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Índice

Um prelúdio pessoal
Terreno comum
Uma breve definição
Alma sacerdotal, mentalidade laical
Figura apropriada
Extraordinariamente ordinário
Reflexões sobre a vocação

O segredo do Opus Dei


Nos termos precisos
Um bonde chamado divino
Tal Pai, tal Filho
Verdade inquestionável
Uma doutrina esquecida?
2
A ética católica do trabalho
Termos e condições
A palavra em ação
Na terra como no céu
Abençoado pelo sucesso?

A Obra e a Igreja
Que há de tão especial nisso?
Essa <partezinha> vai longe
Erros clericais
Assuntos de família
Rome, sweet home

Trabalho e contemplação: o plano de vida


Resistindo a descansar
Profissionalite
Um pequeno domingo em cada dia
Rito na raiz

Apontar alto
Amor e sacrifício
Santamente empenhados
Para que só Deus veja
Mãos à obra
Uma <tropa de elite> para toda a gente
Do nascer ao pôr do sol

Amizade e confidência
Alma do mundo
Missão impossível
Objetivos apostólicos

Secularidade e secularismo
Se ao menos tivéssemos mundo e tempo suficientes
Ter jeito para lidar com o mundo
Sobrenaturalmente natural
O lado luminoso

Sexo e sacrifício
Momentos difíceis
Uma moeda de ouro
O altar do leito conjugal
Pensando com a Mãe

A oficina de Nazaré: em unidade de vida


Em casa com o Verbo
Onde está o teu lar, aí está o teu coração

Uma mãe trabalhadora

Aumentar o romance
Amar como Jacó
Um prelúdio pessoal
<Oxalá fossem tais o teu porte e a tua conversação, que todos pudes-
sem dizer quando te vissem ou te ouvissem falar: “Este lê a vida de
Jesus Cristo”>. Caminho, n. 2.

Eu ainda não era um fã do catolicismo. Na verdade, morria de medo de sê-lo.

Era ministro presbiteriano e havia tirado umas longas férias sabáticas porque precisava de tempo pa-
ra estudar, orar e refletir. Ao longo de vários anos – e muito ao arrepio da minha profunda formação calvinista
e evangélica -, as minhas leituras vinham-me abrindo caminho para um modo católico de pensar. Quanto mais
profundamente estudava as Escrituras, a teologia e a história, e quanto mais intensamente orava, mais inexora-
velmente a minha mente era arrastada para o catolicismo. 3
No entanto, a minha experiência da fé católica limitava-se quase exclusivamente aos livros. Tinha
vivido a maior parte da minha juventude, a partir dos quinze anos, em ambientes predominantemente (e arden-
temente) protestantes – primeiro como estudante em um pequeno colégio particular, depois em um renomado
seminário evangélico e, por fim, como pastor e professor em algumas pequenas igrejas e escolas confessionais.
Em todos esses lugares, encontrei um companheirismo afetuoso, liderança inspirada e um culto fervoroso.

Por outro lado, os meus poucos contatos – fora dos livros – com pessoas que se declaravam católicas
não tinham sido nada edificantes. Haviam-se dado, na maior parte, durante a adolescência, e principalmente
com jovens que eram tão delinquentes como eu o fora antes de aceitar Jesus Cristo como meu Senhor e Salva-
dor.

Agora, era um adulto às voltas com uma crise de adultos. Era um protestante devoto, um ministro
ordenado que achava os argumentos católicos algo mais do que persuasivos – achava-os irrefutáveis. E enfren-
tava uma luta entre tudo o que eu amava do meu passado protestante e tudo o que começava a entender sobre a
fé católica. Nós evangélicos que conhecia, encontrava uma profunda devoção a Jesus Cristo ..., um humilde à-
vontade nos caminhos da oração..., uma extraordinária ética do trabalho..., um zelo pela cristianização da cultu-
ra... e um apaixonado interesse pelas Escrituras. Esta última qualidade era sumamente importante para mim
como pregador da Palavra de Deus e jovem teólogo bíblico. Na doutrina católica, porém, encontravam ma
coerência, autenticidade e força irresistível.

Mas tinha sido a Bíblica que me levara a essa crise. No começo, quis entender a <teologia da alian-
ça> dos primeiros reformadores protestantes, e a minha pesquisa levou-me a descobrir que João Calvino e
Martinho Lutero, especialmente, eram muito mais <católicos> na sua doutrina do que os seus atuais descen-
dentes. Calvino e Lutero conduziram-me a determinadas passagens das Escrituras que diziam respeito aos
sacramentos, à hierarquia e autoridade da Igreja, e mesmo à doutrina mariana, mas levaram-me igualmente aos
Padres da Igreja, os mais antigos comentaristas da Bíblica. E foi lá, nos escritos dos primeiros Padres, que
esbarrei com uma Igreja que só podia ser descrita como Católica. Era litúrgica, hierárquica, sacramental. Era
Católica, mas também continha tudo o que eu amava na tradição da Reforma: uma profunda devoção a Jesus,
uma vida de oração espontânea, o zelo por transformar a cultura e, é claro, um amor ardente à Escritura.

Até então, porém, essa Igreja só era real para mim nos livros poeirentos que lia. Onde estavam, que-
ria eu saber, onde estavam os fiéis católicos comuns que viviam desse modo?

Aparentemente, estavam à minha espera em Milwaukee.

Terreno comum

Cheguei à Marquette University1, para os meus estudos de graduação em teologia, com altas espe-
ranças, mas baixas expectativas. Logo encontrei, porém, graça sobre graça.

Deparei com um sacerdote amável e brilhante que me mostrou disposto a conversar comigo sobre
teologia até altas horas da noite. Contou-me sobre a sua formação em um lar polonês-americano, em que os
membros da família se cumprimentavam habitualmente com frases das Sagradas Escrituras. No entanto – disse
de mim para mim-, esse não era lá um católico muito comum. Tinha-se doutorado em uma universidade roma-

1
A Universidade de Marquette é uma universidade católica situada em Milwaukee, Indiana (N. do T.).
na, vinha trabalhado um temporada como funcionários do Vaticano e corria a voz (com razão, como depois se
veio a confirmar) de que estava a caminho de ser feito bispo.

Depois, comecei a encontrar outros católicos que revelavam as mesmas qualidades – concretamente,
um que estudava Filosofia Política, outro Odontologia. O que mais me impressionou foi que ambos traziam
uma pequena Bíblia no bolso. Não era raro vê-los sentados na igreja lendo as Escrituras. Quando lhes pedia
que me ajudassem a entender um ponto de doutrina, puxavam do pequeno livro para fundamentar o que dizi-
am. Pensei comigo: Estes são homens que lêem a vida de Jesus Cristo – e lêem a fundo.

Mencionei ao meu amigo sacerdote que tinha encontrado uns rapazes que sempre traziam consigo o
Novo Testamento e que realmente pareciam conhecê-lo a fundo.

Ele respondeu-me: <Ah! Devem ser do Opus Dei>.

Opus Dei: eu conhecia suficiente latim para saber que a expressão significava <trabalho de Deus>
ou <obra de Deus>. Ao ouvir essas palavras do padre, o Opus Dei tornou-se quase imediatamente uma luz para
4
mim, um farol que prometia o fim da minha longa viagem, o primeiro vislumbre de uma terra que eu somente
conhecia dos livros. Não é que essa terra fosse pequena demais para poder ser captada, nem que o Opus Dei
constituísse a sua totalidade, uma vez que a Igreja Católica é muito mais ampla do que qualquer coisa para a
qual a minha experiência confessional me havia preparado, e nela existiam (como existem agora) muitas outras
instituições e movimentos maravilhosos. Porém, por muitas razões, o Opus Dei era um lugar em que eu podia
começar a sentir-me em casa.

Que razões eram essas? Agora me dou conta do que já então começava a vislumbrar:

- A primeira e principal era o evidente amor dos seus membros pela Bíblica.

- A segunda: o seu cálido ecumenismo (como viria a saber depois, o Opus Dei foi a primeira insti-
tuição católica a dar as boas-vindas a não católicos como cooperadores nos seus trabalhos apostólicos).

- A terceira: a retidão de vida dos seus membros.

- A quarta: o caráter ordinário das suas vidas. Não eram teólogos – eram dentistas, engenheiros, jor-
nalistas -, mas viviam e falavam de uma teologia que me pareceu atraente.

- A quinta: devotavam-se a uma santa ambição – uma zelosa ética do trabalho.

- A sexta: eram acolhedores e ouviam com generosa atenção as minhas múltiplas perguntas.

- E a sétima: oravam. Reservavam um tempo diário para uma oração íntima, verdadeira conversa
com Deus. Isso dava-lhes uma serenidade que eu raramente tinha encontrado.

À medida que foi crescendo a minha amizade com esses homens do Opus Dei, comecei também a
apreciar a rica teologia e espiritualidade bíblicas que estavam no cerne da sua vocação. Tomei-as como pró-
prias muito antes de Deus me ter dado essa mesma vocação – na realidade, antes mesmo de Ele me ter trazido
aos sacramentos da Igreja Católica. Reconheci imediatamente que possuíam um formidável potencial para
renovar a minha vida, mas também a vida da Igreja de Cristo e a vida do mundo. Este livro trata dessa teologia
e dessa espiritualidade bíblicas do Opus Dei.

Uma breve definição

A minha definição favorita do Opus Dei é a que encontrei, em meados dos anos 80, em uma estampa
que continha uma oração. O Opus Dei é <um caminho de santificação no trabalho profissional e no cumpri-
mento dos deveres cotidianos do cristão>. Não é apenas um método e oração, nem uma instituição da Igreja,
nem uma escola teológica. É um <caminho>, e esse caminho é suficientemente amplo para acolher todos os
que têm os seus dias preenchidos com um trabalho honesto – em casa com os filhos, na fábrica ou no escritó-
rio, nas minas, nas tarefas agrícolas ou em um campo de batalho.

Esse caminho é também suficientemente amplo para acolher as mais variadas e espontâneas formas
de oração, estilos e métodos teológicos. Deus chama algumas pessoas a comprometer a vida nesse caminho
como fiéis do Opus Dei, mas há muitas outras que simplesmente recebem orientação espiritual do Opus Dei e
dos livros do seu fundador.
Em poucas palavras: o Opus Dei foi fundado em 1928 por um jovem sacerdote espanhol, São Jose-
maria Escrivá. Durante os anos anteriores, esse sacerdote havia tido pressentimentos, indicações na oração, de
que Deus queria alguma coisa dele, mas não fazia ideia do que poderia ser. Então, subitamente, em um dia de
outubro, enquanto estava sentado relendo algumas anotações do seu diário, ele viu. Deus mostrou-lhe o que
deseja que ele fizesse.

O fundador raramente falava sobre o que <viu> naquele momento, mas, sempre que o fazia, utiliza-
va o verbo <ver>, e deixava claro que viu o Opus Dei na sua totalidade, tal côo viria a desenvolver-se com o
passar dos anos. Assim se lê em um documento pontifício: <Não se trata de um projeto pastoral que se vai
estruturando pouco a pouco, mas de uma chamada que irrompe, subitamente, na alma do jovem sacerdote2>.

O que foi que ele viu? Uns sucintos apontamentos pessoais seus talvez possam fornecer-nos um vis-
lumbre dessa percepção: <Cristãos correntes. Massa fermentada. O que nos toca são as coisas correntes, com
naturalidade. Os meios: trabalho profissional. Todos santos!>3 Quando apenas três rapazes compareceram à
primeira atividade de formação que realizou, deu-lhes a bênção com o Santíssimo Sacramento: <Enquanto
abençoava aqueles três..., vi trezentos, trezentos mil, trinta milhões, três bilhões..., brancos, negros, amarelos, 5
de todas as cores e combinações que o amor humano pode produzir>.

São Josemaria viu que Jesus queria que todos fossem santos – todos sem nenhuma exceção. O Se-
nhor falava para a multidão, não para o seu círculo íntimo, quando disse no Sermão da Montanha: <Sede per-
feitos como o vosso Pai celestial é perfeito>(Mt 5, 48). Este é o Evangelho exigente, a Boa Nova que os Após-
tolos pregaram às nações. São Paulo anunciou que Deus nos escolhei nEle, antes da criação do mundo, para
sermos santos imaculados (Ef 1, 4). Além disso, Deus revelou o seu <plano> para nós, o mistério da sua von-
tade: na plenitude dos tempos – que é justamente agora, hoje -, cabe-nos restaurar todas as coisas em Cristo
(cf. Ef 1, 10).

São Josemaria ensinava que todas as atividades humanas – a vida familiar, a vida social, a vida polí-
tica, o trabalho e o lazer – deveriam ser restauradas em Cristo, oferecidas a Deus como sacrifício agradável,
unido ao sacrifício da Cruz, unido ao sacrifício da Missa. Ansiava pelo dia em que <havia em todos os lugares
do mundo cristãos com uma dedicação pessoal e libérrima, que sejam outros Cristos>4.

São Josemaria via a Criação como uma grande liturgia cósmica, oferecida ao Pai por esses <outros
Cristos> em união com Cristo sumo-sacerdote.

Alma sacerdotal, mentalidade laical

Podemos fazer esse oferecimento porque somos um sacerdócio real, uma nação santa (1 Pe 2, 9).
Participamos do sacerdócio e da realeza de Cristo porque, por meio do Batismo, participamos da sua natureza
(cf. 2 Pe 1, 4). São Josemaria impelia os cristãos a ser <alma verdadeiramente sacerdotal e mentalidade plena-
mente laical>5. Não é uma contradição. Porque, sendo nós sacerdotes e reis, temos uma vocação que é simulta-
neamente sagrada e secular. Partilhamos da realeza de Cristo e partilhamos do seu sacerdócio. Assim santifi-
camos a ordem temporal e oferecemo-la a Deus, restauramo-la <em Cristo>, porque vivemos em Cristo.

Restauramo-la um pouquinho de cada vez, começando pelo centímetro, pelo metro ou pelo quilôme-
tro quadrado que temos sob os nossos cuidados. O nosso ambiente de trabalho, o nosso espaço vital – é aí que
exercemos o nosso domínio e o nosso sacerdócio. O nosso altar é o nosso computador, a nossa estação de tra-
balho, o terreno que carpimos, a trincheira que cavamos, a fralda que trocamos, a panela que mexemos, a cama
que compartilhamos com o cônjuge. Tudo isso é santificado pela oferenda das nossas mãos, que são as do
próprio Cristo.

Esta doutrina é particularmente realçada pelo Opus Dei, mas é patrimônio de toda a Igreja. A realeza
e o sacerdócio, os direitos e deveres que deles decorrem, pertencem não apenas a uns poucos privilegiados, não
apenas ao clero ordenado, mas a todos os fiéis batizados. A nossa especial dignidade reside em que, pelo Ba-
tismo, nos tornamos filho de Deus (cf. 1 Jo 3, 2) – passamos a fazer parte da assembléia dos primogênitos (cf
Hebr 12, 23). E, se somos primogênitos, somos os herdeiros (cf. Gál 4, 7), herdeiros da realeza e do sacerdócio
de Cristo – do temporal (que tratamos de santificar) e do sagrado. Tudo é vosso, diz São Paulo, mas vós sois de
Cristo e Cristo é de Deus (1 Cor 3, 22-23).

2
Missal para a beatificação de Josemaria Escrivá de Balaguer e Josefina Bakhita, Tipografia Vaticana, Vaticano, 1992, pág. 20
3
Apuntesíntimos, cit. Em José Luis Illanes, <Work, Justice, Charith>. In Holiness and the World, M. Belda (org.), Secpter, Princeton, 1997.
4
Andrés Vázquez de Prada, O fundador do Opus Dei, vol. I, Quadrante, São Paulo, 2004, pago. 348.
5
Josemaria Escrivá, Carta 28.03.1955, cit. Em Fernando Ocáriz (org.), The Canonical Path of Opus Dei, Secepter, Princeton, 1994.
Somos filhos de Deus. A expressão teológica para designar esta realidade é <filiação divina> - e ne-
la está o fundamento do Opus Dei. Nela está a fonte da liberdade, da confiança, da determinação, do ardor e da
alegria para todos os cristãos. Este é o <segredo em voz alta> que permite a homens e mulheres de todo o
mundo viverem a sua vocação: santificar o seu trabalho, santificar-se através do seu trabalho e santificar os
outros por meio do seu trabalho.

É um prato muito rico, bem sei. Por isso, dedicaremos as páginas que se seguem a examinar esta
doutrina em detalhe6.

Figura apropriada

São Josemaria dedicou o resto da sua vida a pregar aquilo que Deus lhe havia mostrado. No começo,
nem sequer deu a isso um nome. Foi o seu diretor espiritual quem o sugeriu de forma muito acidental, quando
um dia lhe perguntou: <Como vai essa obra de Deus?> 6
Pouco a pouco, os detalhes organizativos foram-se tornando claros para São Josemaria, embora o di-
reito da Igreja ainda não pudesse acolhera instituição nos termos em que Deus a havia mostrado. São Josemaria
conduziu o desenvolvimento da Obra com toda a cautela, de modo que nunca assumisse uma forma institucio-
nal inadequada, muito embora tivesse tido de passar por diversas configurações temporárias que não eram
satisfatórias.

Em 1965, o Concílio Vaticano II introduziu uma nova figura jurídica, a de <prelazia pessoal>, uma
instituição que, constituída por membros leigos e clérigos, pudesse encarregar-se de tarefas apostólicas especí-
ficas. A palavra pessoal significava que o líder da instituição, o seu prelado, teria autoridade não sobre um
território (como acontece ordinariamente com os bispos), mas sobre um certo grupo ou tipo de pessoas, onde
quer que essas pessoas se encontrassem.

