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CPAJ

ETS 455: Doutrina de Cristo


Prof. Heber Carlos de Campos Júnior

12. A Extensão da Expiação

Esse é o assunto mais complexo dos cinco pontos do calvinismo,1 não só por causa de
elementos de soberania divina que nos confrontam, mas também por causa de textos bíblicos
que parecem sugerir uma expiação universal. Essa doutrina é tão controversa que existem
alguns teólogos que se dizem calvinistas de 4 pontos (ex: amyraldistas) porque não conseguem
conceber uma expiação "limitada" (o sentido do adjetivo não é poder, mas intenção). Alguns
preferem o termo “expiação definida” pois evita mal-entendido e destaca o foco a um grupo
específico de pessoas. Afinal, ela ficou conhecida como ‘expiação limitada’ só por causa do
acrônimo TULIP cunhado no início do século 20 nos Estados Unidos (nesse acrônimo,
expiação limitada vem do inglês "limited atonement"). Independente do termo, a ideia de um
‘calvinista de quatro pontos’ não é uma designação precisa, pois até os Cânones de Dort em
seus cinco pontos foram assinados por pessoas que tinham uma forma diferente de apresentar
o propósito da morte de Cristo.2 Por isso, a primeira parte dessa aula trará um panorama
histórico demonstrando o que Dort defendeu e o tipo de detalhamento que deu.
Em segundo lugar, essa aula tem como objetivo trazer considerações teológicas sobre a
coesão da soteriologia reformada (segunda e terceira partes). A fé reformada entende que há
uma certa lógica com os demais pontos. Por exemplo, o propósito definido da expiação é uma
conclusão lógica da eleição de pessoas definidas pelo Pai. Jesus disse que veio realizar uma
missão em consonância com a vontade do Pai (Jo 6.37-39, 44). Portanto, alguém só é alvo da
obra de Cristo se também for alvo da obra do Pai; isto é, alguém só vem a Cristo se for um
presente do Pai a Cristo (Jo 6.37). Se a eleição é restrita a um grupo específico, faz sentido que
a morte de Cristo seja demonstrada apenas a esse grupo.
A última parte desta aula mostrará como é possível interpretarmos os textos
aparentemente contrários à doutrina exposta. Iremos trabalhar com as principais passagens
que parecem expor uma “expiação universal” e mostrar como a grande maioria delas pode ser
facilmente explicada à luz de seu contexto literário. Portanto, se ainda restar passagens que
aparentemente não foram respondidas, elas devem ser entendidas à luz das demais nas quais o
ensino da expiação definida está evidente. Esse é o princípio hermenêutico de estudar os textos
da Escritura que são mais obscuros à luz de textos que são mais claros (veja Confissão de Fé de
Westminster I.9).
Nossa aula, portanto, terá um breve panorama histórico, seguido de uma
fundamentação biblico-teológica e encerrará com uma prática hermenêutica que parte do
pressuposto de que a Escritura não se contradiz.

