Você está na página 1de 8

A Perfeição da Expiação

por

John Murray

Nas polêmicas protestantes, este aspecto da obra expiatória de


Cristo tem sido orientado contra o conceito romanista, de que a
obra de satisfação realizada por Cristo não livra os fiéis da
necessidade de fazer satisfação pelos pecados que eles têm
praticado. Segundo a teologia romanista, todos os pecados do
passado, no que respeita ao seu castigo temporal e eterno, são
apagados no batismo, bem assim o castigo eterno dos pecados
futuros dos fiéis. Mas, a respeito do castigo temporal dos
pecados, depois do batismo, o fiel tem de fazer satisfação, ou
nesta vida ou no purgatório. Em oposição a toda e qualquer
noção de satisfação humana, os protestantes combatem
corretamente, afirmando que a satisfação de Cristo é a única
oferecida pelo pecado, e que esta é tão perfeita e final, que não
deixa nenhuma obrigação penal por qualquer pecado do crente.
É verdade que nesta vida os crentes são castigados por seus
pecados, e que tal castigo é corretivo e santificador – “produz
fruto pacífico aos que têm sido por ela [=disciplina] exercitados,
fruto de justiça” (Hb 12.11). E este castigo é doloroso. Contudo,
assemelhar este castigo com a satisfação pelo pecado é impingir
não só a perfeição da obra de Cristo, mas também
a natureza da satisfação de Cristo. “Agora, pois, já nenhuma
condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).
Não pode haver nenhum abrandamento na polêmica
protestante contra esta perversão do evangelho de Cristo. Se
permitirmos a entrada, mesmo que seja de uma noção mínima
de satisfação humana, em nossa formulação de justificação ou
santificação, então teremos poluído o rio cujas correntes
alegram a cidade de Deus. E a mais grave perversão que ela
impõe é que rouba do Redentor a glória da sua perfeita
realização. Ele mesmo fez a purificação dos nossos pecados e
assentou-se à direita da majestade nas alturas (Hb 1.3).
Contudo, a situação na qual nos achamos com referência ao
debate sobre o tema da expiação, requer de nós que
consideremos outros meios pelos quais a doutrina da perfeição
da expiação tem sido prejudicada, e é necessário que incluamos
neste título outras características da obra consumada de Cristo.
1. A objetividade histórica. Na expiação, algo foi realizado uma
vez por todas, sem qualquer participação ou contribuição de
nossa parte. Uma obra foi aperfeiçoada, a qual antecede a todo
e qualquer reconhecimento ou resposta por parte daqueles que
são os seus beneficiários. Qualquer redução deste fato no
interesse do que se supõe ser uma interpretação mais ética, ou
no interesse de interpretar a expiação segundo os termos dos
efeitos éticos que se calculam produzir em nós, é eviscerar a
verdade da expiação. A expiação é objetiva para nós, realizada
independentemente de nós, e os efeitos subjetivos que se
acumulam dela pressupõem a sua realização. Os efeitos
subjetivos exercidos sobre o nosso entendimento e vontade
podem seguir somente na medida em que reconhecermos, pela
fé, o significado do fato objetivo.

Há ainda outra implicação de sua objetividade histórica, que


precisa ser enfatizada. E o caráter estritamente histórico
daquilo que foi realizado. A expiação não é supra-histórica nem
contemporânea. É verdade que a pessoa que expiou em relação
ao pecado está acima da história quanto à sua divindade e
filiação eternas. Como tal, ele é eterno e transcende a todas as
condições e circunstâncias do tempo. Ele é, com o Pai e com o
Espírito, o Deus da história. É também verdade que, como o
Filho encarnado, exaltado à mão direita de Deus, ele é, num
sentido verdadeiro, contemporâneo. Ele vive para sempre e,
como o vivente que esteve morto, ele está vivo outra vez e é a
sempre-presente e a sempre-ativa incorporação da eficácia,
virtude e poder que emanam da expiação. Mas a expiação foi
efetuada na natureza humana e numa ocasião específica no
passado, foi consumada no calendário dos eventos. Poderia
alguma coisa apontar mais claramente para a verdade e a
significação dela, do que a palavra do apóstolo: “Vindo, porém,
a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a
lei”? (Gl 4.4,5). Independentemente da nossa interpretação de “a
plenitude do tempo” como a medida plena do tempo designado
por Deus, o período que tinha de seguir o curso antes que Deus
enviasse o seu Filho ou como o tempo que consume o tempo e
concede ao tempo a sua plena completação, devem os
reconhecer a significação de tempo para a missão que é
registrada em e designada pela encarnação do Filho de Deus. A
encarnação ocorreu num ponto específico marcado pela
chegada da plenitude do tempo; ela não ocorreu antes disso e,
embora a encarnação seja um estado permanente, ela
não ocorreu outra vez. A história, com os seus encontros
determinados e períodos bem definidos, tem profundo
significado no drama da realização divina. O condicionamento
histórico e a localização dos eventos no tempo não podem ser
erradicados nem a sua significação subestimada. E o que é
verdadeiro quanto ao evento da encarnação é também
verdadeiro quanto à redenção realizada. Ambas são localizadas
historicamente e nenhuma das duas é supra-histórica ou
contemporânea.