São Josemaria reconheceu na prelazia pessoal a figura apropriada para o Opus Dei. Contudo, não
viveu o suficiente para ver a sua família chegar a esse porto: morreu em 1973. Em 1982, o Papa João Paulo II
erigiu o Opus Dei como a primeira prelazia pessoal. No momento em que escrevo, pertencem à prelazia do
Opus Dei certa de 85 mil membros – ou <fiéis>, que é o termo preferido pela Igreja. A grande maioria deles
são pessoas leigas comuns. Um pequeno número são sacerdotes.

Todos eles foram chamados a uma dedicação pessoal permanente a esse particular <caminho de san-
tificação>. Quer sejam casados ou solteiros, incorporam-se à Obra quando fazem a sua <oblação> (que tem a
forma de um contrato), e renovam-na anualmente. Em determinado momento, podem reafirmar de maneira
definitiva a permanência da sua vocação fazendo a <fidelidade>, que estende a duração do contrato a toda a
vida.

Extraordinariamente ordinário

Os relatos sobre a fundação do Opus Dei poderiam produzir em algumas pessoas uma impressão er-
rada, e talvez seja por isso que São Josemaria se referiu a ela com tão pouca frequência. É verdade que essa
fundação foi ocasião de alguns milagres documentados e de revelações extraordinárias, mas a ênfase do Opus
Dei está decididamente na vida ordinária, no trabalho ordinário e na experiência religiosa ordinária.

Talvez os milagres tenham sido necessários devido à natureza verdadeiramente radical do plano de
Deus para São Josemaria. Era um plano que parecia descompassado em relação aos tempos naqueles começos
de século vinte, quando os líderes católicos enfatizavam que tal modo a dignidade do clero que quais pareciam
ignorar a dos comuns fiéis batizados. Na Europa, assim como nos Estados Unidos, a comum e universal cha-
mada batismal à santidade não era uma opinião teológica concorde. O próprio São Josemaria chegou a ser
acusado de heresia.

Mas Deus utilizou aquelas primeiras graças extraordinárias – milagres e revelações privadas – para
abrir um roteiro, um Caminho, através da vida ordinária. Às vezes, é necessário usar explosivos pesados para
abrir uma rodovia, mas raramente para mantê-la. Por isso, enfoquemos agora a vida ordinária.

6
Outros livros sobre o Opus Dei são, por exemplo: Pedro Rodríguez, Fernando Ocáriz e José LuisIllanes, O Opus Dei na igreja, Rei dos Livros, Lisboa, 1994;
John Allen Jr., Opus Dei, Doubleday, Nova Yourk, 2005 (trad. Bras. Opus Dei: os mitos e a realidade, Ed. Campus, São Paulo, 2006; as citações seguem o
original).
Para dar um exemplo de atuação ordinária: os membros do Opus Dei tomam a séria a chamada da
Igreja ao apostolado. Mas você não os encontrará habitualmente nas esquinas pregando a Bíblica ou batendo à
porta de estranhos para dar testemunho de Jesus. Em vez disso, São Josemaria ensinou um apostolado silencio-
so de <amizade e confidência> - realidades cotidianas -, no qual os membros buscam maneiras de servir ou
outros. Isto pode significar um convite a um amigo para almoçarem, mais do que convidá-lo para um encontro
de oração; ou desafiá-lo apara uma partida de tênis, e não para um debate doutrinal.

É tudo realmente muito normal. Mesmo assim, esta doutrina encerra em si o poder de chocar as pes-
soas. O mundo atual – e mesmo algumas pessoas dentro da Igreja – tornou-se tão confuso que a insistência no
ordinário é para eles algo verdadeiramente extraordinário!

Reflexões sobre a vocação

A esta altura, provavelmente é supérfluo dizer que este calvinista acabou por tornar-se católico, e 7
que os meus primeiros contatos com o Opus Dei foram marcos importantes no meu caminho para a Igreja
Católica. E é provável que você já tenha adivinhado também que recebi igualmente a vocação para o Opus Dei.

Ao ousar escrever este livro, não pretendo apresentar-me como um modelo ou padrão do Opus Dei.
Este livro também não é, em sentido algum, uma declaração oficial da Obra (Como o Opus Deus é chamado
coloquialmente às vezes) sobre os seus objetivos e os seus princípios. Menos ainda é uma análise crítica da
estrutura organizativa do Opus Dei ou do seu status no direito canônico. Todos esses livros já foram escritos, e
muito bem escritos.

Este livro é antes a minha própria reflexão sobre a vocação que compartilho com muitos outros ho-
mens e mulheres que me ultrapassam em sabedoria, em todas as virtudes e na vivência diária do Opus Dei. É
também uma manifestação pública de gratidão a Deus pela graça que não mereço – uma graça que espero ver
compartilhada por muitas pessoas, na medida em que Deus deseje que a compartilhe.

Como sou, por ofício e por formação, um teólogo bíblico, este livro aplica as ferramentas da minha
profissão peculiar – aliás inteiramente santificável... – às ideias centrais do Opus Dei.
O segredo do Opus Dei
<Como é bom ser criança! – Quando um homem solicita um favor, é
preciso que ao requerimento junte a folha dos seus méritos. Quando
quem pede é um menininho, como as crianças não têm méritos, bas-
ta-lhe dizer: - Sou filho de Fulano. Ah, Senhor – diz-Lhe com toda a
tua alma!,eu sou... filho de Deus>. Caminho, n. 892

Jovens pregadores deixam-se às vezes levar pelo entusiasmo na abordagem do seu tema. Mergulham
tão profundamente no estudo do tópico de que vão tratar, seja qual for, que dá a impressão de ser o ponto cru-
cial, a chave interpretativa para qualquer outro assunto, tema ou questão complexa.

Este deve ter sido o caso de um jovem sacerdote do Opus Dei. Estava recém-ordenado e trabalhava 8
em Roma, perto do coração histórico e administrativo da Igreja Católica, e particularmente perto de mons.
Escrivá, que ainda vivia e estava totalmente absorvido pelas questões do dia a dia da Obra.

Que alegria, pois, quando jovem sacerdote foi convidado a pregar uma meditação em um centro do
Opus Dei onde o fundador residia e trabalhava. O tema da meditação era <humildade>.

Os sacerdotes do Opus Dei, como todos os outros membros, são exortados a realizar o seu trabalho
com a máxima excelência profissional, já que oferecem esse trabalho a Deus. Por conseguinte, o pregador deve
ter preparado a sua prédica com toda a diligência. Certamente pesquisou o que os santos e entendidos disseram
sobre o assunto. Um membro de qualquer instituição da Igreja deseja também consultar as valiosas obras do
respectivo fundador. Até aqui, nenhum problema. Mons. Escrivá tinha escrito muito sobre a humildade.

Podemos, pois, estar bastante seguros de que o nosso jovem sacerdote se preparou muito bem para
falar sobre humildade. Sem dúvida, sentia-se pequeno diante da vastidão do assunto, e, na sua mente e depois
na sua pregação, ampliou-o ainda mais na penumbra da capela.

A certa altura, disse com convicção: <O fundamento espiritual do Opus Dei é a humildade>. E deve
ter feito uma pausa para que a ideia penetrasse. Mas, nessa pequena brecha, ouviu-se inesperadamente do fun-
do da capela uma voz firme e paternal: <Não, não é!>

Com passo decidido, São Josemaria saiu da penumbra e foi até o lugar d o qual o jovem pregava.
Dirigindo-se a ele com um <meu filho>, o santo, já avançado em anos, pediu-lhe que lhe cedesse a cadeira.

Devemos tomar cuidado para não entender mal esse momento. São Josemaria tinha em alta estima a
cortesia. Não era homem que andasse por aí interrompendo as pessoas para as corrigir sempre que cometessem
uma leve imprecisão. Mas também não considerava descortês gritar <Fogo!> diante de um edifício em chamas.
Deturpar o espírito do Opus Dei – mesmo que fosse apenas por exuberância juvenil – era esse tipo de situação.
Em um centro do Opus Dei, aquilo clamava por medidas de emergência.

De modo que ele mesmo concluiu a meditação, esclarecendo aos ouvintes – que agora estavam ex-
tremamente atentos – sobre qual era o verdadeiro fundamento espiritual do Opus Dei.

- É a filiação divina – disse7.

Nos termos precisos

Filiação divina. Que deveríamos fazer com esse curioso termo técnico de teologia? De acordo com
São Josemaria, deveríamos convertê-lo em centro de nossas vidas.

O significado é simples e bíblico: Agora somos filhos de Deus(1Jo 3, 2). É simples e familiar, mas
talvez familiar demais. A paternidade de Deus e a fraternidade dos homens> é atualmente uma moeda desgas-
tada, um clichê cultural, até mesmo para muitos não cristãos. Essa doutrina, outrora central na pregação do
Evangelho, talvez tenha sido excessivamente manuseada, e acabou por perder o impacto que tinha para a pri-
meira geração dos cristãos. Quando São João fala sobre a filiação divina, mesmo depois de muitas décadas de

7
Este episódio é ciado por Peter Berglar, Opus Dei. Live and Work of Its Founder, Scepter, Princeton, 1985, pág. 75 (trad. Do alemãoLeben und Werk des
Gründers Josemaria Escrivá, Otto Müller Verlag, Salzburgo, 1983).
pregação, ainda não conseguia esconder o seu assombro: Considerei com que amor o Pai nos amou, para que
sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos! (1Jo 3, 1).

E nós o somos! Pensemos por um instante nas maravilhas da concepção e do nascimento de um ser
humano que foram filmadas graças à nanofotografia. Considerando todos os obstáculos naturais, parece notá-
vel que um espermatozóide possa fertilizar um óvulo, e que um óvulo possa implantar-se com sucesso, e que
um embrião possa evoluir para um feto – e que uma criança possa resistir in útero até chegar a nascer. Mesmo
os mais endurecidos laicistas ficam boquiabertos simplesmente diante da mera filiação humana. A série de
televisão Nova, transmitida nos Estados Unidos pelo Public Broadcasting Service, sentiu-se compelida a dar o
título de milagre do nascimento> ao seu documentário sobre a formação dos bebês.

A filiação humana é em si mesma uma maravilha. Mas empalidece quando o comparamos com o
nascimento sobrenatural, com a filiação divina que os cristãos recebem no Batismo. Por meio desse sacramen-
to, identificam-nos com Cristo, unimo-nos a Cristo, tornamo-nos capazes de viver a sua vida, de compartilhar a
vida do terno Filho de Deus no seio da Santíssima Trindade. Pelo Batismo tornamo-nos, portanto, como Jesus,
filhos do Deus eterno e todo-poderoso – filhos de um Pai que nos pode dar tudo aquilo de que precisamos, de 9
um Pai que é perfeito, onisciente e onipresente, de um Pai que cumpre todas as suas promessas e não comete
erros.

A filiação divina é a razão pela qual somos batizados. É a verdadeira substância do Céu. É o que
quer dizer o Novo Testamento quando fala de <salvação>, <santificação> e <justificação>. São Josemaria
ousava designar esse processo como <divinização> e <deificação>: meros seres humanos passam a partilhar da
natureza divina, tornam-se semelhantes a Deus. Vivem como filhos de Deus na eterna família divina, a Trinda-
de.

Pelo Batismo, tornamo-nos filhos de Deus porque vivemos em Cristo. Somos – na expressão de que
os Padres da Igreja gostavam tanto - <filhos no Filho>. Ao longo da extensa oração sacerdotal de Cristo relata-
da no Evangelho de São João, o Senhor descreve a sua própria comunhão com o Pai e a sua simultânea comu-
nhão com os que creem: <Eu estou no Pai e vós em mim e eu em vós>(Jo 14, 20).

Cristo é o único Filho de Deus gerado, o “Unigênito> de Deus. Por isso, a nossa filiação não é a
mesma que a dEle, mas uma participação nela. Nós não somos Deus. Mas o próprio Jesus descreveu a nossa
filiação dizendo: <Vós sois deuses>(Jo 10, 34; cf. também Sal 82, 6). A sua filiação é incriada e eterna. A
nossa é uma graça; é criada; é adotiva, mas é real. Pelo Batismo, somos mais verdadeiramente filhos de Deus
do que filhos das nossas mães e pais terrenos; pelo Batismo, estamos mais verdadeiramente em casa no Céu do
que no lar em que crescemos. São Máximo o Confessor explica-o da seguinte maneira: <Tornamo-nos comple-
tamente o que Deus é, exceto no nível do <ser>, e recebemos a <totalidade do próprio Deus>8 em toda sua
infinitude, em toda a sua eternidade. Ou, no dizer de São João Damasceno, tornamo-nos por graça o que Deus
é por natureza.

Isto parece paradoxal: o finito contém o infinito. Mas foi o próprio Deus quem o tornou possível, as-
sumindo a carne humana em Jesus Cristo. Ao fazê-lo, Ele humanizou a sua divindade, mas também divinizou a
humanidade e assim santificou – tornou santas – todas as coisas que preenchem a vida humana: a amizade, as
refeições, a família, as viagens, o estudo, o trabalho.

Um bonde chamado divino

Não quero dar aqui a impressão de que tudo o que acabamos de ver é teórico e totalmente inexpri-
mível, a não ser por meio de palavras terminadas em –ização(sou teólogo e professor, e reconheço que tende-
mos a falar dessa maneira). São Josemaria era também professor, tinha dois doutorados, mas não encontrou a
filiação divina ao final de um silogismo, e só muito raramente falou dela em termos acadêmico-teológicos.
Para ele, a filiação divina começou com uma experiência muito mais imediata e visceral.

Corria o ano de 19931; tinham transcorrido três anos desde vira a fundação e, até esse momento, era
pequeno o resultado visível das suas preces e esforços. Também sofria muito por causa da turbulência em que
se encontrava mergulhada a sociedade espanhola, e que acabaria por levar à sangrenta Guerra Civil Espanhola.
A pobreza havia-se alastrado, a moral estava em decadência e a violência anticatólica crescia de dia para dia. O
centro da tormenta era, naturalmente, a capital, Madri, onde ele residia.

Na manhã do dia 16 de outubro, depois de celebrar a Missa, tentou rezar <na quietude da minha
igreja>, mas não conseguiu. Saiu e comprou um jornal antes de subir a um bonde. Instalado no seu assento,

8
Scholia, 41 (1308B). Cit. Em Andres Lourth, Maximus the Confessor, Routledge, Londers, 1996, pág. 158.
começou a ler as notícias do dia quando, repentinamente e de modo muito intenso, <sentiu a ação do Senhor>.
Mais tarde explicaria que naquele momento Deus <fazia germinar no meu coração e nos meus lábios, com a
força de algo imperiosamente necessário, esta terna invocação: Abbá! Pater!>9

Embora tivesse sido incapaz de rezar no silêncio do santuário, repentinamente – na rua barulhenta,
dentro de um bonde repleto de gente -, viu-se imerso em oração. E a sua oração era simplesmente <Pai!> Ou,
mais precisamente, <Papai!> Em aramaico, a língua que Jesus falava, Abbá era a forma íntima, coloquial, com
que as crianças pequenas se dirigiam ao seu pai. Jesus usou-a na sua oração, como também São Paulo. Pater é
a palavra latina para <Pai>, tal como aparece com tanta freqüência na Missa.

Não foram, porém, meras palavras. Naquele mesmo dia, São Josemaria registrou a experiência no
seu diário como uma <oração de afetos, copiosa e ardente>10, uma oração que aflorava aos seus lábios sem que
pudesse reprimi-la. Desceu do bonde e vagou pelas ruas movimentadas, sem conseguir parar de invocar o seu
Pai celestial: <Abbá, Pater! Abbá, Pater! Abbá, Pater!>Nem poderia dizer quanto tempo passou; pode ter sido
<talvez uma hora, talvez duas>. Os transeuntes, espantados <devem ter pensado que eu estava louco>, recor-
dava ele mais tarde. Nunca, até aquela manhã, naquela viagem de bonde, tinha compreendido com essa pro- 10
fundidade o significado da paternidade de Deus para a sua vida, para o mundo e para a Obra que estava nas-
cendo. Viria a referir-se a essa experiência como a sua <primeira oração como filho de Deus>. Além disso,
percebeu imediatamente o significado desse episódio para a espiritualidade do Opus Dei.

Deus privara-o da oração no silêncio da igreja, mas dera-lhe um dom abundante de oração no meio
do mundo do trabalho ordinário. Daquele momento em diante, nunca titubeou na sua convicção: <A filiação
divina – dizia com freqüência – é o fundamento do espírito do Opus Dei>11.

Quais haviam de ser as consequências? <Ao viverem a filiação divina, os meus filhos estariam chei-
os de alegria e de paz, protegidos por um muro inexpugnável; saberiam ser apóstolos desta alegria, e saberiam
comunicar a sua paz, também no sofrimento próprio ou alheio. Justamente por isso: porque estamos persuadi-
dos de que Deus é nosso Pai>12.

Tal Pai, Tal Filho

Conhecer a Deus como Pai é conhecer o Deus dos cristãos, o Deus de Jesus Cristo. Porque a pater-
nidade de Deus é uma idéia exclusivamente cristã. Só os cristãos identificam como nome próprio de Deus o de
<Pai>. Outras religiões dizem que Deus é como um pai, porque a Criação é, de algum modo, como a procriação
humana, ou porque a divina Providência é, de algum modo, como o desvelo dos pais terrenos. Mas nas religi-
ões não cristãs a paternidade divina é, em última análise, metafórica. Deus age de modo paternal somente em
relação a alguns seres – o mundo, a raça humana ou um povo escolhido. Deus é paternal unicamente na medida
em que criou alguma coisa ou alguém que deve tomar sob os seus cuidados. Em sentido não cristão, a paterni-
dade divina depende, pois, de que haja outros seres. Está relacionada com a ação de Deus no tempo, mas não é
da sua essência.

