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CHARLES DE FOUCAULD E SUA MÍSTICA BUSCA DE DEUS1

Este artigo trata de aspectos da vida de Charles de Foucauld, a ser canonizado pelo
Santo Padre, o Papa Francisco, no dia 15 de maio próximo, em Roma.
Inicia apresentando o conceito correto de mística para, em seguida, tratar da busca
de Deus que o nosso “monge sem mosteiro” empreendeu até encontrá-Lo do modo mais
completo possível, ainda que, neste mundo dilacerado pelo pecado2, tal encontro nunca
seja pleno, pois mesclamos o amor a Deus com o apego às demais criaturas e, por isso, o
almejado amor total a Deus só se concretiza, de fato, na eternidade feliz3.
A busca e o encontro com o Senhor, como aos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-
35), nem sempre é fácil, mas, quando ocorre traz, pela graça divina, o santo desejo de,
imitando Maria, escolher “a melhor parte” (Lc 10,42), ou de vender tudo para ficar apenas
com o campo do grande tesouro (cf. Mt 13,44).
Assim, se sentiu Foucauld ao deixar-se encontrar por Cristo para desejar, então,
viver só para Ele, como escreveu a Henry de Castries, em 14/08/1901: “Tão logo acreditei
que Deus existia, compreendi que não poderia fazer outra coisa senão viver para ele:
minha vocação religiosa data do mesmo momento da minha fé. Deus é tão grande! Há
tanta diferença entre Deus e tudo o que não é ele!” (Antoine Chatelard. Charles de
Foucauld: o caminho rumo a Tamanrasset. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 41).
Afinal, antes, sem Deus, tudo lhe parecia incerto: “Passei doze anos sem nada
negar, sem nada crer, desiludido com a verdade, não acreditando nem mesmo em Deus;
prova alguma me parecia bastante evidente” (Charles Lepetit. O parceiro invisível. São
Paulo: Paulinas, 1982, p. 32).

Mística: que é?

Importa – e muito – dizer que o termo mística é um tanto mal entendido por grande
parte das pessoas que com ele têm contato. Reduzem-no, quase sempre, apenas aos
fenômenos extraordinários acidentais (visões, revelações, estigmas etc.); por conseguinte,
não chegam à verdadeira essência da mística. Daí a necessidade deste tópico esclarecedor.
O Catecismo da Igreja Católica é bastante objetivo, completo e sintético ao tratar
da mística, ensinando que “o progresso espiritual tende à união sempre mais íntima com
Cristo. Esta união recebe o nome de ‘mística’, pois ela participa no mistério de Cristo
pelos sacramentos – ‘os santos mistérios’ – e, nele, no mistério da Santíssima Trindade.
Deus nos chama a todos a essa íntima união com Ele, mesmo que graças especiais ou
sinais extraordinários desta vida mística sejam concedidos apenas a alguns, em vista de
manifestar o dom gratuito a todos” (n. 2014).

1
Este artigo corresponde – com pequenos ajustes posteriores – à Conferência proferida pelo Ir. Vanderlei
de Lima aos seminaristas da Teologia do Seminário São João Maria Vianney, na Diocese de Limeira, SP,
em 26/04/2022.
2
A espiritualidade cisterciense, que Foucauld bebe na Trapa, ensina, em suma, à luz dos Padres do Deserto,
que ao ser humano dilacerado pelo pecado só resta voltar-se para Deus amando-O, amando-se, amando o
próximo e respeitando toda a criação. Só assim, reencontrará a unidade perdida no paraíso.
3
O amor de Deus, segundo São Bernardo – escreve Vitor Roberto Pugliesi Marques, em Refletindo n. 02,
setembro/outubro de 2021, p. 2 –, comporta quatro graus: o primeiro é o amor do ser humano a si mesmo;
o segundo se dirige a Deus como fonte de benefícios próprios a quem O ama; o terceiro compreende o amor
a Deus por Ele ser Deus e merecer o nosso amor gratuito, não porém exclusivo, pois mescla-se a outros
amores e o quarto – difícil de se conseguir, ao menos de modo permanente, neste mundo – consiste em
amar apenas a Deus e, n’Ele e por Ele, amar o próximo. Nesse ponto da caminhada, o homem não ama a si
mesmo senão por Deus. “Chegar a esse ponto é ser deificado. Igual a uma pequena gota d’água que,
misturada a uma grande quantidade de vinho, parece desaparecer, impregnando-se do gosto e da cor desse
líquido” (Tratado sobre o amor de Deus. São Paulo: Paulus, 2015, p. 67).
Em outras palavras, quem progride espiritualmente chega, com a graça divina, à
união com o Senhor Jesus. Essa união é chamada de mística, pois participa dos
sacramentos, especialmente do Batismo, da Penitência e da Eucaristia, e por eles chega
ao mistério da Santíssima Trindade, de modo que poderíamos ter o seguinte esquema:

Fiel → Sacramentos → Santíssima Trindade.

