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CARLeS AUGUS + © VAILA + + I

fflANUAL DE
DÊrn®N©L©GIA
Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona

intermediária, um claro-escuro onde a realidade parece

preservada, mas a natureza das relações estabelecidas

por lúcifer, a vivência fantasmática quer arrastar a

lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante da alva

significa romper frieza, indiferença e isolamentos,

agressividade, cólera e errância.

O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a

radiação que não deve brilhar: "ego Dominus vocavi te

in iustitia et adprehendimanum tuam et servaviet dedite

in foedus populi in lucem gentium ut aperires oculos

caecorum et educeres de conclusione vinctum de domo

carceris sedentes in tenebrís ego Dominus hoc est

nomen meum gloriam meam alteri non dabo et laudem

meam sculptilibus”

ISBN 978-85-63607-45-4

WWW. F® N +E E D1 + ® RI AL.Cffi01 .BR


Satanás,
DEmêNies e

legiões
um ÍT1ANUAL DE DEm®N©L©GIA
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

Satanás,
DEmêNies e
LEGIÕES
um IT1ANUAL Df rn©N©k©GIA

2011
© Fonte Editorial

Capa: epreparação: Edu\RDO Dl- Pl« )l-NÇA

Formato 14x21 cm - 494 páginas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Vailatti, Carlos Augusto


Manual de Demonologia. Carlos Augusto Vailatti. São
Paulo. 2011. Fonte Editorial.

ISBN 978-85-63607-45-4

1 . Demônios2. Satanás 3. Exorcismo


I Título

CDD236

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio


eletrônico e mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos,
sem permissão expressa da editora.
(Lei n" 9.610 de 19.2.1998)

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DEDICA + ® RIA

>4 Deus, Aquele que com a batuta do Seu infinito poder, rege a
sinfonia do Universo. À minha mãe, Antonia. Ao meu pai, Augusto
(in memoriam). / minha sogra, Rachel (in memoriam), guerreira
incansável das fileiras do exército de Cristo. À minha amada
esposa, Noeli. E a todos aqueles que se interessam pelos estudos
bíblicos e teológicos.
sumARi®
INTRODUÇÃO............................................................................................ 25
i. Determinação do Campo de Estudo.........................................................25
ii. Especificação dos Objetivos.................................................................... 26
iii. Pertinência e Oportunidade da Obra...................................................... 27
iv. Metodologia Empregada......................................................................... -30

SA + A N A S ,
CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE SATANÁS,
DEMÔNIOS E EXORCISMOS..................................................................... 35
1.1. Considerações Sobre Satanás......................................................... 37
1.1.1. Definição do Termo.............................................................................37
1.1.2. Satanás no Antigo Testamento.......................................................... 38
1.1.3. Satanás no Novo Testamento............................................................. 44

D E m e N ie S
1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo............................................... 45
1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes...................................................... 47
1.1.6. Satanás e os Demônios.....................................................................51
1.2. Considerações Sobre os Demônios..............................................53
1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão Demonológica........... 53
1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento................................................. 56
1.2.3. Identificando os Demônios................................................................. 58
E
1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico.................................. 73
1.2.5. Os Demônios na LXX......................................................................... 79
L ÍG I© E S
1.2.6. Os Demônios no I Século d.C............................................................ 83
1.3. Considerações Sobre Exorcismos............................................... 96
1.3.1. Definindo o Termo.............................................................................. 96
1.3.2. Exorcismos noAT e nos Apócrifos..................................................... 97
1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto.................................... 105
1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos.......................................................114
1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do Judaísmo..................... 116
1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão.................................. 129
1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos........................................................... 141
1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor.................................................................... 147
1.4. Conclusão............................................................................. -........ 157

CAPÍTULO II-ANÁLISE EXEGÉTICA DE MC 5.1-20............................. 161


2.1. Análise Sincrônica......................................................................... 163
2.2. Análise Diacrônica............................................................................ 268
2.3. Conclusão.......................................................................................... 310
8
CAPÍTULO III-ANÁLISE HERMENÊUTICA DE MC 5.1-20................. 313
3.1. A Interpretação dos Pais da Igreja e de Outros Autores da Era
Patrística................................................................................................... 315
3.2. A Interpretação Antropológica de René Girard........................331
1

3.3. A Interpretação Parabólico-Alegórica de André Chouraqui...344


C A R ESS A U G U S + © V A IJ .A + +

3.4. A Interpretação Contextualizada de Fiódor Dostoiévski....... 353


3.5. A Interpretação Sociopolítica de Myers e Carter...................... 356
3.6. A Interpretação Psicológica de Freud e Oesterreich.............. 368
3.7. A Interpretação da “Territorialidade Espiritual” de C. Peter
Wagner...................................................................................... 374
3.8. A Interpretação do Simbolismo Mágico-Religioso de Mircea
Eliade........................................................................................................ 383
3.9. Conclusão......................................................................................... 391

CAPÍTULO IV - ANÁLISE HISTÓRICA DE MC 5.1-20.......................... 393


4.1. Uma História de Gerasa....................................................................395
4.2. Uma História da Decápolis............................................................... 401
4.3. Uma História das Legiões Romanas............................................ 416
4.4. Conclusão..........................................................................................453

CONCLUSÃO FINAL................................................................................457

BIBLIOGRAFIA......................................................................................... 461
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APRJ5SÊN + ACî € PRÊFÁCI®

EDUARD® DÊ PRGÊNÇA

|©RGf PINHÊIR© DOS SAN + GS
18
C A R l.e s A U G U S + e V A II.A + + I
Uma mini-história do diabo
Eduardo de Proença
19

Nenhuma pessoa teve sua existência mais questionada na


modernidade que o diabo, nem Deus. No século XIX era motivo de
piada, jornais estampavam charges sobre o diabo, ridicularizando-o e

SA + A N Á S ,
o colocando como a grande crendice dos ignorantes. Mais do que
enfraquecer os poderes de Deus e sua influência no homem e no
mundo, a modernidade lançou mão definitivamente na crença no diabo.
Mas vem o século XX, a maldade do homem em duas guerras
sangrentas e ainda o efeito do genocídio praticado por um líder

D ^ m ê N ie S
chamado Adolf Hitler, fez as pessoas pensarem se seria possível
tanta maldade junta vir única e exclusivamente da mente humana: é
o renascimento do diabo.
Filmes como Psicose de Alfred Hitchcock e o Exorcista
de William Friedkin, além de outros de menos qualidade, do mesmo
gênero, colocam o diabo em cena, ele é o grande protagonista da
maldade no mundo.
Idéias milenaristas e o pleno desenvolvimento do movimento £
tf-G IÕ f-S
fundamentalista iniciado no século XX faz com que a idéia do
renascimento do diabo e suas derivações como o anticristo
floresçam em um ritmo compatível com a fértil imaginação humana.
A história do diabo, da personificação do mal, não nasceu
pronta, mas foi construída marginalmente a própria idéia
desenvolvida por Deus nas paginas da Sagrada Escritura. O Deus
cristão, o Pai apresentado por Jesus Cristo não é o mesmo revelado
nas páginas de Juizes ou Josué, o Deus iracundo, déspota, mas
um Deus de amor, acalentador que reconcilia-se com seus filhos
incondicionalmente, apenas motivados pelo amor. Tantos e tantos
anos de desenvolvimento da narrativa bíblica para essa transição
do deus irado para o Deus de amor, mas que não faz sucesso hoje
no meio evangélico, que prefere ao primeiro em detrimento do
segundo. Assim foi a história do diabo, que começa a aparecer no
texto bíblico na história de Jó, o acusador, Satanás, presente no
tribunal de Deus para propor uma aposta sobre este servo do Senhor,
20
aposta esta aceita.
0 desenvolvimento do personagem diabo ou Satanás na
Bíblia hebraica está proporcionalmente ligado ao desenvolvimento
da transcendência de Deus, ou seja, quanto menos Deus se torna
imanente e se faz mais transcendente, mais o a personalidade do
+
+ diabo toma corpo, quanto mais ele se afasta da terra em direção ao
< céu se torna apenas fonte do bem, mais a relação do diabo com os
>—í homens se torna direta. Deus já não é mais a fonte do mal, de sorte
< que versículos como “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e
> crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.” (Isaias 45:7), já
© não faz mais sentido. Todo o mal está nas mãos do diabo, o
+ adversário de Deus e dos homens.
c/1
Nós como cristãos herdamos uma tradição de um judaísmo

O tardio, o pacote diabo-mal já vem pronto para nosso corpo
dogmático. Exegeses regadas de pressupostos nos fazem enxergar
< inquestionavelmente uma referencia a queda de Satanás ou Lúcifer
</> em Ezequiel 28 no oráculo contra o Rei de Tiro, e nem perguntamos:
© e se for o Rei de Tiro mesmo e não Satanás? E nem nos damos
conta que o nome Lúcifer nem aparecece na Bíblia, a não ser na
<u Vulgata de São Jeronimo quando traduz a expressão “estrela d'alva”
e nem é um nome próprio, mas ganha este prestigio quando na
história do cristianismo batizamos o diabo com este nome.
Neste livro o autor com grande profundidade pesquisa sobre
a figura de Satanás na tradição bíblica, vetero e neotestamentária.
Valendo-se do recurso de conhecer as línguas bíblicas, Carlos Vailatti
passeia com maestia e disciplina pelas escrituras sagradas. Em
um primeiro momento faz uma verdadeira “varredura” pela
terminologia bíblica no que se refere ao mal, desde seres míticos e
maléficos, até nas tadições extra-bíblicas Vailatti verdadeiramente
se esmera.
Independentemente da posição teológica do leitor, certamente
se renderá ao folego de pesquisador demonstrado pelo autor, e
21
pela sua honestidade acadêmica e respeito as tradições cristãs
ainda presentes na maioria das igrejas.
Em uma segunda parte do livro faz uma investigação sobre a
narrativa evangélica de Marcos sobre o jovem possesso, o

S A + A N Á S , D E IU Õ N ie S
Gadareno, que nele habitava legiões de demônios. Com cuidado,
minúcia e com grande organização e didática convida a você a
compreender esse emblemático texto de Marcos.
Se o diabo existe ou não creio não ser o objetivo de Vailatti
demonstrar. Porque como diria Santa Teresa de Ávila “se Satanás
pudesse amar, deixaria de ser mau”.

E
LEG IÕ ES
0 brilhante arrebata os sentidos
Jorge Pinheiro

Em hebraico heilel ben-shachar, e em grego, na Septuaginta,


heosphoros. Lúcifer é a estrela da alva, que brilha de manhã, que a
gente nâo entende porque está all se o dia já vem nascendo. Não
J brilha mais que o sol e, por isso, vai desaparecer quando a luz de
+ verdade, forte, alumiar. Mas se engana quem pensa que essa luz
< meio vesga, que entra olhos a dentro, não veio para alucinar. É o
— brilhante que está ao lado para confundir. É o diá, diacho, diale,
dialho, dianho, adversário que ilumina a alma às avessas.
“Et dices ei haec dicit Dominus Deus tu signaculum similitudinis
® plenus sapientia etperfectus decore in deliciis paradisi Dei fuisti omnis
+ lapis pretiosus operimentum tuum sardius topazius et iaspis chrysolitus
et onyx et berillus sapphyrus et carbunculus et zmaragdus aurum opus
ü decoris tui et foramina tua in die qua conditus es praeparata sunt". (1)
3 É o caluniador das vidas, o que revira o que devia estar de
pé, que faz errar o alvo, que puxa o breque, catatonia, hipotonia,
w» jogo interminável com as mãos diante dos olhos, treme-treme que
® lança os corpos ao chão.
oí É o lúcifer das escrituras antigas, aquele que caiu e que
4 mesmo de dia parecia tão cintilante. É o que leva a luz torta, que
u brilha piscando, a convidar para programas adormecidos na alma.

Mas se ele leva a luz, porque se faz presente no lusco-fusco do


antes do alvorecer?
“Tu cherub extentus etprotegens et posui te in monte sancto
Dei in medio lapidum ignitorum ambulasti perfectus in viis tuis a die
conditionis tuae donee inventa est iniquitas in te in multitudine
negotiationis tuae repleta sunt interiora tua iniquitate et peccasti et
eieci te de monte Dei etperdidi te o cherub protegens de medio lapidum
ignitorum". (2)
E porque hipnotiza com luz mortiça, a língua tropeça, cheia
de ruídos bizarros, de ranger os dentes, de ruído de matraca, e
deságua em grito agudo. 0 eu é substituído pelo tu, pelo ele, e o
sim emudece. A língua não comunica, dilacera.
23
E assim as vidas são cortadas da terra. E a imprecação cai
sobre as cabeças. Como ele caiu, faz os humanos descerem, como
foi cortado por terra, abate as nações! E como pensou subirei ao

S A + A N Á S , D E m Ô N IO S
céu, acima das estrelas exaltarei meu trono e no monte da
congregação me assentarei, aos lados do norte, assim constrói
torres de Babel nos corações. E como disse marinharei sobre as
alturas das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo, convence os
humanos a pugnar o mesmo conflito. Aí está o risco, os humanos
são levados ao s/ieot, ao mais profundo abismo.
E por cortar da terra, heilel ben-shachannvade os corpos com
rituais para caminhar, deitar, levantar. É o delírio, quem sabe o que
ó mentira, o que é verdade? O que é pesadelo, o que é realidade?
A luz de lúcifer alucina. O sono desperta, a boca vomita, as fezes
escapam, o equilíbrio balança e o mundo desaba. O que arrebata
os sentidos está ao lado, chegou piscando. O brilhante, por saber
que será será precipitado no sheol, a sepultura comum, quer
Ê
companhia. Ele é o deus das coisas que fogem, o deus deste
LÊG IÕ ÉS
mundo. E está ao lado.
"elevatum est cor tuum in decore tuo perdidisti sapientiam tuam
in decore tuo in terram proieci te ante faciem regum dedi te ut cernerent
te in multitudine iniquitatum tuarum et iniquitate negotiationis tuae
polluisti sanctificationem tuam producam ergo ignem de medio tui qui
comedat te etdabo te in cinerem super terram in conspectu omnium
videntium te omnes qui viderint te in gentibus obstupescent super te
nihili factus es et non eris in perpetuum". (3)
Quando a extrema angústia aniquila e retalha, a incapacidade
de tolerar fumega, a divagem e a onipotência fazem parte da ordem
do dia, tome ciência, ele pousou a mão sobre o seu ombro e está
a cochichar no seu ouvido idéias de delírio. É o princípio do fim,
você vai fazer o caminho do sheol.
Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona intermediária,
um claro-escuro onde a realidade parece preservada, mas a
24
natureza das relações estabelecidas por lúcifer, a vivência
fantasmática quer arrastar a lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante
da alva significa romper frieza, indiferença e isolamentos,
agressividade, cólera e errância.
CARLO S A U G U S + e V A IK A + + I

O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a radiação


que não deve brilhar: “ego Dominus vocavi te in iustitia etadprehendi
manum tuam et servavi et dedi te in foedus populi in lucem gentium ut
aperires oculos caecorum eteduceres de conclusione vinctum de domo
careens sedentes in tenebris ego Dominus hoc est nomen meum
gloriam meam alteri non dabo et laudem meam sculptilibus” (4).

Notas
1, 2, 3 — Os textos bíblicos citados de Ezequiel 28.12-17 estão em tradução da
Vulgata de Jerônimo.
4-ldem,lsalas 42.6-8.
SA+ANÁS. DÊITlêNieS E LEGIé

INTRODUÇÃO
i. Determinação do Campo de Estudo
O presente livro buscará se concentrar no Evangelho de
Marcos, Evangelho este que, ao longo da história, foi
desprezado pelos estudiosos da Bíblia em geral. No uso
eclesiástico, o Evangelho de Mateus acabou levando vantagem,
pois além de fornecer mais informações para as leituras
litúrgicas, era tradicionalmente usado como o texto base para o
entendimento dos Evangelhos. Depois de Mateus, Lucas era o
Evangelho preferido, porque parecia ser menos judaico e mais
adaptado a uma mentalidade que havia sido influenciada pela
cultura grega, como o fora aquela. Somente por volta de 1900 é
que os estudiosos começaram a devotar maior atenção a esse
Evangelho.12
Todavia, essa concentração no Evangelho de Marcos
ainda é abrangente demais. Sendo assim, a fim de delimitarmos
ainda mais o nosso campo de estudo, nos deteremos numa faceta
específica do ministério do chamado “Jesus Histórico”, isto é,
falaremos sobre o “Jesus Exorcista”, aquele que expulsa os
demônios. Nossa escolha se deve ao seguinte fato: “os
evangelhos sinóticos apresentam sete episódios distintos de
Jesus realizando um exorcismo. O fato de haver sete ‘amostras’
individuais de um tipo específico de milagre, ou seja, o
exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui
maioria no ministério de Jesus”. Portanto, creio que tal tema
mereça uma atenção especial, uma vez que “os exorcismos se
destacam entre os milagres de Jesus em geral”.3

DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. [Tradução de


Benôni Lemos], São Paulo, Paulus, 1972, p.7.
2
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Vol.II,
Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky], Rio de Janeiro, Imago, 1998,
p.170.
3
Idem, Ibidem, p. 172.
25
CAR.LSS AUGUS+® VAILA + + I

Entretanto, por entender que o tema “exorcismo” ainda


seja muito amplo, delimitarei ainda mais o meu campo de
estudo, concentrando essa pesquisa na análise de um relato de
exorcismo específico, o qual já foi chamado de “o mais violento
e maior de todos os exorcismos dos evangelhos”.4 Estou me
referindo ao exorcismo do endemoninhado geraseno, encontrado
em Mc 5.1-20. Nossos esforços se concentrarão principalmente
na análise de tal texto bíblico.

ii. Especificação dos Objetivos


a) Objetivo Fundamental

Há muito tempo tenho acalentado o desejo de realizar um


estudo minucioso sobre algum texto bíblico que tratasse da
temática demonológica. Dediquei, então, dois anos a tal
empreitada, a fim de que pudesse alcançar esse objetivo. Como
resultado dessa pesquisa, surgiu então o tema: Satanás,
Demônios e Legiões: um guia do mal5 Embora outros
estudiosos já tenham se debruçado sobre esse relato de
exorcismo antes de nós, contudo, imaginei que também pudesse
dar a minha modesta contribuição ao estudo dessa perícope.
Então, o resultado dessas pesquisas é o que está sendo
apresentado nesse trabalho.

b) Objetivo Específico

KELBER, Werner H. Mark's Story of Jesus. Philadelphia, Fortress Press,


1988, p.31.
5 Esse livro reproduz, em essência, a minha dissertação de mestrado
apresentada ao Seminário Teológico Servo de Cristo, em São Paulo,
intitulada Legião é o Meu Nome: Uma Análise Exegética, Hermenêutica e
Histórica de Mc 5.1-20, sob a orientação do Prof. Dr. Estevan Frederico
Kirschner, em 2009.

26
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

Quando comecei a escrever sobre o presente assunto, o


meu objetivo específico foi buscar analisar a perícope sobre o
endemoninhado geraseno encontrada em Mc 5.1-20 através de
uma abordagem tríplice: exegética, hermenêutica e histórica.
Aliás, tal proposta ficará evidenciada ao longo da leitura deste
livro. Vários outros tipos de abordagem poderíam ser
empregados no estudo desse texto, mas, a meu ver, a abordagem
tripartida que oferecemos aqui será suficiente para nos ajudar a
compreendê-lo de forma um tanto quanto satisfatória. Utilizar os
recursos da exegese e da hermenêutica para a compreensão de
qualquer texto bíblico é uma ação simplesmente indispensável,
motivo pelo qual tais recursos são empregados aqui. Além disso,
pelo fato do nosso relato possuir alguns elementos históricos
muito importantes no seu corpo narrativo, julguei necessário
abordá-lo também por meio do viés histórico. A justaposição
dessas três análises, ao fim do nosso estudo, se mostrará
extremamente eficaz e positiva, como teremos a oportunidade de
verificar.

iii. Pertinência e Oportunidade da Obra


Nenhum outro personagem, ao longo dos tempos, tem
sido objeto de tanta discussão, investigação e controvérsia como
o diabo e, conseqüentemente, os demônios. E, por mais que
tentemos ignorar, o fato é que todas as pessoas, quer estejam
conscientes disso ou não, inevitavelmente são afetadas (de
forma positiva ou negativa) pela postura que adotam em relação
a estes seres, visto ser impossível assumir uma posição neutra e
de indiferença quanto a tal assunto. Partindo dessa premissa,
creio ser de fundamental importância questionar que tipo de
postura nós estamos adotando com respeito a toda essa questão
de mo no lógica e, conseqüentemente, quais são as implicações
dessa postura adotada.
Em primeiro lugar, existem aqueles que simplesmente não
crêem na existência do diabo e dos demônios. Tais pessoas

27
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

acreditam que estes seres sejam folclóricos, mitológicos, frutos


da crendice popular ou, até mesmo, invenções dos cristãos.
Aliás, a Revista Veja há alguns anos atrás mencionou os
seguintes dados estatísticos, os quais não devem ter sofrido
alterações significativas nos dias de hoje: “99% dos brasileiros
crêem em Deus e somente 51 % acreditam que o diabo existe”.6
Acredito que estes 51% que crêem na existência do diabo,
também creiam na existência de demônios, pois ambos estão
intimamente relacionados. Os representantes deste último grupo,
por agirem assim, tornam-se reféns extremamente vulneráveis
aos ataques e artimanhas de tais seres malignos, justamente por
assumirem uma postura que “baixa a guarda” diante das suas
investidas.
Em segundo lugar, e em sentido totalmente oposto ao
primeiro, há aqueles que atribuem ao diabo e aos demônios
toda a culpa por tudo o que acontece de ruim no mundo. São
pessoas que estão acostumadas a “demonizar” a causa de todos
os infortúnios, tragédias e imoralidades que acontecem. Em vez
de assumirem a sua parcela de culpa nos casos em que assim for
exigido (pois são seres responsáveis por seus atos), acabam

6 Revista Veja. Editora Abril - Edição 1.731 - Ano 34-N°50- 19/12/2001,


p. 125. Esse livro não tem o objetivo de abordar as várias nuanças
demonológicas encontradas em nosso rico contexto brasileiro. Para tal
enfoque, sugiro que sejam consultadas, por exemplo, as seguintes obras:
SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo, Companhia das Letras,
1986; RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e Demônios: demonologia e
exorcismos no mundo luso-brasileiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Editora
Campus, 2003; OLIVA, Alfredo dos Santos. A História do Diabo no Brasil.
São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007; MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos &
Guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal Ltda.,
1998; OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus por que proliferam
as seitas? São Paulo, Musa Editora, 1997; MOTT, Luiz. Escravidão,
Homossexualidade e Demonologia. São Paulo, ícone Editora, 1988; ITIOKA,
Neuza. Os Deuses da Umbanda. São Paulo, ABU Editora, 1988.

28
SA + ANÁS, DEmêNIffiS E LEGIî

lançando toda a culpa nas “costas” do diabo e de seu séquito, os


demônios. Tal atitude extremada visa, muitas vezes, auto-
inocentar o indivíduo, enquanto põe indevidamente o adversário
e os seus cúmplices no banco dos réus.
Em terceiro lugar, encontram-se aqueles que crêem que o
diabo e os demônios existem, mas que subestimam o seu poder.
Os partidários de tal pensamento vêem o diabo e os demônios
como seres já fracassados, derrotados e vencidos. Dessa forma,
não os encaram como ameaças reais, poderosas e atuais que os
estão espreitando a todo o tempo, objetivando destruí-los. Nem
é preciso comentar que tal postura é extremamente perigosa,
porque não leva em conta o tamanho perigo que as forças das
trevas representam.
Em quarto lugar, nos deparamos com aqueles que crêem
que o diabo e os demônios existem, mas que superestimam o seu
poder. Os adeptos dessa ideologia, não diferentemente dos
anteriores, também estão incorrendo num gravíssimo risco, o de
supervalorizar o poderio das forças demoníacas. Estas pessoas,
principalmente movidas pelo medo, acabam desenvolvendo uma
espécie de “diabofobia”, ou “demoniofobia”, isto é, um
verdadeiro pânico, simplesmente ao ouvirem o nome desses
“ditos cujos”, pois acreditam equivocadamente que estes seres
sejam imbatíveis e quase todo-poderosos.
E, por fim, há aqueles que acreditam que o diabo e os
demônios existem e que se armam adequadamente de todas as
formas possíveis para poderem combatê-los e vencê-los. Estes
últimos, de forma completamente oposta aos já mencionados
antes, são aqueles cuja postura adotada parece ser a mais sensata
e equilibrada do ponto de vista da fé cristã. Este quinto grupo
sabiamente reconhece que existe um protagonista espiritual do
mal, o qual, juntamente com outros espíritos malignos que o
seguem, os demônios, buscam prejudicar tudo aquilo que tem
ligação com Deus, bem como, visam principalmente separar o
homem dAquele que o criou e que, portanto, detem todos os
direitos sobre a sua vida.
29
CAR.LGS AUGUS+© VAILA + +I

O fato de haver, pelo menos, cinco tipos diferentes de


posturas que podem ser assumidas quanto à crença na existência
ou não do diabo e dos demônios, já basta por si só para legitimar
a escolha da temática demonológica de nosso estudo. Além
disso, outro fator (e não menos importante) também merece aqui
a nossa atenção. Uma vez que as opiniões sobre a existência do
diabo e dos demônios em nossa Terra Brasilis estejam bem
divididas, pois somente metade das pessoas (51%) crê na
existência dessas entidades malignas, logo, penso que seja bem
pertinente e oportuno abordar o tema da expulsão de demônios
em nosso trabalho.
Por fim, é curioso notar que, mesmo vivendo em uma
época pós-moderna e pós-científica como a nossa, mesmo
assim, há muitas pessoas que ainda continuam a acreditar em:
amuletos, búzios, cartas, duendes, fadas, gnomos, patuás,
talismãs, anjos e, sobretudo, demônios. É espantoso constatar
que, mesmo depois de todo esse cientificismo por nós
experimentado, ainda assim, continuamos a crer em tais coisas!
Contudo, devo dizer que embora não creia na maioria dos
elementos acima alistados, todavia, confesso que me incluo
entre aqueles que ainda acreditam, por exemplo, na existência
de anjos e demônios.
E sei também que não estou sozinho nesta minha crença. De
qualquer forma, independentemente da postura adotada pelo
leitor com respeito a este assunto, estou certo de que tal tema
ainda tem a sua relevância para os dias de hoje. Porém, sou
tentado a pensar que esse trabalho será mais bem apreciado por
aqueles que, como eu, ainda aceitam a “ideia” de que os
demônios realmente existem.

iv. Metodologia Empregada

A fim de que possamos cumprir com os nossos objetivos,


devemos empregar uma metodologia que esteja alinhada à nossa

30
SA+ANÁS, DEffiÔNieS Ê LEGIî

proposta de trabalho. Como o presente livro está dividido em


quatro partes principais, eis, portanto, um pequeno esboço sobre
como pretendemos conduzir o nosso tema:
No Capítulo I, Considerações Preliminares Sobre
Satanás, Demônios e Exorcismos, buscaremos delinear os
contornos de Satanás e dos demônios, bem como, o
desenvolvimento dessas personagens ao longo da história bíblica
e não-bíblica. Partiremos das páginas do AT, passando também
pelo Grego Clássico e pela LXX e, por fim, iremos até alguns
dos principais escritos do I Século d.C., tanto extra-bíblicos
quanto bíblicos, sendo que, neste último caso, trataremos dos
escritos neotestamentários. Aliás, por entendermos que tanto
Satanás quanto os demônios possuem um vínculo muito estreito
entre si, optamos, portanto, por considerar ambos em nossa
pesquisa, dando, porém, maior ênfase nestes últimos. Além
disso, consideraremos também, e à parte, os exorcismos, desde a
sua menção no AT e nos Apócrifos, como também nos
Manuscritos do Mar Morto, nos Pseudepígráfos, na Tradição
Judaica, no Contexto Pagão e nos Papiros Mágicos Gregos,
culminando com o Exorcista-Mor, Jesus. Tais prolegômenos
fornecerão a base sobre a qual se assentarão os “tijolos” e a
“argamassa” de toda a nossa obra.
No Capítulo II, Análise Exegética de Mc 5.1-20, faremos a
exegese de nosso texto a partir das tradicionais abordagens
sincrônica e diacrônica, sendo esta última priorizada pelo assim
chamado método histórico-crítico. Nesse capítulo, pedindo
licença para tomar emprestado um termo da anatomia,
tentaremos “dissecar” o nosso texto, todavia, respeitando a
sacralidade de seu “corpo”. A análise minuciosa que faremos
desse “organismo” nos possibilitará entendê-lo em suas várias
nuanças. Portanto, os instrumentos “cirúrgicos” que utilizaremos

31
CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I

nessa divina “autópsia”7 serão, do ponto de vista sincrônico: a


Tradução, a Segmentação e a Estruturação do Texto, seguidos
das Análises Lingüística, Lexicográfica, Morfológica, Estilística
e de Conteúdo. Já do ponto de vista diacrônico, usaremos os
“bisturis” das Críticas Textual, do Gênero Literário, da Fonte e
da Redação. O uso de todas essas preciosas ferramentas nos
permitirá compreender melhor o significado do texto a ser
estudado.
Já no Capítulo III, Análise Hermenêutica de Mc 5.1-20,
oferecerei oito diferentes e interessantes interpretações sobre a
perícope em questão, adicionando também minhas observações
pessoais sobre as mesmas. Começando por alguns dos Pais da
Igreja e por Outros Autores da Era Patrística, darei
prosseguimento a essa jornada passando por autores como René
Girard, André Chouraqui, Dostoiévski, Myers e Carter, Freud e
Oesterreich, C. Peter Wagner e, por fim, Mircea Eliade.
Acredito que toda essa miscelânea hermenêutica complementará
a análise exegética feita anteriormente dando, inclusive, maior
“tempero” à nossa iguaria enquanto a estivermos degustando.
Finalmente, no Capítulo IV, Análise Histórica de Mc 5.1-
20, me dcterei principalmente no estudo de três elementos
históricos centrais do texto, os quais, conforme vejo, formam o
“eixo histórico” em torno do qual todo o nosso relato se
desenvolve. Esses três elementos históricos principais são: a
Cidade de Gerasa, a Região da Decápolis e a Legião Romana.
No que concerne a este último elemento em particular, creio que
o leitor se verá surpreendido pela linha de raciocínio que

7
Aqui, o termo “autópsia” não é utilizado no sentido médico e de forma
depreciativa, referindo-se ao “exame médico de um cadáver”. Ao contrário, o
termo é usado em seu sentido etimológico, sendo que twróç significa
“mesmo, ele mesmo, próprio” e õi|ílç, “visão”. Portanto, autópsia se refere
nesse contexto ao “exame de si mesmo”. Em outras palavras, nossa exegese
buscará deixar (tanto quanto possível) o próprio texto explicar a si mesmo.
32
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

adotamos em nosso trabalho, ao relacionar a Legião Romana à


Legião Demoníaca citada textualmente em Mc 5.9,15.
Bem, acredito que a essa altura dos acontecimentos, a
“legião” de leitores que nos acompanha esteja, com perdão pelo
trocadilho, com uma “legião” de perguntas e de expectativas
“dentro de si” a respeito do nosso trabalho. Ora, não se preocupe
quanto a isso porque, ao final de nossa pesquisa, tal “legião”
será “expulsa” para bem longe. Pelo menos, é isso o que eu
espero que aconteça a partir das páginas seguintes.

33
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +
f í*

CAPÍTUK© I
C © N SI D C RAC © C S
PRCLimiNARÉS S©BRC SATANÁS,
DcmêNies e cx©Rcism©s
CARL®S AUGUS + ffl VAILA + + I

36
SA + ANÁS, D£ffl©Nl®S Ê LÊG1î

CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES SOBRE SATANÁS,
DEMÔNIOS E EXORCISMOS

Embora os termos “Satanás” e “Diabo” não apareçam no


texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, todavia, como veremos
mais adiante, o termo “Legião” pode subentender a existência de
uma organização hierárquica. E, no caso de uma “legião
demoníaca”, por exemplo, os demônios compõem a base dessa
“pirâmide”, em cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo.8 De
qualquer forma, não podemos tratar de um assunto de natureza
demonológica, como é o nosso, sem incluir este ser maligno em
nossas considerações preliminares, motivo pelo qual as
inserimos aqui.

1.1. Considerações Sobre Satanás

1.1.1. Definição do Termo

O vocábulo “Satanás” vem do hebraico (sãtãn), termo este


que tem sido relacionado etimologicamente a uma variedade de
significados, alguns dos quais pouco convincentes e tidos como
supostos verbos em hebraico e em línguas cognatas. Estas
propostas incluem verbos que significam, por exemplo, “perder-
se”, “revoltar-se”, “cair fora”, “ser injusto”, “incendiar” e
“seduzir”.9 Entretanto, ao que tudo indica, o termo sãtãn pode
g
Como “no tempo de Jesus os fariseus e o povo comum daquele tempo
estavam firmemente convencidos de que havia toda uma hierarquia de
espíritos bons e maus, e que Satã presidia os últimos” é, por conseguinte,
natural inter-relacionar Satanás aos demônios. (Cf. SANFORD, John A. Mal,
o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de Sílvio José Pilon e João Silvério
Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, pp.48,49).
o
TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). Dictionary of Deities and Demons in the Bible. Grand Rapids, Wm. B.
37
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +I

ser mais corretamente definido como “adversário, oponente”,*


10
ou ainda como “contrário, contender, competidor, antagonista,
rival, inimigo”.1112

1.1.2. Satanás no Antigo Testamento

O termo hebraico sãtãn aparece ao todo vinte e sete vezes


no Antigo Testamento e, pelo que podemos perceber, ainda
não há nesta parte das Escrituras uma figura única definida que
claramente personifique o Mal.13 Isto só é notado mais adiante,
em um desenvolvimento posterior e, principalmente, nos
escritos neotestamentários, através da figura do Diabo. Em
outras palavras, podemos dizer que pouco a pouco, de maneira
sutil, mas ao mesmo tempo real e progressiva, Satanás deixa a
sua “timidez” de lado, coloca os seus “chifres”, “garras” e
“tridente” à mostra e vai se revelando na Bíblia. Talvez, tal
afirmação até espante o leitor, mas é a mais pura verdade. A
Bíblia Hebraica se inicia, ao contrário do que muitos pensam,

Eerdmans Publishing Company I Cambridge, Brill Academic Publishers,


1999, p.726. (Na continuação desta obra, os autores explicam detalhadamente
o porquê da incongruência de tais significados supostamente derivados do
termo sãtãn. Cf. Op.Cit., p.726).
10 DAVIDSON, Benjamin. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1981, p.710. Cf. também:
GESENIUS, H. W. F. Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old
Testament. [Translated by Samuel Prideaux Tregelles]. Grand Rapids, Baker
Book House, 1979, p.788.
11 SCHÔKJEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português.
[Tradução de Ivo Storniolo e José Bortolini], São Paulo, Paulus, 1997, p. 641.
12
LANDES, George M. A Student’s Vocabulary of Biblical Hebrew. New
York, Charles Scribner’s Sons, 1961, p.29.
13
Segundo Galambush, a Bíblia Hebraica desconhece a existência de um
oponente cósmico de Deus. Apenas no Novo Testamento é que os traços de
tal adversário cósmico serão bem definidos. (Cf. GALAMBUSH, Julie. The
Reluctant Parting: how the new testament’s Jewish writers created a
Christian book. New York, HarperCollins Publishers, 2006, p.262).
38
SA + ANÁS, DEíTl©NI©S Ê LEGIî

dentro de um contexto no qual Satanás está invisivelmente


envolvido - atuando apenas nos bastidores - mas não é assim
que as Escrituras se encerram. No decorrer de toda a Bíblia,
Satanás vai, lentamente, se mostrando aos seres humanos.
Possessões demoníacas, exorcismos e todos os outros sinais
indicativos da presença deste ser Maligno vão se tomando cada
vez mais freqüentes, até se manifestarem por completo.14
E esse fenômeno do aparecimento gradual de Satanás
tem o seu apogeu justamente no período neotestamentário,
época esta que coincide com a encarnação de Cristo. Em todo o
Novo Testamento, e mais particularmente nos Evangelhos,
Satanás se manifesta com maior freqüência e regularidade,
principalmente por meio de seus seguidores, os demônios, por
meio dos quais chega até a causar a impressão de que é
onipresente.15
Ora, após esta breve introdução sobre o desaparecimento
veterotestamentário de Satanás como figura que personifica o
Mal, é importante vermos os usos que o Antigo Testamento faz
do vocábulo sãtãn, a fim de que obtenhamos uma compreensão
maior sobre este assunto:

14
Elaine Pageis, em seu excelente livro que trata, conforme definido por ela
mesma, da história social de Satanás, faz o seguinte comentário: “Relendo
descrições bíblicas e extrabíblicas sobre anjos, constatei, em primeiro lugar, o
que muitos estudiosos haviam sugerido: que embora eles apareçam com
freqüência na Bíblia Hebraica, Satanás, ao lado de outros anjos decaídos, ou
seres demoníacos, era virtualmente ignorado. Mas, entre certos grupos
judaicos do século I, incluindo com destaque os essênios (que se
consideravam aliados dos anjos) e os seguidores de Jesus, a figura chamada
de Satã, Belzebu ou Belial começou a adquirir também uma importância
fundamental”. (PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o
poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. [Tradução
de Ruy Jungmann]. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p. 15).
15 REIS, Aníbal Pereira. O Diabo. São Paulo, Edições Caminho de Damasco,
1976, p.94.
39
CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I

a. Em Nm 22.22,32 encontramos as primeiras


ocorrências do termo hebraico sãtãn na Bíblia,
sendo que lemos, por exemplo, no verso 22, que “o
anjo do Senhor pôs-se-lhe no caminho [de Balaão]
por adversário'' (ARA). Nós podemos notar
que o ser celestial que age aqui como um sãtãn tem
muito pouco em comum com as conceituações
posteriores de Satanás. Ele é o mensageiro de
Yahweh, não seu arquiinimigo, e ele atua de acordo
com a vontade de Yahweh antes do que se opondo a
ela.1617

b. Em 1 Cr 21.1 lemos que Satanás se levantou


contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo [...]”
(ARA). Neste texto vemos que o nome sãtãn, assim
como no texto anterior, aparece sem o artigo
definido. A maioria dos eruditos, nesse caso, entende
sãtãn como o nome próprio “Satanás”, embora
alguns mantenham que o nome se refere a um
adversário humano e outros ainda argumentem que
ele diz respeito a um inominável adversário ou
acusador celestial. Porém, no texto paralelo de 2
Sm 24.1, o autor bíblico declara que “tornou a ira do
íTÍIT’ Senhor a acender-se contra os israelitas, e ele
t :
incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o
censo de Israel e de Judá”. (ARA). É importante
estabelecer aqui porque o cronista, em 1 Cr 21.1,
trocou seu texto fonte, pois sua motivação tem
implicações sobre como nós compreendemos sãtãn

16 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.727.
17 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.729.
40
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

nesta passagem. Se o cronista tentou realmente


distanciar Yahweh do comportamento malévolo e
inteligente deste sãtãn por atribuir semelhante
comportamento a um outro ser divino, então nós
podemos ver nesta passagem o começo de uma
dicotomia moral na esfera celestial. Se Yahweh não é
o grande responsável pelo comportamento malévolo
com respeito ao gênero humano, e um outro ser
divino capaz de agir eficazmente, independente de
Yahweh, existe, então pode ser bastante apropriado
traduzir sãtãn pelo nome próprio Satanás.

c. Em Jó 1.6-9 (duas vezes no verso 7), 12 (duas vezes)


e em 2.1-4 (duas vezes no verso 2), 6, 7, o vocábulo
sãtãn aparece sempre acompanhado pelo artigo
definido, ou seja, Em outras palavras, nos
vinte e quatro versículos existentes entre Jó 1.6 a 2.7,
a expressão hasãtãn aparece quatorze vezes. Já a
LXX emprega nestes mesmos versos o equivalente
grego ôiápoÀoç para se referir a Satanás.18 19 Muitos
estudiosos traduzem hasãtãn como “o Acusador”,
que eles entendem ser um título que descreve um
papel ou ofício. Contudo, deve ser notado que
nenhum ofício análogo tem sido convincentemente
identificado no sistema legal do antigo Israel, nem
representa a divina assembléia das culturas da

18
Idem, Ibidem, p.730. Joyce Baldwin comenta que “o relato paralelo de 1
Crônicas 21 mostra como o pensamento teológico se desenvolveu ao longo
dos anos, atribuindo a ‘Satanás’ ou a ‘um adversário’ o que anteriormente era
atribuído ao Senhor". (Cf. BALDWIN, Joyce G. I e II Samuel: introdução e
comentário. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo]. São Paulo, Vida Nova,
1996, p.331).
19
Cf. RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
1979.
41
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I

circunvizinhança que incluem uma divindade que


tem a tarefa de ser um acusador. Alguns estudiosos
têm argumentado que existiam acusadores-
informantes no antigo período Persa, e que o sãtãn
de Jó 1 e 2 está baseado nestes informantes. A
evidência para isto, todavia, não é conclusiva devido
à incerteza da existência de provas legais
correspondentes.20 Neste ponto, devemos notar que
como o termo hebraico sãtãn é antecedido pelo
artigo definido “o” no contexto de Jó 1 e 2, então,
neste contexto o vocábulo parece mais descrever uma
função do que representar um nome próprio. Embora
o indivíduo que se apresenta como adversário de Jó
possa ser o mesmo que, mais adiante, é chamado de
Satanás, não podemos concluir tal coisa nesta
passagem, pois parece que o termo sãtãn só passa a
desempenhar nitidamente o papel de nome próprio a
partir do período intertestamentário, mais
precisamente no II século a.C.21

20 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.728. Isaac Asimov observa que “a influência Persa é
demonstrada na cena de Deus como o chefe de uma numerosa corte de
espíritos assistentes. A diferença da perspectiva Persa repousa no fato de que
Satanás não é chefe co-igual de um grupo de espíritos malignos, mas é
simplesmente um espírito único, tão sujeito a Deus quanto o são os outros.
Satan tem, aparentemente, o importante e proveitoso papel de testar os seres
humanos para ver se sua fé em Deus é fiel, ou meramente superficial. Neste
papel, ele atua apenas com a permissão de Deus e somente tão distante
quanto Deus permite”. (Cf. ASIMOV, Isaac. Asimov's Guide to the Bible.
[The Old and New Testaments]. New York, Wings Books, 1981, p.478.).
Sobre a ideia de que a figura de Satanás se desenvolve sob a influência do
dualismo iraniano, veja: ELIADE, Mircea. Historia de las Creencias y las
Ideas Religiosas. Vol.II. [Traducción de Jesús Valiente Maila]. Barcelona,
Ediciones Paidós Ibérica, S.A., 1988, pp.317,318.
21 WALTON, John, MATTHEWS, Victor & CHAVALAS, Mark. CBAAT,
p.511.
42
SA+ANÁS, DEffiÔNieS E LEGIé

d. Em Zc 3.1,2 (duas vezes no verso 2) nos deparamos


novamente com a expressão a qual aparece
três vezes nestes dois versos igualmente
acompanhada pelo artigo definido. Aqui, assim
também como em Jó, a LXX traz o termo õiápoÀoç
como equivalente de sãtãn. Em Zc 3.1, porém, nós
encontramos a curiosa frase: “Deus me mostrou o
sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo
do Senhor, e
Satanás estava à mão direita dele, para se lhe opor’'’
(ARA). Nela nós percebemos o substantivo masculino
w acompanhado do artigo definido H e vemos
ainda o termo o qual é prefixado pela
preposição h e seguido do verbo que aparece
no infinitivo do QaL Este uso duplo da raiz stn que
aparece em Zc 3.1 é enfático e deixa transparecer o
caráter oposicionista da personagem do texto. Ao que
tudo indica, Zc 3 refere-se a um ser divino diferente
daquele que aparece em Nm 22 e, também, é incerto
se o sãtãn de Jó 1 e 2 é o mesmo ser celestial de Zc
3. Além disso, 1 Cr 21.1 parece igualmente não se
identificar de forma clara com nenhum dos três
textos anteriores.

e. Por fim, em textos como, por exemplo, 1 Sm 29.4; SI


38.21 (TM), que corresponde ao SI 38.20 em nossas
versões; SI 71.13 e SI 109.4,6, 20,29 o termo sãtãn
aparece de forma bem variada para se referir a*

70
DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.455.
23
TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.729.
43
CARL©S AUGUS + 9 VAILA + + I

homens. Assim, mencionamos todas as ocorrências


do termo sãtãn nas Escrituras veterotestamentárias,
bem como, seus significados correspondentes.

1.1.3. Satanás no Novo Testamento

Já no Novo Testamento, o termo hebraico sãtãn aparece


trinta e seis vezes ao todo24 através da sua forma helenizada, isto
é, o substantivo masculino Laravâç. O vocábulo grego aparece
nos seguintes textos: Mt 4.10; 12.26 (duas vezes no verso 26);
Mc 1.13; 3.23 (duas vezes no verso 23), 26; 4.15; Lc 10.18;
11.
18; 13.16; 22.3, 31; Jo 13.27; At 5.3; 26.18; Rm 16.20; 1 Co
5.5; 7.5; 2 Co 2.10; 11.14; 12.7; 1 Ts 2.18; 2 Ts 2.9; 1 Tm 1.20;
5.15; Ap 2.9,13 (duas vezes no verso 13), 24; 3.9; 12.9; 20.2,7.
Em Mt 16.23 e Mc 8.33 Pedro é chamado de Satanás por Jesus,
porque ele estava tentando o Mestre a abandonar a Sua missão
como Salvador. Das trinta e seis menções feitas a “Satanás” no
Novo Testamento, 45% delas são encontradas nos Evangelhos.
Estas estatísticas contidas nas Escrituras podem conferir aos
Evangelhos, com justiça, o título de “manual de diabologia”.
Na grande maioria dessas referências, o vocábulo
Zccrarâç já não se refere mais a seres um tanto quanto incertos
como o seu equivalente veterotestamentário sãtãn. Agora, a
palavra que ainda mantém os significados de “adversário” e
“inimigo”, revela sua relação direta e inequívoca com o seu
outro nome, Diabo.25 Ou seja, no Novo Testamento, Satanás é a
óbvia personificação do Mal. Nesta parte das Escrituras, ele é o
arquiinimigo de Deus e daqueles que foram criados à Sua
imagem e semelhança, os homens.

24 K.UBO, Sakae. A Reader's Greek-English Lexicon of the New Testament.


Grand Rapids, Andrews University Press and Zondervan, 1975, p.28.
LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon.
(Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English
Lexicon). Oxford, Oxford University Press, 1889, p.724.
44
SA+ANÁS, DEíTl©Nl©S E LEGIî

Como já havíamos dito anteriormente, ao longo de toda a


Bíblia Satanás vai aos poucos se mostrando aos seres humanos.
E, no Novo Testamento mais precisamente, ele não se comporta
mais de maneira “tímida” e “velada”, como o fazia no período
veterotestamentário. Antes, ele caminha a passos largos, como
que fazendo questão de “se mostrar” e de “se fazer percebido”
cm várias ocasiões do cotidiano das pessoas. No Novo
Testamento, os demônios, as possessões demoníacas, os
exorcismos e as doenças atribuídas aos espíritos malignos, são
cada vez mais freqüentes e notórios - diferentemente do que
ocorria no período do Antigo Testamento - tomando-se, assim,
urna espécie de “cartão de visitas” do Maligno. Nos livros
neotestamentários Satanás se revela de maneira escancarada. Ele
sai dos bastidores e de trás das cortinas da história bíblica e sobe
ao palco naturalmente, de forma desvelada, para que os
espectadores da platéia o observem. Isto também é notado
através do seu outro nome, “Diabo”, sobre o qual falaremos a
seguir.

1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo

Além de Haravâç, outro termo que também é empregado


para se referir ao Maligno, é o termo grego õiápoÀoç. Para
entendermos um pouco mais sobre esse vocábulo devemos nos
dirigir ao período do Grego Clássico, o qual compreende a
época que vai de 900 a.C. até cerca de 330 a.C., época das
conquistas de Alexandre, o Grande. Neste período, o dialeto
ático se destacou, tornando-se a fonte principal do grego do
Novo Testamento. E, além disso, temos que nos dirigir também
ao período do Grego Koiné (isto é, “comum”) que vai de 330
a.C. até aproximadamente 330 d.C. Durante esse período, a
língua grega se tomou universal, sendo livremente empregada

45
CAR.L©S AUGUS+© VAILA + + I


em todo mundo civilizado26 e, principalmente,
• ' •
no mundo bíblico
neotestamentário.
Entre o período do Grego Clássico e o do Grego Koiné, o
vocábulo òiápoÀoç aparece na literatura secular, significando,
por exemplo, “predisposto à difamação”, “caluniador” e “acusar
falsamente” em Aristófanes (200 a.C.), Andócides (405 a.C.) e
Plutarco (120 d.C.). E aparece também com o significado de
“falso acusador” e “caluniador” em Xenofonte (401 a.C.) e em
Aristóteles (384-322 a.C.).26
27
Já na LXX, podemos encontrar esse termo em textos
como Est 7.4; 8.1; nos textos já citados de Jó, capítulos 1 e 2; 1
Cr 21.1; Zc 3.1,2; no SI 108.6 (LXX), SI 109.6 nas nossas
versões, e também no livro apócrifo de Sabedoria (Sb 2.24),
onde lemos que “foi por inveja do diabo (ôiápoÀoç) que a morte
entrou no mundo [...]”.2829
Por fim, o termo grego ôiápoÀoç ocorre no Novo
Testamento trinta e oito vezes. Ele é mencionado em quatorze
dos vinte e sete livros neotestamentários, distribuído da seguinte
forma, a) Nos evangelhos: quinze vezes - Mt 4.1,5,8,11; 13.39;
25.41; Lc 4.2,3,5,6,13; 8.12; Jo 6.70; 8.44; 13.2; b) No livro de
Atos: duas vezes - At 10.38; 13.10; c) Nas epístolas: dezesseis
vezes - Ef 4.27; 6.11; 1 Tm 3.6,7,11 (ôia(3óÀouç -
“caluniadoras” - em 1 Tm 3.11); 2 Tm 2.26; 3.3 (ôrépoÂ.oi -
“caluniadores”); Tt 2.3 (õiapóÀovç - “caluniadores”); Hb 2.14;
Tg 4.7; 1 Pd 5.8; 1 Jo 3.8 (três vezes), 10; Jd 9; d) No
Apocalipse: cinco vezes - Ap 2.10; 12.9,12; 20.2,10.
Esses números são muito interessantes, pois nos mostram
que das trinta e oito menções feitas ao Diabo no Novo
Testamento, cerca de 40% delas são encontradas somente nos

26
REGA, Lourenço Stelio. Noções do Grego Biblico. São Paulo, Vida Nova,
1995, p.l.
27 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p. 135.
28
Bíblia de Jerusalém, p. 1206.
29
KUBO, Sakae. RGELNT, p.L
46
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

Evangelhos. De fato, nos Evangelhos estão concentradas as


maiores ocorrências da atividade diabólica/demoníaca de toda a
Bíblia.
No Novo Testamento, o termo grego ôtápoÀoç parece
conservar o mesmo significado básico do período do Grego
Clássico, significando “caluniador”, “difamador”.3031
*Ao que tudo
indica, o termo é derivado de diabállõ, que quer dizer:
■7 1

“arremessar sobre” ou “através de”, “impelir sobre”. O termo é


composto pela preposição grega dia, “através de, por (meio de)”
c é também formado pelo verbo grego bállõ, “lançar, atirar,
derrubar”. A seguir, veremos outros nomes que são atribuídos
a Satanás.

1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes

Além dos já citados (sãtãn), Saxavaç (Satanás) e


õiápoÀoç (diábolos), o arquiinimigo de Deus e dos homens
possui também outros nomes pelos quais é conhecido nas
Escrituras, alguns dos quais mencionaremos abaixo:

a) □IDT (bã’al zebüb) ou BeeACepouA.


(Beelzeboid). Este nome possui significado bem disputado nos
meios acadêmicos, mas, de forma geral, esse termo que é de
origem fenícia, lido em hebraico, significa “senhor dos
estrumes” ou “príncipe das moscas”.33 No AT, o nome bã'al

GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo


Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.43.
31 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p. 135.
3" TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. Diccionario Conciso Griego-
Espanol del Nuevo Testamento. Stuttgart, United Bible Societies, 1978,
pp.31, 32, 42.
’ SAYÉS, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San Pablo,
1997, p.31.
47
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I

zebüb aparece, por exemplo, em 2 Rs 1. 2,3,6,16 para se referir


a uma divindade da cidade fdistéia de Ecrom. Já no NT, o
vocábulo Beelzeboid aparece em Mt 10.25; 12.24,27; Mc 3.22;
Lc 11. 15,18,19. Neste contexto neotestamentário, Beelzeboid é
visto como um dos nomes do próprio Satanás, embora haja
quem entenda que o nome também possa se referir a algum
“príncipe dos demônios” a ele subordinado.34

b) (beliya’ al) ou BeXtáX/BcXiáp Qbelial/beliar).


O nome beliya'al é um epíteto de escárnio e desprezo que
aparece freqüentemente por toda a parte no AT, uma ou outra
vez dessa forma, ou em sua variação associada “Filhos de
Belial” (Dt 13.13; Jz 19.22; 20.13; 1 Sm 2.12; 10.27; 30.22; 1
Rs 21.13 etc). O termo significava “irresponsável”, “sem lei”. A
palavra também veio a ser usada como um sinônimo para
“companheiro inútil” ou “imbecil”, um “inútil”. Já no NT, o
apóstolo Paulo emprega o termo BrÀtáp uma vez (2 Co 6.15),35
onde Belial aparece como contrário a Cristo, aproximando-se,
deste modo, do status diabólico do Anticristo. Neste uso
posterior, ele é freqüentemente empregado pelos escritores da
Apocalíptica Judaica tanto para se referir a Satanás como ao
Anticristo.36

Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.100. Cf. ainda: GESENIUS, H.


W. F. GHCLOT, p.131.
35
Este verso aparece no contexto de 2 Co 6.14-7.1, passagem que, segundo
Jean Pouilly, “diversos exegetas consideram como texto essênio inserido no
corpus das epístolas por um judeu-cristão: o nome Beliar, conhecido em
Qumrã - designação do Príncipe das Trevas - aparece somente aqui na
literatura paulina”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã. [Tradução de Benôni
Lemos]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p. 134).
36
TENNEY, Merril C. The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. Grand
Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.104.
48
SA + ANÁS, DEíTlêNieS E LEGIé

c) novripóç (ponerós). Essa expressão grega significa


“malvado, mau, perverso, maligno, pecaminoso”. Porém, há
alguns casos em que a palavra, ao ser precedida pelo artigo, “o
Maligno”, faz alusão a Satanás. Isso pode ser visto, por
exemplo, em Mt 6.13; 13.19,38; Jo 17.15; Ef 6.16; 2 Ts 3.3 etc.
liste nome, sem dúvida alguma, ressalta o caráter perverso e
corrupto de Satanás.

d) ó ápxcov toô KÓopoo toútou (ho árchõn toü kósmou


loútou). O título “o príncipe deste mundo” aparece em Jo 12.31
c 16.11. Em Jo 14.30 esse título aparece sem o pronome
demonstrativo. Tal nomenclatura faz referência a Satanás como
o governante maligno deste mundo, o qual exerce a sua função
com ares de “chefe de estado”, juntamente com o seu “corpo
governante”, os demônios.

e) áp/oma Tf|ç è^oootaç roí) áépoç (árchonta tês


eksousías toü aéros). Esse título, “príncipe das potestades do ar”
(Ef 2.2), também referente a Satanás, é curioso, pois nos mostra
que em Efésios “os lugares celestiais” têm espaço não somente
para Cristo e os crentes, mas também para os poderes hostis. Isto
pode ser explicado sobre a base de uma compreensão do cosmos
que vê os céus como 0 lugar da habitação de todo espírito que há
no mundo. Tal ponto de vista é encontrado no AT em Jó 1.6ss e
cm Dn 10.13,21; e no pensamento apocalíptico em passagens
tais como 2 Macabeus 5.2; E em 1 Enoque LXI.10; XC.21,24.* 38
Enquanto o título anterior descreve Satanás como governante
sobre a terra, este título o mostra como governante de um reino
aéreo e, portanto, invisível, imperceptível aos olhos humanos.
f) i|+úoTr)<; (pseústês). Em Jo 8.44 vemos que Satanás é
chamado não somente de pseústês, “mentiroso”, mas também de

TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. DCGENT, p. 146.


KITCHEN, Martin. Ephesians. [New Testament Readings]. London,
Routledge, 1994, p.58.
49
CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + + I

ó TTccrrip aÜToü (Ao patêr autoü), isto é, “o pai dela (da mentira)”.
Tal título é absolutamente contrário àquele que é auto-atribuído
por Jesus em Jo 14.6. Neste verso, Jesus diz: ’Eytó el|n...T]
áÀfjOeia (Egõ eimi...hê alêtheia), “eu sou a verdade”. Tal título
cristológico, alêtheia, se contrapõe em extremo ao adjetivo
satânico pseústès.

g) tÒu ôpÚKoma, ó õcfuç ó áp%aToç (tòn drákonta, ho ófis


ho archalos). Estes dois títulos, “o dragão, a antiga serpente”,39
referências óbvias ao Maligno, são encontrados em Ap 20.2 ao
lado de dois outros nomes já citados, Diabo e Satanás. O nome
“antiga serpente” é uma alusão clara a Gn 3.1-5ss, onde lemos
sobre a tentação de Adão e Eva e a sua respectiva queda. É
digno de nota que em Gn 3.13, quando Eva diz: “a serpente me
enganou” (ARC), após ter sucumbido à tentação, a palavra
“enganou” é derivada do verbo hebraico NÜ3 (nãshã’),
“trapacear, enganar”.40 Tal verbo subentende a existência de um
ser dotado de inteligência por trás da serpente, capaz de iludir e
de enganar. Portanto, tal verbo não se refere ao mero ofídio do
episódio da tentação, mas o transcende, apontando para aquele
que o está manipulando como uma marionete nos bastidores, ou
seja, Satanás. Além disso, deve ser observado também que a
palavra (’êbâ) “inimizade” em Gn 3.15, onde aparece
novamente ligada à serpente, pode ser traduzida como “intenção
hostil”, sendo usada novamente em Nm 35.21 onde é aplicada a

39
Neste momento, me vem à memória uma declaração bem humorada feita
certa vez pelo pastor Atila Brandão de Oliveira em uma de suas pregações:
“Deram tanta comida ao diabo que, no Antigo Testamento, ele é chamado de
serpente, mas no Novo Testamento, ele cresceu tanto que já é chamado de
grande dragão”. Este adjetivo “grande” é tirado de Ap 12. 3,9. Além disso, é
digno de nota o fato de o dragão ser visto como um ser mitológico sengundo
as antigas concepções orientais.
40 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.248.
50
SA + ANÁS, D£ffi©NI®S E LEGIî

homens.41 Mais uma vez, seria insensato entender que tal


vocábulo fosse aplicado para descrever a “intenção hostil” entre
um animal e um ser humano. Tal termo alude ao ódio entre
indivíduos, e não entre animal/homem. Neste caso, tal intenção
hostil só pode proceder do Maligno.42

1.1.6. Satanás e os Demônios

Conforme já foi adiantado no início deste capítulo,


apesar de os termos “Satanás” e “Diabo” não aparecerem no
texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, porém, o termo
“Legião” pode subentender a existência de uma organização
hierárquica. E, em se tratando de uma “legião demoníaca”, os
demônios são aqueles que formam a base dessa “pirâmide”, em
cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo. Por este motivo é que
resolvemos inserir esse tópico no qual falaremos sobre o vínculo
existente entre Satanás e os demônios.
Ora, ao ler as páginas do Antigo Testamento, ficamos
simplesmente surpresos por ver que não há uma única referência
feita à relação existente entre a personificação do mal conhecida
como Satanás (o Diabo) e os demônios. Porém, na medida em
que avançamos em nossa pesquisa, tal relação começa a adquirir
contornos mais claros.

Idem, Ibidem, p. 12.


42
Robert Alter faz os seguintes comentários sobre o termo inimizade
encontrado em Gn 3.15: “embora a serpente não seja de jeito nenhum
‘satânica’, como nas lendas das tradições judaico-cristãs posteriores, a
maldição registra um horror primitivo da humanidade diante deste ser
rastejante, de olhar viscoso, e representante venenoso do reino animal. Este é
o primeiro momento em que um rompimento entre o homem e o reino animal
é registrado. Por trás dele pode-se encontrar, na longa distância da mediação
cultural, os mitos cananitas de uma serpente marinha primordial”. (Cf.
ALTER, Robert. Genesis: translation and commentary. New York, W. W.
Norton & Company, Inc., 1996, p. 13.).
51
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + + I

Ao consultarmos a literatura pseudepigráfica (V-I século


a.C.), por exemplo, nos deparamos com alguns textos que
descrevem a existência de um vínculo entre Satanás e os
demônios. No livro da Ascensão de Isaías II, 2, lemos: “E
Manassés não serviu ao Deus de seu pai e dedicou-se ao culto de
Satanás, de seus anjos e de seus poderes”.43 Já I Enoque VI, 1-4
nos fala sobre uma hierarquia espiritual de anjos caídos
(demônios), na qual encontramos Semjaza (o demônio superior)
e mais dezoito demônios subalternos.44 No Testamento de Levi
XVIII, 4, encontramos escrito: “Ele [o sacerdote-messias]
acorrentará Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os
espíritos maus”.45 No Testamento de Dã VI, 1, nos deparamos
com o seguinte conselho: “Assim, meus filhos, temei o Senhor!
E guardai-vos de Satã e dos seus espíritos!”.46 Finalmente, um
dos textos que expressam o conceito de hierarquia, bem como, o
vínculo existente entre Satanás e os demônios de maneira
formidável, se encontra no livro dos Segredos de Enoque XXIX,
2-4:

(...) Satanail foi, com seus anjos, precipitado das alturas.


E um dos anjos, tendo saído de sua hierarquia c se
desviado para uma hierarquia debaixo da sua, concebeu
um pensamento impossível: colocar o seu trono acima
das nuvens que se encontram sobre a terra, para que seu
poder se igualasse ao meu.
Prccipitci-o do alto com seus anjos, e ele pôs-sc a voar
por cima do abismo continuamcntc.47

PR.OENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e Pseitdo-Epígrafos da Bíblia.


[Tradução de Claudio J. A. Rodrigues], São Paulo, Fonte Editorial Ltda.,
2005, p. 132.
44
Idem, Ibidem, p.261.
45 Idem, Ibidem, p.349.
46 Idem, Ibidem,
47
Idem, Ibidem, p. 116.
52
SA+ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIé

No Novo Testamento encontramos também algumas


referências ao vínculo existente entre Satanás e os demônios. As
seguintes expressões exemplificam tal fato: “Belzebú (...),
príncipe dos demônios” (Mc 3.22ss); “o diabo e seus anjos” (Mt
25.41); “(...) o Diabo, (...) Satanás (...), e os seus anjos” (Ap
12.9). Além disso, o Diabo (Satanás) também aparece vinculado
a certas ordens hierárquicas espirituais do mal no texto clássico
de Ef 6.11,12.
Bem, creio que estes poucos exemplos extraídos
respectivamente das literaturas pseudepigráfica e
neotestamentária já são suficientes o bastante para nos mostrar
que, a partir do período intertestamentário, Satanás e os
demônios passam a ser associados. Além do mais, este primeiro
começa a ser visto como chefe (líder hierárquico) dos últimos.
Tal constatação é deveras importante para o nosso trabalho,
como veremos mais adiante.
Assim, nós concluímos esta seção que buscou levantar
algumas considerações referentes a Satanás. A seguir,
consideraremos alguns aspectos que dizem respeito aos
demônios.

1.2. Considerações Sobre os Demônios


1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão
Demonológica
É um tanto quanto complicado falar sobre a identidade, a
natureza e o papel dos demônios, sobretudo no Antigo
Testamento, devido a, pelo menos, três fatores: a) terminologia;
b) desenvolvimentos históricos; e c) questões teóricas.48 A
maneira como estes fatores forem compreendidos, irá afetar a
nossa concepção demonológica veterotestamentária como um
todo. Portanto, vejamos estes itens um pouco mais de perto.

Sigo aqui o The Anchor Bible Dictionary. (Cf. FREEDMAN, David Noel
(ed.). ABD. Vol.IL [D-G]. New York, Doubleday, 1992, pp.138,139).
53
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

a) Terminologia

O uso do termo “demônio” principalmente no Antigo


Testamento é problemático por duas razões principais: primeira,
parece que não há um único termo no hebraico bíblico que possa
ser consistentemente e inquestionavelmente traduzido como
“demônio”. A ausência de tal ferramenta lingüística constitui-se,
portanto, nosso primeiro obstáculo. Segunda, muitos termos
usados como referência aos demônios são hapax legomena
(termos que ocorrem uma única vez em um texto) ou aparecem
somente em uns poucos exemplos. Ou seja, essa escassez de
dados não nos permite muitas vezes a comparação e a correlação
com outros textos bíblicos, o que muito dificulta a nossa
compreensão demonológica.

b) Desenvolvimentos Históricos

O próprio Antigo Testamento carece de uma simples ou


coerente apresentação dos demônios. Muitos estudiosos
concordam que opiniões sobre os demônios no Antigo Israel se
tornam cada vez mais complexas e negativas, contudo, eles
diferem entre si sobre como isto aconteceu. Várias
possibilidades têm sido sugeridas: 1) A crença geral em
demônios como espíritos malignos independentes foi sempre
parte da teologia israelita (particularmente no nível popular) a
qual foi simplesmente desenvolvida em períodos posteriores. 2)
A crença geral em demônios como espíritos ambivalentes ou
aspectos de Deus era parte original da teologia de Israel que em
tempos posteriores veio a separar os seres espirituais em “bons”
espíritos (anjos) e “maus” espíritos (demônios) 49 3) A crença

Esta é também a opinião de Nelson Kilpp em um de seus artigos


intitulado: Os Poderes Demoníacos no Antigo Testamento. Neste interessante
artigo, ao falar sobre aquilo que ele chama de “os traços demoníacos de
54
SA + ANÁS, DÊIT1©NI©S E LEGIî

geral em demônios como figuras malignas independentes foi um


desenvolvimento tardio que surgiu quando se tomou
teologicamente inaceitável apresentar os acontecimentos ruins
do cotidiano como aspectos de Deus. 4) A crença geral em
demônios refletida nos textos poéticos (deber, qeteb)5<}
gradualmente diminuiu, enquanto a crença em outros tipos de
demônios aumentou (as várias formas da figura de Satanás e as
multidões de demônios e anjos malignos representados no
período intertestamentário).

c) Questões Teóricas

Algumas questões tomam difícil a compreensão


demonológica relacionada ao Antigo Testamento. Dentre elas
destacamos as seguintes: 1) Muitos dos estudos sobre os
demônios no AT usam materiais comparativos, particularmente
aqueles de outras culturas do Antigo Oriente Próximo.
Evidências lingüísticas e arqueológicas têm provido ajuda no

Deus”, Kilpp analisa três textos: Gn 32.23-33 (Jacó luta com Deus nas
proximidades do rio Jaboc), Ex 4.24-26 (Javé ataca Moisés e tenta matá-lo) e
Ex 12.21-23 (Parte do relato sobre a origem da Páscoa) e os conclui com
algumas observações espantosas. Ele identifica: a) o ser (Deus) que lutou
com Jacó (Gn 32) com um espírito fluvial; b) aquele (Deus) que tentou matar
Moisés no caminho (Ex 4) com um demônio do deserto e c) o misterioso ser
(Deus) identificado como “exterminador” dos primogênitos (Ex 12) como um
demônio destruidor. (Cf. GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e
Poderes Satânicos. [Série Estudos Bíblicos]. Petrópolis, Editora Vozes, 2002,
pp.25-27.). De acordo com G. Fohrer, “fenômenos misteriosos, medonhos e
horrificantes foram incorporados à descrição do próprio Deus ou associados a
um ser celestial ou espírito enviado por lahweh. Conseqüentemente, lahweh
assumiu feições ‘demoníacas’ (...) - ou, mais exatamente, veio a aparecer
numa luz irracional e numinosa - e o limite entre seres celestiais e demônios
ficou obscurecido. Por isso, os demônios são raramente mencionados [no
AT]”. (Cf. FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. [Tradução de
Josué Xavier], São Paulo, Ed. Academia Cristã Ltda / Paulus, 2006, p.228).
50 O vocábulo deber significa “pestilência, praga mortal, peste”; e qeteb
quer dizer “destruição”.
55
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

esclarecimento de alguns aspectos do conhecimento


veterotestamentário sobre os demônios. Contudo, estas
evidências também levantam questões sobre o grau de
comparação legítima possível entre culturas separadas pela
língua, tempo, geografia e teologia. 2) Muito da linguagem
sobre os demônios no AT e no Antigo Oriente Próximo aparece
em materiais poéticos com referência a fenômenos naturais. Este
contexto levanta a questão de como referências poéticas a
fenômenos naturais podem ser interpretados - como referências
literais aos fenômenos físicos, como simbolizações ou
personificações poéticas, ou como referências aos reais
demônios ou divindades. 3) A tradução em geral do intercâmbio
dos termos com “demônios” é problemática. Isso ocorre porque
as traduções em geral são influenciadas por muitos fatores:
evidência filológica c tendência, teologia e decisões antecipadas
com respeito a conhecimentos do termo “demônio” e as próprias
formas de interpretar cada texto particular. 4) Identificações e
conhecimentos dos demônios no AT são fortemente
influenciados pelo contexto mais amplo dentro do qual os
demônios são analisados: contextos passados têm incluído
magia e bruxaria, religião “popular”, rituais oficiais
apotropaicos, simbolismo poético e psicologia da religião.
Todavia, a despeito de todos estes “obstáculos” que
aparecem à nossa frente, ainda assim, nos atrevemos a tentar
compreender um pouco mais sobre este complexo mundo
demonológico encontrado principalmente no AT. Aliás, já que
introduzimos a problemática da complexa hermenêutica
demonológica referente ao AT, mergulhemos agora um pouco
mais fundo nesta questão.

1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento

Todo estudioso da Bíblia já deve ter notado a enorme


escassez de referências aos demônios nas páginas do Antigo

56
SA + ANÁS, DErtlÔNieS E LEGIî

Testamento5152e, conseqüentemente, deve ter observado também


(ou não, devido à sua falta) maior escassez ainda quanto aos
relatos de exorcismos. Sem querer ser irônico, me parece que
tanto os demônios como também os próprios exorcismos foram,
ambos, “exorcizados” das páginas do AT e banidos para bem
longe. Aliás, esse fato me parece ser bastante óbvio, pois, não
havendo demônios, como conseqüência lógica, não há também
exorcismos a serem feitos. Ou seja, a inexistência da primeira
cláusula já exclui automaticamente a segunda. Tal constatação
me dá a impressão de que se Jesus vivesse no período do Antigo
Testamento, o seu ministério taumatúrgico e, mais
especificamente, sua atividade exorcística, se veriam em sérios
apuros, pois ele não encontraria demônios para exorcizar, ou
então, encontraria muito poucos deles. Entretanto, quando
saltamos para as páginas do Novo Testamento e, mais
precisamente, para os Evangelhos, percebemos que estes textos
estão simplesmente impregnados de narrativas referentes aos
demônios. No AT os demônios estão “escondidos”. Ali eles
raramente “dão as caras”. Já no NT, sobretudo nos Evangelhos,
temos que tomar muito cuidado, pois a cada capítulo, se não
prestarmos a atenção, podemos “esbarrar” em muitos deles.
Como no próximo capítulo nos concentraremos na
análise exegética de Mc 5.1-20, então, como preâmbulo
necessário para efetuar tal análise dentro do Sitz im Leben
Jesu,51 devemos antes situar a referida perícope dentro de seu
contexto mais amplo. Isto quer dizer, em outras palavras, que
devemos buscar entender as narrativas sobre demônios,

51 Segundo a Tradição Cabalística Judaica, os espíritos malignos tiveram a


sua origem durante o Shahat, formando assim uma legião de demônios. (Cf.
YOJAI, Simeón Bar. (Rabbi). El Zohar: el libro dei esplendor. [Traducción
de Caries Giol]. Barcelona, Ediciones Obelisco, 2004, pp.97,98).
52
Esta expressão alemã quer dizer: “contexto de vida de Jesus”. (Cf.
DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo
Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004,
p.160).
57
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

encontradas nos Evangelhos, a partir da sua fonte primária


localizada no AT. Tal fonte nos fornecerá o pano de fundo que
será a base para a nossa compreensão demonológica do NT,
condição sine qua non para o nosso estudo. Seguindo esse
roteiro, veremos a seguir as informações que o AT nos fornece
sobre os demônios e, em seguida, com base nesses dados,
veremos se o AT nos fornece também armas de defesa ou de
proteção contra tais seres demoníacos. Em particular, nos
interessará saber se os exorcismos faziam parte de tais
mecanismos de defesa contra a presença ameaçadora dos
demônios.

1.2.3. Identificando os Demônios53

Já foi dito anteriormente que não há um só termo no


hebraico bíblico que possa ser inquestionavelmente traduzido
por “demônio”. Contudo, isto não quer dizer que não existam
outros termos hebraicos que possam ser utilizados como
referências (ainda que indiretas) a ele. Baseado nisso,
inventariamos logo abaixo uma relação de tais seres demoníacos
encontrados nas páginas do AT, no intuito de aprofundarmos a
nossa compreensão sobre este assunto:

a) Duas Categorias Gerais de Demônios

• Dntá (shêdim) Dt 32.17; SI 106.37. Segundo


Unger, o significado etimológico deste termo não
está muito bem estabelecido, mas ele acredita que o
vocábulo seja derivado da raiz shudh “governar, ser

53 Para obter mais informações sobre os demônios, tanto no AT quanto no


NT, consulte: HAAG, Herbert. Breve Diccionario de la Bihlia. Barcelona,
Editorial Herder, 1992, pp. 161-164. Veja ainda: BOURRAT, Marie Michèle
y SÒUPA, Anne. Pero, Existe el Diablo? [Traducción de José Salgado].
Bilbao, Ediciones Mensajero, S.A., 1997.
58
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

senhor”, como o árabe sala.54 Já Bauer entende que


este nome deve ter alguma relação com o acádico
shedu, “anjo protetor”.55 Porém, ao que tudo indica,
a palavra shêd (singular de shèdim) tem ligação
com o vocábulo babilônico shêdu, “demônio (bom
ou mal)”.56 Talvez, este significado ambivalente do
termo possa ser explicado como sendo resultado de
uma teologia original mesopotâmica, a qual via os
demônios como espíritos ambivalentes, dotados de
traços positivos e negativos, os quais seriam um mero
reflexo do comportamento bom ou mau dos seres
humanos.

• DTltôl (se'irim) Lv 17.7; Dt 32.2; 2 Rs 23.8;57 2 Cr


11.15; Is 13.21; Is 34.14. Esse termo que, como o
anterior, também aparece aqui em sua forma plural,
se'irim, é derivado do hebraico sã'ir, “bode”. O
vocábulo parece significar “demônio (cabeludo)”,

UNGER, Merril F. Biblical Demonology: a study of the spiritual forces


behind the present world unrest. Wheaton, Scripture Press Publications, Inc.,
1973, p.59. Unger também escreveu outro livro sobre demonologia, o qual
trata deste assunto nos dias atuais. (Cf. UNGER, Merrill F. Demons in the
World Today. Wheaton, Tyndale House Publishers, Inc., 1988).
55 BAUER, Johannes B. Dicionário Biblico-Teológico. [Tradução de
Fredericus Antonius Stein]. São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.92.
56 HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luiz A.T. Sayão e
Carlos Osvaldo C. Pinto], São Paulo, Vida Nova, 1998, p. 1527.
57 A BHS observa em nota marginal que o hebraico hase’irim é
provavelmente a forma mais correta a ser utilizada no lugar de hase'arim, a
forma como a expressão aparece em 2 Rs 23.8. (Cf. ELLIGER, K. &
RUDOLPH, W. (eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart, Deutsche
Bibelgesellschaft, 1997, p.667.).
59
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

SR
(em forma de bode). De acordo com Unger, estes
seres eram vistos inquestionavelmente como objetos
de culto. Ele ainda argumenta que o fato da LXX
traduzir se’irim por ôaip.óvia em Is 13.21 e 34.14
prova que os Judeus de Alexandria consideravam tais
seres como demônios mesmo.*59

HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.353. Cf. também:


MCDANIEL, Ferris L. A Reader's Hebrew-English Lexicon of the Old
Testament. Dallas, edited by author, 1975, p.14; LANDES, George M. SVBH,
?927'
UNGER, Merril F. BD, p.60. Não é nosso propósito discutir nessa obra
sobre a legitimidade ou não do uso do termo grego daimonia, por exemplo,
como a tradução mais apropriada do hebraico se'irim. Contudo, creio ser
proveitoso e oportuno citar aqui algumas observações encontradas no
Dictionary of Deities and Demons in the Bible a esse respeito: “Durante o
período intertestamentário e durante a ascensão da literatura judaica em
grego, os termos daimon e daimonion começaram a assumir entre os judeus
a conotação negativa de ‘demônio em aliança com o Diabo’. A inspiração
para esta substituição no significado foi o encontro durante e após o Exílio
com o dualismo zoroastriano. Esta cosmologia postulava dois campos
espirituais guerreando, controlados por seus líderes, o deus zoroastriano e o
diabo, e comandados por arcanjos e arquidemônios e suas graduações de
espíritos inferiores. Eles brigavam a respeito da lealdade dos humanos,
lealdade expressada nos comportamentos justos ou injustos e finalmente na
vida eterna ou na destruição ardente. Os deuses antigos das nações e suas
divindades serviçais, os espíritos inferiores da natureza e do cosmos, foram
‘demonizados’, rebaixados à classe de espíritos maus, tentando humanos a
pecar e seduzindo-os da verdadeira fé pelas falsas doutrinas de outras
religiões. Eventual mente, porém, houve um fim, uma vitória de Deus, um
salvador que conduz os poderes opostos à destruição, um Julgamento Final e
uma Nova Era. Círculos dentro do judaísmo usaram esta estrutura para
reavaliar antigos mitos e produziram após o Exílio as tensões dualísticas do
judaísmo, visíveis na literatura pós-exílica e intertestamentária e também no
Cristianismo”. (Cf. TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST,
Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.238).
60
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

b) Fenômenos Naturais com Traços Demoníacos

• "IXH (deber) SI 91.6; Os 13.14; Hab 3.5. O termo


hebraico deber significa “praga, pestilência”.60 Este
substantivo masculino refere-se a qualquer tipo de
peste que resulte em morte e, com exceção de uns
cinco casos, todos os usos deste vocábulo aludem à
peste enviada por Deus como forma de castigo.61
Contudo, ao que tudo indica, nas referências acima
citadas (com a possível exceção de Hab 3.5) a
pestilência também é demonizada devido às suas
graves conseqüências na vida dos seres humanos em
geral.

• (qeteb) Dt 32.24; SI 91.6; Is 28.2; Os 13.14. O


vocábulo qeteb significa basicamente “destruição”.62
Esse termo aparece, por exemplo, no curioso
contexto do SI 91.63 Devido às referências a

LANDES, George M. SVBH, p.26.


61 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.399. Quanto a essa questão da
pestilência ser enviada por Deus, Nelson Kilpp diz muito acertadamente que
“no Antigo Testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único.
Esta exclusividade do Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo
radical entre o bem e o mal e também pela inexistência de uma demonologia
no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta como um Deus
ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal”. (Cf.
GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e Poderes Satânicos, p.25).
62 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
63 Roy Stewart comenta: “a afirmação de que o Salmo 91, especialmente os
versos 5-7, faz referência específica aos demônios é provavelmente correta; a
afirmação de que Moisés compôs o Salmo enquanto subia ao Monte Sinai,
para protegê-lo de seus atormentadores demoníacos, certamente é incorreta”.
61
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1

pestilências e doenças que estão presentes nesse


texto, muitos comentaristas tratam todo o salmo
como se fosse uma polêmica contra o uso de
fórmulas mágicas usadas para repelir demônios. De
fato, o Talmude sugere que o Salmo seja utilizado no
caso de ataques demoníacos. E dentro deste contexto,
o “tns (pahad layla), “terror noturno”
(v.5), pode se referir ao demônio da noite, lilit,
enquanto que a fü (hêts yci'up
yômãm), “seta que voa de dia” (v.5) pode descrever
os ardis dos demônios perversos.64 A ? ^2X3
"13*7 (deber bã’ôpel yahalôke), “peste que se
propaga nas trevas” (v.6) pode ter afinidade com o
demônio Nantar, enquanto que a □ ''“1712
(qeteb yãshüd tsãhàrãyim), “destruição que ataca
ao meio-dia” (v.6) pode se referir a um demônio de
um só olho, também mencionado na tradição
rabínica. Mesmo que estas idéias estivessem ausentes
dos pensamentos do autor, elas faziam parte
integrante do salmo em seu uso real entre os judeus.65
Em outras palavras, o Salmo 91 é uma espécie de
Manual de exorcismo da tradição rabínica judaica.66

(Cf. STEWART, Roy A. Rabbinic Theology: an introductory study.


Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961, p. 61).
64
Segundo Keel, “a ‘flecha voadora pelo dia’ pode aludir a uma das flechas
transmissoras da enfermidade (cf. SI 38.3) de Reshef, deus da guerra e da
peste. Aqui, o ‘senhor das flechas’ (...) fica reduzido à condição de demônio”.
(Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei Antiguo Oriente y el Antiguo
Testamento. [Biblioteca de Ciências Bíblicas y Orientales], [Traducción de
Andrés Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.81).
65 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. The Wycliffe Bible
Commentary. Chicago, Moody Press, 1987, p.529.
66 É curioso observar que semelhante uso do Salmo 91 também pode ser
encontrado em larga escala em nossa religiosidade brasileira. Nela, o costume
62
SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé

=■^7. (reshep) Dt 32.24; Jó 5.7; SI 76.4; SI 78.48;


Hab 3.5. O vocábulo reshep significa
“pestilência”.67 Mas, além disso, também pode ser
traduzido como “chama, relâmpago, faísca”.68 É
interessante observar como os pagãos, devido às suas
crenças animistas, povoaram a realidade de espíritos.
Por exemplo, o hebraico reshep, “pestilência”,
parece ter relação com o ugarítico rshp, o “deus da
pestilência”.69 Desta forma, o fenômeno da natureza
foi demonizado neste último caso. Já em Jó 5.7 foi
sugerido que o termo reshep que ali aparece, não se
refere a faíscas literais, mas a Reshep, o deus da
febre e das epidemias.70 Por fim, em uma inscrição
bilíngüe da cidade de Idalião em Chipre, um príncipe
chamado Ba‘alram erigiu uma imagem, cuja
dedicatória em grego era xcu ’ Akóà.Xcdvi tco’ ApvKXoi
(tõ Apóllõni tõ Amykloí) e em fenício era
(Resheph de Amyklae). A inscrição dizia:
“Este é um molde de ouro que Milkyaton, rei de
Kitião e Idalião, filho de Ba‘alram, deu ao seu deus,
Resheph de Mikal, em Idalião, no mês de Bul, no
segundo ano de seu reinado sobre Kitião e Idalião,

supersticioso de manter a Bíblia aberta no Salmo 91, funciona como uma


espécie de “amuleto”, “patuá” ou “talismã”. Nesse contexto da nossa
religiosidade sincrética, o Salmo 91 aparece exposto em muitas casas,
hospitais, lojas e outros ramos do comércio como um instrumento de
proteção contra o “olho gordo”, a “inveja” e outras coisas ruins que possam
prejudicar as pessoas, incluindo os espíritos malignos.
67 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.347.
68 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1460.
69 Idem, /ózó/cw, pp.788,789.
70 Idem, Ibidem, p.1460.
63
CAR.L®S AUGUS + ffi VAILA + + I

porque ele ouviu a sua voz: ele pôde abençoar (a


ele)!”.71

• ins (pahad layla) SI 91.5. Já foi dito que


esta expressão que significa “terror noturno” pode ser
uma referência ao demônio da noite, lilit. Porém,
deve-se acrescentar ainda que os povos antigos de
uma forma geral acabaram temendo a noite devido a
fatos ruins que aconteciam durante o período
noturno, tais como mortes e roubos, por exemplo (Ex
12.30; SI 121.6; 1 Ts 5.2,5; 2 Pd 3.10a etc), e, por
fim, acabaram por demonizá-la.

• “TJ3 (bãrãd) SI 78.48; Is 28.2. O vocábulo bãrãd


significa “saraiva”.72 Certamente, o caráter destrutivo
de tal fenômeno da natureza, visto principalmente no
prejuízo causado às lavouras e ao gado, foi
responsável por tê-lo transformado num aspecto
demoníaco.
c) Animais com Feições Demoníacas 73

DRIVER, S.R. A Critical and Exegetical Commentaiy on Deuteronomy.


Edinburgh, T. & T. Clark Ltd., 1986, p.368.
72 LANDES, George M. SVBH, p.28.
73
O Testamento de Salomão 18.1,2 fala sobre demônios “com cabeças em
forma de cachorros, ... [outros] em forma de humanos ou de touros ou de
dragões com rostos de pássaros ou feras ou esfinge”. (Cf. Testamento de
Salomão. Apud: TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter
W. Van Der. (eds.). DDDB, p.237.). Segundo o Dicionário Judaico de
Lendas e Tradições, “demônios podem assumir forma animal, e o folclore
judaico menciona fantásticas criaturas animais, tais como Behemot e Leviatã,
cuja carne será comida no grande banquete dos dias messiânicos”. (Cf.
UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. [Tradução
de Paulo Geiger]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.26). É digno de
nota que Ap 9.7ss fala sobre os gafanhotos (demoníacos) que saíram do
abismo, os quais pareciam cavalos aparelhados para a guerra, tendo rostos
64
SA+ANÁS, D€ÍT1®NI®S £ LEGIî

fàlüqahf Pr 30.15. Aqui o termo 'ãlüqah


faz referência à “sanguessuga” ou “sanguessuga de
cavalo”. Tal verme era muitas vezes associado a
vampiros demoníacos. Todavia, esse texto
provavelmente está se referindo a algum tipo de
parasita que se alimenta de sangue, sem uma relação
clara com seres demoníacos.74

• □’’EHfó (serãpim) Nm 21.6,8; Is 14.29; Is 30.6. O


vocábulo serãpim significa “serpente abrasadora”
ou “serpente alada”.75 De acordo com a A Concise
Encyclopedia of Judaism, éerãp era uma criatura
sobrenatural descrita como um homem alado ou uma
figura semelhante a uma serpente.76 O The Anchor
Bible Dictionary inclui estes seres na categoria de
animais demoníacos.77 Já em Is 6.12 os serãpim são

parecidos com rostos humanos, cabelos semelhantes ao de mulheres, dentes


como os de leões e caudas semelhantes às dos escorpiões (Cf. Ap 9.1-11). Já
Ap 16.13 (ARC) fala sobre “três espíritos imundos, semelhantes a rãs”. Pelo
que podemos perceber, tais seres demoníacos eram muitas vezes vistos como
seres compostos (híbridos), constituídos dos aspectos assustadores dos
animais, incluindo, às vezes, rostos ou corpos humanos. Isto nos faz lembrar
dos seres mitológicos, tais como o Minotauro (monstro que era em parte
humano e em parte touro) ou os Centauros (que tinham a cabeça e o torso de
homem, mas que da cintura para baixo eram cavalos). Todavia, não podemos
afirmar com certeza se tais elementos da mitologia grega influenciaram a
narrativa bíblica do Apocalipse ou não.
74
OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha
Espiritual. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000,
p. 192.
75 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.355.
76 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford,
Oneworld Publications, 1998, p. 174.
77 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
65
CARLOS AUGUS + © VA1LA + + 1

membros de uma corte celestial (de anjos) e ficam ao


redor do trono divino.

• (tsiyyim) SI 72.9; 74.14; Is 13.21; 23.13;


34.14; Jr 50.39. O termo 2 (tsi), forma singular de
tsiyyim, parece também significar “demônio”
(habitante de um lugar deserto).7879Bauer afirma que
80
tais seres apresentam íntimas relações com o deserto
e seus habitantes. 79

• □'ink (’õhim) Is 13.21. Embora esse termo que


significa “criaturas uivantes” também seja incluído
OM

em uma categoria de animais demoníacos, contudo,


é mais provável que a expressão se refira a animais
tais como a hiena, e não a demônios em si.

• HÍIT nÍ23 (benõt ya'anah) Is 13.21. O termo


significa “avestruzes”, mas é mais provável que a
referência seja a uma espécie de coruja.81

• □’’"K (’iyyiní) Is 13.22. A palavra ’iyyim,“hienas”, é


mais um exemplo de animal (carnívoro) que,
provavelmente devido à sua característica como
animal de rapina e devido aos seus assustadores
uivos, acabou sendo demonizado.

• □’’Sfl (tannirrí) Is 13.22; 34.13. Os tannim,


“chacais”, são os cachorros selvagens das regiões

78 HOLLADAY, William L. (ed.). Op.Cit., p.305.


79 BAUER, Johannes B. DBT, p.92.
80 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD, p. 139.
81 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 138.
66
SA + ANÁS, DEffl®Nl®S E LEGIî

quentes do mundo antigo. Eles tinham o hábito de


caçar de forma secreta, em pequenos bandos, à noite.
Dentre os seus hábitos alimentares, destaca-se o fato
de serem comedores de carniça.82 Conhecendo tais
características, não é muito difícil imaginar porque
tal animal também foi demonizado.

• k* (liwyatan) Jó 3.8; Jó 41.1; Is 27.1. Talvez,


entre os animais demoníacos, este e os dois
seguintes, sejam aqueles sobre os quais haja maior
consenso quanto ao fato de serem associados a
demônios. Entretanto, de forma mais particular, o
termo liwyãtãn, “leviatã”, significa “serpente”,83 ou
pode ser traduzido ainda como “monstro-marinho”,
“grande serpente” ou “crocodilo”.84 Seja como for, o
fato é que de acordo com as lendas e tradições
judaicas o Leviatã simboliza Samael, o príncipe do
mal, o qual será destruído nos tempos futuros.85

Caza’zel) Lv 16.8,10,26. De uma forma


geral, os estudiosos afirmam que o nome ‘âzã’zêl
pode significar “abismo profundo, destruição,
remoção completa” ou ainda “deus irado”.86 Todavia,
além destes significados, 'ãzã/zêl pode ser traduzido
também como “bode emissário” e ainda, conforme
entenderam algumas versões antigas (dentre as quais,
a LXX e a Vulgata), o “bode que se vai”,
considerando tal termo como derivado de duas

82 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.43.


83 MCDANIEL, Ferris L. RHELOT, p.42.
84 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.418.
85 UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 152.
86 FREEDMAN, David Noel (ed.). Qp.C/í., p.535.
67
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I

palavras hebraicas: fêz, “bode”, e 'ãzal, “virar-se”.87


Este vocábulo pode fazer referência a um espírito
maligno ou ao próprio diabo.88 A literatura judaica
descreve ‘ãzã/zêl como o chefe dos demônios, que
habita na terra, o qual foi banido para o deserto, e
também o vê como o líder dos anjos caídos que
encabeçaram a rebelião dos anjos de Gênesis 6 (1 En
IX.4; Apocalipse de Abraão 14.5-7).89

(lilit) Is 34.14. Incluí Lilite na categoria de


animais demoníacos porque, na literatura judaica, ela

87 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1099.


1,8 Idem, Ibidem.
89
Para estas referências, veja: PROENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e
Pseudo-Epigrafos da Bíblia. [Tradução de Claudio J. A. Rodrigues]. São
Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005. É bem propício citarmos aqui a opinião da
tradição judaica quanto ao significado do termo ‘ãzõ’zê/: “Destino do bode
expiatório que carregava os pecados de Israel para o deserto no Yom Kippur
(Lv 16). Dois bodes idênticos eram selecionados para o ritual. Um era
escolhido, por sorteio, como oferenda a Deus, e o outro era enviado para
Azazel, no deserto, para ser lançado de um penhasco. O sumo sacerdote
recitava para o povo uma confissão de pecados sobre a cabeça do bode
expiatório, e uma linha escarlate era enrolada, parte em volta de seus chifres,
parte em volta de uma rocha no topo do penhasco. Quando o bode caía, a
linha tomava-se branca, indicando que os pecados do povo haviam sido
perdoados [...]. Embora a palavra Azazel possa se referir a um lugar, ou ao
bode, também foi explicada como sendo o nome de um demônio. Os pecados
de Israel estariam, pois, sendo devolvidos à sua fonte de impureza. Os
cabalistas viam no bode um suborno às forças do mal, para que Satã não
acusasse Israel e, ao contrário, falasse em sua defesa [...].”. (UNTERMAN,
Alan. DJLT, p.38). Será que o episódio dos porcos que caem de um
despenhadeiro ao mar (Cf. Mt 8.30-32; Mc 5.11-13; Lc 8.32,33) não pode ter
sofrido alguma influência (por mais remota que seja) desta narrativa sobre o
bode Azazel, o qual era lançado de um penhasco e que era considerado a
origem de todo o pecado de acordo com a literatura judaica? Bem, esta é uma
questão a ser pensada.
68
SA + ANÁS, DEm®NI©S Ê LÊGIé

é descrita como um pássaro.90 Aliás, para ser mais


exato, lilit é um demônio feminino (ou uma
“demônia”, se preferir) relacionado à vida sexual,
que pode fazer referência também ao “pesadelo” ou à
Já na literatura ugarítica, lilit
“coruja da floresta”.9192
recebe sacrifícios e é invocada em um hino, no qual
ela é chamada de “a noiva de véu” e de “nossa
senhora”. Segundo o folclore judaico, Lilite foi a
primeira mulher de Adão e a rainha demônia da
noite. Trata-se de uma personagem sedutora que
possui cabelos compridos e que voa como uma
coruja noturna visando atacar aqueles que dormem
sozinhos, no intuito de ter fdhos demônios dos
homens por meio de suas poluções noturnas, para
roubar crianças e para fazer mal a bebês recém-
nascidos. Se não conseguir consumir crianças
humanas, ela come até mesmo sua própria prole
demoníaca.93 Porém, é possível que esta que era vista

90
FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.It. [D-G],p.l39.
91 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 176.
92
HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.788.
93
UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 153. Unterman ainda fornece quatro formas
de proteger as crianças contra os ataques de Lilite: 1) pregar amuletos com as
palavras “Adão e Eva excluindo Lilite” nas paredes da casa em que uma
mulher se prepara para o nascimento de seu ftlho; 2) Colocar na porta do
quarto das crianças os nomes dos três anjos (Sanvi, Sansanvi e Samangelaf)
escritos sobre ela; 3) Cercar o quarto das crianças com um círculo de carvões
ardentes; e 4) Bater de leve três vezes no nariz da criança pronunciando uma
fórmula de proteção contra ela. (UNTERMAN, Alan. DJLT, p.154). É
curioso mencionar aqui que, tal como acontece aos porcos de Mc 5.13 que
veremos adiante, Lilite também é lançada ao mar (porém, pelo Senhor), local
este que acaba se tornando a sua casa, conforme uma antiga lenda judaica.
(Cf. GORION, M. J. Bin. As Lendas do Povo Judeu. [Tradução de Marianne
Amsdorff, J. Guinsburg e Evelina Holander], São Paulo, Editora Perspectiva
S.A., 1980, p.53). Para saber mais sobre Lilite, veja: HURWITZ, Siegmund.
Lilith: a primeira Eva. [Tradução de Daniel Costa], São Paulo, Fonte
69
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + + I

como um demônio noturno fosse apenas um animal


noturno, tal como um morcego ou uma coruja.

d) Seres Associados ao Mundo Subterrâneo

• FIIB (mãwet) Jó 18.13; 28.22; 38.17; Is 28.15, 18; Jr


9.20 (9.21 em Português); Os 13.14; Hab 2.5. O
vocábulo mãwet pode significar “morte, moribundo,
Morte (personificada), o reino dos mortos”.94 A
própria característica trágica deste terrível
acontecimento da nossa existência (a morte), pode ter
sido a responsável por enquadrá-la em uma categoria
demoníaca.

• (debar beliya'al) SI 41.9 (41.8 em


Português). Este vocábulo que é traduzido como
“peste maligna” (ARA) pode ser situado também
dentro da classe de Fenômenos Naturais com Traços
Demoníacos (Veja item b, acima).

• HiH^a (melek ballãhôt) Jó 18.14. Tal


expressão significa “rei dos terrores”. Ela aparece na
fala de Bildade, um dos companheiros de Jó. A
expressão ocorre num contexto em que Bildade
descreve o fim dos homens perversos, dizendo que o
paradeiro final de tais homens será cair nas mãos do
rei dos terrores (cf. Jó 18.14, 21). Ao que tudo indica

Editorial, 2006; MEYERS, Carol, CRAVEN, Toni & KRAEMER, Ross S.


(eds.). Women in Scripture: a dictionary of named and unnamed women in
the Hebrew Bible, the Apocryphal / Deuterocanonical books, and the New
Testament. Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing
Company, 2000, p.531.
94
HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.820.
70
SA + ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIî

este ser enigmático pode ser uma referência à morte


(personificada aqui) ou a algum tipo de demônio que
atormentará o homem perverso em sua vida pós-
túmulo como castigo pelo tipo de vida que ele teve
aqui na terra.95

• (r^pa’im) Jó 26.5; SI 88.11; Pr 2.18; 9.18; Is


14.9; 26.14,19. Nem todos os intérpretes situam os
r^pa’im, as “sombras da morte”, na categoria de
seres malignos ou demônios assombrosos.96 Contudo,
Bauer explica que devido à rejeição, no AT, do culto
aos antepassados, tais “espíritos dos mortos” (como
ele entende os T^pa’im) acabaram sendo
demonizados.97

e) Termos Adicionais98

• (hets) SI 91.5; Jó 6.4. Esta “seta” ou “flecha”


provavelmente faz alusão a objetos pontiagudos que
eram lançados entre rivais durante algum combate ou

75 Pfeiffer e Harrison entendem que o “rei dos terrores” seja uma referência à
própria morte. (Cf. PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC,
p.475.).
96 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
97 BAUER, Johannes B. DBT, p.93.
78 As sete pragas mencionadas em Dt 28.22 também são consideradas como
sete espíritos malignos. (Cf. FREEDMAN, David Noel (ed.). Op. Cit., p. 139).
Driver explica que as primeiras quatro pragas serviam para afetar os seres
humanos e as três últimas para prejudicar as colheitas. (Cf. DRIVER, S.R. A
Criticai and Exegetical Commentary on Deuteronomy, p.3O8). Os
“mensageiros de males” citados no SI 78.49 também são identificados como
demônios. (Cf. MAYHUE, Richard L. False Prophets and the Deceiving
Spirit. MSJ. Vol.4, n°2. Sun Valley, Master’s Seminary Press, 1993, p. 143).
71
CARL©S AUGUS+® VAILA + +I

batalha, os quais acabaram adquirindo um aspecto


demoníaco devido aos males que causavam nas
pessoas atingidas. Ou talvez, tal palavra possa se
referir a algum ataque demoníaco desferido contra
alguém.

• (’èlilirrí) Lv 26.1; Is 19.3. O termo ’èlilim


significa “deuses” (ídolos), “zero” (algo sem valor),
“vãos”.99 Esse termo aparece na Bíblia para
descrever objetos inúteis de adoração, tais como
deuses e ídolos, por exemplo. Tal vocábulo, na LXX,
nos mostrará claramente que houve um processo de
demonização dos deuses pagãos.

• □’’ÉX (’ittiní) Is 19.3. Esse vocábulo, que está


relacionado a algum tipo de ocultismo, é um hapax
legomenon, ocorrendo somente em Is 19.3 no plural.
O termo significa “encantadores, mágicos,
adivinhadores”.100 A ligação dos ’ittim com questões
demonológicas já é, por si só, evidente.

• nÍDk Çôbôt) Is 8.19. A palavra ’ôbôt quer dizer


“espíritos dos mortos”.101 A ARC traduz o termo por
“espíritos familiares”. Os “espíritos familiares” e
adivinhos eram muito consultados naquela época,
quando as pessoas experimentavam momentos de
declínio espiritual em sua fé em Yahweh. Assim
como os espiritualistas hoje, eles pretendiam manter
comunicação com os mortos.102 Tais ’ôbôt acabaram

99 LANDES, George M. SVBH, p.39.


100 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.56.
101 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.6.
102 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.619.
72
SA+ANÁS, DÊrtlêNieS £ LEGIî

também por adquirir características demoníacas no


AT.

• ■’piH" (yidde'õni) 1 Sm 28.9; Is 19.3. Essa


expressão quer dizer “espírito familiar, mágico,
agoureiro, adivinho”.103 Todavia, tais significados
possuem uma conotação ambígua. Não está muito
claro se yidde'õni está descrevendo um espírito
familiar ou um ser humano, no caso, um adivinho.
Assim, nós concluímos este item que buscou identificar,
senão todos, pelo menos a maior parte dos seres e figuras
demoníacas ou que foram demonizadas no Antigo Testamento.
A seguir, trataremos da figura do demônio dentro de suas
concepções no período do Grego Clássico e na LXX, para que a
partir de então possamos tratar de seu significado no período
neotestamentário, uma vez que tais fontes literárias
influenciaram de forma decisiva o significado e a compreensão
do termo “demônio” no NT.

1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico

Antes de qualquer coisa, devemos lembrar que o período


do Grego Clássico compreende a época que vai de 900 a.C. até
cerca de 330 a.C. Neste período, havia vários termos que
estavam associados com aquela figura que, mais tarde, seria
conhecida como “demônio”, tal como concebemos o termo nos
dias de hoje. Nesta época, uma característica animista sublinhou
o conceito grego de õaípwv (daimõn). Tal traço persistiu entre
os gregos. No período histórico especialmente, ele foi
obviamente combatido pelos mais instruídos e principalmente
pelos círculos filosóficos dos quais nós tiramos quase todo o
nosso conhecimento de todos os níveis do pensamento grego.

103 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.597.