Para os muçulmanos, falar de Deus como <pai> é simplesmente uma blasfêmia, uma violação da
transcendência e da simplicidade de Deus. Para os judeus, Deus age como pai para com o seu povo escolhido,
mas a sua paternidade não precede a criação e eleição desse povo.

Só os cristãos ousam dizer que Deus é <Pai> desde toda a eternidade – antes do início dos tempos,
antes da Criação. Ele é ,Pai> em si mesmo, porque gera eternamente o Filho no seio da Santíssima Trindade.

Para os cristãos, portanto, a paternidade de Deus pertence à sua essência. <Pai> é quem Ele é. Por
conseguinte a paternidade divina não é metafórica: é metafísica. Seria mais exato dizer que a paternidade hu-
mana é que é metafórica, um sinal temporal de uma realidade eterna. A paternidade de Deus é verdadeira pa-
ternidade no mais verdadeiro sentido.

Deus é o Pai eterno de Jesus Cristo. E Deus é Pai daqueles que vivem em Jesus Cristo, por meio do
Batismo.

9
Andrés Vázquez de Prada, O fundador do Opus Dei, vol. I, pág. 356.
10
Ibiden.
11
Josemaria Escrivá, É Cristo que passa, 4ª ed., Quadrante, São Paulo, 2014, n. 64.
12
Andrés Vázquez de Prada, O fundador do Opus Dei, vol. I, pág. 358.
Verdade inquestionável

Isto mal chega a ser uma novidade. É antes a recuperação de algo clássico no cristianismo. São Jo-
semaria dizia que se tratava de algo <velho como o Evangelho, e, como o Evangelho, novo>13.

As referências à paternidade de Deus no Antigo Testamento são poucas e, em si, ambíguas; na ver-
dade, nem os primeiros quatro capítulos do Novo Testamento chegam a mencionar a paternidade de Deus. Mas,
repentinamente, quando Jesus começa a sua pregação – quando faz as suas declarações decisivas no Sermão da
Montanha (Mt 5-7) -, a ideia torna-se predominante. Só nesse Sermão, Deus é chamado Pai dezessete vezes,
muito mais do que em todo o Antigo Testamento. E, no clímax dessa pregação, Jesus ensina a multidão a rezar
a Deus como <Pai nosso>; é um novo modo de rezar, estonteante e revolucionário.

A nossa filiação divina é a peça central da Boa Nova, tal como Jesus a ensinou. É o próprio signifi-
cado da salvação que Ele nos conquistou. Jesus não se limitou a salvar-nos dos nossos pecados; salvou-nos
para a filiação. O Catecismo da Igreja Católica explica-o sucintamente: <Pela sua morte, Jesus liberta-nos do 11
pecado; pela sua Ressurreição, abre-nos as portas de uma nova vida. Esta é, antes de mais, a justificação que
nos restitui a graça de Deus, “para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos [...], assim também nós vi-
vamos uma vida nova” (Rom 6, 4). Esta consiste na vitória sobre a morte do pecado e na nova participação na
graça. Realiza a adoção filial, porque os homens se tornam irmãos de Cristo>14.

A filiação divina foi o dom que Deus concedeu a Adão e Eva no início da Criação. Deus fez o pri-
meiro casal à sua imagem e semelhança Gên1, 26,27); cf. também Gên 5, 1). A única outra vez em que a Bíblia
usa estas expressões é para descrever a paternidade humana, quando Adão gerou Set (Gên 5, 3). Com efeito, no
momento da criação do homem, Deus soprou nas suas narinas o hálito da vida, e o homem tornou-se um ser
vivente (Gên 2,7). Não se tratava meramente de vida biológica, de uma simples respiração animal, mas de vida
divina. Deus soprou o seu hálito – o seu ruah, o seu Espírito – em Adão e em nenhum outro animal mais15. No
começo, deu a homem e à mulher o poder de compartilharem a sua vida, de viverem em intimidade com Ele.
Adão e Eva, porém, escolheram ser como Deus (Gên 3, 5), não nas condições que Ele determinou, mas nas
deles próprios. O seu pecado original foi, assim, a rejeição da filiação divina. E Deus respeitou a escolha que
fizeram.

A salvação de Jesus consistiu em restaurar a dignidade primitiva da humanidade, dando pleno cum-
primento ao plano original de Deus para a Criação. Caríssimos, agora somos filhos de Deus (1Jo 3, 2). Nada
era mais importante para os primeiros cristãos – ou para aquele homem no bonde em Madri, em 1931. São
Paulo disse aos Gálatas: E porque sis filhos, Deus mandou aos vossos corações o Espírito do seu Filho, que
clama: <Abbá, Pai!>(Gál 4, 6).

Uma doutrina esquecida?

Este é o cristianismo clássico. No entanto, nenhum historiador do cristianismo pode chegar que, nos
últimos séculos, a carta de filiação divina ficou fora de lugar no baralho da doutrina. A linguagem da <divini-
zação> e da <deificação> - moeda corrente nos Padres da Igreja – caiu em tal desuso eu o cardeal Christoph
Schönborn, em 1988, escreveu um ensaio defendendo precisamente essa ideia16. Nesse escrito, cita muitas
razões históricas pelas quais os cristãos se esqueceram da sua filiação. Eu gostaria de acrescentar mais uma à
lista, uma razão que deve muito peso para mim na época em que me aproximava às apalpadelas da fé católica.

Creio que a ideia da filiação divina ficou perdida no meio de todo o debate pós-Reforma sobre as re-
lações entre fé, obras e justificação. Por quatro séculos, os teólogos, tanto católicos como protestantes, cingi-
ram-se de modo tão estreito a essas controvérsias que acabaram por obscurecer o fato central da vida cristã. Os
reformadores desafiaram certos dogmas da Igreja, e assim a Igreja teve que responder voltando por sua vez a
atenção para os dogmas contestados. Foi essa discussão interminável que embaralhou as cartas da doutrina. Os
escritores católicos pós-Reforma sentiram-se compelidos a enfatizar precisamente os pontos que os protestan-
tes negavam. Tudo isso era necessário como meio de remediar a situação, mas o seu efeito a longo prazo foi
produzir uma teologia que estava um pouco distorcida e descentrada.

O que me cativava nos reformadores protestantes era a sua ênfase na <aliança> - uma realidade do-
minante ao longo de toda a Bíblia, dividida ela mesma em <Antiga Aliança> e <Nova Aliança>. João Calvino,

13
Josemaria Escrivá, Questões atuais do cristianismo, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 1986, n. 24.
14
Catecismo da Igreja Católica, n. 654; grifos nossos.
15
No hebraico, bem como no grego e outras línguas antigas, a mesma palavra significa <espírito>, <sopro> e <vento>.
16
Cf. <is Man to Become God? On the Meaning of the Christian Doctrine of Deification>. Cit. em Christoph Schönborg, From Death to Life: The Christian
Jouney, Ignatius, San Francisco, 1995, págs. 41-63.
especialmente, via a aliança como a chave para entender a nossa justificação, santificação e salvação. Para ele,
contudo, <aliança> significava aproximadamente a mesma coisa que <contrato>, e assim a sua descendência
espiritual tendeu a falar da religião cristã em termos legais, de direitos, deveres e permutas.

A pesquisa moderna sobre o tema da Aliança mostrou-me, porém, algo totalmente diferente. Na An-
tiguidade, uma aliança era mais do que um contrato. Era a forma pela qual duas partes não aparentadas consti-
tuíam um vínculo familiar. Tornavam-se irmãos, esposos ou pais e filhos. O casamento era uma aliança; a
adoção era uma aliança. Por conseguinte, com a sua Aliança, Deus não se limitava a ditar uma lei, mas fundava
uma família. E a consequência inevitável dessa Aliança era a filiação divina.

Imagine-se a minha alegria quando, ainda protestante, deparei pela primeira vez com os ensinamen-
tos de são Josemaria. Aqui estava um homem que falava da redenção preponderantemente em termos familia-
res e de família: Deus como Pai, a Igreja como família, Maria como Mãe de todos os que creem, a raça humana
como irmãos e irmãs, e todos os batizados, é claro, como filhos de Deus. <Concluiu-se a obra da nossa Reden-
ção. Já somos filhos de Deus, porque Jesus morreu por nós e a sua morte nos resgatou. Empti enim estis pretio
magno (1 Cor 6, 20), tu e eu fomos comprados por um grande preço>17. 12
Para mim, o Opus Dei representou uma reintegração na experiência cristã, uma recuperação da anti-
ga unidade que de algum modo se tinha perdido nos grandes bate-bocas da história moderna. Não conhecia
ninguém no mundo protestante que falasse com o frescor evangélico que encontrei nos membros leigos e nos
sacerdotes do Opus Dei.

Quando li o que São Josemaria pregava, pareceu-me que pregava para mim. <Não é verdade – disse
ele certa vez – que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com uma relação de amizade com
Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração>. E,
como que para provar o <sempre>, cita Clemente de Alexandria, que escreveu por volta do ano 203 a.C.:
<Torna-se Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer>18.

17
Josemaria Escrivá, Via Sacra, 5ª ed., Quadrante, São Paulo, 2003, n. 14.
18
É cristo que passa, n. 8.
A ética católica do trabalho
<Esse trabalho – humilde, monótono, pequeno – é oração plasmada
em obras que te preparam para receber a graça do outro trabalho –
grande, vasto e profundo – com que estás sonhando>. Caminho, n.
825.

Às vezes, a propaganda dá-nos agudas – e dolorosas – percepções da religiosidade popular. Certa


vez, vi em uma revista um anúncio que proclamava: <Se o pecado original tivesse sido de preguiça, ainda
estaríamos no paraíso>.

O publicitário pretendia fazer uma piada, é claro. Mas sabia que roçava um tema poderoso: a noção
comum de que a vida ideal consistiria em um ininterrupto tempo de ociosidade e de que o trabalho está para as
férias como a vida está para o céu. Nas palavras da canção popular, <todo o mundo trabalha pelo fim de sema-
na>. 13

O reverso dessa noção é bem mais insidioso e ilude muita gente: a crença de que o trabalho é uma
punição pelo pecado. Os que sustentam essa teoria costumam invocar a condenação divina de Adão depois do
seu pecado: <Maldita seja a terra por tua causa! Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os
dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comendo o teu pão com o
suor do teu roto, até que voltes à terra da qual foste tirado>(Gên 3, 17-19).

Esta passagem parece traçar um triste prognóstico de longo prazo para as condições do trabalho hu-
mano. E efetivamente retrata a fadiga do trabalho como uma punição pelo pecado. A punição, porém, não está
no trabalho em si, mas nas duras condições que o tornam tedioso, frustrante e árduo.

O trabalho em si era uma das bênçãos originais de Deus. São Josemaria gostava de ressaltar que,
<desde o começo da sua criação, o homem teve que trabalhar [...], antes de que o pecado e, como consequência
dessa ofensa, a morte e as penalidades e misérias entrassem na humanidade (cf. Rom 5, 12). Deus formou
Adão com o barro da terra e criou para ele e para a sua descendência este mundo tão belo, ut operaretur et
custodiretillum (Gên 2, 15), para que o trabalhasse e guardasse>19.

Deus fez Adão porque não havia homem que cultivasse a terra (cf. Gên 2, 5). Ou seja, havia uma
vaga de emprego, uma descrição do cargo e uma tarefa a ser executada. O próprio Deus criou o candidato per-
feito para esse posto. E devemos lembrar-nos de que tudo isso aconteceu quando o mundo ainda não conhecia
o pecado nem a infelicidade. Deus fez o homem e a mulher para o trabalho; em consequência, eles não poderi-
am – e nós não podemos – encontrar a realização fora do trabalho.

Porém, mais ainda do que fazer o homem e a mulher por causa do trabalho, fez o trabalho por causa
do homem e da mulher – porque era só através do trabalho que eles poderiam tornar-se verdadeiramente seme-
lhantes a Deus. Isto não significa que eles possam merecer a graça da divinização por força do seu trabalho. A
graça é um dom e, por isso, não pode ser merecida20. Antes, é o próprio trabalho que é um dom e torna os ho-
mens e as mulheres cada vez mais parecidos com Deus.

Com efeito, o Gênesis representa o próprio Deus entregue ao trabalho ao criar o mundo: Tendo
Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho (Gên 2, 2). Portanto, o traba-
lho é em si mesmo algo divino, algo em que o próprio Deus se ocupa; é assim uma atividade divinizante para
aqueles que foram feitos à imagem e semelhança de Deus. Quando os seres humanos trabalham, imitam o seu
Criador, compartilham a sua vida. Ele fez a terra do nada, mas quis que a criatura a trabalhasse e guardasse.
Quis que os seus filhos terrenos conservassem os campos da família e se multiplicassem para assim viverem de
modo mais perfeito à imagem do Pai celestial. Quis que o próprio trabalho pudesse tornar-se um ato de coope-
ração no ato criador, uma cocriação, feita por ambos, O pai e os seus herdeiros.

Termos e condições

Deus deu o trabalho à humanidade quando deu a vida a Adão, no tempo da inocência primitiva. O
Gênesis conta-nos a história com o máximo laconismo, dando peso a cada palavra. Convém que nos detenha-
mos um pouco a examinar em que termos Deus nos confiou o trabalho.

19
Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 2014, n. 57.
20
A primeira graça, para o pecador, não pode ser merecida; no cristão em estado de graça, porém, os atos bons animados pelo amor (caridade) e feitos com a
graça merecem o aumento da graça santificante e o prêmio da vida eterna (N. do T.).
O preceito de Deus a Adão de cultivar [o jardim] e guarda-lo exprime-se por meio de dois verbos
hebraicos: abodahe shamar. Ambos são ricos e passíveis de um duplo sentido. Aparecem juntos em outros
lugares da Bíblica – e sempre que isso acontece, é para descrever os deveres ministeriais dos levitas, antiga
tribo sacerdotal de Israel (cf. Núm 3, 7-8, 26; 18, 5-6). O verbo abodah, frequentemente traduzido por <ser-
vir>, tem no hebraico um duplo significado: pode designar <trabalho manual> ou <ministério sacerdotal>
(enquanto <serviço ao culto>), ou pode sugerir os dois ao mesmo tempo. Já o verbo shamar significa <conser-
var> ou <guardar>, e descreve a proteção que os levitas deviam dispensar ao lugar sagrado, ao tabernáculo,
que por eles era guardado e preservado da contaminação.

Muitos estudiosos das Escrituras acreditam que o autor do livro do Gênesis pretendeu sugerir tudo
isso na história da criação de Adão. Deus fez adão para que trabalhasse, e Deus o fez para que fosse um sacer-
dote do templo cósmico. Não eram atividades separadas. No começo, Adão desfrutava de unidade de vida: o
seu trabalho estava ordenado para a adoração a Deus e era em si mesmo um ato de adoração. Até a divisão do
tempo refletiu esse princípio de ordenação: Deus trabalhou seis dias e no sétimo descansou, santificando-o.
Deus plasmou o ritmo sabático na própria estrutura da Criação.
14
Nós trabalhamos para podermos adorar de modo mais perfeito. Adoramos enquanto trabalhamos.
Quando os primeiros cristãos andaram à busca de uma palavra para descrever a sua adoração, escolheram lei-
torguia, uma palavra que, como a hebraica abodah, podia indicar <adoração ritual>, mas também <serviço
público>, como o trabalho dos varredores de rua ou dos homens que em outros tempos acendiam os lampiões
de rua à noite. O significado é evidente para aqueles que conhecem as línguas bíblicas, estejam ou não familia-
rizados com a tradição litúrgica católica. C.F.D. Moule, um protestante inglês estudioso da Bíblica, explica
bem a questão:

A maneira surpreendente com que palavras <seculares> como leitourgein (<prestar um serviço pú-
blico>) são aplicadas também ao <serviço divino> recorda-nos de modo muito salutar que, para uma pessoa
verdadeiramente religiosa, adorar a Deus constitui toda a razão e finalidade do trabalho; e que, se distinguimos
entre adoração e trabalho, é apenas por causa da fragilidade da natureza humana, que não podemos fazer mais
do que uma coisa de cada vez. A necessária alternância entre erguer mãos santas e m oração e brandir com
mãos fortes e dedicadas um machado para a glória de Deus é o sucedâneo humano para aquela vida divina uma
e simultânea em que o trabalho é adoração e a adoração é a atividade mais elevada possível. E a única palavra
<liturgia> do Novo Testamento, tal como a abodah - <trabalho> e <serviço> - do Antigo Testamento, cobre os
dois significados21.

Vemos uma vez mais que o trabalho é uma imagem terrena da atividade de Deus e, portanto, o tra-
balhador é uma imagem (e semelhança) de Deus. Como Deus é terno, a sua atividade é simples e uma. Nós,
como vivemos no tempo, temos uma atividade diferenciada – e, com excessiva frequência, dispersa. Porém,
por compartilharmos a vida de Deus, as nossas próprias vidas começam a adquirir uma simplicidade, uma
unidade entre trabalho e adoração.

No entanto, essa simplicidade muitas vezes confunde os cristãos de hoje, que tendem a pôr o traba-
lho e a oração em compartimentos separados e estanques. São Josemaria preveniu com frequência sobre <a
tentação [...] de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro,
diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas>. Teve pala-
vras fortes para essa atitude: ,Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla [...]. Há uma única vida, feita
de carne e espírito, e essa é que tem de ser – na alma e no corpo – santa e plena de Deus, desse Deus invisível
que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais>.

