Você está na página 1de 28

O mistério da espiritualidade

monástica ortodoxa
E. BEHR SIGEL,
(«La Igresia reza»- DDB. Pp. 9-48)
Tradução: Pe. André Sperandio

Fonte: Mercaba.org

Introdução

Também chamada «trabalho espiritual» (em


eslavo: doukhovnié diélanié), a Oração de Jesus encontra-se no
coração da tradição ascética e mística do monaquismo
contemplativo ortodoxo. Suas raízes remontam a mais alta
antiguidade cristã, particularmente, a espiritualidade dos Padres do
Deserto. É preciso, no entanto, ver nele mais que uma venerável
relíquia de uma época arcaica, considerada mais em seu aspecto
exótico pelos ocidentais. Método de oração simples e ágil, a Oração
de Jesus conserva a sua atualidade. Pode ser adotada por homens e
mulheres de hoje, adaptando-se à sua mentalidade e ao seu modo de
vida. Irradiando para além do âmbito monástico, tem ajudado os
leigos que vivem no mundo a unificar suas vidas segundo o espírito
de Jesus Cristo.

Historicamente, a prática da Oração de Jesus nasceu do


encontro de duas diferentes correntes espirituais: de um lado, o
culto bíblico (mais especificamente, o semita) dos Nomes de Deus; e
por outro, a prática da oração, chamada «jaculatória» nos meios
monásticos do deserto. Prescindindo de crenças mais ou menos
mágicas, na Bíblia, com efeito, a ideia do Nome divino corresponde a
revelação, manifestação dinâmica da Pessoa do Deus transcendente.

Muitos são os textos do Antigo Testamento que poderiam


ser citados a este respeito. Nos Salmos, particularmente, o Nome de
Deus aparece como refúgio, potência auxiliadora. Há, porém, que
evocar, sobretudo, as múltiplas referências ao Nome de Jesus no
Novo Testamento onde se encontra uma grande diversidade de
fórmulas, cujas tradições, em português, «Em o Nome de Jesus», e no
latim, «In nomine...», são incapazes de expressar a rica complexidade
e seu dinamismo. Três textos são capitais: Fp 2,9-10; At 4,12 e Jo
16,23-24. Quanto a oração jaculatória, Santo Agostinho, a quem
devemos sua descrição, faz referência a ela desde o século IV entre
os monges do deserto egípcio sob a forma de orações frequentes,
porém muito breves e como que «lançadas
rapidamente» (quodammodo jaculatas). A fórmula empregada para
as invocações era o «Kyrie eleison» ou um versículo do saltério. Num
dado momento, porém, o Nome de Jesus é associado à oração
jaculatória. E esse encontro, essa fusão entre o Nome e a aspiração
será obra de uma escola mística designada pelo nome genérico
de hesicasmo. Trata-se de um movimento que se estende ao longo
dos séculos (do V ao XIII, em certa medida, até os nossos dias), o
hesicasmo experimentou uma evolução de tendências e expressões
diversas. O que o mantém em sua continuidade é a busca de uma
técnica contemplativa destinada a unificar e pacificar o homem
interior, em Cristo, pela graça do Espírito Santo.

Após um certo eclipse, no século XII, a Oração de Jesus


conhece, paradoxalmente, um renascimento no «século das Luzes»
da Razão. Sinal e instrumento, ao mesmo tempo, desta renovação, a
publicação, em 1873 de uma antologia de textos hesicastas com o
título de Filocalia, (isto é, «Amor à Beleza»), abre um período de
difusão da Oração de Jesus nos diferentes países ortodoxos e nos
mais variados meios fora do seu ambiente monástico original.
Traduzido para o russo com o título de «Dobrotoliubé», este libro
influenciou de tal modo o povo russo, chegando mesmo a superar
a Filocalia no ambiente grego. Na Dobrotolioubé, não apenas os
monges, mas também as pessoas mais simples das aldeias, homens e
mulheres de todos os meios, familiarizaram-se com os Padres, com o
espírito e os métodos da oração contemplativa.

Depois da Revolução de 1017, a emigração russa, que se


instala com muita dificuldade na Europa e na América, conhece uma
discreta «primavera filocálica». Por sua mediação, a Oração de Jesus
irá penetrar em certos meios cristãos ocidentais e, sobretudo,
anglicanos. Praticada, ao mesmo tempo, pelo trabalhador no interior
das fábricas ou nas profundezas das minas e pelo professor de
teologia, despoja-se, neste novo contexto histórico, de
conceptualizações herdadas do passado para encontrar de novo sua
espontaneidade e sua simplicidade original. Assim se revela no que
foi sempre sua essência: não uma crença na virtude mágica de uma
fórmula, senão, atenção à presença de Deus, da que o Nome Divino é
sacramento; não alienação em um mecanismo obsessivo, senão arte
espiritual que guiando a inteligência do mundo dos fenômenos até
às profundezas do coração, isto é, da pessoa, prepara este coração
para receber o perdão, a paz, a iluminação; não a abolição do
pensamento e da consciência pessoais, senão encontro comunicante,
lúcido, com a pessoa humano-divina de Jesus.

Ainda exigindo silêncio e um retiro, ao menos interior, do


mundo a Oração de Jesus é também instrumento de oblação e de
transfiguração de toda criação. Na espiritualidade monástica
tradicional, chega assim a integrar um dos temas essenciais da
filosofia religiosa russa moderna: a visão de um mundo
transfigurado em esperança. Um autor leigo, Nadejda Gorodetzky, é
talvez quem tenha falado com mais precisão e sobriedade sobre o
uso prático da Oração de Jesus, tal como pode ser experimentada
por um cristão que vive no mundo de nossos tempos, e da inspiração
que nela se pode encontrar: «A Oração de Jesus», escreve em um
artigo publicado em Black Friars, revista dos Dominicanos ingleses,
«é tão simples que não é necessário qualquer aprendizagem para
usá-la... Muitos se entregam ao seu trabalho habitual repetindo esta
oração. Nem o trabalho em casa, nem o trabalho no campo, nem o
trabalho nas fábricas são incompatíveis com ela. Também é possível,
ainda que mais difícil, unir esta oração contínua aos trabalhos
intelectuais. Preserva-nos de muitos pensamentos e palavras vãs ou
pouco caritativas. Santifica o trabalho e as relações diárias... Depois
de certo tempo, as palavras da invocação parecem vir por si mesmas
aos lábios. Introduzem cada vez mais na prática da presença de
Deus.... As palavras parecem gradativamente desaparecer... Uma vela
silenciosa que acompanha uma profunda paz do coração e do
espírito se manifesta através do do tumulto da vida de cada dia... O
Nome de Jesus pode se tornar uma chave mística que abre o mundo,
um instrumento de oblação de cada coisa e de cada pessoa, uma
aplicação do selo divino sobre o mundo.
Talvez seja o momento de falar aqui do sacerdócio comum
de todos os crentes. Em comunhão com o nosso Sumo Sacerdote,
imploramos ao Espírito: ‘Torna-me sacramento’». Em conclusão,
gostaria de sublinhar o alcance ecumênico da Oração de Jesus. Como
escreve o monge da Igreja do Oriente:

«A invocação do Nome de Jesus foi, no início, comum a todos, e segue sendo aceitável
a todos, acessível a todos» os que foram batizados em Cristo. Pode realmente então
reunir os cristãos, ainda dolorosamente divididos em outros planos institucionais ou
sacramentais. Levando ao aprofundamento do relacionamento do crente com a
pessoa divino-humana do Filho do Homem, a oração de Jesus, também nos introduz
nesta comunidade de pessoas in Christo per Spiritum Sanctum que os Padres
chamavam de »a comunhão dos santos».

A Oração de Jesus

Um dos elementos mais importantes de qualquer regra de


oração monástica na Igreja Ortodoxa, é a «Oração de Jesus», também
denominada simplesmente de «Oração» ou «ação espiritual» [1]. Sua
forma exterior – poderíamos dizer, seu «material» - é a repetição
com a maior frequência possível, do nome de Jesus Cristo, associada
à oração do publicano (Lc 18,14), nestes termos:

«Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus,


tem piedade de mim, pecador».

Sua essência espiritual é a «descida da inteligência ao


coração» chegando, pela purificação do pensamento e a recordação
constante de Jesus Cristo, à iluminação do homem interior pela
graça divina e a tomada de consciência da habitação mística no
Espírito Santo.