73
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I

Porém, mesmo estes círculos têm sido orientados por idéias


populares e, assim, dão testemunho da opinião comum de que
houve um desenvolvimento gradual no significado e na
compreensão deste termo grego.104
De início, podemos dizer que o termo ôaíp.wu é usado
tanto para se referir a divindades maiores quanto para
divindades menores, além de ser usado também em um sentido
filosófico. Por fim, opiniões animistas sublinham igualmente o
uso posterior do termo, o que exige de nós atenção redobrada
quanto a este assunto. Vejamos, a seguir, um breve histórico dos
principais termos referentes ao “demônio” no Grego Clássico:

a) O verbo Saipovám (daimonáõ), “estar sob o poder de


um ôaípwv (daímõny\ também é visto na expressão
Ôaipovâv KdKÔtç (daimonân kakôisf “sofrer devido
a uma divina visitação” e em Ésquilo (525-456 a.C.)
o termo significa “estar mergulhado em desgraça
enviada do céu”. No sentido absoluto de “estar
possuído, estar louco”, o verbo pode ser encontrado
nos escritos de Euripides (480-406 a.C.) e de
Xenofonte (401 a.C.).105

b) Já o termo Saipóviov (daimónion), que significa


“divindade” (Lat. numen) ou “divina operação”,
aparece em Heródoto (484-408 a.C.) e no já citado
Euripides. No sentido de “uma fatalidade” ocorre em
Demóstenes (385-322 a.C.). E como “um ser divino
inferior”, “um demônio”, é encontrado em Xenofonte
e em Platão (427-347 a.C.). No NT tal vocábulo irá

104 KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament.


[Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley]. Vol.II. [A-H]. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p. 1.
105 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Sargovám, in: IGEL, p. 171.
74
SA + ANÁS, DEm®NI©S E LEGIé

adquirir o significado de “demônio”, um “espírito


maligno”.106

c) Quanto à palavra Socipóvioç (daimónios), cujo


significado básico é “pertencer a um ôaípcov
(íZazmõn)”, constatamos que a mesma é encontrada
no vocativo Satpóvie (daimónie), Saipovíp
(daimoníê), principalmente na forma de repreensão
ou censura, significando, por exemplo: “seu infeliz!”,
“seu maldito!”, “senhora!”; e, de forma mais rara,
como forma de admiração: “nobre senhor!”, “homem
excelente!”, em Hesíodo107 (85 0 a.C.?). O termo
também ocorre exprimindo compaixão: Saipóvte
àvôpcôv (daimónie andrõn), “pobre infeliz!”, em
Heródoto.108 Em Aristófanes (444-380 a.C.) e
também em Platão aparece de uma forma irônica: cS
Satpcoví’ òcvSpov, (5 Saipcovi,’ co Socipóvi’ àvTpcórtcov (õ
daimõni andron, õ daimõni, õ daimóni antrõpõri),
“meu bom camarada! bom senhor!”. Além disso, em
Heródoto e no Grego Âtico, a palavra também
aparece referindo-se a “algo que procede da
divindade, enviado do céu, divino, miraculoso”.
Xenofonte fala sobre eí pf] ti ôatpóvtov ei (ei mê ti
daimónion ei), se isto não é “uma intervenção
divina”. Tucídides (423 a.C.) fala sobre xá Satpóvia
(tá daimónia), as “visitações do céu”. Já Platão
emprega o termo para se referir a pessoas, “divino,

106 Cf. Idem., Saipóviov, in: IGEL, p. 171.


107
Em sua Teogonia, o poeta grego Hesíodo também emprega os termos
ôaipóui (daimóni), “espírito” e Saípova 8iov (daímona díon), “nume
divino”. (Cf. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. [Estudo e Tradução
de Jaa Torrano]. São Paulo, Editora Iluminuras Ltda., 1995, pp. 142,160.).
108 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R.., ôaipóvtoç, in: IGEL, pp. 171,172.
75
CAR-LffiS AUGUS + ® VA1LA + +I

excelente”. E Aristófanes emprega o vocábulo para


significar “força divina”, “maravilhosamente”.109

d) Um dos significados do vocábulo ôaipcov110


(daímõn) é “divindade”. Com este sentido ele
aparece, por exemplo, em Homero (Séc. IX ou VIII
a.C.), upòç Saipova (pròs daímona), “contra a
vontade da divindade” e em Heródoto (Séc. V a.C.),
tt]v |iEyíoTT|v Saipova f|yevrai (tên megísten
daímona hègentai), “[ísis] que eles consideram a
maior divindade tutelar”. O termo também aparece
para se referir a um “intermediário entre deuses e
homens”, “demônio” e “gênio”. Ele também aparece
assim, por exemplo, em Platão (Séc. IV a.C.), toíç 3è
pépeaiv éKáoTOtç 0eòv f| Saípovoc f] kocí two. ppcua
ánoSoTéov (toís dè méresin hekástois theòn ê
daímona ê kaí tina hêrõa apodotéon), “é preciso

Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Satpóvtoç, in: /GEL, p. 172. Para


obter um quadro geral do significado do termo Satgóvtoç no Grego Clássico,
veja: FEYERABEND, Karl. Pocket Dictionary Classical Greek. [Classical
Greek-English], Berlin, Langenscheidt KG, S.d., p.86.
110 Quanto ao significado etimológico de Sa'tpcnv, o ponto de vista mais
comum é que seja derivado de daiomai, “dividir, repartir”. Ele pode estar
conectado com a ideia do deus dos mortos como aquele que divide os
cadáveres [talvez se referindo ao seu estado de decomposição]. (Cf.
BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT. Vol.l. [A-F], [Translated by Lothar Coenen,
Erich Beyreuther and Hans Bietenhard]. Grand Rapids, Zondervan, 1986,
p.450). Já Foerster afirma que a etimologia da palavra é incerta. Segundo ele,
a raiz AAI [Soúopat] é fundamental, embora o sentido seja incerto. Contudo,
Foerster, citando W. Porzig, diz que talvez este esteja correto em sugerir para
o termo daimõn a ideia de “desfazer” ou “rasgar em pedaços”, e por essa
razão, ele concebe o Saípcnv como “aquele que consome o corpo”. A
conclusão de Foerster é que tal conceito pode certamente ser sustentado com
uma base animista. (Cf. FOERSTER, W. Satpoiv, in KITTEL, Gerhard,
(ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.2).
76
SA+ANÁS, D£fflffiNI®S £ LEGIî

atribuir a cada parte um deus ou um gênio ou um


herói”.111 Um terceiro significado que é dado ao
termo é “alma de um morto tomada nume tutelar”.
Assim aparece em Ésquilo (Séc. V a.C.), tòv §è
Saípova Aapetov àYKaÀeioSe (tòn dè daímona
Dareion ankaleísthé), “invocai Dario, nosso nume
tutelar”. Em quarto lugar, o termo também chegou a
significar “gênio benéfico ou maléfico”, “protetor (de
um homem)”. Com tal sentido nós encontramos o
termo em Aristófanes (Séc. V a.C.), [tqSéKOTE ttioip
’ àya9oí> Saípovoç (mêdépote píoim agathoú
daimonos), “que jamais eu beba em honra de teu
protetor”. Em quinto lugar, o vocábulo também
significava “lote de cada um”, “sorte”, “destino”.
Mais uma vez citamos Aristófanes, Kocud Saípova
Koà owTvxiav (katà daímona kai syntychían),
“conforme o destino ou o acaso”. Finalmente, o

Além disso, em Eutífron, Platão narra o diálogo entre Eutífron e Sócrates,


sendo que num determinado momento, Eutífron fala para o grande filósofo
sobre: “esse daímõn (Soctpcov) que tu dizes ouvir a todo o momento”. (Cf.
1’LORIDO, Janice, (ed.). Platão. São Paulo, Editora Nova Cultural
Ltda., 1999, p.36). Na sua Apologia de Sócrates, I, Platão relata as seguintes
palavras de seu mestre: “[...] uma inspiração que me vem de um deus ou de
um gênio [daimõri] [...] é uma voz que se produz e, quando se produz, sempre
me desvia do que vou fazer, nunca me estimula. Ela é que me obstrui a
atividade política”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução de
Enrico Corvisieri], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p.59). Já Xenofonte, em seus Ditos
<• Feitos Memoráveis de Sócrates, Livro I, diz que “corria a voz, ateada pelo
próprio Sócrates, de que o inspirava um demônio [daimõn]”, e ainda:
“Sócrates falava o que sentia, dizendo-se inspirado por um demônio
\daimõn\. E de acordo com as revelações desse demônio [daimõn]
aconselhava aos amigos o fazer certas coisas, o abster-se de outras. Só tinham
a ganhar os que ouviam”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução
de Mirtes Coscodai], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, pp.79,80).
77
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

termo aparece no NT, fazendo referência à “força


sobrenatural do mal”, o “demônio”.112

e) Por fim, passemos os nossos olhos brevemente sobre


o vocábulo SaipovrÇopai {daimonízomai),“estar sob
o poder de um demônio”. Ele ocorre com tal
significado em Filemon, o cômico (330 a.C.); e
referindo-se a alguém que é “insano” ou “demente”,
aparece em Plutarco (45-125 d.C.).113 Embora esta
concepção de daimonízomai em Plutarco esteja
situada em uma época bem posterior à do Período do
Grego Clássico (ele foi contemporâneo dos apóstolos
Paulo e João, por exemplo), contudo, é importante
citá-la aqui, pois se trata da opinião de um não-
cristão sobre o vocábulo. Esta opinião é interessante,
uma vez que na época do NT, daimonízomai já
significava “estar possuído por um demônio ou
espírito maligno”.114

Baseei todo o item no verbete Saípmv, in: MALHADAS, Daisi,


DEZOTTI, Maria Celeste Consol in & NEVES, Maria Helena de Moura,
(orgs.). DGP. Cotia, Ateliê Editorial, 2006, p. 194.
1 1 T
Cf. THAYER, Joseph Henry. Satpovi^opat, in: GELNT, p. 123.
114 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., SaipovíÇopai, in: IGEL, p. 171. Para
obter uma interpretação tríplice sobre o significado da possessão demoníaca
no Antigo Israel, consulte: WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade no
Antigo Israel. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Targumim /
Paulus, 2006, pp.53-64. Já para uma ampla discussão sobre a possibilidade de
a possessão demoníaca ocorrer também em cristãos, veja: DICKASON, C.
Fred. Demom Possession & the Christian. Wheaton, Crossway Books, 1993,
pp.73-213 e também o artigo que escrevi a respeito, em: VAILATTI, Carlos
Augusto. Cristãos Genuínos Podem Ser Possuídos por Demônios? São
Paulo, Publicação do autor, 2010. Disponível na internet no seguinte
endereço eletrônico:
http://www.artigocientifico.tebas.kinghost.net/artigos/?mnu=l&smnu=5&arti
go=3320.
78
SA + ANÁS, DEmèNieS £ LEGIé

Bem, terminados estes breves, mas indispensáveis


apontamentos, a respeito dos termos ligados direta ou
mdiretamente à figura do “demônio” no período do Grego
('lássico, vejamos agora a figura dos demônios na LXX.

1.2.5. Os Demônios na LXX115

Uma vez que a LXX foi escrita aproximadamente entre o


111 e o II Séculos a.C., logo, me parece ser bastante óbvio
mencioná-la depois do período do Grego Clássico, o qual a
antecede cronologicamente. Sabemos da tamanha influência que
a LXX exerceu sobre os escritores do NT, pois, quando o NT
cita o AT, como ele freqüentemente o faz, a forma da citação
muitas vezes segue a LXX.116
Ao analisarmos essa tradução grega do AT, incluindo os
livros apócrifos, nós poderemos encontrar mais de uma dezena
de referências feitas aos demônios. Então, vejamos tais
ocorrências seguindo a ordem seqüencial em que aparecem nos
livros na Bíblia.
Em Dt 32.17, a LXX traduz o hebraico □’’’W (shêdim)
pelo grego ÔccLgovíoiç (daimoníois), dizendo: “Sacrifícios
ofereceram aos demônios, não a Deus [...]”. (ARA).
No livro apócrifo de Tobias, nós podemos encontrar
referências ao termo “demônio”, pelo menos em duas ocasiões.
Em Tb 3.8 lemos sobre: Ao|ioôauç to irovripòv’ ôatpóvtov
(Asmodaus tòponêròn daimónion), isto é, “[...] Asmodeu, o pior
dos demônios”. (BJ)', e Tb 6.8 fala a respeito de um ôaLpóinov tj
TTVfôpa irouripóv (daimónion êpneüma ponêrón), ou seja, “[...]
um demônio ou [...] um espírito mau [...]”. (BJ). Este último

Baseio-me em: RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche


Bibelgesellschaft, 1979.
116 GRAYBILL, John B., Septuagint, in: TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD,
p.771.
79
CARL©S AUGUS+® VAILA + +I

texto de Tobias nos será muito útil mais adiante, quando


fizermos nossas considerações acerca dos exorcismos, pois ele
está situado dentro do contexto de uma narrativa sobre uma
prática exorcística.
No SI 90.6 (LXX), [SI 91.6 em nossas versões], a
expressão ôctipovíou peoripppivoô (daimoníou mesêmbrinoú),
“do demônio do meio-dia”, traduz o hebraico “1W^
□ÇOjp (qeteb yãshüd tsãhârãyim), “destruição que ataca ao
meio-dia”. Embora já tenhamos citado esse verso anteriormente
em seu contexto original hebraico e já tenhamos dito, inclusive,
que tal “destruição que ataca ao meio-dia” possa se referir a um
demônio de um só olho, o que chama a nossa atenção aqui é o
fato da Septuaginta provavelmente estar demonizando um
fenômeno natural, isto é, a LXX demoniza as altas temperaturas
existentes nas regiões desérticas, em função do mal-estar que
estas deveríam causar até mesmo em seus habitantes mais
acostumados com esse tipo de clima.117
No SI 95.5 (LXX), [SI 96.5 em nossas versões],
encontramos escrito: õrt irávreç oí 9eoi rcòv èQvwu ôat|j.óma ò
ôè KÚpioç touç oúpavouç cttoÍt|O6v (hoti pántes hoi theoi tõn
ethnõn daimónia, ho dè kyrios toüs ouranoüs epoíèseri), “porque
todos os deuses dos povos [são] demônios, mas o Senhor fez os
céus”. Aqui, a LXX traduz o termo hebraico (’élilim),
“ídolos”, “vãos”, por õaipóuia {daimónia), “demônios”! Em
outras palavras, os judeus de Alexandria, ao traduzirem este

A meu ver, a expressão encontrada na LXX, “do demônio do meio-dia”,


pode ser uma referência demonizadora feita ao clima quente. Sabe-se que há
na Palestina uma corrente de ar seca e quente que procede do deserto da
Arábia (leste), chamada siroco, que é tão quente e seca que, quando
prevalece, queima toda a plantação. Além disso, no Vale do Jordão, ao
mesmo tempo em que os termômetros marcam no inverno em média 25°, no
verão eles podem marcar 45° à sombra. (Cf. RONIS, Osvaldo. Geografia
Bíblica: contribuição para o estudo de geografia histórica das terras
bíblicas. Rio de Janeiro, Juerp, 1999, p.61).
80
SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî

trecho do Salmo para o grego, acabaram demonizando de uma


Ibrma geral todas as divindades pagãs, isto é, toda forma de
politeísmo! 118
No SI 105.37 (LXX), [SI 106.37 em nossas versões em
português], o salmista declara: Kai. eOunav rouç uloòç aúrtôv'
mu ràç QuyaTépaç aÓTWV tolç ôaipovíoiç (kai éthysan toüs
huioüs autõn kai tàs thygatéras autõn tois daimoníois), “e
sacrificaram os seus filhos e as suas filhas aos demônios”. Aqui
a LXX traduz novamente o vocábulo hebraico D* 1*W (shêdim)
pelo grego õaipoiúoiç (daimoníois).
Em Is 13.21, a LXX traduz o termo hebraico DTiltS
(se'irim) pelo grego ôaipóvia (daimónia), dizendo: Kai
oaipónia (km òp/fiooiuai. (kai daimónia ekeí orchêsontai), “e
os demônios ali dançarão”.119
Em Is 34.14, a LXX traduz mais uma vez o termo
hebraico (sã’ir), “bode” (forma singular de se’irim,
“bodes”) como ôatpóvLa (daimónia), “demônios”, na forma
plural.120
No livro do profeta Isaías nós ainda encontramos mais
duas referências aos demônios. A primeira delas, em Is 65.3, é
particularmente enigmática, pois o verso diz: “povo que de

118
Acredito serem oportunas aqui as palavras de Keel: “o homem do Antigo
Oriente Próximo, assim como o homem de qualquer época, tinha seus
próprios inimigos totalmente particulares [Ou seja, os inimigos e as suas
crenças eram demonizados]”. (Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei
Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. \BCBO\. [Traducción de Andrés
Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.75).
1 19
A BJ segue o hebraico e traduz: “os bodes ali dançarão”. Já a ARC e a
ARA seguem o significado mais mitologizado do vocábulo seirim, trazendo:
“e os sátiros pularão ali”.
1"° Relembro aqui as palavras de Unger: “A tradução de seirim em ambas as
passagens [i.e., Is 13.21 e 34.14] por daimónia é conclusiva de que os judeus
de Alexandria consideraram-nos serem demônios”. (Cf. UNGER, Merril F.
Biblical Demonology, p.60).
81
CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + +I

contínuo me irrita abertamente, sacrificando em jardins e


queimando incenso sobre altares de tijolos” (X7L4). É
interessante notar que tanto a ARA quanto a ARC concluem o
verso com a palavra “tijolos” (o que também faz a BJ, mas
utilizando a palavra “lajes” em vez de “tijolos”). Todavia, a
LXX estranhamente dá continuidade ao verso, acrescentando
ainda depois da palavra “tijolos”, a frase: tolç ôaqj.ovíoi,ç a ovk
eoTLv (tois daimoníois, hà ouk éstin), ou seja, “aos demônios,
que não são [existem]”! É curioso observar este acréscimo feito,
o qual simplesmente desmoraliza e rebaixa a figura dos
demônios, uma vez que eles “não são [existem]”. Já em Is 65.11,
a LXX utiliza a palavra ôaíjiovt (daímoni), “demônio”, como
tradução do vocábulo hebraico *13 (gad), “sorte”. Ao que tudo
indica, Gade aqui deve ser uma divindade da sorte, cujo
significado equivale ao da deusa grega Tique. O ritual descrito
no verso onze é o lectisterium, ou seja, um rito segundo o qual a
comida era espalhada diante da imagem da divindade.121
Por fim, queremos fazer duas últimas menções aos
demônios na LXX. Elas aparecem no livro apócrifo de Baruque.
Em Br 4.7, o autor faz os seguintes comentários referentes a
Israel: “pois havíeis exasperado a quem vos fez [Deus]
sacrificando a Saipovíoiç kcíl ou Qrcô (Jafrncwioís kai ou theõ)
“demônios e não a Deus” (BJ). E em Br 4.35, o autor fala sobre
a redenção de Jerusalém e a respeito do castigo que sobreviría
sobre os povos e cidades que a oprimiram. Sobre estes últimos o
texto diz: “pois um fogo lhe advirá da parte do Eterno por
longos dias, e ela será habitada virò ôaqiovícov tòv trÀfíova
Xpóvov (hypò daimoníõn tòn pleíõna chrónon) “por demônios
durante muito tempo” (BJ).

HAMILTON, Victor P„ gad, in: HARRIS, R. Laird (org.). DITAT,


p.246. A BJ traz uma nota referente a este verso, segundo a qual Gad é
apontado como o “deus arameu da fortuna”.
82
SA + ANÁS, DEfTl©NI®S E LEGIé

Assim, concluímos a nossa abordagem feita sobre os


demônios na LXX, e, em vista do que dissemos acima, cinco
observações são importantes. Primeira, a LXX sempre traduz o
vocábulo shêdim por daimoníois (cf. Dt 32.17; SI 105.37
| LXX]). Segunda, a LXX é a única a fazer uma referência a um
daimónion dentro de um contexto que descreve um ritual de
exorcismo nos apócrifos (cf. Tb 6.8). Terceira, a LXX parece
demonizar o sol quente da Palestina (cf. SI 90.6 [LXX];
compare com o SI 121.6a: “De dia não te molestará o sol [...]”, o
qual é seguido pelo v.7a, que diz: “O Senhor te guardará de todo
D"J (rãr) mar [+Í7M]). Quarta, a LXX demoniza claramente
todos os deuses pagãos (cf. SI 95.5 [LXX]; Is 65.11). E a quinta
e mais surpreendente de todas as observações, a LXX acrescenta
uma referência aos demônios, onde o texto hebraico
simplesmente não diz nada a esse respeito (Is 65.3)! Em suma,
a LXX, por meio de sua leitura e conseqüente tradução
tendenciosamente demonológicas, contribuiu signifícativamente
para a criação de uma base sólida intertestamentária para a fértil
crença demonológica que surgirá no período do NT.
A seguir, falaremos sobre a crença em demônios no I
século d.C.

1.2.6. Os Demônios no I Século d.C.

O I século d.C. é especialmente relevante para a nossa


pesquisa a respeito dos demônios, pois é dentro desse período
que os acontecimentos narrados em Mc 5.1-20 se descortinam.
Ou melhor ainda, é dentro desse período também que toda a
atividade exorcística de Jesus, como relatada principalmente nos
sinóticos, se desenvolve. Portanto, é absolutamente
indispensável que tracemos aqui o perfil da crença
demonológica desta época, a fim de que obtenhamos êxito em
nossa compreensão posterior da citada passagem marcana.

83
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I

E para que alcancemos o nosso objetivo, nos valeremos de


algumas citações demonológicas encontradas em duas
personagens da história antiga em particular: Filo, de Alexandria
e Flávio Josefo. Em seguida, veremos tais menções no próprio
Novo Testamento.

a) Filo, o Judeu (c. 20 a.C. - 42 d.C.)122

Filo cria em um Deus que é Espírito puro e em uma


multidão de forças divinas, demônios ou anjos, os quais
cumprem as suas ordens.123 Todavia, esta conjunção indicativa
de incerteza, “ou” (anjos ou demônios), é que particularmente
nos interessa.
A demonologia de Filo é caracterizada pelo fato de que
ele considera todo o cosmos como tendo espíritos. Ele designa o
ar como a residência dos Saípoveç (daímones), “demônios”.
Para ele, anjos e demônios são seres do mesmo caráter, ainda
que somente alguns, à distância do que é terrestre, sejam usados
por Deus como mensageiros, enquanto que outros se tornam
homens de diferentes classes. Assim, Filo descansa na tradição
helenística, compartilhando sua terminologia como contrária à
bíblica e igualando anjos e demônios.124
Filo emprega o vocábulo Socípcov {daimõn), “demônio”,
em vários contextos. Mencionaremos aqui apenas alguns. Ele
utiliza o termo, por exemplo, com o significado de “destino” e

122
Filo foi um “filósofo judeu que misturou o pensamento
veterotestamentário com o estoicismo e o platonismo gregos. Muito da
primitiva pregação da Bíblia foi influenciada por sua obra”. (Cf.
ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. [Tradução de
Darci Dusilek e Arsenio Firmino de Novaes Netto], Rio de Janeiro, Juerp,
1995, p.69).
123
PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa
Cecilia Frost], México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p. 190.
124 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.9.
84
SA + ANÁS, DEfflfBNlffiS £ LEGIî

também usa a palavra para se referir a um “espírito protetor”, ou


àyaOon Saípovoç (agathoú daímonos), “do bom demônio”.
Além disso, o termo ainda era usado por ele para se referir a
“divindades menores”, Saípovocç ÈvoAíovç (daimonas enalíous),
“demônios dos mares”. Por fim, os manes de uma esposa
assassinada também são chamados ôaípoveç (daímones),
“demônios”.123*125
Em vista do que escrevemos nestas poucas linhas acima,
nos parece, de fato, que Filo procurou combinar a erudição
filosófica com a fé dos hebreus.126 No entanto, tal amálgama
resultou numa espécie de ambivalência demonológica, na qual
anjos e demônios são vistos como pares.
Vejamos, porém, o que outra importante personagem do
I século d.C., ou seja, Josefo, tem a nos dizer sobre o assunto.

b) Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.)127

123 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.9. De acordo com
Antônio Geraldo da Cunha, os manes eram as “almas dos mortos, divindades
infernais que os romanos invocavam sobre as sepulturas”. A palavra é uma
substantivação da palavra latina manis, “bom, benévolo, favorável”. (Cf.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira S/A, 1982,
p.495).
126 CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e
Filosofia. [Tradução de João Marques Bentes]. Vol. 2. [D-G]. São Paulo,
Editora Hagnos, 2001, p.766.
127
Baseio-me aqui principalmente no artigo “Sottpcov in Josephus and Philo”
de FOERSTER, W. in: KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10.

85
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

Flávio Josefo,128 assim como Filo, também se move no


mundo dos costumes e das concepções helenísticas, mas com
uma impressionante exceção. Para ele, o adjetivo Satpóvioç
(daimónios) significa “terrível”. Ele fala, por exemplo, sobre um
cmpcjiopà Soapóvtoç (symphorà daimónios), “terrível acidente”
(terremoto), em Guerras Judaicas, I, 373. Somente em relação a
Saul, Josefo fala de um Ôatpóvtov Kveôpa {daimónion pneúma),
“espírito terrível”, em Antiguidades Judaicas VI, 214,
aproximando-se assim do costume dos Rabis da Palestina. Tò
Saipóviov (Tò daimónion) é usado geralmente para se referir ao
“divino” em Contra Ápio, II, 263 e Guerras Judaicas, 1, 69.
Aocípcov (Daimõn) pode ser usado para uma “desgraça
individual” em Vida, 402, e para “destino” em Guerras
Judaicas, I, 628. Aaípoveç (Daímones) são “espíritos dos
mortos”, e certamente dos santos mortos, em Guerras judaicas,
VI, 47 - um discurso de Tito a seus soldados. Eles são também
os espíritos dos mortos que procuram vingança, em
Antiguidades Judaicas, XIII, 317. A concepção romana dos
manes é emprestada, assim como em Filo com sua referência
aos SocíipovEç (daímones), de um só indivíduo, em Antiguidades
Judaicas, XIII, 416. Aaípcov (Daimõn) é usado para o espírito
protetor cm Antiguidades Judaicas, XVI, 210. Somente uma vez
Josefo chama os demônios de Satpoveç (daímones), em
Antiguidades Judaicas, VIII, 45; em outro lugar eles são
chamados sempre Satpóvta (daimónia). Josefo menciona
demônios no discurso da depressão de Saul, que ele atribui aos
Socipóviot (daimónia'), Antiguidades Judaicas, VI, 166,168 e
211. Josefo também os menciona em relação ao poder mágico
de Salomão, com o qual amarra os demônios que têm a sua

128
Flavio Josefo é o seu nome latino (Flavius Josephus). Seu verdadeiro
nome (judaico) era Yoseph ben Mattityahu. (Cf. FITTIPALDI, Mário, (ed.).
Seleções de Flávio Josefo. [Tradução de Vicente Pedroso]. São Paulo,
Edameris, 1974, p.7).
86
SA + ANÁS, DEFT1©NI©S E LEGIé

habitação nos homens e os expulsa, Antiguidades Judaicas,


VIII, 45-48.
Em todo caso, porém, Josefo é impressionantemente
coerente em chamar os espíritos malignos ôatpóvta (daimónia),
embora ele use ôatpcov (daímõn) no sentido helenístico.

c) O Novo Testamento

No NT o vocábulo Saípcov (daímõn) ocorre somente em


Mt 8.31, e no plural, SaípovEç (daímones), “demônios”, no
contexto da passagem sobre os endemoninhados gadarenos.129
Por outro lado, nós encontramos constantemente o termo
Ôoapóviov (daimónion), o qual é relatado sessenta e três vezes ao
todo na literatura neotestamentária.130 A grande maioria destas
referências (53) se encontra nos Evangelhos: Mateus (11),
Marcos (13), Lucas (23), João (6). As outras dez referências
estão distribuídas entre Atos (1), 1 Coríntios (4), 1 Timóteo (1),
Tiago (1) e Apocalipse (3).131 Esses dados são muito
importantes, pois através deles ficamos sabendo que pouco mais
de 84% das ocorrências do termo daimónion no NT estão
concentradas apenas nos Evangelhos. Enquanto que nos
Evangelhos parece haver uma verdadeira epidemia
demonológica generalizada (através das várias possessões

Aparentemente, os judeus evitaram usar o termo Saípcov porque ele


estava associado muito proximamente com os “elementos religiosos
positivos” dos pagãos. (Cf. SMITH, Charles R. The New Testament Doctrine
of Demons. GJ. Vol. 10, n°2. Winona Lake. Grace Theological Seminary
Press, 1969, p.26).
130 BIETENHARD, H„ Satpóvtov, in: BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT.
Vol.l.[A-F], p.452.
131 Cf. Satpóvtov, in: BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.).
Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Vol.l. [cc-k], [Traducción de
Constantino Ruiz-Garrido]. Salamanca, Ediciones Slgueme, 2005, p.815.
87
CARL©S AUGUS+® VAILA + + I

demoníacas, exorcismos e curas de doenças atribuídas a


demônios), a qual se alastra por cada uma de suas páginas, no
restante do NT, contudo, tal epidemia é “minimizada” e
“controlada”. Isto quer dizer que, se quisermos compreender a
demonologia neotestamentária de forma mais profunda, temos
que nos deter no estudo dos Evangelhos, onde a proliferação
demoníaca ocorre em larga escala.
Além disso, é relevante mencionar que em todo o Novo
Testamento se fala do demônio, sob os seus mais variados
nomes, cerca de 511 vezes.132 Isto nos dá uma idéia da
importância que o tema tem para o NT, contrastando claramente
com o que ocorre no AT. Sendo assim, simplesmente dizer que
o assunto “demônio” é algo periférico na fé cristã não é correto.
Seria mais adequado dizer que não é o tema central, mas uma
verdade, mesmo não sendo central, pode ser essencial.133
Além do termo Saiqóviov {daimónion), encontramos
também algumas expressões sinônimas, dentre as quais
destacamos uveuga {pneúma), “espírito” (especialmente,
riveopa àKá0apxov [pneúma akátharton], “espírito impuro” e
nvebpa Ttoi/qpóv [pneúma ponerón], “espírito maligno”) e ainda
áyyeXoç (toô ôiocpóÀoü), ángelos {toü diahólou), “anjo (do
diabo)” que ocorre com menor freqüência.134*

Diferentemente do que vimos até agora, aos poucos,


vemos delineada uma nova figura do demônio no Novo
Testamento, bem distinta daquela desenhada, por exemplo,
durante o Período do Grego Clássico. No NT, o demônio já
adquire um caráter essencialmente maligno. Aliás, como bem
escreveu Van Der Loos: “Gradualmente o abismo entre

132 xt r f .
SAYES, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San
Pablo, 1997, p.48.
I 33
Idem, Ibidem, p. 168.
134 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.816.
88
SA + ANÁS, DEm©Nl©S E LEGIî

divindade e demônio foi-se alargando. O Judaísmo, o


Cristianismo e o Islã só vêem no demônio uma força inimiga de
Deus e do homem. Da mesma maneira que o anjo, como espírito
bom, pertence ao reino da luz, ao Reino de Deus; o demônio
'135
pertence ao reino da escuridão, ao reino de Satanás”.
Não é nossa intenção fazer aqui um inventário detalhado
de todas as passagens neotestamentárias que fazem alusão ao(s)
demônio(s), contudo, iremos vê-las, como um todo, em blocos,
como segue: 1) Nos Sinóticos e em Atos; 2) No Corpus
Paulinum; 3) Nos Escritos Joaninos; e 4) Nas Epístolas Gerais
(excluindo-se as três epístolas de João).

1) Nos Sinóticos e em Atos*


137

A partir de uma leitura dos Evangelhos sinóticos, nós


podemos fazer, dentre outras, as seguintes constatações
demonológicas em seu caráter geral:138 1) Os inúmeros
testemunhos sobre o Satpóvtov (daimónion) se encontram, em
grande parte, nos relatos acerca das curas miraculosas realizadas
por Jesus (p.ex., Mc 1.23-28; 3. 23-27; 9.14-29; Lc 4. 40,41; Mt
9.32-34);139 2) O termo Satpóvtov (daimónion) é empregado no

LOOS, H. Van Der. 7%e Miracles of Jesus, in: Novum Testamentum,


Suplementos, Tomo IX, Leiden, Brill, 1965, p. 341. Apud: QUEVEDO,
Oscar G. Antes que os Demônios Voltem. São Paulo, Edições Loyola, 1997,
pp. 266,267.
Para obter outras informações sobre a atividade demoníaca no NT, veja:
RUANO, Argimiro. La Carne de Jesús: el mistério de su encarnación.
Burgos, Editorial Monte Carmelo, 2003, pp. 163-167.
137
Incluí Atos neste bloco pelo fato de sua autoria ser tradicionalmente
atribuída a Lucas. Sendo assim, como Atos é visto como o segundo volume
da obra “Lucas-Atos”, é natural inserí-lo neste conjunto.
Tais itens são baseados parcialmente no verbete Satpóvtov, in: BALZ,
Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.j. DENT. Vol.l. [a- k], pp.817-822.
1 39
Como declarou Michael Brown com muita propriedade: “O ministério de
cura de Jesus está intrinsecamente ligado ao ministério de libertação dos
89
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + +1

lugar de Tiveôqa (pneúma) algumas vezes e, mais


freqüentemente, no lugar de nvevpa àKá0apxov (pneúma
akáthartori) (cf. Mc 7.25,30; Lc 10. 17, 20); 3) É inquestionável
o fato de que o Jesus histórico atuou como médico e exorcista
itinerante. Assim como seus contemporâneos, ele atribuía a
demônios a causa das enfermidades do corpo e da mente. Logo,
a cura consiste na expulsão do(s) intruso(s) (cf. Mt 12.43-45;
Mc 7.26; Lc 11.14); 4) Através dos métodos exorcísticos da
medicina antiga, Jesus cura diversos tipos de enfermidades (Lc
7.21; Mc 9.14-29; Lc 13.10-17); 5) As expulsões de demônios e
as curas de várias doenças são vistas como a mesma coisa para o
homem daquela época (Mc 1.32-34); 6) Embora apresentem, em
geral, uma certa resistência no início, os demônios têm que
ceder diante do comando de expulsão ordenado por Jesus (Mc
1.24s; Mc 5.7); 7) As esperanças escatológicas do judaísmo
antigo se cumprem na vitória de Jesus sobre os demônios (Mc
3.27; Lc 13.32; Mc 9.38-40); 8) Jesus reconhece a legitimidade
dos exorcistas judeus e chega até mesmo a permitir que um
estranho expulse demônios em seu nome (Mt 12.27; Lc 9.49s);
9) O cristianismo primitivo atribui seus exorcismos de efeito
curativo à capacidade concedida por Jesus aos seus discípulos
para expulsar demônios (Mt 10.1; Mc 13.14,15); 10) Os
demônios são concebidos como seres pessoais (Mc 1.24,34;
3.11; 5.7); 11) Certos comportamentos anormais são atribuídos à
ação direta dos demônios sobre o indivíduo possuído (Mc 1.26;
Lc 8.29); 12) Nos Evangelhos sinóticos é comum encontrar a
confissão de fé na vitória escatológica de Jesus sobre o universo
demoníaco (Mt 25.41; 28.18 etc).
Já o livro de Atos emprega uma única vez o vocábulo
Satpóviov (daimónion), no episódio em que os atenienses que

demônios, e as doenças estão freqüentemente associadas com o poder


satânico nos Evangelhos”. (Cf. BROWN, Michael L. Israel 's Divine Healer.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1995, p.227).
90
SA+ANÁS, DEméNieS Ê LEGIî

escutam a Paulo e o vêem como um kocijocyyeáeòç140


(katangeleüs) “pregador” de estranhos Saipovícov (daimoníõrí)
“deuses” ou “divindades” (At 17.18). Nesta passagem, o termo
aparece sem conotações negativas (cf., porém, 1 Co 10.20s),
referindo-se a uma divindade pagã. Aliás, quando Paulo chama
aos atenienses SeioiôaipovéaTspot (deisidaimonésteroí), ele
está, na realidade, elogiando sua “religiosidade” (At 17.22; cf.
At 25.19, SeioiSatpovia [deisidaimonía\, “religião”).
Estes itens acima catalogados, embora não reflitam todas
as nuanças demonológicas encontradas nos sinóticos e em Atos,
nos dão, contudo, a dimensão da importância da figura do
demônio nestes livros.

2) No Corpus Paulinum

O apóstolo Paulo emprega o termo Satpóvtov


(daimónion) em apenas uma única passagem, mas o menciona
quatro vezes (cf. 1 Co 10.20,21). Para Paulo não é apenas o
gentil que oferece sacrifícios aos ôatpoviotç (daimoníois) (1 Co
10.20), ou seja, aos seus deuses (cf. Dt 32.17), mas também o
cristão que participa dos banquetes cultuais pagãos, se entrega à
esfera dos Satpovícov (daimoníõn), isto é, aos deuses dos gentios
(1 Co 10.21).141
Segundo Bultmann, algumas expressões encontradas nos
escritos paulinos, tais como, “principados, potestades,
dominações, príncipes deste mundo, deus deste século etc” (Rm
8.38; Cl 1.16; 1 Co 2.6; 2 Co 4.4) são termos mitológicos
derivados do gnosticismo. E ele ainda completa, dizendo que

Essa expressão é um hapax legomenon, ocorrendo somente aqui em todo


o Novo Testamento.
141 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.822.
91
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + +I

não há razão para duvidar que os cristãos primitivos


reconheceram estas forças como seres demoníacos reais.142
Contudo, Paulo segue dizendo que os demônios das
crenças populares judaicas são os áyyEÀoi (ángeloí) contra
concupiscência (cf. Gn 6.2) dos quais o apóstolo pede que as
mulheres cubram sua cabeça como sinal de e^oooía (eksousíd),
“poder” (1 Co 11.10). Um áyyEXoq (ángelos) de Satanás
atormenta a Paulo com uma enfermidade (2 Co 12.7). O próprio
Satanás destruirá a quem vive em incesto (1 Co 5.5; cf. 1 Tm
1.20). Ainda que os demônios continuem exercendo sua obra de
sedução (Ef 2.2), eles devem continuar sendo combatidos pelos
cristãos (Ef 6.12) e o temor aos demônios desaparece através da
confiança no amor de Deus em Cristo Jesus (Rm 8.38s). Além
disso, desde agora Deus tem despojado os demônios
radicalmente de seu poder, por meio da morte, ressurreição e
exaltação de Jesus e os tem submetido ao poder do Seu Filho (1
Co 15.24-28; F1 2.9s; Cl 2.10,15; cf. Ef 1.20-22; 4.8-10; Hb
2.8,14). O batismo nos faz participantes do senhorio de Jesus
sobre os demônios (Cl 2.10-15; cf. Rm 6.3-11). Por fim, os
cristãos se assentarão algum dia no divino tribunal para julgar
aos “anjos”, ou seja, aos demônios (1 Co 6.3).

3) Nos Escritos Joaninos143

BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianity: in its contemporary


setting. [Translated by R. H. Fuller], New York, Living Age Books, 1959,
p.190. Segundo Richardson, “os pregadores cristãos encontraram no mundo
grego a crença numa variedade de legómenoi theói, os assim chamados
deuses, que Paulo [...] considerava daimónia (1 Co 8.5; 10.19-21). Mas além
desses que eram adorados nos cultos pagãos, havia também espíritos
elementares que personificavam forças da natureza, verdadeiros
governadores do kósmos”. (Cf. RICHARDSON, Alan. Introdução à Teologia
do Novo Testamento. [Tradução de Jaci Correia Maraschin], São Paulo, Aste,
1966, p.211,212).
143 É curioso notar que enquanto nos sinóticos os relatos sobre exorcismos
superabundant em João não há referência a um único caso de exorcismo.
Contudo, tal “silêncio exorcístico joanino” não quer dizer que João não
92
SA + ANÁS, DErtlêNieS E LEGIé

No quarto Evangelho, Jesus é acusado freqüentemente


pelos judeus de estar possuído por um ôaipóviov (daimónion)
(cf. Jo 7.20; 8.48,52; 10.20). Em outras palavras, ele mesmo é
“demonizado” pelos seus próprios conterrâneos, pelo fato de seu
ensino e suas obras entrarem em choque frontal contra a
ideologia judaica, representada, sobretudo, pelos fariseus e
saduceus. Aliás, embora os relatos sobre exorcismos estejam
estranhamente ausentes no evangelho de João, esse autor,
porém, é o único dos evangelistas a descrever uma “possessão
demoníaca” (ou melhor dizendo, “possessão satânica”), a qual é
realizada pelo próprio Zaxavâç (Satanás) em um indivíduo,
mais precisamente falando, em Judas (Jo 13.2, 26,27). O texto
parece sugerir uma espécie de possessão que ocorre em dois
estágios durante a última ceia: primeiro, o diabo lança
[ftepÀ.r|KÓi:og (beblekotos), “tendo lançado”] no coração de Judas
que traia a Jesus (v.2); e, segundo, após a aceitação de tal
sugestão diabólica, Satanás então EÍo-qÀôev (eisêlthen), “entrou”
nele (v.27).144 Além disso, é curioso notar o uso dos termos
StápoXoç (v.2) e Soccavâç (v.27), os quais são utilizados de
forma intercambiável para se referir ao mesmo ser que possui o
corpo de Judas Iscariotes, isto é, o Maligno.145

levasse a sério tais casos de possessão demoníaca, os quais eram tão comuns
em seu tempo.
144 C.H. Dodd sugere que João, utilizando a narrativa de Marcos, pode ter
transferido o aspecto interior e espiritual da situação imediatamente anterior à
traição de Judas (como descrita em Marcos), para o contexto dos discursos da
Última Ceia. (Cf. DODD, C.H. A Interpretação do Quarto Evangelho.
[Tradução de José Raimundo Vidigal], São Paulo, Teológica / Paulus, 2003,
p.526).
145
Este caso sui generis no qual o próprio Satanás possui o corpo de um
homem ocorre num momento crucial da história, há apenas alguns dias da
crucificação de Jesus. É intrigante notar que Satanás, no papel de “chefe dos
demônios”, não delega a possessão de Judas a algum demônio subalterno, o
que pode dar a entender que ele não queria correr o menor risco de fracassar
em seu plano de conduzir Jesus ao Calvário. A magnitude da situação exigia
93
CAR.LSS AUGUS + ffi VAILA + +I

Na primeira epístola joanina, os cristãos são atacados por


entidades demoníacas, cuja atuação consiste em ensinar uma
falsa doutrina, sobretudo, cristológica (1 Jo 4.1-3).*
146 João ainda
afirma que contra o espírito do erro (1 Jo 4.6) e do Anticristo (1
Jo 4.3) se encontra o Espírito da verdade (1 Jo 4.6). Entretanto,
deve-se tomar muito cuidado com os nvevpaixx (pneúmata),
“espíritos” (1 Jo 4.1).
No que se refere ao Apocalipse,147148 este denomina
ôaqióvux (daimónia) aos deuses pagãos (Ap 9.20) e identifica a
divindade-mor grega, Zeus, com Satanás (Ap 2.13). Das bocas
da trindade demoníaca (Ap 16.13), isto é, do dragão (Satanás, cf.
Ap 12), da besta e do falso profeta, saem três espíritos imundos
metamorfoseados em rãs. Trata-se dos Kveúpaia Saipovicov
(pneúmata daimoníõn), “espíritos de demônios” que seduzem os
reis terrenos para que venham para a guerra escatológica (Ap
16.14). Depois da derrota da Babilônia (Roma), os Saqiovia e
os espíritos imundos habitarão em lugares em ruínas (Ap 18.2).
Neste último caso, vemos que crenças populares judaicas se
associam com as esperanças de uma apocalíptica cristã anti-
romana. 148

perícia na sua execução. Sendo assim, o próprio “patrão” executa o serviço,


sem delegá-lo a nenhum “operário”. Falhas seriam inadmissíveis neste
maligno plano de entregar Jesus para ser crucificado. Portanto, quem melhor
poderia realizar tal intento, senão o próprio Satanás? Todavia, o Maligno
pensou erroneamente que, ao entregar Jesus para ser crucificado (tarefa que
seria realizada por intermédio de Judas), estaria frustrando o plano redentor
de Deus para a humanidade. Ele mal sabia que, ao fazê-lo, estaria justamente
contribuindo para o cumprimento do plano redentor de Deus. (Note ainda
que, segundo o mesmo João, não é Judas e nem tampouco Satanás quem
entrega Jesus para ser crucificado, mas é o próprio Jesus quem se auto-
entrega, cf. Jo 10.17,18)!
146 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.823.
147 Novamente, baseio-me no verbete Ôatpóvtov, in: BALZ, Horst &
SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [a-k],p.823,824.
148 Idem, Ibidem, p.823.
94
SA + ANÁS, DEfflffiNI®S E LEGIé

Aliás, deve-se dizer que muitas passagens do Apocalipse


são entendidas somente no âmbito da demonologia judaica.
Prova disso é que a queda dos anjos e das estrelas (cf. Gn 6.1-4;
I En VI. 1-4) trazem os demônios à terra (Ap 8.10; 9.1; 12.4,9).
O dragão, que de acordo com Ap 12.9 se identifica com a
serpente, o diabo e Satanás, é, juntamente com seu séquito
angelical, o oponente de Miguel e de seus anjos (Ap 12.7-9). O
lugar de castigo dos demônios presos é o ápwaoç (abyssos),
“abismo” (Ap 9.1; 20.1). O príncipe dos demônios é
Abadom/Apoliom (Ap 9.11). Além disso, entre as figuras
demoníacas acham-se os cavaleiros apocalípticos (Ap 6.1-8),
que possivelmente devem ser entendidos como seres que trazem
guerra, revolução, fome e pestilência (Ap 9.1-11).149 Porém, tal
como o diabo, os demônios serão destinados algum dia para o
fogo eterno (Ap 19.20; 20.10-14).

4) Nas Epístolas Gerais

Por fim, as chamadas epístolas gerais (excluindo-se as


epístolas de João, cf. acima) também abordam o antigo tema
mitológico judaico (cf. Gn 6.1-4) da queda e prisão dos anjos
que outrora foram desobedientes (1 Pd 3.19; 2 Pd 2.4; Jd 6,9).
Vemos nesses escritos que os Saipóvia (daimónia) crêem em
Deus e tremem diante dele (Tg 2.19), bem como, notamos
também que através da ressurreição e ascensão de Jesus, os
poderes espirituais bons e malignos se encontram a ele
subordinados (1 Pd 3.21 s; cf. Ef 1.20s).
Assim, concluímos este apanhado geral sobre os
demônios no I século A.D., tomando como base os relatos de
Filo, Josefo e o próprio NT. A seguir, consideraremos os
exorcismos, sem o que não poderemos compreender

Nogueira fala sobre “os demônios-soldados de Apocalipse 9”. (Cf.


NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência Religiosa e Critica
Social no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Paulinas, 2003, pp.221-238).
95
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

adequadamente a figura de Jesus em seu papel de exorcista e,


principalmente, não poderemos interpretar apropriadamente o
mais famoso caso de exorcismo do NT, situado em Mc 5.1-20 e
paralelos.

1.3. Considerações Sobre Exorcismos


Nosso objetivo nesse item é analisar a prática exorcística
em seus mais variados contextos a fim de que, como dissemos
acima, possamos ter um retrato adequado da figura de Jesus
dentro de seu papel taumatúrgico como exorcista e também para
que possamos situar a perícope que trata da cura do
endemoninhado geraseno (Mc 5.1-20 e paralelos) dentro de seu
pano de fundo apropriado. Para isso, consideraremos como
testemunhas desses vários relatos de exorcismos: o Antigo
Testamento (incluindo os Apócrifos); os Manuscritos do Mar
Morto (II Séc. a.C. ao Séc. I A.D.); a Tradição Judaica; o
Contexto Pagão; os Papiros Mágicos Gregos (PMG) (II Séc.
a.C. ao V Séc. A.D.); e, por fim, o próprio Jesus, como figura
paradigmática exorcistica.150

1.3.1. Definindo o Termo


Ao que tudo indica, não há um termo específico no
hebraico bíblico que possa ser usado com o significado de
“exorcismo”. Contudo, existe o vocábulo (’ãshap) que
além de significar “astrólogo, encantador e necromate”, por
exemplo, significa também “exorcista”.151 Todas as ocorrências
deste termo encontram-se em Daniel (1.20; 2.2 [em hebraico];

Para obter informações sobre relatos de exorcismos em tempos mais


recentes, como, por exemplo, entre os séculos XVI e XVIII, confira o item
exorcism, em: MUCHEMBLED, Robert. A History of the Devil: from Middle
Ages to the Present. [Translated by Jean Birrell], Cambridge, Polity Press,
2003, p.337.
151 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p. 134.
96
SA+ANÁS, DEm©N!©S E LEGIî

2.10,27; 4.4; 5. 7,11,15 [em aramaico]) e, além do mais, é


provável que o termo seja um empréstimo da Babilônia,
associado ao termo assírio shiptu, “conjuração”.152153 Contudo,
existe outro termo que também aparece em Daniel (2.27; 4.4;
5.7,11), o vocábulo "IT2 (gãzer), o qual, além de significar
“adivinho”, também adquiriu o significado posterior de
“exorcista” no texto de Qumrã. Aliás, como a raiz da qual este
termo é derivado significa “decretar”, um gãzer é, portanto,
aquele que exorciza decretando a expulsão do demônio. ’ Já no
grego, nos deparamos com o verbo E^opKÍÇco (eksorkízo), que no
grego ático significava “enviar para fora da fronteira, banir”.154
No NT, o verbo eksorkízõ significa basicamente “esconjurar” e
o substantivo è^opKtavriç (eksorkistês), refere-se ao “que
expulsa os espíritos”, “exorcista” (cf. At 19.13).155

1.3.2. Exorcismos no AT e nos Apócrifos

Já dissemos anteriormente que tanto os demônios como


também os próprios exorcismos foram, ambos, “exorcizados”
das páginas do AT e banidos para bem longe. Dissemos ainda
que este fato é bastante óbvio, pois, não havendo demônios,
conseqüentemente não haverá também exorcismos a serem
efetuados. Portanto, os dois únicos relatos sobre exorcismos, um
encontrado em 1 Samuel e o outro encontrado no livro apócrifo
de Tobias, nos são particularmente preciosos.156 Devido, então,

Idem, Ibidem.
153
VERMES, Geza. Jesús, el Judio. [Traducción de José Manuel Alvarez
Florez y Ângela Pérez], Barcelona, Muchnik Editores, S.A., 1984, p.73. Veja
também: GESENIUS, H. W. F. GHCLOT, pp. 166,167.
154 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., e^opidÇco, in: IGEL, p.276.
155 RUSCONI, Carlo. DGNT, p.179.
156 Guignebert também vê um fragmento de uma fórmula de exorcismo no
texto aramaico de Jr 10.11, o qual está situado no meio do texto hebraico.
Esse autor traduz assim esse verso: “Eis aqui como lhes falarei: os deuses que
97
CARLGS AUGUS+® VAILA + + I

a toda essa enorme “lacuna exorcística” - se é que podemos


assim denominar essa estranha ausência de exorcismos no AT -
parece-nos apropriado nos determos um pouco mais nestas
poucas passagens bíblicas que tratam do assunto.

a) Davi Exorciza o Espírito Maligno que Atormenta


Saul

No contexto de 1 Sm 16.14-23, mais precisamente no


verso 23, lemos o seguinte: “E sucedia que, quando o espírito
maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a
harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor,
e o espírito maligno se retirava dele” (ARA).
É interessante observar que 1 Sm 16.14 fala sobre o
niTT’ FIKE (rüah-rã'â mê’êt yehwãh), “espírito
maligno, da parte do Senhor”. Aqui, a preposição mê’êt
significa “proveniente de, da parte de, de”.157 Tal significado
nos traz novamente à memória o fato de que a religião
monoteísta israelita foi a grande responsável por este conceito
ambivalente de Deus. Ou seja, se há um único Deus, então tanto
o bem quanto o mal (neste caso, o “espírito maligno”) só podem
advir dele. O texto diz ainda que o espírito maligno vinha
(’el), “sobre, para dentro de” Saul (v.23). A LXX traz aqui a
preposição feni (epi) que conserva basicamente os mesmos
significados. Tais preposições são indicativas de que Saul estava

não têm feito o céu e a terra serão exterminados da terra e de debaixo do


céu”. (Cf. GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de
Jesus. [Tradução de Vicente Clavel], México, Unión Tipográfica Editorial
Hispano-Americana, 1959, p.99).
157 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.54.
98
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

possuído pelo espírito maligno.158 Contudo, após Davi dedilhar


a harpa (provavelmente tocando e cantando algum salmo), a
I ,XX diz que o espírito maligno à^íaimo àrc’ abron (aphistato
ap’ autoü), isto é, “afastava-se dele”, ou ainda, “deixava de
ocupá-lo”. Tal frase indica claramente a libertação demoníaca de
Saul.
Porém, devemos nos lembrar de que em uma outra
ocasião, Davi tentou “exorcizar” novamente o espírito maligno
que atormentava a Saul, mas desta vez não obteve êxito (cf. 1
Sm 18.10,11). Tal fracasso particular de Davi encontra eco nas
páginas do Novo Testamento, onde lemos sobre o fracasso
coletivo dos discípulos de Jesus em sua tentativa de exorcizar
um demônio (cf. Mt 17.14-21; Mc 9.14-29; Lc 9.37-43a).
Por incrível que pareça, esta mesma escassez de narrativas
sobre exorcismos no AT, também se repete nos livros apócrifos.
Entre os apócrifos, o único relato de um exorcismo ocorre no
livro de Tobias (escrito aproximadamente entre 225 e 175 a.C.),
em Tb 6.2-9; 8.1-3. Portanto, devido à raridade de tais narrativas
exorcísticas nas páginas dos apócrifos, e, devido também à
importância destas para a formação, consolidação e perpetuação
das crenças e práticas exorcísticas neotestamentárias, resolvi
transcrever na íntegra tais passagens com o objetivo de analisá-
las um pouco mais a fundo.

158
Segundo Klaus Berger, “no judaísmo da época do Novo Testamento, as
pessoas buscam orientação na experiência de Davi, que expelira o demônio
de Saul com um salmo; elas passam a interpretar todos os salmos de Davi
neste mesmo sentido [i.e., entendendo os inimigos relatados em muitos
salmos como poderes invisíveis]. Nos novos salmos e hinos compostos na
época, os autores concebem os inimigos igualmente como poderes
espirituais”. (Cf BERGER, Klaus. È Possível Acreditar em Milagres?
[Tradução de Luis Henrique Dreher]. São Paulo, Paulinas, 2004, pp. 189,190).
99
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +I

b) Tobias e a Sua Iniciação no Conhecimento


Exorcístico

2Partiu, pois, Tobias em companhia do anjo, e o cão os


seguia. Caminharam juntos e aconteceu que, numa noite,
acamparam à margem do rio Tigre. 3Tobias desceu ao rio para
lavar os pés, quando saltou da água um grande peixe, que queria
devorar-lhe o pé. Ele gritou 4c o anjo lhe disse: “Agarra o peixe
c segura-o firme!”. Tobias dominou o peixe c o arrastou para a
terra. 5E o anjo acrescentou: “Abre o peixe, tira-lhe o fcl, o
coração e o fígado c guarda-os; joga fora os intestinos, pois o
fel, o coração e o fígado são remédios úteis."16O jovem abriu o
peixe, tirou-lhe o fel, o coração c o fígado. Assou uma parte do
peixe e comeu-a, c salgou o resto. Depois continuaram juntos a
caminhada, até chegarem perto da Média. 7Então Tobias
perguntou ao anjo: "Azarias, meu irmão, que remédio há no
coração, no fígado e no fel do peixe? ” *Respondeu ele: "Se se
queima o coração ou o fígado do peixe diante de um homem ou
de uma mulher atormentados por um demônio ou por um
espírito mau, a fumaça afugenta todo o mal e o faz desaparecer
para sempre. 9Quanto ao fel, untando com ele os olhos de um
homem que tem manchas brancas, e soprando sobre as
manchas, ele fica curado.” (Tb 6.2-9, BJ - os itálicos são
meus).

Uma leitura atenta deste relato nos revela algumas


medidas apotropaicas (do grego anorpónaioç [apotrópaios],
“que conjura os males”)159 usadas contra os demônios, as quais
nos permitem fazer algumas observações. Primeira, “o fel, o
coração e o fígado” do peixe, são vistos como “remédio”, isto é,
0áp|i.aKov (fármakon - LXX), “droga”, “encantamento”160
contra o demônio (v.7). É claro que essa “receita” combina

159
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego.
Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p.77.
160 Cf. THAYER, Joseph Henry. ÇáppccKOV, in: GELNT, p.650.
100
SA+ANÁS, DE1T1®NI®S £ LEGIî

elementos de magia e medicina antigas, as quais retratam o uso


da época.161 Segunda, essa receita apotropaica não é dada a
fobias por um homem, mas pelo áyY£À,oç (ángelos), “anjo”
Azarias (vv.4, 5, 7-9), sendo, portanto, possuidora de
credibilidade. Terceira, o vocábulo “demônio” é tido como
sinônimo de “espírito maligno”, conforme vemos na frase
ôai|ioviov f] TivEÚpaToç novspov (daimoniou ê pneúmatos
poneroü), “por um demônio ou um espírito maligno” (v.8).
Quarta, a fumaça produzida pela queima do coração ou do
fígado do peixe, (fieó^ETai (feúksetaif “afugenta” todo o mal e o
faz desaparecer e’iç hòv aicova (eis tòn aiõna), “para sempre”.
Isso demonstra a eficácia de tal procedimento exorcístico. Em
último lugar, Azarias revela uma propriedade terapêutica
existente no fel do peixe, o qual parece curar alguma doença
oftalmológica (?) da pessoa (v.9).162 Não está claro no texto se
essa doença também é causada pelo demônio ou se ela possui
outra origem. De qualquer forma, o texto parece narrar, a meu
ver, uma espécie de ritual de iniciação mágica ou exorcística,
uma vez que Tobias é chamado de natSíov (paidíori) e
rcaiSápiov (paidáriorí) - termos intercambiáveis que significam
basicamente “menino, infante” - algumas vezes no texto (cf. vv.
2,3,5,7) em vez de ser chamado mais apropriadamente veocvíoiç

161STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Ccwm Ler o Livro de Tobias: a


família gera vida. São Paulo, Paulus, 2006, p.41. Outra “receita” usada para
manter os maus espíritos afastados era manter uma lamparina queimando
(acesa). (Cf. HEATON, E. W. Everyday Life in Old Testament Times. New
York, Charles Scribner’s Sons, 1956, p.73). Benson lembra ainda a
importância das cruzes e crucifixos, após o advento do cristianismo, como
amuletos usados para manter os espíritos malignos afastados. (Cf. BENSON,
George Willard. The Cross: its history and symbolism. New York, Dover
Publications, Inc., 2005, p. 115).
162 Como disseram Stomiolo e Bortolini: “O episódio do peixe é central
neste livro, pois dele dependerá a solução das dificuldades [que irão aparecer
durante a narrativa]”. (Cf. STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Op.Cit.,
p.40).
101
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

(neanías), “jovem”. É como se Tobias fosse iniciado no


conhecimento mágico ou exorcístico desde pequeno pelo anjo.
Ao analisarmos o texto seguinte, teremos uma surpresa quanto a
este aspecto.

c) Tobias, o Exorcista

’Quando acabaram dc comer c beber, decidiram ir dormir;


conduziram, pois, o jovem [Tobias] ao aposento [de Sara],
2Recordou-se Tobias dos conselhos de Rafael [outro nome dado
ao anjo Azarias, cf. Tb 7.9] e, tirando o fígado e o coração do
peixe de dentro do saco onde os guardara, colocou-os sobre as
brasas do perfumador. 2 O cheiro do peixe expulsou o demônio,
que fugiu pelos ares até o Egito. Rafael seguiu-o, prendeu-o e
acorrentou-o imediatamente. (Tb 8.1-3, BJ - os itálicos e
acréscimos entre colchetes são meus).

Em Tb 6.2-9 o infante Tobias é, como sugerimos, apenas


iniciado teoricamente no conhecimento exorcístico e mágico
pelo anjo Azarias. Contudo, aqui em Tb 8.1-3, vemos Tobias
colocar em prática o conhecimento teórico que havia aprendido
anteriormente.
A fim de que compreendamos melhor esta resumida
perícope que trata de um caso prático de exorcismo, temos que
situá-la primeiro dentro de seu contexto mais amplo.
O contexto é o seguinte: o anjo Rafael dirige-se com
Tobias até a região da Média. Chegando lá, Rafael lhe diz que
pernoitariam na casa de Ragüel, parente de Tobias e pai da bela
jovem Sara (Tb 6.10,11). O anjo declara a Tobias que este
deveria desposar a jovem, valendo-se do costume do levirato
(Tb 6.12; cf. Dt 25.5-10), uma vez que ela tivera sete maridos,
mas, segundo contava-se, um Socipóviov {daimónion) “demônio”
(Tb 6.14, LXX) havia matado a todos os sete na noite de
núpcias, assim que tentaram entrar no aposento dela com o
propósito de consumar o ato conjugal (Compare com: Mt 22.23-
33; Mc 12.18-27; Lc 20.27-40 - os saduceus e a ressurreição).
102
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S £ LEGIé

Isto ocorreu porque o demônio amava a jovem Sara e, por esse


motivo, não permitia que ninguém se aproximasse dela (Tb
6.14,15). Dito de outra forma, o demônio cometeu alguns crimes
passionais, matando os sete maridos de Sara, pois tinha ciúmes
dela.163 Tobias temia ter o mesmo fim que os sete maridos
tiveram (Tb 6.15) e, por isso, sentiu-se inseguro diante das
palavras do anjo. Todavia, Rafael encoraja Tobias, orientando-
lhe que, ao entrar no quarto nupcial, tome o fígado e o coração
do peixe e os coloque sobre as brasas do perfumador (Tb
6.16,17; cf. Tb 6.2-9). Segundo o anjo, tal ritual faria com que o
aroma exalado pelo fígado e coração fritos afugentasse o
Soctpóviov (daimónion) “demônio” (Tb 6.17, LXX) assim que
ele sentisse aquele odor (Tb 6.17,18). É a partir destes
acontecimentos antecedentes relatados em Tb 6.10-18 que o
exorcismo narrado em Tb 8.1-3 deve ser compreendido.
Portanto, já que este esclarecimento contextual foi feito,
podemos então chegar às seguintes conclusões a respeito do
exorcismo narrado em Tb 8.1-3:

Ia) Tobias aparece aqui como alguém que já é mais velho,


pois ele é chamado de veocvíokov (neanískõn), “jovem” (Tb 8.1,
LXX), termo este bem distinto daquele naiSíov (paidíon),
“menino”, usado em Tb 6.2. Talvez, entre a viagem feita a
Rages (Tb 6.13) e o episódio do exorcismo (Tb 8.1-3) tenham

Particularmente, entendo que o relato sinótico que trata da questão entre


os saduceus e a ressurreição, seja um midrash de Tb 6. 14,15; 7.11. Contudo,
embora o texto fonte (o livro de Tobias) insira a figura do demônio na
narrativa, os saduceus, porém, o excluem de sua fala, uma vez que eles não
acreditam em anjos e nem em espíritos, ou seja, “demônios” (cf. At 23.8).
Por fim, os evangelistas conservaram este relato sinótico em seu texto tal
como ele saiu dos lábios dos saduceus, isto é, sem mencionar o demônio.
Temos aqui um curioso efeito inverso. Embora, como já vimos
anteriormente, os judeus de Alexandria demonizassem os deuses das nações
pagãs, os saduceus, porém, acompanhados pelos sinóticos, “desdemonizam”
o relato de Tobias, excluindo o “demônio” da narrativa.
103
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

transcorrido vários anos, o que justificaria a mudança do termo


paidíon para neanískõn. Esse termo é interessante, pois ele nos
mostra que foi um jovem, e não um ancião, quem realizou o
exorcismo.

2a) A prática apotropaica de Tobias dá resultado, pois ele


ekcíAuctev (ekõlyseri) “expulsa” o Saipóviov (daimónion)
“demônio”, o qual foge pelos ares até o Egito (Tb 8.3a).164

3a) Após o demônio ter sido expulso através da prática


exorcística de Tobias, o anjo Rafael o segue e o prende (Tb
8.3b), prisão esta que é reflexo de um dos temas centrais da
apocalíptica judaica, a qual trata da prisão dos anjos
desobedientes (cf. 2 Pd 2.4; Jd 6).

4a) Finalmente, tenho por mim que a causa desta narrativa


exorcística relatada no livro de Tobias pode ser encontrada na
demonização de um fato comum ocorrido no cotidiano das
pessoas. Deixe-me explicar melhor este ponto. Acredito que
esse relato que fala sobre o “demônio assassino” que matou os
sete maridos de Sara (cf. Tb 6.14-18), sem o qual não haveria,
portanto, a perícope do exorcismo em Tb 8.1-3, possa ter se
originado em algum conto popular que tratava do tema do
“amante ciumento” ou do “marido traído”. Se estivermos certos
em nossa interpretação, então isto quer dizer que esse tema
acabou adquirindo uma conotação demoníaca, talvez, a fim de
descrever até que ponto pode chegar um homem que é ciumento
ou um marido que se sente ou é traído. Ou seja, uma pessoa
nestas condições pode chegar ao ponto de cometer um crime

Uma variação da frase “pelos ares até o Egito” seria “para as regiões
elevadas do Egito”. (Cf. nota da BJ, p.TiT). Esse demônio que foge para as
regiões do Egito é identificado como sendo Asmodeu. (Cf. STORNIOLO,
Ivo & BORTOLINI, José. Como Ler o Livro de Tobias: a família gera vida,
p.43).
104
SA + ANÁS, DÊin®NI©S E LÊGIé

passional. Assim, tal conto popular teria transformado o


indivíduo ciumento ou traído desse conto numa espécie de
demônio serial killer.

1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto

A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto - escritos


aproximadamente entre 200 a.C. e 70 A.D. - já foi definida pelo
biblista e arqueólogo William F. Albright como o acontecimento
bíblico-arqueológico mais importante dos tempos modernos.165
Sem dúvida alguma, Albright estava certo ao fazer tal
afirmação. E, para o nosso estudo em particular, tais
manuscritos adquirem uma relevância ainda maior, pois ao
tratarem das crenças e práticas provenientes de uma seita judaica
que foi contemporânea de Jesus (os chamados essênios), nos
fornecem vários textos que tratam da demonologia e, mais
particularmente, de relatos de exorcismos.166 Sendo assim, não
podendo ignorar o conteúdo de tais manuscritos, vejamos alguns
relatos de exorcismos narrados nos mesmos.

Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comimidad" de


Qumrán. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2006, p. 11.
166 Para César Vidal, os exorcismos realizados por Jesus não são
propriamente exorcismos, pois, segundo ele, “o exorcismo requer um ritual
minimamente elaborado. No caso de Jesus, nos é dito que os demônios saíam
mediante uma simples repreensão. A diferença se manteve entre os
seguidores de Jesus, como demonstra o episódio do exorcista judeu Ceva
(Atos 19.11-20)”. (Cf. VIDAL, César. Jesus y Los Manuscritos dei Mar
Muerto. Barcelona, Editorial Planeta S.A., 2006, p. 187). O autor se
equivoca, porém, ao dizer que Ceva era um exorcista, pois ele era, na
verdade, um “sumo sacerdote” (Cf. At 19.14). Além disso, em nenhum
momento do contexto dessa passagem é dito que Ceva ou algum de seus sete
filhos seguia a Jesus. J. Jeremias comenta que “a teologia dos essênios
repousa essencialmente sobre a doutrina dos dois espiritos, o espírito de Deus
e o espírito de Belial, isto é, do diabo”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. A
Mensagem Central do Novo Testamento. [Tradução de João Rezende Costa],
São Paulo, Editora Academia Cristã Ltda., 2005, p. 125).
105
CAR.L9S AUGUS+® VAILA + + I

a) Abraão, o Patriarca Exorcista

Entre os manuscritos de Qumrã, encontramos o relato do


Gênesis Apócrifo, no qual Abraão é descrito como alguém
dotado de poderes terapêuticos e como um exorcista. A seguir,
transcrevemos o trecho que descreve Abraão nestes dois papéis:

“l6[...] Essa noite, lhe enviou Deus Altíssimo {ao rei do


Egito} uni espírito castigador, para afligi-lo a ele e a todos os
membros de sua casa; um espirito ^maligno que o afligia a ele
e a todos os membros de sua casa. E não pôde aproximar-se
dela {de Sara}, nem menos ainda ter relações sexuais com ela,
apesar de estar com ela l8dois anos. Ao final de dois anos se
agravaram c intensificaram os castigos c as pragas contra ele e
contra todos os membros de sua casa. E mandou l9chamar todos
[os sábios] do Egito, c todos os magos, junto com todos os
curandeiros do Egito, para ver se podiam curá-lo daquela praga,
[a ele] c aos membros 20de sua casa. Porém, todos os
curandeiros e magos, e todos os sábios, não puderam levantar-
se para curá-lo. Porque o espírito os atacou a todos 21 e
fugiram. [...] Então, HRK.NWS veio a mim {Abraão} c me
pediu que fosse e rezasse pelo 22rci, c impusesse minhas mãos
sobre ele para que vivesse. Porque [me havia visto] cm um
sonho. Porém, Ló lhe disse: Abraão, meu tio, não pode rezar
pelo ' rei enquanto Sara, sua mulher, está com ele. Vai agora e
diz ao rei que reenvie sua mulher ao seu próprio marido, c ele
rezará por ele e viverá. 25[...] {HRKNWS disse ao rei do Egito}
Que devolvam, pois, te rogo, Sara a Abraão, seu marido, 26e
esta praga e o espírito de males purulentos deixarão de afligir-
te. 28[...] agora reza por mim {o rei do Egito} epor minha casa,
para que seja expulso de nós este espirito maligno. Eu
{Abraão} rezei por [...] 29e impus minhas mãos sobre a sua
cabeça. A praga foi removida dele; foi expulso [dele o espírito]

106
SA + ANÁS, DEIT1®NI©S £ LEGIî

maligno e viveu”. (IQap.Gen. XX. 16-23, 25, 26, 28, 29 - os


itálicos e os acréscimos entre {} são meus).167

Como pode ser percebido, esse texto extraído do Gênesis


Apócrifo é um midrash da narrativa bíblica de Gn 12.10-20,
que, por sua vez, encontra eco também em Gn 20.1-18 e em Gn
26.1-12 (com Isaque). A passagem veterotestamentária de Gn 12
fala sobre grandes pragas que Deus enviou a faraó pelo fato
deste ter tomado a mulher de Abrão, Sarai, como sua esposa.
Todavia, o texto de IQap.Gen.XX chama-nos a atenção por
descrever o conhecido patriarca como aquele que ora pelo rei do
Egito impondo-lhe as mãos sobre a cabeça. Tal prática obtém
como resultado a expulsão do espírito maligno de faraó e de sua
casa (IQap.Gen. XX.28,29).168 É digno de nota que o rei do
Egito é visto como um endemoninhado neste texto. Ou seja,
mais uma vez, seguindo a mentalidade judaica, os “outros” (os
idólatras) são demonizados. Perceba ainda outro detalhe
interessante no texto apócrifo, a respeito do qual já nos
referimos anteriormente. Deus é quem envia “um espírito
castigador”, “um espírito maligno”, sobre faraó e os membros de
sua casa (1 Qap.Gen. XX. 16,17). Aqui vemos novamente o
tema da ambivalência divina de forma explícita.

Texto extraído de: MARTINEZ, Florentino García. Textos de Qumran.


[Tradução de Valmor da Silva]. Petrópolis, Vozes, 1994, pp.276,277.
168
Jean Pouilly comenta: “Abraão faz um exorcismo, impondo as mãos e
orando. Esse rito não é conhecido como tal pelo Antigo Testamento.
Entretanto, a imposição das mãos é mencionada nele duas vezes (Nm 8.10 e
27.18-23), mas sempre no quadro de consagração de homens para função
importante. No Evangelho, ao contrário, essa maneira de fazer exorcismo tem
vários paralelos: Mc 5.23; 6.5; 7.32; 8.23-25; 16.18; Lc4.39-41; 13.13. Ouso
essênio desse rito - mas seria próprio dos essênios? - pode ter influenciado o
uso cristão, mas devemos ser muito prudentes nesse gênero de analogias, seja
o que for que alguns pensem sobre tal rito”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã,
p.123).
107
CARLOS AUGUS+ffi VAILA + +I

b) Daniel, o Sábio Exorcista

A assim chamada “Oração de Nabônides (ou de


‘Nabonido’)”, que também é encontrada nos manuscritos de
Qumrã, ao que tudo indica, parece descrever um relato de
exorcismo realizado pelo sábio Daniel. Devido à importância
que tal relato tem para o nosso estudo, iremos citá-lo abaixo. O
texto, porém, encontra-se bem fragmentado, como pode ser
percebido pelos colchetes espalhados pelo seu corpo:

“'Palavra da oração que rezou Nabônides, rei do pa[ís de


Babi]lônia, [grande] rei, [quando foi afligido] 2por uma
inflamação maligna, por decreto do Dc[us Altís]simo, em
Tema. [Eu, Nabônides,] fui afligido [por uma inflamação
maligna] 3durante sete anos, e fui relegado longe [dos homens
até que rezei ao Deus Altíssimo] 4<? meu pecado o perdoou um
exorcista. Era um [homem] judeu d[os desterrados, o qual me
disse:] 5Proclama por escrito para que se dê glória, exal[tação e
honra] ao nome do dc[us Altíssimo. E eu escreví assim:
Quando] 6fui afligido por uma inflamação ma[ligna e
permanecí] em Tema [por decreto do Deus Altíssimo, eu] 7rezci
durante sete anos [ante todos] os deuses de prata c de ouro, [de
bronze c de ferro,] sde madeira, de pedra c de argila, porque [eu
pensava] que eram deuses [,..]”(4QPr.Nab. - os itálicos são
meus).. 169

De acordo com o erudito judeu, Geza Vermes, o exorcista


citado neste fragmento da quarta caverna de Qumrã, ainda que
não seja mencionado nominalmente no corpo do documento, é
Daniel, quem, segundo ele, é uma figura investida
postumamente do dom de curar.*170 Aliás, o vocábulo “exorcista”
que aparece neste texto apócrifo, ocorre outras quatro vezes em

MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran, p.334.


1 70
VERMES, Geza. Jesús, el Judio, pp.72,73.
108
SA+ANÁS, DEH1©NI©S E LEGIé

Daniel (2.27; 4.4; 5.7,11), sendo usado normalmente para


descrever mágicos, astrólogos ou adivinhos. Porém, como
pondera Vermes, o termo "ITD (gãzer) que aparece neste texto
de Qumrã, significa “exorcista”. Tal vocábulo é, ainda segundo
Vermes, derivado de uma raiz hebraica que significa “decretar”,
o que significa que um gãzer é, por conseguinte, alguém que
exorciza, decretando a expulsão do demônio. Este mesmo verbo
é empregado pelo galileu Hanina ben Dosa contra a rainha dos
demônios (Agrath), a fim de expulsá-la.171 Tal relato nos chama
a atenção ainda pelo fato de combinar três elementos: doença
(vv.1-3), pecado e demônio (v.4). Curiosamente, esse tema
tríplice também pode ser visto no relato sinótico que trata da
cura de um paralítico (cf. Mt 9.1-8; Mc 2.1-12; Lc 5.17-26).
Porém, embora esses textos não mencionem explicitamente
nenhum “demônio” ou “exorcismo”, entretanto, eles estão
inseridos dentro do contexto do I século d.C., período este cuja
crença popular atribuía ao demônio a causa das enfermidades
(cf. p.ex., Mc 9.17,25; Lc 13.11). Assim, a “Oração de
Nabônides” lança alguma luz sobre a compreensão dos
Evangelhos e sobre as crenças populares existentes na época do
Segundo Templo. De forma geral, 4QPr.Nab. parece ser um
midrash de Dn 4.28-37.

c) Salmos de Exorcismo Apócrifos172

171 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, Cf. também: SCHIAVO, Luigi.


Dois Mil Demônios na Decápole. Exegese, história, conflitos e
interpretações de Mc 5,1-20. Dissertação de Mestrado em Ciências da
Religião, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São
Paulo, 1999, p. 152.
172
Estes Salmos de Exorcismo Apócrifos (HQPsApa) são formados por
cinco coleções fragmentadas de Salmos, os quais pertencem ao chamado
“Fragmento A”. (Cf. MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran,
pp.422-424).
109
CARLffiS AUGUS + ® VA1LA + +I

Alguns salmos encontrados na décima primeira caverna


de Qumrã também possuem um conteúdo fortemente voltado
para o exorcismo. Porém, devido ao fato dos textos não se
encontrarem em bom estado, possuímos apenas fragmentos dos
mesmos. Abaixo, transcrevo as “Coleções I- IV” dos Salmos de
Exorcismo Apócrifos, situadas dentro do “Fragmento A”, as
quais são extraídas da obra Textos de Qumran, de Florentino
García Martinez. Apenas omito a “Coleção V”, a qual é, com
exceção de alguns pequenos detalhes, praticamente idêntica ao
Salmo 91.0 estado precário destes manuscritos pode ser notado
pelas várias reconstruções do texto [entre colchetes] encontradas
no corpo dos documentos. Mas, por entender que tais textos,
ainda assim, podem lançar alguma luz sobre o conhecimento
demonológico e exorcístico do I século d.C., resolvi mencioná-
los aqui:

Fragmento A.173

*[...] e quem o chora 2[...] o juramento 3[.„] por YHWH


4[...] o dragão 5[...] a ter[ra...] 6[...] conju[rando...} 7[...] a [...]
8[...] este [...] 9[...] aos demô[nios...} *°[...] e habita[rá...]

Quanto a este primeiro parágrafo de HQPsApa vemos


que, sem dúvida alguma, trata-se de um caso de exorcismo.
Todavia, a fragmentação do manuscrito não nos permite fazer
maiores considerações.

Coleção I.

\De Davi. Sobre as palavras de conjuro] em nome de


[YHWH ...] 3[...] de Salomão, e invocará [o nome de YHWH}
‘’'[para que o livre de toda praga dos es]píritos, dos demônios,
[Lilit,} "[bufos e chacais.} Estes são os demônios, e o prín[cipe

173 Todos os itálicos dos textos são meus.


110
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S £ LEGIî

de hostili\dade 6[é Belial} que [domina} sobre o abismo [de


tre}vas.
Os fragmentos da Coleção I já nos possibilitam tecer
alguns comentários. Esse texto nos permite ver Davi como um
exorcista e talvez também Salomão (?). Neste Salmo, o nome
inefável, o Tetragrama (YHWH), é invocado a fim de que
aquele que o pronuncia possa se ver livre dos demônios e dos
males causados por eles. E interessante notar aqui a relação
entre os “espíritos” e os “demônios” com animais tais como os
“bufos” e os “chacais”, que são demonizados. Por fim, Belial,
figura bem conhecida nos textos de Qumrã,174 aparece em
destaque como o “chefe demoníaco”.

Coleção II.

'[...E lhe dirás: Quem] 2és? [Fizeste tu os céus e] os


abismos [e tudo o que contêm,] 3a terra e tu[do o que há sobre
a] terra? Quem fe[z estes sinais] 4e estes prodífgios sobre a]
terra? E ele, YHWH, [o que} 'fez tu[do isto por seu poder,}
conjurando a todos os [anjos a vir em sua ajuda,} 6a toda
semen[te santa] que está em sua presença, [e ele que julga] 7[os
filhos do] céu, c [toda a] terra [por causa deles], porque
enviaram sobre 8[toda a terra] o pecado, e sobre todo ho[mcm o
mal. Porém] eles conhecem 9[suas ações maravilho]sas, que
nenhum deles [pode fazer ante YHW]H. Sc não l0[trcmcm] ante
YHWH, para [...e] destruir a alma, "[os julgará] YHWH e
temerão este grande [castigo (?).] "[Perseguirá] um dentre vós
[mil...] dos que servem a YHWH l3[...] grande, E [...] ... [...].

Essa Coleção, embora mostre YHWH “conjurando a


todos os anjos a vir em sua ajuda”, não mostra, entretanto,
demônios sendo exorcizados. Mas o teor do texto diz respeito ao
juízo de YHWH que recairá sobre “aqueles que enviaram sobre

174 Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comunidad” de


Qumrán, nota 281, p. 133.
111
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I

toda a terra o pecado, e sobre todo homem o mal”, isto é, os


demônios. Logo, tal salmo devia ser empregado pela
comunidade de Qumrã a fim de afugentar os demônios e,
certamente também, exorcizá-los. Como já nos referimos antes,
uma prática comum do judaísmo na época do Novo Testamento
era a utilização de salmos com fins exorcísticos, baseando-se,
sobretudo, no exorcismo que Davi havia feito em Saul (1 Sm
16.14-23).

Coleção III.

1 [e] grande [...] conjurando [...] 2c o grande [...E enviará


um anjo] poderoso e te ex[pulsará de] 3toda a terra. [...] céus
[...] 4Golpeará YHWH um gol[pepoderoso que épara destruir-
te \para sempre,] 5e no furor de sua cólera [enviará] contra ti
um anjo poderoso [para executar] b[todas as suas orde]ns, (um)
que [não terá piedade] contigo, que [...] 7[...] sobre todos estes,
que te [arremessará] no grande abismo, 8[no Xeol] mais
profundo. Lon[ge da morada da luz] habitarás, pois é escuro
9em extremo o grande [abismo. Não dominarás] mais sobre a
terra l0[mas estarás trancado] para sempre. [Maldito serás tu]
com as maldições do Abadão, 11 [c castigado pelo] furor da ira
de Y[HWH. Tu dominarás sobre] as trevas por todos l2[os
períodos d]as humilhações [...] teu presente l3[...]

Essa terceira coleção novamente remete ao tema do juízo


divino que será exercido sobre as forças do mal. Aqui, contudo,
o texto faz menção a alguém (YHWH) que “enviará um anjo
poderoso e te expulsará (a Belial ?)175 de toda a terra”. Além
disso, (Belial) será arremessado “no grande abismo, no Xeol
mais profundo” e, portanto, “não dominarás mais sobre a terra”.
Tal referência nos traz à memória Ap 20.10, que relata o

175 É quase certo que a referência aqui seja a Belial, como pode ser visto nos
fragmentos da Coleção IV.
112
SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé

lançamento do diabo no lago de fogo e enxofre. Além do mais, o


texto menciona ainda Abadão (Abadom), referindo-se
provavelmente ao anjo do abismo chamado em hebraico
“Abadom” e em grego “Apoliom” (cf. Ap 9.11), isto é, outro
nome dado ao diabo. Aqui não está muito claro se será um anjo
ou o próprio Yahweh quem expulsará (Belial).

Coleção IV.

'[...] ... [...] 2que [...] os possuídos [...] 3os voluntários de


tua vcr[dadc, quando Raffael os cura. [...] 4Z>e Davi. So[bre as
palavras de conjjuro em nome de YHWH. [Invoca em to]do
tempo 5 os céus. [Quando] vier sobre ti Beli[al, tu] lhe dirás:
bQuem és tu, [maldito entre] o homem e entre a semente dos
santos? Teu rosto é um rosto 7de vaidade, e teus chifres são
chifres de mise[rável.] Tu cs trcva c não luz, s[ini]qüidadc c não
justiça. [Contra ti,] o chefe do exército. YHWH te [trancará]
9[/?o Xe]ol mais profundo, [fechará] as duas portas de bronze,
pe[las quais] não "’[atravessa] a luz. Não [tc alumiará a luz do]
sol que [se levanta] "[sobre o] justo para [iluminar seu rosto.]
Tu lhe dirás: Acaso [não há um anjo] l2[com o jus]to para ir [ao
juízo quando] o maltrata Sa[tã? E o livrará] l3[o espírito da
ver]dadc das trc[vas porque a jus]tiça está com ele [para
sustcntá-lo no juízo.] I4[...] não [...]

Este último texto, ao que parece, é o que melhor retrata


uma prática exorcística, pois nele encontramos as seguintes
palavras: “Quando vier sobre ti Belial, tu lhe dirás: Quem és tu,
maldito entre o homem e entre a semente dos santos?”. A
continuação do texto, “YHWH te trancará no Xeol mais
profundo, fechará as duas portas de bronze [...]” deixa entrever
que tais palavras eram espécies de “fórmulas mágicas”
utilizadas pelos qumranitas para repelir os demônios e expulsá-
los de sua comunidade.

113
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos

A literatura pseudepigráfica é importante por revelar as


idéias judaicas em voga durante o chamado período
intertestamentário (430 a.C. - 6/4 a.C.).176 Ao longo da literatura
pseudepigráfica alguns textos que parecem aludir a casos de
possessão demoníaca e exorcismos podem ser encontrados.
Destaque especial é dado ao Testamento dos Doze Patriarcas.
Em 1 Enoque VIII, 2, lemos que “Semjaza ensinava os
esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a dissipação dos
esconjuros”.177 No Testamento de Levi XVIII, 4, Levi se dirige
aos seus filhos antes de morrer e profetiza-lhes sobre a vinda de
um novo sacerdote, sobre quem é dito que “Ele acorrentará
Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os espíritos
maus”.178 No Testamento de Dã V,l, encontramos escrito que “o
Senhor habitará em vós, e Belial fugirá” e em V,4 vemos que o
Senhor, “Ele mesmo subjugará Belial; e tomará vingança eterna
dos inimigos. Ele resgata de Belial os que estavam presos (as
almas dos santos)”.179 No Testamento de Aser VI, 2, lemos que
“se uma alma estiver em aflição, é porque é atormentada pelo
espírito mau; a este outrora serviu nos prazeres e em obras
depravadas”.180181Por fim, o Testamento de Benjamim III, 1,
aconselha: “temei ao Senhor e amai o vosso próximo! Assim, se
os espíritos de Belial vos pressionarem com toda espécie de mal,
não poderão vencer-vos”. 81

176 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.697.


177 PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.262.
178 Idem, Ibidem, p.349.
179
PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, pp.372,373.
180 Idem, Ibidem, p.389.
181 Idem, Ibidem, p.397.
114
SA + ANÁS, D£m®NI®S £ LEGIé

Contudo, além disso, deve-se fazer menção a um dos


meios mais eficazes usados para afastar demônios, o qual era
recitado como fórmula mágica. No livro de Jubileus nós temos
uma declaração de que Noé, ao receber instrução dos anjos
sobre como subjugar os demônios, “escreveu abaixo todas as
coisas em um livro como nós o instruímos, concernente a todo
tipo de medicina. Desse modo, os espíritos malignos foram
impedidos de causar dano aos filhos de Noé” (Jubileus X,
12,14).182
Além do mais, vários nomes de anjos caídos (ou
demônios)183 são encontrados nos pseudepígrafos, como, por
exemplo, a lista citada em I Enoque VI, 4, que traz: Semjaza (o
demônio chefe) e os subchefes que cuidavam de grupos de dez
demônios: Arakiba, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Danei,
Ezekeel, Narakijal, Azael, Armaros, Batarel, Ananel, Sakeil,
Samsapeel, Satarel, Turel, Jomjael e Sariel.184 É interessante
notar que outros demônios que acompanhavam esta horda
demoníaca mantiveram relações com mulheres e eles também
“ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e feitiços, e
familiariza vam-nas com ervas e raízes”.185 (/ Enoque VII, 1; cf.
Gn 6.1-4).
Todavia, outros nomes demoníacos podem também ser
vistos nos escritos pseudepígrafos, como Azazel, Belial,

SURBURG, Raymond F. Introduction to the Intertestamental Period. St.


Louis, Concordia Publishing House, 1975, p.64.
183
A opinião adotada neste livro é a de que os anjos caídos se tomaram
demônios posteriormente. Para saber mais a respeito da origem dos
demônios, consulte: OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e
Batalha Espiritual, pp.58-61. Nesta excelente obra o autor fornece três
teorias sobre a origem dos demônios. Para uma abordagem rabínica sobre a
origem dos demônios, veja: STEWART, Roy A. Rabbinic Theology’: an
introductory’ study. Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961,
pp.59-61.
1 X4
PROENÇA, Eduardo de. (org.). Op.Cit., p.261.
185 Idem, Ibidem, p.261.
115
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Beelzebul, Mastema, Samael (chefes dos demônios) e outros.


Essa extensa lista de nomes de demônios encontrada nos
pseudepígrafos adquire grande relevância para o nosso trabalho,
uma vez que nos remete para a declaração demoníaca singular­
plural encontrada em Mc 5.9: “Legião é o meu nome, porque
somos muitos”. No próximo capítulo, quando estivermos
tratando da análise exegética de Mc 5.1-20, verificaremos este
verso de forma mais detalhada.

1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do


Judaísmo

Podemos definir Tradição Judaica como “o conjunto de


ensinos e leis do Judaísmo transmitidos de uma geração para a
outra. Esta tradição oral foi coletada e estabelecida ao longo da
Mishná e do Talmude como escritos rabínicos posteriores”.186
A “tradição oral”, assim chamada por ter disseminado
ensinamentos do Judaísmo por meio da palavra falada e não
através da palavra escrita, foi a protagonista no papel de
celebrizar e eternizar figuras exorcísticas, tais como, o anjo
Raphael, Davi, Salomão, Eleazar, Hanina ben Dosa e até mesmo
uma planta, chamada Bara, à qual atribuía-se propriedades
exorcísticas. Vejamos tais personagens e os seus exorcismos
com maiores detalhes.

a) Raphael, o Anjo Exorcista

No livro apócrifo de I Enoque encontramos o anjo


Raphael, que recebe uma ordem direta do Senhor para expulsar
Azazel, o príncipe dos demônios, para o deserto, onde deveria
ficar preso até o dia do juízo. Observe o que o texto diz sobre
este anjo exorcista:

186 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia ofJudaism, p. 195.


116
SA + ANÁS, DEHlffiNIffiS Ê LEGIî

3E a Raphael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e


pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael
e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por
baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para
sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! 4“No dia do
grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal de fogo!
Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a
Salvação, para que terminem os seus sofrimentos e não se
percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas
secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos seus
filhos! Toda a terra está corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel. A ele atribui todos os pccados!”(/
187
Enoque X, 3,4 - os itálicos são meus).

Esse texto nos mostra Azazel sendo como que


“exorcizado” para o deserto, para longe do convívio das pessoas.
Neste sentido, o anjo Raphael é visto como uma espécie de
“exorcista”, que expulsa para fora do “corpo da sociedade” o
maligno príncipe dos demônios.

b) Davi, o Famoso Exorcista do Rei


Embora já tenhamos falado sobre a fama de Davi como
exorcista anteriormente (1 Sm 16.14-23), creio ser importante
citá-lo novamente, mas, desta vez, conforme o testemunho dado
por Flávio Josefo:
Saul, ao contrário, foi tomado pelo espírito mau, que
parecia querer csganá-lo a todo o instante. Os médicos não
encontraram outro remédio para esse mal, senão mandar cantar
para ele, ao som da harpa, hinos sagrados, por algum músico
competente, quando o demônio o agitasse. Mandaram procurá-
lo por toda parte; disseram-lhe que havia somente um que

PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.263.


117
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +I

poderia fazê-lo e era um dos filhos de Jessé, de nome Davi [...].


{Antiguidades Judaicas - VI, 235). 188

O testemunho de Josefo (c. 37-100 A.D.) é importante


para a compreensão do conhecimento demonológico que havia
no judaísmo do I século. Josefo menciona demônios no relato da
depressão de Saul, a qual ele atribui aos 8atp.óvia (daimónia))*9
É curioso observar neste ponto que o rei que havia sido
escolhido pelo povo, isto é, Saul, é o endemoninhado, enquanto
que o rei escolhido por Deus, Davi, é o exorcista.

c) Salomão, o Exorcista par Excellence


Salomão, principalmente nos escritos de Flávio Josefo,
possui reputação não apenas de sábio, mas também de exorcista
místico, que através da manipulação de vários remédios,
prescreveu receitas altamente eficazes, capazes de expulsar os
190 Além disso, o que nos chama a
demônios de forma definitiva.*189
atenção neste relato é o fato de Josefo enfatizar que tais “receitas
exorcisticas”, cuja invenção fora atribuída a Salomão, ainda
eram seguidas e colocadas em prática pelos judeus em sua época
(I Século d.C.):

Esse grande soberano compôs cinco mil livros de


cânticos e de versos, três mil livros de parábolas, a começar do
hissopo ate o cedro, passando por todos os animais, pássaros,
peixes e todos os que caminham sobre a terra. Deus lhe havia
dado perfeito conhecimento da natureza e de suas propriedades
sobre o que ele escreveu um livro; empregou esse conhecimento

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1. [Tradução de Vicente


Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 135.
189 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10.
190
Segundo a Sabedoria de Salomão 7.20, Salomão tinha “poder dos
espíritos” (rtVEupdreov píaç), isto é, “poder sobre os espíritos”. (Cf.
ROGERS JR., Cleon L. The Promises to David in Early Judaism. BS.
Vol. 150, n° 599. Dallas, Dallas Theological Seminary Press, 1993, p.299).
118
SA + ANÁS, DEffl©NI©S E LEGIé

em compor, para utilidade dos homens, diversos remédios,


dentre os quais alguns tinham mesmo a força de expulsar os
demônios [de tal forma], que estes não se atreviam a voltar. Tal
maneira de expulsá-los está ainda em uso entre os da nossa
nação [...] (Antigüidades Judaicas - VIII, 324 - os acréscimos
entre colchetes e os itálicos são meus).191192

Embora tal relato esteja, sem dúvida alguma, repleto de


fantasias no que concerne à pessoa de Salomão, todavia, trata-se
de um importante testemunho sobre as práticas exorcísticas que
podem ter estado em voga em alguns círculos judaicos mais
místicos no período contemporâneo ao da época
neotestamentária.
Além desse relato citado por Josefo, Budge ainda fala
sobre o desenho do pentagrama que havia no anel mágico de
Salomão, o qual era considerado como um poderoso amuleto
contra todo tipo de mal, incluindo, é claro, os demônios. O
autor fala ainda sobre inscrições encontradas em outros
amuletos, as quais continham “palavras de poder” usadas,
segundo ele, por Salomão, tais como: “Lôfham!” e
“Mahfelôn!”.193 Enfim, lendas sobre os poderes do rei Salomão
como mágico são numerosas, e graças a vários textos da Bíblia,
do Talmude, de Josefo e de Qumrã, tais lendas são bem
conhecidas.194

JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1., pp. 175,176.


192
BUDGE, E. A. Wallis. Amulets and Talismans. New York, University
Books, 1968, pp.40,424.
193
Idem, Ibidem, p. 181.
194
Idem, Ibidem, p. 280. Veja ainda o excelente estudo de Perkins, segundo
quem, a frase “maior do que Salomão” (Mt 12.42) é, sobretudo, uma
referência ao controle que Jesus exerce sobre os demônios. Perkins entende
que a natureza da sabedoria de Salomão descrita neste verso tem a ver com a
reputação que este tinha como alguém que exercia controle efetivo sobre o
reino demoníaco. Baseado principalmente no contexto da controvérsia de
Belzebú que aparece no mesmo capítulo (Mt 12.22-32), Perkins argumenta
que a “sabedoria” demonstrada por Jesus na expulsão de demônios era
119
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

d) Eleazar, o Exorcista Judeu

Ainda de acordo com Flávio Josefo, e, na continuação do


relato sobre a fama de Salomão como exorcista, o autor diz ter
sido testemunha ocular das práticas exorcísticas de um judeu,
chamado Eleazar, o qual praticava exorcismos publicamente na
presença do próprio imperador Vespasiano:

Eu vi pessoalmcntc um dos nossos, chamado Eleazar,


libertar os possesses de espíritos malignos, cm presença de
Vespasiano, de seus filhos c demais guerreiros. A cura se
realizou da seguinte maneira: Eleazar segurou, sob as narinas do
possesso, um anel no qual introduzira uma daquelas raízes
indicadas por Salomão. Fez com que o doente a cheirasse e,
assim, retirou o espírito maligno pelas narinas. No mesmo
instante, o possesso caiu prostrado e Eleazar, pronunciando o
nome de Salomão c os provérbios por ele compostos,
csconjurou o espírito maligno a não voltar mais para aquele
homem. E para mostrar aos presentes que tinha rcalmcntc o
poder de fazer tal coisa, Eleazar colocou uma bacia ou outro
recipiente cheio d’água, não distante dali, e ordenou ao espírito
maligno que, logo que saísse do homem possesso, entornasse a
água c convencesse os espectadores de que havia abandonado o
homem. Isto também aconteceu, rcalmcntc, e assim se
manifestou a sabedoria e a ciência de Salomão. Achei que devia
referir estes fatos para que conheçam todos como é poderoso o
espírito do rei e como ele era agradável a Deus, e para que as

superior à sabedoria empregada por Salomão em seus encantamentos


“exorcísticos”, relatados na Tradição Judaica. Assim, Jesus é “maior do que
Salomão” neste sentido. (Cf. PERKINS, Larry. “Great Than Solomom ”
(Matt 12:42). TrinJ. Vol. 19, n°2. Weaverville, Trinity Journal, Inc., 1998,
pp.207-217).
120
SA+ANÁS, DElTlfflNIffiS £ LEGIî

virtudes excelsas desse rei não ficassem ocultas a ninguém


195
debaixo do sol. (Antiguidades Judaicas - VIII, 2,5).

Esse relato de exorcismo é especialmente importante por


nos fornecer diversas informações sobre uma prática exorcística
realizada no I Século d.C. Gostaríamos de destacar aqui alguns
pontos encontrados nesse relato:

1) Josefo, para legitimar o exorcismo feito por


Eleazar, menciona várias testemunhas oculares
que o presenciaram: a) o próprio Josefo; b) o
imperador Vespasiano; c) os filhos do
imperador; e d) os guerreiros (soldados) de
Vespasiano;

2) O exorcismo é visto como uma prática


terapêutica, pois Josefo dá o nome de “cura” à
prática exorcística realizada por Eleazar;

3) A fama de Salomão é novamente percebida


neste exorcismo, pois, é graças a “uma
daquelas raízes indicadas por Salomão”,
contidas no anel de Eleazar, que o
endemoninhado é liberto;*
196

1 QS
JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Apud: WEISER, Afons. O Que
é Milagre na Bíblia. [Tradução de D. Mateus Rocha], São Paulo, Paulinas,
1978, p.86.
196 '
E curioso notar a esse respeito que o famoso apologista cristão, Justino
Mártir (c. 100-165 d.C.), “acreditava que oração, jejum, imposição de mãos,
queima de raízes, aspersão de água benta e o nome de Jesus deveríam ser
empregados nos exorcismos (II Apologia, 6)”. (Cf. OROPEZA, B. J. 99
Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual. [Tradução de Josué
Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000, nota 20, p.210). A crença de
Justino reflete um ponto de vista sincrético, misturando elementos oriundos
do cristianismo e da crendice popular dos tempos antigos.
121
CARLffiS AUGUS+ffi VAÍLA + + I

4) Eleazar expulsa o demônio “pronunciando o


nome de Salomão e os provérbios por ele
compostos”. Embora Jesus tenha expulsado o
diabo no episódio da tentação no deserto
através de três citações do livro de
Deuteronômio (cf. Mt 4.1-11; Lc 4.1-13;
Compare, p.ex., Mt 4.4 com Dt 8.3; Mt 4.7
com Dt 6.16; Mt 4.10 com Dt 6.13; 10.20), é
impossível sabermos exatamente quais textos
do livro de Provérbios teriam sido utilizados
por Eleazar durante seu exorcismo. Contudo,
acredito que passagens tais como Pr 1.33;
3.26; 14.26,27; 15.29; 19.23; 20.8 e 23.11
poderíam certamente ter sido utilizadas por
ele.

5) Eleazar, ao expulsar o demônio, ordena-o “a


não voltar mais para aquele homem”. Tal
ordem encontra eco nas palavras de Jesus, ao
expulsar o demônio que atormentava um rapaz
desde a sua infância: èyoò íttitccocjcl) ooi,
amou Kai pr|K6Ti eloéÀOflç eLç cíòtÓv. (egõ
epitássõ soi, ékselthe eks autoú kai mêkéti
eisélthês eis autón), “eu te ordeno, sai dele e
não entres mais nele” (Mc 9.25).

6) Eleazar também ordenou ao demônio que,


assim que fosse expulso, desse um sinal de que
isso havia acontecido. Ele ordenou ao demônio
que, “logo que saísse do homem possesso,
entornasse a água”, isto é, derrubasse a bacia
ou o recipiente cheio d’água, a fim de que sua
expulsão fosse confirmada. Segundo David

122
SA+ANÁS. DEmêNieS £ LEGIî

Aune, naqueles tempos antigos acreditava-se


que o demônio devia dar algum sinal físico
que indicasse sua saída do corpo da pessoa,
como, por exemplo, derrubar um copo d’água
ou fazer a vítima espirrar. Ele ainda diz que
drogas também eram usadas em alguns
exorcismos. 197

7) Por fim, é curiosa a referência sobre Eleazar


ter retirado o espírito maligno “pelas narinas”
e o fato de que o possesso “caiu prostrado”
após a sua libertação. Embora não vejamos
nos Evangelhos nenhum relato sobre algum
demônio ter saído por orifícios tais como
“boca”, “ouvidos” ou “narinas”, encontramos,
contudo, menção à “prostração” dos demônios
diante da autoridade de Jesus (cf. Mc 3.11; Lc
8.28).

e) Hanina ben Dosa, o Exorcista Galileu*


198

Hanina ben Dosa, segundo fontes rabínicas, viveu em


Arab, uma cidade galiléia situada dentro do distrito de Séforis
(pBer. 7c; bBer. 34b). Segundo parece, essa localidade ficava a

AUNE, David. “Exorcism”, ISBE, 2:242-45. Apud: OROPEZA, B. J.


