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MONSENHOR DE SÉGUR

O INFERNO
se existe • o que é • como evitá-lo
Tradução e notas de Diogo Chiuso
SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Sumário
Epígrafe
Nota da Sua Santidade o Papa Pio IX ao Autor
Prefácio
Prólogo
Capítulo I – O Inferno Existe
É a crença de todos os povos; de todos os tempos
Não se inventou e nem se poderia inventá-lo
Foi Deus mesmo quem nos revelou
Se realmente existe um inferno, por que de lá nunca ninguém voltou?
I. O doutor Raymond Diocrès
II. O jovem religioso de Santo Antônio
III. A cortesã de Nápoles
IV. O amigo do conde Orloff
V. A dama do bracelete de ouro
VI. A filha perdida de Roma
Por que tanta gente se esforça para negar a existência do inferno?
Que bem acreditariam no inferno se os mortos ressuscitassem mais
Capítulo II – O que é o Inferno
As idéias falsas e supersticiosas acerca dele
O inferno consiste, sobretudo, numa pavorosa pena de danação
Em segundo lugar, o inferno consiste na dor horrível de fogo
O fogo do inferno é sobrenatural e incompreensível
I. Padre Bussy e o jovem libertino
II. Os três filhos de um velho usurário
III. Meus filhos, não queiram ir para o inferno
O fogo do inferno é um fogo corpóreo
Ainda que seja corpóreo, o fogo do inferno atinge as almas
IV. O capitão-ajudante de Saint-Cyr
V. A mão queimada de Foligno
Onde está o fogo do inferno?
O fogo do inferno é um fogo tenebroso: visões de Santa Teresa
Que outras grandiosas penas acompanham o sombrio fogo do inferno
Capítulo III – Sobre a eternidade das penas do Inferno
É uma verdade de Fé revelada
Sobre o inferno ser necessariamente eterno devido a natureza mesma da
eternidade
Mais uma razão para a eternidade das penas: o vazio de Graça
Terceira razão da eternidade das penas: a depravação da vontade dos
condenados
Se é verdade que Deus seja injusto punindo com castigos eternos as faltas
de um momento
Se assim também é para os pecados de fraqueza
Quem são os que tomam o caminho do inferno?
Se podemos ter certeza da condenação de alguém que vemos morrer mal
Capítulo IV – Conclusões práticas
Sair imediatamente, e a qualquer preço, do estado de pecado mortal
Evitar com muito cuidado as ocasiões perigosas e as ilusões
Certifique-se da sua salvação eterna por uma vida seriamente cristã
Epílogo
Créditos
A TUA PERDIÇÃO, Ó ISRAEL, VEM DE TI. DE MIM VEM APENAS TEU SOCORRO. — Os 13,9
NOTA DA SUA SANTIDADE O PAPA PIO IX AO AUTOR

Eu vos saúdo, bem amado filho, com a Bênção Apostólica. Felicitações de


todo o nosso coração, que vós não cessais em preencher, em larga escala e
muita competência, com o ofício de arauto do Evangelho.
Tudo o que publicais espalha-se rapidamente entre o povo. Evidentemente,
para que vossos escritos despertem tanto interesse, é necessário que sejam
agradáveis – e não agradariam se não tivessem o dom de conciliar os espíritos
e chegar até o fundo dos corações, produzindo, em cada um deles, efeitos
benéficos.
Beneficiai com a Graça que Deus vos deu, e continuai a trabalhar com
ardor para cumprir a vossa tarefa de evangelização.
Quanto a nós, prometemo-vos uma assistência ampla da parte de Deus,
através da qual podereis iniciar um número de almas cada vez mais
considerável nas vias da salvação, e assim tecereis uma magnífica coroa de
glória.
Por enquanto, como prêmio a esse celestial favor e de outros dons do
Senhor, recebeis, bem-amado filho, a Bênção Apostólica que vos damos com
grande amor, para que testemunhais nossa benevolência paterna.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 2 de março de 1876, trigésimo
ano de nosso Pontificado.*
PAPA PIO IX

* Um ano e oito meses mais tarde, com a morte de Pio IX, encerrava-se o pontificado mais longo da
História depois de São Pedro. Criticado por ser conservador, condenou, na encíclica Syllabus, os
principais erros da nossa época: socialismo, comunismo e também o liberalismo maçônico. Proclamou
o dogma da Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro de 1854, e, passados 3 anos dessa solene
proclamação, a 11 de agosto de 1858, Nossa Senhora dignou-se a aparecer, por quinze dias seguidos,
perto da pequena cidade de Lourdes, na França, a uma pobre menina chamada Bernardete, de 13 anos
de idade.
O túmulo de Pio IX está na igreja de San Lorenzo Fuori le Mura, em Roma. A sua controversa
beatificação, iniciada em 11 de fevereiro de 1907, foi relançada por três vezes antes dele ser declarado
Venerável (6 de julho de 1985). Em 3 de setembro de 2000, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, e
sua festa litúrgica é comemorada no dia 7 de fevereiro, data de seu falecimento.
PREFÁCIO

«Pensa nos Novíssimos e não pecarás!» Era este o alerta que recebíamos
no Catecismo de que participei há mais de cinqüenta anos. Os Novíssimos!
As últimas coisas que aconteciam a cada um de nós: morte, juízo, inferno,
paraíso. Intrigava-nos, crianças ainda, o nome ‘Novíssimos’. Parecia-nos
estranho e tão diferente. E o tempo passou; e essas realidades que se
aproximam tornam-se mais presentes em nossas vidas.
Sou padre, pela Graça de Deus! E a vocação recebida coloca-me em
contato constante com o Senhor e Sua bondade. A Misericórdia Divina
manifesta-se nos Sacramentos que presido no dia-a-dia de minha corrida
vida. Observo os pecadores saírem renovados na Confissão. Admiro-me de
Jesus, o Pão da Vida, que se fez alimento, na memória incruenta de Seu
sacrifício no altar. Vejo a criança renascer nas águas do Batismo. Creio no
Senhor que nos fez por amor e, por esse mesmo amor, quer nos salvar e
levar-nos para viver com Ele no Seu Reino.
Sou convidado, então, a ler o livro «O Inferno» de Monsenhor de Ségur,
sacerdote francês do já longínqüo século XIX. E uma pergunta brota em meu
espírito: que contribuição esperar de um livro como este, que recorda tão
triste tema?
Certamente o autor não quer somente nos passar um sentimento de pavor
ao relatar as terríveis palavras da Escritura que nos advertem dos castigos
que, infelizmente, podem acometer cada ser humano deste mundo. Também
não quer nos espantar ao narrar tristes casos de almas penadas, recurso
apologético para uma época que vivia a exaltação da ciência e da razão, que
pretendiam excluir a ação de Deus em meio aos homens. De fato, outra é a
situação do autor e nela devemos nos fixar. O que Monsenhor de Ségur
almeja é despertar o Temor pelo temor.
O temor do inferno causa-nos medo perante o sofrimento que nos poderá
acometer, e isso nos pre- ocupa imensamente. Ninguém quer sofrer,
sobretudo hoje, e o ser humano anseia por sua felicidade. No entanto, seu
livro não tem como finalidade despertar esse temor. Seu objetivo é, de fato,
pela reflexão sobre o inferno: levar-nos ao temor de Deus. Temor entendido
não como medo ou pavor de Deus, mas sim o temor de perdê-Lo e, mais
ainda, magoar Aquele que nos ama a ponto de dar-nos Seu Filho amado para
a nossa salvação. Assim, o temor de Deus é simplesmente corresponder ao
amor «d’Aquele que nos amou primeiro». Portanto, leva-nos do terror do
inferno ao temor de Deus. Do temor de Deus ao amor a Deus.[1Jo 4,19]
É para isto que nos orienta este livro: unir-se em plenitude no Amor de
Deus, na vida e nos sacramentos. E aparece em nova veste editorial com a
tradução em nossa bela língua portuguesa. É muito bom apreciar o trabalho
de Diogo Chiuso, jornalista e tradutor, católico consciente e dinâmico, que
mostra a beleza de nossa fé em nossa língua. Essa tradução vem enriquecida
com notas, auxiliando na leitura e apreciação de uma obra que, nascida em
outras circunstâncias, poderia soar estranha neste início do século XXI da era
cristã.
Agradeço-lhe de coração esse incentivo que nos vem do seu trabalho,
unido ao de Monsenhor de Ségur, de amor cada vez maior ao Senhor, correto
em Seus juízos e ainda mais abundante em Sua Misericórdia.
Santos, 1 de outubro de 2011.
PE. ANTONIO PAULO FERREIRA DE CASTILHO
Sacerdote da Diocese de Santos/SP e
Doutor em Ciência da Religião
PRÓLOGO

Foi em 1837. Dois jovens sub-tenentes, recém-formados de Saint-Cyr,1


visitavam os monumentos e pontos turísticos de Paris. Eles entraram na
Igreja da Assunção, perto das Tulherias, e começaram a olhar para as
imagens, pinturas e outros detalhes artísticos daquela bonita rotunda.
Sequer pensaram em rezar.
Perto de um confessionário, um deles notou que um jovem padre de
sobrepeliz adorava o Santíssimo Sacramento:
– Veja aquele padre, parece que ele está esperando alguém.
– Talvez esteja esperando por você – o outro respondeu sorrindo.
– Mas por que seria por mim?
– Ora, para você confessar!
– Confessar, eu? Tudo bem, quer apostar como vou?
– Você, confessar? Até parece! – pôs-se a rir.
– Quer apostar um bom jantar com uma garrafa de champanhe gelada? –
provocava o jovem oficial, de escárnio, mas decidido.
– Vá lá, por um jantar com champanhe eu desafio você a entrar naquela
caixa!
Aposta feita, o jovem foi até o padre, sussurrou algo em seu ouvido e
foram ambos ao confessionário. Foi quando o penitente improvisado lançou
um olhar de vencedor para o seu camarada e, logo depois, ajoelhou-se como
se fosse confessar de verdade.
– Descarado! – sussurrou o outro, sentando-se, a esperar o que iria
acontecer.
E esperou por cinco; dez; vinte e cinco minutos. «O que ele está
fazendo?», perguntava-se. «O que ele pode ter dito depois de tanto tempo?»
Até que, finalmente, abre-se o confessionário. Sai o padre com um rosto
animado, porém sério. Dirigiu-se para sacristia, não sem antes cumprimentar
o desonesto confessor que, naquele momento, estava vermelho como um
tomate a mexer no bigode de forma atrapalhada. Ainda acanhado, o jovem
oficial sinalizou ao amigo para que o seguisse até o lado de fora da igreja.
– Diga-me o que aconteceu! Saiba que esteve por mais de vinte minutos
com aquele padre. Palavra de honra: por um momento pensei que tivesse
confessado a sério! Ganhou o jantar, vai querer para esta noite?
– Não! – respondeu-lhe de mau humor – Nos veremos outro dia, agora
tenho muito que fazer.
Totalmente transtornado, apertou as mãos do companheiro e, sem mais
nada a dizer, foi-se.
Mas o que havia acontecido, de fato, entre o sub-tenente e o sacerdote?
Isto: mal o padre abriu a janela do confessionário, percebeu a farsa. O
jovem ainda teve a impertinência de lhe dizer, eu não sei ao certo, mas algo
como: «não me importo com a religião e nem mesmo com a confissão!»
Porém aquele padre era um homem de espírito, e com doçura interrompeu
o seu interlocutor:
– Meu caro senhor, vejo que não veio aqui com a seriedade devida. Mas
deixemos a confissão de lado e, caso não ache ruim, podemos conversar por
alguns instantes. Parece-me um bom rapaz e eu tenho em grande conta os
militares. Poderia me dizer a sua patente?
O oficial percebeu que havia feito algo insensato e pensou que,
conversando um pouco com o padre, poderia se redimir. Assim respondeu,
desta vez de forma educada:
– Sou um sub-tenente, venho de Saint-Cyr.
– Sub-tenente? E por quanto tempo será sub-tenente?
– Não sei, talvez por dois, três ou quatro anos.
– E depois?
– Depois serei tenente!
– E depois?
– Depois serei capitão!
– Capitão? Muito bem! E com qual idade é permitido ser capitão?
– Se tiver a chance, posso ser capitão com vinte e oito ou vinte nove anos.
– E depois?
– Ah, difícil dizer! Passa-se um bom tempo como capitão, depois como
chefe do batalhão, depois como tenente-coronel até chegar a coronel.
– Bem, o senhor será coronel com quarenta ou quarenta e dois anos. Mas e
depois?
– Deverei ser general de brigada e depois general da divisão.
– E depois?
– Sobra apenas o cargo de marechal, mas minhas pretensões não são
tantas...
– Mas não pensa em se casar?
– Sim, claro! Assim que eu for um oficial superior.
– Entendo... o senhor será casado, oficial superior, general, general da
divisão, talvez até marechal da França, quem sabe? Mas e depois?
– Depois... depois... Ah, não sei dizer o que virá depois – responde, e neste
momento já parece estar um pouco confuso. Desta vez o padre lhe diz com
um tom mais sério:
– Veja como é estranho! Você sabe o que vai acontecer até lá, mas não o
que virá depois. Bem, eu sei e vou lhe contar: depois, meu caro, virá a sua
morte; depois, estará diante de Deus e será julgado. E se continuar a fazer o
que fez agora, encontrará a danação e queimará eternamente no inferno. É
isto o que acontecerá depois!
Atordoado, o jovem ensaia fugir, mas o sacerdote o impede:
– Um instante, meu rapaz! Ainda tenho algo a dizer. Você tem honra, não é
verdade? Pois bem, também a tenho, e o senhor acabou de ofendê-la e por
isso exijo uma reparação. Mas será algo simples. Quero apenas a sua
promessa de que, durante oito dias, antes de dormir, ajoelhar-se-á e dirá em
voz alta: um dia eu morrerei, mas não me importo; depois do meu
julgamento, serei condenado, mas não me importo; depois irei queimar
eternamente no inferno, mas não me importo. Apenas isso! Sei que, como um
homem honrado, não irá faltar com a sua palavra!
O sub-tenente, envergonhado, em desespero para sair dali, fez sua
promessa.
O bom padre se despediu, acrescentando:
– Eu não preciso dizer, meu caro amigo, que eu te perdoo com todo o meu
coração. Se um dia você precisar de mim, sempre me encontrará aqui. Só não
se esqueça de que me empenhou a sua palavra!
Como vimos anteriormente, eles se separaram.
Naquela noite, o jovem oficial jantava sozinho e as lembranças do que
ocorrera o irritava profundamente. Quando chegou a hora de se deitar,
hesitou um pouco, mas tinha de honrar a palavra dada:
– Eu morrerei, serei julgado e poderei ir para o inferno... – mas não teve
coragem de dizer: «eu não me importo!»
Vários dias se passaram e, sem cessar, o arrependimento retornava ao seu
espírito, como se fosse um zumbido em suas orelhas. Em verdade, como
noventa e nove por cento dos jovens, ele era mais desorientado do que mau.
Passados os oito dias, ele voltou à Igreja da Assunção, mas desta vez para
confessar de forma sincera. Deixou o confessionário com o rosto banhado em
lágrimas, que expressava alegria no coração. Segundo me disseram, passou,
dali em diante, a ser um digno devoto de Cristo.
Portanto, foi através de uma reflexão séria sobre o inferno que, com a
Graça de Deus, operou-se a transformação. Ora, se ela agiu no espírito
daquele jovem oficial, por que não haveria de agir no seu, caro leitor?
É preciso refletir sobre esse assunto, afinal trata-se de uma questão
bastante pessoal e, admito, profundamente temerosa. Mas ela está diante de
nós e, queiramos ou não, devemos encontrar uma solução definitiva.
Iremos, portanto – e assim se exige –, examinar com muito cuidado,
embora brevemente, duas coisas: primeiro, se o inferno realmente existe e;
segundo, o que é o inferno.
Antes de começar, faço apenas um apelo à sua boa fé.