A prática desta oração é uma antiga tradição muito


venerável na Igreja do Oriente. Brota de uma corrente espiritual que
remonta os Padres do Deserto e é a expressão teológica do
ensinamento dos grandes pensadores cristãos dos séculos II a IV.
Pouco ou mal conhecida no Ocidente, esta grande tradição mística,
em certo sentido, alma da teologia oriental, tem suscitado, não
obstante, há muitos anos, interessantes investigações e trabalhos .
Tais estudos, desenvolvidos por especialistas da literatura
patrística grega, geralmente ignoram as formas mais recentes que
revestem a tradição mais antiga no seio das igrejas eslavas e gregas
modernas, tradição viva sem a qual os textos antigos
permaneceriam desconhecidos.

Como escreveu Pe. Hausherr:

«A questão do hesicasmo [2] não apresenta apenas um interesse histórico -


demasiado suficiente para merecer a atenção dos investigadores neste tempo de
renovação dos estudos acéticos e místicos - senão que conserva a sua atualidade no
Oriente ortodoxo».

Além disso, alguns estimam que, de todos os problemas cujo


estudo se impõe aos que se preocupam com o futuro religioso grego
ou eslavo, este seja o mais importante. E, no entanto, tudo ainda está
por fazer: os textos permanecem encerrados nos manuscritos pouco
abundantes de eruditos ou, se alguns já foram publicados, mais
difícil ainda é encontrar os livros. Acrescente-se ainda que a
literatura ascética e mística russa, que poderia fornecer
ensinamentos preciosos sobre a permanência e a renovação da
prática da oração espiritual, permanece quase que completamente
desconhecida no Ocidente.

«Sabei que a obra divina da santa oração espiritual foi a ocupação constante de
nossos antigos padres teóforos e que, como o sol, assim brilhou entre os monges em
inúmeros monastérios e eremitérios onde se vivia a vida comunitária, no Monte Sinai,
nos solitários do Egito e do deserto mítico, em Jerusalém e nos monastérios situados
ao redor desta cidade, em uma palavra, em todo o Oriente, em Constantinopla, no
Monte Athos, nas ilhas do arquipélago e, finalmente, nestes últimos tempos, pela
graça de Deus, na grande Rússia».

Com estas palavras começa o primeiro dos capítulos sobre a


oração espiritual do grande staretz russo do século XVIII, Pe.
Velitchkovski. De modo que, de acordo com o testemunho de um dos
mais zelosos promotores da «oração espiritual» no monaquismo
russo dos tempos modernos, a prática da mesma remonta à mais
alta antiguidade cristã e é parte da herança sagrada da tradição
ortodoxa. Por sua obra literária, Paisios Velitchkovski e seus
discípulos se propunham a, além de ensinar aos monges eslavos os
textos patrísticos gregos que tratavam da «Oração de Jesus»,
mostrar que seus seguidores não eram inovadores, mas que, pelo
contrário, estavam conectados com uma antiga e venerável tradição
da Igreja. Isto foi, em particular, um dos objetivos ao traduzir a
famosa Filocalia, que foi, durante a primeira metade do século XIX,
com a Bíblia e o Grande Menológion de Dimitri Rostov, o alimento
espiritual preferido dos monges russos. A escola de Paisios, por seu
turno, não fazia mais que seguir o trabalho iniciado no século XVI
por São Nilo Sorski, primeiro escritor russo no qual temos uma
exposição sistemática da «obra espiritual».

Embora a obra de Nilo Sorski, de Paisios Velitchkovski e seus


sucessores não tenha um caráter estritamente científico, as
investigações dos historiadores modernos confirmaram, em
conjunto, a precisão de suas intuições. E, assim, as obras de Í.
Hausherr e de M. Viller parecem demonstrar que o hesicasmo
athonita do século XIV se encontra enraizado na antiguidade cristã
mais venerável, de acordo com I. Hausherr, Evágrio Pôntico (†399),
discípulo de Macário, o Grande, o organizador do monasticismo no
deserto de Scitia e dos grandes doutores da Capadócia, Basílio, o
Grande, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, que formulou
pela primeira vez esta doutrina da «oração pura» que se encontra
entre os teóricos da «Oração de Jesus».

Mas, a mesma doutrina de Evágrio, tal como consta em


sua «De Oratione», é uma síntese de elementos mais antigos, a da
sabedoria ascética dos Padres do deserto e da sabedoria filosófica e
mística dos alexandrinos, em particular, de Orígenes. Quando, até o
século VIII, uma concepção unicamente ascética, hostil à mística,
parecia triunfar no monaquismo bizantino, sob a influência de
Teodoro, o Estudita, foi dos monges do Sinai o mérito de preservar a
tradição evagriana. Não apenas associaram a mística da «oração
pura» à prática da oração monológica, que consiste principalmente
da invocação do Nome de Jesus, mas também contribuíram
muitíssimo para difundir no mundo monástico uma piedade
centrada em torno da pessoa de Cristo, mantendo com Ele relações
repletas de uma ternura e de uma intimidade geralmente estranhas
à religiosidade propriamente bizantina.
«Que a recordação de Jesus esteja unida ao teu alento», diz
São João Clímaco, o grande mestre da vida monástica do Sinai, e
estas palavras se tornaram o leitmotiv da doutrina hesicasta «oração
espiritual». Se São Gregório, o Sinaíta, promotor no século XIV do
movimento hesicasta nos monastérios do Monte Athos, recomenda
mais do que qualquer outra leitura a das obras de São João Clímaco,
de Filoteo, o Sinaíta, e a das Centúrias de Hesíquio, é porque
reconhecia, com razão, que esses «pais da espiritualidade sinaitica»
também foram os pais espirituais da sua própria doutrina. Um
estudo detalhado desta filiação extrapolaria o âmbito deste estudo.
Limitemo-nos, pois, a constatar que, apoiando-se nos Padres da
Escola Sinaítica e, particularmente, em São João Clímaco, Gregório
coloca a oração no centro da vida espiritual. «Morada e união do
homem com Deus», a oração está também para ele, como para seus
mestres espirituais, na origem de toda a atividade intelectual e
moral, por ser «fonte de todas as virtudes, alimento da alma, mãe
das lágrimas e iluminação do espírito». A distinção estabelecida por
ele entre os distintos graus de oração, caracterizados por uma
exclusão cada vez mais radical de toda a imagem sensível, deriva,
sem dúvida, diretamente da «Escala do Paraíso». Assim, aparece
claramente que Gregório, o Sinaíta, não introduz, no século XIV, nos
monastérios de Monte Athos, uma nova doutrina, mas transmite ao
monaquismo athonita e, através dele, aos cristãos eslavos e gregos
modernos, o grande patrimônio da tradição ascética e mística do
Oriente.

Mencionamos acima a obra de


Nilo Sorski e de Paisios Velitchkovski,
monges russos, que chegaram em
peregrinação na Santa Montanha e que
trouxeram consigo, junto com um
profundo conhecimento da literatura
patrística, a prática de «arte espiritual»,
ou seja, a iniciação à oração de Jesus.
Lançada assim em terra russa as
sementes da antiga árvore produziriam
lá uma nova e abundante floração. Entre
aqueles que, na Rússia, recolheram a Aba Paísios de Monte Athos

herança do hesicasmo grego, citamos: São Serafín de Sarov (1769-


1833), os grandes staretz de Optino Poustine, Leon (1769-1841),
Macário (falecido em 1860), Ambrósio (1812-1891), os bispos
Ignácio Briantchaninov (1807-1867) e Teófano Covorov, chamado
Teófano o Recluso (1815-1894). Mais próximo ainda a nós, o Padre
João de Kronstadt (falecido em 1908).

Banhando, porém, estas cordilheiras, corre o grande,


profundo e misterioso rio de orantes, pouco conhecidos ou
totalmente desconhecidos, religiosos e religiosas, sacerdotes e
monges, peregrinos e «inocentes», perambulando de santuário em
santuário pelas grandes rotas da Rússia, simples leigos finalmente,
ocultando o tesouro da oração mística sob as aparências de uma
vida banal. Um dos testemunhos mais curiosos desta difusão da
«oração de Jesus» no povo russo é o dos relatos verídicos de um
peregrino ao seu pai espiritual, obra anônima e popular que data da
segunda metade do século XIX. Relata a experiência de um destes
orantes desconhecidos que caminha errante através dos bosques,
florestas e estepes siberianas, trazendo com ele, como seu único
bem, uma Bíblia e um exemplar da Filocalia. Buscando primeiro e
acima de tudo a solidão, acontece, no entanto, encontrar-se com um
aldeão, com um funcionário, com um proprietário de terras ou com
um irmão que compartilha sua busca de uma vida totalmente
transfigurada pela oração.