E prosseguiu falando dessa vida unificada: <Por isso, posso afirmar que a nossa época precisa de-
volver à matérias e às situações aparentemente mais vulgares o seu nobre e original sentido: pondo-as ao servi-
ço do Reino de Deus.22

A palavra em ação

Nessa tarefa de restauração, Jesus Cristo foi, é claro, o primeiro. Muito simplesmente, Ele trabalhou.
Os seus contemporâneos conheceram-no como um trabalhador bem capacitado, em grego um tekton, um arte-
são. A tradição diz-nos que o seu ofício foi o de carpinteiro. Os seus vizinhos maravilharam-se de que um
trabalhador comum pudesse ser estudado as Escrituras, que tivesse adquirido sabedoria e ensinasse com a auto-
ridade com que o fazia. <Não é ele o artesão?>, perguntavam (Mc 6, 3). E, em outro lugar, acrescentaram que
era <o filho do carpinteiro>(Mt 13, 55).

21
C.E.D. Mourle, The Birth of the New Testament, Harper & Row, San Francisco, 1981, pág. 43.
22
Questões atuais do cristianismo, n. 114.
Mas foi em uma referência ao seu Pai celestial que Cristo disse: <Meu Pai não cessa de trabalhar, e
eu também trabalho>(Jo 5, 17). Jesus estava sempre trabalhando e o seu trabalho era uma só coisa com a sua
vida divina e com a sua divina adoração. Estava continuamente criando, redimindo e santificando o mundo, e
sempre unido ao seu pai no amor do Espírito Santo. Cada uma das ações da sua vida terrena era uma manifes-
tação terrena dessa atividade celestial una, simples e eterna, ao mesmo temo serena e dinâmica. Portanto, todas
as coisas que fez foram redentoras – não apenas o seu sofrimento e morte na cruz. As horas que gastou na
carpintaria tiveram um valor redentor, uma eficácia reparadora. Ofereceu o seu trabalho a Deus, e todos esses
seus atos trabalharam para salvar o mundo.

Como carpinteiro e cabeça de família, Jesus viveu o sacerdócio que Deus concebera para Adão – e
para todos nós, na terra. Nisto, como em todas as coisas, Ele é o nosso modelo. Mas é mais que isso. Pelo Ba-
tismo e pela Sagrada Comunhão, está unido a nós. Por isso, não o imitamos apenas, mas participamos da sua
vida. Trabalha em nós e nós trabalharmos nEle. Oferecemos o nosso trabalho como uma oferenda sacerdotal,
um sacrifício redentor, em benefício dos nossos familiares, vizinhos, colegas de trabalho e amigos. E com
Cristo recriamos o mundo por meio dos nossos trabalhos e orações.
15
Não se trata apenas de uma pie in thesky[de uma <torta no céu>]. Trata-se também da pie ontheta-
bleda <torta na mesa>], para a mãe que a preparou e ofereceu esse trabalho a Deus; da pie chart[do <diagrama
de pizza.], nos slides que o corretor prepara para uma apresentação; do pina equação23, para a professora de
geometria que prepara os seus planos de aula.

Tudo isso, se bem feito e oferecido a Deus, faz avançar a causa da Criação divina e alcança a reden-
ção do mundo. E realmente funciona!

Na terra como no céu

É razoável perguntar: Se Jesus restaurou o projeto original para o trabalho, por que o nosso trabalho
atual ainda traz as marcas do pecado de Adão? Por que o nosso trabalho tem de ser feito à força de suor, de
frustrações, de tédio e de malogros? Por que as minhas costas têm de doer no fim de cada dia de trabalho,
quando soa o apito da fábrica?

Devemos notar que Jesus não esteve livre do sofrimento na sua própria vida terrena de trabalho. Os
seus esforços foram custosos, como os nossos. Além de que Ele sofreu incompreensões, falsas acusações, a
inveja de outros mestres e – no Calvário – uma aparente derrota.

É correto dizer, como os evangélicos protestantes, que Jesus pagou uma dívida que ele não tinha
porque nós tínhamos uma dívida que não podíamos pagar. Mas Cristo não foi meramente o nosso substituto. Se
o tivesse sido, poderíamos perguntar, e com razão, por que ainda temos de carregar com o peso da punição pelo
pecado de Adão: por que o nosso trabalho ainda tem de ser custoso? Como nosso substituto, Cristo deveria ter
eliminado a necessidade do nosso sofrimento, certo?

Errado. Cristo não foi o nosso substituto, mas o nosso representante, e, como a sua paixão salvadora
foi em nossa representação, não nos exime do sofrimento, mas confere ao nosso sofrimento uma força divina e
um valor redentor. São Paulo disse: Eu, agora, alegro-me nos meus sofrimentos por vós e completo na minha
carne o que falta à paixão de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja (Cor 1, 24). Que pode faltar ao sofrimento
perfeito de Cristo? Somente aquilo que Ele quis que faltasse, porque desejava que fôssemos seus corredentores,
seus cotrabalhadores.

Jesus não erradicou o sofrimento, mas tornou-nos capazes de sofrer como Ele sofreu. Dotou o nosso
sofrimento de poder divino e de valor redentor. E foi por isso que são Paulo pôde alegrar-se nos seus padeci-
mentos por Cristo! Esta é a profunda fome bíblica do gozoso espírito de mortificação que São Josemaria pre-
gava, e que suscitou tantas incompreensões: <Bendita seja a dor. – Amada seja a dor. Santificada seja a dor...
Glorificada seja a dor!>24 Não dizia nenhuma tolice inane, como o faria se dissesse que <a dor é boa>; o que
dizia é que, através a dor, podemos alcançar um grande bem nas nossas vidas, e, mais ainda, que Deus pode
proporcionar-nos uma grande santidade por meio dela. Através da dor, podemos assemelhar-nos mais a Jesus
Cristo nos seus sofrimentos.

Assim, o nosso trabalho é custoso, mas na realidade o seu custo não sobrepuja os seus benefícios,
porque estes são concedidos por Deus todo-poderoso. E são benefícios que podemos aplicar não apenas em
favor dos nossos familiares, mas de todas as pessoas das nossas relações e do mundo inteiro, pelos vivos e

23
O número pi, em inglês, pronuncia-se como pie (N. do T.).
24
Caminho, n. 208.
pelos mortos, pelo eterno descanso dos nossos antepassados e pela perseverança dos nossos descendentes na fé
cristã. E podemos viver na alegre esperança de que todas essas pessoas virão igualmente a rezar e oferecer o
seu trabalho por nós. O Credo chama a isto <comunhão dos santos>.

Abençoado pelo sucesso?

Quando eu era ministro presbiteriano, orgulhava-me daquilo que os cientistas sociais designaram
por <ética protestante do trabalho>. O sociólogo Max Weber cunhou essa frase para descrever uma determina-
da atitude que observou nos calvinistas. Eles trabalhavam arduamente e procuravam dar sempre o melhor de si
no campo profissional. Não é que pensassem que com isso ganhavam um bilhete para o céu. Pelo contrário,
acreditavam que todos na terra estavam predestinados ou para o céu o para o inferno, mas achavam que o su-
cesso terreno era um sinal providencial do favor divino, de terem sido escolhidos, de estarem destinados ao
céu. Weber estava certo, ao menos parcialmente, quando apontava essa ética como a força que movia o dínamo
do capitalismo. 16

A ética protestante do trabalho não é um dogma cristão, mas apenas um fenômeno sociológico (em-
bora, efetivamente, poderoso). Já o que vimos no livro de Gênesis é muito mais profundo o que qualquer ten-
dência cultural e não é uma ética do trabalho, e sim algo mais completo e sólido. É uma verdadeira <teologia
do trabalho>, uma metafísica do trabalho. Não é apenas a resposta coletiva de alguns fiéis ao Credo, e sim uma
verdade inserida no próprio tecido da Criação.

Além disso, não depende do sucesso terreno. Como Madre Teresa dizia com frequência, Deus não
nos pede que sejamos bem-sucedidos, mas apenas fiéis.

Fidelidade significa que tentaremos sempre fazer o melhor que pudermos. Mas isso não garante que
venhamos a receber um aumento, ou a ser promovidos, ou a ganhar as eleições: poderemos até ter o salário
diminuído, ser despedidos ou sofrer um acidente de trabalho. Mesmo assim, a teologia do trabalho é uma moti-
vação mais poderosa que qualquer mera ética do trabalho: reivindica audaciosamente que o trabalho que reali-
zamos nos pode levar para o céu – e também redimir muitas outras almas -, não por se tratar do nosso trabalho,
mas por ser trabalho de Deus, opus Dei. Se o mundo nos considera um sucesso ou um fracasso, é coisa secun-
dária; desejamos o sucesso unicamente para glorificar a Deus. O que é primordial é que trabalhemos com as
mãos de Deus, com a mente de Cristo (cf. 1 Cor 2, 16).

Santa Teresa de Ávila falou da assombrosa dignidade que Cristo nos conferiu ao fazer-nos seus co-
laboradores no trabalho:

Cristo agora não tem outro corpo sendo o vosso,


não tem outras mãos nem outros pés na terra senão os vossos.
Vossos são os olhos com que Ele olha
compassivamente para este mundo.
Vosso são os pés com que Ele caminha para fazer o bem.
Vossas são as mãos com que Ele abençoa o mundo inteiro25.

Jesus foi fiel até o fim, e foi precisamente isso que constituiu o seu sucesso. Cumpriu a vontade de
seu Pai e salvou o mundo com o sangue que marcou a sua <derrota>. E continua a operar as maravilhas da
redenção através do seus irmãos e irmãs, dos nossos êxitos e dos nossos malogros, de todo o trabalho que ofe-
recemos com Ele a Deus nosso Pai.

Não é preciso dizer que deveríamos sempre trabalhar o melhor que pudermos, porque nada que este-
ja abaixo disso merece ser colocado no altar de Deus. Leiamos os profetas do Antigo Testamento e meditemos
no que aconteceu quando os sacerdotes do Tempo se tornaram preguiçosos ou gananciosos e começaram a
oferecer a Deus animais defeituosos e com manchas, pois queriam guardar o melhor para si próprios. Nós cor-
remos o risco de fazer o mesmo com o nosso tempo, com a nossa atenção e os nossos esforços. Semelhante
egoísmo deu péssimo resultados para Israel e pode dar péssimos resultados também para nós. Se o nosso traba-
lho é culto a Deus, deve ser perfeito!

Uma última palavra: Jesus ensinou-nos, pela palavra e pelo exemplo, a trabalhar muito, mas não a
idolatrar o trabalho ou o dinheiro que possamos ganhar trabalhando muito. Quando Deus fez o mundo, dividiu
o tempo de tal modo que não pudéssemos esquecer a razão pela qual trabalhamos. Ele trabalhou seis dias para

25
<Oração de Santa Teresa>, adaptação musical de John Michael Talbor. Cit. Em The John Michael TalbortCollection, Sparrow, 1995.
santificar o sétimo. Nós também devemos santificar o dia do Senhor. Os nossos seis dias de trabalho estão
ordenados para um sétimo dia dedicado a adoração mais pura.

Deus fez-nos para esse descanso sabático, e os nossos corpos e o nosso trabalho deixam transparecer
esse inteligente desígnio divino. É humano esperar ansiosamente pelo descanso sabático. É humano necessitar
do Sabbath.

O exército dos Estados Unidos descobriu isso há muito tempo, na década de 1940, e pelo caminho
árduo. Visando atingir cotas ambiciosas, o governo pediu às fábricas de munição que estendessem a semana de
trabalho a sete dias de vinte e quatro horas. A maior parte das fábricas seguiu essa diretriz, mas algumas não.
Curiosamente, as únicas fábricas que cumpriram as suas cotas foram aquelas que fecharam aos domingos. Os
seus operários estavam mais descansados e por isso eram mais eficientes e sofriam menos acidentes de traba-
lho. Como Jesus sublinhou, o sábado foi feito para o homem (Mc 2, 27). Cumpre uma necessidade do corpo,
da mente e do espírito. E também nesse sentido o homem foi feito para o sábado.

Uns anos depois de ter me tornado católico, e uns anos depois de ter entrado para o Opus Dei, pude 17
assistir um dia à Santa Missa em memória da então recém-declarado Beato Josemaria Escrivá. Vibrei ao ouvir
a primeira leitura que a Igreja escolheu para essa Missa. Era do livro do Gênesis: O Senhor tomou o homem e o
pôs no jardim do Éden para que o cultivasse e guardasse (Gên. 2, 15).
A Obra e a Igreja
<Que alegria poder dizer com todas as forças da minha alma: - Amo
a minha Mãe, a Santa Igreja!> Caminho, n. 518

Quando os cineastas ou os editores de jornais querem representar a Igreja Católica, buscam sempre
uma imagem que possa ser imediatamente reconhecida por todos: um monte de janelas com vitrais que refra-
tam os raios do sol e uma explosão de cores..., as agulhas de uma igreja gótica ou a cúpula de uma basílica...,
um bispo todo paramentado, com a mitra na cabeça e o báculo na mão... Para milhões de pessoas, essas ima-
gens representam a missão, o desígnio e a personalidade da Igreja.

Mas a Igreja, nos seus escritos mais clássicos, apresenta-se a si mesma de maneiras muito diferentes:
um barco, uma vinha, uma rede e pescador, uma eira – e, com muito mais frequência, um lar, uma casa de 18
família. Nesse conjunto de símbolos encontramos, sem dúvida, uma imagem muito mais apropriada que em
vitrais, igrejas ou paramentos. O reino de Deus estende-se a toda a Criação e, na terra, chamamos Igreja a esse
reino. E assim como os reinos terrenos não estão confinados a um palácio, assim o reino de Deus não se limita
aos templos da Igreja.

Trata-se de uma verdade que, como dizia São Josemaria, é <velha como o Evangelho e, como o
Evangelho, nova>26, sempre nova. O evangelho diz-nos que a Igreja é o reino de Deus. O Novo Testamento
diz-nos que a Igreja é o Corpo de Cristo, constituído por muitos membros. E nenhuma destas doutrinas nos
permite reduzir a Igreja às suas cerimônias e à sua arquitetura peculiar.

A maioria dos membros da Igreja passa a maior parte do seu tempo não no templo, mas no trabalho
e no lar. Esses são os lugares em que expressam a sua fé cristã, em que dão o seu testemunho cristão, em que
vivem a sua vida cristã. Não é por uma hora, ou mesmo por sete horas semanais, de presença na igreja que
adquirimos a nossa santidade. Também a nossa <experiência religiosa> não está limitada aos tempos que dedi-
camos à prática das devoções. A nossa identificação com Cristo é algo permanente; a nossa comunhão com
Cristo é tão contínua como o estado de graça em nossas almas. Você e eu somos Igreja não só quando estamos
na igreja, mas sempre e em toda parte.

Que há de tão especial nisso?

Se a ideia que acabamos de ver traduz muito simplesmente a verdade do Evangelho, se é doutrina
cristã clássica, então é razoável perguntar por que ela será tão importante para a nossa análise do espírito pecu-
liar do Opus Dei. A resposta é, em parte, porque <o trabalho ordinário> se reveste de particular ênfase no Opus
Dei.

Vejamos por analogia o que se passa com outras espiritualidades. Todos os cristãos são chamados a
cultivar a virtude da pobreza, mas Deus chamou alguns poucos a renunciar a todos os bens para que deem um
testemunho especial dessa virtude. De modo similar, Deus quer que todos nós sejamos castos e puros, que
encaremos e vivamos a atividade sexual como forma de expressão santa do amor matrimonial, mas chamou
algumas pessoas a levar uma vida de celibato, renunciando até mesmo ao amor matrimonial pelo reino de
Deus. Do mesmo modo, no que diz respeito ao trabalho ordinário como meio de santificação, certo teólogo deu
esta feliz explicação: faz sentido – dizia – que haja <pessoas que constituam um exemplo nesse campo e se
dediquem a essa missão>27.

Com palavras de São Josemaria, o Opus Dei dá testemunho de que <onde estiver um cristão que se
esforce por viver em nome de Jesus Cristo, aí está presente a Igreja>28. O fundador discordava firmemente da
opinião de que a Igreja precisa <penetrar> nas profissões. A <penetração> era desnecessária, explicou, porque
a Igreja já está lá, nos católicos ocupados no seu trabalho. Disse a um entrevistador: <Espero que chegue o dia
em que a frase “os católicos penetram nos ambientes sociais” deixe de dizer-se e que todos percebam que é
uma expressão clerical. [Eles] não têm necessidade de penetrar nas estruturas temporais, pelo simples fato de
serem cidadãos comuns, iguais aos outros: pelo fato, portanto, de já lá estarem>.29

26
Pedro Rodrígues, et al., O Opus Dei na Igreja, pág. 34.
27
Carta citada em ibidem, pág. 10.
28
Questões atuais do cristianismo, n. 112.
29
Idem, n. 66
Parafraseando os quadrinhos do Pogo: a qualquer lugar aonde você vá, ali estará você – e ali estará a
Igreja Católica. Nenhum católico precisa de ordens de marcha do Vaticano para fazer o seu trabalho diário. A
espécie humana já recebeu essa ordem no seu DNA no momento da Criação, e a ordem foi renovada através da
vida exemplar do nosso Messias, que trabalhou arduamente, e dos seus Apóstolos. São Paulo sabia que o seu
próprio trabalho de fabricante de tendas confirmava o conteúdo da sua pregação e fortalecia a sua credibilidade
como cristão; em consequência, instava os seus ouvintes a cuidarem de fazer, eles também, um trabalho hones-
to.

Essa <partezinha> vai longe ...

O Opus Dei, portanto, não tem nada de inventado, mas põe o acento em certas coisas que são pro-
priedades comum da igreja e dos cristãos: o trabalho ordinário, por exemplo, e um apaixonado amor pelo mun-
do.
19
Quando lhe pediram em 1958 que descrevesse a Obra – muitos anos antes de o Opus Dei ter encon-
trado a sua forma institucional definitiva -, São Josemaria disse simplesmente: <O Opus Dei é uma partezinha
da Igreja>30.