1 Escola Superior Militar de Saint-Cyr, a mais famosa academia militar francesa. Localizada no
departamento de Bretanha, noroeste da França.
SANCTE MICHAEL ARCHANGELE, DEFENDE NOS
IN PRŒLIO CONTRA NEQUITIAM ET INSIDIAS DIABOLI ESTO PRÆSIDIUM. IMPERET ILLI
DEUS, SUPPLICES DEPRECAMUR: TUQUE, PRINCEPS MILITIÆ CÆLESTIS, SATANAM
ALIOSQUE SPIRITUS MALIGNOS, QUI AD PERDITIONEM ANIMARUM PERVAGANTUR IN
MUNDO, DIVINA VIRTUTE IN INFERNUM DETRUDE. AMEN.
CAPÍTULO I
O INFERNO EXISTE
É a crença de todos os povos; de todos os tempos
Aquilo em que as pessoas sempre acreditaram constitui o que chamamos
de verdade de senso comum – ou, se preferir, de sentimento comum,
universal. Qualquer pessoa que se recuse a admitir uma dessas grandes
verdades universais não teria, portanto, o senso comum. De fato, é preciso ser
louco para imaginar que se pode ter razão sozinho contra o mundo inteiro.
Ora, em todos os tempos, desde o início do mundo até os nossos dias, não
se tem notícia de povos que não acreditassem em um inferno. Com um nome
ou outro, com formas mais ou menos variáveis, todos receberam,
conservaram e proclamaram a crença na punição indubitável e eterna de que,
após a morte, prevalece o fogo a castigar os ímpios.
É um fato notório, estabelecido com tanta luminosidade pelos grandes
filósofos cristãos, que sequer é preciso demonstrá-lo.
Desde o princípio, encontramos a existência do inferno de fogo eterno nos
livros mais antigos que se conhecem: os de Moisés. Cito-os aqui apenas sob
um ponto de vista estritamente histórico, pois eles registram o nome do
inferno com todas as letras.
Assim nos conta o décimo sexto capítulo do livro dos Números: os três
levitas, Coré, Datã e Abiron, que tinham blasfemado contra Deus e haviam se
revoltado contra Moisés, foram «tragados vivos para o inferno». Eles
«desceram vivos para o inferno (descenderuntque vivi in infernum); e o fogo
(ignis) saído do Senhor devorou duzentos e cinqüenta outros rebeldes».2 Isso
foi escrito por Moisés há mais de seiscentos anos antes do nascimento de
Nosso Senhor, ou seja, mais ou menos três mil e quinhentos anos atrás.
No Deuteronômio, o Senhor diz, pela boca de Moisés: «Sim! O fogo da
minha ira está ardendo e vai queimar até o mais fundo do inferno (et ardebit
us que ad inferna novissima)». No livro de Jó, igualmente escrito por
Moisés,3 o servo Jó testemunha que os ímpios, cuja vida era repleta de bens,
disseram a Deus: «Afasta-te de nós, pois não nos interessa conhecer os teus
caminhos. Quem é o Todo-Poderoso, para que o sirvamos? De que nos
aproveita que lhe façamos orações?» Estes ímpios «caíram no inferno (in
puncto ad inferna descendunt)».4 [Dt 32,22]
Jó ainda descreve o inferno como «terra soturna e sombria, de escuridão e
desordem, onde a claridade é a sombra».5
Certamente, são testemunhos mais do que respeitáveis, que remontam às
mais antigas origens históricas.
Mil anos antes da Era Cristã, quando ainda não estavam em questão nem a
História grega nem a romana, Davi e Salomão falavam freqüentemente do
inferno como uma grande verdade, conhecida e reconhecida por todos, sem
haver necessidade de demonstração. No livro dos Salmos, entre outras coisas,
dizia Davi sobre os pecadores: «Sejam precipitados todos os pecadores no
inferno (et deducantur in infernum), envergonhem-se, e sejam conduzidos ao
inferno (convertantur peccatores in infernum). E também fala das ‘dores do
inferno’ (dolores inferni)»[Sl 30,18] [ 9,18] [ 17,6]
Salomão não é menos claro. Referindo-se aos ímpios que querem seduzir e
fazer se perder os justos, diz: «Nós os tragaremos vivos, como o inferno
(sicut infernus)». E na famosa passagem do Livro da Sabedoria, onde
descreve os desesperos dos condenado: «Eis o que dizem os pecadores no
inferno (in inferno); sim, a esperança do ímpio é como palha levada pelo
vento».[Pr 1,12] [Sb 5,14]
Outro dos seus livros, chamado Eclesiástico, diz ainda: «A assembléia dos
pecadores é monte de estopa, cujo fim derradeiro é a chama de fogo (flamma
ignis); no final estão o inferno, e as trevas, e os castigos (et in fine illorum
inferi, et tenebrae, et poenae)». [Eclo 21,10 sq]
Dois séculos mais tarde, mais de oitocentos anos antes de Jesus Cristo, era
a vez do grande Profeta Isaías dizer: «Como caíste do alto dos céus, ó
Lúcifer? (…) dizias a teu coração: subirei acima da altura das nuvens e serei
semelhante ao Altíssimo. E, contudo, no inferno serás precipitado até o
profundo lago (ad infernum detraheris, in profundum laci).»Veremos mais
tarde o que podemos entender por esse abismo, esse misterioso ‘lodaçal’, essa
terrível massa de fogo líquida abrigada e escondida na terra, que a própria
Igreja nos indica como o lugar propriamente dito do inferno. [Is 14,11 sq]
Em outra passagem do livro de Isaías, o Profeta fala do eterno fogo do
inferno: «O temor se apoderou dos ímpios. Quem dentre nós poderá habitar
com o fogo devorador (cum igne devorante)? Quem dentre nós poderá
manter-se junto aos braseiros eternos (cum ardoribus sempiternis)?» [Is
33,14]
Também o Profeta Daniel, que viveu duzentos anos após Isaías, ao falar da
ressurreição dos mortos e do julgamento: «E toda esta multidão dos que
dormem no pó da terra, acordarão: uns para a vida eterna, e outros para o
opróbrio, que eles terão sempre diante dos olhos.» [Dn 12,2]
O mesmo testemunho é dado por outros Profetas, até chegar ao precursor
do Messias, São João Batista, que também fala ao povo de Jerusalém sobre o
eterno fogo do inferno, como uma verdade de todos conhecida, da qual
jamais se duvidou: «Eis o Cristo que se aproxima», disse; «Ele recolherá o
Seu trigo (os eleitos) no celeiro, mas queimará as palhas (os pecados) num
fogo inextinguível (in igne inextinguibili).» [Mt 3,12]
A antigüidade pagã também nos legou relatos sobre o inferno, com seus
terríveis e infindáveis tormentos. Portanto, sob formas mais ou menos exatas
– conforme maior ou menor distância dos povos em relação às tradições
primitivas e os ensinamentos dos Patriarcas e Profetas –, sempre nos
deparamos com a crença em um inferno de fogo e trevas. Assim era o
Tártaro6 dos gregos e latinos: «Aqueles que são incuráveis, por causa da
enormidade dos seus pecados, (…) terão justo castigo ao serem lançados no
Tártaro, de onde nunca mais sairão», afirma Sócrates, citado pelo discípulo
Platão.7
E Platão diz mais: «É preciso dar fé às tradições antigas e sagradas que nos
ensinam que a alma é imortal e também que, após esta vida, ela será julgada e
punida de forma severa, caso não tenha vivido de forma conveniente».8
Aristóteles, Cícero, Sêneca, todos falaram dessas tradições que se
perderam nas brumas do tempo, enquanto Homero e Virgílio cobriram-nas de
cores com suas poesias imortais. Quem, por acaso, não leu a narrativa da
descida de Enéias aos infernos,9 onde um dentre eles nos é descrito como
«preso eternamente no inferno».
De fato, com o nome de Tártaro ou Plutão, reencontramos, ainda que com
algumas deturpações, as grandes verdades primitivas preservadas pelo
paganismo, com os suplícios dos maus condenados eternamente.
O filósofo cético Bayle foi o primeiro a constatar e reconhecer a
preservação dessa crença universal. Seu parceiro de voltairianismo – e
impiedade –, o inglês Bolingbroke, também a reconheceu com igual
franqueza: «A doutrina de um estado futuro de recompensas e punições
parece se perder nas trevas da antigüidade; ela precede tudo o que sabemos
de certo. Desde que começamos a desvendar o caos da História antiga,
deparamo- nos com esta crença, de maneira muito sólida, no espírito das
primeiras nações de que temos notícias».10
E podemos encontrar o que delas restou até mesmo entre as superstições
dos selvagens da América, África e Oceania. Também os paganismos da
Índia e da Pérsia guardavam vestígios impressionantes. Por fim, até mesmo o
maometismo lista um inferno na relação dos seus dogmas.
Já no seio do cristianismo é desnecessário dizer que o dogma do inferno é
ensinado como uma das grandes verdades fundamentais que servem de base
ao edifício da Religião. Mesmo os protestantes, que tudo destruíram com a
louca doutrina do «livre exame», não ousaram tocar no inferno. Espantoso,
inexplicável! Em meio a tantas ruínas, Lutero, Calvino e os outros deixaram
em pé a temível verdade que, por certo, devia-lhes ser pessoalmente
inoportuna!
Portanto, todas as pessoas, em todos os tempos, conheceram e
reconheceram a existência do inferno. Devido a isso, este dogma faz parte do
tesouro das grandes verdades universais, que se constitui como a luz da
humanidade. Assim, não é possível a um homem sensato colocá-la sob
suspeita, dizendo, na loucura de uma orgulhosa ignorância, que o inferno não
existe!
Pelo contrário: o inferno existe!
Não se inventou e nem se poderia inventá-lo
Acabamos de ver que em todos os tempos se acreditou na existência do
inferno – e isto prova não se tratar de uma invenção humana.
Mas suponhamos, somente por um instante, um mundo onde a vida é
muito tranquila, sem crenças, abandonado às paixões e ao prazer. Eis que um
belo dia surge um homem, um filósofo, a dizer: «Há um inferno, um lugar de
tormentos eternos, onde Deus vos punirá se continuardes a fazer o mal; um
inferno de fogo onde queimareis para sempre, caso não mudeis de vida». É
possível imaginar o efeito de tal anunciação?
A princípio, ninguém teria acreditado. «O que vindes nos pregar?», diriam
a esse inventor do inferno. «De onde tirastes esta idéia? Quais provas podeis
nos apresentar? Sois nada mais do que um sonhador, um profeta da
desgraça». Repito: ninguém teria acreditado!
Isso porque o homem corrompido se opõe instintivamente à idéia do
inferno. Por essa razão, todos os culpados rejeitam, enquanto puderem, a
idéia de serem punidos. Rejeitam, com mais força, a perspectiva desse fogo
vingador e eterno que deve punir impiedosamente todos os seus pecados –
mesmo os mais secretos.
Sobretudo numa sociedade como essa a que supomos, onde jamais alguém
ouviu falar do inferno, a revolta contra a possibilidade de haver castigos
eternos se juntaria à revolta das paixões por negá-los. Portanto, não apenas
ninguém haveria de acreditar nesse infeliz inventor, como teriam-no caçado
com cólera, apedrejado-o, de modo que a ninguém mais ocorreria o desejo de
recomeçar tal invenção.
E, mesmo que pareça impossível, acreditamos nessa estranha invenção. Se,
aparentemente ainda mais impossível, todos os povos se puseram a acreditar
no inferno, na palavra do suposto filósofo citado, então eu lhes pergunto: não
poderiam estar registrados na História tal acontecimento, o nome do inventor,
o século e o país onde ele teria vivido?
Jamais alguém foi apontado como o inventor de uma doutrina tão terrível,
tão contrária às paixões do espírito humano. O inferno não foi inventado
porque simplesmente não poderia ser. Afinal, as penas eternas – ou o inferno
propriamente dito – formam um dogma impossível de se compreender
através da razão humana. É possível conhecê-lo, mas nunca compreendê-lo,
pois está acima das nossas possibilidades de compreensão. Desta forma, se o
homem não pode compreender o inferno, como poderia tê-lo inventado?
Mas pelo fato do inferno não poder ser compreendido pela razão humana,
só resta a ela negá-lo e tentar fazer crer que é algo impossível de existir,
apenas porque não pode ser esclarecido, nem mesmo pelas luzes
sobrenaturais da fé.
No entanto, o dogma do inferno é o que chamamos de «verdade inata», ou
seja, uma luz de origem divina que em nós brilha independente de nós
mesmos, pois está no fundo das nossas consciências, solidificado nas
profundezas de nossa alma, assim como um diamante negro que brilha desde
uma sombria fenda. E não há quem possa arrancá-lo, pois foi o próprio Deus
que lá o colocou. É possível cobrir tal diamante e sua chama sombria; é
possível evitá-lo aos olhos, esquecê-lo por algum tempo ou mesmo negá-lo
com palavras. Mas ainda que não acreditemos, a consciência não cessa em
nos mostrá-lo.
Os ímpios que zombam do inferno têm, no fundo, um medo terrível.
Aqueles que dizem poder provar que o inferno não existe mentem a eles
mesmos e para os outros. É muito mais um impuro desejo do coração do que
uma negação racional pela inteligência.
No século passado, um desses insolentes escreveu a Voltaire dizendo ter
descoberto a prova metafísica da inexistência do inferno: «Você é um bem-
aventurado!» – respondeu-lhe o velho patriarca dos incrédulos – «estou longe
de chegar lá».
Não, o homem não inventou o inferno. Não inventou e não poderia tê-lo
inventado. O dogma do inferno de fogo eterno remonta a Deus. Faz parte
dessa grande revelação primitiva que é a base da Religião e da vida moral do
gênero humano.
Portanto, o inferno existe.
Foi Deus mesmo quem nos revelou
As passagens do Antigo Testamento que citei anteriormente nos mostram
que foi o próprio Deus quem revelou o dogma do inferno aos Patriarcas, aos
Profetas e ao antigo povo de Israel. Com efeito, não são apenas testemunhos
históricos; são, sobretudo, testemunhos divinos que comandam a fé, que se
impõem à nossa consciência com a autoridade infalível das verdades
reveladas.
Nosso Senhor Jesus Cristo confirmou solenemente essa formidável
revelação, pois fala quatorze vezes sobre o inferno nos Evangelhos. Não nos
reportaremos aqui a todas essas palavras, mas veremos apenas as principais.
Não esqueçamos, meu bom leitor, que é Deus mesmo quem fala aqui, e Ele
disse: «Passarão o céu e a terra, mas não passarão as minhas palavras.»[Mt
24,35] [Mc 13,31] [Lc 21,33]
Pouco após a Sua admirável Transfiguração11 no monte Tabor, Nosso
Senhor disse aos Seus discípulos e as pessoas que o seguiam: «Se tua mão ou
teu pé te escandalizam, corta-os e atira-os para longe de ti. Melhor é que
entres mutilado ou manco para a Vida do que, tendo duas mãos ou dois pés,
seres atirado no fogo eterno (in gehennam ignis inextinguibili). E, se teu olho
te escandaliza, arranca-o e atira-o para longe de ti. Melhor é que entres com
um só olho para a vida do que, tendo dois olhos, seres atirado no fogo do
inferno, onde o fogo jamais extinguirá (et ignis non extinguitur).» [Mt 18,8-9
] [Mc 9,43]
Ele também fala que chegará o fim dos tempos: «O Filho do Homem
enviará Seus anjos e eles apanharão do Seu Reino todos os escândalos e os
que praticam a iniquidade e lança-los-ão na fornalha ardente (in caminum
ignis). Ali haverá choro e ranger com os dentes. Então os justos brilharão
como o sol no Reino de Seu Pai. O que tem ouvidos, ouça!» [Mt 13,41sq]
Quando o Filho de Deus prediz o juízo final, no vigésimo quinto capítulo
do Evangelho de São Mateus, faz-nos saber de antemão os próprios termos da
sentença que Ele pronunciará contra os condenados: «Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno (discedite a me, maledicti, in ignem aeternum)
preparado para o diabo e para os seus anjos». E acrescenta: «E irão esses para
o suplício eterno (in supplicium aeternum)». [Mt 25,41sq]
Pode haver algo mais decisivo?
Os Apóstolos, encarregados pelo Salvador para desenvolver Sua doutrina e
ensinar Suas revelações, não falam de maneira menos explícita sobre o
inferno e suas chamas eternas. Para citar apenas algumas de suas palavras,
lembremos que São Paulo, pregando sobre o juízo final, disse aos cristãos de
Tessalônica: «O Senhor Jesus descerá do céu com os Anjos da Sua virtude,
em chama de fogo (in flamma ignis) para vingar-se daqueles que não
conhecem a Deus, e que não obedecem ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo. O castigo deles será a ruína eterna longe da face do Senhor e do
esplendor de Sua majestade.» [2Ts 1,7-9]
O Apóstolo Pedro diz que os ímpios partilharão do castigo dos anjos maus,
que o Senhor os precipitou nas profundezas do inferno, no tormento do
Tártaro (rudentibus inferni detractos in Tartarum tradidit cruciandos). Ele os
chama de «filhos da maldição» (maledictionis filii) a quem são reservados os
horrores das trevas.12
São João, do mesmo modo, falou-nos do inferno e suas chamas eternas.
Quanto ao anticristo e seu falso profeta, disse: «ambos foram lançados vivos
no lago de fogo, que arde com enxofre (in stagnum ignis ardentis sulphure)
para serem atormentados noite e dia e por todos os séculos dos séculos
(cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum).» [Ap 19,20]
Finalmente, também o Apóstolo São Judas nos falou sobre o inferno,
mostrando-nos os demônios e os condenados presos em «cadeias eternas sob
as trevas», sujeitos ao «castigo de fogo eterno» (ignis aeterni poenam
sustinente). [cf. Jd 1,6-7]
Em todas as Epístolas inspiradas, os Apóstolos recorrem constantemente
ao temor dos julgamentos de Deus e Suas punições eternas, que estão à
espera dos pecadores impertinentes.
Diante de tão claros ensinamentos, é de se admirar que a Igreja nos
apresente o castigo eterno como um dogma de fé propriamente dito? E de tal
modo que, havendo quem ouse negar, ou mesmo pôr em dúvida, seja
considerado herético?
Enfim, a existência do inferno é um artigo de fé católica. E estamos tão
seguros disso como da existência de Deus.
Assim sendo, o inferno existe.
*
* *
EM SUMA: O testemunho de toda a raça humana e de todas as suas
tradições mais antigas, junto com o testemunho da natureza humana, por justa
razão, de coração e consciência e, acima de tudo, o testemunho do
ensinamento infalível de Deus e de Sua Igreja, unem-se para nos atestar, com
certeza absoluta, que existe o inferno de fogo e de trevas; um inferno eterno
para o castigo dos ímpios e dos pecadores impertinentes.
Responda-me, prezado leitor, poderia uma verdade ser estabelecida de uma
maneira mais decisiva?
Se realmente existe um inferno, por que de lá nunca ninguém voltou?
Primeiramente, o inferno existe para punir os condenados, e não para
permitir que eles voltem à terra. Quando lá se está, lá se fica. Pode-se dizer,
portanto, que de lá ninguém retorna, e isto está correto segundo a ordem
habitual da Providência.
Mas seria certo dizer que ninguém retornou do inferno? Há alguma certeza
de que, enquanto misericordioso e justo, Deus nunca permitiu que um
condenado aparecesse na terra?
Há nas Sagradas Escrituras – e também na História – provas em contrário.
Seria inexplicável, por exemplo, uma crença muito comum – por mais
supersticiosa que seja – que se convencionou chamar de «alma de outro
mundo».
Permita-me contar alguns casos, cuja autenticidade resta evidente e provam
a existência do inferno através do terrível testemunho dos que lá estão.
O doutor Raymond Diocrès
Na vida de São Bruno, fundador da Ordem dos Cartuxos,13 encontra-se
um fato, estudado com todo o critério pelos eruditos Bolandistas,14 e, perante
os exames mais sérios, apresenta todas as características de autenticidade
histórica.
Aconteceu em Paris, em pleno dia e testemunhado por milhares de pessoas.
Os detalhes foram recolhidos pelos contemporâneos e, à época, deu origem a
uma ordem religiosa.
Em 1082, veio a falecer um célebre doutor da Universidade de Paris,
chamado Raymond Diocrès, levando consigo a admiração universal e os
lamentos de todos os seus alunos.
Bruno era um dos maiores eruditos daquele tempo, conhecido por toda a
Europa por sua sabedoria, talento e virtudes. Estava em Paris com quatro
companheiros e se sentiu no dever de assistir no funeral do ilustre falecido.
O corpo do finado professor foi acomodado na grande sala da chancelaria,
perto da Igreja de Notre Dame, onde uma imensa multidão velava o suntuoso
leito em que, segundo o costume da época, o morto era exposto coberto
apenas com um simples véu.
No momento em que deram início ao Ofício dos Mortos – que começa com
a inquirição: «Respondei-me, quão grandes e numerosas são vossas
iniquidades?» –, uma voz sepulcral se produziu debaixo do manto fúnebre, e
todos na assistência entenderam estas palavras: «Por um julgamento justo de
Deus, eu fui acusado…» Precipitaram-se em direção ao leito, levantaram a
mortalha, e o pobre morto estava lá, imóvel, gelado, perfeitamente morto.
A cerimônia foi interrompida por alguns instantes, mas não tardou em
recomeçar, ainda que todos estivessem amedrontados com o que acabavam
de testemunhar. Então, retomou-se o Ofício e, mais uma vez na citada
inquirição – «Respondei-me» –, o morto, aos olhos de todos, levantou-se e,
com uma voz tão intensa quanto acentuada, disse: «Por um julgamento justo
de Deus, eu fui julgado…», caindo de volta ao leito.
Foi quando o terror no auditório atingiu o seu ápice. Os médicos
apressaram-se a examinar o corpo e constataram novamente a morte. O
cadáver encontrava-se gelado, rígido.
Não havendo quem tivesse coragem de continuar a cerimônia,
postergaram-na para o dia seguinte.
As autoridades eclesiásticas já não sabiam mais o que fazer. Alguns
diziam: «É um condenado, indigno das preces da Igreja». Outros duvidavam:
«De fato, tudo isto é deveras intrigante! Mas não seremos todos acusados,
depois julgados por um justo julgamento de Deus?» O bispo partilhava desta
opinião.
No dia seguinte, o serviço funerário recomeçou no mesmo horário. Como
na véspera, Bruno lá estava junto com seus companheiros, e a notícia do que
ocorrera havia se espalhado de forma tão espetacular que toda Paris se
apressou para Notre Dame.
Então, novamente recomeça-se o Ofício e, no momento da inquirição,
«Respondei-me», o corpo do doutor Diocrès se pôs sentado para dizer com
um indescritível sotaque de terror que a todos paralisou: «Por um julgamento
justo de Deus, fui condenado!», caindo mais uma vez imóvel a abraçar o
leito.
Não havia mais dúvidas! Constatado o terrível e extraordinário fato,
nenhuma prova era mais necessária. Por ordem do bispo e do clérigo, retirou-
se do cadáver as insígnias e suas dignidades, para que fosse lançado em vala
comum.
Ao deixar o grande salão da chancelaria, Bruno, que à época tinha
aproximadamente quarenta e cinco anos, decidiu abandonar definitivamente o
mundo e, junto com seus companheiros, procurou nas solidões da Grande
Cartuxa, perto de Grenoble, um retiro onde pudesse buscar o caminho da
salvação, e se preparar para o justo julgamento de Deus.
Pois bem, eis um condenado que «voltou do inferno» não para deixá-lo,
mas apenas para se tornar a mais incontestável testemunha de que o inferno
existe.
O jovem religioso de Santo Antônio
O sábio arcebispo de Florença, Santo Antônio,15 conta-nos um episódio
terrível que, em meados do século XV, apavorou todo o norte da Itália.
Um jovem de boa família, com dezesseis ou dezessete anos, caiu em
desgraça ao esconder um pecado mortal na confissão e comungar nesse
estado. Em função de uma miserável honra humana, passou a adiar a
comunicação do seu pecado, entregando-se, semana após semana, mês após
mês, à confissão e a comunhão sem revelar o seu sacrilégio.
Remoído pelo remorso, passou a fazer grandes penitências e houve quem o
tomasse por santo. Não podendo levar isso além, decidiu entrar para um
mosteiro: «Lá, ao menos, eu poderia confessar tudo e expiar meus terríveis
pecados», pensava.
Mas para sua miséria, os Superiores, que o conheciam de reputação,
acolheram-no como se um santo fosse.
Tomado pela vergonha, que o impedia de revelar seu pecado, continuou a
adiar a confissão e redobrar suas penitências. Passou dois ou três anos nesse
deplorável estado, sem ousar revelar o peso medonho que o esmagava.
Por fim, uma doença mortal o atacou e parecia facilitar-lhe o meio para a
sua remissão. «De uma vez por todas, confessarei tudo antes de morrer».
Mas, por amor próprio, sempre omitia o seu pecado. Suas confissões eram tão
confusas que o confessor não as entendia. Então, sempre guardava para o dia
seguinte um vago desejo de se redimir.
Porém, de súbito, foi atacado por um acesso de delírio e, pouco tempo
depois, o infeliz acabou morrendo sem revelar o grave segredo.
Na comunidade, onde ninguém tinha conhecimento de tão terrível
realidade, ouvia-se: «Se esse não foi para o céu, quem de nós poderá ir?» E
colocavam cruzes, rosários e medalhas de santos em suas mãos. Por fim, o
corpo foi levado, com certa veneração, para uma igreja do mosteiro e lá
permaneceu exposto até a manhã seguinte, quando se celebraria o funeral.
Instantes antes da hora fixada para a cerimônia, um dos frades, enviado
para fazer soar os sinos, percebeu que diante dele, próximo ao altar, o defunto
estava cercado por rodas de fogo e algo incandescente parecia refletir do
corpo. Apavorado, o frade caiu de joelhos com os olhos fixados na terrível
imagem, quando o próprio condenado lhe disse: «Não orem por mim, pois
estou no inferno para toda a eternidade»; e passou a contar a lamentável
história de sua miserável honra e todos os seus sacrilégios. Logo depois
desapareceu, deixando na igreja um odor fétido que se espalhou por todo o
mosteiro, como que para atestar tudo o que o frade havia testemunhado.
Tão logo foram avisados, os Superiores mandaram dali retirar o cadáver,
julgando-o indigno de sepultura eclesiástica.
A cortesã de Nápoles
São Francisco de Girolamo,16 célebre missionário da Companhia de Jesus
no início do século XVIII, foi encarregado de dirigir as missões no reino de
Nápoles.
Certo dia, quando ele pregava numa praça napolitana, algumas mulheres
de má vida – dentre elas uma chamada Catherine – tinham se reunido para
atrapalhar o sermão com cantos profanos e ruidosos protestos, na tentativa de
forçar o Padre a se retirar. Porém, ele continuou o seu discurso parecendo não
se importar com as insolentes.
Tempos depois ele retornou para pregar na mesma praça e percebeu que a
casa de Catherine, habitualmente turbulenta, estava em profundo silêncio:
– O que aconteceu com Catherine? – perguntou o Padre.
– Não sabeis, Padre? Ontem à noite a infeliz morreu sem poder dizer uma
palavra! – contaram-lhe.
– Catherine está morta? Mas morreu de repente? Vamos lá saber o que
aconteceu.
O Santo abre a porta, sobe a escada e, acompanhado de um grande número
de pessoas, entra na sala onde se podia ver o cadáver estendido no chão sob
um pano e quatro velas acesas, como era o costume no local.
Observou por alguns instantes com os olhos apavorados e, em seguida,
com uma voz solene perguntou: «Catherine, onde você está agora?» O
cadáver permaneceu mudo. Então, o Santo repetiu a pergunta: «Catherine,
diga-me, onde você está agora? Ordeno que me diga onde você está!»
De repente, para o espanto de todos que ali estavam, os olhos do cadáver
se abriram e seus lábios passaram a se mover convulsivamente e, com uma
voz grave e profunda, respondeu: «No inferno, estou no inferno!».
Ao ouvir essas palavras a multidão fugiu aterrorizada. Junto foi o Santo,
que impressionado dizia: «No inferno, ó meu Deus, que terrível, no inferno!
Vocês ouviram? No inferno!»
A impressão causada com o ocorrido foi tão grande que muitos daqueles
que testemunharam o fato não se atreveram a voltar para suas casas sem antes
se confessar.
O amigo do conde Orloff
No nosso século [XIX], três fatos do mesmo gênero, um mais verdadeiro
do que o outro, chegaram ao meu conhecimento. O primeiro se passou na
minha família.
Foi em Moscou, na Rússia, pouco tempo depois da horrível campanha de
1812.17 Meu avô materno, o conde de Rostopchine, governador militar de
Moscou, era muito ligado ao conde Orloff, famoso por sua bravura, e também
muito valente na sua impiedade.
Um dia, após um bom jantar regado a copiosas libações, o conde Orloff e
um de seus amigos, o general V., voltairiano como ele, passaram a fazer
zombarias em relação à religião e também ao inferno.
– E se por acaso – divagou Orloff – houver alguma coisa do outro lado da
cortina?
– Ora, quem for primeiro voltará para avisar o outro! Combinado? –
respondeu o general.
– Excelente idéia! – concordava o conde Orloff. E os dois, embora
embriagados, empenharam seriamente suas palavras de honra para o
cumprimento da mútua promessa.
Algumas semanas mais tarde, eclodiu uma dessas grandes guerras,
daquelas que Napoleão tinha talento para criar, e o exército russo entra em
batalha. O general V. recebeu a ordem para partir imediatamente e assumir
um importante posto de comando.
Ele havia deixado Moscou há duas ou três semanas e, um dia, pela manhã
bem cedinho, quando meu avô se lavava no banheiro a porta do seu quarto
abriu bruscamente. Era o conde Orloff que, vestido ainda de roupão e
chinelos, tinha os cabelos arrepiados e os olhos totalmente desfigurados.
Estava pálido como um defunto.
– O quê? É você, Orloff… a esta hora? E vestido desse jeito? O que
aconteceu?
– Meu amigo, devo estar ficando louco! Acabo de ver o general V.
– Ah! O general V.? Ele já voltou?
– Oh, Não! – respondeu Orloff, jogando-se num sofá e levando as mãos à
cabeça. – Ele não voltou, e é por isso que estou apavorado.
Meu avô nada compreendeu e procurou acalmá-lo:
– Conte-me, então, o que aconteceu para chegar aqui desse jeito?
Esforçando-se para dominar a emoção, disse o conde:
– Meu querido Rostopchine, algum tempo atrás, eu e o general V. fizemos
um juramento. O primeiro de nós que viesse a morrer voltaria para contar se
havia alguma coisa do outro lado da cortina. Acontece que, nesta manhã, há
meia hora atrás, estava tranqüilamente deitado na minha cama e já vinha há
algum tempo pensando no meu amigo. De repente as cortinas se abriram de
forma brusca; foi quando eu o vi a dois passos de mim. Era o general V.! Ali
de pé, pálido e com a mão direita sobre o peito, disse-me: «O inferno existe e
para lá eu fui!» Depois disso desapareceu! Em seguida eu vim correndo para
cá. Minha cabeça está explodindo… que coisa estranha! Eu não consigo
pensar em outra coisa…
Meu avô fez o possível para acalmá-lo, mas não foi uma tarefa fácil porque
Orloff falava de alucinações, de pesadelos, de que talvez estivesse dormindo
e outras banalidades deste tipo, que só fazem consolar os incrédulos. Em
seguida, meu avô aprontou os cavalos e o reconduziu para o hotel.
No entanto, dez ou doze dias após o estranho incidente ocorrido ao conde
Orloff, um mensageiro do exército trouxe ao meu avô, entre outras
novidades, a notícia da morte do general V. Ele havia morrido naquela
mesma manhã em que o conde Orloff o havia visto. Ou seja, na mesma hora
em que havia aparecido em Moscou, o infeliz general tinha saído para
reconhecimento de campo e teve o seu peito atravessado por uma bala
inimiga que o fez cair morto.
«O inferno existe e para lá eu fui!» Eis as palavras de mais um que de lá
voltou.
A dama do bracelete de ouro
Em 1859 relatei a história do conde Orloff a um padre muito distinto,
superior de uma importante comunidade. «É assustador – respondeu-me –,
mas a mim isso não é tão surpreendente. Fatos desse gênero são menos raros
do que se imagina. É que sempre há algum interesse em mantê-los em
segredo, seja em honra do ‘retornado’, seja em honra da sua família.
Contarei o que soube, há dois ou três anos, de uma fonte segura: um
parente muito próximo da pessoa com quem se deu o fato. Ela ainda vive e
hoje deve ter um pouco mais de quarenta anos. 18
Trata-se de uma dama que se encontrava em Londres no inverno de 1847.
Ficou viúva muito cedo, deveria ter seus vinte e nove anos. Rica e de boa
aparência, era freqüentadora da sociedade.
Entre os elegantes com os quais mantinha amizade, fazia-se notar um
jovem lorde, cuja assiduidade tornava-o bastante distinto, e cujo
comportamento não era menos exemplar.
Uma noite, ou melhor, uma madrugada (já se passava da meia-noite), ela
lia algum romance na sua cama à espera do sono. Uma hora se passou e, ao
soar do relógio, ela apagou a vela. Estava prestes a dormir quando, para seu
espanto, notou que uma luz estranha e pálida parecia vir da porta da sala,
espalhando-se gradualmente no seu quarto e aumentando a cada instante.
Atordoada, ela arregalou os olhos e, sem saber o que aquilo significava,
começou a entrar em pânico. De repente a porta do seu quarto começou a se
abrir bem devagar e, para sua surpresa, entrou o jovem lorde completamente
confuso. Antes que ela pudesse lhe dizer alguma coisa, ele já tinha se
aproximado. Agarrou-a pelo braço esquerdo, na altura do punho, e com uma
voz estridente lhe disse em inglês: ‘O inferno existe!’ A dor no seu braço foi
tanta que ela acabou por perder a consciência.
Quando voltou a si – cerca de meia hora depois –, chamou sua empregada
que, ao entrar no quarto, sentiu um forte cheiro de queimado. Aproximando-
se da sua patroa que mal podia falar, percebeu em seu pulso uma queimadura
tão profunda que os ossos estavam expostos e a carne quase toda consumida.
Tal queimadura tinha a largura da mão de um homem.
Em seguida, perceberam que, da porta até a cama e da cama até a mesma
porta, o carpete continha pegadas de um homem que havia queimado o tecido
de lado a lado. E havia mais pegadas sobre o carpete da sala.
No dia seguinte, a infeliz dama ficou sabendo, com um terror
compreensível, que naquela mesma noite, perto da uma hora da manhã, o
lorde havia sido encontrado à beira da morte sobre a mesa e seus empregados
o levaram para o quarto, onde deu seu último suspiro.
– Não sei se com essa terrível lição aquela pobre mulher se converteu –
disse-me o superior – O que eu sei é que ela ainda vive e, para disfarçar a
sinistra queimadura, usa um bracelete no pulso esquerdo, uma larga pulseira
de ouro que ela porta dia e noite.
Obtive todos os detalhes com um parente próximo, cristão sério, cuja
palavra eu dou inteira fé. Na própria família não se fala do assunto – eu
mesmo só conto a história ocultando o nome dessa dama.»
Apesar do obscuro véu que oculta a identidade das personagens dessa
aparição, parece-me impossível pôr em dúvida a temível autenticidade da
história.
Há de convir que, de fato, não é à dama do bracelete que se deve provar
que o inferno realmente existe.
A filha perdida de Roma
No ano de 1873, poucos dias antes da Assunção, realizou-se em Roma uma
dessas aparições terríveis do além-túmulo que corroboram para comprovar a
verdade do inferno.
Numa dessas casas de má fama – que fora aberta em Roma e mais alguns
outros lugares devido à invasão do sacrilégio por conta do enfraquecimento
do domínio temporal do Papa –, uma infeliz menina havia cortado a mão e
rapidamente foi levada ao hospital da Consolação. Seja por causa de um
sangue viciado em devassidão, que pode ter degenerado o ferimento, ou por
causa de uma simples complicação inesperada, ela faleceu durante a noite.
No mesmo instante, uma de suas companheiras, que ignorava
completamente o que havia se passado no hospital, pôs-se a gritar
desesperada ao ponto de tirar o sono dos habitantes de todo o quarteirão,
inquietando, principalmente, as miseráveis criaturas que viviam junto a ela
naquela casa de má reputação. Para acalmar tamanha balbúrdia, foi preciso
até a intervenção da polícia.
Acontece que a recém-falecida no hospital apareceu envolta em chamas,
dizendo àquela pobre menina: «Estou condenada, e se você não quer terminar
como eu, saia deste lugar de infâmias e retorne a Deus que abandonou». Nada
nem ninguém pôde acalmar o seu desespero e terror. Até que, com o
amanhecer, ela se foi, deixando todos naquela casa em profunda letargia a
partir do momento em que souberam da morte ocorrida no hospital.
Nesse ínterim, caiu doente a cafetina do lugar, uma exaltada garibaldina,
assim conhecida entre seus amigos e irmãos. Ela pediu para que fosse
chamado o padre da igreja vizinha, São Giulio de Banchi. Antes de se dirigir
a uma casa tão difamada, o venerável padre consultou a autoridade
eclesiástica, que delegou para esse intento um digno prelado, Monsenhor
Sirolli, cura da Paróquia de San Salvador in Lauro.
Munido de instruções especiais, o Monsenhor Sirolli apresentou-se à
doente e, antes de tudo, exigiu, na presença de várias testemunhas, que ela se
retratasse por cada um dos escândalos de sua vida; das blasfêmias contra o
Soberano Pontífice, e de todo e qualquer mal que já tivesse feito aos outros –
a pobre enferma o fez sem hesitar. Depois se confessou e, com grande
arrependimento e humildade, recebeu o Santo Viático.19
Sentindo a morte se aproximar e apavorada com tudo o que se passava
diante dos seus olhos, banhada em lágrimas, pediu ao bom padre para que
não a abandonasse. Mas a noite se aproximava e o Monsenhor Sirolli,
dividido entre a caridade, que lhe dizia para ficar, e o decoro, que não lhe
permitia passar a noite em lugar semelhante, decidiu requerer à polícia dois
oficiais que vieram fechar a casa e lá permaneceram até que a agonizante
desse o seu último suspiro.
Os detalhes de tão trágico acontecimento ficaram conhecidos por toda
Roma, mas, como é habitual, escarneceram-se os ímpios e os libertinos,
tomando todo o cuidado para não se informarem muito a respeito. Por outro
lado, os justos aproveitaram o ocorrido para emendarem suas condutas,
dedicando-se ainda mais às suas devoções.
Diante de tais fatos, que à lista poder-se-ia incluir outros tantos, pergunto
ao leitor de boa fé se é razoável ficar repetindo, junto com uma multidão
leviana, a conhecida e estereotipada frase: «Se realmente existe um inferno,
porque de lá nunca ninguém voltou?»
Mas, ainda que, a torto e a direito, haja quem insista em não admitir os
fatos autênticos que acabei de narrar, a certeza absoluta da existência do
inferno resta inabalável. Com efeito, a fé no inferno não está fundamentada
em misteriosos fatos sobrenaturais – que não são de fé –, mas nas razões do
bom senso que expusemos até aqui. E, acima de tudo, no testemunho divino e
infalível de Jesus Cristo, de Seus Profetas e Seus Apóstolos, assim como do
ensinamento oficial, invariável e inviolável da Igreja Católica.
Os fatos sobrenaturais podem fortalecer e reavivar a nossa fé. Apenas por
isso tínhamos o dever de citar alguns deles, capazes de tapar a boca dos que
ousam dizer: «O inferno não existe». E também confirmar na fé aqueles que
são tentados pela dúvida: «O inferno existe?» – além de consolar e esclarecer
ainda mais os bons fiéis que, junto com a Igreja, afirmam de forma
categórica: «O inferno existe!»
Por que tanta gente se esforça para negar a existência do inferno?
Em primeiro lugar, por interesse. A maior parte dentre esses esforçados
deseja que o inferno não exista. São como os ladrões que, se pudessem,
destruiriam a polícia, porque todas as pessoas que «sentem os encargos»
estarão sempre a fazer o possível e o impossível para se persuadirem de que o
inferno não existe, pois bem sabem que, havendo um, sua utilidade é
exatamente para pessoas como eles.
Não são diferentes dos covardes que, cantando à toda voz numa noite
escura, tentam se convencer de que não sentem o medo que os ataca. Para se
encher mais ainda de coragem querem persuadir aos outros de que o inferno
não existe. Por isso escrevem esses livros que se pretendem científicos e
filosóficos, e neles repetindo a todo o momento, para com a grita, pretendem
convencer uns aos outros – e graças a esse espetáculo barulhento, concluem
que ninguém mais acredita e, por conseqüência, que têm o direito de não
acreditar.
A maioria destes foram, no último século, os líderes da incredulidade
voltairiana; os que tentaram proclamar que Deus não existia e, portanto,
também não existiria o paraíso ou o inferno. Estavam seguros nas suas
conjecturas, embora a História tenha nos mostrado que, um após o outro,
tomados por um terrível pânico na hora da morte, retrataram-se, confessaram-
se, pediram perdão a Deus e aos homens. Um dentre eles, Diderot, escreveu
após a morte de d’Alembert: «Se eu não estivesse lá, ele teria se curvado
como todos os outros». Pouco adiantou, porque ele mesmo, na sua hora
derradeira, acabou suplicando para que lhe chamassem um padre.20
Todos sabem como Voltaire, no leito de morte, insistiu para que
chamassem o padre da igreja do Santo Sulpício, porém, seus seguidores o
cercavam tão bem, que o padre não podia chegar ao velho moribundo que
morreu em meio a um ataque de raiva e desespero. Ainda existe, em Paris, o
quarto onde se passou a trágica cena.21
Enfim, até os que bradam contra o inferno, crêem nele da mesma maneira
que nós. Quando a morte se aproxima, caem-se as máscaras e já podemos ver
bem o que se encontra por debaixo delas. Por isso, não dê ouvidos a esses
raciocínios que são apenas ditados pelo medo. Pois é o coração corrompido
que faz negar a existência do inferno. Quando não queremos deixar a vida de
impiedades, que é o caminho mais curto para lá, sempre somos levados a
dizer ou mesmo crer que o inferno não existe.
Imaginemos um homem cujo coração, sensos, imaginação e hábitos de
cada dia estão presos, absorvidos por um amor culpado – e a tudo isto ele se
entrega, tudo sacrifica. Se a ele falarmos sobre o inferno, seria como falar a
um surdo. E mesmo que às vezes a voz da consciência e da fé perpassem
pelos gritos da paixão, ainda assim, ele se calará, não desejando mais
entender a verdade que se impõe.
Tentemos, então, falar do inferno a esses jovens libertinos que freqüentam
a maior parte das nossas escolas, das nossas fábricas e engenhos ou de nossos
quartéis: eles responderão estremecidos de cólera, com um escárnio
diabólico, que é muito mais poderoso dentre eles do que todos os argumentos
da fé e do bom senso. Eles não querem que haja um inferno!
Não faz muito tempo, encontrei-me com um desses. Ele ainda carregava
um pouco de fé e o aconselhei da melhor forma possível para que não
desonrasse a si mesmo da maneira como fazia. Tentei convencê-lo a viver
como um cristão, enfim, como um homem e não como um animal. «Tudo isto
é belo e bom – respondeu-me –, e talvez seja verdade o que me dizes. Mas o
que sei é que quando essas coisas me tomam, fico como um louco e não sou
capaz de entender mais nada. Fico cego e não há Deus nem inferno que me
faça parar. Se há realmente um inferno, pois bem, para lá irei, a mim não faz
diferença.» Infelizmente, nunca mais o vi.
Mas e quanto aos gananciosos, os usurários e os trapaceiros? Quais
argumentos irresistíveis eles devem guardar em seus cofres contra a
existência do inferno! Ricos argumentos contra a idéia de devolver o que eles
tomaram dos outros, contra apartarem-se de seus ouros e riquezas.
«Antes mil mortes; antes o inferno, ainda que exista um» – dizia-me um
velho usurário normando, avarento por lucros rápidos, que mesmo em face da
morte não conseguia abrir mão do que dos outros tirou. Ele havia consentido,
não se sabe como, restituir consideráveis somas, porém, não fez mais do que
devolver oito francos e meio. E o infeliz ainda morreu sem os sacramentos.
No seu coração de avarento, míseros oito francos e meio eram suficientes
para fazer com que o inferno desaparecesse.
Do mesmo modo se dá com todas as paixões violentas: o ódio, a vingança,
a ambição e certas exaltações de orgulho. Seus portadores não querem ouvir
falar do inferno. Colocam tudo em jogo para negar a sua existência, pois já
não têm nada a perder. Mas quando todas essas mesmas pessoas são
colocadas contra a parede, quando encaram qualquer uma dessas razões de
bom senso acima resumidas, elas passam a rejeitar a morte, esperando, deste
modo, escaparem vivas. Pensam e dizem que acreditariam no inferno se
qualquer morto ressuscitasse diante deles e afirmasse que, de fato, esse lugar
existe. Puras ilusões, as quais Nosso Senhor Jesus Cristo se deu o trabalho de
desfazer, como veremos a seguir.
Que bem acreditariam no inferno se os mortos ressuscitassem mais
Uma vez Nosso Senhor seguia a Jerusalém, não muito longe de uma casa
cuja fundação ainda hoje existe. Tal casa havia pertencido a um jovem fariseu
muito rico chamado Nicence. Não fazia muito tempo que ele havia morrido e,
sem nomeá-lo, Nosso Senhor aproveitou o que acontecera para instruir Seus
discípulos, assim como a multidão que o acompanhava: «Havia um homem
rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com
requinte. Um pobre chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras.
Desejava saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas ninguém lho dava.
Acontece que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão;
morreu também o rico e foi sepultado no inferno. Lá, em meio aos tormentos,
levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Ele se pôs a
gritar dizendo: Abraão, meu pai, tende piedade de mim e manda que Lázaro
molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois sofro cruelmente
nesta chama.
Abraão respondeu: Filho, lembra-te que recebeste as alegrias durante a
vida, e que Lázaro, os sofrimentos; agora, porém, ele encontra aqui consolo e
tu és atormentado.
Ao menos – replicou – envia então Lázaro à casa de meu pai, pois tenho
cinco irmãos; que leve a eles seu testemunho, para que eles não venham,
assim como eu, para este lugar de tormentos.
Abraão lhe respondeu: Eles têm Moisés e os Profetas; que ouçam-nos.
– Não, meu pai – respondeu o condenado – isto não é o suficiente. Mas se
virem alguém dentre os mortos, arrepender-se-ão.
E Abraão lhe disse: Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas,
mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão.»22
Estas sábias palavras do Filho de Deus são a resposta antecipada a todas as
ilusões de pessoas que, para acreditarem no inferno e para se converterem,
exigem as ressurreições e os milagres. No entanto, ainda que ao redor deles
abundem os milagres de toda a natureza, neles não mais acreditam.
Os judeus foram testemunhas de todos os milagres do Senhor. Em
particular à ressurreição de Lázaro, em Betânia, mas não conseguiram, entre
eles, tirar outra conclusão senão esta: «O que fazer? Eis que Ele atrairá todos
para si; matem-no».23 E mais tarde, diante dos milagres quotidianos,
públicos e absolutamente incontestáveis de São Pedro e dos outros Apóstolos,
disseram: «Estes homens fazem milagres, e negá-los não podemos. Façamo-
los parar, e evitemos que preguem em nome de Jesus.»24
Eis o que costumam produzir os milagres e as ressurreições de mortos
entre as pessoas cujas mentes e corações estão corrompidos.
Quantas vezes já não fora repetida a impressionante confissão escapada de
Diderot, um dos ímpios mais incrédulos do século passado: «Mesmo que toda
Paris viesse me afirmar ter visto ressuscitar um morto, preferiria acreditar que
toda Paris está ficando louca a admitir um milagre».25
Porém, no fundo, mesmo entre os maus, há um pouco da força da verdade,
ainda que as bases das tendências e presunções sejam as mesmas. Na
verdade, um pouco de bom senso impede de proferir tamanhas absurdidades,
mas, na prática, raramente o usamos.
Mas o que é preciso fazer para que não se tenha medo de crer no inferno?
Apenas viver de modo que não se tenha motivos para temê-lo. Vejamos os
verdadeiros cristãos, os cristãos castos, conscienciosos, fiéis a todos os seus
deveres: será que jamais passou por eles a idéia de duvidar do inferno?
As dúvidas vêm antes do coração, bem mais do que da inteligência. Salvo
muito raras exceções, devido ao orgulho da meia-ciência, o homem que leva
uma vida ligeiramente correta não sente a menor necessidade de protestar
contra a existência de um inferno.