1
Joel Beeke também afirma que foi o tema mais controverso em Dort. BEEKE, Joel Vivendo para a glória de Deus (São
José dos Campos: Fiel, 2010), p. 91-92.
2
GATISS, Lee. “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, In: GIBSON, David e Jonathan Gibson (orgs.), Do Céu Cristo
Veio Buscá-la: A Expiação Definida na Perspectiva Histórica, Bíblica, Teológica e Pastoral (São José dos Campos: Fiel,
2017), p. 195.
1
A CONTROVÉRSIA ARMINIANA E O SÍNODO DE DORT
Até o período da Pós-Reforma (c. 1565-1700), a doutrina da extensão da expiação não
era tão claramente delineada, embora tenhamos os fundamentos dessa doutrina presentes
inclusive em personagens anteriores à Reforma. Todavia, a controvérsia arminiana que
culminou no Sínodo de Dort e os famosos Cânones lá produzidos foram um período muito
fértil de desenvolvimento soteriológico e, por isso, surgiu ampla discussão sobre a
intenção/extenção da expiação e a posição que prevaleceu entre os reformados. O resumo
abaixo traz um pouco da história desse período polêmico, mas útil para a formulação
doutrinária quanto aos objetos da expiação de Cristo.
Antes da Holanda se tornar prioritariamente protestante e especificamente reformada, a
teologia semi-pelagiana predominou entre os católicos que lá residiam. Dirck Coornhert (1522-
1590), que permaneceu católico até o final da sua vida, tinha uma aversão à predestinação. Ele
atacou João Calvino e seus seguidores numa obra composta em 1560 (embora a obra só tenha
sido publicada em 1632) e Calvino respondeu a tal escrito.3 Jacó Armínio (1560-1609) teve
dificuldade em refutar as objeções que Coornhert trouxe quanto à doutrina da predestinação
em Calvino e Teodoro Beza. Armínio, que chegou a estudar com Beza em Genebra, passou a
esposar ideias inovadoras as quais foram ouvidas pela primeira vez durante uma série de
sermões em Romanos. Mas foi enquanto professor da Universidade de Leiden que a
turbulência se intensificou. Armínio recebeu oposição ferrenha de seu colega de universidade,
Franciscus Gomarus (1563-1645), um árduo defensor da fé reformada. Os gomaristas e os
arminianos se tornaram polos de uma controvérsia que tomou toda a Holanda.
No entanto, Armínio faleceu inesperadamente e o partido arminiano passou a ser
liderado por outros que acabaram compondo um documento de protesto, a Remonstrância
(1610), o qual levantava cinco doutrinas nas quais os remonstrantes discordavam do partido
gomarista. Esse documento recebeu resposta e gerou debates entre ambas as partes, mas só foi
definitivamente refutado no Sínodo de Dort. Os cinco pontos de Dort, portanto, não são
nenhum resumo da fé reformada, mas uma resposta ao documento teológico dos primeiros
arminianos.
Com respeito à extensão da expiação, a Remonstrância ensinava uma expiação
universal que não é eficaz a não ser para aquele que crê. “Jesus Cristo o Salvador do mundo
morreu por todos os homens e por cada homem, de tal forma que ele mereceu reconciliação e
perdão dos pecados para todos através da morte na cruz, de tal forma, porém, que ninguém
usufrui desse perdão dos pecados senão o crente.” O historiador Philip Schaff comenta:
“Os Arminianos concordam com os ortodoxos em sustentar a doutrina de uma expiação
vicária ou substitutiva, em oposição aos Socinianos; mas eles amaciam e representam o seu
efeito direto de ser o de capacitar Deus, de forma consistente com sua justiça e veracidade, a
entrar num novo pacto com os homens no qual o perdão é conferido a todos os homens sob a
condição de arrependimento e fé. O efeito imediato da morte de Cristo não foi a salvação, mas

3
“Response to a Certain Dutchman Who under the Guise of Making Christians Very Spiritual Permits them to Defile
Their Bodies in All Idolatries: Written by Mr. John Calvin to the Faithful in the Low Countries”, trans. Rob Roy
McGregor, Calvin Theological Journal 34, no. 2 (nov 1999), p. 291-326.
2
somente a salvabilidade de pecados pela remoção dos obstáculos legais, abrindo a porta para o
perdão e a reconciliação.” 4
O Sínodo que se reuniu de novembro de 1618 a maio de 1619 na cidade de Dordrecht,
ou Dort como é mais conhecida, trouxe teólogos reformados de várias partes da Europa para
resolver essa disputa teológica que ganhou projeção nacional porque também tinha
implicações políticas. Dentre outras atividades, esse sínodo produziu uma resposta aos cinco
artigos remonstrantes, os conhecidos Cânones de Dort. O documento ratificou o ensino
reformado sobre predestinação, depravação do homem, a obra soberana do Espírito e a
perseverança dos santos. A extensão da expiação, porém, não é algo tão claro nos primeiros
reformadores e não aparece nos documentos de fé na Reforma. Foi em Dort que a doutrina da
“expiação definida” ganhou status confessional.
Em sua catolicidade de fé, Dort faz questão de afirmar a valiosidade da expiação (II.3-
4) ao replicar a ideia do teólogo medieval Pedro Lombardo sobre a suficiência universal e
eficiência para os eleitos (Livro das Sentenças 3.20.5). As palavras de Dort são estas: "Esta morte
do Filho de Deus é o único e perfeito sacrifício pelos pecados, de valor e dignidade infinitos,
abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro." (II.3). No entanto, esse
resgate da teologia medieval não resolvia o debate pois até arminianos podiam afirmar que na
prática a expiação só é eficiente para alguns. No entanto, havia uma diferença teológica de
como liam o legado medieval. Enquanto os remonstrantes interpretavam suficiência como
sinônimo de obtenção efetiva, seus opositores focalizavam na eficácia mais do que na
suficiência.5 Isto é, enquanto a posição arminiana articulava não só uma expiação de extensão
universal mas também condizente com um propósito e intenção universal na vontade de Deus,
Dort mostrou que o debate não girava em torno da suficiência da morte de Cristo (afirmada
por todos), mas na intenção da expiação.6
O fulcro da questão se encontra no parágrafo 8, quando Dort conecta a vontade e o
conselho soberanos de Deus que realiza o que intenta fazer, com a expiação que cumpre
exatamente o seu propósito. O processo da redenção é descrito do início ao fim como sendo
realizado por obra soberana de Deus. O que Dort estava afirmando é que a expiação é de fato
eficaz, não apenas possibilitadora. Enquanto no esquema arminiano era a vontade individual
do ser humano o fator decisivo, na teologia reformada era a vontade de Deus que assegurava a
eficácia da expiação.7 Embora tenham havido variações reformadas dentro do Sínodo na
forma de expressão a intenção da expiação, havia um consenso de que a posição arminiana
precisava ser rejeitada.8

