 (WBC 50).
FUCHS, Eric, REYMOND, Pierre. La deuxième épttredesaint Pierre— Lépltre
de saint Jude. Neuchátel, Delachaux et Niestlé, 1980 (CNT I 3b).
PAULSEN, Henning. DerZweite Petrusbrief undder Judasbrief. Gottingen,
Vandenhoeck und Ruprecht, 1992 (KEK 12,2).
VOGTLE, Anton. Der Judasbrief der 2. Petrusbrief. Solothurn/Neukir-
chen-Vluyn, Benziger/Neukirchener Verlag, 1994 (EKK22).

Leitura prioritária
COTHENET, Édouard. La tradition selon Jude et 2 Pierre. N T S 35 (1989)
407-420.

História da pesquisa
BAUCKHAM, Richard J. The Letter o f Jude: An Account o f Research.
A N R W , Berlin, de Gruyter, 11,25.5 (1988) 3.791-3.826; atualizado:
--------- . Jude and the Relatives o f Jesus in the Early Church. Edinbur-
gh, Clark, 1990, p. 134-178.
MÜLLER, Peter. Der Judasbrief ThR 63 (1998) 267-289.

Estudos particulares
BAUCKHAM, Richard J. Jude and the Relatives o f Jesus in the Early
Church. Edinburgh, Clark, 1990.

566
A epístola de Judas

HEILIGENTHAL, Roman. Zwischen Henoch und Paulus. Studien zum


theologiegeschichtlichen Ort des Judasbriefes. Tübingen, Francke,
1992.
WATSON, Duane F Invention, Arrangement and Style. Rethorical Criticism
o f Jude and 2 Peter. Atlanta, Scholars Press, 1988 (SBL DS 104).

567
A história do canon
CAPÍTULO

11
História do cânon do
Novo Testam ento
Jean-Daniel Kaestli

Nas páginas precedentes, cada um dos 27 escritos do NovoTes-


tamento foi objeto de um capítulo independente que evidenciou as
condições históricas particulares de sua redação. Na origem, cada
escrito era destinado a ter uma vida própria, e não a ocupar um lugar
numa coleção. E dirigido a uma comunidade particular, ou a um gru-
po circunscrito de comunidades, e não ao conjunto da Igreja. Tem
por intuito transmitir uma mensagem revestida de autoridade, mas
não pretende o acesso à condição de livro sagrado e inspirado, como
as Escrituras antigas, de Moisés e dos profetas.
Hoje, esses 27 livros estão reunidos numa só coleção, de auto-
ridade exclusiva, que leva o nome de Novo Testamento. Quando,
como e por que essa coleção viu a luz do dia e foi reconhecida como
Escritura sagrada a mesmo título que o Antigo Testamento? Essa é
a questão a que a história do cânon procura responder.

O SENTIDO DA PALAVRA “ CÂNON‫ ״‬APLICADO À BÍBLIA


O termo grego κανών, de origem semítica, designa um caniço,
depois um instrumento de medir, fabricado com um caniço, como a
régua do carpinteiro ou do pedreiro. Em sentido figurado, na lingua-
gem da filosofia, ele significa a regra de conduta, a norma, o modelo.
É também empregado, no domínio da astrologia ou cronologia, para

571
A história do cânon

designar uma lista, um catálogo ou um quadro. Quando o termo é


retomado em contexto cristão, dois tipos de uso chamam a atenção.
Nos séculos II e III, ele é encontrado em expressões como κανών
τής άληθ6ίας (regra da verdade), κανών τής πίστ6ως (regra da fé)
ou κανών τής εκκλησίας (regra da Igreja), que designam, de modo
geral, a norma à qual devem se conformar a doutrina e a vida da
Igreja. Foi somente na metade do século IV que o termo passou a
ser utilizado em relação com a Bíblia, referindo-se à lista dos livros
do Antigo e do Novo Testamento (Concilio de Laodicéia [363], câ-
non 59; 39a Carta Festiva de Atanásio de Alexandria [367]).
O que determinou a aplicação à Bíblia dos termos “cânon” e “ca-
nonizar”? Segundo alguns, é o sentido formal de “lista” ou "catálo-
go” que está na origem desse uso. Segundo outros, foi determinante
a idéia de cânon como “norma”, já presente na Igreja desde o século
II. O debate incide sobre um ponto de história, e nenhum documen-
to permite resolvê-lo com certeza. Mas tem relação com a maneira
pela qual o historiador do cânon define, hoje, o objeto de seu estudo
e descreve o processo de canonização.

D u a s m a n e ir a s d e c o n c e b e r a h is t ó r ia d o c â n o n
Qual foi o período decisivo desse processo? A partir de quando se
pode dizer que existe o cânon do Novo Testamento? A esse respeito,
podem-se adotar dois pontos de vista divergentes, correspondentes
a duas maneiras diferentes de compreender a noção de cânon.
O primeiro ponto de vista foi, por muito tempo, objeto de grande
consenso, representado especialmente pelos trabalhos de Harnack
e de Von Campenhausen. O período decisivo para a formação do
cânon do Novo Testamento situa-se na segunda metade do século
II. Por volta de 200, a idéia de cânon emergiu e o essencial de seu
conteúdo foi fixado. A autoridade dos componentes fundamentais
do Novo Testamento — quatro Evangelhos, treze cartas de Paulo,
Atos, I João e I Pedro — é reconhecida de modo geral. Essa situa-
ção de fato é atestada, com dificuldades menores, por testemunhos
do fim do século II e começo do século III, representando as princi­

572
H istória do cânon do N o vo Testamento

pais Igrejas (Fragmento de Muratori, de origem ocidental ou, mes-


mo, romana; Ireneu de Lião, originário da Ásia Menor; Tertuliano de
Cartago; Clemente de Alexandria). A continuação da história tem
menos importância. Uma vez estabelecido o conteúdo fundamental
do Novo Testamento, tratar-se-á somente de esclarecer o estatuto
de alguns livros contestados, entre os quais alguns serão reconhecí-
dos e outros rejeitados. No fim desse processo de acabamento, ver-
se-á emergir uma lista de 27 livros recortando exatamente o Novo
Testamento que conhecemos — lista atestada pela primeira vez em
367 na 39â Carta Festiva de Atanásio de Alexandria.
A. C. Sundberg defendeu uma outra maneira de conceber a
história do cânon. Seu estudo principal, consagrado ao cânon do
Antigo Testamento, renovou profundamente a compreensão da re-
cepção das Escrituras judaicas na Igreja cristã1. Sundberg mostrou
que, ao contrário de uma idéia amplamente difundida, nunca houve
um “cânon alexandrino” do Antigo Testamento — corresponden-
te à coleção extensa dos livros da Septuaginta — que a Igreja teria
recebido do judaísmo helenístico. Na época das origens cristãs, os
livros santos em uso no judaísmo não constituíam ainda uma coleção
fechada. O cânon restrito da Bíblia hebraica só se impôs depois de
Jâmnia, por volta do fim do século 1. Ele influenciou, certamente,
a reflexão dos cristãos sobre os limites de seu Antigo Testamento;
mas essa influência se fez sentir progressivamente, em ritmo mais
lento no Ocidente do que no Oriente; foi só no correr do século IV
que se chegou à definição de uma verdadeira lista canônica.
Segundo Sundberg, a história do cânon do Novo Testamento
deve ser revista à luz desse fechamento tardio do Antigo Testamen-
to cristão*2. Os dois processos evoluíram de modo paralelo. Antes
do século IV, bom número de livros do Novo Testamento tinha já
acedido ao estatuto de “Escritura”, isto é, de livro sagrado gozando
de autoridade em matéria religiosa. Mas não se pode falar, ainda, de

‫י‬ Albert C. SUNDBERG, The Old Testament o f the Early Church, Cambridge,
Mass., Harvard University Press, 1964.
2 ID., Towards a Revised History of the New Testament Canon, Studia
Evangélica, Berlin, Akademic Verlag, IV, Part I (1968) 452-461 (TU 102).

573
A história do cânon

"canon” do Novo Testamento, na medida em que esse termo desig-


na uma coleção estritamente delimitada, uma lista exclusiva de li-
vros sagrados à qual não se pode nem acrescentar nem retirar nada.
O período decisivo para a canonização do Novo Testamento deve
ser situado no século IV e não no século 11. Coincide com o aparecí-
mento de listas de livros canônicos.
A diferença entre os dois pontos de vista é, por um lado, questão
de definição. Segundo a perspectiva tradicional, o termo “cânon” é
compreendido em sentido lato e funcional: pode se aplicar a livros
que são reconhecidos como de autoridade, mesmo que não façam
parte de uma coleção definitivamente fechada (poder-se-ia dizer
que constituem um cânon "aberto”). Sandberg emprega o termo
em sentido estrito e formal: só se pode falar de cânon a propósito de
uma lista "fechada” de livros sagrados.
Essas duas maneiras diferentes de conceber a história do cânon
têm uma implicação teológica. A de Sandberg, ao colocar a ênfase
nos documentos e nos debates eclesiásticos do século IV, vai ao en-
contro da tradição católica segundo a qual o cânon nasceu de uma
decisão da Igreja. A tese clássica reflete mais o ponto de vista pro-
testante: o cânon é o resultado de um consenso que se formou es-
pontaneamente desde o século II; as listas e as decisões oficiais do
século IV só validaram uma escolha mais antiga, que não emanava
do poder eclesiástico.

Um d o c u m e n t o pa r a se o r ie n t a r : o F r a g m e n t o de M uratori
O Fragmento de Muratori, também chamado “Cânon de Mura-
tori”, é um texto latino de 85 linhas, conservado num manuscrito
de Milão do século VIII e publicado em 1740 pelo erudito italiano
L. A. Muratori. O texto, de uma qualidade deplorável, necessita de
numerosas correções e não deixou de suscitar conjecturas. Um fei-
xe de indícios permite concluir que ele foi composto por volta de
fins do século II e começo do século III (ver sobretudo 1. 73-77: aos
olhos do autor, Pio, bispo de Roma entre 140 e 155, viveu “muito re-
centemente no nosso tempo”) e provém de uma igreja do Ocidente

574
H istória do cânon do N o vo Testamento

(ver, particularmente, a ausência da epístola aos Hebreus). Sund-


berg, seguido recentemente por Hahneman, avançou uma série de
argumentos em favor de uma datação do Fragmento de Muratori
no século IV e de uma proveniência oriental3. Essa documentação
tardia relega o documento à classe das numerosas listas canônicas
do século IV e lhe retira quase todo valor para a reconstituição da
história do cânon. Mas os argumentos que servem para justificá-la
não resistem ao exame. Esse texto é um testemunho precioso da
situação da formação do Novo Testamento em fins do século II4 e
um bom ponto de partida para a indagação sobre o período que pre-
cede e sobre o que se segue. A sua tradução se encontra no boxe
das páginas 605-607.
Ressaltemos, antes de tudo, que quatro livros passaram em silên-
cio (1 e 2 Pedro, Tiago e Hebreus) e que os outros 23 livros não estão
todos postos no mesmo plano. A análise do texto permite distinguir
muito claramente duas partes. Na primeira parte (linhas 1-63), o
autor apresenta escritos cuja autoridade é indiscutível e que consti-
tuem duas coleções de contornos bem definidos: os evangelhos, em
número de quatro — aos quais se prendem ainda os Atos dos Após-
tolos e, indiretamente, a primeira epístola de João — , e as epístolas
de Paulo, em número de treze. Na segunda parte (1.63-68 e 81-85),
ele passa em revista livros a respeito dos quais é necessário formular
um julgamento, como o indica o surgimento, nesse ponto, da pri-
meira pessoa do plural. Uns são escritos por heréticos e devem ser
rejeitados totalmente (1.63-68 e 81-85). Os outros (1.68-80) têm
uma origem respeitável e são todos “recebidos” na Igreja, mas seu
estatuto é objeto de discussão: devem ou não ser lidos publicamente
para o povo por ocasião do culto? Para quatro dos escritos que se
tornaram canônicos (Judas, 2 e 3 João, Apocalipse) a resposta é

3 ID., Canon Muratori: A Fourth Century List, Harvard Theological Review


66 (1973) 1-41; Geoffrey Marl HAHNEMAN, The Muratorian Fragment
and the Development o f the Canon, Oxford, Clarendon Press, 1992.
4 Jean-Daniel KAESTLI, La place du Fragment de Muratori dans I’histoire du
canon. A propos de la thèse de Sundber et Hahneman, Cristianesimo nella
storia 15 (1994) 609-634.

575
A história do cânon

positiva; ela é negativa para o Pastor de Hermas, segundo o autor, e


segundo “alguns dos nossos” para o Apocalipse de Pedro.
O Fragmento de Muratori permite distinguir dois momentos na
história do cânon. Nós nos interessaremos, primeiro, pela forma-
ção das duas coleções parciais cujo estatuto está bem estabelecido
no fim do século II: os quatro evangelhos e as cartas paulinas. Em
seguida nos voltaremos para os livros que foram objeto de discus-
são. De fato, a reunião dos 27 escritos do Novo Testamento numa
compilação única e fechada é o resultado de um processo de vários
séculos, que passou por fases diversas segundo as épocas e segundo
as regiões. Ilustraremos a diversidade desse processo de delimitação
apresentando o que o caracteriza na Igreja grega, na Igreja latina e
nas Igrejas da Síria.

1. E v a n g e l h o s e c a r t a s p a u l in a s : a e m e r g ê n c ia d e d u a s
COLEÇÕES CANÔNICAS
/. 1. Os evangelhos: da tradição oral ã canonização do
quádruplo evangelho
O começo do Fragmento de Muratori está perdido, mas pode-se
ter certeza de que continha uma notícia sobre Mateus e uma notí-
cia sobre Marcos, da qual só as últimas palavras estão conservadas.
Nosso texto atesta claramente que o cânon dos quatro evangelhos
estava estabelecido no fim do século II. O fato de serem enumera-
dos (ver o adjetivo numeral das notícias sobre Lucas e sobre João)
é o indício mais evidente dessa fixação definitiva. Na mesma época,
ela é confirmada por várias outras fontes (Ireneu, Tertuliano, Cie-
mente de Alexandria).
Ireneu de Lião, em Contra as heresias, composta por volta de 180,
afirma vigorosamente a autoridade do evangelho quadriforme ou
“tetramorfo”. Numa passagem célebre (111,11,8), ele procura justi-
ficar o número quatro com a ajuda de analogias emprestadas da na-
tureza e da Escritura:

“Não pode haver um número maior, nem menor, de evangelhos. Com efei-
to, visto que há quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos

576
H istória do cânon do N o vo Testamento

principais, e visto que, por outro lado, a Igreja está espalhada por toda a ter-
ra, e que ela tem por coluna e por sustentáculo o Evangelho e o Espírito de
vida, é natural que ela tenha quatro colunas que sopram, de todas as partes,
a imortalidade e concedem a vida aos homens. Donde decorre que o Verbo,
Artesão do universo, que está acima dos Querubins e mantém todas as coisas,
quando se manifestou aos homens nos deu o Evangelho em forma quádrupla
(τίτράμορφον το ίύαγγίλιον), embora sustentado por um único Espírito”.

Ireneu se apóia, em seguida, sobre os Querubins de quatro ros-


tos de Ezequiel 1 e sobre as quatro criaturas vivas de Apocalipse
4,7, bem como sobre as quatro alianças de Deus com a humanida-
de (sob Adão, Noé, Moisés e Cristo). Essa argumentação em favor
do número quatro significa que Ireneu está na origem do evange-
Iho quádruplo? A análise do contexto mais amplo dessa passagem
(111,1,1-11,9) mostra, antes, que ele só faz defender uma realidade
que já existia.
Que se pode dizer da evolução que levou ao reconhecimento ex-
clusivo do evangelho quádruplo? A partir de quando e por que esses
quatro escritos foram postos à parte? Para abordar essas questões,
as fontes de que dispomos são raras e suscetíveis de interpretações
diversas. Alguns marcos importantes podem, entretanto, ser colo-
cados. Para maior clareza, podem-se distinguir duas épocas. A pri-
meira se caracteriza pela coexistência da tradição oral e dos evange-
lhos escritos; ela pode ser ilustrada pelo testemunho de Papias e vai
até cerca de 140. O segundo período se define por uma valorização
muito mais nítida dos evangelhos como documentos escritos; este
período é marcado pelas figuras de Marcião, Justino e Taciano.

A permanência da tradição oral ao lado dos evangelhos


escritos. Papias
Segundo Th. Zahn e A. Harnack — dois eminentes eruditos cujos
trabalhos sobre a história do cânon guardam todo o seu valor — , a
reunião numa mesma coleção dos quatro evangelhos que se torna-
ram canônicos remonta às primeiras décadas do século II. Essa po-
sição foi abalada pela comprovação da importância da tradição oral,

577
A história do cânon

tanto no período que precedeu a redação dos evangelhos canônicos


como no que se seguiu. A mudança está relacionada, em particular,
com o estudo dos materiais evangélicos utilizados nos Padres aposto-
licos (corpus artificial de escritos diversos que vão do fim do século I
à metade do século II). Quando os Padres apostólicos citam palavras
de Jesus que têm paralelos nos sinóticos, eles freqüentemente são
mais devedores da tradição oral do que dos escritos evangélicos5.
Ao lado dos evangelhos canônicos, outros evangelhos viram a
luz do dia e também puderam aproveitar a tradição oral. Ainda que
trabalhos recentes se pronunciem sistematicamente demais a favor
da independência dos evangelhos extracanônicos, é preciso admi-
tir que textos como o Evangelho de Tomé (N H C 11,2), o Evangelho
de Pedro, o Diálogo do Salvador (N H C 111,5) ou a Epístola apócrifa de
Tiago (N H C 1,2) conservam tradições sobre Jesus que não derivam
dos evangelhos canônicos. Para explicar a multiplicação dos evan-
gelhos apócrifos durante esse período, é preciso admitir que nossos
evangelhos canônicos não estavam ainda revestidos de uma autori-
dade única.
O favor de que gozava a transmissão oral das palavras de Jesus
na primeira parte do século II ressalta claramente do testemunho de
Papias, bispo de Hierápolis, na Frigia. Papias viveu até mais ou me-
nos 140. Ele é o primeiro a mencionar explicitamente a existência de
evangelhos escritos. Suas notícias sobre Marcos e Mateus (Eusébio,
História eclesiástica 111,39,15-16) colocam problemas difíceis de inter-
pretação. Podemos ter certeza de que Papias conhecia o evangelho
de Marcos e se esforça para defendê-lo contra as críticas relativas à
sua ordem ou à sua qualidade literária. Ele conhece também um es-
crito “evangélico” composto por Mateus, que deve, sem dúvida, ser
identificado com o primeiro evangelho e não com a fonte dos logia.
Mas o interesse de Papias pelos evangelhos escritos não o impede,
por outro lado, de exprimir sua preferência pela tradição oral. Não
resta praticamente nada de sua obra em cinco livros intitulada Expli­

s Ver sobretudo Helmut KÓSTER, Synoptische Überlieferung bei den aposto-


lischen Vãtern, Berlin, Akademie Verlag, 1957.

578
História do cânon do N o vo Testamento

cações das palavras do Senhor (Λογιών‫ ׳‬κυριακών6 ‫׳‬ξηγήσ6ις), exceto


um extrato do prefácio citado por Eusébio:

"Se de qualquer parte vinha alguém que tinha estado em companhia dos
presbíteros, eu me informava das palavras dos presbíteros: o que tinham dito
André ou Pedro, ou Filipe, ou lom é, ou Tiago, ou João ou Mateus, ou qualquer
outro discípulo do Senhor; e o que dizem Aristion e o presbítero João, disci-
pulos do Senhor. Pois não achava que as coisas que vêm de livros fossem tão
úteis quanto as que vêm de uma palavra viva e duradoura” (Eusébio, História
eclesiástica III,39,4).

Esta passagem indica claramente que Papias recolheu as palavras


do Senhor, que eram o assunto de sua obra, ao pé dos portadores
da tradição oral, e não somente dos documentos escritos. Mas ele
não quer dizer que os livros são suspeitos ou mesmo rejeitados. O
próprio Papias comporá um. Além do mais, não se deve exagerar a
oposição entre livros e palavra viva; ela apenas retoma uma idéia,
bem atestada na cultura ambiente, nos contextos em que se trata de
aprendizagem de um ofício, ou de um saber intelectual; os livros são
úteis, mas nada substitui a relação viva com um mestre6.

Marcião: quando o Evangelho se torna livro


Com Marcião, a ruptura com o reino da tradição oral é clara. Ele
é, sem dúvida, o primeiro a ter dado ao termo βύαγγέλιον um senti-
do literário: quando Paulo, em suas cartas, fala de “o Evangelho” ou
de “meu Evangelho”, ele não se refere a um livro particular.
Marcião, rejeitado como herético, em 144, pela Igreja de Roma,
criou sua própria Igreja, que devia subsistir durante muitos sécu-
los. A seus olhos, o cristianismo está fundado sobre uma reve-
lação nova, vinda de um Deus de amor, Pai de Jesus Cristo, que
não tem nada de comum com o Deus justo e vingativo do Antigo

6 Ver Loveday C. ALEXANDER, The Living Voice: Scepticism towards the


Written Word in Early Christian and in Graeco-Roman Texts, in David J.
A. CLINES (ed.), The Bible in Three Dimensions, Sheffield, JSOT Press,
1990,221-247.

579
A história do cânon

Testamento. O ensinamento de Cristo e o das Escrituras judaicas


são, portanto, incompatíveis. Para Marcião, Paulo é o único após-
tolo que compreendeu essa doutrina nova. Os únicos escritos que
a conservam são as epístolas de Paulo e o evangelho de Lucas,
discípulo de Paulo. Mas esses mesmos escritos foram falsificados
pelos apóstolos, ficando ligados ao Deus dos judeus; seu texto
deve ser cuidadosamente revisto e expurgado dessas interpola-
ções judaizantes.
Qual foi a influência de Marcião na formação do cânon do Novo
Testamento? A questão permanece em debate. A opinião tradicio-
nal, que remonta aos Padres da Igreja, é que Marcião criou seu câ-
non ao operar uma seleção no cânon mais extenso da Igreja. Mas
a relação cronológica deve, certamente, ser invertida: o cânon de
Marcião precedeu o da Igreja. Segundo Harnack, essa prioridade
no tempo implica que Marcião desempenhou um papel decisivo: a
própria idéia de um cânon, de uma coleção limitada de Escrituras
cristãs, nasceu com ele; a Igreja, ao definir seu Novo Testamento,
não fez mais do que retomar ou desenvolver uma idéia marcionita
para melhor se opor a Marcião. Nessa mesma linha, várias carac-
terísticas do cânon da Igreja foram atribuídas à influência de Mar-
cião: a adoção da estrutura bipartida “Evangelho-apóstolo”, o lugar
importante dado às cartas de Paulo e a criação de um contrapeso
a Paulo pela inclusão de escritos de outros apóstolos. Hoje, entre-
tanto, insiste-se mais no fato de que os elementos em questão já
existiam antes de Marcião e se desenvolveram independentemente
dele. E o caso, particularmente, da estrutura bipolar, já discernível
nos escritos do Novo Testamento7, ou o da reconhecida importância
das cartas de Paulo, já atestada antes de Marcião por sua circulação
em forma de coleções8. A iniciativa de Marcião não foi, portanto, a
causa primeira da criação do cânon, mas sem dúvida contribuiu para
acelerar o processo.

7 Ver François BOVON, La strucure canonique de 1’Évangile et de 1’Apôtre,


Cristianesimo nella storia 15 (1994) 550-576.
8 Ver abaixo p. 589-592, e nota 9.