2 Nm 16, (31) «E aconteceu que, acabando de pronunciar todas essas palavras, o solo se fendeu sob
os seus pés, (32) a terra abriu a sua boca e os engoliu, a eles e suas famílias, bem como todos os
homens de Coré e todos os seus bens. (...) (33) Desceram vivos ao Xeol*, eles e tudo aquilo que lhes
pertencia. A terra os recobriu e desapareceram do meio da assembléia. (34) A seus gritos, fugiram todos
os israelitas que se encontravam ao redor deles. E diziam: ‘Que a terra não engula a nós também!’. (35)
Saiu fogo da parte de Iahweh e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam incenso. E
desceram vivos ao inferno cobertos de terra, e pereceram do meio da multidão. [*palavra de origem
desconhecida que designa as profundezas da terra – Dt 32,22; Is 14,9]
3 A autoria do livro de Jó é incerta. Na tradição talmúdica, há quem atribua a autoria a Moisés; outra
corrente defende que o livro fora escrito num período antes do Primeiro Templo, à época do Patriarca
Jacó. Não há concordância a este respeito, afinal há muitas diferenças de estilo e acredita-se também
que o discurso de Eliú – personagem que não é mencionado nem no início e nem no final da história –
fora adicionado posteriormente à obra pronta.
4 Jó 21,(12) «Cantam ao som dos tamborins e da cítara / e divertem-se ao som da flauta. (13) Sua
vida termina na felicidade / descem em paz ao Xeol [inferno].»
5 Jó 10,21-22; 7,9 «(...) como a nuvem se dissipa e desaparece, assim quem desce ao Xeol não
subirá jamais.»
6 Para os gregos e romanos, o Tártaro era o submundo onde se encontravam as cavernas e grutas
mais profundas e terríveis do reino de Hades (deus do mundo dos mortos). Os inimigos dos deuses
eram para lá enviados a cumprir penitências. Na Rapsódia VIII da Ilíada, Homero o representa como
uma prisão subterrânea: (...) há de se ver fustigado aqui mesmo por modo irrisório / se o não lançar
sem nenhuma cautela no Tártaro escuro / essa voragem profunda que debaixo da terra se encontra / de
érea soleira munida e de portas de ferro tão longe / do Hades sombrio quanto há de permeio entre a
terra e o céu vasto. (versos em língua portuguesa por Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001).
7 Diálogos de Platão: Fédon, (113e). Também em Górgias (523a-b): «(…) no tempo de Cronos,
havia uma lei entre os homens, que sempre vigorou e ainda se conserva entre os deuses. É aquela que
recai sobre os mortais que levaram uma vida justa e santa; depois da morte irão para a Ilha da Bem-
aventurança, onde gozariam a perfeita felicidade, afastados de todos os males. Ao contrário seria a
quem levou uma vida de impiedades, pois estes serão jogados no cárcere de suplício e punições
chamado Tártaro».
8 Platão, Carta VII, aos parentes aos amigos de Díon: felicidade e sabedoria. (335a)
9 Eneida, de Virgílio, conta as aventuras de Enéias que, no Livro VI, desce ao Tártaro para um
último encontro com seu pai, Anquises. Narra o poeta as impressões do inferno: Logo se ouve ao limiar
vagido e choro, / Tenros ais dos que ao seio em que mamavam / Arrebatou, privou do doce alento, /
Imergiu dia infausto em luto acerbo. (Canto IV – 436-439 – versos em língua portuguesa por Manoel
Odorico Mendes, Vol. III dos Clássicos Jackson, 1950).
No poema, Teseu foi quem por lá restou preso pela eternidade: Qual pedra ingente galga, ou de
uma roda / Estreito aos raios pende; está sentado / Preso o infeliz Teseu e estará sempre; (Canto IV –
635-637 – ibid.). Teseu e seu fiel companheiro Pirítoo, haviam descido aos infernos a fim de raptar
Prosérpina. Mal-sucedidos, tornaram-se prisioneiros de Hades. Mais tarde Hércules esteve nos infernos
e libertou Teseu. Na fuga Pirítoo foi morto – numa das versões o teria sido por Cérbero, cão de
múltiplas cabeças, dócil com os que no inferno entravam, mas feroz com os que de lá tentavam sair.
10 Pierre Bayle (1647-1706), enciclopedista francês, autor do Dictionnaire historique et critique; e
Henry St. John Bolingbroke (1678–1751), um filósofo e político inglês. A citação feita por Ségur é, em
verdade, uma espécie de síntese do que se encontra sobre a existência do inferno, no Ensaio Quarto
(Concerning Authotity in Matters of Religion) do livro The works of the late Right Honourable Henry
St. John – Volume 6 – J. Jhonson, Otridge & Sons and Others, 1809, Londres.
Ambos autores eram partidários do deísmo, uma corrente de pensamento que, na segunda metade do
século XVI, teve grande difusão na França e na Inglaterra. Os deístas reconhecem um Deus Criador,
mas não a Revelação Divina. A eles só é possível encontrar Deus através de uma análise daquilo que
entendem por leis naturais. E, para tal tarefa, recorrem somente à razão.
11 Mt. 17 «E seis dias depois, Jesus tomou Pedro, Tiago, e seu irmão João, e os levou para um lugar
a parte sobre uma alta montanha. (2) E ali foi transfigurado diante deles. Seu rosto resplandeceu como o
sol e as Suas vestes tornaram-se alvas como a luz. (3) E eis que aparecem Moisés e Elias conversando
com Ele.» Também em Mc 9,1 e Lc 9,28.
12 2Pd 2,4 «Com efeito, se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos
tenebrosos do Tártaro, onde estão à espera do Julgamento (...), (9) é certamente porque o Senhor sabe
libertar os piedosos da provação e reservar os injustos sob castigo à espera do dia do Julgamento, (10)
sobretudo aqueles que seguem a carne, entregando-se a paixões imundas, e que desprezam a autoridade
do Senhor (...). (14) Têm olhos cheios de adultério e insaciáveis de pecado, procurando seduzir almas
vacilantes; o seu coração está treinado para a ambição. São seres malditos!»
13 Ordem milenar fundada por São Bruno em 1084, onde a vida é consagrada à enclausuração com
o intuito de apartar-se do mundo. Os Cartuxos levam uma vida solitária em mosteiros totalmente
isolados, recorrendo a longos jejuns e muitas orações. Atualmente esta ordem é composta por cerca de
450 monges e monjas, distribuídos em 24 casas espalhadas em três continentes, e se apóia de maneira
particular sobre três elementos: a solidão, certa combinação de vida solitária e de vida comunitária e a
liturgia cartusiana.
O cineasta alemão Philipe Gröning filmou a rotina dos cartuxos para o documentário «O Grande
Silêncio» (Die große Stille - 2005).
14 O termo, ligado ao nome do jesuíta belga Jean Bolland (1596 -1665), designa uma sociedade
científica de padres jesuítas que tinha por objetivo reunir e submeter ao exame crítico toda a literatura
hagiográfica até então existente, complementar aquilo que fora omitido pelos compiladores antigos,
apreciar o valor das fontes relativas aos santos lembrados pelos martirológios, discernir os dados
historicamente comprovados dos lendários ou falsos e, portanto, reconstituir a história e a
espiritualidade daqueles que a Igreja reconhece como santos. O precursor dos bolandistas foi o jesuíta
holandês E. Rosweyde (1564-1629). A sua herança foi reunida por Bolland, que modificou o plano
inicial, posteriormente aperfeiçoado com a ajuda de G. Henscken (1601-1681). A publicação dos Acta
Sanctorum começou em 1643 com dois tomos dos santos de janeiro, e não faltaram consensos,
inclusive por parte dos protestantes. (Lexicon –Dicionário Teológico Enciclopédico, Editora Loyola,
2003 - pp. 83)
15 Santo Antonino (1389-1459), conhecido pelo seu nome no diminutivo em função da sua pouca
altura, também era portador de uma frágil saúde, razão pela qual não fora admitido na Ordem
Dominicana, afinal parecia não poder suportar o rigor das regras do convento. Mas devido a sua
insistência, o prior, Frei Giovanni Dominici, decidiu que o admitiria caso ele recitasse a lei canônica de
memória. Assim ele fez! Decorou o que parecia impossível para vestir o hábito dos frades pregadores e,
mais tarde, tornar-se o prior da ordem.
Além de ser conhecido pela grande memória, Santo Antonino expressou sua grandeza no trato com
pobres e doentes, a quem doava tudo o que tinha, além dos enfermos que curava milagrosamente. O
pequeno homem também mostrou sua grandeza nos estudos, sendo considerado um dos fundadores da
moral teológica moderna e da ética social cristã. Foi canonizado pelo Papa Adriano VI, em 1523.
16 Nasceu em Grottaglie, Itália, no ano de 1641, era um notável pregador popular que passou a vida
evangelizando o sul da Itália, onde o povo se aglomerava para ouvir seus sermões. Pregava em cadeias,
bordéis e nas galés, além de ter sido responsável pela conversão de inúmeros mouros e turcos. Também
resgatou inúmeras crianças de locais e situações degradantes e «mostrou maravilhosa caridade e
paciência em procurar a salvação das almas» (do Martirológio Romano).
Inúmeras e milagrosas curas foram atribuídas a ele ainda em vida, e também após sua morte. Uma
multidão reuniu-se para dele se despedir no seu funeral, a 11 de março de 1716.
Foi beatificado a 2 de maio de 1806 pelo Papa Pio VII, e canonizado em 26 de maio de 1839 pelo
Papa Gregório XVI.
17 Trata-se da campanha militar de Napoleão Bonaparte para punir o czar Alexandre da Rússia, que
havia se negado a cumprir o Bloqueio Continental, uma determinação de Bonaparte, a todos os países,
para que não mantivessem relações comerciais com a Inglaterra. O rigoroso frio dizimou grande parte
do exército francês e quando as tropas napoleônicas chegaram em Moscou, a cidade estava vazia. À
noite, os próprios russos atearam fogo na cidade. Com uma força militar enfraquecida, o imperador
francês não teve outra opção senão abandonar a batalha. Tamanha derrota também enfraqueceu o poder
de Napoleão na França, culminando na sua primeira queda, em 1814.
18 A história foi narrada a Ségur no Natal de 1859.
19 Segundo o Catecismo da Igreja Católica: Aos que estão para deixar esta vida, a Igreja oferece,
além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático. Recebida neste momento de passagem para o
Pai, a comunhão do Corpo e Sangue de Cristo tem significado e importância particulares. É semente
de vida eterna e poder de ressurreição, segundo as palavras do Senhor: «Quem come minha carne e
bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,54). Sacramento de
Cristo morto e ressuscitado, a Eucaristia é aqui sacramento da passagem da morte para a vida, deste
mundo para o Pai. (CIC 1524).
20 No livro Mémoires pour servir à la histoire du Jacobinisme (v. I – 1797, pp. 382), o padre jesuíta
Augustin Barruel relata que, em verdade, foi Condorcet que se esforçou a evitar que um sacerdote se
aproximasse do já moribundo d’Alembert, proferindo a extravagante frase logo após a sua morte: «Se
lá eu não estivesse, ele teria se curvado». Também anota que com tal frase, ainda que sem querer,
Condorcet revelou os remorsos pelos quais d’Alembert fora acometido em meio aos seus suspiros
finais.
Quanto à Diderot, um dos seus biógrafos, F. Génin, baseado nos fatos narrados pela filha do
escritor, Angélique de Vandeul (Œuvres choisies de Diderot précédées de sa vie, Firman Didot, Paris,
1869, pp. 62), nos diz que, após alguns encontros com um padre da igreja de São Sulpício de Paris, ele
passou a ler a Bíblia com sua filha, além de permitir que ela tivesse a sua educação guiada por
religiosos. No livro do padre Barruel também consta a narrativa dos últimos dias de Diderot (Barruel
op. cit., pp. 383-387); conta-nos que o enciclopedista preparava uma retratação pública por seus ataques
à Igreja, porém, preocupados com a imagem do movimento deísta frente a mais uma deserção, seus
compagnons de route levaram-no para longe do padre da igreja de São Sulpício.
21 Também o mais famoso iluminista, Voltaire, suplicou para que um padre estivesse presente
quando se aproximava de seus momentos finais. O sacerdote da igreja de Santo Sulpício conseguiu
chegar ao velho moribundo. É o que revela a revista dos ilustrados franceses, Correspondance
Littéraire de abril de 1778, que na suas páginas 87 e 88, publicou, não sem algum embaraço, a
profissão de Fé escrita e assinada por Voltaire: « – Eu, o que escreve, declaro que, na idade de oitenta
e quatro anos e tendo sofrido com vômitos de sangue faz quatro dias, não pude ir à igreja; assim, o
pároco de São Sulpício quis de bom grado me enviar o sacerdote M. Gautier. Eu com ele me confessei,
e se Deus assim quiser, morro na santa religião Católica em que nasci, esperando que, com a
misericórdia divina, sejam perdoados todos os meus pecados; e se tenho escandalizado a Igreja, peço
perdão a Deus e a ela. Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778 na casa do marquês de Villete, na
presença do padre Mignot, do meu sobrinho e do meu amigo, senhor marquês de Villevielle».
No entanto, ainda no livro do padre Barruel (op.cit. pp. 379-380), d’Alembert e Diderot, liderando
outros vinte ‘conjurados’, impediram que o padre Gautier fizesse nova visita nos momentos finais de
Voltaire. Seus últimos suspiros foram narrados pelo seu médico, M. Tronchin, que disse ter visto a mais
terrível imagem de um ímpio agonizando, e que «os remorsos de Orestes dão apenas uma idéia dos
remorsos de Voltaire». Em sua agonia e desespero, o iluminista sentia-se «abandonado por Deus e
pelos homens», passou a insultar seus amigos iluministas e numa cena miserável, padeceu evocando e
blasfemando o nome de Jesus Cristo.
22 Lc 16,19-31 «... (26) ...entre nós e vós está firmado um grande abismo: de maneira que os que
querem passar daqui para vós, não podem; nem os daí passar para cá.»
23 Jo 11,45-54 «(...) Que faremos? Esse homem realiza muitos sinais. (47) Se o deixarmos assim,
todos crerão nele (...).»
24 At 4,16-22 «(...) Que faremos com estes homens? Que por eles realizou-se um sinal notório é
claramente manifesto a todos os habitantes de Jerusalém, e não podemos negá-lo. (17) Todavia, para
que isto não se divulgue ainda mais entre o povo, proibamo-los, com ameaças, de tornarem a falar neste
nome a quem quer que seja.»
25 Denis Diderot, Pensée philosophiques, Librairie Droz, Genebra, 1965. «Tout Paris m’assurerait
qu’un mort vient de ressusciter à Passy, que je n’en croirois rien. Qu’un Historien nous en impose ou
que tout un peuple se trompe; ce ne sont pas des prodiges». (XLVI pp.33) [«Toda Paris me assegurava
que um morto veio a ressuscitar no cemitério de Passy, e nisso jamais poderia acreditar. Que um
historiador nos imponha ou que as pessoas se enganem, isto não são prodígios.»]
CAPÍTULO II
O QUE É O INFERNO
As idéias falsas e supersticiosas acerca dele
Antes de tudo, precisamos afastar as crenças e superstições populares que
tanto alteram a noção real e católica do inferno. Pois, baseando-se em um
inferno fictício e ridículo, alguém diria: «Jamais crerei nisso porque é um
absurdo, algo impossível. É a razão pela qual não creio e não posso crer no
inferno». De fato, se o inferno fosse o que sonham essas pessoas ingênuas,
haveriam centenas, milhares e milhares de razões para nele não acreditar.
Porém, todas essas invenções são dignas de figurar apenas ao lado dos
contos fantásticos, cujo embalo freqüentemente atinge somente a imaginação
vulgar.
Não é isso o que ensina a Igreja, mas se no intuito de melhor atingir os
espíritos algum autor ou pregador acreditou poder explorar tais contos, suas
boas intenções não poderão eximi-los de ter cometido um grande erro. A
ninguém é permitido disfarçar a verdade, expondo-na ao escárnio das pessoas
sensatas, sob o pretexto de, através do medo, converter as pessoas boas.
Eu sei que ensinar às multidões os terríveis castigos do inferno pode ser
algo embaraçoso. Como a maioria das pessoas necessita de representações
materiais para conceber as coisas mais elevadas, torna-se necessário usar uma
linguagem figurada para falar do inferno e dos suplícios dos condenados.
Mas é bastante difícil fazer isso com devida prudência.
Por isso, repito: ainda que com as mais excelentes intenções, caímos no
impossível, para não dizer no grotesco. Não, o inferno não é essa coisa dos
contos fantásticos, é algo ainda maior e bem diferente, muito mais pavoroso
como veremos a seguir.
O inferno consiste, sobretudo, numa pavorosa pena de danação
A danação é a separação total de Deus. Portanto, um condenado é uma
criatura total e definitivamente privada de seu Criador.
Nosso Senhor mesmo nos assinalou a danação como a pena principal e
imperiosa dos condenados. Lembremos dos termos da sentença que Ele
pronunciará contra os condenados no julgamento final: «Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos».
Atentemos à primeira palavra da sentença do Soberano Juiz, que nos faz
compreender o que é a separação, a privação total de Deus que caracteriza o
inferno. Essa é a maldição de Deus, em outras palavras, a danação ou
reprovação.
Mas a sutileza do espírito e a falta de fé viva nos impedem de
compreender, a partir da condição humana, tudo o que contém de horroroso,
pavoroso e desesperador na condenação da alma. Ora, nós somos feitos para
o bom Deus e apenas para ele; somos feitos para Deus como os olhos são
feitos para a luz, como o coração é feito para o amor. Todavia, em meio às
milhares de preocupações mundanas, acabamos por não nos darmos conta
disso, e, portanto, nos desviamos de Deus, nosso único e derradeiro fim,
presente em tudo o que nos rodeia, em tudo o que vemos, entendemos,
sofremos e amamos.26
Contudo, depois da morte a verdade é ressarcida de todos os seus direitos,
e cada um de nós se encontra diante de Deus, diante daquele por quem e para
quem é feito; a quem deve única e integralmente a sua vida, sua felicidade,
seu descanso, sua alegria e seu amor.
Imaginemos então qual pode ser o estado de um homem que de repente
perca, de forma absoluta e total, a sua vida, a sua luz, a sua alegria, o seu
amor. Como pode ser a vida de quem é totalmente privado daquele que o
fundamenta? Poderíamos imaginar esse vazio súbito e absoluto que separa
um ser daquele a quem ama e para quem fora criado?
Um religioso da Companhia de Jesus, padre Surin, cujas virtudes,
sabedoria e infortúnios tornaram-se célebres no século XVII, sofreu durante
quase vinte anos as angústias desse terrível estado infernal. Para livrar uma
pobre santa religiosa da possessão demoníaca – que já havia passado por três
meses de exorcismo e orações –, o piedoso padre, num ato de heroísmo,
ofereceu-se em sacrifício caso a misericórdia divina se dignasse a ouvir suas
orações para que aquela pobre criatura fosse libertada. As preces foram
atendidas e Nosso Senhor permitiu, pela santificação de Seu servo, que o
demônio se apossasse imediatamente do corpo do padre e que o atormentasse
durante muitos anos. Nada é mais autêntico do que os estranhos fatos
públicos que marcaram a possessão do pobre padre Surin, mas me estenderia
por demais narrando aqui todos os detalhes.27
O que importa é que, após livrar-se das possessões, ele reuniu por escrito
as lembranças de tudo o que passou naquele estado sobrenatural, onde o
demônio, apoderando-se materialmente, por assim dizer, das faculdades e
sentidos do padre Surin, fê-lo sentir uma parte das suas próprias sensações do
desespero infernal.
Eis um dos desses relatos: «Pareceu-me que todo o meu ser, que todas as
potências da minha alma e do meu corpo se dirigiam com uma veemência
inexprimível para o senhor meu Deus, que eu via ser a minha suprema
felicidade, o meu bem infinito, o único objeto da minha existência. Mas ao
mesmo tempo, uma força irresistível me arrancava Dele, mantinha-me longe
Dele, de modo que, feito para viver, eu me via e me sentia privado daquele
que é a Vida; feito para a verdade e a luz, via-me absolutamente repelido pela
Luz e pela Verdade; feito para amar, estava repelido pelo Amor, e feito para o
bem, estava mergulhando no abismo do mal. Eu não saberia comparar as
angústias e os desesperos desta inexprimível aflição senão com a idéia de
uma flecha lançada com uma incessável força em direção a um alvo. Ela é
irresistivelmente levada à frente, mas ao mesmo tempo, e invencivelmente,
também vai sendo puxada para trás».
Este é um claro símbolo desta terrível realidade que se chama danação, que
é necessariamente acompanhada do desespero. É esse desespero que, nos
Evangelhos, Nosso Senhor chama de «verme» que rói os condenados; e tudo
é melhor do que ser atirado na prisão de fogo, onde o verme não morre
jamais (ubi vernis eorum non moritur).28
Os vermes dos condenados são os remorsos, os desesperos. É chamado
verme porque na alma pecadora e condenada ele nasce da corrupção pelo
pecado, como nos cadáveres os vermes corporais nascem da corrupção da
carne.
E, aqui neste mundo, podemos apenas ter uma idéia remota do que são
esses remorsos e desesperos, pois aqui, onde nada é perfeito, o mal está
sempre misturado com algum bem, e o bem a algum mal. Assim, diante dos
infortúnios que acontecem aqui na terra, nossos desesperos e nossos remorsos
são sempre moderados por certas esperanças e também pela impossibilidade
de que possamos suportar o sofrimento quando ele excede uma certa medida.
Mas, na eternidade, tudo é perfeito e, se assim podemos dizer, o mal é
como o bem, perfeito, sem misturas, sem esperanças nem possibilidade de
atenuação, como explicaremos mais adiante com mais detalhes. Em suma, os
remorsos e os desesperos dos condenados serão completos, irrevogáveis e
irremediáveis, sem a sombra de um abrandamento ou a possibilidade de
torná-los menos amargos. E será tão absoluto quanto possível, pois o mal
absoluto não existe29.
É possível imaginar o que pode ser esse estado de desespero, privado de
todo e qualquer vestígio de esperança? E esse pensamento tão triste: «Eu me
perdi no prazer, e me perdi para sempre por ninharias e as frivolidades de um
momento! Mas me teria sido fácil me salvar eternamente, como fizeram
tantos outros.»
Aos olhos dos bem-aventurados, diz-nos as Sagradas Escrituras, os ímpios
«serão tomados de terrível pavor» e gritarão entre soluços e gemidos de
angústia: «Estávamos enganados! Ergo erravimus! Sim, extraviamo-nos do
caminho da verdade; cansamo-nos nas veredas da iniqüidade e da perdição;
não conhecemos os caminhos do Senhor! Que proveito nos trouxe nosso
orgulho, nossa riqueza e nossos prazeres? Tudo passou como uma sombra e
agora estamos perdidos, fomos engolidos pela nossa perversidade!» [Sb 5,1-
14]
Ao desespero eles juntam o ódio, que é outro fruto da maldição: «Apartai-
vos de mim, malditos!» E o maior dos ódios; o ódio a Deus, ao Ser perfeito,
ao Bem infinito; ódio à Verdade infinita, ao eterno Amor, à Bondade, à
Beleza, à Paz, à Sabedoria e à eterna Perfeição. Um ódio implacável e
satânico, ódio sobrenatural que, no inferno, absorve todas as potências do
espírito e do coração.
Os condenados não poderiam odiar o seu Deus se lhes fossem dada, assim
como aos bem-aventurados, a possibilidade de O conhecer com todas as Suas
perfeições e Seu inenarrável esplendor. Mas não é desta maneira que Deus é
conhecido no inferno, pois os condenados não são capazes de ver mais do
que os terríveis efeitos da Sua justiça, isto é, das punições às quais foram
condenados. Por isso eles odeiam a Deus, da mesma forma como odeiam as
punições sofridas, como odeiam a condenação com as quais foram
amaldiçoados.
No último século, em Messina, um santo padre exorcizava um possesso e
interrogou o demônio: – Quem és tu? – e o espírito malvado respondeu: –
Sou aquele que não ama a Deus.
Em Paris, num outro exorcismo, o ministro de Deus perguntou:
– Onde estás?
– Nos infernos e para sempre! – respondeu furiosamente o demônio.
– Gostarias de se redimir?
– Não, quero apenas poder odiar Deus para sempre.
Assim poderá falar algum dos condenados. Eles odeiam eternamente
Àquele que deveriam amar.
Há também quem diga: Deus é bom! Então como Ele poderia me
condenar? Ora, não é Deus quem condena, mas o próprio pecador que
condena a si mesmo30. No terrível ato da condenação, não é a bondade de
Deus que está em questão, mas somente Sua santidade e Sua justiça, que é
infinita no inferno, da mesma forma que a Sua misericórdia e Sua bondade
são infinitas no paraíso.
Assim, esteja certo de que se você não ofender a santidade de Deus, não se
danará. Porque um condenado tem apenas o que escolheu e, apesar de toda a
Graça de seu Deus, fez sua escolha pelo mal. Ora, na eternidade o mal se
chama inferno. Se houvesse escolhido o bem, teria o bem eternamente.
Tudo isso é perfeitamente lógico e então, como sempre, a fé está
perfeitamente de acordo com a razão e a eqüidade.
Então, temos o primeiro elemento dessa terrível realidade chamada
inferno: a condenação, acompanhada da maldição divina, do desespero e um
profundo ódio a Deus.
Em segundo lugar, o inferno consiste na dor horrível de fogo
Há fogo no inferno, isso é o que nos diz a fé revelada. Relembremos as
palavras do Filho de Deus, que são claras, precisas e sem formalidades:
«Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, in ignem… Na prisão de
fogo, o fogo jamais se extinguirá (…) o Filho do Homem enviará Seus anjos
e eles apanharão do Seu Reino todos os escândalos e os que praticam a
iniqüidade e lança-los-ão na fornalha ardente, in caminum ignis». Palavras
divinas e infalíveis que, repetidas pelos Apóstolos, são a base do ensinamento
da Igreja. Significa que os condenados sofrerão com a pena de fogo no
inferno. [Mt 25,41sq]
A História eclesiástica narra que, no terceiro século, dois jovens que
freqüentavam os cursos da célebre escola de Alexandria, no Egito, um dia
resolveram entrar numa igreja. Na ocasião, o padre pregava sobre o fogo do
inferno. Um deles riu, enquanto o outro, perturbado pelo terror e pelo
arrependimento, converteu-se – e depois se fez religioso para melhor
assegurar sua salvação.
Passado algum tempo, o primeiro morreu subitamente. E Deus permitiu
que ele aparecesse ao seu velho amigo, a quem disse:
– A Igreja prega a verdade quando diz que o fogo do inferno é eterno. E os
padres erram não falando muito mais sobre o inferno.
O fogo do inferno é sobrenatural e incompreensível
Como expressar ou mesmo conceber neste mundo, as grandes realidades
eternas? Os padres fazem o que podem, mas seus espíritos e suas palavras
nem sempre alcançam êxito.
Se do céu é dito: «o que os olhos não viram, e os ouvidos não ouviram e o
coração do homem não percebeu tudo o que Deus preparou para os que o
amam», podemos igualmente, em nome da justiça infinita, dizer do inferno:
«Não, os olhos do homem não viram, suas orelhas não ouviram, seu espírito
não pode e jamais poderá conceber o que a justiça de Deus reserva aos
pecadores impertinentes». [I Cor 2,9]
«Eu sofro, sofro cruelmente nesta chama!», gritava do fundo do inferno o
rico malvado do Evangelho. Para compreender o alcance da primeira palavra
do condenado, «Eu sofro! (Crucior!)», é preciso compreender o que veio a
seguir: «Nesta chama, in hac flamma». O fogo deste mundo é imperfeito
como tudo o que é deste mundo, e nossas chamas materiais, apesar do seu
terrível poder, são apenas um miserável símbolo dessas chamas eternas das
quais fala o Evangelho.
Seria possível expressar, sem ficar abaixo da verdade, o horror do
sofrimento que pode experimentar um homem jogado, mesmo que por alguns
minutos, numa fornalha ardente, supondo que nela possa viver? É possível?
Não, evidentemente. Que diríamos então desse fogo sobrenatural, desse fogo
eterno, cujos horrores não se podem comparar a nada?
No entanto, como estamos no tempo e não ainda na eternidade, precisamos
nos servir de pequenas realidades deste mundo, inconstantes e imperfeitas
que são, para nos elevar um pouco às realidades invisíveis e infinitas da outra
vida. É necessário, a considerar o sofrimento indizível com que precisamos
suportar o fogo terrestre, assustar-nos a nós mesmos, com o intuito de não
cairmos nas profundezas do fogo do inferno.
Padre Bussy e o jovem libertino
Fazer um jovem libertino compreender isso foi o desejo de um santo
missionário do começo deste século, célebre em toda a França por seu zelo de
apóstolo, sua eloqüência e suas virtudes – e um pouco também pela suas
originalidades.
O padre Bussy, numa missão em alguma cidade dos Pireneus, chocou toda
a população. Fazia muito frio, era o meio do inverno, aproximando-se do
Natal. Na sala onde o padre recebia as pessoas, havia uma boa lareira, onde
erguiam-se boas labaredas.
Um dia, o padre viu chegar um jovem que a ele havia sido enviado por
conta de suas fanfarronices de impiedade. Padre Bussy apercebeu-se logo que
não havia muito o que se pudesse fazer com aquele rapaz.
– Venha cá, meu bom amigo – disse-lhe alegremente – não se preocupe,
não faço as pessoas confessarem contra a sua vontade. Sente-se, vamos
conversar um pouco ao pé da lareira.
Percebeu, então, que a lenha já estava quase toda consumida:
– Antes de se sentar, por favor, pegue um pouco de lenha.
O rapaz surpreendido, fez o que o padre lhe pediu.
– Agora, coloque-as bem ao fundo da lareira – disse ao jovem. Enquanto o
rapaz colocava-as no fogo, padre Bussy pegou-o pelo braço, forçando-o para
o fundo. O rapaz deu um grito e pulou para trás:
– Ai! O senhor está louco? Quer me queimar?
– Mas o que você tem, meu jovem? – responde tranqüilamente –, você
precisa se acostumar, pois no inferno, que é para onde você irá se continuar a
viver da forma em que vive, não será apenas as pontas dos dedos que terá
queimado, mas todo o seu corpo. Este foguinho não é nada em comparação
com o que você irá encontrar por lá. Vamos, vamos, meu amigo, coragem!,
você tem de se habituar.
Ele continuou a empurrar o braço, mas o rapaz resistiu, como se pode
imaginar.
– Meu bom rapaz – disse o padre, mudando de tom – reflita um pouco,
qualquer coisa não é melhor do que queimar eternamente no inferno? E não
são poucos os sacrifícios que nosso bom Deus exige, para que não soframos
tão terrível castigo?
O jovem libertino se põe pensativo. De fato, refletiu. E não demorou a
retornar junto ao missionário, que o absolveu dos seus pecados, ajudando-o a
retomar uma boa vida.
Não há dúvidas que se pode encontrar milhares de homens que viviam
longe de Deus, e, por conseqüência, seguem a caminho do inferno. Nenhum
deles, talvez, suportaria à «prova de fogo». Não haveria um que seria tolo o
bastante para seguir o caminho adiante: «Durante todo um ano, você poderá
se abandonar impunemente à todos os prazeres, saturar todas as volúpias,
satisfazer todos os caprichos, com uma única condição: passar um dia,
somente um dia, quiçá uma hora, em meio ao fogo». Repito: não haveria um
que aceitasse tal condição. Ninguém aceitaria seguir este terrível caminho.
Quer uma prova? Ouça esta história:
Os três filhos de um velho usurário
Um pai de família que enriqueceu às custas de flagrantes injustiças, caiu
gravemente enfermo. Ainda que a sua situação fosse bastante grave, com suas
feridas gangrenando, recusava-se a restituir o dinheiro que havia ganhado
injustamente: «Se devolvê-lo, o que será das minhas crianças?», dizia.
Seu padre, que era espirituoso, para salvar a alma daquele pobre homem,
recorreu a uma estranha astúcia. Disse-lhe que se quisesse a cura, indicaria
um remédio bastante simples, porém caro, muito caro.
– Ainda que custe mil, dois mil, dez mil francos; se é para me curar eu não
me importo! – respondeu vivamente o velho homem – qual é o remédio?
– Consiste em dissolver a gangrena com a gordura de uma pessoa viva.
Não é preciso muito para isso: se você encontrar alguém que, por dez mil
francos, aceite deixar uma mão ser consumida pelo fogo durante apenas
quinze minutos, será suficiente.
O velho homem diz suspirando:
– Ora, creio não haver ninguém que aceite isso.
– Há um jeito – diz tranqüilamente o padre –, traga aqui o seu filho mais
velho. Ele o ama e é o seu herdeiro. Diga a ele: «Querido filho, você poderia
salvar a vida do seu velho pai se permitisse que te queimassem uma mão,
somente durante quinze minutos». Mas ele se recusando, um dos outros dois
certamente aceitará.
Foi feita a proposta aos três irmãos que, um após o outro, recusaram-se
com terror. Então, o pai lhes disse:
– Para me salvar a vida, um momento de dor é a vocês apavorante! E eu,
para dar-lhes conforto, iria para o inferno queimar eternamente! Não, eu seria
louco! – e se apressou a devolver tudo o que ganhou de forma desonesta, sem
se preocupar com o que tiraria dos seus filhos.
Ele tinha razão, e também seus três filhos. Deixar que lhes queimassem a
mão por quinze minutos, mesmo que fosse para salvar a vida de seu pai, é um
sacrifício acima das capacidades humanas. Ora, como já dissemos, o que
seria isso em comparação com os abismos ardentes do fogo do inferno?
Meus filhos, não queiram ir para o inferno
Em 1844, no Seminário de São Sulpício, em Issy-les-Moulineaux, uma vila
próxima a Paris, conheci um professor de ciências extremamente distinto, a
quem se admirava pela humildade e mortificação. Antes de ser consagrado