Outras obras russas consagradas à «oração espiritual»


revelam experiências espirituais diversas, algumas das quais levam
a marca de uma intelectualidade bastante refinada. Tais são os
capítulos sobre oração espiritual do staretz Paisios Velitchkovski
vários prefácios de obras patrísticas de seu amigo, o staretz Basílio,
as Instruções de São Serafim de Sarov, as Cartas sobre problemas
relacionados com a fé e a vida do Bispo Teófano Govorov. Todas
estas obras são fontes muito ricas para a compreensão da «oração
espiritual». Não se pode esquecer, no entanto, que a tradição desta
oração foi transmitida principalmente por um ensino oral direto.
Uma pouco afastada dos grandes centros monásticos russos, mas
sempre em estreita relação com eles, encontrava-se muito
frequentemente uma «poustinia», ou seja, um eremitério, ou um
«sket», nome dado a um pequeno grupo de células isoladas em que
vivem alguns monges sob a direção de um «aba», ou ancião. Ali,
longe do ruído dos peregrinos e da vida comum do monastério, um
ou mais solitários se dedicavam ao trabalho espiritual. Alguns
poucos visitantes eram admitidos, leigos ou jovens monges que
tivessem sentido o «chamado à solidão». Ali recebiam a iniciação na
oração espiritual, iniciação sempre muito pessoal, adaptada ao
temperamento e ao nível de maturidade espiritual do discípulo.
Todos os starets russos, de Paisios Velitchkovski a Teófanes, o
Recluso, sublinharam a necessidade, aos que querem se inscrever no
caminho da oração contemplativa, de recorrer a um mestre
experiente e de seguir seus conselhos em um espírito de total
submissão. Diz o staretz Paisios:

«Os Santos padres designam a esta santa oração de uma arte. A razão é que, penso
eu, assim como é impossível a alguém instruir-se em uma arte sem que receba lições
de um artista experiente, é igualmente impossível consagrar-se a esta 'obra espiritual'
sem a direção de um bom mestre».

Segue-se, portanto, que todo conhecimento racional que se


adquire dos livros sobre a «obra espiritual», que não é
acompanhado por uma experiência vivida na companhia de um
mestre espiritual, é inadequado e esquemático.

Já definimos brevemente a «oração espiritual» como uma


«invocação do nome de Jesus» realizada pela inteligência (ou o
espírito) no coração. Convém agora precisar o sentido desta
definição. Afirma, em primeiro lugar, que o conteúdo objetivo
essencial da oração é o «nome de Jesus Cristo». O starets Paisios, no
capítulo V de seu opúsculo, descreve-a como o ato de «levar
constantemente no coração o dulcíssimo Jesus e estar inflamado
pela constante lembrança de seu amado nome com um amor
inefável por ele» [3]. É muito impressionante que esta definição
estabeleça um estreito laço entre o «Nome» e a «Pessoa» de Jesus
Cristo. Invocar o Nome de Jesus, é já levá-lo consigo. O poder do
Nome é o próprio Cristo. O fogo da sua graça, revelando-se no Nome
do Senhor, inflama o coração com amor divino e inefável. Qualquer
interpretação «psicológica» e «nominalista» seria aqui equivocada.

A «oração de Jesus» não é um exercício para criar, por uma


repetição mecânica, uma espécie de monoideismo psicológico.
Trata-se, não de remontar um mecanismo psíquico, mas de liberar
uma espontaneidade espiritual, esse «grito do coração», que faz
brotar, como uma fonte viva, a presença do Senhor, comunicada pela
pronúncia do Nome divino. O Nome de Cristo é, portanto, aqui
certamente algo distinto de um simples sinal. É um símbolo se, por
este termo, se designa o que é o instrumento de uma comunhão real
com o objeto significado. Revela o Verbo divino e o representa, ou
seja, o torna presente de um modo comparável com o ícone, na
Igreja Ortodoxa, representa e atualiza para o crente o poder de
Cristo e de seus santos. Isto mostra que, para os defensores da fé, a
«oração de Jesus», sua pronúncia, seja, por um lado um «meio», e
por outro o «fim» mesmo da vida espiritual. É um meio, porque «as
palavras são um auxílio para o espírito débil para quem é difícil
fixar-se em um lugar e sobre um único objeto». O grande mal da
humanidade caída é a desordem interior, a dispersão dos
pensamentos e dos sentimentos, que fazem o homem incapaz de
fixar seu espírito em Deus. A oração, e mais do que qualquer outra, a
«oração de Jesus», tende a recriar a unidade espiritual, e isto não
apenas porque «resume em algumas poucas palavras muito simples
a essência da fé cristã», mas porque o Nome de Cristo comunica ao
homem a força da graça divina que o torna capaz de afastar os
poderes diabólicos, cuja presença engendra a desordem e a mentira.
Chamando em sua ajuda o Senhor Jesus na luta contra o inimigo e
contra as paixões, o que ora é testemunha de sua derrota ante o
temível Nome de Cristo, e reconhece o poder de Deus e da sua ajuda.

Mas, se na luta contra as forças do mal, cuja obra é a


desintegração espiritual do homem, a oração de Jesus é um meio, um
instrumento, encontra em si mesma o seu próprio fim. A realidade
transcendente de Deus, ao revelar-se e comunicar-se em o Nome de
Jesus Cristo, tem como fim o absorver-se no ato de pronuncia-lo,
permitir ao Nome, isto é, à Pessoa de Jesus, apropriar-se de seu ser
por inteiro, principalmente do coração, até que sua própria
palpitação se converta em oração, em glorificação do Nome do
Senhor. Enquanto a oração é mecânica e cerebral, o fim ainda não
terá sido alcançado. É preciso que o espírito, de certa forma, se
submerja na oração, que a oração tome plena posse dele para que a
irradiação do Nome divino penetre até a profundidade do ser e a
ilumine. Este é o sentido das palavras misteriosas dos starets
exortando aos seus discípulos «a baixar do cérebro ao coração» [4].
Não se trata aqui de um esforço puramente intelectual de
assimilação do significado das palavras da oração acompanhando-as
de um certo calor emocional. O nome de Jesus Cristo contido na
oração «aporta», em realidade com ele, a presença de Deus. O
esforço de quem ora está em abrir-se a essa «presença real» e deixá-
la penetrar nas profundezas mais íntimas do seu espírito para que
as ilumine. Do ponto de vista subjetivo, ou seja, do ponto de vista da
ascensão do homem, os starets costumam distinguir dois graus na
«obra espiritual». (Sem dúvida, há de fato, um número infinito, mas
esta primeira distinção é essencial). Assim, de acordo com o
testemunho dos «anciãos», haveria, aos que se entregam à «obra
espiritual» um primeiro período em que predomina a sensação de
esforço pessoal e doloroso: é a «oração ativa» ou «laboriosa». O
segundo período é o da oração «carismática», chamada também
«espontânea» ou «contemplativa» [5].

A oração ativa

Dizer que nesta fase da obra espiritual predomina, pelo


menos aparentemente, o esforço da vontade humana, não significa
de modo algum dizer que a graça esteja ausente. A graça pode sim
estar atuando, mas sem que dela se tenha consciência. Trabalha-se
até o suor do rosto, mas o trabalho não frutifica. Sem dúvida, é a
solicitação da graça divina que faz com que o homem se decida a
dedicar sua vida a Deus e a aspirar o dom da oração espiritual. Mas,
para começar, o que lhe faz fracassar não é, em parte, senão um
trabalho fastidioso, uma luta desigual contra as paixões, os maus
pensamentos, o tédio e a tristeza, luta na qual muitas vezes é
derrotado e da qual sai extenuado, exausto, desencorajado pela
deprimente visão de seus próprios pecados e de sua impotência. É
este o sinal de privação da graça divina? Não. Pois é aí precisamente,
onde queria levá-lo:

«O caminho para a perfeição é o caminho que conduz à confissão da minha cegueira,


da minha pobreza, da minha nudez e, indissoluvelmente ligado à consciência deste
estado, à contrição espiritual, ao sentimento doloroso da nossa impureza, em outras
palavras, ao arrependimento perpétuo» [6].
Assim, no limiar da via que conduz aos graus mais elevados
da oração mística, encontramos, de acordo com o ensinamento dos
starets russos, o aprofundamento da consciência de nosso estado de
pecado e a contrição por causa deste pecado. Isso significa que, para
os defensores da «oração espiritual», o combate ativo contra o mal e
o trabalho ascético, propriamente dito, não contam nada? De modo
algum. A luta contra as paixões, os vãos ou maus pensamentos,
caracteriza precisamente a primeira fase da obra espiritual, a da
«oração laboriosa». Nela o ascetismo tem seu posto bem definido
[7]. De acordo com os Padres, vale mais, sem dúvidas, «cair e
selevantar do que estar de pé e não se arrepender». Mas, por outro
lado, é perigoso espiritualmente dar-se à oração em estado de
pecado grave. Ai daquele que se compraz em uma falsa inquietude,
agarrando-se à ideia de que ninguém pode viver sem pecar,
voluntária ou involuntariamente. Pelo contrário, é saudável para o
homem lutar corajosamente contra o pecado até o esgotamento de
suas forças. Após a queda, se levantará implorando humildemente a
ajuda da misericórdia de Cristo. Trabalhando e sofrendo, estará
verdadeiramente vivo e lançará em si os alicerces da nova vida.
Portanto nenhum quietismo, nenhuma passividade covarde, mas ao
mesmo tempo, nenhuma confiança em si mesmos ou em suas
próprias obras.