580
H istória do cânon do N o vo Testamento

Justino: as ‘‘M emórias dos apóstolos”. Seu uso litúrgico ao lado do


Antigo Testamento
O testemunho de Justino Mártir marca uma etapa importante
na evolução que conduziu à canonização do quádruplo evangelho.
Em suas obras conservadas, o Diálogo com Trífon, o judeu, e as duas
Apologias, escritas em Roma entre 150 e 160, Justino fornece diver-
sos dados novos.
Primeiramente, Justino utiliza um nome original para designar os
evangelhos: as “Memórias dos apóstolos” (τα άπομνημνημον6ύματα
των αποστόλων). A equivalência dos dois termos é claramente for-
mulada em !Apologia 66,3: “Os apóstolos, nas memórias que vêm
deles e que chamamos de evangelhos, contam que lhes foi ordenado
que fizessem assim” (segue-se a evocação das palavras da institui-
ção da ceia). A origem do termo άπομνηον^ύματα é discutida. Uma
explicação provável é que ele foi escolhido para sublinhar o valor dos
evangelhos enquanto documentos escritos e para responder às ne-
cessidades da polêmica contra os gnósticos (treze das quinze ocor-
rências são concentradas em uma seção do Diálogo, § 98-107, onde
Justino volta a empregar um comentário anterior do Salmo 22, com
intenção antignóstica).
Em segundo lugar, Justino é o primeiro a refletir claramente uma
situação em que vários evangelhos são simultaneamente conhecidos
e valorizados num mesmo meio. Mas a questão de seu número e de
seu estatuto permanece muito debatida:

Justino conheceu ou não uma coleção que reunia os quatro evangelhos que
se tornarão canônicos? Em caso afirmativo, atribuiu-lhes uma autoridade ex-
clusiva? Justino cita frequentemente Mateus e Lucas, e uma vez Marcos (Mc
3,17 em Diálogo 106,3). E João? Cita ele João 3,3.5 em I Apologia 61,4 ou João
1,19 s. em Diálogo 88,7? As opiniões estão divididas. Dependem da resposta
a uma questão mais ampla: Justino dispõe de outras fontes, além dos evange-
Ihos canônicos, quando cita as tradições sobre Jesus? Com efeito, trata-se de
explicar a presença nele de alguns agrapha (Diálogo 35,3; 47,5), de detalhes
não-canônicos sobre a paixão (Diálogo 101,3; !Apologia 38,8) e, sobretudo,
do fato de que as palavras que ele cita divergem freqüentemente das formas
atestadas em Mateus e Lucas. Vários tipos de explicações têm sido propostas:
citações feitas de memória (mas as divergências são muito mais freqüentes

581
A história do cânon

do que quando Justino cita o Antigo Testamento); influência da tradição oral;


utilização de um Evangelho não-canônico (como o Evangelho de Pedro)·, uti-
lização de uma harmonia dos evangelhos anterior à de "laciano; utilização de
uma compilação harmonizante de palavras de Jesus para uso catequético, com
base em Mateus e Lucas. O problema não recebeu, realmente, resposta satis-
fatória. Que Justino tenha tido à sua disposição uma coleção dos quatro evan-
gelhos canônicos é pouco provável. Que ele tenha atribuído uma autoridade
normativa a esse único evangelho quádruplo parece excluído.

Em terceiro lugar, Justino nos oferece o testemunho mais antigo


sobre a utilização litúrgica dos evangelhos, ao lado do Antigo Testa-
mento. “No dia que chamamos de dia do sol, todos, quer morem na
cidade ou no campo, se reúnem num mesmo lugar, e se lêem as Me-
mórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas enquanto o tempo
o permitir. Depois, quando o leitor termina, o que preside toma a
palavra para nos dirigir conselhos e nos exortar a imitar esses belos
ensinamentos. Em seguida, nos levantamos todos juntos e rezamos
em voz alta...” (/ Apologia 67,3-5).
Dessa preciosa descrição do culto dominical, guardar-se-á o fato
de que os evangelhos ocupam o mesmo lugar que as Escrituras an-
tigas; eles são lidos publicamente na assembléia e servem de base
para a homília que se segue. Colocados no mesmo plano que o An-
tigo Testamento, os escritos apostólicos adquirem uma nova digni-
dade, um estatuto de Escritura sagrada. Vê-se, assim, que a leitura
litúrgica é um fator muito importante no processo de delimitação
do cânon. E o que confirma a passagem do Fragmento de Muratori
relativa ao Pastor de Hermas (I. 77-80): a obra é boa para ler, mas
não deve ser admitida entre os livros que são lidos em público por
ocasião do culto; ela não pode ter lugar "nem entre os profetas, cujo
número está completo, nem entre os apóstolos, que estão no fim
dos tempos”.

O Diatessaron de Taciano
Taciano, nascido na Síria de pais pagãos e convertido ao cristia-
nismo, em Roma, sob a influência de Justino, é o autor de um Dis-
curso aos gregos, requisitório apaixonado contra o helenismo pagão.

582
H istória do cânon do N ovo Testamento

Mas seu nome é sobretudo associado à composição do Diatessaron,


obra que mistura os quatro evangelhos num único relato coerente e
contínuo. Taciano o redigiu provavelmente em grego, em Roma, por
volta de 170, antes de voltar para a Síria e lá fundar o movimento
ascético dos encratistas, que será tachado de herético. Infelizmente,
a harmonia de Taciano está perdida e não pode ser reconstituída, a
não ser fragmentariamente a partir de fontes secundárias, de origem
oriental (como o Comentário do Diatessaron redigido no século IV
por Efrem, o Sírio) ou ocidental (por exemplo o códice Fuldensis da
Vulgata, ou a Harmonia de Liège em holandês-médio).
O Diatessaron de Taciano é um fenômeno muito interessante
do ponto de vista da história da canonização dos evangelhos. Ele
é o testemunho mais antigo de uma utilização conjunta dos quatro
evangelhos. Deve-se daí concluir, como freqüentemente se tem fei-
to, que eles formavam uma coleção canônica na época de Taciano?
Várias observações se opõem a tal conclusão. Há, primeiramente,
o tratamento a que Taciano submete suas fontes. A liberdade com
que fundiu, em um relato novo, a substância dos quatro evangelhos
indica que eles não tinham, a seus olhos, um valor único e exclusivo.
Ele fez com suas fontes o que Mateus e Lucas tinham feito com
Marcos. Em seguida, é preciso destacar que os materiais reunidos
no Diatessaron não provêm exclusivamente dos evangelhos canô-
nicos, mas que Taciano extraiu também de outras fontes. Enfim, o
sucesso da obra é significativo: o Diatessaron, longe de suscitar opo-
sições, gozou de uma grande popularidade e se impôs, durante mais
de dois séculos, como “o Evangelho” das Igrejas de língua siríaca.
Se ele foi tão amplamente recebido é porque oferecia uma resposta
ao problema levantado para a Igreja antiga pela existência de uma
pluralidade de evangelhos.

A s resistências à pluralidade dos evangelhos


A adoção de um cânon de quatro evangelhos não decorreu natu-
ralmente. Forças poderosas atuando em outras direções estiveram
em ação durante os dois primeiros séculos. A tendência a se concen-
trar em um único evangelho não cessou de se manifestar.

583
A história do canon

Originalmente, cada um dos evangelhos que se tornaram canô-


nicos foi redigido para se bastar a si mesmo; visava tornar-se o texto
de referência para determinada comunidade ou determinado gru-
po de comunidades. Assim, Mateus ou Lucas foram escritos para
substituir Marcos, e não para lhe servir de complemento. Da mes-
ma forma, João — quer tenha ou não conhecido a existência dos
sinóticos — foi certamente redigido para ser reconhecido como o
único testemunho autêntico sobre Jesus. Num primeiro período,
cada evangelho deve ter sido transmitido e utilizado individualmen-
te numa comunidade ou numa dada região. Quando vários evange-
Ihos começaram a circular e a ser conhecidos juntos, numa mesma
Igreja, isso foi uma inovação, que pode ter parecido para alguns uma
ruptura com o uso recebido.
A preferência por um evangelho único é ilustrada pela escolha
de Marcião, que só reconhecia como autêntico uma versão revisa-
da de Lucas. Manifesta-se também naqueles que, como Taciano e
outros, empreenderam harmonizar os diversos relatos evangélicos
em um só.
A resistência à canonização dos quatro evangelhos encontrou,
naturalmente, com que se alimentar na constatação das diferenças
que os separam. Apoiou-se especialmente no modo muito diferente
pela qual começam. Os defensores do evangelho quádruplo tive-
ram de responder a essas críticas, como o mostram o Fragmento de
Muratori (1.16-20) e Ireneu (Contra as heresias 111,9,1-11,7). Os dois
insistem no fato de que, malgrado a diversidade de seus “começos”
(principia), os quatro evangelhos comunicam uma mesma doutrina
e são expressão de um mesmo Espírito.
O Fragmento de Muratori reflete também os ataques de que foi
objeto o evangelho de João, em fins do século II, da parte dos ad-
versários do montanismo. A seus olhos, o livro não foi escrito pelo
apóstolo João, mas pelo herético Cerinto. No Fragmento, o relato
das circunstâncias extraordinárias da redação do evangelho tem por
objetivo refutar esses ataques: João escreveu sob seu próprio nome,
mas com a aprovação de todos os seus condiscípulos (1.10-16). Não

584
H istória do cânon do N o vo Testamento

é possível, portanto, rejeitar seu testemunho usando como argu-


mento as divergências entre seu relato e o dos outros evangelistas.

1.2. A s cartas de Paulo: de um auditório particular para a


Igreja universal
Três pontos retêm a atenção na seção do Fragmento de Muratori
relativa às cartas de Paulo. 1) O Fragmento atesta a existência de
uma coleção canônica de treze cartas paulinas (a ausência da epís-
tola aos Hebreus é típica da Igreja do Ocidente). O que sabemos da
maneira pela qual essa coleção se constituiu e das formas que ela
pôde assumir? 2) O Fragmento insiste no fato de que as cartas têm
por destinatária a Igreja universal. Paulo escolheu escrever a sete
Igrejas para mostrar que queria se dirigir a todas (simbolismo do nú-
mero sete); mesmo quando escreveu a indivíduos, tinha em mente
a Igreja católica. Temos aí o eco do problema posto pelo caráter par-
ticular do endereço das cartas de Paulo, no correr do processo que
conduziu à sua canonização. 3) O Fragmento enumera as cartas às
sete Igrejas na ordem em que Paulo as escreveu. Essa ordem chama
a atenção para a estrutura do corpus paulino e para os diversos ar-
ranjos atestados na tradição manuscrita e nas fontes patrísticas.

Quando e como foram reunidas as cartas de Paulo?


Na falta de dados suficientes, a reconstituição dos começos da
história das cartas paulinas e da formação do corpus pertence ao do-
mínio da hipótese. Sem entrar no detalhe das diversas teorias pro-
postas, reteremos os elementos a seguir.
Vários indícios mostram que as cartas de Paulo devem, muito
cedo, ter circulado e sido lidas em outras comunidades além daque-
las a que foram originalmente dirigidas. Os endereços de algumas
delas foram retocados no sentido de as universalizar (Rm 1,7.15;
ICor 1,2). O fato mesmo de terem sido compostas cartas pseudepi-
gráficas (Colossenses, Efésios, 2 Tessalonicenses, as pastorais) im-
plica também uma circulação ampla e um reconhecimento das car-
tas autênticas fora de seu lugar original de destino. Uma nova carta

585
A história do cânon

de “Paulo” só podia ser recebida como tal em um meio onde outras


já tinham circulado. O intercâmbio de cartas entre colossenses e
laodicenses, recomendado em Colossenses 4,16, pressupõe que o
autor conhecia semelhante prática ou queria encorajá-la. Tudo isso
se opõe, claramente, à hipótese segundo a qual as cartas de Paulo
teriam caído no esquecimento depois da morte do apóstolo — o que
explicaria o silêncio dos Atos a seu respeito — e só teriam sido postas
em circulação no fim do século I, graças a uma iniciativa individual.
A reunião das cartas de Paulo e sua inserção numa coleção não
devem ser separadas de outros aspectos da recepção da herança
paulina: o trabalho redacional que marca algumas cartas e a pro-
dução de cartas pseudepigráficas. Essas diversas atividades devem
ser compreendidas como elementos de um mesmo projeto, que é a
iniciativa de um grupo de pessoas e teve lugar no tempo. A hipótese
mais verossímil é a que postula a existência de uma escola pauli-
na, interessada em conservar e fazer frutificar a herança de Paulo.
Compreendemos melhor a existência dessa escola se a inscrevemos
na continuidade do grupo de colaboradores que auxiliaram o após-
tolo, durante sua vida, na realização de sua missão. Nada impede de
pensar que o trabalho de reunião das cartas de Paulo tenha começa-
do logo depois da morte do apóstolo.
Quais são os traços mais antigos da existência de uma coleção rea-
grupando o corpus paulino? Clemente de Roma e Inácio de Antioquia,
na passagem do século I para ο II, conheciam, seguramente, várias
epístolas paulinas, mas é difícil precisar seu número e saber se eles as
liam numa coleção. Um pouco mais tarde, quando o autor de 2 Pedro
fala de “todas as cartas” do "amado irmão Paulo” (2 Pd 3,15 s.), é pro-
vável que a expressão designe um conjunto já constituído. Mas é com
Marcião, por volta de 140, que a existência de uma coleção e de uma
edição das cartas de Paulo é atestada de maneira segura.

Marcião e as primeiras edições do corpus paulino


O corpus paulino de Marcião compreendia dez cartas, arranjadas
na seguinte ordem (conforme o livro V do Contra Marcião de Tertu-
liano): Gálatas, 1-2 Coríntios, Romanos, l-2Tessalonicenses, Efésios

586
H istória do cânon do N o vo Testamento

("Laodicenses”, segundo Marcião), Colossenses, Filipenses, Filêmon.


Na opinião de alguns, Marcião teria sido o primeiro a ter reunido e
editado a herança literária de Paulo. Na ordem da coleção tem-se,
frequentemente, visto também um reflexo da teologia de Marcião, já
que ele dá o primeiro lugar a Gálatas, a carta em que se exprime mais
claramente a oposição entre cristianismo e judaísmo. Hoje essas opi-
niões estão abaladas, na medida em que a pesquisa estabeleceu que
Marcião repetiu o conteúdo e a ordem de uma edição anterior.
Dois arranjos das cartas de Paulo, correspondentes a duas edi-
ções diferentes do corpus paulino, foram postos em evidência pela
pesquisa, a partir de uma comparação entre os dados dos manuscri-
tos e os documentos da época patrística que enumeram as cartas do
apóstolo9. Nos dois casos, a ordem foi determinada por um mesmo
princípio, o do comprimento decrescente das cartas — com a di-
ferença proveniente da maneira de tratar as cartas dirigidas a uma
mesma Igreja (1-2 Cl e 1-2 Ts).

Uma das edições — sem dúvida a mais antiga — era baseada na simbólica do
número sete (Paulo, escrevendo a sete Igrejas, dirige-se à Igreja universal; ver o
Fragmento de Muratori) e contava as cartas duplas como uma única unidade.
A ordem era a seguinte; 1-2 Coríntios, Romanos, Efésios, 1-2 Tessalonicenses,
Gálatas, Filipenses, Colossenses (Filêmon podia estar junto com Colossenses;
a inclusão das pastorais é muito duvidosa). Noutra edição, as cartas dirigidas à
mesma comunidade eram contadas separadamente, e a ordem era praticamen-
te a que se tornou canônica (única diferença: Gálatas agora precede Efésios):
Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Efésios, Gálatas, Filipenses, Colossenses, 1
Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, com as cartas pessoais em seguida, como
na ordem canônica.
A originalidade da edição de Marcião — com a ordem Gálatas, 1-2 Corín-
tios, Romanos no início — reencontra-se, no século IV, em duas testemunhas
siríacas — o comentário das epístolas de Paulo de Efrém e uma lista canônica
encontrada no Sinai10 — que refletem a ordem de uma antiga versão siríaca do

9 Ver Herman Josef FREDE, Die Ordnung der Paulusbriefe und der Platz des
Kolosserbriefs 1m Corpus Paulinum, in Vetus latina. Die Reste der altlateinischen
Bibel, Freiburg, Herder, 1969, 24/2, 290-303; Nils Alstrup DAHL, The Origin
of the Earliest Prologues to the Pauline Letters, Semeia 12 (1978) 233-277.
‫ז‬° Ver Alexandre SOUTER, The Text and Canon o f the New Testament, Lon-
don, Duckworth, 1912, 184.

587
A história do canon

corpus paulino. A ordem da siríaca não parece devida à influência de Marcião.


Nesse caso, a colocação de Gálatas no início da coleção deve ser anterior a
Marcião; não reflete uma parcialidade teológica, mas responde, sem dúvida,
ao cuidado de dispor as cartas em ordem cronológica.

2. Os LIVROS CONTESTADOS: AS DIVERSAS VIAS PARA O


FECHAMENTO DO CANON
Em sua primeira parte, o Fragmento de Muratori menciona todos
os livros que constituem o núcleo sólido do Novo Testamento, no
fim do século II, com uma única exceção: I Pedro. Ora, essa epístola
faz parte dos livros plenamente reconhecidos na época mesma do
Fragmento, em Ireneu e Tertuliano. Esse silêncio é, portanto, muito
espantoso. Possivelmente se explica da seguinte maneira: na parte
perdida do início, o texto devia apresentar Marcos como discípulo
de Pedro (cf Papias) e citar, em apoio dessa filiação, 1 Pedro 5,13 ("A
comunidade dos eleitos que está em Babilônia vos saúda, bem como
Marcos, meu filho”). O versículo em questão foi utilizado da mesma
maneira que 1João 1,1.3-4, que serve para confirmar a credibilidade
do evangelho de João (1.26-33). É possível, aliás, que esse recurso a
1 Pedro 5,13 em relação com a redação de Marcos remonte a Papias,
como parece sugerir Eusébio em História eclesiástica 11,15,2.
Chegamos, agora, aos livros contestados, cujo lugar no cânon só
se impôs muito tardiamente. O Fragmento de Muratori testemunha
as hesitações que marcaram o processo de canonização das epís-
tolas católicas — com exceção de I João e de 1 Pedro — tanto no
Oriente como no Ocidente. Ele passa em silêncio Tiago e as duas
cartas de Pedro. Menciona, é certo, Judas e as duas cartas “inscritas
em nome de João” (2 e 3 João), mas para sugerir que a recepção
desses escritos na “Igreja católica” não decorria naturalmente, que
sua atribuição a autores apostólicos era controvertida. Essas cartas
são “consideradas” ou “conservadas na Igreja católica (in catholica
habentur) tal como a Sabedoria escrita pelos amigos de Salomão,
em sua honra” (1. 68-71). O que vale para a Sabedoria vale também
para as cartas apostólicas: a Igreja pode “receber” um livro, tê-lo em
estima, mesmo que não tenha sido composto pelo autor cujo nome

588
História do cânon do N o vo Testamento

traz, mas por “amigos”, pessoas habilitadas a falar em seu lugar e


movidas por motivos “dignos”. A ausência da epístola aos Hebreus
no Fragmento de Muratori é um sinal de sua difícil recepção no Novo
Testamento da Igreja do Ocidente.

2.1. A delimitação do cânon na Igreja grega


A partir do século 111, vários traços marcantes sobressaem na his-
tória do cânon da Igreja grega: o esforço de Eusébio para, apoian-
do-se em Orígenes, classificar os escritos antigos em relação ao seu
grau de aceitação na Igreja; a tomada de posição oficial de Atanásio
de Alexandria, fixando, pela primeira vez, um cânon de 27 livros;
o questionamento do Apocalipse e a persistente resistência à sua
recepção na Igreja grega.

Orígenes
O grande teólogo alexandrino (185-254), graças à amplidão de
suas leituras e a suas numerosas viagens, conhecia os usos das di-
ferentes Igrejas e a diversidade de textos que elas recebiam. Em
História eclesiástica VI,25,3-12, Eusébio reuniu várias passagens
em que Orígenes fala dos livros do Novo Testamento. E claro que
Eusébio não encontrou em Orígenes uma verdadeira lista dos es-
critos do Novo Testamento, que teria sido o equivalente do catálo-
go dos livros do Antigo Testamento que ele reproduziu logo antes
{História eclesiástica VI,25,1-2). Não há, portanto, propriamente
falando, um "cânon de Orígenes”. Mas encontram-se em sua obra
os elementos de uma classificação tripartida, que Eusébio vai reto-
mar por sua conta: I) os livros recebidos por toda parte ou incontes-
tados (ομολογούμεva ou αναντίρρητα); 2) os livros controvertidos
(αμφιβαλλόμενα); 3) os livros falsos (ψευδή). A primeira categoria
reagrupa os quatro evangelhos, treze cartas de Paulo, I Pedro, I
João, Atos e Apocalipse. Os livros da segunda categoria são aqueles
a propósito dos quais Orígenes se fez eco de uma dúvida: 2 Pedro e
3 João, Hebreus (segundo Eusébio, VI,25,8-12.), bem como Tiago
{Comentário sobre João XX, 10) e Judas {Comentário sobre Mateus

589
A história do canon

XVI1,30). O terceiro grupo abrange os livros rejeitados por serem


redigidos pelos heréticos, como os evangelhos dos Egípcios, de Basi-
lide, de Tomé ou de Matias (ver Homília Isobre Lucas).