Em muitos aspectos, o Opus Dei tem semelhanças com uma igreja particular. Visto de relance, pare-
ce-se com uma: tem sacerdotes, membros leigos e um prelado que os dirige a sua formação espiritual. Mas não
é uma igreja dentro da Igreja, porque os seus membros obedecem ao seu bispo local e ao Papa, tal como o
fazem todos os outros fiéis católicos. A autoridade do Opus Dei estende-se somente à formação espiritual a
apostólica pessoal dos seus membros.

Não obstante, a similaridade é instrutiva. O teólogo Pedro Rodríguez sustenta que a estrutura orga-
nizativa do Opus Dei reflete a forma <primitiva> ou <original> da Igreja: <A estrutura da Igreja [...] é esta:
ministros sacerdotais que, pela dedicação ao seu ministério, estão a serviço do povo da Igreja (os “fiéis”), de
maneira a tornar possível que estes últimos exerçam o seu sacerdócio real a serviço de Deus e do mundo>31.

Esta visão da hierarquia remonta às origens da palavra no tempo dos Padres da Igreja. Foi talvez Di-
onísio Areopagita que, no século V, cunhou o termo grego hierarchia, uma palavra composta que significa
<regra sagrada>. Quando ele os Padres posteriores falavam de hierarquia, queriam significar não uma peckin-
gorder – uma ordem de domínio -, mas uma ordem de serviço. Isso aplicava-se tanto ao céu como à terra. En-
tre os anjos, os coros mais altos tinham a responsabilidade de servir os que estão em um plano mais baixo. Na
terra, os bispos devem pôr-se a serviço do clero, e o clero, por sua vez, deve servir os fiéis. No cume desta
pirâmide de serviço, o Papa refere-se a si mesmo como <servo dos servos de Deus>.

Deste modo, o fundador do Opus Dei, embora fosse sacerdote, não procurou concentrar poder no
clero. O que queria era que os leigos católicos descobrissem a sua própria dignidade e assumissem as respon-
sabilidades que lhes advêm do Batismo. Em 1932, escreveu: <Impõe-se repelir o preconceito de que os fiéis
correntes não podem fazer mais do que ajudar o clero, em apostolados eclesiásticos. O apostolado dos leigos
não tem de ser sempre uma simples participação no apostolado hierárquico: compete-lhe o dever de fazerem
apostolado. E isso não por receberem uma missão [...], realizam-na através da profissão, do ofício, da família,
dos colegas, dos amigos>32.

Erros clericais

São Josemaria descrevia espirituosamente o seu modo de ver como <um sadio anticlericalismo> -
diferenciando-o do <mau anticlericalismo>, esse que levara à perseguição dos sacerdotes na sua Espanha natal
durante a década de 1930. No âmbito do Opus Dei, estimulou a estreita cooperação entre sacerdotes e leigos,
como <fiéis> da Igreja que são tanto uns como os outros, com funções distintas mas complementares no Povo
sacerdotal de Deus33.

A ideia soou a algo revolucionário em uma época em que o clero era visto como a aristocracia e a
classe governante da Igreja, mas, na realidade, não era nova. Era antes outra recuperação de um valor clássico
no cristianismo. A este propósito, comentou o jornalista John Allen: <A ideia de os sacerdotes e os leigos,

30
Cit. em Pedro Rodrígues t al., O opus Dei na Igreja, pág. 1.
31
Idem, pág. 32.
32
Questões atuais do cristianismo, n. 21. São Josemaria cita aqui algo que escreveu em 1932.
33
A diferença entre o sacerdote ordenado e o fiel leigo não é apenas funcional; envolve uma maneira distinga de participação no sacerdócio de Cristo. Não é
uma questão de grau, mas de essência (cf. Concílio Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, n. 10)
homens e mulheres, formarem um todo orgânico, compartilhando a mesma vocação e cumprindo as mesmas
tarefas apostólicas, não fazia parte da tradição católica, pelo menos nos últimos séculos>34.

Allen tem certa razão. Temos de retroceder aos primeiríssimos séculos para acha-la. A decisão de
<tolerar> o cristianismo, que o imperador Constantino tomou em 313 d.C., pôs fim a séculos de um vaivém de
perseguições e trouxe muitos benefícios à Igreja. Em 380, o imperador Teodósio deu mais um passo nesse
sentido e estabeleceu o cristianismo como religião oficial de todo o Império. O clero, que antes havia sido
ultrajado e perseguido, agora era respeitado e até mesmo enaltecido. Esse respeito recém-conquistado foi bem-
vindo, sem dúvida, e era algo devido ao clero, na sua condição de sacerdotes de Jesus Cristo.

Mas o enaltecimento do clero teve também o seu lado negativo. Com efeito, o Império reverenciava
de tal modo o clero que, por contraste, o estado laical começou a parecer insignificante. Os historiadores falam
de um amplo vazio que se criou, no final do século IV, entre uma elite de celibatários (padres e monges) e os
seus rebanhos passivos de leigos casados. Até uma grande figura da Igreja como São Jerônimo chegou a firmar
humoristicamente que aprovava o matrimônio, mas sobretudo porque era o viveiro de futuras vocações para o
celibato35... Não surpreende, pois, que os cristãos comuns começassem a perder de vista o pleno sentido da 20
sacramentalidade do casamento e da sua santa vocação para a vida familiar e para o trabalho ordinário. Essa
espiritualidade de dois patamares deu lugar a uma separação artificial entre clérigos e leigos – e, por isso, entre
a Igreja e o mundo. E a distância entre ambos só se alargaria no decorrer dos séculos.

Com efeito, na época em que o Opus Dei foi fundado, o direito canônico da Igreja não admitia ne-
nhuma forma institucional que viabilizasse uma estreita colaboração entre clérigos e leigos. Havia instituições
sacerdotais para sacerdotes e movimentos laicais para leigos, e, antes do Concílio Vaticano II, uns e outros
nunca podiam integrar-se em sentido canônico.

Foi por essa razão que São Josemaria aceitou diversas formas temporárias, confiando em que um dia
Deus abriria um caminho para o Opus Dei na Igreja, um caminho que corresponderia aos seus dons fundacio-
nais (ou <carismas>). Disse muitas vezes que <concedia, mas não cedia>. Já em 1944, escrevera: <Está claro
que, pela nossa vocação, pelo nosso caminho específico de nos santificarmos pessoalmente e de trabalhar apos-
tolicamente, somos um novo fenômeno pastoral na vida da Igreja, embora sejamos tão velhos como o Evange-
lho>36.

Como o poeta Robert Frost, o Opus Dei achou <um velho modo de ser novo>. De qualquer modo,
isso levou o Concílio Vaticano II a encontrar um caminho inusitado para recuperar a primitiva visão cristã
promovida por São Josemaria. Em 1965, no Decreto conciliar sobre o ministério e da vida dos sacerdotes37, a
Igreja propôs uma nova forma institucional chamada <prelazia pessoal>. Tal instituição poderia acolher mem-
bros clérigos e leigos que cooperassem simultaneamente, unidos, para a realização de tarefas pastorais especí-
ficas. A palavra <pessoal> é o que o distingue das igrejas particulares, como instituição à parte. Uma prelazia
pessoal tem jurisdição não sobre um território geográfico, mas sobre certas pessoas, estejam elas onde estive-
rem.

Em 1982, o Papa João Paulo II erigiu o Opus Dei como a primeira prelazia pessoal da Igreja. (Até o
momento em que envio estas páginas à gráfica, continua a ser a única). Na constituição apostólica Ut sit, o
Papa descreveu a Obra como <um organismo apostólico composto de sacerdotes e leigos, homens e mulheres,
que é ao mesmo tempo orgânico e indiviso – ou seja, [...] uma instituição dotada de um unidade de espírito, de
fim, de regime de formação>38.

O teólogo Pedro Rodríguez escreveu: <A riqueza da Igreja [...] reconhece muitas formas de associa-
ção e comunidade, diversos modos de os cristãos se relacionarem uns com os outros>39. E isso é a pura verda-
de. Uma prelazia pessoal é algo muito diferente de uma ordem religiosa, de uma igreja particular ou de um
movimento leigo, mas toas essas formas recebem a sua dignidade de Deus e conservam um lugar especial na
sua Igreja.

Assuntos de família

Sou teólogo e, pela minha formação acadêmica, tenho um certo interesse pelas questões relativas às
formas institucionais e aos carismas fundacionais. Devo admitir, porém, que encontrei poucos membros do

34
John Allen Jur., Opus Dei, pág. 38.
35
Sobre a atitude de São Jerônimo com relação ao matrimônio, ver a sua carta a Santa Estáquia: <Louvo o casamento, louvo o matrimônio – Mas isso porque
produzem virgens para mim> (22, 20-21).
36
Cit. em Pedro Rodrígueset al., O Opus Dei na Igreja, pág. 2.
37
Presbyterorumordinis, n. 10.
38
João Paulo II, Const. apost. Ut sit, 28.11.1982.
39
Pedro Rodríguez, O Opus Dei na Igreja, pág. 37.
Opus Dei que compartilhassem comigo esse interesse peculiar. Para a maioria, a vida no Opus Dei é uma vida
em família. E, assim como ninguém precisa de um diploma em direito de família para ter um lar alegre, assim
também não precisa ser o perito em direito canônico para viver a sua vocação na Igreja.

Pedro Rodríguez descreve o Opus Dei como <uma família dentro da grande família Dei da Igreja>40.
Esse foi, de fato, o modo como experimentei o Opus Dei desde o primeiro contato. Impressionou-me, por
exemplo, que alguns membros solteiros – chamados <numerários> - vivessem juntos em centros que eram
verdadeiros lares de família. Referiam-se ao seu prelado não como <Bispo>, mas como <Padre>, <pai>, por-
que aquele era o seu lugar na grande casa de família.

São Josemaria descrevia muitas vezes o Opus Dei como <família e milícia> ao mesmo tempo, e isso
sempre me lembrou o Antigo Testamento, em que a família de Deus, o povo de Israel, era ao mesmo tempo
uma família nacional e uma força militar. O que unia os israelitas nesses dois aspectos era a aliança, o decreto
divino que estabelecia os laços de parentesco entre eles e com Deus.

À medida que fui crescendo na minha fé cristã, cresceu também em mim a consciência de que pertencia à am 21
Yahweh, à Família de Deus. Contudo, dentro da família nacional do antigo Israel havia muitas tribos e, nos dias
de hoje, também existem muitas <tribos> na Igreja – uma rica diversidade de formas de vida cristã.

No antigo Israel, cada tribo tinha um papel a desempenhar dentro da nação e do reino. A vida da
Igreja de hoje não é muito diferente. Nos meus primeiros tempos como católico, perguntava frequentemente ao
Senhor: <Qual é a minha tribo?> E, certamente em resposta à minha prece, Ele levou-me não só à Igreja Cató-
lica, mas ao Opus Dei. Leva outros a outras famílias dentro da família, a outras tribos dentro da nação, aos
lugares que Ele quer.

Rome, sweet home

Quando os esforçamos por viver com fidelidade, quando nos esforçamos por santificar o nosso tra-
balho, então, para onde formos, Deus irá conosco. Ele está sempre conosco, até o fim dos tempos e até os con-
fins do mundo. Serviremos melhor a Igreja se trabalharmos c om perfeição humana a oferecermos esse traba-
lho a Deus, como um sacrifício santo. Lembremo-nos disto sempre que vejamos fotografias dos túmulos dos
primeiros cristãos. Não eram decorados com a cruz, mas com um arado, uma vinha, um machado, um barco,
uma refeição sobre a mesa – coisas da vida ordinária. Não eram símbolos de secularismo, mas de secularidade.
Proclamavam a todo o mundo que o Reino já tinha chegado, que as ferramentas de todas as profissões vinham
realizando o trabalho de Deus e, desse modo, também o trabalho da Igreja.

São Josemaria viveu para servir a Igreja. Quando se mudou para Toma, em 1946, passou toda a pri-
meira noite em oração, fitando à distância os aposentos do Papa. Não suportava o pensamento de que pudesse
agir contrariamente à missão da Igreja: <A única ambição, o único desejo do Opus Dei e de cada uma de suas
filhas e filhos – dizia muitas vezes – é servir a Igreja como ela deseja ser servida, dentro da nossa específica
vocação divina>. E foi ainda mais longe: chegou a pedir a Deus: <Senhor, se o Opus Dei não for para servir a
Igreja, destrói-o!>

Desde Pio XII, todos os Papas apreciaram o Opus Dei pelo seu espírito de fidelidade e serviço à
Igreja. O Papa João XXIII e o Papa Paulo Vi confiaram importantes tarefas apostólicas a São Josemaria e aos
fiéis do Opus Dei. O Papa João Paulo I, pouco antes da sua eleição como Sumo Pontífice, prestou um cálido e
afetuoso tributo ao fundador da Obra em um artigo que, talvez melhor do que qualquer outro escrito anterior,
captou o seu lugar na história. O Papa João Paulo II erigiu o Opus Dei como a primeira prelazia pessoal da
Igreja. E o Papa Bento XVI, logo no início do seu pontificado, acrescentou uma estátua de São Josemaria às
estátuas dos grandes santos que estão postas nas paredes externas da Basílica de São Pedro.

São Josemaria amou e serviu a Igreja e a Igreja retribuiu abundantemente o seu amor. Quando o
fundador morreu, em 1975, mais de um terço dos bispos de todo o mundo pediu ao Vaticano que desse início
ao seu processo de canonização.

Os membros da obra esforçam-se por imitar São Josemaria como bons filhos de sua Mãe, a igreja. E
o Opus Dei seve melhor a igreja pelo cumprimento fiel do seu carisma fundacional: procurando e promovendo
a santidade nas circunstâncias mais correntes da vida cotidiana, iluminando os caminhos da terra com a fé e o
amor.

40
Idem, pág. 38.
É uma vocação específica na igreja, mas, na esteira do Vaticano II, está na linha da <mensagem> e
da <missão> que cabe a todos os membros leigos do povo fiel de Cristo, Servir a Igreja e servir o mundo não
são coisas contraditórias nem objetivos distintos. O primeiro prelado do Opus Dei, D. Álvaro del Portillo, es-
creveu certa vez: <Amor ao mundo e amor à Igreja não constituem duas coisas separadas na mente e no cora-
ção do fundador do Opus Dei>41.

Nem deveriam supor hoje nenhuma contradição na mente e do coração dos católicos.

22

41
Cit. em Pedro Rodríguez, O Opus Dei na Igreja, pág. 10.
Trabalho e contemplação: o plano de vida
<Quando tiveres ordem, multiplicar-se-á o teu tempo e, portanto,
poderás dar mais glória a Deus, trabalhando mais a seu serviço>.
Caminho, n. 80.

Anos atrás, em um momento em que os pesquisadores trabalhavam febrilmente no mapeamento do


genoma humano, um dos líderes do projeto permitiu-se uma breve interrupção para conceder uma entrevista a
um repórter. Desde que tinha ganho um Prêmio Nobel – feito que alcançara na juventude -, o seu tempo era
extremamente valioso, não só para os seus colegas, mas também para o seu país. Descoberto o material genéti-
co humano básico, todas as nações desenvolvidas do mundo entraram em competição, correndo para serem
cada qual a primeira a decifrar código. A mídia alardeou uma série de possíveis resultados: a erradicação de
muitas doenças mortais, a clonagem de ratos e homens, a criação de novas espécies agrícolas e animais, a pro- 23
dução de membros e órgãos de reposição para o corpo humano, e a maior e também a mais ilusória das pro-
messas de todas aquelas longas horas de trabalho em laboratório: a imortalidade do corpo. Em padrões pura-
mente terrenos, é difícil imaginar metas materiais maiores do que essas.

Compreensivelmente, o ganhador do Prêmio Nobel estava ofegante enquanto falava com o repórter
sobre o trabalho da sua equipe de pesquisadores: <Está acontecendo tanta coisa e tão rapidamente – disso -,
que nos encontramos em um contínuo estado de excitação e quase não temos tempo para pensar>42.

Para um leitor atento, essas linhas causam arrepios. Lá estava uma equipe de homens brilhantes,
com a vida toda dedicada a uma tarefa repleta de consequências e permeada de ambiguidades – sem que tivesse
tempo para ponderar essas consequências nem para resolver essas ambiguidades!

Seja qual foi o trabalho que realizamos, as nossas ações têm consequências e o mundo é afetado por
essas consequências. Nas minhas aulas de física no colégio, aprendi a terceira lei de Newton: a toda ação cor-
responde uma reação igual e contrária. É um pensamento que, só por si, nos deveria fazer refletir seriamente.
Tanto mais que, segundo dizem atualmente os naturalistas, uma mudança no padrão de voo de uma borboleta
em Honduras pode afetar o clima na cidade de Nova York. As nossas ações podem, pois produzir reações
enormes, mesmo na ordem natural. Ainda que você e eu possamos estar trabalhando em tarefas mais humildes
que o Projeto do Genoma Humano, deveríamos ser muito prudentes a respeito do nosso trabalho. Deveríamos
trabalhar de espírito recolhido. Deveríamos tomar um tempo para parar e pensar. Deveríamos fazer um esforço
para se contemplativos.

Resistindo a descansar

Nos tempos que correm, qualquer reflexão sobre uma <ética do trabalho> tem de enfrentar o pro-
blema do <workaholism>, o vício do trabalho excessivo. E Deus sabe que isso é um problema. Desde o início
da Criação, Ele pôs salvaguardas contra essa tendência humana para o excesso de trabalho. Ele próprio descan-
sou no sétimo dia. No Decálogo, mandou-nos: Trabalhareis durante seis dias, mas o sétimo dia será um dia de
repouso completo consagrado ao Senhor (cf. Êx 31, 15). Ao consagrar o Sabbath, o sétimo dia, garantiu que o
trabalho estivesse ordenado para a adoração e que também procedesse da adoção. A eternidade tornou-se um
ponto fixo de contemplação, pelo qual a humanidade poderia aferir os seus trabalhos passados e os seus planos
futuros. Deus ordenou que sempre tivéssemos temo para parar e pensar.

