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EEB 453: Princípios de Aplicação Bíblica

Prof. Heber Carlos de Campos Júnior


Email: heber.campos@mackenzie.br

Aula 4: Aplicação sem superficialidade

Na aula 3 nós tratamos da natureza da aplicação falando que aplicar tem um caráter duplo
(crer e obedecer) e que isso envolve mais do que ações concretas (primeiro se atinge o coração).
Todavia, aplicação sempre exige resposta (um verbo), uma reação à convocação divina na
passagem: sermos gratos ao Senhor mesmo em meio às tribulações, reanimar outros com a
esperança calcada em promessas divinas, a prática do discipulado, etc. Por isso, sempre que
pregamos ou ensinamos, nós procuramos que a mensagem convoque a uma mudança (cognitiva,
emocional ou volitiva).
Nesta aula, nós aprofundaremos nossa reflexão sobre a natureza da aplicação para que
fujamos de uma aplicação superficial e repetitiva. Para tal, faremos considerações mais
aprofundadas sobre a natureza da aplicação, explorando a estrutura da mesma por meio de
perguntas que devem acompanhar a nossa reflexão e trabalhando o lugar ainda mais
proeminente que ela deve ocupar no sermão.

1. A estrutura da aplicação
Algumas pessoas têm a impressão de que aplicação está ligada apenas ao que temos que
fazer diante de Deus (coram Deo). Porém, aplicação é mais do que isso. Ela não se resume a
detectar o que fazer (e daí?), mas como fazer (e agora?). Dizer aos ouvintes que Jesus nos
conclama a pegar a cruz e segui-lo dia a dia, sem explicitar como fazê-lo, é praticamente não
aplicar. Dizer o que fazer, sem apontar como, pode ser desesperador. É como se alguém
estivesse afogando e você gritasse: “Nade! Nade!” O grito é verdadeiro, mas não é útil. O
ouvinte às vezes até sabe o que tem que fazer. Porém, poucas vezes ele ouviu alguém lhe
mostrar como fazê-lo. Stuart Olyott fala não só de duas perguntas, mas de três perguntas:
“O pregador não cumpre o seu dever, se apenas diz às pessoas o que fazer. Ele tem de
mostrar-lhes como e por que tal coisa é digna de ser feita. A Bíblia é sempre clara em
mostrar o que fazer. O “por que” é apresentado no seu ensino geral a respeito das bênçãos

1
da obediência – bênçãos que desfrutaremos tanto nesta vida como no porvir. O como é
exposto no ensino bíblico a respeito da sabedoria, e neste ponto o pregador precisa fazer
algumas sugestões práticas que abençoarão seu povo, e não somente falar com a
autoridade direta da Palavra de Deus.” 1
Observe como Olyott destacou a importância de providenciar “sugestões práticas” sobre
como fazer o que temos que fazer. Por exemplo, não basta terminar o sermão dizendo que temos
que ser santos. É preciso dizer como conseguimos fazê-lo. A Bíblia fala de desviar-se do mal
(Pv. 4.13-18), um elemento de sabedoria sobre como crescemos em santidade. Se prosseguirmos
para a importância do “por que” ser santo, somos lembrados pela Escritura que “sem santidade
ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14). Este é um exemplo de benção na vida porvir que deve
estimular a prática da santidade. Semelhantemente, se falarmos da importância do momento
devocional ou do culto doméstico, precisamos ilustrar como isso é feito. Modelos não devem ser
vistos como sacrossantos, imutáveis, mas são ilustrativos de como realizar alguma coisa.
Quando os discípulos pediram a Jesus que os ensinasse a orar, ele providenciou um modelo (Lc
11.1-4), não para ser repetido como mantra, mas para ilustrar o “como” da oração.
Em seu aclamado livro, Pregação Cristocêntrica, Bryan Chapell vai mais longe ao
levantar quatro perguntas que compõem a aplicação: o que, onde, por que, e como. 2 “O que” faz
a ponte entre o texto e princípios universais de vida cristã. “Onde” [e eu acrescentaria o
“quando”] leva em consideração as situações contemporâneas onde o ouvinte precisa aplicar um
princípio bíblico (amar o próximo que sustenta uma perspectiva política oposta à minha, ou que
cria filhos iracundos). “Por que” se preocupa com a motivação, pois os fariseus são a prova de
que é possível fazer coisas certas pelas razões erradas. “Como” provê os meios (recursos
espirituais) e a capacitação (passos práticos para nos alimentarmos da graça divina) para se
cumprir o que o sermão propõe. Poucos pregadores atentam para cada uma dessas quatro
perguntas.
A maioria dos pregadores e professores de Escola Dominical só conseguem pensar em
aplicações em termos de "o que". Em oficinas sobre aplicação, eu pergunto aos presentes como
eles aplicariam um texto fácil de entender como "Não furtarás". As respostas mais comuns são:
pirataria, sonegação de impostos, uso particular de recursos da empresa, plágio, "colar" na
prova, não pagamento do dízimo, displicência no trabalho (chegar atrasado, usar o tempo de
serviço para assuntos particulares), apropriar-se do sinal da TV a cabo de um vizinho, dentre
outras. Todos esses, por mais verdadeiros que sejam, estão apenas ligados à primeira pergunta:
"o que". Não que isso seja errado, mas aplicação não pode ser apenas isso. Pois, se listamos as
coisas erradas relacionadas ao oitavo mandamento, damos a impressão de que pecado é