Op.Cit., p.210.
198
G. Vermes inclui Hanina em um grupo de dez Judeus Ascetas e
Carismáticos daqueles tempos antigos, os quais se encontram dispostos nesta
seqüência: 1) Honi; 2) Menahem, o Essênio; 3) Abba Hilquiá; 4) Hanã; 5)
Simão, o Essênio; 6) Banno; 7) Hanina ben Dosa; 8) Jesus, filho de Ananias;
9) Eleazar; 10) Jacó, de Quefar Secaniá. (Jesus, que não é mencionado neste
grupo, aparece na lista de Personalidades do Novo Testamento). (Cf.
VERMES, Geza. Who's Who in the Age of Jesus. London, Penguin Books,
2005, pp.6,7).
123
CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I

uns quinze quilômetros ao norte de Nazaré,199 cidade onde Jesus


fora criado (Mt 2.23; Lc 4.16). Ao que tudo indica, Hanina
viveu no I século d.C., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus.
Fontes talmúdicas o associam a três figuras históricas deste
período: Nehuniah, oficial do templo, Rabban Gamaliel e
Yohanan ben Zakkai. Se, como parece ser provável, o Gamaliel
aqui em questão fosse Gamaliel, o Velho, de quem o apóstolo
Paulo afirmava ter sido discípulo (At 22.3), e não Gamaliel II,
neto do anterior, então Hanina viveu no período precedente ao
ano 70 d.C.200*
Seja como for, esse rabino é visto como um poderoso
taumaturgo. Prova disso é que se dizia do rabino Hanina ben
Dosa que ele costumava orar sobre o doente e dizer: “Este
viverá”, ou “Este morrerá”. Diziam-lhe: “Como sabes disso?”.
Ele respondia: “Se a minha oração é fluente em minha boca, eu
sei que ela é aceita; e se ela não é, eu sei que ela é rejeitada”
(Berakoth 5.5). Aliás, a Mishná declara que “quando o
Rabino Hanina ben Dosa morreu cessaram os homens de boas
ações” (Sotah 9.15). A expressão “homens de boas ações” pode

199
VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p. 78.
200 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.78. A opinião de Vermes de que
Hanina viveu antes do ano 70 d.C. é seguida por Crossan, que afirma que
Hanina viveu antes da destruição do Segundo Templo no I século E.C. (Cf.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu
do Mediterrâneo. [Tradução de André Cardoso]. Rio de Janeiro, Ed. Imago,
1994, p. 183). Todavia, segundo a Mishná, Hanina ben Dosa atuou depois do
ano 70 d.C., mais precisamente, entre 80-120 d.C. (Cf. DANBY, Herbert.
The Mishnah. [Translated from the Hebrew with introduction and brief
explanatory notes by Herbert Danby], Oxford, Oxford University Press,
1988, p. 799). David Flusser também parece situar Hanina numa data
posterior ao ano 70 d.C., pois, de acordo com ele, Hanina viveu uma geração
após Jesus. (Cf. FLUSSER, David. Jesus. [Tradução de Margarida
Goldsztajn], São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2002, p.87).
">()1
DANBY, Herbert. The Mishnah, p.6.
124
SA + ANÁS, DE1T1©NI©S E LEGIî

ter o sentido de “homens de poder” ou “realizadores de


milagres”.202
E, já que estamos falando sobre milagres, um aspecto em
particular da vida de Hanina deve ser destacado, o qual diz
respeito ao seu papel de exorcista. Para tal, nos reportaremos
novamente a Geza Vermes, quem nos fala sobre uma tradição
preservada no Talmude Babilônico, segundo a qual Hanina se
depara com Agrath, a rainha dos demônios. Essa rainha dos
demônios que costumava atacar as pessoas todas as noites por
meio de seu grande exército de espíritos malignos, passou a
realizar seus ataques apenas duas vezes por semana, graças à
intervenção de Hanina ben Dosa. Eis o relato:

Uma vez [Agrath] se encontrou com o rabino Hanina ben


Dosa e lhe disse: “Se Deus não mc houvesse recomendado
desde o céu, ‘toma cuidado com Hanina c com a sua doutrina!’,
eu teria te atacado”. E ele disse: “Sc eu sou tão estimado no ccu,
ordeno que tu não voltes a passar nunca mais por um lugar
habitado”. E ela lhe disse: Permita-me, por favor, fazê-lo por
tempo limitado”. Ele então lhe concedeu as noites dos sábados e
as noites de quarta-feira.203

Esse relato sobre Hanina ben Dosa possui em seu


conjunto diversos elementos que parecem ecoar nas páginas dos
Evangelhos. E, para o nosso estudo de Mc 5.1-20, em particular,
ele adquire uma importância ainda maior, pois são nítidas as
semelhanças entre este relato encontrado no Talmude
Babilônico e o contexto de Mc 5.7-13:

70?
Idem, Ibidem, p.306, nota 1.
203
VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.220. Aqui, a fala de Hanina à demônia
Agrath: “Se eu sou tão estimado no céu (...)” encontra eco no confronto de
Elias com os capitães de Acazias, onde o profeta diz por duas vezes: “Se eu
sou homem de Deus, desça fogo do céu (...)”. (Cf. 2 Rs 1.10, 12). Além
disso, é digno de nota o pedido de Agrath feito para Hanina e a concessão
deste a tal petição (cf. Mc 5.10-13 par.).
125
CARLSS AUGUS + ffi VAILA + + I

Jesus e Hanina ben Dosa, dois Galileus Exorcistas

No Evangelho de Marcos

1. Jesus tem a sua identidade conhecida pelos demônios (Filho


do Deus Altíssimo) (5.7);
2. Jesus ordena ao espírito imundo que saia do corpo do homem
que ele estava possuindo (5.8);
3. Os demônios rogam a Jesus que lhes permita entrar numa
manada de porcos (5.12);
4. Jesus concede o pedido dos demônios e permite-lhes entrar
nos porcos, os quais se precipitam de um despenhadeiro ao mar
(5.13).

No Talmude Babilônico

1. Hanina ben Dosa tem a sua identidade conhecida por Agrath,


a rainha dos demônios;

2. Hanina ordena a Agrath que nunca mais ande por um lugar


habitado;

3. Agrath pede a Hanina que lhe permita andar por lugares


habitados por tempo limitado;

4. Hanina concede o pedido de Agrath e permite-lhe andar por


lugares habitados nas noites de sábado e de quarta-feira.

Como podemos notar nessa breve comparação feita entre


a prática exorcística de Jesus e a de Hanina ben Dosa, este
último é uma figura essencial para a compreensão da hipótese

126
SA+ANÁS, DEffl©Nl©S E LEGIé

que associa o judaísmo carismático com a Galiléia,204 e, além


disso, é também uma figura indispensável para o entendimento
do ministério taumatúrgico de Jesus, sobretudo, no que diz
respeito ao seu papel de exorcista.

f) Bara, a Planta Exorcista

Talvez, o leitor possa se perguntar: “Por que uma planta


é incluída numa lista que trata de exorcismos e exorcistas na
tradição do judaísmo?”. Porque, como já tivemos a oportunidade
de ver: primeiro, Salomão receitava remédios à base de raízes
para expulsar demônios; segundo, um judeu chamado Eleazar
utilizou tais receitas em um de seus exorcismos; terceiro, Flávio
Josefo nos diz que tal maneira de expulsar os demônios
(utilizando-se raízes receitadas por Salomão) ainda era praticada
em sua época (I século d.C.); quarto, o apologista cristão,
Justino Mártir, também incluía a queima de raízes em suas
práticas exorcísticas; e, quinto, era comum usar drogas à base de
ervas e plantas em alguns exorcismos do mundo antigo.
Portanto, vejamos o relato de Josefo a respeito de uma
planta chamada Bara, a qual possuía, segundo ele, a propriedade
de exorcizar demônios. A meu ver, no relato de Josefo esta
planta parece ser a “personificação” de um exorcista, figura esta
que era comum no I século d.C. Por este motivo, resolvi incluí-
la aqui:
No vale que rodeia Macherom, do lado do norte,
encontra-se, no lugar chamado Bara, uma planta que tem o
mesmo nome e que se parece com uma chama e lança, à tarde,
raios resplandecentes e retira-se, quando a gente a quer apanhar.
O único meio de detê-la é atirar-lhe urina de mulher, ou aquele
sangue supérfluo, que elas, de tempos em tempos, eliminam.
Não se pode tocá-la, sem perigo de morrer, a menos que se
tenha na mão a raiz da mesma planta; encontrou-se um outro

204 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.77.


127
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

meio de colhê-la sem perigo. Cava-se em redor, de modo que


ela fique presa pela raiz à qual amarra-se um cão; este querendo
seguir aquele que o amarrou, arranca a planta e morre
imediatamente, como se resgatasse com sua vida a do seu dono.
Depois disso, pode-se sem perigo manuseá-la; ela tem uma
virtude, que faz [com que] não se tema expor-se a qualquer
perigo, para apanhá-la, isto é, os demônios ou as almas dos
maus, que entram no corpo dos homens vivos, e que os
matariam se não se lhes impedisse, abandonam-nos
imediatamente, quando deles se aproxima essa planta.
(Guerras Judaicas, VII, 526 - os itálicos e os acréscimos entre
colchetes são meus).205

A origem etimológica do nome dessa planta (Bara) não é


dada por Josefo, mas, tenho para mim, que ela possa ter ligação
com a palavra hebraica n^Zl (bãrah), que, dentre outros
significados, quer dizer “expulsar, colocar em fuga”.206 Se
estivermos corretos em nossa interpretação, então o próprio
significado do nome da planta já é, em si mesmo, uma alusão à
sua propriedade exorcística.
Josefo ainda diz que a planta “tem uma virtude”, ou seja,
“os demônios ou as almas dos maus, que entram no corpo dos
homens vivos [...] abandonam-nos imediatamente, quando deles
se aproxima essa planta”. Tal relato é interessante por três
motivos: primeiro, porque nos mostra que no I século d.C.
acreditava-se que os “demônios” e as “almas dos maus” fossem
uma mesma coisa (ou melhor, acreditava-se que as almas das
pessoas más que tivessem morrido, se transformavam em
demônios); segundo, a crença de que tal planta tivesse a
“virtude” de exorcizar demônios, parece refletir a crendice
popular da época, repleta de elementos místicos e supersticiosos;

Guerras Judaicas, Livro VII, XXIII, 526. JOSEFO, Flávio. História dos
Hebreus. Vol. 3, p. 199.
206 HARRIS, R. Laird, (org.). DITAT, p.218.
128
SA + ANÁS, D£m®NI©S E LEGIé

e, terceiro, acreditava-se que essa planta fosse realmente eficaz


nos rituais exorcísticos, pois os demônios abandonavam os
corpos das pessoas “imediatamente”, assim que entrassem em
contato com ela.

1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão

Saindo do contexto judaico e entrando agora no contexto


pagão, duas personagens, em particular, se destacam na prática
dos exorcismos: Apolônio de Tiana e um sírio anônimo da
Palestina. Analisemos estas duas personagens de forma mais
detalhada.

a) Apolônio de Tiana

Apolônio de Tiana (c. 4 a.C. - 90 d.C.) foi um filósofo


grego neopitagórico e um conhecido taumaturgo que viveu no I
século d.C.20 Apolônio era da cidade de Tiana, cidade da
província romana da Capadócia, na Ásia Menor. Desde cedo,
apegou-se à filosofia e ao estilo de vida dos neopitagóricos, uma
combinação sui generis de ascese, fuga do mundo e magia. Ele
percorreu várias regiões como pregador, taumaturgo e vidente
profético. Sua fama chegou, inclusive, a sobrepujar a de muitas
outras figuras que a ele se assemelhavam, tais como,
Epimênides, Peregrino Proteu e Alexandre de Abonuteicos. 208
Apolônio se recusava a provar carne e vinho, andava descalço e
tinha os cabelos compridos. Depois de cinco anos de silêncio e
estudo, ele se dedicou a viajar e se diz que chegou até a
Babilônia (onde conheceu os magos) e à índia (onde foi*

BARBAGLIO, Giuseppe. Jesús, Hebreo de Galilea: investigación


histórica. [Traducción de Afonso Ortiz García]. Salamanca, Secretariado
Trinitario, 2003, p.342.
208 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87.
129
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

discípulo de budistas e brahmanes). Chegou a Roma durante o


reinado de Nero, de onde partiu depois para a Espanha e para a
Etiópia. Segundo conta-se, ele morreu na cidade de Éfeso em
uma idade muito avançada, embora outras fontes afirmem que
ele simplesmente desapareceu.209
Apolônio parece ter sido uma espécie de reformador moral
e religioso que tentou revitalizar o paganismo e que foi adorado
durante séculos como uma pessoa divina (tal como ocorreu
também com Pitágoras). Hegel, e com ele muitos outros
historiadores da Filosofia, afirmam que as histórias milagrosas
tanto sobre Pitágoras, como também sobre Apolônio de Tiana,
foram tentativas de se criar uma personalidade pagã que pudesse
opor-se à de Cristo.210211
Todavia, como Apolônio era visto por alguns escritores da
Antigüidade? Bem, seu primeiro biógrafo, Moirágenes, o via
como um mago. Já Luciano de Samósata (II século d.C.) o vê
como saltimbanco e enganador. O primeiro a escrever um
trabalho mais amplo sobre Apolônio foi Filóstrato, escritor da
corte do imperador Sétimo Severo, com a obra Vida de Apolônio
de Tiana, em tomo de 200 d.C., a pedido de Júlia Domna,
mulher do imperador. Essa obra é a biografia mais antiga que se
conhece a respeito de um taumaturgo pagão. Filóstrato, ao
contrário das opiniões anteriormente esboçadas, não via em
Apolônio um mago ou um feiticeiro, mas o enxergava como um
homem sábio que fora iluminado divinamente e um taumaturgo
• 711
que fora agraciado com poder divino.
Vejamos um famoso relato de exorcismo que é atribuído a
ele:

PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa


Cecilia Frost]. México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p.33. Segundo
A. Weiss, Apolônio morreu com a idade aproximada de cem anos. (Cf.
WEISS, Adolfo. La Ley Universal de Las Sociedades. Buenos Aires,
Editorial Kier, 1949, p.402).
210 PIKE, Edgar Royston. Op.Cit., p.33.
211 WEISER, Afons. Op.Cit., p.87.
130
sa+anás. DemêNies e legiã®

Certa feita, estando Apolônio a falar em Atenas sobre as


vítimas da bebida, um jovem se pôs a troçar das coisas que ele
dizia. Então Apolônio olhou para ele e lhe disse: "Não é você
pessoalmente que procede, assim, arrogantemente. E o
demônio que leva você a agir desse modo, sem você se dar
conta”. E de fato, o jovem estava possesso de um demônio, sem
o saber, pois ria à toa de coisas de que ninguém achava graça, e
depois chorava sem nenhum motivo, além de ter o costume de
andar falando ou cantando sozinho. Muitas pessoas pensavam
que era a alegria impetuosa da juventude que o levava a tais
explosões, mas, na realidade, era a boca do demônio que o
fazia... Quando Apolônio o encarou, o espírito que estava nele
começou a gritar de medo e de raiva, como um homem que
estivesse sendo queimado ou torturado. E o espírito jurava que
deixaria o jovem e não voltaria mais a se apoderar de pessoa
alguma. Então Apolônio, cheio de raiva, o repreendeu
severamente... e lhe ordenou que saísse do jovem e mostrasse,
por algum sinal visível, que obedecera. “Eu vou derrubar
aquela estátua que está ali ”, disse o demônio, e apontou para
uma estátua que estava no átrio real, onde o episódio se
passara. Assim que a estátua começou a se mexer e, a seguir,
caiu, ouviu-se um barulho indescritível. O Jovem, porém,
esfregava os olhos, como se acabasse de despertar de um sono.
Olhou para os raios do sol c mostrou uma expressão humilde,
enquanto a atenção de todos se voltava para ele. Depois corrigiu
sua vida, recuperou-se e orientou sua vida, no futuro, pelo
exemplo de Apolônio. (Vida de Apolônio de Tiana, IV, 20 - Os
itálicos são meus).212

Esse relato sobre o exorcismo de Apolônio de Tiana, em


especial, nos mostra que as narrativas helenísticas de exorcismos

PHILOSTRATUS, Flavius. The Life of Apollonius of Tyana.


CONYBEARE, F. C., in The Loeb Classical Library, London, 1960, 5a ed.,
11. Apud: WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.88.
131
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I

pareciam seguir uma estrutura bem definida. Seguindo a opinião


de Afons Weiser,213 a estrutura pode ser assim esquematizada:

Estrutura de um Relato de Exorcismo Típico

1. Indicação da situação e descrição do estado do possesso;

2. Encontro do Exorcista com o possesso;

3. Tentativa de defesa por parte do demônio;

4. Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia do


possesso;

5. Saída do demônio acompanhada de demonstração;

6. Reação dos espectadores.

Filóstrato e o Relato Sobre o Exorcismo de Apolônio

1. Apolônio realiza uma conferência em Atenas: um certo jovem


zomba, ri, chora e fala sozinho;

2. Apolônio o encara e fala com ele;

3. O demônio pressente o exorcista, grita e promete sair;

4. Apolônio ordena que o demônio abandone o possesso e o


mostre através de um sinal visível;

WEISER, Afons. Op.Cit., pp. 89,90.


132
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

5. O demônio sai e derruba uma estátua, fazendo barulho;

6. Todos voltam sua atenção para o que fora curado.

Embora Flavius Filostratus, ou simplesmente, Filóstrato,


o autor da Vida de Apolônio de Tiana, tenha vivido entre 175-
245 d.C., e, portanto, a mais de um século de distância de seu
biografado (Apolônio viveu de 4 a.C. a 90 d.C.), contudo, sua
obra é de suma importância para o nosso trabalho, pois nos
permite fazer um balanço entre as supostas práticas exorcísticas
de Apolônio de Tiana e os exorcismos praticados por Jesus.
Porém, algo mais deve ser dito sobre Apolônio, a fim de
que possamos delinear melhor o seu perfil. Eunápio, o pupilo de
Crisanto, um dos instrutores do imperador Juliano, escrevendo
no fim do IV século d.C., disse que Apolônio era mais do que
um filósofo. Ele foi, por assim dizer, Ti Gecov te koci avQpcoKou
pEcrov (Ti theõn te kai anthrõpou meson), isto é, “um meio
termo entre os deuses e os homens”.214*Filóstrato, na conclusão
de sua obra (viii, 31), diz que viajou por várias partes do mundo
e que por onde andava se deparava com as Xoyotç ôaipoviotç
(logois daimoniois) “palavras inspiradas” de Apolônio. ’ Certa
vez, Apolônio foi para Pérgamo, na Ásia Menor, e conheceu o
templo de Esculápio. Conta-se que ele curou muitos pacientes
naquele lugar.216 Todavia, devemos nos lembrar que os
endemoninhados não tinham acesso aos templos de Asclépio (ou
Esculápio).217 Portanto, se Apolônio realizou, de fato, milagres
ali, devem ter sido curas, e não exorcismos. E ainda, em outro

MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana. [Tradução de Raul Branco]. Brasília,


Editora Teosófica, 2000, p.44.
215
■ Idem, Ibidem, p.58.
“16 Idem, Ibidem, p.82.
?I7
WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87.
133
CARL®S AUGUS+ffi VAILA + +I

episódio, quando tentaram atirá-lo a cães raivosos para que estes


o estraçalhassem, Apolônio desapareceu de forma misteriosa.218
Assim, de posse de tais informações, podemos chegar às
seguintes conclusões: Primeira, os relatos fantásticos sobre a
vida de Apolônio de Tiana, senão todos, pelo menos grande
parte deles, devem ser enxergados como meras lendas repletas
de fantasias, os quais foram produzidos ou coletados (talvez
também adaptados) por Filóstrato com o objetivo de angariar
prestígio diante de Júlia Domna, esposa do imperador Sétimo
Severo, a qual lhe havia encomendado a obra. Segunda, as
histórias miraculosas a respeito de Apolônio de Tiana foram,
certamente, tentativas de se criar uma personalidade
taumatúrgica pagã que pudesse rivalizar-se à pessoa de Cristo.
Terceira, as supostas semelhanças existentes entre as vidas e
ministérios de Apolônio de Tiana e de Jesus, tão defendidas por
alguns,219 devem ser vistas com muitas reservas e, sobretudo,
sob um olhar crítico, pois tais semelhanças não se sustentam
quando submetidas a uma análise bíblico-teológica. Quarta,
Apolônio de Tiana deve ser visto mais como um filósofo
místico-sincrético, a quem a crendice popular atribuiu uma
coleção de feitos notáveis, do que propriamente um taumaturgo,
no sentido mais pleno da palavra. Finalmente, por mais
paradoxal que possa parecer, embora tais relatos apolonistas
estejam repletos de mitos, fantasias e lendas, contudo, ainda
assim são importantes, pois nos fornecem um material auxiliar
que nos permite conhecer, por exemplo, como funcionava a
estrutura das práticas exorcísticas no antigo mundo pagão.

b) O Sírio Anônimo da Palestina

RIJCKENBORGH, J. Van. O Nuctemeron de Apolônio de Tiana. Jarinu,


Editora Rosacruz, 2003, p.l 1.
219 Por exemplo, MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana, p.8. Aliás, também
pode ser encontrado no prefácio desta obra uma tentativa de identificar o
“Apoio” mencionado em algumas epístolas paulinas com “Apolônio de
Tiana”. (Cf. Op.Cit., pp. 11-15).
134
SA + ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé

O escritor grego Luciano de Samósata (c. 120-180 d.C.),


amante da sátira e oponente das crenças religiosas, nos relata em
sua obra Philopseudes, que significa “amigo da mentira”, alguns
casos de exorcismos. Num destes casos, ele coloca na boca de
um certo íon - que defendia a legitimidade de tais histórias de
exorcismo - os seguintes dizeres:
De boa vontade [diz íon] te perguntaria qual é a sua
opinião sobre os que libertam aos endemoninhados de seus
medos conjurando abertamente aos espectros. E isto não
impede que eu te diga: todos conhecem ao sírio da Palestina,
mestre na matéria de libertar endemoninhados, e quem é que
não sabe quantas pessoas caem por terra com os olhos
arregalados e a boca cheia de espuma ao verem a lua; quantos
lunáticos este homem [o sírio] não colocou, novamente, em pé,
e mandou de volta para casa, depois de ter expulsado deles, em
troca de dinheiro, os espíritos malignos? De fato, quando estes
doentes jazem por terra diante dele e ele pergunta ao demônio
de onde ele vem e como c que ele entrou naquele corpo, o
doente não diz uma palavra. E o diabo quem responde, em
grego ou em alguma língua bárbara, dizendo quem é, de onde
veio e como foi que entrou naquela pessoa. Então, ele o expulsa
à força de esconjuros e, quando isso já não adianta, à força de
ameaças. Eu mesmo vi, certa vez, um desses diabos, que era
todo preto e como que defumado, sair de uma pessoa
{Philopseudes, 16 - os itálicos e os acréscimos entre colchetes
220
são meus).

Esse intrigante exorcismo relatado por Luciano de


Samósata nos fornece vários elementos relevantes para a nossa*

LUCIANO. [Luciano de Samósata]. Relatos Fantásticos. [Traducción y


Notas de Carlos Garcia Gual, Jaime Curbera, Marisa Del Barrio y Jorge
Bergua], Madrid, Alianza Editorial, S.A., 1998, p. 126.
135
CARLGS AUGUS + ® VAILA + + I

análise de Mc 5.1-20.221 Essa narrativa helenística sobre um


caso de exorcismo, ainda que seja inventada, possui muitas
coisas em comum com o relato evangélico que ora estamos
analisando. Algumas observações devem ser feitas aqui:

1) O exorcista protagonista do relato é chamado de


“sírio da Palestina”. Ao que tudo indica, Luciano
parece estar se referindo a um contemporâneo seu
(“todos conhecem ao sírio da Palestina”), pelo que
dificilmente a menção parece fazer alusão a Jesus.221
222
2) O tal “sírio da Palestina” é descrito como sendo uma
figura popular, cujos exorcismos praticados são
vistos como sua especialidade. Segundo íon, ele é
“mestre na matéria de libertar endemoninhados”.
3) As possessões demoníacas, neste relato, são
comprovadas por meio de três comportamentos
anormais, a) As pessoas “caem por terra”; b) Além

221 '
Segundo Morton Smith: “E possível que esta paródia tenha sido inspirada
em alguma história do evangelho, como Mc 5.1-19. Mas, é igualmente
possível e mais provável que ambos, Luciano e o evangelho, se basearam em
um conhecimento comum da dramaturgia popular praticada pelos
exorcistas”. (Cf. SMITH, Morton. Jesus the Magician. Northamptonshire,
The Aquarian Press, 1985, p.57).
222
Esta é a opinião de Jaime Curbera, in: LUCIANO. [Luciano de
Samósata]. Relatos Fantásticos, nota 16, p.126. Aliás, segundo Morton
Smith, “em todo momento, o exorcista de Luciano não é representado como
Jesus, mas como um contemporâneo do próprio Luciano. A única
característica que sugere uma paródia de Jesus é a identificação do homem
como ‘o Sírio da Palestina’”. (Cf. SMITH, Morton. JM, p.57). Todavia, tal
referência pode sim dizer respeito a Jesus. Luciano, como satirista que era,
pode muito bem ter trocado intencionalmente a nacionalidade de Jesus -
chamando-o de “sírio”, em vez de “judeu” - justamente como forma de
satirizar a figura de Cristo.
136
sa+anás, DemêNies e lêgiã®

disso, ficam “com os olhos arregalados”; e c) Ficam


223
com a “boca cheia de espuma”.

4) Um conceito animista também é visto no relato, pois


se acredita que “ao verem a lua”, muitos (os
224 ficam endemoninhados.
chamados “lunáticos”)*

5) Este “sírio da Palestina”, depois de exorcizar o


demônio da pessoa, mandava “de volta para casa” o
que fora endemoninhado. Jesus também age assim
em Mc 5.19: “Vai para a tua casa, junto aos teus, e
anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti, e
como teve misericórdia de ti”.

6) Contudo, este exorcista que era “mestre na matéria de


libertar endemoninhados” expulsava os demônios
“em troca de dinheiro”. O fato de se cobrar dinheiro
em troca da expulsão dos demônios, a princípio, nos
choca. Mas devemos nos lembrar, por exemplo, que
“judeus exorcistas ambulantes eram comuns no

Duas dessas três anormalidades, o “cair por terra” e o “espumar”, também


são vistas em Mc 9.20 e Lc 9.39,42. Porém, o terceiro comportamento, o
“arregalar dos olhos”, também pode estar implícito nestes textos.
Curiosamente, o texto paralelo ao de Mc 9.14-29, isto é, Mt 17.14-21, diz,
particularmente no verso 15, que o endemoninhado era um “lunático”. Já a
passagem paralela de Lc 9.37-43 nada diz a esse respeito.
224
A palavra grega usada para se referir a um “lunático” é o vocábulo
0£Ár|ViáÇop.ai (selêniàzomai), que significa literalmente “estar atacado pela
lua”, ou então, “ser epilético”. (Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.573).
Segundo Daniel J. Harrington, “o lunático é normalmente tomado como uma
referência aos epiléticos (de quem se pensava na Antigüidade que a doença
estava relacionada às fases da lua). Mas o termo provavelmente incluía mais
do que os epiléticos - todos aqueles que estavam sob a nociva influência da
lua”. (Cf. HARRINGTON, Daniel J. (ed.). The Gospel of Matthew. Vol.l.
[Sacra Pagina]. Collegeville, The Liturgical Press, 1991, p.73).
137
CARL©S AUGUS+® VAILA + + I

mundo antigo”. Aliás, como disse Henri Daniel-


Rops, “havia exorcistas profissionais entre os
rabinos”, os quais, segundo ele, “iam de cidade em
cidade cruzando as estradas da Terra Santa na prática
de sua profissão”.225
226

7) Outro aspecto curioso desta narrativa pagã de


exorcismo é o fato de que o exorcista “pergunta ao
demônio de onde ele vem e como é que ele entrou
naquele corpo”. Esse tipo de talk show demoníaco
nos soa bem familiar, uma vez que ainda pode ser
encontrado com freqüência em algumas igrejas
neopentecostais brasileiras em nossos dias.227

8) A tomada de posse da consciência do indivíduo por


parte do demônio também pode ser vista neste relato.
Assim que o exorcista pergunta ao demônio “de onde

225
PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.l 160.
226 ROPS, Henri Daniel. A Vida Diária nos Tempos de Jesus. [Tradução de
Neyd Siqueira], São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991,
p.201.
227
Ricardo Mariano, descrevendo um ritual exorcístico da Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD), comenta algo que nos faz lembrar este antigo
relato de exorcismo pagão: “[...] uma mulher [...] fica possessa [...]. Logo o
demônio é amarrado e a possessa é levada ao púlpito. O pastor pergunta,
gritando, qual é o nome do demônio que a está possuindo. Vencida a
resistência inicial, recebe a resposta, com a voz cavernosa de sempre: ‘Exu
Capa-Preta’. Insolente, o Exu diz odiá-lo. O pastor, então, escarnece dele,
dizendo estar tremendo de medo. Todos riem. O pastor indaga o que o Exu
está fazendo na vida da possessa. Estou matando-a aos pouquinhos, responde
ele. Segurando-a pelos cabelos, o pastor pergunta com qual doença ele a
infligiu. Descobre que são várias as doenças que a acometem. [...] Do alto de
sua experiência com o fenômeno, o pastor diagnostica que o problema é de
natureza espiritual. [...] Após a expulsão do Exu Capa-Preta, o pastor diz que
ela está curada em nome de Jesus [...]”. (Cf. MARIANO, Ricardo.
Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo,
Edições Loyola, 2005, p.132).
138
SA + ANÁS, DÊfflÔNieS E LEGIé

ele vem e como é que ele entrou naquele corpo”,


somos informados de que “o doente não diz uma
palavra”, pois “é o diabo quem responde”.
Encontramos escrito, de forma análoga, em Mc 5.9:
“E perguntava a ele: Qual é o teu nome? E ele
responde: Legião é o meu nome, porque somos
muitos”.228

9) Esta narrativa pagã que descreve um exorcismo diz


ainda que o diabo responde às perguntas feitas pelo
exorcista “em grego ou em alguma língua bárbara”.
O interessante desse trecho é o fato de o diabo ser
identificado como aquele que fala a língua grega ou
então alguma língua bárbara. Dito de outra forma, o
demônio exorcizado pelo “sírio da Palestina” não fala
o idioma sírio, mas se comunica por meio de idiomas
alheios (pagãos). Talvez, a explicação para isso possa
ser encontrada no fato de que o “nós” sempre se
encontrará ao lado do bem, enquanto que o “eles”

Para Johnson e Dewelt, Jesus fez esta pergunta ao homem


endemoninhado, mas foi o demônio quem a respondeu: “Qual è o teu nome?
O Senhor fez esta pergunta ao homem aflito. Por qual motivo? Não há nada
tão conveniente como uma calma e simples questão para trazer um louco a si.
Não há forma mais natural de despertar em um homem que está fora de si a
consciência de sua própria personalidade do que fazê-lo dizer seu próprio
nome. O nome do homem torna-se a expressão de seu caráter e um resumo da
história de sua vida. A primeira condição de alguma cura deste homem aflito
era um retomo ao distinto sentimento de sua própria personalidade. E ele
respondeu. O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu,
demonstrando seu total domínio sobre ele”. (Cf. JOHNSON, B.W. &
DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST]. Missouri, College Press, 1965,
p. 144). Konya observa corretamente que “o exemplo da conversação de Jesus
com um demônio no episódio do endemoninhado geraseno (...) não pode ser
usado como uma justificativa para se travar diálogo com demônios”. (Cf.
KONYA, Alex. Demônios, uma perspectiva baseada na Bíblia. [Tradução de
Daniel Faliosa]. São Paulo, Editora Batista Regular, 2002, p.76).
139
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

estará sempre em situação diametralmente oposta,


isto é, ao lado do mal. Como disse Ivo Pedro Oro:
“Os outros, que não estão no caminho da salvação e
não aderem à verdade, são o inimigo”.229 E Elaine
Pageis ainda complementa esse pensamento quando
fala sobre “certas linhas de falha na tradição cristã
que permitiram o endemoninhamento dos ‘outros’
durante toda a história cristã”.230

10) Esse relato de exorcismo pagão diz ainda que o


exorcista sírio da Palestina, às vezes, via os seus
esforços exorcísticos frustrados, pois ele expulsava o
demônio “à força de esconjuros”. Todavia, o texto
prossegue dizendo que “quando isso já não adianta”,
então o exorcista expulsa o demônio “à força de
ameaças”. Talvez, tais ameaças possam encontrar
também o seu paralelo, por exemplo, em Mc 3.11,12,
quando os espíritos malignos se dirigem a Jesus
identificando-o como “o Filho de Deus” e Jesus os
ameaça para que não divulguem tal informação.
Contudo, a diferença entre os exorcismos do sírio da
Palestina e os exorcismos de Jesus reside no fato de
que Jesus nunca se valeu da “força” para expelir os
demônios. Ele sempre os expulsou com base na sua
própria autoridade.

11) Finalmente, devemos dizer algo sobre as palavras de


íon, quando declara ter visto “um desses diabos, que
era todo preto e como que defumado”. Esta menção à
cor de um desses diabos não deve ser entendida como

ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: uma análise sociológica do


fundamentalismo. São Paulo, Paulus, 1996, p. 127.
230
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que
as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p. 18.
140
SA+ANÁS, DEmèNies E LEGIé

uma declaração racista. Antes, devemos ver nela uma


declaração simbólica, a qual associa o mal a esta cor
que, por sua vez, faz referência às trevas. Já a alusão
feita à “defumação” pode ser entendida como sendo
uma referência feita à queima de algum tipo de
substância (uma raiz?), a qual produzia um efeito
exorcístico, tal como o faziam as raízes receitadas
por Salomão, (cf. ainda: Tb 8.1-3).

1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos231

Os Papiros Mágicos Gregos (a partir daqui PMG)


ganharam este nome dos estudiosos, os quais o empregaram
para se referir ao conjunto de papiros do Egito greco-romano
que contêm em seu corpo uma variedade de encantos e fórmulas
mágicas, hinos e rituais. Os textos sobreviventes vão
principalmente do século II a.C. até o V século d.C.
Os PMG são importantíssimos para o nosso estudo de
Mc 5.1-20, merecendo um tópico à parte em nosso trabalho, pois
eles nos permitem conhecer como funcionavam, sobretudo, as
práticas religiosas do antigo mundo mediterrâneo helenístico. E,
dentre elas, interessa-nos em particular as referências às
fórmulas ou encantamentos utilizados com o fim de repelir
demônios. Notemos alguns textos selecionados dos PMG que
tratam destes assuntos, os quais transcrevemos abaixo:

Baseio-me aqui principalmente em: BETZ, Hans Dieter, (ed.). The Greek
Magical Papyri in Translation, including the demotic spells. Vol. One: Texts.
Chicago & London, The University of Chicago Press, 1992. Para obter mais
informações sobre os Papiros Mágicos Gregos, veja: CHEVITARESE,
André Leonardo & CORNELL1, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo e
Helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo.
São Paulo, Annablume / Fapesp, 2007, pp.81-101. Esta obra reflete, de forma
parcial, as dissertações de mestrado em Ciências da Religião defendidas por
estes autores entre 1998 e 1999.
141
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

a) PMG IV. 86-87232233


7-20

Filactério contra os demônios: “HOMENOS OHK


KO URIEL IAPHEL, liberta” (adicionar ao usual),
“EHENPEROOU BARBARCHAOUCHE”.

b) PMG IV. 1227-64234235

Excelente ritual para lançar fora os demônios: Fórmula


a scr pronunciada sobre sua cabeça: Colocar ramos de
azeitona diante dele, / e ficar cm pé atrás dele e dizer: “Salve,
Deus de Abraão; Salve, Deus de Isaque; Salve, Deus de Jacó;
Jesus Crestos, “ o Espírito Santo, o Filho do Pai, que está no
Sétimo céu, / quem está junto ao Sétimo. Venha lao Sabaoth;
que o seu poder lance para fora dele, NN, até que você lance
para longe este demônio impuro, Satã, que está nele. Eu
conjuro236 você, demônio, / quem quer que você seja, por este
deus, SABARBARBATHIOTH SABARBARBATHIOUTH
SABARBARBA-THIONETH SABARBARBAPHAI. Saia,
demônio, quem quer que você seja, e fique longe dele, NN, /
agora, agora; imediatamente, imediatamente. Saia, demônio,
porque eu amarro você com cadeias inquebráveis c
inflexíveis, c cu entrego você para o caos escuro na perdição”.

232
BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38.
233
Ou “Para aqueles que estão possuídos por demônios”, 0 que parece ser a
melhor leitura do papiro. O manuscrito traz Ttpòç 8ai|iovtaÇopévo(u)ç. (Cf.
BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38, nota 26).
234
J BETZ, Bans Dieter, (ed.). GMPT, p.62.
235
Morton Smith traz aqui “Jesus Cristo”. (Cf. SMITB, Morton. Jesus the
Magician, p.63).
236 L. Michael White comenta que a expressão “eu te ordeno / conjuro” que
aparece ao longo dos PMG constitui-se tradução do vocábulo grego eksorkizo
(ou simplesmente orkizo), do qual procede 0 termo moderno “exorcismo”.
(Cf. WHITE, L. Michael. De Jesús al Cristianismo: el nuevo testamento y la
fe cristiana: un proceso de cuatro generaciones. [Traducción de José Pérez
Escobar], Navarra, Editorial Verbo Divino, 2004, pp.77,78).
142
SA+ANÁS, DEfflffiNIffiS Ê LfGl©

Preparação: tome 7 ramos de azeitonas; para seis delas /


amarre junto as duas últimas de cada um, mas para as
restantes use-as como um chicote quando você pronunciar a
conjuração. Após ter lançado para fora o demônio, pendure ao
redor dele, NN, um fílactério, o que foi colocado sobre o
paciente após a expulsão do demônio - um fílactério com
estas coisas [escritas] sobre / uma folha de uma lata de metal:
“BOR PHOR PHORBA PHOR PHORBA BES CHARIN
BAUBO TE PHOR BORPHORBA PHORBARBOR
BAPHORBA PHABRAIE PHORBA PHARBA PHORPHOR
PHORBA / BOPHOR PHORBA PHORPHOR PHORBA
BOBORBORBA PAMPHORBA PHORPHOR PHORBA,
proteja-o, [contra] NN”.

c) PMG IV. 3007-86237

Um amuleto testado por Pibechis (um mágico lendário


do Egito) para aqueles que estão possuídos por demônios:
Tome óleo de oliva verde com a erva mastigia e a polpa da
fruta de uma lótus, e cozinhe-as com coloridas manjeronas /
enquanto você diz, “IOEL OS SARTHIOMI EMORI
THEOCHIPSOITH SITHEMEOCH SOTHE IOE
M1M1PSOTHIOOPH PHERSOTHI AEEIOYO IOE EO
CHARI PHTHA, sai de NN”. O fílactério: Sobre uma lata
escreva / “IAEO ABRAOTH IOCH PHTHA MESENPSIN
IAO PHEOCH IAEO CHARSOK”, c pcndurc-a no paciente.
Ela é apavorante para todos os demônios, algo que eles
temem. Após colocar [o paciente] diante [de você], faça o
conjuro. Esta é a conjuração: “Eu conjuro você pelo deus dos
Hebreus, / Jesus, IABA IAE ABRAOTH AIA THOTH ELE
ELO AEO EOY IIIBAECH ABARMAS IABARAOU
ABELBEL LONA ABRA MAR01A BRAKION, quem
aparece no fogo, quem está no meio da terra, [na] neve, e [no]
fogo, TANNETIS; deixe seu / anjo, o implacável, descer e

37 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, pp.96,97.


143
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

deixe-o designar o demônio que voa por aí nesta forma, com a


qual deus formou em seu santo paraíso, porque eu suplico ao
santo deus, [chamando] sobre AMMON IPSENTANCHO
(fórmula). Eu conjuro você, LABRIA IAKOUTH /
ABLANATHANALBA AKRAMM (fórmula) AOTH
IATHABATHRA CHACHTHABRATHA CHAMYN CHEL
ABROOTH OUABRASILOTH HALLELOU IELOSAI
IAEL. Eu conjuro você por aquele que apareceu a Osrael
(forma variante de Israel) em uma coluna de fogo e em uma
nuvem de dia (LXX, Ex 13.21,22), que salvou seu povo de
Faraó e trouxe sobre Faraó as dez pragas por causa de sua
desobediência (LXX, Ex 7.8-11.10). Eu conjuro você, todo
espírito demoníaco, a falar, qualquer que seja a sua espécie,
porque eu conjuro você pelo selo / que Salomão colocou na
língua de Jeremias, e ele falou. Você também diz qualquer que
seja a sua espécie, celestial ou aérea, quer seja terrestre ou
subterrânea, ou mundana inferior ou Ebousaeus ou Cherseus
ou Pharisaeus, diga / qualquer que seja a sua espécie, porque
eu conjuro você por deus, portador de luz, invencível, que
conhece o que está no coração de todo ser vivente, o que
formou do pó a raça humana (LXX, Gn 2.7), o que, após
trazê-los para fora da obscuridade, enche junto com as nuvens,
rega a terra com chuva / c abençoa seus frutos, [aquele] a
quem todos os poderes celestiais dos anjos c arcanjos louvam.
Eu conjuro você pelo grande deus SABAOTH, através de
quem o rio Jordão voltou para trás (LXX, Js 3.13,14; SI 113.3)
c o Mar Vermelho, / que Israel atravessou, tomou-sc
intransponível (LXX, Ex 14.27), porque eu conjuro você por
aquele que introduziu cento e quarenta línguas e as

Segundo Betz, Deissmann deriva estes nomes de demônios da LXX (Gn


15.20,21; Ex 3.8,17 etc). Os Xettociol se tomaram Xspcraioç (“demônio da
terra”), os 0epeÇáioi se tornaram «Eaptoaioç (que, portanto, têm sido
confundidos com os fariseus), e os lepovoaiot se tornaram ’ Epowdioç.
(BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 395, p.96).
239
Muitas fontes judaicas falam de setenta nações e setenta idiomas no
mundo. Mas há autoridades que marcam cento e quarenta idiomas. (Cf.
BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 400, p.97).
144
SA + ANÁS, DEmêNies E LEGIé

distribuiu pelo seu próprio comando. Eu conjuro você por


aquele que queimou com fogo aos obstinados gigantes com
um raio (Gn 6.4; 19.24-29), o qual o céu dos céus louva, quem
as asas do querubim louvam. Eu conjuro você por aquele que
colocou as montanhas ao redor do mar [ou] um muro de areia
e ordenou ao mar que não transbordasse (LXX, Jó 38.10,11; Jr
5.22). O abismo obedeceu (LXX, Pr 8.26-29; Jó 38. 30,34); e
você obedece, / todo espírito demoníaco, porque eu conjuro
você por aquele que faz os quatro ventos se moverem (LXX,
SI 134.7; também Gn 8.1; Nm 11.31; Jó 28.25 etc) junto dos
santos aions, [os] tal como o céu, como o mar, como as
nuvens, portador de luz, [o] invencível. Eu conjuro [você] por
aquele na santa Jerusalém, diante de quem o / fogo
inextinguível queima por todo tempo, com seu santo nome,
IAEOBAPHRENEMOUN (fórmula), aquele diante dc quem a
ardente Geena treme, chamas envolvem, irrompendo numa
explosão distante e todas as montanhas ficam amedrontadas
desde a sua fundação. / Eu conjuro você, todo espírito
demoníaco, por aquele que supervisiona a terra e faz sua
fundação tremer (LXX, SI 103.32), aquele que torna todas as
coisas que não são naquelas que são.240 E eu adjuro você,
àquele que recebe esta adjuração, / a não comer carne de
porco, c todo espírito e demônio, quem quer que seja, estará
sujeito a você. E enquanto estou conjurando, amaldiçoo uma
vez, amaldiçoando o ar desde as extremidades dos pés até a
face, c estará determinado. Mantenha-se puro, para este feitiço
/ é hebraico e está conservado no meio dos homens puros.241

d) PMGCXIV. 1-14242

240 Trata-se de uma referência à creatio ex nihilo.


241 '
E muito curiosa a ligação que este PMG faz entre se abster de comer
carne de porco (uma prática que indica pureza) e o conseqüente poder sobre
os demônios. Tal como acontece em Mc 5.1-20, esse PMG também insere as
figuras dos demônios, porcos, exorcismo e impureza num mesmo contexto.
242 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.313.
145
CARL®S AUGUS+® VAILA + +I

[Proteja] - lhe, NN, ó Senhor, [de todas] as más obras [c


de toda] visitação demoníaca [c] ... de Hécate e de .../ ataque e
[de toda investida?] no sono ... [de] demônios mudos [e de
toda] forma cpilctica [e de toda] epilepsia / c ... e ....

Todos esses textos encontrados nos PMG são


importantes, pois nos mostram muitas práticas e crenças
referentes aos exorcismos, as quais envolvem, até mesmo, o
próprio Jesus, como pôde ser visto no PMG IV, linha 3020, que
diz: “Eu conjuro você pelo deus dos Hebreus, / Jesus [...]”.243

Em suma, podemos chegar às seguintes conclusões a


respeito destes textos dos PMG que acabamos de citar:
Primeira, os amuletos, talismãs, benzeduras e demais
práticas apotropaicas eram utilizadas em larga escala nos PMG
com o intuito de repelir os demônios que afligiam as pessoas.
Segunda, o sincretismo e as práticas rituais supersticiosas
encontradas nos PMG transformaram tais textos numa espécie
de receituário ou manual exorcístico, os quais contêm ritos que
lembram muito, inclusive, algumas práticas do nosso contexto
neopentecostal brasileiro atual.
E a terceira e, talvez, mais importante conclusão, pelo
fato de lançar luz sobre o nosso tema, é que estas práticas
exorcísticas relatadas nos PMG descrevem como as
comunidades do antigo mundo mediterrâneo helenístico lidavam
com a questão demonológica.
Embora haja, sem dúvida alguma, diferenças entre os
exorcismos encontrados nos Evangelhos e os mencionados nos
PMG, contudo, existem também algumas semelhanças entre
ambos, como, por exemplo:

Para outros textos dos PMG nos quais o nome de Jesus aparece envolvido
em rituais de exorcismo, consulte: SMITH, Morton. Jesus the Magician,
p.63.
146
SA+ANÁS, DEfTlffiNIffiS E LEGIé

1) A ordem de comando para que o demônio saia (PMG


IV. 1240-45; cf. Mc 1.26,27);
2) A “amarração” do demônio por parte do exorcista
(PMG IV. 1245; cf. Mc 3.27);
3) O uso do nome de Jesus para expulsar o demônio
(PMG IV. 3020; cf. Lc 9.49; At 19.13);
4) A alusão às Escrituras no combate contra o mal (PMG
IV. 3030-75; cf. Mt 4. Iss; Lc 4. Iss).

1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor

Depois de termos falado sobre inúmeros exorcistas, tanto


no contexto judaico, como também no contexto pagão, devemos
agora nos dirigir àquele que, a meu ver, constitui-se no
paradigma da prática exorcística, o “exorcista-mor”, Jesus.244

a) Jesus e o Ambiente em que Viveu

Para falarmos sobre a figura aretológica de Jesus,


sobretudo em seu papel de exorcista, temos que retroagir até o I
século d.C. a fim de que o situemos dentro do Sitz im Leben do

Os dizeres de Charlesworth referentes a Jesus: “[ele] praticou curas


(provavelmente também exorcismos)” demonstram claramente o ceticismo
que esse autor tem quanto ao papel de Jesus como exorcista. (Cf.
CHARLESWORTH, James H. Jesus Dentro do Judaísmo: novas revelações
a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. [Tradução de Henrique
de Araujo Mesquita], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1992, p. 182). Já D.
Scardelai, segundo penso, declarou acertadamente que “de todas as
expressões populares que conhecemos, Jesus estava mais próximo da
corrente de líderes conhecida como carismático-hassídico que aflorava na
Galiléia no século I. O tipo do profeta hassídico (piedoso) que atuava na
Galiléia era dotado, segundo a concepção camponesa, de habilidade para
praticar milagres, curas, cujos poderes tocavam o sagrado de modo peculiar”.
(Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus:
Jesus e outros messias. São Paulo, Paulus, 1998, p.315).
147
CAR.L©S AUGUS+® VAILA + + I

qual ele fez parte. Nesse aspecto, creio que Juan Arias possa nos
fornecer um bom resumo sobre o período histórico que
antecedeu a época neotestamentária, o qual, sem dúvida alguma,
contribuiu para que fosse delineado o cenário no qual Jesus
viveu e exerceu o seu ministério itinerante. Eis as palavras de
Arias:

(...) a Palestina esteve muito tempo sob influências


estrangeiras, principalmente fenícias e egípcias. A persa,
sobretudo, foi importante tanto para o desenvolvimento do
monoteísmo como da demonologia. Também eram conhecidas
na Palestina as práticas mágicas gregas. Nos trezentos anos que
separam a conquista de Alexandre da aparição de Jesus, a
Galilcia fora governada por gregos e romanos. Todas essas
culturas aceitavam que o universo é povoado de criaturas
sobrenaturais, como anjos, demônios, espíritos do além-túmulo
etc.245

ARIAS, Juan. Jesus, Esse Grande Desconhecido. [Tradução de Rubia


Prates Goldoni], Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, pp. 175,176. De acordo com
Bultmann: “(...) a concepção do reino de Deus é mitológica (...), como o são
assim mesmo as pressuposições em que se embasa a expectação do reino de
Deus, a saber, a teoria de que o mundo, ainda que criado por Deus, é regido
pelo diabo. Satanás e seu exército, os demônios, são a causa do mal, pecado e
enfermidade. Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de
Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por
exemplo, (...) a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção
de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens
podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus
espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica (...)”. (Cf.
BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e Mitologia. [Tradução de Daniel Costa].
São Paulo, Novo Século, 2000, pp. 13,14). Paliares, ao fazer uma crítica a
esse tipo de racionalismo bultmanniano, declara: “Nós nos recusamos a ver
em Jesus um milagreiro; ao ‘encantamento’ celeste preferimos a seriedade e
autenticidade do drama humano. Facilmente racionalizamos as narrações
sobre os milagres de Jesus, com medo de perder a seriedade do evangelho,
mas também com medo de ficar mal aos olhos dos que manipulam as idéias,
e o que é pior, com medo de ser confundidos com os pobretões ignorantes”.
148
SA+ANÁS, DEm©N!©S Ê LEGIé

Em outras palavras, Arias está dizendo que Jesus


“herdou” esse tipo de cultura que valorizava em extremo o
elemento sobrenatural. Todavia, não é somente esse autor que
pensa assim. John A. Sanford, além de relacionar o ministério de
cura de Jesus ao seu papel de exorcista,*246 também entende que
a crença demonológica de Jesus não era nada mais, nada menos,
do que o reflexo da fé popular de sua época. Em suas palavras:

Jesus freqüentemente encontrava Satã ou seu bando de


demônios, principalmente no seu trabalho de cura, e
evidentemente concordava com a idéia popular de que muitas,
senão todas, das doenças do corpo e do espírito eram aflições
do poder do mal.247

(Cf. PALLARES, José Cárdenas. Um Pobre Chamado Jesus: releitura do


evangelho de Marcos. São Paulo, Paulinas, 1988, p.38).
246 Segundo M. Forward, “está claro que Jesus de Nazaré foi lembrado como
agente de cura e exorcista. Na verdade, seu nome hebraico, Yehoshua,
significa ‘Deus é a salvação’ ou mesmo ‘Deus é a cura’”. (Cf. FORWARD,
Martin. Jesus: uma pequena biografia. [Tradução de Merle Scoss]. São
Paulo, Editora Cultrix, 1998, p.97).
247 SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de
Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, p.51.
Gustaf Aulén comenta que “Ele (Jesus) rejeitou a visão popular animista dos
demônios, e os considerou todos como sujeitos a Satã, de modo que cada
exorcismo era um julgamento de poder contra o próprio Satã”. (Cf. AULÉN,
Gustaf. Christus Victor: an historical study of the three main types of the
atonement. [Translated by A. G. Hebert]. New York, Macmillan Publishing
Co., Inc., 1969, p.76). Segundo Stewart: “Nos dias de Jesus as doenças eram
normalmente atribuídas à agência demoníaca, não somente os casos de
‘possessão’ (...), mas todos os tipos de enfermidades. Quanto ao mundo dos
espíritos, [o povo] estava seguro de estar cheio dessas malignas influências,
emissárias do mal. Portanto, sempre que uma cura era realizada, ela
significava que um desses espíritos tinha sido expulso”. (Cf. STEWART,
James S. The Life and Teaching of Jesus Christ. Nashville, Abingdon Press,
1979, p.93).
149
CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + + I

Já Freyne, de forma perspicaz, situa a prática exorcística


de Jesus dentro de um contexto de crítica às normas vigentes
estabelecidas, sobretudo, contra o governo romano:

Os exorcismos de Jesus não eram (...) simples histórias


de cura, ainda que cm muitos casos também fossem vistos dessa
maneira, já que no mundo antigo a enfermidade ou as
anormalidades físicas se atribuíam à presença invasora de
espíritos malignos. Ao livrar do demônio aos afetados, Jesus os
rcincorporava de novo ao mundo social do qual haviam sido
excluídos, c ao fazê-lo colocava em discussão de juízo as
normas pelas quais foram primeiro considerados desviados.
Dito brevemente, os exorcismos de Jesus constituíam uma seria
ameaça para as normas c valores preponderantes relacionados
com o poder c o controle na Galiléia herodiana, e também para
os chefes supremos romanos que apoiavam essas normas. 248

Ora, naqueles tempos antigos, época em que as pessoas


não tinham acesso a um sistema de saúde pública eficaz, a
religiosidade popular depositava toda a sua expectativa de cura,
por exemplo, nos acontecimentos milagrosos. Aliás, tal
esperança alicerçada no elemento miraculoso acabou se
estendendo até o período da Idade Média, época esta dentro da
qual Richard Gordon confere aos exorcismos um papel de
destaque:

Na Antioquia, em 1098, o tifo e a disenteria dizimaram


os cruzados, homens e cavalos. O medo generalizado da
infecção fez maravilhas para o índice de conversão ao
cristianismo, espccialmcnte porque o único recurso da saúde
publica era o exorcismo.

248
FREYNE, Sean. Jesús, un Galileo Judio: unalectura nueva dela historia
de Jesús. [Traducción de José Pedro Tosaus], Estella, Editorial Verbo Divino,
2007, pp. 199,200.
249
GORDON, Richard. A Assustadora História da Medicina. [Tradução de
Aulyde Soares Rodrigues], Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p.34. Para uma
150
SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé

Ora, se em meados da Idade Média o exorcismo ainda


era visto como o único recurso terapêutico disponível às
pessoas, qual não deveria ser, então, a sua importância no
cenário do I século A.D.? Aliás, deve-se dizer que os homens
que detinham o conhecimento das fórmulas exorcísticas
obtinham reputação e prestígio naquela antiga sociedade.
Sabemos que Asclépio, o deus grego da cura, por
exemplo, era invocado por aqueles que precisavam de ajuda, os
quais também o adoravam. Asclépio possuía um santuário sede
em Epidauro (uma cidade da Grécia Antiga), o qual fora erigido
no IV século a.C., sendo que próximo ao templo havia muitos
dormitórios onde os doentes ficavam hospedados, a fim de
descansarem e receberem a cura durante o seu sono. As pessoas
que eram agraciadas com a cura, como forma de gratidão,
doavam ao santuário moldes de ouro ou de prata, os quais
representavam as partes de seus corpos que haviam sido
curadas.*251 Ou então, demonstravam-se gratos através das
ofertas trazidas ao templo. Asclépio era adorado como deus da
arte, da cura e como salvador, o qual prestava auxílio aos
homens.252

abordagem que analisa em conjunto a demonologia e a medicina, consulte:


RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciência. [Traducción de Samuel Ramos],
México, Fondo de Cultura Econômica, 2006, pp.59-76.
GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de Jesus.
[Tradução de Vicente Clavel]. México, Unión Tipográfica Editorial Hispano-
Americana, 1959, p.99.
251
Essa prática de reproduzir órgãos/partes do corpo humano (em gesso) que
foram curados, como forma de demonstrar gratidão, também é encontrada em
larga escala em nossa religiosidade brasileira. Ela pode ser vista durante a
festa do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, em homenagem a Nossa
Senhora de Nazaré e em várias regiões do Nordeste em homenagem ao Padre
Cícero e também em homenagem à Nossa Senhora Aparecida. Percebe-se,
então, que tais práticas atuais refletem crenças populares muito antigas.
252
LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento. [Tradução
de Hans Jõrg Witter]. São Paulo, Edições Paulinas, 2000, p.216. Para saber
151
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

Saindo do mundo grego e indo para o contexto romano,


vemos, por exemplo, que até mesmo ao imperador romano
Vespasiano (69-79 d.C.) são atribuídas curas miraculosas. Os
historiadores romanos Tácito (c. 55-120 d.C.) e Suetônio (c. 75-
150 d.C.) narram dois milagres ocorridos em Alexandria, os
quais foram realizados por Vespasiano. Segundo eles,
Vespasiano curou um homem de sua cegueira e outro de sua
paralisia.253 Embora tais relatos sejam fantasiosos e tenham
surgido certamente com o propósito de fazer o marketing
pessoal do imperador, contudo, eles são importantes
testemunhos da miséria em que viviam os povos antigos e, além
disso, estas narrativas lendárias também explicam por que o
povo nutria grande simpatia por aqueles que faziam milagres.
Eles eram praticamente sua única esperança.
No mundo judaico, de forma semelhante, os taumaturgos
também eram bem quistos, uma vez que eram vistos como
pessoas dotadas de poderes especiais que poderíam ajudar o
povo diante de seu estado de extrema penúria. Os já citados,
Eleazar e Hanina Ben Dosa, são bons exemplos disso.
Assim, é dentro desse contexto pré-científico misticizado
que devemos situar Jesus e os seus milagres, com atenção
especial aos seus exorcismos. Aliás, como afirmou John P.
Meier, “os evangelhos sinóticos apresentam sete episódios
distintos de Jesus realizando um exorcismo. O fato de haver sete
‘amostras’ individuais de um tipo específico de milagre, ou seja,
o exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui
maioria no ministério de Jesus”.254 Desta forma, os exorcismos
são enquadrados na categoria de milagres, assumindo papel de
destaque no ministério taumatúrgico de Jesus.

mais sobre Asclépio e as curas atribuídas a ele, consulte: WEISER, Afons. O


Que é Milagre na Bíblia, pp.39-43.
253
WEISER, Afons. Op.Cíí., pp.53-56.
254
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky]. Rio de Janeiro, Imago,
1998, p.170.
152
SA + ANÁS, DE1T1®NI®S Ê LEGIé

b) A Reputação de Jesus Como Taumaturgo-


Exorcista

Várias fontes da antiguidade judaica e greco-romana


mencionam que Jesus e seus discípulos eram conhecidos como
magos-exorcistas.255
Do ponto de vista de uma abordagem negativa sobre a
pessoa e obras de Jesus, algumas tradições judaicas antigas, por
exemplo, afirmavam que “Jesus de Nazaré [...] praticava magia,
seduzia e desviava o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a. compare
com 107b).256 Em outro momento, somos informados por meio
do T. Hullin 2.20-23 e do B. Abodah Zarah 27b, que o Rabi
Ismael se regozija de que seu sobrinho tenha morrido antes de
poder aceitar ser curado em nome de Jesus por um certo Yaacov
ish Kefar Sekhanya.257 Tais concepções judaicas negativas
acerca de Jesus parecem refletir o antagonismo sofrido por ele
pela elite religiosa dos tempos neotestamentários, composta,
sobretudo, por saduceus e fariseus.

AUNE, David. “Demonology”, ISB, 1:923. EVANS, Craig. “Jesus in


Non-Christian Sources”, DJG, pp.364-68. Apud: OROPEZA, B. J. 99
Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual, p.53.
256 Segundo Adin Steinsaltz, o Talmude sofreu diversas perseguições e
censuras por parte da igreja católica ao longo da Idade Média e, até mesmo
após este período, a tal ponto que “onde o Talmud faz referências críticas a
Jesus ou ao cristianismo em geral, o comentário era completamente
suprimido, e o nome de Cristo era sistematicamente retirado, ainda quando a
referência não fosse negativa”. (Cf. STEINSALTZ, Adin. O Talmude
Essencial. [Tradução de Elias Davidovich], Rio de Janeiro, A. Koogan
Editor, 1989, p. 116). Para obter um bom resumo do conteúdo do Talmude
Babilônico, veja, por exemplo: AUERBACH, Leo. (ed.). The Babylonian
Talmud in Selection. New York, Philosophical Library, Inc.,1944; VIDAL,
César. El Talmud. Madrid, Alianza Editorial S.A., 2003.
257 FONROBERT, Charlotte Elisheva & JAFFEE, Martin S. (eds.). The
Cambridge Companion to Talmud and Rabbinic Literature. Cambridge,
Cambridge University Press, 2007, nota 46, p.267.
153
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

Contudo, saindo dessa perspectiva extremamente


negativa da pessoa e obras de Jesus e focalizando-o de um
ângulo positivo, encontramos um testemunho muito interessante
e, ao mesmo tempo, controverso, a respeito de Jesus em Flávio
Josefo (c.37-100 d.C.) no chamado testimonium Flaviamim
(testemunho de Flávio), o qual nós transcrevemos abaixo:

Foi nessa época que surgiu Jesus, homem sábio, se é que


se deve chamá-lo de um homem. Pois era um fazedor de
milagres e mestre dos homens que recebem com alegria a
verdade. Atraiu para si muitos judeus e muitos gregos. Era
Cristo. E quando, sob a denúncia de nossos primeiros
cidadãos, Pilatos o condenou à crucificação, aqueles que
primeiro o tinham adorado não deixaram dc fazê-lo, pois ele
apareceu para eles três dias depois, ressuscitado. Como os
profetas divinos tinham anunciado junto a mil outras
maravilhas a seu respeito. E o grupo que recebeu o seu nome
- cristãos - ainda não desapareceu. (Antiguidades Judaicas,
XVIII, 63-64 - os itálicos são meus).258

Embora tais dizeres atribuídos à pena de Josefo sejam


extremamente importantes para se delinear a figura
taumatúrgico-exorcista de Jesus, uma vez que tais dizeres
descrevem Jesus como “um fazedor de milagres” e alguém de
quem se descreve “mil outras maravilhas a seu respeito”,
contudo, tal depoimento Flaviano está cercado de polêmicas e
controvérsias. A opinião prevalecente hoje é a de que o
testimonium Flaviamim tenha sofrido algumas interpelações,
isto é, algumas observações escritas na margem de um
manuscrito por algum leitor cristão piedoso do início do século

LEBEL, Mireille Hadas. Flávio Josefo: o judeu de Roma. [Tradução de


Paula Rosas]. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.258. Para outra tradução do
testimonium Flavianum, consulte: JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus.
Vol. 2. [Tradução de Vicente Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 156.
154
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

IV, as quais foram posteriormente incorporadas ao texto. 259 Ora,


embora tal relato esteja cercado de objeções, todavia, é
importante mencioná-lo em nosso trabalho.
Além das tradições judaicas e de Flávio Josefo, Orígenes
(c. 185-254 d.C.), um dos principais teólogos da igreja grega, em
sua conhecida obra, Contra Celso, também faz alguns
comentários interessantes sobre a prática exorcística de Jesus e
dos cristãos:

Celso declara [...]: os cristãos parecem exercer um poder


pelas invocações dos nomes de certos demônios, aludindo,
penso eu, aos exorcistas que expulsam demônios. [Orígenes:]
Mas parece caluniar evidentemente o Evangelho. Não é por
meio de invocações que eles parecem exercer um poder, mas
pelo nome de Jesus associado à leitura pública das histórias de
sua vida. Esta leitura realmente consegue muitas vezes
expulsar os demônios dos homens, sobretudo quando os
leitores lêem com uma disposição sadia de verdadeira fé. Mas
o poder de Jesus é tão grande contra os demônios que às
vezes, ainda que pronunciado por pessoas más, produz seu
efeito. [...] Em seguida [Celso], acusa o próprio Salvador: Foi
por magia que ele pôde operar os milagres que pareceu
realizar [...]. [Orígenes continua:] c claro que os cristãos não
utilizam nenhuma prática de encantamento, mas invocam o
nome de Jesus juntamente com outras palavras nas quais eles
têm fé, conforme a divina Escritura. (Contra Celso I, 6 - os
itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus).*260

Nesse relato de Orígenes, Celso declara que “foi por


magia que ele [Jesus] pôde operar os milagres que pareceu

LEBEL, Mireille Hadas. Op.Cit., p.259. Para uma discussão mais


detalhada sobre a polêmica em tomo do testimonium Flavianum, consulte a
mesma autora, in: Op.Cit., pp. 258-262.
260 ORÍGENES. Contra Celso. [Introdução e Notas de Roque Frangiotti;
Tradução de Orlando dos Reis], São Paulo, Paulus, 2004, pp.45,46.
155
CARLOSAUGUS+O VAILA++I

realizar”. Tal declaração se assemelha àquela já citada, segundo


a qual “Jesus de Nazaré [...] praticava magia, seduzia e desviava
o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a.).261
Além desse texto que demonstra claramente o poder de
Jesus sobre os demônios, devemos dizer que até mesmo os não-
cristãos reputavam Jesus como um poderoso exorcista, pois
usavam seu nome nas práticas exorcísticas (cf. Testamento de
Salomão 6.8; 22.20; Contra Celso II, 49; PMG IV, 1234;
compare com Lc 9.49; At 19.13).

Finalmente, os Evangelhos - principalmente os sinóticos


- relatam de forma acentuada o papel de exorcista
desempenhado por Jesus.262
Jesus expulsa um espírito imundo de um homem na
sinagoga de Cafarnaum (Mc 1.21-28; Lc 4.31-37); Ele efetua
muitas curas e exorcismos (Mc 1.32-34; Mt 4.23,24; Lc
4.40,41); Ele é acusado de expulsar os demônios por Belzebu
(Mc 3.22-30; Mt 12.22-32; Lc 11.14-23); Ele liberta o
endemoninhado geraseno da legião de demônios que o possuía
(Mc 5.1-20; Mt 8.28-34; Lc 8.26-39); Ele exorciza o demônio
que possuía a filha da mulher sirofenícia (Mc 7.24-30; Mt
15.21-28); Ele expulsa o demônio de um rapaz, o qual o possuía
desde a sua infancia, causando-lhe a mudez e a surdez (Mc 9.14-
29; Mt 17.14-21; Lc 9.37-43); Ele cura uma mulher de um

Deve-se lembrar aqui que, segundo o Didaqué V, 1 (o livro de instrução


religiosa dos primeiros cristãos, que data de fins do I século d.C.), o caminho
da morte envolvia as “práticas mágicas”. (Cf. STORNIOLO, Ivo &
BALANCIN, Euclides Martins. (Trads.). Didaqué. São Paulo, Paulus, 2007,
p. 17). Para um estudo detalhado sobre a magia do ponto de vista sócio-
antropológico, consulte: MAUSS, Marcei. Sociologia e Antropologia.
[Tradução de Paulo Neves]. São Paulo, Cosac Naify, 2003, pp.47-181.
262
De acordo com E. P. Sanders, “o exorcismo é (...) o tipo de cura mais
proeminente nos Evangelhos sinóticos”. (Cf. SANDERS, E.P. A Verdadeira
História de Jesus. [Tradução de Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy].
Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 2004, p. 193).
156
sa+ànás, DemêNies e legiã®

espírito de enfermidade num dia de sábado na sinagoga (Lc


13.10-17); Ele expulsa o demônio de um homem, o qual lhe
causava a mudez (Mt 9.32-34); E, por fim, Jesus expulsa sete
demônios de Maria Madalena (Mc 16.9). 263
Assim, concluímos nossa resumida abordagem sobre
Jesus, o exorcista-mor. Tal abordagem nos mostra de forma
inequívoca que a prática exorcística de Jesus foi um aspecto
central em seu ministério público.

1.4. Conclusão

Tendo em vista tudo o que foi dito até aqui sobre


Satanás, demônios e exorcismos, podemos fazer os seguintes
apontamentos:

Primeiro, Satanás só adquire o status de personificação


do mal de maneira efetiva nas páginas do Novo Testamento,
uma vez que nas Escrituras veterotestamentárias tal contorno
ainda não está bem definido.
Segundo, os demônios praticamente não aparecem nas
páginas do AT hebraico, sendo que só começam a ser mais
notados por meio da LXX, a qual, como vimos, tratou de
demonizar os deuses e ídolos pagãos. Além disso, o vínculo
existente entre Satanás e os demônios, bem como, a relação
hierárquica entre ambos, somente passa a ser percebida a partir
do período intertestamentário, quando então uma espécie de
“configuração organizacional” entre Satanás e os demônios
começa a ser elaborada. Além do mais, a demonologia bíblica*

Embora o trecho de Mc 16.9-20 não faça parte do texto original de


Marcos, não estando nos melhores manuscritos, todavia, é importante
mencioná-lo aqui, uma vez que tal relato descreve sete demônios possuindo o
corpo de uma só pessoa, o que nos faz pensar na “mega-possessão” realizada
no geraseno pela legião demoníaca em Mc 5.1-20.
157
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I

encontra o ápice de seu desenvolvimento somente no I século


d.C., principalmente através das inúmeras menções
demonológicas encontradas nos escritos do NT.
Terceiro, os exorcismos, em conseqüência da escassez de
referências feitas aos demônios, também não são vistos nas
páginas do AT, com exceção do exorcismo feito por Davi em
relação a Saul, o qual, mesmo assim, está cercado de
controvérsias com relação ao seu real significado. Já nas
literaturas apócrifa e pseudepigráfica, bem como, na tradição
judaica e no contexto pagão, tais relatos exorcísticos encontram-
se em maior número, demonstrando claramente que a prática
exorcística passou por um processo evolutivo ao longo dos
tempos, até adquirir seu “formato final” como encontrado no
NT.
Quarto, Jesus surge no cenário do I século dentro de um
contexto no qual as enfermidades são atribuídas aos demônios,
os quais, por sua vez, também proliferam por toda parte no
mundo antigo. Tais fatores propiciam o ambiente adequado para
que Jesus atue como taumaturgo e, mais precisamente, como
exorcista.
E em quinto e último lugar, a prática exorcística de
Jesus, como relatada nos Evangelhos, encontra certos paralelos
em Eleazar e em Hanina ben Dosa (na tradição judaica) e em
Apolônio de Tiana (no contexto pagão). Porém, deve ser dito
aqui que as diferenças entre Jesus e tais exorcistas são maiores
do que as semelhanças entre ambos. Jesus, ao contrário destes,
nunca usa algum tipo de amuleto, encantamento, raiz, feitiço, ou
mágica para expulsar os demônios, antes, ele os expulsa com
base na sua própria autoridade como Filho de Deus e sem que
precise invocar o nome de qualquer outro “deus” ou
“personagem” em seus exorcismos. Dessa forma, Jesus é visto
como um exorcista sem paralelos na história.264 As suas práticas

264
A tese de PhD de Estevan Frederico Kirschner traz essa mesma conclusão
diante da insistência de eruditos britânicos e alemães de que os exorcismos de
158
sa+anás, DemêNies £ legiã©

exorcísticas possuem um caráter emblemático, pois ele é “o”


Exorcista-Mor.

Jesus e de outros personagens de seu tempo são, em última análise, a mesma


coisa. (Cf. KIRSCHNER, Estevan Frederico. The Place of the Exorcism
Motif Mark's Christology With Special Reference to Mark 3.22-30.
Dissertação de Doutorado, London, London School of Theology, 1988,
p.209).
159
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

160
CAPÍTUt© II
ANÁLISE EXEGÉTICA DE fflC 5.1-20
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

162
SA+ANÁS, DE1TI®NI®S E LEGIî

CAPÍTULO II - ANÁLISE EXEGÉTICA


DE MC 5.1-20

2.1. Análise Sincrônica

Nosso próximo passo será fazer a análise sincrônica (de


cróv, “com” + xpóvoç, “tempo”) de Mc 5.1-20. Essa abordagem
“analisa os textos da maneira como se apresentam para o
intérprete, independentemente do processo pelo qual a sua
tradição possa ter passado até alcançar o estágio de evolução
final”.265 Tal análise será composta pelas seguintes etapas:
Tradução, Segmentação e Estruturação do Texto e Análise
Lingüística, Lexicográfica, Morfológica e Estilística.266 Por fim,
trataremos da Análise de Conteúdo. A seguir, eis a minha
tradução de Mc 5.1-20.267

A. O Texto Original de Mc 5.1-20 e a Sua


Tradução

1. Kat r|A0ov eiç to trépav 1. E vieram para o outro lado


rfjç 0aÀáoor|ç elç xqv /wpctv do mar, para a região dos
tcòv TepaoriiAÔV'. Gerasenos.
2. Kal é^eÀOÓPTOç airroê èk 2. E saindo ele do barco, logo

265
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.337.
266
Sigo aqui (com exceção feita à análise sintática do texto) a ordem
encontrada em: SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese
Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 83-172.
267 O texto utilizado para a tradução é o de ALAND, Barbara, ALAND,
Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER,
Bruce M. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
2005.

163
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

toü TrÀoíot) eüGòç üirr|VTr|O6V encontrou-se com ele dos


aÓTW ck tgjv pvqpeíwv sepulcros um homem com
àvGpwiroç èv irveópaTL espírito imundo,
áKaôápTtp,
3. o qual tinha a morada nos
3. OÇ TT]V koítoÍkt]Glv fí/fv ev sepulcros, e nem com corrente
tolç pvripaoiv, Kai oüõè ninguém podia prendê-lo,
áÀóoei oükctl oòôeiç èôóvaTO
aÜTÒv ôíjoaL
4. por isso, ele tinha sido preso
4. ôià to aÜTÒv iroÀÀáKiç muitas vezes com algemas e
néõaLç Kai àÀóoeoLV Ô6Ôéo0aL correntes, e tinham sido
Kai ôieoKáoQai Útt’ aÒTOü ràç rompidas por ele as correntes,
áÀóocLç Kai tcíç iréôaç e as algemas tinham sido
ovvTfTpL(|)9ai, Kai oüôeiç esmagadas, e ninguém podia
LO/uev aÜTÒv ôap.áoai/ subjugá-lo;
5. Kai ôià iravTÒç vdktoç Kai 5. e continuamente, de noite e
qpx-paç èv tolç pvqpaoLV Kai de dia, estava nos sepulcros e
èv tolç õpeoiv r]V KpáCcov Kai nos montes gritando e cortando
KaTaKÓlTTQV éaOTÒV ÀÍ0OLÇ. a si mesmo com pedras.
6. Kai iõcòv tÒv ’Iqooüv àirò 6. E, vendo a Jesus de longe,
paKpóOev éõpapev Kai correu e prostrou-se perante
•frpoocKÚvqoev aÜTtô ele,
7. Kai Kpá^aç (jjGOvf) iicyáÀij 7. e gritando com forte voz,
Àéyei, Tí èpoi Kai ooí, Trpoü disse: “O que a mim e a ti,
UL6 TOÜ 06OÜ TOÜ ÒlJííOTOU; Jesus, filho do Deus
ÓpKÍCw 06 TÒV 06ÓV, gf| p.6 Altíssimo? Conjuro a ti por
Paoavíoflç. Deus, não me atormentes”.
8. eÀcycv yàp aÚTCÔ, ’T^eÀGe 8. Pois dizia a ele: “Sai,
to nveüpa tò 0Ka0apTOV 6K
espírito imundo, do homem”.
TOÜ áv0pcÓlTOO.
9. E perguntava a ele: “Qual é
9. Kai ÈTTTípcÓTa aÒTÓv, Tí o teu nome?” E respondeu-lhe:
óvopá oot; Kai Àeyei aÜTÓ,
“Legião é o meu nome, porque
Acyicòv òvopá poi, õtl itoààol
somos muitos”.
eopev.
164
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

10. E implorava-lhe muito para


10. Kal napeKaÀci auxòv que não os mandasse para fora
iroÀÀà iva |1T) aúxà àTrooxeÍÀr]
da região.
’éfr) Tf)ç xwpaç.
11. E estava ali, perto do
11. ’Hv ÔÈ CKfl Trpòç XCÔ Õp6L monte, uma grande manada de
áyéÀq xoípoúv peyáÀq
porcos pastando;
P00K0p.6VT|’
12. E suplicaram-lhe, dizendo:
12. Kai. irapeKaÀeoav auxòv
“Envia-nos para os porcos, a
Àéyovxcç, né|ii|íov fjpâç eiç
xouç x°Lpobç, 'iva flç aúxouç fim de que neles entremos”.
f ioéÀôojpev. 13. E permitiu-lhes. E tendo
saído, os espíritos imundos
13. Kal èiréxpei|í6V aúxoiç. Kal
entraram nos porcos, e
èÇcÀOóvxa xà irveúpaxa xà
precipitou-se a manada do
ÓKáôapxa ftoíjÀQov eiç xouç
Xoípouç, Kal coppipcv T] áyéÀri despenhadeiro para o mar,
Kaxà xou Kpripvoíj eiç xpv cerca de dois mil, e se
QáÀaoaav, wç ôloxÍàlol, Kal afogaram no mar.
èirvíyovxo c-v xrj ôaÀáoor]. 14. E os que tratavam deles
14. Kal oí póoKOVTGÇ aúxouç fugiram e anunciaram na
ecfibyov Kal àirfiyyeiÀav etç cidade e nos campos; e saíram
TT|v itÓàlv Kal eiç xouç para ver o que tinha acontecido
àypoúç- Kal rjÀOov lôeiv xí
éoxLV xò yeyovòç 15. E chegam para Jesus e
vêem o endemoninhado
15. Kal ’épxovxai irpòç xòv
sentado, vestido, e em perfeito
’Irpoúv Kal Qeupoboiv xòv
ôaipovtCópfvov Ka0T|pevov juízo, o que havia tido a legião,
Ipaxiopévov Kal e temeram.
oax|)povobvxa, xòv èoxpKÓxa 16. E os que tinham visto
xòv Àeyicôva, Kal ècfjopfiQqoav. relataram a eles como
16. Kal ôtriyTÍoavxo aúxoiç oí aconteceu ao endemoninhado e
lôóvxfç iTGÕç èyévexo xcô a respeito dos porcos.
ôaipoviCopévcü Kal irepl xôv 17. E começaram a suplicar-

165
CAR.L©S AUGUS + ® VAILA + + 1

XOÍptüV. lhe para sair dos territórios


deles.
17. Kai qpÇavTO TrapaKaÀelv
aí)TÒv aireAGeiv ànò twv 18. E entrando ele no barco,
ôpíwv aVTCÒV. suplicava-lhe o que tinha
18. Kai èpPaívovTOç aikov eiç estado endemoninhado para
tò ttàolov irapeKaÀei aikòv ô que com ele estivesse.
ôaipovioGeiç 'iva per’ auToí) rj. 19. E não lhe permitiu, mas
19. Kai ovk àc|)f|K6V aírróv, disse-lhe: “Vai para a tua casa,
àÀÀà Àcyc-i aiiTCÔ, "Y-iraye eiç junto aos teus, e anuncia-lhes
ròv oikÓv ooi) irpòç toÒç ooòç as coisas que o Senhor tem
Kai airayytiXov aÒTOiç òoa ô feito a ti e como teve
KÓpióç ooi ireTTOÍriKev Kai misericórdia de ti”.
■qÀérioév oe.
20. E partiu e começou a
20. Kai àníjÀGev Kai rp^aTO proclamar na Decápolis as
Kripúooeiv èv TT| AfKairóÀei coisas que Jesus fez para ele, e
òoa èiroíqocv aÓTiò ó ’Irioouç, todos se admiravam.
Kai irávTeç èGaúpaCov.
B. Segmentação e Estruturação do Texto
Pelo fato de Mc 5.1-20 ser um texto narrativo,
segmentaremos o texto, bem como, o estruturaremos tendo
como base os seus sujeitos, ou seja, aqueles que aparecem e
agem no texto. Tal leitura com ênfase nos sujeitos e em suas
ações (dividida por blocos) irá nos ajudar a definir a estrutura
básica para a nossa perícope. Para tanto, ofereço a seguir a
minha proposta estrutural para a passagem em questão.

l.
B. O Cenário e as Características do
Endemoninhado (5.1-5)

la Kai rjÀGov eiç tò irèpav Tfjç GaÀáaoriç


b eiç tt|v xúpav tóõv repaoqvwv.

166
sa+anás, DemêNies ê legiã©

la E vieram para o outro lado do mar,


b para a região dos Gerasenos.
2a Kal èÇcÀÔóvToç atirou ék toíj ttàoÍou
b eúQuç úirriuTriaev aurcâ c-k twv puripeícov
c àvOpco-rroç év irvfúpaTi aKaSaprcp,
2a E saindo ele do barco,
b logo encontrou-se com ele dos sepulcros
c um homem com espírito imundo,
3a bç KaToÍKT|OLP èv TOLÇ pVlípaOLV,
b Kal oòôè áÀúoei oòkÉtl ouôelç èôúvaTO aúròv Spoai
3a o qual tinha a morada nos sepulcros,
b e nem com corrente ninguém podia prendê-lo,
4a õià to avTÒv iroÀÃáKLç iréôaLç Kal áÀúoeoiv ôeôéoôai
b Kal ÔLeairáoOai úir’ avroO ràç àÀóofiç
c Kal ràç iréõaç auvrerpiijjGai,
d Kal oúôelç lo/urv auxòv ôapáoaL-
4a por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e
correntes,
b e tinham sido rompidas por ele as correntes,
c e as algemas tinham sido esmagadas,
d e ninguém podia subjugá-lo;
5a Kal ôià iravTÒç
b vuktoç Kal rpépaç
c êv tolç pvripaoiu Kal èv tolç ópeotv qv
d KpáCtov
e Kal KaraKoirTuu éavwv ÀíQoiç.
5a e continuamente,
b de noite e de dia,
c estava nos sepulcros e nos montes
d gritando

167
CARL®S AUGUS+ffl VAILA + + I

e e cortando a si mesmo com pedras.


Aqui, neste primeiro bloco, os sujeitos principais da ação
narrada são: Jesus, os seus discípulos (ainda que citados
indiretamente) e o endemoninhado, sendo que a ênfase cai
sobre este último através da descrição detalhada da lastimável
condição em que se encontra, a qual é resultante de seu estado
de homem possuído. No que se refere a Jesus e seus discípulos,
são eles que atravessam o mar a fim de chegarem até a outra
margem, conforme a iniciativa tomada pelo próprio Jesus na
perícope anterior que trata da tempestade que é acalmada (cf.
Mc 4.35-41).

B.
2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10)

6a Kttl ÍÔÒ)V TOP ’Ir|Oo0v CXTTÒ |iaKpÓ06V


b ’éôpapev
c Kai irpooeKÚvr|oev aura)
6a E, vendo a Jesus de longe,
b correu
c e prostrou-se perante ele,
7a Kai Kpá^aç
b cfxjoufl peyáÀp Àéyfi,
c Tí èpoi Kai ooí, ’Irjoou
d ulè toô 0eoú toô úi|norov;
e ópKÍCa) oe TÒV 0eóv,
f pf) pe paoavíorjç.
7a e gritando
b com forte voz, disse:
c “O que a mim e a ti, Jesus,
d filho do Deus Altíssimo?
e Conjuro a ti por Deus,
f não me atormentes”.

168
SA+ANÁS, DEméNieS E LEGIî

8a eXryev yàp avuqj,


b ”E^À9e
c to TrveOpa to àicáôapTOU
d tK toü àvQpcó-irou.
8a Pois dizia a ele:
b “Sai,
c espírito impuro,
d do homem”.
9a Kal èirrípcÓTa aÒTOU,
b Ti bvopá oo t;
c Kal Àcyci aincô,
d Aeyubv òvopá pot,
e OTL TTOÀÀOÍ èopev.

9a E perguntava a ele:
b “Qual é o teu nome?”
c E respondeu-lhe:
d “Legião é o meu nome,
e porque somos muitos”.
10a Kal TTapeKaAei aòrov noÀÀa'
b 'iva pq airuà àuooTeÍÀT] rijç xwpaç
10a E implorava-lhe muito
b para que não os mandasse para fora da região.

Este segundo bloco nos mostra de forma evidente que os


sujeitos principais são Jesus e os demônios. Aqui é narrado o
duelo existente entre ambos, o qual descreve de forma muito
clara e inequívoca a supremacia do Filho do Deus Altíssimo
sobre a Legião demoníaca.

169
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

3.
B. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim
(5.11-13)

11a THv Ôè CK6L irpòç Tíô ÓpeL


b àyéÀT] /oípcov peyáÀri pooKopévr]-
11a E estava ali, perto do monte,
b uma grande manada de porcos pastando;
12a Kai napfKáÀfoav aòròv Àéyovreç,
b riépi|jov T]pâç eiç touç %oípouç,
c 'iva c-iç aikoòç eioéÀOwpev.
12a E suplicaram-lhe, dizendo:
b “Envia-nos para os porcos,
c a fim de que neles entremos”.
13a Kai 61T6Tpfl|jfV atlTOLÇ.
b Kai èÇeÀOóvta
c rà irveúpara rà àKaOapra eiofiÀQov eiç touç xoípouç,
d Kai óípprioev q àycÀq
e Kara roí) Kpqpvoí) eiç rqv QáÀaooav,
f óç ôioxíXioi,
g Kai èirvíyovro èv rf| OaÀáooT].
13a E permitiu-lhes.
b E tendo saído,
c os espíritos imundos entraram nos porcos,
d e precipitou-se a manada
e do despenhadeiro para o mar,
f cerca de dois mil,
g e se afogaram no mar.
Neste terceiro bloco verifica-se que os sujeitos principais
são Jesus, os demônios e os porcos, com especial destaque
dado a estes últimos. Neste trecho, Jesus expulsa os demônios

170
SA+ANÁS, Dem®NI®S £ LEGIî

do homem, os quais entram nos porcos. Estes, por sua vez, se


precipitam de um despenhadeiro e morrem afogados.

B.4. A Reação das Testemunhas Diante do


Milagre (5.14-17)

14a Kal 01 PÓOKOVTCÇ aÚTOUÇ


b
c Kal àirriYYciÀav elç Tqv itÓàlv Kal elç touç aYpoúç-
d Kal fjÀBov lôeiv rí ècniv to y^Vovoç
14a E os que tratavam deles
b fugiram
c e anunciaram na cidade e nos campos;
d e saíram para ver o que tinha acontecido
15a Kal ’ép/oviai TTpòç tov Trpouv
b Kal OeaipoüoLV ròv ôaipoviCópePov
c Ka9f||J+vov
d Ipariopévov
e Kal OGJcjjpouoüuTa,
f tÒu èaxnKÓra tou Àey iwva,
g Kal è(|)opií6r|oav.
15a E chegam para Jesus
b e vêem o endemoninhado
c sentado,
d vestido,
e e em perfeito juízo,
f o que havia tido a legião,
g e temeram.
16a Kal ô ltiytÍcjcxvt0 aÓTolç
b ol iôóizceç
c TTGÒç ÈY^uero tó 0aipoui(o|ieva) Kal irepl túv /oípcov.
16a E relataram a eles
171
CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + I

b os que tinham visto


c como aconteceu ao endemoninhado e a respeito dos
porcos.
17a Kai ■qpÇavro irapaKaÀelv aú-rov
b áircÀOciv àirò tgòv ópíwv aÚTÓjv.
17a E começaram a suplicar-lhe
b para sair dos territórios deles.

Neste quarto bloco, nota-se a presença dos seguintes


sujeitos: os porqueiros, os moradores das cidades e dos
campos e o ex-endemoninhado. Aqui se deve fazer referência
especial às testemunhas do milagre ocorrido, as quais serão
responsáveis por desencadear toda a sucessão de fatos que
culminará com a expulsão de Jesus do território gentílico
geraseno.

B.5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado


(5.18-20)
18a Kai ègpaívovTOÇ aÚTOÜ elç to ttàoiov
b uapfKáÀei aÚTÒv
c Ó ÔaLgOVLOÔclç
d 'iva per’ aurou rj.
18a E entrando ele no barco,
b suplicava-lhe
c o que tinha estado endemoninhado
d para que com ele estivesse.
19a Kai ovk à^íjKfv aÒTOV,
b áAAà Àéyei avuõ,
c "Yirayc ctç tov oikov ood
d TTpOÇ TOUÇ OOVÇ
e Kai àTTáyYfiÀov aórolç óaa ô KÚpióç ooi -rreTTOÍqKev
f Kai qÀéqoév oe
172
SA+ANÁS, DEfllêNieS E LEGIé

19a E não lhe permitiu,


b mas disse-lhe:
c “Vai para a tua casa,
d junto aos teus,
e e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti
f e como teve misericórdia de ti”.
20a Kai àirrjÀOev'
b Kai líp^aTO KTipuaoeiv èv -ufj AcKairóÀci
c õoa éiroír|oev aúná) ô ’Ir|oouç,
d Kai uávTeç éOaúpaCov.
20a E partiu
b e começou a proclamar na Decápolis
c as coisas que Jesus fez para ele,
d e todos se admiravam.

Por fim, neste quinto e último bloco podemos notar os


seguintes sujeitos que aparecem em nosso texto segmentado e
estruturado: Jesus, o ex-endemoninhado e os habitantes da
Decápolis. A partir desta perspectiva textual que visa focalizar
os sujeitos e as suas respectivas ações, podemos desenhar,
portanto, o seguinte quadro esquemático:

Bloco Mc 5.1-20 Os sujeitos e suas


ações
la E vieram para o outro O Cenário e as
lado do mar, Características do
b para a região dos Endemoninhado
Gerasenos. (5.1-5)
2a E saindo ele do barco, Jesus e seus discípulos
b logo encontrou-se com se aproximam de
ele dos sepulcros Gerasa. Dos sepulcros
c um homem com sai um homem
espírito imundo, endemon inhado.
173
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

3a o qual tinha a
morada nos sepulcros,
b e nem com corrente
1 ninguém podia prendê-lo,
4a por isso, ele tinha
sido preso
muitas vezes
com algemas
e correntes,
b e tinham sido
rompidas por ele as
correntes,
c e as algemas tinham
sido esmagadas,
d e ninguém podia
subjugá-lo;
5a e continuamente,
b de noite e de dia,
c estava nos sepulcros
e nos montes
d gritando
e e cortando a si
mesmo com pedras.
6a E, vendo a Jesus de O Duelo entre Jesus e
longe, os Demônios (5.6-10)
b correu Os demônios
c e prostrou-se perante reconhecem a
ele, autoridade de Jesus
7a e gritando sobre eles. Jesus inicia
b com forte voz, disse: o exorcismo.
c “0 que a mim e a ti,
Jesus,
d filho do Deus
Altíssimo?
2 e Conjuro a ti por
174
SA + ANÁS, DÊrtlÔNieS £ LEGIî

Deus,
f não me atormentes”.
8a Pois dizia a ele:
b “Sai,
c espírito impuro,
d do homem”.
9a E perguntava a ele:
b “Qual é o teu nome?”
c E respondeu-lhe:
d “Legião é o meu
nome,
e porque somos
muitos”.
10a E implorava-lhe
muito
b para que não os
mandasse para
fora da região.
11a E estava ali, perto do A Manada de Porcos
monte, e o Seu Trágico Fim
3
b uma grande manada (5.11-13)
de porcos pastando; Jesus exorciza os
12a E suplicaram-lhe, demônios. Os
dizendo: demônios entram nos
b “Envia-nos para os porcos. Os porcos
porcos, morrem afogados.
c a fim de que neles
entremos”.
13a E permitiu-lhes,
b E tendo saído,
c os espíritos imundos
entraram nos porcos,
d e precipitou-se a
manada
e do despenhadeiro
175
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I

para o mar,
f cerca de dois mil,
g e se afogaram no
mar.
14a E os que tratavam A Reação Das
deles Testemunhas Diante
b fugiram do Milagre (5.14-17)
c e anunciaram na Reação ao milagre:
cidade e nos campos; porqueiros e
d e saíram para ver o moradores
que tinha acontecido testemunham o
4
15a E chegam para Jesus milagre. O que fora
b e vêem o endemoninhado
endemoninhado recobra sua saúde.
c sentado,
d vestido,
e e em perfeito juízo,
f o que havia tido a
legião,
g e temeram.
16a E relataram a eles
b os que tinham visto
c como aconteceu ao
endemoninhado e a respeito
dos porcos.
17a E começaram a
suplicar-lhe
b para sair dos
territórios deles.
18a E entrando ele no O Comissionamento
barco, do Ex-
b suplicava-lhe Endemoninhado
c o que tinha estado (5.18-20)
endemoninhado
5
d para que com ele
176
sa+anás. DemêNies e legiã®

estivesse. Jesus não permite que


19a E não lhe permitiu, o ex-endemoninhado o
b mas disse-lhe: siga. Este se torna um
c “Vai para a tua casa, missionário. Os
d junto aos teus, habitantes de
e e anuncia-lhes as Decápolis se admiram
coisas que o Senhor tem diante do milagre
feito a ti ocorrido.
f e como teve
misericórdia de ti”.
20a E partiu
b e começou a
proclamar na Decápolis
c as coisas que Jesus
fez para ele,
d e todos se
admiravam.

Resumindo, nossa proposta estrutural para a perícope de


Mc 5.1-20 foi esquematizada conforme o seguinte quadro:

1. O Cenário e as Características do Endemoninhado


(5.1-5);

2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10);

3. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim (5.11-13);

4. A Reação das Testemunhas Diante do Milagre (5.14-


17);

177
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado (5.18-


20).

Todavia, além do nosso ponto de vista pessoal,


gostaríamos de fornecer também a opinião de alguns estudiosos
sobre o assunto, os quais, como teremos a oportunidade de
notar, não divergem entre si de forma tão significativa quanto a
estrutura que adotam para Mc 5.1-20.268 Apresentamos aqui
quatro exemplos.

a) B. W. Johnson e Don Dewelt

Para estes dois estudiosos, a estrutura de Mc 5.1-20 é bem


enxuta, sendo dividida em três partes conforme segue:

1. O Endemoninhado Gadareno (5.1-8);

2. A Legião e os Porcos (5.9-13);

3. Cristo e os Gadarenos (5.14-20).269

b) Vincent Taylor

Estruturalmente, Taylor encontra os rudimentos de um


quarto ato no drama das cenas, retratando:

Todavia, uma estrutura mais reduzida é defendida por A. R. Carmona,


que divide a perícope de Mc 5.1-20 homileticamente em apenas duas partes:
1) o que Jesus pode (fazer); e 2) o que não pode. (Cf. CARMONA, Antonio
Rodríguez. Evangelio de Marcos. [Comentários a la Nueva Biblia de
Jerusalén]. Bilbao, Desclée De Brouwer, 2006, pp.64-66).
269 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
Missouri, College Press, 1965, p.140,141. Percebe-se nos itens 1 e 3 a
predileção dos autores pela localidade de Gadara.
178
sa+anás, DemêNies e legiã®

1. Jesus e o Endemoninhado (5.1-10);

2. Os Porcos (5.11-13);

3. As Pessoas da Cidade (5.14-17);

4. O Homem Liberto (5.18-2O).270

c) Rudolf Pesch
Pesch também divide a estrutura do texto em quatro
partes, mas de forma distinta de Taylor, com exceção dos itens 3
e 4:

1. O Cenário e a Descrição da Doença (5.1-5);

2. Jesus e os Demônios (5.6-13);

3. As Testemunhas (5.14-17);

4. O Homem Curado (5.18-20).271

d) Robert A. Guelich

Por fim, Guelich, diferentemente dos anteriores, estrutura


a passagem de Mc 5.1-20 dividindo-a em cinco partes e, como
pode ser percebido, minha estrutura é mais parecida com esta,
com exceção dos itens 1 e 5 que possuem pequenas variações
em seu enunciado:

1. O Cenário (5.1-5);

TAYLOR, Vincent. The Gospel According to St. Mark. New York,


Macmillan, 1966, p.277.
271 Citado por GUELICH, Robert A., in: Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC].
Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.274.
179
CARLOS AUGUS + O VAILA + +I

2. Jesus e os Demônios (5.6-10);

3. Os Porcos (5.11-13);

4. As Testemunhas (5.14-17);

5. A Reação do Homem Curado (5.18-20).272

Assim, concluímos nossa análise estrutural do texto,


percebendo que o mesmo pode possuir vários tipos de estruturas
(cf. exemplos citados), as quais, porém, não apresentam
características tão díspares entre si. A seguir, faremos a análise
lingüística do texto.
C. Análise Lingüística
A análise lingüística de Mc 5.1-20 nos permitirá
compreender, de forma mais apurada, o pensamento do autor.
Isto se dá porque tal análise apontará para mais de uma direção
simultaneamente, uma vez que nossa análise lingüística possui
três facetas (as duas primeiras veremos em conjunto e a última à
parte):

- Análise Lexicográfica: estudo do vocabulário;

- Análise Morfo lógica: estudo de cada palavra


individualmente;

- Análise estilística: estudo das figuras de linguagem.273


l.
C. Análise Léxico-Morfológica: estudo do
vocabulário e da palavra em si

77?
Idem, Ibidem, p.274.
273
Sigo (exceto a morfologia): SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia
de Exegese Bíblica, pp. 126,127.
180
SA + ANÁS, DEfTl®NI®S E LEGIî

Estudar o vocabulário encontrado em Mc 5.1-20 é uma


tarefa indispensável que nos ajudará a compreender melhor a
teologia de Marcos, bem como, nos permitirá chegar a
conclusões importantes em nosso estudo. Aqui, porém, quando
um mesmo termo ocorrer mais de uma vez no texto, não
repetiremos a sua análise. Assim, o leitor deverá consultar a
primeira ocorrência do termo a fim de verificar o seu
significado. Portanto, analisemos o vocabulário de nossa
perícope obedecendo à ordem em que este aparece no texto.
Marcos 5.1

Vocábulo Análise Léxico-Morfológica

Conjunção coordenativa. Seus significados


básicos são: “e, também, ainda”. Esse
vocábulo cuja ocorrência é muito comum nas
páginas do Novo Testamento, onde aparece
9164 vezes,274 é encontrado 41 vezes ao todo
em nosso texto. É curioso observarmos que
“tanto o hebraico quanto o aramaico se
Kat distinguem pela seqüência de orações em
coordenação, ou melhor: as inflexões
sucessivas, postas lado a lado, são ligadas pela
conjunção (yav), e. Esse tipo de construção
se reflete, de modo acentuado, na estilística do
Evangelho conforme Marcos, pela utilização
da conjunção Koà, em correspondência exata

274 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.2122.
181
CARLffiSAUGUS+ffi VAUA++I

ao (vav) hebraico, especialmente, em


77S

função aditiva ou copulativa”. O uso


excessivo dessa conjunção por parte de
Marcos revela o seu estilo marcadamente
paratático. A parataxe, por sua vez, é um
elemento característico das línguas semitas.276

Verbo no indicativo aoristo ativo, na 3a pessoa


rjÀQov do plural, “vieram”. É derivado do verbo
èpxopai, “ir, vir”.

Preposição no acusativo, “para, em direção a”.


GLÇ
Essa preposição aparece duas vezes no v. 1.

Artigo definido, no acusativo, neutro,


TO
singular, “o”.

uépav
Advérbio de lugar usado como um
substantivo, “outro lado”.277

Artigo definido, genitivo, feminino, singular,


Tf|Ç “do”. Aparece logo em seguida, ainda no v. 1,
em sua forma no acusativo, xpu.

Substantivo, genitivo, feminino, singular,


9aÀáoor|ç
“mar, lago”.278 Devemos considerar o uso do

7/5 r
Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 191.
276
DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo
Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004,
p.130.
277 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.75.
182
SA+ANÁS, DÊmêNieS £ LEGIî

termo QaXácrariç como um semitismo, o qual


é usado aqui para se referir ao lago de
Genesaré (cf. Mc 4.39,41).279

Substantivo, acusativo, feminino, singular,


Xcópav
“região, país”.

Artigo definido, genitivo, masculino, plural,


TWV
“dos”.

Adjetivo pronominal, genitivo, masculino,


lVpaar|iADV
plural, “Gerasenos”.
Marcos 5.2

Vocábulo Análise Léxico-Morfológica

Verbo, particípio, aoristo, na voz ativa,


èÇcÀQómoç genitivo, masculino, singular. É derivado do
verbo £^Ép%opat, “sair, vir para fora”.

Substantivo pronominal, genitivo, masculino,


aòroô
na 3a pessoa do singular, “ele”.

Preposição, no dativo, “de, a partir de, de


ÉK
dentro de”.

Artigo definido, no genitivo, neutro, singular,


TOÜ
“do”.

ITÀOÍOU Substantivo, genitivo, neutro, singular, “do

GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo


Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.81.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 156.
183
CARLOS AUGUS + ffi VAILA++I

barco”.

Adjetivo pronominal, no nominativo,


masculino, singular, o qual é usado como
adjetivo adverbial, “imediatamente, logo”. É
evGuç muito provável que o emprego excessivo
desse adjetivo em Marcos, dê-se por
influência da conjunção aramaica D' Ê ,
no momento.
280

Verbo, indicativo, aoristo, na voz ativa, 3a


í)Trr|v-cr]O6V pessoa do singular, derivado de bTtavTáco,
“encontrar”.

p.VT]p.6 ÍG)V Substantivo, genitivo, neutro, plural, “dos


sepulcros”.

ãvOpcoiTOÇ Substantivo, nominativo, masculino, singular,


“(um) homem”.

èv Preposição, dativo, “em (com)”.

TtveúpaTi Substantivo, dativo, neutro, singular,


“espírito”.

áKaQápTcp Adjetivo, dativo, neutro, singular, “imundo,


impuro”.
Marcos 5.3

Vocábulo Análise Léxico-Morfológica

2R0 '
Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 191.
184
SA + ANÁS, DEíTl®NI©S Ê LEGIé

Adjetivo pronominal relativo, nominativo,



masculino, singular, “o qual”.

Artigo definido, acusativo, feminino, singular,


TT]V
“a”.

Substantivo, acusativo, feminino, singular,


KaTOÍKT|OLV “habitação, moradia, morada”. Trata-se de um
hapax legomenon. 281

Verbo, indicativo, imperfeito, voz ativa, na 3a


pessoa do singular, “tinha”.

TOLÇ Artigo definido, dativo, neutro, plural, “os”.

Substantivo, dativo, neutro, plural,


|ivr||J,aoLV
“sepulcros”.

oòôè Adjetivo adverbial, “nem”.

Substantivo, dativo, feminino, singular,


àÀÚoei
“corrente”.

OLIKtTL Adjetivo adverbial, “já não”.

Adjetivo pronominal cardinal, nominativo,


oóôelç
masculino, singular, “nenhum, ninguém”.

Verbo, indicativo, imperfeito, na voz média


èôúvaro
ou passiva, na 3a pessoa do singular, “podia”.

aÚTÒv Substantivo pronominal, acusativo,

KUBO, Sakae. RGELNT, p.32.

185
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I

masculino, na 3a pessoa do singular, “a ele”.