Nós, porém, encalhamos no sexto dia da Criação e nos fizemos incapazes de ser uma perspectiva
correta da vida, incapazes de observar um descanso conveniente. Sucumbimos ao materialismo da besta da
Revelação, marcada repetidamente pelo sexto dia – 666 -, em um perpétuo retorno ao mundo da semana de
trabalho, como o personagem de Bill Murray no filme Groundhog Day (<O dia da marmota> ou <O feitiço do
tempo>).

A cada ano que passa, festejamos a invenção de dúzias de novos aparelhos que economizam traba-
lho. Mas esses aparelhos – o telefone celular, a teleconferência, o tablete – podem ter por efeito apenas aumen-
tar o dia de trabalho, invadindo o tempo em que estamos no carro e as preciosas horas em casa, desviando a
nossa atenção da família, da paisagem ou da estrada à nossa frente.

42
James Watson, discurso ao Fórum Econômico Mundial em 1990, citado por Richard John Neuhaus no artigo <The Excitable Dr. Watson>, FirstThings, jun-
jul 1990, pág. 67.
Se não obedecemos ao preceito de santificar o dia do Senhor – se não reservamos um tempo para pa-
rar e pensar -, perdemos a sensibilidade para Deus e para a sua presença junto de nós, e tornamo-nos incapazes
de adorá-lo. NO entanto, fomos feitos para a adoração: devemos adorar alguma coisa. E assim adoramos o
nosso trabalho, e consideramos a contemplação como o pior tipo de trabalho: pura escravidão.

Os meus amigos europeus criticam por vezes com veemência a barbárie da sociedade americana,
com o seu número de feriados rigorosamente limitado. Mas os europeus não estão muito melhor do que nós:
embora deixem escrupulosamente de trabalhar nos dias de grandes festas, não aprece que estejam enchendo as
suas igrejas. Passaram a adorar o lazer tanto quanto os americanos adoram o trabalho, o que é mais ou menos
como gostar do dia do casamento principalmente porque faz bom tempo e a comida está boa.

Mais uma vez: se falhamos em seguir o ritmo que Deus imprimiu à Criação – a ordem cósmica de
trabalho e adoração -, acabamos por levar uma vida desfigurada, privada de tudo o que a torna digna de ser
vivida. A atitude de quem <trabalha para o fim de semana>, que acabo de mencionar, passa a estender-se ao
arco de toda a vida. Os consultores de investimentos que conheço falam-me de um fenômeno que se dá com
frequência: homens que trabalham obsessivamente a fim de economizar para uma aposentadoria suntuosa e que 24
caem mortos assim que param de trabalhar. Em uma longa tarde de Sabbath sentem-se como que perdidos e
desamparados, como um peixe subitamente lançado à terra firme.

O trabalho deve ter um fim reto. Com <fim>, não quero dizer apenas o ponto em que se para, que,
aliás, é sempre necessário. Quero dizer especialmente uma razão reta, um fim pelo qual valha a pena empregar
heroicamente os meios.

E esse fim reto, só Deus pode sê-lo. Tão certo como o fato de ermos sido criados para trabalhar é o
fato de que, em última instância, fomos criados para adorar. Essas são as colunas gêmeas que sustentam a cria-
ção do homem no livro do Gênesis. O trabalho deve levar à adoração. O trabalho deve fluir da oração. E por
isso o trabalho deve estar permeado de oração.

Profissionalite

São Josemaria diagnosticou essa tendência para o excesso de trabalho como uma doença do espírito.
Fê-lo antes de se ter inventado a palavra workaholism, e chamou essa situação de profissionalite, sugerindo a
corrupção de uma coisa boa. Tal como a apendicite é a corrupção infecciosa do apêndice, a profissionaliteé a
degradação do verdadeiro profissionalismo. E assim o fundado do Opus Dei aconselhava às pessoas: <Coloca
os afazeres profissionais no seu lugar: constituem exclusivamente meios para chegar ao fim; nunca se podem
tomar, nem de longe, como o fundamental. Quantas “profissionalites” impedem a união com Deus!>43

Sem oração, o trabalho desordena-se. A oração, como o trabalho, é uma necessidade humana básica.
As duas coisas devem ser cultivadas na proporção adequada.

O perigo, é claro, está em exceder-se na compensação. Ao descansarem de um trabalho duro, os


workaholics normalmente não querem fazer nada. Mas o lazer –vivido em espírito de oração e contemplação –
certamente anão é não fazer nada. É atividade. É busca. É fazer alguma coisa.

São Josemaria escreveu: <Sempre entendi o descanso como um afastar-se do acontecer diário, nunca
como dias de ócio. Descanso significa represar: acumular forças, ideias, planos... em poucas palavras: mudar
de ocupação, para voltar depois – com novos brios – aos afazeres habituais>44.

É a celebração ativa do Dia do Senhor que dá valor ao nosso trabalho de cada dia. É o Dia do Senhor
que traz a realização profissional para o reino das possibilidades reais.

Um pequeno domingo em cada dia

Os membros do Opus Dei seguem o ritmo semanal, mas também o trazem para dentro da vida de
cada dia. Podemos dizer que são Josemaria aconselhava os cristãos a construírem um Sabbath dentro de cada
dia da semana: dizia com frequência que desejava que os leigos se tornassem <contemplativos no meio do
mundo>. E, para que pudessem consegui-lo, apostava em uma das práticas tradicionais da espiritualidade cató-
lica: o plano de vida.

43
Josemaria Escrivá, Sulco, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 2014, n. 502
44
Idem, n. 514.
O espírito do Opus Dei encontra a sua força em um programa de orações básicas, ajustado sob me-
dida às circunstâncias singulares de cada indivíduo. Um leigo comum pode reservar diariamente alguns tempos
fixos para diversas modalidades de oração – momentos de conversa silenciosa com Deus (oração mental), a
Missa (oração litúrgica), um oferecimento de obras matinal, o terço, o Ângelus e outras orações vocais. Para os
membros do Opus Dei – sejam casados ou solteiros -, essas são <as normas>, assim chamadas porque balizam
um dia normal. O plano básico estabelecido por São Josemaria não teve grandes ajustes ao longo das décadas:

Oferecimento de obras pela manhã;


Oração mental;
Missa;
Ângelus;
Rosário;
Leitura do Evangelho e de algum livro espiritual;
Algumas pequenas mortificações;
Uma breve visita ao sacrário;
Preces (a oração diária do Opus Dei); 25
Exame de consciência;
Três Ave-Marias ao deitar-se;
Persignar-se com água benta.

Há ainda algumas poucas normas semanais, mensais ou anuais – como, por exemplo, a confissão
semanal, um dia de recolhimento mensal e o retiro anual.

Quando me tornei católico, não estava acostumado às orações vocais. Como evangélico, sentia-me
amais inclinado à oração espontânea, silenciosa ou em voz alta. Por isso, foi-me fácil passar para a prática
católica da oração mental. Mas as outras formas pareciam-me pouco animadoras. E quando vi pela primeira
vez uma folha impressa com a lista das normas de um membro do Opus Dei, achei que nunca conseguiria
acrescentar tantas novas <tarefas> ao meu dia.

Tive, contudo, um sábio diretor espiritual e confessor, um sacerdote que me foi introduzindo nessas
práticas uma de cada vez. Quando me acostumei a recitar as Preces, por exemplo, quase já nem me parecia que
se tratava de uma <tarefa>. Era mais como comer ou ler – atividades que nunca me custaram especial esforço!
Percebi também que, quando eu era fiel ao meu programa, Deus – para usar outra frase de São Josemaria -
<multiplicava o meu tempo>: ou conseguia superar as metas que me havia proposto, ou – por vezes – abriam-
se inesperados tempos livres.

Quando ganhei desenvoltura na prática desse plano de vida, comecei a experimentar uma grande paz
nos meus dias. De início, pude nota-la particularmente durante os meus tempos de oração, mas depois foi-se
estendendo gradualmente ao meu tempo de trabalho e às conversas com a minha esposa e os meus filhos. Esta-
va mais consciente da companhia de Deus em todos os momentos e podia descansar na sua presença. Certa
vez, Santo Agostinho definiu a paz como <a tranquilidade na ordem>. Foi o plano de vida que acabou final-
mente por imprimir essa ordem espiritual aos meus dias. E essa ordem era o prerrequisito necessário para a
minha paz. Por fim, o meu trabalho estava ordenado para a contemplação – e não só nas minhas intenções mais
íntimas, mas, com muita frequência, também nos meus pensamentos conscientes.

Isso aconteceu há quase duas décadas. Às vezes, mesmo depois de todos estes anos, é difícil para
mim encaixar todas as coisas em um dia atarefado. Mas, ao longo do tempo, tenho observado um padrão: des-
cobri que, quando sou fiel ao meu compromisso de rezar, estou em paz. Em contrapartida, quando deixo as
minhas normas um pouco soltas, fico ansioso, indeciso e com a mente dispersa; conto demasiado comigo
mesmo e esqueço-me de que Deus é a minha força.

Um plano exige esforço no começo, mas depois torna o resto da vida menos trabalhoso. Hoje, acho
difícil imaginar-me vivendo a minha vida atarefada – de marido, de pai e de professor – sem os nítidos marcos
diários do meu plano de vida. Comparo isto ao tênis: é possível jogar algo parecido com o tênis sobre qualquer
superfície dura e lisa, mas o jogo é mais autêntico, mais divertido e satisfaz mais em uma quadra com linhas
claramente demarcadas e uma rede.

Fidelidade aos nítidos marcos diários: essa é a chave. São Josemaria aconselhou-nos: <Deves defen-
der, acima de tudo, os teus tempos diários de oração – de oração íntima generosa, prolongada –, e hás de procu-
rar que esses tempos não sejam quando calhar, mas a hora certa, sempre que te seja possível. Não cedas nestes
detalhes. Sê escravo deste culto cotidiano a Deus, e eu te asseguro que te sentirás constantemente alegre>45.

45
Idem, n. 994.
Tenho amigos que fazem objeções a essa abordagem. Acreditam que a oração, como o amor, deve
ser espontânea. Chegam-se a seguir um plano de vida como se se tratasse de uma <espiritualidade de lista de
checagem>. Estou de acordo com eles em que a oração espontânea é uma coisa maravilhosa, mas o amor dura-
douro depende também de certos rituais. A minha esposa Kimberly nunca se cansa de ouvir-me dizer <Eu te
amo> e <Você está linda>, não importando quantas vezes eu lhe diga essas frases ao longo de uma semana.
Não me censura por querer comemorar aniversário do nosso casamento justamente no dia exato. Nem protes-
tou de maneira nenhuma quando, há uns anos, lhe sugeri que começássemos a sair juntos todas as semanas em
uma noite determinada. No amor, como na poesia, uma certa forma fixa de fazer as coisas é o segredo para
tornar mais fácil e mais incisiva a espontaneidade.

Também em matérias menos elevadas seguimos um plano, e as nossas vidas seriam impossíveis sem
ele. Todas as manhãs sigo praticamente a mesma rotina de higiene básica e, desde os meus dez anos de idade,
nunca a considerei uma carga pesada (antes disso, como a maioria dos meninos pequenos, pensava que a higie-
ne deveria ser menos rígida e mais espontânea). Esse programa de higiene mantém-me em um estado de saúde
relativamente bom e torna a minha presença mais tolerável aos meus colegas e familiares.
26

Rito na raiz

O elemento mais importante no plano de vida do Opus Dei é a Santa Missa. Para são Josemaria, ela
nunca era simplesmente <a Missa>, mas sempre <a Santa Missa>. É fácil saber por quê. Descrevia a liturgia
eucarística como <a ação mais sagrada e transcendente que os homens, pela graça de Deus, podem realizar
nesta vida>46. Via a Missa como o céu na terra: <Receber o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor é, de certo
modo, como desatar as nossas amarras com a terra e com o tempo, para assim estar já com Deus no céu>47.

Os membros do Opus Dei esforçam-se por assistir à missa todos os dias. A Missa é como o sol, em
torno do qual gira o resto do dia. São Josemaria não achava que o resto do dia não fosse importante, mas sim
que todas as demais coisas da vida adquiriam a sua importância na Missa.

O segundo prelado do Opus Dei, D. Javier Echevarría, explicou-o do seguinte modo: <A presença
da Eucaristia na vida do cristão não está limitada ao momento sublime da Missa. Podemos levar al altar as
nossas ações diárias, as nossas tarefas habituais, quando nos esforçamos ao longo o dia por referi-las a Deus na
Eucaristia. Qualquer trabalho honesto pode ser um meio para nos unirmos espiritualmente ao sacrifício de
Cristo na Santa Missa>48.

Aí está tudo: o nosso trabalho ordenado para a oração, o nosso trabalho que se eleva como um sacri-
fício de adoração, a nossa contemplação dando nova vida ao nosso trabalho. São Josemaria explicou-o bem:
<Deves lutar por conseguir que o Santo Sacrifício do Altar seja o centro e a raiz da tua vida interior, de modo
que todo o teu dia se converta em um ato de culto - prolongamento da Missa a que assististe e preparação para
a seguinte>49. Todo o nosso dia será então um ato de adoração.

É assim que as pessoas leigas comuns participam do sacerdócio de Jesus Cristo. Jesus preside à
grande liturgia cósmica e nós somos seus concelebrantes. Ele olha para o mundo do modo como olha para a
hóstia, quando o sacerdote pronuncia as palavras: <Isto é o meu corpo>. Nós oferecemos o mundo ao Pai com
Cristo, o Sumo Sacerdote, e o mundo se transforma. Essa é a resposta à nossa contínua súplica: <Venha a nós o
vosso reino>. E o reino chega como trabalho das nossas mãos.

A missa confere um profundo significado a todo o nosso trabalho quando o pomos – por meio de um
ato interior de oração – sobre o altar do sacrifício. Este é o coração e a alma daquilo que São Josemaria <viu>
em 1928. Em 1964, o Concílio Vaticano II fez disso o selo de autenticidade dos ensinamentos da Igreja sobre o
sacerdócio comum dos leigos. Falando de cristãos ordinários, os Padres conciliares disseram:

<Todas as suas obras, orações e inciativas apostólicas, a vida familiar e conjugal, o trabalho cotidia-
no, o descanso do espírito e do corpo, se forem realizados no Espírito, e até mesmo as contrariedades da vida,
se levadas com paciência, convertem-se em sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cf. 1 Pe
2, 5); e na celebração da Eucaristia, tudo isso é oferecido piedosamente ao Pai, juntamente com a oblação do
corpo do Senhor. Assim também os leigos, procedendo santamente em toda parte como adoradores, consagram
a Deus o próprio mundo>50.

46
Questões atuais do cristianismo, pág. 113
47
Ibidem.
48
Javier Echevarría, rdinary Work to be Offered on the Altar>, Avvenire, Milão, 31.10.2005.Disponível em inglês no site www.opusdeu.org.
49
Josemaria Escrivá, Forja, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 2014, n. 69.
50
Lumen gentium, n. 34.
Deste modo, a nossa <Missa> não termina quando o sacerdote diz <Ide em paz>. Vivemos a trans-
formação, o milagre, a comunhão em todas as ações do nosso dia.

O grande rabino Abraham Joshua Heschel disse que o Sabbath é para o tempo o que o templo é para
o espaço. O plano de vida insere o espírito do Dia do Senhor em todos os dias da semana. É um espírito de
contemplação, que nos torna <contemplativos no meio do mundo>. Assim como o nosso Sabbath é permanen-
te, também o nosso templo está em todos os lugares, porque está no céu e porque os nossos corações já estão
no céu.

É precisamente por isso que somos contemplativos. Um contemplativo é, etimologicamente, uma


pessoa ocupada em atividades associadas ao templo (<com-templo-ativo>). E quais são as atividades que têm
lugar no templo? Oração e sacrifício. No mundo antigo, os santuários destinavam-se às meras devoções e os
templos ao sacrifício.

Hoje, toda a nossa vida se destina a isso: à oração e ao sacrifício. E isso tem o alcance e a ressonân-
cia de um plano para toda a existência. 27
Apontar alto
<Aspiração: que eu seja bom, e todos os outros melhores do que
eu>. Caminho, n. 284

Devemos ter um enorme respeito pela dignidade que Deus conferiu aos nossos amores e trabalhos
de cada dia. Ele deu-nos o poder de oferece-lo como sacrifícios santos; no Batismo e na Crisma, ungiu-nos
seus sacerdotes para oficiarmos o sacrifício diário – quer estejamos sentados a uma escrivaninha, de pé em uma
linha de montagem ou inclinados sobre uma mesa para trocar fraldas. Somos uma nação de sacerdotes que
habitam na casa do Senhor, no templo santo, todos os dias das nossas vidas (cf. Sal 27, 4).

Por isso, todas as instruções, leis e ponderações da Bíblia sobre o sacrifício deveriam ganhar um no-
vo e profundo significado para nós. Porque Deus recebeu os frutos do trabalho humano como sacrifício já 28
desde as primeiras páginas do Gênesis, e mostrou uma grande preocupação pelo modo como os seus sacerdotes
faziam as suas oferendas. Pensemos, por exemplo, há história de Caim e Abel. Por que o sacrifício de Abel
agradou a Deus e o de Caim não? Pensemos também nas leis do Êxodo, do Levítico e do Deuteronômio. Ten-
demos a identificar <a Lei> do antigo Israel com os Dez Mandamentos, mas o Decálogo ocupa menos de um
capítulo, ao passo que as prescrições para o sacrifício constituem a maior parte da legislação bíblica.