A vida mística não é privilégio de poucos. Todos são chamados ao consórcio com
Deus, embora as pessoas, em sua liberdade, possam recusar o convite divino. Dentre os
que aceitam essa união íntima (a essência da mística) com Deus – o maior bem – alguns
poucos vivem sinais extraordinários (êxtases, matrimônio místico com sinais, levitação
etc.) como dom gratuito de Deus, chamado, na Teologia, de gratiae gratis datae.
Gratia gratis data – agora no singular latino – significa, em tradução literal,
“graça dada de graça”. Essa expressão, redundante ao pé da letra, quer dizer que é uma
graça especial – não necessária à salvação do agraciado – dada por Deus a alguém para o
bem do próximo. Afinal, tudo o que fazemos é para o Senhor que fazemos (cf. 1Cor
10,31-33) e quem não ama o irmão a quem vê, como poderá amar a Deus a quem não vê?
– pergunta São João (cf. 1Jo 4,20).
O amor ao Divino Esposo, na mística, têm, no entanto, de passar pelos mesmos
caminhos que Ele passou, conforme escreve Charles de Foucauld: “Os meios de que Ele
se serviu na manjedoura, em Nazaré e na Cruz são: pobreza, abjeção, humilhação,
abandono, perseguição, sofrimento, cruz. Eis nossas armas, aquelas do nosso esposo
divino que nos pede para deixá-lo continuar a viver em nós [...]. Sigamos esse modelo
único e estaremos certos de fazer o bem, pois, consequentemente, não somos mais nós
que vivemos, mas Ele que vive em nós4: nossos atos não são mais atos nossos, humanos
e deploráveis, mas são Dele, divinamente eficientes” (Irmãzinha Annie de Jesus. Charles
de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova, 2004, p. 89).
Isso posto, passemos a alguns importantes aspectos da vida de Charles de
Foucauld.

Breve retrospectiva do itinerário de Foucauld

Charles de Foucauld foi um eremita (monge5 solitário) que morreu assassinado


por um adolescente, no dia 1º de dezembro de 1916, em Tamanrasset, região do Saara, na
Argélia. Sua canonização se deu no dia 15 de maio de 2022, em Roma.
Nasceu ele, em Estrasburgo, na França, no dia 15 de setembro de 1858, em um lar
católico abastado, mas, aos 6 anos, perdeu o pai e a mãe no prazo de 6 meses. O avô
materno o acolheu e educou. Embora tímido, era inteligente e apaixonado pela leitura.
Entre os 15 e 16 anos, viu-se sem fé e passou 12 anos imerso na busca de prazeres
efêmeros. Aos 20 anos, tornou-se militar em Saint-Cyr, mas sua permanência ali durou
apenas 6 meses. Apesar de continuar apaixonado pelos estudos e um tanto propenso à
vida militar, era boêmio. Chegou a ter uma jovem (Mimi) como amante, embora ele a
apresentasse como sua legítima esposa.
Em 1830, a França movera uma guerra de conquista na Argélia. Em 1880,
Foucauld, como soldado, também foi para lá, mas, contra a disciplina militar, levou sua
amante. Devido a essas e outras insubordinações, o comandante o mandou de volta para
a França. Ele obedeceu, mas, apaixonado pelo risco e pela aventura, solicitou e foi aceito

4
Cf. Gl 2,20.
5
Regra de São Bento 1,3-5.
em outro Regimento, no Sul da Argélia, onde deveria ajudar a apaziguar uma rebelião
dos habitantes da região.
Nessa expedição, apaixonou-se pela África. Ela parecia a terra apropriada a um
geógrafo como ele. Pediu, então, dispensa definitiva do Exército para, disfarçado de
rabino, tornar-se explorador do Marrocos. Sua obra Reconnaissance au Maroc o fez
ganhar a medalha de ouro da Sociedade Geográfica de Paris, em 1885, quando tinha
apenas 27 anos. Continuou, no entanto, firme no estudo da língua e dos costumes árabes,
pois estes muito o impressionaram. Queria, de novo, encontrar a Deus e pensou até em
fazer-se muçulmano6.
Contudo, nessa época, mais precisamente em 1886, ouviu falar no Padre Huvelin,
de Paris, a quem ele procurou a fim de debater sobre religião, mas, na mesma hora em
que encontrou o sacerdote, se confessou e comungou. Firme na fé e na moral católica,
por conselho do padre que o atendera, em 1888 embarcou em peregrinação à Terra Santa.
Lá, Nazaré o encantou. Afinal, ali Cristo viveu por 30 anos na oração, no silêncio e no
trabalho manual. Quis, então, tornar-se monge.
Sob a orientação segura do Padre Huvelin, ingressou na Trapa, Ordem de vida
austera nascida na França do século XVII e aprovada pelo Papa Leão XIII no século XIX.
Aí habitou até 1897. Nesse ano, saiu a fim de viver uma vida simples, pobre, recolhida,
orante e trabalhadora como foi a de Jesus em Nazaré. Voltou à Terra Santa e se empregou
em um mosteiro de monjas clarissas7. Morava numa choupana muito modesta. Veio-lhe,
então, à mente o desejo de ser eremita. O Padre Huvelin aprovou.
Em 1901, voltou à França e, após a devida preparação no mosteiro de Notre-Dame
des Neiges, foi ordenado sacerdote8 para a Diocese francesa de Viviers, mas com licença
de morar na África9. Como eremita-sacerdote, tentou evangelizar por meio do exemplo e
da caridade10. Lia, meditava e traduzia os Evangelhos para os tuaregues 11 da região,
compunha dicionários, denunciava, com ardor, a escravidão reinante, celebrava a Santa

