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O PROBLEMA RELIGIOSO

Battista Mondin

Uma manifestação tipicamente humana é a religião. Esta não se acha presente nos outros seres vivos, mas
unicamente no homem. Trata-se de uma manifestação que, por abarcar a humanidade inteira, tanto no espaço
quanto no tempo (e não só este ou aquele grupo de uma época histórica particular), assume proporções
notáveis. Os antropólogos nos informam que o homem desenvolveu uma atividade religiosa desde seu primeiro
aparecimento no cenário da história e que todas as tribos e todas as populações, qualquer que seja o nível
cultural, cultivaram alguma forma de religião. De qualquer modo, é sabido que todas as culturas são
profundamente marcadas pela religião, e que as melhores produções artísticas e literárias – não apenas das
civilizações antigas, mas também modernas – inspiram-se em motivos religiosos.

Portanto, é razoável afirmar que o homem, além de sapiens, volens, faber, loquens, ludens etc, é também,
religiosus. Nem o fato de que hoje a religião está passando por uma profunda crise, e que se encontram muitos
indivíduos que se confessam não-religiosos, constitui um argumento plausível contra a relevância do fenômeno
religioso. De fato, consideramos o homem ludens, loquens, faber, sapiens etc, mesmo que nem todos os
homens joguem, trabalhem, falem e pensem. Outro tanto vale para a dimensão religiosa: esta se impõe como
uma constante do ser humano, mesmo que não seja cultivada por todos os indivíduos da espécie.

A religião, com efeito, é um fenômeno real, típico do homem, porém é também um fenômeno muito
problemático e – ousaria dizer – o mais problemático de todos. Isso por um motivo bastante claro: enquanto
todas as outras atividades humanas (embora sejam problemáticas) referem-se a objetos cuja existência está fora
de discussão, a atividade religiosa, ao contrário, dirige-se a um objeto do qual até sua existência é colocada em
questão.

Nessas poucas linhas, procuraremos dar uma ideia da natureza e da complexidade do problema religioso.
Para esse fim, procederemos dentro da seguinte ordem: antes de tudo, traçaremos uma breve história das
interpretações do fenômeno religioso, assim como tem sido visto pelos filósofos; depois, trataremos de efetuar
um aprofundamento teórico do problema, elaborando uma definição da religião e examinando as relações que
esta mantém com as demais atividades humanas.

1. Principais interpretações filosóficas da religião


A questão religiosa sempre esteve presente nas fases mais importantes da história da filosofia. No período
antigo, por ela se interessaram Xenófanes, Protágoras, Platão, Aristóteles, Lucrécio, Plotino; na Idade Média,
Avicenas, Averróis, Maimônides, Tomás de Aquino, Duns Scoto, Ocam; no início da época moderna, Giordano
Bruno, Campanela, Spinoza, Hobbes, Locke. Foi a partir principalmente de Hume e Kant que a questão
religiosa tornou-se um dos pontos centrais da reflexão filosófica. Ante tais questões, os filósofos modernos
separam-se em duas alas opostas. De um lado, alguns trataram de demonstrar que a religião está destituída de
qualquer fundamento objetivo; ela seria mais ou menos uma invenção ardilosa do homem, devida ao medo
(Feuerbach), à prepotência (Marx), à ignorância (Comte), ao ressentimento (Nietzsche), à sublimação dos
instintos (Freud), a abusos linguísticos (Carnap) etc. Do lado oposto, outros autores defendem o valor objetivo
da religião, na medida em que esta se basearia numa relação do homem com a realidade absoluta (Hegel, Croce,
James, Bergson, Scheler, Otto, Jaspers etc.). Os primeiros desenvolvem uma crítica negativa e desmistificadora;
os segundos, ao contrário, elaboram uma crítica positiva e construtiva do fenômeno religioso.