Eusébio de Cesaréia
A História eclesiástica de Eusébio, que teve várias redações entre
304 e 325, é um documento capital para a história do cânon. Ela é
o resultado de uma pesquisa sistemática do bispo de Cesaréia, que
recolheu particularmente tudo o que concernia ao uso dos textos
cristãos antigos nos escritores do passado e na Igreja de seu tempo.
Em sua História eclesiástica 111,25, Eusébio nos dá um testemunho
de suma importância sobre a situação que prevalecia no mundo gre-
go no início do século IV (texto reproduzido no boxe a seguir).
O texto de Eusébio, que foi interpretado de maneiras diversas, pa-
rece, na verdade, distinguir, depois de Orígenes, três grandes catego-
rias de escritos: 1) os livros reconhecidos por todos (ομολογούμε va);
2) os livros contestados (αντιλεγόμενα); 3) os livros dos heréticos.
Há uma nítida fronteira entre a terceira categoria, ligada à heresia,
e as duas primeiras, que têm em comum o fato de se inscreverem
na tradição eclesiástica ortodoxa. A dificuldade que se encontra no
texto é a distinção que Eusébio parece introduzir no interior da ca-
tegoria dos livros contestados. Ele apresenta, sucessivamente, duas
listas: 2a) os livros contestados “mas recebidos, no entanto, pela
maioria” (γνώριμα δ’ ούν όμως τοις πολλοις); 2b) os livros contes-
tados e inautênticos "de pai desconhecido” (νόθοι). Na realidade, os
dois subgrupos se distinguem apenas .por um grau maior ou menor
de aceitação; eles se opõem aos livros reconhecidos por todos. E
isso que explica a dupla menção do Apocalipse de João nos textos
de Eusébio: alguns o colocam entre os livros incontestados e outros
o rejeitam classificando-o entre os livros “bastardos”.
A comparação entre a notícia de Eusébio e o Fragmento de Mu-
ratori revela pontos comuns, que indicam que a situação não mu-
dara muito entre o fim do século II e o início do século IV. O “nú-
cleo resistente” dos escritos incontestados é quase o mesmo: quatro

590
H istó ria d o cân o n d o N ovo T esta m en to

evangelhos, Atos, cartas de Paulo, I João, I Pedro. O estatuto das


cinco outras epístolas católicas permanece sempre incerto. A classi-
ficação de Eusébio é próxima da que podemos extrair da análise do
Fragmento de Muratori: 1) livros recebidos sem discussão; 2) livros
recebidos, mas que se prestam à discussão, seja 2a) admitidos para
a leitura litúrgica, seja 2b) não admitidos para a leitura litúrgica; 3)
livros excluídos por serem heréticos.
Mas é preciso também destacar as diferenças. E certo que Eu-
sébio, quando menciona “as epístolas de Paulo", inclui, implícita-
mente, a epístola aos Hebreus, o que é conforme ao uso unânime
das Igrejas do Oriente. Ele se faz eco, também, das divergências de
opinião dessas mesmas Igrejas orientais a respeito do Apocalipse de
João. Em sua classificação, o historiador do século IV utiliza termos
técnicos. A categoria dos livros contestados é mais ampla do que
nos Fragmentos: encontram-se aí o Pastor de Hermas e o Apocalip-
se de Pedro, mas são juntados a eles os Atos de Paulo, a epístola de
Barnabé, a Didaché, bem como o evangelho dos Hebreus. Os escri-
tos citados para ilustrar os livros “absurdos e ímpios” dos heréticos
(evangelhos e Atos dos apóstolos apócrifos), sem equivalente no
Fragmento, não devem ser postos na conta de um conhecimento
direto de Eusébio, mas provêm de suas fontes.*(I)

Eusébio de C esaréia*

(História eclesiástica 111,25,1-7)


“Os livros reconhecidos
(I) Neste ponto, parece-nos razoável recapitular os escritos do Novo Testa-
mento que foram assinalados. E, certamente, é preciso colocar em primeiro
lugar a sagrada tétrade dos evangelhos, a que se segue o livro dos Atos dos
apóstolos. (2) Depois deste, convém inscrever as epístolas de Paulo, em segui-
da das quais se deve ratificar a que é conhecida como primeira de João, e do
mesmo modo a epístola de Pedro. Depois desses escritos, deve-se colocar, se
parecer conveniente, o Apocalipse de João, a respeito do qual exporemos as
(diversas) opiniões em tempo oportuno.
(3) Esses aí (devem ser colocados) entre os livros reconhecidos.
* (Segundo a tradução de J.-D. Kaestli, inspirada em parte em M.-J.
LAGRANGE, Histoire ancienne du cânon du Nouveau Testament, Paris,

591
A história do cânon

Gabalda, 1933, 106-107, e em G. BARDY, Sources Chrétiennes 31, Pa-


ris, Cerf 1952, 133-134.)
Os livros contestados e conhecidos da maioria
Entre os livros contestados, mas, contudo, conhecidos da maioria, temos a
epístola chamada de Tiago, a de Judas, a segunda de Pedro, e as que nomea-
mos a segunda e a terceira de João, quer sejam do evangelista ou de um outro
que tinha o mesmo nome.
Os outros livros contestados e inautênticos
(4) Entre os inautênticos (νόθοι: bastardos, de pai desconhecido) devem-se
classificar também os Atos de Paulo, aquele que chamamos o Pastor, o Apoca-
lipse de Pedro, e além desses a epístola que temos de Barnabé, e o que é cha-
mado de Ensinamentos dos Apóstolos; e ainda, como eu disse, o Apocalipse
de João, se isso parecer conveniente; alguns, como eu disse, o rejeitam, mas
outros decidem admiti-lo entre os livros reconhecidos.
(5) Entre esses mesmos livros, alguns igualmente colocaram o evangelho se-
gundo os Hebreus, no qual encontram particular alegria aqueles entre os he-
breus que aceitaram Cristo.
Em face dos livros que pertencem a tradição da Igreja, os livros dos heréticos
(6) Todos esses são do número dos livros contestados. Pareceu-nos, no entan-
to, necessário fazer uma lista distinguindo os escritos que, segundo a tradição
eclesiástica, são verdadeiros, não forjados e reconhecidos, e os escritos que,
diferentemente deles, não são testamentários, mas contestados e, contudo,
conhecidos da maioria dos (autores) eclesiásticos; (fizemos isso) a fim de que
sejamos capazes de distinguir esses mesmos escritos e aqueles que, entre os
heréticos, são apresentados sob o nome dos apóstolos e que contêm evange-
Ihos ditos de Pedro, de "íomé, de Matias e de outros ainda ao lado deles, ou dos
Atos ditos de André, de João e de outros apóstolos.
O que permite reconhecer os livros fabricados pelos heréticos
Desses escritos, jamais nenhum daqueles que pertencem à sucessão dos au-
tores eclesiásticos julgou conveniente fazer a menor menção numa obra. (7)
Além disso, o caráter do estilo se afasta do uso apostólico; o pensamento e a
tendência de seu conteúdo estão em completo desacordo com a verdadeira
ortodoxia e mostram claramente que são escritos forjados por heréticos. Por
conseqüência, não se deve nem mesmo classificá-los entre os livros inautênti-
cos, mas deve-se rejeitá-los como completamente absurdos e ímpios.”

Atanásio de Alexandria: a primeira lista completa dos 2 7 livros


A 39a Carta Festiva de Atanásio, datada de 367, marca uma
etapa decisiva na história do cânon, porque pela primeira vez dá

592
H istó ria d o cân o n d o N ovo T esta m en to

a lista completa dos 27 livros do Novo Testamento. Nessa carta


encíclica às Igrejas do Egito, o bispo de Alexandria estabelece a
lista das Escrituras “canonizadas” do Antigo e do NovoTestamen-
to. Uma vez enumeradas essas Escrituras, Atanásio sublinha seu
estatuto canônico: “São essas as fontes da salvação, de maneira
que o homem sedento pode beber à saciedade as palavras que aí se
encontram; só por elas pode a doutrina da piedade ser anunciada;
que ninguém lhes acrescente, nem lhes retire seja o que for (cf Dt
4,2; Ap 22,18 s.)‫״‬.
Depois de ter assim definido, claramente, os limites do cânon,
Atanásio ainda acrescenta: “Mas, para maior exatidão, sou obri-
gado a acrescentar isto, também, à minha carta, que há outros li-
vros fora desses, que não são canonizados, mas cuja leitura o uso
recebido dos pais prescreve aos iniciantes que querem receber o
ensino catequético da verdadeira religião: a Sabedoria de Salomão
e a Sabedoria de Sirac e Ester e Judite e Tobias e aquela que cha-
mamos de a Doutrina dos apóstolos e o Pastor. Entretanto, meus
caros, nem entre os livros canonizados (κανονίζομεva), nem entre
os livros a serem lidos (άναγινωσκόμενα), em nenhuma parte se faz
menção de algum livro apócrifo (απόκρυφα); esses aí são invenções
dos heréticos, que os escreveram quando bem quiseram, depois os
dotaram e enriqueceram de anos, a fim de que, ao produzi-los como
escritos antigos, tivessem uma aparência de verdade para enganar
as pessoas de fé íntegra”11.
A tomada de posição de Atanásio fez sentir seus efeitos no Egito
— talvez tenha estado diretamente na origem do enterramento dos
manuscritos coptas de Nag Hammadi, que deviam fazer parte dos
livros denunciados como “apócrifos”. Mas ela não se impôs em ou-
tras regiões da Igreja do Oriente. É o que mostra, particularmente,
o longo questionamento do Apocalipse.1

11 Tradução da Carta Festiva 39 de Atanásio em Jean-Daniel KAESTLI,


Otto WERMELINGER (éds.), Le canon de I’Ancien Testament. Sa forma-
tion et son histoire, Genève, Labor et Fides, 1984, 141-144. Ver também,
no mesmo volume, a apresentação da Lettre no artigo de Eric JUNOD,
124-130.

593
A história do cânon

O questionamento do Apocalipse e a resistência à sua canonização


na Igreja grega
Nos testemunhos do século II, o Apocalipse é regularmente ci-
tado como uma revelação do apóstolo João (p. ex. Justino, Diálogo
81,4; Ireneu, Contra as heresias V,5,2; V,26,l; V,30,3; Tertuliano, De
pudicitia 20; Fragmento de Muratori, 48-49). Mas a reação contra
o montanismo, que exaltava a profecia e a expectativa milenarista,
ocasionou uma rejeição dos apocalipses cristãos, o de João em par-
ticular. Encontra-se um eco dessa polêmica em um discípulo de Orí-
genes, Dionísio de Alexandria (bispo de 247 a 264). Uma obra de
Dionísio intitulada Sobre as promessas, que tratava do Apocalipse, é
citada longamente por Eusébio (História eclesiástica VI 1,25). Dioní-
sio conta que, no passado, esse livro foi rejeitado por alguns: “eles o
criticaram capítulo por capítulo, declarando que era ininteligível e in-
coerente, e que seu titulo era mentiroso”, que não era de João, mas
do herético Cerinto. O próprio Dionísio adota uma posição mais mo-
derada. Ele não ousa rejeitar um livro que “muitos dos irmãos têm
em grande apreço” e admite que seu autor era um homem santo e
inspirado por Deus. Mas afirma que seu conteúdo lhe é incompreen-
sível e, sem dúvida, esconde um sentido profundo. Dionísio demons-
tra, por outro lado, com a ajuda de uma análise rigorosa da língua e
das idéias, que o livro não é do apóstolo João, autor do evangelho e
da epístola católica, mas de um personagem do mesmo nome.
A rejeição do Apocalipse por reação contra o milenarismo mon-
tanista, substituída pela crítica da autenticidade, feita por Dionísio
de Alexandria, vai exercer uma influência durável na Igreja grega.
Os limites exatos do cânon não tinham estado claramente fixados
por uma decisão conciliar, ao contrário do que se tinha passado na
Igreja latina.

A incerteza que reinou sobre o lugar do Apocalipse no cânon é abundante-


mente atestada. Ela é evidente em Eusébio, na passagem já citada, na qual o
Apocalipse é colocado tanto entre os livros reconhecidos como entre os livros
inautênticos, acompanhado, de cada vez, pela fórmula “se parecer convenien-
te” (História eclesiástica 111,25,2.4). Vários dos catálogos de livros canônicos do
século IV não mencionam o Apocalipse: Cirilo de Jerusalém, Catequeses pré-

594
H istória do canon do N o vo Testamento

batismais IV,36 (350); canon 85 das Constituições apostólicas VI11.47 (c. 380).
Gregário de Nazianzo, Poemas 12,30-39 (c. 383-390). A lista em verso de An-
filóquio de Icônio (t 396), em seus lambos a Selêuco, menciona-o, explicando
que “alguns o aceitam, mas a maioria diz que ele é inautêntico (νόθος)”12*.Os
representantes da escola de Antioquia, João Crisóstomo (c. 347-407), Tèo-
doro de Mopsuéstia (t 428) ouTeodoro de Cyr (393-466) parecem realmente
ficar com um Novo Testamento de 22 livros, sem as quatro pequenas cartas
católicas e sem o Apocalipse, como a Peshitta (ver adiante).
A incerteza não foi dissipada pelo concilio In Trullo (692)1Jou concilio “Qui-
nisextum". Reconheceu-se, nessa ocasião, como normativa para a Igreja uma
série de documentos mais antigos que, de fato, estão em desacordo com o
cânon. A falta de clareza dessa decisão conciliar explica por que o estatuto in-
certo do Apocalipse deixou traços, por muito tempo ainda, na Igreja bizantina.
Sobre este ponto, o testemunho dos manuscritos é mais eloquente do que o dos
textos patrísticos ou conciliares. A contagem da representação das diferentes
partes do Novo Testamento no conjunto de manuscritos gregos enumerados
põe realmente em evidência a importância secundária do Apocalipse14;

Manuscritos (mss.) contendo o conjunto do NT grego: 59


Mss. contendo evangelhos - Atos + ep. cat. - ep. Paulo 149
Mss. e fragmentos de mss. dos evangelhos 2120
Mss. e fragmentos de mss. dos Atos + ep. cat. 447
Mss. e fragmentos de mss. das ep. Paulo 571
Mss. e fragmentos de mss. do Apocalipse 228

2.2. O encerramento do cânon da igreja latina


A fixação definitiva do cânon de 27 livros ocorreu, na Igreja lati-
na, mais cedo do que na grega. Ela foi sancionada por decisões con-
ciliares em boa e devida forma, tomadas especialmente por ocasião
dos sínodos regionais de Cartago, em 397 (confirmação de uma

12 Tradução desses catálogos em KAESTLI, WREMWLINGER, Le cânon de


ΓAncien Testament!, 140-141, 147-150.
‫“ גי‬Trullanum II”, recusado pelo papa Sérgio e considerado concilio ecumêni-
co pela Igreja grega. (N. daT)
14 Estatísticas do Institut fur neutestamentliche Textforschung de Münster,
em Kurt ALAND, Barbara ALAND, Der Text des Neuen Testaments. Ein-
fuhrung in die wissenschaftlichen Ausgaben sowie in Theorie und Praxis
der modernen Textkritik, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1982, 92.

595
A história do cânon

decisão do sinodo de Hipona em 393) e em 419. Mas até as ultimas


décadas do século IV o Novo Testamento dos latinos não continha
a epístola aos Hebreus, nem cinco das epístolas católicas (Tiago, 2
Pedro, 2 João, 3 João e Judas). Essa singularidade já é perceptível
no Fragmento de Muratori, que ignora Hebreus, Tiago e 2 Pedro, e
deixa entrever uma hesitação a propósito de 2 João, 3 João e Judas.
Ela sobressai muito claramente na análise das obras de Cipriano de
Cartago (metade do século III), que contêm numerosas citações
bíblicas. Cipriano cita todos os livros do Novo Testamento, salvo
Filêmon, Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 3 João e Judas (a ausência de
Filêmon deve ser acidental).

A epístola aos Hebreus


A difícil recepção dessa epístola no Ocidente se deve ao fato de
não ser considerada uma carta de Paulo — as Igrejas grega e siríaca,
ao contrário, desde muito cedo a colocaram no corpus paulino. Ire-
neu e Tertuliano a conhecem, mas não atribuem sua redação a Paulo
e a ela se referem de uma maneira que mostra que ela não gozava,
para eles, do mesmo valor que os livros que constituem o Novo Tes-
tamento. Tertuliano a cita uma vez como um escrito de Barnabé aos
hebreus (De pudicitia 20). Nos séculos III e IV, os autores latinos não
falam dela ou, se a citam, abstêm-se de atribuí-la a Paulo.
A reação contra o montanismo deve ter influído nessa rejeição
da epístola aos Hebreus no Ocidente. Ao afirmar que os pecados
cometidos depois do batismo não podiam ser perdoados, Hebreus
dava a impressão de justificar o rigorismo moral dos montanistas. A
dureza dessa posição não estava de acordo com as idéias e as práti-
cas penitenciais que predominavam na Igreja do Ocidente.
A mudança de atitude que permitiu a aceitação de Hebreus no
cânon é claramente devida à influência da Igreja grega. A quere-
Ia ariana foi a ocasião de uma aproximação dos defensores da or-
todoxia nos mundos grego e latino. Vários dos Padres latinos que
contribuíram para o reconhecimento da canonicidade da epístola
tiveram estadas prolongadas no Oriente (Hilário de Poitiers, Lúcifer

596
H istória d o c ân o n do N o v o T esta m en to

de Calaris, Jeronimo). Em 396, Agostinho, endossando o cânon de


Atanásio, faz a lista dos livros bíblicos e coloca Hebreus entre as
cartas de Paulo, mas em último lugar, depois de Filêmon (De doc-
trina Christiana II, 13). Em suas obras tardias, entretanto, ele toma
o cuidado de sempre citar Hebreus como um escrito anônimo. A
lista homologada pelo sínodo de Cartago (397) contém os 27 livros,
mas atesta ainda, por um detalhe, a hesitação da Igreja latina em
reconhecer a paternidade paulina de Hebreus: a menção das “treze
cartas de Paulo apóstolo” é seguida de um desajeitado “do mesmo,
uma aos Hebreus” (Epistulae Pauli Apostoli XIII, eiusdem ad Hebreos
una). A inclusão tardia de Hebreus no cânon da Igreja ocidental ilus-
tra bem o papel desempenhado pelo critério da origem apostólica: o
reconhecimento do estatuto canônico da epístola dependeu grande-
mente de sua integração no corpus das cartas de Paulo.

O corpus das epístolas católicas


Tiago e as quatro epístolas católicas (2 Pedro, 2 João, 3 João e
Judas) tiveram, na Igreja latina, um destino paralelo ao de Hebreus.
Esses escritos nunca foram citados por Cipriano e não fazem, ma-
nifestamente, parte de seu Novo Testamento. A situação começa a
mudar na segunda metade do século IV. O primeiro autor ocidental
a citar a epístola de Tiago é Hilário de Poitiers (360). Um catálogo
dos livros bíblicos, de origem africana e datado de mais ou menos 360
("cânon de Mommsen”, do nome de seu primeiro editor, conservado
nos mss. de Cheltenham e de Saint-Gall) enumera primeiramente os
quatro evangelhos (Mateus, Marcos, João e Lucas), treze epístolas
de Paulo, Atos, Apocalipse, depois três epístolas de João e duas de
Pedro (Hebreus, Tiago e Judas estão ausentes). Mas no ms. de Chel-
tenham as duas últimas notações são seguidas de una sola ("uma só”),
0 que exprime a objeção de um leitor que só aceitava como canônicas
1 João e I Pedro. O corpus das sete epístolas católicas, que figura em
bom lugar nas lista de Jerônimo e de Agostinho, será definitivamente
avalizado pelos sínodos africanos de 393, 397 e 419.

597
A história do canon

Os apócrifos
Em face dos escritos que gravitaram, por algum tempo, em torno
do Novo Testamento (alguns Padres apostólicos e escritos apócri-
fos), a Igreja latina teve, geralmente, uma atitude mais restritiva do
que a Igreja grega. O Ocidente era menos pronto a reconhecer um
valor espiritual nos escritos situados à margem do cânon, e não era
muito sensível às nuanças que caracterizam a classificação dos livros
em Orígenes ou em Eusébio. Mas a literatura apócrifa nem por isso
foi eliminada do Novo Testamento dos latinos. Até o fim da Idade
Média, a epístola aos Laodicenses continuou a ser copiada com as
cartas de Paulo em um grande número de manuscritos da Vulgata.

2.3. A evolução particular do cânon das Igrejas da Síria


As Igrejas da Síria oriental, na região do Eufrates, ocupam um
lugar à parte na história dos primeiros séculos cristãos, que se tra-
duz especialmente na maneira de definir o conteúdo do Novo Tes-
tamento. O cristianismo estabeleceu-se nessa região por volta da
metade do século II, numa época em que o reinado de Oshroene,
com Edessa por capital, era ainda politicamente independente do
império romano. Teve, assim, um desenvolvimento original, relati-
vamente pouco influenciado pelos outros centros da cristandade.
Essa particularidade foi reforçada pela prática do siríaco, diferente
do uso na Síria ocidental (Antioquia), onde predominavam a língua
e a cultura gregas.
A definição singular do Novo Testamento no seio da Igreja siríaca
é claramente expressa na Doutrina de Addai, que data do início do
século V e conta a história lendária da fundação da Igreja de Edessa
por Addai, um enviado do apóstolo Tomé. Em seu discurso de des-
pedida, Addai define assim o cânon dos livros destinados à leitura
litúrgica: “A Lei, os Profetas e o evangelho que ledes cada dia, diante
do povo, as cartas de Paulo que Simão Pedro nos enviou de Roma,
os Atos dos doze apóstolos que João filho de Zebedeu nos enviou
de Efeso, lede todos esses nas Igrejas de Cristo. Não leais nenhum
outro, porque não há nenhum outro, depois desses, em que esteja

598
H istó ria do c ân o n do N o v o T esta m en to

escrita a doutrina que abraçais: só há esses livros, que vos perten-


cem com a fé pela qual fostes eleitos”1516.
O emprego do singular (“o evangelho”) indica o estatuto canôni-
co do Diatessaron de laciano, na Igreja siríaca, em vez e no lugar dos
quatro evangelhos. Isso é explicitamente confirmado numa outra
passagem da Doutrina de Addai: “Um povo numeroso, dia após dia,
se reunia e vinha para a reza do ofício, [a leitura] do Antigo Testa-
mento e do Novo, o Diatessaron”'6. Esse amplo reconhecimento da
harmonia evangélica de laciano, no espaço siríaco, é bem atestado,
no século IV, graças aos escritos de Aphraate o Sábio persa e de
Efrém, o Sírio — este último até escreveu um comentário sobre o
Diatessaron.
Uma reação em favor do cânon dos quatro evangelhos inicia-se
durante o século V Rabboula, bispo de Edessa (c. 412-436), ordena
que se cuide que cada Igreja tenha uma cópia e faça a leitura de “o
evangelho dos separados” (por oposição ao Diatessaron, “o evange-
Iho dos misturados”). Teodoreto, bispo de Ciro sobre o Eufrates en-
tre 423 e 457, diz ter encontrado nas igrejas de sua diocese mais de
duzentas cópias do Diatessaron, que ele eliminou para substituí-las
por “os evangelhos dos quatro evangelistas” (Haereticorum fabulae
1,20). Essas medidas certamente contribuíram para impor o uso dos
quatro evangelhos, mas não eliminaram totalmente o Diatessaron,
que continuou por muito tempo a exercer influência, particularmen-
te entre os nestorianos.
Até por volta de 400, outras particularidades distinguem o Novo
Testamento da Igreja siríaca e o das Igrejas gregas e latinas. A mais
evidente, que ressalta da passagem citada da Doutrina de Addai, é a
ausência de todas as epístolas católicas e do Apocalipse. Outras, re-
veladas pelo uso das Sagradas Escrituras por Aphraate e por Efrém,
concernem às cartas de Paulo. O corpus incluía a epístola aos He-
breus, tida como paulina, como na Igreja grega, mas não o bilhete a

15 Doctrine de Addai 8 8 , trad. Alain DESREUMAUX, Histoire du roi Abgare


de Jésus, Turnhout, Brepols, 1993, 108.
16 Doctrine d ’Addai 71, 97 (tradução ligeiramente retocada).

599
A história do canon

Filêmon. Compreendia também a correspondência apócrifa entre


Paulo e os coríntios (/// Coríntios), que Efrém comentou a mesmo
título que as outras cartas de Paulo. Uma lista canônica siríaca, en-
contrada no Sinai e datada de mais ou menos 400, só enumera os
evangelhos, os Atos e as cartas de Paulo, confirmando, assim, o tes-
temunho da Doutrina de Addai.

O cânon da Peshitta. Como já dissemos, a propósito do Diatessaron, a situa-


ção começa a mudar no início do século V E então que vem à luz a versão siri-
aca da Bíblia chamada a Peshitta. Em relação ao Novo Testamento, a Peshitta
opera um paralelo significativo com o cânon grego: exclui III Coríntios e inclui,
além dos quatro evangelhos “separados”, Filêmon e as três grandes epístolas
católicas (Tiago, I Pedro e I João). Mas as quatro outras epístolas católicas e
o Apocalipse continuam ausentes. A Peshitta delimita, assim, um Novo Tes-
tamento de 22 livros. Para uma boa parte dos cristãos de língua siríaca, esse
cânon não será mais posto em questão. Com efeito, o concilio de Efeso (431)
acarretará uma ruptura entre os sírios orientais, partidários do nestorianismo,
e a grande Igreja.
Em compensação, os cristãos da Síria ocidental manterão contato com as
outras Igrejas e serão levados a rever os limites de seu cânon. Em 508, Fi-
loxeno, bispo de Mabugo, tomará a iniciativa de rever a Peshitta, a partir de
manuscritos gregos, e de produzir, assim, uma tradução mais exata do Novo
Testamento. Essa versão “filoxena” incluirá, pela primeira vez, os cinco livros
ausentes da Peshitta. Mas esse cânon grande de 27 livros só será aceito pela
parte monofisista da cristandade siríaca. Para as Igrejas nestorianas, a defini-
ção do Novo Testamento permanecerá a da Peshitta, sem as quatro pequenas
epístolas e o Apocalipse.

