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SÃO T OMÁS DE A QUINO ,
C AUSALIDADE DIVINA e O mistério DA
PREDESTINAÇÃO
Steven A. Long
Introdução
A questão da predestinação envolve questões do ensinamento
autorizado da Igreja que inescapavelmente implicam questões de
interpretação das escrituras, do conteúdo da tradição e do ensinamento de
São Tomás de Aquino, cuja autoridade é - como Ramirez demonstra para
o período pré-conciliar1 e como Jörgen Vijgens demonstra com relação ao
magistério pós-conciliar2 - não apenas a autoridade de mais um dos pais,
mas a de um "professor autorizado". Além disso, como São Tomás
argumenta na Summa Theologiae (ST) I, q. 1, a. 7, ad 1, porque o teólogo
por meio da sacra doctrina não desfruta de um conhecimento quidditativo
de Deus, o conhecimento dos efeitos de Deus na natureza e na graça deve
"substituir" a falta desse conhecimento na contemplação adquirida pelo
teólogo.
1. Santiago Ramirez, OP, "The Authority of St. Thomas Aquinas", The Thomist 15 (1952):
1-109.
2. Jorgen Vijgen, "The Contemporary Authority of St. Thomas Aquinas: A Reply to Otto-
Herman Pesch", Divinitas 49 (2006): 3-26.
Não estou procurando remover o mistério, mas sim esclarecer como esse
ensinamento não implica, de forma alguma, em uma negação da inocência
ou bondade divina.
7. ST I, q. 22, a. 2, resp: "Causalitas autem Dei, qui est primum agens, se extendit usque ad
omnia entia, non solum quantum ad principia speciei, sed etiam quantum ad individual- ia
principia, non solum incorruptibilium, sed etiam corruptibilium. Unde necesse est omnia
quae habent quocumque modo esse, ordinata esse a Deo in finem, secundum illud apostoli,
ad Rom. XIII, quae a Deo sunt, ordinata sunt."
8. Cf. Summa contra gentiles III, c a p . 67: "Sed omnis applicatio virtutis ad operationem
est principaliter et primo a Deo." "Mas toda aplicação de poder à operação é principalmente e
primeiramente de Deus."
9. ST I-II, q. 9, a. 4, resp: "Omne enim quod quandoque est agens in actu et quandoque in
Em ST I-II, q. 1o9, a. 1, resp., São Tomás afirma: "E, portanto, por mais
perfeita que seja uma coisa corpórea ou espiritual, ela não é capaz de
prosseguir em seu ato a menos que seja primeiramente movida por Deus."
Tanto o agente racional que não escolhe quanto o agente racional que
escolhe desfrutam do movimento natural da vontade - de acordo com
Aquino, concedido por Deus - pelo qual a vontade é objetivamente
ordenada ao bem universal e deseja a felicidade. Mas nenhum agente de
qualquer dignidade pode sequer proceder ao seu ato a menos que primeiro
seja movido por Deus. A criatura que está em potência com relação ao seu
próprio movimento livre deve ser movida da potência para agir com
relação a esse movimento próprio.
Em De malo, q. 3, a. 2 e 4, Tomás articula claramente a tese de um
movimento divino real, ontologicamente anterior, por meio do qual a
criatura racional é movida livremente para determinar a si mesma-isto é,
pré-moção física: "Quando alguma coisa se move por si mesma, isso não
exclui que ela seja movida por outra, da qual ela tem até mesmo isso
[minha ênfase] que se move por si mesma. Assim, não é repugnante à
liberdade o fato de Deus ser a causa do ato livre da vontade." De acordo
com esse ensinamento expresso, Deus é a causa da automovimentação da
vontade, movendo-a para sua própria automovimentação. Isso é
precisamente o que é designado pela frase "premoção física". Além disso,
não temos mais justificativa para sustentar que esse movimento ocorre
apenas por meio da causalidade final do que temos para supor que a prova
de Deus como o Primeiro Motor na ST I, q. 2, a. 3, refere-se apenas a Deus
como causa final, como se a primeira e a quinta maneiras fossem idênticas.
Como Tomás deixa claro em ST I, q. 83, a. 1, ad 3, assim como uma coisa
pode
causa outra coisa sem ser a primeira causa dessa coisa, assim a criatura
racional pode causar seus próprios atos livres, e mover-se a si mesma, sem
ser a Primeira Causa e o Primeiro Motor de seus atos livres.¹² Thomas
também insiste
1o. ST I-II, q. 1o9, a. 1, resp: "Et ideo quantumcumque natura aliqua corporalis vel spiri-
tualis ponatur perfecta, non potest in suum actum procedere nisi moveatur a Deo."