1
OLYOTT, Stuart, Pregação Pura e Simples (São José dos Campos: Fiel, 2008), p. 109.
2
CHAPELL, Pregação Cristocêntrica, p. 223-230.

2
explicado apenas com atos. Criamos um checklist na qual as pessoas podem ser atingidas por
algum exemplo que demos, ou talvez ter a impressão de que até que cumpre bem o
mandamento. Em ambos os casos, estamos nutrindo legalistas! Estamos falando o que fazer ou o
que não fazer e só.
Pecado na Bíblia, por outro lado, envolve mais do que simplesmente ações. Pecado é uma
inclinação, uma disposição para a rebeldia, uma propensão presente em todos nós. Se tratamos
da motivação por detrás das ocasiões de furto, então começamos a entrar no "por que". Quando
falamos de motivações, abrangemos mais pessoas do que só a lista de atos. Pois todos temos
propensão para o pecado. Quando falamos que por detrás dos furtos estão a insatisfação, ou a
ganância, estamos entrando em uma área que abarca mais pessoas e mostrando que pecado é um
problema do coração, não simplesmente uma ação específica. Se é uma disposição de um
coração ainda não totalmente limpo, então somos mais inclinados à ganância do que queremos
admitir. Talvez seja por isso que Cristo fala mais sobre dinheiro do que sobre sexo, porque
temos mais dificuldade de admitir nosso problema com dinheiro. Tim Keller afirma que
reconhecemos nossa lascívia, nossa ira e até nosso orgulho com mais facilidade do que nossa
ganância. Não conhecemos muita gente que admite ser ganancioso, ainda que conheçamos
pessoas que admitem ser sexualmente impuros, iracundos e em alguns casos até orgulhoso.3
Ganância é um pecado que se esconde e, por isso, nós temos que demonstrar como nossas
motivações revelam nossos pecados.
Depois de falar das situações de pecado (o que?) e das motivações por detrás de nossos
pecados (por quê?), ainda não podemos encerrar para que nossa mensagem seja apenas
destrutiva aos nossos ouvintes. Eles precisam ouvir alguma notícia que lhes dá o caminho de
obediência a Deus no oitavo mandamento (como?). Nós temos essa mensagem, o evangelho de
Jesus Cristo, que sempre é aquela nos habilita a obedecer a Palavra de Deus. O evangelho de
Jesus não é apenas apresentar a Jesus como modelo, mas é falar de como sua obra nos possibilita
a cumprir o oitavo mandamento. Aquele que era rico se fez pobre por amor de nós (2 Co 8.9).
Quando nos deleitamos em suas riquezas (Ef 1.7, 18), e passamos a amar mais as riquezas que
ele nos concede do que os prazeres transitórios do pecado, então temos o impulso para obedecer
a sua lei. Se o pecado é trocar o amor do Pai pelo amor do mundo (1 Jo 2.15), então santidade é
substituir o amor transitório do mundo com um amor maior: o amor de Cristo (Jo 15.13). Nossas
aplicações não podem ficar restritas ao que fazer, mas precisam adentrar o campo das
motivações e encerrar com as boas novas do evangelho.
Ao afirmar que uma aplicação tem que se preocupar com mais do que simplesmente dizer
ao ouvinte “o que” fazer, não estou propondo que cada sermão tenha que ter múltiplas

3
KELLER, Timothy, Counterfeit Gods: The empty promises of money, sex, and power, and the only hope that matters
(New York: Riverhead Books, 2009), p. 52-53.