O F ragm ento d e M u ra to rí**

Marcos
...1(as coisas) entretanto às quais ele assistiu, ele as expôs assim.
* (Tradução de J.-D. Kaestli, baseada no texto estabelecido por H. LIETZ-
MANN, Das Muratorische Fragment, Bonn, 21908, 5-11 [Kleine Texte fúr
theologische und philologische Vorlesungen und Ubungen, I]. Os números
correspondem às linhas do manuscrito. Nas linhas 69-70, o tradutor cor-
rige ut Sapinetia por et Sapientia. A Sabedoria de Salomão não está incluí-
da na lista dos livros do Novo Testamento, mas é mencionada a título de
comparação com o estatuto contestado de 2-3 João e Judas: embora não
tenha sido escrita pelo próprio Salomão, ela é tida em estima na Igreja.)

600
H istória do canon do N ovo Testamento

Lucas
2O terceiro livro do Evangelho, segundo Lucas. 3 Lucas, o médico, depois da
ascensão de Cristo, 45‫־‬como Paulo o havia levado consigo, à maneira de alguém
que estuda o direito, 6escreveu, sob o seu próprio nome, segundo o que julgou
bom. Também ele, entretanto, 7não viu o Senhor na carne, e é por isso que,
em função do que pôde obter [como informação], 8começou também ele seu
relato a partir do nascimento de João.

João
9O quarto dos evangelhos, o de João, um dos discípulos. 10Como o exortavam
seus condiscípulos e seus bispos, "ele diz: “Jejuai comigo desde hoje durante
três dias, e o que 12terá sido revelado a cada um, '3nós nos contaremos uns aos
outros”. Na mesma noite, foi revelado '4a André, um dos apóstolos, 1516‫־‬que
João devia pôr tudo por escrito, sob o seu próprio nome, com o aval de todos. E
é por isso que, embora '7começos diferentes sejam ensinados em cada um dos
evangelhos, 18isso não faz diferença alguma para a fé dos crentes, '9pois é por um
único e soberano Espírito que 20tudo é expresso em todos [os evangelhos]: o que
concerne 21à natividade, à paixão, à ressurreição, 22a conversa com os seus disci-
pulos, 23sua dupla vinda, 24a primeira [quando ele foi] desprezado, na humilhação,
que [já] teve lugar; 25a segunda [quando ele será] glorioso, cheio de poder régio,
26que está [ainda] por vir. Que há, portanto, 2728‫־‬de estranho que João exponha
cada coisa tão firmemente em suas epístolas também, 29quando diz a propósito
de si mesmo: “o que vimos com nossos olhos, 30e ouvimos com nossos ouvidos,
e nossas mãos 31tocaram, eis o que escrevemos” [cf 1Jo 1,1.3-4]. 32Com isso, de
fato, ele se proclama não somente testemunha ocular e ouvinte, 33mas também
escrivão [que consignou], na ordem, todas as maravilhas do Senhor.

Atos dos apóstolos


34Quanto aos atos de todos os apóstolos, 35foram escritos em um só livro. Lu-
cas, para o excelente Teófilo, 36[nele] reúne todos os fatos que se passaram em
sua presença, 3738‫־‬assim como ele o mostra, também, de maneira evidente, ao
deixar de lado o martírio de Pedro, e também a partida de Paulo 39deixando a
Cidade para ir à Espanha.

Cartas de Paulo
Quanto às cartas 40de Paulo, quais são, de que lugar e por qual motivo fo-
ram enviadas, 41elas mesmas o deixam saber aos que quiserem realmente
compreender. 42 Primeiro, aos Coríntios, para proibir as heresias do cisma, 43em
seguida aos Gálatas [para proibir] a circuncisão, 4445‫־‬depois aos Romanos, para
ensinar que Cristo é a regra das Escrituras e também seu princípio, 46ele escre-
veu com mais prolixidade.
De cada uma delas, é necessário 47que tratemos, visto que o bem-aventurado
48apóstolo Paulo, ele próprio, seguindo a regra de seu predecessor 49João só
escreveu, designando-as pelo seu nome, a sete 50Igrejas, nesta ordem: aos Co-
ríntios, 51a primeira; aos Efésios, a segunda; aos Filipenses, a terceira; 52aos
Colossenses, a quarta; aos Gálatas, a quinta; 53aos Tessalonicenses, a sexta;

601
A história do cânon

aos Romanos, 5455‫־‬a sétima. É verdade que ele escreveu mais uma vez aos Co-
ríntios e aos Tessalonicenses para os repreender; 5657 ‫־‬entretanto, reconhece-se
que há uma só Igreja espalhada por toda a terra. Com efeito, João também, no
58Apocalipse, embora escreva a sete Igrejas, 59dirige-se, a todas.
E verdade [que ele escreveu] uma carta a Filêmon, 60uma aTito e duas aTimó-
teo, por afeição e 6 'amor; [escritas] no entanto para o bem da santa Igreja cató-
lica, 6263‫־‬para a boa ordem da disciplina eclesiástica, elas se tornaram sagradas.

Cartas falsamente atribuídas a Paulo


Circula também uma [carta] aos Laodicenses, uma outra aos Alexandrinos,
escritas falsamente sob o nome de Paulo 65para [defender] a heresia de Mar-
cião, e muitos outros [escritos] 66que não podem ser recebidos na Igreja católi-
ca; 67não convém, com efeito, misturar o fel com o mel.

Epístola de João e de Judas, Sabedoria de Salomão


6869‫־‬Na verdade, uma carta de Judas e duas [cartas] inscritas [no nome] de
João são consideradas, na [Igreja] católica, assim como a Sabedoria escrita
pelos amigos de Salomão em sua honra.

Apocalipse
71Dos apocalipses, também, recebemos somente o de João e o de Pedro,
7273‫־‬que alguns dos nossos não querem que se leiam na Igreja. Quanto ao Pastor,
7475‫־‬Hermas o escreveu recentemente, no nosso tempo, na cidade de Roma,
quando ocupava o trono 76da Igreja da cidade de Roma o bispo Pio, seu irmão.
77E é por isso que se deve, certamente, lê-lo, 78mas não se pode apresentá-lo
publicamente na Igreja, nem entre os profetas, cujo nome está completo, nem
entre 80 os apóstolos [que estão] no fim dos tempos.

Escritos heréticos
81Mas de Arsinoé ou de Valentino, ou de Miltiade, 82não recebemos absoluta-
mente nada, [eles] que também escreveram um novo 83livro de salmos para Mar-
cião, 8485‫־‬ao mesmo tempo que Basilide, o Asiático, fundador dos Catafrigianos.

B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
SCHNEEMELCHER, Wilhelm. Die Entstehung des neuen Testaments
und der christlichen Bibel. TRE 6 (1980) 22-48.
VON CAMPENHAUSEN, Hans. Die Entstehungder christlichen Bibel. Tü-
bingen, Mohr, 1968 (BHTh 39); ed. fr.: La formation de la Bible chré-
tienne. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1971 (Monde de la Bible I).

602
H istó ria d o cân o n do N o v o T esta m en to

Estudos gerais
FARMER, William R., FARKASFALVY, Denis M. The Formation o f the
New Testament Canon : An Ecumenical Approach. N ew York, Pau-
list Press, 1983.
GAMBLE, Harry Y. The New Testament Canon: Its Making and Meaning.
Philadephia, Fortress Press, 1985.
---------. Books and Readers in the Early Church. N ew Haven, Yale, 1995.
HAHNEM AN, Geoffrey M. The Muratorian Fragment and the Develop-
m entofthe Canon. Oxford, Clarendon Press, 1992 (OxfordTheolo-
gical Monographs).
HARNACK, Adolf von. Das Neue Testament um das Jahr 200. Freiburg
[s.n.], 1899.
KAESTLI, Jean-Daniel, WERMELINGER, O tto (éds.). Le Canon de
I'Ancien Testament. Sa formation et son histoire. Genève, Labor et
Fides, 1984 (Monde de la Bible 10).
LAGRANGE, Marie-Joseph. Introduction à 1'étude du Nouveau Testament.
Paris, Gabalda, 1933, Ia parte: Histoire ancienne du Canon du Nou-
veau Testament.
METZGER, Bruce M. The Canon o f the New Testament: Its Origin, Deve-
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MORESCH1NI, Claudio, NORELL1, Enrico. De Paul à l'âge de Constan-
tin. In: Histoire de la litttérature chrétienne antique grecque et latine.
Genève, Labor et Fides, 2000, v. I.
SUNDBERO, Albert C. Towards a Revised History o f the N ew Testa-
ment Canon. Studio Evangélica, Berlin, Akademie Verlag, IV, Part I
(1968) 452-461 (TU 102).
ZAHN, Theodor. Ceschichte des Neutestamentlichen Kanons. Erlangen/
Leipzig [s.n.], 1888-92. 1892 v.

603
CAPÍTULO

28
O texto do Novo Testam ento
e sua história
Roselyne Dupont-Roc

Não temos nenhum manuscrito original das obras do Novo Tes-


tamento, assim como não temos dos outros escritos da Antiguida-
de. Os textos chegaram até nós por intermédio de grande número
de manuscritos copiados ao longo dos séculos no Oriente e no Oci-
dente cristãos, até vir a tipografia, que fixou, mais ou menos, o tex-
to: a primeira edição impressa do Novo Testamento é a de Erasmo,
em 1516.
Os manuscritos, recopiados à mão no scriptorium dos mosteiros,
apresentam inúmeras diferenças de detalhe, geradas ou perpetua-
das pela cópia. Chamamos de lugares variantes os versículos que
comportam diferenças, em certos manuscritos: não há quase versí-
culo do Novo Testamento que não tenha sido atingido! Chamamos
de lições variantes, ou mais simplesmente variantes as formas dife-
rentes do texto em cada caso; os especialistas falam, hoje, de mais
de duzentas mil variantes, desde o simples erro de ortografia até a
transformação, a omissão ou a adição de vários versículos!
A crítica textual é o conjunto de procedimentos e diligências cien-
tíficas que tentam estabelecer o texto, isto é, restituir sua forma lite-
ral o mais próximo possível do original.
E evidente que o estabelecimento do texto precede e comanda a
leitura e, de modo particular, o estudo exegético propriamente dito.

607
A crítica textual

A priori, a crítica textual não teria lugar numa introdução ao Novo


Testamento, visto que desde 1966 o teor literário do texto grego
editado pelas sociedades bíblicas parece doravante fixado. Os espe-
cialistas do texto bíblico, protestantes e católicos, estão de acordo
sobre o texto da edição do Novo Testamento grego (GNT), obra de
uma comissão internacional integrada por K. Aland, M. Black, C.-M.
Martin, B. M. Metzger e A. Wikgren; esse texto se conserva idên-
tico desde a 26a edição do Novum Testamentum graece editado por
Nestle-Aland em 1979; é comumente chamado “texto-padrão”.
Daí resulta uma situação que apresenta o aspecto satisfatório de
um acordo sobre um texto comum; mas ela comporta um risco: favo-
rece, com efeito, a ilusão de uma estabilidade do texto do Novo le s -
tamento, que o leitor podería, de hoje em diante, considerar imutável.
Felizmente, os aparatos críticos (notas de rodapé que acompanham o
texto) dão testemunho da existência de variantes; e deve-se reconhe-
cer o esforço científico que, de edição em edição, propõe aos leitores
aparatos críticos cada vez mais completos, precisos e legíveis.
Quem quer que queira entrar numa leitura crítica do Novo Tes-
tamento deve, portanto, saber que a formulação original do texto
permanece, em parte, incerta; essa incerteza deve ser levada em
conta e administrada na relação que o leitor manterá com o tex-
to. Com efeito, no decorrer dos séculos, essas mesmas obras fo-
ram lidas e recebidas nas comunidades cristãs com muitas variantes
que, às vezes, comprometem grandemente a interpretação; o es-
tudo das variantes revela, freqüentemente, como que ao vivo, no
nível das palavras utilizadas, os primeiros conflitos de interpretação.
De uma certa maneira, o exegeta, por sua vez, vai entrar e tomar
posição nesse conflito.
Assim, o exegeta do Novo Testamento deve, primeiro, èstabele-
cer o texto que ele quer trabalhar. Ora, no processo mesmo de esta-
belecimento do texto, a escolha de uma lição variante em detrimen-
to de outra está, por uma parte, ligada à coerência e à compreensão
do conjunto da passagem; essa escolha vai, então, desempenhar um
papel na análise literária e, depois, na leitura que o exegeta proporá.
Topamos, assim, com o que podería se assemelhar a um círculo vi-

608
O te x to do N ovo T e sta m e n to e su a história

cioso: a escolha da variante sendo comandada pela compreensão do


texto, a compreensão do texto se apoiando na variante escolhida.
E, portanto, essencial que o exegeta esteja consciente da situação.
Além disso, o círculo pode e, a meu ver, deve ser evitado, sob duas
condições: que as tarefas, num primeiro tempo, sejam cuidadosa-
mente distinguidas e que o diálogo, em seguida, seja amplamente
aberto entre o textualista e o exegeta (que pode, às vezes, ser a
mesma pessoa, se sabe compreender os pontos de vista próprios de
cada disciplina).
Um exemplo evidente é o do fim do evangelho de Marcos1.
Alguns manuscritos da tradição egípcia interrompem brusca-
mente o texto no fim do versículo 8 (έφοβοΰντο γάρ: “pois tinham
medo”). Em outros lugares, a tradição manuscrita acrescenta um
final ao evangelho, geralmente na forma de um final longo, mas que
pelo menos em um manuscrito consiste em um breve anúncio que-
rigmático; os dois finais se encontram também, às vezes, juntados
um em seguida do outro. Em todos os casos, o final longo tem um
feitio literário muito diferente do resto do evangelho de Marcos e
não pode ser a continuação do relato que termina em 16,8. Tradicio-
nalmente, julgava-se que o final de Marcos tinha se perdido na trans-
missão do manuscrito e que desde cedo as comunidades o tinham
substituído por um final que comporta um resumo das cristofanias e
da primeira missão dos apóstolos. Mas o fato de vários manuscritos
de qualidade da tradição egípcia (o Sinaítico r , o Vaticano B, a mi-
núscula 304), uma versão siríaca antiga (a siríaca sinaítica sys) e al-
gumas outras versões (dois manuscritos coptas saídicos) terem con-
servado o texto breve criou problema. Nesse ponto, a crítica textual
instigou a pesquisa exegética; análises novas e mais afiadas do texto
de Marcos mostram que o caráter abrupto daquele fim corresponde
realmente ao projeto do evangelista, que remete o leitor à sua pró-
pria decisão e o incita a voltar para o difícil caminho da cruz.
Propomos, portanto, neste capítulo, uma apresentação sucinta
dos principais métodos da crítica textual, para que o leitor perceba

1 Ver acima p. 57-58.

609
A crítica textual

melhor o desafio de uma leitura atenta e competente dos aparatos


críticos e possa, dada a ocasião, entrar ele mesmo, por sua vez, no
debate.

1. A TRASMISSÃO MATERIAL DO TEXTO


Quais eram as condições materiais da escritura?
O suporte mais frequente da escritura, na Antiguidade, até o sé-
culo IV de nossa era, é o papiro. O material é frágil; escreve-se dos
dois lados da folha χάρτης) com um junco talhado (κάλαμος), mais
freqüentemente com tinta preta (μέλαν) (cf 2 Jo 12 e 3 Jo 13). Di-
letantes cultos podiam escrever eles mesmos, mas geralmente utili-
zavam-se dos serviços de um secretário: assim Tércio se designa ele
mesmo no fim da carta aos Romanos: “eu, Tércio, que escreví esta
carta” (Rm 16,22).
O texto é escrito de modo contínuo, sem separação entre as pa-
lavras, sem acentuação e praticamente sem pontuação: é a scriptio
continua; a largura da linha é definida de antemão, e uma palavra
começada no fim da linha continua na linha seguinte. “Ler” se diz em
grego άναγινώσκ6ιν, que significa, antes de tudo, “reconhecer” as
palavras! A escritura dos papiros é cursiva, mais freqüentemente em
unciais ligadas2. Desde os primeiros textos cristãos, os escribas ado-
tam um sistema de contração para os nomes divinos: escrevem-se
duas ou três letras sobrepostas por um traço horizontal: ΘΣ (0eóç),
ΚΣ (Κύριος), ΓΗΣ (Τησοϋς), ΠΝ (Πνβϋμα), o que, às vezes, acar-
reta confusões.
A forma mais antiga do livro é o rolo (volumen): os textos das
Escrituras judaicas eram recopiados em rolos. Lucas dá testemunho
disso no relato da vinda de Jesus à sinagoga de Nazaré: “deram-lhe
o livro (βιβλίον) do profeta Isaías e, desenrolando-o...” (Lc 4,17).
Por volta de fins do primeiro século de nossa era aparece o livro qua-
drado (codex quadratus): empilham-se as folhas de papiro, que são

2 A palavra uncial é derivada do latim uncia, que significa “um duodécimo”.


O nome uncial vem provavelmente do fato de a letra maiuscula, de forma
arredondada, ocupar um duodécimo da linha.

610
O te x to do N ovo T e sta m e n to e sua história

dobradas em dois e costuradas no meio para formar um caderno


manejável. O códice se difundiu primeiro em meio cristão: o papiro
mais antigo do Novo Testamento que possuímos, p 52, datado do sé-
culo II, provém de um livro quadrado.
Desde muito tempo existia um outro suporte, muito mais resisten-
te, mas também muito mais dispendioso: o pergaminho (π6ργαμηνή,
dito também, às vezes, μέμβραι/α, c f 2Tm 4,13), que suplanta, pro-
gressivamente, o papiro entre o terceiro e o sexto século de nossa era.
A partir do quarto século aparecem os primeiros grandes manuscri-
tos da Bíblia em códice de pergaminho. A perseguição de Diocleciano
tinha feito desaparecer bom número de textos do Novo Testamento
escritos em papiro; por volta de 331, o imperador Constantino en-
comenda a Eusébio de Cesaréia cinqüenta cópias das Escrituras sa-
gradas, “escritas em pergaminho refinado, de escrita legível e de for-
mato manejável, por calígrafos competentes” (Vita Constantini 4,36
s.). O Vaticanus B03, que contém o conjunto da Bíblia com algumas
lacunas, podería fazer parte desses manuscritos.
Os manuscritos em pergaminho, muito mais bem cuidados, são
escritos em unciais cuja forma varia um pouco no correr dos sécu-
los. A partir do século IV, o uncial é suplantado por uma escrita mais
rápida, em minúsculas ligadas, e o número de manuscritos se multi-
plica, então, de modo espetacular.
A esse breve relato é preciso acrescentar algumas observações
sobre a apresentação dos textos. O título da obra ou inscriptio, ano-
tado em cima, é freqüentemente repetido no fim: é o subscriptio. No
fim da obra, igualmente, uma espécie de vinheta ou colofao contém,
às vezes, indicações preciosas: menção do copista, do lugar, da data,
número de linhas; finalmente, acontece que uma oração de agra-
decimento seja dirigida a Deus ao final de um trabalho de cópia tão
penoso! Assim, em vários manuscritos da tradição bizantina, a subs-
criptio da carta aos Gálatas a dá como escrita em Roma3. Isso nos
informa pelo menos sobre a concepção da cronologia paulina cor-
rente no período bizantino. Por razões talvez teológicas, Marcião,

3 Ver acima p. 288-290.

611
A crítica textual

na metade do século II, considerava Gálatas a primeira das cartas


de Paulo4.
Em muitos grandes manuscritos em unciais (o Alexandrinus A02,
do século V, o Vaticanus B03, do século IV), o texto é dividido em
capítulos, muitos dos quais têm títulos, o que nos dá indicações dos
cortes litúrgicos ou exegéticos operados nas Igrejas.
Enfim, os palimpsestos são freqüentes: o pergaminho, muito raro
e muito dispendioso, é raspado para receber um novo texto; é o caso
do C04, o códice Ephraemi rescriptus, sobre o qual foram recopia-
dos os sermões de Efrém. Em período de penúria, os palimpsestos se
multiplicavam, a tal ponto que o concilio de Trullo, em 692, decidiu
proibi-los: o que foi em vão. Hoje, a técnica dos raios ultravioleta nos
permite reencontrar o primeiro texto raspado e recoberto.
Desde o século XIII, o papel, trazido da China pelos árabes no sé-
culo Vlll, se difunde: vários lecionários são copiados em papel; mas
o material é frágil e, para os textos preciosos, o pergaminho continua
preferido até a invenção da imprensa.

2. OS TESTEMUNHOS DO TEXTO DO NOVO TESTAMENTO


Ao citar, para cada lugar variante, testemunhos do texto do
Novo Testamento, os aparatos críticos fazem, necessariamente, o
amálgama de vários grupos muito heterogêneos:
— de um lado, os manuscritos gregos: papiros, unciais e minúscu-
Ias, mas também lecionários dos mosteiros, que comportam textos
selecionados, conforme as leituras do dia e dos tempos litúrgicos.
— de outro lado, as versões, traduções muito antigas, muitas ve-
zes extremamente literais, que constituem uma fonte valiosíssima
para reconstituir a história do texto. Os aparatos críticos citam fre-
qüentemente manuscritos particulares de uma versão, especialmen-
te para a siríaca antiga e latina antiga; mas às vezes eles remetem a
uma edição de referência (ela mesma baseada em numerosos ma-
nuscritos).

4 Ver acima p. 592-606.

612
O te x to d o N o v o T e s ta m e n to e su a história

— enfim, as citações do Novo Testamento pelos Padres da Igreja,


em suas diversas obras; os aparatos remetem, então, a uma edição
recente do texto dos Padres.
Apresentamos, rapidamente, alguns testemunhos importantes
em cada categoria.

Os manuscritos gregos5
1. Na primeira metade do século XX, e sobretudo depois de 1930, a des-
coberta e a publicação de numerosos papiros, vindos essencialmente do Egito,
fizeram progredir de maneira notável nosso conhecimento do texto; o mais
antigo fragmento de papiro, o p 52, contendo algumas linhas do evangelho de
João, remonta mais ou menos aos anos 130, ou seja, menos de cinquenta anos
depois de a obra ser escrita6. Contam-se, até hoje, 115 fragmentos de papiro;
alguns são tão pequenos que compreendem apenas alguns versículos, outros
atestam obras inteiras. Desde o século III, os quatro grandes corpus do Novo
Testamento — evangelhos, atos e epístolas católicas, cartas paulinas, apoca-
lipse — estão representados.
Os papiros pertencem, muitas vezes, a coleções particulares das quais
guardam o nome; mas entram todos, daqui para diante, numa única classifica-
ção, e são designados pela letra p com um expoente. Observemos, particular-
mente, exemplares da coleção Chester Beatty, em Dublin:
° p45, do século III, compreende 30 folhas (de 110) dos quatro evangelhos e

dos Atos.
° p46, de cerca de 200, conserva 8 6 folhas (de 104) das cartas de Paulo.

5 Depois da publicação de Kurt ALAND, Kurzgefasste Liste der griechischen


Handschriften des Neuen Testament, Berlin, de Cruyter, 1994, uma última
atualização da lista dos manuscritos gregos do Novo Testamento foi feita
por James K. ELLIOTT A Bibliography o f Greek New Testament Manus-
cripts, Cambridge, Cambridge University Press, 22000. Uma lista detalha-
da de todos os manuscritos se encontra, por outro lado, nas duas edições
do Novo Testamento: GNT e Nestle-Aland.
6 Fascinada pela antiguidade dos papiros, a grande imprensa se apodera, de
vez em quando, de hipóteses audaciosas, nem sempre fundadas, como as
de Carsten Thiede: esse erudito pretendera que um fragmento grego de
Mateus, o p64, datava dos anos 50. Na realidade, os fragmentos p6\ p67 e p4
parecem provir de um mesmo códice dos quatro evangelhos datado do fim
do século II. Do mesmo modo, o famoso fragmento “de Marcos” encon-
trado em Qumran, 7Q5, tem o inconveniente de não ser de Marcos! Ver
Graham STANTON, Parole d' évangile?, Paris/Montreal, Cerf/Novalis,
1997, 23-50.