A - DESMISTICAÇÃO DA RELIGIÃO
Hume e Kant, embora atribuindo bases diferentes ao fenômeno religioso, (Hume o fundava no instinto e
Kant na razão prática) não haviam posto minimamente em dúvida o seu valor essencialmente objetivo. Mas
tarde, esse valor será rebatido pelos idealistas, especialmente por Hegel.
Porém, as teses paradoxais do corifeu do idealismo precipitaram a situação, levando Feuerbach a negar o
valor objetivo da religião. Contra o postulado hegeliano que afirma que tudo procede do Absoluto e, cada coisa,
compreendido do homem, nada mais é que um momento de sua automanifestação, Feuerbach sustenta que as
coisas estão precisamente no oposto: Deus é só uma ideia inventada pelo homem com o fito de obter a
realização plena de si mesmo; portanto, a realidade suprema não é Deus, mas sim o homem. No famoso ensaio
A essência do cristianismo, Feuerbach argumenta que a religião se origina de um processo de hipostezização
das necessidades e dos ideais do homem: o homem projeta todas as qualidades positivas que tem em si numa
pessoa (hipóstase) divina e faz dela uma realidade subsistente, capaz de suprir às próprias necessidades e às
próprias lacunas.
Karl Marx foi, como Feuerbach, discípulo de Hegel, e as críticas apresentadas pelo colega ao pensamento
do mestre contribuíram certamente para encaminhá-lo também à contestação do fenômeno religioso, à negação
de Deus e à condenação da Igreja. Para fazê-lo desposar a causa do ateísmo, mais que argumentos de natureza
filosófica e metafísica, foram motivos de ordem histórica e social. Sua identificação da sociedade ideal com a
sociedade sem classes e a pesquisa pela instauração dessa sociedade, por meio da derrocada das estruturas
sociais vigentes em seu tempo, levaram-no necessariamente a enfrentar-se com a religião. Ora, todo um
conjunto de circunstâncias infelizes lhe fizeram crer que a religião constituísse um dos maiores obstáculos à
realização da nova sociedade e, por conseguinte, concluir que a religião nada mais é do que uma invenção da
sociedade capitalista. Para Marx, a religião é um produto inventado por esta sociedade capitalista. Para Marx, a
religião é um produto inventado por esta sociedade para realizar a exploração das classes: ela é instrumento de
evasão para os explorados e de justificação para os exploradores. A religião é o ópio do povo. “A religião é o
suspiro da criatura oprimida pela desventura, a alma de uma época sem espírito. É ópio para o povo... Este é o
fundamento da crítica: o homem produz a religião, não é a religião que produz o homem”.
Os ecos da crítica marxista da religião, no século passado, foram bastante fracos. Será preciso aguardar o
século XX para que estes comecem a ressoar por toda parte a parte. No século passado a crítica da religião que
obteve maior sucesso não foi a de Marx e Feuerbach, mas sim a de Comte, o pai do positivismo. Segundo
Comte, todo o universo provém da matéria por mio da evolução. O homem também é um resultado da
evolução. Com seu aparecimento no cenário do mundo inicia-se a história, cujas fases principais, conforme a
célebre classificação de Comte, são três: religiosa, metafísica e científica. As três diferentes fases correspondem
a três modos distintos de conceber e explicar as coisas. Na idade religiosa o homem se dá uma explicação
mítica dos fenômenos naturais, excogitando causas sobrenaturais; na idade metafísica ele obtém uma
explicação dos fenômenos, recorrendo a princípios ocultos, como substâncias, acidentes, ser etc.; na idade
positiva, por fim, elabora uma explicação raciocinada e científica das coisas por intermédio das leis naturais,
que se bastam por si mesmas (sem que seja necessário recorrer a Deus ou a princípios metafísico) para explicar
todos os fenômenos constatados pornôs. Todas as atividades e todos os ramos do conhecimento passam por
esses três estágios: a política e o direito, a economia e a moral, a física e astronomia etc. no início da época
moderna, com o desenvolvimento do método científico, a humanidade finalmente alcançou a idade adulta e