Teófano, o Recluso é o que mais claramente expressou essa


dupla e paradoxal exigência da obra espiritual:

«Trabalhai até a exaustão. Esforçai-vos tanto quanto possível, mas a obra de vossa
salvação, esperai-a tão somente do Senhor... O Senhor deseja sempre tudo o que
aproveita para a nossa salvação e está pronto a nos conceder. Espera, tão somente,
que estejamos prontos e capacitados para receber os seus dons. Por isso, a pergunta:
-«como posso aprender a cuidar de minha alma? É substituída por esta outra: -
«Como posso estar sempre preparado para receber o poder da salvação que está
sempre pronto a descer do Senhor sobre nós»? E, eis aqui a resposta à esta pergunta:
abrir-se para a graça é «tornar-se vazio, desprovido de razão, sem força; é saber que
só o Senhor pode, quer e sabe como preencher este vazio» [8].

Assim, o esforço moral e espiritual e as manifestações


ascéticas que são sua expressão, não são fecundas se não levam à
humildade, uma humildade ativa, que não se compadece ante o
espetáculo da miséria humana, mas que a conduz à sua obra
essencial que é, ao mesmo tempo, a confissão de sua impotência e o
sinal de sua esperança, a oração de todos os momentos: «Senhor
Jesus Cristo, tem piedade de mim, pecador».

Para quem conhece a sua miséria, esta não é efetivamente


uma «obra meritória» agradável a Deus, mas um grito do coração, de
desespero e de esperança, uma necessidade irresistível e perpétua
de chamar a Cristo em auxílio à sua impotência na luta contra as
forças do demônio e más inclinações do seu próprio coração, que se
tornam seus cúmplices. Antes de falar da obra da oração
propriamente dita, é preciso ainda mencionar uma outra condição
que deve ser cumprida, segundo o ensinamento dos «anciãos», o que
aspira a «oração espiritual». Trata-se da aquisição da virtude da
obediência. A obediência a qual nos referimos aqui não é a
obediência hierárquica, aos superiores. É a submissão ao «pai
espiritual» escolhido livremente e ao qual o noviço [9] se entrega
por inteiro, de corpo e de alma. Quem quer fazer a aprendizagem da
obra divina deve, de acordo com as Escrituras, se submeter à
obediência em corpo e alma, isto é, sujeitar-se a um homem temente
a Deus, que guarda escrupulosamente os mandamentos divinos,
experiente na obra espiritual, renunciando completamente à sua
vontade e ao seu próprio juízo» [10]. Os ensinamentos dos «starets»
russos coincidem com a doutrina ascética dos hesicastas gregos.
Porém, mais, talvez, do que estes, põe seu acento no caráter livre e
pessoal deste ato de eleição recíproca que implica a paternidade
espiritual.

Qual é o objeto desta obediência ascética?

Em primeiro lugar, libera o noviço de todo o cuidado a


respeito de sua alma e de seu corpo e de todo o apego a qualquer
objeto, fazendo-lhe chegar assim a essa serenidade, a essa agilidade
espiritual que são as condições para a verdadeira liberdade. Só
quem tiver renunciado a sua «própria vontade», ou seja, à sua
individualidade superficial, escrava dos elementos deste mundo, é
capaz de concentrar suas faculdades na oração interior. A outra
vantagem da obediência é preservar da precipitação que, tentando
buscar prematuramente estados místicos superiores, faz cair com
toda segurança aquele que é vítima deles na armadilha do sedutor.
Uma das causas essenciais do fracasso no trabalho da oração
é, com efeito, o «orgulho satânico daqueles que querem sondar,
antes de serem chamados a isso, os mistérios da graça». O único
remédio eficaz contra esta desastrosa impaciência é a submissão aos
sábios conselhos de um «ancião» capaz de discernir o grau de
crescimento espiritual daquele a quem guia e de fazê-lo avançar
passo a passo no caminho da oração contemplativa.

Falamos até aqui da atmosfera espiritual na qual deve


empreender-se a obra da oração. Quanto a oração mesma, parece
não apresentar nenhuma dificuldade. Trata-se, com efeito, de repetir
com toda simplicidade centenas, milhares de vezes:

«Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim, pecador» [11].

Mas essa simplicidade é precisamente a fonte de várias


tentações. Almas puras e simples, como a do peregrino dos Relatos,
podem sentir gosto nisso e farão rápido progresso. Mas, para a
maioria, é causa de tédio e desânimo. A oração se lhes apresenta
como um trabalho irritante e estéril do qual o espírito tende todo
tempo a escapar. No entanto, como já dissemos antes, não se trata
de modo algum de criar, pela repetição, um hábito puramente
mecânico. Há, entre os praticantes da oração de Jesus, uma reação
muito viva contra o formalismo e o mecanicismo que são as duas
armadilhas da oração monástica. Assim como a excessiva confiança
nas obras externas no ascetismo e as mortificações, uma
importância exagerada dada à quantidade na obra da oração é fonte
de falso moralismo (farisaísmo) e vão contentamento de si
(vaidade). Conta os que acreditam que possam salvar-se pela
observância de alguma regra de oração, mais ou menos longa, «pelo
canto de salmos e antífonas», contra os que, entregando-se à obra
espiritual, dão importância demasiada ao número de orações
recitadas, afirma que não é a «quantidade» da oração o que importa
[12]. «Não te inquietes com o número de orações a recitar», escreve
Teófano, o Recluso: «que tua única preocupação seja que a oração
brote de teu coração cheia de vida como uma fonte de água viva.
Afasta, por inteiro de teu espírito a ideia da quantidade» [13].
Esta exortação pode parecer paradoxal, pois, na prática da
oração de Jesus, a repetição da mesma invocação desempenha
certamente um papel essencial. Na verdade, essa repetição, por si só,
não poderia produzir mais do que um efeito puramente psicológico
e superficial. A oração não será mais do que um fluxo de palavras
vãs, se não for acompanhada do que, na linguagem ascética, se
chama a «atenção» ou «vigilância», a «prosoche» dos hesicastas
gregos. Em que consiste esta atenção espiritual? É preciso que, no
momento da oração o espírito, «desça do cérebro ao coração», e
«que guarde o coração». Os comentadores ocidentais deram muitas
vezes a essas expressões uma interpretação estreita e superficial.
Referindo-se a descrição de uma certa técnica psico-fisiológico que é
encontrada em muitos textos hesicastas e particularmente no
famoso «methodos tes ieras proseyches» [14], ao conselho dado de
concentrar a atenção sobre a localização física do coração, retendo
um pouco a respiração e regulando o seu ritmo ao da oração,
autores sérios têm falado a propósito da «guarda do coração» de
«onfaloscopia» e viram aí uma das características essenciais da
oração hesicasta. Eles confundiram, na verdade, uma certa técnica
exterior cuja eficácia é discutida, mesmo nos ambientes favoráveis à
oração de Jesus [15], com o esforço espiritual que pede que seja
mantido. Sua verdadeira razão de ser é, com efeito, levar o que ora a
sentir, de uma forma um tanto física -a auto percepção que temos de
nós mesmos como seres físicos é diferente dependendo da parte do
corpo na qual é fixada a atenção [16] - que o centro da
personalidade, se encontra não no cérebro, ponto de interseção das
forças espirituais da pessoa com o mundo exterior, o mundo das
«coisas supra pessoais», mas no coração, ou melhor ainda, nessas
misteriosas profundezas do ser das que o coração físico é símbolo
[17].