6
Escreve Enzo Santangelo que “Charles alterna a leitura do Evangelho com a do Alcorão. Mas um dia é
chocado por uma frase de Cristo, relatada pelo evangelista Mateus (22,37-39): ‘Amarás o Senhor teu Deus
de todo coração, de toda a alma, de todo o entendimento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o
segundo semelhante a este é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Amor, nada mais que isto! Um
amor totalitário! É a essência do cristianismo: é a perfeição” (Charles de Foucauld, o irmão universal. São
Paulo: Loyola, 1983, p. 50).
7
Ordem religiosa contemplativa, fundada em 1212 por Santa Clara de Assis, inspirada em São Francisco
de Assis.
8
A Regra de Vida Eremítica diz: “Caso, com o tempo, o eremita se sinta chamado ao Sacramento da Ordem
(o que seria ideal para ele não ficar sem a Eucaristia diária), deve, após a devida preparação acadêmica,
tratar do assunto com seu diretor espiritual e com o Bispo diocesano” (n. 3). Sobre a relação entre sacerdócio
ministerial e vida monástica: Dom Jean-Paul Galichet, monge cartuxo. Contemplação e sacerdócio. São
Paulo: Molokai, 2020.
9
Charles de Foucauld ofereceu a vida – como vítima expiatória – pelos tuaregues muçulmanos, como ele
mesmo, em 17/05/1914, escreveu rezando: “Eu Vos ofereço a minha vida pelos tuaregues” (Irmãzinha
Annie de Jesus. Irmãzinha Madalena de Jesus: a experiência de Belém até os confins do mundo. São Paulo:
Cidade Nova, 2012, p. 193).
10
É nosso eremita quem diz: “Vou para o sul da província de Oran, até a fronteira do Marrocos, para uma
das guarnições francesas sem sacerdote, viver lá como monge, em silêncio e retraído do mundo exterior,
sem título de pároco ou capelão; como monge, em oração, e administrando os sacramentos. O objetivo é
duplo: primeiro, impedir que os nossos soldados morram sem os sacramentos nesses lugares onde a febre
mata muitos e onde não há sacerdote perto. Segundo, sobretudo, fazer o máximo possível de bem à
população muçulmana tão numerosa e tão abandonada, levando até ela Jesus na Eucaristia, assim como
Maria foi uma bênção para João Batista, levando Jesus até ele” (Jean-François Six. Charles de Foucauld:
o irmãozinho de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 62-63).
11
Os tuaregues ou imuagues são um povo berbere (que, no Norte da África, falam as línguas berberes)
constituído por pastores seminômades, agricultores e comerciantes. No passado, controlavam a rota das
caravanas no deserto do Saara
Missa, recitava a Liturgia das Horas, passava períodos em adoração a Jesus Eucarístico,
rezava o Rosário, praticava a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e atendia até 100
pessoas (a maioria pobres e militares franceses) que, a cada dia, o procuravam. Manteve-
-se fiel à Igreja na obediência ao Bispo e ao Padre Huvelin, seu diretor espiritual.
Em 1º de dezembro de 1916, um grupo de rebeldes atacou o eremitério em que ele
vivia a fim de fazê-lo refém, e um adolescente do grupo insurgente o assassinou. Foi
canonizado em 15 de maio de 2022, em Roma. Sua memória é celebrada em 1º de
dezembro. Seus filhos e filhas espirituais estão espalhados pelo mundo em muitas
ramificações que tentam, com a graça de Deus, seguir o exemplo de fé, oração, trabalho,
estudo, simplicidade, caridade e muito amor à Igreja, como ensinou São Charles de
Foucauld, o penitente, místico e apostólico eremita do Saara.