Verbo, infinitivo, aoristo, na voz ativa,


ôfjoaL
“prender, amarrar”. É derivado do verbo 3éo>.
Marcos 5.4
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Preposição no acusativo, “porque, por,
através”. Aqui a construção indica, não a
ôià
razão, mas as circunstâncias mencionadas à
guisa de explicação.
TTOÀÀáKLÇ Adjetivo adverbial, “muitas vezes,
freqüentemente”.
iréôaiç Substantivo, dativo, feminino, plural,
“grilhões, algemas para os pés”.
àÀúoeoiv Substantivo, dativo, feminino, plural,
“correntes”.
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
ôfôéoQai acusativo, “ter sido preso”. É derivado do
verbo 5êo).
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
ôieoiráoOaL no acusativo, “terem sido rompidas,
despedaçadas”.
Útt’ Preposição no genitivo, “por”.
ràç Artigo definido, no acusativo, feminino,
plural, “as”.
Substantivo, no acusativo, feminino, plural,
àXúocLç
“correntes”.
Substantivo, no acusativo, feminino, plural,
iréôaç “grilhões, algemas para os pés”. No início do
verso o substantivo aparece no dativo.
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
OU VT6T pi(|)0a L no acusativo, “terem sido esmagadas”.
Derivado de ouvTpípcu, “despedaçar, quebrar
186
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî

totalmente, esmagar”.
Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa,
íoxufv na 3a pessoa do singular, “podia”. É derivado
do verbo ’laxíco, “ser forte”.
Verbo no infinitivo, aoristo, na voz ativa,
ôapáoat
“subjugar, amansar”.
Marcos 5.5
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Adjetivo pronominal, genitivo, masculino,
navTÒç
singular, “continuamente”.
Substantivo no genitivo, feminino, singular,
VUKTÒÇ
“de noite”.
Substantivo, genitivo, feminino, singular, “de
riliépaç
dia”.
ÕpfOLV Substantivo, dativo, neutro, plural, “montes”.
Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa, na
rjv
3a pessoa do singular, “estava”.
Verbo no participio presente, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “clamando,
KpáCüJV gritando”. Este participio, bem como o
seguinte, usado numa construção perifrástica
enfatizam a ação repetida.
Verbo no participio presente, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “cortar em
pedaços”. A preposição no verbo composto é
KaraKÓiiTCDV’ perfectiva. Sendo assim, seu corpo podia estar
dilacerado e cicatrizado em todas as partes. É
o segundo hapax legomenon de nossa
perícope em estudo.
Substantivo pronominal, acusativo,
êauTÒP masculino, na 3a pessoa do singular, “a si
mesmo”.
ÀíQoiç Substantivo, dativo, masculino, plural,

187
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I

“pedras”.
Marcos 5.6
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no particípio aoristo, na voz ativa,
Lôgop nominativo, masculino, singular, “vendo
(ele)”.
TOP
Artigo definido, no acusativo, masculino,
singular, “a”.
’Ipoouv Substantivo no acusativo, masculino,
singular, “Jesus”.
CtITO Preposição no genitivo, “de”.
Adjetivo adverbial usado como adjetivo
|iaKpó9ep pronominal, genitivo, neutro, singular, “de
longe”.
’éôpapep Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “correu”.
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
TTpoaeKÚvpoev 3a pessoa do singular, “prostrou-se, prostrou-
se em adoração”.
Marcos 5.7
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
KpáÇaç Verbo no particípio aoristo, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “gritando”.
4>copfi Substantivo no dativo, feminino, singular,
“voz”.
p.eyáÀr| Adjetivo no dativo, feminino, singular,
“grande, forte”.
Àéyei Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “diz (disse)”.
Adjetivo pronominal interrogativo,

nominativo, neutro, singular, “O que?”.
époi Substantivo pronominal no dativo, na Ia

188
SA + ANÁS, D£IT1©NI®S £ LEGIé

pessoa do singular, “a mim”.


Substantivo pronominal no dativo, na 2a
ooí
pessoa do singular, “a ti”.
Substantivo no vocativo, masculino, singular,
’Ipoou
“Jesus”.
<\ Substantivo no vocativo, masculino, singular,
ulg
“Filho”.
Substantivo no genitivo, masculino, singular,
ôgoü
“de Deus”.
Adjetivo superlativo no genitivo, masculino,
singular, “Altíssimo”. Trata-se de um
vip LOTOU semitismo derivado do hebraico *7 fô,
“Deus Altíssimo” ou jí*1 “Altíssimo”.
Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
ôpKÍCo)
Ia pessoa do singular, “conjuro, adjuro”.
Substantivo pronominal no acusativo, na 2a
06
pessoa do singular, “a ti, te”.
Substanivo no acusativo, masculino, singular,
06ÓV
“(por) Deus”.
PI Adjetivo adverbial, “não”.
Substantivo pronominal no acusativo, na Ia
P pessoa do singular, “a mim, me”.
Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na
2a pessoa do singular, usado como verbo no
PaoavíoT]ç
imperativo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa
do singular, “atormentes, tortures”.
Marcos 5.8
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
6À6Y6V
na 3a pessoa do singular, “dizia, falava”.
yàp Conjunção subordinativa, “pois”.
’'E^gàQg Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na

189
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +1

2a pessoa do singular, “sai!”.


irvfüpa Substantivo no vocativo, neutro, singular,
“espírito”.
(XKaQaprov Adjetivo no vocativo, neutro, singular,
“imundo, impuro”.
àvQpcóirou Substantivo no genitivo, masculino, singular,
“do homem”.
Marcos 5.9
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
èirrípcÓTa Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “perguntava”.
Substantivo no nominativo, neutro, singular,
óvopá
“(o) nome”.
Aeyiwv Substantivo no nominativo, feminino,
singular, “Legião”.
poi Substantivo pronominal no dativo, na Ia
pessoa do singular, “meu, para mim”.
OTl Conjunção subordinativa, “porque”.
TTOÀÀOÍ Adjetivo pronominal no nominativo,
masculino, plural, “muitos”.
èoprv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
Ia pessoa do plural, “somos”.
Marcos 5.10
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
TrapfKáÀci Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “implorava, rogava”.
Adjetivo pronominal no acusativo, neutro,
TTOÀÀà plural, usado como adjetivo adverbial,
“muito”.
iva Conjunção coordenativa, “para que”.
aurà Substantivo pronominal no acusativo, neutro,
na 3a pessoa do plural, “a eles”.

190
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na


ánooTeÍÀT]
3a pessoa do singular, “mandasse, enviasse”.
Preposição no genitivo, “(para) fora de”.
Substantivo no genitivo, feminino, singular,
/cópaç
“região”.

Marcos 5.11
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
’Hv
na 3a pessoa do singular, “estava”.
Ô6 Conjunção coordenativa, “e”.
6Kei Adjetivo adverbial, “ali”.
upòç Preposição no dativo, “perto de”.
Artigo definido no dativo, neutro, singular,
TCÔ
“o”.
Substantivo no dativo, neutro, singular,
õpei
“monte”.
Substantivo no nominativo, feminino,
áyéÀri
singular, “manada”.
Substantivo no genitivo, masculino, plural,
Xoípwu
“de porcos”.
Adjetivo no nominativo, feminino, singular,
peyáÀri
“(uma) grande”.
Verbo no participio presente, na voz passiva,
PooKop.évr|
nominativo, feminino, singular, “pastando”.
Marcos 5.12
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
irapeicáÀeoav
3a pessoa do plural, “suplicaram, rogaram”.
Verbo no participio presente, na voz ativa, no
Àéyomfç
nominativo, masculino, plural, “dizendo”.
Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na
népirpov
2a pessoa do singular, “envia, manda”.
191
CARL®S AUGUS+® VA1LA + + I

Substantivo pronominal no acusativo, na Ia


niiâç
pessoa do plural, “a nós”.
TOÍ)Ç Artigo definido no acusativo, masculino,
plural, “os”.
xoípouç Substantivo no acusativo, masculino, plural,
“porcos”.
(WTOÒç Substantivo pronominal no acusativo,
masculino, na 3a pessoa do plural, “eles”.
6 LoéÀ0(jop.ev
Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na
Ia pessoa do plural, “entremos”.
Marcos 5.13
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
fiTérpeiliev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “permitiu”.
aÓTolç
Substantivo pronominal no dativo, neutro, na
3a pessoa do plural, “a eles”.
Verbo no particípio aoristo, na voz ativa, no
nominativo, neutro, plural, “tendo saído”.
rà Artigo definido no nominativo, neutro, plural,
“os”.
irveú|iara Substantivo no nominativo, neutro, plural,
“espíritos”.
áKÚQapra Adjetivo no nominativo, neutro, plural,
“imundos, impuros”.
c loíjÀQov
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “entraram”.
(opppocv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “precipitou-se”.
Artigo definido no nominativo, feminino,
n singular, “a”.
Karà Preposição no genitivo, “para baixo”.
Substantivo no genitivo, masculino, singular,
Kpppuoú
“despenhadeiro, precipício”.
192
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé

Artigo definido no acusativo, feminino,


TT]V
singular, “o”.
Substantivo no acusativo, feminino, singular,
QáÀaooav
“mar”.
wç Adjetivo adverbial, “cerca de”.
Adjetivo pronominal cardinal, no nominativo,
ÔIOXLÀLOL masculino, plural, “dois mil”. Este é o terceiro
e último hapax legomenon de nossa perícope.
Verbo no indicativo imperfeito, na voz
è-nvíyomo passiva, na 3a pessoa do plural, “se afogavam,
se sufocavam”.
Artigo definido no dativo, feminino, singular,
rfj
“o”.
Substantivo no dativo, feminino, singular,
QaÀáaor]
“mar”.
Marcos 5.14
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Artigo definido no nominativo masculino
plural, usado como substantivo pronominal no
Ol nominativo masculino na 3a pessoa do plural e
como adjetivo pronominal relativo no
nominativo masculino, plural, “os”.
Verbo no participio presente, na voz ativa, no
PÓOKOVTEÇ nominativo, masculino, plural, “que tratavam,
que alimentavam”.
f^uyov
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “fugiram”.
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
àuijYycLÀav 3a pessoa do plural, “anunciaram, relataram,
trouxeram notícias”.
IlÓÀLV
Substantivo no acusativo, feminino, singular,
“cidade”.
àypoúç Substantivo no acusativo masculino, plural,
193
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

“campos”.
rjÀGov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “vieram”.
lôetv Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa,
“para ver”.
ècTiv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “é”.
Verbo no particípio perfeito, na voz ativa, no
nominativo, neutro, singular, “sucedido”. 0
yeyovòç
perfeito enfatiza 0 estado ou condição
contínua daquilo que acontecera.
Marcos 5.15
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no indicativo presente, na voz média
’épxovTat ou passiva, na 3a pessoa do plural,
“chegam”.
OecopoOoLV Verbo no indicativo presente, na voz ativa,
na 3a pessoa do plural, “vêem”.
Verbo no particípio presente, na voz média
ou passiva, no acusativo, masculino,
SaipoviCópevov singular, “endemoninhado”. Refere-se ao
“homem que antes fora (ou que até agora
tinha sido) um endemoninhado”.
Verbo no particípio presente, na voz média
KaSfipevov ou passiva, no acusativo, masculino,
singular, “sentado”.
Verbo no particípio perfeito, na voz passiva,
no acusativo, masculino, singular, “vestido”.
IpaTLopéuov
0 perfeito enfatiza sua presente condição ou
estado.
Verbo no particípio presente, na voz ativa,
ooxjipovoôvTa no acusativo, masculino, singular, “em
perfeito juízo, são”.

194
SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî

Verbo no participio perfeito, na voz ativa, no


acusativo, masculino, singular, “que tinha
ÈCJPIKÓ™ tido”. Esse termo expressa um estado
anterior, ou seja, “tendo tido, mas agora livre
deles (dos demônios)”.
Substantivo no acusativo, masculino,
Àeyiôva
singular, “legião”.
Verbo no indicativo aoristo, na voz passiva
è^oPiíOrjoav depoente, na 3a pessoa do plural, “temeram,
tiveram medo”.
Marcos 5.16
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Verbo no indicativo aoristo, na voz média
õiTiYrpavTO
depoente, na 3a pessoa do plural,
“relataram”, transmitindo a idéia de “expor
com pormenores”.
Verbo no participio aoristo, na voz ativa, no
LÔÓVTCÇ nominativo, masculino, plural, “que tinham
visto”.
1TWÇ Adjetivo adverbial interrogativo, “como”.
Verbo no indicativo aoristo, na voz média
èyévcco depoente, na 3a pessoa do singular,
“aconteceu”.
Verbo no participio presente, na voz média
ou passiva, no dativo, masculino, singular,
ôaipoviCo|i€vcü “endemoninhado”. (cf. a análise sobre essa
mesma palavra no verso 15, a qual aparece
ali no acusativo).
irepl Preposição no genitivo, “a respeito de”.
Marcos 5.17
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
qp^avro Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na

195
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

3a pessoa do plural, “começaram”.


'frapaKaÀelv Verbo no infinitivo presente, na voz. ativa,
“suplicar, rogar”.
ànfÀôéip Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa,
“para sair”.
áirò Preposição no genitivo, “de”.
ópíwv Substantivo no genitivo, neutro, plural,
“territórios”.
avTÔv Substantivo pronominal no genitivo,
masculino, na 3a pessoa do plural, “deles”.
Marcos 5.18
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
èp.paívouTOÇ Verbo no particípio presente, na voz ativa, no
genitivo, masculino, singular, “embarcando”.
ttàolov
Substantivo no acusativo, neutro, singular,
“barco”.
Artigo definido no nominativo, masculino,
singular, usado como substantivo pronominal
ô no nominativo, masculino, na 3a pessoa do
singular e usado também como Adjetivo
pronominal relativo, no nominativo,
masculino, singular, “o”.
Verbo no particípio aoristo, na voz passiva
ÔaLgOVLOOcLÇ depoente, no nominativo, masculino, singular,
“que tinha estado endemoninhado”.
per’ Preposição no genitivo, “com”.
Verbo no subjuntivo presente, na voz ativa,
ri na 3a pessoa do singular, “estivesse”.
Marcos 5.19
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
OUK Adjetivo adverbial, “não”.
acpfiKcv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na

196
SA+ANÁS, DErtlêNieS £ LEGIî

3a pessoa do singular, “permitiu”.


àÀÀà Conjunção superordenativa, “mas”.
Verbo imperativo no presente, na voz ativa, na
"Ynaye
2a pessoa do singular, “Vai”.
Substantivo no acusativo, masculino, singular,
OLKÓV
“casa”.
Substantivo pronominal no genitivo, na 2a
oou
pessoa do singular, “tua”.
Adjetivo pronominal no acusativo, masculino,
oovç
na 2a pessoa do plural, “teus”.
Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na
àTráyyriÀov
2a pessoa do singular, “anuncia”.
Adjetivo pronominal relativo no acusativo,
neutro, plural, “as coisas”, usado como
Adjetivo pronominal demonstrativo no
boa
acusativo, neutro, plural e ainda como
adjetivo pronominal relativo no acusativo,
neutro, plural.
Substantivo no nominativo, masculino,
singular, “Senhor”. Temos aqui um
KÓpióç semitismo, derivado dos termos hebraicos:
nirr
t :
ou^™.T
Verbo no indicativo perfeito, na voz ativa, na
iretroíqKev
3a pessoa do singular, “tem feito”.
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “teve misericórdia”. A
mudança do imperfeito para o aoristo é
■qÀérioép
deliberada. 0 homem recebera bênçãos que
permanecem e que são um benefício
específico na cura dele.

Marcos 5.20

Vocábulo Análise Léxico-Morfológica


197
CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I

àirfjÀGev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na


3a pessoa do singular, “partiu”.
qp^ato
Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na
3a pessoa do singular, “começou”.
Kqpóooetv Verbo no infinitivo presente, na voz ativa,
“proclamar, proclamar como arauto”.
AeKaTróÀei Substantivo no dativo, feminino, singular,
“Decápolis”.
6ir0ÍT|0€P Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “fez”.
’Iqooôç
Substantivo no nominativo, masculino,
singular, “Jesus”.
Adjetivo pronominal no nominativo,
masculino, plural, “todos”.
Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
èOaúpaCov na 3a pessoa do plural, “se admiravam,
maravilhavam-se”.

C. Análise Estilística: estudo das figuras de


2.
linguagem

Podemos definir estilística como sendo “o estudo da


linguagem humana em termos claros de tendência e
características do orador e/ou autor”. “
Em nosso caso em particular, aplicaremos tal tipo de
abordagem no intuito de descobrirmos quais são os principais
traços que encontramos em nossa perícope de Mc 5.1-20, os
quais apontam para o estilo marcano. Vejamos os exemplos
abaixo:

a) Polissíndeto

282 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.74.


198
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S Ê LEGIé

Polissíndeto é o nome dado à “figura de construção que


consiste em repetir uma conjunção ou uma preposição mais
vezes do que a ordem gramatical exige”.283284 Como já pudemos
notar anteriormente no início de nossa análise léxico-
morfológica, Marcos usa exageradamente a conjunção
coordenativa Kai (e) na perícope que ora estamos estudando (41
vezes!). Esse uso desmedido serve para “costurar” o pensamento
do autor e dar seqüência ao desenvolvimento do mesmo. Tal
recurso permite que os elementos coordenados interpenetrem-se,
conferindo ao relato continuidade, vivacidade e fluidez. 284

b) Otiose

Otiose é o nome pelo qual são conhecidas “certas


palavras e unidades gramaticais supérfluas; que não possuem
efeito”.285286
Em nosso texto encontramos um exemplo conhecido
do uso deste elemento em Mc 5.2: “E saindo ele do barco, logo
(...)”. Aqui, o uso do advérbio eèôuç (logo, imediatamente) não
acrescenta nada ao significado do texto. Juan Mateos,
comentando este verso, explica que “a construção com o
genitivo absoluto torna supérfluo o uso do advérbio, além do

J LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza


Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.881.
284
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 157.
285 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.127.
286
Baxter faz um interessante comentário sobre o emprego desse advérbio
em Marcos: “A palavra ocorre 42 vezes em Marcos; apenas sete em Mateus e
uma em Lucas. Da mesma forma que os registros de Júlio César sobre a
Guerra na Gália estão repletos da palavra ‘rapidamente’, a biografia de Jesus
contada por Marcos repete eutheos”. (Cf. BAXTER, J. Sidlow. Examinai as
Escrituras: período interbíblico e os evangelhos. Vol.V. [Tradução de Neyd
Siqueira]. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1992, p.209).
199
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

mais, criticamente muito duvidoso”.287 Sendo assim, Marcos se


utiliza do advérbio euthys apenas a fím de dar movimento à sua
narrativa, por meio deste “imediatismo cronológico”.

c) Epímone

Epímone é como é chamado “em retórica, a repetição de


um mesmo pensamento duas ou mais vezes, usando-se palavras
similares ou sinônimas”.288 Na perícope que ora estamos
estudando tal recurso estilístico pode ser notado várias vezes.
Por exemplo, a ligação do homem com os sepulcros é
mencionada três vezes: “(...) encontrou-se com ele dos
sepulcros um homem (...)” (v.2), “o qual tinha a morada nos
sepulcros (...)” (v.3) e “(...) estava nos sepulcros (...)” (v.5).
Menciona-se duas vezes a força descomunal do endemoninhado:
“(...) ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “(...) ninguém podia
subjugá-lo ” (v.4). Os objetos que foram usados inutilmente na
tentativa de prendê-lo também são enfatizados no texto: “(...) e
nem com corrente ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “por isso,
ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, e
tinham sido rompidas por ele as correntes, e as algemas tinham
sido esmagadas (...)” (v.4). Os gritos emitidos pelo
endemoninhado também são realçados por Marcos: “(...) estava
nos sepulcros e nos montes gritando (...) ” (v.5) e “(...) gritando
com forte voz (...)” (v.7). Estes exemplos são suficientes para
percebermos o estilo repetitivo de Marcos que, por meio da
repetição de certos pensamentos e idéias, tenciona realçar a
dramaticidade do estado do homem endemoninhado.

d) Hipérbole

URBAN, Angel, MATEOS, Juan & ALEPUZ, Miguel. Estudios de


Nuevo Testamento: questiones de gramatica y lexica. Madrid, Ediciones
Cristiandad, 1977, p.117.
288 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit.,p.ll.
200
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

A hipérbole é a “figura de retórica que consiste na ênfase


resultante de um exagero deliberado”.289 O objetivo principal de
tal recurso é causar impressão no leitor.290 Em nosso caso, a
descrição enfática da condição do endemoninhado (sua
residência nos sepulcros, sua força descomunal, as tentativas
frustradas de prendê-lo e o fato de estar possuído, não por um
demônio, mas por uma “legião” demoníaca) tornam a narrativa
marcana mais vivida e impressionante. Os leitores desse texto
certamente exclamariam: “Puxa, como era lastimável o estado
desse homem! Nestas condições, somente Jesus poderia tê-lo
curado!”.

e) Pleonasmo

Pleonasmo é a “repetição, em um enunciado, de palavras


que têm o mesmo sentido”.291292 Trata-se, na realidade, de uma
“redundância de termos”. Em nossa perícope, tal elemento
também é notado algumas vezes. O notamos, por exemplo, na
frase: “e continuamente, de noite e de dia (...)” (v.5); na
expressão: “e gritando com forte voz (...) ” (v.7) - o que é óbvio,
pois ninguém grita em voz baixa; na resposta dada a Jesus
pelo(s) demônio(s): “(...) Legião é o meu nome, porque somos
muitos” (v.9) - o nome “legião” por si só já indica um grande
contingente, sendo desnecessária a explicação “porque somos

289 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza


Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.588.
290
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 164.
291 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza
Cristina, (eds.). Op.Cit., p.876.
292
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etitnológico Nova fronteira da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997, p.614.
201
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I

muitos”; na súplica dos demônios (a repetição pode ser melhor


percebida em grego): IIé|ii|/ov f]p.õtç elç touç x°íp°uÇ. 'iva eiç
autouç eLoéÀÔGjgfv. (v.12). Aqui, a preposição eiç aparece duas
vezes ligada ao acusativo, sendo que o sentido do texto é
‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos, a fim de que neles
(dentro) entremos”. Neste caso, portanto, a preposição + o
acusativo têm o sentido fundamental de “dentro, em”.™ Logo,
Marcos é redundante ao descrever o pedido dos demônios de
que lhes seja permitido entrar nos porcos. A primeira parte da
frase: ‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos” já seria suficiente
para tal compreensão. Por fim, notamos a oração: ”(...) e
precipitou-se a manada do despenhadeiro para o mar, cerca de
dois mil, e se afogaram no mar” (v. 13), a qual é extremamente
redundante, pois diz primeiramente que a manada de porcos caiu
“no mar” e, em seguida, diz que se afogaram “no mar”. O final
deste verso, cv ríj OaÀáooq (no mar), é totalmente desnecessário
à compreensão do texto, porque se os porcos haviam se
precipitado no mar e estavam se afogando, tal fato só poderia
ocorrer “no mar”! Em suma, podemos dizer que tais sucessivos
pleonasmos possuem uma finalidade meramente enfática, pois
não acrescentam nada de novo ao texto, mas pretendem chamar
a atenção do leitor.293
294

f) Ironia

Sob o ponto de vista literário, podemos definir ironia


como “uma declaração humorística ou sarcástica, que tenciona
expressar a oposição ao seu sentido literal”.295* É curioso
observarmos o confronto existente entre Jesus e o demônio, no

293 RUSCONI, Carlo. DGNT, p. 150.


294
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 158.
295
DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.104.
202
SA + ANÁS, D£fTl®NI®S Ê LEGIé

qual há uma tentativa de esconjurar Jesus (v.7). Tal tentativa é


absolutamente irônica, pois como se pode esconjurar “por Deus”
o próprio Filho de Deus?296 Outra interessante ironia pode ser
constatada no texto: “os espíritos impuros não querem sair,
enquanto os habitantes pedem que ‘Jesus saia’”. Entretanto,
creio que existem outros dois aspectos irônicos no texto, os
quais vejo como principais em nossa perícope. O primeiro
aspecto diz respeito à comparação entre a força dos gerasenos e
a de Jesus. Enquanto que os primeiros não conseguem prender o
endemoninhado com suas correntes e algemas (vv.3,4), o último
o domina de forma poderosa, sem que necessite de nenhum
recurso humano (vv.6-13ss). O segundo aspecto se refere ao
nome do(s) demônio(s) que ocupa(m) o homem: “Legião”.
Além de ser uma ironia desmedida, é também o cúmulo da
audácia relacionar os demônios à legião romana! Marcos
escreve sua narrativa com uma pena que fora embebida no
tinteiro do sarcasmo, literariamente falando. No entanto, tais
traços estilísticos acentuadamente irônicos têm o propósito de
demonstrar a autoridade incomparável de Jesus sobre os
demônios.*298

/CIA r
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.223. Cf.
também: GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I.
[Traducción de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones
Sígueme, 2005, p.238.
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Op. Cit., p.225. Da mesma opinião é também: MAGGI, Alberto. Jesús y
Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de María
del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial
Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.149.
298
Para uma abordagem mais detalhada sobre os traços de “ironia” dentro
dos milagres narrados por Marcos, veja: ELLENBURG, Dale. A Review of
Selected Narrative-Critical Conventions in Mark's Use of Miracle Material.
JETS. Vol. 38, n° 2. San Diego, Bethel Theological Seminary West, 1995,
pp. 171-180.

203
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

g) Metáfora

Dá-se o nome de metáfora a uma “figura de linguagem


na qual um aspecto de uma coisa é mostrado por comparações
implícitas com outra coisa ou simplesmente por identificá-la
com algo a que está sendo comparada”.299 Em nosso caso, o
aspecto particular da impureza é identificado com vários outros
elementos, os quais contribuem para armar um cenário
indelevelmente marcado pela impureza, a qual é vividamente
retratada pelo autor. A esse respeito, julgo serem oportunas as
considerações de Marcus J. Borg:

O aspecto central desta história cria uma narrativa


metafórica vigorosa. Seus detalhes criam um retrato vivido de
impureza. O homem possuído vive no outro lado do mar da
Galiléia entre os gentios, que são impuros. Ele vive entre os
sepulcros, que são impuros, imundos. Os porcos - animais
impuros - pastam nas proximidades. Os demônios que o
possuem são “Legião”, um termo que aponta para Roma (c
conscqüentcmcnte gentia) possuidora da terra. A impureza era
vista como algo contagioso. Mas, nesta história, Jesus não se
torna impuro pelo contágio da impureza; ou melhor, o
contrário acontece. Os espíritos impuros são exorcizados, os
animais impuros são destruídos e a história termina com o
homem vestido, em seu juízo perfeito c restaurado à
comunidade.300

Esta riquíssima metáfora marcana acerca da impureza


parece ter o objetivo de destacar o binômio pureza/impureza,
realçando o valor desta primeira sobre a última.

299 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.l 15.


300 BORG, Marcus J. Jesus: Uncovering the Life, Teachings, and Relevance
of a Religious Revolutionary. New York, HarperCollins Publishers, 2006,
p.95.
204
SA+ANÁS, DE1T1©NI©S £ LEGIé

h) Tautologia

Tautologia é o nome dado ao “vício ou figura retórica


que consiste em repetir a mesma ideia utilizando termos
diferentes”.301 Tal recurso estilístico é recorrente em nossa
perícope. Ele pode ser visto, por exemplo, nas frases: “e
continuamente, de noite e de dia f..J”(v.5), “E chegam para
Jesus e vêem o endemoninhado (isto é, “o que fora
endemoninhado”) (...) o que havia tido a legião ” (v. 15) e ainda:
“(...) Vai para a tua casa, junto aos teus” (v. 19). Estas situações
em que uma mesma ideia é repetida têm o propósito de enfatizar
e realçar tais pensamentos diante do leitor, prendendo a sua
atenção em assuntos que têm uma importância especial para o
autor.

i) Latinismo

Entende-se por latinismo, “uma palavra, idioma ou


construção gramatical derivada do latim”.302 Em nossa perícope,
encontramos os termos Afyunv (substantivo no nominativo, v.9)
e ÀeyiÓDua (substantivo que ocorre no acusativo, v.15). Tais
vocábulos são derivados do latim legio e descreviam a principal
unidade do exército romano.303 Logo mais adiante falaremos
mais detalhadamente sobre este vocábulo, analisando as
implicações históricas, sociais e políticas de tal termo,
principalmente em relação com a perícope a que nos

LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza


Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.1074.
DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.106.
ini
BUTTRICK, George Arthur, (ed.). The Interpreter's Dictionary of the
Bible. An Illustrated Encyclopedia. Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981,
p.110.
205
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

propusemos a analisar. Contudo, devemos mencionar ainda que


vários outros nomes de origem latina, tanto da esfera
administrativa, quanto da militar ou oficial, são utilizados por
Marcos no decorrer de seu Evangelho. Eis alguns exemplos:
Srivocpíctív (latim: denarius = denários, Mc 6.37; 14.5),
KEVTupícov (latim: centurio = centurião, chefe de uma centúria,
isto é, cem homens, Mc 15.39,44,45), KoSpdcvxriç (latim:
quadrantum = (um) quadrante, moeda romana de pouquíssimo
valor, Mc 12.42), ^ecrtxôv (O termo quer dizer: “de jarros”, Mc
7.4) e onEKOiAáTcop (latim: speculator = (um) executor, soldado
romano encarregado da guarda dos prisioneiros, Mc 6.27). Além
desses termos, o vocábulo ([jpaYEXÀóoj (latim: fragellum),
“açoitar”, também é um nome de origem latina usado por
Marcos (cf. Mc 15.15).304 Finalmente, além destes vocábulos,
Benício também menciona as seguintes frases de procedência
latina:

fea%áxooç £%ei, in extremis esse,


Está nas últimas (cf. Mc 5.23);
paitíopaoiv ahxóv feÀccpov, verberibus eum acceperunt,
Receberam-no a tapas (cf. Mc 14.65);
xò ikocvòv ttoieív, satisfacere,
Satisfazer (cf. Mc 15.15);
xiôévxEÇ xà yóvocxa, genua ponere,
Colocando os joelhos (cf. Mc 15.19).305

Segundo Benício, “os latinismos não somente evidenciam


que o Segundo Evangelho foi redigido num ambiente romano

304
Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 187. Cf. também a nota de rodapé em: CULLMAN,
Oscar. A Formação do Novo Testamento. [Tradução de Bertoldo Weber], São
Leopoldo, Sinodal, 2001, p.25.
305
Cf. BENÍCIO, Paulo José, in: Op.Cíú, p.188.
206
SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé

(talvez na Itália) - ou pelo menos que o seu autor estava


familiarizado com o mundo latino - como também indicam
diversos pontos de contato entre as línguas grega e latina”. 306

j) Semitismo

Podemos dar o nome de semitismo a “qualquer


característica das línguas semitas (especialmente o hebraico e o
aramaico) que ressoam no estilo grego do NT e da Septuaginta.
(...) Os semitismos podem ser explicados pela integração de
culturas, incluindo-se o bilingüismo, bem como a influência que
a Septuaginta teve durante o primeiro século. Semitismo é o
termo descritivo mais geral para hebraísmos e aramaísmos, mais
especifícamente”.*307 Em nossa passagem, alguns vocábulos de
origem semita podem ser observados, como, por exemplo: o já
citado Kai (<?), o qual é derivado do hebraico 1 (vav); o termo
KaxoÍKTioii' {morada, habitação, v.3) que é fartamente
encontrado nas páginas do AT na sua forma hebraica HE/lQ;308
a também já mencionada expressão toô 0c oü toô ôt|ríoTOu {do
Deus Altíssimo, v.7), que reproduz o hebraico N e
ainda o substantivo masculino KÚpióç {Senhor, v. 19), que é
claramente derivado dos termos hebraicos: HiiT t : ou t A
esse respeito, cito novamente Paulo Benício:

Com a possível exceção de Lucas, é bem provável que


todos os autores dos livros que integram o cânon

Idem, Ibidem, p. 188. O autor cita: BLASS, F., DEBRUNNER, A. &


REHKOPF, F. Grammatik des Neutestamentlichen Griechisch. 17. Aufl.
Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990, pp.6-9.
307 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p. 155.
308
SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library
Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.92.
207
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

neotestamentário fossem de procedência judaica; logo,


pessoas que, embora falando e escrevendo o grego, possuiríam
como língua de berço o aramaico, idioma que lhes marcaria o
modo natural de expressão, influindo no seu vocabulário e nas
suas categorias básicas do pensar, moldando-lhes também, em
vasta medida, o estilo. Daí, pode-se afirmar, com propriedade,
que o Novo Testamento é um livro cuja alma c hebraica, ao
mesmo tempo em que o corpo é hclênico, ou melhor, um livro
em que o corpo semita se exibe cm roupagem grega.309

Tendo em mente tal fato, podemos dizer então que é


absolutamente natural encontrar tais semitismos em nosso texto.

k) Parrésia

Finalmente, o último recurso estilístico marcano que


gostaríamos de destacar na perícope que estamos estudando é a
parrésia. Trata-se da “recusa intencional (e, talvez, tramada) a
moderar palavras que correm o risco de causar uma reação
negativa de uma audiência, mas que, ao contrário, traz mais
simpatia para o falante e/ou escritor”.310*Em nossa passagem,
um fato em específico salta diante dos nossos olhos: os
demônios que atormentam o geraseno são chamados de
“legião”. E curioso notar que Marcos não tem a mínima intenção
de omitir tal afirmação (e por sinal, ousada) em seu texto. Muito
pelo contrário, ele até a menciona duas vezes (vv.9,15). O autor
não faz o mínimo esforço para esconder as conotações políticas
que jazem por trás de suas palavras. Dito de outra forma, em Mc
5.1-20 “encontramos imagens que visam recordar a ocupação
O 1 1

militar romana na Palestina”. Mais adiante, veremos este

Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão, pp. 188,189.
310 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.131.
31 1
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.238.
208
SA + ANÁS, DE1T1©NI®S £ LEGIé

aspecto sociopolítico existente em tomo do nome “legião” com


maiores detalhes.

Em suma, através da análise estilística da perícope de Mc


5.1-20, pudemos constatar que o autor é bem versátil em sua
narrativa. Marcos emprega vários recursos literários em seu
texto, os quais se misturam de forma admirável, a fim de dar à
sua história maior colorido e maior beleza.

D. Análise de Conteúdo

A análise de conteúdo é uma parte do processo exegético


que visa esclarecer o significado do texto em seu todo e em seus
Dito de outra forma, tal análise terá como principal
detalhes.312313
objetivo fazer uma espécie de comentário versículo por
versículo de Mc 5.1-20, linha de trabalho esta que, segundo
penso, nos proporcionará uma compreensão muito mais
profunda do texto e de seu significado. Vejamos, então, que
surpresas fascinantes o estudo desta passagem nos reserva por
meio desse tipo de análise.

“E vieram para o outro lado do mar, para a região dos


Gerasenos. ” (v.l).

Os fatos descritos em toda esta perícope (5.1-20) são


situados por Johnson e Dewelt no outono de 28 AD. 313 Trata-se
de uma passagem que tem a sua autoria tradicionalmente

312
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.337.
313 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
Missouri, College Press, 1965, p. 139. A mesma opinião é encontrada também
em: GRAY, James Comper & ADAMS, George M. Bible Commentary:
Matthew - Acts. Vol.4, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, S.d.,
p.208.
209
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1

atribuída a Pedro.314 Quanto ao v.l, em específico, podemos


dizer que ele é claramente redacional, pois serve para ligar a
perícope do Endemoninhado Geraseno (5.1-20) com a perícope
anterior da Tempestade no Mar da Galiléia (4.35-41). É curioso
notar que Marcos descreve Jesus atravessando esse mar várias
vezes (p.ex., 4.35; 5.1,21; 6.45; 8.13). Tal ênfase descritiva é um
Leitmotiv (isto é, uma ação ou esquema que se repete em
diferentes textos de um mesmo autor ou livro, para os quais
funciona como um fio condutor) que acompanha o ministério de
Jesus na Galiléia.315 Como observou Guelich, ‘“o outro lado’
amarra esta história à anterior por indicar a chegada no destino
dado em 4.35 para a viagem do barco”.316317 Aliás, gastava-se mais
ou menos duas horas para que se pudesse atravessar esse
‘mar’. E aqui, o vocábulo ‘mar’ é colocado propositalmente
entre aspas, pois, ao que tudo demonstra, as indicações
geográficas fornecidas por Marcos não parecem ser

Neste caso, Pedro teria sido a fonte principal de Marcos. Cf. COOK,
Guillermo y FOULKES, Ricardo. Marcos. [Comentário Biblico Hispano-
Americano], Miami, Editorial Caribe con La Cooperación de La Fraternidad
Teológica Latino-Americana, 1990, p. 143. Cf. também: CRANFIELD, C. E.
B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge, Cambridge University
Press, 1983, p. 175.
315
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 179. Gnilka comenta que “o descer Jesus do barco
se corresponde ao subir no verso 18 e mostra de novo a preocupação de
Marcos: criar conexões tanto com o anterior como com o que virá depois”.
(Cf. GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I. [Traducción
de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005,
p.233).
316 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], Dallas, Word
Books, Publisher, 1989, p.275. Bornkamm, estranhamente cita Mc 5.1 como
referência ao estilo de ensino de Jesus, o qual costumava ensinar sentado.
(Cf. BORNKAMM, Günther. Jesus de Nazaré. [Tradução de José dos Santos
Gonçalves e Nélio Schneider]. São Paulo, Teológica, 2005, p.76).
317 LANE, William L. The Gospel According to Mark Vol.2. [NICNT].
Grand Rapids I Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company,
1974, p. 181. O grifo é meu.
210
sa+anás, DEmêNies ê legiã©

topográficas, mas acima de tudo, teológicas, uma vez que o mar


não é um mar, mas sim o lago de Tiberíades e, além disso, a
região dos gerasenos também possui problemas de ordem
geográfica que prejudicam a sua atestação.318 Contudo, por se
tratar de uma terra gentílica, era um local impuro conforme a
tradição judaica.319*E já que entramos nesse assunto, a maior
dificuldade de nossa passagem está justamente em identificar a
localidade exata onde os fatos descritos no texto teriam
ocorrido. Os sinóticos nos oferecem três opções: Gadara
(Mateus), Gerasa (Marcos) e Gerasa™ (Lucas). No que diz
respeito ao aspecto geográfico, Gadara estava situada a cerca de
10 km da margem do lago e, na época, era capital da Peréia, que
dava o nome de “terra dos gadarenos” ao local (Mt 8.28).321
Josefo chama este país de “a Gadarite”.322 Contudo, Johnson e
Dewelt afirmam que Gadara está a três horas de jornada ao sul
do lago, não sendo, portanto, provável que o milagre tenha
ocorrido ali.323 Logo, sob o aspecto topográfico, Gadara não

318
MAGGI, Alberto. Jesúsy Belcehú: Satán y demonios en el Evangelio de
Marcos. [Traducción de Maria del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso
Díez Aragón], Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.142.
319 Cf. DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with
introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford
University Press, 1988, p.290.
Embora Lucas também mencione “Gerasa” em seu texto sinotico, a
alternativa “Gergesa” aparece proeminentemente em: N L 0 E /' 33 157
205 579 700,xt 1241 1342 syrpal copbo arm eth geo slavmss Diatessaronam
Origen Titus-Bostra Epiphanius Cyrillem Hesychius, motivo pelo qual a
citamos aqui. (Cf. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS,
Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. The Greek New
Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005, p.231).
321
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs].
Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178.
32?
LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Matthew's Gospel.
Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1961, p.350.
323 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [Bible Study
Textbook], Missouri, College Press, 1965, p.140. Entretanto, de acordo com
211
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I

parece ser o local que melhor se encaixe em nosso relato.


Quanto a Gerasa, deve ser dito que esta se situava a
aproximadamente 55 km ou a uns dois dias de jornada do
Tendo como base essa distância, Fitzmeyer ironiza,
mar.324325
dizendo que “o estouro dos porcos de Gerasa até o Lago
Genesaré odeve
oc ter feito deles o rebanho mais energético da
história!”. Certamente, os porcos teriam morrido antes pela
exaustão, do que por afogamento, se tivessem percorrido uma
distância “maratônica” destas! E este mesmo autor ainda
identifica Gerasa com a moderna Jerash, na Transjordânia, uma
cidade da Decápolis nas montanhas de Gileade próxima à
margem do deserto em direção ao leste.326327 Como pode ser
notado, Gerasa também não nos oferece a melhor localização
para os eventos narrados em nosso texto. Porém, como observa
Joel Marcus de forma convincente, embora Gerasa seja uma
opção geograficamente difícil, todavia, ela é apropriada
simbolicamente, uma vez que a raiz hebraica grs significa
“expulsar”, sendo este um termo comum para se referir ao
exorcismo. Finalmente, nos deparamos com a terceira

Josefo, a região de Gadara chegava até o lago, sendo que algumas moedas da
cidade que foram encontradas retratavam barcos. (Cf. POHL, Adolf. Op.Cit.,
p.178).
324 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [Word Biblical
Commentary]. Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.275. Cf. também:
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol. I. [Traducción de
Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.234;
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs].
Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178.
325 FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke I-IX. Vol.28.
[The Anchor Bible]. New York, Doubleday, 1981, p.736.
326 Idem, Ibidem.
327
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [The Anchor Bible], New York, Doubleday, 1999,
p.342. Redding cita T. R. Malty, quem “sugere que Pedro, falando aramaico
com sotaque galileu, falou sobre Ger’sa, e que Marcos, soletrando em letras
gregas, chamou o povo de Gerasenos, e foi imaginado pelos críticos ter
212
SA+ANÁS, D£IT1©NI©S E LEGIé

alternativa, Gergesa. Ao que parece, a variante “Gergesenos”, o


mais inferior dos resgistros atestados, é também a mais plausível
geograficamente.328 Pohl comenta que “o pequeno povoado de
Gergesa (...) cujas ruínas até hoje podem ser visitadas à margem
do lago, é considerado o local do evento desde o século III. Dois
quilômetros ao sul há uma ladeira íngreme de 44 m de altura,
distante 30 a 40 m do lago.329 Entretanto, este mesmo autor
ainda cita Eusébio, segundo quem Gergesa não passava de uma
aldeia.330 Sendo assim, acredito que a melhor forma de resolver
esse dilema seja através de um binômio, o binômio:
Texto/Topografia (TT). Do ponto de vista textual, a variante
Gerasenos é vista pelos estudiosos da Crítica Textual como a
leitura mais correta.331 Porém, do ponto de vista topográfico, a
leitura alternativa Gergesenos é a que melhor se encaixa em
nosso relato, pois, como vimos, Gergesa ficava bem próxima do
Mar da Galiléia. De uma distância como esta, os porcos
certamente poderíam mergulhar no lago mais tranqüilamente!
Seja como for, até que novos fatos venham à tona ou até que
novas descobertas arqueológicas sejam feitas, a questão do
“binômio TT” ainda permanecerá em aberto. Mais adiante,
quando falarmos sobre a crítica textual de nossa perícope,
mencionarei estas variantes textuais com o acréscimo de outros
detalhes.

“E saindo ele do barco, logo encontrou-se com ele dos


sepulcros um homem com espírito imundo ” (v.2)

cometido um erro, quando ele estava apenas comunicando com sua habitual
precisão”. (Cf. REDDING, David A. 77n? Miracles of Christ. Westwood,
Fleming H. Revell Company, 1964, p. 185).
328 MARCUS, Joel. Op.Cit., p.342.
329 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 178.
330 Idem, Ibidem.
331
METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New
Testament. London, United Bible Societies, 1975, p.84.
213
CARL®S AUGUS+® VAILA + +I

É interessante notar, já de início neste verso, o contraste


entre o verbo rjÀQov', “vieram”, que aparece na terceira pessoa do
plural (v.l) e a expressão è^ÀQóvroç avroô, “saindo ele”, que é
encontrada aqui no singular (v.2). Enquanto que o primeiro
sugere a presença dos discípulos (cf. 4.35-41), a segunda
focaliza a sua atenção somente em Jesus. Pohl explica essa
mudança brusca do plural (Jesus e os discípulos) para o singular
(somente Jesus) de uma forma teologicamente muito correta:
“(...) para os olhos do narrador, desaparecem os que
acompanham Jesus. Seu relato é cristocêntrico”.332333O
desaparecimento dos discípulos é, na verdade, um exemplo do
recurso narrativo conhecido como “economia do relato”. Trata-
se de um artifício literário que faz permanecer em cena somente
os elementos essenciais, ou seja, tudo o que é supérfluo e serve
tão somente para contextualizar ou dar verosimilhança ao
OO1

episódio desaparece sem maiores comentários. Outro fato que


nos salta aos olhos neste verso é a menção feita a apenas “um
homem” (àvOpcoiroç), o qual encontra-se com Jesus.334 Enquanto
Lucas segue Marcos de perto e também cita somente um
endemoninhado em seu relato (Lc 8.27), Mateus, porém, faz
referência a ôúo ôatpoviCópevoi, “dois endemoninhados” (Mt
8.28). Para Lenski, não há nenhuma contradição nisso, pois um
dos dois era evidentemente o líder e o porta-voz, enquanto que o
outro era apenas o seu companheiro.335 Outra coisa que nos

POHL, Adolf. Op.Cit., pp.l80,181.


333
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 119.
334
Segundo A. N. Wilson: “O endemoninhado da caverna (é como ele
chama ao geraseno) (...) parece muito real. Mais real, curiosamente, do que
Jesus”. (Cf. WILSON, A. N. Jesus, uma biografia. [Tradução de Ruy
Jungmann], Rio de Janeiro, Ediouro, 1993, p. 182).
335
LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Mark’s Gospel.
Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1964, p.206.
214
SA+ANÁS, DEffl©N!©S E LEGIé

chama a atenção é o fato do homem sair 6K tôv pi/rmeítov, “dos


sepulcros”, em direção a Jesus. Já mencionamos anteriormente
em nossa análise estilística que a referência aos sepulcros é
recorrente na passagem (cf. vv. 2,3,5). Segundo a mishná, entrar
em contato com uma região onde houvesse sepulturas tomaria a
pessoa impura (Mishná, tratado Oholoth, 2.3). E, além disso,
a mishná também ensina que “se um homem passar por um país
gentio, em região montanhosa ou rochosa, ele se toma impuro”
(Mishná, tratado Oholoth, 18.6).336337 Percebe-se, portanto, um
cenário de grande impureza em nosso texto, pois além do
endemoninhado estar numa terra gentia (e Jesus também
estava!), ele também vinha de um local que era cerimonialmente
impuro: dos sepulcros. Adin Steinsaltz, em seu comentário feito
ao Talmude, nos ajuda a compreender porque os sepulcros são
considerados elementos impuros: “(...) pode-se dizer que o que
está vivo e são não tem impureza e que a impureza aumenta
quando algo se aproxima da morte. Assim, de acordo com a
terminologia talmúdica, a coisa mais impura, ‘a suprema causa
de impureza’ (avi avot ha-tumà), é um cadáver (...). O objeto
impuro não é apenas impuro em si mesmo, mas também
transmite sua poluição ao que entra em contato com ele. (...) A
poluição usualmente passa pelo toque do objeto impuro, mas, às
vezes, até por ficar sob o mesmo teto ou por transportar o objeto
poluído sem tocá-lo diretamente”.338 E Joel Marcus, citando
Bratcher, declara que “as pessoas eram muitas vezes enterradas
em cavernas abertas dentro das rochas, grandes o suficiente para
uma pessoa entrar em pé, e normalmente altas o suficiente
dentro para permitir que uma pessoa permanecesse na vertical.

336 DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with
introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford
University Press, 1988, p.652.
337 Idem, Ibidem, p.675.
338 STEINSALTZ, Adin. O Talmude Essencial. [Tradução de Elias
Davidovich]. Rio de Janeiro, A. Koogan Editor, 1989, pp.269,270.
215
CARLOS AUGUS+© VAILA + + I

Um lugar assim poder ia prover abrigo para um homem que não


tivesse outro lugar para morar. Os túmulos, portanto, eram
lugares ritualmente impuros por causa da presença de restos
mortais. (...) Esta impureza fazia do cemitério um lugar ideal
para a morada dos ‘espíritos impuros’”.339 Por último, o verso
ainda diz que o homem estava èv ttveúpaTt aKaOapm), “em
(com) espírito imundo (impuro)”. Em outras palavras, “a terra
impura é habitação adequada ao espírito impuro”.340 Nesta
situação de impureza tríplice, representada por: terra pagã,
túmulos e possessão demoníaca, o resultado seria uma separação
total de Deus, sem esperança.341

“O qual tinha a morada nos sepulcros, e nem com


corrente ninguém podia prendê-lo ” (v.3)

Neste verso, outro dado é fornecido a respeito da ligação


do homem com os sepulcros: eles eram a sua KaToitcqaiv’,
“morada”. Pohl descreve esta situação nestes termos: “Uma
porção de homens se arremessava contra ele, para domá-lo

MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction and


Commentary. Vol.27. [AB]. New York, Doubleday, 1999, p.342. Segundo
Deissmann, “que os ôaipóvio. permanecem perto do túmulo é uma idéia do
Judaísmo pós-bíblico: estes demônios dos túmulos auxiliam os homens nas
práticas mágicas”. (Cf. DEISSMANN, G. Adolf. Bible Studies: contributions
chiefly from papyri and inscriptions to the history of the language, the
literature, and the religion of hellenistic Judaism and primitive Christianity.
[Translated from german by Alexander Grieve]. Peabody, Hendrickson
Publishers, 1988, p.281).
340
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.222. Lockyer
comenta que “sua impureza pertencente [do endemoninhado] por meio da
constante submissão ao maligno se tomava grandemente acentuada pela
presença dos espíritos impuros”. (Cf. LOCKYER, Herbert. All the Miracles
of the Bible. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1961, p. 188).
341
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 181.
216
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî

como um animal selvagem. (...) Por último, o expulsaram, de


modo que só lhe restaram as cavernas dos túmulos. Os mortos
não lhe faziam nenhum mal, mas também não o protegiam de si
mesmo”.342 William Barclay, citando W.M. Thomson em seu
livro The Land and the Book, nos fornece um interessante
comentário sobre o perfil de alguns loucos que existiam na
região do Oriente Médio, no século XIX, os quais nos lembram
o nosso relato:

Há alguns casos muito semelhantes nos dias de hoje -


maníacos furiosos e perigosos, que perambulam sobre as
montanhas e dormem em cavernas e túmulos. Em seus piores
paroxismos eles são bastante indomáveis e prodigiosamente
fortes (...). E este é um dos traços mais comuns desta loucura,
que as vítimas se recusam a usar roupas. Eu tenho visto, muitas
vezes, eles totalmente nus nas ruas lotadas de Beirute c Sidon.
Há também casos em que eles correm freneticamente por todo o
país e assustam toda a vizinhança.343

Além desse item, dois outros elementos chamam a nossa


atenção neste verso. Primeiramente, a tentativa de prender o
endemoninhado com uma corrente. O termo utilizado aqui para
“corrente” é o vocábulo áÀúoei, que faz referência a “uma

342 Idem, Ibidem, p. 181.


343 BARCLAY, William. The Gospel of Matthew. Vol.l. Philadelphia, The
Westminster Press, 1958, p.328. Segundo Renan, “em nossos dias, na Síria,
considera-se loucos ou possuídos pelo demônio (essas duas idéias são a
mesma coisa, medjoun) pessoas que apresentam apenas alguma esquisitice”.
O autor ainda prossegue, dizendo que a frase Daemonium habes, “tens
demônio” - que aparece em textos tais como: Mt 11.18; Lc 7.33; Jo 7.20;
8.48, 52; 10.20 - deve ser traduzida por “você é louco”, sendo dito em árabe:
Medjnoun enté. Por fim, Renan ainda argumenta que o verbo daimonan
também possui, durante toda a Antigüidade clássica, o sentido de “estar
louco”. (Cf. RENAN, Ernest. Vida de Jesus. [Tradução de Eliana Maria de A.
Martins]. São Paulo, Martin Claret, 1992, p.265, incluindo a nota 28).
217
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

cadeia, um laço, pelo qual o corpo, ou alguma parte dele (as


mãos, os pés) é presa”.3 4 Este homem, assim como os escravos
daquela época, andava amarrado com grilhões e correntes.344 345
Há, sem dúvida alguma, uma forte conotação política aqui,
através da qual nós podemos ver o poder dominante, Roma,
tratando as classes dominadas como escravos. Porém, trataremos
deste assunto com maiores pormenores mais adiante.
Finalmente, o verso nos diz que “ninguém podia prendê-lo”.
Aqui, a palavra “prendê-lo” é derivada do verbo 5éco, “amarrar,
sujeitar com correntes”.346 Tal verbo faz parte do vocabulário
específico dos exorcismos.347 De acordo com Myers, “este
exorcismo constitui, assim, outro episódio-chave na luta de
Jesus, o mais forte, para ‘amarrar o homem forte’. No exorcismo
da sinagoga [Mc 1.21-28], ele se identificava com a classe
escriba, agora ele se identifica com os exércitos de César”.348
Assim, o verso termina mostrando a impotência dos homens e
de seus mecanismos humanos em sua tentativa de controlar o
endemoninhado. Para Kertelge, esta descrição do

144
344 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.29.
345
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho
de Marcos. [Tradução de Afonso Maria Ligório Soares]. Aparecida, Editora
Santuário, 2002, p.77.
346
BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). Diccionario Exegético
del Nuevo Testamento. Vol.l. (OC-K). [Traducción de Constantino Ruiz-
Garrido]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.883. Aqui, o verbo Sèco
também pode ser traduzido por “domar”, sendo um termo usado para se
referir aos animais (cf. Tg 3.7). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú:
Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de Maria dei
Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial
Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p. 144).
347
RABUSKE, Irineu J. Jesus Exorcista: estudo exegético e hermenêutico
de Mc 3,20-30. São Paulo, Edições Paulinas, 2001, p.263.
34R
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira], São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.240.
218
sa+anás, DemèNies e legiã®

endemoninhado refere-se às características de um louco


furioso.349

"por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas
e correntes, e tinham sido rompidas por ele as correntes, e as
algemas tinham sido esmagadas, e ninguém podia subjugá-lo ”
(v-4)

Este verso, que mais parece uma repetição amplificada


do anterior, nos fornece algumas informações interessantes.
Primeiramente, somos informados de que o endemoninhado
havia sido preso troÀÀáKiç, “muitas vezes”. Isto significa que o
seu estado de endemoninhamento já era algo rotineiro. Além
disso, ele fora preso “com algemas e correntes”. Aqui, a palavra
“algemas” é a tradução de iréôatç, que se refere a “grilhões para
os pés, cadeias”.350* Já o outro termo, àÀóoeoLv, “correntes”, é
entendido por Wuest como um instrumento que prende as
“mãos”, uma vez que é dito que “o endemoninhado
oct estava preso
tanto pelas suas mãos como pelos seus pés”. Robertson ainda
sugere que as algemas (grilhões) poderíam ter sido cordas, e não

349
O artigo de Karl Kertelge, intitulado: Diabos e demônios, exorcismos em
perspectiva bíblica, foi reunido com outros artigos de outros autores que
também tratam da temática demonológica, e foi transformado em livro. (Cf.
KASPER, Walter, LEHMANN, Karl, KERTELGE, Karl & MISCHO,
Johannes. Diabo - Demônios - Possessão. [Tradução de Silvino Amhold],
São Paulo, Edições Loyola, 1992, pp.33,34).
350 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
3S 1
WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 101.
219
CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + +I

exatamente cadeias. Seja como for, este cenário que descreve


sucessivas tentativas frustradas de imobilização do
endemoninhado, serve para chamar a atenção do leitor para a
tamanha periculosidade do endemoninhado, bem como, prepara
os leitores para a descrição subseqüente da libertação
sobrenatural do homem, a qual se dará por intermédio do poder
de Jesus. Uma história bem contada tem que possuir
dramatic idade em seu enredo, a fim de que os ouvintes/leitores
estejam presos à trama que é narrada. Nesse quesito, Marcos
sabe realmente como prender a atenção de seus leitores.
Finalmente, chama-nos também a atenção o uso repetitivo do
infinitivo no verso 4. As expressões: ôeôéoôai (“ter sido
preso”), ôieonáoQai (“terem sido rompidas”), ouvTcrpLcliQai
(“terem sido esmagadas”) e ôapáoai (“subjugar”) aparecem
todas no infinitivo. Dessas, as primeiras três aparecem no
infinitivo perfeito na voz passiva, o perfectum (acabado), que
exprime o resultado da ação; e a última aparece no infinitivo
aoristo (pontual), que traz a idéia absoluta, pura do ato verbal.*353
Quanto à questão do uso da voz passiva, Joel Marcus diz o
seguinte: “talvez Marcos escolha o passivo porque o homem não
está no controle de sua vida, mas é a vítima de forças externas.
Nós podemos quase que falar de um ‘endemoninhado passivo’
aqui”.354 De qualquer forma, a passividade do homem enquanto
possuído, demonstra claramente que ele tem a sua vontade
escravizada fortemente pelos demônios.355

ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew


and the Gospel According to Mark. Vol. I. [WPNT], Nashville, Broadman
Press, 1930, p.295.
353 Cf. MURACHCO, Henrique. Língua Grega: visão semântica, lógica,
orgânica e funcional. Vol.l. São Paulo, Discurso Editorial / Editora Vozes,
2007, p.301.
354
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary, p.343.
355
Aliás, o nome dos demônios que escravizam esse homem por meio de sua
possessão, legião, é bem sugestivo, pois devemos lembrar que “o proprietário
220
SA+ANÁS, DEHlêNieS E LEGIî

“E continuamente, de noite e de dia, estava nos


sepulcros e nos montes gritando e cortando a si mesmo com
pedras", (v.5).

Aqui, o adjetivo pronominal uavròç, “continuamente”,


descreve a triste rotina em que vivia este miserável homem.
Quanto à frase: vuktòç kocl rip-épocç, “de noite e de dia", ela
significa, segundo Swete, “em intervalos durante a noite e o
dia”, pois, segundo ele, caso fosse sem intervalos,
ininterruptamente, deveria ser empregada aqui a expressão 3ià
kocvtóç (cf. Dt 33.10 [LXX]; Lc 24.53; Hb 9.6).356 Por outro
lado, a indicação temporal “noite e (...) dia" também reflete a
contagem judaica de um pôr-do-sol até o outro pôr-do-sol.357
Além disso, uma nova informação topográfica nos é fornecida
aqui. O texto diz que o endemoninhado estava èv rotç ópeotv,
“nos montes”. Segundo Alberto Maggi, o homem buscava uma
salvação na proteção das divindades que, conforme a cultura da
época, residiam nos montes (Ex 3.12; Dt 12.2; Jr 2.20; 3.6; Ez
6.13).358 Todavia, segundo a concepção dos antigos, os montes

[romano] de um escravo tinha liberdade para chicoteá-lo, prendê-lo ou matá-


lo, com ou sem motivo”. (Cf. MELTZER, Milton. História Ilustrada da
Escravidão. [Tradução de Mauro Silva]. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004,
p.143).
356
SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library
Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.93.
357 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
358
MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebii: Satan y demonios en el Evangelio de
Marcos, p.144. Paliares comenta: “Não se deve esquecer que, na simbologia
bíblica, o fundo do mar, como chama o evangelista ao lago, é o contrário da
montanha”. Porém, ele não explica em que consiste tal diferença. (Cf.
221
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

não representavam um lugar de refugio devido à pressão das


civilizações, antes, eram lugares perigosos por causa da
presença de selvagens e loucos.359 Outro detalhe importante nos
é dado: o homem estava KpáCcov (“gritando”).360 Ao que tudo
indica, esse termo denota um grito desarticulado, um som
agudo.361 Com a possessão, o homem perde a capacidade de
articular as palavras ordenadamente.362 Por último, o verso diz

PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de


Marcos, p.76).
359
MILLER, Dale-MILLER, Patrícia. The Gospel of Mark as Midrash on
earlier Jewish and New Testament Literature. New York, The Edwin Mellen
Press, 1990, p.249. Esta concepção vai de encontro ao exemplo que Hunter
cita em seu comentário sobre Marcos: “(...) a experiência do viajante
Warburton (The Crescent and the Crown, ii,352): Ao descer dos montes do
Líbano eu me achei em um cemitério. O silêncio da noite era agora
interrompido por um feroz grito e por uivos, que eu descobri procederem de
um maníaco que estava nu, o qual estava brigando com algum cachorro
selvagem por um osso”. (Cf. HUNTER, A. M. The Gospel According to
Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.63). Já de acordo com Tenney:
“Muitos povos antigos consideravam as montanhas como lugares sagrados”.
(Cf. TENNEY, Merril C. (ed.). The Zondervan Pictorial Bible Dictionary.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.560).
360 O dramaturgo grego Aristófanes (V-IV século a.C.) usa esse termo para
se referir, por exemplo, ao som emitido pelas rãs. (Cf. VINCENT, Marvin R.
Word Studies in the New Testament. Vol.l. [The Synoptic Gospels, Acts of
the Apostles, Epistles of Peter, James and Jude]. Virginia, Macdonald
Publishing Company, 1886, p. 187).
361 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p.101. Joel Marcus
comenta que “este verbo pode ser usado para uma fala articulada (...), mas
também para sons feitos quando alguém emite um grito alto, mas sem
palavras capazes de serem compreendidas”. (Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8:
A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB],
p.343). De acordo com Swete, “a palavra sugere uma forte emoção, que pode
ser tanto boa quanto má”. (Cf. SWETE, Henry Barclay. Commentary on
Mark. [Kregel Reprint Library Series]. Grand Rapids, Kregel Publications,
1977, p.93).
362
De acordo com Aune: “O fenômeno da voz alta com a qual um oráculo
pode estar se expressando pode ser interpretado pelo narrador e sua audiência
222
SA+ANÁS, D£m®NI®S Ê LEGIî

que o homem estava KaTctKÓiruwv èauròv ÀíQoiç (^cortando a si


mesmo com pedras”}. Lane faz o seguinte comentário a esse
respeito:

Estava esta prática associada com a adoração a


divindades demoníacas? Cortar a carne em uma adoração
frenética é algo muito antigo (cf. 1 Rs 18.28). Em Mc 5.7, Jesus
c chamado por um título bem atestado em contextos sincréticos
gentios c judaicos, apropriado à Decápolis como uma região
helenista e pagã. A sugestão que se encontra à mão é a de que o
endemoninhado estava envolvido em uma forma de adoração
contrária à sua vontade.363

Deve-se dizer ainda que o verbo “cortar”, que aparece


aqui no particípio presente (Ka-raKÓitrcov), isto é, “cortar em
pedaços”, dá a entender que o seu corpo pudesse estar
dilacerado e cicatrizado em todas as partes.364 Aliás, se
tomarmos em conjunto os w.3-5, veremos que eles contêm as
quatro características da insanidade conforme o Talmude: (a)
correr por toda a parte à noite (cf. 5.5); (b) passar a noite em um
cemitério (cf. 5.3); (c) rasgar a única peça de roupa (cf.
ÕLeoiráoôaL - derivado de ôtaoTtáco, “rasgar em partes” - cf.
5.4); e (d) destruir a única coisa que lhe tem sido dada (cf.

como um sinal de possessão. No NT os demônios são descritos como


emitindo gritos altos através de suas vítimas (Mc 1.26; 5.7; Lc 4.33; 8.28; At
8.7; 16.17)”. (Cf. AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the
Ancient Mediterranean World. Grand Rapids, William B. Eerdmans
Publishing Company, 1983, pp.435,436, nota 5). Será que os gritos do
endemoninhado poderíam ser, na verdade, protestos emitidos contra a
ocupação romana? Embora tal hipótese seja tentadora, acho isso pouco
provável.
63 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company,
1974, p. 182.
364 SWETE, Henry Barclay. Op.Cit., p.93.
223
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +!

0WTÉTpL(|)9ca - “terem sido esmagadas” - cf. 5.4).365


Finalmente, muitos têm encontrado alguns pontos de contato
entre partes da perícope que estamos estudando e Is 65.1-7,11.
Sobretudo, os versos 4 e 5.366 Estes versos falam sobre: “morar
entre as sepulturas”, “passar a noite em lugares misteriosos” e
“comer carne de porco” (Is 65.4)367 e, além disso, encontramos
também a frase: “Fica onde estás, não te chegues a mim ” (Is
65.5). Embora tais textos possuam algumas poucas semelhanças
entre si, não creio que Isaías tenha influenciado partes da
narrativa de Mc 5.1-20. Tais passagens são muito heterogêneas
em seus propósitos e em seus respectivos contextos.

“E, vendo a Jesus de longe, correu e prostrou-se


perante ele” (v.6).

Ao compararmos este verso com o v.2, verificamos que


este verso resume e ao mesmo tempo desenvolve aquele. Sobre
a expressão: irpootKÚvT|oev avrcp “prostrou-se perante ele”, tal
ação parece constituir-se em um ato de homenagem, o qual
demonstra que, imediatamente, antes de qualquer diálogo, o

GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.278. Cf.


também: LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2.
[NICNT], p. 182; GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol.
I, p.236.
36 Cf. GNILKA, Joachim. Op.Cit., p.237; MAGGI, Alberto. Jesús y
Belcebú: Satan y demonios en el Evangelio de Marcos, p.144; GUELICH,
Robert A. Op.Cit., p.278; SOARES, Sebastião Armando Gameleira &
JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.223.
Paliares, porém, não vê nenhuma relação entre Is 65 e Mc 5. (Cf.
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de
Marcos, pp.75,76).
367
Em Is 65.4 e em 66.3,17, os porcos são mencionados em um contexto
cúltico possivelmente como alimentos que servem como oferendas. (Cf.
KEEL, Othmar & UEHLINGER, Christoph. Gods, Goddesses, and Images of
God: in ancient Israel. Minneapolis, Fortress Press, 1996, p.384, nota 8).
224
SA+ANÁS, D£m©NI©S £ LEGIî

368
demônio respeitou profundamente o poder de Jesus.
Entretanto, para Paul Minear, quem adorou a Jesus foi o homem
e não o demônio. Segundo Minear, “ele estava incapaz de
escapar da legião, mas ele claramente queria escapar”.368369 Esta
última observação é deveras interessante, pois, a meu ver, retrata
de forma vivida o tamanho sofrimento do homem. Esta
alternância conflituosa entre as ações do demônio e as ações do
homem dramatizam ainda mais a condição do endemoninhado,
preparando o leitor para o poderoso milagre que estará para
acontecer.

“E gritando com forte voz, disse: ‘O que a mim e a ti,


Jesus, filho do Deus Altíssimo? Conjuro a ti por Deus, não me
atormentes’(v.7).

Os gritos que serviram para concluir o verso 5


reaparecem novamente aqui. Desta vez, porém, o grito aparece
com maior intensidade, pois o endemoninhado grita cjxovf)
lieyúÀr], “com grande voz”. Sobre a frase: Tí èpoi Kal ooí, “O
que a mim e a ti?”, a mesma poderia ser expressa assim: “O que
nós temos em comum?” ou “Por que você está mexendo
comigo?”.370 Quanto ao título ulè tov 9eoô tou ín|t Lotou, “Filho
do Deus Altíssimo”, já foi dito anteriormente que se trata de um

368 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM.
B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd.,
1981, p. 148; GREEN, Joel B. & TURNER, Max. Jesus of Nazareth: Lord
and Christ: essays on the historical Jesus and New Testament christology.
Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company I Carlisle, The
Paternoster Press, 1994, p. 51, nota 69.
MINEAR, Paul S. The Gospel According to Mark. [LBC]. Atlanta, John
Knox Press, 1982, p.74.
370 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.183. Expressões semelhantes ocorrem também no Antigo Testamento,
como, por exemplo, em: Js 22.24; Jz 11.12; 2 Sm 16.10; 19.22; 1 Rs 17.18.
225
CARLSS AUGUS + ® VAILA + + I

semitismo, derivado do hebraico 5 “Deus


Altíssimo” ou “Altíssimo”. Tal título tem raízes tanto no
AT, onde ele originalmente refletia um nome divino cananita
(cf. Gn 14.18-20), como também na religião grega, onde esse
termo era uma designação comum para Zeus. Contudo, deve
ser dito aqui que o demônio usa esse título, não para expressar a
sua crença na dignidade de Jesus, mas na esperança de controlá-
372 Já a expressão ópKÍCco oe
lo, conforme a crença da época.371
tòv Qeóv, “conjuro-te por Deus”, merece uma análise um pouco
mais detalhada. O termo ôpKÍCoo, “conjuro”, que aparece em
Xenofonte, Demóstenes e Políbio, significava: “forçar a fazer
um juramento, administrar um juramento a”.373 No período do
NT, o termo mantém basicamente os mesmos significados:
“implorar, colocar sob um juramento, motivar alguém a jurar,

371
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.343. Cf. também: HUNTER, A. M. The
Gospel According to Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.64;
LENSK.I, Richard C.H. The Interpretation of St. Luke's Gospel. Minneapolis,
Augsburg Publishing House, 1961, p.474. Achtemeier faz a seguinte
observação sobre o título Filho de Deus: “Este título aparece (...) no início,
no meio e na conclusão da narrativa de Marcos, e parece ser a estrutura
cristológica em torno da qual o Evangelho pode estar organizado”. (Cf.
ACHTEMEIER, Paul J. Mark. [PC], Philadelphia, Fortress Press, 1980,
p.35). Para obter mais informações sobre o título cristológico “Filho de
Deus”, consulte: ROBINSON, James M. The Gospel of Jesus. New York,
HarperCollins Publishers, 2005, pp.181-184; CULLMAN, Oscar. Cristologia
do Novo Testamento. [Tradução de Daniel Costa e Daniel de Oliveira]. São
Paulo, Editora Liber, 2001, pp.359-379.
172
GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984,
p.657. Para Evans, “este verso está moldado por idéias e linguagem da magia
helenista”. (Cf. EVANS, C. F. Saint Luke. [TPI New Testament
Commentaries]. London, SCM Press / Philadelphia, Trinity Press
International, 1990, p.385).
373 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.453.
226
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

insistir que alguém tome um juramento”.374 No verso que ora


estamos estudando, o demônio tenta se desviar do exorcismo por
meio de uma fórmula invocatória, convocando um poder
superior, “Conjuro-te por Deus” = “Eu invoco Deus contra
você”.375 Guelich enxerga aqui uma dupla ironia: Primeira, a
fórmula de conjuração geralmente aparece nos lábios do
exorcista, e não nos lábios do demônio! Segunda, o demônio
exconjura Jesus por Deus, a quem ele reconhece ser justamente
o Pai de Jesus!376 Adolf Pohl se expressa com indignação sobre
este fato: “Conjurar o Filho de Deus em nome de Deus? Idéia
absurda e inútil!”.377 Há um exemplo extraído da Antigüidade,
no qual não-cristãos usam um amuleto pendurado sobre uma
pessoa que está sofrendo. A colocação de tal amuleto sobre o
doente é acompanhada pela invocação que menciona uma série
de fórmulas mágicas. A primeira delas era: bpKÍÇa) cre Kard tov
0EOV ' Eppaícov ’ Irpov, “Conjuro-te por Jesus, deus dos
hebreus”.378 Este exemplo extraído da literatura não-cristã faz-
nos lembrar do episódio ocorrido em At 19.13, no qual os sete
filhos de um judeu chamado Ceva tentam - sem sucesso -
expulsar demônios com a fórmula: 'OpKÍCco v|iâç tòv ’Irjooôv ôv
IlaíiÀoç KT|púooei, isto é, “Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo
proclama”. Eles acreditavam que havia um poder mágico por
trás do nome de Jesus e que, ao pronunciá-lo, os demônios
seriam expulsos. Porém, tal fato não aconteceu. A frase pq pe
PaoavíoT]ç, “não me atormentes” também deve ser mencionada
aqui. O vocábulo paoavíoco, “tormento”, significava

ROGERS JR„ Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament, p.76.
375 EVANS, C. F. Op.Cit., p.385
376 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.279.
377 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 182.
-770
KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament.
[Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley], Vol. V. [E-IIa]. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p.463.
227
CARLOSAUGUS+® VAILA++I

primeiramente “provar metais”, e depois “testar alguém por


meio da tortura”. Esse tormento pode ser uma referência à
punição escatológica (Cf. Mt 8.29).*380 Finalmente, Lane cita S.
Eitrem (Some Notes on the Demonology in the New Testament),
segundo quem, é inconcebível que o homem pudesse ter se
dirigido até Jesus imediatamente com uma conjuração tão forte
como a encontrada neste verso. Eitrem sugere a seguinte
reconstrução do diálogo:

Demônio: O que cu tenho contigo, Jesus, Filho do Deus


Altíssimo?
Jesus: Qual é o seu nome?
Demônio: Meu nome é Legião.
Jesus: Sai do homem, Legião!
Demônio: Conjuro-tc por Deus, que vocc não nos atormente c
não nos envie para fora da região.381

Seja como for, este verso prepara os leitores de Marcos


para a descrição do ritual de exorcismo que se dá entre os vv.7-
13.

WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand


Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 103. Jamieson, Fausset e
Brown vêem na expressão “não me atormentes” uma grande ironia: “Eis aqui
o atormentador, que prevê, teme e pede isenção de tormentos!”. (Cf.
JAMIESON, R„ FAUSSET, A. R. & BROWN, David. Comentário
Exegetico y Explicativo de La Biblia. Tomo II. (El Nuevo Testamento).
[Traductores: Jaime C. Quarles e Lemuel C. Quarles], El Paso, Casa Bautista
de Publicaciones, 1987, p.98).
380 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984,
p.658.
381 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.183.
228
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

“Pois dizia a ele: ‘Sai, espírito imundo, do homem'


(v-8).

Este verso parece ser um acréscimo posterior. A pergunta


pelo nome (v.9) depois da ordem de saída (v.8) nos transmite
essa impressão.382 Segundo Guelich, a razão para esta adição
origina-se supostamente da ausência do típico comando
explícito para o demônio sair. Assim, Marcos ou algum redator
primitivo simplesmente forneceu um componente perdido para
uma história de exorcismo.383 A frase fÀeyfv yàp arruo, “pois
dizia a ele”, aparece no imperfeito, “ele estava dizendo” ou “ele
estava dizendo repetidamente”, indicando o grau de dificuldade
deste exorcismo.384 Quanto ao imperativo aoristo ”E^À9e,
“sai!”, trata-se de uma ordem típica dada ao demônio nos relatos
de exorcismos, a fim de que abandone o corpo que está
possuindo.385 No Talmude Babilônico, encontramos um relato
de exorcismo, o qual fora praticado por dois renomados rabis
tanaíticos do começo do II século d.C., Simeão ben Yohai e
Eleazar ben Yose, os quais, ao expulsarem um demônio da filha
de um imperador romano, dão a ordem: “Ben Temalion, sail
Ben Temalion, sail” (bMeilah 17b).386 Deve ser observado que

2 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.


Evangelho de Marcos. Vol. 1: 1-8, p.220.
383 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.28O.
384 EVANS, C. F. Saint Luke. [NTC], p.386. Cf. também: WUEST, Kenneth
S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 103; CRANFIELD, C. E. B.
The Gospel According to St. Mark, p. 178.
385
Em Marcos, o verbo E^ép%O|J.ai é encontrado em quatro expulsões de
demônios narradas no Evangelho (1.25s; 5.8,13; 7.29s; 9.25s, 29). (Cf.
BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l, p.1431). Cf.
também: BARRET, C. K. The New Testament Background: selected
documents. New York, Harper & Row, Publishers, 1961, p34.
386 VERMES, Geza. O Autêntico Evangelho de Jesus. [Tradução de Renato
Aguiar]. Rio de Janeiro, Record, 2006, p.24.
229
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + + I

tanto neste relato de exorcismo, quanto nos demais que


aparecem na Bíblia, não há necessidade do exorcismo ser
acompanhado de elementos tais como confissão de pecados,
renúncia e quebra de ídolos por parte do endemoninhado, como
ensinam alguns.387 Não há nenhum registro bíblico sobre Jesus
ou algum de seus discípulos terem usado algum desses
estratagemas em seus exorcismos.

“E perguntava a ele: ‘Qual é o teu nome? ’ E respondeu-


lhe: ‘Legião é o meu nome, porque somos muitos ’ (v.9).

Aqui, encontramos o verbo “perguntar” novamente no


imperfeito: “E ètrrípcÓTa ("perguntava") a ele”. A tradução
correta seria: “Ele continuava a perguntá-lo”, o que implica em
dizer que o demônio somente respondeu depois de repetido
questionamento.388389Mas, afinal, qual era a pergunta que Jesus
insistia em fazer-lhe? A pergunta era: Tí óuopá oot; (“Qual é o
teu nome?”), a qual é extremamente significativa para a
compreensão deste verso. No mundo antigo era considerado

387
Esta equivocada opinião é defendida, por exemplo, por Neuza Itioka, que
diz: “Se estivermos envolvidos com a expulsão de demônios (...) estes sairão
facilmente com o comando em nome de Jesus Cristo, se todas as condições
do preparo forem satisfeitas, tais como confissão, renúncia, quebra de
ídolos”. (Os grifos são meus). (Cf. ITIOKA, Neuza. Os Deuses da Umbanda.
São Paulo, ABU Editora, 1988, p.212). Entretanto, é muito boa a abordagem
que Itioka faz sobre a Umbanda e o Espiritismo em seu livro.
388 WUEST, Kenneth S. Op.Cit., p.103.
389
Segundo Moxnes, o endemoninhado “identificou as legiões romanas com
os demônios e, como pessoa possuída que era, pôde expressar sua oposição à
dominação romana”. (Cf. MOXNES, Halvor. Poner a Jesús en su Lugar: una
vision radical dei grupo familiar y el Reino de Dios. [Traducción de Carmen
Bernabé Ubieta]. Estella, Editorial Verbo Divino, 2005, p.254). Kelly,
comentando a expressão: “Qual é o teu nome?”, cita Beda (c.673-735):
“Como diz Beda, Jesus não tentava obter informação que Ele não soubesse;
simplesmente queria que Sua cura parecesse ainda mais impressionante
(presumivelmente para humilhar a Legião)”. (Cf. KELLY, Henry Ansgar.
230
SA + ANÁS, DEffi©Nl©S Ê LEGIé

da maior importância conhecer o nome correto de um adversário


(cf. Gn 32.27,29). No exorcismo, acreditava-se que ter o
conhecimento do verdadeiro nome do demônio proporcionava
maior poder sobre ele.390 O texto apócrifo do Testamento de
Salomão (o qual tem a sua redação final datada pelos críticos em
geral entre 300-400 d.C.)391 nos é particularmente importante
neste sentido. Nele encontramos alguns diálogos entre Salomão
e os demônios, os quais automaticamente nos remetem a este
verso de Marcos. A seguir, cito três curiosos exemplos extraídos
dessa literatura extra-bíblica:

I. (...) eu, Salomão, me levantei de meu trono e vi ao demônio


amedrontado e aterrorizado. Disse-lhe:
- Quem cs tu? Qual é o teu nome?
Respondeu:
- Mc chamo Ornías. (...) Sou um demônio noturno e posso
assumir três formas: algumas vezes, quando o homem arde em
desejos, assumo a figura de uma moça jovem, e quando me
tocam sofrem muitas dores. Outras vezes, como ser alado, me

Satã: uma biografia. [Tradução de Renato Rezende]. São Paulo, Globo,


2008, p.299).
390 CRANFIELD, C. E. B. 77ze Gospel According to St. Mark, p.178.
Segundo Cole: “(...) na Bíblia, nome significa ‘natureza’: então o homem
estava praticamente convidado a confessar a natureza dos poderes do mal
pelos quais ele era escravizado”. (Cf. COLE, R.A. The Gospel According to
St. Mark: An Introduction And Commentary. [TNTC], Leicester, Inter­
Varsity Press / Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company,
1983, p.98). Também encontramos no PMG 4.3037-39 a seguinte formula:
“Eu conjuro você, todo espírito demoníaco, a dizer de que espécie você é”.
(Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.344).
391
Embora os críticos escolham tai data para a redação final do texto, não
seria errado admitir que o mesmo possa refletir materiais que, em sua origem,
sejam dos séculos I e II de nossa era. (Cf. MACHO, A. Diez. Apócrifos Dei
Antiguo Testamento. Vol.V, p.329).
231
CARLOS AUGUS+© VAILA + + I

encontro nos lugares celestiais, e em outras apareço em forma


de leão. (Test. Salomão 2.1-3).392393

II. Quando [o demônio] se apresentou diante de mim


[Salomão], lhe disse:
- Quem és tu?
Respondeu:
- Mc chamo Onoscelis e (sou) um espírito corporificado, que
393
mc escondo sobre a terra (...). (Test. Salomão 4.3,4).

III. Ordenei que me trouxessem outro demônio, c conduziram


diante dc mim a Asmodeu, o malvado demônio, atado.
Perguntei-lhe:
- Quem és tu?
(...) eu, Salomão, (...) ordenei que o atassem com o maior
cuidado c o flagelassem até que declarasse quem era c cm que
consistia sua tarefa. O demônio falou assim:
- Meu nome, glorioso, é Asmodeu. Procuro com orgulho fazer
o mal aos humanos cm todo o mundo. (...) (Test. Salomão 5.1-
2,6).394

Essa literatura não-cristã que pode ter a sua gênese


juntamente com os primórdios do cristianismo nos mostra que
saber o nome do demônio era, de fato, um elemento importante
para o sucesso do exorcismo.
Porém, como já foi dito antes, para Johnson e Dewelt a
inquirição acerca do nome não foi dirigida ao demônio, mas sim
ao homem:
Qual é o teu nome? O Senhor fez esta pergunta ao
homem aflito. Por qual motivo? Não há nada tão conveniente
como uma calma e simples questão para trazer um louco a si.

392 Idem, Ibidem, pp.337,338.


393
Idem, Ibidem, p.340. Os acréscimos entre colchetes são meus. Aqui,
Onoscelis é o nome de um demônio feminino, cujo corpo era de uma mulher
e as pernas de uma mula.
394
Idem, Ibidem, pp.341,342.
232
SA + ANÁS, D£íTlffiNI®S £ L£GIî

Não há forma mais natural de despertar em um homem que está


fora de si a consciência de sua própria personalidade do que
fazê-lo dizer seu próprio nome. O nome do homem toma-se a
expressão de seu caráter, e um resumo da história de sua vida.
A primeira condição de alguma cura deste homem aflito era um
retorno ao distinto sentimento de sua própria personalidade. (...)
O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu,
395
demonstrando seu total domínio sobre ele.

Contudo, voltando ao diálogo entre Jesus e o demônio,


este último, ao ouvir a pergunta acerca do nome, responde:
AeyLcov óvopá poi, ótl ttoààoí èopeu, “Legião é o meu nome,
porque somos muitos”. Essa resposta é muito curiosa, pois nos
mostra a fusão do singular com o plural: “Legião é o meu nome,
porque somos muitos”.’ Além disso, o termo grego Aeyiwu,

’ JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], p.144.
Opinião semelhante é encontrada em: BONNET, L. y SCHROEDER, A.
Comentário del Nuevo Testamento: Evangelios Sinopticos. Tomo I. El Paso,
Casa Bautista de Publicaciones, 1982, p.367.
396
Foi sugerido também que o termo legião se refere ao “espírito imundo”
(porquanto o seu gênero em grego é neutro), enquanto que o incisivo somos
muitos designa aos “homens” (pois tal expressão aparece no gênero
masculino). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el
Evangelio de Marcos, p.147). No Testamento de Salomão 11.3 há um
demônio que diz: “(...) envio as legiões de demônios que estão debaixo das
minhas ordens - pois que me introduzo por todos os lugares -, e o nome de
todos os demônios que estão ao meu comando é ‘legião’”. (Cf. MACHO, A.
Diez. Apócrifas Dei Antiguo Testamento. Vol.V, p.354). Para outros
exemplos bíblicos de possessão por mais de um espírito impuro, cf. Mc 16.9;
Lc 11.26. Na volumosa obra de Stuart Clark, Pensando com Demônios,
também encontramos relatos de pessoas que são possuídas por vários
demônios durante o fim da Idade Média. Clark cita, dentre outros, o caso da
francesa Madeleine Demandols, que havia sido possuída por 6.660 demônios
e também menciona o caso de uma vienense chamada Anna Schlutterbãurin,
que estava possuída por 12.000 demônios! (Cf. CLARK, Stuart. Pensando
com Demônios: a idéia de bruxaria no principio da Europa moderna.
[Tradução de Celso Mauro Paciomik]. São Paulo, Edusp, 2006, pp.515, 539).
Mckenzie diz que na antiga Mesopotâmia o número de demônios era quase
233
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

“Legião”, é claramente um latinismo, sendo derivado da palavra


latina legio.391 Entretanto, legio é sua forma não somente no
latim, mas também no grego tardio, tanto helênico quanto
literário, o qual também aparece provavelmente no Aramaico da
Palestina; ele é encontrado nos escritos rabínicos (Singular:
Plural: pT^) e nas inscrições aramaicas primitivas, e
ele sobrevive ainda em Lejjun, o moderno nome de um local
normalmente identificado como Megido. Na verdade, o nome
“Legião” era uma referência feita a um corpo de soldados
romanos cujo número divergia de tempos em tempos, mas que,
no tempo do imperador Augusto, parecia consistir de 6.826
homens (isto é, 6.100 a pé e 726 a cavalo).399 Aliás, e por falar

ilimitado. (Cf. MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. [Tradução de


Álvaro Cunha], São Paulo, Paulus, 1983, p.225). Evans chama a atenção para
a singularidade dessa possessão, pois “até então Jesus havia expulsado
demônios individuais; agora, ali estava a oportunidade de demonstrar seu
poder sobre um exército de demônios”. (Cf. EVANS, Craig A. Lucas. (Novo
Comentário Bíblico Contemporâneo - Baseado na Edição Contemporânea de
Almeida). [Tradução de Oswaldo Ramos]. São Paulo, Editora Vida, 1996,
p. 154). Para T. Cahill, o relato da possessão de Maria Madalena por sete
demônios em Mc 16.9 pode significar que ela talvez fosse vítima de uma
forma particular de esquizofrenia, a qual era simbolizada por “sete
demônios”. (Cf. CAHILL, Thomas. Desire of the Everlasting Hills: the world
before and after Jesus. New York, Anchor Books, 1999, p.211).
1Q7
BUTTRICK, George Arthur, (ed.). IDB. An Illustrated Encyclopedia.
Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981, p. 110. Para Paul Winter: “Do modo
como [a história] está reproduzida no segundo evangelho, podemos inferir
que a prevenção anti-romana em algum momento interferiu no caráter da
narrativa. Isto pode ser verificado no uso da palavra Aeyixóv [legiões] como
nome do agente demoníaco. (...) O uso dessa palavra latina constitui um
ataque verbal direto às forças de ocupação no território judaico”. (Cf.
WINTER, Paul. Sobre o Processo de Jesus. [Tradução de Sergio Alcides],
Rio de Janeiro, Editora Imago, 1998, p.247).
398
SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95.
THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.373. Lane sugere que a entrada do
termo “legião” na fala coloquial indica que a ocupação romana era um fardo
pesado para as pessoas. Porém, para ele, tal termo não demonstra um
234
SA+ANÁS, DEinêNieS £ LEGIî

em nomes de demônios, deve ser mencionado aqui que o já


citado Testamento de Salomão faz referência a 52 nomes
diferentes de demônios, os quais dominam sobre as mais
diversas áreas.400
Finalmente, foi sugerido que o nome “legião” talvez
significasse que o homem havia tido uma experiência infeliz
com a legião romana e isso havia causado sua loucura, ou então,

sentimento anti-romano, antes, deve ser compreendido dentro do contexto da


luta entre as forças de Deus e as de Satanás. (Cf. LANE, William L. The
Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], pp. 184,185). Rohden comenta
que a palavra “legião” deve ser vista como simples sinônimo de grande
multidão. (Cf. ROHDEN, Huberto. Novo Testamento: tradução do texto
original grego, com as variantes da Vulgata e amplamente anotada. São
Paulo, União Cultural Editora Ltda., S.d., p.101). Hastings faz um
interessante comentário sobre o termo “legião”, dizendo que seu uso era
muito comum na literatura midráshica e talmúdica (do séc. III d.C. em
diante). Segundo ele, em algumas destas situações, Leyidiv pode ser usado
como uma ilustração do termo em sua ocorrência no NT. Para ele, o vocábulo
“legião” possuía vários significados nestas literaturas: (1) Significando um
grande número: “E mais fácil alimentar uma legião na Galiléia do que
amamentar uma criança na terra de Israel”. (Gênesis Rabba XX.6); (2)
Significando uma especial e severa punição: “As águas do dilúvio são
comparadas a uma ‘cruel legião’”. (Gênesis Rabba iv.6; confira também v.6);
(3) Significando (sob certas circunstâncias) impureza: “Uma legião em
marcha é impura porque caveiras são usadas como amuletos, as quais são
sempre transportadas por ela”. (Talmude Babilônico, Tratado Hullin, 123a);
(4) Significando comparecí mento diante de um rei: “Deus fala de Israel na
passagem do Mar Vermelho como ‘minhas legiões’” (Êxodo Rabba xxiii.7).
“A tribo de Levi é a legião que permanece na presença real de Deus”
(Números Rabba i. 12). “Quando Deus vai adiante ‘para a paz’ é assistido por
multidões e legiões”. (Números Rabba xi). Estas referências ilustram tanto
Mt 26.53 (“Doze legiões de anjos”); cf. (1) e (4); quanto Mc 5.9 (“Legião...
porque somos muitos”); cf. (1) e (2). Hastings conclui, dizendo que a ideia de
impureza não é proeminente na palavra. (Cf. HASTINGS, James. A
Dictionary of the Bible. Vol.3. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988,
P-94).
u Para saber o nome de cada um desses demônios e em que área atuam,
veja todo o capítulo 10 de: MACHO, A. Diez. Apocrifos Dei Antiguo
Testamento. Vol.V, pp.381-383.
235
CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + 1

que ele sentia como se estivesse possuído por milhares de


demônios (já que a legião romana consistia de mais de seis mil
homens).401 Outrossim, talvez esse nome também significasse
“legionário”, já que o termo estrangeiro “legião” era assim
compreendido no rabinismo.402 Deve-se mencionar ainda que
havia um ditado popular judaico que dizia: “Uma legião de
espíritos malignos está diante dos homens, dizendo: ‘quando
será que ele cai nas mãos de uma destas coisas e será [por elas]
tomado’”.403
De qualquer forma, o vocábulo também poderia ser uma
alusão à situação política reinante no país. Os romanos estavam
assentados como força de ocupação e não tinham intenção de
abandonar o país. Em linha com isto se encontra precisamente a

GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,


Mark and Luke]. Vol.8, p.658.
402
GNILK.A, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, p.238. J.
Jeremias traz uma importante nota sobre o termo “legião” encontrado nessa
passagem. Ele diz: “Em vários casos pode-se demonstrar ou ao menos supor
que uma história de milagre resultou de um mal-entendido de linguagem.
Assim, a lenda da passagem dos demônios para a enorme vara de dois mil
porcos (Mc 5.12s. par.) deve ter-se originado do sentido duplo do aramaico
^JÍ’35 / ligyona / que significa: 1) legião, 2) legionário. Quando o espírito
mau do possesso responde à pergunta pelo seu nome: AEyicòv bvogá got, bu
ícoAãoí. bogEV [legião é o meu nome, porque somos muitos] (...), isso
originalmente deve ter significado: ‘Eu me chamo Soldado, pois há muitos do
meu tipo (e nós nos assemelhamos uns aos outros como um soldado ao
outro)’. A palavra ligyona foi erroneamente entendida como ‘legião’: ‘Eu me
chamo Legião, porque o nosso número é grande (e todo um regimento de nós
mora no doente)’, e obteve-se assim a idéia da possessão do doente por
milhares de maus espíritos”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo
Testamento. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Teológica /
Paulus, 2004, p. 147).
403 Cf. BARCLAY, William. The Gospel of Mark, p.l 17; EDERSHEIM,
Alfred. The Life and Times of Jesus the Messiah. Peabody, Hendrickson
Publishers, 1883, p.612.
236
sa+anás, DeméNies e legiã®

primeira das petições, segundo a qual se pede a Jesus que não


expulse os demônios para fora daquela localidade.404

“E implorava-lhe muito para que não os mandasse para


fora da região (v. 10).

Antes de qualquer coisa, deve ser dito que o pedido dos


demônios para que não fossem enviados para fora do país é uma
característica das histórias de exorcismo.405 Aqui, o verbo
-fiapfKáÀei, “implorava”, aparece no imperfeito. Marcos usa o
tempo imperfeito que indica repetição ou ação contínua,
evidentemente porque estas petições são mal-sucedidas e,
portanto, repetidas. Já no verso 12, o tempo muda para o aoristo,
porque a petição é concedida.406 Um fato curioso aparece neste
verso: a petição feita no singular, “implorava”, é seguida pelo
plural, “que não os mandasse”. Swete explica que o singular é
usado porque os espíritos, falando através da voz do homem, são
ainda considerados como um único ego.407 Quanto ao verbo
àTrooreíÀq, “mandasse, enviasse”, o mesmo aparece no
subjuntivo aoristo, sendo derivado de àKooTÉXÃco, “enviar para

404 GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, pp.238,239.


405 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM.
B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd.,
1981, p.149.
406 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.345.
407 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95. Segundo Lane:
“Assumindo que os demônios são o sujeito de TtapEKáXet (...) há paralelos
em que demônios são enviados para lugares como o deserto, as montanhas
desabitadas, o mar, os fins do mundo (cf. Tb 8.3), e para dentro de animais,
de forma que eles não possam prejudicar os homens. Se o homem é o sujeito,
seus pedidos poderiam ser um patético apelo para que não fosse movido
novamente, como os homens da cidade tinham feito muitas vezes”. (Cf.
LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p. 185).
237
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + 1

fora”.408 No que diz respeito ao fato de os demônios não


quererem sair daquela região, alguns expositores, citando
Grotius, dizem que a região da Decápolis, repleta de judeus
apóstatas helenistas, era amada pelos demônios.409 Schweizer
comenta que “para o contador de história judeu é claro que os
demônios são prósperos no território gentílico e por esta razão
não queiram deixá-lo”.410 Dessa forma, os demônios pedem
educadamente a Jesus que não os expulse daquela região (região
que, na verdade, não está submetida à Lei de Moisés, por tratar-
se de um território pagão).411 Do ponto de vista sociopolítico,
podemos notar que a “legião” queria continuar mantendo a sua
força de ocupação naquele território. Como acontece a qualquer
conquistador, seria muito ruim ter que abrir mão de um pedaço
de terra que fora conquistado a duras custas.

“E estava ali, perto do monte, uma grande manada de


porcos pastando ” (v. 11).

ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
409 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 104.
Segundo Mulholland: “o conceito do domínio territorial dos espíritos (cf. Dn
10.12-14,20; At 19.35) se reflete nas expressões “lugares altos” (Nm 33.52
[“ídolos”], etc.) e os deuses da “planície” (1 Rs 20.23). Povos animistas
crêem que certos espíritos são senhores sobre um território ou uma casa em
que habitam”. (Cf. MULHOLLAND, Dewey M. Marcos, Introdução e
Comentário. [Tradução de Maria Judith Prado Menga]. São Paulo, Vida
Nova, 1978, p.93).
410
SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. [Translated
from german by Donald H. Madvig]. Atlanta, John Knox Press, 1970, p. 114.
Além disso, deve-se lembrar que nas antigas culturas, os espíritos eram
normalmente associados a determinados locais. (Cf. KEENER, Craig S.
CBANT, 154).
41 1
DUQUESNE, Jacques. Jesus. [Tradução de Daniel Piza], São Paulo,
Geração Editorial, 2005, p. 137.
238
SA+ANÁS. D£1T1®NI®S E LEGIî

É muito provável que o episódio dos demônios entrando


nos porcos, os quais se precipitam despenhadeiro abaixo até o
Mar da Galiléia e se afogam (vv. 11-13), seja um acréscimo
posterior à forma dessa história de exorcismo.412 Em seu
abrangente estudo sobre a história do endemoninhado geraseno,
Annen utiliza um argumento baseado no critério da coerência
para corroborar tal pensamento. Seu principal argumento é que,
no material do Evangelho com boa probabilidade de ser
histórico, Jesus nunca realiza um milagre destrutivo que venha a
prejudicar alguém (neste caso, o[s] dono[s] dos porcos) e que
pareça se comprazer no espetacular, apenas pelo espetacular.413
Além disso, a palavra áyéÀT], “manada, rebanho”, também chama
a nossa atenção neste verso. Derrett observou que esse termo é
inadequado para se referir a porcos, os quais não andam em
rebanhos. Segundo ele, esse vocábulo era empregado muitas
vezes para se referir a um bando de recrutas militares.414 Se esta
opinião estiver correta, logo, segue-se que os “porcos” seriam os
próprios soldados romanos, a legião!415 Tal interpretação teria,

MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.


Vol.II, Livro III, 1998, p. 173.
413 ANNEN, Franz. Heil für die Heiden. Zur Bedeutung und Geschichte der
Tradition vom besessenem Gerasener. Frankfurter Theologische Studien 20;
Frankfurt, Knetcht, 1976, p.192. Apud: MEIER, John P. Op. Cit.,
pp. 190,191.
4 4 DERRETT, J. Duncan M. Contributions to the Study of the Gerasene
Demoniac. JSNT, 3, p.5. Apud: MYERS, Ched. O Evangelho de São
Marcos, p.238. Esse termo aparece com o sentido de “rebanho” ao longo de
toda a obra de Homero (aprox. 900 a.C.). (Cf. THAYER, Joseph Henry.
GELNT, p.6).
415 Essa também é a opinião de Maggi, segundo quem, “nos tempos de Jesus,
com a figura do porco se designava aos romanos, como ocupantes da terra de
Israel, representada nos Salmos como uma ‘vinha devastada pelos javalis do
bosque’ (SI 80.4). Além do mais, como afronta aos judeus, o estandarte da
Legião X Fretensis era precisamente um javali. O termo ‘manada’ indica a
grande riqueza dos ocupantes, obtida mediante a violenta submissão dos
239
CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1

portanto, uma forte conotação política. Bem, mas voltando à


figura dos porcos, os quais são citados ao longo de nossa
perícope (vv.l 1-13,16), creio que caibam aqui algumas
observações a seu respeito. Primeiramente, a Mishná proibe a
criação deste animal: “Ninguém [outros textos trazem: Nenhum
israelita] pode criar porco em parte alguma”. (Baba Kamma,
Tratado Nezikin, 7.7).416 E, além disso, o Talmude também diz:
“Amaldiçoado seja aquele que cria porcos”.417 Embora a Mishná
e o Talmude, como componentes da tradição do judaísmo
rabínico, não devam ser anteriores ao século Ill de nossa era,
não devemos achar que seja um anacronismo citá-los aqui, pois,
afinal, eles podem refletir tradições orais que sejam muito mais
antigas do que o seu estabelecimento na forma escrita.418 Alfred
J. Kolatch explica a aversão que os judeus têm ao porco da
seguinte forma:

povos ao seu poder”. (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y


demonios en el Evangelio de Marcos, p.147).
416
DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with
introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford
University Press, 1988, p.342, incluindo nota. J. Jeremias lembra que era
impossível haver porcos em Jerusalém. (Cf. JEREMIAS, Joachim. Palavras
Desconhecidas de Jesus. [Tradução de Itamir Neves de Souza]. Santo André,
Ed. Academia Cristã Ltda., 2006, p. 105).
417 Baba Kamma, 82b. Apud: KOLATCH, Alfred J. 2° Livro Judaico dos
Porquês. [Tradução de Dagoberto Mensch], São Paulo, Editora e Livraria
SêferLtda., 1998,p.345.
418
Remaud explica que “se os textos rabínicos (...) podem ser atribuídos a
uma época relativamente tardia, é porque, durante muito tempo, o judaísmo
rabínico não permitia a transcrição de suas tradições e comentários, ainda
hoje designados pela expressão ‘Torá oral’. Muitas vezes esses textos
rabínicos limitam-se a transmitir tradições muito mais antigas, conservadas
oralmente desde tempos imemoriais. Não é demais observar, portanto, que
não se pode de modo algum confundir a idade de uma tradição com a da
fonte que a transmite. Em muitos casos, as tradições são anteriores em muitos
séculos ao estabelecimento dos documentos que as transmitem”. (Cf.
REMAUD, Michel. Evangelho e Tradição Rabínica. [Tradução de Paula
Silvia R. C. Silva], São Paulo, Edições Loyola, 2007, p.21).
240
SA+ANÁS, DE1T1®NI®S £ LEGIî

(...) os estudiosos têm associado a profunda aversão dos


judeus ao porco ao período dos Macabeus (século II a.e.c.),
quando os greco-sírios, sob o comando de Antíoco Epifanes,
dominavam a Terra de Israel e obrigavam os judeus a
sacrificar porcos no Templo e a consumir carne. Um segundo
motivo que ajuda a explicar a aversão dos judeus por este
animal é que, durante os primeiros séculos da era comum, o
porco era um dos símbolos dos romanos que dominavam a
região. Os romanos destruíram o Segundo Templo em 70 e.c.,
e posteriormente, por muitos anos, trataram os judeus com
muita brutalidade. Para os judeus, o porco ficou como um
lembrete da era de dominação romana e assim tornou-se mais
repugnante que os outros animais não casher.4ig*

KOLATCH, Alfred J. 2o Livro Judaico dos Porquês, p.345. Fisher


acrescenta outro motivo para a aversão judaica aos porcos: “(...) também tem
sido dito que sua came em e ao redor da Palestina é apta para promover a
praga, e que isto era uma razão natural para a [sua] proibição”. (Cf. FISHER,
Jonathan. Scripture Animals: a natural history of the living creatures named
in the bible. New York, Weathervane Books, 1972, p.275). Para outras
informações sobre o porco, consulte: CANSDALE, George. All the Animals
of the Bible Lands. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1970, pp.96-
100. Para obter informações sobre o porco do ponto de vista simbólico-
religioso, veja: RONECKER, Jean-Paul. O Simbolismo Animal: mitos,
crenças, lendas, arquétipos, folclore, imaginário. [Tradução de Benôni
Lemos]. São Paulo, Paulus, 1997, pp.313-316. Darby, de forma equivocada,
declara: “a manada de porcos representa, estou certo, o progresso violento e
cego de Israel via à destruição, depois da rejeição do Senhor”. (Cf. DARBY,
J. N. Estudos Sobre a Palavra de Deus: Lucas-João. [Tradução de Martins
do Vale]. Lisboa, Depósito de Literatura Cristã, 1986, p.69). Já K. Homburg,
vê no confronto de Israel com outras ordens cultuais, a origem do conceito de
impureza do porco: “Em Lv 11.7, por exemplo, o porco é declarado impuro,
porque em Ugarite o javali está em estreita ligação com o deus local, Alijan
Baal”. (Cf. HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. [Tradução
de Geraldo Korndõrfer]. São Leopoldo, Editora Sinodal, 1981, p.33). Sobre a
relação entre a possessão demoníaca e os animais, é curioso notar que, no
Japão, os endemoninhados muitas vezes assumem as características de
raposas e doninhas. (Cf. BERENDS, Willem. The Biblical Criteria for
241
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

De qualquer forma, a menção feita ao porco neste e em


outros versos de nossa perícope, faz surgir a seguinte questão: os
porcos pertenciam a alguém dos gentios, ou dos judeus
engajados em um tráfico que era impuro de acordo com a lei
mosaica?420 Bem, a presença de porcos naquela região
certamente indica que a maioria dos habitantes da região era
pagã.421 Contudo, é sugerido algumas vezes de forma meio-
humorada que, se os proprietários dos porcos eram judeus,
presumivelmente ocupados em vender porcos cerimonialmente
impuros indiscriminadamente para os gentios do distrito, então,
o triste fim dos porcos era uma forma dos judeus serem punidos
por fazerem tal coisa.422 Lenski argumenta de forma a enfatizar
este útimo ponto de vista, ao dizer:
E precipitado assumir que o país fosse totalmente gentio,
e que os proprietários dos porcos fossem pagãos. A margem
leste do lago ficava na tetrarquia de Filipe e era uma parte da
terra judia; Jesus, que se confinou ao seu próprio povo, viajou
tanto ao norte quanto para Cesaréia de Filipe nesta tetrarquia.
Ele estava, conseqüentemcntc, em território judaico quando
estava na terra dos gerasenos. Tcria sido estranho se os judeus,
que estavam espalhados por todo o Império Romano neste
tempo, não tivessem sido encontrados na tetrarquia de Filipe,
espccialmentc à margem do lago contrária às populosas
cidades judaicas que ficavam do outro lado. Toda a evidencia

Demon-Possession. WTJ. Vol.37, n° 3. Philadelphia, Westminster


Theological Seminary Press, 1975, p.357).
4?0
Esta pergunta é sugerida em: JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The
Gospel ofMark. [BST],p.l45.
421 COOK, Guillermo y FOULKES, Ricardo. Marcos. [CBHA], p.144. Cf.
também: CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p. 179.
422
Cf. COLE, R.A. The Gospel According to St. Mark: An Introduction And
Commentary. [TNTC], pp.98,99.
242
SA+ANÁS, DEfflÔNlffiS £ LEGIî

aponta para a impressão de que os proprietários destes porcos,


assim como os dois endemoninhados, eram judeus.423

Embora essa explicação seja boa, creio ser temerário


afirmar que os proprietários dos porcos fossem judeus. Além
disso, é muito difícil encontrar provas de que o(s)
endemoninhado(s) também o fossem. Trata-se de mera
especulação.