11. De malo, q. 3, art. 2, ad 4: "Similiter cum aliquid movet se ipsum, non excluditur quin
ab alio moveatur a quo habet hoc ipsum quo se ipsum movet. Et sic non repugnat libertati
quod Deus est causa actus liberi arbitrii.”
12. ST I, q. 83, a. 1, ad 3: "Dicendum quod liberum arbitrium est causa sui motus; quia
homo per liberum arbitrium seipsum movet ad agendum. Non tamen hoc est de necessitate
libertatis, quod sit prima causa sui id quod liberum est; sicut nec ad hoc quod aliquid sit causa
alterius, requiritur quod sit prima causa eius. Deus igitur est prima causa movens et naturales
causas et voluntarias. Et sicut naturalibus causis, movendo eas, non aufert quin actus earum
sint naturales; ita movendo causas voluntarias, non aufert quin actiones earum sint
em ST I-II, q. 9, a. 4, ad 2, que para que um ato seja violento ele deve ser
não apenas extrínseco, mas também contrário ao movimento da vontade,
enquanto que o movimento divino concedido à vontade pelo qual ela é
movida livremente para se determinar não pode ser contra o movimento
da vontade porque é "a vontade que quer, embora movida por outra" e a
vontade não pode "querer e não querer a mesma coisa". ¹S
Tomás afirma em ST I-II, q. 6, a. 1, ad 3, que "todo movimento, seja da
vontade ou da natureza, procede de Deus como o primeiro motor". Ele
também argumentará na Summa contra Gentiles (ScG III, cap. 67) que
Deus é "a primeira e principal causa da aplicação de todo poder para agir"
e que Deus não é apenas o primeiro objeto do apetite, mas também o
primeiro agente da vontade, e até mesmo que "todo movimento de uma
vontade pelo qual os poderes são aplicados à operação é reduzido a Deus
como primeiro objeto do apetite e primeiro agente da vontade". Essa
última proposição deixa claro que a graça cooperativa reside
proprietatem". "O livre-arbítrio é a causa de seu próprio movimento, porque por seu livre-
arbítrio o homem se move para agir. Mas não pertence necessariamente à liberdade que o que
é livre s e j a a primeira causa de si mesmo, pois nem para uma coisa ser causa de outra
precisa ser a primeira causa. Deus, portanto, é a primeira causa, que move as causas tanto
naturais quanto voluntárias. E a s s i m como, ao mover as causas naturais, Ele não impede
que seus atos sejam naturais, da mesma forma, ao mover as causas voluntárias, Ele não priva
suas ações de serem voluntárias: mas, ao contrário, Ele é a causa dessa mesma coisa nelas;
pois Ele opera em cada coisa de acordo com sua própria natureza."
13. ST I-II, q. 9, a. 4, ad 2: "Ad secundum dicendum quod hoc non sufficit ad rationem
violenti, quod principium sit extra, sed oportet addere quod nil conferat vim patiens. Quod
non contingit, dum voluntas ab exteriori movetur, nam ipsa est quae vult, ab alio tamen
mota. Esset autem motus iste violentus, si esset contrarius motui voluntatis. Quod in prop-
osito esse non potest, quia sic idem vellet et non vellet." "Para a segunda, deve-se dizer que
não é suficiente para a natureza da violência que o princípio seja extrínseco, mas a isso deve
ser acrescentado que seja sem a concordância do paciente. O que não acontece quando a
vontade é movida por um princípio exterior, pois é a vontade que quer, embora movida por
outro. Mas esse movimento seria violento, se fosse contra o movimento da vontade. O que,
no caso proposto, não é possível, porque assim a vontade desejaria e não desejaria a mesma
coisa."
14. ST I-II, q. 6, a. 1, ad 3: "omnis motus tam voluntatis quam naturae, ab eo procedit sicut
a primo movente."