pode, portanto, dar as costas à religião ou à metafísica. Antes que dirigir sua atenção para os seres sobrenaturais
ou recônditos, ela pode agora cuidar de si mesma. Esse é o único culto (o culto da Humanidade) que ela deve
promover.
Outro expoente da crítica negativa do fenômeno religioso, no século passado, foi Nietzsche. Todos nós
conhecemos seu famoso lema: “Deus está morto”. Esta sentença, que representa o leitmotiv da predicação de
Zaratustra, foi também o motivo dominante da reflexão filosófica de Nietzsche. Este quer desenvolver a ideia
de um homem (o Super-homem) absolutamente autônomo, senhor de si mesmo, rei da natureza e da história,
liberado dos vínculos e das coerções impostas pela moral, pelo direito, pela religião. Estudada à luz da ideia do
Super-homem, para Nietzsche a religião aparece como uma engenhosa invenção dos homens; não dos fortes,
para terem sob seu jugo os fracos, mas sim dos fracos para se defenderem da prepotência dos fortes, dos super-
homens. De tal origem da religião Nietzsche considera ter encontrado confirmação no cristianismo. Aqui os
fracos, os humilhados, os oprimidos elevam seu ideal de debilidade, de covardia, de resignação a ideais
universais e fazem tudo para constranger também os homens fortes, os poderosos, os super-homens, a aceitá-lo.
“Somente o miserável é bom, proclama o cristianismo; somente o pobre, o fraco, o humilde são bons; somente
o doente, o necessitado, aquele que causa repugnância são piedosos. Somente a esses é prometida a felicidade e
a salvação eterna. Enquanto que a vós poderosos, aristocratas, a vós é dito que sois para toda eternidade maus,
perversos, vorazes, insaciáveis, inimigos de Deus e que por isso sereis eternamente infelizes, condenados,
malditos”.
Outra importante forma de crítica da religião foi introduzida no início de nosso século (século passado)
por Freud, através da psicanálise. Para ele, a falta de fundamento da religião é dada como certa à medida que, a
seu ver, é óbvio que fora do mundo e do homem não existe nenhum outro ser. Ao estudioso resta, portanto,
apenas o problema de explicar de que modo surgiu a “ilusão religiosa”. Na opinião do fundador da psicanálise,
esta não surgiu em decorrência de uma luta de classes entre burguesia e proletariado, como queria Marx, nem
em consequência de uma luta entre fracos e fortes, como sustentava Nietzsche, mas sim através de um processo
de sublimação de uma luta primordial entre os membros do lar familiar, com a decorrente projeção, extrema à
psique no plano cósmico, da ideia de pai. O objeto da religião – Deus – é exatamente o resultado dessa
projeção. A ideia de tal Ser Supremo reflete, no plano cósmico, a polaridade afetiva amor-ódio, que os filhos
sentem em relação ao pai.
[...]
A última tentativa importante de desmistificar o fenômeno religioso coube ao neopositivismo. Para este
movimento, como já se sabe, a filosofia consiste essencialmente na análise da linguagem: somente desse modo
ela pode determinar a verdade ou a falsidade de uma doutrina. Para efetuar a análise da linguagem, ocorre no
entanto, haver um critério para distinguir as proposições que têm significado daquelas que não têm. Ora,
conforme os neopositivistas, para as proposições factuais (e não para as lógicas), o único critério possível é
aquele da verificação experimental que é definido do seguinte modo: “Uma afirmação que não é traduzível em
posposições de caráter empírico não é absolutamente uma afirmação, não diz nada; não é senão uma série de
palavras vazias; simplesmente não tem sentido”. Dessas premissas os neopositivistas extraem a conclusão,
lógica e necessária, de que a linguagem ética, estética e religiosa é destituída de sentido, não expressa nada: está
privada de qualquer valor objetivo. Logo, “dizer que Deus existe é uma expressão metafísica que não pode ser
nem verdadeira nem falsa. E, pelo mesmo motivo, nenhuma proposição que vise a descrever a natureza de um
Deus transcendente pode ter significado literal... Todas as expressões relativas à natureza de Deus são
destituídas de sentido”.