EXPIAÇÃO EFICAZ OU POSSIBILITADORA?


É fundamental que tratemos do caráter, ou da natureza da expiação ao respondermos a
seguinte pergunta: a morte de Cristo salva pecadores ou apenas torna possível a salvação? A
resposta a essa pergunta define se demonstramos tendências reformadas ou arminianas. Os

4
SCHAFF, Philip. Creeds of Christendom vol. 1 (Grand Rapids: Baker, 1993), p. 518.
5
GATISS, “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, p. 174.
6
GATISS, “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, p. 178.
7
GATISS, “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, p. 182-183.
8
Para um resumo das variações, veja GATISS, “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, p. 184-188.
3
arminianos acreditam que a morte de Cristo torna possível, abre uma porta para que sejamos
salvos se nós quisermos (liberdade e fé são aspectos definidores). Raymond Blacketer define
bem o pensamento de Armínio:
"A cruz produz uma nova situação legal em que Deus tem, consequentemente, o direito de
entrar em um novo relacionamento com a humanidade, sob novas condições que Deus mesmo
é livre para ordenar. A condição que ele determina é a fé; e compete ao pecador usar a graça
universal outorgada por Deus para tomar o passo da fé. O fator determinante na salvação é a
escolha espontânea da humanidade, assistida pela graça cooperante."9
Para o reformado, porém, a expiação não é apenas uma provisão condicional de
salvação, é de fato o pagamento de dívida. Seu propósito não é somente possibilitar, mas
assegurar a salvação. A redenção do Egito ilustra como Deus não apenas possibilitou a
libertação, mas de fato os tirou da escravidão.10 O teólogo John Murray explica da seguinte
forma: “Cristo não veio colocar os homens numa posição de possível redenção; antes, ele veio
redimir um povo para si mesmo... Cristo não veio tornar os pecados expiáveis. Ele veio expiar
os pecados... Cristo não veio fazer Deus reconciliável. Ele reconciliou-nos com Deus por meio
de seu próprio sangue.”11
Para Robert Letham, a natureza da expiação é o cerne da discussão sobre a intenção da
obra de Cristo.12 Thomas Ascol sabiamente aponta para a importância de falar de eficácia no
debate com o arminianismo: “O ponto de vista arminiano, ao afirmar que a expiação é
ilimitada em sua extensão, é forçado a concluir que ela é limitada em sua eficácia. Ela
fracassou em cumprir seu propósito universal.”13 John Murray foi ainda mais lacônico: “Se
nós universalizarmos a extensão, limitaremos a eficácia.”14 Tais frases evidenciam que
qualquer explicação sobre a universalidade da intenção acaba por enfraquecer a eficácia da
expiação.
Além disso, R. C. Sproul é perspicaz em salientar como a fé na teologia arminiana não
é mera condição para a redenção, mas acaba sendo uma das próprias bases da redenção.
Embora os arminianos rejeitem que a fé seja uma obra de satisfação, Sproul argumenta que se
a satisfação é efetuada sem fé então não resta mais nada que deve ser cobrado de um pecador
não arrependido, e se não é efetuada sem fé então a nossa fé é um elemento necessário para a
satisfação.15