3
aplicações detalhando exatamente onde, por que e como devemos amar o próximo. Isso seria
inviável! Entretanto, ao apresentar dois ou três exemplos concretos de aplicação, estamos
auxiliando os ouvintes a aplicarem os mesmos princípios em situações paralelas. Teremos
suscitado um dilema ou emoção comum à condição humana, com o qual podem se identificar.
Quando pensamos na aplicação como o processo de apelar por uma resposta do ouvinte
às verdades expostas, é bom que se entenda que nem sempre essa resposta precisa ser uma tarefa
(orar mais, ajudar o próximo, participar de algum ministério, dar o dízimo, etc.). Às vezes,
quando estamos proporcionando aos ouvintes uma visão mais elevada de Deus, o Espírito já está
trabalhando e aplicando às vidas dos cristãos (trazendo descanso, consolo, segurança,
admiração, etc.). No entanto, aplicação sempre requer uma resposta. Por isso, às vezes aplicar é
convocar as pessoas a louvar a Deus, a se curvar diante do Altíssimo. Um texto como o de Isaías
40.12-31 leva as pessoas a contemplarem a majestade do Senhor e a confiar nele. Às vezes
aplicar é mais cognitivo quando promove uma mudança de cosmovisão em uma área nebulosa (a
relação do cristão com a cultura) ou sana uma dúvida perturbadora (qual é a vontade de Deus
para a minha vida?).
Entretanto, mesmo quando você chama o ouvinte a louvar ou descansar no Senhor, por
exemplo, você não deve parar simplesmente no “o que”. Leve o ouvinte a pensar nas
circunstâncias em que esse louvor e descanso tem sido negligenciado (“onde” e “quando”),
conduza-o a entender que devemos isso ao Senhor mesmo quando nosso espírito está abatido
(“por que”), e os meios que habilitam tal expressão de louvor ou descanso (“como”).

2. Aplicação é diferente de conclusão


Julgo ser importante tratar, ainda que brevemente, como a aplicação tem sido vista como
ocupando um único lugar no sermão ou aula: o fim. Apenas aplicar no final não deve ser uma
regra. Normalmente, é quando as pessoas estão mais cansadas. Na verdade, se feito assim
regularmente, pode até criar uma expectativa ruim no ouvinte de desligar-se durante o sermão e
só voltar a prestar atenção no final da mensagem, a parte relevante. No entanto, muitos de nós
fomos treinados a pensar que depois que você explica tudo, então você aplica. Alguns
pregadores até dizem: “Agora vamos concluir com algumas lições.” Não!! Aplicação não é
conclusão. Conclusão deve resumir a pergunta que o texto se propôs a responder (ideia
exegética) e a correspondente analogia para os ouvintes contemporâneos (ideia homilética). Mas
não se pode deixar as lições só para o fim. Se você aprendeu a pregar sermões em famosos
‘pontos’ (normalmente três), aplique ao menos ao final de cada ponto ou seção.
Bryan Chapell apresenta uma estrutura de sermão com aplicação após cada ponto
principal e, então, afirma:
4
“Reconheço, no entanto, que os pregadores podem optar por construir uma aplicação
concentrada na conclusão da mensagem como é típico de um sermão ‘puritano’.
Devemos apenas questionar se uma abordagem que exija que ouvintes prestem atenção
por vinte minutos (ou mais) antes do pregador tornar a mensagem relevante irá comunicar
bem em nossa época. Uma abordagem alternativa é a que o pregador oferece conclusões
gerais durante a mensagem que são tornadas mais particulares na conclusão ou oferecer
aplicações particulares no decorrer da mensagem que a conclusão reúne em um impulso
mais genérico e poderoso.” 4
Note que Chapell não está oferecendo modelos engessados, mas uma conscientização de que a
aplicação pode e deve estar entremeada em toda a exposição bíblica. 5
Ainda assim, não é preciso criar uma dicotomia muito grande entre exposição e
aplicação. Existem padrões diferentes de estruturar o sermão. Não precisa ser três pontos. Pode
ser mais indutivo ou dedutivo. Você pode começar com um dilema contemporâneo, mostrar um
dilema semelhante no texto bíblico, depois encontrar a solução evangélica no texto e fazer a
correspondente analogia para os nossos dias. 6 Quando o sentido do texto é claro (e.g. 7º
mandamento: “não adulterarás”), é possível passar a maior parte do sermão/aula fazendo uma
exposição apologética da ética cristã da sexualidade em contraposição aos padrões pagãos da
atualidade.
Na verdade, um bom sermão começa o processo de aplicação logo no início da
mensagem com aquilo que chamamos de “introdução”. A introdução não é contar uma história
para dar tempo das pessoas se concentrarem antes de ouvirem o tema. A introdução também não
é mera apresentação do percurso a ser seguido (tema e divisões). Mais do que isso, uma boa
introdução é aquela que suscita um problema, que desperta o interesse do ouvinte, que o move a
ouvir o sermão por causa da contemporaneidade do problema e pela alegação do pregador de
que a Bíblia traz iluminação sobre essa questão. Portanto, uma pregação preocupada com
aplicação irá começar o processo de aplicar logo no início e responderá aos questionamentos e
dilemas ao longo da mensagem.
Tim Keller apresenta a importância de entrelaçar a aplicação em todo o sermão. Primeiro
sugere que as aplicações de todo o sermão sejam reunidas no fim para ir mais profundamente em
especificidade. Em segundo lugar, sugere fazer perguntas diretas. 7 Depois alerta-nos para