B - DEFESA DA RELIGIÃO
Contra as opiniões emitidas pelos desmistificadores do fenômeno religioso tomaram posição muitos
filósofos do século passado e do nosso, afirmando o valor positivo e considerando-o assim uma das
manifestações mais próprias, autênticas e genuínas do espírito humano. Não podemos expor as perspectivas de
todos aqueles que se expressaram nesse sentido. Limitar-nos-emos a relatar o pensamento de alguns autores
mais representativos, começando por Kierkegaard.
Contra a concepção hegeliana, que vê nesta apenas um momento lógico, natural da evolução do Espírito
Absoluto e, contra qualquer subordinação da religião à filosofia, Kierkegaard proclama que a religião não pode
ser reduzida a um momento lógico de um sistema geral de pensamento, pois ela pertence à esfera da existência,
da vida. Não se chega ao estágio religioso através da intuição, como sustentava Hegel, mas por intermédio da
fé. E esta não é a consequência de um raciocínio, mas um ato de decisão que comporta um salto além de tudo
aquilo que se apoia na segurança das leis científicas e dos códigos morais. Quando o homem crê em Deus e
percebe a infinita diferença que separa a sua da natureza divina, então se prostra ante ele e o adora.
O esforço de Kierkegaard para reabilitar a religião em seu significado autêntico não teve sucesso. Como
já vimos, durante a segunda metade do século XVIII, por obra de Marx, Engels, Comte, Nietzsche e Freud,
irrompo a desmistificação da religião, a qual encontra amplos consensos e muitíssimos, defensores num
momento em que impera o positivismo e o materialismo. Contudo, quando esses sistemas começam a vacilar,
também a desmistificação da religião perde terreno. Ao contrário, é exatamente a impossibilidade de aceitação
de uma tal interpretação do fenômeno religioso que induz autores, como Bergson, James, Scheler, Otto e
Blondel a tomarem posição contra o positivismo e o materialismo.
Bergson, no célebre ensaio As duas fontes da moral e da religião, coloca em exame o fenômeno religioso
em algumas de suas manifestações mais elevadas, como o misticismo grego e oriental, o profetismo hebraico e
o misticismo cristão. Através da experiência dos místicos ele chega à existência de Deus. Esta, já pressentida na
especulação filosófica do ímpeto vital (élan vital), impõe-se agora de modo incondicional. De que forma? Com
base no testemunho daqueles que têm experiência das coisas divinas. É preciso crer nos místicos a esse
respeito, assim como se crê nos médicos e nos engenheiros quando se trata de problemas concernentes às suas
especializações: uns e outros são peritos; sabem o que dizem.
O exemplo de Bergson exerceu grande influência primeiramente na França, mas depois espalhou-se.
Entre seus seguidores distinguem-se, particularmente, Maurice Blondel. Este, entretanto, ao defender o valor
objetivo da religião, toma-o por uma perspectiva diferente da de seu mestre. Enquanto Bergson justifica o
fenômeno religioso partindo de suas expressões mais autênticas. Blondel trata de baseá-lo na análise do
dinamismo humano considerado na sua estrutura essencial. Conforme Blondel, um exame atento e aprofundado
da ação conduz logicamente ao reconhecimento da existência de Deus. Com efeito, “a ação está em perpétuo
devir, como que atormentada pela aspiração de um crescimento infinito... somos forçados a querer tornarmo-
nos aquilo que por nós mesmos não podemos nem alcançar nem possuir... é porque tenho a ambição de ser
infinitamente que sinto a minha impotência: eu não me fiz, não posso aquilo que desejo, sou coagido a superar-
me... Ora, esse impulso em direção ao infinito, que dilata continuamente minha ação, é Deus. Ele não tem outra
razão de ser para nós, pois que é aquilo que não podemos ser nem fazer com nossas próprias forças” nós somos
a desproporção entre o ideal e o real, mas tendemos em direção à sai identidade: tal identidade é o próprio
Deus.
Uma hábil defesa do valo e do significado da experiência religiosa foi conduzida também pelo filósofo
americano William James, em especial na obra As diferentes formas da experiência religiosa. Sua defesa
baseia-se em motivações de ordem mística como em Bergson, mas do que sobre especulações de ordem teórica,
como Blondel. James não acredita ser possível transformar a religião num sistema de proposições científicas
claramente demonstráveis. A seu ver, o fundamento da religião não é a razão, mas a fé, o sentimento e outras
experiências particulares, como a oração, conversam com o invisível, visões etc. Tudo isso, porém, não
significa que a religião seja desprovida de conceitos e doutrinas. Antes, James reconhece que uma religião que
verdadeiramente autêntica deve logicamente cuidar de um certo tipo de metafísica ou de cosmologia teísta e
que, por isso, a fé em Deus, cujos atributos são essencialmente “morais” ou ligados à experiência humana, pode
ser defendida como um elemento necessário da experiência religiosa, embora não possa servir como base de
uma teologia racional.
Os mais autorizados defensores do valor objetivo da experiência religiosa, entretanto, não provêm da
França ou dos Estados unidos, mas sim da Alemanha. Formam um grande grupo de pensadores profundos, dos
quais os mais conhecidos são: Scheler, Otto, Schmidt, Guardini, Adam, Tillich, Dessauer, Lang. Por existências
de espaço, limitar-nos-emos aqui a resumir o pensamento dos dói primeiros.
Scheler coloca o fenômeno religioso no centro de sua pesquisa filosófica. Polemizando o positivismo, o
qual como vimos reduz a religião a um momento transitório do desenvolvimento progressivo da história da
humanidade, Scheler afirma o caráter absoluto e perene da experiência religiosa. Rejeita categoricamente a
teoria positivista do nascimento da religião através de um processo evolutivo que vai do fetichismo, animismo,
magia etc., ao politeísmo e finalmente ao monoteísmo. Reportar-se pelo lado histórico-positivo aos estudos de
W. Schmidt, em particular à sua tese do monoteísmo primitivo, Scheler destaca como, fenomenologicamente,
“também o fetiche mais primitivo apresenta, ainda que rudemente, a essência indedutível do divino, qual esfera
global do ser absoluto guarnecido de todas as características do santo”. Nele, e através dele, a intenção religiosa
compreende, sente e vê a totalidade do ser absoluto e santo, e não um simples objeto natural no qual introduz
por entropia, uma vida psíquica. No concernente à esfera religiosa não pode ser outro senão a automanifestação
de Deus. Essa automanifestação da realidade pessoal de Deus, conforme Scheler, pode acontecer somente
através dos homens religiosas, tendo como ápice o “santo originário”, por ele individualizado na figura de
Cristo.
Rudolf Otto, em seu famoso ensaio Das Heilige (O sagrado) descreve com extraordinária agudeza as
diferentes modalidades da experiência religiosa. Esta se configura, antes de tudo, como sentimento do
numinoso. O numinoso é uma categoria das mais complexas do “sagrado”. É uma categoria sui generis, que é
completamente incessível à compreensão conceitual, e que como tal constitui um “arreton”, algo indefinível,
inefável, exatamente como o “belo” no plano estético. Neste sentido não pertence ao domínio do “irracional”;
representa o elemento mais íntimo, pertencente a todas as religiões. O numinoso, por sua vez, assume dois
aspectos que o caracterizam de modo inequívoco: a) o aspecto de mysterium tremendum e b) o aspecto de
mysterium fascinans. O primeiro constitui o aspecto repulsivo do numinoso; o segundo, em oposição,
representa o aspecto atraente e “fascinante”. O sagrado, todavia, além do aspecto “irracional”, representado pela
categoria do numinoso, reveste-se também de um aspecto “racional”; este encontra expressão principalmente
nos “símbolos” e nos “dogmas”. Graças a essa categoria, através de “signos” estáveis e universalmente válidos,
o sagrado adquire uma estrutura sólida, que lhe confere o caráter de “doutrina” rigorosa, objetivamente válida e
que se opões, por isso mesmo, às excentricidades do “irracionalismo” fanatismo e sonhador.