sacerdote, o padre Pinault havia sido um dos professores mais eminentes da
Escola Politécnica. No Seminário, fazia o curso de Física e Química.
Um dia, durante um experimento, não se sabe como, o fósforo que ele
manipulava pegou fogo e sua mão ficou por alguns instantes envolvida em
chamas. Ajudado pelos seus alunos, o pobre professor tentava em vão apagar
o fogo que devorava a sua carne. Em alguns minutos, sua mão se transformou
numa massa disforme, incandescente, a tal ponto que suas unhas
desapareceram. Vencido pelo excesso de dor, o infeliz perdeu a consciência.
Colocaram sua mão e braço em um balde de água fria, para diminuir a
violência do seu martírio.
Durante todo aquele dia, e também durante à noite, ele apenas gritava de
dor; gritos tão convincentes quanto comoventes. Nos intervalos em que
expressava tamanha dor, conseguia articular algumas poucas palavras. Dizia
para três ou quatro seminaristas que o assistiam: «meus filhos… meus filhos!
Não queiram ir para o inferno! Não queiram ir para o inferno!»
Em 1867, o mesmo grito de dor e de caridade sacerdotal escapou dos
lábios, ou melhor, do coração de um outro padre, numa situação semelhante.
Perto de Pontivy, diocese de Vannes, um jovem vigário, chamado Laurent,
enfrentou as chamas de um incêndio para salvar uma infeliz mãe de família e
seus dois filhos. Por duas ou três vezes se lançou ao fogo com muita coragem
e caridade heróica, em direção de onde partiam os gritos. Teve a felicidade de
resgatar sãs e salvas as duas pobres crianças. Mas a mãe permanecia lá, e não
havia quem ousasse enfrentar a violência do fogo que aumentava minuto a
minuto. Mas escutando apenas a sua caridade, o padre Laurent precipitou-se
mais uma vez cruzando as chamas e conseguiu empurrar a mãe, transtornada
por aquele horror, para longe do alcance do fogo. No mesmo instante o
telhado desabou e, desta vez, era o santo padre a ficar preso entre as chamas.
Ele pede socorro, e com muita dificuldade acabam conseguindo salvá-lo da
morte iminente.
Porém, era tarde demais. O pobre sacerdote já havia sido ferido de forma
mortal. Tinha respirado as chamas e o fogo começava a queimá-lo por dentro,
devorando-o com sofrimentos inimagináveis. Em vão, todas as boas pessoas
daquele lugar tentaram-no ajudar, mas o fogo continuava a devastá-lo
internamente.
Em poucas horas, o mártir da caridade iria receber no céu a recompensa
pela sua dedicação heróica.
Ele também, durante sua terrível agonia, gritava aos que estavam ao seu
redor: «Não queiram ir para o inferno! É terrível! É assim que irão queimar
no inferno!»
O fogo do inferno é um fogo corpóreo
Pergunta-se o que é o fogo do inferno. Qual a sua natureza; se é um fogo
material ou ele é apenas espiritual. E muitos se inclinam a esta última
opinião, porque, no fundo, ela parece menos terrível. Mas não é o que nos
ensina Santo Tomás e a teologia católica.
Como dissemos até aqui, é certo que o fogo do inferno é um fogo real e
verdadeiro. Um fogo inextinguível, eterno, que queima sem consumir, que
penetra os espíritos e também os corpos. É isto o que nos foi revelado por
Deus e ensinado como artigo de fé pela Sua Igreja. Negá-lo seria não
somente um erro, mas uma impiedade, uma heresia propriamente dita.
Voltemos às perguntas: de qual natureza é o fogo que queima no inferno?
É um fogo corpóreo? É da mesma espécie que o nosso fogo? Trata-se de um
princípio da teologia, e é Santo Tomás que vai nos responder, com toda a sua
clareza e conhecida profundidade.
Ele diz que os filósofos pagãos, que não acreditavam na ressurreição da
carne – mas, no entanto admitiam, como toda a tradição do gênero humano,
um fogo vingador na outra vida – deviam ensinar (e de fato ensinavam) que o
fogo era espiritual, da mesma natureza das almas. E o racionalismo moderno,
que tende a invadir todas as inteligências e tenta diminuir, o quanto pode, as
bases da fé, espalhou esses sentimentos a um grande número de espíritos
pouco instruídos dos ensinamentos católicos.
Mas o grande Doutor, após ter exposto sua primeira impressão, diz de
forma clara que «o fogo do inferno será corporal». E a justificativa é
categórica: «Uma vez que, após a ressurreição, os condenados serão
precipitados no inferno, e dado que o corpo só pode sofrer uma pena
corpórea, o fogo do inferno será corpóreo. Uma pena não pode ser aplicada
ao corpo de forma apropriada se ela também não for corpórea».31 E Santo
Tomás fundamenta o seu ensinamento naqueles de São Gregório Magno e de
Santo Agostinho, que disseram a mesma coisa com os mesmos termos. No
entanto, podemos dizer, acrescenta o Doutor Angélico, que esse fogo
corporal tem qualquer coisa espiritual, não em relação à sua substância, mas
quanto aos seus efeitos, pois toda a punição aos corpos não os consome, não
os destrói, não os reduz às cinzas. Além disso, exerce sua ação vingativa
sobre essas almas e, nesse sentido, o fogo do inferno se distingue do fogo
material, que queima e consome os corpos.
Ainda que seja corpóreo, o fogo do inferno atinge as almas
Poder-se-ia, talvez, perguntar como o fogo do inferno pode atingir as almas
que estarão separadas dos corpos até o dia da Ressurreição e do Julgamento
Final. Antes de tudo, é preciso dizer que nesse temível mistério das penas do
inferno, uma coisa é conhecer a verdade desse mistério; outra é compreender
esta verdade.
Sabemos, de forma absoluta pelo ensinamento infalível da Igreja, que,
imediatamente após a morte, os condenados caem no inferno e em seu fogo.
Ora, entende-se que são suas almas, pois até à ressurreição seus corpos
permanecem confiados à terra, em seus túmulos. Uma vez separada do corpo,
em relação à ação misteriosa do fogo do inferno, a alma do condenado se
encontra na mesma condição dos demônios. Com efeito, embora não tenham
corpos, os demônios são atingidos pelo mesmo fogo no qual um dia serão
lançados os corpos dos condenados. É o que indica a sentença do Filho de
Deus aos réprobos: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno
preparado para o diabo e para os seus anjos». [Mt 25,41sq]
Portanto, esse fogo é corpóreo, pois sendo de outra forma, não atingiria os
corpos dos condenados. Então, suas almas, quando separada dos corpos, são
atingidas por um fogo corpóreo. Isso é o que sabemos e o que é certo.
O que não sabemos é como isso se dá. Mas não há necessidade de saber
para crermos, afinal as verdades reveladas por Deus têm o objetivo de
esclarecer nosso espírito e, ao mesmo tempo, mantê-lo na dependência e na
submissão.
Pela fé, estamos certos da realidade do fato, e nos é suficiente saber que
não é uma coisa impossível. Ora, a razão e a analogia nos mostra claramente:
não somos nós mesmos – e a todo instante – as testemunhas irrevogáveis das
ações contínuas, reais e íntimas que nosso corpo exerce sobre a nossa alma?
Nosso corpo, que é uma substância material, não age sobre nossa alma, que é
uma substância espiritual? Então é perfeitamente possível que uma substância
material, como o fogo, aja sobre uma substância espiritual, como a alma do
condenado.
O capitão-ajudante de Saint-Cyr
Sobre este tópico, prezado leitor, deixe-me contar um fato bastante curioso
que se passou na Escola Militar de Saint-Cyr, nos últimos anos da
Restauração.32
A Escola tinha como capelão militar um eclesiástico cheio de espírito e
talento, chamado pelo estranho nome de Rigolot.33 Ele orientava
espiritualmente os jovens da Escola que, todas as noites, reuniam-se na
capela antes de voltar para o dormitório.
Certa noite o digno capelão havia falado admiravelmente sobre o inferno e,
terminada a cerimônia, retirou-se carregando um castiçal para o seu quarto,
que ficava numa área reservada aos oficiais. No momento em que abria a
porta, ouviu alguém lhe chamar. Era um velho capitão de bigode grisalho e
um ar zombeteiro.
– Desculpe-me, senhor capelão – disse com uma voz irônica –; foi um belo
sermão sobre o inferno. Mas eu fiquei com uma dúvida: no fogo do inferno
seremos assados, grelhados ou fervidos? O senhor poderia me dizer?
O capelão, vendo com quem estava lidando, aproximou o castiçal do nariz
do seu interlocutor, respondendo-lhe com tranquilidade:
– O senhor verá, capitão!
Entrou, fechou sua porta e riu-se daquela figura esquisita e atrapalhada.
Não pensou mais nisso, mas percebeu que, a partir daquele momento, o
capitão desviava-se do caminho quando de longe o avistava.
Ocorreu a Revolução de Julho34 e suprimiram-se os capelães militares,
tanto em Saint-Cyr como nas outras escolas. O padre Rigolot foi, então,
nomeado pelo Arcebispo de Paris a um posto não menos honorável.
Vinte anos depois, o venerável padre visitava uma exposição onde se
encontrava quase toda a sociedade, quando um senhor com um bigode branco
veio cumprimentá-lo. Perguntou-lhe se era o padre Rigolot, outrora capelão
de Saint-Cyr. Diante da resposta afirmativa, disse:
– Oh, senhor capelão, permita-me apertar a sua mão e exprimir todo o meu
reconhecimento: o senhor me salvou!
– Eu? Mas como?
– O quê? O senhor não me reconhece? Não se lembra de uma noite em que
um capitão-instrutor da Escola veio-lhe fazer uma pergunta estúpida depois
do seu sermão sobre o inferno? E o senhor respondeu enfiando-lhe o castiçal
no nariz: «o senhor verá, capitão!» Esse capitão era eu! Saiba que essas
palavras me perseguiam para onde eu fosse, e não conseguia parar de pensar
que iria queimar no inferno. Depois de lutar por dez anos, acabei por me
render. Confessei-me e me tornei um cristão. Devo esta felicidade ao senhor,
e estou muito contente em revê-lo para poder agradecer.
Se por acaso, meu querido leitor, algum dia aparecer algum engraçadinho a
fazer piadas sobre o fogo do inferno, faça como o padre Rigolot e diga:
«Você verá isso, meu caro. Você verá!»
Garanto que não ficarão tentados a pagar para ver.
A mão queimada de Foligno
Uma coisa certa é que quase todas as vezes que Deus permitiu a aparição
na terra de uma pobre alma condenada – ou uma alma no purgatório, que da
mesma maneira retorna –, no que concerne ao fogo da outra vida, sempre
ficou um traço visível, e este traço é aquele do fogo. Relembremos daquela
terrível aparição em Londres, do braço calcinado da dama do bracelete de
ouro. Recordemos também a atmosfera de fogo e de chamas que envolvia a
filha perdida de Roma e o jovem sacrílego religioso de Santo Antonino de
Florença.
Ainda este ano, no mês de abril, vi – ou pelo menos tive contato em
Foligno, perto da Assis, na Itália – um desses sinais terrificantes que atestam
ainda mais a verdade do que dissemos aqui, isto é, que o fogo da outra vida é
um fogo real.
Em 4 de novembro de 1859, morreu de apoplexia35 fulminante, no
Convento da Ordem Terceira Franciscana de Foligno, uma boa irmã chamada
Teresa Margarita Gesta, que durante muito tempo foi mestra de noviças e
também encarregada do pobre vestuário do mosteiro. Ela nasceu em Córsega,
em Bastia, no ano de 1797, e havia entrado para o mosteiro em fevereiro de
1826. Desnecessário dizer que estava dignamente preparada para a morte.
Doze dias depois, em 17 de novembro, uma irmã chamada Ana Felícia,
que a ajudava em seus ofícios e a substituiu após sua morte, subiu ao
vestuário e, ainda antes de entrar, ouviu gemidos que pareciam vir do interior
do aposento. Assustada, abriu a porta: não havia ninguém. Mas continuou a
ouvir os gemidos que se tornaram mais intensos a ponto de apavorar a
corajosa irmã:
– Jesus-Maria! O que é isto?
Mal havia falado e se fez ouvir uma voz lamentosa, acompanhada de um
doloroso suspiro:
– Oh! meu Deus, eu sofro! Oh! Dio, che peno Canto!
A irmã, estupefata, reconheceu logo a voz da pobre irmã Teresa.
Recompondo-se do medo, perguntou:
– Mas por quê?
– Devido à humildade!
– O quê! Você que era tão humilde!
– Não é por mim, mas pelas irmãs a quem dei muita liberdade neste
aspecto. E você, cuide-se!
No mesmo instante, toda a sala se encheu com uma fumaça espessa, e foi
possível ver a sombra da irmã Teresa se dirigindo à porta, como que se
deslizasse por toda a parede. Chegando à porta, falou com firmeza: «Aqui
tens um testemunho da misericórdia de Deus!» Dito isto, bateu na parte mais
alta da moldura da porta, queimou a madeira para deixar a marca mais
perfeita da sua mão direita. Logo depois, desapareceu.
A pobre irmã Ana Felícia, aterrorizada, pôs-se a gritar pedindo por
socorro. Uma de suas companheiras a acudiu, e depois toda a comunidade.
Ao redor dela, as irmãs se surpreenderam com o cheiro da madeira queimada.
Procuraram e encontraram na porta a terrível marca, e logo reconheceram a
forma da pequenina mão da irmã Teresa. Horrorizadas, começaram a orar e,
esquecendo-se até mesmo das necessidades dos seus corpos, passaram a noite
inteira a rezar, fazendo as penitências pela pobre alma de irmã Teresa.
Continuaram no dia seguinte; todas em comunhão pela falecida.
A notícia se espalhou e também os frades menores, os bondosos padres
amigos do mosteiro e todas as comunidades da vila juntaram suas orações e
súplicas às dos franciscanos. Esse impulso de caridade tinha algo de
sobrenatural e completamente incomum.
Mas a irmã Ana Felícia, emocionalmente abalada, recebeu ordem para ir
repousar. Obedeceu. No entanto, decidiu-se que no dia seguinte, a qualquer
custo, faria desaparecer a marca de mão carbonizada na madeira que espalhou
o terror em toda Foligno. De repente, a irmã Teresa lhe apareceu mais uma
vez:
– Eu sei o que queres fazer – disse de forma severa –; queres retirar a
marca que eu deixei. Saibas que não está em teu poder fazê-lo. Esse prodígio
foi ordenado por Deus, para o ensinamento e a correção de todos. Por Seu
justo e indubitável julgamento, estou condenada a ficar durante quarenta anos
nas terríveis chamas do purgatório, devido às minhas fraquezas em relação a
algumas de nossas irmãs. A ti agradeço, e a todas as tuas companheiras, por
tantas orações que, na Sua bondade, o Senhor dignou-se a aplicar
exclusivamente à minha pobre alma. Especialmente os sete salmos
penitenciais que me trouxeram grande alívio.
Depois, com um sorriso no rosto, desapareceu dizendo: «Oh, abençoada
humildade, que provê tão grande alegria a todos aqueles que a seguem
verdadeiramente!»
Enfim, no dia seguinte, a irmã Ana Felícia recolheu-se na sua hora habitual
e, adormecida, ouviu novamente chamar o seu nome. Despertou bruscamente
com um susto, e permaneceu paralisada sem poder articular uma só palavra.
Reconheceu novamente a voz da irmã Teresa. No mesmo instante, uma bola
de luz resplandecente apareceu diante dela, ao pé de sua cama, iluminando a
sua cela como em pleno dia. E ouviu a irmã Teresa que, com uma voz alegre
e triunfante, disse:
– Morri numa sexta-feira, o dia da Paixão. E eis que uma sexta-feira eu irei
para a glória… Sejam fortes ao carregar a cruz! Sejam corajosas ao sofrer!
E com amor se despediu:
– Adeus! Adeus! Adeus!
Transfigurou-se numa ligeira e deslumbrante nuvem branca, voou para o
céu e desapareceu.
Foi aberta imediatamente uma investigação canônica pelo bispo de Foligno
e os magistrados da cidade. No dia 23 de novembro, na presença de um
grande número de testemunhas, foi aberto o túmulo da irmã Teresa
Margarita, e a marca queimada na porta era exatamente igual à mão da
falecida.
O resultado da investigação foi um julgamento oficial que constatou a
certeza e a autenticidade do que narramos aqui. A porta, com a marca da mão
na madeira queimada é conservada com veneração no convento. Foi a própria
madre-superiora, testemunha do fato, quem me mostrou. E junto com meus
companheiros de peregrinação, vimos e tocamos aquela madeira que atesta de
uma maneira incontestável que as almas, quer momentânea ou eternamente,
sofrem a pena de fogo em outra vida, e são tocadas profundamente e
queimadas por esse fogo.
Quando, por razões que só Deus conhece, é lhes dado a aparecer neste
mundo, marcam a porta com o fogo que os atormentam. Eles, com o fogo,
parecem tornar-se apenas um; como o carvão que pelo fogo se torna brasa.
Assim, embora não possamos entender o mistério, sabemos, sem que se
possa negar, que o fogo do inferno, corporal como é, exerce a sua ação
vingadora até sobre as almas.
Onde está o fogo do inferno?
Sem uma indicação absolutamente precisa, a revelação cristã e o
ensinamento católico estão de acordo em nos mostrar os abismos escaldantes
do fogo do centro da terra como o lugar onde serão precipitados os corpos
dos condenados após a ressurreição. É o que o célebre Catecismo do Concílio
de Trento nos diz com todas as letras: o inferno está «no centro da terra, in
medio terre».36 Da mesma forma é o ensino formal de Santo Tomás37 que,
não obstante, apresenta esse lugar como o mais provável: «Pessoa alguma
sabe de maneira exata em que parte da terra está situado o inferno, a menos
que o próprio Espírito Santo o tenha revelado. Mas temos razão para crer que
o inferno está debaixo da terra. Primeiro porque o próprio nome indica:
infernus, quer dizer que é abaixo, um lugar inferior em relação à terra. Em
seguida, nas Sagradas Escrituras dizem que os condenados estão debaixo da
terra, subtus terram».
Além disso, é dito no próprio Evangelho e nas Epístolas de São Paulo que
na Sexta-Feira Santa a alma de Nosso Senhor, temporariamente separada de
seu corpo, desceu «no coração da terra, in corde terrae»; «desceu às
profundezas da terra, in inferiores partes terrae». Ora, sabemos que ela trazia
a notícia da redenção e também a salvação aos justos da antiga Lei que, desde
o começo do mundo, creram e esperavam cheios de esperança e amor na paz
do limbo.38 Sabemos que a Santa Alma foi refrescar as que estavam no
purgatório e lá terminavam de expiar seus pecados para passar para os
limbos. Enfim, que ela desceu aos infernos, descendit ad inferos,39 para
manifestar a Satanás, a todos os demônios e a todos os condenados Sua
divindade e Seu triunfo sobre o pecado, sobre a carne e sobre o mundo.40
[Ap 5,3] [Mt 12,40 + Ef 4,9]
Ora, de tudo isso, não se pode concluir, sem pelo menos uma forte
evidência, que o lugar do inferno é e será o centro da terra – lugar onde todos
os geólogos afirmam existir algo como um imenso oceano de fogo, com
enxofre e betume em fusão –, e que, como qualquer coisa tão extraordinária e
poderosa, sequer podemos ter uma idéia nesta vida.
Acrescente-se a isso o fato de que, na linguagem das Escrituras, o Espírito
Santo sempre apresenta o inferno como um abismo onde se é precipitado,
onde se cai, onde se desce; palavras que exprimem necessariamente um lugar
não somente inferior, mas também profundo. Esta é a linguagem universal da
Igreja, dos Santos Padres, dos teólogos e também do mundo inteiro.
Enfim, ainda que sejam alteradas nas tradições do paganismo,
principalmente entre os gregos e os latinos, elas vêm confirmar o que
resumimos aqui, quando descrevem o lugar das punições da outra vida como
uma vasta região subterrânea, onde reina o sombrio deus Plutão, caricatura
mitológica de Satanás. Um lugar onde, como já dissemos, o fogo e as chamas
têm papel principal, o qual se é possível ver de outras regiões, como a aquela
chamada Campos Elísios,41 também encontrada no subterrâneo, mas um
lugar de certa paz e um tipo de felicidade melancólica. Curioso reflexo da
verdadeira tradição sobre os limbos, destino dos justos da antiguidade.
Acrescentemos, enfim, o que disse Santo Agostinho, comentado por Santo
Tomás, que após a morte o corpo é enterrado, ou seja, desce e é sepultado na
terra, para lá expiar o pecado pela putrefação, e parece ao menos conveniente
que a alma que deve expiar o mesmo pecado, seja com a purificação no
purgatório ou com a punição no inferno, deve também descer para encontrar
nos lugares inferiores o fogo vingador aceso pela justiça divina.
Com tudo isso, não podemos e não devemos concluir que o inferno, com
seu fogo terrível, tenha sede especial no centro da terra, onde o fogo do
abismo queima com a maior intensidade? Observemos, no entanto, que esse
fogo natural é sobrenatural pela onipotência da justiça divina, a fim de
produzir todos os efeitos que reclama esta justiça ao mesmo tempo adorável e
terrível, e também com o intuito de alcançar e penetrar os espíritos e os
corpos, sem consumi-los, mas pelo contrário mantendo-os conservados,
segundo esta terrível palavra do soberano Juiz: «Na geena do fogo que não se
extingue, todos os condenados serão salgados com fogo, igne salietur». Da
mesma forma que o sal penetra e conserva as carnes das vítimas, portanto,
através de um efeito sobrenatural, o fogo corpóreo do inferno penetra sem
jamais consumir os condenados e os demônios. [Mc 9,48-50]
O fogo do inferno é um fogo tenebroso: visões de Santa Teresa
Revelando-nos que o inferno é de fogo, Nosso Senhor também nos disse,
com a autoridade divina e infalível de Sua palavra, que o inferno é de trevas.
No Evangelho de São Mateus, capítulo vigésimo-segundo, Ele deu ao inferno
o nome de trevas exteriores, quando falou do homem que não estava coberto
com a veste nupcial, isto é, que não estava em estado de Graça: «Lançai-o
fora, nas trevas exteriores, in tenebras exteriores».
Em outra parte dos Evangelhos, nos Atos dos Apóstolos, os demônios são
chamados «os príncipes das trevas». São Paulo diz aos fiéis: «pois todos vós
sois filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite, nem das trevas». [Ef
6,12 + 1Ts 5,5]
Assim como o fogo, as trevas do inferno também serão corpóreas. Essas
duas verdades não implicam em nenhuma contradição. O fogo, ou, para falar
de forma mais exata, o calor, que é como a alma e a vida de fogo, é um
elemento completamente distinto da luz. No estado natural, e quando se
produz a chama no meio dos gases do ar, o fogo é, de fato, sempre mais ou
menos luminoso. Mas no inferno, mantendo sua substância, o elemento do
fogo será despojado de certas propriedades naturais e adquirirá outras que
serão sobrenaturais, isto quer dizer que não as possui por si mesmo. É desta
forma que Santo Tomás, baseando-se em São Basílio Magno, ensina que
«pela potência de Deus, a claridade do fogo será separada da propriedade que
ela tem de queimar. E a sua virtude é o combustível que servirá ao tormento
dos condenados».42
Em outro ensinamento, Santo Tomás acrescenta: «no meio da terra, onde
está o inferno, só pode haver um fogo sombrio, obscuro e pleno de
fumaça».43 O pouco que se escapa da boca dos vulcões confirma esta
afirmação.
Portanto, no inferno haverá penas corporais. Porém, com um certo clarão
que permitirá aos condenados aperceberem-se do que deverá compor os seus
tormentos.
Eles verão no fogo e na sombra, como no clarão das chamas do inferno,
àqueles que também foram levados à danação, ensina-nos São Gregório
Magno. E tal visão será um complemento aos seus suplícios.44 Além disso, o
horror mesmo das trevas, que conhecemos por nossa experiência na terra, não
deve ser considerado como algo insignificante na punição dos condenados. O
negro é a cor que representa a morte, o mal; é a cor da tristeza.
Santa Teresa de Jesus contou que, estando um dia cheia de espírito, Nosso
Senhor dignou-se a assegurá-la a eterna salvação, se ela continuasse a servi-lo
e amá-lo. E para aumentar ainda mais a crença da sua fiel serva nas punições
provocadas pelo pecado, Ele quis deixá-la ver o lugar que ela poderia ocupar
no inferno, caso sucumbisse às suas inclinações para o mundo, para a vaidade
e para o prazer.
Estando um dia em oração, sem saber como, pareceu- me estar metida toda no inferno.
Entendi querer o Senhor mostrar-me o lugar que lá me tinham aparelhado os demônios e eu
merecido por meus pecados. Durou um brevíssimo espaço de tempo; mas, vivesse eu muitos
anos, creio impossível esquecê-lo. Parecia-me a entrada a modo de um beco muito longo e
estreito como um forno muito baixo, escuro e angusto. O solo pareceu-me de uma água como um
lodo sujíssimo e de pestilencial odor, cheio de malvadas sevandijas. Ao fim, estava uma
concavidade metida numa parede a modo de um nicho, onde me vi meter, cerrada estreitamente;
tudo isso era deleitoso à vista, em comparação do que ali senti. E tudo que digo vai muito mal
encarecido. Este outro tormento parece-me que não pode haver modo de ser esclarecido como
merece, nem se pode entender; mas senti um fogo na alma que não posso atinar com a maneira
de dizer como é. As dores corporais tão insuportáveis que, com havê-las passado gravíssimas
nesta vida e, segundo dizem os médicos, as maiores que se podem passar aqui embaixo (porque
quando fiquei tolhida encolheram-me todos os nervos, sem falar de outros muitos padecimentos
e alguns, como já disse, causados pelo demônio), nada são em comparação do que ali senti. O
pior era ver que tinham de ser sem fim e sem jamais cessar. Isto não é pois nada, em comparação
do agonizar da alma, um aperto, uma sufocação, uma aflição tão sensível e com tão desesperado
e aflito descontentamento, que não sei como encarecê-lo. Porque é pouco dizer que é como se
nos estivessem sempre a arrancar a alma. É que assim sempre parece que outro nos acaba a vida,
mas neste caso é a própria alma que se despedaça. O caso é que não sei como encareça aquele
fogo interior e aquele desespero, entre tão gravíssimos tormentos e dores. Não via eu quem mos
causava, mas sentia-me queimar e como que esmagar; e digo que aquele fogo e aquela
desesperação interior são o pior.
Estando naquele pestilencial lugar, sem esperança de consolo, não há sentar-se nem deitar-se,
nem há lugar; pois me puseram numa espécie de fenda cavada na muralha e estas paredes,
espantosas à vida, apertam-se por si mesmas e tudo sufoca; não há luz, tudo são trevas
escuríssimas. Eu não entendo como pode ser isso, pois não havendo luz vê-se entretanto tudo
que deve maltratar a vista. Não quis o Senhor que eu então visse mais do que há no inferno;
depois vi outra visão de coisas espantosas e o castigo de alguns vícios. Quanto à vista, muito
mais espantosos me pareceram, mas como não sentia a dor, não me fizeram tanto medo. Nesta
primeira visão, quis o Senhor que eu verdadeiramente sentisse aqueles tormentos e aflição no
espírito, como se o corpo se estivera padecendo. Não sei como aquilo foi, mas bem entendi ser
mercê grande e que quisera o Senhor visse eu por vistas de olhos de onde me livrara a sua
misericórdia. Porque não é nada ouvi-lo dizer, nem ter eu pensado em diferentes tormentos
(embora o faça eu poucas vezes, porque pelo temor não se leva bem a minha alma), nem o que
os demônios atenazam, nem outros diferentes tormentos que tenho lido. Nada é como este
suplício, porque é outra coisa. Fica, enfim, como um debuxo para a verdade e o queimar-se aqui
na terra é muito pouco em comparação com este fogo de lá.
Fiquei tão aterrada e ainda agora o estou, enquanto isso escrevo, embora sucedesse há quase
seis anos; parece-me até que o calor natural me falta aqui onde estou, de tanto medo. E assim não
me recordo de vez em que tenha aflição ou dores que não me pareça de nonada tudo que possa
aqui passar; e creio, em parte, que nos queixamos sem propósito. Torno a dizer que foi uma das
maiores mercês que me fez o Senhor; aproveitou-me muitíssimo, tanto para perder o medo das
tribulações e contradições desta vida, como para esforçar-me a padecê-las e para dar graças ao
Senhor que segundo creio, agora, livrou-me de males tão perpétuos e terríveis.
Depois disso, como digo, tudo me parece fácil em comparação de um único momento em que
se deva sofrer o que ali padeci. Espanta-me como tendo muitas vezes lido livros em que se dá a
entender algo das penas do inferno eu não as temia ou não as tinha no que são. Onde estava eu,
como me poderia dar descanso o que me carregava para tão mau lugar? Bendito sejais para
sempre, Deus meu. E como vi que me quereis muito mais a mim do que eu me quero! Que de
vezes, Senhor, me livrastes daquele cárcere tão tenebroso e como me tornava eu a meter nele
contra a vossa vontade!
Daí também nasceu-me a grande pena que tenho das muitas almas que se condenam. Parece-
me até que, para livrar uma única de tão gravíssimos tormentos, de bom grado passaria eu por
mil mortes. 45
Que a fé corrija a nossa visão; e que o pensamento das ‘trevas exteriores’,
onde os condenados serão lançados como os excrementos e a escória da
criação, retenham-nos das tentações e façam de nós os verdadeiros filhos da
luz!
Que outras grandiosas penas acompanham o sombrio fogo do inferno
Além do calor e das trevas, há outras punições e dores, ou seja, outras
maneiras de se sofrer no inferno. Assim requer a justiça divina, pois os
condenados terão cometido o mal por diversas maneiras. Cada um dos seus
sentidos terá participado, com maior ou menor intensidade, para cometer os
delitos, e por conseqüência, para sua danação. Por isso é justo que sejam
punidos com maior rigor por onde tenham pecado mais, de acordo com as
palavras das Escrituras: «Cada um será punido pelas suas obras». [Ap 22,12]
[Tg 2, 14-26]
Será usado principalmente esse fogo, terrível e sobrenatural de que
falamos, como instrumento dessas múltiplas punições. Punirá por uma ação
especial os respectivos sentidos que serviram à iniquidade; e também em
relação a cada um dos seus vícios, cada um dos seus pecados, que, como diz
o Evangelho, lançado no fogo e nas trevas, o condenado chorará
amargamente pelo passado irreparável e rangerá os dentes em um excesso de
desespero: «Ali haverá choro e ranger com os dentes, fletus et stridor
dentium». São as próprias palavras de Deus. [Mt 13,42]
O choro dos condenados será mais espiritual do que corporal, diz São
Tomás. E será logo após a ressurreição, onde os seus corpos humanos serão
restituídos com todos os seus sentidos, todos os seus órgãos e todas as suas
propriedades essenciais. Não serão, portanto, mais suscetíveis de certos atos
nem de certas funções. Para as lágrimas, em particular, se exigirá um
princípio físico de secreção que não mais existirá.46
Meu bom leitor, imagine todo esse sofrimento, sob as diversas influências
do fogo e das trevas, todos os horríveis remorsos e desesperos inúteis que
estarão diante dos olhos de um condenado. Aqueles mesmos olhos que por
tantas vezes e por tantos anos serviram para satisfazer o orgulho, a vaidade, a
avidez e todas as buscas pela luxúria.
E suas orelhas abertas aos discursos impudicos, às mentiras, às calúnias, ao
escárnio da impiedade! E sua língua, lábios e bocas como instrumentos de
tanta sexualidade, tantos discursos ímpios e obscenos, tantas gulodices!
E suas mãos que procuraram, que escreveram, que derramaram tantas
coisas detestáveis; que fizeram tantas más ações!
E seu cérebro, órgão de tantos milhões de pensamentos maldosos de todos
os gêneros!
E seu coração, tomado por uma depravada vontade e todas as suas más
afeições, apagar-se-á para sempre!
E seu corpo inteiro, a carne pela qual viveu a satisfazer desejos, paixões e
todas as concupiscências!
Tudo terá sua punição, seu tormento especial. Além disso, a pena geral da
danação; toda a maldição divina e o fogo vingador. Como é horrível!
E não é tudo. De fato, Santo Tomás acrescenta, assim como os Santos
Padres: «Na purificação última do mundo, será feita uma separação radical
nos elementos; tudo o que é puro e nobre subsistirá no céu para a glória dos
bem-aventurados, enquanto tudo o que é infame e imundo será lançado no
inferno para o tormento dos condenados.47 E assim, da mesma forma que
cada criatura será uma causa de regozijo para os eleitos, os condenados
encontrarão as causas dos tormentos em todas as criaturas». E isso será
acompanhado das Verdades contidas nas Sagradas Escrituras: «O universo
inteiro combaterá com o Senhor contra os insensatos», isto é, os condenados.
[Sb 5,20]
Enfim, para completar a exposição desse lúgubre estado da alma
condenada, acrescente o que Nosso Senhor declarou na fórmula da sentença a
ser dada no Julgamento Final, a saber: que os malditos e condenados, irão
queimar no inferno: «no fogo preparado para o demônio e seus anjos». Nas
ardentes profundezas do inferno, os condenados terão o suplício da execrável
companhia de Satanás e seus demônios.
Neste mundo encontra-se às vezes uma espécie de alívio por não se ser o
único a sofrer, mas na eternidade esta associação do condenado com os anjos
malvados e outros condenados será, ao contrário, um agravamento do
desespero, do ódio, dos sofrimentos da alma e das dores físicas.
Eis o pouco do que sabemos, pela revelação divina e pelos ensinamentos
da Igreja, sobre a multiplicidade de tormentos que serão, na outra vida, o
castigo dos ímpios, dos blasfemadores, dos impudicos, dos orgulhosos, dos
hipócritas e, em geral, de todos os pecadores obstinados e impenitentes.
Mas, acima de tudo, o que torna mais apavorante todas essas penas é o fato
delas serem eternas.