“E suplicaram-lhe, dizendo: ‘Envia-nos para os porcos,


a fim de que neles entremos’”, (v.12).

Aqui, o verbo uapeKáÀcoav, “suplicaram, rogaram”,


aparece no indicativo aoristo e é usado para indicar um pedido
específico em contraste com o pedido repetido (irap6KáÀ.ci,) no
verso 10.424 Além disso, o imperativo aoristo IIépi|fov, “envia”,
também pede por um ato específico, dando uma nota de
urgência.425 Sobre a expressão final, 'iva eiç amouç eioéÀQcopev,
“a fim de que neles entremos”, Marcus comenta:

A atmosfera geralmente burlesca da história (...) sugere


que o pedido [dos demônios] pode conter uma insinuação
sexual, uma possibilidade apoiada pela forma com que os
porcos parecem ir loucos quando os demônios entram neles;

LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Mark’s Gospel.


Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1964, pp.210,211. Embora Lenski
comente o texto de Marcos, ele faz referência aqui à narrativa encontrada em
Mateus, pois menciona dois endemoninhados, em vez de citar apenas um,
como Marcos faz.
474
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p.179.
47 S
ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
243
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

Além disso,“porco” poderia ser um jargão para se referir à


gcnitália feminina (p.ex., Aristófanes, Acharnenses 773).426

Embora curioso, tal comentário é fantasioso e


imaginativo demais. No verso seguinte, dentre outras coisas,
verificaremos as possíveis causas que explicam o estouro da
manada e a sua corrida desenfreada rumo à destruição.________
“E permitiu-lhes. E tendo saído, os espíritos imundos
entraram nos porcos, e precipitou-se a manada do
despenhadeiro para o mar, cerca de dois mil, e se afogaram no
mar", (v. 13).

Este verso possui uma riqueza de detalhes que devem ser


apreciados por nós mais detidamente. Primeiramente, a
expressão èTréTpei|rev aÒToiç, “permitiu-lhes”, tem aqui a função
de um comando de exorcismo.427 Isto quer dizer que Jesus não
consentiu “passivamente” na saída dos demônios, antes,
ordenou-lhes que saíssem do homem. Aliás, o verbo “permitir”
aparece aqui na voz ativa, e não na voz passiva. Robertson
chama a nossa atenção para a expressão “e permitiu-lhes”,
dizendo que estas palavras apresentam uma dificuldade crucial
para os intérpretes porque Jesus permitiu aos demônios entrar
nos porcos e destruí-los, em vez de enviá-los de volta para o
abismo. Ele prossegue, afirmando que certamente era melhor os
porcos perecerem do que os homens, mas esta perda da
propriedade levanta uma dificuldade que é semelhante ao

MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And


Commentary. Vol.27. [AB], p.345. Frank e Ida comentam que, “como um
tipo espiritual, o porco é, no reino natural, o que o espírito demoníaco é no
reino espiritual. Da mesma forma que o judeu devia proteger-se zelosamente
do contato com os porcos, o cristão deve evitar contato com os espíritos
imundos”. (Cf. HAMMOND, Frank & HAMMOND, Ida Mae. Porcos na
Sala. [Tradução de João Marques Bentes]. São Paulo, Bompastor Editora,
2000, p. 13).
477
GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.282.
244
SA+ANÁS, DÊIT1®NI®S E LEGIî

428
problema da existência de tomados e terremotos. Bem,
algumas razões foram apontadas por Johnson e Dewelt na
tentativa de buscar explicar porque Jesus concedeu o pedido dos
demônios para que entrassem nos porcos e estes fossem
destruídos: 1) Para mostrar aos discípulos o controle de Cristo
sobre os movimentos dos espíritos; 2) Para testar os gergesenos;
3) Para fazer o milagre mais notório e conseqüentemente para
ressaltar o resultado da cura na pregação do ex-endemoninhado;
4) Os proprietários dos porcos, se judeus, dirigiam um comércio
ilegal; se pagãos, eles insultaram a religião nacional. Em ambos
os casos, a permissão seria justa.*429 Já Adolf Pohl alista cinco
motivos pelos quais Jesus permitiu que os espíritos entrassem
nos porcos: 1) Calvino já considerou a idéia de Jesus ter sido
enganado pelos demônios. Destruindo a vara, eles conseguiram
que Jesus fosse expulso da região; 2) Mais adeptos obtiveram a
idéia oposta: foi Jesus quem enganou os demônios. No fim das
contas, eles ficaram sem hospedeiros, e tiveram de ir para o
abismo. Acabar sem ter onde ficar é condenação (cf. Ap 20.11);
3) Calvino viu aqui uma lição adicional para os discípulos:
pessoas são mais importantes do que bens; 4) Outros viram na
destruição da vara uma ação profética simbólica: o país é
purificado do paganismo; e 5) O objetivo de tal permissão foi
realçar a grandeza de Jesus.430 Anderson sugere que a destruição

ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew


and the Gospel According to Mark. Vol. I. [WPNT]. Nashville, Broadman
Press, 1930, p.296.
429 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], p. 145.
Já de acordo com Wills, “ele [Jesus] expulsa a impureza de um homem para
dentro de animais proibidos, para dentro dos porcos (...), para mostrar que
nenhuma pessoa feita conforme a imagem de Deus poderia ser tratada como
impura”. (Cf. WILLS, Garry. What Jesus Meant. New York, Viking Penguin,
2006, p.30).
430
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p.183. Sobre a possessão
demoníaca de animais, Kirschner, citando O. Weinreich,
Religionsgeschichtliche Studien, menciona a expulsão de um demônio para
245
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + +I

dos porcos pode ter ocorrido devido à crença judaica de que não
haveria nenhum lugar para os porcos (animais abomináveis para
os judeus) na era messiânica. Entretanto, ele mesmo reconhece
que é muito improvável que Marcos tivesse em mente qualquer
semelhança do simbolismo da paz messiânica ao narrar esta
história.431 Enfim, embora tais explicações sejam interessantes,
creio que nenhuma delas é suficientemente satisfatória na
solução do grave problema moral que temos diante de nós, isto
é, Jesus consentiu na destruição de uma propriedade privada
alheia, os porcos.432 Portanto, a meu ver, a saída mais sensata
para essa passagem “truncada” seria entender o relato sobre os
porcos como um acréscimo posterior feito a esta história de

dentro da cabeça de um touro e, citando R.C. Thompson, The Devils and Evil
Spirits of Babylon, 11:10-15, faz referência também a um curioso
encantamento babilônico, no qual um porco é oferecido para ser possuído no
lugar do endemoninhado: “Dedico o porco em seu lugar, e ofereço a carne
como a sua carne, o sangue como seu sangue, e permito-lhe tomá-lo. O
coração (...) entrego como seu coração, e permito-lhe tomá-lo”. (Cf.
KIRSCHNER, Estevan Frederico. The Place of the Exorcism Motif Mark's
Christology With Special Reference to Mark 3.22-30. Tese de Doutorado não
publicada, London, London School of Theology, 1988, p.235, nota 116.).
Outro autor ainda comenta que “o diabo assume outras e variadíssimas
formas animais, como a de um touro, gato, cavalo, porco, veado,
camundongo ou mosca”. (Cf. NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. O
Diabo no Imaginário Cristão. Bauru, Edusc, 2002, p.68).
431 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC]. Grand Rapids, WM.
B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd.,
1981, p.149.
432
A. Richardson faz o seguinte comentário sobre a destruição desses
animais: “Se nós colocarmos fora de nossas mentes todos os sentimentos
humanitários modernos sobre a bondade para com os animais, e lembrarmos
das idéias fixadas pelos judeus do I século concernente aos demônios, nós
não imaginaremos que a história é inconsistente com o caráter de Jesus ou
livre de profundo ensino espiritual. (...) Para a consciência judaica, não
poderia haver nada de ofensivo na idéia da destruição dos porcos, os quais,
de acordo com a Lei (Lv 11.7) eram considerados como ‘impuros’”. (Cf.
RICHARDSON, Alan. The Miracle-Stories of the Gospels. New York,
Harper & Brothers, Publishers, 1958, p.73).
246
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LÊGIî

exorcismo.433 Outra questão importante é: o que fez os porcos se


precipitarem do despenhadeiro ao mar? Acredito que não há
sentido em afirmar que os demônios, sendo maus, quiseram
causar dano aos porcos, a seus donos e ainda revoltar a
população contra Jesus. Seria o mesmo que afirmar que os
demônios enganaram a Jesus quando lhe pediram que os
deixasse ir aos porcos. Também não se pode pensar que os
demônios foram tão ingênuos a ponto de serem enganados por
Jesus e que Jesus pretendeu enganá-los ao conceder-lhes a
permissão, pois sabia que haveríam de perecer. Prefiro outra
explicação, mais lógica e plausível: É muito comum que uma
determinada doença ou dor, nos momentos de sua maior
intensidade, faça com que o doente demonstre por meio de
gritos, gestos e convulsões, que ele chegou ao ápice de seu
sofrimento. Em nosso caso, os sinóticos não contam em detalhes
como se deu a cura desse endemoninhado. Porém, é muito
provável que tenham ocorrido algumas manifestações corpóreas
por parte do endemoninhado (p.ex., “gritos” - vv.5,7) em seu
estágio de pré-libertação que tivessem provocado o pânico dos
animais, resultando na corrida desenfreada dos mesmos em
direção ao mar. Em outras palavras, deve ter havido uma crise
paroxística.434 Qualquer pessoa sabe que o pânico em certos
animais que vivem em grupo, se alastra por contágio num
instante. Como exemplo, podemos citar o estouro da boiada e a
revoada dos pássaros. Portanto, se um ou dois porcos entraram

433
Segundo Fraijó: “(...) este relato, no qual Jesus permite aos demônios que
se introduzam em uma manada de dois mil porcos que caem todos no mar,
não conta de forma alguma com nenhum indício de historicidade”. (Cf.
FRAIJÓ, Manuel. Dios, El Mal y Otros Ensayos. Madrid, Editorial Trotta,
2006, pp.238,239).
434
Paroxismo é o nome dado ao período de uma doença ou de uma dor
durante o qual os sinais atingem sua máxima intensidade. (Cf. LOVISOLO,
Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza Cristina, (eds.).
Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São Paulo, Editora
Nova Cultural Ltda., 1992, p.836).
247
CARL©S AUGUS+® VAILA + + J

em pânico, toda a vara, em crescente contágio, entraria em


pânico também.435 No caso dos porcos especificamente, vários
fatores devem ter contribuído para o seu pânico. Segundo
Grandin e Johnson, “há inúmeras coisas que podem incomodar
um animal - cheiros, mudanças na rotina, exposição a coisas
que ele nunca viu antes - e deve-se levar tudo isso em
consideração”.436437
Segundo as autoras, “todos os animais têm
medo de barulhos repentinos. Os animais não gostam de nada
que aconteça de repente”. Finalmente, elas comentam que
“porcos de corte são animais domésticos, mas não
domesticados, por isso a visão de gente em movimento na frente
deles às vezes os amedronta”.438 Além disso, os gestos e gritos
eufóricos, tanto do ex-endemoninhado como também dos
espectadores daquela cura milagrosa, também podem ter
causado o pânico nos animais.439 Todavia, há outro aspecto
neste verso que devemos notar, o número dos porcos. Marcos é
0 único dos sinóticos a especificar que 0 seu número era de

QUEVEDO, Oscar G. Antes que os Demônios Voltem. São Paulo,


Edições Loyola, 1997, p. 187. Ryle, enfatizando a possessão demoníaca como
a causa da destruição dos porcos, comenta: “É um fato bem conhecido que as
manifestações lunáticas, os frenesis e os acessos de epilepsia não são males
infecciosos e de modo nenhum poderíam ser transmitidos a uma vara de
porcos”. (Cf. RYLE, J. C. Meditações no Evangelho de Marcos. São José dos
Campos, Editora Fiel, 1994, p.56).
436 GRANDIN, Temple & JOHNSON, Catherine. Na Lingua dos Bichos:
usando os mistérios do autismo para decodificar o comportamento animal.
[Tradução de Alyda Christina Sauer]. Rio de Janeiro, Rocco, 2006, p.32.
437 Idem, Ibidem, p.216.
438
Idem, Ibidem, p.42. Sobre 0 pânico dos porcos, 0 padre Quevedo relata
uma experiência pessoal: “Levei ao pânico um porco com pequenos e
‘misteriosos’ toques - ocultamente jogando contra ele pedregulhos com uma
zarabatana — ao tempo que em outro ponto do chiqueiro se provocavam
barulhos”. (Cf. QUEVEDO, Oscar G. Antes que os Demônios Voltem, p. 188).
419
HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark. London, SCM
Press Ltd., 1957, p.63.
248
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

“cerca de dois mil”.440 Marco e Pérez enxergam esse número


com ceticismo, alegando que “é totalmente impossível que nas
colinas de Gerasa estivesse pastando uma manada de semelhante
número de animais; e não somente em Gerasa, mas em qualquer
outro lugar do mundo”.441 Para André Chouraqui, “dois mil
poderia representar o efetivo das três coortes e dos centuriões
romanos que deviam estar sediados na região”.442 Já em 1
Macabeus 16.10, o número “dois mil” aparece para se referir aos
inimigos de Israel derrotados pelos judeus.443 De qualquer
forma, esse número realmente parece ser exagerado, pois uma
manada de porcos normalmente compreendia de 150 a 200
animais, sendo que, excepcionalmente, alcançava a cifra de 300
suínos.444 Entretanto, segundo Johnson e Dewelt, “imensos
rebanhos de porcos eram guardados em muitas províncias do
Império Romano especialmente para a provisão do exército”.445
A meu ver, pode ter havido algum erro por parte do redator que,
em vez de mencionar o número Siockóchoi, “duzentos” (o qual
correspondería melhor à realidade), por um deslize escreveu
ôlo/íàlol, “dois mil”, termo este que possui uma certa

440 Para um estudo mais detalhado dos números na Bíblia, consulte: DAVIS,
John D. Biblical Numerology: a basic study of the use numbers in the bible.
Grand Rapids, Baker Book House, 2000. Puig deduz equivocadamente que
porque havia dois mil porcos, então foram também dois mil demônios que
entraram neles. (Cf. PUIG, Armand. Jesus: uma biografia. [Tradução de
Laura Almeida Dias]. São Paulo, Paulus, 2006, p.398).
441
MARCO, Mariano Herranz y PEREZ, José Miguel Garcia. Milagros y
Resurrection de Jesús Según S. Marcos. [SSNT]. Madrid, Ediciones
Encuentro, S.A., 2001, p.64.
449
CHOURAQUI, André. A Bíblia: Marcos. [Tradução de Leila Duarte],
Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996, p.96.
443 MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de
Marcos, p.148.
444
GUNDRY, Robert H. Mark: a commentary on his apology for the cross.
Grand Rapids, W. B. Eerdmans Publishing Company, 1993, p. 1069.
445 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel ofMark. [BST], p.145.
249
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1

semelhança com o anterior. Esta relação “quase homofônica”


entre estas duas palavras explicaria porque o primeiro termo
teria sido confundido com o
último. Outra explicação que poderia ser dada para a menção
feita a este grande número de porcos, “dois mil”, seria o fato de
Marcos querer usar intencionalmente uma linguagem
hiperbólica em sua narrativa, a fim de realçar ainda mais o
milagre e o tamanho estrago que os demônios teriam causado
naqueles suínos. É como se o autor quisesse dizer: “Vejam só!
Se os demônios provocaram a destruição de dois mil porcos,
imaginem, então, o que eles não fizeram com aquele pobre
homem!”. E, conseqüentemente, “imaginem como Jesus é
poderoso ao libertar esse homem de tais demônios!”. Outro item
que chama a nossa atenção neste verso diz respeito à manada ter
se precipitado “do despenhadeiro para o mar”, sendo que os
porcos “se afogaram no mar”. Este “suicídio coletivo” dos
suínos por afogamento me traz à memória um episódio muito
semelhante que aparece na Ilíada de Homero:

Taltíbio, um deus na voz, sustcndo arrasta


O javali para o pastor dos povos;
Este puxa o punhal que pende sempre
Da bainha da espada, c ao ccrdo o pêlo
Em primícias raspado, alçando as palmas,
Se encomenda ao Supremo (...).
(...) c a punhal o javali degola;
Taltíbio a volteá-lo às brancas ondas
O atira aos peixes (...). (Ilíada, Livro XIX, linhas 192-197, 206-
208).446

HOMERO. Ilíada. [Tradução de Manuel Odorico Mendes], São Paulo,


Martin Claret, 2006, p.431. Dibelius, citado por Barclay, oferece outros
paralelos da morte dos porcos no mar, por exemplo, na lenda grega sobre
Perséfone. (Cf. BARCLAY, William. The First Three Gospels. Philadelphia,
The Westminster Press, 1966, p.62). Para outros exemplos de passagens da
Bíblia que encontram seus hipotéticos paralelos na mitologia greco-romana,
250
SA+ANÁS, DEIT1®N1®S E LEGIî

O arqueólogo Victor Gonçalves, prefaciando a obra: Às


Religiões da Pré-História, do antropólogo André Leroi-
Gourhan, lê assim esse texto da literatura clássica grega:
“Taltíbios [o arauto], segurando um porco reprodutor, coloca-se
perante [o rei] Agamemnon. Este desembainha o punhal que
costuma trazer junto à espada e corta ao animal alguns pêlos,
como primícias. Levanta as mãos ao céu, dirigindo-se a Zeus.
(...) Terminada a oração, o pastor de povos degola o porco.
Taltíbios lança então o corpo [do porco] ao mar (...)”.*
447 Há de
se notar aqui pelo menos algumas semelhanças entre esse trecho
da poesia homérica e o nosso texto de Mc 5. Destaco aqui as
seguintes: (1) Em Homero, fala-se sobre Taltíbio, o arauto do rei
Agamemnon (linha 192); em Marcos, o ex-endemoninhado é o
arauto dos feitos de Jesus (vv. 19,20). (2) Em Homero faz-se
referência ao javali, um tipo de porco selvagem (linhas:
193,206); Em Marcos, fala-se sobre os porcos (w.l 1-13,16) e,
além disso, sabe-se que o emblema da Décima Legião Romana
era um javali.448 (3) Em Homero, o javali é oferecido a Zeus
como primícias (linhas: 197,206); em Marcos, os demônios
chamam a Jesus de Filho do “Deus Altíssimo” (v.7), um título
que, como já vimos, designava Zeus na religião grega449 e, além
disso, eles pedem para entrar nos porcos, o que resultou na sua

veja: ALAMILLO, Asseia. La Mitologia en la Vida Cotidiana. Madrid,


Acento Editorial, 1997, pp.43-49.
447
GOURHAN, André Leroi. As Religiões da Pré-História. [Tradução de
Maria Inês de Franca Souza Ferro]. Lisboa, Edições 70, Lda., 2007, p.9. Os
acréscimos entre colchetes são meus.
448 WINTER, Paul. Sobre o Processo de Jesus. [Tradução de Sergio
Alcides], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1998, p.248.
449
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.343. Cf. também: HUNTER, A. M. The
Gospel According to Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.64;
LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Luke’s Gospel. Minneapolis,
Augsburg Publishing House, 1961, p.474.
251
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

morte (v.13).450 Em Homero, o javali é lançado ao mar (linhas:


207,208); em Marcos, os “quase dois mil porcos” também são
lançados ao mar e, além disso, morrem afogados (v.13). Fritz
Rienecker, comentando a queda dos porcos ao mar, faz algumas
interessantes observações, as quais transcrevemos abaixo:

Perguntamo-nos: Quem morreu? Se formos exatos na


tradução, temos de dizer que não foi a manada que morreu ao
afogar-se, mas os demônios. A grande maioria dos leitores, a
esta altura, fará a pergunta: Como c possível que demônios
morram? Isso c impossível! Não, não c tão impossível assim. E
preciso saber o que significa “morrer" entre os judeus. Quando
a pessoa morre, não morrre o seu espírito. O espírito c separado
das relações cm que se encontrava até então. O espírito do
piedoso vai ao Paraíso, os demais espíritos vão ao hades. Mas
continuam existindo conscientemente, apesar de estarem
mortos, apenas sob outras condições c relações. De modo
semelhante, pode-se também dizer que demônios morrem. Seu
ambiente de vida é o ar da terra (Ef 2.2). Quando são expulsos
desse ambiente vital c das relações que se formam por
habitarem o “ar” sobre a terra, isto para eles significa “morrer”.
(...) Seria totalmcntc por acaso que cm Mt 12.43 consta que o
demônio expulso vagueia por lugares áridos (“sem água”, no

450 Seria isso uma espécie de sacrifício coletivo feito aos deuses, cuja prática
seria comum nos rituais pagãos? Mircea Eliade, (citando Catão, “Da
Agricultura”, 134) menciona, por exemplo, o fato de que os romanos
costumavam sacrificar porcos aos Di Manes (almas dos mortos), a fim de que
pudessem obter boas colheitas. (Cf. ELIADE, Mircea. O Conhecimento
Sagrado de Todas as Eras. [Tradução de Luiz L. Gomes], São Paulo,
Mercuryo, 1995, pp. 134,135). Além do mais, lê-se também na Eneida de
Virgílio que “um sacerdote com veste imaculada trouxe um cerdoso leitão e
uma lanuda ovelha, e aproximou as duas vítimas dos altares flamejantes. (...)
e com ferro cortam ao alto da fronte os pêlos dos animais e derramam sobre
os altares as libações das páteras”. (Cf. VIRGÍLIO. [Alcunha literária de:
MARO, Publius Vergilius], Eneida. [Tradução, Textos Introdutórios e Notas
de Tassilo Orpheu Spalding]. São Paulo, Círculo do Livro, 1994, p.259).
252
SA+ANÁS, D£m®NI®S E LEGIî

original)? Por que vai para onde não existe água? Porque água
significa para ele a “morte”.451

Seja como for, não temos nenhuma indicação no texto de


que os porcos teriam sobrevivido à queda e que teriam nadado
até a margem após esse benfazejo banho. Novamente Rienecker,
citando Karl Bomhâuser (Das Wirken des Christus durch Taten
imd Worte, 1924), declara que “qualquer um pode saber que
porcos são excelentes nadadores e esses porcos criados à beira
do lago não estavam na água pela primeira vez. Por isso, caberia
ponderar (...) se o episódio não teria terminado de tal maneira
que os demônios que morriam na água tiveram de abandonar os
porcos e estes teriam nadado de volta para a terra firme. Diz o
texto que os porqueiros fugiram. Evidentemente se assustaram
com os acontecimentos estranhos”.452 Finalmente, não podemos
nos esquecer de que o afogamento dos porcos evoca a
lembrança de Ex 14.27ss., onde o exército de faraó (a legião
imperial) se precipita no mar e se afoga, coberto pelas águas (Ex
15.4). Esse paradigma que é usado para descrever a vitória de
Deus sobre seus adversários é clássico no pensamento israelita,
principalmente quando se fala sobre as relações conflituosas
entre o povo de Deus e os impérios estrangeiros.453 A ação
poderosa de Jesus é vista como atualização da vitória de Deus

45 1
RIENECKER, Fritz. O Evangelho de Mateus. [Tradução de Werner
Fuchs]. Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 147. No Testamento
de Salomão 5.11, o demônio Asmodeu se dirige ao rei Salomão com as
seguintes palavras: “Te suplico, rei Salomão, não me condenes à água”. (Cf.
MACHO, A. Diez. Apócrifos Dei Antiguo Testamento. Vol.V, p.343).
452 RIENECKER, Fritz.'Op.Cit., p. 148. Segundo o padre Quevedo: “Os
porcos são excelentes nadadores. Mas, caindo no precipício, os que não se
mataram ficaram feridos. Assim, muitos deles puderam de fato terminar
morrendo afogados”. (Cf. QUEVEDO, Oscar G. Antes que os Demônios
Voltem, p. 189).
453
Fazia parte do pensamento daquela época, acreditar que “Deus
esmigalharia a dominação dos pagãos”. (Cf. BULTMANN, Rudolf. Jesus.
[Tradução de Nélio Schneider]. São Paulo, Teológica, 2005, p.36).
253
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

sobre as forças caóticas e desagregadoras do “sistema” (mar)


instaurado pelo paganismo vigente no império.454 Além disso,
através do afogamento dos porcos toda aquela terra gentílica é
exorcisada, isto é, purificada da impureza pagã.455

“E os que tratavam deles fugiram e anunciaram na


cidade e nos campos; e saíram para ver o que tinha
acontecido”. (v.14)

Este verso nos mostra que aqueles que cuidavam dos


porcos, bem como os outros habitantes, são importantes não
simplesmente como testemunhas do milagre, mas, na opinião de
Marcos, eles são principalmente importantes como exemplos de
pessoas que também podem alcançar um milagre.456 O verso
relata que os porqueiros “fogem”, provavelmente por se
assustarem com o que havia ocorrido. Paliares comenta que
“isto não é para eles motivo de alegria e vão dar parte a seu
chefe do desastre”.457 É digno de nota aqui o emprego do verbo
«TrfiYYf iA.au, “anunciaram”. Este verbo que aparece em At 15.27
e 26.20 como termo da linguagem missionária cristã, é utilizado
aqui no verso 14 para a notícia dos porqueiros, em sentido

454 '
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.223. Outras passagens que tratam da
idéia paradigmática do poder prevalecente de Deus sobre as águas, por
exemplo, são: Gn 1.2b; Js 3.13-17; 2 Sm 22.17; Jó 12.15; SI 29.10; 46. l-3a;
77.16; 93.3,4; 104.6b-9; Is 43.2a, 16; 54.9; Na 1.3b. Por fim, nos deparamos
com Ap 21.1, um texto emblemático que destaca o poder soberano de Deus
sobre as águas, pois nele lemos que “o mar já não existe”. Vemos, portanto,
aqui, o triunfo final e absoluto de Deus sobre o caos representado pelas
águas.
455
KELBER, Wemer H. Mark’s Story ofJesus. Philadelphia, Fortress Press,
1988, p.31.
456
SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. [Translated
by Donald H. Madvig], Atlanta, John Knox Press, 1970, p.l 14.
457
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho
de Marcos, p.80.
254
sa+anás, DemêNies e legiã©

completamente neutro.458 Além disso, a referência feita a


anunciar elç rf]v ttóàlv Kai. elç toòç àypoúç, “na cidade e nos
campos”, pode ser uma forma de dizer que o ocorrido foi
relatado “por toda a parte”.459 Já o verbo í]À0ov, “vieram”, é um
dos muitos plurais impessoais de Marcos. Aqui e em Mc
5.12,15,17 o sujeito da ação não é claramente especificado, e
isto leva os leitores a decidirem se “eles” são os demônios, os
porqueiros ou os cidadãos. Esta falta de clareza sobre a
identidade do sujeito é característica da narrativa semítica.460 O
milagre ocorrido chama a atenção de todas as pessoas daquela
região, atraindo-as para a cena do singular acontecimento.
“E chegam para Jesus e vêem o endemoninhado
sentado, vestido, e em perfeito juízo, o que havia tido a legião, e
temeram”, (v. 15).

Aqui, a expressão ep/ovrat Ttpòç tòv ’Iqooôv, “chegam


para Jesus”, que aparece no tempo presente, mostra-nos que o
evangelista começa a retratar a cena como se ele e nós
estivéssemos presentes no meio daquilo e assistindo a tudo.461 O
termo particular usado aqui para “ver” é expressivo. Trata-se do
verbo Secopéco, “ver atentamente, tomar um parecer sobre,

458
GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, p.240.
459
Para uma extensa interpretação sociológica sobre os conflitos existentes
entre a cidade e o campo, sob a perspectiva bíblica, confira: THEISSEN,
Gerd. El Movimiento de Jesús: historia social de una revolution de los
valores. [Traducción de Constantino Ruiz-Garrido], Salamanca, Ediciones
Sígueme, 2005, pp. 164-190.
460 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], pp.345,346. Para Marco e Pérez, que trabalham
com a hipótese de que o Evangelho de Marcos teria sido escrito
originalmente em aramaico, os sujeitos dos versos 12 e 13 são os discípulos.
(Cf. MARCO, Mariano Herranz y PÉREZ, José Miguel García. Milagros y
Resurrección de Jesús Según S. Marcos. [SSNT], pp.65-68).
461 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel ofMark. [BST],p.l46.
255
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

considerar, averiguar ou descobrir pela consideração”. Ele é


usado, não para um espectador indiferente, mas para se referir a
alguém que olha para uma determinada coisa com interesse e
atenção.462 Quanto ao verbo que aparece no particípio em ròv
ôaiiaoviÇóiievoL', “o que antes fora um endemoninhado”, deve-se
mencionar que tal termo é derivado de SatpovíÇopoct, “estar
possuído por um Saípcov (demônio)”. É interessante notar que
até este momento, Marcos só havia se referido aos seres
malignos através da expressão “espírito impuro (imundo)” (cf.
vv. 2,8,13). Porém, nos vv. 15,16 e 18, o termo irveuga,
“espírito”, usado até então, é substituído agora pelo vocábulo
8ai|ia)v, “demônio” (o qual está incluído no verbo
SarpoviÇopar), como vimos, até o final da narrativa. Este verbo,
que é a palavra popular relativamente mais comum usada para a
possessão, parece ser escassamente atestado neste sentido entre
os judeus de fala grega. E digno de nota que os Rabis não têm
verbo correspondente e, em relação ao problema sinótico, é
significativo que este verbo é comparativamente mais freqüente
em Mateus.463464 Contudo, ao pesquisarmos a literatura grega
clássica, encontramos nela o que parece ser o gérmen das
possessões demoníacas encontradas nas páginas do NT. No
período de tal literatura (séc. IX a.C.) somos informados de que
“doenças, delírios, acessos de loucura furiosa ou de melancolia,
não são apenas enviadas pelos deuses; são manifestações de uma
intervenção direta do seu poder, de uma tomada de posse do ser
pelo daimom”?M A partir destas informações, verifica-se que
todos os desregramentos do espírito humano denunciam a

WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 105.


Cf. também: VINCENT, Marvin R. Word Studies in the New Testament.
Vol.I. [The Synoptic Gospels, Acts of the Apostles, Epistles of Peter, James
and Jude], Virginia, Macdonald Publishing Company, 1886, p. 188.
463 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II, pp. 19,20.
464
MIREAUX, Emile. A Vida Quotidiana no Tempo de Homero. [Tradução
de Sophia de Mello Breyner Andresen], Edição “Livros do Brasil”, S.d., p.89.
256
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIî

erupção de um deus no coração do homem. O rei Agamemnon,


por exemplo, enuncia a teoria desta possessão ao declarar o seu
erro:

Não sou eu o culpado


Mas Zeus, Moira e a tenebrosa Erinis,Os quais reunidos me puseram
no coração uma vertigem selvagem
No dia em que me apoderei da parte de honra de Aquiles.
Que teria eu feito? Uma divindade de tudo é responsável,
Até a filha primogênita de Zeus, que a todos enche de vertigem
(Ilíada, XIX, 86-91).465

Nestas linhas encontradas na bela poesia homérica,


Agamemnon se isenta de qualquer culpa no que diz respeito aos
seus atos, creditando os mesmos a três divindades. Assim, ele se
auto-descreve como sendo vítima de uma possessão múltipla,
cujos possuidores: Zeus, Moira e Erinis são responsabilizados
pelos seus atos. Temos aqui, portanto, uma espécie de possessão
múltipla que parece ecoar em nosso relato de Mc 5, no que diz
respeito à “legião”. Voltando ao nosso verso, outros elementos
importantes a serem notados no v. 15 são os três particípios:
Ka0qpcvou, “sentado”; IpaTiopévov’, “vestido”; e ncocjjpovoôma,
“em perfeito juízo”. Eles descrevem características que devem
ter imediatamente impressionado a atenção das testemunhas.466
O ex-endemoninhado, que antes era um andarilho sem destino
certo, agora está “sentado”, como um discípulo (Lc 2.46; 10.39).
Lucas adiciona aqui a frase irapà rovç iróôaç toô ’Ir|aov, “junto
aos pés de Jesus” (Lc 8.35), uma frase técnica usada para se
referir à posição de um aluno (At 22.3).467 O homem que outrora

465 r
MIREAUX, Emile. A Vida Quotidiana no Tempo de Homero, p.90.
466 CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p. 180.
467 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.98. Cf. também:
FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke I-IX. Vol.28. [AB],
p.739.
257
CÀRLeS AUGUS+® VAILA + + I

estava com as suas roupas rasgadas devido à sua freqüente


autolapidação (cf. v.5) está agora “vestido”. Lane cita um
papiro antigo onde a declaração: “Eu o tenho vestido” ocorre em
uma fórmula de adoção. Segundo esta declaração, vestir um
homem significava adotá-lo. Se este fosse um entendimento
comum, ela poderia explicar porque o homem pede para
permanecer com Jesus no verso 18.* 469 Finalmente, o homem que
antes tinha a sua mente e as suas ações controladas pelos
demônios, é encontrado agora em “perfeito juízo”. Esta
expressão significa “ter uma mente saudável, exercer auto­
controle, refrear as paixões”. Este último significado estava
presente no grego clássico e ele também aparece no Novo
Testamento grego, sendo a forma predominante em que tal
palavra é empregada. Trata-se de uma expressão que indica um
habitual auto-govemo com seu constante controle sobre todas as
paixões e desejos. Não somente a sanidade é restituída ao
endemoninhado, mas também seu auto-controle.470 Após esta
descrição que aponta para a cura total do endemoninhado,
Marcos novamente declara que tudo isso aconteceu com “o que
havia tido a legião”. Por fim, o verso termina por dizer que os
espectadores e^opfiQrioav, “temeram”. Este medo não era
proveniente da perda da propriedade, mas era oriundo da
confrontação com a suprema autoridade de Jesus.471 A narrativa
do milagre poderia muito bem ter terminado aqui. Porém, há

De acordo com Moxnes, “Andar nu era marca de exclusão da


comunidade, implicando a transição da vida humana para a existência
demoníaca. Do mesmo modo, vestir-se marcava a transição da volta à
sociedade humana. O código do vestuário formava parte do mecanismo dos
limites desta sociedade”. (Cf. MOXNES, Halvor. A Economia do Reino:
conflito social e relações econômicas no Evangelho de Lucas. [Tradução de
Thereza Cristina F. Stummer], São Paulo, Paulus, 1995, p.92).
469 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.187.
470
WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p.106.
471 ANDERSON, Hugh. The Gospel ofMark. [NCBC], p.149.
258
sa+anás, deiti©ni©s e legiã©

uma continuidade no fluxo narrativo do autor, como se vê nos


próximos versos.

“E os que tinham visto relataram a eles como aconteceu


ao endemoninhado e a respeito dos porcos”, (v. 16).

Temos aqui uma clara repetição do verso 14. Vemos


neste verso que algumas testemunhas relatam o ocorrido, mas
nada disso resulta numa compreensão que lhes conduza à' fé. 472
Certamente estamos diante de um verso que é redacional.*473
Marcos parece querer enfatizar o fato de que algumas
testemunhas estavam “mesmo” presentes quando aquele milagre
tão extraordinário ocorreu. É como se ele dissesse aos seus
leitores: “Se vocês não crêem no que eu estou dizendo, então
perguntem a estes que presenciaram todos estes
acontecimentos”. Este verso tem a intenção de, acima de tudo,
dar maior autenticidade aos eventos narrados.

“E começaram a suplicar-lhe para sair dos territórios


deles (v.17).

Aqui, embora os verbos apareçam de forma impessoal,


muito provavelmente são os donos dos porcos que pedem para
Jesus se retirar de seus termos. Paliares comenta que “os donos
de tantos porcos não podem ser pobres. A obra libertadora de
Jesus significou para eles perda econômica; por isso, lhe pedem
que se vá”.474 Sobre a identidade dos donos dos porcos, Lenski
faz um interessante comentário:

SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. Atlanta,


John Knox Press, 1970, p.l 14.
473 GNILKA, Joachim. ElEvangelio Según San Marcos. Vol. I, p.235.
474
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho
deMarcos, p.81.
259
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

Se estes porcos eram propriedade de gentios, nós


poderiamos ser deixados sem uma explicação adequada para
sua destruição. Aqueles que pensam na posse de gentios têm um
problema moral em suas mãos em relação a Jesus. Este
problema não é removido por dizer que aos demônios foi
ordenado mcramcnte deixar o homem, e que sua entrada nos
porcos foi seu ato próprio; pois isto contradiz os registros de
que os demônios pediram a Jesus para entrar nos porcos, e que
ele deu-lhes permissão. Igualmente insatisfatória c a ideia de
que quando os porcos sentiram-sc agarrados pelos demônios,
eles reagiram de sua própria vontade, correndo para dentro do
mar. Os demônios deliberadamente dirigiram os porcos para o
mar. Nós devemos admitir que Jesus desejou esta ação dos
demônios c este destino dos porcos porque ele forneceu uma
demonstração ocular da grandeza da libertação (...).475 E
deveria ser notado neste ponto que (...) nenhum dos seus
proprietários [dos porcos] culpam Jesus pela sua destruição. Isto
(...) demonstra que os proprietários devem ter sido judeus.
Pagãos não poderíam, mas teriam culpado Jesus
severamente.476

Embora o raciocínio de Lenski seja interessante, não


creio, contudo, que seja correto. Em primeiro lugar,
independentemente dos donos dos porcos serem judeus ou não,
ainda assim continuaremos tendo um problema moral em nosso
texto se não enxergarmos o relato dos porcos como um
acréscimo posterior. Em segundo lugar, não é porque os
proprietários dos porcos não culpam a Jesus pelo incidente que
eles devem ser vistos como judeus. O silêncio dos donos dos
porcos não nos permite identificá-los como judeus que, por
criarem animais impuros, estariam assim transgredindo a lei e,
portanto, conscientes de seu pecado, não dirigem nenhuma

475
LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Mark’s Gospel, p.212.
476 Idem, Ibidem, p.215.
260
sa+anás, DemêNies e legiã©

declaração de censura contra Jesus. Para Marcos, não é


importante designar a identidade dos proprietários dos porcos
em seu relato, motivo pelo qual tal elemento é omitido no texto.
Todavia, quer os donos dos porcos tenham sido judeus ou
pagãos, nota-se que, uma vez situado o acontecimento em terra
pagã, “a intensidade da perversão do paganismo se retrata na
recusa a aceitar conviver com a novidade restauradora trazida
por Jesus. A impureza é tal que insistem para que o santo se
afaste. O fato constatado não leva necessariamente à fé. Neste
caso, os negócios interessam mais que a vida do homem
libertado”.477 Marcelo Barros faz uma inquietante pergunta neste
ponto: “Quem de nós estaria disposto a perder a sua manada, ou
o que corresponde a ela (ou mesmo somente um porquinho),
para que um irmão nosso seja libertado do seu mal?”.478 Como
comentou Robertson: “no conflito entre os negócios e o bem-
estar espiritual, os negócios vêm em primeiro lugar”.479 Aliás,
não nos apressemos em querer condenar o comportamento dos
proprietários desses porcos, pois, em nossos dias, o grunhido
dos porcos ainda acaba “falando” mais alto em nossos bolsos do
que a libertação de uma alma humana em nosso coração.480 Para

477 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.225.
478
BARROS, Marcelo. Conversando com Mateus. São Leopoldo, Cebi; São
Paulo, Paulus; Goiás, Editora Rede, 1999, p.55.
470
ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew
and the Gospel According to Mark. Vol. I. [WPNT]. Nashville, Broadman
Press, 1930, p.69.
480 Imaginando a enorme tragédia econômica que a perda desses dois mil
porcos significou para os seus proprietários naquela época e, com o objetivo
de traçar uma simples comparação em termos de valores, sem ser, todavia,
anacrônico em minha observação, conversei com o sr. Nilson Woloszyn
(técnico do departamento de suinocultura da Embrapa - Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária) de Santa Catarina, que, em Março de 2008, me
forneceu importantes informações sobre os suínos. Segundo o sr. Nilson,
uma tragédia nestas proporções - envolvendo cerca de dois mil porcos -
significaria nos dias atuais uma perda financeira que poderia variar entre
261
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1

Aldana, “os conterrâneos do endemoninhado pedem a Jesus que


deixe o seu território (...) não só por questões de ordem, mas
porque é bem provável que eles pensem que Jesus expulsa os
demônios com o poder dos próprios espíritos impuros”.481
Finalmente, não podemos deixar de notar a ironia deste verso.
Enquanto que no v. 10 é a legião demoníaca que suplicava
(irapeKÚÀei) a Jesus que não fosse enviada para fora daquela
região, aqui no v.17 são os donos dos porcos que começam a
“suplicar” (napaKaÀf lv) a Jesus que saia de seus territórios.482

“E entrando ele no barco, suplicava-lhe o que tinha


estado endemoninhado para que com ele estivesse”, (v. 18).

Vemos neste verso uma construção bem elaborada que


visa conduzir os leitores para o desfecho do relato. Isso é visto
no seguinte contraste. Se em 5.2 nós somos introduzidos no
relato ao lermos: Kai èÇeÀOóvToç aikov (k toú ttàoÍov, “e saindo
ele do barco”; agora, porém, nós somos convidados a participar

R$2.700.000,00 a R$3.3OO.OOO,OO aproximadamente! É claro que estas


estimativas se referem a cotações de mercado do preço dos porcos
geneticamente transformados de nossa época (para abate ou procriação) que
nada têm a ver com o preço de tais animais no período do I século d.C.
Contudo, o meu objetivo ao mencionar estas cifras, é ressaltar a naturalidade
da reação dos proprietários dos porcos face à enorme perda financeira que
tiveram. Eles não poderíam ter agido de outra forma. Em At 16.19 e 19.23ss
temos ecos da reação dos proprietários desses porcos. Bortolini ainda faz o
seguinte comentário: “é importante lembrar que sobre esses porcos pesa o
tributo do império romano”. (Cf. BORTOLINI, José. O Evangelho de
Marcos. São Paulo, Paulus, 2003, p. 105).
481
ALDANA, Hugo O. Martinez. O Discipulado no Evangelho de Marcos.
[Tradução de Mário Gonçalves]. São Paulo, Paulinas / Paulus, 2005,
pp.40,41.
482 Miller comenta acertadamente que “a resposta dos gerasenos é uma
eloqüente revelação do pecado de nossos próprios corações”. (Cf. MILLER,
Donald G. The Gospel According to Luke. Vol. 18. [LBC]. Atlanta, John
Knox Press, 1982, p.92).
262
SA + ANÁS, DEfflffiNI®S £ LEGIé

do fim da história, ao encontrarmos em 5.18: kkl èqPaívovToç


aÒTOÔ e Iç tò ttàoIov, “e entrando ele no barco”. Assim, o barco,
que é um dos elementos favoritos de Marcos, usado para
conectar as distintas perícopes entre si, criando assim a
impressão de um movimento contínuo, também é usado nesta
perícope a fím de dar um “acabamento” à história. No término
de nossa perícope, mais precisamente entre os w. 18-20, a nota
dominante é o comissionamento do ex-endemoninhado para
pregar na Decápolis. Mas aqui no v.18 em particular, chama-nos
a atenção o pedido do ex-endemoninhado para estar com
484 Segundo Pohl, “este estar-com-ele ultrapassa o vínculo
Jesus.483
espiritual com Jesus e significa participação concreta no grupo
itinerante (cf. 14.67) ou na grande família de Jesus (cf.3.34)”.485
Já para Mateos e Camacho, “os assim libertados pensavam num
primeiro momento que, sendo Jesus judeu de origem, os pagãos
que lhe dessem sua adesão deveríam adotar de algum modo a
maneira de ser judaica (que o deixasse ficar com ele)”.486
Entretanto, para Gnilka, o ex-endemoninhado “deve temer que a
população não esteja em condições de permitir-lhe integrar-se
na sociedade e pede para ir com Jesus, para poder converter-se
em seu discípulo”.487*De fato, nós devemos supor que Jesus deu
as boas vindas a ele dentro das fileiras dos discípulos. Seja

483 Para ver a importância que Marcos dá ao barco em sua narrativa como
um todo, veja, por exemplo: 3.9; 4.1, 36; 5.2,18, 21; 6.32,45; 8.10.
484
Para Alford e Nicoll, o pedido do ex-endemoninhado se devia ao fato
deste temer um novo ataque dos espíritos malignos contra ele. (Cf. ALFORD,
Henry. The Greek Testament. Vol.I. [The Four Gospels]. Chicago, Moody
Press, 1968, p.342; NICOLL, W. Robertson, (ed.). The Expositor’s Bible.
Vol. 4. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1940, p.851).
485 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 135.
486
MATEOS, Juan & CAMACHO, Fernando. Marcos: texto e comentário.
[Tradução de José Raimundo Vidigal], São Paulo, Paulus, 1998, p. 141.
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol. I, p.240.
4QQ
MINEAR, Paul S. The Gospel According to Mark. [LBC], Atlanta, John
Knox Press, 1982, p.75.
263
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

como for, este verso descreve o início da ressocialização do


endemoninhado. Ele, que antes vivia isolado e à margem da
sociedade enquanto possesso, agora, estando liberto, deseja
primeiramente ser reintroduzido ao convívio social que lhe
havia sido roubado anteriormente. Ou melhor ainda, o ex-
endemoninhado, como forma de gratidão pela libertação
recebida, resolve então seguir o seu libertador pelo resto de seus
dias.

“E não lhe permitiu, mas disse-lhe: “Vai para a tua


casa, junto aos teus, e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem
feito a ti e como teve misericórdia de ti”, (v.19).

A frase de início do verso, kccl oòk txcfifjKcv avróv, “e não


lhe permitiu”, pode ser vista como uma forma de afirmar o
direito do ex-endemoninhado de viver e desenvolver a
mensagem de Jesus em cada cultura, sem subordinar-se aos usos
ou ideais judaicos.489 Sobre a expressão: "Yiraye e’tç tòv olkóv
ool), “vai para a tua casa”, deve-se observar que “nem todos são
chamados para serem missionários no exterior. O Senhor
chamou este homem para se tornar um missionário em casa”.490
Para Guelich, esta expressão demonstra o típico “estilo de uma
conclusão de despedida”.491 Alguns, seguindo a teoria do
“Segredo Messiânico” de Wrede, vêem isto como uma ordem
para guardar segredo sobre a cura, desde que em outros lugares
em Marcos a casa é vista como um lugar de segredo (cf. 5.38-
43; 7.17,24; 8.26; 9.28, 33?; 10.10). Sendo assim, a conseqüente
proclamação do homem ali se tomaria um ato de desobediência

489
MATEOS, Juan & CAMACHO, Fernando. Marcos: texto e comentário,
p.142.
490
JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel ofMark. [BST], p.146.
491
GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.285.
264
SA+ANÁS, DÊffi®NI©S E LEGIé

similar a 1.45 e 7.36.492 Entretanto, o conjunto dos vv. 18-20


desmente vigorosamente tal hipótese. Em momento algum é
sugerido nestes versos que o ex-endemoninhado devesse guardar
segredo de sua cura e que ao agir de forma diferente estaria
desobedecendo a uma ordem de Jesus. O texto diz exatamente o
contrário. Como bem declarou Mulholland: “Jesus pede para
algumas pessoas deixarem a família para o seguirem (1.16-20;
10.29-30). Aqui, porém, ele envia esse homem sozinho para
casa, ao povo que o abandonara como morto-vivo”.493 E
Schweizer completa: “A resposta de Jesus demonstra como é
impossível ter uma definição estereotipada de discipulado” 494 O
ex-endemoninhado deveria anunciar as coisas que o Senhor
TreuoÍT]K6v, “tem feito”.495 Aqui o verbo aparece no perfeito do
indicativo, o que nos fala sobre uma ação realizada no passado
cujos efeitos ainda perduram no presente. Em outras palavras, o
homem estava desfrutando de uma cura permanente.
Finalmente, o verso termina com uma das palavras mais belas
do vocabulário cristão. O homem curado deveria anunciar como
o Senhor r)Àér|oév, “teve misericórdia” dele. Essa palavra,
f|Àér|oév, é derivada do vocábulo grego feÀ,Eoç, “misericórdia”
que, por sua vez, também aparece no latim misericórdia,
derivado de miser, “miserável” e cors, cordis, “coração”. A

492
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.346.
493
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos, Introdução e Comentário.
[Tradução de Maria Judith Prado Menga], São Paulo, Vida Nova, 1978, p.95.
494
SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. [Translated
by Donald H. Madvig], Atlanta, John Knox Press, 1970, p. 114.
495 /
O termo Kvptoç, “Senhor”, é usado aqui como uma referência a Deus,
não a Cristo. (Cf. HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark.
London, SCM Press Ltd., 1957, p.64; Ver também: DODD, Charles Harold.
The Parables of The Kingdom. New York, Charles Scribner’s Sons, 1961,
p.67).
265
CARLOS AUGUS+® VAILA + + I

idéia subjacente no latim é a de um “coração movido pela


compaixão despertada pelo miserável, pela miséria”.496

“E partiu e começou a proclamar na Decápolis as coisas


Jesus fez para ele, e todos se admiravam (v.20).

Este último verso, iniciado com o verbo àirf|À0ev,


“partiu”, aponta para o fim desta história de exorcismo. Ele
inicia a despedida do ex-endemoninhado de nosso texto.
Entretanto, antes do ex-endemoninhado sair de cena, ele começa
a KT|púooe lv, “proclamar” aquilo que o Senhor havia feito em
sua vida (cf. v. 19). Este verbo tem o sentido de “fazer uma
proclamação pública”.497 O homem que fora libertado do poder
opressor dos demônios, começa agora a testemunhar a sua cura
na AfKairóÀfi, “Decápolis”. Aliás, foi sugerido que todo este
relato da cura miraculosa do endemoninhado geraseno fosse
classificado como tradição ftindacional das comunidades cristãs
na Decápolis.498De acordo com o historiador romano Plínio, o
Velho, em sua Historia Naturalis V. 18.74., a Decápolis era
composta pelas dez seguintes cidades: Damasco, Filadélfia,
Rafana, Citópolis (a Beth-Shean do AT), Gadara, Hipos, Dion,
Pela, Gerasa (agora Jerash) e Canata. Todavia, ele adverte seus
leitores de que os nomes das cidades variam em diferentes
listas.499 Johnson e Dewelt fazem um interessante comentário

496 BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico-


Prosódico da Língua Portuguesa. Vol.V. São Paulo, Edição Saraiva, 1966,
p.2472.
497
WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 107.
498
Esta é a opinião de G. Schille, in: Anfiinge der Kirche, München, 1966,
p.64. Apud: GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I,
p.236. Entretanto, Gnilka rejeita totalmente tal hipótese fundacionista em:
Op.Cit., p.241.
499
SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p. 100.
266
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

sobre os possíveis efeitos que a proclamação do ex-


endemoninhado teria surtido na Decápolis: “não há registro
sobre quanto de sua pregação fez história, mas nós sabemos que
quarenta anos mais tarde este distrito de Decápolis se tomou o
refugio da igreja de Jerusalém quando aquela cidade foi
destruída”.500 Será que a proclamação daquele homem teria
produzido algum fruto? Tudo indica que sim. Meier ainda nos
lembra que esta menção feita à região da Decápolis em Mc 5 é
muito significativa, pelos motivos abaixo descritos:

Parker (“The Decápolis Reviewed”, 438) declara: “O uso


do termo [‘Decápolis’] no Evangelho de Marcos é
aparentemente a primeira referência na literatura antiga”. O
“aparentemente” denota prudência. A próxima ocorrência
mencionada por Parker é na História Natural de Plínio, que foi
completada por volta de 77 A.D. Existe também uma referência
na Guerra dos Judeus de Josefo, obra traduzida para o grego e
publicada nessa versão cerca de cinco a dez anos após a
destruição de Jerusalém em 70 A.D. Portanto, é provável que o
emprego de Marcos seja anterior, literariamente, ao de Plínio ou
Josefo; porem, como todas essas datas são aproximadas (em
geral, considera-se que o Evangelho de Marcos foi publicado
em torno de 70 A.D.), não se pode ter certeza. Talvez mais
relevante seja o fato de “Decápolis” ter sido, de qualquer forma,
uma designação geográfica relativa e surpreendentemente rara
na literatura do século I A.D.501

Seja como for, o essencial dessa história é que as boas


novas ultrapassam o território da Palestina, indo até um

DUU JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
pp. 146,147.
501 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III, p.192.
267
CARL©S AUGUS + ffi VA1LA + + I

território pagão.502 Esse texto é, portanto, um texto de missão, e


é a primeira vez que isso acontece nesse Evangelho.503
Bem, uma vez que acabamos de fazer a análise
sincrônica do texto, passaremos agora a abordá-lo através da
perspectiva diacrônica.

2.2. Análise Diacrônica

Na análise sincrônica, nós tivemos a oportunidade de


verificar o texto de Mc 5.1-20 tal como ele nos é apresentado
atualmente, isto é, em sua redação final. Já a análise diacrônica
(derivada dos termos 3tá + %póvoç, isto é, “através do tempo”),
“estuda os textos sob a perspectiva de sua gênese e gradativa
evolução, visando aclarar o sentido original dos seus vários
estágios transmissivos”.504 Tal tipo de análise é priorizada pelo
assim chamado método histórico-crítico.
Nossa perspectiva diacrônica será composta pelo
seguinte roteiro: a) Crítica Textual - visa restabelecer o texto
original de um trabalho escrito cujo autógrafo não mais

Segundo Kee: “O Jesus marcano se recusa a ser identificado como


exclusividade judaica nacional ou racial”. (Cf. KEE, Howard Clark. Jesus in
History: an approach to the study of the Gospels. New York, Harcourt Brace
Jovanovich, Inc., 1977, p. 160). Storniolo, de forma semelhante, declara: “(...)
agindo em terra estrangeira (...), Jesus mostra que a justiça do Reino não se
restringe ao quintal do povo de Israel”. (Cf. STORNIOLO, Ivo. Como Ler o
Evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo, Paulus, 2007, p.75).
503 BORTOLINI, José. O Evangelho de Marcos. São Paulo, Paulus, 2003,
p.103.
504
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.337. Para um estudo mais
detalhado sobre a leitura de um texto bíblico neotestamentário sob o enfoque
diacrônico, consulte: EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento.
[Tradução de Johan Konings e Inês Borges]. São Paulo, Edições Loyola,
2005, pp. 155-189.
268
SA+ANÁS, DEIT1®N!®S E LEGIî

exista,505 b) Critica do Gênero Literário - busca determinar a


estrutura formal de um texto, compará-lo com outros
estruturalmente semelhantes, determinar em que situação
concreta esse gênero era usado - Sitz im Leben, e a finalidade
desse gênero no que diz respeito ao texto estudado,506 c) Crítica
da Fonte - procura descobrir as fontes literárias de um
documento que, em nosso caso, consistirá nos sinóticos, os quais
serão comparados entre si a fim de se construir as fontes
literárias utilizadas507 e d) Crítica da Redação - pretende
reconhecer as alterações feitas pelos autores nas fontes escritas
que possuíam, bem como, as perspectivas teológicas que os
levaram à sua composição.508
Bem, uma vez que já delimitamos nossa esfera de
atuação no campo da análise diacrônica, vejamos, então, a nossa
perícope através desse prisma, começando a verificá-la sob a
ótica da assim chamada Crítica Textual.

A. Crítica Textual da Passagem509

A perícope de Mc 5.1-20 possui algumas pequenas


variantes textuais, as quais, em geral, não são tão significativas
para a compreensão do texto. Contudo, quatro variantes textuais
em particular, têm provocado muita confusão quanto à

PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo,


Vida Nova, 1993, p. 13.
506 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 186.
507 PATZIA, Arthur G. & PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos
Bíblicos. [Tradução de Pedro Wazen de Freitas], São Paulo, Editora Vida,
2003, pp.41,42.
508 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, pp.52,53.
509 Para obter maiores informações sobre: as variantes textuais que serão
mencionadas nas próximas páginas, bem como, as informações técnicas
referentes a elas, o aparato crítico, as abreviaturas empregadas e os seus
respectivos significados, cf. ALAND, Barbara et al. GNT, pp.1-53.
269
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

localização geográfica exata do evento narrado nesta passagem.


As variantes situam este mesmo evento ora em Gergesta, ora em
Gergesa, ora em Gadara e ora em Gerasa. Mas, afinal, em qual
destes quatro lugares o nosso texto deve ser situado? No intuito
de respondermos a esta importante pergunta e de definirmos,
portanto, onde os acontecimentos tiveram lugar, analisaremos
abaixo cada uma destas quatro variantes.510

a) Gergesta

A variante rEpyvcrcrivrâv (Gergystênõn), “Gergistenos”, é


encontrada no manuscrito uncial W (Washington), o qual
contém os Evangelhos e é datado entre o IV e o V séculos d.C.,
e também é testemunhada pela Versão Siríaca (syrhmg), a qual
traz esta leitura variante à margem do texto. Além disso,
Epifanio, pai da igreja grega (c. 403 d.C.), traz uma quinta
variante do termo, isto é, repyeobâv (Gergesthârí) em seus
escritos.511 Porém, como é bastante improvável que esta
primeira variante se encaixe no nosso texto, passemos à variante
seguinte.

b) Gergesa
A variante FEpyeorivcov (Gergesênõn), “Gergesenos”, já
possui mais testemunhas do que a variante anterior. Ela é
encontrada nos manuscritos unciais: 8 (Códice Sinaíticus - IV
século d.C.), L (Paris - VIII século d.C.), A (IX século d.C.) e
0 (também do IX século d.C.). Esse termo também é atestado
pelos Minúsculos f4 (“família 1”) (X-XIV séculos d.C.), 28 (XI

Para obter mais informações sobre essas variantes textuais, consulte


também: LAGRANGE, M. J. Évangile Selon Saint Matthieu. Paris, J.
Gabalda et Cie, Éditeurs, 1948, p. 173.
511 ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes,
MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. GNT, p. 135.
270
SA + ANÁS, DE1T1©N1©S E LEGIî

século), 33 (IX século), 205 (XV século), 565 (IX século), 579
(XIII século), 700 (XI século), 892 (IX século), 1071 (XII
século), 1241 (XII século) e 1424 (IX/X séculos). Tal variante
também é testemunhada pela maioria dos lecionários e pelas
seguintes versões antigas: syrs (Antiga Versão Siríaca Sinaítica -
IV século d.C.), copbo (copta boérico - IX século d.C.), arm
(Versão Armênia - Século XX), eth (Versão Etíope - VI século
d.C.), geo (Versão Georgiana - V século d.C.), slav (Versão da
Antiga Igreja Eslava - IX século d.C.). Finalmente, a variante
“Gergesenos” aparece ainda no Diatessaronarm (A Tradução
Armênia do Diatessarão - IV século d.C.) e também no pai da
igreja grega, Orígenes (c. 185-254 d.C.).512
Segundo Joel Marcus, “‘Gergesenos’, a mais
inferiormente atestada das leituras, é também a mais plausível
geograficamente, se Gergesa estiver corretamente identificada
com Kursi, que está sobre um planalto à margem leste do Mar
da Galiléia”.513 Para Johnson e Dewelt, toda a confusão entre
Gadara e Gergesa, por exemplo, pode ser resolvida conforme
segue:

[...] a região dos Gergesenos (assim derivada de


Gergesa, a moderna Gersa, diretamente no outro lado do lago de
Tiberíadcs), que era uma porção da grande região dos
Gadarenos (assim chamada devido à sua capital, Gadara, uma

51 9
Idem, Ibidem.
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation With Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.342. A. M. Hunter também concorda com
Gergesa como a melhor opção geográfica para o evento descrito em Mc 5.1-
20: “Nem Gadara (a seis milhas ao sul do lago) nem Gerasa (em Gileade, a
vinte milhas ao leste do Jordão) são geograficamente possíveis. Mas um lugar
conhecido agora como Kersa [Kursi], que tem um penhasco, ruínas e antigos
túmulos, e é próximo ao lago, se encaixa melhor, e nós podemos assumir que
este é o lugar”. (Cf. HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark.
London, SCM Press Ltd., 1957, p.62).
271
CARLOSAUGUS+® VAILA++I

grande cidade a sete ou oito milhas514 a sudoeste em direção ao


sul . do lago). O endemoninhado pode ter pertencido a Gadara,
mas ter encontrado Jesus nas proximidades de Gergesa. [...] Os
Gadarcnos e os Gergesenos eram simplesmente dois nomes
diferentes para o mesmo povo. Gadara e Gergesa estavam no
mesmo distrito. [...] Gadara está a três horas de jornada ao sul
do lago e não é provável que o milagre tenha ocorrido ali. A
descoberta de Gergesa, agora chamada Gersa [Kersa, ou então
Kursi] na costa leste do lago e às margens dos limites do distrito
de Gadara, tem tornado tudo claro. [...] A moderna Gersa, ou
Kersa, está dentro de umas poucas vias da costa. Uma
montanha sc eleva imediatamente acima dela, tão próxima da
costa que os porcos precipitando loucamente para baixo não
puderam parar [...]. Gadara foi uma grande cidade que deu o
nome a todo o povo no distrito, enquanto que Gergesa foi uma
pequena vila sobre as costas do Mar da Galilcia.515

Se esta opinião estiver correta, ela então encerra toda a


confusão manuscritológica existente em torno do local exato
onde os eventos narrados em Mc 5.1 ss par. teriam acontecido.
Situar a pequena vila de Gergesa dentro da grande região de
Gadara explica porque Mateus (cf. Mt 8.28) prefere mencionar
esta última localidade ao invés da primeira.
Aliás, devemos notar que Orígenes (c. 185-254 d.C.), em
seu comentário sobre João (Jo 6.41), ressaltou as dificuldades
entre ambos os registros, Gerasa (como normalmente entendido)
e Gadara (este último ficava há seis milhas da margem do
lago),516 e sugeriu que o local mais apropriado poderia ser
Gergesa, próxima ao lago, associada com os Girgaseus do

Uma milha equivale a 1609 metros. Então, o texto se refere a uma


distância entre 11263m e 12872 m.
515 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
pp.140,141.
516 O equivalente a 9654 m.
272
SA + ANÁS, DEíTl©N!©S E LEGIé

Antigo Testamento.517 Contudo, Cranfield observou que


“Orígenes estava certo em procurar um local próximo do lago,
mas foi incorreto em conectá-lo com os Girgaseus mencionados
no Antigo Testamento”.518 De fato, a palavra hebraica
(girgãsi), “girgaseus”, refere-se a uma das sete tribos cananitas
conquistadas por Josué (Dt 7.1), a qual era descendente de
Canaã (Gn 10.15,16). Segundo a tradição, os girgaseus se
refugiaram na África.519 Certamente, a semelhança entre os
vocábulos “girgaseus” e “gergesenos” fez com que Orígenes
relacionasse um termo ao outro. Porém, como veremos logo
adiante, embora Gergesa tenha a seu favor o fato de estar situada
nas proximidades do mar, ainda assim, ela parece não ser o local
mais apropriado.

c) Gadara
A variante textual Faôappvóòv (Gadarênõn),
“Gadarenos”, aparece também como TaÇapr|vcjòv (Gazarênõn),
“Gazarenos”, no manuscrito uncial fcV (Códice Sinaíticus - IV
século d.C.) e como TapaSpvcôv (Garadênõn), “Garadenos” no
uncial A (IX século d.C.), provavelmente por descuido ou por
dislexia do copista. Além disso, “Gadarenos” aparece ainda nos
unciais 0 (IX século d.C.) e S (VI século d.C.), bem como, no
minúsculo 1010 (IX século d.C.) e em l 253 (lecionário que
contém os Evangelhos, datado do ano 1020). O vocábulo

LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],


p. 181. Segundo Swete: “Jerônimo, quem, como Orígenes, conheceu a
Palestina, confirma o testemunho da existência de uma Gergesa à costa leste
do lago”. (Cf. SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.91).
518 CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p.176. Hugh
Anderson declara que a variante “gergesenos” refere-se a uma “conjectura de
Orígenes, originando-se provavelmente de Gn 10.16”. (Cf. ANDERSON,
Hugh. The Gospel ofMark. [NCBC], p. 147).
519 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.315.
273
CARLOS AUGUS + ® VA1LA + + I

também é encontrado nas versões antigas: syrs’ p’ h (Antigas


Versões Siríacas: Sinaítica [IV século d.C.], Peshita [V século
d.C.] e Harklensis [VII século d.C.]), geo1 (Versão Georgiana do
V século d.C.), Diatessarãosyr (A tradução siríaca do
Diatessarão, datada do IV século d.C.), mssacc 10 Origen (Registro
variante dos manuscritos de acordo com Orígenes - II/I1I
séculos d.C.) e também em Epifônio, pai da igreja grega (403
d.C.).520
Gadara (identificada como a Ramote Gileade do Antigo
Testamento), era uma das cidades mais importantes da
Decápolis. Ela estava localizada ao sopé da montanha que fazia
limite a oeste com o vale do Jordão e ao sul com o profundo
vale do larmuque. Havia outra Gadara na Peréia, em frente de
Jerico, cujas ruínas ainda podem ser avistadas hoje em Tell
Gedur, próximo de el-Salt. Nos escritos antigos era comum
confundir uma Gadara com a outra de mesmo nome. Todavia, a
Gadara descrita em Mt 8.28, por exemplo, se refere à Gadara do
Norte, que se localizava a sudeste do Mar da Galiléia.521
Contudo, como já foi dito anteriormente, Gadara está a três
horas de jornada do lago, não sendo provável que os relatos
descritos em Mc 5.1-20 tivessem ocorrido ali.522 Mateus
certamente referiu-se a Gadara em seu Evangelho pelo fato desta
ser uma das cidades da Palestina mais bem conhecidas de sua
época, em contraposição às outras formas variantes do nome.523
Além do mais, nenhum aterro íngreme que possibilitasse a
queda dos porcos foi encontrado em suas proximidades.524 Tais

ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAV1DOPOULOS, Johannes,


MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. GNT, p.28.
521
TOGNINI, Enéas. Geografia da Terra Santa. Vol.l. São Paulo, Edição
Louvores do Coração Ltda.. 1983, p.202.
522
JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel ofMark. [BST], p.140.
523
Idem, Ibidem.
524 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.275.
274
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

fatores impossibilitam que Gadara seja a localidade que mais se


encaixe no relato bíblico que ora estamos estudando.

d) Gerasa
Finalmente, analisemos a variante Fepaorivóòv
(Gerasênõri), “Gersasenos”. Tal variante é encontrada nos
manuscritos unciais: ÍV (Códice Sinaíticus - IV século d.C.), B
(IV século d.C.) e D (V século d.C.). É encontrada no
minúsculo: 2427 (XIV século?). Além disso, é também vista nas
antigas versões latinas: itaur (V século d.C.), b (V século d.C.),c
(XI1/XIII séculos), d (V século d.C.), e (V século d.C.), f (VI
século d.C.),ff2 (V século d.C.), 1 (V século d.C.),1 (VIII século
d.C.), q(VI/VII séculos d.C.) erl (VII século d.C.). E, por fim, tal
variante também pode ser vista nas antigas versões: vg (Vulgata,
IV/V séculos d.C.) copsa (copta saídica, IV século d.C.) e
também nos escritos de Pais da Igreja Antiga: mssacc’ t0 Ongen
(Registro variante dos manuscritos de acordo com Orígenes -
II/III séculos d.C.) e Juvencus (Pai da Igreja Latina, IV século
d.C.).525
Segundo o erudito do Novo Testamento, Bruce M.
Metzger, existem três razões principais pelas quais a variante
“Gerasenos” deva ser escolhida em detrimento das demais:526 1)
as provas de textos superiores da tradição alexandrina e também
da assim chamada “ocidental”; 2) a probabilidade de
“gadareno”, em alguns manuscritos marcanos, representar uma
assimilação à leitura original do paralelo de Mateus (Mt 8.28),
pois o Evangelho de Mateus era o sinótico predominante no
período patrístico; 3) a probabilidade de “gergesenos” ser uma
correção, talvez inicialmente proposta por Orígenes. Metzger

ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes,


MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. GNT, p. 135.
526 METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New
Testament. London, United Bible Societies, 1975, p.84.
275
CARLSS AUGUS+® VAILA + +I

acredita que a estranha leitura do códice W - “gergistenos” -


representa apenas uma idiossincrasia do escriba.
Ora, além das razões citadas por Metzger, podemos
alistar ainda os seguintes argumentos em favor de “Gerasa”
como a variante textual mais provável para a perícope em
estudo:

a) Embora Gerasa seja geograficamente difícil, todavia,


ela é mais apropriada simbolicamente, pois a raiz hebraica grs,
(gãrash), significa basicamente “expulsar”. Tal vocábulo
se encaixa perfeitamente no contexto de Mc 5.1-20 par. Além
disso, gãrash é um termo comumente empregado nos contextos
de exorcismos.527

b) Além do simbolismo existente por trás do vocábulo


“Gerasa”, outros elementos simbólicos também podem ser
notados na passagem, como, por exemplo, o nome dos
demônios, isto é, “Legião”, uma alusão óbvia à legião romana,
símbolo de Roma e do seu poderio militar; a associação feita
entre os demônios e os porcos, sendo que os últimos são
símbolos evidentes de impureza para os judeus etc.

c) Como Gerasa estava situada a cerca de 53 quilômetros a


sudeste do Mar da Galiléia, logo, a história original narrada não
incluía o incidente dos porcos se precipitando no mar. Tal
incidente foi adicionado ao texto posteriormente.528

MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation With Introduction And


Commentary. Vol.27. [AB], p.342. Aliás, para sermos mais precisos, o termo
gãrash quer dizer: “expulsão à força ou com violência”. (Cf. HARRIS, R.
Laird (org.). DITAT, p.287).
528
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III, p. 174.
276
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

d) Outro importante argumento é fornecido por Guelich:


“[...] desde que o texto de Marcos é a base do relato de Mateus e
de Lucas, os ‘Gadarenos’ de Mateus representam uma tentativa
de ‘corrigir’ o erro geográfico de Marcos, uma tentativa sem
529
dúvida refletida no registro variante dos ‘Gergesenos’

e) Finalmente, podemos entender “Gerasa” como sendo a


leitura mais difícil (lectio difficilior probabilior) e, portanto,
aquela que seria a original, segundo este tipo de premissa.

A força de tais argumentos aqui apresentados nos impelem


a adotar o termo “Gerasenos” como a variante textual mais
apropriada para esse relato de exorcismo que ora estamos
analisando.5 1

B. Crítica do Gênero Literário

No que diz respeito ao gênero literário de nossa perícope,


podemos dizer que a mesma está elaborada de acordo com o
gênero literário do relato de exorcismo acrescido da narrativa de
532 O esquema que nos revela tais características pode
milagre.529
531
530
ser assim delineado:

529 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.276.


530
Ou seja, a leitura mais difícil é aquela que deve ser provavelmente a
correta.
531
Contudo, para Davies, “Marcos pode ter considerado a região dos
Gerasenos como parte da Galiléia. Mas, em 5.20, é dito sobre o
endemoninhado curado que ele anunciou na Decápolis o que Cristo lhe tinha
feito. Alguém pode tomar isto como uma indicação de que Marcos confundiu
a Gerasa próxima ao Lago que era Galileana, com a Gerasa da Decápolis, e
que ele conseqüentemente incluiu a Decápolis como parte da Galiléia”. (Cf.
DAVIES, W. D. The Gospel and the Land. California, JSOT Press, 1994,
p.418).
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.219. É importante destacar aqui a
277
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + +I

Exorcismo Milagre
vv. 1,2: Encontro com o vv. 3-5: Situação de
Taumaturgo; Dificuldade;
vv. 6,7: Defesa dos Demônios; v. 15: Demonstração da Cura;
v. 8: Ordem de Saída; vv. 14, 16-17: Temor Sagrado
v. 13: Saída dos Demônios; das Testemunhas.
vv. 15, 20b: Todos ficam
Maravilhados;
vv. 14a, 18-20a: Difusão da
Notícia.

Segundo Bultmann, as fórmulas de exorcismo costumam


proceder de tradições litúrgicas.533 E quanto a esta história em
particular, Bultmann acha que a mesma se encontra intacta, ou
seja, mantém a sua forma original.534 No que diz respeito à

centralidade dos milagres no Evangelho de Marcos, pois a narrativa dos


milagres ocupa bastante espaço neste evangelho: 156 versículos, contra 119
versículos que tratam da história da paixão. (Cf. SCHREINER, J. &
DAUTZENBERG, G. Forma e Exigências do Novo Testamento. [Tradução
de Benòni Lemos]. São Paulo, Edições Paulinas, 1977, p.233). Para uma
abordagem mais ampla sobre o tipo de literatura que é escrito por Marcos,
veja: DRURY, John, in: ALTER, Robert & KERMODE, Frank, (orgs.). Guia
Literário da Bíblia. [Tradução de Raul Fiker]. São Paulo, Fundação Editora
da Unesp, 1997, pp.433-448. Para saber mais sobre o conceito de “milagre”
no Novo Testamento, veja: BULTMANN, Rudolf. Milagre: princípios de
interpretação do Novo Testamento. [Tradução de Daniel Costa], São Paulo,
Editora Cristã Novo Século Ltda., 2003. Já sobre a historicidade dos milagres
de Jesus, veja: REYMOND, Robert L. A New Systematic Theology of the
Christian Faith. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1998, pp.553-559.
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. [Tradução de Ilson
Kayser], São Paulo, Teológica, 2004, p. 177. Nesta mesma referência,
Bultmann cita alguns exemplos de “fórmulas exorcistas” extraídas de Justino,
o Mártir, mas, ao mesmo tempo, reconhece que tais fórmulas já existiam
antes da época desse apologista cristão.
534 BITTENCOURT, B. P. A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos
Sinóticos. São Paulo, Imprensa Metodista, 1969, p.62.
278
SA+ANÁS, DEHlffiNIffiS £ LEGIé

forma pela qual os exorcismos eram praticados, “todas as


formas de exorcismo em uso ordinário deveriam conter, no
contexto de cada oração ou comando, uma ordem para o
demônio: (i) sair, (ii) não prejudicar a ninguém e, o mais
importante, (iii) partir para seu próprio lugar, e ali permanecer
para sempre”.535536De forma geral, o gênero literário “relato de
exorcismo”, que é um tipo específico de relato de milagre,
possui as seguintes características:

• Indicação da situação e descrição do estado do


possesso;
• Encontro do exorcista com o possesso;
• Tentativa de defesa por parte do demônio;
• Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia
do possesso;
• Saída acompanhada de demonstração;
• Reação dos espectadores. 536

Ao analisarmos o nosso texto de Mc 5.1-20, percebemos


cada uma destas características presentes nele: 1) Indicação da
situação e descrição do estado do possesso (vv.l -5); 2) Encontro
do exorcista com o possesso (w.2,6); 3) Tentativa de defesa por
parte do demônio (v.7); 4) Ordem dada pelo exorcista ao
demônio para que saia do possesso (v.8); 5) Saída acompanhada

535 TWELFTREE, Graham. Christ Triumphant: exorcism them and now.


London, Hodder and Stoughton, 1985, p.184.
536 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, pp.89,90. Segundo Leahy, a
impressão geral da natureza da possessão demoníaca no NT pode ser assim
descrita: 1) A possessão demoníaca pode ser voluntária ou involuntária; 2)
Não há uma ligação essencial entre o caráter da vítima e sua possessão; 3) A
possessão pode ser permanente ou espasmódica (cf. Lc 11.26); 4) O corpo e a
mente igualmente são afetados; 5) Os sintomas decorrentes da possessão
variam grandemente; 6) A libertação, quando vem, é repentina. (Cf. LEAHY,
Frederick S. Satan Cast Out: a study in biblical demonology. Edinburgh, The
Banner of Truth Trust, 1975, pp. 90,91).
279
CARLOS AUGUS+® VAILA + +I

de demonstração (w. 13-15); e 6) Reação dos espectadores


(vv. 16-17,20). Entretanto, Dibelius, seguido por Grundmann e
Schmithals, vêem este relato como um conto (Aòve/Ze).537 Aliás,
segundo Dibelius, as características novelísticas encontradas em
Mc 5.1-20 são as seguintes:

1. Descrição da periculosidade do sofredor e insucesso


de todos os métodos de cura (w. 3-5);
2. Técnica de cura: pergunta sobre o nome do demônio
(v.9) e fórmula de expulsão (v.8);
3. Sucesso da ação (v. 15);
4. Efeito nas testemunhas: medo (v.15) e admiração
(v.20).538539

Já para Joel Marcus, há em Mc 5.1-20 muitos ecos


verbais da versão da Septuaginta da narrativa do Êxodo. A
aplicabilidade da história do Êxodo ao presente contexto é
confirmada por um encantamento exorcístico, PMG 4.3036-37,
que invoca o deus “que salvou seu povo de Faraó” e ocorre bem
antes do impressionante paralelo de Mc 5.9. Nossa passagem,
então, parece dar a Jesus o papel de um Moisés, como alguém
que é um incomparável condutor do poder divino, enquanto que
ao mesmo tempo faz alusão a uma extensão do divino soberano
que está acima do Israel fundado por Moisés. Segundo esta
visão de Marcus, teríamos então em Mc 5.1-20 um gênero

537 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.273.


538
DIBELIUS, M. Die Formgeschichte des Evangeliums. 6a ed., Tüebingen,
1971, p.40. Apud: SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole: exegese,
história, conflitos e interpretações de Mc 5, 1-20. Dissertação de Mestrado
em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista
de São Paulo, 1999, p.60.
539
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction and
Commentary. Vol.27. [AB], p.348.
280
SA+ANÁS, DEITI©NI©S E LEGIî

literário aretológico540 (que, por sua vez, é uma expressão


sinônima que faz referência ao relato de milagre), um midraxe
da LXX de Ex 14.1-15.22. Vejamos a comparação que Marcus
faz entre estes dois textos:
Pano de Fundo do AT para o Exorcismo do
Endemoninhado Geraseno541

Me 5.1-20 Ex 14.1-15.22 (LXX)


5.1: E vieram para o outro 14.22: Israelitas passam
lado do mar (0aÀáoor|ç)... através do mar (QaÀáooqç; cf.
15.16)

5.3,4: Ninguém tinha sido


capaz (èôúuaTo) de prendê-lo; 14.28; 15.4; 15.6,13: 0 poder
ninguém tinha o poder (ôúuaiiiu) de Faraó é destruído;
fío/uei') de subjugá-lo. o poder (io/úl) de Deus é
glo ri ficado.

5.7: “Filho do Deus


Altíssimo” (toô 9eoô TOÜ 15.2: Este é (...) o Deus de
útltíorou). meu pai, (...) e eu o exaltarei
(v^JCÓOG))”.

O termo “aretologia” descreve: milagres, poderes sobrenaturais, grandes


obras, atos de poder e qualidades de virtude de um deus ou um “homem
divino” (gr. aretê, “virtude”). Nos estudos dos Evangelhos, refere-se aos
milagres e relatos miraculosos de Jesus nos quatro Evangelhos. (Cf.
PATZIA, Arthur G. & PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos
Bíblicos. [Tradução de Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida,
2003, p.22).
541 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation With Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.349.
281
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +I

14.28-30; 15.19: Os egípcios


5.13: Os porcos (...) são são afogados no mar.
afogados até a morte no mar.

14.27: Os egípcios fugiram


5.14: Aqueles que estavam (é(|wyov).
tratando dos porcos fugiram
fécfiuYov).

5.14,15: As nações ouviram e


5.15,17: E eles ficaram com estremeceram (Codex A + TM;
medo (kkl èc|)opf|0r|oav) (...) e outros mss. da LXX trazem
eles começaram a suplicar-lhe “ficaram zangados”),
para sair. (cf. 15.16: Espanto e pavor
[<pó[3oç] cairá sobre eles).

5.19: “Vai (...) e anuncia 14.31: Israel viu a grande mão,


(àiraYYeiÀov) (...) as grandes as coisas que o Senhor tinha
coisas que o Senhor tem feito feito aos egípcios (a éiroírioei/
a ti” (óoa ó KÚpióç ooi KÓpioç tolç Aíyvtttíolç);
TreiTOÍriKev); cf. 5.20: “Ele cf.9.16: “Por esta razão eu
começou a proclamar na tenho mantido você vivo, (...)
Decápolis as coisas que Jesus para que o meu nome possa ser
fez para ele”. anunciado [ÔLaYY^A-fl] em toda
a terra”.

282
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

Há, sem dúvida alguma, paralelos notáveis entre a


narrativa do Êxodo e a nossa perícope de Marcos.542 Contudo,
não obstante as semelhanças entre esses dois relatos de milagre
sejam grandes, voltemos a nossa atenção para os Evangelhos
sinóticos, os quais, como já mencionamos anteriormente, nos
apresentam sete episódios distintos de Jesus realizando um
exorcismo. Aliás, os sete relatos de exorcismo,543 juntamente
com seus respectivos paralelos nos sinóticos, são os seguintes:

• O Endemoninhado na Sinagoga de Cafamaum: Mc


1.23-28 //Lc4.33-37;

Encontramos ainda outro incrível paralelo de Mc 5.1-20 no Evangelho


Apócrifo Árabe da Infância de Jesus, XIV, 1-2, datado entre o II e IV séculos
d.C., o qual diz: “Depois chegaram a outra cidade, onde se encontrava uma
mulher endemoninhada que, havendo saído uma noite pela água, se viu
acometida pelo maldito e rebelde Satanás. Não era capaz de suportar seus
vestidos e não havia maneira de fazê-la permanecer em casa. Sempre que
intentavam sujeitá-la com cadeias ou com cordas, rompia as ligaduras e fugia
nua a lugares selvagens. Ficava nas encruzilhadas dos caminhos e entre os
sepulcros, acometendo as pessoas com pedras e causando aos seus familiares
males sem conta. Ao vê-la Maria se compadeceu dela, pelo que Satanás a
deixou no momento e fugiu em forma de um jovem, dizendo: ‘Ai de mim,
Maria, por culpa tua e de teu Filho!’. Desta forma se viu livre aquela mulher
de seu açoite. Dona já de si, sentiu vergonha de sua própria nudez e voltou
para casa, evitando o encontro com as pessoas. E, quando se arrumou, contou
ao seu pai e aos seus o acontecido tal como havia ocorrido. Estes, sendo
como eram os mais nobres da cidade, deram honradíssima hospitalidade a
José e Maria”. (Cf. OTERO, Aurelio de Santos. Los Evangelios Apócrifos:
colección de textos griegos y latinos, version crítica, estúdios introductorios
y comentários. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos de La Editorial
Católica, S.A., 1988, pp.310,311).
543 J.D. Crossan cita AUNE, David E. Magic in Early Christianity. ANRW
2.23.1507-1557, 1980, segundo quem: “a tradição dos milagres nos
evangelhos contém relatos de seis exorcismos, dezessete curas e oito dos
chamados milagres da natureza”. (Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus
Histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. [Tradução de
André Cardoso]. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1994, p.357). Cf. também:
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole, pp.62,63.
283
CARLOS AUGUS + © VAILA + + 1

• O Endemoninhado Geraseno: Mc 5.1-20 // Mt 8.28-


34 // Lc 8.26-39;
• O Menino Possuído: Mc 9.14-29 // Mt 17.14-21 // Lc
9.37-42;
• O Endemoninhado Mudo (e Cego?): Mt 12.22-23a //
Lc 11.14;
• O Endemoninhado Mudo: Mt 9.32-33;
• Maria Madalena: Mc 16.9 // Lc 8.2;
• A Filha da Mulher Siro-Fenícia: Mc 7.24-30 // Mt
15.21-28.

Como pode ser notado, “nos sinóticos, quase todas as


histórias completas de exorcismos provêm da tradição
marciana”(5zc).544 Então, como “os exorcismos se destacam
entre os milagres de Jesus em geral”,545 percebe-se, assim, a
tamanha importância que os mesmos tiveram no ministério
taumatúrgico de Jesus. Em outras palavras, podemos dizer que
conhecer os exorcismos feitos por Jesus nos Evangelhos, é uma
condição simplesmente indispensável para que se possa
conhecer melhor o assim chamado Jesus Histórico.

C. Crítica da Fonte

544
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III, p.170. De acordo com Overman: “Em Marcos, Jesus é
descrito como possuidor de autoridade no ensino (Mc 1.22), porém, a ênfase
coloca-se claramente nos atos poderosos de cura, milagres e exorcismos
executados e apresentados ‘sem dar fôlego’”. (Cf. OVERMAN, J. Andrew. O
Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: o mundo social da
comunidade de Mateus. [Tradução de Cecília Camargo Bartalotti]. São
Paulo, Edições Loyola, 1997, p. 129).
545 MEIER, John P. Op.Cit., p.172.
284
SA+ANÁS, DEmÔNieS £ LEGIé

A fim de que possamos extrair o máximo proveito


possível de nosso estudo sobre Mc 5.1-20, é necessário que
situemos esse texto ao lado dos dois outros textos que tratam do
mesmo assunto em comum, isto é, Mt 8.28-34 e Lc 8.26-39.
Essa forma de abordar um determinado assunto que se
encontre nos sinóticos - clássica entre aqueles que fazem tal tipo
de estudo - nos possibilitará enxergar com maior riqueza de
detalhes o texto de Mc 5.1-20 e seus desdobramentos literários.
Contudo, uma advertência deve ser feita neste momento.
É necessário dizer, antes de tudo, que “os evangelhos não nos
apresentam uma biografia de Jesus. Os evangelistas não tinham
por intenção narrar os feitos e a doutrina de Jesus como hoje nós
lemos as biografias dum Gandhi, duma Madre Tereza de
Calcutá, dum Napoleão etc. A sua finalidade era catequética,
isto é, [era] apresentar uns tantos traços da vida de Jesus que
servissem de modelo e atrativo para fundamentar a fé dos
cristãos das comunidades primitivas”.546
Além dessas informações preliminares, como bem disse
Benito Marconcini, “Mateus, Marcos e Lucas têm semelhanças
e diferenças, a ponto de se tornar possível imprimi-los em três
colunas e com uma visão simultânea [...] verificar concordâncias
e divergências”.547 Bem, tomando como ponto de partida o fato
de que os Evangelhos não têm a intenção de narrar uma
“biografia de Jesus” nos mesmos moldes biográficos atuais e
tendo ainda em mente o importante e sábio conselho de
Marconcini, nas linhas que seguem buscaremos propor um
quadro comparativo dos sinóticos, bem como, o levantamento
do material que é comum aos três Evangelhos seguido dos
materiais que são exclusivos de cada um dos sinóticos. Tal
expediente nos permitirá focar o nosso texto base de Mc 5.1-20

NEVES, Joaquim Carreira das. Evangelhos Sinópticos. Lisboa,


Universidade Católica Editora, 2004, p.l 15.
547 MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos. [Tradução de
Clemente Raphael Mahl], São Paulo, Paulinas, 2001, p.10.
285
CARLOS AUGUS + e VAILA + + I

através de vários ângulos, o que nos ajudará a compreendê-lo de


forma mais apurada.

Mateus 8.28-34 Marcos 5.1-20 Lucas 8.26-39


28 Kai 6À0ÓVTOÇ 1 Kai fjÀQov eíç tò 26 Kai
airroô eiç to Trépav irépav Tijç QaÀáooqç Karé-R Àcooav eiç
elç tt|V /cópav twv clç TT]V x^Pav TT|V x°^PKV tdiv
raôapqvcòv repaoqvwv. repaoqvwv, priç
èoTiv àvTiirépa
2 >5 / Tijç raÀiÀaíaç.
Kai c^àQovtoç
òirr|VTr|oau avTiò ôóo arruou CK TOÔ 27 è^eÀOóvTi ôè
ôaipoviCópevoi ttàoÍou eò6òç ai)TÔ èlTl TT|V Y'P17
ímjuTqoev aÒTÔ ck Ú7rf|VTr|oev àvr|p
tgòv pvrjgeÍGJp TLÇ 6K TÍjç TTÓÀeGÜÇ
àuOpcoTOç èv ex<nv ôaipóvia Kai
fK tgüv pvqpeíwv irveijpaTi àKaQápTcp, Xpóvco iKavô Ol)K
è£6pXÓ|16V0L, eveôóoaTo ipaTiov
3 « '
Xocàcitol ÂÍav, OÇ TT]V Kai kv oiKÍa oÒk
KaTOÍKqoiv eix^ epevev àXÀ’ èv
èu tolç p.vfip.aoiu, tolç pvf|paoiv.
Kai oòôè áÀvoei
OÓKfTL oúôelç
fõúvaro auròv
ôíjoai

wore pf| íoxóe iv 4 ôià to aòròv


Ttvà mxpcÀôéiv ôià iroÀÀáKiç Tréôaiç
Tijç óôoô GKeívrjq. Kai aÀúoeoiv
ôeôéoQai Kai
ÕLfOTráoOai úir’
atJTOÜ ràç áÀvoeiç
Kai ràç iréôaç
ouvT€Tpic|)9ai, Kai
0ÒÔ6LÇ ’ÍOXV6V aÒTÒP
ôapáoai-

286
SA + ANÁS, DEffiêbHffiS E LEGIé

Kal ôià itíxvtòç


vuktoç Kal ripépaç
èv TOLÇ pVTjpaOLV
Kal èv TOtç ópeaiv íôtov ôè tov
Kal Lôoô GKpaíav ’Iriaoôv àvaKpá^aç
rjv Kpá(G)v Kal
ÀéyovTeç, Tí r)piv TTpoaéireoev auTÔ
KaTaKOTTTWV éabTOV
Kttl aoí, vlè TOÔ ÀÍ0OLÇ.
0eoO; rjÀ0eç wôe irpò
Kaipoô paoavíoai, Kal (pGDvrj peyáÀr]
6 Kal lÔwv tov
fiuev, Tí épol Kal
wç; ’Prpoôv âirò
aoí, Triaoô ulè toô
paKpóôev èôpapev
0eoâ toô ái|jíoToij;
Kal TrpoaeKÓvr|Ofv
ôéopaí ooo, pr| pe
avTcô
paoavíariç.

7 Kal Kpá^aç (jxnvfj


peyáÀT] Àéyei, Tí
29 irapr|YY6LÀev
èpol Kal aoí,
yàp tcô TrveúpaTL
’Irpoô vlè toô 0goô
tcô à,Ka0ápTtp
toô íi|jÍotoo;
è^6À0elv àno toô
ópKÍÇa) ae tov
aV0p(0lTOO. 1TOÀ.ÀOLÇ
9eóv, pr| pe
yàp xpóvoiç
Paaavíor]ç.
owtipTOKe i avrov
Kal èõeopeóeTO
8 eÁeyev yàp aõrô,
àÀôoeotv Kal
”EÇfX0e to irveôpa iréõaiç
TO (XKá0apTOV 6K
cpvÀaoaópGVOç Kal
TOÔ àv0póirov.
ôiappr|oowv rà
õeopà T]ÀaóveTO
õttò toô ôaipovíov
elç Taç êpiípouç.

30 ’ ' s'
eTiripWTrioev òe
30 fjv ôè paKpàv dor’ avTÒv ó ’Irpoôç,
aÒTÔv àyéÀT, /oípcov Tí ooi ôvopá
ttoààgõv PooKopévr]. èaTLv; ò 5è einev,
Kal èirripoÓTa

287
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

aòxov, Tl ovopá Aeyicóv, oxl


OL ô'e ôaipoveç 001; Kal Àéyei elof|À9ev Satpóvia
TrapeKÓÀoov aòxòv aòxcô, Aeyiwv iroÀÀà elç aúxóv.
Àéyovxeç, El ovopá pot, OXL
31 Kal TrapeKaÀoov
èKpáÀÀeLç r]pâç, itoààoÍ èopev.
aTróoxeLÀov Tjpâç elç aôxòv 'iva piq
ènixá^r) aòxotç elç
xt|v àyéÀr]v xwv
Xoípwv. Kal irapeKaÀeL xr|v ãpoooov
32 Kal eLTTeV aVXOlç, aòxòv TOÀÀà 'iva pr] àireÀ9eiv.
aòxà àTiocneíÀfl e£w
'Yiráyexe. oí ôè
rf|ç xcópaç. 32 THv ô'e eKel
è£eA.9óvxeç àirfiX9ov
elç xoòç %oípouç- àyéÀT| x°ipwi?
11 THv ô'e eKel iKavúv pooKopévr|
irpòç xô ópet àyéÀT| èv xcò òpei-

Kal lôoò ojppr|oev Xoípwv peyáÀri


PooKopévri- Kal irapeKaÀeoav
irâoa f| àyéXr] Kara
aòxòv 'iva
xoô Kpripvoô elç xr|v
12 Kal TrapeKáÀeoav è-rrLxpéi|rr] aúxoiç
9áXaoaav Kal
aúxòv Àéyovxeç, elç èKeívovç
à-nè9avov èv xolç
népi|jov rjpâç e Iç eloeX9elv
oôaoiv.
xoòç xoípooç, 'iva
33 t \ t e Iç aòxoòç
ol ôe PooKovxeç
ètjjoyov, Kal eloéÀQcopev. Kal èTiéxpei|jev
áireÀOóvTeç elç xr]v aòxolç.

toàlv àirriYye LÀav Kal èiréxpei|íev


irávxa Kal xà xwv aÒTOLÇ. e£eÀ9ovxa ôe xa
ôalpovLCopévwv. ôaipóvta àirò xoô
Kal è^eÀOóvxa xà àv9púiroo
uveópaxa xà elof|À9ov elç xoòç
34 Kal lôoò nâoa T)
aKÓQapxa elof|À9ov Xoípooç,
ttÓàlç è£f|À9ev elç elç xoòç xoipovç,
OTTaVTTjOLV xcô ’Irjooô
Kal copprjoev r]
Kal ópprpev q àyèÀr] Kaxà xoô
àyéÀT] Kaxà xoô Kpripvoô elç xt|v
Kpripvoô elç xr|v Àípvr|v Kal
9áÀaooav, wç âireirvíyr|.

288
SA+ANÁS, DÊIT1©NI©S £ LEGIé

ôioxíÀioi, Kai
èirvíyovTO èv vr|
QaÀáoor]. 34 LÔÓVT6Ç ôè oí
pÓOKOVTEÇ TÒ
14 Kai oí póoKoureç yeyovòç etpuyov
avToòç ecjwyov Kai Kai ámíyyeiÀav
àiriÍYYeiÀav eiç vqv 6LÇ TT)V TTÓXlV Kai
ttÓàlv Kai eiç touç eiç toÒç àYpoúç.
áypoúç-
35 è^f]A,9ov ôè

Kai r|À9ov lôeiv tl lôeiv to YeYOpòç


èaTiv tò yeyovòç Kai f]À9ov Trpòç;
Kai lôóvTeç aiíTÒv
TiapeKáÀeaav óircoç
15 '
Kai
»
epxovTat tÒv Trpoüv
IKTaPfi àirò TGÒV irpòç tÒv ’IriooOv
ópíwv aÚTGÕV.
Kai evpov

Kai 9e(opovaiv TÒv Ka9r|pevov tÒv


ôaipoviCópevov ãv9p(oirov àc|)’ ou
Ta ôaipóvia
Ka9r||ifvov
IpaTiopévov Kai è^f|À0cu

TÒv IpaTiopévov Kai


OG)4>pOVOVVTa,
6OXT]KÓTa TÒV owc|)povoíjvTa irapà

ÀtYiájva, touç iróôaç tov


Tr|oov,

Kai è4>opr|6r|oav. Kai e4)opr|9r|oav.

16 Kai ôiriYiíoavTO 36 àirr|YYeL^av òè


aiiTOiç ol lôóvTeç avTOiç ol ÍÔÓVTÇÇ
irwç èyéveTO tw TTGJÇ 00(091] Ô
ôaipoviCopéva) óaipovia9eíç.

Kai irept TÔV


Xoípwv.
37 y i /
Kai T]pGO-Ur|OGV
17 Kai fípÇavTO aÚTÒv áirav tò
TrA,f|9oç Tfjç

289
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

TrapaKaÀeiv aòròv Trepi%GjpoD TWV


àireÀ0eiv áirò twv rcpaorivcòv
ÔpílOV aÒTGÔV. àircÀQeiv àir’
aÒTGÔV, OTl 0ópcp
peyáÀw
owei/ovTO-
18 ' ’ '
Kai epPaivovTOç
aÒTOô eiç tò ttàolov aÒTÒç õè éppàç fíç
irapeKáÀei aòròv ó TTÀOIOV
ôaipovio0eiç 'iva f z 38
UTreoTp6i|jev.
peT’ aÒTOô rj. èôeiTO ôè auTOÔ ó
àvrjp á4>’ ob
f^6Àr)Àú0ei rà
õaipóvia eivai
Kai ook aqjfÍKev oòv aÒTÔr
aÒTÓv, àÀÀà Àéyei
aÓTÓ,

aTréÀooev ôè aòròv
Àéywv,
"Yuaye eiç tÒv
olkov ooo irpòç
toÒç ooòç Kai
aTráyyeiÀov aÒTOiç 39 'YiróoTpe^e eiç
òoa ô KÓpióç ooi TÒV OLKÓV ooo Kai
-IT61TOÍr|K6V Kai ôiriyoô òoa ooi
r|Àér|oév oe. èiroír|oev ô 0eóç.

?0 X 5 X
Kai airfiÀQev Kai
•qpÇaTO Krjpóooeiv
èv tt| AeKanóÀei Kai àTrfiA.0ev Ka0’
boa 6iroir|oev aoTÔ ÒÀT|V TT|V TTÓÀLV
ó ’Irioofjç, Kai KT|pÓOOG)V òoa
irái/ceç éôaúpaCov. èiroírioev aÒTtô ô
’Irjooôç.

290
SA + ANÁS, DÊffi®NI©S £ LEGIî

C.l. O Material Comum aos Sinóticos

Ao examinarmos o relato sinótico que trata do(s)


endemoninhado(s) possuído(s), notamos vários aspectos em
comum nas três narrativas:548

- A travessia de barco e a chegada ao outro lado do mar;


- O(s) endemoninhado(s) se dirige(m) até Jesus;
- O(s) endemoninhado(s) costumava(m) estar/viver nos
sepulcros;
- O(s) endemoninhado(s) fala(m) com Jesus gritando;
- Jesus é identificado como “Filho de Deus”;
- Os demônios temem ser atormentados;
- Uma grande manada de porcos aparece em cena;
- Os seres demoníacos saem do(s) homem(s) e entram nos
porcos;
- A manada de porcos se precipita do despenhadeiro e se
afoga no mar;

- Os que cuidavam dos porcos fogem e narram o


acontecido à cidade;
- As pessoas vão se encontrar com Jesus;

Tais semelhanças podem ser vistas também em: K.ONINGS, Johan.


Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da "Fonte Q São
Paulo, Edições Loyola, 2005, pp.l 10-112.
291
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + 1

- Pede-se a Jesus que saia daquele território.