2. Definição da religião e sua diferenciação da arte, da filosofia e da moral

“Todos os que se ocupam da ciência da religião – observa A. Lang – todos os que pretendem favorecer o
desenvolvimento da religião, todos os que a querem extirpar, oferecem uma definição da sua essência”.

Nós propomos como definição suficientemente descritiva a seguinte: “A religião é o conjunto de


conhecimento, ações e estruturas com as quais o homem expressa reconhecimento, dependência e veneração em
relação ao sagrado”.

Esta definição, como se nota, compreende dois elementos, um relativo ao sujeito e outro ao objeto.
Quanto ao sujeito, ela indica a atitude que o homem adota quando se expressa religiosamente. Com efeito, nem
toda relação com o Sagrado é atividade “religiosa”. Por exemplo, se estuda o processo de transformação e
desenvolvimento das religiões, suas influências e manifestações, não podemos deixar de nos ocupar também do
objeto da experiência religiosa e, não obstante, movemo-nos nos plano da história e não da religião. “pode-se
falar de um ato religioso, principalmente de um ato religioso fundamental, somente quando o homem assume
perante o Sagrado e o Divino uma atitude subjetiva de todo particular, isto é, quando emocionalmente é
atingido e atraído pelo objeto e entra em contato pessoal com ele. Esta é a face psíquica ou interior da religião”.
Como já foi dito, o aspecto subjetivo do fenômeno religioso é formado pelo reconhecimento da realidade do
Sagrado, pelo sentimento de total dependência em relação a ele e pala atitude de veneração perante ele.