2. A fatalidade. Nas polêmicas históricas, esta característica da


expiação tem sido realçada em oposição à doutrina romanista
do sacrifício da missa. Esta polêmica contra a blasfêmia
romanista é tão necessária em nossos dias como o foi no
período da Reforma. A expiação é uma obra consumada, nunca
mais repetida; ela é irrepetível. Em nosso contexto moderno,
contudo, é necessário insistir neste princípio, não apenas em
oposição a Roma, mas também em oposição a um conceito
prevalecente dentro dos círculos protestantes. Este conceito diz
que o ato divino em levar o pecado não pode limitar-se ao
evento histórico do sacrifício de Jesus; antes, deve ser
considerado como eterno, assim como a obra da expiação,
encarnada na paixão de Jesus Cristo, é eterna nos céus, na
própria vida de Deus, “uma obra eterna de expiação, supra-
temporal à semelhança da vida de Deus... continuando
enquanto os pecados continuam a ser cometidos e existem
pecadores a ser reconciliados. [16]

De fato, é sumamente necessário reconhecer a atividade


contínua do sumo sacerdócio de Cristo no céu. É necessário
lembrar que ele incorpora eternamente em si mesmo a eficácia
que emanou deste sacrifício realizado aqui na terra, e que pela
virtude desta eficácia ele exerce o seu ministério celestial como
o grande Sumo Sacerdote de nossa confissão. É sobre este
princípio que ele intercede em favor de seu povo. E é em razão
desta compaixão, derivada de suas tentações terrenas, que ele
pode ser tocado de sentimento pelas nossas enfermidades. Esta
afirmação significa que a unidade do ofício sacerdotal de Cristo
e a sua atividade devem ser plenamente apreciadas. Mas o fato
de não devermos interromper a unidade de suas funções
sacerdotais não significa que temos a liberdade para confundir
as fases e ações distintas de seu ofício sacerdotal. Devemos
fazer distinção entre a oferta do sacrifício e a subseqüente
atividade do sumo sacerdote. O que o Novo Testamento enfatiza
é a unidade definitiva e histórica do sacrifício que expiou a
culpa e fez reconciliação com Deus (veja-se Hb 1.3; 9.12, 25-
28). Deixar de apreciar a finalidade desta definição leva à
incompreensão do verdadeiro sentido da expiação. Na
formulação bíblica, a expiação não pode ser concebida à parte
das condições sob as quais ela foi realizada. Pelo menos duas
condições são indispensáveis, a saber, humilhação e
obediência, e estas são condicionadas mutuamente uma pela
outra. Seria uma contradição ao teor de toda a Escritura,
transferir a expiação para uma esfera onde nos seria impossível
acreditarmos que estas condições existem.

Além do mais, se pensarmos na fórmula: “expiação eterna no


coração de Deus”, devemos, mais uma vez, fazer distinções. É
verdade que a expiação fluiu e foi a provisão do amor eterno do
coração de Deus. Contudo, conceber a expiação como eterna é
confundir o eterno com o temporal. O testemunho da Escritura
é inconfundível a respeito da significação que Deus dá à
realização temporal. Ela se refere à expiação e o faz de forma
definida e decisiva. A nossa definição de expiação deve-se
derivar da expiação revelada pela Escritura. E a expiação da
qual a Escritura fala é a obediência vicária, expiação,
propiciação, reconciliação e redenção efetuadas pelo Senhor da
glória quando ele, uma vez por todas, depois de ter feito a
purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas
alturas.