15. ScG III, cap. 67: "Quicquid applicat virtutem activam ad agendum, dicitur esse causa
illius actionis: artifex enim applicans virtutem rei naturalis ad aliquam actionem, dicitur esse
causa illius actionis, sicut coquus decoctionis, quae est per ignem. Sed omnis applicatio
virtutis ad operationem est principaliter et primo a Deo. Applicantur enim virtutes opera-
tivae ad proprias operationes per aliquem motum vel corporis, vel animae. Primum autem
principium utriusque motus est Deus. Est enim primum movens omnino immobile, ut su-
pra ostensum est. Similiter etiam omnis motus voluntatis quo applicantur aliquae virtutes ad
operandum, reducitur in Deum sicut in primum appetibile et in primum volentem. Om- nis
igitur operatio debet attribui Deo sicut primo et principali agenti." "Qualquer que seja o
agente que aplique poder ativo para fazer algo, diz-se que ele é a causa dessa ação. Assim,
Simplicidade Divina
A doutrina da simplicidade divina entra nessa consideração. Em
ST I, q. 28, a. 2, ad 1, por exemplo, Thomas argumenta que
nada do que existe em Deus pode ter qualquer relação com aquilo em que
existe ou de quem se fala, exceto a relação de identidade; e isso em razão da
suprema simplicidade de Deus.¹8
Não há e não pode haver mudança, nem dependência da criatura, em
Deus, na medida em que Deus é Ato Puro. A imutabilidade de Deus não é
apenas uma necessidade metafísica, mas também é revelada, afirmada em
toda a Sagrada Escritura e na Sagrada Tradição, um ensinamento de fide
da Igreja. O fato de ser um ensinamento de fide é evidente na conclusão do
credo do primeiro concílio geral, Nicéia, em 325, o credo original em vez
do mais familiar Credo Niceno-Constantinopolitano, onde, falando do
Filho Eterno, onde, falando do Filho Eterno, é afirmado que "No entanto,
aqueles que dizem 'era uma vez quando ele não era' e 'antes de nascer ele
não era' e Ele foi feito do nada", ou que dizem que Deus [o Filho de Deus]
pode ser de outra posição ou essência ou pode estar sujeito a mudanças e
alterações, a Igreja Católica anatematiza." ¹ª
Metafisicamente, a única diferença entre Deus causando X e Deus
não causando X, não é uma mudança em Deus, mas sim o ser da criatura.
Essa é uma simples função da verdade de que a perfeição divina não é
limitada por n e n h u m a potência; ela é Ato Puro. Qualquer grau e tipo
de realidade que Deus cause existirá. Assim, se falarmos da graça criada -
em vez da Graça Incriada que é o próprio Deus - a concessão da graça é
necessariamente sempre eficaz em pelo menos algum aspecto. Assim, a
concessão da graça requer algum efeito determinado, porque o contrário
equivale à supressão da graça como tal. N ã o há como distinguir um
suposto "efeito" que é absolutamente e em todos os aspectos
indeterminado, da ausência absoluta de qualquer efeito. Afirmar que Deus
concede a graça não pode ser equivalente a afirmar que
18. "Nihil autem quod est in Deo, potest habere habitudinem ad id in quo est, vel de quo
dicitur, nisi habitudinem identitatis, propter summam Dei simplicitatem."
19. Peter Hunermann, ed., Denzinger, 43rd ed. (San Francisco: Ignatius Press, 2o12), 51,
no. 126. "Eos autem, qui dicunt "Erat, quando non erat"; "Antequam nascereteur non erat";
"Quod de non exstantibus factus est"; "vel ex aliasubstantia aut essentia dicentes aut con-
vertibilem aut demutabilem Deum [Filium Dei], hos anathematizat catholica Ecclesia."
Deus não faz nada. Assim, porque a única significação de Deus dando
graça à criatura é um efeito real, determinado e efetivo na criatura, toda
graça é necessariamente eficaz com relação a algum efeito determinado e
efetivo, mesmo que possa significar apenas uma capacidade remota ou
graça "suficiente" com relação a alguma outra coisa com a qual esteja
relacionada. Outra maneira de dizer isso é observar que, absolutamente
falando, nada pode ter uma relação real com algo. Portanto, se dissermos
que alguma graça estabelece uma capacidade ou uma ordem remota para
outro bem, para que isso seja verdade, já deve haver algo realmente
determinado que possa ser relacionado dessa maneira. Por exemplo, o
atrito ou a tristeza imperfeita pelo pecado podem ser ordenados para a
contrição perfeita.