Irmão universal e eremita acolhedor

É o próprio Charles de Foucauld quem, em Bênni Abbês, escreve sobre como se


sente enquanto irmão universal: “Eu quero acostumar todos os habitantes, cristãos,
muçulmanos, judeus e idólatras, a me perceberem como seu irmão, como um irmão
universal. Eles começaram a chamar a casa [de Charles de Foucauld – nota nossa] ‘a
fraternidade’ (khauja, em árabe) e isto me deixa muito contente” (Jean-François Six.
Charles de Foucauld: o irmãozinho de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 66).
O interessante é que o amor de Foucauld não é excludente, pois ama os soldados
franceses que dominam a região e ama também os dominados nativos locais. Se excluísse
um dos dois grupos, seu amor universal se tornaria mera hipocrisia ou luta de classes
marxista12.
E isso é o que, anos mais tarde, a Irmãzinha Madalena de Jesus, uma de suas
grandes seguidoras e fundadora das Irmãzinhas de Jesus, afirmará em vários de seus
escritos dentre os quais, aqui, citamos alguns a título de exemplo: “Gostaria de amar a
todos os seres humanos do mundo inteiro. Gostaria de colocar uma centelha de amor em
cada recanto do mundo” (Irmãzinha Annie de Jesus. Irmãzinha Madalena de Jesus: a
experiência de Belém até os confins do mundo. São Paulo: Cidade Nova, 2012, p. 51).
Mais: “O Senhor Jesus fez uma escolha? Não foi Ele que, ao contrário, se ofereceu aos
pregos da cruz, os braços completamente estendidos, justamente para que ninguém fosse
excluído do seu amor? [...] Por todos o Senhor Jesus sofreu e morreu” (idem, p. 52).
Daí sai uma consequência prática para as irmãzinhas e para cada um de nós: “Há
um obstáculo a evitar: o de dar todo o nosso amor aos pequenos, aos pobres, aos
oprimidos, e ter pelos grandes e pelos ricos um olhar duro e indiferente. No Marrocos, se
o amor de vocês se destina aos marroquinos, sem saber que, ao seu lado, alguns franceses
sofrem, seu amor será parcial e incompleto [...]. É difícil ter o coração aberto a todos os
seres humanos. Vocês não têm mais o direito de excluir sequer uma só pessoa, se não o
amor de vocês destrói-se em sua base de universalidade e o mal penetra em seus corações.
Ele destruirá tudo” (ibidem, p. 97; cf. p. 141).
Charles de Foucauld seguiu, de modo fiel, o apelo bíblico à acolhida ao próximo,
como podemos ver, claramente, em seus escritos: “Desde o dia 15, quando a casinha de
hóspedes ficou pronta, todos os dias temos hóspedes para jantar, dormir, almoçar... Ela

12
É São João Paulo II quem diz aos bispos no Celam: “A libertação cristã usa ‘meios evangélicos, com a
sua peculiar eficácia, e não recorre a nenhuma classe de violência nem à dialética da luta de classes...’
(Puebla, n. 486) ou à ‘práxis’ ou à análise marxista, pelo ‘risco de ideologização a que se expõe a reflexão
teológica, quando se realiza partindo de uma ‘práxis’ que recorre à análise marxista. As suas consequências
são a total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé na das ciências sociais e o
esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã’ (Puebla, n. 545)” (02/07/1980).
nunca ficou vazia. Chegamos a ter onze, numa certa noite, sem contar um ancião enfermo
que já tem lugar fixo. Frequentemente, recebo de 60 a 100 visitas por dia, se não todos os
dias” (Irmãzinha Annie de Jesus. Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré.
São Paulo: Cidade Nova, 2004, p. 59). Aliás, a tensão entre a oração e a ação caritativa
se faz sentir na carta dirigida, em 13 de julho de 1905, ao Pe. Huvelin, seu diretor
espiritual. Aí, o santo desabafa: “Gostaria de recitar o breviário, ter as horas de oração,
de meditação, as pequenas leituras da Sagrada Escritura [...]. Caso eu tente fazer isso, não
me sobra tempo algum para conversar com os Tuaregues [...]. Não podendo juntar as duas
coisas, deixo a primeira e faço com que a segunda me pareça a mais desejada pelo bom
Deus” (Antoine Chatelard. Charles de Foucauld: o caminho rumo a Tamanrasset. São
Paulo: Paulinas, 2009, p. 227-228).
Com Foucauld aprendemos o seguinte: o eremita, numa situação muito específica
que requer escolher entre rezar ou praticar a caridade, opta pela caridade. É o próprio
santo quem, uma vez mais, partilha com o Pe. Huvelin, em 15 de janeiro de 1902, sua
dificuldade de rezar após o cansaço dos atendimentos: “Reprovo-me por não dedicar
tempo suficiente às orações, às coisas puramente espirituais. Durante o dia, as pessoas
não param de bater à minha porta e, à noite, que seria o tempo propício, caio
deploravelmente no sono: é uma vergonha e uma dor para mim esse sono que toma mais
espaço do que eu gostaria” (Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré, p. 59).
Vejamos que ele não pensa em deixar os caridosos atendimentos, mas em privar-se ainda
mais do sono, se preciso for, a fim de poder rezar.

O legado espiritual e social do eremita do Saara

É amplo e profundo o legado espiritual e social de Charles de Foucauld, por isso,


difícil de abarcá-lo a contento. Como quer que seja, aqui, exporemos alguns traços dessa
herança apta a nos tocar de perto neste tempo oportuno da graça de Deus (cf. 2 Cor 6,2;
Is 49,8).