9
Apud BEEKE, Vivendo para a glória de Deus, p. 95.
10
O universalismo hipotético, também chamado de amyraldismo por causa de seu mais famoso representante (Moise
Amyraut), difere de ambos os grupos acima ao afirmar que Cristo morre por todos, mas a eleição e graça garantem
que somente os eleitos crerão. Faz-se uma distinção na vontade de Deus e no pacto da graça, propondo uma expiação
universal condicionada à fé – impossível ao homem caído – e uma expiação incondicional que, de fato, salva os
eleitos. É como se o duplo decreto de Deus tivesse uma proposta de remir a todos se eles crerem (por isso,
universalismo hipotético), o que é impossível, e um decreto de realmente salvar os eleitos por obra do Espírto. O
desígnio da expiação difere da aplicação da salvação. BEEKE, Vivendo para a glória de Deus, p. 95.
11
MURRAY, Redenção Consumada e Aplicada, p. 69.
12
LETHAM, A Obra de Cristo, p. 225-229.
13
Apud BEEKE, Vivendo para a glória de Deus, p. 116-117.
14
MURRAY, Redenção Consumada e Aplicada, p. 70.
15
SPROUL, R. C. O que é teologia reformada: Seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia (São Paulo:
Cultura Cristã, 2009), p. 141.
4
Diante dessa teologia reformada, há muitos que julgam que a evangelização fica
prejudicada. No entanto, a eficácia da expiação para aqueles a quem ela foi dirigida é um
argumento que não limita, mas apoia a livre oferta do evangelho. Nas palavras de John
Murray, o que é oferecido na pregação não é “a possibilidade de salvação e nem simplesmente
a oportunidade de salvação”, mas a própria salvação.16
Fundamentação bíblica. Há vários textos que apontam para essa objetividade e eficácia.
Ele "salvará o seu povo dos pecados deles" (Mt 1.21). Ninguém é considerado um salvador
para um povo cativo se ele apenas torna algo possível. Jesus afirmou que ele veio "buscar e
salvar o perdido" (Lc 19.10). Ele não vem oferecer um caminho de volta, mas resgatar quem
estava perdido. Afinal, se somos comparados a ovelhas, é porque não nos voltamos para o
pastor se ele não vier nos resgatar. Em Gálatas, está escrito que Jesus se entregou "para nos
desarraigar desse mundo perverso" (Gl 1.3-4). Ele carregou em seu corpo os nossos pecados (1
Pe 2.24). Ele obteve eterna redenção pelo seu sangue (Hb 9.12). O sangue de Jesus "purifica de
todo o pecado" (1 Jo 1.7). Todos aqueles que o Pai lhe deu, Cristo os guardou eficientemente
(Jo 17.12). Esses são apenas alguns dos vários textos que apontam para a eficácia da expiação.
Esses textos falam de uma obra salvadora que foi realizada efetivamente, não apenas
possibilitada.
Graciosidade. No entanto, tal eficácia não deve soar como algo déspota no qual Deus
salva sem mesmo consultar a vontade humana. A Escritura não só destaca o elemento
soberano dessa doutrina, mas seu elemento gracioso (Ef 1.7). Parte de sua graciosidade está
exatamente em sua eficácia, antes do que mera possibilidade de salvação. Assim como se livra
um drogado de seu problema, mesmo que ele dê a impressão de que quer continuar em seu
vício, Cristo paga as nossas dívidas antes do que nos pergunta se queremos que ele pague. A
outra parte da graciosidade está em ter sido um pagamento por inimigos (Rm 5.7-8).