É razoável que perguntemos por que Deus cuidou tanto da qualidade das oferendas de Israel. Afinal
de contas, Ele mesmo afirmou que não tinha necessidade delas para alimentar-se.

Amor e sacrifício

Deus instituiu o sacrifício não em seu benefício, mas no nosso. A lei sacrificial era apenas um meio
para que o povo de Israel atingisse o glorioso fim que Deus tinha em mente: o de disciplinar o povo de Deus,
fazendo-o concentrar a sua atenção na adoração, na gratidão, na aversão ao pecado, na necessidade de pureza e
na necessidade de renunciar a todas as coisas para chegar à posse de Deus. Ou seja, o sacrifício é uma expres-
são do amor e é uma condição prévia do amor.

Isso vale igualmente para o amor humano. Quando um homem e uma mulher se casam, prometem
um ao outro um amor exclusivo e renunciam à possibilidade de ter encontros amorosos com todos os outros
homens e mulheres. Trocam anéis feitos de um metal precioso e, às vezes, também com pedras preciosas. Fa-
zem uma oferenda de tudo o que têm e de tudo o que são, simbolizada pelos minerais mais preciosos que a
terra pode produzir.

A lei divina tornava o povo de Deus capaz de estabelecer e manter uma relação de amor com o seu
Criador e Redentor. A antiga lei ritual requeria que se trouxessem para o sacrifício os primeiros frutos dos
campos e pomares, as primícias dos rebanhos e manadas, e o melhor vinho das videiras. Estava proibido esco-
lher as peças de menor valor – ovelhas, cabritos ou bois, por exemplo -,que tivessem defeitos ou manchas (cf.
Lev. 22, 20-24)

Repetimos: Deus fez essas leis para nosso benefício, não para o seu. Se exigiu a parte mais valiosa
dos rebanhos, foi para benefício de Israel, não para o seu. Foi porque a humanidade e todas as famílias huma-
nas e todos os seres humanos precisavam então e precisam hoje de lhe dar o melhor de si. Ele não se satisfaz
com o segundo melhor - e– mais uma vez, não é porque precise das nossas dádivas ou se alegre vendo os seus
filhos privados de coisas boas. É porque deseja o nosso amor, dado livre, mas completamente.

Aprendemos esta lição não só da Lei, mas também dos Profetas. O profeta Malaquias invectivou os
sacerdotes do seu tempo porque vinham oferecendo a Deus os refugos da florescente economia do seu tempo e
guardavam o melhor para si mesmos. Por meio de Malaquias, Deus censurou-os por pensarem que a mesa de
Deus pode ser desprezada Mal 1, 7). É uma linguagem forte, mas nela ressoa a verdade. Um homem que insis-
ta em que ama a esposa enquanto esbanja os mais finos presentes com a amante... não ama realmente a esposa.

Por meio de Malaquias, Deus pergunta aos sacerdotes do templo de Jerusalém: <Quando ofereceis
em sacrifício um animal cego, não haverá mal algum nisso? E quando ofereceis um animal coxo ou doente,
não vedes mal algum nisso? Vai então oferece-lo ao teu governador: julgas que lhe agradarás, que ele te re-
ceberá bem?>(Mal 1, 8-9).
O profeta faz-lhes notar que ofereciam a Deus um serviço de tão má qualidade que nunca se atreve-
riam a oferece-lo ao governador persa da Judeia. Mas Deus é Aquele que tudo vê, tudo sabe e tudo pode; ao
contrário do governador, não pode ser enganado. O que isto nos revela acerca da fé dos sacerdotes de Israel?
Acerca da sua reverência? Acerca do seu temor na presença do Senhor?

O que os seres humanos oferecem a Deus é simbólico, mas não é um símbolo meramente nominal.
Tem importância o tipo de símbolo que escolhemos; tem importância do tipo de dons que oferecemos. Sim, o
que valer é a intenção, mas o dom deve ser uma expressão tão clara e tão pura quanto possível da intenção. Se
um sacerdote oferecia a Deus uma vítima que não era o melhor possível, merecia todas as invectivas de que –
por inspiração divina!... – Malaquias pudesse lançar mão.

As implicações que resultam disto deveriam ser-nos evidentes por si mesmas. Diariamente, estamos
diante de Deus na condição de sacerdotes que lhe oferecem o seu trabalho. Deveríamos oferece-lhe sempre o
melhor que temos. Deveríamos desejar oferece-lhe sempre algo grande, puro e mais perfeito Em todos os nos-
sos trabalhos, deveríamos esforçar-nos por alcançar esse fim51.
29
Santamente empenhados

Esse é o motor por trás daquilo que São Josemaria designava como <santa ambição>. E é fácil dis-
tinguir este tipo de ambição de outras variantes menos nobres. Movidos pela santa ambição, servimos a Deus e
aos outros. Movidos por uma ambição mesquinha, servimo-nos unicamente a nós mesmos. São Josemaria
explicou-o bem: <Os “ambiciosos” – de pequenas e miseráveis ambições pessoas – não entendem que os ami-
gos de Deus aspirem a “alguma coisa”, por serviço e não por “ambição”>.52

Não deveríamos confundir nunca a humildade e a modéstia cristã com uma vontade de obras medío-
cres. Jesus ordenou-nos que não escondêssemos as nossas luzes debaixo do alqueire. Disse-nos que somos uma
cidade situada sobre um monte. Muito bem, mas primeiro temos de galgar o monte, através do nosso trabalho
honesto e esforçado, ajudados pela graça de Deus.

A Igreja faz-se eco da voz do Mestre nesta matéria. O Concílio Vaticano II instou os católicos a
<tornar-se melhores através do trabalho>53. Porque se nós próprios crescermos bastante, poderemos ajudar
mais e mais os nossos concidadãos. Os leigos <façam progredir a sociedade e toda a Criação, imitando com
operosa caridade Jesus Cristo, cujas mãos se exercitaram em trabalhos de operário e que, em união com o Pai,
continuamente atua para a salvação de todos; alegres na esperança, levando os fardos uns dos outros, subam
com o próprio trabalho cotidiano a uma santidade mais alta, também ela apostólica>54. Estamos diante de um
apelo para que os católicos apontem alto no seu trabalho profissional, e de uma clara indicação de que o afã de
sermos bem-sucedidos profissionalmente e a nossa vocação cristã para a santidade são objetivos complementa-
res – ou, pelo menos, podem ser.

Em outro documento, o Concílio Vaticano II estabeleceu a conexão em termos ainda mais fortes.
Merece ser citada integralmente:

Uma coisa é certa para os crentes: a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço
com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de
Deus. Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela
contém e de governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orien-
tar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado
em toda a terra o nome de Deus.

Isto aplica-se também às atividades de todos os dias. Assim, os homens e as mulheres que, ao ganha-
rem o sustento para si e para as suas famílias, de tal modo exercem a própria atividade que prestam convenien-
te serviço à sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra do Criador,
ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização dos desígnios de Deus na história.

Longe de pensarem que as obras do engenho e poder humano se opõem ao poder de Deus, ou de
considerarem a criatura racional como rival do Criador, os cristãos devem, pelo contrário, estar convencidos de
que as vitórias do gênero humano manifestam a grandeza de Deus e são frutos do seu desígnio inefável. Mas,
quanto mais aumenta o poder dos homens, tanto mais cresce a sua responsabilidade, pessoal e comunitária. Vê-

51
Sobre a proibição bíblica de escolher itens de pouco valor para o sacrifício, veja-se p. ex. Lev 22, 20-24.
52
Sulco, n. 625.
53
Lumen gentium, n. 41.
54
Idem.
se, portanto, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo, nem os leva a desa-
tender o bem dos seus semelhantes, antes os obriga ainda mais a realizar essas atividades55.

Diligência, talento, energia, responsabilidade, sucesso: esta é a linguagem da ambição e da realiza-


ção pessoal. É uma linguagem que os filhos de Deus deveriam falar fluentemente, e as suas palavras deveriam
refletir-se na sua ação.

Para que só Deus veja

Surpreendentemente, São Josemaria fala desta ambição não em termos de grandes esquemas, mas
sobretudo de <coisas pequenas>. Escreveu: <Rejeita a ambição de honras; contempla, pelo contrário, os ins-
trumentos, os deveres e a eficácia – Assim, não ambicionarás os cargos e, se te chegam, hás de olhá-los na sua
justa medida: como cargas a serviço das almas>56.
30
Por isso, os nossos objetivos de longo prazo não nos devem distrair a tal ponto que nos levam a ne-
gligenciar as tarefas aparentemente rotineiras e insignificantes que reclamam a nossa atenção hoje e agora.
Encontramos a vontade de Deus em acabar com perfeição as pequenas tarefas, conscientes de que há pessoas
que dependem delas. Encontramos igualmente a vontade de Deus – e talvez especialmente – nas pequenas
coisas que fazemos e em que ninguém repara: se as fazemos <para que só Deus as veja>, podem elevar-se ao
céu como um sacrifício puro, sempre que sejam bem feitas, no momento devido e oferecidas a Deus.

Isto também traz benefícios na ordem natural. Porque, se fizermos essas pequenas coisas com pron-
tidão e cuidado, sem adiá-las e com toda a atenção, descobriremos que estamos avançando nas nossas metas
profissionais, assim como no cumprimento das obrigações de caridade e justiça. Seria ridículo pensar que po-
deremos realizar grandes coisas se não cuidarmos dos detalhes. São Josemaria escreveu em resposta a uma
carta: <Dizes-me: - Quando se apresentar a ocasião de fazer algo de grande... então sim! – Será? Pretendem
fazer-me acreditar, e acreditar tu seriamente, que poderás vencer na Olimpíada sobrenatural sem a preparação
diária, sem treino?>57

A atenção cuidadosa às pequenas coisas é uma virtude humana tão básica que quase nem vale a pena
mencioná-la. Será que alguém, na era moderna, consegue realmente melhorar a historieta admonitória de Ben-
jamin Franklin? <Por falta de um prego, perdeu-se a ferradura; por falta da ferradura, perdeu-se o cavalo; e por
falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiro, que foi alcançado e morto pelo inimigo; tudo por falta de cuidado com o
prego de uma ferradura>...58 Todos sabemos que falhar no dever em matérias pequenas pode trazer consequên-
cias involuntárias desastrosas.

A abordagem católica, no entanto, oferece-nos algo mais. Com efeito, traz à luz a diferença que há
entre realizar um trabalho humano e realizar um trabalho divino. Não invalida as considerações puramente
naturais de Flanklin, mas eleva-as à perfeição sobrenatural. Diz um adágio da teologia católica que a graça de
Deus não destrói o que ele criou na natureza, mas constrói sobre ela, completa-a e eleva-a; assim, o fiel comum
deveria servir-se das ações mais corriqueiras – como ultrapassar um carro na estrada, debulhar milho, respon-
der a um e-mail – para, fazendo-as bem segundo os padrões humanos, elevá-las até um padrão divino mediante
o seu oferecimento a Deus, que as levará à perfeição de acordo com a sua santa vontade. <Podemos transfor-
mar em divino tudo o que é humano – disse São Josemaria -, assim como o rei Midas convertia em ouro tudo o
que tocava!>59

Mãos à obra

As pequenas coisas que fazemos são os tijolos das grandes coisas que Deus planejou para as nossas
vidas, para a história e para o desenvolvimento do cosmos.

A bem dizer, as coisas pequenas importam tanto para nós porque importam muito para Deus. Ele é o
claro significado da parábola de Jesus sobre os talentos (Mt 25, 14-31) – por sinal, uma parábola sobre ambi-
ção. Nessa parábola, Jesus põe duas vezes nos lábios do senhor – que representa Deus – estas palavras de elo-

55
Concílio Vaticano II, Const. Past. Gaudiumetspes, n. 34.
56
Sulco, n. 976.
57
Caminho,n. 822.
58
Benjamim Franklin, <Poor Richard’s Almanack>, jun 1758. In The Complete Poor Richard’s Almanacks, vol. 2, Imprint Societh, Barre, 1970, págs.375 e
377. O aforismo de Franklin encontra um eco familiar em Caminho, em um ponto (n. 830) em que o Fundador do Opus Dei fala de cada fiel como <um
pequeno parafuso nessa grande empresa de Cristo>.
59
Amigos de Deus, n. 221.
gio: <Muito bem, servo bom e fiel; porque foste fiel no pouco, eu te constituirei sobre o muito; entra no gozo
do teu senhor>.

São as coisas pequenas que contam, também para Deus. Pela nossa atenção às coisas pequenas, imi-
tamos a Deus do modo mais perfeito. O nosso Deus é o senhor do universo, cuja mente e poder se evidenciam
na formação do Himalaia, mas também no movimento das partículas subatômicas. E Ele não move montanhas
sem mover nesse processo um montão de elétrons!

Há, pois, algo de grande escondido nas coisas mais ordinárias. São Josemaria assim o compreendeu
e impacientava-se com os que aspiravam à santidade imbuídos de inclinações românticas e viam na vida cor-
rente um obstáculo à verdadeira grandeza. Qualificou essa atitude como <mística do oxalá>60. Não podemos
ficar sentados e lamentar-nos: <Oxalá não me tivesse casado, oxalá não tivesse esta profissão, oxalá tivesse
mais saúde, oxalá fosse jovem, oxalá fosse velho>. Em vez disso, São Josemaria dizia que deveríamos <ater-
nos à realidade mais material e imediata> e pôr mãos à obra.

As menores tarefas podem ganhar um valor infinito quando as oferecemos a Deus, quando as reali- 31
zamos como trabalhos de Deus. A santa ambição esforça-se por chegar à grandeza também nas coisas peque-
nas. Precisamente por isso, fica satisfeita com quaisquer resultados terrenos que Deus queira ou permita. Po-
demos viver com santa ambição mesmo que as nossas perspectivas profissionais sejam limitadas Não existe
nela nada dessa ansiedade, desapontamento ou insatisfação que se apossam dos homens e mulheres no seu
esforço por subir ao topo da escala corporativa ou social.

A santa ambição aspira, pois, a coisas grandes, mas satisfaz-se com qualquer coisa que seja a vonta-
de de Deus. São Josemaria instava com os cristãos. <Sem perderes essa santa ambição de levar o mundo inteiro
a Deus [...], lembra-te de que também te toca a ti obedecer o ocupar-te dessa tarefa obscura, pouco brilhante,
enquanto o Senhor não te pedir outra coisa: Ele tem os seus tempos e as suas sendas>61.

Uma <tropa de elite> para toda a gente

A santa ambição é algo que podemos pôr em prática independentemente do lugar que ocupamos ou
daquilo que fazemos. É uma ideia que achei imensamente atraente desde os meus primeiros contatos com o
Opus Dei. Naquela época, havia quem criticasse o Opus Dei, acusando-o de elitismo e exclusivismo. Eu acha-
va tudo isso muito gozado, porque os meus amigos do Opus Dei sempre tinham tempo para mim, embora eu
fosse um ex-ministro protestante precariamente empregado e sem uma perspectiva profissional clara.

Certamente não era o tipo de pessoa que pudesse ser contada entre <a elite>. Um dia, resolvi distra-
ir-me um pouco elaborando uma lista dos meus objetivos de longo prazo. O principal deles era o meu íntimo
desejo de algum dia dar aulas de formação para adultos em uma paróquia: não era bem o que a maior parte das
elites culturais consideraria uma ambição avassaladora! E a acusação do exclusivismo era realmente cômica:
eu nem sequer era católico!

Mais ou menos na mesma época, o meu bom amigo John Hass, um ex-ministro protestante que tra-
balhava em um campo mais de elite – operações bancárias internacionais -, viajou por meio mundo até final-
mente descobrir a santa ambição do Opus Dei em ação. E encontrou-a em um lugar surpreendente. John recor-
da-se com carinho das suas conversas com um motorista de táxi guatemalteco chamado Gustavo, que dirigia
velozmente, mas com segurança o seu velho calhambeque, fazendo as curvas e dobrando as esquinas com
extrema precisão, e entregando sempre o seu passageiro com absoluta pontualidade em qualquer destino, fosse
qual fosse a distância. John admirou-se da competência e meticulosidade profissionais daquele homem pobre.
E também ficou impressionado com o seu visível amor pela esposa e filhos, que surgiam habitualmente como
temas gratos na sua conversa. A certa altura, perguntou-lhe em que fontes espirituais bebia esse amor. Gustavo
<abaixou o quebra-sol do seu carro desconjuntado e coberto de pó, e puxou de uma estampa com uma oração a
Josemaria Escrivá>62.

Essa é uma ambição que leva a trabalhar duro, mas ao mesmo tempo uma ambição santa, que deixa
os resultados para Deus. Isso não é elitismo, embora eu esteja convencido de que muitas, muitas pessoas que
encaram avida desse modo conseguem chegar muito longe na sua vida profissional. Pessoas que trabalham por
amor são trabalhadores altamente motivados. E quando a sua motivação última é o amor a Deus, o seu trabalho
pode tornar-se tão excelente que chegue a moldar o curso dos acontecimentos. Os livros didáticos de história
fornecem um amplo testemunho disso. Além do mais, uma espiritualidade que leve em contra a <ambição
humana>, ou seja, as aspirações nobres, torna-se extremamente atraente para os cristãos que sejam <ambicio-
60
Questões atuais do cristianismo, n. 88.
61
Sulco, n. 701.
62
Citado em uma carta ao Autor.
sos> por natureza. Confere um sentido divino à força que os impede a avançar e ajuda-os a canalizá-la de um
modo saudável.

Tal como a maior parte das coisas que encontramos no espírito do Opus Dei, isto é mero catolicis-
mo, ainda que São Josemaria tenha sido o único a enfatizá-lo. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja
ensina que <todos devem fazer um legítimo uso dos seus talentos a fim de contribuírem para uma abundância
que beneficie a todos e de colherem os justos frutos do seu trabalho>63. Se acreditarmos que isto é verdade,
então não hesitaremos em pedir um aumento de ordenado ou uma promoção que nos sejam devidos.