Como Tomás sustenta em seu tratamento na ST I, q. 22, a. 1, Deus
como causa universal não pode ser impedido por nenhuma causa finita,
porque todas as causas finitas só podem ser, e só podem operar, dentro da
causalidade universal de Deus. Essa é a diferença entre a causalidade de
Deus e a causalidade de qualquer criação. Tomás ensina na ST I, q. 22, a. 2,
ad 1, que uma causa particular pode ser impedida, mas nada pode impedir
a causalidade universal de Deus. Essa visão não é equivalente à proposição
- como Michael Torre supõe em seu livro defendendo Marín-Sola, Do Not
Resist the Spirit's Call²º - de que o fim de um ato deve, em todos os casos,
ser alcançado se o ato for causado por Deus, porque Deus pode permitir -
ou talvez até mesmo ordenar - um grau de determinada realidade que fica
aquém de um possível efeito ao qual a realidade em questão ainda está, de
alguma forma, potencialmente relacionada. Em vez disso, a questão é pré-
2o. Michael Torre, Do Not Resist the Spirit's Call: Francisco Marín-Sola on Sufficient Grace
(Washington, DC: Catholic University of America Press, 2o13), 253. Seus e x e m p l o s -
por exemplo, que o papel molhado não pode queimar - realmente não fazem sentido em
relação à simples vontade divina, que não pode ser impedida. O problema - nunca
adequadamente reconhecido por Marín-Sola, nem por Torre, nem por muitos outros até os
dias de hoje - é que, em relação à simples vontade divina, qualquer que seja o objeto dessa
vontade, infalivelmente será. O fato de esse objeto poder ser imitado em si mesmo é
irrelevante, porque, em relação à vontade divina simples, ele se torna hipoteticamente
necessário. O que é possível com relação a um movimento em si mesmo não é o mesmo que é
possível para ele em relação à simples vontade divina. O efeito simplesmente desejado por
Deus - seja um empurrão ou um ato completo - deve ser infalível. O objeto assim
simplesmente desejado não deixa de ser hipoteticamente necessário porque, em si mesmo,
poderia ser diferente. Deixar de entender isso é ficar aquém de todo o ensinamento de
Tomás sobre esse assunto, pois isso está implícito em toda parte. Uma causa particular pode
ser impedida, mas a causalidade universal de Deus não pode ser impedida - a ordem de uma
causa particular pode ser escapada, mas não a ordem da causa universal (ST I, q. 22, a. 2, ad
1). Além disso, se tomarmos a proposição de que "todo fim da providência é alcançado" para
se referir à simples vontade divina, à providência simpliciter, então é Cajetan que está correto,
21. De veritate, q. 6, art. 3: "Liberum enim arbitrium deficere potest a salute; tamen in eo
quem Deus praedestinat, tot alia adminicula praeparat, quod vel non cadat, vel si cadit, quod
resurgat, sicut exhortationes, suffragia orationum, gratiae donum, et omnia huiusmo- di,
quibus Deus adminiculatur homini ad salutem. Si ergo consideremus salutem respectu causae
proximae, scilicet liberi arbitrii, non habet certitudinem, sed contingentiam; respec- tu autem
causae primae, quae est praedestinatio, certitudinem habet."
22. ST I-II, q. 1o, a. 4, ad 3.
23. Ver Jacques Maritain, Existence and the Existent, tr a n s. Lewis Galantiere e Gerald
B. Phelan (Nova York: Pantheon Books, 1948), especialmente o cap. 4, "The Free Existent and
the Free Eternal Purposes," 85-122, e mais particularmente 94, 1oon1o. Veja também idem,
St. Thomas and the Problem of Evil (Milwaukee, WI: Marquette University Press, 1942), 26-
3o, 33, 34, 36-38.
24. Torre, Do Not Resist, 253n1o8, argumenta em resposta à minha crítica a Maritain que
Maritain modificou seu relato (aparentemente implicando que a crítica é inadequada). Mas
Ma- ritain não modificou substancialmente seu argumento de forma a liberar sua análise da
presente crítica. A negação da negação é, em um sujeito real, algo positivo. Dizer que se a
criatura não negar ou destruir uma graça, que então Deus dará uma graça inabalável, é
confundir uma nomeação conceitualmente diversa com uma diversidade real de referência.
Se eu não tiver um nariz, essa é apenas uma formulação conceitualmente diferente da
representada pelo af-
A perfeição operativa da criatura não pode ser alcançada sem a atuação adicional da criatura
por Deus precisamente na graça. Todo quantum de perfeição operativa adicional com
respeito à ordem da graça requer seu princípio na graça, que deve ser concedida por Deus.
Assim, o agente precisa necessariamente de ajuda adicional de Deus com relação à perfeição
adicional na ordem da graça, e o agente não pode transubstanciar uma graça em outra porque
os atos são especificados por seus objetos e fins. Assim, a graça do remorso não é
simplesmente, por si só, a graça da contrição, ou de se aproximar d o sacramento da
penitência.
26. Torre, Do Not Resist, 27-28.
27. De veritate, q. 6, a. 3, ad 7: "Ad septimum dicendum, quod aliquid potest dici pos- se
dupliciter. Uno modo considerando potentiam quae in ipso est, sicut dicitur quod lapis potest
moveri deorsum. Alio modo considerando id quod ex parte alterius est, sicut si dicer- em,
quod lapis potest moveri sursum, non per potentiam quae in ipso sit, sed per potentiam
proiicientis.