3. A unicidade. Horace Bushnell nos forneceu o que é,


provavelmente, a mais eloqüente exposição e defesa do conceito
de que o sacrifício de Cristo é a ilustração suprema e a
vindicação do princípio de auto-sacrifício, o qual opera no
coração de cada ser que é santo e amoroso, quando este é
confrontado com o mal e o pecado. “O amor é um princípio
essencialmente vicário em sua própria natureza, identificando o
sujeito com outros, a fim de sofrer as adversidades e as suas
dores e tomar sobre si mesmo o peso de seus males” [17] “Há um
Getsêmani oculto em todo amor” (ibid., pág. 47). “Quando
sustentamos o conceito de sacrifício vicário, descobrirmos que
ele pertence à natureza essencial de todas as virtudes santas.
Somos também constrangidos a prosseguir e mostrar como ele
pertence a todos os outros seres bons, tão verdadeiramente
como o próprio Cristo na carne - corno o Pai eterno antes de
Cristo, e a vinda posterior do Espírito Santo, e os anjos bons,
tanto antes como depois, todos igualmente carregaram os
problemas, lutaram nas dores de seus sentimentos vicários em
favor dos homens; e então, finalmente, como a cristandade
trouxe a lume, ao nascer dentro de nós o mesmo amor vicário
que reina em todos os seres bons e glorificados do reino
celestial; reunindo-nos de acordo com Cristo, o nosso Mestre,
tendo aprendido a carregar a sua cruz e a estar com ele em sua
paixão” (Ibid., pág. 53).

Distinguir a verdade do erro e elucidar as falsidades nestas


citações nos levaria para muito além dos nossos limites. É
verdade que o sacrifício de Cristo é a revelação suprema do
amor de Deus. É verdade que a vida, sofrimento e morte de
Cristo nos dão um exemplo supremo de virtude. É verdade que
as aflições da Igreja preenchem o que resta das aflições de
Cristo, e que através destas aflições dos crentes a obra
expiatória de Cristo cumpre o seu propósito. Mas afirmar que
temos parte naquilo que constituiu o sacrifício vicário de Cristo
é algo completamente diferente. É indefensável e perverso impor
sobre os termos vicário e sacrifício uma conotação diluída que
reduza o sacrifício vicário de Cristo a uma denominação que o
destitui do caráter único e distintivo que a ele é aplicado pela
Escritura. De fato, Cristo nos deu um exemplo a fim de
seguirmos os seus passos. Porém, nunca foi proposto que esta
emulação de nossa parte fosse acrescentada à obra de expiação,
propiciação, reconciliação e redenção, realizada por ele. Ao
definirmos a expiação segundo os termos da Escritura,
percebermos facilmente que ela foi feita exclusivamente por
Cristo.

E não apenas isto. Por qual autoridade ou por qual raciocínio


podemos inferir que o que é constitutivo de, ou é exemplificado
no sacrifício vicário de Cristo é aquilo que se aplica a todo amor
santo como ele contempla o mal e o pecado? É somente através
de uma confusão fatal de categorias que tais inferências podem
se tornar plausíveis. A representação bíblica é que o Filho
encarnado de Deus, e somente ele, à exclusão do Pai e do
Espírito na esfera do divino, à exclusão de anjos e homens na
ordem criada, deu-se a si mesmo em sacrifício para redimir-nos
para Deus por meio de seu sangue. Seja qual for o ângulo pelo
qual contemplemos este sacrifício, descobrimos que a sua
unicidade é tão inviolável como a unicidade de sua pessoa, de
sua missão e de seu ofício. Quem é o Deus-homem senão
unicamente ele? Quem derramou sangue tão vicário, senão
unicamente ele? Quem é o grande sumo sacerdote para oferecer
tal sacrifício, senão unicamente ele? Quem entrou uma vez por
todas no Santo dos Santos, tendo obtido a redenção eterna,
senão unicamente ele? Podemos citar com proveito as palavras
de Hugh Martin. Elas são extraídas de sua magistral polêmica
contra a posição teológica de F. W. Robertson de que o “
sacrifício vicário é a lei da vida”. Com referência a esta posição,
Martin diz: “Um pronunciamento de um soberbo oráculo! Não é
necessário dizer que refutamos com uma negação direta. O
sacrifício vicário não somente não é a lei da vida, ele não
é lei alguma. Ele é uma transação divina, incomparável e
solitária - nunca se repetirá, jamais será equiparado e jamais
será assemelhado. Foi o expediente da divina sabedoria,
esplêndido e inesperado, que, em sua manifestação, as mentes
dos anjos se inundaram do conhecimento de Deus! Foi o livre
conselho do beneplácito da vontade de Deus. Foi a soberana
determinação de sua graça e amor. Somos destituídos do
soberano amor de Deus ante a noção de que o sacrifício vicário
é a “lei da vida”. [18]