Traços de uma espiritualidade13 abrangente

Aqui, trazemos nove pontos que sintetizam, de certo modo, a rica espiritualidade
de Charles de Foucauld, aquele que, em outubro de 1901, aparece vestido como um pobre
indígena da época. “Usa um hábito branco e um lenço de igual cor. Um grande rosário
pende do cinto de couro. Mas o que o distingue cruamente dos indígenas é, sobre a túnica,
um coração vermelho com uma cruz” (Michel Carrouges. A aventura mística de Charles
de Foucauld. São Paulo: Duas Cidades, 1958, p. 128). Hoje, para o eremita, o hábito é o
sinal externo de sua consagração e o testemunho público de sua pobreza (cf. Código de
Direito Canônico, cânon 669 §§ 1 e 2). Eis os pontos:
A Encarnação do Filho de Deus. O mistério da Encarnação é essencial na
espiritualidade de Charles de Foucauld. Daí ele escrever, em 6 de novembro de 1897, esta
belíssima reflexão: “A Encarnação tem sua fonte na bondade de Deus, mas uma coisa
logo se destaca, tão maravilhosa, tão brilhante, tão surpreendente que brilha como um
sinal fascinante: é a humildade infinita que tal mistério encerra... Deus, o Ser, o Infinito,
o Perfeito, o Criador todo-poderoso, Imenso, Mestre soberano de tudo, ao fazer-se
homem, unindo-se a uma alma e a um corpo humanos e aparecendo na terra como um
homem, e como o último dos homens [...]. Para mim: buscar sempre o último dos lugares,
para fazer-me tão pequeno quanto meu Mestre, para estar com Ele, para segui-Lo, passo
13
Este vocábulo é de uso recente. Os antigos falavam de Ascese e Mística ou simplesmente de vida
espiritual, vida cristã.
a passo, como servo fiel, discípulo fiel [...] para viver com meu Deus que viveu assim
toda a sua vida e me dá um exemplo tão grande no seu nascimento” (Irmãzinha Annie de
Jesus. Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova,
2004, p. 37).
E mais: numa meditação em junho de 1916, ano de seu assassinato, Foucauld
escreveu sobre Nosso Senhor: “‘Ele desceu com eles e foi para Nazaré’: por toda a sua
vida, Ele só desceu14, desceu ao encarnar-se, desceu ao fazer-se filho, desceu ao obedecer,
desceu ao fazer-se pobre, abandonado, exilado, perseguido, supliciado, ao colocar-se
sempre no último lugar” (idem, p. 38). Isso, sem dúvida, inspira o eremita do Saara em
sua busca constante do penúltimo lugar, pois “Cristo escolheu o último lugar de tal
maneira que ninguém conseguiu tirar-lhe” (Enzo Santangelo. Charles de Foucauld, o
irmão universal. São Paulo: Loyola, 1983, p. 52).
A Santa Missa: a Santa Missa por ele celebrada era, não obstante a simplicidade
do lugar, de extrema piedade e esmerada liturgia, conforme nos testemunha o general
Lyautey: “Às sete horas do domingo, os meus oficiais e eu assistimos à missa no
eremitério. Este eremitério não passa de um casebre e a capela não é mais que um
miserável corredor de colunas cobertas por uma caniçada; uma tábua serve de altar; a
decoração limitava-se a uma tela com uma imagem de Cristo pintada e castiçais de lata.
O soalho era de areia. Mas a verdade é que eu nunca vi celebrar missa como a celebrava
o Padre Foucauld. Eu imaginava-me na Tebaida. Foi uma das mais fundas impressões da
minha vida” (Jean-François Six. O irmão universal: vida de Carlos de Foucauld. Lisboa:
Sampedro, s/d., p. 110).
Outro militar que participou de várias Missas celebradas pelo Padre Foucauld
testemunha: “Quem nunca assistiu àquele tipo de celebração não sabe bem que coisa pode
ser uma Missa. [...] Quando pronunciava o Domine non sum dignus (Senhor, eu não sou
digno – nota nossa) fazia-o com tal acento que se tinha vontade de chorar com ele” (Bazin.
Charles de Foucauld, p. 235, apud Dom Beto Breis, OFM. Francisco de Assis e Charles
de Foucauld enamorados do Deus humanado. São Paulo: Paulus, 2017, p. 71).
A Adoração eucarística: No retiro de 1897, registra: “Não estavas mais perto da
Virgem Santíssima, de São José, na gruta de Belém, na casa de Nazaré, na fuga para o
Egito, em todos os instantes da vida desta sagrada família, do que estás de mim neste
momento e tantas, tantas vezes neste sacrário. [...] Ficar na minha cela quando podia estar
diante de ti no Sacrário, é como se Madalena, quando estiveste em Betânia, te deixasse
só para ir pensar em ti sozinha no quarto” (Luz no deserto: retiros, notas e
correspondências de Charles de Foucauld. São Paulo: Cultor de Livros, 2018, p. 61).
A Lectio divina: praticamos a Lectio divina por meio de quatro passos que, de
acordo com Guigo II, o cartuxo, formam “a escada dos monges, que os eleva da terra ao
céu” (VV. AA. Lectio divina ontem e hoje. 4ª ed. rev. e ampl. Juiz de Fora: Subiaco, 2017,
p. 16). É composta, segundo a exposição do cartuxo, de quatro degraus: “a leitura é o
estudo assíduo da Escritura, feito com aplicação do espírito. A meditação é uma ação
deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento de uma
verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os
males ou obter o bem. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa
acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura” (idem, p. 16-17). E
completa: “a leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação, segundo
uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa por
cima de todo sentido. O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo, dos que
progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados” (ibidem, p. 28).