613
A crítica textual

° p 47 contém 10 folhas do Apocalipse.


Da coleção Bodmer, em Cologny-Geneva, mencionamos:
° p 66, de cerca de 200, contém o evangelho de João quase completo até ο
capítulo 14, depois em fragmentos7.
° p 75, da primeira metade do século III, contém, com lacunas, os evangelhos
de Lucas e de João em 5 1folhas, algumas das quais muito danificadas.
2 — Os unciais: contam-se, hoje, 309 (200 dos quais não passam de frag-
mentos), mas perto de uns trinta deles provêm do mesmo manuscrito que
um outro fragmento. Somente cinco desses manuscritos comportam o Novo
Testamento inteiro, com algumas lacunas devidas a mutilações. Note-se, tam-
bém, que os evangelhos têm 138 testemunhos, o Apocalipse somente 10.
A partir da classificação de C. R. Gregory (1846-1917), eles são designados
por um 0 seguido de um número na ordem 01, 02 etc.; no conjunto, os 45 pri-
meiros são precedidos por uma letra latina maiuscula, e os seguintes por uma
letra grega, segundo uma designação que remonta ao século XVIII.
— O mais antigo e um dos mais belos é o códice Vaticanus B03, do século
IV Ele aparece na Biblioteca do Vaticano por volta de 480. Contém a Bíblia
inteira com algumas lacunas, com o Novo Testamento terminando em He-
breus 9,11.
— O códice Sinaítico «01, da metade do século IV, foi parcialmente
descoberto, em condições rocambolescas, por Tischendorf, no mosteiro
Santa Catarina do Sinai, em 1844 e, depois, progressivamente reconstituí-
do; está atualmente na British Library de Londres. Contém quase todo o
Antigo Testamento e, além do Novo Testamento, a epístola de Barnabé e
o Pastor de Hermas.
— O códice Alexandrinus A02, do século V, copiado no Egito e proprie-
dade do patriarca de Alexandria; foi levado para Londres em 1628. Contém o
Antigo e o Novo Testamento, mais duas epístolas de Clemente de Roma. Mas
o Novo Testamento só começa em Mateus 27.
— O códice Ephraemi rescriptus C04, do século V, é um palimpsesto. Foi
recoberto, no século XII, pelos sermões e tratados de Effém. Nele se pode ler
metade do Antigo Testamento e dois terços do Novo Testamento.
— O códice de Beza (Bezae Cantabrigiensis), bilíngue: grego (D05) e latim
(d), do século IV/V Em Lião desde o século IX, foi adquirido porTeodoro de
Beza, em 1562, e dado à universidade de Cambridge. Esse manuscrito con-
tém os quatro evangelhos na ordem Mateus-João-Lucas-Marcos, os Atos
dos Apóstolos e algumas linhas das epístolas católicas (Tiago-Judas). E no-
tável por suas variantes, especialmente o texto, dito ocidental, dos Atos dos
Apóstolos.

7 Ver acima p. 446.

614
O te x to do N ovo T e s ta m e n to e sua história

— O códice Claromontanus D06, em grego e latim (d), do século VI, com-


prado por Teodoro de Beza, contém as epístolas paulinas com numerosas Ia-
cunas.
— O códice Freerianus W 032, comprado, em 1906, por Ch. L. Freer,
contém os evangelhos na ordem Mateus-João-Lucas-Marcos. Encontra-se
aí, depois de Marcos 16,14, uma estranha adição de tipo gnóstico, chamada
“logion de Freer”8.
3 - As minúsculas: anotadas em algarismos árabes de 1 a 2862. As mais
antigas delas datam de 835; a maior parte é bem mais tardia (século XII ao
século XV). Apenas umas cinquenta comportam todo o Novo Testamento; a
maioria só contém os evangelhos. Uma das grandes tarefas atuais é verificá-las
e classificá-las por famílias.
— Nos evangelhos, a família I conta uma dezena de minúsculas, com o 1
encabeçando a série, reagrupadas por K. Lake sob a sigla f '; a perícope da mu-
lher adúltera (Jo 7,53-8,11) está colocada, aí, no final do evangelho de João.
— A família f 13, agrupada por Ferrar, compreende uma dúzia de manus-
critos copiados, na maior parte, na Calábria; a perícope da mulher adúltera,
em Lucas, é transposta para depois do versículo 21,38; o episódio do suor de
sangue (Lc 22,43-44) é transposto, em Mateus, para depois de 26,39.
— A minúscula 33, do século XI, frequentemente chamada “a rainha das
minúsculas”, se aproxima dos grandes unciais r01, B03 (que omitem a mulher
adúltera).
— O códice 1739, de cerca de 950, conservado no monte Atos, traz na
margem inúmeras citações de antigos Padres da Igreja; nos Atos, ele é asse-
melhado ao códice de Beza.
— O códice 2138, de 1072, em Moscou, é o mais antigo de uma vintena de
minúsculas. O texto dos Atos é assemelhado ao códice de Beza.
4 - Os lecionários: à parte alguns fragmentos de papiro, eles são copiados
em pergaminho e, depois do século XIII, em papel. A grande maioria consiste
em evangeliários.

A s versões
I. Em latim, distinguem-se:
— As traduções latinas anteriores à Vulgata (do século li ao final do século
IV), chamadas Antigas Latinas. São globalmente marcadas it, mas cerca de
noventa manuscritos foram repertoriados, remontando, os mais antigos, ao
século IV: são tradicionalmente designados por letras minúsculas do alfabeto
latino, doravante acompanhadas de um número de ordem em algarismo árabe.

8 V e r a c im a p. 5 7 .

615
A crítica textual

O mais célebre é o códice Bobbiensis, designado k, do século IV/V, cujo texto


tem muitos pontos em comum com o códice de Beza; é o único manuscrito a
omitir o silêncio das mulheres em Marcos 16,8 e a acrescentar algumas linhas
finais, chamadas “o querigma incorruptível"9. Várias minúsculas têm os evan-
gelhos na ordem Mateus-João-Lucas-Marcos, e um texto assemelhado ao do
códice de Beza.
— A tradução da Vulgata, atribuída a Jerônimo, comporta mais de dez
mil manuscritos, geralmente recentes e bem conservados; alguns, entretanto,
remontam ao século VII e até mesmo ao século VI. A Vulgata, por si só, me-
receria um tratado completo de crítica textual. Citamos, então, a Vulgata se-
gundo as grandes edições: a Vulgata Clementina vg*1é a edição encomendada
pelo papa Clemente VIII, em 1592. A primeira grande edição crítica moderna
é a inaugurada por J. Wordsworth e Η. I. White, em Oxford (1889-1954); é
marcada vgww. Finalmente, uma edição crítica da Vulgata de toda a Bíblia é
editada em Stuttgart desde 1969; é marcada vg*‘.
2. Em siríaco, distinguem-se:
— O Diatessaron de Taciano, de cerca de 172; Taciano, discípulo do filósofo
Justino, escreveu uma harmonia dos quatro evangelhos, tecendo habilmente
os quatro em um só texto; esse empreendimento deixou traços profundos na
tradição manuscrita do Novo Testamento. Um folheto grego do Diatessaron
foi descoberto em Doura-Europos (Síria) em 1933; data da primeira metade
do século III e está classificado entre os unciais sob o número 0212 ; além disso,
um comentário do Diatessaron, por Efrém, está conservado num manuscrito
danificado, em siríaco e em dois manuscritos em armênio; há traduções deles
em várias línguas.
— Dois manuscritos antigos conservaram uma versão dos evangelhos, com
a indicação "evangelho separado”, em oposição ao Diatessaron:
• um manuscrito do século IV foi descoberto, em 1892, na biblioteca do mos-
teiro Santa Catarina, no Sinai; é chamado “siríaco sinaítico”, sy*; é um palimp-
sesto que traz um texto assemelhado ao códice de Beza e à Antiga Latina.
• um manuscrito do século V, descoberto por W. Cureton, no Egito, leva
o nome de “siríaco curetoniano”, sy*; contém os quatro evangelhos na ordem
Mateu-João-Lucas-Marcos.
— A versão litúrgica das Igrejas siríacas é a Peshitta, marcada syp; é repre-
sentada, atualmente, por quase 250 manuscritos, uma dúzia dos quais é dos
séculos IV-V O texto está fixado e não compreende, seguindo o cânon dos
sírios, nem as quatro pequenas epístolas católicas, nem o Apocalipse.
— Outras versões siríacas são conhecidas, especialmente a revisão de
Thomas de Harkel, em 615-616: syh. Nos Atos dos apóstolos, ela apresenta,

9 Ver acima p. 57.

616
O te x to d o N ovo T e s ta m e n to e su a história

nas margens, variantes textuais que fazem dela um dos textos mais próximos
do texto do códice de Beza; é marcada syhm*.
— Finalmente, foram encontrados vários testemunhos fragmentários de
uma versão em aramaico, marcada syp,\ cujo texto segue o tipo do códice de
Beza.
Os textualistas, hoje em dia, estão cada vez mais interessados em outras
versões, especialmente nos diferentes dialetos coptas, mas também em armê-
nio, georgiano, árabe, etíope...

Os Padres da Igreja grega ou latina


As citações dos Padres gregos ou latinos, do século II ao século
V, são de extraordinário interesse por sua antiguidade. Mas de-
vem ser manejadas com grande precaução. Os aparatos remetem
às edições críticas, mais precisas, de suas obras. Por outro lado, é
preciso prestar atenção à maneira de citar, de memória e com uma
certa liberdade. Justino, Ireneu (alguns fragmentos gregos ape-
nas), Clemente de Alexandria, Orígenes, por um lado, Tertuliano,
Cipriano, por outro, nos esclarecem sobre as tradições textuais
recebidas em suas Igrejas. Eruditos como Orígenes ou Jerônimo
comparam os manuscritos e assinalam as variantes de um interes-
se de primeira ordem.
Além disso, há um grande interesse, hoje, pelo texto de Marcião,
líder de uma tendência ultrapaulina por volta de 144, em Roma.
Opondo o Deus de amor do Novo Testamento ao demiurgo do An-
tigo, ele procedeu a uma escolha nas Escrituras, ficando só com o
Evangelho de Lucas e as cartas de Paulo. Mas as citações de Mar-
cião que possuímos são oriundas das refutações dos autores ecle-
siásticos que o condenam: Tertuliano, Epifanio; a prudência é pelo
menos obrigatória!

Do texto recebido ao texto-padrão


A primeira edição grega do Novo Testamento foi a de Erasmo, publicada
em Bali, em Io de março de 1516. A obra trazia o texto grego em duas colunas,
uma tradução latina do próprio Erasmo e terminava com numerosas notas exe-
géticas. De formato manejável, o livro teve sucesso imediato. Era, no entanto,

617
A crítica textual

de qualidade medíocre. Erasmo tinha trabalhado com alguns manuscritos tar-


dios, representando o texto bizantino, e como faltavam os últimos versículos
do Apocalipse (22,16-21) ele não hesitou em retraduzi-los para o grego!
Tratava-se, de fato, de assumir logo um outro grande empreendimento
editorial, muito mais cuidado: o do cardeal Ximenes de Cisneros, que reuniu
vários eruditos para editar uma Bíblia poliglota, a partir dos manuscritos em-
prestados pela Biblioteca Vaticana. A Poliglota de Alcalá foi publicada em 1519:
obra de valor, sua difusão limitada fez que não tivesse, em seguida, muita in-
fluência.
A partir de 1534, Robert Estienne reeditou o texto de Erasmo. Ele o cor-
rigiu com a ajuda da Poliglota de Alcalá e de alguns bons manuscritos, entre
os quais o D05: sua terceira edição é, pela primeira vez, acompanhada de um
aparato crítico. Na edição seguinte (1551), Estienne introduziu uma inovação
genial: o texto de cada obra foi dividido em pequenas seções numeradas: os
versículos. A partir daí, esse texto foi constantemente reeditado; em 1624, em
Amsterdã, os irmãos Elzevier afirmaram, desde sua segunda edição, que se
tratava “do texto recebido por todo o mundo”. Esse textus receptus permane-
ceu, com efeito, durante mais de dois séculos como o texto grego do Ocidente
cristão.
Na segunda parte do século XVIII, entretanto, desenvolveu-se um ver-
dadeiro trabalho crítico: dezenas de manuscritos foram cotejados, ao mesmo
tempo em que o erudito alemão J. J. Griesbach (1745-1812) propunha a teoria
das grandes recensões. Em seguida, K. Lachmann (1793-1851) abandonou o
texto recebido e tentou encontrar o estado do texto tal como era amplamente
difundido no correr do século IV. Não podemos deixar de destacar, no sécu-
Ιο XIX, os notáveis trabalhos de C. von Tischendorf e, sobretudo, o de B. E
Wescott (1825-1901) e F J. A. Hort (1828-1892), que permitiram refinar a
distinção dos grandes tipos de texto.
Em 1898, Eberhard Nestle publicou a primeira edição do Novum Testamen-
tum graece provido de um pequeno aparato crítico, que teve enorme sucesso.
A partir de 1927, seu filho Erwin Nestle retomou e desenvolveu os princípios já
empregados; as edições se sucederam com mudanças mínimas no texto, mas
com aparatos críticos sempre mais ricos e mais precisos. Em 1952, K. Aland
se associou a E. Nestle: nas edições seguintes, o texto permaneceu imutável,
mas o aparato crítico se aperfeiçoou, assinalando, a partir de 1963, os papiros.
Por outro lado, em 1963, por iniciativa da Sociedade Bíblica Americana,
uma comissão internacional composta por K. Aland, M. Black, B. M. Metzger,
A. Wikgren, depois C.-M. Martin, preparou uma revisão do texto de Nestle
A primeira edição, publicada em 1966, foi editada pelas United Bible Societies
sob o nome Greek New Testament. Os princípios e a apresentação do aparato
crítico diferem notavelmente dos de Nestle-Aland, mas desde 1979, em segui-
da a um acordo entre as sociedades bíblicas, o texto grego das duas edições
(3a edição do GNT, 26a edição do Nestle-Aland) é idêntico: desde então é
designado de texto-padrão.

618
O te x to do N o v o T e sta m e n to e sua história

3 . O DESAFIO ATUAL: OS GRANDES INVENTÁRIOS DO TEXTO


A crítica textual do Novo Testamento se encontra, por várias ra-
zões, diante de uma situação absolutamente particular.
3.1. No que se refere à antiguidade dos testemunhos manuscri-
tos, o texto do Novo Testamento apresenta uma situação extraor-
dinariamente favorável. Realmente, para os grandes textos da an-
tiguidade greco-romana, os testemunhos unciais estão pelo menos
uma dezena de séculos distantes do momento em que foram postos
por escrito, e os fragmentos de papiro descobertos no século XX se
aproximam apenas de cinco ou seis séculos. Ora, o NovoTestamen-
to é atestado a menos de um século após a época em que se supõe
que foram escritos os seus primeiros textos: o mais antigo fragmen-
to do evangelho de João hoje conhecido, o p 52, data dos anos 130!
3.2. Quanto ao número de testemunhos conhecidos, o NovoTes-
tamento bate todos os recordes: o texto foi recopiado e traduzido
em toda a cristandade durante treze séculos! Em 2000, J. K. Elliott
enumerava 115 fragmentos de papiro, 309 unciais, 2.862 minúsculas,
2.412 lecionários, sem falar das versões ou das citações dos Padres.
Paradoxalmente, essa massa de testemunhos torna quase im-
praticável o trabalho do textualista ou então obriga-o a se renovar.
Com efeito, o objetivo tradicional da crítica textual é reconstituir a
árvore genealógica (diz-se estema) dos manuscritos para remontar
progressivamente até o arquétipo primeiro, o mais próximo possível
do original. Embora sempre onerado de uma parte de hipótese, esse
trabalho tem frequentemente dado frutos: ora, a multiplicação dos
testemunhos torna-o extremamente difícil, se não impossível. No
caso do Novo Testamento, os especialistas têm se esforçado para
constituir famílias de manuscritos. Métodos de análise e de agrupa-
mentos dos testemunhos desenvolveram-se desde os trabalhos de
K. Lachmann, entre 1830 e 1850; eles se apoiam, essencialmente,
na escolha dos lugares variantes significativos (como o lugar da pe-
rícope da mulher adúltera, a presença do final longo de Marcos, a
presença de certos versículos em Lucas etc.). Aos poucos a escolha
se apura e o trabalho progride lentamente, mas o velho sonho de
reconstituição do arquétipo parece já abandonado.

619
A crítica textual

3.3. Com efeito, o progresso da pesquisa dos textualistas, depois


a descoberta dos papiros, no século XX, trouxeram à luz fenômenos
muito particulares que marcam a história do texto do Novo Testa-
mento.
Descobriu-se, primeiro, que além das famílias de manuscritos
podiam-se distinguir, na tradição, os grandes tipos de texto e, talvez,
tentar ligá-los a lugares geográficos. No correr dos séculos 111 e IV,
nos grandes centros intelectuais da cristandade (Alexandria, Antio-
quia, Cesaréia), depois de eruditos e especialistas como Hesíquio,
Luciano, Orígenes, escolas de escribas se aplicaram num impres-
sionante trabalho de pesquisa, de comparação e de agrupamento
de manuscritos — chamado, tecnicamente, de trabalho de colação.
Mais ainda, eles buscaram unificar o texto escolhendo o que lhes
parecia melhor: em outras palavras, procederam a um verdadeiro
estabelecimento do texto, e fala-se, hoje, dessas grandes recensões
que tentaram unificar e fixar o texto em determinadas esferas de
influência.
A pesquisa sobre os grandes “tipos de texto” remonta ao fim do
século XIX (B. F W escott e F J. A. Horst), e foi grandemente reto-
mada, no correr do século XX, depois notavelmente refinada pelas
pesquisas de J. Duplacy sobre o que ele denominava “os grandes
inventários do texto”10. A questão continua hoje em discussão, mas
pode-se dizer que os textualistas concordam pelo menos em dois
grandes tipos de texto, aos quais é preciso juntar um tipo particular:
o tipo “ocidental”.

a) O tipo sírio-bizantino: é refletido pela grande maioria dos manuscritos,


sobretudo as minúsculas, mas também pelo Alexandrinus A02 para os evan-
gelhos; pelo códice de Freer W 032 para Mateus e Lucas; pelos unciais E07,
F09, e a massa das minúsculas (marcadas ■Di ou Byz conforme os aparatos
críticos), pela Peshitta e por uma parte da Vulgata, e pelas traduções em eslavo,
para citar apenas os testemunhos mais conhecidos.

10 Jean DUPLACY, Classification des états d’un texte, mathématique et


informatique: repères historiques et recherches méthodologiques, Revue
d'Histoire des Textes 5 (1975) 249-309.

620
O te x to do N o v o T e sta m e n to e sua história

Amplamente recebido nas Igrejas de tradição ortodoxa, esse texto é


caracterizado pelo cuidado de ser completo e claro. E testemunho de um
grego popular, que escapou às correções de tendência ática (forma normati-
zada do grego literário). Ele harmoniza naturalmente as passagens paralelas
e se esforça para explicar os lugares obscuros; por isso ele, às vezes, parece
atenuar arestas teológicas muito vivas. Por exemplo, em João 1,18, o tex-
to bizantino traz ό μονογενής υίός: “o filho único gerado”, em vez de Θίός
μονογένης: “um deus único gerado”, lição do texto egípcio testemunho de
uma altíssima cristologia.
b) O tipo egípcio, ainda chamado alexandrino: está refletido em p66, p75,
sOl, B03, L019, W 032, Ψ044, 33 etc. para os evangelhos, p45, p50, sOl, B03,
C04, 044, 33 para os Atos, !<01, A02, B03, C04, 33, 1739 etc. para Paulo.
Esse tipo é caracterizado por sua brevidade e por seu cuidado com a correção
gramatical e ortográfica. Nota-se, especialmente, a ausência da perícope da
mulher adúltera e, às vezes, a ausência de Lucas 22,23-44 (o suor de san-
gue em Getsêmani). Desde C. Lachmann (1793-1851), que o escolheu como
base de sua edição do Novo Testamento, ele tem sido privilegiado por todos
os editores ocidentais; ele é, especialmente, o tipo preferido dos editores do
texto-padrão.
Alguns especialistas distinguem, ainda, um texto palestino, derivado dos
trabalhos de Orígenes, pelos quais Jerônimo professa uma grande admiração.
Esse texto seria representado por p45, Θ038, W 032 (para Marcos), pelas fa-
mílias f 1 e por f 13, 28, 700.

3.4. Mas a surpresa vem, sobretudo, do fato de que, ao remon-


tar, graças aos papiros e às versões antigas, a antes do século IV, em
vez de uma unificação progressiva do texto, que seria de esperar,
encontramo-nos, ao contrário, diante de uma diversidade textual
cada vez maior. Esse fenômeno surpreendente atesta o caráter ins-
tável do texto no correr do século II; o que provavelmente se explica
por múltiplos fatores relativos à gênese e à transmissão das obras do
Novo Testamento.
A grande difusão dos textos nas comunidades cristãs, dissemina-
das desde o fim do século I em toda a bacia mediterrânea, depende,
antes de tudo, de seu caráter vivo, isto é, paradoxalmente, da prio-
ridade dada ao oral. Os textos servem, primeiro, para recolher ou
acompanhar o testemunho, o ensinamento oral ou a catequese, a
liturgia. As cartas de Paulo, os primeiros escritos cristãos, eram sem-

621
A crítica textual

pre confiadas a um colaborador fiel que devia fazer ressoar junto às


comunidades a palavra viva do apóstolo. Os sucessores de Paulo se
aplicaram, aliás, a um verdadeiro trabalho editorial cujo detalhe nos
é, em grande parte, desconhecido.
A tradição que deu nascimento aos evangelhos é essencialmente
oral: antes de ser posto por escrito, e ainda muito depois também,
os textos são proclamados, recitados, explicados, interpretados. A
gênese literária de cada um dos evangelhos supõe uma longa pré-
história e, provavelmente, várias edições".
As condições de produção e de recepção dos escritos induzem,
além disso, a certa variabilidade: os apóstolos e suas comunidades
utilizam os textos de maneira urgente, para comunicar à distância ou
para avivar a memória. Na expectativa premente da parusia, a primei-
ra preocupação não é a durabilidade, mas a urgência da missão: a escri-
tura é muitas vezes confiada a escribas ocasionais, o material do papiro
barato é frágil, facilmente mutilado, rapidamente corroído pela tinta.
Enfim, a palavra recebida é constantemente atualizada, e se
fórmulas litúrgicas se fixam vêem-se também, no próprio curso do
Novo Testamento, a adaptação e a invenção crente criando novas
formulações querigmáticas ou hínicas.
O mais importante fator de variabilidade talvez seja o fato de
que, até pelo menos o século III, ninguém tinha a obsessão da re-
ferência bíblica exata. Na metade do século 11, Papias escrevia: “Eu
não achava que as coisas que provêm dos livros me fossem tão úteis
quanto as que vêm de uma palavra viva e durável” (Eusébio, Hist.
Eccl. 111,39,4). Constata-se, com efeito, uma espantosa liberdade da
citação textual: cita-se de memória, e a norma é a tradição oral sem-
pre viva, guardiã da “regra da fé”.
Por todas essas razões, achamos que os textos por muito tempo
permaneceram “flutuantes”. Não sabemos se a redação deu oca-
sião a uma ou várias edições, se não sofreu, desde muito cedo, revi-
sões diferentes conforme os destinatários... Enfim, é inegável que1

11 Isso é evidente para o evangelho de João, que comporta dois finais; ver
acima p. 447.

622
O te x to do N ovo T e s ta m e n to e su a história

nossos manuscritos dos séculos II e III comportam variantes “volun-


tárias”, reflexos de ardorosos debates cristológicos que inflamaram
as comunidades cristãs. Inúmeras correções de tipo doceta visam
evitar dar a Jesus sentimentos muito humanos, como a cólera: por
exemplo, em Marcos 1,41 só o códice de Beza D05 e vários manus-
critos da Antiga Latina conservaram a lição όργίσθ^ις, “tomado
de cólera”, enquanto a imensa maioria da tradição adotou a lição
respeitosa e edulcorada σπλαγξ ιησθ6ίς, “tomado de compaixão”!
Uma correção do mesmo tipo em João 11,33 é visível a olho nu no
papiro p 66: o manuscrito está raspado e desajeitadamente corrigido
para evitar atribuir a Jesus uma perturbação humana demais!
O texto, nesse estado instável no correr do século II, é chama-
do, impropriamente, de texto ocidental; talvez fosse mais prudente,
hoje, falar de variantes ocidentais. As concordâncias numerosas, mas
não sistemáticas, de toda uma série de testemunhos o atestam:
— para os evangelhos D05, W 0 3 2 (Mc 1,1-5,30), a Antiga La-
tina, as versões siríacas sinaíticas e curetoniana, o Diatessaron, os
Padres latinos antigos.
— para os Atos p 29, p 38, p 48, D05, E08, 2138, syhmg, o códice
Glazier (copta Atos 1-15), um fragmento da síriaca palestina sy1’®1,
os Padres latinos antigos.
— para Paulo D06, F010, G012.
Esses testemunhos reforçam a hipótese de um textopré-recensão,
que nos aproxima do texto primitivo. E preciso, ainda, ser prudente,
e a isso nos obrigam tanto o caráter fragmentário do texto ocidental
como sua diversidade. Estamos ainda dando os primeiros passos no
conhecimento da história do texto nos séculos II e 111.