Cum ergo dicitur: praedestinatus iste potest in peccato mori; si consideretur potentia
i p s i u s , verum est; si autem loquamur de praedestinato secundum ordinem quem habet ad
aliud, scilicet ad Deum praedestinantem, sic ordo ille non compatitur secum istum even-
tum, quamvis compatiatur secum istam potentiam. Et ideo potest distingui secundum dis-
tinctionem prius inductam, scilicet cum forma, vel sine forma consideratio subiecti."
resistir. Pelo fato de cada graça ser eficaz para alguma coisa (pois, caso
contrário, seria um nada indeterminado em vez de uma graça), a distinção
entre os sentidos dividido e composto é manifestamente de aplicação
frequente e de importância central na compreensão da relação entre o
livre-arbítrio e a graça.²ª
O terceiro relato revisionista é o de Bernard Lonergan, SJ. Como
Mairitain, Lonergan está em um discurso seráfico com toda a tradição
tomista. É impressionante ver suas respostas a João de Santo Tomás,
Báñez, Del Prado, Garrigou-Lagrange e outros. Em sua famosa obra Grace
and Freedom: Operative Grace in the Thought of St. Thomas Aquinas, no
entanto, ele faz afirmações que, em minha opinião, não sobrevivem a um
encontro suficiente com o texto de São Tomás. A mais central delas é a
afirmação surpreendente de que, de acordo com São Tomás de Aquino, o
movimento na criatura de
29. Marín-Sola fala da vontade antecedente como precisando ser uma "vontade real e
sincera de benefício". Torre, Do Not Resist, 99. Torre defende ardente e eloquentemente sua
posição, de forma um tanto clara demais, implicando que Deus deve "dar uma olhada" para
determinar o que Deus deve fazer. Cf. 27on18: "Há pouca, ou nenhuma, diferença entre uma
simples vontade e uma intenção condicionada. Em ambas, queremos um bem e estamos
inclinados a obtê-lo, mas apenas sob a condição de que não descubramos nada de não
desejável nele." Claramente, no entanto, Deus não "descobre", e o que q u e r q u e seja
positivo na criatura existe porque Deus o causou: a simplicidade divina, juntamente com sua
implicação necessária de que o efeito divino seja determinado, continuamente escapa à
análise de Marín-Sola e Torre. Tomás inequivocamente e claramente ensina que a vontade
antecedente divina é chamada de "antecedente" porque é uma vontade daquilo que é
antecedente a outra coisa (cf. ST, I, q. 19, a. 6, ad 1) porque não há antes e depois em Deus.
Torre também cita A. Michel, OP, em defesa da noção de que a vontade antecedente é uma
"verdadeira" vontade de beneplacitum em Deus (326n43). No entanto, essa citação deixa claro
que Michel considera a vontade antecedente como sendo diferente de uma velleidade apenas
"em seu gênero", ou seja, com relação àquilo que é um antecedente com relação a outra coisa,
e não com relação ao bem posterior, para o qual o antecedente é um antecedente. Ninguém
jamais negou que, com relação à vontade do antecedente, essa era uma vontade "verdadeira" e
"genuína" em Deus, no sentido de que esse bem antecedente está enraizado na causalidade
divina. Mas isso não significa que a "vontade antecedente de salvação" é a vontade de salvação
simpliciter, ou que por si só é eficaz para isso, nem ainda que uma premoção "falível" (que
putativamente pode ser ou não ser em algum aspecto) pode, nesse aspecto, ser denominada
uma "graça". A vontade antecedente é real no sentido de que produz efeitos preparatórios
para outras coisas, mas é meramente uma disposição e não uma simples disposição para essas
outras coisas. Em tudo isso, Torre representa o pensamento de Marín-Sola, embora, às vezes,
reconheça o que é óbvio, que a vontade antecedente é, em certo sentido, uma vontade
secundum quid (269). Pelo menos isso é verdade com relação ao bem maior, com relação ao
qual o antecedente desejado por Deus é um antecedente. O ensinamento de Tomás na
Summa Theologiae a respeito da vontade antecedente é amplamente ignorado (pois Torre
insiste que a vontade antecedente não é uma velleidade ou uma disposição, mas a vontade
antecedente é a vontade de algo que é um antecedente, como Tomás inequivocamente ensina
na ST I, q. 19, a. 6, ad 1, e esse é o aspecto em que é uma vontade simples, i.e., meramente "em
seu gênero", mas não com respeito ao bem posterior).
3o. Cf. Bernard Lonergan, SJ, Grace and Freedom (Nova York: Herder and Herder, 1971),
65-66.
O que exige a "premoção" divina é que o sujeito finito do arbítrio não está
simplesmente em ação por si mesmo e, portanto, precisa ser movido para
agir. A criatura não é seu próprio ser, natureza ou operação e, portanto,
não é acidental que ela deva ser movida por Deus da potência para agir
com relação à sua própria agência: por exemplo, ao querer, o homem deve
ser movido por Deus da potência para agir com relação à sua própria
autodeterminação na liberdade.