EXPIAÇÃO DEFINIDA
Quando aceitamos a eficácia da expiação, fica mais fácil concluirmos que sua intenção
sempre foi atingir um grupo específico. No entanto, se as pessoas ainda relutam em aceitar tal
doutrina, é amplo o testemunho bíblico em favor de uma expiação definida, além de haver
várias razões teológicas para ela ser verdadeira.
Fundamentação bíblica. Há vários textos que apontam para um grupo definido de
pessoas como algo de sua expiação: povo (Mt 1.21), ovelhas (Jo 10.11) e não por todos (Jo
10.26), os "seus" (Jo 13.1), a igreja (At 20.28; Ef 5.25). É só por eles que o Filho entrega a sua
vida. Até sua intercessão é definida a um grupo específico de pessoas, antes do que por todas
as pessoas (Jo 17.9; Rm 8.33-34). Não faz sentido morrer por todos e orar por alguns. Que a
expiação tinha a intenção de alcançar os eleitos era uma ideia já defendida por Agostinho,
Próspero de Aquitaine e Gottschalk.17
Argumentação teológica. Além de textos bíblicos, há coesão teológica e deduções lógicas
para ensinarmos tal doutrina. Já mencionamos alguns elementos de coesão teológica tais como
não haver diferença de propósito entre os atos redentores das pessoas da Trindade (o princípio

16
MURRAY, Redenção Consumada e Aplicada, p. 71.
17
BEEKE, Vivendo para a glória de Deus, p. 97.
5
teológico antigo é que as obras da Trindade são indivisíveis), de que a obra sacerdotal do Filho
não pode ficar dividida (morrer por todos e orar por alguns), e acrescentamos que as ações dos
representantes da humanidade (Rm 5.12-21) necessariamente trazem os efeitos de suas obras
sobre os seus representados.18 Portanto, há coesão entre a doutrina da expiação definida e
várias outras áreas da teologia cristã. Além disso, ressaltamos as deduções lógicas
demonstrando como a teologia arminiana tem problemas de inconsistência.19 A primeira razão
questiona a sua sabedoria, a segunda questiona a sua justiça, a terceira o seu poder, a quarta a
sua satisfação e o quinto o seu amor:
1. A expiação universal fere a sabedoria divina. Se Deus conhece todas as coisas, não
teria cabimento Ele tencionar que Cristo morresse por aqueles que Ele sabia (ou
melhor, determinou) que se perderiam (visto que não os elegeu). Isso seria tolice!
2. A expiação universal fere a justiça divina. Como Deus não pode exigir pagamento da
mesma dívida duas vezes, se Jesus a pagou, ela está quitada. Se pessoas pelas
quais Cristo morreu viessem a ser condenadas, haveria dupla punição pelo
pecado: uma por Cristo e outra por eles mesmos, que seriam condenados. Isso
seria injustiça!
3. A expiação universal fere o poder divino. John Owen inteligentemente raciocina: se
Cristo morreu por todos, então por que nem todos estão livres do pecado?
Alguns responderiam: `Por causa da incredulidade.' Mas incredulidade não é
um pecado? Se não for por que os homens são punidos por ela? Se é pecado por
que não está entre os perdoados? Dizer que a expiação de Cristo não perdoa o
pecado da incredulidade é questionar o seu poder.20
4. A expiação universal fere a satisfação da obra de Cristo. Se Cristo morreu por todos
sem exceção, então o plano de Deus foi frustrado pois apenas salvou uma
minoria. Uma simples conta de matemática sobre a proporção dos cristãos em
comparação com descrentes em nossa geração apenas, já nos daria uma noção
de que Cristo alcançou uma minoria. Não haveria alegria em perder tantos.
Tanta lágrima e sangue derramados em vão. Tal ineficiência não poderia deixar
Cristo satisfeito com o fruto do penoso trabalho de sua alma (Is 53.11).
5. A expiação universal fere o amor divino. O amor do Deus arminiano não só não
salva, mas uma vez recusado, se transforma em ódio e ira. Afinal, quem não crê
é condenado no inferno com ira; portanto, esse amor se transforma em ódio.
Não é um amor imutável que permanece eternamente, nem é muito lógico pois
provê expiação, mas retém os meios (missionários que não alcançam selvas
longínquas) para a salvação de muitos.21