C.
2. Os Materiais Exclusivos de Mateus, Marcos e
Lucas

a) O Material Exclusivo de Mateus


Deve-se dizer que o Evangelho de Mateus “é como se
fosse uma ‘nova edição revista, atualizada e aumentada’ de Mc,
especialmente pela integração da coleção dos Ditos de Jesus
(‘Q’). Situa-se na proximidade do novo judaísmo (o ‘judaísmo
formativo’, de inspiração farisaica), que surgiu depois da
destruição do Templo em 70 d.C.”.549 Daniel Harrington sugere
que o Evangelho tenha sido escrito mais perto do final do 1
século, ao redor de 85 ou 90 d.C.550 Em Mateus nós
encontramos a versão mais abreviada de nosso relato de
exorcismo.551 Eis o material exclusivo de Mateus:

549
KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e
da “Fonte Q”, p.xii.
550 HARRINGTON, Daniel J. The Gospel of Matthew. Vol.l. [SPJ.
Collegeville, The Liturgical Press, 1991, p.8. Já Auzou entende que Mateus
teria sido escrito em aramaico entre os anos 40 e 50 d.C. (Cf. AUZOU,
Georges. A Tradição Bíblica. [Tradução de Eliseu de Lucena Lopes], São
Paulo, Livraria Duas Cidades, 1971, p.329).
551 France atribui tal abreviação de Mateus à tendência geral desse autor de
‘condensar’ as suas narrativas sinóticas. (Cf. FRANCE, R.T. Matthew:
Evangelist & Teacher. London, The Paternoster Press, 1938, p. 134). Para
outros comentários sobre a passagem sinótica de Mt 8.28-34, veja:
BARCLAY, William. The Gospel of Matthew. Vol.l. Philadelphia, The
Westminster Press, 1958, pp. 325-330; EDWARDS, Richard A. Matthew's
Story’ of Jesus. Philadelphia, Fortress Press, 1985, pp.28,29; LENSKI,
Richard C.H. The Interpretation of St. Matthew's Gospel. Minneapolis,
Augsburg Publishing House, 1961, pp.350-354; PLUMMER, Alfred. An
Exegetical Commentary’ on The Gospel According to St. Matthew. Grand
Rapids, Baker Book House, 1982, pp.132-135; HILL, David. The Gospel of
Matthew. [NCBC], Grand Rapids, WM. B. Eerdmans Publ. Co. / London,
Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1984, pp. 167-169; SALDARINI,
292
SA + ANÁS, DEmÔNieS Ê LEGIî

- A região dos gadarenos é o cenário do exorcismo (Mt


8.28a);

- Há dois endemoninhados (Mt 8.28b);552553


- A violência dos endemoninhados impedia as pessoas de
passarem pelo seu caminho (Mt 8.28b); 553

Anthony J. A Comunidade Judaico-Cristã de Mateus. [Tradução de Barbara


Theoto Lambert], São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 129-131; HENDRIKSEN,
William. Mateus. Vol.l. [Tradução de Valter Graciano Martins]. São Paulo,
Editora Cultura Cristã, 2001, pp.583-587; TASKER, R.V.G. Mateus,
Introdução e Comentário. [Tradução de Odair Olivetti], São Paulo, Vida
Nova / Mundo Cristão, 1991, pp.74-76.
552 ' . , .
E curioso notar a predileção que Mateus tem por aspectos mais gregários
e coletivos em sua narrativa sinótica. Além de citar dois endemoninhados
(Mt 8.28) quando Marcos e Lucas mencionam apenas um (cf. Mc 5. Iss; Lc
8.27ss), ele também cita dois cegos (Mt 20.30), enquanto os dois outros
Evangelhos mencionam somente um personagem (cf. Mc 10.46ss; Lc
18.35ss). Cox tenta explicar de forma pouco convincente a existência de dois
endemoninhados em Mateus sugerindo que este, ao omitir em sua narrativa o
exorcismo de Mc 1.21-28, busca compensar tal omissão por meio da
duplicação do endemoninhado em Mateus 8. (Cf. COX, G. E. P. The Gospel
According to St. Matthew. London, SCM Press Ltd., 1952, p.70). J. Jeremias,
ao analisar as histórias de milagres encontradas nos Evangelhos sob o
enfoque da crítica literária, observa uma tendência a incrementar o milagre
através, por exemplo, do aumento dos números e das duplicações dos
milagres. (Cf. JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento.
[Tradução de João Rezende Costa], São Paulo, Teológica / Paulus, 2004,
p.146).
553
Segundo Gundry, a expressão ò86ç, “caminho” (Mt 8.28), aparece
algumas vezes em Mateus como referência ao caminho do discipulado (cf.
Mt 7.13,14; 21.32; 22.16). De acordo com ele, o discipulado (possivelmente
representado aqui pelo simbolismo do caminho) sofre oposição demoníaca,
mas, ao mesmo tempo, tal oposição é removida pela autoridade de Jesus. (Cf.
GUNDRY, Robert H. Matthew, a Commentary on His Literary and
Theological Art. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company,
1982, p. 158; GUNDRY, Robert H. Matthew: a commentary on his handbook
293
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

- São omitidas as expressões “Jesus” e “Altíssimo” pelos


demônios (Mt 8.29);

- O nome do(s) demônio(s), isto é, “legião”, também é


omitido;554

- Os demônios têm ciência de que deverão ser


atormentados num dado momento específico (futuro) (Mt
8.29b);555

- Nada é dito sobre a condição dos endemoninhados


depois de restaurados.

b) O Material Exclusivo de Marcos

Em geral, acredita-se que o Evangelho de Marcos tenha


sido escrito na década de 70 A.D.556 Porém, Konings é ainda

for a mixed church under persecution. Grand Rapids, William B. Eerdmans


Publishing Company, 1994, p. 158).
554
Talvez a omissão do termo “legião” se deva ao fato de que o evangelista,
outrora funcionário de Roma (cf. Mt 9.9), temesse uma possível retaliação
resultante de sua associação deliberada entre Roma e os demônios (caso
incluísse tal termo em seu relato sinótico).
555 De acordo com o livro de Enoque XV-XVI, os demônios têm poder para
atormentar os homens até o dia do juízo, e os demônios pedem que não sejam
incomodados antes deste tempo. (Cf. ALBRIGHT, W. F. & MANN, C.S.
Matthew: a new translation with introduction and commentary. Vol.26.
[AB]. New York, Doubleday, 1971, p.101).
556 Assim entendem, por exemplo: THIEDE, Carsten Peter & D’ANCONA,
Matthew. Testemunha Ocular de Jesus: novas provas em manuscrito sobre a
origem dos evangelhos. [Tradução de Laura Rumchinsky]. Rio de Janeiro,
Imago, 1996, p.29; KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangelhos de Mateus,
Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. São Paulo, Edições Loyola, 2005, p.xii;
HÔRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento. [Tradução
de Valdemar Kroker], Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1993, p.30;
294
SA + ANÁS, D£IT1®NI©S Ê LfGIî

mais específico, pois situa a redação de Marcos no contexto da


crise dos anos 65 (a guerra na Palestina, a perseguição de Nero
em Roma, o martírio de Pedro etc), como tentativa de gravar a
memória da pregação apostólica (a tradição pré-marcana),
transformando-a em anúncio atualizado para os seus
contemporâneos.557 Em nosso trabalho, adotamos a hipótese de
que Marcos foi escrito pouco tempo depois do ano 70 d.C.558 A
alusão feita à destruição do Templo em Mc 13.Iss e Mc 14.58,
por exemplo, parece indicar um vaticinium ex eventu, o que, se
estiver correto, comprova a nossa hipótese. Aqui, nós
seguiremos a chamada hipótese das duas fontes, a qual
pressupõe, antes de tudo, a precedência de Marcos em relação a
Mateus e Lucas.559 Segundo a teoria das duas fontes, Mateus e
Lucas utilizaram dois documentos para escrever seus respectivos

MONASTERJO, Rafael Aguirre & CARMONA, Antonio Rodríguez.


Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos. Vol.6. [Tradução de Alceu Luiz
Orso]. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2000, p. 162; FISCHER, James. How to
Read the Bible. New Jersey, Thorsons Publishing Group, 1988, p. 19.
557
K.ONINGS, Johan. A Bíblia nas Suas Origens e Hoje. Petrópolis, Vozes,
2003, p. 152. Borg e Crossan, que também entendem que Marcos tenha sido
escrito numa data próxima à da destruição do Templo, dizem que Marcos é
“um evangelho de tempos de guerra”. (Cf. BORG, Marcus J. y CROSSAN,
John Dominic. La Última Semana: tin relato diário de la última semana de
Jesús en Jerusalén. [Traducción de Rosana Elizalde]. New York, Rayo,
2007, p.24).
CCO

Theissen também é da mesma opinião. Cf. THEISSEN, Gerd. O Novo


Testamento. [Tradução de Carlos Almeida Pereira]. Petrópolis, Vozes, 2007,
pp.74,75. Já J. D. Crossan, de forma mais explícita, declara: “Marcos escreve
logo após o confronto da grande revolta de 66-74 e especialmente da
destruição de Jerusalém e do Templo em 70 d.C.”. (Cf. CROSSAN, John
Dominic & REED, Jonathan L. Excavating Jesus: beneath the Stones, behind
the texts. New York, HarperSanFrancisco, 2001, p.267).
559
Taylor apresenta cinco razões para justificar a precedência marcana. (Cf.
TAYLOR, Vincent. The Gospels: a short introduction. London, The Epworth
Press, 1967, pp.38-41). Para uma discussão mais ampla sobre a precedência
de Marcos, consulte: MOULE, C. F. D. The Birth of the New Testament.
London, Adam & Charles Black, 1966, pp.223-232.
295
CARLSS AUGUS+® VAILA + + I

Evangelhos; esses documentos são Marcos e Q. O raciocício por


trás de tal teoria é o seguinte: quando se encontram nos
Evangelhos de Mateus e de Lucas tradições igualmente
presentes no Evangelho de Marcos, então é dito que os dois
primeiros copiaram tais tradições de Marcos; mas quando
Mateus e Lucas têm em comum tradições desconhecidas de
Marcos, entende-se que tais elementos foram extraídos de Q.560
O gráfico que exemplifica tal raciocínio é este:

Ora, o material exclusivo de Marcos, no que diz respeito


à perícope que estamos estudando, é o seguinte:

560 Contudo, como bem observou Konings: “Deve-se, entretanto, lembrar


que o documento Q jamais foi encontrado e, por conseguinte, ele é
completamente hipotético”. (Cf. KONINGS, Johan. A Bíblia nas Suas
Origens e Hoje, p. 179). Para obter maiores informações sobre o documento
Q, consulte: MACK, Burton L. O Evangelho Perdido: o livro de Q e as
origens cristãs. [Tradução de Sérgio Alcides]. Rio de Janeiro, Editora Imago,
1994.
296
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

- O endemoninhado anda de dia e de noite pelos túmulos e


pelos montes e se fere com pedras (Mc 5.5);

- O endemoninhado se prostra diante de Jesus (Mc 5.6 -


em Lc é dito que ele “cai” diante de Jesus, cf. Lc 8.28);

- O exorcismo se dá por meio de uma ordem explícita:


“Sai, espírito imundo, do homem” (Mc 5.8 - em Lc tal ordem é
citada indiretamente, cf. Lc 8.29a);
- Os demônios suplicam para não saírem da região (Mc
5.10);
- Atribui-se um número aos porcos: eram cerca de dois mil
(Mc 5.13);
- A Decápolis é o local onde o ex-endemoninhado
proclama a sua cura (Mc 5.20a);
- As pessoas reagem com admiração diante do milagre
(Mc 5.20b).

c) O Material Exclusivo de Lucas

A maioria dos estudiosos de hoje data o Evangelho de


Lucas em um dos dois períodos, 60-65 A.D. ou 70-90 A.D.561
Uma vez que nós já mencionamos a nossa preferência sobre a
antecedência de Marcos em relação aos outros dois sinóticos,
logo, nossa opinião é que a redação de Lucas está situada neste
segundo período. Lucas nos oferece o segundo relato mais

ELLIS, E. Earle. The Gospel of Luke. [NCBC], Grand Rapids, WM. B.


Eerdmans Publ. Co. I London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd., 1980,
p.55.
297
CARLOS AUGUS+® VAILA + + I

extenso, depois de Marcos, sobre o endemoninhado geraseno.562


De forma geral, este é o material exclusivo de Lucas:

- É mencionado o fato de que o endemoninhado não usava


roupa há muito tempo e que também não vivia em casa (Lc
8.27);563

- O demônio impele o endemoninhado aos desertos (Lc


8.29);564

562 Para outros comentários sobre a passagem sinótica de Lc 8.26-39, veja:


ASH, Anthony Lee. O Evangelho Segundo Lucas. [Tradução de Neyd V.
Siqueira]. São Paulo, Editora Vida Cristã, 1980, pp. 150-153; MORRIS, Leon
L. Lucas, Introdução e Comentário. [Tradução de Gordon Chown]. São
Paulo, Vida Nova / Mundo Cristão, 1990, pp. 147-149; CAMPS, Josep Rius.
O Evangelho de Lucas: o êxodo do homem livre. [Tradução de João Rezende
Costa], São Paulo, Paulus, 1995, pp. 134-138. Esse último autor baseia seu
comentário em matizes sociológicos influenciados, sobretudo, pela Teologia
da Libertação. Para obter importantes notas gramaticais sobre o texto,
consulte: ROBERTSON, Archibald Thomas. A Translation of Luke's Gospel:
With Grammatical Notes. Nashville, Sunday School Board of the Southern
Baptist Convention, S.d., pp. 178,179.
563
Segundo Schweizer, a declaração de que o homem está nu é baseada em
Lc 8.35. (Cf. SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Luke.
[Translated by David E. Green]. Atlanta, John Knox Press, 1984, p. 150).
Storniolo acrescenta: “O endemoninhado vivia uma vida sub-humana ou
completamente desumana, reduzido praticamente a um bicho: nu,
acorrentado e algemado, morando em lugares desertos e cemitérios. Uma
figura do povo completamente alienado de si mesmo, vivendo como um
morto evitado por todos”. (Cf. STORNIOLO, Ivo. Como Ler o Evangelho de
Lucas: os pobres constroem a nova história. São Paulo, Paulus, 2006, p. 89).
564
Chouraqui comenta aqui que “o detalhe peculiar a Lucas desse possuído
levado para fora das cidades em direção aos desertos descrevería bem o
fenômeno de despopulação das cidades e dos vilarejos ou mesmo dos
campos, que é característico do país durante a ocupação romana”. (Cf.
CHOURAQUI, André. A Bíblia: Lucas. [Tradução de Leneide Duarte e Leila
Duarte]. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996, p. 146). Particularmente,
entendo que os demônios impelem o endemoninhado ao deserto porque “a
298
SA + ANÁS, D£IT1®NI©S £ LEGIé

- Os demônios suplicam a Jesus que não os mandem ao


abismo (Lc 8.31);565

- Os “gerasenos” ficam atemorizados ao tomarem ciência


do milagre (Lc 8.37).

d) Conclusão

De forma geral, podemos dizer que “os muitos problemas,


conflitos e mesmo as contradições dessa história sem dúvida
refletem uma evolução complicada, ao longo de décadas, de
uma narrativa mais simples para o relato barroco que Mc 5.1-20
nos apresenta. Como era na realidade a forma mais primitiva da
história, é difícil dizer”.566 Uma vez considerada a hipótese das
duas fontes, pudemos verificar que nossa perícope falta em Q,
pelo fato de Q ser uma coleção de sentenças e não de
milagres.567 Além disso, ela também está ausente em João.

morada natural destes era o deserto ou o abismo”. (Cf. GNILKA, Joachim. El


Evangelio Según San Marcos. Vol. I, p.239).
565 Fitzmeyer faz o seguinte comentário: “a palavra grega abyssos pode
denotar tanto a morada dos mortos (cf. SI 107.26; Rm 10.7) quanto a prisão
final de Satanás e dos demônios (Ap 20.3). Ela é usada muitas vezes na LXX
para traduzir o hebraico tèhõrn, o qual designava na cosmologia do AT o
“abismo aquoso”, ou o mar cósmico debaixo da terra, o símbolo do caos e da
desordem conquistado pelo criador. Conscientes de que este era o seu destino
final, os demônios agora imploram para não serem enviados para lá por hora.
Entretanto, de acordo com a demonologia popular da época, eles passeavam
pela terra, procurando uma morada nos lugares desertos, túmulos, ou ainda
nas pessoas dementes”. (Cf. FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According
to Luke 1-IX. Vol.28. [AB]. New York, Doubleday, 1981, p.739).
566 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III, p.172.
567 Confira o conteúdo de Q em: MACK, Burton L. O Evangelho Perdido: o
livro de Q e as origens cristãs. [Tradução de Sérgio Alcides]. Rio de Janeiro,
Editora Imago, 1994, pp.73-100. Para saber mais sobre “Q”, consulte ainda:
299
CARLSS AUGUS + ® VAILA + + I

Sendo assim, resta-nos dizer que esta perícope teve a sua origem
em Marcos, quem deve ter reunido algumas narrativas de
milagres e as incluído em seu Evangelho.568 Segundo Crossan, a
narrativa desse milagre pertence àquilo que ele chama de
Segundo Estrato (o qual está situado entre 60 e 80 d.C.), o qual
é testemunhado por apenas uma fonte: Marcos (a base do relato
para os sinóticos).569 Seja como for, o fato é que estamos diante
de um texto cuja estrutura é complexa, a qual não nos permite
apostar sobre qual era o seu formato primevo. Enfim, as
idiossincrasias do autor, difíceis de serem conhecidas por nós,
leitores do século XXI, fazem desse texto um texto ainda
enigmático sob o ponto de vista de sua gênese.

D. Crítica da Redação

Nesta última parte de nossa tarefa exegética, buscaremos


estudar as modificações que o redator final inseriu em sua obra.
Sabemos que, de acordo com a Crítica da Redação, os redatores
bíblicos são vistos como verdadeiros autores, que selecionaram,
modificaram e organizaram o material proveniente da tradição,
acrescentaram (criaram) novos textos e estabeleceram uma
estrutura geral da obra. Ao fazer esse trabalho, o redator expõe
seu estilo, suas habilidades literárias, sua teologia, seu Sitz irn
Leben (do autor, não do Gênero Literário) etc. Todavia, antes de
começarmos esse expediente, seria importante delinearmos um

ROBINSON, James M., HOFFMANN, Paul & KLOPPENBORG, John S. El


Documento Q. Salamanca, Ediciones Sígueme / Peeters Publishers, 2004.
568
Segundo Mack, estas narrativas de milagres eram oriundas do Norte da
Palestina e datavam de cerca do ano 50 A.D. Contudo, o autor sugere o ano
80 A.D. para a escrita do Evangelho de Marcos. (Cf. MACK., Burton L.
Op.Cit., p.249).
569
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a vida de um camponês
judeu do Mediterrâneo. [Tradução de André Cardoso], Rio de Janeiro, Ed.
Imago, 1994, pp. 31 e481.
300
SA + ANÁS, DEmÔNIOS E LEGIé

esboço geral do Evangelho de Marcos, a fim de que possamos


situar a nossa perícope.

D.í. Plano Geral do Evangelho de Marcos

1. 2. 3. 4. 5.
Introdução O A Viagem a Jerusalém: Epílogo:
Antes do Ministério Jerusalém Morte e Acréscimo
Ministério na Galiléia Ressurreiçã Conclusivo
0
1.1-13 1.14-8.26 8.27-10.52 11.1-16.8 16.9-20

Conforme esse plano geral, podemos dizer que o


Evangelho de Marcos está organizado de acordo com um roteiro
geográfico ou espacial, o qual enfatiza na primeira parte a
Galiléia como o lugar da atividade escatológica de Jesus e ponto
de partida da evangelização aos gentios (item 2: Mc 1.14-8.26)
e, na segunda parte, Jerusalém, centro de todo o sistema, o lugar
da morte de Jesus, onde se revela todo o ódio à sua pessoa e à
sua proposta (itens 3 e 4: Mc 8.27-16.8).570 A primeira parte
(item 2) busca levantar a questão: “Quem é Jesus?” e a segunda
parte (itens 3 e 4) responde a esta pergunta, pois mostra Jesus
revelando a sua identidade às pessoas.571 Nosso texto encontra-
se nessa primeira metade e, ao que parece, ele tem o objetivo de
servir de ensinamento aos discípulos.572 Isso pode ser visto nas
quatro narrativas que nos mostram atos extraordinários
realizados por Jesus: A Tempestade Acalmada (Mc 4.35-41), O
Endemoninhado Geraseno (Mc 5.1-20), A Cura da Hemorroíssa

570 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.33.
571 DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. [Tradução de
Benôni Lemos], São Paulo, Paulus, 1972, p.35.
572
Para uma análise estrutural de Mc 1-8, veja: TOWSEND, James A. A
Structural Synthesis of Mk 1-8. EmJ. Vol. 8, n°l. Dubuque, Emmaus Bible
College Press, 1999, pp.91-101.
301
CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I

(Mc 5.25-34) e A Ressurreição da Filha de Jairo (Mc 5.21-24,


35-43). Delorme faz um interessante comentário sobre esse
bloco taumatúrgico encontrado em Mc 4.35-5.43. Embora seja
um pouco extenso, creio ser importante mencioná-lo aqui:

Essas ações [compreendidas entre 4.35-5.43] se sucedem


no decorrer de alguma viagem: para ir à região dos gerasenos é
necessário atravessar o lago e, durante a travessia, desencadeia-
se a tempestade; do outro lado, em terra pagã, Jesus cura o
endemoninhado e volta para o território judeu. Jairo pede a
Jesus que vá curar sua filha; no trajeto, dá-se a cura da
hemorroíssa e, chegando à casa de Jairo, Jesus ressuscita a
menina. Eis uma estranha acumulação de fatos durante essa
viagem! Em Marcos, há sempre movimento; temos a impressão
dc que Jesus está constantemcntc apressado, sem um minuto a
perder, dc modo que, curiosamente, esses episódios se
encadeiam com as parábolas num mesmo dia. O encadeamcnto
é primeiramente local: durante as parábolas, a barca já estava
afastada da multidão e da margem judaica; mas também
encadeamcnto temporal: “Naquele dia, ao cair da tarde”,
escreve Marcos. Depois ele parece csqucccr-sc desta afirmação
c não diz em que hora as coisas aconteceram! A tempestade
acalmada, tê-lo-á sido durante a noite? E o episódio do
endemoninhado da região dos gerasenos também? Isso é
impossível. Depois, a filha de Jairo... O desenvolvimento desses
fatos é bastante inverossímil do ponto de vista histórico. Há,
portanto, outra razão para que Marcos no-los apresente no
mesmo dia. Qual é esta razão? A resposta talvez esteja no fato
de que as testemunhas dessas quatro ações sejam os discípulos.
Esses milagres não são para a multidão, mas para eles.573

Se Delorme estiver correto, então nosso relato tinha um


propósito didático, pois visava instruir os discípulos em relação
à identidade de Jesus. Em outras palavras, os acontecimentos
narrados em Mc 5.1-20 (juntamente com as outras três

573
DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos, pp.53,54.
302
SA + ANÁS, DÊIT1©NI©S E LEGIé

narrativas de milagres acoplados) teriam o objetivo de preparar


os discípulos para que estivessem aptos a responder à pergunta:
“Quem é Jesus?”. E a resposta a esta pergunta seria (focando
nosso texto): Jesus é o poderoso Filho de Deus que, com
autoridade, expulsa os demônios até mesmo em território
gentílico. Seja como for, a preocupação com a instrução dos
discípulos parece, de fato, ser algo marcante na primeira parte
do Evangelho.

2.
D. Atividade Redacional em Mc 5.1-20

Ao analisarmos o nosso texto, verificamos que 5.1 é


claramente redacional, pois o redator faz questão de localizar o
ambiente físico em que o milagre aconteceu, rqv xcópav tgdv
repaor|vwv, “a região dos Gerasenos”. Esta indicação
geográfica geral tem o objetivo de conduzir o leitor à cena do
acontecimento, visando dar maior historicidade e vivacidade ao
ocorrido. Como já foi dito anteriormente, nota-se, também, que
o Kcà do início do verso tem o objetivo de apenas “costurar”
5.1-20 com a perícope anterior, que trata da Tempestade no Mar
da Galiléia (4.35-41). Em 5.2 também parece haver indícios de
atividade redacional na expressão topográfica Kai è^cÀ.9óvTOç
aÒTOô (k toü irÀoíou, “e saindo ele do barco”. Tal expressão
visa explicar a mudança de cenário (do Mar para a terra firme).
Ainda no v.2 notamos o uso do advérbio eúQuç, logo, o qual
descreve um certo “imediatismo cronológico” que tem a
intenção de apenas dar movimento à narrativa. No que diz
respeito ao v.4, ele todo é claramente uma repetição ampliada
explicativa do v.3b, kccl oòôè àÀúoei ouk(tl oiiôeiç rôiívaro
cturòv ôfjoaL, “e nem com corrente ninguém podia prendê-lo”.
Outra repetição que aparece em nossa narrativa é a menção feita
aos sepulcros (vv.2,3,5). A insistência nessa repetição
topográfica teria o objetivo de chamar a nossa atenção para este
lugar de impureza. Se isto for correto, então estamos diante de

303
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

outra interferência do redator. O v.8 evidentemente é um


acréscimo posterior. A pergunta pelo nome do demônio (v.9)
depois da ordem de saída (v.8) e a própria forma de parêntese
explicativo do v.8 dão essa impressão.574* Já a referência ao
nome legião (vv.9,15) denuncia o Sitz im Leben do redator.
Como afirmou Myers, “esse termo só possuía sentido no mundo
social de Marcos: uma divisão de soldados romanos”. No que
diz respeito aos vv. 11-13, estes também devem ser um
acréscimo posterior a esta história de exorcismo. Como já foi
dito antes, seria complicado admitir que Jesus deliberadamente
destruísse uma propriedade alheia, neste caso, os porcos. Caso
tal expediente seja aceito, as implicações éticas que estão por
trás de tal ato comprometeríam por completo toda a cristologia
e, conseqüentemente, a base da fé cristã. Poderiamos questionar
se o v.16 também é redacional. Schenke crê detectar aqui a
intenção de Marcos: apresenta ele no “ver” a fé daqueles que
vêem.576577Finalmente, a ordem de ir para casa (vv. 18-20) é típica
da conclusão dos relatos de milagres (cf. Mc 1.44; 2.11; 5.34;
8.29; 10.52). A proclamação do ex-endemoninhado, por outro
lado, provém do interesse do evangelista. O v.20, com o qual é
577
concluída a narrativa, é de Marcos.
Em suma, podemos concluir estes breves apontamentos
que fizemos sobre a atividade redacional em nossa perícope
dizendo que, no todo, Mc 5.1-20 é um texto muito heterogêneo,

574 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. 1:1-8, p.220.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira], São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.238.
576
SCHENKE, L. Die Wunderezãhlungen des Markusevangeliums, 1974
(SBB), p. 182. Apud: GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos.
Vol. I, p.235.
577 GNILKA, Joachim. Op.Cit., p.235. Segundo Kennedy, Mc 5.20 é o
encerramento de uma unidade retórica. (Cf. KENNEDY, George A. New
Testament Interpretation Through Rhetorical Criticism. Chapel Hill, The
University of North Carolina Press, 1984, p.34).
304
sa+anás, DemôNies e legiã®

fragmentado e complexo que possui vários acréscimos


posteriores que lhe foram feitos. Percebe-se em nossa perícope
uma atividade redacional muita intensa, a qual toma muito
difícil saber qual era o relato mais primitivo dessa magnífica
história de exorcismo.578

3.
D. Autor, Tempo, Lugar e Destinatários
Estes quatro termos acima citados visam responder às
seguintes perguntas (respectivamente): 1) Quem escreveu o
Evangelho de Marcos? 2) Quando ele foi escrito? 3) Onde foi
escrito? e 4) Para quem foi escrito? Por fim, tais perguntas nos
conduzirão a uma última pergunta, também muito importante,
por que este Evangelho foi escrito? Portanto, já que levantamos
as questões, vamos tratar agora de respondê-las.
Em primeiro lugar, quem escreveu o segundo Evangelho?
Eusébio de Cesaréia (263-340 d.C.), em sua História
Eclesiástica, Livro 2, Capítulo XV, escreve o seguinte a esse
respeito:

(...) os ouvintes de Pedro (...) suplicaram a Marcos, cujo


Evangelho temos, que, como companheiro dc Pedro, lhes
deixasse um registro escrito do ensino que lhes fora dado
verbalmente. Também não interromperam os apelos até o
convencer, tornando-se assim a causa da história chamada
Evangelho segundo Marcos. E eles dizem que o apóstolo
(Pedro), sabendo por revelação do Espírito o que fora feito,
agradou-se com o zelo fervoroso expresso por eles e ratificou a
escritura para que fosse lida nas igrejas. O relato é dado por

578
Para obter outras informações sobre a atividade redacional em Mc 5.1-20,
consulte: KIRSCHNER, Estevan Frederico. The Place of the Exorcism Motif
Mark’s Christology With Special Reference to Mark 3.22-30. Dissertação de
Doutorado, London, London School of Theology, 1988, pp.98-100.
305
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

Clemente no sexto livro de suas Instituições, e o bispo de


579
Hierápolis, chamado Papias, o confirma.

Além de Eusébio, Papias (70-130 d.C.), um bispo da Ásia


Menor, cita um presbítero chamado João. Eusébio, citando
Papias, que, por sua vez, cita esse tal presbítero, faz o seguinte
relato:

Marcos, sendo o intérprete dc Pedro, tudo o que


registrou, escreveu-o com grande exatidão, não, entretanto, na
ordem em que foi falado ou feito por nosso Senhor, pois não
ouviu nem seguiu nosso Senhor, mas, conforme se disse, esteve
cm companhia de Pedro, que lhe deu tanta instrução quanto
necessária, mas não para dar uma história dos discursos de
nosso Senhor. Assim, Marcos não errou em nada ao escrever
algumas coisas como ele as recordava; pois teve o cuidado de
atentar para uma coisa: não deixar de lado nada que tivesse
580
ouvido nem afirmar nada falsamcnte nesses relatos.

Esse relato de Papias, o mais antigo a mencionar Marcos


como o autor do Evangelho que leva o seu nome, é a fonte mais
citada pelos estudiosos, a qual nos fornece a base para a
aceitação da identidade do redator do segundo Evangelho.
Estas declarações, as de Eusébio e de Papias (principalmente
este último), fizeram com que o segundo Evangelho tivesse a
sua autoria tradicionalmente atribuída a Marcos. Contudo, se
este Marcos é uma referência ao João Marcos que aparece em

CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. [Tradução de Lucy


lamakatni e Luís Aron de Macedo]. Rio de Janeiro, Cpad, 1999, p.62.
CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica, pp. 118,119.
581
Todavia, Schnelle cita algumas objeções quanto a esta declaração de
Papias. (Cf. SCHNELLE, Udo. The History and Theology of New Testament
Writings. London, SCM Press Ltd., 1998, pp. 199,200). Para outra discussão
sobre essa declaração de Papias, cf. METZGER, Bruce M. The Canon of the
New Testament. Oxford, Clarendon Press, 1987, pp.51-56.
306
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

textos como: At 12.12, 25; 13.5, 13; Cl 4.10; 2 Tm 4.11; Fm 24,


é difícil dizer.
Em segundo lugar, quando o Evangelho de Marcos foi
escrito? Já dissemos anteriormente que, segundo nossa opinião,
este Evangelho teria sido escrito pouco tempo depois do ano 70
d.C. Todavia, creio ser importante mencionar aqui o comentário
de Martin Hengel sobre a datação do segundo Evangelho:

As introduções e os comentários mais recentes trazem


uma excelente demonstração da unanimidade em conjecturar
uma origem após a destruição de Jerusalém, isto é, em algum
lugar entre os anos após agosto de 70. Contudo, J. A. T.
Robinson tem sugerido o período entre 45 e 60 em seu
estimulante livro Redating the New Testament (1976), que é
provocativo pelo fato destas questões serem tão tomadas por
certo. Em um excelente artigo, Günther Zuntz sugere um
período imediatamente antes do fim do reinado de Caligula,
tendo como base Mc 13.14ss. Ele argumenta que Mc 13.14 faz
referencia à estátua que o imperador megalomaníaco quis
levantar no templo, e Caligula foi assassinado cm 24.01.41. A
assim chamada erudição ‘conservadora’ permanece no meio -
algumas vezes, até certo ponto para sua surpresa; eruditos aqui
consideram como mais provável uma data após a perseguição
582
Ncroniana, mas antes do fim do segundo templo.

Embora não haja um consenso quanto à datação do


segundo Evangelho - conforme acabamos de ver -
permanecemos ainda em nossa posição, conforme exposto
acima.

HENGEL, Martin. Studies in the Gospel of Mark. Oregon, Wipf and


Stock Publishers, 1985, pp.1,2. Hengel ainda escreveu um artigo cuja
tradução do título, para o português, é: Problemas Literários, Teológicos e
Históricos no Evangelho de Marcos, in: STUHLMACHER, Peter, (ed.). The
Gospel and the Gospels. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing
Company, 1991, pp.209-251.
307
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

Em terceiro lugar, onde o Evangelho de Marcos foi


escrito? Hõrster acredita que seja impossível identificar o local
da escrita do segundo Evangelho, argumentando que “com base
nas orientações de Jesus em Marcos 13.14, a igreja primitiva
abandonou Jerusalém antes do cerco dos romanos e fugiu para
Pela, na Peréia. Isto sugere que estas orientações teriam sido
escritas antes de 66 d.C. Dessa perspectiva é impossível fazer
afirmações quanto ao local em que foi escrito o evangelho”.583584585
Por outro lado, Theissen entende que a sua escrita tenha
ocorrido na Síria. Kümmel, que descarta a possibilidade do
Evangelho ter sido escrito na Galiléia ou na Transjordânia,
declara de forma um tanto quanto vaga que a sua escrita deve ter
ocorrido emc omeio
c a uma “comunidade cristã oriental composta
de gentios”. Por fim, Carson, Moo e Morris vêem em Roma a
melhor opção para o local da escrita de Marcos. Segundo estes
autores: “Conquanto seja impossível ter certeza a respeito, uma
procedência romana é a melhor alternativa, devido ao peso da
tradição antiga e à ausência de qualquer evidência contrária no
Novo Testamento”.586 Mesmo ciente da incerteza da localização
exata da redação do segundo Evangelho, também sou propenso
a aceitar Roma como a localidade mais provável.
Em quarto lugar, quem seriam os destinatários do
Evangelho de Marcos? Tem sido uma opinião quase unânime
que o segundo Evangelho foi direcionado para a mente romana.

583
HÕRSTER, Gerhard. Introdução e Síntese do Novo Testamento.
[Tradução de Valdemar Kroker]. Curitiba, Editora Evangélica Esperança,
1993, p.30.
584
THEISSEN, Gerd. O Novo Testamento. [Tradução de Carlos Almeida
Pereira], Petrópolis, Vozes, 2007, p.75.
585
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. [Tradução
de Isabel Fontes Leal Ferreira e João Paixão Neto], São Paulo, Paulus, 1982,
p.117.
586 CARSON, D.A., MOO, Douglas J. & MORRIS, Leon. Introdução ao
Novo Testamento. [Tradução de Mareio Loureiro Redondo]. São Paulo, Vida
Nova, 1997, p.108.
308
sa+anás, DemêNies e lêgiã©

O hábito marcano de explicar termos e costumes judaicos aponta


para leitores gentios (cf. 5.41; 7.2-4, 11, 34). As declarações de
Clemente de Alexandria no sentido de que aqueles em Roma
que ouviram Pedro pregar insistiram que Marcos proveu-lhes
um relato escrito são base suficiente para acreditar que o
Evangelho foi escrito provavelmente para cristãos romanos. Que
os leitores fossem romanos, talvez nascidos fora, nota-se pela
presença de certos latinismos que ocorrem no livro. Que eles
eram cristãos é ainda mais confirmado pela introdução ao
Evangelho, na qual um conhecimento prévio por parte dos
leitores é presumido. João Batista é introduzido sem nenhuma
tentativa de identificação; seu aprisionamento é mencionado,
ainda que os leitores já estivessem familiarizados com o fato; os
termos baptisma (1.4) e Espírito Santo (1.8) são usados sem
qualquer explicação.587
Finalmente, estas quatro perguntas feitas anteriormente
nos conduzem a uma última pergunta: por que este Evangelho
foi escrito? Esta é uma pergunta muito difícil de responder, pois
“Marcos reuniu muitos episódios da vida e do ministério de
Jesus entrelaçando-os criativamente numa nova e vivida
unidade”.588589Contudo, podemos arriscar alguns palpites a esse
respeito. Para Morris, o propósito de Marcos está centrado nas
boas novas de Jesus Cristo que, segundo ele, pode significar “as
boas notícias sobre Jesus Cristo” ou “as boas notícias que Jesus
• coo
Cristo pregou”. Já Hurtado entende que o objetivo do
Evangelho é duplo: apresentar um retrato de Jesus do ponto de
vista da fé cristã e ensinar sobre como ser seguidor de Jesus, isto

587 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC. Chicago, Moody


Press, 1987, p.988.
588
MULHOLLAND, Dewey M. Marcos, Introdução e Comentário.
[Tradução de Maria Judith Prado Mengal. São Paulo, Vida Nova, 1978, p.23.
589
MORRIS, Leon L. Teologia do Novo Testamento. [Tradução de Hans
Udo Fuchs]. São Paulo, Edições Vida Nova, 2003, p.l 13.
309
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + + I

é, seu discípulo.590 Todavia, creio que Mesters e Lopes


descrevem melhor (e de forma muito prática) quais são os
principais objetivos de Marcos ao escrever seu Evangelho.
Segundo estes autores, “Marcos queria que as comunidades,
lendo as coisas que Jesus fez e falou, encontrassem a resposta
para estas perguntas: Quem é Jesus para nós e quem somos nós
para Jesus? Como ser discípulo e dsicípula? Como anunciar a
Boa Nova de Deus que ele nos revelou? Como andar pelo
caminho que ele nos indicou?”.591 Em outras palavras, Marcos
tem o duplo objetivo de: 1) nos revelar a identidade de Jesus e 2)
nos ensinar a sermos seus discípulos.

2.3. Conclusão

Em nossos esforços exegéticos, tentamos aprofundar a


nossa compreensão da perícope de Mc 5.1-20. Nossa abordagem
demonstrou quão complexo é o texto, mas também nos permitiu
ver a riqueza de detalhes que o mesmo nos oferece. Vimos ainda
em nossa exegese que é muito difícil descobrir qual teria sido a
forma mais primitiva de nosso relato, devido às várias camadas
literárias que o compõem, resultado dos vários acréscimos
posteriores que lhe foram feitos. Tais expedientes tomaram o
texto muito heterogêneo e fragmentado. Além disso, pudemos
perceber que este relato descreve de forma muito vivida a
incomparável superioridade de Jesus face ao poderio destrutivo
dos demônios. Trata-se de um texto cujo teor é altamente
cristológico, pois embora os demônios “aprontem” muito, é, na

HURTADO, Larry W. Marcos. (Novo Comentário Bíblico


Contemporâneo). [Tradução de Oswaldo Ramos]. São Paulo, Editora Vida,
1995, pp. 19-21.
591
MESTERS, Carlos & LOPES, Mercedes. Caminhando com Jesus:
círculos bíblicos do evangelho de Marcos. São Leopoldo, Ceb / São Paulo,
Paulus, 2003, p.8.

310
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S £ LEGIé

verdade, Jesus, quem domina toda a cena. Em suma, dentre os


relatos de exorcismo, este é o mais espantoso de todos, o qual
demonstra o poder prevalecente do Filho do Deus Altíssimo
sobre a Legião demoníaca.
A seguir, faremos uma análise hermenêutica de Mc 5.1-
20, buscando, através de vários autores, enriquecer ainda mais o
significado de nossa perícope.

311
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

312
CAPÍTUL© III
ANÁLISE HERITIE NÊU +1CA DE mC 5.1-20
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

314
SA+ANÁS, DÊHIÔNieS Ê LEGIî

CAPÍTULO III - ANÁLISE HERMENÊUTICA


DE MC 5.1-20

No capítulo anterior, através da análise exegética


buscamos interpretar cientificamente o texto de Mc 5.1-20.
Agora, porém, nossa análise se voltará para a hermenêutica
bíblica, a qual busca estudar os princípios que regem a
interpretação do texto bíblico.592 Contudo, um esclarecimento
deve ser feito aqui. Neste capítulo, buscaremos manter um
diálogo com outros autores e suas respectivas interpretações
sobre essa passagem. Tal abordagem enriquecerá ainda mais o
nosso estudo e nos possibilitará enxergar por novos ângulos a
perícope sobre o endemoninhado geraseno. Comecemos, então,
a nossa análise.

3.1. A Interpretação dos Pais da Igreja e de


Outros Autores da Era Patrística

Quando nos referimos à chamada “Era Patrística”, estamos


querendo nos reportar “aos primeiros séculos da igreja depois da
redação do Novo Testamento ou aos pais da igreja primitiva e
aos escritores daquele período (geralmente 100-750 d.C.)”.593
Por entender que a interpretação de Mc 5.1-20 (e seus paralelos
sinóticos) feita por alguns dos pais da igreja e outros autores -
seus contemporâneos - mereça um comentário à parte, logo, nós
a inserimos aqui de forma separada. A fim de estruturar a minha
abordagem deste tópico, optei por organizá-lo de forma mais ou
menos cronológica (isto é, partindo dos pais da igreja e autores
mais antigos até os mais recentes) e, ao mesmo tempo, de forma

592
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.339.
593 GRENZ, Stanley J., GURETZKI, David & NORDLING, Cherith Fee.
Dicionário de Teologia. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Editora
Vida, 2000, p.101.
315
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I

individual, buscando mencionar um pouco do que cada um


desses homens comentou acerca do nosso texto e seus paralelos.
Acredito que os comentários feitos por estes ilustres
personagens da história da igreja poderão contribuir para a nossa
compreensão do relato sobre o endemoninhado geraseno.
Vejamos o que eles disseram:

a) Orígenes (c. 185-254 d.C.)

Este pai da igreja grega, até onde sei, foi quem nos
forneceu (dentre os demais pais da igreja) algumas das
informações mais antigas sobre a nossa passagem. Em seu
comentário sobre Jo 6.41, por exemplo, Orígenes ressaltou as
dificuldades entre os registros, “Gerasa” (o mais comumente
aceito) e “Gadara” (a qual ficava há seis milhas da margem do
lago),594 e sugeriu que o local mais apropriado para a ocorrência
do nosso relato de exorcismo poderia ser Gergesa, a qual ficava
próxima ao lago, e estaria associada com os Girgaseus do
Antigo Testamento.595 Porém, Cranfield comenta que “Orígenes
estava certo em procurar um local próximo do lago, mas foi
incorreto em conectá-lo com os Girgaseus mencionados no
Antigo Testamento”.596 Conforme mencionado anteriormente,
creio que a semelhança existente entre as palavras “girgaseus” e
“gergesenos” motivou Orígenes a relacionar um termo ao outro.
Seja como for, embora o comentário de Orígenes seja de

594
O equivalente a 9654 m.
595
LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.181. Segundo Swete: “Jerônimo, quem, como Orígenes, conheceu a
Palestina, confirma o testemunho da existência de uma Gergesa à costa leste
do lago”. (Cf. SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.91).
596
CRANFIELD, C. E. B. The Gospel According to St. Mark, p. 176. Hugh
Anderson declara que a variante “gergesenos” refere-se a uma “conjectura de
Orígenes, originando-se provavelmente de Gn 10.16”. (Cf. ANDERSON,
Hugh. The Gospel ofMark. [NCBC], p.147).
316
SA+ANÁS, DEm®Nl®S E LEGIî

natureza geográfica, contudo, vejo-o com bons olhos, pois suas


palavras demonstram a sua tentativa de harmonizar o relato a
uma localidade que lhe fosse coerente. Sendo assim, teríamos
em Orígenes uma das primeiras pessoas (senão a primeira) a
fazer uma crítica textual a respeito da localidade onde teria
ocorrido o episódio do endemoninhado geraseno.

b) Efrém de Nisibi (c. 306-373 d.C.)

Este sacerdote oriental, nascido na cidade de Nisibi, na


Turquia, em um comentário introdutório sobre o relato acerca do
endemoninhado geraseno, diz o seguinte:

Os demônios desaparecem e não se volta a fazer menção


deles. Pode ser que o leitor se pergunte o que lhes sucedeu
depois que os porcos se afogaram. Ainda que a narrativa não
nos proporcione resposta a esta questão, podemos fazer algumas
observações. A primeira e mais chamativa c a misericórdia de
Jesus.597

Além disso, em seu Comentário ao Diatessarão 6.26,


Efrém fala sobre a saída dos demônios do homem e a sua
respectiva entrada nos porcos da seguinte maneira:

Os gerasenos haviam decidido não sair nem ir ver ao


milagre de nosso Senhor. Por isso, Ele afoga sua manada de
porcos, para que saiam contra sua vontade. A “legião” castigada
é imagem do mundo... Permitiu-se aos demônios entrar nos
porcos, mas se lhes impediu entrar na imagem de Deus... A
respeito de quem haviam dito que “expulsa os demônios pelo
poder de Belzebú”, é o mesmo que luta contra Satanás na

ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas. [La Biblia


Comentada por los Padres de la Iglesia y otros autores de la época patrística].
Vol.3. Madrid, Editorial Ciudad Nueva, 2006, p.206.
317
CARLOS AUGUS + © VAILA + +I

montanha e aqui contra Legião, seu chefe. “Quando entraram


nos porcos, num instante, se afogaram”, para que aparecesse a
bondade do Senhor que protegia a este homem... Também esta
parábola testemunha igualmente que lhe suplicavam que não
lhes ordenasse ir à geena.598

Estes breves comentários de Efrém a respeito do relato


sinótico de Lucas sobre o endemoninhado geraseno, além de nos
mostrarem que este religioso enxergava aquela passagem como
uma “parábola”, revelam-nos também a forte tendência da época
para a interpretação alegórica, pois, segundo Efrém, “a ‘legião’
castigada é imagem do mundo...”. O autor ainda faz uma
interessante suposição. Para ele, o afogamento dos porcos no
mar ocorre devido à relutância dos gerasenos em não quererem
testemunhar o milagre feito por Jesus.

c) Hilário de Poitiers (c. 315-368 d.C.)

Hilário de Poitiers, importante bispo da igreja antiga,


também nos legou alguns interessantes comentários sobre o
nosso texto. Primeiramente, ele nos diz:

Que irônico c que o possuído pelo demônio confessasse a


Jesus como Filho do Deus Altíssimo c que conhecesse quem era
Jesus melhor que os hereges!599

Ainda em seu Sobre a Trindade, 6.49, Hilário comenta:

Acaso os demônios ignoraram o sentido próprio deste


nome?600Convém que os hereges sejam refutados não só com

Comentário sobre Lc 8.22,33 in: ODEN, Thomas C. (ed.). Op.Cit., p.208.


599
ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, p.205.
600 Hilário se refere aqui ao nome de Jesus.
318
SA+ANÁS, DEITI©NI©S E LEGIé

os ensinos dos apóstolos, mas também pela boca dos demônios,


pois estes clamam, e além do mais, com freqüência: “Que tenho
eu que ver contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?”. A
verdade, ainda que apesar deles, lhes arrancou esta confissão, e
a dor de sua obediência manifesta o poder da natureza [de
Jesus]. São derrotados por sua força quando abandonam os
corpos que estavam possuídos por longo tempo. Ao confessar
sua natureza divina lhe rendem honra. Com isto se demonstra
com as palavras e as obras que Cristo é o Filho de Deus. Com
estas confissões dos demônios, de onde deduzes, ó herege!, o
nome de criatura e a benevolência da adoção?601602

Aqui, Hilário imprime um tom fortemente marcado pela


apologética em seu discurso. Ele combate principalmente o
arianismo, que vê Jesus como um ser criado por Deus, e também
as concepções adocionistas, as quais ensinavam que Jesus havia
sido escolhido por Deus para ser elevado à categoria de filiação
divina por ocasião de seu batismo no Rio Jordão. Uma vez
que as heresias eram muitas naqueles tempos antigos, o forte
tom apologético empregado por Hilário em sua referência ao
nosso texto se justifica.

d) Cromácio de Aquiléia (335-408 d.C.)

Este bispo cristão, pouco conhecido na atualidade, faz


alguns interessantes comentários sobre a passagem sinótica de
Mt 8.28-34, parte dos quais mencionaremos a seguir. Segundo
Cromácio, os endemoninhados eram cativos da idolatria e
viviam apartados da comunidade de fiéis. Ele ainda diz que os
porcos constituíam-se em moradas apropriadas para os

ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, p.207.


602 ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã, p. 10.
319
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I
/O')
demônios. Além disso, Cromácio recorre a uma curiosa
interpretação alegórica ao falar a respeito de Mt 8.28,29.
Vejamos as suas palavras:

Vieram ao seu encontro dois endemoninhados, que saíam


dos sepulcros. (...) Isto é o que se há de entender em primeiro
lugar, conforme o sentido literal. Segundo a leitura alegórica,
esses dois endemoninhados que na terra dos gerasenos, isto é,
na terra dos gentios, saem ao encontro do Senhor, são figura de
dois povos: ou vêm dos descendentes de cão c Jafé, dois filhos
dc Noc (já que a origem do povo judeu se remonta a Sem, filho
primogênito de Noé), ou vêm dos judeus e dc todos os gentios
que se encontravam aprisionados pelo diabo no erro da
idolatria, carregados das cadeias dc suas culpas e dos grilhões
dc seus pecados c que não habitavam dentro da cidade (isto é, o
tipo dc vida segundo a lei c os mandamentos divinos), senão
entre os monumentos sepulcrais (a saber, o culto idolátrico),
dando culto às tumbas dos reis ou às estátuas de homens
mortos. Assim, pois, para salvar a estes, desceu desde a Judeia
ate a região dos gerasenos, ou seja, assumindo um corpo da
virgem Maria quis levar a luz à terra dos gerasenos, este mundo,
para libertar a estes endemoninhados, os povos, das cadeias do
cativeiro diabólico.*604

Ainda que tal interpretação adotada por Cromácio esteja


impregnada pelo elemento alegórico, não devemos, contudo, nos
apressar em querer colocá-lo no banco dos réus, pois tal tipo de
hermenêutica era muito comum naquele período e veio a ser

ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13). [La Biblia
Comentada por los Padres de la Iglesia y otros autores de la época patrística],
Vol.la. Madrid, Editorial Ciudad Nueva, 2004, p.238.
604 AQUILEYA, Cromácio de. Comentário al Evangelio de Mateo. [BP].
[Traducción de José Granados y Javier Nieva]. Madrid, Editorial Ciudad
Nueva, 2002, pp.284,285. Cf. também: ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio
Según San Mateo (1-13), p.238.
320
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

predominate durante toda a Idade Média.605606


Além disso, ao
comentar Mt 8.30, Cromácio diz:

(...) os porcos aos quais fogem os demônios são figura


dos homens infiéis e impuros que, pastando junto ao mar, isto é:
vivendo segundo os pecados do mundo, se apresentam como
uma morada digna para os demônios. Deste modo, os afogam
os demônios, ao retê-los no mar deste mundo, a saber, na
profundidade do erro, graças às diversas seduções
pecaminosas. 606

Finalmente, ao comentar Mt 8.33, eis as palavras de


Cromácio:

Nos porqueiros que (...) rogaram ao Senhor que se


afastasse de seu território, se mostra a figura dos príncipes dos
judeus ou a dos sacerdotes dos ídolos. Estes, ministrando a
homens imundos e infiéis os pastos de seu erro e infidelidade,
os alimentam como aos porcos, com vistas à morte eterna. (...)
Por outro lado, como a interpretação espiritual é múltipla, pode-
se entender de outra maneira, de modo que nestes dois vejamos
dois povos, como antes temos ensinado, que têm sido libertados
da atadura dos demônios pela fé e graça de Cristo. Nos porcos
percebemos aos hereges, a quem se sabe que passaram [os
demônios] uma vez expulsados dos povos dos crentes. Nos
porqueiros, aos autores das heresias e aos doutores da perfídia
que oferecem a estes mesmos hereges, como a porcos, os vis e
imundos pastos de uma doutrina completamente depravada,
apacentando-os não para a vida, senão para a morte. Estes não

De acordo com Dockery, a abordagem alegórica era adotada neste


período com fins apologéticos e teológicos. (Cf. DOCKERY, David S.
Hermenêutica Contemporânea à Luz da Igreja Primitiva. [Tradução de
Álvaro Hattnher], São paulo, Editora Vida, 2005, p.80).
606 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.239;
AQUILEYA, Cromácio de. Comentário al Evangelio de Mateo, p.286.
321
CARLOS AUGUS + O VAILA + + I

são alimentados por seus doutores com o pão celeste, nem com
o alimento da vida que salva, senão com a vil e imunda doutrina
da incredulidade.607

Aqui, ao dizer que “a interpretação espiritual é múltipla”,


Cromácio segue de perto a Orígenes. Cromácio ensina que
enquanto o significado literal de uma passagem é único,
contudo, o significado espiritual da mesma (por exemplo,
alegórico) pode conter mais de uma interpretação.608 Assim, a
interpretação mais “profunda”, a alegórica, acabou encontrando
um terreno fértil para a sua proliferação nos primórdios da
história da igreja cristã.

e) Ambrósio (340-397 d.C.)

Ambrósio, teólogo e líder da igreja, exerceu influência


especial sobre Agostinho, a quem ensinou e batizou.609 Mas,
além disso, Ambrósio também nos presenteou com alguns
comentários feitos sobre o relato sinótico de Lc 8.26-39. Em um
comentário introdutório feito a essa passagem, ele diz:

Este endemoninhado era um gentil impuro de fora dc


Israel. As leis referentes aos gentios castigavam com a morte a
quem fosse surpreendido na vaidade dc seus cultos pagãos (...).
Os espíritos impuros se acham agora cm alguns animais
impuros. Os porcos constituem uma das moradas naturais dos
demônios. (...) A presença de Jesus, identificado pelo diabo
como “Filho do Deus Altíssimo”, é recebida com fé por alguns
e rejeitada por outros (ambas as reações tratadas na parábola do

607 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), pp.240,241;
AQUILEYA, Cromácio de. Comentário al Evangelio de Mateo, pp.286,287.
608 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.240.
609 ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã, p. 12.
322
SA + ANÁS, D£ffi©Nl©S £ LEGIî

semeador); duas reações representadas pela sinagoga e pela


■ 610
igreja.

Aqui, é digno de nota que Ambrósio associe a “Legião”


com o diabo. Além disso, percebe-se novamente um toque
alegórico na interpretação, sendo que a rejeição a Jesus
representa a atitude da sinagoga (isto é, os judeus) e a aceitação
a ele representa o comportamento da igreja, a qual o recebe com
fé. Ao dar continuidade ao seu comentário, Ambrósio prossegue
com a sua alegorização da passagem:

Agora, visto que sabemos pelo livro segundo Mateus que


no país dos gerasenos os homens possuídos pelo demônio são
apresentados a Cristo, ainda que aqui Lucas ponha em cena a
um somente, e nu (está nu o que tem perdido o vestido de sua
natureza e de sua virtude); penso que este aparente desacordo
dos evangelistas quanto ao número não deva ser passado por
alto, senão que há que buscar seu motivo. Efetivamente, ainda
que não haja acordo no que diz respeito ao número, há em
relação ao mistério. Este homem possuído pelo demônio é
figura do povo gentio, coberto de vícios, nu para o erro e
descoberto para o crime.610
611

Ambrósio continua com seu pensamento, argumentando


que os espíritos malignos são enviados por Deus àqueles que
são maus. Sendo assim, nota-se em suas palavras seguintes um
conceito fortemente marcado pela idéia de ambivalência divina:

Vemos, pois, que o homem é o artífice de seu próprio


tormento. Com efeito, se não houvesse vivido à maneira de um
porco, o diabo não teria recebido poder sobre ele; ou o recebeu
não para perdê-lo, senão para prová-lo (...). Mas, dirá alguém:

610 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, pp.205,206.


611 Idem, Ibidem, p.207.
323
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + + I

Por que Deus permite isto ao diabo? A fim, diria eu, de que
sejam provados os bons e castigados os maus. Tal é, com efeito,
a pena do pecado. (...) ademais, como Deus envia a febre, o
tremor, os espíritos malignos e a cegueira c todos os açoites,
segundo os méritos dos pecadores. 612

Por fim, Ambrósio conclui:

(...) assim sucedeu ao povo de Gerasa, que, saindo da


cidade, na qual parecia residir a figura da sinagoga, lhe rogava
que sc retirasse porque se havia apoderado deles um grande
temor (...). Mas, por que o homem libertado [do demônio] não c
acolhido por Jesus, senão que lhe adverte que volte para sua
casa? Não c para evitar uma ocasião de vangloria, e para que
seu exemplo mostre aos infiéis que esta morada é a lei natural?
Por isso, havendo obtido o remédio da cura, sc lhe prescreve
voltar desde as tumbas c sepulcros a esta morada espiritual, a
fim dc que chegue a ser templo de Deus o que era sepulcro da
. 613
alma.

Assim, Ambrósio termina as suas considerações sobre o


endemoninhado geraseno de forma um tanto quanto poética e
simbólica.

f) Jerônimo (c. 340-420 d.C.)

Este conhecido expoente da igreja latina e também


tradutor da Vulgata, ao comentar Mc 5.8, declara:

Sai deste homem, disse também cm outro lugar a uma legião


de demônios, para que saísse de um homem c entrasse nos porcos.
Veja quão preciosa é a alma humana. Isto contradiz àqueles que creem
que nós e os animais temos uma mesma alma e arrastamos um mesmo*

612 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, p.208.


613 Idem, Ibidem, p.209.
324
SA + ANÁS, D£m©NI®S £ LEGIî

espírito. De um só homem é expulsa a legião e enviada a dois mil


porcos, o que nos faz ver que é precioso o que se salva e de pouco
valor o que se perde. Saia deste homem e se dirija aos porcos, se dirija
aos animais, se dirija para onde quiseres, se dirija aos abismos.
Abondone ao homem, isto é, abandone uma propriedade
particularmente minha. Saia deste homem: não quero que tu possuas
ao homem; é para mim uma injúria que tu habites no homem, sendo
eu o que habito nele. Eu assumi corpo humano, eu habito no homem.
Essa carne, que possues, é parte de minha carne, portanto, saia do
homem!614

Em outro momento, ao comentar a rejeição de Jesus


pelos habitantes de Gadara, em Mateus, Jerônimo diz que
“pediram a Jesus que abandonasse sua vizinhança. Inclusive,
sabiam que eram indignos da presença do Senhor”.615 Mais
adiante, ao comentar sobre Mt 8.34, Jerônimo irá retomar esse
pensamento, dizendo:

Os que pedem que se retire de seu território não o fazem


por soberba - como pensam alguns - senão por humildade,
julgando-se indignos da presença do Senhor; como Pedro,
quando na pesca milagrosa se lançou diante do Salvador e lhe
disse: “Afasta-te de mim, Senhor, que sou um pobre
pecador”.616

Finalmente, no que concerne à crítica textual de Mc 5.1,


já citamos anteriormente Swete, o qual comenta que “Jerônimo,
que conheceu a Palestina como Orígenes, confirma o
testemunho sobre a existência de uma Gergesa à costa leste do
lago”.617

614 JERÔNIMO. [San Jerônimo], Comentário al Evangelio de San Marcos.


[BP], p.54.
615 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.238.
616 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.240.
617 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.91.
325
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +I

g) João Crisóstomo (347-407 d.C.)

Este famoso pregador e teólogo da igreja Oriental Grega


era conhecido principalmente por sua eloqüência na pregação.618
E, por falar em pregação, em sua homilia sobre o Evangelho de
Mateus, mais precisamente sobre Mt 8.28-34, Crisóstomo faz a
seguinte declaração sobre a súplica que os demônios fazem a
Jesus:

“Tens vindo - dizem - a atormentar-nos antes do


tempo?”. Não podiam dizer que não haviam pecado; mas pedem
pelo menos que não sc lhes castigue antes do tempo. Como o
Senhor os havia surpreendido cometendo todos aqueles atos
intoleráveis e iníquos, e atormentando e torturando de todos os
modos imagináveis aos que eram criaturas suas, os demônios
criam que pela enormidade de seus crimes o Senhor não
esperaria o tempo do castigo, e por isso rogavam e suplicavam.
E os que não suportavam nem as cadeias de ferro, se
apresentavam diante dele como maniatados; e os que moravam
nos montes, descem por si mesmos à planície; e os que a outros
se lhes impediam de seguir seu caminho, se detêm diante do
mesmo que a eles lhes vêm a obstruir o passo.619

Percebe-se, na homilia de Crisóstomo, um tom


discursivo eminentemente prático, cujo propósito deveria ser o
de instruir ao seu público de ouvintes e cuja tônica é
acentuadamente cristã.

h) Cirilo de Alexandria (376-444 d.C.)

618 ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã, p.39.


61Q
ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.239.
326
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

Cirilo foi um patriarca e teólogo de Alexandria que


enfatizava a unidade da pessoa de Cristo. Ao fazer seus
comentários introdutórios sobre a passagem sinótica de Lc 8.26-
39, ele diz:

Neste milagre aparecem detalhes que podem parecer


estranhos aos ouvidos de quem nunca viu uma pessoa possuída
pelo demônio: a nudez, as cadeias, a loucura, a queda e a
destruição da manada. Mas os detalhes põem bem às claras a
crueldade dos demônios quando chegam a possuir uma pessoa.
Jesus liberta aos que estão presos pelas forças diabólicas e,
portanto, os demônios o temem. Eles se mostram altaneiros c
orgulhosos em sua forma de dirigir-se a Jesus. (...) Jesus
pergunta ao demônio o seu nome para levar a cabo o plano da
salvação, porque quer libertar esse homem dos numerosos
demomos que o possuem.
Aqui, Cirilo enfatiza a crueldade à qual uma pessoa é
submetida quando é possuída pelos demônios, ao mesmo tempo
em que ressalta a supremacia de Jesus sobre eles. Ao continuar o
seu pensamento, ele afirma:

A quem os demônios possuem e caem em suas mãos, cm


seguida lhes fazem os mais miseráveis, lhes privam de todo
bem e lhes destituem de toda modéstia; ademais, lhes privam
totalmente inclusive da própria razão. Mas alguns perguntam:
como podem possuir aos homens? (...). Com efeito,
providencialmente o Deus do universo permite que alguns
sejam submetidos aos demônios, não para fazê-los sofrer, mas
para que nós aprendamos através deles como nos tratam os
demônios e evitemos nos submeter a eles; certamente com um
622
que sofira são edifícados muitos.*

620 ERICKSON, Millard J. Op.Cit., p.31.


621 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, p.205.
622 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, p.206.
327
CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + + I

Por meio desta reflexão acima, Cirilo vê um propósito


didático na possessão demoníaca. Segundo ele, ela teria o
propósito de nos “treinar”, a fim de que não nos tomemos presas
fáceis nas mãos dos demônios. Contudo, citemos Cirilo pela
última vez, o qual comenta Lc 8.28-31:

O geraseno, ou, melhor dizendo, o grupo de demônios


que se ocultava nele, se ajoelhou diante de Cristo e gritou o
seguinte: “Que tenho eu que ver contigo, Jesus, Filho de
Deus?”. Observe neste ponto o temor unido a muita ousadia e a
toda falta de sentido. Uma manifestação de demência diabólica
é atrcver-sc a dizer: “Que tenho eu que ver contigo, Jesus, Filho
de Deus?”, c prova do temor c a súplica para não ser
atormentado. Mas sabes com certeza que ele é o Filho de Deus,
o Altíssimo... Observe mais uma vez a incomparável glória dele
que a tudo transcende. Refiro-me ao poder irresistível de Cristo.
Humilha a Satanás apenas havendo desejado que este o
experimentasse. (...) Ao perguntar-lhe, Cristo lhe obrigou a
dizer seu nome. “Ele respondeu: Legião, porque haviam entrado
nele muitos demônios”. Mas, Cristo perguntou por que não o
sabia? Perguntou como se fora um de nós para aprender, como
se não o soubesse? Não seria absurdo dizer ou pensar algo
parecido? De fato, Deus conhece todas as coisas e perseruta até
os corações e as entranhas.623

Nota-se, nos dizeres de Cirilo, uma interpretação bem


menos alegórica do que aquelas feitas por alguns de seus
antecessores mencionados há pouco.

i) Prudêncio (384-405 d.C.)

Este pai da igreja latina também nos deixou algumas


breves reflexões sobre a nossa passagem sinótica de Lc 8.26-39.
De forma introdutória, por exemplo, Prudêncio nos diz que “o
endemoninhado experimenta uma mudança através da sua

623 Idem, Ibidem, p.207.


328
SA+ANÁS, DEH1©NI©S E LEGIé

conversão, ficando livre de sua prisão sepulcral”.624625


Por fim, em
626
suas Pinturas sobre história sagrada, 36, Prudêncio ainda
comenta sobre Lc 8.28-31:

O demônio havia rompido as cadeias de ferro que lhe


atavam ao cárcere de um sepulcro; salta fora e roda aos pés de
Jesus. Mas o Senhor liberta para si ao homem e ordena ao
inimigo que ponha furiosa uma manada de porcos e se afunde
625
no mar.
Estes breves dizeres de Prudêncio, pelo menos no que se
refere ao endemoninhado geraseno, também mostram uma
interpretação menos alegorizada da passagem.

j) Pedro Crisólogo (406-450 d.C.)


Finalmente, citemos o italiano Pedro Crisólogo. Este bispo
cristão também nos legou algumas contribuições para a nossa
compreensão da passagem sinótica de Mt 8.28-34. Em seu
preâmbulo sobre esse texto, Crisólogo diz:

Expulsos do céu, se lhes ordena [aos demônios] que


entrem nos porcos (...). Os demônios entraram nos porcos para
mostrar aos selvagens que haviam chegado a ser contra a
humanidade, que por seus vícios permitiu sua intrusão na
liberdade humana.6 6

Já ao comentar Mt 8.31 em seu Sermões, 16.7, Crisólogo


faz uma curiosa declaração:

O escravo pede de forma indigna coisas dignas: “Envia-


nos aos porcos”. Solicitam que lhes envie desde os sepulcros à
corrupção dos porcos, de maneira que não desejam livrar-se dos
maus odores, senão tão somente alterá-los. “Envia-nos aos

624 Idem, Ibidem, p.206.


625 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Lucas, pp.207,208.
626 ODEN, Thomas C. (ed.). Evangelio Según San Mateo (1-13), p.238.
329
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I

porcos”. Expulsos do céu pedem a lama; depois de haverem


vivido em habitações celestes anelam as pocilgas dos porcos.
“Envia-nos à manada”. Uma manada é enviada a outra manada,
de maneira que se apresente uma multidão de demônios e assim
pareça que esses homens têm que levar consigo o que uma
multidão dc porcos não pode suportar.627

E, por último, ao tratar de Mt 8.32, Crisólogo diz que a


possessão demoníaca só é possível porque o indivíduo lhe dá
ocasião por meio de seus pecados. Eis as suas palavras em seu
Sermões, 16.8:

Se os demônios não são vencidos não cedem; não podem


fazer dano se não sc lhes deixa. São enviados à manada dc
porcos para que sc veja que os demônios não têm licença para
entrar nos homens, senão que tão somente sc lhes permite entrar
nos porcos. Apenas nós, mediante nossos vícios, lhes damos
permissão para fazer dano, ou, pelo contrário, com nossas
virtudes pisoteamos os pescoços dos demônios submetidos ao
triunfo dc Cristo.628

Em seus dizeres, Crisólogo interessantemente atribui à


liberdade humana a responsabilidade pela condição de possesso
ou não-possesso.

k) Conclusão
Nossa breve abordagem feita a alguns dos pais da igreja e
seus contemporâneos, os quais comentaram sobre Mc 5.1-20 ou
seus paralelos sinóticos (principalmente), nos permitiu chegar a
algumas conclusões. Primeiramente, as citações feitas aos Pais
da Igreja e a outros autores da Era Patrística se basearam

627 Idem, Ibidem, p.239.


628
Idem, Ibidem, 240. Estas últimas palavras: “(...) pisoteamos os pescoços
dos demônios submetidos ao triunfo de Cristo” podem ser uma referência a
Rm 16.20a.
330
SA+ANÁS, DElTlêNieS £ LEGIî

principalmente no Evangelho de Mateus, pois ele era o sinótico


predominante no período patrístico.629630 Em segundo lugar,
percebemos que a interpretação alegórica foi um recurso
hermenêutico bastante utilzado na tentativa de buscar explicar a
passagem. Em terceiro lugar, notamos também um forte tom
apologético nos comentários feitos por tais autores. Em quarto
lugar, vimos também que a crença daquela época era que a
pessoa endemoninhada se encontrava neste estado em função
do(s) pecado(s) cometido(s). Em quinto lugar, percebe-se ainda
na maioria destes autores (senão em todos) traços homiléticos
bem marcantes. Finalmente, e acredito que este ponto seja o
mais importante, há um acentuado apelo cristocêntrico nos
comentários feitos. De qualquer maneira, ainda que haja
excessos e desvios interpretativos em alguns dos autores acima
citados, todavia, suas obras constituem-se importantes
referências sobre o pensamento do período pós-apostólico
acerca de nossa passagem e de seus relatos sinóticos,
constituindo-se ainda em importante patrimônio hermenêutico
da cristandade.

3.2. A Interpretação Antropológica de René


Girard

O episódio do endemoninhado geraseno é visto pelo


francês René Girard, em sua obra O Bode Expiatório,63 de
forma muito peculiar, sob o ponto de vista antropológico.
Girard, baseado em sua teoria sobre o mimetismo, o bode

METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New


Testament. London, United Bible Societies, 1975, p.84.
630 Baseio-me aqui no capítulo intitulado Os Demônios de Gerasa, in:
GIRARD, René. O Bode Expiatório. [Tradução de Ivo Storniolo]. São Paulo,
Paulus, 2004, pp.215-239. Para saber mais sobre Girard, seu pensamento e
suas obras, consulte: GIRARD, René. Um Longo Argumento do Principio ao
Fim. Diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello.
[Tradução de Bluma Waddington Vilar]. Rio de Janeiro, Topbooks, S.d.
331
CARLSS AUGUS + ffi VAILA + + I

expiatório e o xamanismo, faz uma análise sui generis de nossa


perícope. Vejamos, em resumo, como se configura o seu
pensamento antropológico.

a) A Teoria do Mimetismo
Antes de qualquer coisa, deve-se definir aqui o que
significa o termo mimetismo. Tal vocábulo é derivado da palavra
mimese que, dentre outras coisas, refere-se a “imitação do gesto,
voz e palavra de outrem”.631632 Para Girard, todas as relações
humanas que aparecem nos Evangelhos estão ligadas, em última
análise, ao mimetismo, o qual, para ele, é um fator central. Em
suas palavras:

(...) o mimetismo, fonte primeira daquilo que dilacera os


homens, de seus desejos, de suas rivalidades, dc seus mal­
entendidos trágicos c grotescos, fonte de toda desordem, por
conseguinte, mas igualmcnte fonte de toda ordem por meio dos
bodes expiatórios, vítimas espontaneamente reconciliadoras,
pois elas reúnem contra si, cm um paroxismo final sempre
mimético, mas unânime, aqueles que os efeitos mimcticos
anteriores c menos extremos teriam dirigido uns contra os
. 632
outros.

No que diz respeito ao demônio, este é visto por Girard


como um termo quase sinônimo para Satanás, sendo, porém,
uma forma inferior deste. O fato de este aparecer de forma
múltipla (demônios) e, portanto, fragmentada, faz com que tais
seres caiam na “pura desordem mimética”.633 Dando
prosseguimento ao seu pensamento e, agora, analisando, de fato,
a perícope do endemoninhado geraseno, Girard diz a seu

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira


da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997, p.521.
632 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.215.
633 Idem, Ibidem, p.217.
332
SA+ANÁS, DEffl®NI©S E LEGIé

respeito que “ele é o homem mais livre que existe, pois quebra
todas as correntes, pois despreza todas as regras, pois renunciou
até às vestes, diz-nos Lucas, mas é cativo de sua possessão,
prisioneiro de sua própria loucura”.634 O fato do endemoninhado
viver entre os túmulos, longe dos lugares habitados, é o
resultado de uma ruptura única e definitiva entre o possuído e a
comunidade. Ao que tudo indica, Marcos está sugerindo que os
gerasenos e o homem endemoninhado estão envolvidos há
muito tempo em uma patologia de tipo cíclico.635 Aliás, o
caráter repetitivo desses fenômenos tem algo de ritual.636 Os
gerasenos desejam curar o endemoninhado, cuja doença
principal era viver errante pelas montanhas e túmulos e, para
isto, recorrem à violência das correntes e das algemas. Porém,
tal violência, longe de resolver o problema, só aumenta o desejo
do homem de viver sozinho. Para Girard, “é difícil crer que os
gerasenos não consigam correntes e algemas suficientemente
fortes para imobilizar seu prisioneiro”.637638Tal comportamento
indica que eles agem como pessoas que, por meio de suas
manobras, desejam perpetuar aquela patologia que
aparentemente pretendem interromper. Segundo Girard, ao
arrebentar as correntes para se afastar de sua comunidade, o
endemoninhado acredita que está sendo perseguido por aqueles
que tentam acorrentá-lo e ainda pratica a autolapidação.™ O
possesso foge das pedradas que poderia receber de seus

634
GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.219.
635 Idem, Ibidem, p.219.
636 Idem, Ibidem, p.220.
637 Idem, Ibidem, p.220.
638
STAROBINSKI, Jean. Lé Démoniaque de Gérasa, em Analyse
structurale et exégèse biblique. Neuchâtel, 1971, pp.63-94. Apud: GIRARD,
René. Op.Cit., p.221. H. C. Kee critica o pensamento geral de Starobinski,
argumentando que ele deixa de ver as dimensões históricas e culturais da
narrativa e se refugia em uma interpretação altamente subjetiva. (Cf. KEE,
Howard Clark. As Origens Cristãs em Perspectiva Sociológica. [Tradução de
J. Rezende Costa], São Paulo, Ed. Paulinas, 1983, pp.88,89).
333
CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1

perseguidores conterrâneos. Girard explica a assim chamada


autolapidação praticada pelo endemoninhado nestes termos: “é
talvez por nunca ser objeto de uma lapidação efetiva que o
edemoninhado se fere a golpes de pedra. Ele mantém de modo
mítico o perigo pelo qual se crê ameaçado. Teria sido ele objeto
de ameaças reais (...) ou trata-se neste caso de um medo
completamente imaginário, de um simples fantasmal”. Dando
continuidade a esse pensamento sobre a autolapidação, Girard
imagina a hipótese do possuído ter se dirigido aos seus
concidadãos com estas palavras: “Vocês não precisam, vejam
bem, tratar-me como gostariam de fazer, não têm necessidade de
me lapidar; eu mesmo me encarrego de executar a sentença de
vocês. A punição que inflijo a mim mesmo ultrapassa em horror
tudo o que sonhais infligir a mim”.639 Girard vê esta
640641
automutilação como um traço do mimetismo. Segundo ele:

Como se procurasse por bem não ser expulso e lapidado,


o possuído se expulsa [do convívio social] e se lapida a si
mesmo; ele mimctiza dc modo espetacular todas as etapas do
suplício que as sociedades do Oriente Médio infligiam àqueles
que elas viam como definitivamente maculados, os criminosos
, ■ 641
irrecuperáveis.

Para Girard, o possuído se violenta como forma de


protesto contra a violência por ele sofrida, a qual fora imposta
pelos gerasenos por meio de suas correntes e algemas nele
colocadas.642 Em outras palavras, a violência praticada pelo
possesso contra si mesmo é o reflexo da violência encontrada no
ambiente em que ele vive. O endemoninhado estaria, portanto,

639 GIRARD, René. Op.Cit., p.221.


640 Idem, Ibidem, p.222.
641
Idem, Ibidem, p.222. Os acréscimos entre colchetes são meus.
642 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.223.
334
sa+anás, deiti©ni©s e legiã©

apenas imitando os gerasenos em seu ato de lapidar as suas


vítimas. Girard explica assim o seu pensamento:

O possuído se violenta para reprovar a violência de todos


os gerasenos. Os gerasenos lhe remetem sua reprovação, e a
remetem com uma violência que reforça mais a dele e verifica,
de algum modo, a acusação e a contra-acusação que circulam
sem fim no sistema. O possuído imita esses gerasenos que
lapidam suas vítimas, mas os gerasenos, por sua vez, imitam
seu possuído. É uma relação de duplos e de espelhos que existe
entre esses perseguidores perseguidos e este perseguido
perseguidor; é, portanto, uma relação recíproca de antagonismo
r
mimetico.
643

Embora o pensamento girardiano seja bastante original e


audacioso, penso, porém, que seja também bastante precário e
difícil de ser sustentado. Digo isto porque, como pode ser
percebido nas linhas acima, Girard baseia seu pensamento em
uma base inexistente. Ele supõe que o endemoninhado estivesse
sendo perseguido pelos seus conterrâneos; supõe que os
gerasenos quisessem apedrejá-lo; e novamente supõe que o
endemoninhado se visse ameaçado. Tais suposições, porém,
uma vez que são desprovidas de qualquer evidência interna no
texto, tomam a sua hipótese extremamente frágil e precária.
Contudo, não deixa de ser uma interpretação muito interessante.
Voltemos, entretanto, ao texto de Girard. Na tentativa de provar
a sua teoria mimética, ele prossegue:

Se eu estiver enganado ao invocar aqui os duplos


miméticos no contexto dos demônios de Gerasa, o erro que
cometo não é apenas meu; um dos evangelistas ao menos o
partilha, Mateus, que nos propõe, bem no início do milagre,
uma variante significativa. Ao demoníaco único de Marcos e
Lucas, Mateus substitui dois possuídos perfeitamente idênticos*

643 Idem, Ibidem, p.223.


335
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

um ao outro e faz com que eles próprios falem em vez de o


demônio falar - os dois demônios - que, em princípio, devem
possuí-los. Não há nada aqui para sugerir uma fonte diferente
da de Marcos; trata-se antes de uma tentativa de explicação,
tenho quase vontade de dizer de desmistifícação do tema
demoníaco em geral.644

Com este pensamento, Girard conclui que “a possessão


não é um fenômeno individual; é um efeito de mimetismo
exacerbado”.645 Novamente, creio que o erro de Girard, desta
vez ao tentar explicar a existência de dois endemoninhados em
Mateus na base de seu duplo mimetismo, jaz no fato dele buscar
impor ao texto um sistema de pensamento que não lhe pertence,
que é alheio às intenções do evangelista, a fim de fazer o texto
dizer o que ele acha que melhor se encaixe em sua predileção
hermenêutica antropológica. Todavia, deve-se fazer justiça ao
fato de que Girard comenta acertadamente a ausência do termo
Legião no Evangelho de Mateus. Segundo ele, “perdendo a
multidão dos demônios, Mateus perde aquilo que justifica o
afogamento de uma imensa manada de porcos que, todavia, ele
mantém. Em outras palavras, ele perde mais do que ganha.
Diriamos, por outro lado, que ele tem consciência de seu
fracasso e encurta todo o final deste milagre”.646 Todavia, no
que concerne ao Evangelho de Marcos, o termo Legião é
cercado de conotações negativas. Girard, citando novamente
Starobinski, diz que é preciso ver neste vocábulo “a
multiplicidade guerreira, a tropa hostil, o exército ocupante, o
invasor romano e talvez também aqueles que crucificaram o
Cristo”.647 Há aqui, sem dúvida alguma, uma forte ideologia

644 Idem, Ibidem, p.223.


645
Idem, Ibidem, p.224.
646 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.225.
647
STAROBINSKI, Jean. Lé Démoniaque de Gérasa, em Analyse
stnicturale et exégèse biblique. Neuchâtel, 1971, p.37. Apud: GIRARD,
René. Op. Cit., p.226.
336
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

política por traz do uso do vocábulo Legião e Girard o expressa


corretamente. Por fim, falando ainda sobre o aspecto mimético,
o trecho da obra de Girard que talvez melhor sintetize e explique
o seu pensamento acerca do mimetismo é este:

Os demônios existem à imagem do grupo humano, eles


são a “imago” desse grupo porque são sua “imitatio”. Assim
como a sociedade gerasena no fim de nosso texto, a sociedade
dos demônios no início possui uma estrutura, uma espécie de
organização; ela é a unidade do múltiplo: Legião é o meu nome,
porque somos muitos. Assim como uma voz se eleva, no fim,
para falar em nome de todos os gerasenos, uma voz se eleva, no
início, para falar em nome de todos os demônios. E essas duas
vozes, na verdade, dizem a mesma coisa. Uma vez que entre
Jesus e os demônios toda a coexistência é impossível, é o
mesmo pedir que Jesus não expulse os demônios, quando se é
demônio, c pedir-lhe que vá embora, quando se é geraseno. A
prova essencial do que estou dizendo, a identidade dos
demônios e dos gerasenos, é o comportamento do possuído
enquanto é o possuído desses demônios. Os gerasenos lapidam
suas vítimas, e os demônios forçam a deles a se lapidar a ela
mesma, o que dá no mesmo. Este possuído arquetípico
mimetiza a prática social mais fundamental, a que gera
litcralmcnte a sociedade transmutando a multiplicidade
mimctica mais atomizada na unidade social mais forte, a
unanimidade do assassínio fundador.648

Em suma, o pensamento mimético de Girard, aplicado à


nossa perícope de Mc 5.1-20, explica a autolapidação e a própria
violência do endemoninhado contra si mesmo, como reflexo da
violência generalizada existente na comunidade gerasena. Em
outras palavras, o comportamento violento do possesso geraseno
é uma forma de justificar e ao mesmo tempo protestar contra a

648 GIRARD, René. Op.Cit., pp.236,237.


337
CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + +I

violência gerasena. Isto significa, em última análise, que há uma


identificação mútua e ao mesmo tempo cúmplice entre o
indivíduo e o coletivo, isto é, entre o geraseno e a sua
comunidade. Pode-se dizer neste caso que “os adversários
tornam-se duplos uns dos outros e elegem a violência como
arma principal para restabelecer a ordem ameaçada. Os dois
atuam guiados pelo sagrado e nele encontram a força que
necessitam para o combate”.649

b) A Ideologia do Bode Expiatório


O princípio da ideologia do Bode Expiatório pode ser
assim definido: “o sacrifício de um para bem de todos,
suportando uma pequena e tolerável perda para confirmar toda a
vida”.650 Este princípio de pars pro toto, onde aceita-se uma
pequena perda no intuito de se salvar o todo, tornou-se num dos
principais dogmas da teologia cristã.651 Girard considera esse
complexo do bode expiatório como “a base do sacrifício, da
organização de uma sociedade unânime e da civilização humana
enquanto tal”.652 Em Mc 5.1-20, Girard entende que o bode
expiatório é o endemoninhado geraseno.653 Para ele, a suposta
intensão que os gerasenos tinham de apedrejar o
endemoninhado, demonstra o princípio do bode expiatório
sendo colocado em prática:

649
JUNQUEIRA, Carmen. Estudos Avançados. [Dossiê Religiões no Brasil].
Vol.l, n°l. São Paulo, IEA, 1987, p.289.
650 BURKERT, Walter. A Criação do Sagrado. [Tradução de Vitor Silva],
Lisboa, Edições 70, 1996, p.74.
651 Idem, Ibidem, p.73. Esse princípio é visto, por exemplo, na célebre frase
do sumo sacerdote Caifás: “nos convém que um homem morra pelo povo, e
não que pereça toda a nação” (Jo 11.50).
652 Cf. BURKERT, Walter. Op.Cit., p.82.
653 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.228.
338
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIé

Só pode se tratar, é claro, de um efeito espontâneo de


bode expiatório. No paroxismo do mimetismo conflitual, a
polarização sobre uma vítima única pode se tornar tão poderosa
que todos os membros do grupo se esforçam para participar em
seu assassínio. Esse tipo de violência coletiva tenderá
espontaneamente para formas de execução unânimes,
igualitárias e à distância (...).654

Girard ainda continua seu pensamento, dizendo que:

(...) os grandes legisladores primordiais, de que tantas


tradições religiosas falam (...) estão profundamente unidos aos
bodes expiatórios, cujo assassínio realizado é escrupulosamente
imitado, recopiado e aperfeiçoado nos ritos, por causa de seus
efeitos reconciliadores. Os efeitos são reais porque esse
assassínio se assemelha já ao tipo de execução capital que dele
deriva e que reproduz os mesmos efeitos, cortando pela base a
vingança. Ele parece então provir de uma sabedoria mais que
humana, e só pode ser atribuído ao bode expiatório sacralizado,
como todas as instituições que derivam do mecanismo
vitimário. O legislador supremo c a própria essência do bode
expiatório sacralizado.655

Como pode ser notado, Girard entende que essa ideologia


do bode expiatório é extremamente antiga, fazendo já parte das
sociedades mais primitivas. Para ele, a figura do bode expiatório
sendo morto (o que denota sacrifício) tem um aspecto
reconciliador, o que, por sua vez, promove a coesão do grupo e a
justiça, sem os quais nenhuma sociedade pode sobreviver. Por
fim, Girard faz uma declaração deveras espantosa. Ele diz que
“o legislador supremo (acredito que a referência seja a Deus) é a
própria essência do bode expiatório”. Se interpreto corretamente

654 Idem, Ibidem, p.231.


655 Idem, Ibidem, p.231.
339
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I

o seu pensamento, Girard está querendo dizer que Deus Pai (o


legislador supremo), ao entregar o seu Filho na cruz em
sacrifício pelos nossos pecados (o bode expiatório), sacralizou
esse mecanismo vitimário, sendo que o seu próprio Filho - tal
como o cordeiro sacrificial - era a própria vítima. Então, esta
“pequena perda” (a morte de Jesus na cruz) redundou na
salvação de toda a humanidade.
Girard menciona ainda a inversão do conceito do bode
expiatório em nossa perícope, ao comentar sobre a queda dos
porcos no mar:

Aqui, porém, não é o bode expiatório que passa por cima


da falcsia, não c uma vítima única ou um pequeno número dc
vítimas, mas a multidão dos demônios, os dois mil porcos
endemoninhados. Os aspectos habituais são invertidos. É a
multidão que deveria permanecer no alto e fazer cair a vítima;
aqui c a multidão que se precipita, e a vítima c salva. A cura de
Gerasa inverte o esquema universal da violência fundadora em
todas as sociedades do mundo.656

Devido à sua teoria mimética, Girard, que antes


identificara o desejo dos gerasenos de apedrejarem o
endemoninhado com a autolapidação deste, identifica, agora, o
bode expiatório (o endemoninhado) com a multidão de
demônios que o possuíam. Em outras palavras, antes o bode
expiatório era único, mas agora ele é múltiplo. Todavia, quer
seja singular, quer seja plural, continua sendo um bode
expiatório. E, para ele, tal ideologia constitui-se na base
organizacional de toda a sociedade humana.

c) A Figura do Xamã

656 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.233.


340
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî

Analisando agora a pessoa de Jesus dentro de nosso relato


de exorcismo, Girard o identifica com um xamã devido às suas
práticas taumatúrgicas. Eis as suas palavras:

Todos os comentadores nos dizem que Jesus cura seus


possuídos por meios clássicos de tipo xamânico. Aqui, por
exemplo, ele força o espírito impuro a dizer seu nome; ele
adquire sobre ele, portanto, o poder freqüentemente associado
nas sociedades primitivas com a manipulação do nome
, • 657
propno.

Antes, porém, de analisarmos este pensamento de Girard,


creio que seja necessário definirmos primeiramente quem é o
xamã. Mircea Eliade, em sua obra O Conhecimento Sagrado de
Todas as Eras, nos ajuda a traçar o perfil desta personagem
envolta em mistérios. Eis as suas palavras:

O xamã é pajé, sacerdote e condutor de almas; ou seja,


ele cura doenças, dirige os sacrifícios comunitários e
acompanha as almas dos mortos ao outro mundo. Consegue
cumprir todas essas funções por meio de suas técnicas de
êxtase, isto é, pelo poder que tem sua alma de sair do corpo à
vontade. (...) Nos sonhos e alucinações do futuro xamã pode ser
encontrado o padrão costumeiro da iniciação: ele é torturado
por demônios, seu corpo é esquartejado, ele desce ao mundo
inferior ou sobe ao céu e finalmente ressuscita. Isto é, ele
conquista um novo modo de ser que lhe permite relacionar-se
com os mundos sobrenaturais. (...) A função mais importante do
xamã é curar. Visto que a doença é entendida como uma perda
da alma, o xamã primeiramente tem de averiguar se a alma do
doente extraviou-se para longe da aldeia ou se foi raptada por
gênios malévolos e está aprisionada no outro mundo.657
658

657 Idem, Ibidem, p.228.


658 ELIADE, Mircea. O Conhecimento Sagrado de Todas as Eras. [Tradução
de Luiz L. Gomes]. São Paulo, Mercuryo, 1995, pp.253,254.
341
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

Bem, de acordo com Eliade, o xamã é acima de tudo um


curandeiro. E, como vimos, uma das técnicas xamânicas
empregadas na cura consiste em verificar se a alma do doente
foi raptada por gênios malévolos (demônios) e encontra-se
aprisionada em outro mundo. Se isolarmos somente esta
característica xamânica e a aplicarmos ao ministério de Jesus,
sem dúvida alguma, veremos que as semelhanças entre Jesus e
um xamã são relativamente grandes. Porém, as semelhanças
param por aí. A alma de Jesus não sai de seu corpo, Jesus não
foi torturado por demônios em nenhum momento durante a sua
existência terrena e, além do mais, ele também não age como
um louco, um doente ou alguém que está fora de si, como
costuma ocorrer com os xamãs em seu estado de êxtase. A partir
disso, podemos então lançar um olhar mais criterioso sobre o
comentário de Girard a respeito do método terapêutico
empregado por Jesus na cura do geraseno. Girard entende que
quando Jesus pergunta ao demônio o seu nome, ele está se
utilizando de um recurso técnico xamânico a fim de obter poder
e controle sobre ele. Contudo, Twelftree entende que Jesus não
recorre a nenhum recurso xamânico em seus exorcismos. Ao
analisar a técnica exorcística empregada por Jesus, Twelftree
chega às seguintes conclusões:

1. Jesus não parece ter usado nenhum artifício mecânico


em seus exorcismos;
2. Jesus não usa nenhuma “prova” para indicar o sucesso
de sua cura;
3. Diferentemente até de alguns dos santos homens
judeus, Jesus não é apresentado “suplicando” quando ele
realiza um exorcismo;
4. Relacionado ao ponto anterior, parece que em seus
exorcismos Jesus não chama ou invoca nenhum poder-
autoridade;

342
SA + ANÁS, DEffi®Nl®S £ LEGIî

5. Não parece que Jesus usou a fórmula: “Eu amarro


você” (Aramaico = shb')6y)

Uma observação deve ser feita aqui quanto ao item 2. Ao


fazer menção à “prova de cura”, Twelftree está fazendo
referência à antiga crença segundo a qual, o demônio, ao sair do
corpo do possesso, dava algum sinal indicativo de sua saída.* 660
Em nosso caso, por exemplo, poderia ser questionado se a queda
dos porcos no mar não seria esta “prova” de que os demônios
tivessem saído do geraseno e que este, portanto, estava curado.
Twelftree explica que aqueles que relataram essa história dos
porcos podem ter entendido esse episódio como uma “prova de
cura”, mas ele afirma que esta prova não partiu da técnica de
Jesus como um exorcista.661 Voltemos a Girard, antes de
concluirmos nossa análise sobre seu pensamento. Em outra parte
de sua obra, Girard diz que a negociação feita entre Jesus e a
Legião (quando esta pede para não sair do território e pede para
entrar nos porcos) é um tema extraído das práticas dos xamãs e
de outros curadores.662 Todavia, deve-se ter muita cautela diante
de tal afirmação. Jamais podemos aceitar que Jesus tenha
“negociado” qualquer tipo de concessão aos demônios. Muito
pelo contrário. Ao permitir que estes saiam do geraseno e

TWELFTREE, Graham. Christ Triumphant: exorcism them and now.


London, Hodder and Stoughton, 1985, pp.68-70.
660 Tal “prova de cura” é vista, por exemplo, num trecho sobre a vida de
Apolônio de Tiana: “Então Apolonio, cheio de raiva, o repreendeu
severamente... e lhe ordenou que saísse do jovem e mostrasse, por algum
sinal visível, que obedecera. ‘Eu vou derrubar aquela estátua que está ali’,
disse o demônio, e apontou para uma estátua que estava no átrio real, onde o
episódio se passara. Assim que a estátua começou a se mexer e, a seguir,
caiu, ouviu-se um barulho indescritível. O jovem, porém, esfregava os olhos,
como se acabasse de despertar de um sono”. (Cf. WEISER, Afons. O Que é
Milagre na Bíblia, p.88).
661 TWELFTREE, Graham. Op.Cit., pp.68,69.
662 GIRARD, René. O Bode Expiatório, p.235.
343
CARL©S AUGUS+® VAILA + +I

entrem nos porcos, Jesus não é coagido a agir assim em nenhum


momento. Ao permití-lo, ele simplesmente faz aquilo que já
havia intentado realizar desde o início, ou seja, libertar aquele
pobre homem daquela escravidão demoníaca.
Em suma, Jesus não age como um xamã ao expulsar a
legião demoníaca do geraseno. No que diz respeito à sua
autoridade vista em sua habilidade de subjugar demônios, a
técnica exorcística de Jesus parece ser única.663

d) Conclusão

Concluindo, podemos dizer que o pensamento de René


Girard sobre a perícope de Mc 5.1-20, embora seja inovador e
interessante, possui, todavia, um viés ideológico muito forte.
Girard, por meio de suas lentes antropológicas, como já foi dito,
acaba impondo ao texto bíblico um sistema de pensamento que
não lhe pertence, com o intuito de forçar o texto a dizer aquilo
que se adeque ao seu pensamento. Contudo, não devemos deixar
de reconhecer a originalidade de sua teoria, a qual, mesmo não
sendo aceita com unanimidade, possui vários insights de grande
valor.

3.3. A Interpretação Parabólico-Alegórica de


André Chouraqui

O argeliano André Chouraqui, em seus comentários feitos


aos sinóticos, intitulados A Bíblia,664 também nos fornece uma

TWELFTREE, Graham. Christ Triumphant: exorcism them and now,


p.71. Horsley e Silberman também possuem a mesma opinião de Twelftree.
(Cf. HORSLEY, Richard A. & SILBERMAN, Neil Asher. La Revolution del
Reino: cómo Jesús y Pablo transformaron el mundo antiguo. [Traducción de
José Pedro Tosaus Abadia]. Santander, Editorial Sal Terrae, 2005, pp.49,50).
664 Baseio-me, neste item, em: CHOURAQUI, André. A Bíblia: Mattyah.
[Tradução de Leneide Duarte]. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996,
pp. 134,135; CHOURAQUI, André. A Biblia: Marcos. [Tradução de Leila
344
sa+anás, DemêNies e legiã©

interpretação bem original e interessante sobre Mc 5.1-20.


Chouraqui entende que esta perícope é um mashal?65 Este termo
hebraico, geralmente traduzido como “provérbio”, cobre uma
variedade de formas literárias desde “escárnio” até
666 Todavia, para Chouraqui, é este último
“parábola”.665
significado que está em pauta em nosso texto. Ele o enxerga, em
suas próprias palavras, como “uma espécie de parábola
alegórica”.667 Analisemos, de forma geral, como esse autor
entende esta perícope.

a) A Localização Geográfica do Acontecimento

O autor, que traduz a expressão região dos Gerasenos


como país dos Gadariims, vê este nome como algo fictício e
irreal. Eis as suas palavras:

Deve tratar-se de um nome imaginário, inventado para


designar uma realidade inatingível; algo parecido com o que
aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando se
designavam os exércitos invasores com o nome de Chleuhs ou
Boches. Os dois nomes eram empregados freqüentemente na
França, sem que ninguém jamais tivesse se importado em
localizá-los na Europa ou em encontrar os Boches em outro
lugar que não na Alemanha nazista.668

Duarte], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996, pp.91-98; CHOURAQUI,


André. A Bíblia: Lucas. [Tradução de Leneide Duarte e Leila Duarte], Rio de
Janeiro, Editora Imago, 1996, p. 145-149.
665 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Marcos, p.91.
666 PATZIA, Arthur G. & PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos
Bíblicos. [Tradução de Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida,
2003, p.102.
667 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Lucas, p. 145.
668 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Marcos, p.91.
345
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + +I

Chouraqui ainda diz: “a alta falésia de onde se precipitarão


os porcos possuídos pelos demônios não existe às margens do
lago de Tiberíades. Daí a hipótese que mantemos aqui (...).
léshoua’ exprime-se aqui à maneira dos rabis, que têm boas
razões para velar seus pensamentos: neste caso, o nome do local
importaria pouco”.669670Já vimos antes, em nossa análise do
conteúdo de Mc 5.1-20 que, embora a variante Gergesa seja a
que melhor se encaixe geograficamente no relato, contudo,
Gerasa é a variante mais plausível do ponto de vista da crítica
textual. Além disso, vimos também que embora a variante
textual Gerasa seja geograficamente difícil, ela é, todavia,
apropriada simbolicamente, pois a raiz hebraica grè além de
significar “expulsar”, também é um termo comumente
empregado nos contextos de exorcismo. Seja como for, se tal
nome é imaginário ou se é real, é uma questão difícil de
responder.

b) O Homem Endemoninhado (Figura de Israel)

No que diz respeito à identidade do geraseno, Chouraqui o


identifica como sendo Israel, visto num contexto de pós-
dominação estrangeira:

O homem que vem cm direção a léshoua’ após ter saído


dos sepulcros não é outro senão Israel, emergindo das ruínas
que, já muitos séculos antes, os invasores estrangeiros -
, , 670
babilônios, gregos, romanos - semeavam na região.

Acho muito improvável que Marcos ou qualquer outro dos


sinóticos identificassem Israel com um homem gentio, situado
num território pagão, vivendo entre túmulos e, ainda por cima,

669 Idem, 4 Bíblia: Lucas, p.145.


670 Idem, 4 Bíblia: Marcos, p.92.
346
SA + ANÁS, DErtlêNieS £ LEGIî

endemoninhado! É muito difícil acreditar que todo este cenário


de impureza pudesse aludir a Israel. Não há nada nos
Evangelhos que nos faça pensar que nossa perícope tenha sido
transmitida de forma criptografada ou codificada, de maneira
que devesse ser interpretada de forma simbólica e aleatória,
como o faz Chouraqui. Porém, deve-se perceber que, pelo
menos, ele se mantém fiel a sua linha de pensamento parabólico-
alegórico a todo instante. Isso é visível no decorrer de todo o seu
pensamento. Ao comentar, por exemplo, sobre o fato de o
endemoninhado ser indomável (Mc 5.3), ele compara tal aspecto
à invencibilidade de Israel diante de seus inimigos:

Nenhuma opressão pode vencer a resistência dc Israel,


apesar das perseguições, repressões e opressão que sofreu da
parte dos governantes de todos os países: os babilônios, os
persas, os gregos e, após o ano 63 a.C., os romanos. Ninguém:
Nem mesmo o todo-poderoso império romano pôde domar
Israel.671672

Chouraqui, ao identificar o endemoninhado com Israel,


ainda faz algumas comparações muito interessantes, destacando
a difícil situação desta nação:

Se léshoua’ faz parábola, o homem possuído pelos


demônios seria Israel. A época, muitos são seus filhos que, para
escapar das taxas, impostos e perseguições do exército romano
ocupante, vivem numa situação de extrema precariedade, dentro
de esconderijos, encontrando refugio nas florestas ou, ainda,
672
como é descrito aqui, nos cemitérios.

Idem, Ibidem, p.92.


672 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Lucas, p.145.
347
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

O autor, ao citar o texto singular de Lc 8.29, o único a


mencionar que o demônio conduzia o endemoninhado aos
desertos, faz as seguintes considerações:

Sem levar a alegoria longe demais, o detalhe peculiar a


Lucas desse possuído levado para fora das cidades cm direção
aos desertos dcscrcveria bem o fenômeno de dcspopulação das
cidades c dos vilarejos ou mesmo dos campos, que é
característico do país durante a ocupação romana. Lucas deixa
claro que “cm muitas ocasiões” o sopro demoníaco apoderou-sc
do homem e o levou aos desertos. Na hipótese dessa alegoria, é
clara a alusão ao povo de Israel, muitas vezes levado, pelas
fatalidades da história, a fugir dc seus sucessivos opressores
para os desertos do exílio.673

Este lirismo chouraquiano é, sem dúvida alguma, muito


belo, mas também muito fantasioso. Sua aguçada imaginação
não lhe permite aceitar o relato em sua literalidade, sendo-lhe
necessário, portanto, recorrer à alegorização do texto como o
fizeram muitos Pais da Igreja e outros autores da época
patrística, conforme vimos anteriormente. De fato, é necessária
uma boa dose de imaginação para compreender o texto no
sentido que é apresentado por ele. De qualquer forma, trata-se
de uma interpretação bastante original.

c) A Legião Demoníaca (Figura da Legião


Romana)

Este é o único ponto do pensamento chouraquiano que, a


meu ver, é alegorizado de forma correta. Examinemos o que este
autor tem a nos dizer sobre a relação entre a legião demoníaca e
a legião romana. Ao comentar o termo “legião”, Chouraqui
declara:

673 Idem, Ibidem, 146.


348
SA+ANÁS, D£m®NI©S E LEGIé

Eis a palavra decisiva, aquela que dá autenticidade à


nossa leitura de toda essa passagem. Ao escutá-la, os ouvintes
de léshoua’ não podiam pensar senão na Décima Legião
romana, sediada em Damasco e encarregada de manter a ordem
naquela região, de fazer respeitar a pax romana, que era, para os
hebreus, como para todos os povos que não obedeciam
ccgamente às ordens do império, a paz dos cemitérios. Aquela
legião contava com 6.000 homens que eram enviados logo que
surgiam as menores perturbações. Os legionários eram
detestados, como o são todos os soldados de um exército de
ocupação, por causa de sua brutalidade e da arbitrariedade de
suas medidas.674

As duas primeiras linhas desta reflexão constituem-se a


chave para a compreensão de todo o sistema parabólico-
alegórico chouraquiano usado na interpretação de Mc 5.1-20.
Segundo o autor, “eis a palavra decisiva [legião], aquela
que dá autenticidade à nossa leitura [parabólico-alegórica] de
toda essa passagem”. Isto quer dizer que este legiocentrismo
acaba se tomando, sem querer ser redundante em minha
afirmação, o “centro” da interpretação alegórica de Chouraqui,
em torno do qual todas as demais explicações alegóricas e
alegorizantes giram. O autor encontra nesse termo a justificativa
interpretativa alegórica que irá servir de base para todo o
desenvolvimento de seu pensamento. Todavia, embora eu
particularmente entenda que esta associação feita entre a legião
demoníaca e a romana esteja correta, estender tal aspecto
hermenêutico para cada detalhe do texto é cometer um equívoco
na sua interpretação. É forçar o texto a dizer aquilo que ele não
tem a intenção de falar. Chouraqui continua o seu pensamento
sobre o vocábulo legião, nestes termos: “a transparência da
alusão é tal que beira a temeridade, ‘legião’ designando

674 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Marcos, p.94.


349
CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1

claramente para todos a legião romana, responsável pela


manutenção da ordem nos territórios ocupados pelo império”.675676
E ele conclui, dizendo que “o homem está possuído pelo
demônio como Israel pelas legiões romanas”. Aqui, o autor
destaca com muita propriedade que a força de ocupação romana,
ao impôr o seu poder [estrangeiro] sobre Israel, age como os
demônios quando ocupam o corpo de suas vítimas. As
conotações político-militares são bem evidentes nesse
pensamento.

d) Os Porcos (Figura da Legião Romana)

Essa interpretação está intimamente relacionada à anterior.