4
CHAPELL, Pregação Cristocêntrica, p. 231, nota 36 (minha tradução).
5
Isso não significa fazer uma aplicação após cada versículo de uma exposição. É mais natural compreender como o texto
sagrado se divide e, ao quebrar em seções, fazer aplicações de cada seção.
6
Cf. WILSON, Paul Scott, The Four Pages of the Sermon (Abingdon Press, 2010).
7
O problema de aplicar com perguntas é que elas têm função limitada e podem funcionar contrariamente ao que um pregador
pretende. Se em um sermão sobre serviço, o pregador pergunta “Você é uma parte ativa do corpo de Cristo? Você tem usado
seus dons e recursos de tal forma que Cristo tem edificado o corpo por seu intermédio?”, ele está esperando que a reposta dos

5
antecipar objeções e dúvidas. Por fim, ele relembra a importância de equilibrar as muitas formas
de aplicação (admoestações, encorajamento, consolo, apelo).8
O ponto desta seção é mostrar que aplicação sempre tem que estar presente no sermão,
mas não necessariamente dentro de uma mesma estrutura. Inclusive, é saudável que aprendamos
a variar um pouco a nossa estrutura de mensagem a fim de não sacralizarmos determinado
modelo.

Conclusão
Vimos como a aplicação fica muito mais palpável quando vamos além do “o que fazer?”
para explorarmos quando, porque e como. Esse aprofundamento da vida cristã sugere diferentes
situações, explora motivações e apela para a força motriz do evangelho a fim de nos conduzir a
uma vida íntegra. Isso sim é uma aplicação profunda, não superficial!
Em segundo lugar, vimos que aplicação não deve ser restrita ao fim, como se fosse a
conclusão de um sermão ou aula, mas deve estar entremeada em toda a exposição. Pelo
contrário, a aplicação pode ser tão norteadora da mensagem/aula que ela pode ser suscitada no
início em formato de problemática e respondida com a explicação do texto e consequente ponte
para o problema hodierno. Portanto, aplicação é muito mais importante do que apenas o
fechamento de uma exposição bíblica. Dedique-se à aplicação.

ouvintes em pensamento seja “não”, constrangendo-os a servir mais. No entanto, se alguém responde “sim” em seu
pensamento, a aplicação acabou de incentivar sua “autojustiça”. Certa vez, pregando em Romanos 12.3-8, eu falei sobre os
diferentes dons e como exercê-los. Um presbítero me disse que quando eu explicava os dons ele se julgava possuidor de
vários deles, mas quando eu demonstrei como devem ser utilizados ele percebeu que falhava em praticamente todos. Neste
caso, fica claro que a aplicação não visa uma mera reação de “sim” ou “não” às perguntas, mas de demonstrar que até um
homem maduro na fé (presbítero) reconhecia estar aquém do padrão bíblico de serviço. Minha conclusão não é que perguntas
nunca devam ser usadas. Afinal, a própria Escritura aplica com perguntas retóricas (Rm 8.31-32; 2 Co 13.5). No entanto,
quem sempre utiliza perguntas tende a demonstrar falta de especificidade e superficialidade, jogando ao ouvinte a
responsabilidade de escrutinar-se em relação ao princípio bíblico.
8
KELLER, Preaching the Gospel in a Post-Modern World, p. 89-91.

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