A análise de Lonergan, portanto, reduz o ensinamento de Tomás a uma
mera tautologia sobre a agência. É claro que a operação não envolve
nenhuma mudança na causa como causa, porque o agente qua agente está
em ato; mas como é que a c r i a ç ã o que não é seu próprio ato vem a
ser em ato? Essa pergunta Lonergan não faz, porque ele não considerou
que a agência qua agência deve pertencer a criaturas que não são sua
própria agência. Lonergan considera que "Pedro agindo" é realmente
diferente de "Pedro não agindo". Mas isso é um simples erro. É verdade
que a causalidade não envolve nenhuma mudança real na causa como
causa, mas isso não significa que nenhuma mudança na criatura como
criatura seja necessária para que a criatura alcance a dignidade do arbítrio.
O arbítrio envolve e exige uma mudança real na criatura em relação ao
fato de ela ser uma causa, pois a coisa criada não é simples e puramente
uma causa por sua própria essência ou ser, não é idêntica à sua operação,
mas realmente distinta d e l a , e deve ser movida da potência
é claro que esse significado é pretendido na passagem). Mas no caso do desejo natural da
vontade pela felicidade, esse movimento natural da vontade deve ser aplicado a objetos de
escolha para os quais a vontade está em potência, e para os quais ela só estará em ação, não
meramente por c a u s a da proximidade física ou da criação de um paciente, mas porque ela
é movida por Deus da potência para a ação com respeito à sua autodeterminação em
liberdade pela divina applicatio do movimento natural em direção à felicidade para esse ato
contingente e objeto de escolha. Além disso, a obtenção da proximidade física por meio do
movimento é em si uma atuação, embora claramente de um tipo inferior. Em todo caso, é um
erro enorme supor que, pelo fato de ser acidental para a agência qua agência que haja
movimento da potência para o ato, que, portanto, qualquer ser criado pode ser um agente
sem ser movido da potência para o ato com relação à agência, precisamente porque nenhuma
criatura é seu próprio ser, natureza ou operação. Assim, por exemplo, mesmo a coisa que se
torna uma tocha deve ser acesa para ser uma tocha; uma vez acesa, ela deve ser aplicada em
movimento real (um movimento que, no caso do intelecto ou da vontade, claramente não é
meramente uma questão de proximidade f í s i c a ou criação de um paciente). Nenhuma
criatura é seu próprio ser, natureza ou operação e, portanto, toda criatura deve ser elevada à
dignidade de agência por meio da causalidade divina e, se a criatura tiver um poder ativo, ele
deve, para alcançar seu efeito, ser aplicado por Deus, que é a causa primeira e principal da
aplicação de todo poder de agir. Alguns movimentos podem ser inferiores, envolvendo mera
proximidade física. Esse não é absoluta e claramente o caso do intelecto e da vontade. Não se
deseja algo como um fim nem - para uma ilustração mais apropriada - se escolhe algo
livremente, meramente por causa de sua proximidade física ou porque Deus o criou. Se isso
fosse verdade, a pessoa teria consentido em jantar em muito mais restaurantes ruins do que
talvez tenha escolhido.
para agir com relação a ela. Pode-se pensar que a afirmação de Lonergan
de que "Pedro agindo" não é realmente diferente de "Pedro não agindo"
tem como objetivo apenas distinguir substância de acidente. Então, o
significado seria: a substância de Pedro não é alterada pelo acidente da
ação de Pedro. No entanto, (1) isso não é o que a proposição como está de
fato afirma; (2) se isso é o que Lonergan quis dizer, isso não resolve o
problema, que é o fato de Lonergan não explicar como a coisa que não é
seu próprio arbítrio é movida para alcançar a dignidade do arbítrio.
Embora a insistência de que a operação não envolve nenhuma mudança na
causa como causa seja verdadeira, é uma tautologia que não aborda a
necessidade ontológica de os seres criados serem elevados pelo movimento
divino - movidos da potência para o ato - a fim de alcançar a dignidade do
arbítrio.
Lonergan comenta que, para o movimento de derretimento, um
Se pressupormos o calor do sol, isso é verdade, mas o calor do sol
pressupõe inúmeras explosões gasosas e outros movimentos reais, sem os
quais ele não seria um agente de aquecimento - ele deve ser movido da
potência para agir com relação àquilo em virtude do qual ele é um agente
de aquecimento. É notável que uma proposição abstrata sobre a agência
como agência possa desviar uma mente de penetração tão notável do que é
absolutamente necessário para a agência criada como tal (e devido a uma
premissa absolutamente essencial para Aquino: a distinção real da
existência da essência e a distinção real do ato da potência). Mover uma
coisa que está em simples potência com relação ao seu ato para a
proximidade de outra (a menos que essa outra coisa a mova a agir), ou
criar essa outra em proximidade a ela, é insuficiente para gerar ação. A
criatura deve ser movida da potência para a ação com relação à sua própria
agência, e somente se isso o c o r r e r ela poderá ser um agente. Com
relação ao arbítrio humano: assim como somente Deus pode mover a
vontade racional, transmitindo a ela seu movimento natural em direção à
felicidade, da mesma forma, somente Deus pode mover a criatura racional
da potência para a ação com relação à aplicação desse movimento natural
no ato da escolha. Deus move a criatura da potência para a ação com
relação à sua própria autodeterminação na liberdade.