14
É a kénosis (o esvaziamento de si) como tratada por São Paulo em Fl 2,5-11 – nota nossa.
É à luz destes pontos que Charles de Foucauld chegou às suas reflexões magistrais
como esta de Marcos 6,31. Ela toca um dos eixos da vida eremítica quando nosso santo
escreve o seguinte: “Quanto mais a sós estivermos com Jesus, melhor o amor aprecia a
entrevista; quanto menos estivermos na companhia de outras criaturas, mais poderemos
consagrar todos os nossos minutos, pensamentos e todo o nosso coração à contemplação
amorosa de Jesus, e melhor aproveitaremos para estar na companhia de nosso Bem-
Amado; que sejam períodos de solidão na companhia de Jesus, constantemente na Sua
companhia, aos Seus pés, não nos ocupando senão d’Ele, quer olhando-O em silêncio
quer interrogando-O, como faziam os apóstolos, a Santíssima Virgem e Santa Maria
Madalena, quando se encontravam a sós na companhia desse divino e Bem-Amado
Jesus... [...] Contemplação constante, meditação maior ou menor consoante o que Jesus
nos der e indicar, pois devemos seguir as indicações do seu Espírito” (Meditações sobre
o Evangelho. 2ª ed. Lisboa: Duas Cidades, 1964, p. 107-108).
O trabalho: meditando sobre Lucas 2,39, Foucauld, como que reproduzindo a
exortação de Nosso Senhor, registra: “Ensino-vos a viver do trabalho das vossas mãos,
para que não sejais uma carga para ninguém e tenhais o que dar aos pobres, e dou a esse
gênero de vida uma beleza incomparável, a da minha imitação” (Luz no deserto: retiros,
notas e correspondências de Charles de Foucauld. São Paulo: Cultor de Livros, 2018, p.
105).
Foucauld dedicou, ainda, longo tempo ao trabalho intelectual, em especial na
composição de um dicionário francês/tuaregue e tuaregue/francês, além da tradução dos
Evangelhos e de passagens do livro da Sabedoria para o tuaregue (cf. Irmãzinha Annie de
Jesus. Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova,
2004, p. 76), de modo que, um dia, confessará: “Trabalho pouco com as mãos” (Jean-
François Six. Charles de Foucauld, o irmãozinho de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2008, p.
90), pois outras atividades lhe tomam o tempo (cf. idem). No trabalho intelectual, gastava
“10 horas e quarenta e cinco minutos por dia” (Antoine Chatelard. Charles de Foucauld:
o caminho rumo a Tamanrasset. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 249).
O desejo do martírio: O eremita do Saara escreve: “Meu Senhor Jesus, Vós
morrestes, e morrestes por nós... Se tivéssemos realmente fé nisso, como desejaríamos
morrer e morrer mártires, como desejaríamos morrer sofrendo, em vez de lamentar os
sofrimentos!... [...] Não importa o motivo que alguém tenha para matar-nos; morreremos
no puro amor, e nossa morte será para Vós um sacrifício de odor muito agradável, e se
não for um martírio no sentido estrito da palavra e aos olhos dos homens, será aos vossos
olhos e será uma imagem perfeita da vossa morte [...], pois se, nesse caso, não tivermos
oferecido nosso sangue por nossa fé, tê-lo-emos, com todo o nosso coração, oferecido e
entregue por vosso amor” (Irmãzinha Annie de Jesus. Charles de Foucauld: nos passos
de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova, 2004, p. 99).
A obediência: Charles de Foucauld viveu até as últimas consequências o “pulsare
cum Ecclesia”, ou, em português, o “sentir com a Igreja”. As alegrias e as dores desta
santa Mãe, que nos gerou para a vida divina pelo Batismo, também eram as suas.
Na Regra dos Irmãozinhos, nosso santo escreve sobre a nossa real pertença à
Igreja: “Quanto mais se está unido à Igreja, mais se está unido ao Espírito Santo que a
vivifica, mais se ama Aquele de quem Ela é o Corpo, nosso Bem Amado Jesus”
(Irmãzinhas de Jesus. Você tem um único modelo: Jesus. Não procure outro, s/d., p. 19).
Em 1903, Foucauld afirma sobre o Papa: “O Santo Padre é o Pai universal, como Jesus é
o Rei universal” (Antoine Chatelard. Charles de Foucauld: o caminho rumo a
Tamanrasset. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 169).
Para ele, “a obediência é o último, o mais alto, o mais perfeito degrau do amor,
aquele onde deixamos de existir para nós mesmos, onde nos anulamos, onde morremos
como Jesus morreu na Cruz” (Irmãzinha Annie de Jesus. Charles de Foucauld: nos
passos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova, 2004, p. 45). Imaginando o próprio
Cristo a lhe falar, escreve: “‘Quem vos ouve a mim ouve’. Imita-me em tudo, obedecendo
a cada instante a meu Pai na obediência a cada instante ao seu diretor [espiritual – nota
nossa]. Ele lhe manda fazer o que eu fazia, ser o que eu era, viver como eu vivia. Ser
minha imagem em tudo! Tanto pelo lugar onde está, como pela vida que leva, mas
sobretudo por sua alma” (Charles de Foucauld. Cartas e anotações. São Paulo: Paulinas,
1970, pp. 51-52).
Transmitir, sempre, a bondade misericordiosa do Sagrado Coração de Jesus. Dirá
Foucauld: “Meu apostolado deve ser o apostolado da bondade; ao me verem, as pessoas
devem dizer: ‘Sendo esse homem tão bom, sua religião deve ser boa’” (Irmãzinha Annie
de Jesus. Charles de Foucauld: nos passos de Jesus de Nazaré. São Paulo: Cidade Nova,
2004, p. 79).
Mais: “quando se quer converter uma alma – costumava dizer – nunca se deve
esmagá-la com sermões; o método mais eficaz consiste não em enchê-la de pregações,
mas em testemunhar-lhe o amor” (Jean-François Six. O irmão universal: vida de Carlos
de Foucauld. Lisboa: Sampedro, s/d., p. 41). Use-se sempre o amor, pois “o primeiro
mandamento da religião é amar a Deus de todo coração. O segundo é amar a todos os
seres humanos, sem exceção, como a si mesmo” (Charles de Foucauld: nos passos de
Jesus de Nazaré, p. 70).
O afeto filial para com Nossa Senhora é expresso em sua prece de consagração:
“Santíssima Virgem, eu me entrego a vós, Mãe da Sagrada Família. Fazei que eu leve a
vida da divina família de Nazaré. Fazei que eu seja vosso digno filho, digno filho de São
José, verdadeiro irmão mais novo de Nosso Senhor Jesus. Ponho minha alma em vossas
mãos, eu vos dou tudo aquilo que sou, a fim de que façais de mim o que mais agradar a
Jesus. Se eu tiver que tomar alguma resolução especial, fazei que eu a tome. Acolhei-me.
Só uma coisa quero: ser e fazer a todo instante o que mais agrade a Jesus. Eu vos dou e a
vós confio, bem-amada Mãe, minha vida e minha morte” (Antoine Chatelard. Charles de
Foucauld: o caminho rumo a Tamanrasset. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 237).