Os dois textos dos Atos dos apóstolos*


12
O caso dos Atos dos apóstolos ilustra melhor do que qualquer outro a parti-
cularidade do texto ocidental. A existência de dois tipos de texto para os Atos
é conhecida há muito tempo:

12 Ver acima p. 147-149.

623
A crítica textual

— um texto dito alexandrino (TA) dá uma versão mais curta; é a mais cor-
rente, refletida ao mesmo tempo pela tradição egípcia e pela tradição bizanti-
na; é impressa, hoje, no texto-padrão;
— um texto chamado texto ocidental (TO) nos é conhecido em alguns pa-
piros (p38, p 48), e sobretudo no códice de Beza, ao mesmo tempo no texto gre-
go (designado D05) e em sua tradução latina (designada d). Ele aparece tam-
bém nos antigos Padres latinos: Ireneu latino, Tertuliano, Cipriano, e enfim em
certas tradições siríacas antigas: os fragmentos palestinos e as notas marginais
da versão de Thomas de Harkel. Os manuscritos que refletem o tipo ociden-
tal apresentam, além disso, numerosas diferenças entre eles: contam-se 607
variantes, no códice de Beza, entre o texto grego e o latino ao seu lado! Mas,
sobretudo, esse texto se afasta de maneira impressionante do texto alexandri-
no: dos 1.007 versículos do TA o texto ocidental guarda apenas 325 versículos
idênticos; além disso, ele lhe acrescenta 525 e suprime 162.
A questão que agita os especialistas há mais de um século é a da relação en-
tre os dois textos: um dos dois apresenta a redação original de Lucas e o outro
fornece uma segunda edição condensada ou, ao contrário, ampliada? Os tra-
bathos independentes de M.-É. Boismard13 e E. Delebecque estão de acordo
para demonstrar o estilo muito lucano dos dois textos. O trabalho, hoje, incide
sobretudo nos caracteres próprios de cada um dos dois textos, e especialmen-
te do texto ocidental.
C.-M. Martini estudou os traços mais marcantes. O texto ocidental for-
nece precisões históricas que podem ser muito antigas: diz, por exemplo, em
Atos 19,9, que Paulo ensinava na escola de Tirano “da 5a à 10a hora” (isto é,
das II horas às 16 horas), a hora do calor, quando a escola de retórica não
funcionava. Por outro lado, parece ser secundário, do ponto de vista literário;
acentua a hostilidade dos chefes do judaísmo em relação a Jesus e às primeiras
comunidades; insiste nas conversões ao cristianismo em meio pagão, sobre-
tudo entre os notáveis; reforça a autoridade de Pedro e de Paulo; finalmente,
sublinha também o papel do Espírito Santo.
Uma variante notável concerne, em Atos 15,19, ao teor dos decretos edita-
dos pelos responsáveis de Jerusalém acerca dos pagão-cristãos: "abster-se da
impureza dos ídolos, da devassidão, do que é asfixiado e do sangue”. No texto
ocidental, a expressão ritual “o que é asfixiado” (πνιχτοί‫ )׳‬está suprimida, e de-
pois de “do sangue” (αίματος) encontra-se uma expressão da regra de ouro: "e
não fazer para os outros tudo o que não querem que lhes aconteça”. Parece, na
verdade, que um ponto de vista mais ritual fora substituído, aí, por uma obriga-
ção moral.
No fim do século II os dois textos coexistiam e eram recebidos nas diferen-
tes comunidades; eles são, portanto, um testemunho do caráter extraordina-
riamente vivo do texto do Novo !estamento.

1J Marie-Émile BOISMARD, Le Texte occidental des Actes des Apôtres, Paris,


Gabalda, 2000.

624
O te x to do N ovo T e sta m e n to e sua história

4. O MÉTODO DA CRÍTICA TEXTUAL


O trabalho do textualista começa, evidentemente, com a lenta
colação dos manuscritos diferentes. Diante da massa de testemu-
nhos e variantes, os membros da comissão que estabeleceu o texto-
padrão fizeram a escolha de 1.438 lugares variantes, para os quais é
examinado um número sempre crescente de manuscritos significa-
tivos; a leitura de numerosos fragmentos de papiro requer, aliás, a
intervenção de especialistas em paleografia1*. Cada vez mais, tam-
bém, o trabalho de colação se estende às versões antigas (os dife-
rentes dialetos coptas oferecem textos de grande interesse).
Abordaremos, aqui, a crítica textual a partir do momento em que
os especialistas nos oferecem, nos aparatos críticos da Nestle-Aland
e, sobretudo, da G N T um material de uma riqueza e de uma fiabili-
dade notáveis. Quais são, então, os critérios adotados para estabe-
lecer um texto?
Distinguem-se, tradicionalmente, três tipos de operação crítica: a
crítica verbal, a crítica externa e a crítica interna. As três operações
podem, teoricamente, se suceder. Mas veremos até que ponto, às
vezes, suas fronteiras são tênues e como o textualista é levado a
usar, simultaneamente, vários pontos de vista críticos.
a) A crítica verbal consiste em uma espécie de “faxina” do texto
que trata de limpá-lo dos erros de cópia grosseiros; os mais comuns
são a confusão de consoantes unciais (A e Δ, Γ e P etc.), a sim-
plificação (haplografia) ou, ao contrário, a repetição (ditografia) de
uma consoante, a passagem de uma linha para outra quando uma
expressão se repete (homoioteleutom). Outros erros são devidos à
pronúncia ou ao caráter instável da ortografia:
— a confusão o/ω é freqüente, o que faz hesitar entre um in-
dicativo e um imperativo: em Romanos 5,1 a tradição hesita entre
ειρήνην εχομεν (“estamos em paz” ) e ειρήνην εχώμεν (“estejamos
em paz”).14

14 O trabalho de colação e de verificação de manuscritos gregos é essencial-


mente assegurado pelo Instituto para a Pesquisa sobre o Novo Testamen-
to, em Münster.

625
A crítica textual

— o fenômeno do iotacismo cedo afetou a pronúncia de várias le-


tras gregas: η, et, οι, υ vão ser pronunciadas /. Em Mateus 19,24, o
célebre logion do “camelo” que não pode passar pelo “buraco da agu-
lha” criou problema; a maior parte dos testemunhos traz κάμηλον‫׳‬,
“o camelo”, mas alguns manuscritos tardios trazem κάμιλον. Será
um simples caso de iotacismo, as duas palavras sendo pronunciadas
com um i? Ou temos aí o traço de um desejo de atenuar a estranhe-
za do texto, visto que κάμιλον significa “a corda grossa”? Em todo
caso, esta leitura é atestada por Cirilo desde o século V
b) a crítica externa deve ser desenvolvida, primeiro, por ela mes-
ma. Consiste em comparar, para as lições variantes, o número de
testemunhos, sua antiguidade e sua qualidade intrínseca. Entre-
tanto, nem o número, nem a antiguidade dos testemunhos são cri-
térios decisivos: com efeito, testemunhos muito antigos, como o
papiro p66, podem, claramente, trazer correções do tipo doceta.
Do mesmo modo, o texto de Marcião reflete, às vezes, tendências
ultrapaulinas. Assim, no exemplo, citado mais acima, de Romanos
5,10 número e a antiguidade dos testemunhos teriam podido fazer
pender para o subjuntivo: os manuscritos sOl* e B03* (antes da
correção), A 02, C 04, D06, 33, dois manuscritos da Antiga Lati-
na, a Vulgata, o siríaco palestino e a Peshitta têm o subjuntivo; ao
contrário,!01‫ ז‬e B03, depois da correção, e outros mais tardios têm
o indicativo: é o contexto didático e não o exortativo que levou os
editores do texto-padrão a escolher o indicativo. Será preciso pô-lo
de novo em questão?
Presta-se muita atenção hoje em dia ao fato de uma variante ser
atestada em vários tipos de texto. O texto-padrão provavelmente
sacrifica muito à bela apresentação do texto egípcio e, sem dúvi-
da, favorece-o em excesso! De fato, as variantes ocidentais, por não
serem cotejáveis, são cada vez mais valorizadas. Mas também aí é
preciso evitar que se instale um novo tipo de mito de origem. A crí-
tica textual deve multiplicar os critérios e permanecer sempre cir-
cunspecta.
c) A crítica interna tenta avaliar o valor respectivo das variantes
para a compreensão do texto; apóia-se em critérios de coerência

626
O te x to d o N ovo T e s ta m e n to e sua história

interna do texto, de estilo do autor; enfim, deve levar em conta os


debates doutrinais datados, que podem estar refletidos no texto.
Um certo número de adágios ou regras práticas serve, muitas ve-
zes, de critério; devem ser manejados com prudência e tato, porque
nesses assuntos não há regra absoluta:
— lectio brevior. a lição mais curta é a mais provável; os escribas
têm sempre a tendência a precisar, a explicar, para facilitar a leitura;
— lectio difficilior: a lição mais difícil é a mais provável pelas mes-
mas razões; corrige-se um texto para torná-lo mais acessível e não
para torná-lo obscuro!
— lectio difformis: nas passagens paralelas dos evangelhos, uma
lição diferente será preferida, porque escapou à tendência à unifor-
mização;
— lectio quae alias explicat: deve-se, finalmente, preferir sempre
a lição que explica as outras e que se pode designar de “variante-
fonte”. Tischendorf considerava essa “a primeira de todas as re-
gras”; ela engloba todas as outras e deve ser considerada o critério
essencial para o estabelecimento do texto. L. Vaganay a chamava,
poeticamente, de "fio de Ariadne” do textualista.
Mostraremos, com alguns exemplos, que essas regras permane-
cem sempre indicativas, e que o textualista é levado a dialogar com
a crítica literária, tendo em conta o contexto próximo, o vocabulário
e o estilo próprios de um autor e, às vezes, até mesmo o projeto lite-
rário e teológico de uma obra.
1. Um primeiro trabalho consiste em observar as “glosas” ou
explicações acrescentadas em margem, que puderam penetrar no
texto no curso das sucessivas cópias. Estamos, então, nas frontei-
ras da crítica verbal, mas as três abordagens se revelam freqüente-
mente necessárias. É a questão que se coloca no início da carta aos
Efésios: a inscriptio traz, em todos os manuscritos que possuímos,
ΠρόςΈφβσιους, “Aos Efésios”. Todavia, Tertuliano nos faz saber
que Marcião a tinha como uma carta ad Laodicenses, “Aos Lao-
dicenses”. No endereço aos destinatários de 1,1, o complemento
Έφ6σω (“em Efeso”), que deveria vir em seguida do particípio do
verbo ser/estar (τοΐς άγίοι,ς τοίς ονοιν: “aos santos que estã o ...”),

627
A crítica textual

está ausente em testemunhos importantes: P46, n* (antes da corre-


ção), B*, 1739, Marcião, conforme Tertuliano, Orígenes, Basilio;
ele é acrescentado na margem de ?‫ ז‬e de B; e, finalmente, entrou no
texto de A, D, F, G, da Antiga Latina e da Vulgata. Note-se que a
ausência do artigo antes do particípio em p 46 torna o texto legível
(τοΐ,ς άγίοις οΰσιι/: “aos que são santos”). Esta é, certamente, a
lição mais curta, a mais difícil e, provavelmente, a variante-fonte.
A carta se apresenta como uma carta circular enviada às Igrejas,
podendo, cada uma, inserir seu nome no texto? Este seria um caso
único, e deveriamos ter testemunhos mais numerosos. A ausência
inicial de destinatário preciso foi corrigida no correr do século II? No
final do século, Ireneu e depois o cânon de Muratori recebem-na
como carta “aos Efésios”15.
A questão complexa da saudação e da doxologia final da carta
aos Romanos é da mesma ordem: sugere diversas edições da carta,
privada especialmente de seus dois últimos capítulos em meio mar-
cionita16.
2. A crítica interna permanece ainda próxima da crítica verbal
quando detecta harmonizações entre passagens paralelas, sobretudo
nos evangelhos. Trata-se de uma tendência, muitas vezes inconscien-
te, do escriba que conhece de cor o texto mais difundido, geralmente
o evangelho de Mateus, e que ajusta a ele os outros evangelhos. Em
referência ao empreendimento de laciano em seu Diatessarort, ou
“Evangelhos misturados”, fala-se, às vezes, de “tacianismo”. O fe-
nômeno, aliás, acontece ainda hoje com muitos leitores que mistu-
ram os evangelhos e tentam, mais ou menos conscientemente, re-
duzir as tensões ou mesmo as contradições dos textos!
Um exemplo absolutamente notável é o do pai-nosso na versão de
Lucas (Lc 11,2-4). A maior parte da tradução manuscrita, os grandes
unciais a, A, D, W , Θ, as famílias f 1e f '3, a multidão de minúsculas
bizantinas, a Antiga Latina e a Vulgata acrescentam aos cinco pedidos
de Lucas os dois pedidos suplementares de Mateus; o Vaticanus B03,

15 Ver acima p. 366.


16 Ver acima p. 215.

628
O te x to do N ovo T e s ta m e n to e sua história

a siríaca sinaítica, Marcião, Orígenes, Agostinho nos conservaram o


texto curto, cuja antiguidade é confirmada pelo papiro p75.

Um outro caso evidente é o logion de Mateus 24,36, que encontra paralelo


em Marcos 13,32: "ninguém os conhece, nem os anjos do céu, nem o Filho,
ninguém senão o Pai e só ele”. Mas, enquanto o texto de Marcos traz quase
que constantemente “e nem mesmo o Filho” (ού& ò υιός), a tradição do texto
mateano se divide. Se o manuscrito A está amputado da maior parte do Evan-
gelho de Mateus, a tradição bizantina, em seu conjunto, não contém a expres-
são "e nem mesmo o Filho”; como também f ', 33, os lecionários, a Vulgata,
a Peshitta, a siríaca sinaítica e o copta. Inversamente, as tradições egípcia e
cesareana, de um lado (B, Θ, r , f 13, Orígenes) e, de outro, a tradição ocidental
(D, a Antiga Latina, a siríaca palestinense) a contêm. A crítica externa obriga-
rá, portanto, a conservar a expressão. Mesmo que o critério da lectio difformis
não seja respeitado, a crítica interna vê na manutenção da expressão a lectio
difftcHior·, uma confissão de ignorância da parte do Filho só podia chocar a
sensibilidade cristã impelida a desenvolver uma alta cristologia. Ao contrário, a
supressão da expressão parece devida a uma intervenção de tipo doceta. Para
que o logion seja tão estável em Marcos, é preciso que tenha sido atestado e
firmemente mantido em data antiga. Deve-se concluir que a tradição bizantina
corrigiu o texto mateano? É o que fazem os editores do texto-padrão, ao reter
0 ÓÔ€ ό υιός. Todavia, no G NT os membros da Comissão preferem a escolha da
variante da classe (B), que supõe pelo menos uma oposição. De fato, não se
pode pensar que a alta cristologia em ação na redação final do evangelho de
Mateus já teria transformado o logion antigo?

3. Um exemplo tirado do evangelho de João permitirá apreender,


como que ao vivo, os conflitos doutrinais que agitaram o século II:

Em João 1,11, os papiros p^e p75, todos as grandes unciais e as minúsculas,


isto é, a tradição egípcia e a tradição bizantina, assim como o códice de Beza,
lêem: “os que não nasceram dos sangues, nem de um querer da carne...”, o
que caracteriza os crentes. Todavia, um manuscrito da antiga latina (b) e os
Padres latinos mais antigos — Ireneu latino, Orígenes latino (para a metade
das ocorrências), Tertuliano, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo (para um terço
das ocorrências) — têm a frase no singular, referindo-se a Cristo: “ele que não
nasceu dos sangues... ”. O peso da crítica externa é tal que a discussão pode,
de início, parecer inútil. Mas os testemunhos latinos remontam à metade do
século 11. Trata-se, no conflito cristológico, de uma afirmação do tipo doceta ou
de uma afirmação da virgindade de Maria? Ireneu (Contra as heresias III 16,2)
e Tertuliano (Da carne do Cristo XIX) lêem o texto no singular, aplicando-o à

629
A crítica textual

concepção virginal. Tertuliano, por outro lado, acusa os gnósticos valentinia-


nos de tê-lo corrompido, pondo-o no plural para sustentar sua concepção do
cristão "espiritual". No século V, Cirilo lê o plural e faz a ligação entre a con-
cepção virginal e o batismo dos cristãos como o nascimento do alto.

4. Para terminar, diremos uma palavra sobre a questão colocada


por alguns versículos (até mesmo perícopes) ausentes de uma boa
parte da tradição manuscrita, embora conhecidos da outra parte.
Trata-se, principalmente, da perícope da mulher adúltera, mas tam-
bém, em Lucas, da agonia no Getsêmani (Lc 22,23-24), ou do “Pai,
perdoai-lhes” (Lc 23,34). A decisão dos editores do texto-padrão é
imprimir esses versículos no texto, mas cercados de colchetes du-
pios, o que significa a incerteza da tradição ou, às vezes, que a pas-
sagem não pertence ao texto de origem, mas é reconhecida como
uma tradição cristã antiga. São casos em que, de maneira particu-
larmente clara, a crítica textual deve entrar em diálogo com a crítica
literária, sem perder, todavia, sua especificidade.

O texto de Lucas 22,43-44 ilustra bem a dificuldade: os dois versículos


que insistem na agonia terrível de Jesus no jardim das oliveiras, sustentado
por um anjo, estão ausentes de um bom número de grandes unciais (‫א‬, A,
B, W), do papiro f 75, de f '3, da siríaca sinaítica, de Ambrósio, de Jerônimo
e de Orígenes. Ao contrário, eles estão presentes no códice de Beza, em D,
Θ, f ', na Antiga Latina, na siríaca curetoniana e na Peshitta, na Vulgata, em
Justino e Ireneu. A situação é, portanto, muito confusa, mas a omissão parece
em grande parte egípcia: uma altíssima cristologia pôde recusar-se a atribuir a
Cristo tal agonia e a imaginar que um anjo pudesse confortá-lo! Entretanto, a
crítica interna não pode discernir claramente a variante-fonte, porque se pode
também alegar, em sentido contrário, a vontade de insistir na humanidade de
Jesus. Ela procura, então, se apoiar sobre critérios estilísticos. Várias palavras
do versículo 44 são hapax na obra de Lucas; deve-se, por isso, negá-las ao au-
tor? Enfim, ela tem em conta a economia do conjunto do relato da paixão: se o
Jesus de Lucas morre serenamente na cruz, entregando seu espírito nas mãos
do Pai, não teria o autor querido reequilibrar a imagem exprimindo, primeiro,
a angústia muito humana do Filho nessa cena decisiva?

A discussão desse exemplo introduziu elementos de crítica lite-


rária: primeiro a noção de “vocabulário” de um autor, ligado a seus
hábitos estilísticos, depois a construção do conjunto de um relato.

630
O te x to do N ovo T e sta m e n to e sua história

Esse tipo de crítica se desenvolveu sob o nome crítica racional. Ela


insiste no estilo próprio de um autor, mas também no caráter mais
ou menos literário do grego utilizado. É de grande interesse, mas
não está livre de certos riscos, especialmente do risco de círculo vi-
cioso: estabelece-se o texto de um autor a partir de um vocabulário
e de traços de estilo observados... sobre o texto estabelecido. Mais
uma vez, a prudência é obrigatória.
Se os colchetes duplos do texto-padrão permanecem muito am-
bíguos, pois manifestam uma recusa a escolher, eles são interessan-
tes por indicar, imediatamente, ao leitor a variabilidade do texto em
passagens tão importantes!

5 . N o v a s p e r s p e c t iv a s da c r ít ic a t e x t u a l
A uniformização do texto-padrão não deve iludir: o texto do
Novo Testamento testemunha a vida das comunidades cristãs ao
longo dos séculos.
O que a crítica textual sublinha, antes de qualquer coisa, é o es-
tatuto absolutamente original das Escrituras cristãs; o texto nunca
foi verdadeiramente fixado, e a diversidade de nossas traduções mo-
dernas atesta, provavelmente, hoje que a mesma liberdade continua
a agir na transmissão das Escrituras.
A crítica textual continua seu lento trabalho de atualizar as inu-
meráveis variantes que afetaram o texto do Novo Testamento: as
últimas edições do G N T (4a) e da Nestle-Aland (27a) oferecem apa-
ratos sempre mais ricos e mais precisos. Sob a égide de K. Aland, a
série ANTF (Arbeit zur neutestamenttlichenTextforschung) editou
colações de vários papiros e, deste então, as colações de todos os
manuscritos, obra por obra.
Mas outras formas de pesquisa se multiplicam, especialmente em
torno do texto ocidental em sua diversidade: citaremos especial-
mente os trabalhos de E.-M. Boismard e A. Lamouille sobre o texto
ocidental dos Atos dos apóstolos; além disso, depois da tradução,
por E. Delebecque, do códice de Beza para os Atos dos apóstolos,
D. C. Parker editou o códice de Beza, do qual C.-B. Amphoux tra-
duziu e publicou o texto de Mateus. O imenso esforço empreendí-

631
A crítica textual

do por J. Duplacy sobre as citações dos Padres da Igreja prossegue,


especialmente no Centro de análise e de documentação patristica
de Strasbourg, que edita a Bíblia patristica. Enfim, versões cada
vez mais numerosas (copta, etíope, georgiana etc.) são estudadas;
um trabalho de grande amplidão sobre a Vulgata está em curso, e um
outro sobre a Antiga Latina está sendo empreendido.
Esses trabalhos permitirão refinar a teoria dos grandes “estados
do texto”. Mas desde já permitem ao leitor guardar uma atitude mais
crítica em relação ao caráter demasiadamente egípcio do texto-pa-
drão e manter-se, também, prudente diante da tentação, sempre re-
nascente, do mito de origem: é preciso perder a ilusão do “texto ori-
ginal” e aceitar os testemunhos diversos das comunidades eclesiais.
Eles indicam uma relação com o texto que convida à liberdade.

6 . B ib l io g r a f ia
Leitura prioritária
DUPONT-ROC, Roselyne, MERCIER, Philippe. Les manuscrits de la Bi-
ble et la critique textuelle. Cahiers Evangile, Paris, Cerfi 102 (1998).