E, aqui, Chouraqui faz alguns comentários bem curiosos, aos
quais não podemos deixar de fazer menção:

A parábola segue com uma lógica evidente para aqueles


que a ouvem. Ora, ocorre que a Décima Legião tinha como
emblema um porco. (...) Israel deve ser libertada da legião que
tem por emblema o porco; uma vez que os legionários amam os
porcos, que os demônios habitem neles e que sejam
afogados.677

Ele continua:

Jogar as legiões ao mar era certamente o sonho de todos


os patriotas dos países ocupados pela Roma imperialista c
idólatra. Restituído em seu contexto histórico, este texto podia

675 CHOURAQUI, André. A Bíblia: Mattyah, p. 135.


676 Idem, A Bíblia: Marcos, p.93.
677 Idem, Ibidem, p.95.
350
SA+ANÁS, DEmèNieS Ê LEGIé

ser entendido por certos contemporâneos de léshoua’ como um


678
chamado aberto à revolta.

Nestes comentários, Chouraqui declara que o porco era,


não somente o emblema da Décima Legião romana, como
também, um de seus símbolos preferidos. Portanto, jogar as
legiões ao mar (representadas aqui pelos porcos) era o desejo de
todos aqueles que tiveram suas terras invadidas pelo poderio
militar romano. Além disso, Chouraqui novamente faz um
comentário de teor caracteristicamente político. Ver na
descrição do afogamento dos porcos (símbolos da Décima
Legião) uma incitação clara à revolta popular, é uma ideia
extremamente tentadora. Não devemos nos esquecer aqui que
muitos seguidores de Jesus (senão todos) esperavam um messias
que os libertasse do jugo do opressor estrangeiro, neste caso, do
jugo romano.

e) Os Guardadores dos Porcos (Figura dos


Cooperadores de Roma)

O autor, ao dar continuidade à sua alegorização do texto,


também vê naqueles que cuidavam dos porcos (Mc 5.14) um
curioso simbolismo:

Idem, A Bíblia: Mattyah, p. 135. No que se refere ao número de porcos,


mencionado somente por Marcos, Chouraqui comenta: “dois mil poderia
representar o efetivo das três coortes e dos centuriões romanos que deviam
estar sediados na região. Todos deviam desejar sua partida e, eventualmente,
que eles fossem jogados ao mar”. (Cf. CHOURAQUI, André, A Bíblia:
Marcos, p.96). Já em seu comentário ao Evangelho de Mateus, Chouraqui
declara: “O milagre realizado por léshoua’ é, assim, compreendido como
sendo de essência messiânica, anunciador da libertação de Israel, livrado do
demônio romano que será afogado nas ondas como porcos que mergulham no
mar do alto de um penhasco”. (Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia: Mattyah,
p. 134).
351
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

Se quisermos analisar a parábola em seus mínimos


detalhes, poderiamos ver, em “aqueles que os guardam”, os
colaboracionistas de Roma, enlouquecidos pelo
desmoronamento dessa potência que acreditavam [ser]
• r 1 679
invencível.

Embora esta seja uma interpretação extremamente forçada


(como várias outras feitas pelo autor), todavia, ao fazê-la,
Chouraqui ao menos segue a seqüência “lógica” do seu
pensamento alegórico, baseado no qual se propôs a trabalhar
este texto. Ele não identifica quem seriam tais “colaboradores de
Roma”, mas, talvez, esteja fazendo referência aos cidadãos
romanos em geral (tanto os nascidos em Roma, como aqueles
que conquistaram a cidadania romana), além de simpatizantes,
se é que estes existissem de fato.

f) O Homem Curado Não Segue a Jesus (Figura da


Rejeição de Jesus por Israel)

Finalmente, o fato de Jesus não permitir que o ex-


endemoninhado o siga (Mc 5.19) é visto por Chouraqui como
um símbolo da não-aceitação de Jesus e de seu caminho por
parte de Israel:

É significativo que léshoua’, aqui, não chame o homem


curado para seguí-lo, mas lhe peça que parta para sua casa, para
perto dos seus, e que siga seu próprio destino. Essa recusa dc
léshoua’ ilustra o destino de Israel, que não aceitará fundir-se à
comunidade fundada pelo mestre, permanecendo fiel à sua
, ■ ~ 680
própria vocaçao.

CHOURAQUI, André, A Bíblia: Marcos, p.96. O acréscimo entre


colchetes é meu.
680 Idem, Ibidem, p.97.
352
SA + ANÁS, DEméNlOS Ê LEGIî

Segundo Chouraqui, Israel trilhará um caminho


independente do caminho traçado por Jesus. Ele diz que Israel
permanecerá fiel à sua vocação, mas, no entanto, não esclarece
que tipo de vocação é esta. Seja como for, é estranho associar o
ex-endemoninhado geraseno a Israel, pois se tratam de duas
personagens diametralmente opostas.

g) Conclusão

De forma geral, podemos concluir nossa análise sobre a


interpretação chouraquiana de Mc 5.1-20 e paralelos nestes
termos. A abordagem de Chouraqui é inovadora e é, ao mesmo
tempo, saturada de alegorizações. Embora seus argumentos
sejam dotados de muita lógica e sejam coerentes, todavia, é
absolutamente improvável que tais parábolas e alegorias
fizessem parte das intenções dos autores dos sinóticos quando
redigiram seus textos. De qualquer forma, Chouraqui nos
apresenta um ponto de vista original e que, sem dúvida alguma,
a despeito de suas interpretações forçadas, contribui para o
nosso estudo em questão.

3.4. A Interpretação Contextualizada de Fiódor


Dostoiévski

O relato do endemoninhado geraseno é visto de forma


muito peculiar pelo escritor e romancista russo, Fiódor
Dostoiévski. O tema do “demônio”, muito recorrente na
literatura russa, também é abordado por este autor em seu
famoso romance: Os Demônios. Nesta obra clássica, Stiepan
Trofímovitch Vierkhoviénski, uma das personagens principais
do livro, reflete sobre a situação de caos político criada na
Rússia. Ao fazer tal reflexão, lhe vem à mente a passagem de Lc
8.32-36, a qual, como sabemos, trata do endemoninhado
geraseno e é também responsável pelo nome do título dado ao
livro. Em Os Demônios, Stiepan Trofímovitch faz uma breve
353
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I

comparação entre a Rússia e a passagem acima citada, leitura


esta que muito se assemelha àquela praticada por Chouraqui.
Vejamos, em breves linhas, o que é dito:

a) Os Demônios (Os Problemas da Sociedade


Russa)
(...) isso é tal qual o que acontece na nossa Rússia. Esses
demônios, que saem de um doente e entram nos porcos, são
todas as chagas, todos os miasmas, toda a imundície, todos os
demônios e demoniozinhos que se acumularam na nossa Rússia

Aqui, Dostoiévski identifica os demônios de nossa


passagem com as “chagas, miasmas e imundície” da sociedade
russa. Tais elementos são “demonizados” nesta comparação
feita pela personagem Stiepan Trofímovitch. Trata-se de uma
crítica severa que é feita contra o sistema político russo que
vigorava até então, o qual é contestado através desta reflexão. A
linguagem aqui utilizada é pintada com cores muito fortes, ou
seja, tal como os demônios possuíam o corpo daquele
endemoninhado, assim os problemas resultantes da política
então vigente estavam emaranhados na sociedade russa.

b) O Endemoninhado (A Rússia)

Notemos agora o que diz a seguinte frase do romance:

(...) nossa Rússia grande, doente e querida para todo o


, i i682
sempre, todo o sempre!
Temos aqui a seqüência lógica do item anterior. Se os
demônios, como já dissemos, representam os problemas da

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. [Tradução de Paulo Bezerra].


São Paulo, Editora 34 Ltda., 2004, p.633.
682 Idem, Ibidem, p.633.
354
SA + ANÁS, D£ffl©NI©S E LEGIé

sociedade russa, logo, a Rússia é, por conseguinte, o homem


doente, isto é, o próprio endemoninhado. Neste item, a nação
russa é descrita com traços antropomórfícos. Ela é comparada a
um homem doente, o qual está fragilizado como resultado da
política em vigor.

c) Os Porcos (O Povo Russo)


Leiamos a continuação do romance:

(...) a grande idéia e a grande vontade descerão do alto


como desceram sobre aquele louco cndcmoniado e sairão todos
esses demônios, toda a imundície, toda a nojeira que apodreceu
na superfície... e eles mesmos hão de pedir para entrar nos
porcos. Aliás, até já entraram, é possível! Somos nós, nós e
aqueles (,..).683

Nesse trecho, a personagem Trofímovitch vê o povo russo


(e ela está inclusa) como os porcos, os quais foram possuídos
pela “grande idéia e a grande vontade”, isto é, a ideologia
política e social da época. É curioso notar que estes elementos
“descerão do alto” (uma referência ao topo do penhasco, de
onde se precipitam os porcos), ou seja, vêm de cima para baixo.
Aqui, o “alto” representa o poder dominante, o qual impõe as
suas leis e diretrizes para que a sociedade russa as obedeça.
Trofímovitch chega até a fazer um desabafo, dizendo que tais
ideologias políticas “já entraram” no corpo da sociedade russa.

d) A Cura do Endemoninhado (A Rússia


Restaurada)

Por fim, em meio a todo este caos político até então


existente, uma esperança parece emergir, tal como uma fênix
das cinzas. Veja como esse trecho do romance termina:

683 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios, p.633.


355
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

(...) e nós nos lançaremos, loucos e endemoniados, de um


rochedo no mar e todos nos afogaremos, pois para lá é que
segue o nosso caminho, porque é só para isso que servimos.
Mas o doente haverá de curar-se e “se assentará aos pés de
Jesus”... E todos ficarão a contemplar estupefatos...684685

Trofímovitch, embora esteja experimentando um


sentimento de desgosto para com a situação caótica de seu país,
ainda acredita na restauração do mesmo, representada aqui pela
cura do doente. Tal sentimento, que vislumbra um futuro melhor
para a nação, demonstra um nacionalismo russo desejoso de ver
a pátria viver dias melhores.

e) Conclusão

Esse breve trecho de Os Demônios, ainda que rapidamente


comentado aqui, permite-nos ver a grande influência social,
política e filosófica que o relato evangélico sobre o
endemoninhado geraseno causou no pensamento de Dostoiévski
e, conseqüentemente, na sociedade russa como um todo.

3.5. A Interpretação Sociopolítica de Myers e


Carter
Em seu livro traduzido para o português: O Evangelho de
São Marcos,^5 cujo título original é Binding the Strong man: A
Political Reading of Mark’s Story of Jesus {Amarrando o
Homem Forte: Uma Leitura Política da História de Jesus por
Marcos), Ched Myers faz uma análise política, social,
econômica e ideológica do Evangelho de Marcos. Já Warren

684 Idem, Ibidem, p.633.


685 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, pp.237-241.
356
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî

Carter, em sua obra: O Evangelho de Mateus: comentário


sociopolítico e religioso a partir das margens, traz um
comentário muito semelhante ao de Myers, porém, sobre o
Evangelho de Mateus. Em nossa análise, tomaremos esses dois
autores como base, bem como, a abordagem sociopolítica que
fazem de Mc 5.1-20 e Mt 8.28-34. Porém, os leremos em
conjunto com outros autores.686 Portanto, partamos para a nossa
687688
689
análise.

a) Aspectos Políticos
Segundo Myers, a indicação geográfica de Gerasa como
palco dos acontecimentos desencadeados em Mc 5.1-20, pode se
dever ao fato de que Marcos quisesse estabelecer “o outro lado
do mar” como espaço sociossimbólico gentílico. Mais
adiante, ele vai dizer que “a escolha de Marcos da ‘região dos
gerasenos’ como local do confronto simbólico com as ‘legiões’
assume sentido novo e especificamente político”. Não
devemos nos esquecer de que este relato se desenvolve na
Decápolis, uma região que estava debaixo do domínio
romano.690 Warren Carter, comentando a passagem paralela de
Mt 8.28-34, diz o seguinte:
Com endemoninhados, tumbas e porcos caindo do mar, a
cena é como uma sátira ou caricatura política, que zomba das

686 CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus: comentário sociopolítico e


religioso a partir das margens. [Tradução de Walter Lisboa].São Paulo,
Paulus, 2002, p.280-283.
687 Para uma abordagem sociopolítica da religião, que pode lançar muita luz
sobre esse tópico que estamos estudando, veja: LÓPEZ, Ángel Belefia.
Sociopolítica dei Hecho Religioso: una introduction. Madrid, Ediciones
Rialp, S.A., 2007.
688 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos, p.237.
689 Idem, Ibidem, p.238.
690 WENGST, Klaus. Pax Romana: pretensão e realidade. [Tradução de
Antônio M. da Torre], São Paulo, Edições Paulinas, 1991, p.97.
357
CARLOS AUGUS + ® VAILA+ + I

pretensões do império com ares de fim. Expulsando demônios,


ele [Jesus] resiste e rejeita o diabo e o império principal do
diabo, Roma (...), e antecipa o triunfo futuro do império de
Deus sobre todos.691

Além disso, há outro item que situa politicamente esse


relato de exorcismo, isto é, o nome dos demônios. A esse
respeito, Wengst faz a seguinte pergunta: “É possível que o
ouvinte ou leitor da Antigüidade - diversamente dos intérpretes
modernos - ao ouvir o termo ‘legião’ não pensasse nas tropas
romanas?”.692 A resposta a essa pergunta é um óbvio e sonoro
“não”. Segundo Gnilka, o termo “legião” possui o significado de
“legionário”, já que o termo estrangeiro “legião” era entendido
assim no rabinismo tardio.693 De qualquer forma, quer o termo
se refira à tropa, quer se refira ao legionário individualmente,
uma coisa é certa: este vocábulo faz alusão clara e inequívoca ao
exército romano. Aliás, Paul Winter entende que a perícope de
Mc 5.1-20, especialmente os vv.1-13, adota uma postura
definitivamente anti-romana.694 Theissen também nota o
significado político por trás dos relatos de exorcismo. Segundo
ele:

Poderiamos interpretar outras ações de Jesus como


formas de expressão simbólico-políticas: os exorcismos são, em

CARTER, Warren. Op.Cit., p.280. O acréscimo entre colchetes é meu.


692
WENGST, Klaus. Op.Cit., p.97. E curioso notar que o nome grego
“Legião” (ÀEyuôv) aparece, no aramaico da Palestina, como um
estrangeirismo, o qual, ainda assim, mantém o mesmo significado de
“legião”. (Cf. JASTROW, Marcus, (org.). A Dictionary of the Targumim, the
Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature. New York, The
Judaica Press, Inc., 1996, p.692).
693
GNILKA, Joachim. ElEvangelio Según San Marcos. Vol. I, p.238.
694
WINTER, Paul. Sobre o Processo de Jesus. [Tradução de Sergio
Alcides]. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1998, p.247.
358
SA+ANÁS, DEftl®NI®S E LEGIî

sua versão, sinais do reinado incipiente de Deus; começo da


expulsão de todo o estranho, demoníaco e mal de Israel (...).695

Finalmente, os porcos também possuem uma conotação,


sobretudo, política. Vejamos novamente o que Carter nos diz,
dessa vez, sobre esses animais:

Os pagãos usavam porcos de várias maneiras. (1)


Soldados romanos os criavam para alimento e comércio (...)
como fizeram cidades na sua produção agrícola organizada (...).
(2) Os porcos eram utilizados em rituais religiosos que
buscavam a bênção divina para a produção agrícola, c em ritos
funerários para alimentar o morto, santificar uma tumba ou
propiciar aos antepassados mortos (...). (3) O porco era o
símbolo da Décima Legião Frctcnsis acampada na Síria, que
combateu Jerusalém na guerra de 66-70. Na literatura talmúdica
tardia, o porco simbolizava Roma. A subseqüente destruição
dos porcos não é somente uma perda econômica, mas sugere
um retrato codificado do fim dc Roma.696

Como podemos perceber nestas palavras de Carter, o


porco possuía um simbolismo tríplice. Ele representava,
seguindo a ordem acima, respectivamente: (1) o poderio
comercial, (2) o poderio religioso e (3) o poderio militar. Isto
significa que, ao morrerem afogados os porcos, tal ato
representaria a destruição dos ocupantes romanos.697

b) Aspectos Sociais

THEISSEN, Gerd. La Religion de Los Primeros Cristianos: una teoria


dei cristianismo primitivo. [Traducción de Manuel Olasagasti Gaztelumendi].
Salamanca, Ediciones Sígueme, 2002, p.55.
696 CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus, p.282.
697
WENGST, Klaus. Pax Romana, p.98.
359
CARL®S AUGUS+ffl VAILA + + I

No que diz respeito aos aspectos sociais encontrados em


nossa passagem, Myers cita o estudo de P. Hollenbach sobre o
endemoninhado geraseno. Hollenbach, que se baseia em estudos
sobre a psicologia social da doença mental em situações de
repressão política, faz um interessante comentário sobre a
passagem que ora estudamos em nosso trabalho:

A tensão entre seu ódio aos opressores c a necessidade de


reprimir este ódio a fim de evitar terríveis rccriminações
dirigidas contra ele leva-o a ficar louco. (...) Ele se retirava para
um mundo interior onde pudesse simbolicamente resistir à
dominação romana. (...) O rompimento dc Jesus da acomadação
dominante (...) mostrou abertamente o ódio do homem e dos
vizinhos contra os romanos, cujo resultado poderia ser um
698
desastre para a comunidade (...).

Segundo Hollenbach, a insanidade do homem é fruto da


tensão existente entre os pólos “reação-não reação” contra o
domínio opressor. Este, ao se isolar da sociedade em que vive,
realiza uma espécie de protesto silencioso contra a dominação
estrangeira ou, pelo menos, cria um mecanismo de fuga contra
esta situaçao de opressão.

698 HOLLENBACH, P. Jesus, Demoniacs and Public Authorities: A Sócio-


Historical Study. JAAR, 1981, 49:4, p.573. Apud: MYERS, Ched. O
Evangelho de São Marcos, p.239.
699
Para Mateos e Camacho, uma parte importante do ministério de Jesus é
“dedicada a libertar os indivíduos das ideologias defendidas pelos sistemas
opressores, em especial das ideologias de violência, simbolizadas nos
evangelhos sinóticos (...) pelos ‘espíritos imundos’ ou ‘demônios’”. (Cf.
MATEOS, Juan & CAMACHO, Fernando. Jesus e a Sociedade de Seu
Tempo. [Tradução de I. F. L. Ferreira]. São Paulo, Paulus, 1992, p. 144).
Hermans e Sauvage comentam: “Da ‘Legião’ ao indivíduo, do indivíduo ao
rebanho, o movimento vai do plural a uma vítima única, e desta aos dois mil
porcos. A metáfora tem um valor social transparente. A legião é o agente de
subserviência ou de alienação de uma população. Os demônios estão mais
ligados à cidade (paien) que ao indivíduo possuído. Um indivíduo é aqui
360
SA+ANÁS, DÊfflêNieS € LEGIé

Myers continua a sua reflexão citando, desta vez,


Theissen. Segundo ele, este último está de acordo com o fato de
que a “opressão” por um povo dirigente estrangeiro às vezes
aparece em código como “possessão” por um espírito
estrangeiro. Assim se expressa Theissen:

As narrativas de milagre envolvendo exorcismo podem


ser entendidas como ação simbólica que interrompe a “mágica”
demoníaca de dependência todo-abrangente. (...) O fato de os
realizadores de milagre carismáticos do século I d.C. serem
invariavelmente do oriente, que se achavam firmemente sob a
dominação romana, estimula a hipótese de que a crença nos
carismáticos realizadores de milagre possa ser considerada
como uma reação das culturas subjugadas, helenista e oriental:
o politicamente inferior proclama e propaga sua superioridade
no nível da atividade miraculosa.*
700

Aqui, Theissen enxerga a crença nos taumaturgos oriundos


do oriente como uma forma psicossocial de reação das classes
subjugadas diante de seu opressor. Já que os oprimidos não
conseguem lutar de igual para igual contra os seus opressores e
assim se verem livres deles, visto que estes são política e
militarmente mais poderosos do que aqueles, então o
estratagema é vencer-lhes - ou, ao menos, tentar se igualar a
eles - por meios sobrenaturais. Em nosso caso, este meio
sobrenatural é o exorcismo. Mais uma vez, citamos Carter:

Vários estudiosos relacionam possessão demoníaca às


circunstâncias de opressão e colonialismo, “tensões sociais...,
antagonismos de classe enraizados na exploração econômica,

possuído por aquilo que assola toda sua coletividade”. (Cf. HERMANS,
Michel & SAUVAGE, Pierre, (orgs.). Bíblia e Medicina. [Tradução de Paula
S. R. C. Silva]. São Paulo, Edições Loyola, 2007, p.68).
700 THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition.
T. Clark, London, 1983, p.256. Apud: MYERS, Ched. Op.Cit., p.241.
361
CARLOS AUGUS + © VAILA + +I

conflitos entre tradições..., dominação colonial e revolução”. Os


comportamentos dos possuídos são “aberrações pessoais
intcgralmente conectadas com o colapso de relações sociais
corretas na comunidade”. Pode ser uma forma de enfrentar c/ou
uma forma de protesto contra duras (loucas) circunstâncias,
uma recusa a aceitar c ajustar-se a exigências econômicas,
sociais, religiosas e pessoais. Rotulando alguém dc demoníaco
pode ser também uma forma de controle social, uma tentativa
de subverter uma ameaça para o status quo.701

Por último, e creio que não menos importante, seja a


situação de exclusão social em que se encontra o
endemoninhado geraseno em relação aos seus concidadãos.
Enquanto estes moram em suas casas, ele, porém, vive entre os
túmulos e montes (Mc 5.5). Houve uma ruptura no laço social
que o unia à sua comunidade. Mas, como pode ocorrer tal
exclusão? Martine Xiberras responde:

(...) a exclusão não sc desenvolve somente dc maneira


visível ou materializável por uma ruptura do laço social, isto é,
por atitudes c comportamentos de evitamento, dc desconfiança,

CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus, pp.172,173. McLaren, ao


falar sobre a possessão demoníaca sob o ponto de vista social, declara: “Da
mesma forma como ele retira e expulsa invasores demoníacos ocultos, Jesus
precisa expulsar, expor, nomear, rejeitar e banir esse mal sistêmico, coletivo
- que permanece incógnito debaixo de mantos e de coroas, escondido em
templos e palácios, camuflado atrás de slogans políticos e de imagens
cunhadas em moedas, acobertado por políticas e tradições, parecendo
‘possuir’ grupos de maneira que eles pensam e se movem em uma única e
medonha coreografia”. (Cf. MCLAREN, Brian D. A Mensagem Secreta de
Jesus. [Tradução de Pedro José Maria Bianco], Rio de Janeiro, Thomas
Nelson, 2007, p.88). Uma interessante análise sobre a relação entre a
possessão demoníaca e a opressão pode ser vista em: CROSSAN, John
Dominic. Jesus: uma biografia revolucionária. [Tradução de Júlio Castanon
Guimarães]. Rio de Janeiro, Imago, 1995, pp.98-106. Aliás, entre as páginas
101-104 dessa obra, Crossan comenta especificamente a perícope sobre o
endemoninhado geraseno.
362
SA + ANÁS, D£ffl®NI®S £ LEGIî

de rejeição ou de ódio. Porque a exclusão assume também a


forma mais dissimulada de uma ruptura do laço simbólico: isto
é, do vínculo de adesão que liga os atores sociais a valores
G..).702

A meu ver, o comportamento dos gerasenos para com o


possesso indica uma combinação entre estes dois tipos de
exclusão: a visível e a dissimulada. A exclusão visível é
percebida no fato da comunidade permitir que o endemoninhado
viva isolado e distante de seu convívio social. Já a exclusão
dissimulada pode ser percebida nas sucessivas e aparentes
tentativas de imobilizar o homem, o qual sempre quebrava as
algemas e correntes que o prendiam (Mc 5.4) e, mesmo estando
ele sozinho, a comunidade nunca conseguia (ou não queria?)
prendê-lo (Mc 5.3,4). Talvez, esse homem solitário se encontre
nesta situação de exclusão porque somente ele ousou resistir (à
sua maneira) à dominação estrangeira romana. Se este for o
caso, então o seu protesto é duplo: ele protesta tanto contra a
dominação estrangeira, como também protesta contra a inércia
de seu próprio povo, o qual se omite diante do dever de resistir a
tal dominação. E a comunidade, por sua vez, exclui o
endemoninhado de seu convívio, por ver nele e em seu
comportamento, uma ameaça à sua sobrevivência como
sociedade diante de seus dominadores romanos. Em outras
palavras, o pensamento da comunidade gerasena é: “é melhor
estar ao lado de Roma e sobreviver, do que estar ao lado de um
louco e perecer”.

c) Aspectos Militares

702
XIBERRAS, Martine. As Teorias da Exclusão. [Tradução de José Gabriel
Rego], Lisboa, Instituto Piaget, 1996, p.33.
363
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

Myers, ao comentar nossa perícope de Mc 5.1-20, faz um


inventário de alguns termos que, segundo ele, possuem
conotações militares. Vejamos o que ele nos diz:

Legião. Um latinismo, esse termo só possuía sentido no


mundo social de Marcos: uma divisão de soldados romanos.
Alertados por esse elemento, descobrimos que o resto da
narrativa está cheia de imagens militares. O termo “rebanho”
(agele, 5,11) usado - inadequadamente para porcos, que não
andam cm rebanhos - muitas vezes era empregado para sc
referir a um bando de recrutas militares (...). (...) a frase “ele os
dispensou” (epetrepsen) tem conotação de ordem militar, e o
mergulho (orniesen) no lago sugere a idéia de tropas correndo
para a batalha (5,13).703

Se Myers estiver correto em sua interpretação, então o


relato do endemoninhado geraseno possui, de fato, um viés
sociopolítico muito grande. Isto quer dizer, por sua vez, que
Marcos, ao redigir o seu material, pode ter selecionado a dedo os
termos que seriam empregados neste relato de exorcismo, os
quais deliberadamente faziam menção a elementos ideológicos
anti-romanos de forma muito pitoresca.704

MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos, p.238. Ver também:


PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de
Marcos, p.78.
704
A esse respeito, Horsley faz o seguinte comentário: “Nos exorcismos de
Jesus, (...) os demônios eram identificados como legiões romanas, do mesmo
modo que em Qumrã os exércitos romanos eram compreendidos como as
forças políticas humanas sob o poder do Príncipe das Trevas. Por implicação,
portanto, a vitória de Deus sobre Satã, manifestada nos exorcismos de Jesus,
significava que o domínio romano também estava sendo derrotado. Os
seguidores de Jesus não estavam sob nenhum efeito ilusionista de que os
exércitos romanos haviam subitamente desaparecido da Palestina. Mas eles
compreenderam e declararam que o significado último dos exorcismos de
Jesus era a derrota do domínio romano”. (Cf. HORSLEY, Richard A. Jesus e
o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. [Tradução de
Euclides Luiz Calloni]. São Paulo, Paulus, 2004, p. 108).
364
SA + ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé

d) Aspectos Econômicos
Ao examinarmos a nossa passagem, como inclusive já
notamos antes, não podemos deixar de enfatizar que a queda da
manada de porcos do despenhadeiro indica uma grande perda
econômica para os donos desses porcos. Os porcos eram uma
fonte de alimento e renda, devido às vendas dos mesmos e às
taxas cobradas sobre sua comercialização.705 De acordo com
Mateos e Camacho, “a grande manada, de alto valor econômico,
representa o poder do dinheiro”.706 Conseqüentemente, o pedido
feito para que Jesus abandone o território geraseno, encontra
explicação no fato de que “para a sociedade pagã, o dinheiro e o
poder valem mais que o homem”.707708 Dito de outra forma, o
exorcismo feito por Jesus também teve implicações econômicas
para Gerasa, isto é, o sistema econômico geraseno que, naquela
época, tinha a sua força proveniente também (ou principalmente
- devido à quantidade de porcos) da suinocultura, viu-se
arruinado mediante a ação libertadora promulgada por Jesus.

e) Aspectos Ideológicos

Sob o ponto de vista ideológico, há pelo menos dois


aspectos que chamam a nossa atenção no texto. O primeiro
deles, já mencionado anteriormente, diz respeito ao binômio:
pureza/impureza. Primeiramente, Jesus realiza seu exorcismo
70S
em uma terra cerimonialmente impura, isto é, Gerasa. Em

705 CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus, p.283.


706 MATEOS, Juan & CAMACHO, Fernando. Marcos: texto e comentário.
[Tradução de José Raimundo Vidigal]. São Paulo, Paulus, 1998, p.140.
707
Idem, Ibidem, p. 141.
708
De acordo com Guy Bonneau, “o judaísmo palestino da época de Marcos
compreendia verdadeiros esquemas de pureza. Como, por exemplo, dos
lugares santos da Palestina, estabelecidos pela Mishná e classificados em
ordem crescente de santidade (Kelim 1, 6-9): 1) a terra de Israel é mais santa
365
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I

seguida, Jesus se depara com um homem em estado de completa


impureza, ou seja, um endemoninhado. Alias, o demônio que o
possui também é chamado de “espírito impuro”. O outro nome
dado ao demônio, “Legião”, também faz referência à impureza,
pois menciona soldados romanos (pagãos). O possesso habita
num lugar impuro, “os sepulcros”. Além do mais, como se isso
tudo já não fosse o suficiente para pintar um quadro de total
impureza, finalmente, animais impuros, os porcos (cf. Lv 11.7;
Dt 14.8), também são mencionados na passagem. Toda essa
impureza encontrada em solo pagão se contrapõe
vertiginosamente à situação encontrada no território de Israel,
em função de seu código de pureza. Talvez possamos ver aqui,
senão em todas, pelo menos em boa parte dessas referências
sucessivas feitas à impureza, uma clara intenção redacional do
autor: mostrar aos seus leitores que onde a obediência irrestrita
ao código de pureza israelita não é observada, aí predominam os
demônios, a desordem e o caos geral.709 O segundo aspecto
ideológico que podemos notar em Mc 5.1-20 diz respeito à
perda da capacidade de comunicação por parte do
endemoninhado. Lemos em Mc 5.5 que o homem estava KpáCcov

do que todas as outras terras; 2) as cidades fortificadas de Israel são mais


santas que as cidades que não são. Em seguida, vêm: 3) interior dos muros de
Jerusalém; 4) montanha do Templo; 5) muralha do Templo; 6) pórtico das
mulheres; 7) pórtico dos israelitas; 8) pórtico dos sacerdotes; 9) seção entre o
pórtico e o altar; 10) santuário; 11) santo dos santos”. (Cf. BONNEAU, Guy.
O Leão Ruge: o impacto profético do evangelho de Marcos. [Tradução de
Mariana Nunes R. Echalar], São Paulo, Paulinas, 2002, pp.88,89).
709
Para minha surpresa, Bonneau também questiona a existência ou não de
atividade redacional nas situações de impureza que envolvem Jesus. Este
autor, em sua citada obra, alista uma série de transgressões e desobediências
que Jesus comete no decorrer do Evangelho de Marcos no que diz respeito à
não-observância do código de pureza judaico. Eis as palavras de Bonneau:
“Jesus é nitidamente contra o sistema judaico do puro e do impuro, e isto em
todo o conjunto do evangelho. Lendo a lista (...), nos perguntamos
sinceramente se Jesus não fez de propósito. Ou se é Marcos que,
intencionalmente, arma situações narrativas embaraçosas nas quais inclui o
personagem de Jesus”. (Cf. BONNEAU, Guy. Op.Cit., p.92).
366
SA + ANÁS, DEm®NlffiS Ê LEGIé

(“gritando”). Ao que tudo indica, este termo denota um grito


desarticulado, um som agudo. Leiamos, a esse respeito, as
notáveis palavras de Wengst:

É fenômeno constante que, aí, o possesso é mudo; que,


quando fala, não o faz em própria pessoa. Possessão é, portanto,
mutismo e alienação dos outros homens e alienação de si
mesmo, a posição fora de ação da própria pessoa, que não se
pode expressar mais a si mesma. Pelo contrário, ela toma-se
muda porque está dominada por poder estranho. O possesso é
aquele que foi emudecido, aquele cuja capacidade de
comunicação foi limitada decisivamente, ou é aquele que não
fala mais por si mesmo, mas somente pelo código daqueles que
tem poder sobre ele. Que, por isso, a possessão ocorra
sobretudo - não exclusivamente - nas camadas sociais
inferiores, é compreensível: elas é que estavam mais fortemente
expostas à pressão política e econômica. Deste modo, miséria
social e injustiça, opressão e exploração são experimentadas
como possessão que torna mudo e sem fala.710
Este pensamento perturbador emitido por Wengst nos
mostra que o poder dominante, ao se impor sobre aqueles que
por ele são dominados, busca silenciar estes últimos, a fim de
que tal “mordaça” impeça-lhes de expressarem suas idéias, as
quais, levadas a sério, se tomariam formadoras de opinião e, por
fim, poderíam provocar um pensamento de revolta e de
resistência contra tal sistema dominante. O mecanismo do
emudecimento alheio faz com que sejam evitados protestos,
revoltas, reflexões e outras coisas do gênero, as quais, sem
dúvida alguma, podem provocar a bancarrota do sistema
opressor.

710 WENGST, Klaus. Pax Romana, p.97.


367
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + 1

f) Conclusão

Carter, ao concluir o seu comentário sobre Mt 8.28-34,


enxerga o texto como um conflito de várias facetas. Segundo
ele:

O conflito tem múltiplos níveis: econômico, visto que os


porcos são uma fonte de alimento e renda de vendas e taxas;
político, visto que Jesus desafiara seu controle c destruira um
símbolo do controle imperial romano; social, visto que Jesus
assumira o lado dos descartáveis, à custa da elite; étnica, visto
que Jesus c um judeu exercitando sua autoridade entre os
pagãos; religioso, visto que Jesus destruiu um animal com
papéis importantes cm ritos religiosos.711

A abordagem sociopolítica, representada aqui


principalmente por Myers e Carter, embora sofra uma forte
influência da Teologia da Libertação, mostrou-se extremamente
coerente e perspicaz em seu desenvolvimento. Tal abordagem,
longe de ser completa em sua essência, forneceu-nos vários
elementos que nos ajudaram a compreender melhor nosso relato
de exorcismo.

3.6. A Interpretação Psicológica de Freud e


Oesterreich

a) Freud Explica

Ao falarmos sobre o relato do endemoninhado geraseno,


não poderiamos deixar de mencionar o pensamento de Freud

CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus, p.283.


368
SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIî

712
(1856-1939) sobre o demônio e a possessão demoníaca.
Embora Freud não comente o nosso texto particularmente,
todavia, em seu conhecido trabalho, Uma Neurose Demoníaca
do Século XVII, ele faz alguns comentários bem pertinentes ao
nosso estudo em questão. Portanto, vejamos o que Freud nos diz
sobre estes assuntos:

Não precisamos ficar surpresos em descobrir que, ao


passo que as neuroses de nossos pouco psicológicos dias de
hoje assumem um aspecto hipocondríaco c aparecem
disfarçadas como enfermidades orgânicas, as neuroses daqueles
antigos tempos surgem em trajes demoníacos. Diversos autores,
e dentre eles Charcot é o principal, identificaram, como
sabemos, manifestações de histeria nos relatos de possessão e
êxtase que nos foram preservados nas produções artísticas. Se
se tivesse concedido maior atenção às histórias de tais casos na
época, não teria sido difícil retraçar neles o tema geral de uma
neurose. A teoria demonológica daquelas épocas sombrias
levou a melhor, ao final, sobre todas as visões somáticas do
período da ciência ‘exata’. Os estados de possessão
correspondiam às nossas neuroses, para cuja explicação mais
uma vez recorremos aos poderes psíquicos. A nossos olhos, os
demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de
impulsos instintuais que foram repudiados e reprimidos. Nós
simplesmente eliminamos a projeção dessas entidades mentais
para o mundo externo, projeção esta que a Idade Média fazia;
em vez disso, encaramo-las como tendo surgido na vida interna
713
do paciente, onde têm sua morada.

Baseio-me aqui principalmente em: FREUD, Sigmund. O Ego e o Id e


Outros Trabalhos (1923-1925). [Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu],
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996.
713 FREUD, Sigmund. O Ego e o Id e Outros Trabalhos (1923-1925), p.87.
Para uma análise sobre a posição ateísta de Freud e o seu pensamento
religioso como um todo, veja: RIZZUTO, Ana-María. Por que Freud
Rejeitou Deus? [Tradução de Luciana Pudenzi]. São Paulo, Edições Loyola,
2001. Oates faz um comentário semelhante a este de Freud, dizendo: “(...)
médicos em nosso tempo chamam as desorganizações da mente de neurose e
369
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + +I

Neste comentário, Freud define os demônios como


“desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos instintuais
que foram repudiados e reprimidos” e definine as possessões
demoníacas como “manifestações de histeria” e “neuroses”.
Segundo ele, a crença em demônios e em possessões
demoníacas nos tempos antigos é fruto de uma mentalidade pré-
científica e, portanto, menos esclarecida. Não podemos nos
esquecer de que Freud escreve a partir de uma experiência pós-
iluminista (o Iluminismo surge por volta do século XVIII), a
qual era centrada na razão humana, sendo que “a era do
iluminismo trouxe consigo uma suspeita sobre as afirmações de
autoridade da Bíblia, da igreja, dos credos e de quaisquer outros
dogmas religiosos”.* 714 Sendo assim, é natural que uma
abordagem pós-iluminista da Bíblia questione a existência dos
demônios e, conseqüentemente, da possessão demoníaca. Freud
é fruto do racionalismo de seu tempo, o qual busca extirpar o
elemento miraculoso e sobrenatural da experiência humana. Já
mais recentemente, Theissen e Merz, ao comentarem o
significado de “possessão” nos dias atuais, fizeram a seguinte
declaração à maneira freudiana: “hoje classificamos semelhante
comportamento como distúrbio de identidade (parte de uma

psicose; os antigos chamavam o mesmo fenômeno de possessão demoníaca


(...). O vocabulário moderno se refere às compulsões que aparecem por Id ou
por complexos ou por super-ego, as quais são mais fortes do que a própria
personalidade normal, o ego, o qual é incapaz de reter a sua soberania
racional. A desorganização se localiza e a personalidade perde sua
integração”. (Cf. OATES, Wayne E. The Religious Dimensions of
Personality. New York, Association Press, 1957, p. 199).
714 GRENZ, Stanley J„ GURETZKI, David & NORDLING, Cherith Fee.
Dicionário de Teologia. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Editora
Vida, 2000, p.71.
370
SA + ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé

síndrome borderline), como distúrbio dissociativo, como


‘personalidade múltipla’ ou como psicose”.715716

b) Oesterreich e a Possessão Demoníaca

Já Kurt Koch, baseado nos estudos de Oesterreich, nos


fornece algumas características básicas de uma situação de
possessão demoníaca a partir do enfoque psicológico:

O padrão externo da condição de possessão é marcado


por uma mudança completa da personalidade. A pessoa
possuída parece estar dominada por uma individualidade
estranha. As marcas características desta mudança da
personalidade primária para a secundária são: a rápida mudança
da expressão facial, de amizade para fazer terríveis caretas; a
súbita mudança da voz, por exemplo, de um alto soprano para
um baixo grave; a hipótese de uma nova personalidade, com
novos conteúdos de consciência. Estas três metamorfoses
psicológicas são normalmente acompanhadas por um fenômeno
motor poderoso. A pessoa possuída tem ataques de delírio,
instinto selvagem dos membros, deslocamentos, mania
destrutiva, atos de violência para com outras pessoas
. 716
presentes.

Este comentário nos fornece algumas marcas distintivas da


possessão demoníaca que podemos perceber em nossa perícope
sobre o endemoninhado geraseno. 1) Há uma mudança completa
na personalidade do endemoninhado (Mc 5.9 - o “seu nome” é

THEISSEN, Gerd & MERZ, Annette. O Jesus Histórico: um manual.


[Tradução de Milton Camargo Mota e Paulo Nogueira]. São Paulo, Edições
Loyola, 2004, p.336.
716 OESTERREICH, T. K. Die Besessenheit. Verlag Wendt & Klauwell,
Langensalza, 1921, p.63. Apud: KOCH, Kurt E. Christian Counselling and
Occultism. Grand Rapids, Kregel Publications, 1972, pp.216,217.
371
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + 1

Legião); 2) O endemoninhado age com seus membros por meio


de um instinto selvagem (Mc 5.5 - ele se fere com pedras); 3) O
endemoninhado possui uma mania destrutiva (Mc 5.4 - ele
destrói as algemas e as correntes - e também se autodestrói,
5); 4) O endemoninhado exibe atos de violência contra as
v.
pessoas (cf. Mt 8.28 - ninguém pode passar pelo caminho dos
dois endemoninhados); e 5) O endemoninhado muda a sua voz,
emitindo sons desarticulados e agudos (Mc 5.5 - ele está
“gritando”). Ao analisarmos o nosso texto a partir do ponto de
vista psicológico, notamos vários elementos em comum entre
uma pessoa neurótica717 ou histérica718 e o endemoninhado
geraseno. Aliás, sob esse enfoque, a opinião dos estudiosos,
embora pareça ser diferente, termina por dizer basicamente a
mesma coisa. Há quem diga, por exemplo, que o
endemoninhado geraseno: sofria de uma mania suicida (ele vivia
entre os túmulos e se cortava com pedras),719722 *721
tinha uma
desordem mental, “ uma insanidade ilusória, uma dupla
vontade e uma dupla consciência, " uma psicose maníaco-

Para saber mais sobre as “tendências neuróticas”, do ponto de vista


cristão, veja: CRAMER, Raymond L. The Psychology of Jesus and Mental
Health. Los Angeles, Cowman Publications, Inc., 1961, pp.119-126.
718
Klausner vê os endemoninhados descritos nos Evangelhos como pessoas
“nervosas e histéricas”. (Cf. KLAUSNER, Joseph. Jesus de Nazaret.
[Version Castellana de Jorge Piatigorsky], Buenos Aires, Editorial Paidos,
1971, p.264). Já para A. Nolan, o endemoninhado geraseno é visto como um
“lunático delirante”. (Cf. NOLAN, Albert. Quién es Este Hombre? Jesús,
antes dei cristianismo. [Traducción de Jesús Garcia-Abril]. Santander,
Editorial Sal Terrae, 1981, p.45).
719
BROWNING, W. R. F. The Gospel According to Saint Luke,
Introduction and Commentarv. London, SCM Press Ltd., 1960, p.93.
-m
ELLIS, E. Earle. The Gospel of Luke. [NCBC], pl 28.
721
HUNTER, A. M. The Gospel According to Saint Mark. London, SCM
Press Ltd., 1957, p.62.
722
JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], pl42.
A opinião sobre a “dupla consciência” também é vista em: BURN, John
372
SA+ANÁS, DÊIT1©N1©S E LEGIé

depressiva, 723 insanidade ou loucura, 724 ou, como eu prefiriria


dizer caso adotasse tal tipo de enfoque, ele sofria de um
transtorno de personalidade múltipla. Seja como for, por mais
que utilizemos variados termos para tentar explicar, do ponto de
vista psicológico, qual era a doença do endemoninhado, sempre
acabaremos desembocando num mesmo denominador comum,
isto é, o endemoninhado geraseno era, na verdade, alguém que
possuía algum tipo de distúrbio mental. Todavia, tal posição
psicológica acaba “pecando” por não levar em consideração a
origem espiritual da possessão demoníaca.

c) Conclusão
Ao concluir esta breve análise sobre a interpretação
psicológica referente ao endemoninhado geraseno eu diria que,
embora a interpretação de Freud e de seus seguidores esteja
correta sob diversos aspectos, todavia, creio que tal
psicologismo falhe por não levar em consideração o elemento
“espírito”, componente este indissociável da constituição
humana. Em outras palavras, essa interpretação unilateralmente*

Henry. Commentary on the Gospel According to St. Mark. Vol.22. [PHC].


Grand Rapids, Baker Book House, S.d., p. 178.
723
GAEBELEIN, Frank E. The Expositor’s Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke]. Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984,
p.657.
24 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p. 182.
725
Outro enfoque psicológico interessante também nos é fornecido por
Bruce, quem, citando A. R. Short, declara que este “atribui o problema do
homem possuído por uma legião de demônios ao dia terrível quando, na
infância, presenciara a cena trágica de uma legião de soldados de Herodes a
massacrar as crianças de Belém, ou cena similar”. (Cf. SHORT, A. R.
Modem Discovery and the Bible, 1943, p.89s; Idem. The Bible and Modern
Medicine, 1953, p. 109s. Apud: BRUCE, F.F. Merece Confiança o Novo
Testamento? [Tradução de Waldyr Carvalho Luz]. São Paulo, Sociedade
Religiosa Edições Vida Nova, 1990, pp.83,84).
373
CARL®S AUGUS + S VAILA + + 1

psicológica do ser humano acaba por descaracterizá-lo em sua


essência. Dito de outra forma, pelo fato de nós, seres humanos,
termos uma constituição tripartida {espírito, alma e corpo, cf.
o aspecto espiritual do homem que lhe possibilita
ITs 5.23),726727
entrar em contato com o sagrado, com o religioso e com as
realidades supra-naturais (Deus e os demônios, por exemplo)
79 7

não deveria ser ignorado por tal abordagem.

3.7. A Interpretação da “Territorialidade


Espiritual” de C. Peter Wagner
O americano Charles Peter Wagner, um dos grandes
propagadores e defensores do movimento da assim chamada
Batalha Espiritual, ao compilar o seu conhecido livro,
Territorial Spirits {Espíritos Territoriais), nos forneceu
importantes informações a respeito da doutrina conhecida como
Territorialidade Espiritual. Acredito que algumas reflexões de
Wagner e de seus colaboradores nesta obra sobre tal doutrina
possam ser úteis para a nossa reflexão sobre a passagem que
trata do endemoninhado geraseno. Vejamos, portanto, o que
tudo isso quer dizer.

a) Definindo o Conceito de “Territorialidade


Espiritual”
726
O termo “tripartida” não é usado aqui no sentido de descrever o homem
como um ser que possui “divisões” ou “partes”. (Particularmente, entendo
que estes três elementos representem o ser humano em sua totalidade). Mas
eu o emprego aqui de forma intencional, querendo chamar a atenção para o
fato de que o ser humano não se resume ao aspecto “psicológico”. O
elemento “espiritual” também deve ser levado em conta.
727
Para uma discussão sobre a possessão demoníaca do ponto de vista
religioso e médico, consulte: AMORTH, Gabriele. Exorcistas e Psiquiatras.
[Tradução de Ana Paula Bertolini], São Paulo, Palavra e Prece Editora Ltda.,
2006, pp.85-112. Além de Amorth, veja ainda: BALDUCCI, Corrado. O
Diabo: “...vivo e atuante em nosso mundo". São Paulo, MIR Editora, 2004,
pp.83-89.
374
SA+ANÁS, DEfflffiNIffiS E LEGIé

De uma forma geral, poderiamos definir o conceito de


“Territorialidade Espiritual” (a partir daqui: T.E.) como a ideia
de que “principados específicos [isto é, ‘demônios’], com
características identificáveis, são designados para regiões
geográficas específicas e instituições geo-políticas. O domínio
desses principados pode incluir uma residência, um bairro, uma
cidade, uma nação, uma cultura ou uma subculture”.728729 Tal
730
doutrina baseia-se na crença de que “toda essa hierarquia
maligna é empregada por Satanás, em seus determinados
territórios, a fim de amarrar, cegar e maltratar os seres humanos
que ali habitam”. Esses conceitos nos mostram que a T.E.
pressupõe a existência de uma hierarquia maligna altamente
organizada, a qual busca dominar de forma estratégica, várias
(senão todas) as regiões e esferas da existência humana. Isso
pode ser exemplificado na ideia de que “a característica
predominante desses espíritos pode ser a cobiça (cidade de Nova
Iorque), o poder político (Washington, D.C.), a pornografia (Los
Angeles), a luxúria, a timidez, o orgulho ou outro tipo de
pecado”. Em suma, a T.E. entende que determinadas regiões
geográficas estejam sob a jurisdição de certos demônios e, além
disso, acredita também que certos pecados predominantes em
determinadas localidades se devam à atuação de demônios
específicos que auxiliam na promoção de tais tipos de atos
pecaminosos. Tal enfoque é perigoso, pois, além de demonizar o
comportamento errado do ser humano (o que é resultado do
livre-arbítrio do indivíduo), acaba também por inocentar o ser
humano de suas responsabilidades no que diz respeito aos atos

LAWSON, Steven. Charisma & Christian Life. Strang Communications


Company, Flórida, 1990. Apud: WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais.
[Tradução de João Marques Bentes]. São Paulo, Bompastor Editora Ltda.,
1991, p.63.
729
FORSTER, Roger T„ in: WAGNER, C. Peter. Op.Cit., p.15.
730
WAGNER, C. Peter. Op.Cit., p.63.
375
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

cometidos, tanto bons quanto maus. Bem, mas continuemos o


nosso estudo.

b) O Caso das Tribos Tzotzils de Chiapas, no


México

A fim de fornecer base ao pensamento sobre a T.E.,


Vernon J. Sterk menciona um curioso caso ocorrido na tribo
zinacanteco, dos indígenas de fala tzotzil das terras altas centrais
de Chiapas, no México. Segundo ele, várias enfermidades que
estavam presentes entre aqueles indígenas eram causadas por
espíritos malignos específicos e identificáveis. Eis o seu relato:

Todas as tribos dos índios tsotzils (...) podem identificar


divindades tribais específicas que atuam como espíritos
guardiães (santos c deuses ancestrais). E eles também sabem os
nomes dos espíritos malignos específicos que estão
encarregados de vários tipos de males, dentro de sua cultura
indígena. Os espíritos chamados yajval balamil, ou seja,
“proprietários da terra”, controlam as enfermidades c as curas,
mediante a “perda da alma” c a “redenção” respectivamente.
Existem muitos demônios, como o poslom, o qual toma o
formato de uma bola de fogo a fim de causar severos inchaços
nas pessoas. Os j’ic’aletic ou “homens negros” são pilhadores e
estupradores, os quais cometem ataques indiscriminados c todas
as espécies de males. Há ainda uma lista aparentemente
interminável de assustadores seres ou espíritos malignos aos
quais o povo tzotzil refere-se como os pucujctic, ou seja,
“demônios” (...). (...) mas o que ainda se reveste de maior
interesse, neste nosso estudo, é que eles também tem tarefas e
designações territoriais (...). Os espíritos dos ancestrais residem
em determinados picos montanhosos. Os xamãs podem entrar
em contato com os espíritos dos ancestrais em certas cavernas c
através de certas encruzilhadas que servem de santuários. Todos
os espíritos malignos têm limites geográficos onde podem
exercer o seu poder, embora o alcance dos espíritos malignos
376
sa+anás. DeméNies e legiã©

pareça ser mais amplo do que o dos espíritos guardiães ou o dos


espíritos dos ancestrais, cuja jurisdição parece ser bem
limitada.731

Primeiramente, creio que é muito complicado querer


basear um assunto tão controverso como o da T.E. em
experiências pessoais, o que ocorre muitas vezes no decorrer do
livro, e não em uma exegese séria sobre o assunto.732 Em
segundo lugar, é igualmente complicado alicerçar o conceito da
T.E. na crença subjetiva animista de tais índios mexicanos.
Portanto, o relato de Sterk não é convincente.

c) Um Estranho Caso na Fronteira entre o Brasil e


o Uruguai

Desta vez, o próprio C. Peter Wagner menciona um


interessantíssimo caso, o qual serve para exemplificar a doutrina
da T.E. Acompanhemos o seu relato:

Em anos recentes, as igrejas evangélicas estão crescendo


rapidamente no Brasil, mas muito lentamente no vizinho
Uruguai. Um missionário que se encontrou com Ralph
Mahoney, da World MAP, teve uma estranha experiência
quando distribuía folhetos em uma pequena cidade na fronteira
entre o Brasil e o Uruguai, cuja rua principal divide os dois
países. Ele descobriu que, no lado uruguaio, ninguém aceitava
os folhetos, ao mesmo tempo [em] que eram acolhidos de bom

STERK, Vernon J., in: WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais,


pp.202,203.
732
No preâmbulo do livro compilado por Wagner, Roger Forster faz a
seguinte declaração: “Este material está alicerçado sobre as suas experiências
pessoais [dos dezenove autores que co-escrevem o livro] quanto ao assunto e
não sobre qualquer torre de marfim de inquirição teórica”. (Cf. WAGNER,
C. Peter. Op.Cit., p.9). Tal postura adotada por estes autores denuncia o
caráter extremamente subjetivo de suas opiniões.
377
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

grado no lado brasileiro da rua. E indivíduos que recusavam os


folhetos enquanto estavam no lado uruguaio mudavam de
atitude e os recebiam quando passavam para o lado brasileiro. A
interpretação do missionário foi que, “ao atravessarem a rua, as
pessoas passavam de debaixo da cobertura das trevas, no
Uruguai, para um país que havia experimentado, pelo menos em
733
parte, a remoção dessa cobertura”.

Esse relato que mostra os demônios vencidos no território


brasileiro e, ao mesmo tempo, atuantes no território uruguaio,
também deve ser visto com muita cautela. Temos que tomar
muito cuidado para não estabelecermos certas crenças a partir de
uma experiência mística isolada e subjetiva, a qual deve ser vista
como exceção e não como padrão normativo. Além do mais, tal
postura pode nos levar de forma injustificada a santificar
algumas nações e a demonizar outras, de acordo com a recepção
que estas dão ao Evangelho em suas terras. Todavia, essa
ideologia não parece estar em concordância com o conceito
bíblico do domínio universal divino, segundo o qual Deus é o
dono de tudo e de todos (cf. SI 24.1).

d) Os Espíritos Territoriais na Bíblia

No decorrer de seu estudo sobre a T.E., Vernon Sterk


pergunta: “É Bíblico o Conceito de Espíritos Territoriais?”. Ele
mesmo responde:
Fica patente, mediante a observação empírica, que
podemos defender a causa da existência de espíritos territoriais
e seu papel na perseguição contra os crentes e na resistência ao
evangelho.733
734

733
WAGNER, C. Peter. Op.Cit., p.81. O acréscimo entre colchetes é meu.
734 STERK, Vernon J., in: WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais, p.205.
378
SA+ANÁS, DEFTI®NI®S £ LEGIî

Sterk prossegue em seu argumento, mencionando as


referências bíblicas acerca da T.E. encontradas no Antigo
Testamento:

No Antigo Testamento, há abundantes menções a lugares


específicos, como os “lugares altos”, ou colinas específicas, ou
certas árvores, com as quais as nações pagãs identificavam
localidades onde se manifestavam deuses e espíritos
específicos.735

Em seguida, esse autor faz referência ao Novo


Testamento:

As menções a espíritos territoriais no Novo Testamento


são em número limitado. Apesar de terem sido historiados
muitos casos onde foram abertamente desafiados demônios e
espíritos malignos, apenas algumas vezes c reconhecido que
esses demônios estavam vinculados a territórios específicos.736

O autor se baseia ainda nas seguintes referências veterotestamentárias a


fim de corroborar a sua idéia sobre a Territorialidade Espiritual: Dt 12.2; Jz
3.7; 1 Sm 7.3,4; 1 Sm 26.20; 1 Rs 20.23; 2 Rs 5.1-19; 2 Rs 17.17, 29-31. (Cf.
Idem, Ibidem, pp.205-207).
Desta vez, Sterk cita apenas duas passagens neotestamentárias sobre a
Territorialidade Espiritual: Mc 5.1-20 e At 19. (Cf. Idem, Ibidem,
pp.207,208). Grudem, ao criticar o conceito de “batalha espiritual
estratégica”, diz: “(...) não se vê no Novo Testamento ninguém que (1)
convoque um ‘espírito territorial’ ao entrar numa região para pregar o
evangelho (...), (2) exija de demônios informações sobre a hierarquia
demoníaca local, (3) diga que devemos crer ou transmitir informações
oriundas de demônios ou (4) ensine por palavras ou exemplos que
determinadas ‘fortalezas demoníacas ’ de uma cidade precisam ser
derrubadas para que se proclame o evangelho com eficácia”. (Cf. GRUDEM,
Wayne. Teologia Sistemática. [Tradução de Norio Yamakami, Lucy
Yamakami, Luiz A. T. Sayão e Eduardo Pereira e Ferreira]. São Paulo, Vida
Nova, 1999, p.342 - os itálicos são do próprio autor).
379
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + 1

Em sua conclusão sobre a T.E. na Bíblia, Sterk afirma a


sua crença na existência de espíritos territoriais que controlam
certas áreas, reinos, nações e localidades, mas, por outro lado,
confessa também que Satanás nem sempre emprega esse método
territorial em suas investidas contra os seres humanos. De
qualquer forma, a noção de territorialidade é bem enfatizada em
seu pensamento.

e) A Territorialidade Espiritual e Mc 5.1-20

Ao associar o texto de Mc 5.1-20, que ora estudamos em


nosso livro, com a doutrina da Territorialidade Espiritual (T.E.),
Vernon Sterk faz os seguintes interessantes comentários:

Quando o Senhor Jesus estava prestes a expulsar os


demônios de certo homem possesso (...), os demônios lhe
imploraram para não enviá-los para fora daquela região. Isso dá
a entender claramcntc que uma legião de demônios pertencia
àquela região c não queria afastar-se dali. Também acho
interessante notar que quando os espíritos malignos foram
expulsos e entraram nos porcos, e quando estes se precipitaram
no lago, então, o povo daquela região pareceu ter sido cegado
pelo poder daqueles demônios, pois, ato contínuo, eles temeram
e começaram a rogar que Jesus deixasse o território deles
(v. 17).737
738

Neste breve comentário, Sterk alega que, pelo fato da


localidade de Gerasa estar sob a jurisdição de alguns demônios,
logo, estes não queriam abandoná-la. Ele ainda entende que a
reação dos gerasenos, ao expulsar Jesus de seus termos, foi

737 STERK, Vernon J., in: WAGNER, C. Peter. Op.Cit., p.208.


7*20
STERK, Vernon J., in: WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais, p.207.
380
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

influenciada de alguma forma “pelo poder daqueles demônios”.


Aqui, Sterk demoniza as ações dos gerasenos que são contrárias
à permanência de Jesus em Gerasa, em vez de atribuí-las
simplesmente à livre escolha humana. Mas Sterk não faz isso à
toa. Como já vimos antes, faz parte do escopo da doutrina da
T.E. alegar que certos pecados existentes em determinadas
regiões se devam à atuação de demônios específicos que
auxiliam na promoção de tais tipos de atos pecaminosos. Em
outro ponto de seu comentário, Sterk ainda declara:

Um dos espíritos imundos que Jesus expeliu (...) deu o


seu nome como “Legião... porque somos muitos”. Ora, uma
legião romana era formada por seis mil homens, pelo que sem
dúvida teríamos razão em dizer que, naquela pequena área de
Gerasa, naquele tempo, havia um grande número de espíritos
territoriais, trabalhando ativamente na hierarquia dirigida por
Satanás.739

Neste ponto, Sterk reafirma o que já havia dito em seu


comentário anterior e ainda menciona a ideia da “hierarquia
demoníaca”, a qual está estreitamente relacionada com o
conceito da T.E. Todavia, deve ser dito aqui que, embora os
demônios de Gerasa, sem dúvida alguma, não quisessem
abandonar aquele território, em momento algum o texto diz que
tais demônios “pertenciam àquela região”, como mencionou
Sterk em sua fala anterior.

739
Idem, Ibidem, p.201. Em seu trabalho de pesquisa intitulado: Espíritos
Territoriais e Evangelização em Ambientes Hostis, Sterk cita Peter Wagner,
ao dizer que: “Satanás delega membros elevados da hierarquia dos espíritos
malignos a fim de controlar nações, regiões, cidades, tribos, grupos
populacionais, bairros e outras significativas teias sociais de seres humanos
pelo mundo todo. Sua incumbência principal é impedir que Deus seja
glorificado no território deles; e assim fazem dirigindo as atividades dos
demônios de patente inferior”. (Cf. Idem, Ibidem, p.208).
381
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + 1

Já Matiko Yamashita, também defensora da doutrina da


T.E. tal como difundida por Wagner, em sua apostila sobre
Batalha Espiritual (muito utilizada aqui no Brasil), faz um
curioso comentário sobre o texto de Mc 5.10:

“E (o demônio) rogou-lhe encarecidamente que os não


mandasse para fora do país”. Os demônios, evidentemente,
estavam com medo quanto ao que poderia acontecer-lhes, caso
eles fossem encontrados fora de seu território. A implicação é
que se um demônio for encontrado no território de outro
demônio sem a permissão de seu superior hierárquico, é
severamente punido.740

Aqui, Yamashita introduz um elemento novo e totalmente


hipotético em sua interpretação. Os demônios, ao serem vistos
como espécies de soldados que foram forçados a abandonar seus
postos, temem o castigo que receberão de seus superiores
hierárquicos. Porém, essa linguagem militarizada, extraída do
contexto das forças armadas, não reflete em momento algum o
teor da passagem (embora o conceito de “hierarquia” possa estar
presente). Aliás, a ideia de os demônios serem punidos ao se
encontrarem (sem autorização prévia) no território de outros
demônios, é estranha à Bíblia. Tal pensamento não passa de
mera conjectura. Os demônios obviamente não queriam sair do
território geraseno, porque ele era útil para os seus malignos
interesses, dentre os quais se destacava: escravizar a vida
daquele pobre homem.
f) Conclusão
Ao concluir nossa análise sobre a Territorialidade
Espiritual, podemos destacar alguns pontos. Primeiro, o conceito
de T.E. é bem controverso e nebuloso, sendo, portanto,

YAMASHITA, Matiko. Batalha Espiritual (apostila). Edição da autora.


Ministério Restaurador El Shadday, 2001, p.42.
382
SA + ANÁS, DErtlêNIOS £ LEGIî

temerário emitir algum juízo de maior peso sobre ele; Segundo,


o conceito de T.E. (tal como aparece no livro editado por
Wagner) é baseado, sobretudo, em “experiências pessoais”. Por
exemplo, o capítulo 11 do livro fala sobre experiências ocorridas
na Argentina, o capítulo 12 trata de experiências na Coréia e o
capítulo 13 comenta sobre experiências no Zimbábue. Tais
experiências subjetivas acabam servindo incorretamente de
alicerce para a doutrina da T.E.; Terceiro, Wagner, ao introduzir
a doutrina da T.E. dentro do conceito mais amplo de “Batalha
Espitirual”, confere a esta última ares de superioridade, ao vê-la
como uma das últimas “chaves” de sucesso da igreja que se
encontra nos derradeiros dias;741742
Quarto, elementos extraídos da
chamada “confissão positiva” também podem ser encontrados
no decorrer do capítulo 9, o qual foi escrito por Larry Lea.
Quinto, o relato bíblico sobre a tomada de Jerico (capítulo 10)
recebe interpretações extremamente espiritualizadas, feitas pelo
pastor pregador Dick Bernal, o que compromente totalmente a
compreensão do texto bíblico; E, em sexto e último lugar, a
doutrina da T.E., ao estar repleta de misticismos e exageros
interpretativos, representa mais uma ameaça à saúde da igreja de
Cristo do que uma ferramenta que a auxilie em seu crescimento,
como parece ser a proposta do livro de C. Peter Wagner.
3.8. A Interpretação do Simbolismo Mágico-
Religioso de Mircea Eliade
Em seu conhecido livro, Imagens e Símbolos, o autor
romeno, mas naturalizado norte-americano, Mircea Eliade,
separa o terceiro capítulo para tratar do assunto: O “Deus
Amarrador” e o Simbolismo dos Nos.™2 Embora o autor não
trate de nossa perícope em particular, todavia, ele nos apresenta
vasto material que serve para contribuir para a sua compreensão.
741
Cf. WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais, pp.27ss.
742
Baseei este tópico do livro em: SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na
Decápole, pp. 196-204.
383
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +I

Assim, lançaremos mão de sua obra a fim de tentarmos ler o


nosso texto a partir do enfoque recheado de símbolos de Eliade.
a) Varuna, o “Deus Amarrador” Indiano
Segundo a mitologia indiana, Varuna, é visto como um
deus da criação. Porém, o aspecto dessa divindade que
gostaríamos de destacar aqui diz respeito ao seu poder como
“deus amarrador”. Segundo a Wikipédia:
Varuna é chamado de Passabrit “senhor do nó corrediço”,
esse epítcto revela uma das mais relevantes características do
deus. Os nós simbolizam a capacidade de prender ou libertar, de
dar vida ou de tirá-la. Laços e nós, segundo o pensamento
antigo jtodem dar vida a coisas inaminadas por meio de
magia.7

Aliás, Varuna também administra e equilibra o mundo


principalmente através da forma de amarra, nó, laços (pâçâh),
sejam eles concretos ou figurados.*744 Eliade, ainda traz outras
valiosas informações sobre essa divindade:

Esse deus é um verdadeiro “mestre das amarras”, e


inúmeros hinos e cerimônias não têm outra finalidade senão
proteger ou libertar o homem dos “laços de Varuna” (...).
Sâyana (...) explica o nome de Varuna pelo fato de que este
“envolve, ou seja, aprisiona os malvados nos seus laços”. (...)
“Que tu libertes de tuas amarras aqueles que estão
amarrados!”.745

Disponível em: http.7/pt.wikipedia.org/wiki/Varuna_(mitologia).


Acessado em: 04/07/2009.
744
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo
mágico-religioso. [Tradução de Sonia Cristina Tamer], São Paulo, Martins
Fontes, 2002, p.89.
745 Idem, Ibidem, pp.92,93.
384
SA + ANÁS, DÊITlêNieS E LEGIé

Além disso, deve ser dito que é Varuna que detém o poder
mágico de amarrar os homens à distância e desamarrá-los. Ele é
representado com uma corda na mão e, nas cerimônias, tudo o
que amarra, a começar pelos nós, é chamado de varuniano.746
Varuna, por ser o dominador do universo, castiga aqueles que
desobedecem à lei “amarrando-os” (isto é, através da doença, da
impotência), pois ele é o guardião da ordem universal.747
Todavia, pelo fato deste deus também ser identificado com a
lua, tal aspecto “noturno” abriu o caminho para a sua
identificação com o demônio Vrtra, que, por sua vez, também é
visto no plano cósmico como um “amarrador”.748 É digno de
nota esse traço bipolar encontrado nesta divindade. Varuna é, na
verdade, um deus que possui traços ambivalentes, pois ele traz
consigo elementos demoníacos os quais coexistem com seus
outros elementos, divinos. E em tudo isso, sobressai a sua
característica como “deus amarrador”.

b) Outros “Deuses Amarradores”

Além de Varuna, existem vários outros “deuses


amarradores” ou heróis que podem ser encontrados em diversos
contextos culturais e religiosos. A seguir destacaremos alguns
deles:
Segundo a mitologia grega, o deus “Urano não luta, não há
traço de luta na sua lenda, ainda que seja o mais terrível e o
menos destronável dos deuses: por meio de uma preensão

746 Idem, Ibidem, p.93.


747
Idem, Ibidem, pp.94,95. Em outra de suas obras, Eliade fala sobre a
função dos mitos nas curas. (Cf. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade.
[Tradução de Pola Civelli]. São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2006, pp.28-
31).
748
Idem, Ibidem, pp.95,96.
385
CARLGS AUGUS + ffl VAILA + +1

infalível, ele imobiliza, mais exatamente ele ‘amarra’, acorrenta


nos infernos seus eventuais rivais, mesmo os mais vigorosos”.749
Na mitologia nórdica, “Odhinn (...) possui uma série de
dons mágicos, (...) e, sobretudo, o dom de cegar, de ensurdecer,
de paralisar seus adversários e de tirar toda a eficácia de suas
armas”.750
Na mitolologia indiana, notamos uma situação contrária à
da amarração. O deus Indra, por exemplo, salva as vítimas
“amarradas” por Varuna, “desamarrando-as”.751
De acordo com a mitologia romana, desta vez, no âmbito
humano, dizia-se que diante de Rômulo marchavam sempre
“homens munidos de varas, que afastavam a multidão e
carregavam correias a fim de amarrar imediatamente aqueles
que Rômulo ordenasse”.752
Na antiga Trácia, havia um deus chamado Darzales, cuja
raiz do nome continha a noção de “amarrar”, mas ignoramos
quase tudo a respeito de tal divindade.753
Na antiga cultura germânica, notamos ainda que a morte
ritual por enforcamento explica o epíteto de Odhinn, “o deus da
corda”. Além disso, as deusas funerárias germânicas puxam os

749
Idem, Ibidem, pp.89,90.
750 DUMÉZIL, Georges. Mithes et dieux des germains. Paris, 1939, pp.21ss.
Apud: ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos, p.90.
751 -
DUMEZIL, Georges. Flamen-Brahman. Paris, 1935, pp.34ss. Apud:
ELIADE, Mircea. Imagens e Simbolos, p.90.
75?
Aqui, Dumézil cita Plutarco {Romulus, 26). Cf. DUMEZIL, Georges.
Mitra-Varuna. Paris, 1940, p.72. Apud: ELIADE, Mircea. Imagens e
Símbolos, pp.90,91. Chouraqui fala sobre a existência de um feiticeiro
chamado em hebraico, hober habarim, o fazedor de nós, o qual, por meio de
sua arte hipnótica, dissociava a personalidade de sua vítima para submetê-la à
sua vontade. (Cf. CHOURAQUI, André. Os Homens da Bíblia. [Tradução de
Eduardo Brandão]. São Paulo, Companhia das Letras / Círculo do Livro,
1990, p. 160).
753 ELIADE, Mircea. Op.Czí., pp. 100,101.
386
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé

mortos com uma corda e as deusas guerreiras amarram aqueles


que elas querem derrubar.754755
Segundo a crença iraniana, o demônio Astôvidhôtush
amarra o homem que está destinado a morrer e, além disso, os
deuses guerreiros e os heróis iranianos também possuem tais
comportamentos ligados à “amarração”. O herói Frêdún, por
exemplo, amarra o demônio Azdahâk e o acorrenta ao monte
Dimâvand. Já o demônio Ahriman segura um laço em sua
~ 755
mao.
Na Austrália, segundo a crença dos arandas, os demônios
tjimbarkna atam durante a noite as almas dos humanos e os
matam apertando fortemente a corda.756
No poema da criação, Enuma Elish, Ea, o deus das águas e
da sabedoria, não luta “heroicamente” com os monstros
primordiais Apsü e Mummu: ele os “amarra” através de
encantamentos mágicos para matá-los em seguida.757758
Na Babilônia, o deus Marduk combate o monstro marinho
Tiamat e, para vencê-lo, sua principal arma é a “rede”. Marduk
“amarra” Tiamat, acorrenta-o e tira-lhe a vida. Em seguida,
Marduk também acorrenta todos os deuses e demônios que
haviam ajudado Tiamat, os quais acabam sendo lançados nas
758
cavernas.
Finalmente, Mircea Eliade também encontra o simbolismo
geral do “amarrar” no contexto judaico-cristão. Vejamos o seu
interessante comentário a esse respeito:

Idem, Ibidem, p. 103.


755
Idem, Ibidem, pp. 103,104.
756 STREHLOW, Carl. Die Aranda-und Loritja-Stamme in Zentral-
Australien, I, (Frankfurt a. M., 1907), p.ll. Apud: ELIADE, Mircea. Op.Cit.,
p.105.
757
ELIADE, Mircea. Op.Cit., p.107.
758 Idem, Ibidem, pp. 107,108.
387
CARL©S AUGUS + © VAILA + + I

Os judeu-cristãos, que sabiam também que é o demônio


que “amarra” os doentes (...) falavam, porém, do Deus Supremo
como “Mestre das Amarras”. Assim, encontramos no mesmo
povo uma multivalência mágico-religiosa de “amarras”: amarra
da morte, da doença, da feitiçaria - c também laços de Deus.759

c) O Conceito do “Deus Amarrador” em Mc 5.1-


2O760

A partir do enfoque do “Deus Amarrador” proposto por


Mircea Eliade, podemos entender, sob o ponto de vista
lingüístico, por exemplo, que Mc 5.3 se constitui o centro de tal
conceito. Relembremos o que diz esse verso sobre o
endemoninhado geraseno: "O qual tinha a morada nos
sepulcros, e nem com corrente ninguém podia prendê-lo Já
vimos anteriormente, em nossa análise de conteúdo sobre essa
passagem, que o termo “prender” que aparece aqui, é derivado
do verbo grego Sèco, “amarrar, sujeitar com correntes”. Vimos
ainda que este verbo faz parte do vocabulário específico dos
exorcismos e que, segundo Myers, “este exorcismo constitui,
assim, outro episódio-chave na luta de Jesus, o mais forte, para
‘amarrar o homem forte’”.761 Além disso, Mc 5.4 também nos
diz que o endemoninhado fora preso muitas vezes (pelos
habitantes da cidade) “com algemas e correntes”. Estes dois
instrumentos também nos são de grande valia para que
possamos compreender o conceito da “amarração”. A palavra

O autor cita, por exemplo, as seguintes referências bíblicas sobre as


“amarras” judaico-cristãs: 2 Sm 22.6; SI 18.6; 116.3-4; Os 7.12; Ez 12.13;
17.20; 32.3; Jó 19.6; Lc 13.16. (Cf. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos,
p.l 11). Curiosamente, Eliade omite a perícope de Mc 3.20-30, a qual trata da
assim chamada Controvérsia de Belzebú. No v.27 desta passagem,
encontramos o famoso trecho em que Jesus fala sobre “amarrar o valente”.
760 Para saber mais sobre este assunto, veja: SCHIAVO, Luigi. 2000
Demônios na Decápole, pp.202-204.
761 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos, p.240.
388
SA + ANÁS, DEITlêNieS E LEGIî

“algemas” é a tradução de iréôatç, a qual faz referência a


“grilhões para os pés, cadeias”. Já o termo áÀúoeoiv,
“correntes”, é entendido como um instrumento que prende as
“mãos”. Portanto, temos aqui um cenário que nos mostra o
simbolismo do “amarrar” de uma forma completa, uma vez que
o texto nos informa que “o endemoninhado estava preso tanto
pelas suas mãos como pelos seus pés”. Todavia, o mesmo v.4
nos diz que as “amarras” colocadas no endemoninhado pelos
habitantes da cidade não eram suficientemente fortes para
prendê-lo. Sendo assim, o que os homens não conseguem fazer
com o endemoninhado, isto é, “amarrá-lo”, “prendê-lo”, Jesus,
consegue fazer no sentido oposto, ou seja, “desamarrá-lo”,
“soltá-lo”, “libertá-lo”. Portanto, poderiamos ver Jesus, no
episódio do endemoninhado geraseno, de uma forma bipolar
positiva. De um lado, ele aparece na passagem como a
representação arquetípica do “Deus Amarrador”, ou, para
sermos mais precisos, como a representação do “Deus-Homem
Amarrador”.762 Jesus permite que os demônios caiam nas águas
do Mar da Galiléia, mar este que, como já notamos, pode
significar a “morte” para os demônios, ou, como pensaria
Eliade, representaria uma forma de “amarrá-los”. Por outro lado,
Jesus é, ao mesmo tempo, o arquétipo do “Deus-Desamarrador”,
ou, do “Deus-Homem Desamarrador”, pois ele aparece em Mc
5.1-20 como aquele que veio para “apregoar liberdade aos
cativos” e “pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4.19; cf. Mc

762
Tal concepção de Jesus como “Deus-Homem Amarrador” pode ser
também vista, aliás, de forma até mais pronunciada, principaimente na
passagem de Mc 3.20-30. Estevan Kirschner, ao comentar o v.27 dessa
passagem, cita a opinião de Robinson, que vê neste exorcismo e em todos os
demais encontrados em Marcos, a descrição de uma “Luta Cósmica” entre
Deus e as forças do mal. (Cf. ROBINSON, J.M. The Problem of History in
Mark. London, SCM Press, 1957, pp.81-90. Apud: KIRSCHNER, Estevan
Frederico. The Place of the Exorcism MotifMark’s Christology With Special
Reference to Mark 3.22-30. Dissertação de Doutorado, London, London
School of Theology, 1988, p.67).
389
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

5.13-15). Dito de outra forma, Jesus aparece em cena na região


de Gerasa a fim de “desamarrar” o pobre endemoninhado das
“amarras” dos habitantes da cidade e também das “amarras” dos
demônios. Eis aí, portanto, a descrição de uma nova espécie de
cristologia, uma cristologia simbólica mágico-religiosa.

d) Conclusão
Após estudarmos o interessante pensamento de Mircea
Eliade encontrado em O “Deus Amarrador” e o Simbolismo dos
Nós, podemos chegar a algumas conclusões. Primeira, a ideia
sobre divindades que “amarram” demônios ou homens não é
exclusiva do pensamento judaico-cristão; Segunda, há
referências a esta ideia do “Deus-Amarrador”, como, por
exemplo, a encontrada no poema babilônico Enuma Elish (cujo
relato pode ser datado até o segundo milênio a.C.),763 que são
mais antigas do que a tradição escrita de Israel (teriam
influenciado esta última?); Terceira, acredito que a gênese desse
conceito sobre o “Deus Amarrador” deva ser encontrada nos
primórdios da história humana, mais precisamente, nas relações
sociais conflituosas mais primitivas. Ou seja, tal conceito possui
um matiz sociológico-antropológico;764 Quarta, em Mc 3.27 //
Mt 12.29, por exemplo, o verbo õéco, “amarrar”, aparece ligado à
metáfora de “amarrar o homem forte”, sendo um termo que está

PATZIA, Arthur G. & PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos


Bíblicos. [Tradução de Pedro Wazen de Freitas], São Paulo, Editora Vida,
2003, p.56.
764 Entendo que a partir do momento em que o homem percebeu, pela
primeira vez, que os seus rivais podiam ser dominados e imobilizados, por
exemplo, por meio de cordas (sendo “amarrados” e “presos”), surgia então aí,
em sua fase embrionária, o conceito do “Deus Amarrador”. A partir das
relações sociais conflitivas, tal ideia acabou sendo transferida posteriormente
para o campo do simbolismo religioso, adquirindo, portanto, sua forma
mágico-religiosa por meio do conceito do “Deus Amarrador”.
390
SA+ANÁS, DErtlêNieS E LEGIé

associado à prática do exorcismo.765 Assim, poderiamos


expandir o conceito do “Deus Amarrador” para a ideia do “Deus
Amarrador do Diabo e dos Demônios”, segundo a cosmovisão
cristã;766 Finalmente, vemos o conceito do “Deus-Homem
Amarrador”, arquetipificado em Jesus, no episódio do
endemoninhado geraseno, o qual “amarra” a Legião demoníaca
(no sentido de imobilizá-la em seus poderes maléficos), ao
permitir que esta se precipite no mar juntamente com os porcos.

3.9. Conclusão
A análise hermenêutica de Mc 5.1-20, feita por oito
ângulos diferentes, isto é, oito variadas perspectivas (e ainda
poderiamos acrescentar outras!), nos mostrou que nossa
perícope é extremamente rica em seus múltiplos significados.
Este inigualável relato de exorcismo, que pôde ser abordado
desde o ponto de vista alegórico-apologético dos pais da igreja
até o ponto de vista mágico-religioso de Mircea Eliade, mostra-
nos, por meio de sua multifacetada forma, que estamos diante de
um texto cujas interpretações dadas podem ser inesgotáveis. A
forma peculiar pela qual cada um destes autores abordou nossa
perícope, ainda demonstrou, a meu ver, de maneira muito
convincente, que Mc 5.1-20 ainda continuará a ser alvo de
muitas pesquisas e de controversas opiniões. Será que este
magnífico texto, algum dia, ainda será decifrado
satisfatoriamente? Tenho minhas dúvidas.

BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [cc-k],


p.883. Como já foi dito, esse verbo também aparece no contexto do relato de
exorcismo de Mc 5.3.
766 Cf. Mc 3.27; Mt 12.29; 2 Pd 2.4; Ap 20.1-3a.
391
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

392
CAPÍTUL® IV
ANÁLISE HIS + ÓRICA DE mC S.I-20
CARL®S AUGUS + ® VAUA + + I

394
SA + ANÁS, DEmêNieS £ LEGIé

CAPÍTULO IV - ANÁLISE HISTÓRICA


DE MC 5.1-20

Finalmente, chegamos ao último capítulo do nosso livro.


Após termos percorrido o nosso texto principalmente por meio
das vias exegéticas e hermenêuticas, é chegado o momento de
terminarmos a nossa caminhada através das vias históricas.
Antes, porém, creio que seja necessário esclarecer o que quero
dizer com “análise histórica”. Não tratarei novamente aqui de
questões tais como: autoria, destinatários, local e época do texto.
Tais assuntos, ainda que de forma suscinta, já foram abordados
anteriormente. Antes, ao falar sobre “análise histórica”, estarei
fazendo referência a três elementos históricos principais, os
quais, juntos, segundo penso, formam o “eixo histórico” em
tomo do qual todo o nosso relato se desenvolve. Estes três
elementos históricos principais são: a Cidade de Gerasa, a
Região de Decápolis e a Legião Romana. Analisemos cada um
desses três itens.

4.1. Uma História de Gerasa

a) O Nome da Cidade e a sua Origem

Já dissemos anteriormente que, embora o nome “Gerasa”


seja geograficamente difícil de ser relacionado ao relato de Mc
5.1-20 (pois essa localidade estava situada a cerca de 53 km a
sudeste do Mar da Galiléia), todavia, ele é apropriado
simbolicamente, uma vez que a raiz hebraica grs,
(gãrash), significa basicamente “expulsar”, e é um termo
comum usado para se fazer referência aos exorcismos.767 No que
diz respeito à sua origem, de acordo com uma antiga tradição,

MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation With Introduction And


Commentary. Vol.27. [AB], p.342.
395
CAR.L®S AUGUS + ffi VAILA + +I

Alexandre, o Grande (IV século a.C.), fundou esta cidade


helenística com seus veteranos de guerra. Há uma inscrição que
coloca os macedônios entre os mais antigos colonizadores da
cidade. Contudo, Rogerson discorda dessa data, pois afirma
que a fundação de Gerasa remonta apenas ao II século a.C. e,
além disso, o autor declara ainda que o local já era ocupado
desde 2500 a.C.769 Embora haja divergências quanto à
localização exata de Gerasa (uma vez que algumas fontes a
mencionam como uma cidade da Arábia, de Gileade, da Peréia,
ou de Decápolis),770 creio, contudo, que Decápolis se encaixe
sem maiores dificuldades em nosso relato em particular, devido
às próprias evidências internas (cf. Mc 5.1,20).

b) A Localização, as Principais Construções e o


Auge da Cidade

Gerasa foi uma importante cidade do período clássico,


equiparada em importância com Palmira e Petra. Situada na
Transjordânia, a meio caminho entre o Mar Morto e o Mar da
Galiléia, e a uns 28 quilômetros a leste do Jordão, o lugar hoje
ainda conserva o nome na forma Jarash, sendo um dos melhores
exemplos de uma cidade provinciana romana no Oriente Médio.
A cidade está localizada em um vale bem regado por um rio
perene que corre pelo seu meio, e sua riqueza era provavelmente

FREEDMAN, David Noel. (ed.). The Anchor Bible Dictionary. Vol.II.


[D-G], New York, Doubleday, 1992, p.991.
76Q
ROGERSON, John. Terras da Biblia. [Tradução de Carlos Nougué],
Barcelona, Ediciones Folio, S.A., 2006, p.210.
770 Cf. CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Biblia, Teologia e
Filosofia. Vol.2. [D-G], [Tradução de João Marques Bentes]. São Paulo,
Hagnos, 2001, p.892. Cf. ainda: AHARONI, Yohanan. The Land of the
Bible: a historical geography. [Translated From Hebrew and Edited by A. F.
Rainey], Philadelphia, The Westminster Press, 1979, p.56.

396
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé

derivada do cultivo das férteis terras de milho.771 Por volta de 75


d.C., a cidade foi organizada sobre o plano Hipodamiano, com
suas ruas correndo em uma espécie de tábua de jogo de damas.
Porções das ruas principais (no sentido Norte-Sul) e duas ruas
principais (no sentido Leste-Oeste) ainda estão bem preservadas.
O I século d.C. ainda viu a construção do incomum Fórum em
formato elíptico, construído em estilo iônico. O Cardo Maximus
(ruas no sentido Norte-Sul) corria do Norte para fora da cidade.
Um Teatro com 3000 assentos foi construído em algum
momento após a metade do I século d.C. precisamente ao Sul,
dentro dos muros da cidade. Uma inscrição posterior
(Domitiana) foi encontrada à frente do palco. Um templo de
Zeus Olímpico foi construído entre 22 e 43 d.C. próximo ao lado
Sul do Teatro. Do lado de fora, também ao Sul dos muros da
cidade, foi construído um Hipódromo, também no I ou II
séculos, o qual tinha cerca de 244 metros de comprimento e no
qual podiam se assentar 15000 espectadores. Gerasa alcançou
seu auge no II século d.C., quando colunatas foram
acrescentadas às suas ruas principais. O Cardo Maximus foi
chamado de Via Antonina após o período dos imperadores
Antoninos. Os muros da cidade no período imperial tinham mais
de 3 metros de espessura e formavam um círculo de 3,2
quilômetros comum diâmetro de mais de 1 quilômetro. Um arco
triunfal foi erigido a quase 400 metros ao Sul da cidade, datado
por uma inscrição de aproximadamente 130 d.C., quando o
imperador Adriano visitou a cidade. Por volta de 150 d.C. o
imenso templo de Ártemis foi construído sobre o lado Oeste da
rua principal, no coração da cidade. O templo foi construído
sobre um podium, que se introduzia desde o leste e era rodeado
por colunas - 11 do Leste para o Oeste, e 6 de Norte a Sul. Um

DOUGLAS, J. D. (ed.). NBD. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans


Publishing Company, 1979, p.463. Este rio é conhecido como Chrysorrhoas,
ou seja, “Torrente de Ouro”. (Cf. BRUIN, Paul e MAYER, Fred. La Terra
Santa. Milano, Edizione Paoline, 1985, p. 140).
397
CARLeS AUGUS + ffi VAILA + +I

outro pequeno Teatro foi construído na parte Norte da cidade,


entre 162 e 165 d.C., e um grande complexo de banho foi
erguido ao mesmo tempo próximo a esse teatro. Mil assentos
foram construídos no teatro a fim de celebrar uma festa especial
em honra à deusa Ártemis.772773
Gerasa fora um grande exemplo de
cidade possuidora de uma arquitetura bela e requintada, bem
como, um belo exemplo de uma cidade que possuía um
comércio sólido e uma cultura muito rica. A esse respeito,
vejamos o que dizem Bruin e Mayer:

Gerasa possuía uma planta linear tipicamente moderna. O


centro era constituído de uma grande praça oval com colunas,
das quais ainda hoje 56 colunas iônicas manifestam sua
solenidade c elegância. Neste lugar havia o mercado central
com um armazém pelo qual passavam as caravanas do Oriente,
as quais traziam: tecidos c seda, vinho c especiarias. Do Fórum,
uma ampla estrada longa de 803 metros e flanqucada de colunas
dóricas e coríntias carregava verso c suntuosidade dos templos
dedicados a várias divindades, e havia ao centro uma carriata
através da qual se faziam os transportes e aos lados as calçadas
altas para os pedestres. (...) Gerasa era uma cidade rica c plena
773
de vida cultural e religiosa (...).

c) Os Conflitos e a Decadência da Cidade

Deve ser dito aqui, todavia, que a história de Gerasa não


foi um “mar de rosas”, como costumamos nos expressar nos dias
de hoje. Gerasa foi capturada por Alexandre Janeu em cerca de
85 a.C. e foi subseqüentemente tomada por Pompeu para os
romanos em 63 a.C., quando então se tomou parte da província
da Síria, ficando, porém, sob a direta administração romana.

FREEDMAN, David Noel. (ed.). ABD. Vol.IL [D-G], New York,


Doubleday, 1992, pp.991,992.
773
BRUIN, Paul e MAYER, Fred. La Terra Santa. Milano, Edizione
Paoline, 1985, p.140.
398
SA + ANÁS, DÊIT1©NI©S E LEGIé

Aliás, foi neste tempo que a cidade foi incluída na Decápolis


como uma cidade-estado, devido à prática helenística de
permitir à cidade conquistada que tivesse uma lei de governo-
próprio, costume este que continou a ser adotado por Roma.
Durante a primeira revolta contra Roma (66-70 d.C.), esta
cidade, juntamente com outras na Síria, foi saqueada por judeus
como forma de retaliação pelo massacre romano de Judeus
ocorrido em Cesaréia Marítima, mas, posteriormente, ela acabou
sendo novamente retomada brutalmente por ordem do imperador
romano Vespasiano.774 Além disso, a partir do século III d.C. a
cidade começou a experimentar o seu declínio, sendo que pelo
tempo dos cruzados ela acabou ficando deserta por um longo
período.775 Esta esplêndida cidade greco-romana que chegou a
ter de sessenta a oitenta mil habitantes, se encontra hoje em
ruínas e em meio ao silêncio. Atualmente, os seus templos estão
caídos, sua estrada abandonada, seus poços estão secos e seus
altares de sacrifícios, desolados. Das belas colunas de um
templo, que eram 260 de cada lado, não restaram em pé 71
delas. E das grandes colunas que ladeavam o suntuoso Templo
de Ártemis, só restaram em pé apenas 11 colunas.776 Em suma,
eis um breve histórico dos conflitos e da decadência
experimentados por Gerasa.

d) Gerasa, Suas Igrejas e Sua Importância em


Tempos Recentes

FREEDMAN, David Noel. (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p.991. Cf. ainda:
AHARONI, Yohanan. The Land of the Bible: a historical geography.
[Translated From Hebrew and Edited by A. F. Rainey], Philadelphia, The
Westminster Press, 1979, p. 159.
775 DOUGLAS, J. D. (ed.). NBD. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans
Publishing Company, 1979, p.463.
776 BRUIN, Paul e MAYER, Fred. La Terra Santa, p.140
399
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

Gerasa foi agraciada com muitas igrejas cristãs no Período


Bizantino, a maioria delas no VI século d.C. (Igreja de São
Procópio, de Pedro e Paulo, de São João Batista, de São Jorge,
de Damião, e a “Igreja Sinagoga”, a qual possuía vestígios de
uma sinagoga abaixo dela). Igrejas mais antigas também foram
construídas: no V século d.C. (Igreja dos Profetas, Apóstolos e
Mártires) e a mais antiga igreja em Gerasa, a Catedral, foi
construída em tomo do ano 400 d.C. A igreja mais recente se
mantém em pé exatamente ao oeste do Cardo Maximus, sobre o
lado Sul do Templo de Ártemis. A Igreja do bispo Genesius foi
construída em 611 d.C.777 Contudo, saindo do período medieval
e entrando em tempos mais recentes, podemos notar a
importância que a cidade de Gerasa ainda tem, devido às
inúmeras expedições e explorações feitas a ela em tempos
modernos. Gerasa foi descoberta primeiramente em 1806 pelo
alemão Ulrich Jasper Seetzen778 e posteriormente explorada por
J. L. Burkhardt em 1812, J. Buckingham em 1816, G.
Schumacher e outros entre 1871 e 1902, e O. Puchstein em
1902. De 1925 até 1956, extensas escavações e restaurações
foram realizadas por numerosos arqueólogos britânicos e
americanos, incluindo G. Horsfield, J. W. Crowfoot, C. S.
Fischer, N. Glueck e L. Harding.779 Deve ser dito ainda que em
1867 Charles Warren efetuou muitos vôos sobre a cidade e tirou
muitas fotografias de suas ruínas. Em 1878 uma moderna vila
foi encontrada no lugar e a destruição resultante das construções
levou a uma considerável conservação, reconstrução e
escavação sob os auspícios do Departamento de Antiguidades
no intervalo entre as guerras (isto é, entre a Primeira e a

777 FREEDMAN, David Noel. (ed.). Op.Cit., p..992.


778 ALBRIGHT, W. F. AP. Gloucester, Peter Smith Publisher Inc., 1971,
pp.24,25.
779 FREEDMAN, David Noel. (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p.992.
400
sa+anás, DemêNies e legiã©

Segunda Guerra Mundial), um trabalho que ainda continua a ser


feito.780

e) Conclusão
As informações acima coletadas serviram para nos mostrar
que a cidade onde ocorreu o milagre narrado em Mc 5.1-20, isto
é, Gerasa, foi uma importante cidade greco-romana do I século
d.C. Sua magnífica arquitetura e urbanização, seu desenvolvido
comércio, sua rica cultura e, sobretudo, sua expressiva
religiosidade, demonstram claramente que o exorcismo ímpar ali
realizado por Jesus serviu, sem dúvida alguma, como base para
o surgimento de várias igrejas cristãs em séculos posteriores.
Vejo, portanto, no relato sobre o endemoninhado geraseno, um
relato cujos traços tiveram uma extensão notoriamente
missionária.

4.2. Uma História da Decápolis781

a) Ocorrências do Termo
As mais antigas atestações do termo Decápolis podem ser
encontradas provavelmente nos Evangelhos sinóticos. Em Mc
5.20, Jesus, tendo ido para o outro lado do lago Tiberíades,
curou um homem possuído que, de acordo com as suas
instruções, seguiu seu caminho proclamando na Decápolis o que
Jesus tinha feito por ele. Em Mc 7.31, Jesus, tendo partido dos
terrirórios de Tiro e Sidon, alcançou o lago Tiberíades passando
através da Decápolis. Em Mt 4.25 é especificado que as

DOUGLAS, J. D. (ed.). NBD. Grand Rapids, WM. B. Eerdmans


Publishing Company, 1979, p.463.
781
Baseio-me aqui principalmente em: FREEDMAN, David Noel. (ed.). The
Anchor Bible Dictionary. Vol.II. [D-G]. New York, Doubleday, 1992,
pp.116-120.
401
CARLOS AUGUS+© VAILA + + I

multidões que acompanhavam a Jesus vinham da Galiléia,


Decápolis, Jerusalém, Judéia e das regiões acima do Jordão.
O Onomasticon de Eusébio explica que Decápolis é a
região das 10 cidades além do Jordão, e ao redor de Hippos,
Pela e Gadara. (Uma definição incorreta, mas que abrangia uma
região aparentemente envolvida em eventos dos Evangelhos).
Flávio Josefo (Guerras Judaicas 3.9.7.) especifica que
Citópolis, ao oeste do Jordão, é a maior cidade da Decápolis.
Plínio, o Velho (Historia Naturalis V. 18.74) é mais claro. A
Judéia, ele escreve, está unida ao lado Sírio com a região da
Decápolis (assim chamada pelo número de suas cidades). Ele
nota que em seu tempo havia alguma incerteza quanto à lista
exata de cidades que compunham a Decápolis e ele fornece a
lista mais aceita atualmente, que inclui Damasco e Galasa (a
forma recebida em uma tradição manuscrita, considerada uma
má interpretação de Gerasa). Uma inscrição grega da região de
Palmira do tempo do imperador Adriano menciona uma cidade
de Ábila da Decápolis; a cidade não é encontrada na lista de
Plínio. Uma inscrição grega descoberta nos Bálcãs indica que
um oficial cuja carreira é datada pelas condecorações que ele
recebeu durante as guerras Domitianas foi prefeito de Decápolis
da Síria. Ptolomeu conhece mais uma lista, na qual as cidades
nomeadas por Plínio são, com exceção de Rafana, misturadas
com outras cidades do Sul da Síria. Eusébio de Cesaréia
(História Eclesiástica 3.5.3) e Epifanio de Salamis, em Chipre
(c.315-403 d.C.), mencionam Pela da Decápolis como um lugar
de refugio para a comunidade cristã de Jerusalém entre 69-70
d.C. Na Ethnika de Stéfano de Bizâncio, Gerasa é chamada de
7R7
cidade da Decápolis.*

782 FREEDMAN, David Noel. (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 116.


402
SA + ANÁS, DÊffl©Nl©S £ LEGIî

b) Lista das Cidades


É difícil estabelecer uma lista exata das 10 cidades da
Decápolis. Nem inscrições ou moedas levam-nos a pensar que
algumas destas cidades foram oficialmente chamadas de cidades
da Decápolis. A especificação na inscrição de Palmira,
concernente a uma pessoa privada, é intencionada a evitar
confusão com outra Ábila de Lisânias. Ábila, Canata, Dion,
Gadara, Gerasa, Hipos, Pela, Filadélfia e Citópolis têm em
comum que durante o período romano usavam sobre suas
moedas e suas inscrições um sistema de datação de acordo com
as assim chamadas Eras Pompeanas que comemoravam sua
libertação de Pompeu. Damasco, que depois de Plínio é muitas
vezes contada entre as cidades da Decápolis, nunca usou
nenhuma moeda até a era dos selêucidas. Historiadores
modernos muitas vezes incluem Capitólias entre as cidades da
Decápolis, mas Plínio não faz menção a ela e sem dúvida
alguma não poderia tê-la mencionado: na era em que a cidade
foi inaugurada, a cuhagem de sua moeda estava sob o reino de
Nerva ou no início do reino de Trajano; porém, a cidade ainda
não havia sido fundada até este momento, ao menos sob este
nome, até o fim do I século d.C.783
784

c) Identificação das Cidades


A identificação da maioria das cidades da Decápolis em
geral não possui muitos problemas, mesmo que nem sempre seja
possível determinar os limites de seus territórios. Citópolis é
Beth-Shean na planície da baixa Galiléia. Todas as outras
cidades estão situadas a Leste do Jordão. Pela é Tabaqat Pahil,

783
De acordo com Gehman, as dez cidades incluíam originalmente:
Citópolis (Beth-Shean), Hipos, Damasco, Gadara, Rafana, Canata, Pela,
Dion, Gerasa e Filadélfia (Raba-Amon). (Cf. GEHMAN, Henry Snyder,
(ed.). NWDB. Philadelphia, The Westminster Press, 1970, p.219).
784 FREEDMAN, David Noel. Op.Cit., p.l 16.
403
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I

localizada sobre a borda de um planalto, acima de um vale rico


em água; aqui fora construído um Nynphaeum, uma fonte
monumental e águas do santuário, que se tomaram famosas e
ganharam o nome oficial de Pela (de) Nymphaion. Filadélfia é
Amã, a mais meridional. A borda do planalto forma a Leste o
limite de seu território, violentamente contestado pelo povo da
Peréia durante o tempo do imperador Cláudio. Gerasa é Jerash,
nas antigas colinas de Gileade; a fronteira entre seu território e
aquele de Filadélfia está situada sobre um afluente do rio Jordão,
o rio Jaboque, parcialmente mais para o Sul. As duas cidades
estão sobre a principal estrada que corre do Norte ao Sul através
da região desabitada do planalto jordaniano. O território de
Gerasa não se estende a Noroeste do Lado de Tiberíades, apesar
de Mc 5.1 e Lc 8.26; Gerasa estava separada do lago pelo
território de Gadara e, sem dúvida, do território de Hipos.
Gadara, localizada nos dias atuais em Umm-Qeis, dominava o
rio Yarmuque, um afluente do Jordão, e, a uma certa distância,
do lago de Tiberíades. Sobre o banco Norte do Yarmuque
estavam localizados os banhos de Ematha, famosa por suas
águas termais; de acordo com Mt 8.28 o território de Gadara
deveria correr ao lado do lago de Tiberíades. A fim de escapar
das dificuldades que são apresentadas sobre este ponto pelos
sinóticos, Orígenes (Jo 6.24, seguido por Cirilo de Citópolis -
Vita Sabae, 24), conjecturou que o lugar da cura dos
endemoninhados devia ser no país dos Gerasenos, identificado
como Korsia (moderna Kursi), através do lago ao Norte de
Hipos, conjectura baseada em uma parte de uma tradição
manuscrita. Hipos está próxima à borda do lago, sobre um local
chamado Qalat el-Hosn, a 30 estádios de Tiberíades de acordo
com Josefo. Esse território indubitavelmente incluía o lado de
el-Al, ao Leste do lago, onde uma inscrição está datada de
acordo com uma época da Decápolis. Abila está identificada
como Tell Qwelbeh, 12 milhas romanas ao Leste de Gadara de
acordo com o Onomasticon de Eusébio. Capitólias está
localizada em Beit Ras, no Jordão, ao Norte de Irbid. Rafana é a
404
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî

mesma Rafon (1 Macabeus 5.37), e está localizada na vila de Er-


Rafe, a 13 km de Sheik Sa‘ad na Síria; mas alguns pensam que
Rafana se tomou Capitólias. Diferentes localizações têm sido
propostas para Dion, que Ptolomeu menciona como situada
entre Pela e Gadara, uma indicação sem valor geográfico
preciso. Ela tem sido localizada no Jordão, em Kefr Abil (a
Leste de Pela); em Tell el-Hosn; ou mesmo mais ainda ao
Sudeste, próximo a Mafraq e Er-Rihab, em Edun. Uma
localização em Tell el Ashari na Síria, cerca de 15 km de Deraa,
é a mais provável; entre as moedas encontradas neste local estão
duas moedas de bronze de Dion. Canata é geralmente
identificada como Qanawat em Jebel Arab, anteriormente
chamada de Jebel Druze. A investigação arqueológica da região
de Canata mostra uma região essencialmente rural onde
influências helenísticas faziam sentido no I século d.C. Seja
como for, as “dez cidades” vangloriavam-se de serem cidades de
cultura, instituições e origem gregas.785

d) História das Cidades


As primeiras fundações pelos macedônios e outros gregos
na região do Jordão datam da volta para a conquista do Oriente
por Alexandre, o Grande. Gerasa reivindicou Alexandre e seu
tentente Perdicas como fundadores;786 Alexandre foi o fundador
de Dion de acordo com Stéfano de Bizâncio (Ethnika 103-4), de
Ábila, se suas moedas têm sido apropriadamente interpretadas e
de Capitólias, as quais o celebravam como genarchos, “primeiro
antepassado”. Pela, que recebeu seu nome da capital real da
Macedonia, é uma fundação macedônica deste mesmo período;
descobertas arqueológicas de moedas ptolomaicas e selos de

FREEDMAN, David Noel. (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], pp.l 16,117.