O papel da técnica é, portanto, puramente instrumental. É


um instrumento perigoso que o iniciante não deve manejar senão
sob a direção de um mestre experiente e seguro. Não se trata, nem
de exagerar seu papel, nem de minimizá-lo sob a influência de um
pseudo espiritualismo racionalista que nada tem de cristão. A
atenção à oração, condição da «descida da inteligência ao coração» é,
na verdade, uma tensão de todo o ser por inteiro, rejeitando tudo o
que poderia distraí-lo de sua obra essencial, a oração; uma vigilância
do espírito e do corpo na esperança do Deus vivo. Isso requer um
esforço contínuo e constante da vontade, arrastando atrás dela por
meios apropriados a corporeidade pesada e recalcitrante. Leva
consigo um duplo movimento, de rejeição e de aquiescência: a
recusa do mundo, por um lado (este termo aqui significa não o
mundo físico em si, mas um «vagar da alma ao exterior, uma traição
à sua própria natureza» [18] sob a influência dos poderes do mal);
aquiescência à vontade de Deus, transformando-se em dom e
abandono nele, por outro lado. O espírito «atento», «sóbrio» [19],
que se fecha ao exterior que lhe atrai, traslada-se para os abismos
interiores do coração, único lugar onde, sob a luz do Espírito Santo,
pode dar-se o encontro entre a pessoa humana e as Pessoas divinas.
«O Senhor busca um coração cheio de amor para com Ele e para o
com o próximo; este é o trono no qual gosta de sentar-se e no qual
aparece na plenitude de sua glória» [20]. Para compreender melhor
a natureza da atenção, convém precisar o significado das palavras
«coração» e «espírito» (ou inteligência) na linguagem mística
oriental. A palavra russa «um» que traduzimos por espírito ou
inteligência, corresponde ao grego «nous». Designa, não o intelecto,
no sentido estreito e racionalista da palavra, mas o conjunto das
faculdades cognitivas e contemplativas, a luz da razão e da
consciência que faz do homem um ser pessoal e livre [21]. Os Padres
gregos e com eles os starets russos, identificam, muitas vezes, o
espírito com a imagem de Deus no homem. Empregando uma
terminologia moderna, podemos chamar de consciência pessoal que
ilumina todas as esferas da vida humana, concebida em si como um
novelo cheio de relacionamentos com diversas ordens e realidades.

Quanto ao «coração», na tradição do Oriente designa o


centro do ser humano, «a raiz das faculdades ativas da inteligência e
da vontade, o ponto de onde provém e para o qual converge toda a
vida espiritual» [22]. É a fonte, obscura e profunda, de onde brota
toda a vida psíquica e espiritual do homem e pela qual o homem está
próximo e se comunica com a Fonte mesma da vida. «Disto resulta
que toda a vida espiritual que não toca o coração é nada mais do que
ilusão e mentira, sem nenhuma realidade ontológica, nenhuma raiz
no Ser, e que toda e qualquer conversão deve começar pela
conversão do coração». Com efeito, é nesta fonte onde, pelo pecado
original, a vida do homem foi contaminada e a lama do pecado foi
misturada com as águas limpas. Mas «quando a Graça se apropria
das pastagens do coração, reina sobre todas as partes da natureza,
sobre todos os pensamentos, pois o espírito e todos os pensamentos
estão no coração» [23].

De acordo com o bispo Ignácio Briantchaninoff, «a natureza


espiritual do homem é dupla». Seus dois polos são: por um lado o
'coração', fonte dos 'sentimentos', das 'intuições' pelas quais o
homem conhece a Deus diretamente pela participação da razão; e,
por outro lado, a 'cabeça' (ou o cérebro), sede do pensamento claro
da inteligência [24]. A integridade da pessoa humana reside na
relação harmoniosa destas duas forças espirituais. Sem a
participação da inteligência, as intuições do coração se tornam
impulsos obscuros. Além disso, sem o coração, que é o centro de
todas as atividades e a raiz profunda de sua própria vida, o
espirito−inteligência é impotente.

Ontologicamente, a consequência essencial da Queda para o


homem é precisamente esta desintegração espiritual pela qual a
personalidade se vê privada de seu centro e de sua inteligência e se
dispersa em um mundo exterior a ele. O lugar desta dispersão da
personalidade no mundo das coisas, é a cabeça, o cérebro, onde os
pensamentos «rodopiam como flocos de neve ou enxames de
moscas no verão» [25]. Pelo cérebro o espírito conhece um mundo
exterior, ao mesmo tempo em que perde o contato com os mundos
do espírito que, no entanto, obscuramente, oprimem a realidade do
coração cego e impotente. Para reconstruir a pessoa na graça,
portanto, será preciso encontrar uma relação harmoniosa entre a
inteligência e o coração. O retorno consciente, voluntário do
espirito−inteligência aos abismos interiores do coração requer, no
limite, a ruptura total com o mundo. Quem quer consagrar-se à obra
espiritual deve afastar de si toda percepção exterior, «desprender-se
de todos os objetos visíveis e fechar os olhos carnais» [26]. Fazendo-
se cego para o mundo, deve também fazer-se «surdo e mudo» [27]
pela renúncia, ao menos provisoriamente, a toda conversação
humana. Mas o silêncio exterior nada mais é do que a preparação e o
sinal de um silêncio da alma infinitamente mais profundo.
Pois, não são apenas as percepções sensíveis e as palavras
articuladas que devem ser expulsas, mas todo desejo, todo
pensamento, toda imagem, por mais santo que pareça, tudo o que
atrai o espírito «para o exterior», para fora daquele lugar do coração
lá onde não sabe mais que a sua própria miséria e o Nome que lhe
salva. Deste silêncio do desapego total, São Serafim disse que é «uma
cruz na qual o homem se crucifica com todas as suas paixões e
concupiscências» [28], que é a «paixão sofrida com Cristo» [29], mas
também «mistério do século futuro» [30]. Com efeito, no silêncio, e
por esse silêncio o espírito tem acesso ao santuário místico do
coração onde irá encontrar o seu Deus. Esta é a via da «oração
laboriosa», via estreita e dolorosa. Aspereza, desnudez, um deserto
espiritual, no qual o viajante deve fechar voluntariamente seus olhos
a toda miragem consoladora. Pois é preciso afastar não apenas as
imagens terrestres, mas também aquelas que parecem de origem
divina, «visões», «vozes» as «doçuras», em aparências celestiais
porém, que não são, muitas vezes, mais do que o fruto de um
psiquismo decomposto pela concupiscência, as mortificações
excessivas ou o impaciente desejo de avançar o tempo da graça,
buscando pseudo-satisfações no sonho e na imaginação. A prudência
exige também, especialmente no início da obra espiritual, não se
valer em absoluto de qualquer representação (mesmo aquelas
imagens de Deus que nos propõem as Sagradas Escrituras, que
podem ser úteis para a meditação em outros momentos, devem
também ser afastadas no momento da oração). Este é o verdadeiro
jejum, a «sobriedade» santa daqueles cuja alma é alimentada
unicamente de oração e de fé. A oração é, com efeito, a obra, não da
imaginação, mas da fé.

«A regra mais simples da oração é o não se representar nada, concentrando o


espírito no coração, permanecer na convicção de que Deus está tão próximo que se
pode ver e escutar; prostrar-se diante d’Aquele que é temível em sua grandeza e
próximo em sua condescendência para conosco... É preciso grande esforço para se
conseguir orar sem imagens de Deus. Permanece no coração crendo que Deus está
ali, em seu interior, mas não te preocupes em imaginar como Ele é na realidade»
[31].

Assim, embora a via espiritual dos que oram passe pelo


deserto, não avança na escuridão. A luz pura e inteiramente
imaterial que os guia é a fé, iluminando a única imagem na qual o
espírito encontra um ponto de apoio, o amado Nome de Jesus Cristo.

A atenção à oração é, na verdade, uma espera na fé. Com


efeito, mesmo tendo atingido o grau supremo de concentração das
suas forças psíquicas e espirituais, o homem não é capaz de recriar
em si a unidade perdida do espírito e do coração. Pode apenas fazer
em sua alma aquele silêncio e aquele vazio que são sinal de uma
tensão extrema e de um abandono total, o sinal da espera na
esperança e na fé do dom do Espírito Santo. A atenção e a contrição
são como o átrio do santuário, escreve o bispo Ignácio
Briantchaninov [32], ou como o pórtico da piscina de Betsaida
(Betesda) onde se reuniam os doentes esperando pelo anjo que,
movimentando as águas, lhes alcançava a cura» [33]. «Mas, só o
Senhor, em seu tempo, concede a cura e a entrada no santuário de
acordo com a sua inefável e incompreensível benevolência». Já aqui
superamos o plano da «oração laboriosa» para entrar no mistério da
«oração carismática».