Edições críticas
The Creek N ew Testament. Ed. Kurt ALAND, Bruce M. METZGER et al.
London/New York, United Bible Societies, 41983 [1. ed. 1966; ed.
rev. 1993],
NESTLE-ALAND. Novum Testamenturn graece. Stuttgart, Deutsche Bi-
belgesellschaft, 271991 [1. ed. 1898; ed. rev. 1993],

Manuais
VAGANAY, Léon, AMPHOUX, Christian-Bernard. Introduction ala criti-
que textuelle du Nouveau Testament. Paris, Cerf, 1986 (retomado por
C.-B. Amphoux do manual de L. Vaganay de 1933).
FINEGAN, Jack. Encountering N ew Testament Manuscripts‫׳‬. A Working In-
troduction to Textual Criticism. London, SPCK, 1975.
METZGER, Bruce M. The Text o f the New Testament. Its Transmission,
Corruption and Restoration. Oxford, Clarendon Press, 21968.

632
O texto do N o vo Testamento e sua história

--------- . A Textual Commentary on the Creek N ew Testament. London/New


York, United Bible Societies, 21994 [I. ed. 1971].
--------- . The Early Versions o f the New Testament. Their Origin, Transmis-
sion and Limitations. Oxford, Clarendon Press, 1977.
--------- . Manuscripts o f the Creek Bible. An Introduction to Greek Paleogra-
phy. N ew York/Oxford, Oxford University Press, 1981.

Listas e bibliografia dos manuscritos


ALAND, Kurt. Kurzgefasste Liste der griechischen Handschriften des Neuen
Testaments (ANTF 1), Berlin, de Gruyter, 1994.
--------- , ALAND, Barbara. Der Text des Neuen Testaments, Stuttgart,
Deutsche Bibelgesellschaft, 1982 (trad. ingl. The Text o f the N ew Tes-
tament, Grand Rapids-Leiden, Eerdmans-Brill, 1987).
James K. ELLIOTT, A Bibliography o f Creek New Testament Manuscripts
(SNTS MS 109), Cambridge, Cambridge University Press, 20002.

Estado da pesquisa
Boletim crítico firmado por Jean DUPLACY em RSR 1962-1967, em Bi-
blica 1968-1972; com a colaboração de Carlo-Maria MARTINI,
1973-1977.
Arbeiten zur Neutestamentlichen Textforschung. Berlin, de Gruyter. Dir. Kurt
ALAND, I969-.
DUPLACY, Jean. Etudes de critique textuelle du Nouveau Testament. Leu-
ven, Leuven University Press/Peeters, 1987 (BEThL 78).
KILPATRICK, George Dunbar. N ew Testament Textual Criticism. Leuven,
Leuven University Press/Peeters, 1990 (BEThL 96).
PARKER, David C. Codex Bezae. Cambridge, Cambridge University Press,
1992.
EHRMAN, Bart D., HOLMES, Michael W. (eds.). The Text o f the New
Testament in Contemporary Research. Grand Rapids, Eerdmans, 1995
(Studies and Documents 46).
PARKER, David C., AMPHOUX, Christian-Bernard (eds.). Codex Bezae.
Studies from the Lunel Colloquium June 1994. Leiden, Brill, 1996
(NTTS 22).

633
Glossário

A lexandrinus: Um dos principais códices gregos da Bíblia (AT e


NT), datado do século V; a crítica textual designa-o pela sigla
A (01).
A legoria: Metáfora desenvolvida em forma de relato, em que cada
imagem representa um conceito, uma idéia. Certas parábolas
de Jesus são lidas como alegorias nos evangelhos (ler Mc 4,3-9
e 4,13-18; Mt 13,24-30 e 13,36-43).
A legorese (método alegórico): Tipo de leitura do texto bíblico cul-
tivado principalmente pela escola de Alexandria, consiste em
interpretar todo o texto à maneira de uma alegoria; nessa lei-
tura, postula-se que todo elemento do relato deve ser decifra-
do em um plano figurado.
A p o calíp tico : 1) Corrente de pensamento religioso, de origem judai-
ca e presente no cristianismo, da qual uma das características
é pensar e formular suas convicções segundo o gênero literário
apocalíptico. 2) Gênero literário que consiste na revelação de
segredos concernentes ao fim dos tempos e à periodização da
história; apresentada como de origem divina e transmitida pela
mediação de homens veneráveis do passado (Moisés, Henoc,
Baruc), essa revelação é comunicada sob a forma de visões, de
viagens celestes ou pela mensagem de anjos intérpretes. Esse

635
NOVO TESTAMENTO - histúbia, escritora e teologia

gênero literário se caracteriza também pela representação de


imagens grandiosas dos acontecimentos futuros, bem como
pelo recurso freqüente à pseudonímia.
A pócrifo: Escrito que apresenta algum parentesco com os livros
incluídos no cânon do Novo (ou do Antigo) Testamento, mas
que a Igreja não incluiu na lista dos escritos canônicos. Sinôni-
mo: extracanônico.
A pologia: Discurso escrito com o intuito de defender ou justificar
uma doutrina, um conceito teológico, uma prática ou uma
pessoa.
A p o teg m a: Pequena unidade literária composta de uma palavra
pronunciada sob forma de sentença, enquadrada por um bre-
ve relato que a introduz em cena.
A retologia: Discurso ou escrito que tem por fim engrandecer os atos
de um personagem de dons excepcionais ou sobrenaturais.
A siáticas (comunidades): Comunidades cristãs situadas na Ásia
Menor (atual Turquia).
C â n o n (canonização): Lista ou coleção de livros reconhecidos dou-
trinariamente como normativos para a Igreja. A canonização
é o procedimento mais ou menos longo mediante o qual um
escrito foi admitido no cânon das Escrituras.
C a tó lic a s (epístolas): Termo aplicado às epístolas que se considera
terem sido dirigidas ao conjunto da Igreja, e não a uma comu-
nidade particular. As epístolas católicas são sete: I e 2 Pedro,
Tiago, Judas e 1, 2 e 3 João.
C la ro m o n ta n u s: Importante códice do NT, datado do século IV,
que contém as epístolas paulinas e deuteropaulinas. Sua desig-
nação na crítica textual é D (06).
C ódice: Conjunto de folhas dobradas e reunidas sob forma de ca-
derno que, na cópia dos manuscritos pelos copistas cristãos,
substituiu, desde o século IV, o rolo (volumen) adotado pelos
escribas da Torá.
C ódice d e Beza: Importante manuscrito grego do N T datado do
século IV/V, contendo, também, uma tradução latina; contém
os evangelhos e os Atos. Sua sigla na crítica textual é D (05).

636
Glossário

C ódigo dom éstico: Gênero literário de intenção ética que tem por
intuito fixar os deveres mútuos a ser observados pelos mem-
bros da família cristã (casal, filhos, escravos).
Corpus: nome dado a um conjunto de escritos oriundos de uma
mesma instância autoral (autor único ou escola teológica).
Exemplo: corpus paulino ou corpus joanino.
C osm ologia: Representação teológica que explica a organização do
universo e as relações mantidas por cada uma de suas partes.
C r ític a d as fontes: Essa atividade do método histórico-crítico
busca detectar os elementos de diversas proveniências que
compõem um texto. A crítica das fontes reconstitui os docu-
mentos escritos sobre os quais se baseou o autor para redigir
seu texto. Sinônimo: Literarkritik.
C rític a te x tu a l: Essa atividade do método histórico-crítico objeti-
va reconstituir o texto original de um escrito pela comparação
e pelo exame de diferentes variantes manuscritas pelas quais o
texto chegou até nós.
D e u te ro p a u lin a s (epístolas): Cartas que a maioria da crítica consi-
dera não terem sido redigidas por Paulo, mas por um autor de
influência paulina (secretário ou escola teológica), depois de
sua morte. Trata-se de Colossenses, Efésios, 2 Tessalonicen-
ses e as pastorais.
D eu tero p au lín ism o : Corrente de pensamento teológico próxima
da teologia do apóstolo Paulo, mas desenvolvida por seus dis-
cípulos e seus sucessores.
D iáspora: Nome dado ao conjunto de comunidades judaicas es-
tabelecidas fora da Palestina, geralmente caracterizadas por
uma atitude mais liberal do que o judaísmo palestino.
Diatessaron: —* T acíano.
Doxologia: Fórmula litúrgica ou epistolar de louvor a Deus ou a Cris-
to, tradicionalmente introduzida pela expressão “Glória a...”.
D uas fo n tes: —* M odelo d as d u as fo n tes.
Eon: Período da história do mundo considerada do ponto de vista
da salvação. O novo éon, para os rabinos, é o tempo escatoló-
gico; para os cristãos, o tempo inaugurado por Cristo.

637
NOVO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia

E pífania: Manifestação de um personagem divino na história, quer


se trate de Deus ou de Jesus.
Essênios (Qumran): Judeus membros de comunidades organiza-
das, de tipo seita, que viviam em bairros particulares de uma
cidade ou vilarejo, ou em um ambiente de tipo monacal esta-
belecido no deserto (Qumran). Os essênios se caracterizam
por uma espiritualidade aliada à estrita observância das regras
de pureza, bem como por uma teologia nitidamente dualista.
A comunidade de Qumran estava situada a noroeste do mar
Morto, a uns quinze quilômetros ao sul de Jericó. No inte-
rior de onze grutas situadas nas proximidades de um sítio que
abrigara um mosteiro essênio, foi descoberta, em 1947, uma
importante biblioteca que continha textos hebraicos e gregos
do AT, escritos apócrifos, bem como escritos próprios da co-
munidade. A data desses escritos varia entre o século III a.C e
o século I d.C.
E usébio de C e s a ré ia (c. 260-340): Bispo de Cesaréia de 315 até
sua morte, Eusébio é sobretudo conhecido como autor de uma
História eclesiástica, obra em dez volumes que narra a história
da Igreja desde a época apostólica até a de Eusébio. E também
o autor de vários outros tratados, entre os quais se destaca a
Preparação evangélica.
E vangelho (com maiuscula): Exposição teológica que enuncia o
modo como Deus se torna historicamente próximo da huma-
nidade em Jesus Cristo. Boa-Nova da irrupção da salvação na
pessoa de Jesus de Nazaré.
evangelho (com minúscula): Documento escrito consagrado à pes-
soa e à mensagem de Jesus Cristo. Gênero literário que veicu-
la essa mensagem.
Fílon d e A le x a n d ria (c. 13 a.C.-45-50 d.C.): Filósofo judeu, con-
temporâneo de Jesus, cujo pensamento é às vezes semelhante
ao dos autores do N T (especialmente no que concerne à dou-
trina do Logos). Entre suas obras, destacam-se suas Questões
e soluções sobre o Gênesis e o Êxodo e seu Comentário alegórico
do Gênesis.

638
Glossário

F lávio Josefo: Judeu nascido em Jerusalém em 37 d.C., morto em


Roma por volta de 98. Tomou parte, primeiro do lado judai-
co, depois do lado romano, da Guerra Judaica, cuja história
escreveu (Guerra dos judeus, c. 75); redigiu também as Anti-
guidades judaicas (por volta de 95), onde lembra a história do
povo judeu, desde a criação do mundo até 66, o Contra Apião
e uma autobiografia (Vita). Seus escritos fornecem informa-
ções preciosas sobre diversos fatos atestados igualmente pelos
evangelhos e pelos Atos dos apóstolos.
Formgeschichte. Processo de análise literária ligado ao método his-
tórico-crítico, chamado em francês critique formiste, crítica das
formas. Seu objetivo é identificar a forma literária recebida por
um elemento da tradição no curso da transmissão oral. Bus-
ca também estabelecer a ligação entre os diversos gêneros e
formas literárias com as situações particulares das comunida-
des receptoras (Sitz in Leben) onde as unidades textuais foram
formadas. A Formgeschichte se interessa pelo aspecto social
da linguagem e postula que a escolha dos meios de expressão
não é fruto do acaso, mas o resultado de uma estratégia de
comunicação.
G losa: Palavra ou grupo de palavras que não pertencem ao texto
original, mas foram acrescentados ulteriormente no curso da
tradição manuscrita com o intuito de explicar o texto, aperfei-
çoá-lo ou adaptá-lo.
G nose: Denominação geral que designa diversos movimentos re-
ligiosos cujo ponto comum é a pretensão de obter a salvação
pelo conhecimento de realidades divinas ocultas aos não-ini-
ciados; um outro postulado dessa corrente de espiritualidade é
um marcado dualismo, de tipo ontológico, que separa radical-
mente o humano do divino, a terra do céu.
G nóstico: —‫ ·י‬G nose.
G u e rra J u d a ic a (66-70): Conflito de caráter nacionalista entre os
judeus da Palestina e as forças do império romano. O conflito
foi desencadeado por um movimento classificado sob o nome
de “zelota”. Iniciou-se em Jerusalém, no verão de 66, em se­

639
NOVO TESTAMENTO - historia, escritora e teologia

guida à crucificação, pelos romanos, de agitadores judeus; ter-


minou em 29 de agosto de 70 com a invasão e o incêndio do
Templo pelas legiões romanas sob o comando de Tito.
Haggadah: Interpretação judaica da Escritura sob a forma de relato
edificante.
Hapaxlegomenon : Nome dado a uma palavra que se encontra uma
vez só no corpus estudado (por ex.: corpus paulino ou NT).
H elen istas: Nome dado, em Atos 6, a cristãos de origem judaica
que adotaram a língua e a cultura gregas; essa corrente está na
origem da missão cristã em Antioquia (At 11,19-21).
Inácio de A n tio q u ia (c. 35-c. 107): Segundo bispo de Antioquia,
conforme Orígenes, terceiro segundo Eusébio, Inácio é o au-
tor de numerosas cartas a diversas comunidades cristãs (aos
romanos, aos magnésios, aos traleses etc.). Em suas cartas ele
alerta seus leitores contra as heresias nascentes, especialmen-
te o docetismo, insistindo na dimensão ao mesmo tempo divi-
na e humana de Cristo.
In te g rid a d e lite rá ria : Condição de um escrito bíblico que, sob sua
forma atual, é uma unidade homogênea, do ponto de vista li-
terário, e não uma coleção de escritos, primitivamente autô-
nomos, reunidos por um redator ulterior.
Iren eu (c. 130-c. 200): Nascido provavelmente em Esmirna, Ireneu
estudou em Roma e depois, em 178, tornou-se bispo de Lião.
Sua obra principal é Contra as heresias, onde se aplica a refutar
as heresias gnósticas em geral e o valentinismo em particu-
lar. Ele dá grande importância à autoridade das Escrituras (AT
e NT), bem como à natureza humana de Cristo. E também
um ardente defensor de um cânon das Escrituras formado por
quatro evangelhos (= evangelho tetramorfo).
Ju d e u -c ris tã o : —►Ju d e u -c ristia n ism o .
Ju d e u -c ristia n ísm o : Designação do cristianismo adotado pelos
fiéis oriundos do judaísmo e não do paganismo. A frente da
comunidade judeo-cristã de Jerusalém estava Tiago, “o irmão
do Senhor”; malgrado sua adesão ao cristianismo, eles conti-
nuavam a observar a Torá e a maior parte dos costumes judai-

640
G lossário

cos, considerando que a fé em Jesus se integrava totalmente


na aliança de Israel.
J u s tin o M á rtir (c. 100-c. 165): Nascido em Naplusa, de pais pa-
gãos, Justino se converteu por volta de 130. Ensinou primeiro
em Efeso, depois em Roma, onde abriu uma escola cristã. E
conhecido por suas duas Apologias, dirigidas ao imperador An-
tonino o Piedoso, a primeira, e ao Senado romano, a segunda.
E também o autor do Diálogo com Trifao, no qual, sob a forma
de um diálogo fictício com um judeu, tenta demonstrar que o
cumprimento das profecias em Cristo prova o caráter transi-
tório da Antiga Aliança e, portanto, a supremacia do cristianis-
mo em relação ao judaísmo.
Koiné: Dialeto da língua grega comumente falado no conjunto do
mundo mediterrâneo depois das conquistas de Alexandre
Magno (desde o século 111 a.C). E a “língua comum” (κοινή
διαλέκτη) usada pelos autores do NT, mas também pelos au-
tores da tradução grega da Bíblia hebraica (Septuaginta).
Logion. Palavra ou sentença breve atribuída a Jesus. Plural: logia.
Logos: Palavra de Deus personificada, atuante e criadora, identifi-
cada, no evangelho de João, com Cristo encarnado.
LXX (Septuaginta): Tradução grega da Bíblia hebraica (AT), com-
posta, segundo a lenda reportada na Carta de Aristeu, por 72
doutores judeus que a realizaram em 72 dias, por ordem de
Ptolomeu Filadelfo (283-246 a.C.), donde sua denominação,
Septuaginta. Na realidade, o processo de tradução e de reda-
ção foi muito mais longo e mais complexo: iniciado por volta de
300 a.C., prosseguiu até o primeiro século d.C. Em relação ao
cânon hebraico, a Septuaginta compreende livros suplementa-
res (Judite, Tobias, Sirácida, Sabedoria, Baruc, adições ao livro
de Ester e ao de Daniel, 3 Esdras, a Oração de Manassés e a
Carta de Jeremias). A Septuaginta é o texto do Antigo Testa-
mento utilizado pela maioria dos primeiros cristãos.
M aiuscula: —* U ncial.
M arcião: Acusado de heresia, Marcião viveu entre 85 e 160 mais
ou menos. Excomungado por Roma em 141, fundou uma lgre-

641
NOVO TESTAMENTO - historia, escritura e teologia

ja (marcionita) que se propagou na bacia mediterrânea e na


Mesopotamia até 440. Sua doutrina desenvolve um paulinis-
mo radical que o leva a rejeitar o Deus do Antigo Testamento,
considerado um demiurgo mau, diferente do Deus de Jesus,
fundamentalmente bom. De golpe, ele reduz a Escritura ao
evangelho de Lucas, o menos contaminado pelo pensamento
judaico, segundo ele, e a dez epístolas de Paulo.
M idrash: Modo de interpretação da exegese judaica pelo qual uma
passagem da Escritura é ilustrada e atualizada com finalidade
exortativa.
M odelo d as d u as fo n tes: Teoria literária segundo a qual Mateus e
Lucas, além de sua fonte própria, teriam tido à sua disposição
duas outras fontes para redigir seus evangelhos: Marcos e Q
(a fonte dos logia).
M on tan ism o : Movimento cristão dissidente cujo lugar de origem
seria a Ásia Menor, em meados do século II; o iniciador desse
movimento foi Montano, acompanhado de seus dois discípulos
Maximila e Priscila. Teologicamente, o montanismo é marcado
por uma prática profética exacerbada pela convicção da imi-
nência do fim do mundo. De um ponto de vista eclesiológico,
o montanismo se afasta da concepção ministerial e hierárquica
da Igreja (as mulheres podem profetizar e ensinar); eticamen-
te, caracteriza-se por uma ascese rigorosa (jejum‫ ׳‬penitência,
virgindade, condenação de segundas núpcias).
M u ra to ri (Cânon ou Fragmento de): Manuscrito latino do século
VIII, publicado em 1740 pelo erudito italiano L. A. Muratori
(1672-1750), que reproduz um texto sem dúvida composto em
fins do século II, começo do século III. Valiosíssimo para a his-
tória do cânon do NT, ele apresenta uma lista de escritos nor-
mativos muito semelhante à do cânon atual; considera-se que
essa lista corresponde aos escritos reconhecidos pela Igreja de
Roma em fins do século II.
N ag H am m ad i: Localidade no Alto Egito onde foi descoberta, em
1945, uma coleção de treze livros, constituindo uma biblioteca
de cerca de 1.000 páginas; esses escritos, redigidos em copta,

642
G lossário

são de tendência gnóstica e datam do século IV d.C.; o Evan-


gelho de Tomé é a obra mais conhecida dessa coleção.
N H C (Nag Hammadi Códice): - ‫ ·י‬N ag H am m ad i.
P a g ã o -c rístã o :—* P ag ão -cristian ism o .
P ag ão -cristian ism o : Designação do cristianismo praticado pelos
crentes oriundos não do judaísmo, mas das nações ditas “pa-
gãs”, isto é, não-crentes no Deus de Israel. Sinônimo: heleno-
cristianismo.
P apias (c. 60-130): Bispo de Hierápolis, na Ásia Menor, cuja obra
conhecemos apenas por fragmentos reportados por Ireneu e
Eusébio. Um desses fragmentos nos informa sobre a identida-
de presumida, na época, dos autores dos evangelhos.
P apiro: Suporte gráfico feito de hastes de junco secas e juntadas
em camadas horizontais e verticais; esse material, fabricado
no Egito, foi utilizado em toda a bacia mediterrânea. As cópias
mais antigas dos textos bíblicos e extrabíblicos chegaram até
nós em papiro.
P apiro E g e rto n 2: Um dos mais antigos papiros cristãos conhecí-
dos até hoje, datado de 150-200; seu texto não coincide com
um texto canônico, mas apresenta semelhanças com textos
dos evangelhos de João e de Marcos.
P arata x e: Construção sintática que opera por justaposição, sem
outra palavra de ligação entre as proposições além de um “e ”
(καί).
P arênese: Passagem bíblica redigida sob forma de exortação, con-
tendo ensinamentos éticos. A abundância de imperativos assi-
nala a presença de uma parênese.
P astorais: Nome genérico dada às duas epístolas a Timóteo e à
epístola a Tito, que têm em comum instruções a respeito da
conduta das comunidades, para uso dos dirigentes.
Paulinism o: Que se refere a Paulo; diz-se também do sistema teo-
lógico elaborado por Paulo.
P esh er : Comentário judaico da Escritura.
P olicarpo (c. 69-c. 155): Bispo de Esmirna, grande defensor da or-
todoxia, Policarpo despendeu considerável energia para com-

643
NOVO TESTAMENTO - história, escritora e teologia

bater as heresias, o marcionismo e o valentinismo em primeiro


lugar. E autor de uma Epístola aos Filipenses. Policarpo morreu
mártir, queimado vivo, em Esmirna, provavelmente em 23 de
fevereiro de 155 ou 156, aos 86 anos de idade.
P refácio e p ísto lar: Parte introdutória de uma epístola que com-
preende: autor, destinatário, saudação de paz, oração de ação
de graças.
P rosélíto: Não-judeu convertido ao judaísmo observante de todas
as prescrições, inclusive a circuncisão. Após a cerimônia da cir-
cuncisão, o prosélíto era submetido a um rito de purificação,
depois oferecia um sacrifício no Templo.
P ro to p au lin as: Cartas cuja paternidade literária do apóstolo Paulo
não é contestada pela pesquisa.
P seu depig rafia: Procedimento literário que consiste em escrever
sob um nome de empréstimo. O autor fictício é, geralmen-
te, um personagem importante da tradição, judaica ou cristã,
mais raramente profana {Testamento de Abraão, Atos de André,
Atos de Pilatos). O procedimento visa colocar o escrito sob a
autoridade do personagem alegado; era uma prática corrente
na Antiguidade. Termo aparentado: pseudonímia.
Q (fonte Q): Inicial da palavra alemã Quelle (= fonte) que, na críti-
ca literária, designa o conjunto de materiais comuns a Mateus
e Lucas e ausentes em Marcos. Essencialmente composta de
palavras de Jesus, é chamada também de “fonte dos logia".
Segundo alguns, essa fonte Q seria um documento escrito,
contendo também uma pequena parte de material narrativo;
segundo outros, essa designação reagruparia materiais de ori-
gens diversas.
Q ueríg m a: Formulação da fé cristã concentrada em seu aconteci-
mento central, a saber, o caráter salvífico da morte e da res-
surreição de Jesus.
Q u erig m á tic o : Que exprime o querígma.
Q u íasm a: Procedimento literário que consiste em distribuir as pala-
vras de uma frase segundo um esquema cruzado a-b/b’-a’.
Q u m ran : -* Essêrtios.