26Nunca é demais lembrar Sto. Agostinho: «Vós sois grande, Senhor, e altamente digno de louvor:
grande é o vosso poder, e a vossa sabedoria não tem medida. E o homem, pequena parcela de vossa
criação, pretende louvar-vos, precisamente o homem que, revestido de sua condição mortal, traz em si o
testemunho de seu pecado e de que resistis aos soberbos. A despeito de tudo, o homem, pequena
parcela de vossa criação, quer louvar-vos. Vós mesmo o incitais a isto, fazendo com que ele encontre
suas delícias no vosso louvor, porque nos fizeste para vós e o nosso coração não descansa enquanto não
repousar em vós.» – Confissões, I,1,1.
27 O caso ocorreu em 1636 e está relatado na autobiografia do padre Surin (Surin, Jean-Joseph;
Triomphe de l’amour divin sur les puissances de l’enfer: Et, Science experimentale des choses de
l’autre vie, Paris, J. Millon, 1990). O jesuíta foi tomado pela influência diabólica de uma maneira tão
violenta que acabou sendo considerado mentalmente desequilibrado e internado em um manicômio.
Somente depois de ser atormentado durante vinte anos, o padre Sorin voltou a levar uma vida normal.
Pode-se questionar o porquê de Deus ter permitido que um demônio o possuísse. Explica-nos o
sacerdote José Antonio Fortea sobre as possessões demoníacas: «Deus permite esse estranho fenômeno
por quatro motivos: 1. Mostra a verdade da religião Católica; 2. É a punição dos pecadores; 3. É o
benefício espiritual dos bons; 4. Produz saudáveis lições para os homens. (...) a possessão é como uma
janela aberta pela qual podemos nos somar ao mundo de ódio e sofrimento demoníaco. Uma janela
aberta pela qual podemos presenciar algo do poder invisível das naturezas angélicas.» (Fortea, José
Antonio; Svmma dæmoniaca: tratado de demonologia e manual de exorcistas. São Paulo, 2010, Palavra
& Prece – tradução de Ana Paula Bertolini – Questão 106; pp. 160).
28 Mc 9,48 «...onde o verme não morre e onde o fogo não se extingue.»
29 «O mal não tem substância, pois, se o fosse, seria um bem», Santo Agostinho, Confissões, VII,
12; cf. O Livre Arbítrio, III, c. 13, 36b-38
30 «As penas do inferno não são outras senão o ódio, a tristeza, a ira, a solidão, a melancolia, o
arrependimento e o sofrimento que produz a própria deformação do espírito; isto é a deformação de
todos os pecados que contém cada anjo caído. Se analisarmos os termos usados na Bíblia ao falar da
condenação, veremos termos de afastamento, do fogo do arrependimento, mas nunca termos de tortura
aplicada por parte de um Juiz. Ao falar da condenação a Bíblia nunca apresenta Deus como o
torturador. Usa termos impessoais, como fogo, trevas ou lago sulfuroso. A condenação, portanto, é o
afastamento de Deus e é a tortura que cada espírito aplica a si mesmo pela própria deformação
espiritual. Deus não criou os sofrimentos infernais; o inferno é fruto da deformação de cada espírito»
(Fortea, José Antonio; Svmma dæmoniaca: tratado de demonologia e manual de exorcistas. São Paulo,
2010, Palavra & Prece – tradução de Ana Paula Bertolini – Questão 95; pp. 119). cf. São Tomás de
Aquino, Suma Contra os Gentios, Capítulo CLXII.
31 O corpo ressuscitado será espiritual, porque estará totalmente submetido ao espírito, não porque
seja espírito, como queriam alguns que entenderam mal o texto citado (1 Cor 15,44), quer se tome por
espírito a substância espiritual, ou o ar ou o vento (cf. LXXXIV) – São Tomás de Aquino, Suma Contra
os Gentios, l. IV, cap. LXXXVI, p. 895-897. cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento,
Q. 97, art. 5, passim; São Gregório Magno, Diálogos IV; Santo Agostinho, Cidade de Deus, XXI, 10.
32 Período da História da França em que foi restaurada a monarquia, após a queda de Napoleão
Bonaparte (1814-1830).
33 Rigolo em francês quer dizer engraçado, i.e., «O capelão Engraçado».
34 Que pôs fim à Restauração para iniciar uma época bastante tumultuada na França e em toda a
Europa.
35 Acidente Vascular Cerebral.
36 Na versão francesa do Catecismo do Concílio de Trento: Parte I, § V, pp.44 (cf. nota “d”). Na
edição brasileira do Catecismo Romano (Frei Leopoldo Pires Martins, Vozes, 1951), encontra-se na
Parte I, § VI, p. 93. Porém, não há a frase «no centro da terra».
37 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 97, art. 7 - passim. cf. Santo
Agostinho, Cidade de Deus, XV, 16. Não há, na doutrina da Igreja, uma posição definitiva sobre o
assunto. Assim, não se pode dar como certa a indicação de um lugar específico para a localização do
inferno. No entanto, talvez seja mais importante o que nos lembra São João Crisóstomo: «Não devemos
perguntar onde fica o inferno, mas como dele vamos escapar» (Rom., hom. xxxi, n. 5, in P.G., LX, 674).
38 Lugar onde estavam as almas dos que morreram na Graça de Deus, antes da vinda de Nosso
Senhor Jesus Cristo. E, segundo a tradição da Igreja, também para aonde vão as das crianças que
morrem sem o batismo.
39 Sl 87, 5-6; Ecl 24, 45; Sb. 10, 13-14; cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte III, Q.
52, art. 5.
40 Fp 2, 10 – «...a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre nos céus, sobre a terra e
debaixo da terra, e que toda língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a glória de Deus Pai».
41 O paraíso na mitologia grega e romana; Elísio era uma parte do mundo subterrâneo e um lugar de
recompensa para os mortos virtuosos. Narra Homero no livro IV da Odisséia: Mas, quanto a ti,
Menelau, descendente de Zeus, o Destino / não determina morreres em Argos, nutriz de cavalos; / para
as campinas do Elísio, limite da terra, te enviam / os imortais, onde está Radamanto, de louros cabelos,
/ e onde a existência decorre feliz para todos os homens. / Lá não cai neve, nem longo é o inverno, nem
chove o ano todo, / mas de contínuo o de Zéfiro sopro de ruído sonoro / manda o oceano, que os
homens com branda bafagem refresque, / visto de Helena, marido tu seres e, assim, de Zeus genro.”
(Canto IV, 561-569 - versos em língua portuguesa por Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001); e Virgílio, no livro V da Eneida: Não no ímpio Tártaro, entre os manes tristes; / Moro sim, entre
os bons, no Elísio ameno (Op. Cit. versos 755-760).
42 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 97, art. 5.
43 Ibid., Q. 97, art. 4.
44 São Gregório Magno, Moralia in Job, livro IX, cap. XXX.
45 Vida de Santa Teresa de Jesus: escrita por ela própria. Edições Loyola, São Paulo, 1998 (Cap.
XXXII) – Tradução de Rachel de Queiroz.
46 Após a ressurreição, o «corpo agora corruptível tornar-se-á incorruptí-vel pela virtude divina» –
Santo Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Cap. LXXXV, II. cf. 1Cor 15,53.
47 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 74, art. 9.
CAPÍTULO III
SOBRE A ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO
É uma verdade de Fé revelada
O próprio Deus revelou para Suas criaturas a eternidade das penas que os
esperam no inferno, caso insistam em ser insensatas, perversas, ingratas e
inimigas de si para se revoltar contra as leis de Sua santidade e também de
Seu amor.
Reportemo-nos, caro leitor, aos numerosos testemunhos que já foram
citados no decorrer deste pequeno livro. Quase sempre lembrando a revelação
misericordiosa dessa salutar verdade que Ele se dignou a fazer aos nossos
primeiros pais. O Senhor nosso Deus fala da existência do inferno e da
eternidade de suas penas. Assim, pelos patriarcas Jó e Moisés, declara-nos
que no inferno «reina o eterno horror, sempiternus horror».48 O texto
original é mesmo muito forte. A palavra sempiternus quer dizer ‘para sempre
eterno’; é como se disséssemos: ‘eternamente eterno’.49
Pelo Profeta Isaías, repete-nos o mesmo ensinamento. E você não se
esqueceu desta terrível interpelação que se dirige a todos os pecadores:
«Quem dentre nós poderá manter-se junto aos braseiros eternos, cum
ardoribus sempiternis?» Aqui temos novamente o superlativo sempiternis.
No Novo Testamento a eternidade do fogo do inferno e suas penas retorna
a todo momento pela boca de Nosso Senhor, através dos escritos de Seus
Apóstolos. Aqui, mais uma vez relembremos, caro leitor, os excertos que
citamos. Lembrarei apenas de uma palavra de Nosso Senhor, que resume de
forma solene todas as outras, na sentença que decidirá nossa eternidade:
«Venham os benditos de meu Pai, receber a herança do Reino preparado para
vós desde a criação do mundo!» E aos condenados: «Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos». E
termina dizendo: «E irão estes para o castigo eteno, e os justos para uma vida
eterna, Et ibunt hi in supplicium aeternum, justi autem in vitam aeternarn».
Essas palavras do Filho de Deus dispensam comentários. Sob sua
luminosidade a Igreja, durante dezenove séculos, faz repousar Seu
ensinamento divino, soberano e infalível, a tocar a eternidade da beleza dos
eleitos no céu, e das penas dos condenados no inferno.
Portanto, a eternidade do inferno e sua terrível punição é uma verdade
revelada, uma verdade de fé católica, tão certa quanto a existência de Deus e
também dos outros grandes mistérios da religião cristã.
Sobre o inferno ser necessariamente eterno devido a natureza mesma da
eternidade
Há muito tempo que a fraqueza natural do espírito humano cede sob o peso
deste terrível mistério da eternidade das punições dos condenados. Já no
tempo de Jó e Moisés, dezessete ou dezoito séculos antes da Era Cristã,
certos espíritos fracos e certas consciências pesadas falavam da atenuação,
senão do fim das penas do inferno. Diz o livro de Jó: «Eles imaginam que o
inferno diminui e envelhece».50
Hoje, como sempre, esta tendência de atenuar e diminuir as penas do
inferno encontra advogados quase sempre interessados na causa. Mas eles se
enganam, pois suas hipóteses se baseiam apenas na imaginação, além de
serem diretamente contrárias às afirmações divinas de Jesus Cristo e Sua
Igreja. Em suma, partem de uma concepção absolutamente falsa da natureza
mesma da eternidade.
O inferno não terá fim e nem mesmo uma atenuação de suas penas, pois é
completamente impossível que isso possa acontecer. A natureza da eternidade
se opõe de maneira absoluta a estas hipóteses.
Com efeito, a eternidade não é como o tempo, que se compõe de uma
sucessão de instantes que se juntam uns aos outros para formar os minutos, as
horas, os dias, os anos ou os séculos. No tempo podemos mudar porque o
«tempo muda».51 Mas se não tivéssemos diante de nós o dia, as horas, ou os
minutos e segundos, não seria evidente que não poderíamos mudar de um
estado para outro? Ora, é isso o que acontece na eternidade: não há instantes
que sucedem outros instantes e que são todos distintos uns dos outros. A
eternidade é um modo de duração e de existência que nada tem em comum
com o que podemos viver na terra. Podemos conhecê-la, mas não
compreendê-la, pois é um mistério da outra vida; é uma verdadeira e
misteriosa participação na eternidade de Deus.
Como disse Santo Tomás, com toda a Tradição Católica, a eternidade é
«tudo ao mesmo tempo, tota simul».52 É um presente sempre atual,
indivisível e imutável. Na eternidade não há séculos acumulados sobre
séculos, nem milhões de séculos somados a outros milhões de séculos. Estas
são maneiras terrestres e totalmente falsas para se conceber o que é a
eternidade.
Então, repito: a natureza mesma da eternidade, que não se assemelha em
nada à sucessão de tempo, faz com que qualquer mudança seja impossível,
seja para o bem, seja para o mal. No tocante as penas do inferno, qualquer
mudança é, portanto, impossível. Assim, a interrupção ou mesmo uma
atenuação dessas penas constituiriam necessariamente em uma mudança e,
devemos concluir, com certeza absoluta, que as penas do inferno são
absolutamente eternas, imutáveis, e que esse sistema de atenuação é tão-
somente uma deficiência de espírito ou um capricho da imaginação e do
sentimento.
Talvez seja um tanto quando abstrato o que resumi aqui sobre a eternidade,
caro leitor. No entanto, quanto mais você refletir, mais aparente ficará a
verdade. Em todo caso, compreendamos ou não, vamos nos ater, neste
contexto, na clara e precisa afirmação que fazemos a Nosso Senhor Jesus
Cristo com toda a simplicidade e a certeza da lei: «Creio na vida eterna,
credo vitam aeternam», ou seja, na outra vida que será para todos nós imortal
e eterna. Para os bons, imortal e eterna nas bem-aventuranças do paraíso; para
os maus, imortal e eterna nas punições do inferno.
Um dia, Santo Agostinho, bispo de Hipona, ocupou-se a examinar, na
medida do seu poderoso espírito, a natureza da eternidade, onde a
benevolência e a justiça de Deus aguardam todas as criaturas. Ele procurou,
aprofundou-se no assunto. Às vezes ele se via e se sentia paralisado pelo
mistério. De repente, apareceu diante dele, em uma radiante luz, um ancião
que tinha uma feição venerável e resplandecente de glória. Era São Jerônimo,
que havia acabado de morrer naquele mesmo momento, bem longe dali, em
Belém. E, enquanto Santo Agostinho olhava com espanto e admiração para a
imagem celeste que aparecia diante de si, disse-lhe o venerável ancião: «os
olhos do homem não podem ver, os ouvidos do homem não podem ouvir e o
espírito do homem jamais poderá conceber o que procuras compreender». Em
seguida, desapareceu. [1Cor 2,9] [Is 64,3] [Jr 3,16] [Sl 19,4] [Eclo 1,10]
Eis o mistério da eternidade, seja no céu, seja no inferno. Creiamos
humildemente e aproveitemos bem o tempo nesta vida, a fim de que, quando
a nós chegar o fim desta vida terrena, sejamos admitidos na boa eternidade.
E, pela misericórdia de Deus, evitemos a outra.
Mais uma razão para a eternidade das penas: o vazio de Graça
No momento em que o condenado teria tempo para poder mudar, para se
converter e obter a misericórdia, ele não o aproveita. Por que será? Porque ele
sempre carrega a causa que dá suporte aos castigos. Esta causa, que é o
pecado, é o mal que ele mesmo escolheu para sua vida na terra. O condenado
é o pecador impenitente, inconversível. Por mais tempo que tivesse, não seria
suficiente para que, de fato, se convertesse. Muito bem, infelizmente o
veremos apenas neste mundo.
Acontece que vivemos no meio de pessoas que o bom Deus aguarda
durante dez, vinte, trinta, quarenta anos ou mais. Mas para se converter
também é necessário o Estado de Graça.
Não há conversão possível sem o dom essencialmente gratuito da Graça de
Jesus Cristo, que é o remédio fundamental para o pecado. Este é o primeiro
princípio da ressurreição das pobres almas que o pecado separou de Deus,
jogando-as na morte espiritual. Jesus Cristo disse: «Eu sou a ressurreição e a
vida»; é pelo dom da Sua Graça que Ele ressuscita as almas mortas e as
mantém seguindo em vida. [Jo 11,24]
No entanto, na Sua sabedoria onipotente, esse Soberano Senhor conduz
quem está nesta vida, que é o único tempo de nossa provação. Sua Graça nos
será dada para que evitemos a morte no pecado, fazendo-nos crescer na vida
como filhos de Deus. No outro mundo, não há mais tempo para a Graça e
nem para as provações, pois é o tempo da recompensa eterna para aqueles
que corresponderam à Graça vivendo de forma cristã. É o tempo das punições
eternas para aqueles que recusaram a Graça, vivendo e morrendo no pecado.
Esta é a ordem da Providência, a qual ninguém mudará.
Então, na eternidade não haverá mais a Graça para os pecadores
condenados. Assim, sem a Graça, é absolutamente impossível arrepender-se
de forma eficaz, afinal ela é necessária para obter o perdão, e se o perdão não
é possível, a causa do castigo subsistirá para sempre. Em conseqüência,
sendo o castigo nada mais do que o efeito do pecado, da mesma forma
perdurará.
Sem a Graça, não há arrependimento; sem arrependimento, não há
conversão; e sem a conversão, não há perdão; assim, também não há a
possibilidade de se atenuar e nem que sejam cessadas as penas. Não parece
racional?
O rico malvado do Evangelho não se arrepende no fogo do inferno, pois
em nenhum momento diz: «Eu me arrependo!» Sequer assume: «Eu pequei!»
Diz tão-somente: «Sofro terrivelmente nestas chamas!» É o choro da dor e do
desespero, e não o choro do arrependimento. Ele não sonha em implorar o
perdão, pensa apenas em si e em seu alívio.
O egoísta pede em vão uma gota de água para que possa se refrescar. Esta
gota de água é o toque da Graça que o salvará. Ora, responderam-lhe que isto
é impossível. A razão é porque ele detesta o castigo, não a culpa. Esta é a
terrível história dos condenados! Aqui na terra, a Cidade de Deus e a Cidade
de Satanás estão misturadas por uma grande confusão, por isso ainda
podemos passar de uma a outra. Uma pessoa boa pode se tornar má e uma má
pode se tornar boa. Mas tudo isso cessará no momento da morte. Então, as
duas cidades serão separadas irrevogavelmente, como diz o Evangelho. Não
será mais possível passar de uma a outra, passar da Cidade de Deus para a
Cidade de Satanás; do paraíso para o inferno e nem do inferno para o
paraíso.53 Nesta vida tudo é imperfeito, tanto o bem quanto o mal. E nada é
definitivo. A Graça de Deus nunca foi negada a ninguém, e enquanto
estivermos neste mundo sempre nos é possível escapar do mal, do império do
demônio, da morte no pecado. Porém, como já dissemos, tudo isso pertence à
vida presente, e quando um pobre homem, no estado de pecado mortal, dá o
seu último suspiro, tudo muda de face: a eternidade sucede o tempo e os
momentos de Graça e de provação não mais existem. Assim, a ressurreição
da alma não é mais possível, e a árvore que tombou à esquerda permanecerá à
esquerda.
Portanto, a sorte dos condenados está para sempre lançada. Nenhuma
mudança, nenhuma atenuação, nenhuma suspensão ou interrupção de suas
penas será possível. Não se perderá apenas o tempo, mas também a Graça.
Terceira razão da eternidade das penas: a depravação da vontade dos
condenados
Após a morte, a vontade dos condenados fica petrificada no pecado e no
mal. Mas o que pode ser feito nesta vida para que um pecador se converta?
Em primeiro lugar, como fora dito, há o tempo e a Graça que o bom Deus
sempre lhe dá. Mas assim é porque ele é livre e pode, com sua vontade, por
uma escolha, voltar para o lado de Deus. É por um ato de livre vontade que o
pecador se desvia de seu Deus. Da mesma forma, também por um ato de livre
vontade, através da Graça desse Deus tão bondoso, o pecador muda o
caminho, arrepende-se, e o pobre filho pródigo retorna perdoado à casa
paterna.
Todavia, no momento da morte, perde-se também a liberdade e a Graça.
Acaba-se para sempre. Não se trata mais de escolher, mas de permanecer
naquilo que se escolheu. Escolhendo-se o bem e a vida, você possuirá para
sempre o bem e a vida. Mas se for uma escolha estúpida pelo mal e pela
morte, você terá a morte. E a terá para sempre, pois receberá apenas aquilo
que desejou. Esta é a eternidade das punições.
Há ainda hoje, no palácio de Versailles, o quarto onde morreu Luis XIV,
no dia primeiro de setembro de 1715. Lá se encontra a mesma mobília e, em
particular, o mesmo relógio de pêndulo. Em respeito à morte do grande rei,
parou-se o relógio na hora exata em que ele deu seu último suspiro, às quatro
horas e trinta e um minutos. Depois disso, ninguém jamais o tocou. Eis que
há séculos os ponteiros imóveis marcam quatro horas e trinta e um minutos.
É uma imagem impressionante da imobilidade, onde entra e permanece a
vontade do homem no momento em que ele deixa esta vida.
A vontade do pecador condenado permanece necessariamente a mesma no
momento de sua morte. Da forma como é imobilizada, ela é eterna, se assim
podemos dizer. O condenado quer sempre e necessariamente o mal que
praticou, diz São Bernardo. O mal e o condenado formam apenas um, como
um pecador vivente, permanente e imutável.
Assim como os bem-aventurados vêem a Deus através de Seu amor e
amam-n’O necessariamente, os condenados vêem a Deus através das
punições de Sua justiça e odeiam-n’O necessariamente. Não é com uma
justiça rigorosa que uma punição imutável golpeia uma perversidade também
imutável? E que uma pena eterna pune uma vontade eternamente fixada no
mal, eternamente desviada de Deus pela revolta e pelo ódio? Uma vontade
que se estabelece para sempre no pecado?
Do que temos dito, assim como o que diremos adiante, resulta
evidentemente que, no inferno, os condenados não terão nem o tempo, nem a
Graça e nem a vontade de se converter. Jamais poderiam ser perdoados e, por
isso, deverão sofrer um castigo imutável e eterno.
Desta forma, e como conseqüência rigorosa, as penas do inferno, além de
não terem fim, também não podem ser suscetíveis dessas reduções ou
atenuações que se quer pretender.
Se é verdade que Deus seja injusto punindo com castigos eternos as faltas
de um momento
Esta objeção é bastante antiga, arrancada às consciências corrompidas pelo
medo. Desde o quarto século, o ilustre arcebispo de Constantinopla, São João
Crisóstomo, um dia a colocou nesses termos: «Há quem diga: eu tive apenas
alguns instantes para matar um homem ou cometer um adultério, e por um
pecado que dura um instante terei de sofrer as penas eternas? Certamente,
porque o que Deus julga nos pecados, não é o tempo necessário para que ele
seja praticado, mas a vontade que o fez cometê-lo».
O que dissemos anteriormente já é suficiente para afastar a sombra de uma
dificuldade. A conversão e a mudança são absolutamente impossíveis no
inferno. Pela falta de tempo, pela falta da Graça e pela falta de vontade, a
causa da punição subsiste eternamente e de forma total, devendo, por uma
reta justiça, produzir eternamente seu efeito. Não há nada a dizer a respeito,
senão que é a pura justiça.
Mas você ainda acha injusto que Deus puna com um castigo eterno os
crimes de um instante? Olhe então o que se passa todos os dias na sociedade
humana. Todos os dias ela pune com a morte os assassinos, os parricidas, os
incendiários, etc. Todos eles perpetraram seus crimes em apenas alguns
minutos. Quem ousará dizer que essas punições são injustas? Ora, o que são
as penas de morte na sociedade humana? Não é uma pena perpétua, uma pena
sem retorno, sem possibilidade de atenuação? Esta pena de morte priva para
sempre da sociedade dos homens, como o inferno priva para sempre da
sociedade de Deus. Por que seria diferente para os crimes de lesa-majestade
divina, isto é, para os pecados mortais?54
Mas o tempo não significa nada no peso moral do pecado. Como nos disse
São João Crisóstomo, não é a duração do ato culpado que é punida no inferno
com um castigo eterno, mas a malvadez da vontade que fez o pecador agir, e
que a morte virá consolidar. Esta perversidade permanecerá para sempre no
castigo que a ela se ligará eternamente. Longe de ser injusto, é o que há de
mais justo e também necessário. A santidade infinita de Deus não deve
afastar-se eternamente de um ser que vive em um estado eterno de pecado?
Ora, assim se dá com o condenado no inferno.
Além disso, quem refletir seriamente observará que o pecado mortal tem
duas características: a primeira, que é essencialmente finita, é o ato de livre
vontade que, pecando, viola a lei de Deus; a segunda, que é infinita, é o
ultraje feito à santidade e à majestade infinita de Deus. Por este lado, o
pecado tem, de alguma maneira, uma malícia infinita. «Quamdam
infinitatem»,55 disse Santo Tomás. Ora, a pena eterna responde de uma
maneira exata a essas características finita e infinita do pecado. Ela mesma é
finita e infinita: finita em intensidade e infinita e eterna na duração; finita
quanto à duração do ato e à malícia da vontade daquele que pecou. O pecado
é punido por uma pena mais ou menos considerável, mas sempre finita em
intensidade. É infinita em relação à santidade Daquele que foi ofendido.
Assim, o condenado é punido por uma pena infinita em duração, ou seja, será
uma pena eterna.
Novamente: nada é mais lógico, nada é mais justo do que as penas eternas
que punem, no inferno, o pecado e o pecador.
O que não seria justo é que todos os condenados tivessem de sofrer a
mesma pena. Com efeito, é evidente que não são todos igualmente culpados,
mas todos estão igualmente em estado de pecado mortal; merecem, portanto,
penas eternas. Mas não são todos culpados em um mesmo grau e a
intensidade dessa pena eterna é exatamente proporcional ao número e a
gravidade das faltas cometidas por cada um. Portanto: a justiça perfeita é a
justiça infinita.
Outra observação impressionante: se as penas impingidas ao pecador
impenitente, condenado ao inferno, tivesse um fim, seria ele, e não Nosso
Senhor, quem teria a última palavra na sua luta sacrílega contra Deus. Então,
poderia dizer a Deus: «Perdi o meu tempo e Você também. Mas que o seu
seja curto ou longo, no final prevalecerei sobre Você, pois serei o senhor da
situação e um dia, queira ou não, partilharei de Sua glória e bondade eterna
no céu!» Seria isto possível? Então, mais uma vez, deste ponto de vista,
independente das razões definitivas que já expusemos, a justiça e a santidade
divina requerem necessariamente que os castigos dos condenados sejam
eternos.
Mas e a bondade de Deus? – talvez questione-se. A bondade de Deus nada
pode fazer em relação a isso. O inferno é o reino de Sua justiça, tão infinita
quanto Sua bondade. Deus exerce Sua bondade na terra, onde por ela tudo
perdoa quando há arrependimento. Na eternidade, não há como a bondade ser
exercida; tem apenas de coroar nas alegrias do céu a Sua obra realizada na
terra através do perdão.
Por acaso quereria você que, na eternidade, Deus exercesse a Sua bondade
em face de pessoas que foram indignas e abusadas na terra? Pessoas que
sequer desejaram a Graça no momento da morte e que, agora, não a desejam
e não podem mais desejá-la? Isso seria simplesmente um absurdo. Da parte
de Deus, a bondade não pode ser exercida às custas da justiça.
Desta forma, punindo com penas eternas as faltas passageiras, longe de ser
injusto, Deus não está apenas sendo justo, mas muito justo!
Se assim também é para os pecados de fraqueza
Sem querer justificar os pecados de fraqueza, dos quais os bons cristãos se
fazem muitas vezes culpados, é preciso reconhecer que há um abismo entre
estes que os cometem, e àqueles que as Escrituras Sagradas chamam
geralmente de «pecadores». Os pecadores são os que têm as almas perversas,
os corações impenitentes que já estão habituados a fazer o mal sem qualquer
remorso, como se fosse uma coisa simples. Além disso, são estes que vivem
afastados de Deus, em uma revolta permanente contra Jesus Cristo. São,
portanto, os pecadores propriamente ditos, os pecadores profissionais.
«Continuam a pecar porque não deixaram de viver; e gostariam que a vida
não tivesse fim apenas para poder seguir pecando para sempre. Para estes,
uma vez que estejam mortos, a justiça do Soberano Juiz exige, de forma
evidente, que jamais fiquem sem castigos, a considerar que nunca desejaram
uma vida sem pecados enquanto viveram», afirma São Gregório.56
Não têm tal disposição os que pecam por fraqueza. Pois há um grande
número de pobres almas que caem no pecado mortal; contudo, não são nem
malvadas nem corrompidas, nem ao menos ímpias: fazem o mal por acaso,
devido uma falta de atenção. E é tão-somente a fraqueza que os faz cair, não
o amor pelo mal. São como uma criança que é arrancada dos braços de sua
mãe pela violência ou pela sedução; que se deixam separar e dela se afastar,
mas sempre com arrependimento, sem perdê-la de vista e como que
estendendo-lhe os braços. Livrada da sedução, retorna e lança-se, feliz e
arrependida, de volta aos braços da sua boa mãe.
São estes os pobres pecadores de ocasião, que não amam o mal que
cometem, cuja vontade não está totalmente corrompida. Submetem-se ao
pecado ainda que não o procurem; arrependem-se a tempo de o abandonarem.
Tais pecados não são mais desculpáveis? E como a adorável misericórdia do
Salvador não concederia, sobretudo no momento decisivo da morte, as
grandes graças do arrependimento e do perdão aos seus filhos pródigos que,
ainda tendo-O ofendido, nunca Lhe viraram as costas, e que, ainda que
tenham se deixado conduzir para longe d’Ele, não O perderam do olhar e do
desejo?
Foi Deus quem disse: «quem vem a mim eu não o rejeitarei». E quem a Ele
vai sempre encontrará no Seu divino coração os segredos das graças e
misericórdias, suficientes para tirar essas pobres almas da condenação eterna.
[Jo 6,37]
Mas, digamos bem alto, este é um segredo do coração de Deus, um
segredo impenetrável às criaturas, sobre o qual não é preciso compreender
totalmente, pois deixa subsistir de forma integral esta terrível doutrina, que é
de fé, a saber que todo homem que morre no estado de pecado mortal está
condenado eternamente, e será enviado para o inferno para as punições que
merecem suas faltas.
Para concluir: que os espíritos sutis e as ‘almas sensíveis’, que procuram
evasivas ao invés de simplesmente crer e se santificar, tranquilizem-se ao
pensar nos condenados. A justiça, a bondade e a santidade de Nosso Senhor
farão sempre o melhor, seja no inferno, seja no purgatório. Não terá sequer
sombra ou possibilidade da injustiça. Todos os que estiverem no inferno
merecerão lá estar e ficar para sempre. Quão terríveis eles puderem ser, suas
penas serão absolutamente proporcionais às suas faltas. Não será como os
tribunais, as leis e os juízes da terra, que podem cometer erros e injustiças,
punindo além do merecido, ou pouco demais. O Juiz Eterno e Soberano,
Jesus Cristo, tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Ele é mais do que justo, é a
própria justiça. Na eternidade, como Ele mesmo declarou, «retribuirá a cada
um segundo suas obras», nem mais nem menos. [Jó 34,11] [Pr 24,12] [Eclo
16,13] [Is 59,18] [Rm 2,6] [Hb 11,6] [1Pd 1,17] [Ap 22,12]
Desta forma, por mais apavorante e incompreensível que seja ao espírito
humano, as penas eternas do inferno são e serão soberanas e eternamente
justas.
Quem são os que tomam o caminho do inferno?
São principalmente os homens que abusam da autoridade, de uma ordem
qualquer, para guiar seus subordinados no mal, seja pela violência, seja pela
sedução. «Um julgamento severo» lhes espera. Verdadeiros satanases da
terra, é a eles que se dirige a terrível palavra da Escritura: «Como caíste do
alto dos céus, ó Lúcifer?» [Is 14,11 sq]
São todos aqueles que abusam dos dons do Espírito para desviar as pessoas
do ofício de Deus, para lhes arrancar a fé. Esses corruptores públicos são os
hereges, os fariseus do Evangelho, e sob eles caem este anátema do Filho de
Deus: «Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque bloqueais o Reino
dos céus diante dos homens. Pois vós mesmos não entrais, nem deixais entrar
os que querem. Aí de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que o percorreis o
mar e a terra para fazer um prosélito, mas, quando conseguis conquistá-lo,
vós os tornais duas vezes mais digno da geena do que vós!» A esta categoria
pertencem os jornalistas ímpios, os professores de ateísmo e heresia, e essa
turba de escritores sem fé e sem consciência que, a cada dia, mentem,
caluniam, blasfemam conscientemente, e de quem o demônio, pai da mentira,
serve-se para corromper as almas e insultar a Jesus Cristo. [Mt 23,13]
São os orgulhosos que, cheios de si, menosprezam aos outros, lançando-
lhes impiedosamente as pedras. Homens impiedosos e sem coração que, se
não se converterem até o momento de suas mortes, irão encontrar um Juiz
também impiedoso. [cf. Jo 5,19-47]
São os egoístas, os ricos maus que, afogando-se na busca do luxo e da
sensualidade, pensam apenas em si mesmos e esquecem dos pobres.
Testemunha o rico mau do Evangelho, que o próprio Deus disse ter sido
«sepultado no inferno». [Lc 16,22]
São os avarentos que só pensam em amontoar riquezas e esquecem Jesus
Cristo e a eternidade. Esses homens de dinheiro que, por meio de negócios
escusos, de injustiças e fraudes acumuladas, fazem ou fizeram suas fortunas,
grandes ou pequenas, nas bases que a lei de Deus reprova. A eles está escrito
que «não herdarão o Reino dos céus». [Gl 5,21]
São os voluptuosos que vivem tranqüilamente, sem remorsos, com seus
hábitos impudicos, que se entregam a todas as paixões, à satisfação grosseira
dos sentidos e terminam por não mais conhecer outra felicidade senão os
prazeres animais.
São as almas mundanas, frívolas, que só pensam em se divertir, a passar o
tempo de forma tola, as pessoas ‘honestas’ segundo o mundo, que esquecem
a oração, o ofício de Deus, os sacramentos da salvação. Eles não têm
interesse na vida cristã; sequer pensam nas suas almas e vivem em estado de
pecado mortal. A lâmpada é apagada de suas consciências, sem que isso os
deixe preocupados. Se o Senhor vem inesperadamente, como Ele mesmo
anunciou, entenderão a terrível resposta dirigida, no Evangelho, às virgens
tolas: «Não vos conheço».57 Ai do homem que não está coberto com a veste
nupcial! O Soberano Juiz ordenará aos Seus Anjos para prender, no momento
da morte, «o servidor inútil», para lançá-lo, com os pés e as mãos amarradas,
nas trevas exteriores, isto é, no inferno! [Mt 22]
Os que vão para o inferno têm as consciências falseadas e tortuosas, que
tratam com despeito, com más confissões e comunhões sacrílegas, o Corpo e
o Sangue do Senhor; como aquele «que come e bebe a própria condenação»,
segundo a terrível palavra do Apóstolo Paulo. São pessoas que, abusando da
graça de Deus, encontram um meio de serem maus nos meios mais
santificantes; são os corações odientos que se recusam a perdoar. [1Cor
11,29]
São, enfim, os sectários da franco-maçonaria e as vítimas insensatas das
sociedades secretas que se consagram, por assim dizer, ao demônio, fazendo
o juramento de viver e morrer fora da Igreja, sem sacramentos, sem Jesus
Cristo e, por conseqüência, contra Jesus Cristo.
Não digo que todas essas pobres pessoas vão, indubitavelmente, para o
inferno. Digo que eles irão, isto é, que estão a caminho. Felizmente, a eles,
ainda não chegaram ao seu destino. E espero que, antes do fim da viagem,
prefiram antes se converter humildemente do que queimar pela eternidade.
Que horror! O caminho que conduz ao inferno é tão largo, tão cômodo!
Afinal, é uma descida, por isso basta deixar-se ir. Nosso Salvador disse-nos
com todas as letras: «largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E
muitos são os que entram por ele». [Mt 7,13 + Eclo 21,10]
Faça um exame de consciência, caro leitor. E se, Deus nos livre, você se
encontrar neste caminho e querer retroceder, pela graça, não hesite e com
coragem abandone o quanto antes a via que conduz ao inferno. Abandone-a
enquanto ainda é tempo!
Se podemos ter certeza da condenação de alguém que vemos morrer mal
Não, só Deus pode saber.
Há pessoas que enviam todo mundo para o inferno, assim como também há
aquelas que enviam todo o mundo para o céu. Os primeiros se imaginam
justos; os segundos se crêem caridosos. Ambos se enganam. O erro principal
é querer julgar as coisas que não estão dadas ao homem conhecer.
Vendo alguém morrer mal, devemos tremer, sem dúvida! E não se pode
dissimular a probabilidade de uma reprovação eterna. Foi assim que, em
Paris, alguns anos atrás, uma infeliz mãe, ao saber da morte do filho em
circunstâncias terríveis, permaneceu por dois dias, de joelhos, arrastando-se
de um lado para o outro, a soltar gritos de desespero, repetindo
constantemente: «Minha criança! Minha pobre criança!... no fogo!...
queimando, queimando eternamente!» Foi horrível de ver e ouvir.
No entanto, ainda que possa ser provável ou certa a perda eterna de
alguém, a certeza repousa somente no impenetrável mistério do que acontece
no momento supremo, entre a alma e Deus. Não é preciso desespero. Pois
quem pode dizer o que se passa no fundo das almas, até mesmo das culpadas,
no instante único onde o Deus da bondade faz, necessariamente para salvar
algumas delas, seu último esforço de graça e misericórdia? Deus, que criou
todos os homens por amor, redimiu-os com Seu próprio sangue e quer salvar
a todos eles; e é preciso tão pouco tempo para querer se voltar ao bom Deus!
[cf. 1Tm 2,4 + Ez 18,23]
Por isso, a Igreja não tolera que se pronuncie, como certeza, a danação de
quem quer que seja. Isto seria, de fato, querer usurpar o lugar de Deus. Salvo
Judas e mais alguns outros, cuja reprovação é mais ou menos revelada de
forma explícita por Deus nas Sagradas Escrituras, a condenação de ninguém
é absolutamente certa.
A Santa Sé disso deu uma prova curiosa, não há muito tempo, na ocasião
do processo de beatificação de um grande servidor de Deus, o padre Palotta,
que viveu e morreu em Roma nos sentimentos de uma admirável santidade
sob o Pontificado de Gregório XVI.
Um dia o santo padre acompanhava o último suplício de um assassino da
pior espécie, que recusava obstinadamente a se arrepender, zombava de Deus,
blasfemava e gargalhava até sobre o cadafalso. O padre Palotta tinha
esgotado todos os meios para tentar convertê-lo. Subira no cadafalso, ao lado
do infeliz, e caiu de joelhos com o rosto banhado em lágrimas, suplicando-lhe
para que aceitasse o perdão dos seus crimes, mostrando-lhe o abismo do
inferno no qual estava prestes a cair. A tudo isto, o monstro respondera com
um insulto e uma última blasfêmia. E sua cabeça veio tombar pela lâmina
fatal.
Na exaltação de sua fé, da sua dor e indignação, e também para que esse
terrível escândalo se transformasse em uma lição salutar para a multidão que
o assistia, o santo padre se levantou e, pelos cabelos, ergueu a cabeça
ensanguentada do executado, mostrando-na à multidão: «Aqui está – gritou a
toda voz –; olhem bem: eis a face de um réprobo!»
Decerto que esse impulso de fé era concebível – e de certo modo
admirável. No entanto, dizem ter sido o motivo que fez parar o processo de
beatificação do venerável padre Palotta. Tão logo a Igreja é a Mãe de
misericórdia, ela sempre tem esperança quando se trata de salvar uma alma.
Isto é o que talvez possa trazer alguma consolação aos verdadeiros cristãos
quando presenciam certas mortes assustadoras, repentinas e imprevistas, ou
mesmo as precisamente más. A julgar pelas aparências, essas pobres almas
estão de fato perdidas: «Há tantos anos que esse velho homem vivia longe
dos sacramentos, zombava da religião, mostrava descrença! Ou um pobre
rapaz que morreu sem poder reconhecer-se, comportando-se tão mal com
modos tão deploráveis! Esse homem, esta mulher foram surpreendidos pela
morte em um momento muito ruim, e parece tão certo que não tiveram tempo
de se voltar para si mesmos!» Pouco importa! Não devemos e não podemos
dizer de forma absoluta que eles foram condenados. Sem afrouxar os direitos
da santidade e da justiça de Deus, não percamos de vista a Sua misericórdia.
Sobre esta questão eu me lembro de uma história tão extraordinária e, ao
mesmo tempo, muito consoladora. A fonte da qual colhi garante a sua
autenticidade.
Num dos melhores conventos de Paris ainda vive uma religiosa de origem
judaica, distinta pelas suas virtudes e por sua inteligência. Seus pais eram
judeus e, não sei como, aos vinte anos ela se converteu ao catolicismo e
recebeu o batismo. Sua mãe era uma fervorosa judia que levava a sua religião
muito a sério, e também praticava todas as virtudes de uma boa mãe de
família. Ela amava a filha com paixão, e por isso ficou furiosa quando
descobriu que ela havia se convertido. A partir desse dia foi um massacre
ininterrupto de ameaças e artifícios de todos os gêneros para reconduzir a
‘apóstata’, assim lhe chamava, à religião de seus pais.
Por sua vez, a jovem cristã, cheia de fé, rezava sem parar e fazia tudo para
que sua mãe também se convertesse ao cristianismo.
Vendo a esterilidade de seus esforços, e pensando que, mais do que todas
as preces, um grande sacrifício alcançaria a graça solicitada, decidiu-se por se
entregar inteiramente a Jesus Cristo. Corajosamente, tornou-se religiosa.
Tinha aproximadamente vinte e cinco anos, para a infelicidade de sua mãe
que, cada vez mais indignada, colocava-se contra a sua filha e contra a
religião cristã. Mas isso só fazia aumentar ainda mais a devoção da jovem, no
intuito de conquistar mais uma preciosa alma a Deus.
E assim continuou durante vinte anos. De tempos em tempos, visitava sua
mãe e percebia que a afeição maternal pouco a pouco ia se renovando, porém,
ao menos em aparência, espiritualmente não havia nenhum progresso.
Mas um dia a pobre religiosa recebeu uma carta comunicando o
falecimento de sua mãe. Havia sido uma morte súbita; encontraram-na já sem
vida em sua cama.
Impossível descrever o desespero daquela jovem que, sofrendo a perda da
mãe, já não sabia mais o que fazer, tampouco o que dizer. Ainda com a carta
em mãos, lançou-se ao pé do Santíssimo Sacramento. Quando os soluços lhe
permitiam pensar e falar, gritou a Nosso Senhor: «Meu Deus! É assim que
vós acolhestes as minhas súplicas, as minhas lágrimas e tudo o que fiz nestes
vinte anos?» E enumerou-Lhe, por assim dizer, sacrifícios de todos os
gêneros aos quais se entregou, e com uma inexprimível angústia lamentou-se:
«E pensar que, apesar de tudo isso, minha mãe… minha pobre mãe é
condenada!»
Ainda não tinha terminado a frase quando uma voz surgia do Tabernáculo,
dizendo-lhe de forma severa: «O que sabes tu?» Aterrorizada, a pobre irmã
restava perplexa quando a voz do Salvador acrescentou: «Saibas que, para
confundir-te e ao mesmo tempo confortar-te, por tua causa dei a tua mãe, no
momento supremo, uma graça tão poderosa de luz e de arrependimento que
suas últimas palavras foram: ‘eu me arrependo e morro na religião da minha
filha’. Ela foi salva. Está no purgatório. Não deixes de rezar por ela».
Conheço outros tantos fatos análogos. Seja qual for a autenticidade de cada
um em particular, todos dão testemunho de uma grande e doce verdade, que é
saber da abundante misericórdia de Deus neste mundo; saber que no
momento derradeiro, pela Sua misericórdia, faz um esforço supremo para
arrancar os pecadores do inferno; em suma, que somente caem nas mãos da
eterna justiça aqueles que até o fim recusaram os avanços da misericórdia.