18
LETHAM, A Obra de Cristo, p. 231-234.
19
Joel Beeke também aponta para o fato de que ela corrompe a evangelização ao afirmar uma inverdade. BEEKE,
Vivendo para a glória de Deus, p. 104.
20
ANGLADA, Paulo. Calvinismo: As Antigas Doutrinas da Graça (São Paulo: Os Puritanos, 1996), p. 57-58.
21
BEEKE, Vivendo para a glória de Deus, p. 100. O amor que Deus tem para com réprobos (Mc 10.21), na teologia
reformada, não é um amor com intenção redentora. A intenção redentora do amor de Deus é imutável na teologia
reformada. Se no calvinismo o amor de Deus para com o ímpio graciosamente lhe concede bênçãos (Mt 5.45) e lhe
aponta o caminho de salvação (Mc 10.21), tal manifestação de amor não envolve aliança com promessas. Deus pode
6
PASSAGENS DIFÍCEIS
Tendo apresentado a eficácia e a definição da expiação tanto bíblica quanto
teologicamente, faz-se necessário terminar explicando os textos bíblicos que aparentemente
apontam para a posição contrária à que foi defendida até agora. Esses "textos problemáticos"
aparentemente propõem uma expiação universal. Vamos dividir essas passagens em três tipos:
há passagens que usam a palavra "mundo", passagens que usam a palavra "todos", e passagens
que dizem que aqueles por quem Cristo padeceu morrem.
Comecemos com os textos que usam a palavra "mundo". Não é difícil deduzir que o
Novo Testamento traz vários sentido para a palavra "mundo" (Ex: Jo 1.10). Às vezes significa
o universo material (Ef 1.4), às vezes o sistema corrompido (Gl 6.14), às vezes significa a vida
presente (Jo 18.36), ou grande quantidade de pessoas (Jo 12.18-19), além de outros sentidos.
Porém, ela nunca significa 'cada pessoa sem exceção'. Vejamos algumas das passagens mais
citadas pelos arminianos e observemos como o contexto próximo ou remoto nos ajuda a
compreender que o sentido não é de uma expiação univeral.
o "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." (Jo 3.16) – o "mundo" do
verso 16 é o mesmo mundo salvo por ele do verso 17, isto é, os que creem. O
contexto da conversa com Nicodemus é de uma salvação que atinge outras
etnias, antes do que ficar restrito à exclusividade dos judeus. Por isso, ao final de
João 4 que trata dos samaritanos, é dito que ele é "verdadeiramente o Salvador
do mundo" (Jo 4.42). O evangelho joanino, portanto, propõe uma
universalidade de raça, antes do que uma universalidade na oferta do sacrifício.
o "e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas
ainda pelos do mundo inteiro." (1 Jo 2.2) – Novamente o apóstolo João está
fascinado com a abrangência de alcance da obra de Cristo. O texto se refere não
só aos leitores da carta, mas a gente de toda parte. Já nas Anotações Holandesas, as
notas teológicas da tradução da Bíblia comissionada por Dort, eles citavam João
11.52 e Apocalipse 5.9, escritos do próprio João, para solidificar a ideia de que o
apóstolo se referia a uma salvação que extrapolava a sua geração para abranger
pessoas de toda parte que ainda creriam em Cristo.22 Além disso, vale destacar
que sua universalidade não se refere aos hereges que abandonaram a fé porque
“não eram dos nossos” (1 Jo 2.19), nem mesmo aos elitistas que reivindicavam
possuir um conhecimento especial para avançar na vida cristã (1 Jo 2.27), os
quais são separados dos fiéis.23 Enquanto os proto-gnósticos se consideravam
exclusivos, a ênfase de João é que a obra de Cristo era abrangente; o estreito