644
G lossário

Sem itísm o: Forma sintáxica ou expressão verbal de uma língua se-


mítica (hebreu ou aramaico), traduzida literalmente em uma
outra língua, o grego no caso do NT
S e p ta n tism o : Utilização de expressões, de formas sintáxicas ou de
temáticas típicas do grego da Septuaginta (LXX) em certos
escritos do NT
S e te n á río : Procedimento literário que consiste em dispor um con-
junto com base no número sete, símbolo de plenitude.
S in aítico : Um dos mais importantes códices gregos do AT e do
NT, datado do século IV O Sinaítico contém os evangelhos, os
Atos, as epístolas de Paulo e o Apocalipse. Sua sigla em crítica
textual é a letra hebraica ‫זז‬.
S in ó tico (de σύν‫׳‬οψίς = ver com): Nome genérico dado aos evange-
Ihos de Mateus, Marcos e Lucas, cuja grande semelhança per-
mite dispor seus textos em colunas paralelas e apreciar, com
um só olhar, suas semelhanças e divergências.
S itz in Leben (literalmente: “meio de vida”): Designação do meio
sócio-religioso no qual surgiram e foram utilizadas as formas
literárias do Novo Testamento.
Sondergut: Material literário usado por um só autor, e que não apa-
rece em outros escritos similares. Sinônimo: tradição própria.
S um ário: Forma literária que apresenta um resumo da atividade,
da prática ou do ensinamento de Jesus, dos apóstolos ou da
comunidade.
S íncrise: procedimento retórico que consiste em pôr em paralelo
dois personagens, ou duas situações, do relato a fim de com-
pará-los.
T aciano: Apologista de meados do século II, discípulo de Justino.
Conhecido sobretudo por ter redigido uma compilação concor-
dante dos quatro evangelhos canônicos, o Diatessaron (172),
que gozou, na Igreja, de autoridade igual a estes até o século V
T em en te a Deus: Designação dada aos não-judeus atraídos pelo
judaísmo a ponto de observar certas práticas como o sábado,
as festas e parte das prescrições rituais. Ao contrário dos pro-
sélitos, não estão sujeitos à circuncisão.

645
NOVO TESTAMENTO ‫ ־ ־‬HISTORIA, ESCRITORA E TEOLOGIA
Terminus a q u o : Data a partir da qual se pode calcular a redação de
um escrito.
Terminus ad q u em : Data além da qual não se pode remontar a re-
dação de um escrito.
Testim onia: Antologia de citações extraídas de diversos textos bí-
blicos com a intenção de dar testemunho. Postula-se que os
primeiros cristãos dispunham de testimonia proféticas com o
fim de abonar, no AT, o messianismo de Jesus.
T exto a lex an d rin o : Uma das variantes, muito antiga, do texto gre-
go do NT, datado do século IV E especialmente representado
pelos unciais B e s .
T exto m a jo ritá rio : Nome dado pela crítica textual à forma majori-
tária do texto grego do NT entre os manuscritos minúsculos.
T exto o c id en tal: Vetus do texto grego do NT, representado espe-
cialmente pelo uncial D. Apresenta, em particular, um texto
dos Atos bastante diferente do texto alexandrino.
Torá: Nome dado à Lei contida no AT e, às vezes, por extensão, ao
conjunto do AT
U ncial: Códice do texto bíblico redigido em letras maiusculas gre-
gas. Esse tipo de escrita em maiuscula foi utilizado até mais ou
menos o século IX, antes de ser suplantado pela letra minus-
cuia. Sinônimo: manuscrito maiusculo.
V aticanus: Importante códice da Bíblia (AT e NT) datado do sécu-
Ιο IV. Sigla na crítica textual: B (03).
Vetus latina: Nome dado a uma forma de tradução da Bíblia em
latim, datada do século II. Sigla na crítica textual: it.

646
Indite de nomes e temas

A Antioquia 59, 61, 89, 124, 125,


141-143, 146, 171, 175, 176, 179,
Ação de graças 193, 199, 208, 211, 191-193,217,221,243,279,280,
234, 237, 261, 282, 298, 300, 288, 289, 367, 426, 442, 526,
311, 316-318, 320, 330, 340, 341,586, 595, 598, 620, 640
349, 358, 360, 364, 378, 379,
Aparato crítico 618
381, 382, 395-397, 497, 644
Apocalipse sinótico 449, 498
Agostinho 19, 23, 81,207, 226, 230,
Apocalíptico 31, 48, 51, 55, 58, 70,
425, 597, 629 126, 225, 247, 282, 377, 385,
Agrapha 581 387, 497, 498, 506-508, 561,
Alegoria 635 635
Alexandria 60, 61, 209, 223, 250,Apócrifo 32, 498, 553, 593, 636
256, 369, 424-426, 433, 455, Apologia 36, 162, 260, 262-264,
524, 526, 554, 572, 573, 576, 266, 269, 319, 504, 505, 549,
589, 592-594, 614, 617, 620, 581, 582, 636
635,638 Aretologia 636
Alexandrino 147, 148, 429, 573, Assembléia de Jerusalém 140, 142,
589,621,624,646 144, 158, 176,461
Ancião 425, 461, 485, 488-491, 501
Antigo Testamento 19, 32, 36, 37,
88,89, 94,97, 111, 132,315,325,
419, 423, 427, 428, 430, 497,
498, 505, 521, 524, 531, 536, Barnabé 59, 142-144, 175, 176,
537,542,561,571,573,579,581, 402, 425, 524, 526, 591, 592,
582,589, 599,614,641,642 596, 614

647
NOYO TESTAMENTO — HISTÓRIA, ESCRITURA E TEOLOGIA

Batismo 18, 40, 49, 50, 52, 71, 72, 277, 278, 280, 281, 291-293,
82, 112, 120, 128, 132, 141, 142, 351, 405, 421, 457, 462, 494,
154, 158, 209, 246, 272, 293, 495,580, 639
334, 345, 347, 352, 359, 405, Cristologia 10, 26, 32, 39, 73, 96,
427, 450, 455, 480-482, 533, 97, 103, 116, 119, 121, 128, 129,
596,630 132, 217, 242, 344, 345, 350,
Bispo 638, 643 352, 363, 369, 370, 372, 407,
429, 454, 462, 463, 465, 468,
481,484, 502,517,531,541,556,
621,629,630
Crítica das fontes 637
Canon 37, 108, 124, 138, 146, 182, Crítica textual 147, 164, 212, 443,
185,191, 193,195,302,357,365,
605,607-609,616,619,625,626,
393, 398, 425, 442, 471, 474,
630,631,635-637,645,646
487, 501, 520, 523, 554, 569,
571-577, 580, 582, 583, 588- Culto 16, 36, 146, 190, 210, 236,
600, 616, 628, 636, 640-642 237, 373, 421, 427, 429, 430,
Ceia 46, 51, 84, 113, 236, 237, 243, 432, 494, 496, 503-505, 508,
246, 440, 442, 581 520, 525, 538, 575, 582
Circuncisão 111, 158, 227, 278, 285- Culto imperial 36, 373, 503, 504,
288, 307, 309, 402, 405, 524, 505,538
527,601,644, 645 Cumprimento 56, 84, 85, 88, 92,
Claromontanus 193, 398, 443, 615, 97, 99, 161, 227, 292, 464, 505,
636 641
Códice de Bèze 637
Código doméstico 637
Coleta 158, 176, 211, 219, 220, 222,
237, 238, 245, 259-268, 272, D
273,288,307,402 Dêutero-paulinas 184
Confissão de fé 51,63, 73, 242-244, Dêutero-paulinismo 184
441,472, 479, 484,529 Diácono 412,425
Controvérsia 18, 51, 63, 73, 83, 93, Diatessaron 582, 583, 599, 600,
190, 242-244, 253, 273, 441, 616, 623, 628, 637, 645
472,479,484, 487, 529
Doceta 481, 623, 626, 629
Corinto 144, 172-174, 176-179, 182,
Doutor 409
187, 194-196, 214, 220, 222, 233-
240, 244-250, 256, 259-265, Doxologia 211, 212, 215, 358, 360,
267-270, 272, 282, 283, 289, 364, 535. 551, 557, 560, 565,
290, 306-309,311,324,345,383, 628, 637
401,405,426,505,526, 542 Doze 18, 50, 39, 53, 97, III, 112,
Cosmologia 351,456, 482, 637 130, 138, 141, 143, 150, 157, 159,
Criação 53, 63, 68, 69, 95, 223, 172, 243, 499, 518, 522, 527,
226, 236, 247, 249, 253-255, 562,598

648
índice d e n o m es e tem a s

Dualismo 452, 454, 455, 464, 639 Eusébio de Cesaréia 638, 644
Duplicata 70, 192, 214 evangelho 15, 18, 20, 30, 32-42, 45-
50, 52, 54, 56-63, 65-67, 69-77,
81, 82, 87-91, 93, 95-98, 102,
107-112, 114, 115, 117-120, 122-
E 127, 129, 131, 132, 137-141, 145,
Éfeso 125, 142, 144, 162, 172, 174- 146, 149, 153, 252, 253, 279,
176, 178, 179, 182, 195, 213, 214, 283, 287, 290, 396, 404, 437-
217, 222, 239, 240, 250, 261, 463, 465-468, 471-479, 481-485,
265, 270, 282, 289, 290, 309- 489, 501, 502, 522, 524, 576-
311, 313, 333, 348, 349, 365, 578, 580-584, 588, 591, 592,
367, 394, 395, 400, 402, 426, 594, 598, 599, 609,613-616, 619,
460, 461, 483, 489, 490, 505, 622, 628,629,638,640-642
598, 600, 627, 641 Evangelho 15, 16, 20, 21, 23, 25,
Epíscopo 412 36,45,46,52,55,58,60,61,72,
Epistolografia 196,201,265,473 73,90, 98,99, 110, 119, 123, 124,
Escatologia 61, 103, 126, 155, 249, 128, 137, 141, 144, 145, 156-158,
253, 287, 327, 345, 351, 352, 163,164,174,182,186-190, 207-
364, 372, 377, 378, 382, 383, 211,214,218,219,222,225-227,
385, 405, 464, 476, 478, 484, 230, 234, 237, 238, 247, 249,
502,507 251, 253, 256, 260, 268-272,
Escravo 235, 253, 272, 282, 290, 277, 279-281, 283-286, 290,
329-332, 334, 336, 498,527 291, 297, 299, 316, 322, 326,
Escriba 55, 93-95, 148, 310, 628 331, 340, 341, 343, 351, 395,
Escritura 11, 22, 37, 45, 47, 70, 78, 406, 410, 422, 442, 466, 505,
86, 119, 208, 209, 211, 218, 220, 520, 523, 529, 530, 536, 539,
278, 280, 292, 402, 410, 423, 542, 546, 577-580, 582, 583,
426, 431, 495, 509, 510, 523, 601, 617, 629, 638, 643
524, 534, 537, 540, 541, 571,
573, 576, 582, 610, 622, 640,
642,643
Espírito 24, 29, 52, 72, 83, 108, F
128, 131, 141, 143, 144, 148, 154,
Fílon de Alexandria 209, 223, 369,
158, 184,209,211,217,228,229,
234-236, 242, 245, 246, 266, 433, 455, 524, 638
272, 277, 278, 280, 281, 283, Flávio Josefo 36, 121, 139, 164, 348,
285, 291-293, 325, 326, 339, 428,523, 639
359, 385, 406, 428, 462, 476, Fontes 10, 12, 15, 23, 25, 28, 32, 33,
477, 480, 481, 485, 491, 499, 35,41,46,61,63, 65, 66,90-92,
500, 564, 565, 577, 584, 601, 94, 118, 121, 122, 147, 149-151,
624, 630 164, 171, 174, 349, 367, 387,
Essênios 157, 638, 644 405, 446, 448, 449, 467, 475,

649
NOVO TESTAMENTO - história, escritora e teologia

497, 542, 576, 577, 581, 583, Integridade literária 212, 443, 497,
585,591,593, 637,642 640
Formgeschichte 16, 22, 37, 42, 64, Interpolação 57, 58, 318, 320, 323
203,265,407,451,639 Intertextualidade 57, 58, 318, 320,
323
Ireneu de Lião 437, 442, 460, 481,
573,576
G Israel 30-32, 36, 38, 84-90, 95-97,
Galião 142, 177, 179, 324 102, 103, 105, 109,120,127-129,
Gênero literário 10, 32, 35, 37, 42, 141, 144, 151, 157, 158, 160, 161,
45, 110, 139, 191, 196, 199, 241, 164,209-211,219, 230,232,248,
279, 302, 329, 335, 345, 364, 318, 319, 371, 372, 374, 439,
366, 372, 377, 378, 437, 448, 498-500, 543,546,641,643
449, 457, 473, 475, 485, 489,
493, 497, 518, 533, 549, 559,
635-638
Glosa 639 J
Gnose 368, 369, 405, 442, 455, 456, Jerusalém 18, 22, 29, 32, 38, 45,
457, 459, 466, 467, 482, 483, 639 47-49,51,52,54,55, 59,61,62,
Guerra Judaica 61, 366, 424, 521, 64, 70, 76, 83, 84, 86, 88, 90,
639 96, 109, 111-115, 119-121, 125,
126, 140-144, 150, 152, 156, 158,
162, 171-177, 179, 180, 191, 211,
H 212, 219-222, 238, 259, 269,
273, 279, 280, 284, 286, 288,
Hapaxlegomenort 640
289, 400, 402, 423, 424, 426-
Helenistas 640
430, 438, 441, 443, 461, 500,
Hino 82, 111, 302-304, 313, 321,
340, 341, 344, 350, 351, 358, 509, 523, 536, 541, 594, 624,
360, 362, 368, 394, 395, 453, 639,640
456,462 Jesus histórico 20, 42, 66, 461
João Batista 18, 28, 29, 40, 48, 69,
82-84,87, 109, 112,113, 119, 128,
437,448,449,454,455,459
João, filho de Zebedeu 598
Igreja, eclesiologia 638, 644 Judaísmo helenístico 198, 209, 223,
Imperador 36, 62, 142, 144, 192, 256, 364, 369, 370, 426, 427,
220,310, 398,505,538,611,641 430,455,518,531,573
Inácio da Antioquia 82, 111, 302- Julgamento 30-32, 85-87, 102, 103,
304, 313, 321, 340, 341, 344, 114, 131,253,270,378,379,383,
350, 351, 358, 360, 362, 368, 427, 454, 456, 495, 496, 507,
394,395,453, 456, 462 508,551,555,556,565,575

650
Indice de n o m es e tem as

Justiça de Deus 182, 188, 208, 209, Marcião 123, 193, 194, 398, 577,
211,216, 224-230,271,277,297, 579, 580, 584, 586-588, 602,
312, 326,529 611,617, 626-629, 641
Justificação pela fé 188, 216, 225, Messias 51, 55, 56, 66, 84-87, 89,
226, 228, 252, 277, 281, 293, 90, 97, 101, 119, 120, 129, 371,
363,373 428, 495, 496
Midrach 51, 55, 56, 66, 84-87, 89,
90, 97, 101, 119, 120, 129, 371,
428, 495, 496
Milagre 16, 27, 64, 67, 75, 76, 92,
Koiné 123, 641 112, 130, 158,438,440,441
Ministério 18, 46, 47, 49, 64, 93,
96, 99, 111-113, 132, 154, 220,
234, 261, 298, 401, 406, 409,
L 412,414,415,438,462
Lei 22, 85, 88, 94, 95, 97, 99, 101, Missão 32, 48, 50, 53, 57, 59, 62,
103, 120, 123,127, 132,133,144, 69, 84, 85, 88, 90, 103, 140-142,
159, 160, 163, 188-191, 207-212, 151, 154, 156, 158, 161, 163, 171,
216,218,222-225, 227-230,234,
173, 175, 176, 217, 259, 260,
235,242,251,252,271,277,278,
280, 287, 307, 319, 321, 323,
280,281,286, 287, 290-294, 312,
400, 402, 425, 464, 484, 521,
315,342,358,363,394,405,406,
536, 586, 609, 622, 640
424, 425, 429, 453, 454, 524,
Modelo das duas fontes 23, 25, 32,
525, 528, 529, 543, 598, 646
33,35,41,637, 642
Liberdade 23, 53, 63, 67, 92, 148,
Mulher 46, 50, 53-55, 70, 71, 77,
186, 187,210,211,235-237, 239,
82, 83, 86, 91, 93, 96, 112, 117,
242, 249, 252, 253, 280, 281,
123, 129, 235, 272, 282, 290,
284, 315, 317, 326, 334, 339- 334, 404, 415, 425, 441, 443,
342, 400, 424, 452, 464, 524, 494, 496, 511, 615, 619, 621,
525, 530, 555, 583, 617, 622, 630
631,632 Muratori 37, 108, 124, 193, 393,
Logion, logia 237 398, 425, 442, 523, 554, 573-
Logos 369, 429, 453, 455, 462, 576, 582, 584, 585, 587-591,
477,481,638,641 594, 596, 600, 628, 642

N
M Nag Hammadi 433, 466, 523, 593,
Manuscrito 57, 108, 123, 138, 264, 642, 643
398, 574, 600, 607, 609, 614, Nero 62, 222, 427, 496, 499, 502,
616, 623, 629, 636, 642,646 503, 505,537-539

651
NOVO TESTAMENTO - história, escritura e teologia

Páscoa 32, 49, 64, 70, 96, 163, 193,


221,437,438, 441,442,506
Oração 29, 51, 56, 100, 112-114, Pastor de Hermes 48, 50, 68, 73,
129, 132, 199,208,211, 212, 234, 114, 118, 130, 407, 409, 437,
237, 261, 282, 298, 317, 359, 438, 440, 444, 446, 448, 449,
364, 366, 379, 382, 394, 440, 452, 457, 468, 481, 517, 544,
442, 447, 450, 472, 528, 611, 581, 601, 630
641, 644 Paulinismo 161, 181, 406, 529, 543,
Orígenes 424, 425, 442, 523, 553, 642,643
554, 589, 590, 594, 598, 617, Paulo, autoridade 73
620,621,628-630, 640 Paulo, produção literária 48, 50, 68,
73, 114, 118, 130, 407, 409, 437,
P 438, 440, 444, 446, 448, 449,
452, 457, 468, 481, 517, 544,
Pagão-cristianismo 643 581,601,630
Paixão 18,19, 32, 35, 36, 38, 47-49,
Paulo, vida 48, 50, 68, 73, 114, 118,
50,51,53-55,64,65,68, 70, 72,
130, 407, 409, 437, 438, 440,
73, 83, 84, 86, 89, 92, 111-114,
444, 446, 448, 449, 452, 457,
117-119, 129, 130, 407, 409, 437,
438, 440, 442, 444, 446, 448, 468, 481,517, 544,581,601,630
449, 452, 457, 462, 468, 481, Poiicarpo de Smirna 209, 223, 369,
517, 544,581,601,630 433,455,524,638
Palimpsesto 643 Prefácio epistolar 534, 550, 560,
Papias 59, 87, 123, 425, 460, 483, 644
501, 577-579, 588, 622, 643 Pré-paulino 303
Papiro 36, 442, 459, 610, 611, 613, Presbítero 59, 460, 461, 465, 485,
615, 619, 622, 623, 625, 626, 489,542, 579
629,630, 643 Profeta 38, 46, 51, 52, 56, 119, 121,
Parábola 18, 29-31, 53, 64, 68, 70, 129, 132, 191,495,496,500,561,
83, 112, 113, 116, 120, 121, 421, 610
427,429,432,450, 521 Prosélito 644
Pararáclito 29, 30, 112, 113 Proto-paulinas 644
Parataxe 26, 60, 116, 451, 643 Pseudoepígrafe 602
Parênese 132, 221, 256, 286, 313,
317, 320, 326, 327, 344, 345,
359, 366,367, 381,411,519, 528,
530, 534, 643 Q (fonte Q) 644
Querigma 36, 127, 149, 254, 255,
Parusia 31, 62, 73, 126, 132, 155,
343, 409,500,534,616, 644
318, 322, 341, 342, 377, 379,
Qumran 94, 103, 266, 369, 370,
383-386, 484, 550, 554-556,
426, 433, 453, 454, 467, 498,
565,622
562,613, 638,644

652
índice de n o m es e tem as

482,484,493,517,518, 534,543,
550, 555-557, 559, 565, 593,
Reinado de Deus 127, 130, 131 637-639
Ressurreição 18, 20, 36, 40, 53, 54, Segredo messiânico 66
63-67, 73, 74, 83, 84, 86, III, Seita 103, 546, 638
113, 114, 117, 118, 129, 137, 142,
Semitismo 645
159-63, 208, 209, 216, 217, 224,
234, 236, 238, 243, 244, 246, Septuaginta 19, 37, 122, 123, 138,
247, 249, 251, 253-255, 299, 140, 146, 152,321,431,521,524,
300,309,311,312,317, 323,325, 540,546, 573,641,645
343, 345, 352, 358, 401, 405, Sinagoga 16, 50, 52, 67, 69, 88, 90,
407, 409, 427, 439, 440, 441, 91, 113, 122, 123, 142, 144-146,
448, 495, 517, 524, 601, 644 154,161, 163, 174, 189,190, 199,
Retórica 11, 49, 82, 121, 122, 250, 221, 222, 271, 285, 286, 323,
273, 277, 279, 353, 388, 473, 453,458,459, 467, 526,610
520,521,531,563,624 Sináiticus 19, 37, 122, 123, 138, 140,
Roma 12, 24, 59-62, 124, 125, 141- 146, 152,321,431,521,524,540,
144,146,152,156,162, 172-175,
178, 180, 182, 193-195, 201, 202, 546,573,641,645
208, 210-214, 217-222,260, 272, Sinótico 15, 23, 33, 41, 62, 449,
282, 289, 295, 306, 310, 313, 466, 498, 645
333, 345, 349, 395, 396, 400, SitzimLeben 16,503,504,510
422-424, 426, 427, 496, 500, Sondergut 33, 645
503, 504, 506-509, 518, 524, Sumário 83,92,141,153,321,645
526, 527, 536, 539, 541, 548,
554, 574, 579, 581-583, 586, _
598,602,611,614,617,639-642 1
Taciano 577, 582-584, 599, 616,
628,637,645
Temente a Deus 645
Sabedoria 94, 101, 223, 224, 234, Templo 32, 38, 51, 55, 61, 64, 65,
237, 250-252, 256, 271, 304,
70, 72, 83, 90, 94, 95, 109, 112-
366,429, 455, 481,483, 519-521,
525, 588, 593, 600,602,641 114, 122, 123, 141, 142, 144, 145,
Sacrifício 421,429-431, 644 369, 424, 427-431, 433, 438,
Salmos 207, 497, 602 441,453, 521,536,640,644
Salvação 10, 32, 36, 57, 109, 110, !14, Testimonies 646
126-129, 132, 141, 144, 154, 156, Texto alexandrino 148,646
157, 160, 162, 164, 176, 200, 201, lexto majoritário 215, 646
211,251,252,254,293, 298, 299,
319, 324, 341-343, 345, 358, 360, Texto ocidental 148,646
363, 364, 371, 399, 405, 408-410, Tiago, irmão do Senhor 524, 526
415,419,420,424,430-433,455, Tipologia 398,405

653
Torá 31, 62, 89, 90, 99, 101, 123, Vetus latina 57, 587, 646
159, 160, 439, 453, 454, 636, Viagem 115, 120, 132, 142-145, 151-
640, 646 153, 172-174, 176-179, 180, 217,
Tradição 398, 405 219, 220, 245, 260, 267, 270,
284, 289, 310, 317, 438, 488,
500
u Viagem missionária 142, 143, 176-
178
Universalismo 95, 102, 164, 218, Vidas de filósofos 46, 110, 139
219, 228,252,272,290, 527

V
Variante 93, 148, 149, 224, 264,
286, 301, 319, 608, 609, 612,
624,626-630, 646
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