48 Jó 10,22 – na Vulgata: «Terram miseriæ et tenebrarum ubi umbra mortis et nullus ordo et
sempiternus horror inhabitans.»
49 No hebraico (idioma-fonte da Vulgata), uma das maneiras de se formar o superlativo é usar uma
perífrase; neste caso, a repetição do mesmo termo por várias vezes, p. ex.: séculos dos séculos; cânticos
dos cânticos; Santo, Santo, Santo; etc.
50 Não há no judaísmo uma doutrina específica sobre o inferno, embora os judeus afirmem a crença
na imortalidade da alma. Porém, a partir da fé na ressurreição (Is 66,24-26 e Dn 12,2), passou-se a
acreditar que, após a morte, havia um lugar de glória para os justos e outro infame, onde os ímpios
serão castigados. Atualmente, a doutrina judaica orienta priorizar a vida presente, com a obediência à
lei moral, por considerar que a vida após a morte está além do alcance do conhecimento humano.
51 «A noção da eternidade resulta da imutabilidade, como a de tempo resulta do movimento», Santo
Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte I, Q.10.
52 «A eternidade não é outra coisa senão Deus», ibid.
53 Lc 16,26 «E de mais, que entre nós e vós está firmado um grande abismo: de maneira que os que
querem passar daqui para vós, não podem; nem os daí passar para cá.»
54 Na França, a pena de morte só fora abolida em setembro de 1981, com a aprovação de um
projeto do então Ministro da Justiça, Robert Badinter, na Assembléia Nacional. Havia anos ele
encampava uma campanha contra a pena capital.
55 «Ademais, o pecado cometido contra Deus, tem uma certa infinitude (quamdam infinitatem) por
razão da majestade infinita de Deus: a ofensa é tão mais grave quanto maior a dignidade da pessoa
ofendida». Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIIa pars, Q. 1, artigo 2.
56 São Gregório Magno, Moralia in Job, livro XXXIV, cap. IX.
57 Mt 25 – Parábola das dez virgens: «Vigiai, portanto, porque não sabeis nem o dia nem a hora».
CAPÍTULO IV
CONCLUSÕES PRÁTICAS
Sair imediatamente, e a qualquer preço, do estado de pecado mortal
Quais conclusões práticas podemos tirar de tudo o que dissemos até então,
meu bom leitor? Essas verdades eminentes nos são reveladas por Deus
apenas para nos inspirar fortemente o temor que, com a fé, formam a base da
salvação.58 Temor da justiça e dos julgamentos de Deus; temor do pecado
que conduz ao inferno; temor desta maldição e condenação terríveis, dos
desesperos sem fim, do fogo sobrenatural que penetra ao mesmo tempo o
corpo e a alma; temor das sombrias trevas, desta horrível sociedade de
Satanás e dos demônios; enfim, o temor da eternidade imutável de todas essas
penas que são o justo e merecido castigo dos réprobos.
Decerto, é muitíssimo bom ter uma confiança desmedida na misericórdia.
Mas à luz da verdadeira fé, a esperança não deve estar separada do temor. E
se a esperança deve alguma vez dominar o temor, é na condição de que o
temor subsista como se fossem os fundamentos de uma casa que dá força e
solidez a todo um edifício. Assim, o temor da justiça de Deus, o temor do
pecado e do inferno deve afastar toda a vã presunção59 do nosso edifício
espiritual. O mesmo Deus que disse: «quem vem a mim eu não o rejeitarei»;
disse também: «operai a vossa salvação com temor e tremor». É preciso
temer santamente para ter o direito ao santo dom da fortaleza. [Jo 6,37] [Fl
2,12]
Diante dos abismos escaldantes do inferno, volte-se a si, caro leitor. Volte
a si mesmo, profunda e seriamente! Onde você se encontra? Você está em
estado de graça? Não há, na sua consciência, algum pecado grave que, acaso
você venha morrer de forma inesperada, possa comprometer a sua
eternidade? Acaso tenha, creia-me, não hesite em arrepender-se com todo o
seu coração. Depois, vá se confessar hoje mesmo, ou seja, o mais rápido
possível. É preciso dizer, em face do inferno, que todo interesse deva passar
bem longe de lá? Ou que é preciso, antes de tudo, assegurar a sua salvação?
Nosso Senhor nos pergunta: «A que servirá o homem ganhar o mundo
inteiro, mas arruinar a sua vida? O que poderá dar o homem em troca de sua
vida?» [Mt 16,24 + Mc 8,36 + Lc 9,25]
Diz o dito: não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje! Afinal,
você tem certeza de que terá um amanhã?
Certa vez, numa pequena cidade da Normândia, conheci um pobre homem
que, após seu casamento, ou seja, depois de trinta anos, tinha-se deixado
levar pelos negócios, um pequeno comércio, e, aos poucos, é preciso dizer,
foi tomando gosto pelos cabarés e também pela bebida. Tudo isso acabou
fazendo com que ele se esquecesse por completo do ofício de Deus, mas não
era uma pessoa má, longe disso.
Tempos depois, por duas vezes fora atacado com problemas de saúde, mas
infelizmente, insuficientes para que ele se corrigisse.
Aproximavam-se as festas de Páscoa daquele ano e, numa noite, o padre de
sua paróquia o encontrou, não se furtando a falar-lhe com toda a franqueza.
«Padre – respondeu –, agradeço a sua boa vontade. Prometo que irei pensar
em tudo o que o senhor me disse, dou a minha palavra! E, se não se
incomodar, irei até o senhor para conversar a respeito em alguns dias.»
Mas no dia seguinte, foi o padre a ir até o corpo daquele pobre homem,
num riacho não longe dali. Atravessava-o a cavalo quando sofreu um ataque
de apoplexia, tombando morto na água.
Outra história se passou há dois anos, no Quartier Latin: um estudante de
vinte e três anos que, depois da sua chegada a Paris, passou pelo menos
quatro anos entregando-se desordenadamente a todas as paixões da
juventude. Um dia esse pobre rapaz recebeu a visita de um camarada tão bom
e puro quanto ele. Era um compatriota que lhe trazia as novidades do seu
país.
Depois de conversarem, o visitante se foi, mas já no meio do caminho
lembrou-se de que havia esquecido seus livros. Deu meia-volta. Chegou,
bateu na porta, mas ninguém respondeu. Percebendo que ela estava aberta,
resolveu entrar: viu o infeliz rapaz estendido no chão… morto.
Não fazia quinze minutos que ele havia saído dali, tempo suficiente para
que o rapaz tivesse um ataque fulminante do coração.
Encontrou-se na sua escrivaninha algumas cartas abomináveis e, entre os
poucos livros da sua pobre biblioteca, constava apenas o que há de mais
obsceno.
Poderia contar mais casos deste tipo, além dos milhares de acidentes que, a
cada dia, fazem tantos passar subitamente da vida à morte. Acidentes de
todos os tipos, de quedas de cavalos a batidas de automóvel, que mostram,
com mais eloqüência do que qualquer raciocínio, ser preciso estarmos sempre
preparados a ficar diante de Deus; que não é preciso jogar sua eternidade
sobre um ‘talvez’; pois um homem em estado de pecado mortal, que não
pensa em se reconciliar com Deus pelo arrependimento e pela confissão, é
nada mais do que um louco que dança sobre um abismo; terrivelmente louco.
Santo Tomás dizia não compreender como um homem no estado de pecado
mortal poderia sorrir e fazer gracejos.
O homem mau se expõe, resoluto, a experimentar, por conta e risco, as
profundidades destas apavorantes palavras do Apóstolo Paulo: «Quão terrível
é cair nas mãos do Deus vivo!» [Hb 10,31]
Evitar com muito cuidado as ocasiões perigosas e as ilusões
Mas não se trata apenas de sair do estado de pecado mortal quando nele
tivermos a infelicidade de cair. É preciso tomar as mais sérias precauções e
levar adiante o zelo de nossa salvação eterna. Não devemos nos contentar em
sair o mais rápido possível da via que leva ao inferno, mas também evitar de
nela se engajar. É preciso evitar, a qualquer custo, as ocasiões de queda,
sobretudo aquelas que a triste experiência tem-nos mostrado ser perigosas.
Um cristão, um homem que tem o senso comum, sacrifica tudo, enfrenta
tudo, suporta tudo para escapar do fogo do inferno. Deus mesmo nos disse
que se tua mão, pé e olho – ou aquilo que você tem de mais valioso no
mundo – se tornam um motivo para o pecado, renuncie a tudo isso sem
hesitar. É melhor entrar mutilado, manco, cego ou em qualquer outra
condição, no reino de Deus e na vida eterna, do que ser lançado no abismo de
fogo, na eternidade do inferno, onde o fogo jamais se extinguirá. [cf. Mt
18,8-9] [Mc 9,43]
Não tenhamos ilusões a este respeito! E é mesmo pelas ilusões que o
inimigo de nossas pobres almas procura surpreender, já que um ataque frontal
não parece fortuito. As ilusões são pérfidas, sutis, múltiplas e freqüentes.
Portam, sobretudo, o egoísmo através de raciocínios friamente calculados – e
bastante sofisticados – para dar nuances às insurreições do espírito contra a
fé, contra a inteira submissão devida à autoridade da Santa Sé e da Igreja;
sobre as pretensas necessidades de saúde ou mesmo habituais, que pouco a
pouco vão escorregando na lama da impureza; ou ainda sobre os costumes e
conveniências do mundo em que vivemos, e que tão facilmente leva ao
turbilhão do prazer e da vaidade, do esquecimento de Deus e da negligência
da vida cristã; enfim, a cegueira causada pela ganância, que leva tanta gente a
sucumbir aos pretextos de necessidades comerciais, costumes gerais nos
negócios ou sábias previsões para o futuro. Repito: o inimigo só leva a
ilusões! Quantos réprobos, hoje no inferno, trilharam este caminho! Podemos
nos seduzir, ao menos em uma certa medida, mas não saberemos dissimular
aos olhos de Deus.
Mesmo a vida religiosa não é suficiente para nos manter preservados.
Saibam bem, há religiosos no inferno! Espero que sejam poucos, mas é certo
que há. E como eles se perderam? Pelo caminho fatal das ilusões! Ilusões no
que tocam à obediência, à piedade, à pobreza. E também no tocante à
castidade, mortificação e ao uso da ciência. De fato, é muito bem
pavimentado este caminho das ilusões.
Citarei apenas um exemplo, tirado da vida de São Francisco de Assis: entre
os Principais no nascimento da Ordem dos Frades Menores estava um certo
Frei João de Strachia, cuja paixão pela ciência ameaçava desviar os religiosos
da simplicidade e da autêntica santidade de suas vocações60. São Francisco o
advertiu por várias vezes, sempre em vão. Preocupado com a influência
funesta que exercia esse Ministro Provincial, São Francisco o destituiu em
pleno Capítulo da Ordem, declarando que Nosso Senhor havia revelado que
ele deveria agir com certo rigor, pois o orgulho daquele homem trouxe em si
a maldição de Deus.
E isso o futuro não tardou em mostrar: aquele desgraçado morreu no mais
horrível desespero, gritando: «Estou condenado e maldito por toda
eternidade!» E confirmaram esta sentença as terríveis circunstâncias que
seguiram a sua morte.
Certifique-se da sua salvação eterna por uma vida seriamente cristã
Quer ter certeza de que está a evitar o inferno, querido leitor? Não se
contente em evitar o pecado mortal, de combater os vícios e os defeitos que
para lá conduzem. Tenha uma boa e santa vida, seriamente cristã e plena de
Jesus Cristo.
Faça como as pessoas prudentes que têm de passar por caminhos difíceis
quando estão a contornar os precipícios: com medo de cair, tomam cuidado
de não andar pela borda, onde um passo em falso pode ser fatal. Sabiamente
tomam o lado oposto da rota, mantendo sempre uma distância segura do
precipício. Faça o mesmo! Abrace esta nobre e bela vida chamada cristã, a
vida da piedade.
Guiado pelos conselhos de algum Santo Padre, imponha a si mesmo uma
espécie de regulamento para a vida, no qual conste, considerando a proporção
das necessidades da sua alma e das circunstâncias exteriores, alguns bons e
sólidos exercícios de piedade, entre os quais recomendo os seguintes, que a
todos são acessíveis:

Sempre comece e termine o dia com uma oração, rezada com muita devoção e cordialidade.
Junte às orações uma leitura atenta de uma ou duas páginas do Evangelho ou de bons livros
devocionais que enriqueçam o espírito. Depois da leitura, recolha-se por alguns minutos para
refletir e tomar decisões, pela manhã, do que se irá fazer durante o dia; à tarde, do que se irá
fazer à noite. Reflita também sobre a morte e a eternidade;
Tome o excelente hábito de fazer o sinal da Cruz todas as vezes que você sair e entrar em casa.
Esta prática, muito simples, é santificante. Mas tome o cuidado para jamais fazer o sinal sagrado
de forma leviana, sem pensar, pela rotina, como tanta gente faz. Deve ser feito de forma muito
religiosa e com muita seriedade;
Tente, se os deveres lhe permitirem, ir à missa todas as manhãs, bem cedo, para receber a cada
dia a bênção por excelência. Preste as homenagens que cada um de nós devemos a Nosso Senhor
no Seu grande sacramento da Comunhão. E quando você não puder, pelo menos se esforce para
fazer uma adoração ao Santíssimo Sacramento todos os dias, quer entrando na igreja, quer de
longe e do fundo de seu coração;
Preste igualmente todos os dias, com um coração de filho, à Bem Aventurada Virgem Maria,
Mãe de Deus e Mãe dos cristãos, alguma homenagem de piedade, amor e veneração. O amor da
Santa Virgem, junto com o amor do Santíssimo Sacramento, é um penhor quase infalível para a
salvação. A experiência tem demonstrado, em todos os séculos, que Nosso Senhor Jesus Cristo
atribui graças extraordinárias, em vida e no momento da morte, a todos que evocam e amam Sua
Mãe. Porte sempre um escapulário, uma medalha, um terço ou um rosário;
Tenha o hábito – e jamais deixe-o – de se confessar e de comungar com freqüência. A confissão
e a comunhão são os dois grandes meios de salvação oferecidos pela misericórdia de Jesus Cristo
a todos que querem salvar e santificar suas almas. Evite as faltas graves; cresça no amor ao bem
e na prática de virtudes cristãs. A este respeito não há regras gerais, mas podemos afirmar que os
homens de boa vontade, isto é, todos aqueles que querem evitar o mal, servir a Deus e O amar
com todo o coração, tanto melhor é que comunguem freqüentemente. Quando nos está à
disposição, quanto mais, melhor. E várias vezes por semana, até mesmo todos os dias, não seria
ainda demasiado freqüente. Quase todos os cristãos fariam muito bem se tivessem a capacidade
de se santificar para uma boa comunhão todos os domingos e dias de festas de guarda, sem
nunca estar em falta. O célebre Catecismo de Trento diz que o mínimo que deve fazer um
cristão, que tenha um pouco de preocupação com a sua alma, é ir aos sacramentos todos os
meses;
Ainda proponho, neste pequeno regulamento para a vida, perceber e combater incessantemente
dois ou três defeitos, observados ou que virão a ser observados em você. É evidentemente pelas
suas fraquezas que, num momento ou noutro, o inimigo tentará atacar de surpresa;
Por fim, evite, como se evita o fogo, freqüentar lugares e más leituras.