4. A eficácia intrínseca. Nas polêmicas da teologia histórica,


este aspecto da expiação tem sido realçado a fim de combater a
doutrina remonstrante que ensina que Cristo fez algo que Deus
graciosamente aceita no lugar da plena satisfação da justiça. A
declaração da Confissão de Fé de Westminster é
admiravelmente formulada em distinção à posição
remonstrante. “O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e
pelo sacrifício de si mesmo, sacrifício que, pelo Eterno Espírito,
ele ofereceu a Deus uma só vez, satisfez plenamente à justiça
do Pai, e; para todos aqueles que o Pai lhe deu, adquiriu não só
a reconciliação, como também urna herança perdurável no
reino dos céus” (VIII, V).

É preciso ter em mente e formular corretamente a relação entre


a graça de Deus e a obra expiatória de Cristo. Foi pela graça de
Deus que Cristo foi dado por nós. Foi por sua própria graça que
ele deu-se a si mesmo. Seria inteiramente errôneo imaginar que
a obra de Cristo pudesse induzir o Pai a sentir-se constrangido
a ser bondoso e gracioso. “Mas Deus, sendo rico em
misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente
com Cristo” (Ef 2.4,5; cf. 1 Jo 4.9). A expiação é a provisão do
amor e graça do Pai. Há, todavia, igual necessidade de lembrar
que a obra realizada por Cristo foi em si mesma
intrinsecamente adequada para satisfazer todas as
necessidades criadas pelos nossos pecados e todas as
exigências da santidade e justiça de Deus. Cristo pagou a dívida
do pecado. Ele levou os nossos pecados e os purificou. Ele não
fez um pagamento simbólico que Deus aceitasse como se fosse
tudo. As nossas dívidas não foram canceladas; elas foram
liquida das . Cristo adquiriu a redenção, e, portanto, a garantiu.
Ele tomou sobre si e absorveu a medida total do juízo e
condenação divinos contra o pecado. Ele operou a justiça que é
a única base da completa justificação e o título para a vida
eterna. Assim, a graça reina através da justiça para a vida
eterna por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Rm
5.19,21). Ele expiou a culpa e “com uma única oferta
aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados” (Hb
10.14). “E, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor (=a
causa) da salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb
5.9). Em uma palavra, Jesus cumpriu todas as exigências
oriundas do nosso pecado e adquiriu todos os benefícios que
conduzem à liberdade e são consumados na liberdade da glória
dos filhos de Deus.

NOTAS:

[16] - V. D. M. Baillie: op. cit., pág. 194, n. I. [voltar]

[17] - V. The Vicarious Sacrifice (New York, 1891, pág. 42). [voltar]

[18] - Op. cit., págs. 241 etc. [voltar]

Fonte: Redenção Consumada e Aplicada, John Murray, Editora


Cultura Cristã.

http ://www.monergismo.com/

Este site da web é uma realização de


Felipe Sabino de Araújo Neto®
Proclamando o Evangelho Genuíno de CRISTO JESUS, que é o poder de DEUS para salvação de todo
aquele que crê.

TOPO DA PÁGINA

Estamos às ordens para comentários e sugestões.

Livros Recomendados

Recomendamos os sites abaixo:

Academia Calvínia/Arquivo Spurgeon/ Arthur Pink / IPCB / Solano Portela /Textos da reforma / Thirdmill


Editora Cultura Cristã /Editora Fiel / Editora Os Puritanos / Editora PES / Editora Vida Nova

Você também pode gostar