Os «starets» russos são sumamente discretos no que diz


respeito aos graus mais elevados da obra espiritual. Acaso não se
trata de mistérios que não podem ser traduzidos adequadamente
numa linguagem humana? Não é inútil ou, até mesmo perigoso, falar
sobre realidades espirituais para aqueles cuja compreensão, imersos
como se encontram ainda no mundo material e físico, não estariam
aptos a compreendê-los? «Não deves abrir sem necessidade o teu
coração», aconselha São Serafím de Sarov... «Dentre mil não
encontrarás um sequer capaz de guardar teu segredo». Muito menos
pelo testemunho deles mesmos do que pelo testemunho de alguns
dos seus amigos, que foram «os companheiros dos divinos
mistérios», é como podemos vislumbrar algo das graças místicas
que iluminam a vida de um Serafím de Sarov ou do starets de
Optino. Mais intelectuais e mais da corrente do pensamento
ocidental que os primeiros, os bispos Teófane Govorov e Ignácio
Briantchaninov são apenas mais loquazes.

O primeiro fruto da oração, o primeiro sinal sensível do dom


da graça, que anuncia uma transformação da própria natureza da
oração é, de acordo com o testemunho de todos os mestres da «obra
espiritual», o derramamento de lágrimas de arrependimento. O
esforço da oração, pela qual aquele que ora, sem se cansar, confessa
ao mesmo tempo a sua miséria e a sua fé em Jesus Cristo, é
comparável ao trabalho de uma máquina de perfuração. Sob as
camadas superficiais, petrificadas e estéreis da vida psicológica, vai
buscar a fonte de água viva do arrependimento sincero. Porém, isto
já manifesta a ação da graça no homem. As lágrimas, não as de
desespero ou orgulho ferido, mas as lágrimas saudáveis do
arrependimento, são o sinal desta comoção das camadas profundas
do ser em que são tragados, como que por uma onda profunda, o
orgulho e autoconfiança do homem natural. Este é o
enternecimento, no sentido próprio da palavra, no qual a dureza do
coração funde em contato com a graça divina.

«No coração daquele que derrama lágrimas de


enternecimento resplandece os raios do sol da justiça, Cristo-Deus»
[34]. Na alma preparada para recebê-lo pelo trabalho da oração,
pela descida da inteligência ao coração onde descobre os sinais de
sua origem divina e os de sua decadência, a alma já purificado pelas
lágrimas do arrependimento, o Espírito Santo pode realizar sua
obra. «Em primeiro lugar, a graça mostra ao homem o seu pecado, o
faz surgir diante dele, colocando constantemente ante seus olhos
este terrível pecado, o leva a julgar-se a si mesmo. Revela nossa
queda, esse vergonhoso, profundo e sombrio abismo no qual caiu
nossa raça pela participação no pecado de Adão. Então, pouco a
pouco, concede uma profunda atenção e o abrandamento do coração
no momento da oração. Tendo assim preparado o vazo, de uma
maneira súbita, inesperada, imaterial, toca as partes separadas, e
estas se reúnem. Quem tocou? Não sei explicar. Não vi nada, não
ouvi nada, mas me sinto transformado, e logo me sinto assim por
efeito de um poder extraordinário. O criador operou a 'restauração',
assim como fez para a criação. Quando suas mãos tocaram meu ser,
a inteligência, o coração e o corpo foram integrados para constituir
uma unidade total. E logo foram imersos em Deus e lá permanecem
enquanto lhes sustenta a Mão invisível, inacessível e todo-poderosa»
[35].

Assim, o dom primeiro e essencial da graça (dom positivo do


qual o arrependimento sincero era, de certo modo, o aspecto
negativo) é a restauração espiritual do homem em sua integridade
original. A inteligência e o coração, esses dois polos da vida interior,
voltam à sua unidade harmoniosa na qual as tendências opostas se
fundem sinfonicamente para construir a pessoa na graça. Note-se
que o que acabamos de descrever não é um êxtase passageiro ou,
pelo menos, não essencialmente. Sem dúvida que a alma não
permanece «submersa em Deus», mas «enquanto a sustenta ali a
Mão todo-poderosa de Deus» apenas, por alguns momentos, do
ponto de vista de nossa humana contabilidade. Mas, após o êxtase, o
efeito da graça divina permanece. Realiza-se uma profunda
transformação ontológica: nasce o homem novo, no qual emergem
faculdades, potências e novas visões. Nele, a antiga desordem dá
lugar a uma nova ordem, dominada pela consciência da presença de
Deus. Isto se reveste de uma evidência comparável, em certos
aspectos, mas infinitamente superior, a um axioma matemático. A
consequência mais notável desta unidade do coração e da
inteligência é a transformação radical do carácter próprio da oração.
Se isto era, até então, uma atividade laboriosa e, às vezes, até
penosa, emerge agora espontaneamente, sem esforço, acalentando o
coração e enchendo-o de paz, luz e alegria. Assim como o êxtase é
um dom raro, concedido apenas a alguns poucos, esta mudança na
natureza da oração é o sinal mais comum, a mais infalível ação da
graça aos que se entregam ao trabalho espiritual. Eis como o
peregrino dos «Relatos» descreve essa transformação:

«Um dia bem cedinho, eu acordei, ou melhor, fui acordado pela oração. Comecei a
recitar as orações da manhã. Mas minha língua emperrava e eu só tinha vontade de
rezar a oração de Jesus. Comecei então a rezá-la. Senti-me logo muito feliz; meus
lábios se moviam espontaneamente e sem esforço. Passei o dia todo muito alegre. Eu
me sentia como que afastado de tudo e em um outro mundo...»

«Passei todo o verão a rezar sem parar a oração de Jesus e me senti totalmente
tranquilo. Durante o sono, até sonhava que estava recitando a oração de Jesus. E
durante o dia, quando me acontecia encontrar alguém, todos me pareciam tão
amáveis como se fossem da minha própria família. Os meus pensamentos se tinham
apaziguado e eu só vivía com a oração. Inclinava meu espírito a escutar e, às vezes,
meu coração sentia brotar de si como que um calor e uma grande alegria».

«É assim que vou agora, rezando sem parar a oração de Jesus que me é mais doce e
querida do que tudo no mundo. Às vezes, faço mais de setenta quilômetros por dia e
não sinto que estou caminhando; sinto somente que rezo. Quando me pega um frio
muito forte, eu rezo com mais atenção e logo me esquento. Se a fome aperta, eu
invoco mais vezes o nome de Jesus Cristo e me esqueço que estava com fome. Se me
sinto doente, com dor nas costas ou nas pernas, eu me concentro na oração e não
sinto mais dor. Se alguém me ofende, eu só penso na oração de Jesus tão benfazeja;
imediatamente desaparecem a raiva ou o sofrimento e me esqueço de tudo. Meu
espírito se tornou muito simples. Não me preocupo com nada, não me prendem as
coisas exteriores; eu gostaria de ficar sempre na solidão. Por hábito, só tenho agora
uma necessidade: recitar a oração sem parar. E quando faço isso, me sinto inundado
de alegria».

O testemunho do humilde peregrino coincide com o dos


Mestres da obra espiritual [36]. É de São Serafim de Sarov a
expressão mais concisa e mais perfeita desta experiência:

«Quando o Senhor acalenta o teu coração com o calor da sua graça e te restabelece
na unidade de teu espírito, literalmente, quando te reúne em um só espírito, então,
esta oração ininterrupta brota em ti. Permanece sempre contigo, e tu te deleitarás
com ela, e ela te alimentará» [37].

Os frutos da oração ininterrupta são o calor espiritual, a


serenidade, o desprendimento do mundo e, sobretudo, a caridade
para com Deus.

«Os que desejam estar unidos pela caridade do Dulcíssimo


Jesus», escreve o starets Paísios, «desprezam todas as belezas deste
mundo. Todas as doçuras, e até mesmo o descanso corporal, não
querem outra coisa mais que a atividade paradisíaca do espírito que
se entrega à oração ininterrupta» [38]. Inflamando o coração de
caridade para com Deus, a oração de Jesus aparece, ela própria,
como fruto da divina caridade, tocando o coração e o espírito do
homem e ressuscitando-o para uma vida nova. «O fogo espiritual do
coração é a caridade para com Deus»; «se inflama quando Deus toca
o coração, pois Ele é inteiramente Amor e, ao seu contato, o coração
se inflama de amor por Ele». Nesta vida nova, toda e qualquer
possibilidade de tentação e de queda não está ainda descartada.