Compreenda, querido leitor, o que estou a recomendar aqui não é uma


obrigação. Longe disso! Mas tenho de repetir: se você entrar nesta via de
generosidade e fervor, e se segui-la decididamente, assegurará de maneira
superabundante o mais grandioso e lucrativo negócio da sua eternidade. E
estará certo de evitar as penas eternas do inferno, como é certo que, a fim de
evitar a pobreza, é preciso uma sábia e inteligente administração, que
aumenta consideravelmente sua fortuna.
Em todo caso, não perca a direção, mantenha-se no caminho. Faça o
melhor, mas faça pelo amor de sua alma, pelo amor do Salvador que
derramou o Seu sangue por ela. Não recue diante do Evangelho e seja um
bom cristão.
Continue a pensar seriamente no inferno, nas suas penas eternas, no seu
fogo devorador, e posso garantir que você irá para o céu!
O grande missionário do céu é o inferno.

58 «Entre os dons do Espírito, parece que se deve ter por principal aquele que Deus exige,
inicialmente, do homem. Ora, o que Deus mais exige do homem é o temor, conforme a Escritura (Dt
10,12): ‘E agora, Israel, o que é que o Senhor teu Deus te pede? Apenas que temas ao Senhor teu
Deus, andando em Seus caminhos, e o ames, servindo a Deus com todo o coração e com toda a tua
alma’ (…); o temor tem preferência como elemento primordial no aperfeiçoamento dos dons do
Espírito, porque o início da sabedoria é o temor do Senhor (Sl 111:10), e não porque seja mais digno
do que os outros. Pois, na ordem da geração, é preciso primeiro afastar-se do mal, o que se faz pelo
temor, como diz o livro dos Provérbios (Pr 16,6), e depois, praticar o bem, o que se faz mediante outros
dons.» Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Q. 68, IIae pars, art. 7.
59 A presunção de que já se encontra salvo é um dos pecados contra o Espírito Santo, portanto, um
pecado mortal que pode levar ao inferno. Ensina-nos o Catecismo: ¶2092 «Há duas espécies de
presunção: o homem ou presume das suas capacidades (esperando poder salvar-se sem a ajuda do
Alto), ou presume da onipotência ou misericórdia divinas (esperando obter o perdão sem se converter,
e a glória sem a merecer)».
60 O frei Strachia, desobedecendo São Francisco, abriu um suntuoso convento e lá instalou uma
escola de teologia. Preocupado com a distorção do ideal da ordem – e com o perigo dos padres saírem
do convento «mais doutos do que piedosos», o santo simplesmente fechou a escola de teologia aberta
sem permissão. cf. Frei Pamfilo da Magliano, Vida de São Francisco, Cap. XVIII.
EPÍLOGO

Havia um padre exemplar que, depois de quarenta anos pregando em toda


a França e em outras numerosas missões, estava em Roma a conversar com o
Santo Padre, o Papa Pio IX. Falavam sobre a maravilha de se estar a serviço
de Deus. «Pregue muito as grandes verdades da salvação – dizia-lhe o Santo
Padre. Pregue sobretudo sobre o inferno! Nada de sincretismos! Fale
claramente e para que todos possam ouvir as verdades sobre o inferno.
Porque nada é mais capaz de fazer os pobres pecadores refletirem e,
conseqüentemente, fazê-los retornar a Deus».
Recordando essas profundas e verdadeiras palavras do Vigário de Jesus
Cristo, decidi empreender este pequeno trabalho sobre o inferno. Depois,
meditando sobre as penas eternas e as desgraças dos réprobos, lembrei-me
das palavras de São Jerônimo, que estimulavam uma virgem cristã ao temor
dos julgamentos de Deus: «Territus terreo – ele escreveu –; apavorante, eu
me apavoro!» Ao menos, eu me esforcei para tornar tudo apavorante, e
Nosso Senhor é testemunha de que nada escondi do que sei acerca desse
terrível mistério.
A você, leitor, quem quer que seja, espero que faça proveito. Quantas são
as almas que estão no céu graças ao temor que nutriram pelo inferno!
Então, ofereço este modesto livro, rogando ao bom Deus para que faça
chegar essas verdades no fundo da alma de cada um. Para que o temor inspire
a todos para amar; e que o amor conduza a todos direto ao paraíso.
Espero que se digne a rezar por mim, para que Deus seja misericordioso
comigo e também com você. Para que sejamos dignos da admissão entre os
Seus eleitos.
MONSENHOR DE SÉGUR
8 de dezembro de 1875,
na Festa da Imaculada Conceição.
FELIZ AQUELE CUJA OFENSA É ABSOLVIDA, CUJO PECADO É PERDOADO. FELIZ O
HOMEM A QUEM O SENHOR NÃO ATRIBUI ERRO, E EM CUJO ESPÍRITO NÁO HÁ
FRAUDE. — SL. 32 (31)
MONSENHOR DE SÉGUR — 1820 – †1881
O Inferno – Monsenhor de Ségur
Publicado no Brasil
1ª edição – setembro de 2011 - CEDET
2ª edição – março de 2012 - CEDET 3ª edição – janeiro de 2014 - CEDET
A fonte desta tradução foi a edição de 1889, da Gernaey & Hamelin, Montreal, Canadá, na coleção
Oeuvre de bons livres, sob o título: L’Enfer - s’il y en a un; ce que c’est ; comment l’éviter.
Edição e tradução: Diogo Chiuso
Revisão: Lucas Cardoso da Silveira Santos e Gabriel Hidalgo
Capa, projeto gráfico e diagramação: Diogo Chiuso
Impressão: Gráfica Daikoku
Imagem da capa: O Jardim das Delícias Terrestres, de Hieronymus Bosch (1510).
Desenvolvimento de eBook:
Loope – design e publicações digitais
www.loope.com.br

FICHA CATALOGRÁFICA
Ségur, Louis-Gaston
O Inferno / Monsenhor de Ségur; Tradução de Diogo Chiuso - Campinas, SP : Ecclesiae, 2011.
Título Original: L’Enfer
e-ISBN 978-85-63160-69-0
1. Inferno 2. Cristianismo.
I. Monsenhor De Ségur II. Título.
CDD – 236.25

Índice para Catálogo Sistemático


1. Inferno – 236.25
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Angelo Vicentin, 70
CEP: 13084-060 - Campinas - SP
Telefone: 19-3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer
meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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