Nossa definição do objeto da religião indica aquilo que o caracteriza de modo exclusivo, isto é, o de ser
Sagrado. Sagrado é um conceito primário, fundamental, como os conceitos de “ser”, “verdade”, “bem”, “belo”
e, por conseguinte, não se pode explicá-lo ulteriormente, reportando-se a categorias estranhas à esfera religiosa.
Sobre esse ponto parece-me que Scheler e Otto tinham plena razão. Mas nem por isso deve ser considerado um
conceito incapaz de receber qualquer explicação. Com efeito, dentro da esfera religiosa, o Sagrado toma
características bem próprias, inconfundíveis, que permitem descrevê-los de forma inequívoca. Entre as
características mais importantes lembramos aquelas tão evidenciadas por Rudolf Otto: a numinosidade, a
misteriosidade, a majestade, o fascínio. Mas também estas outras características são importantes: a
objetividade, a axiologia, a transcendência e a personalidade. Primeiramente a objetividade: o Sagrado até
permanece sagrado e, portanto, objeto da religião não pode ser considerado um achado da fantasia humana,
uma projeção e hipostenização das necessidades, desejos e ideais do homem. O ato religioso está dirigido a uma
realidade efetivamente existente: “os conteúdos religiosos sempre se apresentam com a pretensão de ter
consistência e validade também fora de consciência e da experiência religiosa”. A transcendência: ainda que
não seja colocado fora do mundo, o Sagrado é sempre considerado como algo que supera infinitamente o
próprio mundo e tudo aquilo que nele está compreendido, particularmente o homem. A axiologia: o Sagrado
representa o valor supremo, ao ponto culminante de todos os outros valores. A personalidade: o homem
religioso não se relaciona com um objeto, mas com um Tu, com uma pessoa. “Há alguém perante ele. Eu
experimento um Tu. E eu o imagino sob a forma de um demônio ou de um deus”.

Determinando-se desta forma a essência da religião, torna-se evidente em que coisa ela se diferencia da
filosofia, da arte e da moral. Aquilo que a diferencia da filosofia é principalmente o elemento subjetivo; com
efeito, tanto a religião quanto a filosofia ocupam-se do Sagrado, do Divino, da “realidade última”, mas o fazem
de um modo totalmente diferente. A filosofia procede por abstração e com finalidades puramente especulativa;
ao contrário, a religião “é uma tomada pessoal de posição que vai além do simples conhecimento da verdade; é
a atitude em que todo o eu se recolhe na sua singularidade”, com um empenho supremo (ultimate concern). O
que distingue a religião da arte é, opostamente, o elemento objetivo: a religião tem por objeto o real; a arte, o
ideal. Finalmente, também a religião e moral, apesar de estarem estreitamente ligadas uma à outra, são
essencialmente diferentes. “A primeira é encontro com Deus; contacto pessoal com ele, reconhecimento
humilde e devoto do seu valor absoluto e da sua santidade. À segunda compete o cuidado e realização dos
valores que correspondem à essência do homem”.

3. Fundamentação teórica da religião

Neste ponto, querendo-se passar do plano formal da definição de religião ao da sua verdade objetiva, cabe
enfrentar o problema da verdade do objeto da religião, um problema de importância capital, mas também
extremamente difícil, se quiser confiar exclusivamente nas forças da razão.

Para resolvê-lo, podemos seguir duas vias: a metafísica e a hermenêutica histórica; porém, nem uma nem
outra estão em condições de garantir que se alcance a meta e ambas trazem grandes dificuldades.

A metafísica tem o mérito de apoiar-se basicamente nas forças da razão pura; mas, justamente por isso,
tem escassas probabilidades de solucionar um problema tão difícil. Mesma na eventualidade de que consiga
elevar-se até o plano religioso, a razão especulativa não poderá nunca fornecer um quadro suficientemente
rigoroso, detalhado, concreto e existencial. Sua aspiração máxima é provar a existência de Deus, a criação do
mundo e a possibilidade da revelação. Contudo, essas verdades são insuficientes para alimentar a vida religiosa,
um vida feita de intimidade, amor, devoção, adoração e oração.

A hermenêutica, por seu lado, tomando como ponto de partida um evento histórico particular (a revelação
bíblica ou cristã, a islâmica etc.) vê-se na dificuldade de demonstrar como um evento histórico de caráter
particular (localizado num dado momento espaço-temporal) possa elevar-se a valor universal, absoluto. Ela
deveria mostrar que é o único evento capaz de responder às instâncias fundamentais da natureza humana e de
satisfazê-las completamente. Mas onde achar argumentos decisivos que sustentem essa pretensão? A razão
histórica não parece em condições de descobri-los.

Alguém poderia pensar em resolver o problema reunindo os dois modos. Este, porém, é um
empreendimento irrealizável, pois a metafísica e a hermenêutica histórica dirigem-se a objetos que não têm
nada em comum.

Tudo isso deixa perceber que a solução adequada do problema religioso não pode ser obtida com a razão
pura, mas somente por intermédio da fé, isto é, mediante uma humilde e plena submissão de todo o ser do
homem àquele que constitui o centro, o coração, a alma da esfera religiosa: Deus.

MONDIM, Battista. Introdução à filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. São Paulo: Paulus, 1980,
pp.92-105.

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