786 AHARONI, Yohanan & AVI-YONAH, Michael. MBA. New York,
Macmillan Publishing Co., Inc. & London, Collier Macmillan Publishers,
1977,p.173.
405
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

ânforas rodianas787 parecem confirmar isto. Filadélfia foi


fundada por Ptolomeu Filadelfo II (308-246 a.C.). A ausência de
quaisquer níveis helenísticos primitivos em algumas escavações
arqueológicas, notavelmente em Amã e em Jerash, favorece o
problema da fundação e do desenvolvimento destas cidades. As
colônias greco-macedônias ocupam regiões escolhidas por suas
vantagens naturais, seus valores defensivos e estratégicos, sua
posição sobre as estradas vitais e sua situação sobre um solo
fértil. Estas cidades já estavam desabitadas desde a Antigüidade,
como tradições toponímicas e descobertas arqueológicas
confirmam. Filadélfia, por exemplo, é a antiga Rabá Amom,
mencionada por Políbio, sob o nome de Rabatamana. Ábila,
Canata, Gadara e Gerasa conservaram seus nomes originais. O
nome de Pela provavelmente substitui um nome indígena de
semelhante sonoridade mencionado nos antigos documentos
egípcios, que permanecem até hoje na forma de Pahil ou Fahil.
A imagem cunhada em moedas de Hipos é um cavalo alado; o
nome grego Hypos, que significa “cavalo”, traduz um nome
semítico de mesmo significado: Sussita nas fontes talmúdicas,
Sussia em Árabe. A cidade de Citópolis abrange a antiga Beth-
Shean. Uma variedade de sugestões têm sido feitas concernente
à origem do nome grego. De acordo com John Malalas o nome
recordava uma colônia Cita do tempo da guerra troiana. Uma
colônia Cita pode datar do século VII de acordo com Heródoto,
ou talvez tivesse surgido sob Ptolomeu II; “Citópolis” podia
também ser uma reprodução muito apropriada de um nome
semítico, se supormos que há um par semântico de Sèan,
“tranqüilo”, que sublinha o elemento Cit (hebr. Seqet -
“tranqüilidade”?). Citópolis também tinha o nome Nisa, que
durante o período romano, foi ligado à lenda de Dionísio, cuja
ama-de-leite era chamada Nisa, como Plínio (Historia Naturalis

Estas “ânforas rodianas” eram vasos gregos de gargalo estreito que


possuíam duas asas laterais, os quais eram provenientes da região de Rodes.

406
SA+ANÁS, DEffi©NI©S E LEGIé

v.18.14) e também as moedas cunhadas da cidade atestam. O


nome pode derivar de uma princesa selêucida, uma avó de
Antíoco III, ou talvez de uma de suas filhas, ou mesmo uma das
sobrinhas de Antíoco IV. No fim do III século a.C., Antíoco III
(o Grande) tomou a Síria, do sul da Fenícia, e a Palestina de
Lagides. Ele adquiriu Citópolis através de um tratado; o
comandante Ptolomeu, filho de Traseas, que possuía vastos
domínios ao redor da região, deixou o serviço do rei do Egito e
foi sobre o rei selêucida, para quem ele governou a província.
Antíoco tomou Pela; a Galátide, que é a região de Gerasa, Ábila
e Gadara e é desta forma a mais forte área da região; e
Rabatamana, isto é, Filadélfia. A confiscação selêucida de
Filadélfia forçou João Hircano, o último representante da grande
família de Tobias, a servir e a ser partidário de Lagides, para
tomar refugio em sua baris, sua fortaleza chamada “Tiro”,
identificada como Iraq el-Amir. Antíoco III e, em um menor
grau, seus sucessores, desenvolveram a colonização da região do
Jordão. Várias cidades receberam um topônimo dinástico
selêucida, a marca de uma nova fundação, que as cidades
poderíam recordar com orgulho durante a época romana.
Gadara, de acordo com Stéfano de Bizâncio, se tomou Selêucia
e Antioquia. Gerasa era Antioquia de Chrysorrhoas, derivando o
nome do rio, como atesta um peso do período helenístico,
datado de 143/142 a.C., uma inscrição sob Adriano, e moedas de
Marco Aurélio a Comodo. Ábila era chamada STeucia, e Hipos,
Antioquia, como suas moedas demonstram. E talvez somente
durante esse período é que as fundações greco-macedônias da
região do Jordão ganharam o status de verdadeiras cidades
helenistas e experimentaram um real desenvolvimento urbano,
bem documentado com relação a Gerasa. No fim do II século e
no início do I século a.C., as cidades da Decápolis sofreram
devido a anarquia que começou a afligir o império selêucida
com as ambições rivais dos judeus e dos nabateus,788 cujos

O nome “nabateu” referia-se a um povo árabe, cujo reino havia se


407
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + + I

reinos estavam em grande expansão. Filadélfia e Gerasa estavam


sob o poder de uma dinastia, Zenon apelidado “Cotilas”, e seu
filho Teodoro, quem agiu como vassalo dos nabateus; eles
possuíam numerosas fortalezas na região e eles armazenaram
seu tesouro em Gerasa. Por volta de 130 a.C. eles ofereceram
refugio ao judeu Ptolomeu, inimigo de João Hircano, em
Fildélfia. O rei judeu Alexandre Janeu fez guerra contra eles
diversas vezes, tomando todas as suas fortalezas (das quais
Amathus era a mais importante) e seus tesouros; ele se fez
mestre de numerosas cidades na Síria e de Dion, Ábila,
Citópolis e Gadara. Ele conduziu uma fanática guerra para
impor costumes judeus e para aniquilar a cultura helenista. A
resistência dos habitantes de Pela terminou na destruição de sua
cidade. Alexandre Janeu morreu entre as colinas da região de
Gerasa enquanto estava atacando a fortaleza de Ragaba. Em 64
a.C., Gadara, Dion, Pela e Citópolis se encontravam em
território judaico. No início de 63 a.C., o rei nabateu Aretas III
se apossou de Filadélfia, de onde ele se retirou quando Pompeu
ordenou-lhe levantar o sítio de Jerusalém; sem dúvida, ele
também controlou Gerasa. A intervenção romana conduzida por
Pompeu entre 64 e 63 a.C. pôs um fim aos problemas das
cidades da Decápolis. Tomando controle dos lados fortificados e
dos tesouros dos tiranos, Pompeu libertou as cidades da
opressão dos reis e dos judeus e também dos tiranos nabateus, e
as reconstruiu das ruínas provocadas pelas guerras, e
particularmente pelas incursões judaicas. Gadara, que havia sido
destruída pouco tempo antes, fora dada por Pompeu ao seu
amigo liberto Demétrius, cuja cidade nativa era ela própria.
Hipos, Citópolis, Pela e Dion estavam voltadas para os seus
habitantes. Todas as cidades gregas estavam livres - o que
significa dizer, elas retomaram sua autonomia municipal - mas

expandido, no passado, até Damasco. (Cf. CHAMPLIN, R.N. Enciclopédia


de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol.4. [M-O]. São Paulo, Editora Hagnos,
2001, p.432.).
408
SA+ANÁS, DEm®NI®S E LEGIî

elas eram unidas à província da Síria. A capital econômica e


cultural da região, Gadara, foi a primeira a ganhar o direito de
cunhar moedas de bronze. Para celebrar sua libertação, as
cidades inauguraram novas eras, as quais, ao contrário do que as
muitas outras novas eras “Pompeanas” adotaram em outras
cidades do Oriente Próximo, permaneceram em uso até o fim do
Império Romano. Gadara, Hipos e Citópolis inauguraram novas
eras no outono de 64 a.C.; em Gadara, o primeiro ano da nova
era foi chamado “primeiro ano da liberdade de Roma”. As eras
1 7RQ
de Gerasa, Pela e Filadélfia começaram no outono de 63 a.C.
Quanto a Ábila e Dion, não é possível determinar se suas eras
começaram em 64 ou 63 a.C.; uma inscrição de Tafas e uma
inscrição de Khisfín, ao Sul de Golã, mostra uma era se
iniciando em 64 a.C., mas não se sabe em que antigo território
dessas cidades estes locais estavam situados. Inscrições de Qon-
aitra também fazem referência a uma era da Decápolis, que é
ainda mais difícil especificar. Cerca de dois séculos mais tarde,
estas cidades arrumaram uma maneira de recordar a sua
existência oficialmente em inscrições encontradas sobre suas
moedas, nas quais atribuíam a Pompeu e a seus tenentes uma
nova fundação. Gadara se auto-proclamava Pompéia Gadara;
Lucius Marcius Filipus, governador da Síria entre 61 e 60 a.C.,
deu seu nome a Pela; sobre suas moedas escreveu sob Lucius
Verus, Comodo e Elagabalus, a cidade se chama Philipa Pela e
também faz referência a Pompeu. Aulus Gabinius, governador
de 57 a 55 a.C., que contribuiu para a restauração de muitas
cidades, interveio em particular em Canata que, sob Comodo e
Elagabalus, se proclamou Gabinia Canata. Todos estes
governadores tiveram que lutar contra os Árabes, que eram não
somente os nômades do deserto, mas também mais precisamente
os nabateus, os quais não estavam felizes ao ver Roma cortar a

7 9 Embora Gadara e Gerasa apareçam entre 64/63 a.C. como “cidades


livres” do domínio do Império Romano. Entretanto, no I Séc. d.C., estas
cidades voltam a se submeter ao jugo romano novamente.
409
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

estrada direta entre Petra e Bostra, suas duas grandes capitais.


Durante o problemático período das guerras civis romanas, os
nabateus foram capazes de retomar sua espansão em direção ao
Norte. Quando Marco Antonio deu o Sul da Síria a Cleopatra, a
região de Qanawat, onde Canata é normalmente localizada, ela
estava antes nas mãos dos nabateus. No mesmo ano, com a
vitória de Augusto em Actium, judeus e nabateus estavam
guerreando na região de Dion (a qual Josefo chama de
Dióspolis), na região de Canata e de Filadélfia. Reorganizando o
império ocidental depois de Actium, Augusto deu a área Norte
de Hauran primeiro a Zenodoro de Calquis, que vendeu parte
dela para os nabateus e parte dela, depois de 23 a.C., a Herodes,
o Grande, quem, para manter a segurança, instalou dois campos
militares e em 12 a.C. teve que chamar o exército romano. Em
30 a.C., Hipos e Gadara, embora fossem cidades gregas, foram
cedidas a Herodes e permaneceram em seu reino, a despeito de
suas queixas. Nada indica que Citópolis e Pela tenham formado
enclave no reino herodiano e menos ainda que elas tenham se
submetido a ele. Assim que Herodes morre, Hipos e Gadara
retomaram sua liberdade municipal e foram unidas à província
da Síria como as outras cidades gregas da região. A área Norte
de Hauran introduzia o território da tetrarquia de Filipi; ela foi
dada primeiro ao rei Agripa I e então, após um novo período de
administração direta pela Síria durante o reinado do imperador
Cláudio, para Agripa II, a qual durou até a sua morte que
ocorreu em torno de 93-94 d.C. Numerosas inscrições
testemunham sua dominação. No início da primeira guerra
judaica, após o desastre de Cesaréia, os judeus revoltosos
atacaram as dez cidades sírias, saqueando os territórios de
Filadélfia, Gerasa, Pela e Citópolis e, mais tarde, Gadara e
Hipos. Quando Vespasiano chegou a Ptolemaida, os
representantes das 10 cidades vieram a se queixar e a pedir por
proteção. Em 66 d.C., toda a população judaica de Citópolis
estava aniquilada, após ter sido forçada a ajudar os pagãos a
defender a cidade contra os judeus em revolta. Citópolis serviu
410
SA + ANÁS, DEIT1®NI©S £ LEGIî

como base das operações do exército de Vespasiano. Em Hipos


e em Gadara os judeus foram massacrados. Gadara foi a única
cidade a organizar uma expedição contra os judeus; as outras
cidades gregas da região parecem não ter enviado nenhum
contingente. Em Gerasa, os judeus foram poupados, e àqueles
que queriam deixar a cidade, era permitido fazê-lo com uma
escolta. De acordo com Josefo, Gerasa foi destruída por
Vespasiano e sua população foi massacrada ou reduzida à
escravidão; entretanto, uma inscrição datando de 70 d.C. relata-
nos que um “suplicante” veio procurar o direito de asilo no
santuário de Zeus, oferecendo-lhe 10.000 dracmas como forma
de gratidão. Ao fugir da Jerusalém sitiada, a comunidade cristã
em crescimento procurou refúgio na campina de Pela na
Decápolis.
e) Natureza de Decápolis
A Decápolis tem sido freqüentemente apresentada como
uma liga de cidades independentes organizada por Pompeu.
Porém, o exame dos documentos e a recordação dos eventos
históricos mostram que ela não era nada disso. Nem Estrabão,
bem informado sobre todas as ações de Pompeu, ou Josefo, a
conheciam como tal liga. Cada cidade da Decápolis teve sua
própria época, desde 64 ou 63 a.C., de acordo com a data em
que foram libertas por Pompeu. As 10 cidades experimentaram
diferentes destinos durante a primeira parte da dominação
romana; elas não formam uma unidade politicamente coerente.
Sua unidade vem de seu caráter helenista, que as distinguia
claramente das populações vizinhas, judeus ao Oeste, nabateus
ao Sul, tribos das terras altas ou seminômades ao Norte. As dez
cidades eram cidades gregas não apenas na origem e em suas
instituições, mas também na cultura. Elas deram origem a
retóricos, sábios, poetas e renomados juristas. No II século d.C.,
Hipos era considerada a cidade mais culta do Sul da Síria.
Nativos de Gadara no período helenista incluíam o satirista
Menipo (III século a.C.); o poeta Meleager (c. 140-70 a.C.),
411
CARLOS AUGUS + © VAILA + +I

autor do famoso Garland, que chamou sua terra natal de Ática


Síria; e o fdósofo epicureu Filodemus (c. 110-40 a.C.). Desde o
início do período imperial, entre os renomados gadarenos
estavam o fdósofo Antíoco; o orador Teodoro (c. 33 a.C.), um
contemporâneo de Estrabão, que era conselheiro de Tibério; e o
adversário de Estrabão, o fdósofo cínico Enomau (c. 12 d.C.).
No século III d.C., Aspine (c. 190-250 d.C.), que ocupou a
cadeira imperial de fdosofia em Atenas e foi cônsul em Roma,
veio de Gadara. Logo depois de seu tempo, o ilustre fdósofo
lamblicus (c. 250-325 d.C.), um nativo de Calquis, poderia
tomar ele mesmo os banhos de Ematha em Gadara enquanto
fdosofava com seus discípulos. Entre os famosos homens de
Gerasa, Stéfano de Bizâncio cita o rétor Ariston, o sofista
Kerykos, o advogado Plato; o mais conhecido é o teórico
matemático e pitagórico Nicômano, do II século d.C. De Pela
vem um estimado historiador cristão, Ariston. Citópolis era um
centro da cultura grega. Os cultos e divindades das cidades da
Decápolis eram gregos, exatamente como demonstram os
indícios de influência oriental.790 As artes eram desenvolvidas
ali de acordo com as formas gregas; A arquitetura, a escultura e
a pintura também, como revelado pelos túmulos do período
romano. A planta da cidade e seus monumentos, as avenidas, os
teatros, as fontes e santuários eram gregos. O helenismo ali era
bastante vital para enriquecer a si mesma do empréstimo
oriental. Tudo isto dava às dez cidades gregas um sentimento de
cultura dividida e conferia-lhes uma originalidade digna de nota
nesta parte do Oriente. A organização provincial romana estava
consciente desse fato. As atestações do termo Decápolis
remontam ao período que vai de Tibério aos Flavianos. Mais
particularmente importante e significativo é uma inscrição

Segundo Woude, “a religião destas cidades é amplamente evidente em


seus templos greco-romanos dedicados a Ártemis, Zeus, Héracles, Dionisio,
Palas, Tike e coisas parecidas. Em alguns lugares, a adoração a Astarte era
praticada”. (Cf. WOUDE, A. S. Van Der. (ed.). WB. Vol.l., p.44).
412
SA + ANÁS, DEffi©NI©S £ LEGIé

grega, por um longo tempo mal interpretada, que menciona um


prefeito de Decápolis, na Síria. A Decápolis era, portanto, desde
o I século d.C., uma região administrativa romana, no território
de um titular singular, dotado de certa autonomia, e unida à
província da Síria. Sua situação deve ter sido análoga àquela da
Judéia sob o prefeito Pôncio Pilatos, e talvez também, por volta
do mesmo tempo, ao território de Arados, um prefeito daquela
cidade que é honrada em uma inscrição. O status de
comunidades locais era intermediário entre a “liberdade” das
cidades livres como Antioquia sobre o Orontes, Laodicéia pelo
mar, ou Tiro, e a condição de cidades vassalas duramente
subjugadas à lei comum da província romana. O número de
cidades distribuídas na Decápolis na região administrativa
romana era variável, como Plínio sugere; Stéfano de Bizâncio,
no que diz respeito a Gerasa, nota que em um determinado
momento estas cidades eram numeradas em catorze.791

f) O Fim de Decápolis
A anexação da Nabatéia e a criação da província da Arábia
por Trajano (106 A.D.) ocasionaram o fim da Decápolis. A
região administrativa com este nome não mais existia. As
cidades que tinham sido parte dela, agora se encontravam
distribuídas entre as províncias vizinhas. Filadélfia e Gerasa
foram incluídas na nova província da Arábia. Muitas
modificações das províncias limítrofes durante o II e III séculos
poderíam ocasionar a anexação das outras cidades da Decápolis
às províncias da Arábia ou da Palestina. Desde o início do II
século d.C., nos títulos oficiais de numerosas cidades da

Ptolomeu chegou a enumerá-las até em dezoito cidades. (Cf. GEHMAN,


Henry Snyder, (ed.). NWDB, p.219). Ele excluiu Rafana da lista e
acrescentou nove outras cidades: Heliopolis, Ábila, Saana, Ina, Samulis,
Ábida, Capitólias, Adra e Gadora. (Cf. WOUDE, A. S. Van Der. (ed.).
Op.Cit., p.44).

413
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I

Decápolis, aparece o nome de Coelesíria-, o termo aparece em


moedas e em inscrições de Filadélfia e da época de Adriano; em
moedas de Citópolis, Gadara e Ábila sob Marco Aurélio; e em
moedas de Dion e Pela sob Caracala. Desde o tempo em que
todas as cidades da Decápolis eram parte da província da Síria,
elas tinham participado na celebração do culto imperial, assim
como no distrito da Fenícia e Coelesíria, da qual Tiro era a
metrópole. Aquelas cidades que deixaram de pertencer à
província da Síria deveríam ter obtido o direito de continuar a
celebrar o culto imperial no distrito da Coelesíria, que fora
reorganizada no reinado de Adriano, tendo Damasco como sua
capital. As cidades gregas sofreram grandemente ao serem
absorvidas pelas cidades árabes ou judaicas. Aquelas na Arábia
não devem ter procurado estar associadas com os nabateus na
celebração do culto imperial provincial em Petra, metrópole da
Arábia desde o reino de Trajano, mesmo que a influência
helenista fosse notada ali. Citópolis, que estava sobre a
província da Palestina, se autointitulava uma das cidades gregas
da Síria em moedas cunhadas durante o período de Comodo.
Assim poderia ser explicado o nome de Coelesíria. Embora as
fronteiras entre as províncias romanas da Síria, Arábia e
Palestina fossem redesenhadas diversas vezes, a data do
surgimento deste nome em moedas não representa
necessariamente a data da mudança da província. A explicação
inevitável pela qual o geógrafo Ptolomeu usou uma única
rubrica, Decápolis et Coelesyria, reagrupou todas as cidades que
participavam juntas no culto imperial no distrito de Damasco
sem levar em conta os limites provincianos. Ptolomeu faz uma
segunda menção segura das cidades de Decápolis em outras
listas regionais. No início do II século, muitas das cidades da
antiga Decápolis ganhariam novamente sua autonomia ou
liberdade, isentando-as da lei comum da província, como
moedas e inscrições de Gerasa (do período de Adriano) e de
Gadara, Ábila, Capitólias, e Citópolis confirmam. Mesmo
pertencendo à Arábia ou à Palestina, as cidades gregas da
414
SA + ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIî

região, orgulhosas de suas origens, suas tradições e sua cultura,


continuaram a afirmar suas diferenças. Suas características
próprias asseguraram-lhes uma unidade que, ignorando os
limites administrativos, preservou os traços distintivos da antiga
Decápolis.

g) Conclusão
Ao concluir esta sucinta história sobre a Decápolis,
chama-nos a atenção o fato de que o uso do termo “Decápolis”
no Evangelho de Marcos pode ser a primeira referência feita a
essa localidade na literatura antiga. Além disso, parece-nos
também que o elemento central dessa espantosa história de
exorcismo, narrada em Mc 5.1-20, é que as boas novas do Reino
de Deus ultrapassam as fronteiras do território da Palestina, indo
'70'2 .
até um território pagão. Dito de outra forma, o conhecimento
sobre o Deus de Israel não é algo que está reduzido somente aos
judeus. Sendo assim, o Deus “de Israel” não é sua propriedade
exclusiva, pois ele também é Deus dos gentios.

MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.


Vol.II, Livro III, p.192.
793 Para entendermos a importância dessa primeira referência
neotestamentária à proclamação do Evangelho em uma terra pagã, Decápolis
(Mc 5.20), devemos nos lembrar como era a estrutura social da comunidade
judaica naquele tempo, em ordem de importância: 1) famílias que
constituíam o verdadeiro, o puro Israel (são incluídos aqui os sacerdotes, os
levitas e os israelitas leigos de ascendência racial pura); 2) famílias ilegítimas
atingidas por uma mácula leve (incluíam os descendentes ilegítimos de
sacerdotes, os prosélitos e os escravos pagãos libertos); 3) famílias atingidas
por uma mácula grave (pertenciam a esse grupo os bastardos, os escravos do
templo e os filhos de pai desconhecido, por exemplo); e, 4) os pagãos (os
quais estavam situados na base da pirâmide social - os samaritanos estão
enquadrados nesse grupo). (Cf. MORIN, Émile. Jesus e as Estruturas de Seu
Tempo. [Tradução de Vicente Ferreira de Souza]. São Paulo, Paulus, 1988,
pp.75-83). Para obter informações mais detalhadas sobre essa estrutura
social, veja: JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no Tempo de Jesus. [Tradução
de M. Cecília de M. Duprat], São Paulo, Paulus, 1983, pp.363-472.
415
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I

4.3. Uma História das Legiões Romanas

Antes de tudo, gostaria de fazer algumas considerações


preliminares sobre este ponto. Minha tese é que o nome dos
demônios, “Legião”, foi-lhes dado como forma de externar uma
espécie de sentimento de legiofobia acumulada generalizada.
Em outras palavras, desde o primeiro momento em que as
legiões romanas surgiram, o sentimento de aversão que estas
causaram aos povos não-romanos fez com que, além de serem
temidas, fossem também, e sobretudo, odiadas e indesejadas por
estas pessoas. Tal sentimento “anti-romano” e, por conseguinte,
“anti-legião”, acabaram se acentuando ao longo da história até
chegar ao ponto de resultar na demonização do exército romano
(tal como se vê em Mc 5.1-20), o qual, desde sempre foi visto
como uma persona non grata. Tendo isto em mente, analisemos
então o nosso tópico.

a) “Legião”, Etimologia e Atestações do Termo

O termo grego Aeytòv, “Legião”, é emprestado do latim


legio. Ao que tudo indica, esse último termo é derivado de outra
palavra latina, legere, “escolher”, sendo uma referência a um
corpo selecionado de soldados.794 O vocábulo legio já aparece
nos escritos do historiador grego nascido na Sicilia, chamado
Diodoro Sículo (I Século a.C.). A forma variante do vocábulo
grego, Xeyèaiv, aparece em Plutarco, Romulus, 13 (I/II Século
d.C.) e também em Nicolau de Damasco, Vita Caesaris, 31 (64

CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e


Filosofia. Vol.3. [H-L], [Tradução de João Marques Bentes]. São Paulo,
Hagnos, 2001, p.756.
416
SA+ANÁS, D£fTlffiNlffiS £ L£GIé

a.C. - 10 d.C.). Tal termo também é encontrado no Papiro de


Oxyrinchus, II, 276, 9 (Àeyecòv Semépa) e em I, 140, 6 (Xeyxcòv
TpÍTT]). Todavia, o termo Acyicbv não ocorre na LXX ou em
Josefo, o qual emprega o termo uáypa, “corpo de tropas”, ou em
Filo de Alexandria. Porém, legio foi adotado na Palestina, como
pode ser visto em sua forma aramaica: como, por
exemplo, na seguinte inscrição: DIT □‘’□5’0 = o'i
paotÀEiç Kai oí XeyuôvEç aincôv, ou seja, “o rei e as suas
legiões”.795 Além disso, Aeyiwv também ocorre no Novo
Testamento, em Mt 26.53; Mc 5.9,15; Lc 8.30 e, segundo
Hastings, esse termo nunca aparece em seu sentido próprio de
“uma legião de soldados romanos”.796 Porém, como já notamos
anteriormente, há fortes indícios que nos levam a crer que o
vocábulo “Legião” em Mc 5.1-20 deva ser compreendido sim
como uma alusão ao exército romano. Creio que as páginas
seguintes nos ajudarão a corroborar tal ideia.

b) A Estrutura Hierárquica das Legiões797

KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol. IV. [A- N], Grand Rapids, WM. B.
Eerdmans Publishing Company, 1999, p.68.
796 HASTINGS, James. DB. Vol.3. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988,
p.94. Todavia, Eitrem sugere que o nome bíblico “legião”, sendo entendido
como o exército militar romano, pode encontrar apoio nos Papiros Mágicos
Gregos, como, por exemplo, em: PMG XXII.b.35; XXXV. 15. (Cf. EITREM,
S. Some Notes on Demonology in the New Testament. Symbolae Osloenses,
Suppl.20; 2nd ed.; Oslo, 1966, p.71. Apud: TOORN, Karel Van Der,
BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB. Grand
Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Company / Cambridge, Brill
Academic Publishers, 1999, p.508).
797
Este gráfico hierárquico-militar está baseado no “Apêndice F” de:
DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da décima
legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma. [Tradução de Silvia
Sarzana].São Paulo, Madras, 2006, pp.307,308. Para saber mais sobre a
estrutura militar das legiões, veja: LÍVIO, Tito. História de Roma. Vol.6.
417
CARLOS AUGUS + ffi VA1LA + +I

A fím de que possamos ter uma dimensão da estrutura


hierárquica existente no contexto do exército militar romano,
vejamos, a seguir, as patentes militares da Roma Imperial e seus
equivalentes dos dias atuais (em ordem hierárquica):

Posto Descrição Equivalente


Um soldado do
corpo de fuzileiros
Miles Classicus Fuzileiro
navais da marinha
romana.
Literalmente, um
Miles Gregorius “soldado comum” da Soldado Raso
legião.
Porta-estandarte de
coorte e manipla da
legião. Sem real
Signifer Cabo
autoridade.
Banqueiro da
unidade.
Porta-emblema da
legião. Posto mais
Aquilifer Cabo
prestigioso do que o
de porta-estandarte.
Sargento de plantão,
Tesserarius Sargento
sargento da guarda.
Segundo-em-
comando de uma
Optio centúria e de um Sargento-Major
esquadrão de
cavalaria. Oficial de

[Introdução, tradução e notas de Paulo Matos Peixoto], São Paulo, Editora


Paumape S.A., 1990, pp.300,301.

418
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

treinamento,
administração e
registro de uma
unidade.
Decurião. Oficial da
cavalaria,
comandando um
esquadrão de
Segundo-Tenente
Decurio
cavalaria da legião.
Havia vários graus,
baseados no tempo
de serviço.
Centurião. Oficial
que comandava uma
centúria, uma
manipla e uma
coorte. Cada legião
tinha 60 deles
(incluindo seis primi
Centurio ordines). Onze Primeiro-T entente
graus, incluindo
primi ordines e
primus pilus. A
senioridade
geralmente era
determinada pelo
tempo de serviço.
Os seis centuriões
mais velhos de uma
Primi Ordines legião, todos serviam Capitão
na primeira coorte
dupla.
Literalmente, o
Primus Pilus “primeiro lanceiro”, Capitão
o centurião mais
419
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

velho da legião; um
dos primi ordines.
Prefeito do
acampamento. Um
antigo centurião, o
terceiro-em-
comando de uma
Praefectus
legião, o responsável Major
Castrorium
pelas provisões e o
oficial encarregado
dos maiores
destacamentos
separados da legião.
Tribuno da fita fina;
um oficial do estafe,
Tribimus servindo por um
Tenente-Coronel
Angusticlavius período de seis
meses como cadete
oficial.
Camandante de um
Navarchus navio de guerra da Capitão Naval
marinha romana.
Comandante de uma
Proefectus coorte ou ala Coronel
auxiliar.
Tribuno da fita larga,
Tribunus segundo-em-
Coronel
Laticlavius comando de uma
legião.
Um dos dois
comandantes da
Proefectus Guarda Pretoriana,
Coronel
Proetoria de mesmo posto.
Enquanto,
nominalmente, os
420
SA+ANÁS, DEmÔNieS E LEGIé

prefeitos da guarda
sustentavam o posto
de coronel, alguns
surgiam das fileiras e
eram antigos
centuriões, enquanto
outros eram ex-
generais e em várias
ocasiões
comandavam
exércitos de campo.
Comandante de um
esquadrão ou de uma
frota da marinha
romana.
Freqüentemente, um
Proefectus Classis antigo general ou um Almirante
general ainda em
serviço,
ocasionalmente um
liberto sem qualquer
experiência militar.
Legado da legião.
General-de-
Legatus Legionis Comandante da
Brigada
legião.
Um pretor era um
magistrado sênior
em Roma. Antigos
pretores
Proetor / propretores - podiam
Major-General
Proproetor governar pequenas
províncias e
comandar uma
legião e exércitos no
campo.
421
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

Um cônsul era o
oficial de patente
mais elevada em
Roma depois do
imperador. Os dois
cônsules do ano
compartilhavam a
presidência do
Senado e davam seus
nomes ao ano.
Antigos cônsules, os
procônsules, podiam
Cônsul / Procônsul Tenente-General
receber o governo de
províncias mais
importantes,
comandando todas as
forças militares de
suas províncias. Os
exércitos de campo
romanos eram
normalmente
comandados pelos
homens de patente
consular.

Como podemos perceber, esta fabulosa estrutura militar


extremamente organizada, fazia com que o exército romano
fosse temido pelos seus adversários em geral. Aliás, o nome que
aqui nos interessa,“Legião”, era, na verdade, uma referência
feita a um corpo de soldados romanos cujo número, embora
divergente em determinadas épocas, consistia no tempo do
imperador Augusto de 6.826 homens (isto é, 6.100 a pé e 726 a

422
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

7QQ
cavalo). Além disso, será que esta hierarquia romana dentro
da qual as “legiões” de soldados estavam inseridas e cujo
superior hierárquico maior, o imperador romano, não pode
significar, no contexto de Mc 5.1-20, que o termo “legião”
também traz consigo o sentido de uma hierarquia maligna, em
cujo topo se encontra Satanás? Vejo tal hipótese como bastante
provável. Seja como for, sem dúvida alguma, tal contingente
belicoso, devido ao seu enorme poder destrutivo, só poderia ser
comparado a uma “legião” de demônios.

c) O Perfil do Legionário Romano


A partir deste ponto ficará mais fácil compreender
porque os demônios que possuem o geraseno levam a alcunha
de “Legião”. Ao traçarmos o perfil do legionário romano,
seremos certamente tentados a dizer: “Esses ‘caras’ eram
mesmo uns demônios!”.

i) A Identidade do Legionário Romano

No que diz respeito ao tipo de pessoa que era recrutada


para compor as fileiras do exército romano, Edward Gibbon diz:

(...) a classe de homens mais adequados para o exercício


das armas era antes buscada nos campos que nas cidades, e com
muito boa razão se supunha que as rudes ocupações de ferreiro,
carpinteiro e caçador dariam a seus praticantes mais vigor e
intrepidez do que os ofícios sedentários a serviço do luxo. (...)
Os soldados rasos, como as tropas mercenárias da Europa

THAYER, Joseph Henry. GELNT. Grand Rapids, Zondervan Publishing


House, 1976, p.373. De acordo com Broadus, “a legião romana com seus
auxiliares compunha-se de dez mil homens”. (Cf. BROADUS, J.A. & BLISS,
G.R. El Evangelio Segnn Marcos y El Evangelio Según Lucas. Tomo 2.
[Comentário Expositive Sobre El Nuevo Testamento]. El Paso, Casa Bautista
de Publicaciones, 1966, p.47).
423
CARL©S AUGUS + ® VA1LA + +I

moderna, recrutavam-se, contudo, entre as camadas mais baixas


e com muita freqüência mais crapulosas da sociedade.799

A fim de complementar este perfil do legionário romano,


Dando-Collins, comentando sobre um recrutamento ocorrido em
63 d.C. durante o reinado de Nero, ainda declara:

(...) milhares de jovens reuniram-sc nas areias do


anfiteatro, em Córdoba, capital da Baetica. (...) Todos cidadãos
romanos, os rapazes na arena tinham completado apenas 20
anos. Rapazes da cidade, rapazes do campo, filhos de ferreiros,
merceeiros, fazendeiros c pescadores. Suas cabeças estavam
cheias de histórias que ouviram sobre batalhas sangrentas e
disciplina brutal da legião, contos de aventuras fabulosas que
envolviam vinho, mulheres, pilhagem c vitórias esmagadoras
sobre hordas bárbaras. Alguns eram voluntários - os
desempregados, alguns até mesmo criminosos.800

GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. Ed.


Abreviada. [Tradução e notas de José Paulo Paes], São Paulo, Companhia das
Letras, 2005, p.41. Reicke acrescenta: “Os legionários formavam uma classe
superior porque possuíam o direito de cidadania ou pretendiam adquiri-lo no
serviço”. (Cf. REICKE, Bo. História do Tempo do Novo Testamento: o
mundo bíblico de 500 a.C. até 100 d.C. [Tradução de José Aníbal e Edwino
Royer], São Paulo, Paulus, 1996, p.255). Além desses dados, Eduardo Arens
complementa: “Durante o serviço militar, os soldados tinham que permanecer
solteiros, não, porém, os oficiais. Obviamente, essa dura exigência, a que
acrescia o fato de a maioria prestar serviço militar longe da pátria e da
família, acarretou uma prática freqüente e aceitável: não só o florescimento
de prostíbulos, mas também a formação de uma família fora do acampamento
militar. Ter uma concubina e filhos ‘bastardos’ não era raro. A situação legal
podia regularizar-se quando viesse a ser permitido o matrimônio, quer por
ascensão militar ou pela baixa”. (Cf. ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos
Tempos de Paulo, Lucas e João. [Tradução de João Rezende Costa]. São
Paulo, Paulus, 1997, p.90).
800 DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da
décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.233.
424
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé

Estes breves relatos de Gibbon e de Dando-Collins são


suficientes para entendermos que os legionários romanos eram,
em geral, pessoas inescrupulosas, rudes, amantes da violência e
que viviam, muitas delas, à margem da sociedade. Tal mistura
de traços, era característica do legionário de Roma.

ii) O Dia-a-Dia de um Legionário Romano

Devemos ao francês Charles Luís de Secondat, barão de


Montesquieu (1689-1755), ou como é simplesmente conhecido,
Montesquieu, uma importante descrição sobre a educação
militar dos legionários romanos. Eis as suas palavras:
Devo considerar aqui o que os autores nos dizem da
educação dos soldados romanos. Eram acostumados à marcha
militar, ou seja, a vencer em cinco horas vinte milhas, às vezes
vinte e quatro. Durante essas marchas, tinham de carregar um
peso de sessenta libras. Adquiriam o hábito de correr e saltar
completamente armados; em seus exercícios, manejavam
espadas, dardos e flechas duas vezes mais pesados que as armas
ordinárias, e tais exercícios eram contínuos.

Além disso, segundo o antigo escritor Aulo Gélio, havia


entre os romanos o costume de fazer sangrar os soldados que
haviam cometido alguma falta durante suas incursões militares.
A razão para tal procedimento era a seguinte: uma vez que a
força era a principal qualidade do legionário, enfraquecê-lo era
uma forma de aviltá-lo.802 Outro aspecto digno de nota diz
respeito à frieza dos legionários romanos. Eles estavam
acostumados a ver sangue e ferimentos nos espetáculos dos

Aqui, Montesquieu cita: Vegécio, Tito Lívio e Plutarco. (Cf.


MONTESQUIEU. [Alcunha de: SECONDAT, Charles Luís]. Grandeza e
Decadência dos Romanos. [Tradução de Gilson César de Sousa]. São Paulo,
Livraria Editora Germane Ltda., 2002, p.20).
X02
MONTESQUIEU.Granrfeza e Decadência dos Romanos, p.22.
425
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I

gladiadores.803 A presença inesperada dos legionários em um


local “gelava os espíritos”.804 Josefo, em suas Guerras Judaicas,
Livro II, XX, 171, 172, menciona dois casos em cujas condutas
desagradáveis estão envolvidos dois legionários romanos. Os
dois fatos se passam na época do governo de Cumano (48-52
d.C.), sucessor de Tibério, no governo da Judéia:

Uma grande multidão dc povo tinha ido a Jerusalém para


celebrar a festa da Páscoa; uma companhia dc soldados
romanos fazia guarda junto ao templo, segundo o costume, para
impedir que acontecessem desordens; um dos soldados teve a
insolência dc mostrar, diante dc todos, o que o pudor obriga a
ocultar c de acompanhar esta ação tão desonesta, com palavras
da mesma cspécic. (...) esta aflição foi logo seguida por outra.
(...) Um dos soldados, que fazia parte das forças, encontrou,
numa dessas aldeias, um livro cm que nossas santas leis estão
escritas c o rasgou e queimou. Todos os judeus daquela região
ficaram muito irritados com isso, como se ele tivesse
incendiado seu próprio país.805
Tais relatos nos mostram o espírito inescrupuloso que
havia em um legionário romano. Porém, devemos mencionar
ainda uma informação de cunho religioso. Antes de uma
determinada incursão militar, os legionários realizavam uma

803
Idem, Ibidem, p.23. Para obter maiores informações sobre os gladiadores,
veja: GARRAFFONI, Renata Senna. Gladiadores na Roma Antiga: dos
combates às paixões cotidianas. São Paulo, Annablume / Fapesp, 2005.
804 MONTESQUIEU. Op.Cit., p.22. De acordo com Brook e Gwyther, a Pax
Romana era uma “paz” construída sobre a conquista militar: “O ‘altar da paz
de Augusto’ localizava-se na colina de Marte, deus da guerra. Moedas
cunhadas sob Augusto ligavam o Primeiro cidadão armado e protegido com
armadura com Pax, a deusa da paz, que pisava nas armas de inimigos
subjugados, e com Vitória, a deusa da conquista, que pisava no próprio
globo”. (Cf. BROOK, Wes Howard & GWYTHER, Anthony.
Desmascarando o Imperialismo: interpretação do Apocalipse ontem e hoje.
[Tradução de Barbara Theoto Lambert], São Paulo, Paulus, 2003, p.270).
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 3. [Tradução de Vicente
Pedroso]. Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p.64.
426
SA+ANÁS, DEITI®NI®S E LEGIî

breve oração a Júpiter, dizendo: “Júpiter, o melhor e o maior,


proteja esta legião e todos os seus soldados”.

d) O Poderio das Legiões Romanas

A fim de obtermos um melhor entendimento sobre o


poderio das legiões romanas e sua força destrutiva, creio que
devamos mencionar primeiramente o discurso proferido por
Herodes Agripa I, rei da Judéia entre 41-44 d.C. Com o intuito
de dissuadir os judeus de engendrar uma revolta contra os
romanos, Agripa profere um eloqüente discurso, o qual é
centrado no poderio das legiões romanas. Como o seu discurso é
muito extenso, iremos reproduzí-lo apenas de forma bem
fragmentada:

Eu vos vejo decididos a fazer guerra aos romanos (...).


Considerai, eu vos rogo, (...) de que maneira devemos proceder,
com relação àqueles aos quais estamos sujeitos. É preciso
mantê-los calmos com a submissão e não irritá-los com queixas.
(...) Que há então, de mais irrazoável do que querer, com razões
tão frágeis empenhar-se numa grande guerra, contra tão
poderosos inimigos (...). Aqueles generosos atenienses, que (...)
puseram em fuga o soberbo Xerxes, cujos navios cobriam todo
o mar, (...) agora obedecem aos romanos (...). Os laccdcmônios,
que ganharam aquelas famosas batalhas das Termópilas e de
Platéia (...) reconhecem também agora, os romanos, como seus
senhores. Os macedônios mesmos, que tinham (...) os troféus do
grande Alexandre, (...) agora dobram os joelhos diante desses
invencíveis conquistadores (...). Não sc contentaram de ter

DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da


décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.54.
Filoramo e Roda, ao falarem sobre a maneira como os cristãos viam o ofício
de soldado, acrescentam outros detalhes sobre a vida militar e a religião, as
quais eram coexistentes. (Cf. FILORAMO, Giovanni & RODA, Sergio.
Cristianismo e Sociedade Antiga. [Tradução de José Maria de Almeida]. São
Paulo, Paulus, 1997, pp. 109-113).
427
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + + I

também submetido todo o Eufrates, do lado do oriente, todo o


Danúbio, do lado do norte, toda a África até os desertos da
Líbia, do lado do sul e de penetrar do lado do ocidente até
Cádiz: eles buscaram outro mundo, além do Oceano c
mostraram à Grã-Bretanha, que se julga inacessível, que nada é
capaz de limitar o vôo das águias romanas. (...) Que direi dos
enioqueanos, dos colqueanos, dos toreanos e dos bosforianos,
(...) que (...) jamais ousaram pensar cm se revoltar, embora
tenham como guarnição apenas três mil soldados romanos? (...)
Dois mil soldados não lhes bastam também, na Trácia, para
mantê-la submissa? (...) Não têm eles (...) sob sua obediência
toda a Ilíria, (...) com duas legiões somente? E os dalmatas, (...)
não obedecem pacificamente hoje a uma legião romana? (...) Os
gaulcscs (...) se submetem a mil e duzentos soldados
somcnte(...). (...) espanhóis, (...) portugueses e (...) biscaínos
(...) uma somente de suas legiões não mantém sob seu domínio
tantas províncias, tão belicosas? Quem dentre vós não ouviu
falar do numeroso povo alemão? (...) oito legiões romanas os
dominam (...). (...) considerai a Grã-Bretanha, (...) quatro
legiões são suficientes para manter na obediência aquela grande
ilha. (...) Assim, dentre tantos povos que o sol ilumina com seus
raios, fazendo o giro do mundo, não há quem não sc dobre ao
poder dos romanos. (...) todo o mundo habitado está sujeito aos
807
romanos.

Segundo Flávio Josefo, este eloqüente discurso de


Herodes Agripa I sobre a invencibilidade das legiões romanas,
acabou persuadindo o povo judeu a não se revoltar contra os
romanos naquele momento.808 Além desse autor, Gibbon
também nos concede uma descrição, ainda que generalizada, da
origem do poderio dos soldados romanos:

Guerras Judaicas, Livro II, XXVIII, 196. Cf. JOSEFO, Flávio. História
dos Hebreus. Vol. 3. [Tradução de Vicente Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD,
1992, pp.71-74.
ono
Guerras Judaicas, Livro II, XXIX, 197. Cf. JOSEFO, Flávio. História
dos Hebreus. Vol. 3, p.75.
428
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S £ LEGIé

Os soldados eram diligentemente instruídos a marchar,


correr, saltar, nadar, carregar grandes pesos; manejar qualquer
espécie de arma que fosse usada para ataque ou defesa, quer no
combate à distância, quer na luta corpo a corpo; fazer variadas
evoluções; e movcr-se ao som de flautas na dança pírrica ou
marcial. Em tempos de paz, as tropas romanas se
familiarizavam com as práticas da guerra (...). Os generais mais
capazes, e os próprios imperadores, tinham por norma encorajar
tal preparação militar por sua presença e exemplo (...). (...) A
ciência da tática foi cultivada com sucesso, e enquanto o
Império logrou manter seu vigor, sua instrução militar era
respeitada como o modelo mais perfeito da disciplina
809
romana.

Josefo, dando continuidade ao mesmo raciocínio de


Gibbon, ainda faz a seguinte declaração sobre os legionários
romanos:

São valentes e infatigáveis na luta ; uma vez empenhados


num combate, não recuam, nem há número de inimigos, nem
rios, nem florestas, nem montanhas que lhes possam impedir a
marcha para a vitória, nem mesmo a adversidade, porque eles
não se julgam dignos do nome de romanos, se também sobre ela
nao tnuníarem.

GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. Ed.


Abreviada. [Tradução e notas de José Paulo Paes], São Paulo, Companhia das
Letras, 2005, p.43. No que diz respeito ao exemplo que os próprios generais
davam aos seus legionários, podemos citar o caso do general romano
Pompeu: “Pompeu, com a idade de cinquenta e oito anos, saía a lutar
completamente armado na companhia dos jovens; montava a cavalo, corria à
rédea solta e lançava seus dardos”. (Cf. Plutarco, Vida de Mário e Pompeu,
in: MONTESQUIEU. [Alcunha de: SECONDAT, Charles Luís], Grandeza e
Decadência dos Romanos. [Tradução de Gilson César de Sousa]. São Paulo,
Livraria Editora Germape Ltda., 2002, p.20, nota 5).
810 Guerras Judaicas, Livro III, VI, 242. Cf. JOSEFO, Flávio. Op.Cit., p.93.
429
CARL®S AUGUS+® VAILA + +I

E, finalmente, é Josefo também quem nos fornece


novamente um breve relato sobre o medo que as legiões
romanas causaram aos judeus na época de Vespasiano:

Vespasiano (...) chegou à fronteira da Galiléia e (...)


julgou dever infundir o terror no espírito dos inimigos, com a
presença do exército (...). O grande general conseguiu o seu
intento; somente a notícia da sua chegada, de tal modo assustou
os judeus, que quantos se haviam reunido a Josefo c se tinham
acampado em Garis, perto de Séforis, fugiram, não somente
811
antes do combate, mas mesmo sem ter visto o exército.

Como se pode perceber, as inúmeras conquistas


realizadas pelas legiões romanas, aliadas à sua rígida disciplina
militar, proporciou-lhes a reputação de serem invencíveis, bem
como, promoveu também um profundo sentimento de medo em
seus inimigos. Com efeito, tais legionários romanos só poderíam
ser vistos mesmo como uns demônios!

e) A Revolta Judaica Ocorrida Entre 66-70


d.C.*
812

01 Guerras Judaicas, Livro III, VIII, 244; IX, 245. Cf. JOSEFO, Flávio.
Op.Cit., p.94.
812
Baseio-me aqui principalmente em: GOODMAN, Martin. A Classe
Dirigente da Judéia: as origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C.
[Tradução de Alexandre Lissovsky e Elisabeth Lissovsky], Rio de Janeiro,
Editora Imago, 1994, pp. 15-17; DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de
César: a saga épica da décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos
de Roma. [Tradução de Sílvia Sarzana], São Paulo, Madras, 2006, pp.239-
277; SAULNIER, Christiane & ROLLAND, Bernard. A Palestina no Tempo
de Jesus. [Tradução de José Raimundo Vidigal]. São Paulo, Paulus, 1983,
pp.89-94; HORSLEY, Richard A. & HANSON, John S. Bandidos, Profetas e
Messias: movimentos populares nos tempos de Jesus. [Tradução de Edwino
Aloysius Royer]. São Paulo, Paulus, 1995, pp.43-56; DUBNOW, Simon.
430
SA + ANÁS, DE1T1®NI®S E LEGIî

A meu ver, o período da revolta judaica compreendido


entre 66-70 d.C. que teve, como seu ápice, a destruição do
Templo de Jerusalém por ordens do general romano Tito, em 70
d.C., foi a “gota d’água”, ou seja, foi o período histórico que
mais contribuiu para que a legião romana, como um todo, fosse
demonizada pelos seus inimigos e, mais particularmente ainda,
pelos judeus, como podemos notar no contexto de Mc 5.1-20,
sobretudo, nos versos 9 e 15. Os relatos que seguem neste
tópico e no seguinte buscarão demonstrar a nossa hipótese.
No ano 6 A.D. o imperador romano Augusto criou a
província da Judéia, submetendo-a à administração direta de
Roma, governada anteriormente pelo rei judeu Herodes, o
Grande. Nos sessenta anos que se seguiram, houve muitas crises
no relacionamento entre a população judaica e o governo
romano, as quais só tiveram o seu fim com a grande guerra de
66 a 70 d.C. Desde a criação da província da Judéia, uma grande
hostilidade a Roma foi demonstrada por parte dos judeus. E, de
forma geral, tal hostilidade judaica teve como sua causa
principal a violação de suas crenças religiosas em várias
situações. Quando, por exemplo, Pôncio Pilatos, o procurador
romano, trouxe para a cidade santa de Jerusalém os estandartes
reverenciados pelos legionários romanos, houve um alvoroço;
quando ele desviou recursos sagrados do Templo de Jerusalém
para construir um aqueduto, tal sacrilégio provocou uma enorme
onda de violência; Além disso, quando um legionário romano se
expôs de forma indecente diante daqueles que estavam no

História Judaica. [Tradução de Ruth lusim e Henrique lusim], Buenos Aires,


Editorial S. Sigal, 1953, pp.227-237.
813
Minha hipótese parece encontrar apoio na opinião de Crossan, segundo
quem, “a estória [do endemoninhado geraseno] foi quase com certeza criada
muito depois da vida de Jesus, talvez até mesmo no contexto da Primeira
Guerra Romano-Judaica de 66 a 73 E.C.”. (Cf. CROSSAN, John Dominic.
Jesus: uma biografia revolucionária. [Tradução de Júlio Castanon
Guimarães], Rio de Janeiro, Imago, 1995, p. 102).
431
CARLOS AUGUS + © VAILA + +I

Templo, como já citamos acima, tal ato também provocou muita


desordem e muito sangue foi derramado. Já no ano 40 d.C., o
imperador Gaio Caligula, em um excesso megalomaníaco,
ordenou que sua estátua fosse erguida no Templo de Jerusalém,
tal como fora erigida em outros santuários no restante de seu
domínio. Como sabemos, para os judeus, tal ato era um
despautério e uma ofensa direta à sua fé monoteísta. O legado
imperial que a esse tempo governava a Síria, mostrou-se incapaz
de executar tal ato insano, tamanha foi a resistência promovida
pelos judeus. Em poucos anos, as dificuldades na província da
Judéia foram aumentando cada vez mais. Os distúrbios
esporádicos continuavam e, como se isso não bastasse, havia
também um banditismo endêmico nas regiões rurais. Desde os
cinquenta primeiros anos a atmosfera de violência propagou-se
para a capital, onde homens com punhais, os chamados sicarii,
se escudavam covardemente nas multidões de peregrinos para
amedrontar e causar o terror na população urbana. Algumas
pessoas sentiram-se fortemente motivadas em 64 d.C. a buscar
segurança no exterior. Já estava claro para um judeu, Flávio
Josefo, que uma terrível guerra era iminente. O incidente que,
por fim, provocou a revolta surgiu da hostilidade já de longa
data entre os judeus e os não-judeus locais na cidade litorânea de
Cesaréia. A cidade de Cesaréia fora fundada por Herodes
principal mente para uma população composta por não-judeus,
conforme indicou ao construir ali um grande templo para Roma
e Augusto. Entretanto, os judeus de Cesaréia haviam apelado
várias vezes à autoridade romana a fim de que lhes fossem
concedidos maiores direitos dentro daquela cidade. Em 60 d.C.,
o imperador Nero julgou decisivamente a favor dos não-judeus e

Em sua autobiografia, Vida, Josefo conta que teve um sonho, o qual


pressagiava a guerra que estava para irromper. Segundo ele: “Tive então
durante a noite um sonho esquisito (...). Parecia-me ver um homem que me
dizia: (...) Lembrai-vos do aviso que vos dou, de que vos será necessário
fazer a guerra aos romanos’”. (Cf. Vida, in: JOSEFO, Flávio. História dos
Hebreus. Vol. 2, p.223).
432
SA + ANÁS, DEIT1®NI©S E LEGIî

em 66 d.C., alguns jovens gentios, valendo-se desse favor


imperial, zombaram dos judeus locais sacrificando um galo
diante de uma sinagoga num Shabat. Esta última ação provocou
um grande tumulto naquela ocasião. O então governador romano
da Judéia, o procurador Floro, só conseguiu conter esse alvoroço
após ter demonstrado um enorme preconceito para com os
judeus. A extrema insatisfação diante de tal ultraje já era enorme
quando ele agravou ainda mais a situação ao confiscar dinheiro
do tesouro do Templo de Jerusalém, provavelmente em lugar do
tributo. A partir daí, o tumulto decorrente de tal ato só foi detido
com derramamento de muito sangue. Em demonstração de
protesto, alguns sacerdotes do Templo decidiram pela suspensão
daqueles sacrifícios que eram oferecidos diariamente em
Jerusalém em homenagem ao imperador romano. Da perspectiva
romana, tal protesto era um ato de rebeldia, e, portanto, a
situação agora já era séria demais para ser controlada por Floro.
A situação já havia passado dos limites. Então, o legado
imperial Céstio Galo marchou de Antioquia, na Síria, com três
legiões de soldados e várias outras tropas auxiliares. Quando ele
também teve de enfrentar uma forte resistência e sofreu uma
desastrosa derrota em sua retirada das circunvizinhanças de
Jerusalém, Nero foi forçado a enxergar na supressão a tal revolta
uma campanha deveras importante. Assim, ele enviou um de
seus generais mais experientes, aquele que seria o futuro
imperador, Vespasiano, para que este combatesse em seu nome
na Judéia. A duração geral da guerra foi de dez ou onze anos,
isto é, de 63 a 73 ou 74 d.C., quando, por fim, o último foco de
resistência em Massada foi derradeiramente vencido. Deve ser
dito ainda que as forças de ocupação romanas nem sempre
lutavam com toda a sua força. Isto ocorria devido a vários
acidentes de percurso. Por exemplo, em junho de 68,
Vespasiano suspendeu sua campanha ao tomar conhecimento da
morte de Nero, quem o havia convidado para comandar as suas
tropas em seu nome, e em julho de 69 ele mais uma vez adiou
sua campanha militar contra os judeus, para se dedicar à sua
433
CARL®S AUGUS + © VAILA + + I

própria luta pelo poder de Roma. Porém, o principal motivo para


a extensa duração da guerra foi a força de resistência judaica.
Quando o general Tito, filho de Vespasiano, e também futuro
imperador romano, por fim conquistou a cidade murada de
Jerusalém, ele o fez à custa da vida de muitos cidadãos romanos
e judeus. Um grande contingente de judeus foi escravizado ou
crucificado e Jerusalém, finalmente, acabou sendo fortemente
destruída. Na data do dia 10 de Ab (julho/agosto) do ano 70
d.C., o Templo judaico foi devastado por um enorme incêndio.
Tal expediente fez com que a estrutura da religião e da
sociedade judaicas na região da Judéia fosse totalmente
destruída, para nunca mais ser restaurada como era antes. A
seguir, veremos o papel desempenhado efetivamente pelas
legiões romanas durante o cerco e a destruição de Jerusalém.
f) As Legiões Romanas Cercam e Destroem
Jerusalém815

A fim de entendermos o papel exercido pelas legiões


romanas durante o cerco e a tomada de Jerusalém, devemos nos
remeter à época do general romano Vespasiano. O ataque
romano contra Jerusalém teve início na manhã de 10 de maio de
70 d.C. Simon ben Giora era o encarregado da defesa judaica,
porém, como os judeus não tinham a mesma perícia bélico-
militar que os legionários romanos, acabaram ficando em
desvantagem.816 A artilharia da 10a Legião exerceu um
importante papel na tomada da terceira muralha de Jerusalém.

Uma ótima abordagem sobre a destruição de Jerusalém pode ser


encontrada em: BRUCE, F.F. New Testament History. New York, Doubleday
& Company, Inc., 1980, pp.368-392.
816 Em um dos discursos feitos aos seus soldados, Tito diz: “Embora seja
verdade que os judeus são corajosos e desprezam a morte, eles têm tão pouca
disciplina e conhecimento da guerra, que por maior que seja seu número, são
mais uma multidão confusa, do que um exército”. (Cf. Guerras Judaicas,
Livro III, XXXIII, 281. JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 3,
p.109).
434
sa+anás, DemêNies e legiã®

Sua artilharia recebeu menção particular feita por Josefo,


segundo quem a 10a Legião possuía escorpiões arremessadores
poderosos e a maior ballista lançadora de pedras de todas as
legiões.817 Josefo, na companhia de Tito, escreveu sobre a
excepcional taxa de acerto de tiros dos lançadores de flechas
incandescentes da 10a Legião e descreveu como as maiores
máquinas arremeçadoras de pedras da legião (possivelmente
onagros e ballistas pesadas) conseguiam lançar pedras que
pesavam cerca de 50 quilos a mais de 350 metros, as quais
matavam não somente aqueles que estavam nas linhas de frente
do exército inimigo, mas também continuavam rolando e, assim,
feriam mortalmente tantos outros que aparecessem em seu
caminho. Josefo menciona um soldado judeu que teve a sua
cabeça violentamente arrancada por um disparo da artilharia
romana. Neste episódio, a cabeça do homem foi encontrada
depois a centenas de metros de distância de seu corpo. No início
do cerco de Jefat, segundo ele, uma única flecha escorpião
atingiu muitos combatentes judeus de uma só vez.818*Aliás, deve
ser dito que os artilheiros da 10a Legião acertavam os seus alvos
com grande precisão. Para obter êxito na apontaria, os artilheiros
da 10a Legião e de outras legiões em Jerusalém mediam com
exatidão a distância entre a plataforma de artilharia e a muralha
da cidade com chumbo e linha. Os artilheiros romanos usavam
pedras judias como projéteis, pedras claras, quase brancas. Para
enganar os vigias, os comandantes da artilharia legionária
ordenavam aos seus homens que pintassemQas 1 Q pedras com piche
negro, dificultando assim a sua percepção. Simultaneamente,
cada uma das três legiões, a 5a, a 12a e a 15a, ergueu uma torre,
ao mesmo tempo também em que a 10a Legião concentrou seus
esforços na sua experiência com a artilharia para tentar abrir

817 r
DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da
décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.259.
818 Idem, Ibidem, p.259.
Idem, Ibidem, p.260.
435
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I

uma brecha numa das muralhas da Cidade Santa. Enquanto isso


acontecia, equipes de legionários manuseavam um bate-estaca
pendurado na estrutura da torre, a fim de derrubar uma das
muralhas de Jerusalém. No 15° dia do ataque, 25 de maio de 70
d.C., depois de sucessivos golpes, a muralha começou
finalmente a ceder aos três bate-estacas. Os combatentes judeus
fugiram para a Segunda Muralha. O ataque passou então para a
sua segunda fase. Tito deixou o acampamento da 10a Legião
onde ele estava e, rapidamente, deslocou a 5a, a 12a, e a 15a
Legiões para posições mais próximas da cidade. Do amanhecer
até o anoitecer, sem medir esforços, os legionários romanos
continuaram a golpear a Segunda Muralha. Os legionários
estavam acostumados a se levantar antes da aurora, uma vez que
as tarefas de um dia romano eram ditadas por aquilo que
pudesse ser feito durante a luz do dia.820 Depois de cinco dias de
operação com o bate-estaca contra a Segunda Muralha, em 30 de
maio, parte da muralha vizinha à torre também caiu. Três dias
depois, em 2 de junho, as legiões romanas conseguiram penetrar
por várias brechas novas abertas na muralha e os combatentes
judeus novamente se viram acuados. Assim, foram obrigados a
se retirar para a Primeira Muralha. Tito, então, ordenou a
suspensão do cerco. Na tentativa de aterrorizar os judeus, o
general romano fez suas legiões desfilarem devidamente
uniformizadas e, nos quatro dias seguintes, distribuiu
cerimoniosamente o pagamento de cada legionário, diante dos
olhares do povo de Jerusalém, o qual se amontoava nas
muralhas e janelas da cidade para assistir àquilo.821 Uma vez que
tal expediente não teve o efeito desejado sobre a moral dos
defensores judeus, Tito enviou então Josefo para tentar negociar
uma rendição com os combatentes judeus. Josefo, que tinha duas

820 DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da


décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.262.
821 Guerras Judaicas, Livro V, XXV, 414. Cf. JOSEFO, Flávio. História dos
Hebreus. Vol. 3, p. 158.
436
SA+ANÁS, D€m©NI®S E LEGIî

boas razões para desejar que a cidade se rendesse (pois, tanto


sua mãe quanto seu pai estavam entre os refugiados que se
achavam dentro da cidade) começou a gritar para os seus
compatriotas judeus para que se rendessem, alegando que Roma
trataria bem aqueles que assim o fizessem. Embora não
houvesse uma resposta imediata a tal apelo, nos dias seguintes a
taxa de deserção judia aumentou espantosamente: até 500 judeus
por dia se rendiam. Porém, como este número ainda era muito
tímido, Tito ordenou que seus legionários cercassem Jerusalém
com uma muralha própria deles, a assim chamada muralha de
circunvalação. Um dos aspectos que diferenciava os legionários
romanos de seus inimigos, durante muitos séculos, era o seu
talento na engenharia. César havia sido tanto engenheiro quanto
soldado e aqueles que herdaram seu império acabaram herdando
também suas práticas e técnicas. Tempos depois, Tito
convocou um conselho de guerra com seus oficiais mais
destacados: o coronel Alexandre, seu chefe de estafe; o general
Lepidus, da 10a Legião-, o general Cerealis, da 5a Legião-, o
general Titus Phrygius, da 15a Legião; o coronel Fronto, do
destacamento da 18a / 3a Legião Gallica; e o coronel Antonius
Julianus, o procurador e representante da Judéia. Houve um
longo e, quem sabe, intenso debate sobre se o Templo de
mármore branco de Jerusalém deveria continuar de pé no ataque
final. Existem dois relatos distintos sobre essa reunião. 1) Josefo
diz que Tito desejava preservar o Templo e influenciou os seus
oficiais para que concordassem com ele. Porém, provavelmente
Josefo quis pintar Tito, seu General, como um “bom moço”. 2)
Do outro lado, o escritor cristão do século IV, chamado
Sulpicius Severus, citando Tácito, declara que Tito desejava
destruir o Templo, o qual era a representação da resistência
judaica. Por um lado, Tito tinha reputação de ser um homem
justo e gentil. Por outro, ele não pensou duas vezes antes de

822 DANDO-COLLINS, Stephen. Op.Cit., p.263.


823 Idem, Ibidem, p.265.
437
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

executar alguns prisioneiros de guerra, sendo que ele não era tão
bondoso assim. Seja como for, parece-nos que a versão de
Tácito merece maior consideração. Após o término do
conselho de guerra, Tito então deu ordens aos seus legionários
para que o portão de Jerusalém, que já havia sido queimado,
fosse atacado. Isso abriu caminho para o avanço dos bate-
estacas, machados e espadas, antes dos legionários entrarem no
Santuário. Segundo Josefo, um soldado romano arremessou um
ferro em brasa em direção ao Santuário, o que rapidamente o
incendiou. Tito foi chamado a tempo de ver o Santuário em
chamas. Josefo prossegue, dizendo que Tito deu ordens para que
as legiões romanas apagassem o fogo, mas, devido ao barulho e
à confusão existentes, ou a sua ordem não foi ouvida ou,
provavelmente, muitos legionários incendiaram deliberadamente
ainda mais o local, determinados a verem o lugar que lhes tinha
causado tantos prejuízos, por tanto tempo, transformar-se em
cinzas. Ao mesmo tempo em que os judeus tentavam apagar o
fogo, os legionários romanos, por outro lado, expulsavam-nos
do Santuário. Tito e sua guarda pessoal, formada por fortes
lanceiros caminharam em direção ao Santo dos Santos. Tito,
então, finalmente entrou no lugar mais sagrado dos judeus, local
este onde apenas o sumo sacerdote judeu tinha permissão para
pisar. No dia em que o Templo de Jerusalém foi derrubado, Tito
encontrou o “lugar da habitação de Deus” vazio, pois a arca da
aliança não estava mais lá. Já no passado, outro grande general
romano, Pompeu, o Grande, havia conseguido atacar o Templo
de Jerusalém e entrar nele, em 63 a.C., durante a sua conquista
do Oriente, com o auxílio, dentre outras, da Ia e 2a legiões.
Pompeu também entrara pessoalmente no Santo dos Santos, o
lugar mais sagrado do Templo. Mas ele o havia deixado intacto
naquela ocasião. Agora, porém, com o incêndio consumindo

824 Idem, Ibidem, p.273.


825
DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da
décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.274.
438
SA + ANÁS, D€ffi®NI©S E LEGIé

as várias partes do Templo, os legionários romanos golpeavam


com a espada a qualquer judeu que resolvesse estar em seu
caminho. Além disso, os legionários saquearam os tesouros
daquele santo lugar: ouro, prata, portas de bronze e objetos da
religião judaica, tais como os candelabros dourados e todos os
demais objetos de valor ali guardados pelos judeus. Alguns
legionários começaram uma matança desenfreada, escalando
amontoados de mortos e matando outros mais. O sangue corria
pelos recintos do Templo. Outros legionários, não contentes
com o incêndio provocado, ainda ateavam mais fogo em outras
partes do Templo. Em um pórtico que ainda não fora incendiado
encontravam-se seis mil homens, mulheres e crianças, todos
refugiados. Os legionários que se recordavam de seus
companheiros queimados até a morte em um desses pórticos,
atearam fogo também nessas partes e todos aqueles seis mil
pereceram. Como se isso não bastasse, os sacerdotes que
tentavam se render foram executados friamente por tais
legionários. O resultado dessas incursões militares foi que o
Templo de Jerusalém acabou sendo completamente tomado
pelas legiões romanas. Isso ocorrera no dia 30 de agosto.
Contudo, nos dias que se seguiram, a diminuição das chamas foi
acompanhada dos sacrifícios que as legiões começavam a
oferecer aos seus deuses em meio àquelas ruínas. Todavia, o
cerco de Jerusalém ainda continuava. Porém, após experimentar
ainda certa resistência representada pelos líderes, João de
Giscala e Simon, o Idumeu, finalmente os estandartes cintilantes
das legiões romanas começaram a ser erguidos. Um estrondoso
grito espalhou-se por todo o vale, quando os legionários
romanos verificaram que o cerco tinha finalmente terminado.
Jerusalém havia sido tomada. O que havia sobrado na cidade foi
praticamente incendiado e 97 mil pessoas foram feitas
prisioneiras.826 Aqueles que foram identificados como líderes da

° ° Guerras Judaicas, Livro VI, XLV, 498. Cf. JOSEFO, Flávio. História
dos Hebreus. Vol. 3,p.l90.
439
CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1

resistência judaica foram executados. Os 700 prisioneiros


esteticamente mais belos serviram de adorno na procissão
triunfal de Tito e Vespasiano, em Roma, no ano seguinte. Outros
rapazes, com bom porte físico, foram selecionados para
trabalhar nas minas do Egito. As crianças foram vendidas como
escravas. Os adultos foram enviados para as várias províncias do
império, para servirem de espetáculo para as pessoas, lutando na
arena contra animais selvagens. Acredita-se que um milhão de
pessoas morreu em Jerusalém, em conseqüência dos ferimentos
produzidos pelos legionários romanos ou nas mãos de seu
próprio povo (devido a conflitos internos)/27 ou de fome.*828829
Ao
fim de tal guerra, restava a pilhagem. As regras sobre a
pilhagem das legiões eram claras: a cidade de Jerusalém havia
sido conquistada por ataque e, embora alguns bens maiores
fossem destinados ao tesouro do Império, contudo, a maior narte
da pilhagem era dividida entre os próprios legionários.82' No
tribunal, Tito então fez o anúncio das novas nomeações das
legiões. A 5a e a 15a legiões iriam acompanhá-lo no desfile
triunfal por toda a região. A 5a legião seria finalmente
estacionada na Moesia. A 15a assumiría a nova base na
Capadócia. A 12a estava se dirigindo rumo ao norte, para a base
de Melitene, também situada na Capadócia. E a 10a, daquele
momento em diante, seria a legião que permanecería na Judéia.
Alguns dias depois, João de Giscala e Simon ben Giora, líderes

Sobre os conflitos internos, veja: Guerras Judaicas, Livro V, XVI, 401.


Idem, Ibidem, p. 153.
828
De acordo com Josefo, a fome em Jerusalém durante o cerco romano era
tão grande que uma mulher chamada Maria, matou o seu filho, cozinhou-o,
comeu uma parte dele e a outra escondeu. (Cf. Guerras Judaicas, Livro VI,
XXI, 459. Idem, Ibidem, pp. 179,180). Josefo ainda relata que a fome neste
tempo fez com que as pessoas comessem até mesmo a sola dos sapatos, o
couro dos escudos e feno podre. (Cf. Guerras Judaicas, Livro VI, XX, 458.
Idem, Ibidem, p. 179).
829
DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da
décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, p.276.
440
SA+ANÁS, DEmêNlffiS E LEGIî

da resistência judaica, foram capturados. Tito fez ambos


desfdarem na parada do Triunfo, em Roma, no ano 71 d.C. Ao
final da parada, Simon foi chicoteado e, em seguida,
estrangulado. Já João de Giscala foi sentenciado à prisão
perpétua. Após terem transcorrido vários meses, Vespasiano
acabou por nomear Tito, seu filho, como comandante da Guarda
Pretoriana, posição esta na qual ele permanecería até a morte de
seu pai em 79 d.C. Depois disso, Tito assumiría ao trono,
reinando, porém, por apenas dois breves anos, até que o seu
falecimento prematuro conduzisse Domiciano ao trono em seu
lugar. A morte de Tito provocou grande comoção por toda a
parte do império romano, menos entre os judeus. Em setembro
do ano 70 d.C., Tito estabeleceu na Judéia um procurador que
fora nomeado recentemente, o coronel Terentius Rufus, o qual
ficou no comando de Jerusalém. Esse procurador tinha ordens
para destruir todos os resquícios da cidade que até então existia
ali, apesar de as torres do Palácio de Herodes terem sobrevivido.
As Coortes da 10a Legião estabeleceram uma base no lugar onde
ficava Jerusalém, além da outra base já existente dessa legião
em Cesaréia. Ao mesmo tempo em que os legionários destruíam
grande parte do que havia restado da Cidade Santa, os soldados
da /()“ Legião reciclaram os materiais de construção e os
reutilizaram na construção de uma nova fortaleza legionária.
Durante todo o período em que trabalhavam nesta construção, os
soldados da 10a Legião estavam atentos à procura de vários
tesouros escondidos pelos judeus durante o cerco e a tomada da
cidade. No início do ano 71 d.C., Tito regressou de sua marcha
triunfal pela Síria e, ao fazê-lo, passou por Jerusalém. Ao chegar
lá ficou surpreso por ver os homens da 10a Legião extremamente
satisfeitos. O motivo de tal satisfação residia no fato de os
prisioneiros judeus terem revelado o esconderijo no qual havia
uma imensa quantidade de ouro guardada, ouro este que os
legionários tomaram para si. A quantidade de ouro saqueado de
Jerusalém era tão grande que, ao ser vendido, devido à
abundância de ouro no mercado, o seu preço caiu pela metade,
441
CARLSS AUGUS + ® VAILA + + I

subitamente, na Síria. Todavia, este fato não era de grande


relevância para os soldados da 10a Legião. O cerco a Jerusalém
havia fornecido a eles grandes somas em sua pilhagem.830 Um
detalhe muito curioso não pode ser passado em branco aqui. Foi
sugerido que a 10a Legião possuía o título de “Fretensis”,
enquanto serviu na Judéia. No que diz respeito a isso, uma
explicação plausível para o título “Fretensis”, pode ser sugerida
por meio de uma telha encontrada na Palestina no século XX,
que traz consigo a inscrição “LEG X F”. Uma galé foi pintada
acima da inscrição e, pasmem, um javali (ou seja, um “porco”
selvagem) abaixo.831 Embora se acredite que o símbolo da 10a

oon
DANDO-COLLINS, Stephen. A Legião de César: a saga épica da
décima legião da elite de Júlio César e dos exércitos de Roma, v>.TTl.
831
Idem, Ibidem, p.306. Segundo W. Keller, “até hoje jardineiros e
lavradores continuam encontrando na terra, de vez em quando, pequenos
quadrados de barro com o número da [X] legião e os emblemas da galera e
do javali”. (Cf. KELLER, Werner. E a Bíblia Tinha Razão... [Tradução do
texto de João Távora e tradução das atualizações de Trude Von Laschan
Solstein Ameitz], São Paulo, Melhoramentos, 1995, p.404). O Oxford Bible
Atlas mostra uma parte (pois está fragmentada) de uma esteia comemorativa
encontrada próxima ao portão de Jafa em Jerusalém, trazendo o nome da
Décima Legião (LEG[IO] X FR[ETENSIS]). Apesar desta pedra datar de
cerca de 200 A.D., a Décima Legião tinha uma longa associação com a
Palestina e serviu ali entre 66-70 A.D. (Cf. MAY, Herbert G. (ed.). OBA.
Oxford, Oxford University Press, 1981, p.l 17). J. A. Thompson fala sobre a
descoberta de vários ladrilhos com a estampa da Legio X Fretensis,
encontrados entre os anos de 1969-70 em escavações feitas em Israel. (Cf.
THOMPSON, J. A. A Bíblia e a Arqueologia. [Tradução de Neyd Siqueira],
São Paulo, Vida Cristã, 2007, p.396). Este mesmo autor ainda menciona uma
inscrição que pode ser vista ainda hoje no Museu de Jerusalém, na qual se lê:
“D M L MAGNIUS FELIX, MIL LEG X FRET, B TRIB MIL ANN XVIII
VIX XXXIX”. A tradução diz o seguinte: “Consagrado à memória de L.
Magnius Felix, um soldado da Décima Legião, a Fretensis, que estava sob a
ordem do tribuno, o qual serviu dezoito anos, e morreu com a idade de trinta
e nove”. (Cf. THOMPSON, J. A. Archaeology. Grand Rapids, WM. B.
Eerdmans Publishing Company, 1959, p.39). Albright também menciona
outros achados arqueológicos referentes à Legio X Fretensis em Jerusalém.
442
SA+ANÁS, DEffi®NI©S E LEGIé

Legião tenha sido um touro e que o javali fosse o símbolo da 6a


Legião Ferrata, que se juntou a ela na Judéia, no século II, uma
coisa devemos admitir: o porco era o símbolo de uma das
legiões romanas! Será que tudo isso não traz à nossa memória a
lembrança de algo um tanto quanto familiar? Vou ajudá-lo a se
lembrar: “endemoninhado... Legião... não nos mande para fora
da região... porcos...”. Como todas essas peças deste belíssimo
“quebra-cabeças” sobre o relato de Mc 5.1-20 se encaixam
bem!!
Finalmente, Josefo menciona a existência de um combate
naval ocorrido entre os legionários romanos (sob o comando de
Vespasiano) e os judeus, o qual aconteceu no lago de Genesaré.
Vejamos esse curioso acontecimento e a possível ligação que ele
pode ter com o nosso relato de Mc 5.1 -20:

Os navios que Vespasiano mandara construir (...) foram


postos no lago e ele embarcou com tantos soldados quantos
necessários para a empresa que intentava (...). [Os judeus] só
podiam, com extrema desvantagem combater sobre as águas,
porque suas barcas, que eram próprias para assaltos e pirataria,
eram muito fracas para resistir aos navios e tendo poucos
homens em cada uma delas, não ousavam atacar os romanos.
Por isso, o mais que podiam fazer, era navegar ao redor deles,
atirando-lhes pedras (...). Aquelas pedras só faziam barulho
contra as armas dos romanos e quando [os judeus] sc
aproximavam [dos romanos] eram atirados à água, e suas
barcas, reviradas. Os romanos matavam a golpes de dardos os
que lhes estavam ao alcance das armas e a golpes de espada, os
que estavam nas barcas. (...) faziam afundar as barcas, aos que
procuravam salvar-se; cortavam a cabeça ou as mãos, aos que,
no auge do desespero a eles vinham nadando. Assim, aqueles
infelizes (...) foram mortos no lago (...). O lago estava todo
vermelho de sangue, suas margens, cheias de náufragos c

(Cf. ALBRIGHT, W. F. AP. Gloucester, Peter Smith Publisher Inc., 1971,


p.168).
443
CARLOS AUGUS+® VAILA + + 1

ambos cobertos de cadáveres. (...) Tal o desenlace do combate


naval; pereceram nele c na cidade [de Tariquéia] cerca de seis
832
mil e quinhentos homens.

Embora seja apenas uma hipótese, creio que este relato


de Josefo possui algumas semelhanças com a perícope sobre o
endemoninhado geraseno. Observemos tais semelhanças no
quadro abaixo:

Josefo Mc 5.1-20
1. 0 combate naval se passa
1. 0 Exorcismo ocorre nas
no Lago de Genesaré, outro
proximidades do Mar da
nome dado para o “Mar da
Galiléia (Mc 5.1);
Galiléia”;
2. No combate naval, os 2. No relato de exorcismo, os
legionários romanos estão demônios se chamam legião
presentes; (Mc 5.9,15);
3. Os Judeus ferem aos 3. 0 endemoninhado geraseno
legionários romanos, se fere com pedras (Mc 5.5);
atirando-lhes pedras-,
4. Muitos judeus recebem 4. Os porcos, ao serem
golpes de espada na cabeça e possuídos pela “legião”, se
nas mãos, e morrem afogados precipitam do despenhadeiro e
no lago-, morrem afogados no mar (Mc
5.13);
5. Morrem cerca de 2.000
5. Morrem cerca de 6.500
porcos, os quais haviam sido
homens (somando as mortes
possuídos pela legião (Mc
no lago e em terra).
5.13).

832 Guerras Judaicas, Livro III, XXXVI, 284. Cf. JOSEFO, Flávio. História
dos Hebreus. Vol. 3, p. 111. Os acréscimos entre colchetes são meus.
444
SA + ANÁS, D£m©NI©S E LEGIî

Em vista de tudo isso, pergunto: será que o relato de Mc


5.1-20, no qual os demônios são chamados de “Legião”, não
poderia refletir, de alguma forma, esse combate naval entre as
legiões romanas e os judeus? Esse relato de exorcismo que
demoniza a legião romana {“Legião é o meu nome’’, Mc 5.9)
não poderia ser, em sua forma escrita, uma maneira que os
judeus encontraram de poder se vingar da legião romana pelas
mortes por ela provocadas nesse episódio sangrento descrito por
Josefo? De qualquer forma, já que no relato de Josefo os
legionários romanos são os responsáveis pela morte de muitos
judeus que se afogam no lago de Genesaré, então, no relato de
Marcos, esta mesma legião “morre afogada” no Mar da Galiléia
com muitos porcos (Mc 5.11-13). E já que mencionamos a
demonização da legião romana, vejamos o item seguinte.

g) Demonizando o “Outro”: De “Legião Romana”


a “Legião Demoníaca”

A partir desses dados históricos que obtivemos sobre as


legiões romanas, podemos entender, sem maiores dificuldades,
porque os demônios, ao terem a sua identidade inquirida por
Jesus, respondem: “Legião é o meu nome, porque somos
muitos’’ (Mc 5.9). Estamos diante de um caso típico de
“demonização do outro”.833 E, neste caso em particular, o

Além desse episódio de Marcos, os Evangelhos ainda nos mostram o


próprio Jesus sendo visto como o “outro” e, portanto, sendo demonizado.
Veja, por exemplo, Mc 3.20-30 (Jesus é demonizado pelos escribas); Jo 7.30
(Jesus é demonizado pela multidão) e Jo 8.48,52 (Jesus é demonizado pelos
judeus). Aliás, deve-se dizer aqui que “uma importante parcela dos
ensinamentos judaicos clássicos considera Jesus um ‘outro’ (otoh ha-ish,
literalmente uma expressão negativa para designar ‘esse/aquele homem’), ou
seja, um apóstata que subverteu os ensinamentos do judaísmo (...)”. (Cf. o
artigo de Byron L. Sherwin, in: BRUTEAU, Beatrice, (org.). Jesus Segundo
o Judaísmo: rabinos e estudiosos dialogam em nova perspectiva a respeito
445
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

“outro” que é demonizado não é ninguém menos do que o


próprio exército romano, símbolo máximo do poderio do
Império de Roma. Marcos, que escreve pouco tempo depois do
ano 70 d.C. - época em que o Templo de Jerusalém já fora
destruído - e que, como sabemos, faz alusão a tal destruição em
seus escritos (Mc 13.Iss.), estava ciente de que as legiões
romanas haviam sido as principais responsáveis por cometer tal
sacrilégio. Então, ao longo de seu Evangelho e, escrevendo
como alguém que já tinha conhecimento da consumação de tal
fato, acaba demonizando a legião romana.
Entretanto, esse fenômeno da “demonização do outro”
não é exclusivo de Marcos. Já comentamos no capítulo I desse
trabalho (cf. item: 1.2.5) que os autores da LXX (III século a.C.)
ao verterem o AT Hebraico para o Grego, acabaram
demonizando os deuses e os ídolos pagãos, ao chamá-los de
Saipóvtot, isto é, “demônios”. Além disso, vemos na literatura
pseudepigráfica produzida durante o chamado período
intertestamentário (430 a.C. - 6/4 a.C.) que alguns atos e
sentimentos humanos negativos, tais como: luxúria, gula,
violência, adulação, arrogância, mentira e a prática
O
da injustiça,
IA

entre outros, também são demonizados. Ainda nos


pseudepígrafos, também percebemos os egípcios serem

de um antigo irmão. [Tradução de Adail Sobral], São Paulo, Paulus, 2003,


p.52).
834
Veja, por exemplo, o Testamento dos Doze Patriarcas e, mais
precisamente: Testamento de Rúben, II, 1; III, 1,2; Testamento de Judá, XVI,
1; Testamento de Dã, I, 2,3; Testamento de Gad, IV, 3; V, 1. (Cf.
PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB. [Tradução de Claudio J. A.
Rodrigues], São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005, pp.335, 336, 360, 371,
385). Paul Diel fala sobre “as qualidades negativas da alma humana - as
forças ‘demoníacas’ - simbolicamente representadas como adversárias das
divindades”. (Cf. DIEL, Paul. Los Símbolos de La Biblia: la universalidad
dei lenguaje simbólico y su signification psicológica. [Traducción de Ligia
Arjona], México, Fondo de Cultura Econômica, S.A., 1989, p.35).
446
SA + ANÁS, DE1T1®N1®S E LEGIî

demonizados.835 Nos escritos de Flávio Josefo (37-100 A.D.),


descobrimos que tanto o sumo-sacerdote Anano quanto o
próprio Josefo, demonizam o grupo sectário dos zelotes, sendo
que Anano chama-os de “demônios”.836 Já por volta do ano 180
d.C., Irineu, bispo de Lyon, também demonizou os hereges,
escrevendo “um maciço ataque em cinco volumes contra os
cristãos dissidentes, (...) acusando-os de serem agentes secretos
Aliás, durante a chamada Era Patrística, os Pais
de Satanás”.837838
da Igreja acabam desenvolvendo uma teologia segundo a qual o
mundo romano é o habitat dos demônios, o qual pode
contaminar os fiéis. Durante o período da Guerra Civil Norte-
Americana, no século XIX, houve quem demonizasse o Império
Britânico, identificando-o como um aliado de Satanás.839 E, no

835
Segundo o Testamento de José, XIX, 1: “(...) os egípcios vos perseguirão.
Mas (...) o Senhor estará convosco na luz, e Belial nas trevas, juntamente
com os egípcios”. (Cf. PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.396).
O sumo-sacerdote Anano assim se refere aos zelotes: “esses demônios em
carne”. (Cf. Guerras Judaicas, Livro IV, XIII, 306. JOSEFO, Flávio.
História dos Hebreus. Vol. 3, p.l 19). Quanto ao próprio Josefo, ele os chama
de: “aqueles homens animados [isto é, influenciados] pelos demônios”. (Cf.
Guerras Judaicas, Livro IV, XXII, 326. Idem, Ibidem, p. 129).
837
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que
as forças irracionais exercem na sociedade moderna. [Tradução de Ruy
Jungmann], Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p.200.
838
Cf. PRIETO, Christine. Cristianismo e Paganismo: a pregação do
Evangelho no mundo greco-romano. [Tradução de Euclides Martins
Balancin], São Paulo, Paulus, 2007, p.120. A autora cita como referência:
Tertuliano, em sua obra Os espetáculos, 26,1-2, onde é relatada a história da
cristã que “contraiu” um demônio no teatro romano. (Cf. Idem, Ibidem, nota
32).
839
SHEDD, Russell. O Mundo, a Carne e o Diabo. São Paulo, Vida Nova,
1995, p.105. Cf. também: ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o
fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. [Tradução de
Hildegard Feist]. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 105, 336, 337.
L. Link, ao fazer uma breve reflexão sobre o recurso da demonização do
outro empregado no âmbito político, diz que “o Diabo é um modo de macular
qualquer um que discorde dos que estão no poder”. (Cf. LINK, Luther. O
447
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I

século XX, o conhecido líder iraniano, Aiatolá Khomeini,


declarou: “Os Estados Unidos são o Grande Satanás!”.840 Já em
tempos bem mais recentes, em setembro de 2006, vimos o
presidente da Venezuela, Hugo Chávez, chamar o então
presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, de
“demônio”.841*843Além disso, em 2007, Chávez também atacou a
alta hierarquia da igreja católica de seu país pelo fato do reitor
da Universidade Católica e o arcebispo de Caracas terem se
posicionado contra a Reforma Constitucional da nação. Dentre
outras coisas, Chávez fez as seguintes declarações sobre eles:
“São o demônio, defensores dos mais podres interesses, são uns
verdadeiros vagabundos, do cardeal para baixo”. Finalmente,
em nosso próprio solo brasileiro também encontramos um
recente caso de “demonização do outro”, ainda na esfera
política. Em 2006, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
criticou o então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva, dizendo que este errou ao se comparar a Jesus Cristo em
um determinado comício ocorrido na cidade Sorocaba, interior
de São Paulo. Segundo FHC, “O presidente da República
‘modestamente’ se comparou a Cristo. Ele errou porque Cristo
nunca foi beijar Judas. Nunca foi chamar Judas de companheiro
(...). Ele não é Cristo, não, é o demônio e nós temos que
expulsá-lo daqui”. ’ O ato de “demonizar o outro” é um
artifício psicológico de autodefesa usado para desqualificar e

Diabo: a máscara sem rosto. [Tradução de Laura Teixeira Motta]. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, p.70).
840 SHEDD, Russell. O Mundo, a Carne e o Diabo, p. 105.
841
Durante a 61a assembléia geral da ONU, Chávez, se referindo a Bush,
declarou: “Ontem o demônio esteve aqui e esse lugar cheira a enxofre”.
(Disponível em: http://bahcaroco.blogspot.com/2006/09/hugo-chvez-chama-
bush-de-demnio-e.html. Acessado em: 03/08/2009).
847
Disponível em: http://gl.globo.com/Noticias/Mundo/0„MUL190924-
5602,00.html. Acessado em: 03/08/2009.
843
Disponível em: http://www.eleicao.info/content/view/546/3/ . Acessado
em: 03/08/2009.
448
SA + ANÁS, DElTlêNIffiS E LEGIî

desmoralizar alguém (ou algo), ao mesmo tempo em que,


automaticamente, qualifica e moraliza quem lança mão de tal
recurso. Pageis nos fornece o seguinte comentário sobre o
conceito de “demonizar o outro”:

Satanás [é visto] como um reflexo da maneira como


percebemos a nós mesmos e àqueles a quem chamamos de “os
outros”. Satanás, afinal de contas, criou para si mesmo um tipo
de profissão no fato de ser o “outro”, e assim define por
contraste o que julgamos como humano. O costume social e
cultural de definir certos indivíduos como “os outros”, em
relação ao nosso próprio grupo, pode ser, claro, tão antigo
quanto a própria humanidade. (...) a visão mundial de muitos
povos consiste em essência de dois pares de oposições binárias:
humano/não-humano e nós/eles.844845
Pageis ainda continua o seu raciocínio sobre o binômio
“nós/eles”, dizendo:

Uma sociedade não descobre simplesmente seus outros,


ela os fabrica, selecionando, isolando e enfatizando um aspecto
da vida desses outros e fazendo com que ele simbolize a
diferença entre ambos. O conflito entre grupos, claro, nada tem
de novo. O que talvez seja novo na tradição cristã ocidental (...)
é como o uso de Satanás para representar nossos inimigos leva
ao conflito com um tipo específico de interpretação moral e
religiosa, na qual “nós” somos o povo de Deus e “eles”, os
inimigos de Deus, e também os nossos.

Ao analisarmos a nossa perícope de Mc 5.1-20 a partir


do enfoque dado por Pageis, fica clara a presença do binômio
“nós/eles”, o qual dá margem para a demonização do outro. O

844
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que
as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p.17. Os acréscimos
entre colchetes são meus.
845
PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que
as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p. 18.
449
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I

gráfico abaixo nos ajudará a entender isso (a coluna “Nós”


compreende Jesus e os seus seguidores, os discípulos, incluindo,
é claro, Marcos; a coluna “Os Outros” abrange todos aqueles
que não seguem a Jesus):

Nós Os Outros
Somos judeus, o povo eleito São gentios, um povo que é
de Deus. possuído pelo demônio.
Vivemos na Terra Santa de Vivem na terra idólatra de
Israel. Gerasa.
Vivem em meio a uma
Obedecemos as nossas regras impureza total', terra impura,
de pureza. sepulcros impuros, espírito
impuro, porcos impuros.
Desfrutamos a presença do São perturbados pela presença
nosso Deus. dos veiAS' demônios.
São os próprios demônios
Vencemos os demônios pelo
(neste caso, a Legião Romana
poder de Jesus.
é demonizada).
Resultado = “Nós Somos o Resultado = “Os Outros São
Povo de Deus”. os Inimigos de Deus e os
Nossos Inimigos”.

Esse pequeno gráfico baseado em Mc 5.1-20 nos mostra,


sem sombras de dúvidas, que “nós”, os discípulos de Jesus,
sempre vencemos “os outros”, a legião romana demoníaca. Ivo
Pedro Oro, ao fazer uma análise sociológica do
fundamentalismo, tece um importante comentário sobre a
demonização do outro, o qual pode muito bem ser aproveitado
no contexto do nosso estudo:

Eles, os fiindamentalistas, são os eleitos e estão no


caminho da salvação, os outros estão no erro e são seduzidos
pelo demônio. Em conseqüência, atiram-se no combate ao
450
SA+ANÁS, DEíTl®NI®S E LEGIî

inimigo objetivo, (...) que é o outro, o demônio, para expulsá-lo


ou destruí-lo.846

Em seguida, Oro declara:

Os fiindamentalistas colocam-se em oposição aos outros


(...). Têm bem nítido os limites que os dividem dos outros. Os
outros, a grande maioria, são apóstatas, moralmente pervertidos,
arrastados pelo mundo. Enquanto o “nós” (íundamentalistas)
constitui o resto fiel aos princípios fundamentais e imutáveis
(...). Esses “eleitos” e “fiéis” defendem suas oposiçõcs
entricheirados nos seus grupos e comunidades. Os “outros”, que
não estão no caminho da salvação e não aderem à verdade, são
o inimigo (...). Os que a eles se contrapõem [aos
íundamentalistas], assumindo outras posições, são vistos como
ameaça e, por isso mesmo, [são] combatidos.847

De forma geral, podemos dizer que a legião romana é


demonizada em Mc 5.1-20 principalmente devido à sua
trajetória histórica. As legiões romanas tinham como suas
principais características: um fabuloso preparo militar, soldados
que davam as suas vidas por Roma, um grande poder de
dominação e uma força ocupacionista estratégica. Tais
elementos, aliados à falta de escrúpulos, aspereza e
marginalização de muitos de seus soldados, acabou produzindo
um sentimento de repulsa e aversão nas pessoas, o qual foi
traduzido pela demonização do exército romano por parte do
autor do Evangelho de Marcos. Já na esfera religiosa, a
demonização é um recurso que visa deformar a crença do
“outro”. Tal recurso exerce uma grande força sobre o imaginário

846 ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: uma análise sociológica do


fundamentalismo. São Paulo, Paulus, 1996, p. 126.
847
ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: uma análise sociológica do
fundamentalismo, p. 127. Os acréscimos entre colchetes são meus.
451
CARL©S AUGUS + ffi VA1LA + +I

coletivo, buscando legitimar a sua posição no campo religioso


em detrimento das crenças “alheias”.

h) Conclusão

Acredito que essa breve História das Legiões Romanas


serviu para nos mostrar uma verdade que, segundo penso, parece
ser evidente por si mesma. As legiões romanas, desde há muito
tempo, eram odiadas tanto pelas nações que travaram guerra
contra Roma, como também pelos judeus. Aliás, principalmente
por estes últimos. A minha hipótese buscou demonstrar o
seguinte: desde o episódio em que o general romano Pompeu, o
Grande, conseguiu atacar o Templo de Jerusalém e entrar no
Santo dos Santos (escoltado por suas legiões que incluíam a e
a 2a), em 63 a.C., até a destruição do Templo em 70 d.C. pelos
legionários romanos, por ordem de Tito, as legiões romanas
sempre estiveram presentes, sendo vistas como as grandes
protagonistas da infelicidade judaica. As legiões romanas:
guerrearam inúmeras vezes contra os judeus, matando um
número incontável deles; desrespeitaram suas crenças religiosas,
profanando, muitas vezes, seus locais sagrados; ocuparam seu
território à força; e, por fim, destruíram aquilo que os judeus
tinham de mais sagrado, o Templo. A incrível sucessão de fatos
lastimáveis executados pelas legiões romanas contra os judeus,
foram produzindo, no decorrer do tempo, um profundo
sentimento de revolta e de ódio nestes últimos em relação aos
primeiros. E este sentimento de profunda aversão aos
legionários romanos (devido aos tantos males que estes haviam
causado) fez com que os judeus os vissem, e com toda a razão,
como demônios.848 Ora, mas onde é que Satanás, mencionado

848
Segundo Gnilka: “Tem sido assinalado que as guerras, a opressão e a
miséria são capazes de intensificar e produzir nas pessoas simples o temor
dos demônios. A crença nos demônios se compreende então como uma
crença causada por sentimentos de temor e de solidão, de abandono e de
452
SA+ANÁS, D£ffi®NI©S Ê LEGIî

no início desse trabalho, se encaixa nisso tudo? Bem, como


mencionamos no Capítulo I, “no tempo de Jesus, os fariseus e o
povo comum daquele tempo estavam firmemente convencidos
de que havia toda uma hierarquia de espíritos bons e maus, e que
Satã presidia os últimos”.849 Seguindo esse pensamento, é, por
conseguinte, natural inter-relacionar Satanás, o “general” do
mal, com os demônios, a “legião” malévola que coopera com os
seus planos (cf. Mt 25.41; Ef 6.11,12; Ap 12.9). Essa
assustadora metáfora bélico-militar encontrada no contexto de
Mc 5.1-20, sobretudo nos w.9,15, serve para nos mostrar que
nós, cristãos, estamos em constante guerra contra o arquiinimigo
de nossas almas e seu séquito. E não somente isso, mas também
serve para nos ensinar, acima de tudo, que Jesus sempre acaba
triunfando sobre o mal!

4.4. Conclusão

Essa abordagem histórica nos permitiu fazer três


constatações: A primeira delas diz respeito à cidade de Gerasa.
Vimos que se tratava de uma importante cidade helênica do I
século d.C., a qual possuía infra-estrutura arquitetônica bem
planejada, cultura desenvolvida e comércio próspero. Foi nesse
relevante cenário caracteristicamente helênico que ocorreu o
exorcismo singular praticado por Jesus. A segunda constatação
diz respeito à região da Decápolis, dentro da qual Gerasa estava
inserida. Essa destacada região do mundo antigo foi o palco
onde o ex-endemoninhado anunciou a sua cura miraculosa

terror em forma de sonhos, desastres naturais, enfermidades, delírio e êxtase.


Os demônios se convertem em projeções objetivadas dessas experiências
sumamente desagradáveis”. (Cf. GNILKA, Joachim. Jesús de Nazaret:
mensaje e historia. [Traducción de Constantino Ruiz-Garrido]. Barcelona,
Editorial Herder, 1995, p. 155).
849
SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de
Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988,
pp.48,49.
453
CARL®S AUGUS+e VAILA + +I

efetuada por Jesus. Tal fato nos mostra que o Evangelho não
conhece fronteiras geográficas ou barreiras culturais. Onde as
pessoas estiverem, aí haverá sempre um ambiente propício para
anunciar “o que o Senhor tem feito”. Por fim, não devemos nos
esquecer da legião romana. Os temíveis soldados daquele
respeitado e antigo exército foram os responsáveis por
“perturbar os ânimos” dos povos e infundir-lhes um crescente
sentimento de ódio. Esses detestados legionários romanos,
devido principalmente às suas práticas cruéis nos campos de
batalha, acabaram adquirindo a fama de “demoníacos” diante de
seus adversários. Enfim, esse tipo de “eixo histórico” formado
pela tríade Gerasa-Decápolis-Legião, compõe o pano-de-fundo
por trás do qual o fabuloso exorcismo de Mc 5.1-20 aconteceu.

454
CONCJ.USî
CARL©S AUGUS+® VAILA + + I

456
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S Ê LEGIé

CONCLUSÃO FINAL

Bem, chegamos finalmente ao término de nossa jornada.


No decorrer desse trabalho, nos propusemos a fazer uma análise
tríplice de Mc 5.1-20, utilizando, para isso, as valiosas
ferramentas da exegese, da hermenêutica e da história. Espero,
sinceramente, que tenhamos conseguido alcançar nossos
objetivos! Ora, depois de todos os apontamentos que foram
feitos até aqui, acredito que possamos chegar às seguintes
considerações finais:

Primeira, o mundo antigo e, mais particularmente, o


mundo judaico, estavam, ambos, povoados por demônios e
espíritos malignos. Embora as referências aos demônios e
exorcismos sejam bem raras nas páginas do AT, como tivemos a
oportunidade de ver, os demônios acabam, todavia,
“conquistando terreno” ao longo da Bíblia, até serem endêmicos
no período intertestamentário e, principalmente,
neotestamentário. E isso acontece de tal forma que a crendice
popular da época chega até mesmo a atribuir a tais seres a causa
de todos os infortúnios, doenças e sofrimentos que existem. É,
os demônios têm “costas largas”!

Segunda, a mentalidade popular daquela época, com


destaque especial aos escritos da LXX e do NT, demonizou os
deuses e ídolos pagãos, os quais faziam parte da adoração dos
“outros”. Esse mecanismo demonizador do “outro” pôde ser
notado muito claramente em nossa passagem sobre o
endemoninhado geraseno, na qual vimos uma terra pagã
infestada de demônios, os quais, por sua vez, foram
identificados com o exército de um império também pagão, ou
seja, a legião romana.

Terceira, um ambiente tão "demoníaco” como aquele, só


poderia propiciar, (e como!), o surgimento de todos os tipos de
457
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

mecanismos de defesa que pudessem ser empregados contra tais


demônios. E nesse contexto que surgem medidas apotropaicas,
como, por exemplo: a queima do fígado e do coração do peixe,
com o intuito de afastar o demônio (cf. Tb 8.2,3a), as “receitas
mágicas” de Salomão contra os espíritos malignos e as palavras
também “mágicas” dos Papiros Mágicos Gregos contra todas as
espécies de males. Aliás, deve ser dito aqui que, em função
dessas crenças demonológicas que permeavam o imaginário
popular daquela época, a figura do exorcista acabou adquirindo
prestígio e notoriedade ímpar. Isso explica porque os exorcistas,
tanto pagãos (p.ex., Apolônio de Tiana), como judeus (p.ex.,
Salomão, Eleazar, Hanina ben Dosa e o próprio Jesus), se
tornaram figuras de grande destaque naquele período. Afinal de
contas, quem poderia defender as populações atormentadas por
tais males, naqueles dias, senão essas importantes personagens!

Quarta, Jesus, ao viver durante aquele período de grande


efervescência mística, acabou se tornando “filho de sua época ”,
compartilhando com seus contemporâneos as suas crenças,
temores e esperanças. Jamais poderemos entender a figura do
chamado “Jesus Histórico” adequadamente (se é que podemos
entendê-la), se não a inserirmos dentro de seu Sitz im Leben
apropriado, ou seja, o ambiente existente durante o I século A.D.
Sem dúvida alguma, as crenças demonológicas, as expectativas
escatológicas e o desejo de liberdade diante do sistema de
dominação romana, vigentes naqueles tempos, também eram
compartilhados (pelo menos em parte) por Jesus. Se excluirmos
Jesus de seu contexto histórico, cultural, religioso, político,
sociológico e econômico, então, só nos restará um “quebra-
cabeças sem peças”, ou, se preferir, um retrato cristológico
extremamente fragmentado e atomizado de Jesus. Logo, o Jesus
que exorciza a “legião” de demônios em Mc 5.1-20, deve ser
visto a partir de tal perspectiva.

458
SA+ANÁS, D£m©NI©S E LEGIî

Quinta, o exorcismo praticado por Jesus em Mc 5.1-20,


deve ser inserido no contexto mais amplo do kerygma sobre o
advento do Reino de Deus. Somos informados pelos Evangelhos
que a expulsão dos demônios praticada por Jesus, era feita pelo
“Espírito de Deus” (Mt 12.28), ou pelo “dedo de Deus” (Lc
11.20), sendo ainda um sinal indicativo da chegada do Reino.
Dessa forma, os exorcismos de Jesus (os quais se constituem
maioria entre os seus milagres) não podem ser vistos como algo
periférico para a fé cristã, antes, devem ser enxergados como
elementos indispensáveis para a compreensão do Jesus
Histórico, os quais apontam inexoravelmente não para uma
escatologia distante e remota, mas para algo claramente
presente.

Finalmente, em sexto e último lugar, o fato de haver um


exorcismo na terra gentílica de Gerasa, nos mostra a expansão
do Evangelho para além das fronteiras de Israel. Esse
inigualável exorcismo ocorrido em solo pagão aponta para o
rompimento dos muros de separação racial e religiosa existentes
entre judeus e gentios (Ef 2.11-22), significando, de forma
evidente, que o Evangelho universal de Cristo não pode estar
confinado a um só povo, cultura e sociedade. Isso quer dizer que
o Deus da Bíblia não é um Deus exclusivista, que desejou se
revelar a apenas uns poucos “iluminados” judeus. Antes, o Deus
da Bíblia é multi-racial, multi-cultural e multi-social. E o desejo
desse Deus que não tem preferências partidárias, que não possui
predileções raciais e que, portanto, não faz acepção de pessoas, é
que todos os povos da terra tenham a oportunidade de conhecer
o seu caminho e a sua salvação (SI 67.2).

Bem, já que chegamos ao final desse trabalho, espero que


a “legião” de perguntas e de expectativas que havia “dentro de
você” tenha sido “exorcizada”, de fato, e para bem longe!
Todavia, se alguns “demoniozinhos” ainda teimam em
permanecer, a culpa não deve ser atribuída ao geraseno e nem
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CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I

tampouco aos coitados dos porcos, mas unicamente a este


“exorcista”, o qual não foi tão hábil assim na prática de seu
“exorcismo”. Ou então, a própria “legião” deve ser
responsabilizada, pois, afinal de contas, ela é numerosa demais...

460
SA+ANÁS, D£m©NI®S E LEGIé

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