Contribuições sociais de Foucauld

Charles de Foucauld, eremita-sacerdote no Saara, nunca deixou de se interessar


pelas questões sociais. Teve grande apreço por todos, mas em especial pelos pobres e
militares, conforme veremos aqui.
Contemplativo, intelectual e atento aos grandes problemas de seu tempo, Foucauld
se distingue, a seu modo, da ampla maioria dos demais eremitas. A ele bem poderíamos
aplicar o que o Papa Francisco escreve na Gaudete et exsultate, de 19/03/2018, n. 26:
“Não é saudável amar o silêncio e esquivar-se do encontro com o outro, desejar o repouso
e rejeitar a atividade, buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e
integrado como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do caminho de
santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da ação, e
santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão”.
Como nosso santo – sem deixar de ser um contemplativo – agiu ante as questões
sociais de seu tempo? – Respondemos com três exemplos.
Os pobres: ainda que o termo “pobre” tenha sido, infelizmente, deturpado –
política e ideologicamente – nas últimas décadas15, os pobres sempre foram e serão os

15
Na década de 1940, a Irmãzinha Madalena de Jesus escreve às suas filhas espirituais: “Continuem a amar
os pobres com um amor preferencial, porque vocês são especialmente consagradas a eles. Deem a eles o
melhor de si, não os abandonem nunca pelos ricos... Mas, eu lhes suplico: não caiam no erro daqueles que,
preferidos de Deus; merecem, pois, especial atenção da Igreja. Daí escrever o eremita do
Saara: “Partilhemos, partilhemos, partilhemos tudo com eles (os pobres), vamos dar-lhes
a melhor parte e, se não houver o suficiente para dois, vamos dar-lhes tudo. É a Jesus que
damos” (Antoine Chatelard. Charles de Foucauld: o caminho rumo a Tamanrasset. São
Paulo: Paulinas, 2009, p. 252). Aliás, em tudo, Foucauld não desejou menos do que repetir
o ideal cisterciense: “ser pobre com o Cristo pobre” (Dom Luís Alberto Ruas Santos O.
Cist. Bernardo de Claraval. Vida e obra do último dos padres. Campinas: Ecclesiae,
2021, p. 44).
A escravidão. Mesmo correndo sério risco de vida, Foucauld denunciou a
escravidão em nome da dignidade humana. “Quando um governo deste mundo comete
uma injustiça grave contra seres humanos pelos quais, em certa medida somos
responsáveis [...], é preciso dizê-lo a ele, pois representamos na terra a justiça e a verdade,
e não temos o direito de bancar as ‘sentinelas adormecidas’, de ser ‘cães mudos’ ou
‘pastores indiferentes’” (Jean-François Six. Charles de Foucauld: o irmãozinho de Jesus.
São Paulo: Paulinas, 2008, p. 69). Hoje, também somos desafiados a agir frente às
diversas formas antigas e novas de escravidão.
Os militares. Foucauld, na juventude, foi militar francês e, nesta condição, serviu
na África. Ora, voltando para lá, agora como pobre eremita, em 1901, reencontrou antigos
amigos militares que lhe demonstraram grande apreço e foram pontos de referência no
seu modo de viver no deserto.
Antoine Chatelard nos conta que o nosso santo esteve, logo que chegou, com o
comandante Lacroix, seu ex colega de Saint-Cyr, com os generais, em Ain-Sefra, e aí se
hospedou na residência dos oficiais. Nesses inícios de caminhada por terras africanas,
“ver-se-ia rodeado de uma escolta e os militares árabes beijaram seu albornoz” (Charles
de Foucauld: o caminho rumo a Tamanrasset, p. 140). Sua relação com os militares era
tão próxima, que Foucauld os usa como exemplo para nos despertar maior zelo pela causa
de Deus. Eis o que diz: “Vedes que os soldados da terra, esses homens, não temem a
estação. Que sirvam eles de exemplo a nós, soldados de Deus, e não permitamos que o
nosso Mestre novamente ouça ‘Os filhos deste mundo são mais sagazes que os filhos da
luz’” (idem, p. 181).
E mais: quando a região de Tamanrasset tornou-se perigosa devido às ameaças
dos tripolitanos aos tuaregues, Foucauld – embora nunca tenha deixado de lado sua
vocação para o martírio – não cede16. Ao contrário, com a ajuda de mais sete pessoas,
construiu um Forte, o “Forte-eremitério”, como anota Michel Carrouges (A aventura
mística de Charles de Foucauld. São Paulo: Duas Cidades, 1958, p. 216), e em seu
interior mantinha armamentos capazes de ajudar os tuaregues a se defenderem.
E acrescenta Carrouges: “O mesmo homem que vivia num eremitério com a porta
escancarada, fecha-se agora num forte. O mesmo que viera desarmado faz onze anos, vela