cessar a qualquer instante e não negar a si próprio. O amor redentor, em contrapartida, é um amor de aliança e esse
não pode cessar.
22
GATISS, “O Sínodo de Dort e a Expiação Definida”, p. 192.
23
LETHAM, A Obra de Cristo, p. 238.
7
paralelo no grego com a passagem de João 11.50-52 revela que a morte de Jesus
se aplica a todos os filhos de Deus que se acham dispersos pelo mundo.24
o "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as
suas transgressões" (2 Co 5.19) – O contexto do escrito paulino ajuda-nos a
enxergar que o "mundo" do verso 19 se refere a "nos" no verso 18 e "nós" no
verso 21; todos estes são os que estão "em Cristo" (v. 17). Portanto, o texto está
falando de um ministério de reconciliação que seja de alcance universal (gente
de toda parte), não de intenção universal (cada pessoa sem exceção).
Agora, atentemos para o segundo grupo de passagens, os textos que usam a palavra
"todos". O uso da palavra “todos” no contexto de expiação significa 'todos sem distinção' (Ap
5.9) antes do que 'todos sem exceção'. Há vários outros textos em que "todos" significa um
grande número de pessoas, mas que seria impossível se referir a cada pessoa do planeta em
toda a história (At 4.21; 21.28; Lc 21.17). Vejamos como isso pode ser verificado tanto nas
epístolas paulinas quanto nas epístolas gerais.
o "Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados
em Cristo." (1 Co 15.22) – Ainda que arminianos queiram enxergar que a
universalidade do pecado de Adão deve ser a mesma do "todos" por quem
Cristo ressurge, eles enfraquecem a eficácia pois sabem que nem todos são
vivificados em Cristo. Por isso, é importante compreender que o verso 22 se
refere a todos os que "são de Cristo" (v. 23). Paulo está fazendo um paralelo
entre os representados por Adão que morrem e os representados por Cristo que
vivem. A interpretação reformada reforça a eficácia da representação.
o "Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para
condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os
homens para a justificação que dá vida." (Rm 5.18) – Esse texto também apresenta
o paralelo entre Adão e Cristo. Porém, ele não pode significar que Cristo morre
por cada pessoa sem exceção assim como Adão era representante de todos. Essa
intenção de falar de uma expiação universal não é o foco do verso 18, pois o
verso 19 já fala de "muitos", tanto para Adão quanto para Cristo; isto é, se o
verso 18 parece apoiar a teologia dos arminianos, o 19 enfraquece pois fala de
"muitos" (não todos) em Adão. Por que essa troca paulina de palavras? Porque a
ênfase do texto não é na exatidão dos representados, mas no impacto dos
representantes.
o "...Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem
ao pleno conhecimento da verdade. Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre
Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por
todos..." (1 Tm 2.3-6) – Os versos 1 e 2 mostram que Paulo trata de pessoas de
diferentes classes sociais. O foco está na salvação de diferentes grupos de
pessoas.25 Além disso, Thomas Schreiner é hábil em demonstrar que há

24
HARMON, Matthew S., “Para a Glória do Pai e a Salvação do Seu Povo: A Expiação nos Sinóticos e na Literatura
Joanina”, Do Céu Cristo veio Buscá-la, p. 339-340.
25
A mesma interpretação se aplica a Tt 2.11, onde “todos os homens” é uma referência aos vários grupos de pessoas
mencionados nos versos iniciais do capítulo: homens (v. 2), mulheres mais velhas (v. 3-4), mulheres mais jovens (v. 4-
8
consenso até entre intérpretes avessos à expiação definida de que 1 Timóteo é
dirigida contra algum tipo de heresia exclusivista restrita a pessoas de bons
antecedentes familiares e morais (1.4, 12-17; cf. Tt 3.9). Por isso, seu foco estaria
em uma oferta a pessoas sem distinção, algo corroborado pelo seu próprio
ministério aos gentios (1 Tm 2.7; cf. At 22.15).26
o “... temos posto a nossa esperança no Deus vivo, Salvador de todos os homens,
especialmente dos fiéis.” (1 Tm 4.10) – Schreiner rejeita a interpretação de
reformados que querem ler o texto se referindo à graça comum (as benesses
deste mundo concedidas a todos os homens), pois nas pastorais a palavra
“salvação” sempre se refere à salvação espiritual.27 Ele prefere dizer que Deus é
potencialmente o salvador de todo tipo de pessoas – afinal, não há outro caminho
para a salvação –, mas que de fato Ele é salvador apenas dos fiéis. Não se deve
concluir que essa interpretação propõe dois níveis da expiação, mas
simplesmente que ela amarra duas verdades: que Deus é o único possível
salvador dos homens ao mesmo tempo que ele é o real salvador dos que creem.28
o "para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todo homem" (Hb 2.9) – No
original não existe a palavra "homem". O verso fala de provar a morte por
"todos". O contexto, porém, facilita-nos na explicação de quem são esses "todos"
por quem Cristo provou a morte. Refere-se aos "filhos" (v. 10, 13), santificados
(v. 11) e irmãos (v. 12).29 Mais adiante no capítulo, o autor afirma que com sua
morte (v. 14) Jesus socorre “a descendência de Abraão” (v. 16), uma frase
restritiva antes do que universal.30
o "... ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos
cheguem ao arrependimento." (2 Pe 3.9) – Existem duas linhas de interpretação
entre os reformados, ambas contrárias à leitura arminiana. A primeira é que a
abrangência da palavra "todos" é determinada pela palavra "convosco" no
próprio verso. Pedro se refere aos destinatários da carta, os crentes (2 Pe 1.1),
que na primeira carta ele chama de eleitos (1 Pe 1.1-2). "O que Pedro está
dizendo é que a aparente demora de Cristo é prova de Sua longanimidade para
com os eleitos, pois não pode permitir que nenhum deles pereça."31 Essa é a
interpretação de John Owen e de R. C. Sproul.32 A segunda interpretação é de
que Pedro estaria falando de uma vontade de desejo em Deus, que é distinta de
sua vontade de propósito, uma distinção teológica presente na história da
teologia. Deus não deseja a morte do ímpio (Ez 33.11), ainda que