Portanto, é o movimento da potência para agir com relação à ação
que requer uma pré-movimentação, e não apenas o arranjo providencial
35. Pode-se ver como a consideração de atos angelicais de conhecimento pode ter
inclinado Lonergan a esse relato. Ele poderia ter pensado na infusão divina de espécies como
meramente fornecendo o paciente para a agência cognitiva angelical. No entanto, está claro
que, para Tomás, o próprio ato da cognição angélica ocorre porque o poder intelectivo
angélico é acionado pelas espécies divinamente infundidas. Ou seja, mesmo os anjos não são
sua própria operação, e são ativados por Deus, movidos da potência para o ato, como
condição para sua cognição. No c a s o angélico, a infusão divina de espécies tanto ativa o
i n t e l e c t o angélico quanto especifica o ato intelectivo (de modo que, de alguma forma,
ela pode, nesse aspecto, ser considerada analogicamente como um "paciente" para a agência
intelectiva angélica). Mas aquilo por meio do qual Deus aciona o intelecto angélico é também
aquilo que especifica o ato resultante. Se considerarmos apenas o último e não o primeiro,
parece que teríamos a visão de Lonergan da premoção e da applicatio. Mas mesmo no difícil
caso dos anjos, isso é insuficiente, porque não há agência cognitiva angélica, exceto por causa
da infusão da espécie, que atua o intelecto angélico, que não está em ato, exceto na medida
em que é atuado, como é o caso de todo poder criado. Por isso, Tomás ensina claramente que
Deus é a causa primeira e principal da aplicação de toda potência ao ato (ScG III, cap. 67):
"Sed omnis applicatio virtutis ad operationem est principaliter et primo a Deo.").
36. ST I-II, q. 1o9, a. 1, resp: "Et ideo quantumcumque natura aliqua corporalis vel spiri-
tualis ponatur perfecta, non potest in suum actum procedere nisi moveatur a Deo."
37. É claro que, no nível mais baixo de applicatio, pode-se dizer que se a carne é movida
para a chama, ou a chama para a carne, o fogo foi "aplicado" à carne. Mas onde o que está em
jogo é a aplicação do movimento natural da vontade à escolha, isso requer que a criatura
racional seja movida por Deus da potência para agir com relação ao seu próprio movimento
próprio na escolha, sua própria aplicação posterior do movimento natural da vontade a esse
objeto específico. Essa não é uma questão de mera proximidade - alguém pode estar próximo
de um objeto de escolha e nunca escolhê-lo - é uma redução da vontade da potência para agir
com r e l a ç ã o a o seu próprio movimento e autodeterminação. A criatura racional nem
sempre está escolhendo de fato, e, portanto, está em potência para sua própria
autodeterminação e automovimento, e deve ser movida por Deus da potência para agir com
respeito à sua própria autodeterminação, porque (ST I-II, q. 9, art. 4): "tudo o que está em um
momento em potência e em outro em ato, precisa ser movido por um motor". E (De malo, q.
3, a. 2 ad 4): "Quando algo se move por si mesmo, isso não exclui que seja movido por outro,
do qual tem até mesmo isso que move a si mesmo. Assim, não é repugnante à liberdade que
Deus seja a causa do ato livre da vontade."
Predestinação e reprovação
Uma palavra final, então, com relação à predestinação e à reprovação.
São Thomé ensina expressamente que a eleição e a reprovação são
anteriores à previsão do mérito (o mérito é um efeito da predestinação),
que a predestinação é gratuita e, portanto, Deus é livre para concedê-la a
quem quiser, e que a predestinação é a causa da graça e dos atos livres, em
vez de um efeito destes.Sª Suas palavras sobre a reprovação são claras:
Deus ama todos os homens e todas as criaturas, na medida em que deseja
algum bem para todos eles; mas não deseja todo bem para todos eles. Portanto,
na medida em que não deseja esse bem específico - a saber, a vida eterna -, diz-
se que Ele os odeia ou reprova.ªº
Essa é simplesmente a implicação do princípio de predileção que
Tomás afirma em ST I, q. 2o, a. 3, resp: "Pois como Deus é a causa da
bondade das coisas, nenhuma coisa seria melhor do que outra, se Deus não
q u i s e s s e mais bem para uma do que para outra". Subjetivamente,
ensina Tomás, Deus ama tudo com a mesma intensidade; mas, com
relação ao bem que Deus deseja, ele deseja mais bem para uns do que para
outros. E assim, Deus "deseja a todos algum bem", mas "até o ponto,
portanto, em que Ele não deseja esse bem em particular - a saber, a vida
eterna - diz-se que Ele os odeia ou reprova".