pelas próprias palavras ou pelos próprios atos, levantaram barreiras ainda mais compactas do que havia
entre os seres, insuflando as paixões humanas umas contra as outras, porque esqueceram de erguer os olhos
para a cruz de Jesus Salvador que, do alto do Calvário de Jerusalém, abraçava a humanidade inteira, de uma
extremidade à outra do mundo” (Irmãzinha Annie de Jesus. Irmãzinha Madalena de Jesus: a experiência
de Belém até os confins do mundo. São Paulo: Cidade Nova, 2012, p. 52. cf. Dom Estêvão Bettencourt,
OSB. Curso de Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1992, p. 16).
16
Lembremo-nos de que paz real não é pacifismo covarde. Em 1º de janeiro de 1968, em memorável
Discurso, o Papa São Paulo VI afirmava: “é de desejar que a exaltação do ideal da Paz não seja entendida
como um favorecer a ignávia daqueles que têm medo de dedicar a vida ao serviço da própria pátria e dos
próprios irmãos, quando se acham empenhados na defesa da justiça e da liberdade; mas, antes, procuram
somente a fuga das responsabilidades e dos riscos necessários para o cumprimento dos grandes deveres
impostos pelas empresas generosas. Não, paz não é pacifismo, não esconde uma concepção vil e preguiçosa
da vida; mas, proclama sim os valores mais altos e universais da vida: a verdade, a justiça, a liberdade e o
amor”.
junto a um depósito de armas” (idem, p. 216). O próprio Foucauld também confessa: “Eu
transformei meu eremitério em um pequeno forte. [...] Foram-me entregues seis caixas de
cartuchos e trinta carabinas que me fazem lembrar a juventude” (Jean-François Six.
Charles de Foucauld: o irmãozinho de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 117).

Conclusão

Eis o que, de modo sintético, mas bem fundamentado, poderíamos, por ora, expor,
sobre Charles de Foucauld em sua mística busca de Deus, no seu encontro com Ele a
partir da sua conversão e vocação religiosa e nos grandes pontos da sua espiritualidade
que nos toca de perto.
A título de conclusão, citemos o testemunho dos dois últimos Papas sobre o nosso
grande santo. O Papa Bento XVI, no final da celebração de beatificação de Foucauld, em
13 de novembro de 2005, na basílica de São Pedro, em Roma, afirmou: “Ao longo de sua
vida contemplativa e escondida em Nazaré, Carlos de Foucauld encontrou a verdade da
humanidade de Jesus, e nos convidou a contemplar o mistério da Encarnação. Nesse
lugar, aprendeu muito do Senhor, a quem ele queria seguir na humildade e na pobreza.
Descobriu que Jesus, vindo para partilhar a nossa humanidade, nos convida para a
fraternidade universal, que Carlos viveria mais tarde no Saara, e ao amor de que Cristo
nos deu o exemplo. Como sacerdote, ele colocou a Eucaristia e o Evangelho no centro de
sua existência, as duas mesas da Palavra e do Pão, fonte da vida cristã e da missão”.
Também o Santo Padre, o Papa Francisco tem se referido, sempre que possível, a
Charles de Foucauld com grande apreço e devoção. Na sua encíclica Fratelli Tutti, de
03/10/2020, n. 286-287, voltou a recordar o eremita do Saara ao escrever: “Quero
terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa
experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos.
Refiro-me ao Beato Carlos de Foucauld. O seu ideal de uma entrega total a Deus
encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior
do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo ser
humano como um irmão, e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente o irmão
de todos’. Enfim queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os
últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós.
Amém”.

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