5), homens mais jovens (v. 6), e escravos (v. 9-10). Além disso, o verso 14 foca nos crentes como alvo da obra
redentora de Cristo.
26
SCHREINER, Thomas R. "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, in Do Céu
Cristo veio Buscá-la, p. 455-456.
27
SCHREINER, "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, p. 462-463.
28
SCHREINER, "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, p. 466.
29
MURRAY, Redenção Consumada e Aplicada, p. 67.
30
SCHREINER, "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, p. 479.
31
ANGLADA, Calvinismo, p. 65.
32
SPROUL, O que é teologia reformada, p. 145-146.
9
soberanamente decida efetuá-la. Essa era a interpretação de João Calvino e de
Thomas Schreiner, conforme nossa leitura.33
Por último, há textos que parecem sugerir que alguns por quem Cristo morreu podem
perecer.
o "...não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu" (Rm 14.15) – "não
faças perecer" é levar alguém ao pecado, não levar alguém ao inferno. Afinal,
nem os arminianos creem que nós temos poder para levar alguém à condenação.
o "...até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si
mesmos repentina destruição" (2 Pe 2.1) – Pedro está usando uma linguagem
fenomenológica (aparentavam ter sido resgatados), na qual aqueles que um dia
professaram a Cristo como seu salvador agora estão negando esse salvador.
Pedro está falando de falsos mestres indo contra a sua profissão de fé, de que
foram resgatados por Cristo. Afinal, nossa interpretação sobre a apostasia (v. 1)
não pode ser contrária ao conceito de perseverança dos santos no final do
capítulo (v. 20-22).34
Ainda que exista alguma explicação acima que não tenha convencido aquele que tem
um posicionamento diferente do reformado, vale lembrar que as passagens do início da lição
apresentam uma grande gama de passagens que sustentam a expiação definida além de
problemas incontestáveis para a expiação potencialmente universal. Além disso, várias das
supostas passagens “contrárias” à expiação definida tem explicação bem razoável e
convincente. Se permanece a dúvida quanto a uma ou outra, devemos aplicar o princípio
hermenêutico de que Escritura interpreta Escritura.35 Isso significa que uma ou duas passagens
não devem nortear o que vinte ou trinta afirmam. Pelo contrário, as vinte ou trinta é que
devem dirigir nossa interpretação daquela uma ou daquelas duas passagens aparentemente
contrárias.
É por isso que o protestantismo nunca aceitou falar de justificação pela fé mais obras
apenas baseado em Tiago 2.24, e o cristianismo nunca aceitou falar que nosso Deus é mutável
baseado nas poucas ocorrências que falam que Deus “se arrependeu”. Isso se dá por causa do
princípio hermenêutico de que Escritura é a melhor intérprete da Escritura. Seus textos mais
claros interpretam aqueles que são mais obscuros.

33
SCHREINER, "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, p. 475-476.
34
SCHREINER, "Textos Problemáticos” para a Expiação Definida nas Epístolas Pastorais e Gerais, p. 468-474.
35
“IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o
verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser
estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.” Confissão de Fé de Westminster, capítulo 1,
parágrafo 9.
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