Mas, o que foi visitado pela graça, lhe é concedido uma


lucidez que lhe permite combater eficazmente os seus inimigos
interiores. Até agora, estava submerso na escuridão como alguém
que atacado, na escuridão da noite, golpeia às cegas seus inimigos
invisíveis. Agora a intuição constante da presença de Deus é como
um candelabro colocado no centro da consciência, iluminando os
menores recônditos. O estado de graça parece então não como um
estado de passividade e de repouso, mas como uma atividade
fecunda de purificação que se realiza na alegria, embora a fidelidade
à graça ainda possa exigir sacrifícios dolorosos, como insiste neste
ponto São Teófano, o Recluso. Uma característica própria dos
mestres russos da oração espiritual revela-se menos na doutrina do
que em sua atitude prática. A oração ininterrupta, cuja doçura enche
o coração de paz e alegria, longe de separar quem a pratica dos
homens, acaba por aproximá-los. Com efeito, se durante a fase inicial
o silêncio absoluto e o afastamento eram a condição mesma de todo
o progresso espiritual, chega um momento em que, sentindo
fortemente a oração enraizada no coração, o retorno ao mundo dos
homens se impõe como exigência de uma obediência à vontade
divina.

São Serafim de Sarov e os starets de Optino acolhiam


milhares de peregrinos; recebiam inúmeras cartas e as respondiam
a todas. Se para Nilo Sorsky, no século XVI, esta atividade de cura de
almas tem ainda o caráter de um sacrifício voluntário inspirado pelo
amor fraterno, entre os starets do século XIX é como o florescer de
sua vocação espiritual. Em meio à multidão, a oração mística
continua ressoando em seu coração, unida intimamente ao palpitar
do seu coração, constituindo como que a trama da sua vida interior,
mas sem impedir-lhe de participar na vida dos homens. Chegam
assim a vislumbrar a possibilidade da oração espiritual para todos
os cristãos. Paisios Velitchkovski já havia admitido que a prática da
oração de Jesus pode ser recomendada aos leigos.

No entanto, no círculo moldavo de starets a «oração


espiritual» é essencialmente figura do método de oração monástica.
Está associada, para Paísios e seus amigos, ao renascimento do
monaquismo nos países eslavos. Em seus escritos, preceitos e
conselhos, dirigem sobretudo aos monges a quem unicamente
estariam acessíveis os mais altos níveis da oração contemplativa.
Não é exatamente esta a atitude dos starets do século XIX. Sem
dúvida que a vida monástica se lhes apresenta também como a via
por excelência que conduz à união com Deus. Mas, sua experiência
profunda de uma oração cuja flama, longe de se apagar em contato
com o mundo, alimenta-se de uma atividade caritativa que lhes faz
próxima aos homens e lhes inspira uma nova concepção da obra
espiritual. Esta, mesmo em suas formas mais místicas, não seria
incompatível com a vida no mundo e alguma atividade cultural. São
Serafim elaborou uma regra de oração para os leigos [40]. Fazendo
com que um leigo - Nicolás Molotilov - participe de sua experiência,
tem uma de suas mais extraordinárias iluminações e a dá como
demonstração da possibilidade para todos de receber o dom do
Espírito Santo através da oração. Teófano, o Recluso, também afirma
que a oração espiritual não exclui toda atividade, mas apenas
aquelas que são más ou fúteis. Escreve ele:

«É falso pensar que para realizar a oração espiritual é preciso estar sentado em um
lugar secreto e ali contemplar Deus. Não é necessário esconder-se em algum lugar
para orar mais do que no próprio coração, e fixando-se nele, ver o Senhor sentado à
nossa direita, como o fez David» [41].

Sem dúvida, a obra espiritual requer concentração interior e,


portanto, uma certa solidão. ¬ Mas, se a solidão completa é
impossível no mundo, não será possível a qualquer pessoa
encontrar «horas de solidão» durante as quais fortalecerá e
vivificará em si a oração de Jesus até que se enraíze no seu coração,
lhe acompanhe em meio ao fluxo ensurdecedor da vida do mundo?

Assim, de acordo com o testemunho dos mestres mais


recentes da mística ortodoxa, a oração ininterrupta de Jesus pode e
deve se tornar a atmosfera espiritual de toda vida cristã. Mas isto de
maneira nenhuma os leva a minimizar o caráter místico e extático
dos estados nos quais, em seu limite, encerra a obra espiritual de
quem ora. Já falamos sobre discrição da maioria dos místicos
ortodoxos, desta espécie de pudor espiritual que lhes impede falar
das grandes graças que receberam. Temos, no entanto, testemunhos
muito precisos sobre a sua experiência mística, em particular, sobre
São serafim de Sarov. Este último, falando dos graus mais elevados
da oração contemplativa, assim se expressa:

«Quando a inteligência e o coração se unem na oração, e a alma não é perturbada


por coisa alguma, então o coração se enche de calor espiritual, e a luz de Cristo
inunda de paz e alegria todo o homem interior» [42].
A Luz de Cristo da qual fala o santo, não é nem sensível nem
intelectual, mas espiritual, e ilumina o fundo do coração. No entanto,
como veremos, pode se fazer visível aos olhos carnais daqueles aos
quais se lhes concede a insigne graça de contempla-la [43]. É a Luz
da Vida que não conhecem senão os que nela vivem e por ela são
iluminados. Experiência de uma simplicidade infantil, como afirma
com tanta força São Serafim e, no entanto, inefável. ¬ Mas, a criança
(in-fans) não é precisamente o ser que não pode falar e o milagre do
espírito, o nascimento a esta nova e inexprimível infância? (Jo 3, 5-
7).

Dom do Espírito Santo, êxtase do espírito humano na


irradiação da Gloria de Deus incriado, esta é a revelação final da
obra espiritual. Aqui a oração supera a si mesma. Se, de acordo com
as palavras de São Serafim, «pela oração nos fazemos capazes de
falar com o Deus bom e vivificante», toda a oração, no entanto, cessa,
no momento em que Deus desce até nós pela sua graça.

«Ao sermos visitados por ele, cessa a oração como ato».


«Com efeito, para que serve implorar-lhe: «Vem, faz em nós tua
morada, em nós, purificados de toda mancha, e salva as nossas
almas, Tu que és bom» (Antífona ortodoxa recitado no início dos
ofícios), quando já veio, em resposta às nossas humildes e amorosas
súplicas» [44].

Não saberíamos concluir melhor este breve estudo do que


citando o testemunho de um amigo e discípulo de São Serafim, João
Tikhonoff, a quem lhe foi dado testemunhar uma das
transfigurações do santo pela visão da Luz Divina. Se não se fala
explicitamente da oração de Jesus, muitos detalhes, em particular o
gesto do starets, colocando, no momento de êxtase, sua mão sobre o
coração e inclinando a cabeça, indicam claramente tratar-se de uma
experiência mística, relacionada à «oração espiritual».

«Olha o que te diria, a propósito do pobre Serafim [45], disse-me o starets: um dia,
lendo o Evangelho de São João estas palavras do Salvador: 'na casa do meu Pai há
muitas moradas', invadiu-me o desejo intenso de ver estas moradas. Passei cinco dias
e cinco noites em vigília e oração, pedindo ao Senhor a graça desta visão. E o senhor,
em sua infinita misericórdia, concedeu-me este consolo e me mostrou estas celestiais
moradas nas quais vi resplandecer, eu, pobre viajante terrestre, em um minuto de
êxtase (se foi no corpo ou fora do corpo, não sei), uma beleza celestial inefável... O
Padre Serafim ficou em silêncio. Em seguida, inclinou ligeiramente, baixou a cabeça
fechando os olhos, pondo sua mão direita sobre o coração. Seu rosto ia pouco a
pouco se transfigurando e irradiando uma luz maravilhosa; finalmente, pôs-se a
olhar, já que seu rosto e toda a sua expressão estavam tão cheios de alegria e êxtase
celestial que realmente se poderia chama-lo de anjo terrestre ou homem celestial.
Durante todo o tempo que durou seu misterioso silêncio, parecia contemplar algo
com ternura e escutar em êxtase...»