Essas palavras suscitaram muitas reflexões e suspeitas sombrias. O
ensinamento de Tomás a respeito da causalidade divina leva os críticos a
afirmar que a permissão divina do mal - que é uma "não adesão ao bem "ª¹
-é
esse non habet nisi ab alio, et in se considerata nihil est, ita indiget conservari in bono suae
naturae convenienti ab alio. Potest enim per seipsam deficere a bono, sicut et per seipsam
potest deficere in non esse,
42. ST I, q. 19, a. 6, ad 1: "Quae quidem distinctio non accipitur ex parte ipsius voluntatis
divinae, in qua nihil est prius vel posterius; sed ex parte volitorum." "Mas essa distinção
d e v e ser feita não por parte da vontade divina em si, na qual não há nada antes ou depois,
mas por parte das coisas desejadas."
43. Às vezes, a aplicação clássica da terminologia é confusa, mas seus princípios são
claros. Deus pode permitir com justiça (e, portanto, não manter a partir de) o defeito
antecedente na criatura defeituosa, ou Deus pode manter a partir do defeito, e o último é uma
graça. No entanto, normalmente não se diz que Deus "retém" a graça, exceto devido ao
defeito, que deve primeiro ser permitido (enquanto a não manutenção da graça mencionada
acima não é mencionada como uma "retenção"). Esse uso é uma função da estrutura moral da
linguagem; ou seja, o defeito antecedente é antecedente em relação a algum movimento para
o bem, e assim, com relação a esse movimento para o bem, Deus pode "reter" a graça como
penalidade devido ao defeito. No entanto, Deus deve primeiro permitir que a criatura
defeituosa sofra o defeito antecedente, e isso é a não retenção da criatura livre e defeituosa no
bem: essa não retenção não é chamada de "retenção" da graça porque não é simplesmente
"devida", pois a retidão com relação ao fim é devida em relação a esse fim. A graça de
sustentar a criatura defeituosa de todo defeito antecedente é uma graça que não é
simplesmente devida à criatura defeituosa - ela é desproporcional à sua natureza. Embora não
saibamos a extensão do defeito final permitido, sabemos que todas as pessoas humanas
recebem mais ajuda do que lhes é d e v i d o , menos penalidade do que lhes é devido e que
"onde abundou o pecado, superabundou a graça" (Rm 5:4). O decreto permissivo antecedente
divino com relação à criatura d e f e i t u o s a não pode ser evitado, pois é como uma
"sombra" que verifica a luz, ou seja, a luz da onipotente misericórdia e bondade de Deus. Essa
é a luz da verdade certa de que toda perfeição voluntária é um efeito divino e, portanto, a
própria raiz de nossa vida voluntária pode realmente ser curada, elevada e transformada pela
graça, e que nossos atos livres de vontade podem ser gentil e suavemente movidos por Deus
para Ele mesmo como nosso último fim. Tanto com relação à vontade humana quanto com
relação a toda criatura, é somente porque a causalidade da graça se estende a ela que Deus
pode alcançar sua redenção. O motivo formal de nossa esperança é a onipotente misericórdia
divina, uma misericórdia divina que não se afasta de, mas gera, toda p e r f e i ç ã o criada,
incluindo a perfeição dos atos livres contingentes da vontade humana.
44. ST I, q. 23, a. 5, ad 3: "Nem de acordo com essa conta Deus é injusto se Ele prepara
lotes desiguais para coisas não desiguais. Pois isso seria contrário à natureza da justiça se o
efeito da predestinação fosse dado por uma dívida e não gratuitamente. Nas coisas que são
dadas gratuitamente, pode-se dar à vontade, mais ou menos, desde que ninguém seja privado
do que lhe é devido, sem qualquer violação da justiça." "Neque tamen propter hoc est
iniquitas apud Deum, si inaequalia non inaequalibus praeparat. Hoc enim esset contra
iustitiae rationem, si praedestinationis effectus ex debito redderetur, et non daretur ex gratia.
In his enim quae ex gratia dantur, potest aliquis pro libito suo dare cui vult, plus vel minus,
dummodo nulli subtrahat debitum, absque praeiudicio iustitiae."
45. Henry Denzinger, Enchiridion Symbolorum: The Sources of Catholic Dogma, trans.
Roy J. Deferrari (Fitzwilliam, NH: Loreto, 1955), 257, nº 81o, do capítulo 16 do "Decreto
sobre a Justificação do Concílio de Trento".