«Depois de um silêncio bastante longo, Padre Serafim lançou um suspiro profundo, e


cheio de alegria me disse: ‘Ah, se soubesses que alegria, que doçura espera a alma
dos justos no céu!’ Decidirias tudo suportar durante esta vida temporal, toda
tribulação, toda perseguição, qualquer calúnia, com gratidão... Embora nossa cela
estivesse cheia de insetos que nos picassem o corpo durante todo o tempo de nossas
vidas, deveríamos consentir nisso, com todas as nossas forças, para não nos vermos
privados desta alegria celestial que Deus preparou para aqueles que o amam... Mas,
que linguagem humana poderia expressar essa glória celestial e as belezas da pátria
dos justos e esta felicidade, posto que o próprio apóstolo Paulo não pode?» [46].

Vislumbramos assim o fim da oração mística: a


transfiguração de todo homem, na unidade de seu espírito e de seu
corpo, pela Luz Divina, Luz de Cristo e do Espírito Santo,
resplandecendo a glória da Santíssima Trindade [47].

Pelo insondável mistério do dom da graça, a natureza


humana é transformada. As trevas da matéria são vencidas e
dissipadas fazendo-se translúcidas ao espírito. O homem é capaz de
ver a Glória de Deus. Mas isto tudo nada mais é que o fim terrestre
da oração, as primícias das iluminações do século vindouro. O fim da
oração mística anuncia, na verdade, o fim dos tempos: «a libertação
de toda a criação da escravidão da corrupção para participar na
gloriosa liberdade dos filhos de Deus!». O testemunho dos
praticantes da oração de Jesus, orienta-nos, finalmente, para a luz
inabalável do dia eterno, cujo alvorecer já se levanta para aqueles
que sabem reconhecer seus sinais.

NOTAS

[1] O Starets Paisios, grande incentivador da «Oração de Jesus» nos meios monásticos eslavo e
romeno, a designa com estes termos: «Oração a Jesus, realizada pela inteligência no coração».
[2] Termo que designa a prática da «Oração de Jesus» em particular, sob a forma que assum iu nos
séculos XIV e XV entre os Hesicastas (solitários) do monte Athos.
[5] (A veneração pelo Nome de Jesus é também antiga na Igreja cristã. Tem suas raízes na piedade
popular da Antiga Aliança pelo nome de Yahvé. Encontrou sua expressão perfeita nas palavras de São
Paulo: «Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;
Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da
terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai» (Fp 2,9-11).
[5] «Convém baixar do cérebro ao coração. De momento não há em ti nada mais que reflexões
cerebrais sobre Deus; Deus, porém, deixas do lado de fora». (Bispo TEÓFANO, Entretiens, p. 58).
[6] Traduzimos por «espontâneo» o termo russo «samodwiznaia» que quer dizer exatamente «o que se
move a si mesmo», mas que poderia ser mal traduzido neste contexto por «automático». Significa aqui
um surto sem esforço em oposição ao que é fruto de um penoso esforço da vontade.
[7] Entretiens, p. 395.
[7] No entanto, ocorre em todos os mestres russos da «oração espiritual», embora todos eles tenham
sido na sua maioria grandes ascetas, uma certa desconfiança do ascetismo puramente exterior. Assim,
Teófanes, o Recluso, vai escrever: «Prestai a menor atenção possível às manifestações exteriores do
ascetismo. São certamente necessários. Mas são apenas os andaimes, não o prédio. O edifício está
localizado no coração. Coloquem vossa atenção inteiramente no trabalho do coração».
[8] Entretiens, p. 389. Em outra parte, Teófano, o Recluso escreve: «.... Ancorar tua esperança, ainda
que apenas por um fio de cabelo, a algum trabalho pessoal, é desviar-te do caminho reto. Se te retiras à
solidão pensando que, graças às tuas meditações, às tuas rezas, às tuas vigílias noturnas, tudo vai
mudar, o Senhor, a propósito, não te concederá a graça prometida até que seja dissipada qualquer
esperança em teu próprio esforço, em tuas obras, embora seja verdade que sem elas não podes
receber nada» (Entretiens, p. 379).
[9] Damos a esta palavra um sentido geral, e não especificamente monástico.
[10] P. VELITCHKOVSKI em Entretiens p. 295. O starets Paisios admite, no entanto, que a falta de um
bom pai espiritual, pode servir de guia a Sagrada Escritura.
[11] Eis um conselho dado pelo starets ao autor de Récits d'un pélerin russe: «Deves aceitar este
mandato com confiança e recitar quantas vezes possas a Oração de Jesus. Tome este rosário com o
qual poderás fazer, a princípio, três mil orações diárias. De pé, sentado, deitado ou andando, repete
incessantemente: «Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim!», devagar e sem pressa. E recita três mil
orações por dia sem acrescentar ou retirar nenhuma. Assim chegarás à atividade perpétua do coração».
(Recits d'un pélerin russe, trad. J. GAUVAIN, p. 29-30). Há que se observar a importância dada à
obediência estrita ao starets. A recomendação de recitar a oração três mil vezes, não tem outro sentido.
[12] C. CETWERICON: Paisi Velitchkovski, T. 11, p. 89-90.
[13] Entretiens, p. 359.
[14] I. HAUSHERR, La Méthode d'oraison hésychaste, p. 102 e ss.
[15] O starets Paisios, em suas Chapitres sur la Priére se contenta com reproduzir sem comentário o
texto de «methodos» atribuída sem dúvida falsamente a Simeão, o Novo Teólogo. Teófano, por sua vez,
tem uma atitude mais crítica (Cf. Entretiens, p. 339, 340, 328, 327). Fala da técnica como de um refúgio
para aqueles que se «endureceram num formalismo exterior». Entretanto, admite que como
consequência da união da alma com o corpo, as atitudes corporais têm sua influência sobre a atenção
do espírito.
[16] Cf. Entretiens, p. 79
[17] Cf. Entretiens, p. 59
[18] Cf. V. LOSSKY, La Théologie Mystique de l'Eglise d'Orient, p. 197 (París, Aubier 1944).
[19] A palavra «sobriedade», é característica de uma mística que exclui todo colorido, toda exaltação
puramente psicológica, toda voluptuosidade e toda imagem humana.
[20] SERAFIM DE SAROV Entretien avec Motovilov, p. 214 (Collection «Spiritualité Orientale nº. 11). Cf
TEOFANO O RECLUSO: «En el corazón está la Vida y allí también es conveniente vivir». Entretiens, p.
58.
[21] Cf. V. LOSSKY, o. cit. p. 198
[22] Ibid. p. 197.
[23] S. Macário, Hom. Spirit. XV, 32 P.G., t. 34, col. 597 B.
[24] Teofano, o Recluso, Entretiens, p. 59 e ss.
[25] Teofano, o Recluso, Entretiens, p. 58.
[26] Serafim de Sarov, Instr. Sprit, p. 239.
[27] Serafim de Sarov, sa vie, p. 49.
[28] Seraphim de Sarov, sa vie, p. 48
[29] Ibid. p. 49
[30] Ibid. p. 48
[31] Teofano o Recluso, Entretiens, p. 70
[32] Entretiens, p. 419.
[33] Cf. Evangile selon Saint Jean, 5, 2-4.
[34] Serafim De Sarov.
[35] Teófano o Recluso. Citado en Entretiens., p. 97.
[36] Récits d'un pélerin russe, p. 31-32, 33, 34-35.
[37] Cf Teofano o Recluso, em Entretiens., p. 391.
[38] Ibid., p. 421.
[39] Ibid.. p. 299.
[40] Serafim de Sarov, p. 253-255.
[41] Entretiens, p. 349.
[42] Serafim De Sarov, Instructions spirituelles, p. 239.
[43] «Em meu coração, só no pensamento, orei: ‘Senhor, faz-me digno de ver claramente, com os olhos
de carne, a descida do Espírito Santo, como aos teus servos eleitos quando te dignaste aparecer a eles
no esplendor da tua glória!». Serafim de Sarov, p. 209.
[44] Serafim De Sarov, Entretien avec Motovilov, p. 190.
[45] O santo, como fazia habitualmente, fala de si mesmo em terceira pessoa.
[46] Cf. o relato da transfiguração em V. LOSSKY: Essai sur la Theologie mistique de l'Eglise d'Orient, p.
225 ss., París, Aubier 1945.
[47] Há que notar, no entanto, que nas experiências aqui descritas, o espírito do homem, mesmo
estando ciente de participar da Vida Divina, não perde, no entanto, a consciência pessoal que, não só
não é aniquilada, mas adquire, pelo contrário, uma lucidez sobrenatural.

Você também pode gostar