Mais ainda, devemos pleiteá-los não penas pelos nossos justos méritos, mas pelos justos méritos de
Deus. Consideremos uma outra passagem do Compêndio da Igreja: <Por meio do trabalho, o homem governa
o mundo com Deus; juntamente com Deus, ele é o seu senhor e realiza coisas boas para si próprio e para os
outros>64. <Homem>, nessa passagem, designa a você e a mim – a todos os cristãos, homens, mulheres e cri-
anças. Nós governamos <juntamente com Deus> no lugar em que nos encontramos: e por amor a Deus e ao seu
reino, devemos desejar sempre progredir.
32
Do nascer ao pôr do sol

Segundo o espírito do Opus Dei, a santa ambição não é autoengrandecimento, não é passe livre para
super-empreendedores. É o reconhecimento de que seremos julgados pelo bom uso que tivermos feito do tem-
po e dos talentos que Deus nos deu. É o reconhecimento de que o nosso trabalho, por pequeno e humilde que
seja, experimenta uma transformação quando o depomos sobre o altar de Deus.

O nosso trabalho diário pode parecer apenas uma coisa pequena atrás da outra, mas assim são o pão
e o vinho que o sacerdote consagra em todas as Missas: é o oferecimento – em grego, a anáfora – que os trans-
forma em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo. De modo similar, os nossos trabalhos são trans-
formados em algo divino pelo nosso oferecimento sacerdotal, pelo nosso <toque de Midas>.

Pensemos de novo nas palavras com que o profeta Malaquias exortava os sacerdotes de Jerusalém a
purificar as suas oferendas. Hoje, essas palavras são dirigidas a nós. Deus quer que lhe ofereçamos os nossos
melhores esforços no trabalho. Por que haveríamos de oferecer um trabalho manchado ou coxo se Deus nos
conferiu dons para fazer algo melhor?

A exortação de Malaquias é apenas um prelúdio para a profecia bíblica que os Padres da Igreja apli-
caram – mais do que qualquer outra profecia – à Santa Missa. Desde o nascer do sol até o poente, é grande o
meu nome entre as nações; e em todo lugar se oferece ao meu nome incenso e uma oblação pura; porque o
meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor dos exércitos (Mal 1, 11). Hoje, essa profecia ecoa na Oração
Eucarística Terceira do rito latino: <para que se vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr do sol, um sacrifí-
cio perfeito>.

A linha do mapa que vai do leste ao oeste, do nascer ao pôr do sol, passa bem no meio da nossa vida
ordinária, onde quer que estejamos. Onde quer que estejamos, esse é o lugar em que fomos chamados a fazer
uma oferenda pura, uma oferenda perfeita. Porque o sacrifício da nossa vida de trabalho e da nossa vida famili-
ar é um só com o sacrifício da Missa.

As pessoas diziam de Jesus: <Fez bem todas as coisas>(Mc 7, 37). Aqui está a minha esperança, a
minha prece, a minha santa ambição: possam as pessoas dizer algum dia a mesma coisa de mim, de você e de
todos nós que trazemos o nome de Deus desde o Batismo. Que possamos glorificar esse nome por meio da
nossa vida.

63
Pontifício Conselho <Justiça e Paz>, Compêndio de Doutrina Social da Igreja, Paulinas, São Paulo, 2005, n. 336.
64
Idem, n. 265.
Amizade e confidência
<Essas palavras que tão a tempo deixas cair ao ouvido do amigo que
vacila; a conversa orientadora que soubeste provocar oportunamen-
te; e o conselho profissional que melhora o seu trabalho universitá-
rio; e a discreta indiscrição que te faz sugerir-lhe imprevistos hori-
zontes de zelo... Tudo isso é “apostolado da confidência”>. Cami-
nho, n. 973.

Propagar o amor de Jesus Cristo é um dever de todos os cristãos. Não podemos manter a nossa fé
sem divulga-la. Todos nós participamos da responsabilidade de evangelizar que cabe à Igreja. Ou, para dizer o
mesmo com os termos técnicos do magistério da Igreja, há uma chamada universal ao apostolado. Assim, a
grande tarefa confiada por Jesus aos Apóstolos aplica-se a todos e a cada um de nós, cristãos: <Ide, pois, ensi- 33
nai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir
todas as coisas que vos mandeis: (Mt 28, 19-20).

O laicato deve assumir mais o peso desse preceito de Cristo. Porque nós somos os católicos que, pe-
lo nosso trabalho e deslocamentos, são levados a todas as nações. Incumbe-nos o especial dever de promover a
santificação do mundo, um dever que foi assumido com alegria e cumprido com êxito pelas primeiras gerações
de cristãos. Foi nesses <primeiros cristãos> que São Josemaria sempre procurou inspiração e instrução, porque
eles viveram no meio de uma cultura hostil e perversa ao longo de um tempo de intensa perseguição aos cris-
tãos, em um momento em que a Igreja não possuía edifícios nem organizava atos públicos, e mesmo assim
conseguiram converter o Império Romano. Durante quase três séculos de perseguição, a Igreja cresceu a uma
taxa estável de 40% a cada década!

No decurso desses anos, a Igreja Católica teve muitos papas santos e heroicos. Muitos deles morre-
ram mártires, e a maior parte foi canonizada. Não devemos subestimar o valor do seu testemunho e das graças
que obtiveram pelo sangue que derramaram. Mas também devemos compreender que, dado o estágio primitivo
das comunicações no mundo antigo, muitos cristãos nem sequer chegavam a conhecer o nome do papa que os
regia, e podiam passar-se meses até que a notícia da morte de um papa e a do nome do seu sucessor alcanças-
sem os confins rurais mais afastados das províncias. Nesse meio tempo, os fiéis comuns iam levando as suas
vidas, cultivando a terra, comercializando os seus produtos e fazendo crescer suas famílias. Por meio de todas
essas atividades, deram testemunho da sua fé católica e conquistaram os seus concidadãos.

Evangelizaram, embora o tenham feito de um modo bem diferente dos estereótipos modernos de
comportamento cristão. Não eram <pregadores da Bíblia>, embora amassem a Palavra de Deus. Não arrasta-
vam amigos relutantes ao culto divino todas as vezes que lá iam, pois a Missa, naqueles tempos, era um ato
reservado: tinha lugar em casas particulares e só os batizados podiam assistir a ela.

Alma do mundo

Os primeiros cristãos atingiram o seu objetivo por um caminho silencioso, santificando o mundo por
dentro, como o fermento na massa. A Carta a Diogneto, do século II, descreve-o muito bem: <Assim como a
alma está no corpo, assim estão os cristãos no mundo. A alma está dispersa por todos os membros do corpo e
os cristãos estão espalhados por todas as cidades do mundo [...]. A alma invisível está guardada pelo corpo
visível e os cristãos são, de fato, conhecidos por estarem no mundo, embora o seu relacionamento com Deus
permaneça invisível>.

O trabalho da Igreja era aparentemente invisível porque os cristãos não faziam nada fora do normal:
não usavam nenhum uniforme que os distinguisse nem se comportavam de modo estranho nos lugares públi-
cos. A Carta a Diogneto explica-o: <Os cristãos não se distinguem dos outros nem pela sua terra, nem pela sua
língua. Nem pelos costumes que observam. Pois não moram em cidades próprias, nem falam uma linguagem
estranha, nem têm algum modo especial de viver [...]. Mas, habitando tanto as cidades gregas como as bárbaras
[...], e seguindo os costumes nativos quanto às roupas, comida e todo o resto, testemunham um modo de vida
admirável e, sem dúvida, paradoxal>65.

65
Carta a Diogneto. A versão completa em inglês e o original grego estão no site www.ccel.org.
Os nossos antecessores cristãos foram tão bem-sucedidos que as autoridades pagãs os acusavam fre-
quentemente de confiar na magia, em segredos e em uma vasta rede de conspiradores para atingirem os seus
fins: o seu sucesso aprecia demasiado grande para ter sido alcançado por meios humanos ordinários. O cristão
africano Tertuliano sublinhou: <Somos de ontem e já preenchemos o mundo e todos os seus lugares: as metró-
poles, as ilhas, as cidades, os municípios, os conselhos, assim como os quartéis, os tribunais, as assembleias, o
palácio, o senado e o fórum. Só vos deixamos os vossos templos>66!

Assim foi: eles converteram o mundo enquanto faziam o seu trabalho – e fazendo o trabalho de
Deus, o que vinha a ser a mesma coisa. Não o conquistaram por meios militares, nem por meio ocultos e, cer-
tamente, não pela pregação. Apesar disso, esses leigos cristãos comuns – são palavras do Concílio Vaticano II
– tornaram <Cristo conhecido dos outros especialmente pelo testemunho de uma vida que resplandecia na fé,
na esperança e na caridade>67.

São Josemaria exortou os cristãos comuns a levar a cabo nos nossos dias o mesmo tipo de silenciosa
mas efetiva evangelização68. Chamava-a <apostolado de amizade e confidência>69.
34
A amizade é, afinal, o laço social ordinário entre as pessoas. A confidência e a confiança são a ar-
gamassa nas relações profissionais diárias. Somente com base na amizade e na confiança podem os cristãos
comuns dar, com credibilidade, um permanente testemunho das exigências do cristianismo.

Por isso, o nosso apostolado de cada dia deve ser pessoal. Deve ser individual, de pessoa a pessoa.
Este é o único caminho pelo qual podemos, com realismo, cumprir a chamada universal da Igreja ao apostola-
do. A outra opção é alimentar um desejo sempre adiado de empreender uma evangelização das massas, para a
qual nunca acabamos de ter tempo. Certo executivo que conheço passou por uma crise espiritual deste tipo e
foi em peregrinação a Calcutá, na Índia, para pedir conselho à Madre Teresa. Ouviu dela uma resposta extre-
mamente aguda. Disse-lhe a Madre que voltasse para casa, no Winconsin, e fosse um bom dirigente de empre-
sa, a fim de que a sua empresa prosperasse e garantisse um emprego bem remunerado a muita gente. <Floresça
no lugar em que você está plantado – disse-lhe -, para que assim as missionárias de Caridade nunca tenham de
encontrar em Milwaukee “os mais pobres entre os pobres”70.

Amizade e confidência: esta é a maneira como os primeiros cristãos faziam apostolado. Amizade e
confidências: estas são também as marcas distintivas do apostolado do Opus Dei hoje – não programas institu-
cionais ou manifestações públicas, embora essas coisas tenham o seu momento. O Opus Dei promove eventos
regulares como retiros, manhãs ou tardes de recolhimento, círculos de estudo e aulas de doutrina, mas também
de nada disso se faz habitualmente propaganda ou publicidade. O método preferido de <divulgar a palavra> é o
contato de pessoa a pessoa: a amizade.

Tudo acaba em abraços e confidências de coração a coração71.

Missão impossível

Não há, como é lógico, muita glória terrena ou romantismo religioso nesse apostolado cotidiano.
São Josemaria reconheci-o: <Eu te indicarei um martírio ao alcance da mão: ser apóstolo e não te dizeres após-
tolo; ser missionário – com missão – e não te dizeres missionário; ser homem de Deus e pareceres homem do
mundo. Passar oculto!>72

Portanto, o quintal lá de casa, por assim dizer, é o nosso campo de missão. E Deus enviou-nos a to-
das as pessoas com quem nos encontramos. <De cem almas – disse São Josemaria -, interessam-nos as cem>73.
Isto quer dizer: todos os membros da nossa família, todos os nossos colegas, todos os nossos vizinhos. Todos
na terra têm necessidade de aproximar-se de Deus, e terão essa necessidade enquanto estiverem vivos neste
mundo. Deus introduz-nos em muitas vidas como seus instrumentos, como sua voz ou seu báculo de pastor.
Envia-nos até mesmo aos cristãos que são mais santos e mais virtuosos do que nós, porque esses também têm
necessidade de estar ainda mais perto dEle enquanto viverem na terra.

66
Tertuliano, Apologia, 37, 4.
67
Lumen gentium, n. 31.
68
Sobre como São Josemaria procurava nesses <cristãos primitivos> inspiração e instrução, cf., por exemplo, Caminho, n. 971, e Amigos de Deus, n. 225.
Umexcelente estudo sobre o assunto é <El ejemplo de los primeiros cristianos em lasenseñanzasdel Beato Josemaría>, publicado em Romana, jul-dez. 1999, e
disponível no site http;//es.romana.org/art/29_8.0_1.
69
Questões atuais do cristianismo, ns. 62 e 66
70
David scott, A Revolutino of Love: The Meaning of Mother Teresa, Loyola, Chicago, 2005, págs. 61-62.
71
Pra uma análise sociológica detalhada do crescimento da Igreja primitiva, cf. Rodney stark, The riseofChristianity, Harper San Franisco, San Francisco,
1998. Cf. também a entrevista com stark na revista Touchstone (jan-fev 2000), disponível no site http://touchstonemag.com/archives/article,php?id=13-01-
044-i.
72
Caminho, n. 848.
73
Sulco, n. 183.
Não importa a nossa pouca valia. É um mero dado de fato! Objetivamente, não merecemos ser cha-
mados por Deus, e humanamente falando, não somos capazes de realizar o trabalho que Ele quer que façamos.
Mas devemos chegar a compreender que o apostolado não é trabalho nosso, e sim trabalho de Deus – literal-
mente, opus Dei. E para Deus, nada é impossível (Lc 1,38); tudo posso nAquele que me dá forças (Fli 4, 13).

É por isso que o nosso apostolado deve começar sempre pela oração. Devemos buscar oportunidades
para falar de Jesus Cristo aos nossos amigos, mas devemos em primeiro lugar encontrar muitas oportunidades
para falar dos nossos amigos a Jesus Cristo. Devemos pedir-lhe que nos mostre as necessidades dos nossos
amigos, para que lhes possamos dar uma mão e servi-los de verdade e de maneira imediata.

Podem ser ocasião para o nosso apostolado e convite oportuno para um almoço, o oferecimento para
tomar conta das crianças, um trajeto comum através da cidade. Quando prestamos um favor aos nossos amigos,
manifestamos o amor de Cristo, mesmo que não apregoemos esse motivo de fundo; não precisamos ser uma
espécie de show de televisão que anuncie: <Este programa é um oferecimento da graça de Jesus Cristo:. Os
nossos amigos valorizarão os nossos favores enquanto tais. E quando nos conhecerem melhor, descobrirão qual
é a fonte divina dessas gentilezas, e poderão chegar a valorizá-la até mais do que a soma de todas as nossas 35
gentilezas.

A fonte deve ser sempre o nosso profundo encontro com Cristo e a nossa identificação com Ele. Re-
zamos a Ele e oferecemos-lhe a nossa vida em expiação, como Ele o fez. Isto é, ao menos em parte, o que são
Josemaria queria dizer quanto falava de <santificar os outros através do trabalho>74. Oferecemos o nosso traba-
lho como um sacrifício pelos outros e, deste modo, nas nossas batalhas diárias, obtemos graças para eles nas
suas batalhas.

São Josemaria esboçou um programa de apostolado simples: <Em primeiro lugar, oração; depois
expiação: em terceiro lugar, muito em “terceiro lugar”, ação>75. A maior parte do nosso apostolado, portanto,
será invisível. Os nossos amigos poderão algum dia vislumbrar a ponta do iceberg – talvez. Mas no céu conhe-
cerão o nosso amor na sua verdadeira profundidade.

Objetivos apostólicos

Com que se parece o apostolado? Para mim, uma das imagens mais vivas que o retratam provém dos
anos violentos que antecederam a Guerra Civil Espanhola. Com as idas e vindas do poder político, as relações
sociais entraram em colapso. A confiança chegou ao nível mais baixo; as traições pessoais estavam na ordem
do dia. Cidadãos de todo o espectro político – de anarquistas a monarquistas – eram lançados juntos em prisões
abarrotadas. Com frequência, irrompia a violência nos blocos de celas devido ao ódio entre oponentes políti-
cos. Certo dia, em 1932, São Josemaria visitou alguns jovens amigos que estavam presos. Ouviu-lhes os desa-
bafos furiosos por terem de passar os dias em companhia tão próxima dos seus inimigos políticos. O conselho
que lhes deu foi claro: deviam converter esses inimigos em amigos. Eles dispuseram-se a seguir o conselho e
organizaram times de futebol – não de republicanos contra anarquistas, mas equipes mistas, cada uma incluin-
do uma boa diversidade de opiniões políticas. A ideia funcionou. Um dos anarquistas comentou que nunca
tinha disputado um jogo de futebol tão limpo. Muitos dos jogadores continuaram amigos depois de terminado o
período de reclusão, e alguns dos anarquistas acabaram por regressar à prática da fé católica76.

São Josemaria falava com frequência e de modo expressivo sobre os efeitos desta ótica apostólica:
<Semeai a paz e a alegria por todo lado. Não digais nenhuma palavra ofensiva a ninguém. Sabei andar de bra-
ços dados com os que não pensam como vós. Nunca maltrateis ninguém. Sede irmãos de todos>.

Ao mesmo tempo, conforme comentou o seu sucessor D. Javier Echevarría, o fundador <nunca dei-
xou de afirmar que essa coexistência cristã não significa transigir com o erro, com a falsa doutrina>77. Em uma
amizade verdadeira, temos a liberdade de dizer uma palavra de correção ou mesmo de repreensão. Como fruto
da oração, adquirimos a habilidade de fazê-lo com delicadeza. A verdade pode mover montanhas sem necessi-
dade de repregar explosivos retóricos.

O apostolado da amizade e confidência foi eficaz na Igreja primitiva. O que impressionava os anti-
gos romanos no cristianismo não eram tanto os seus argumentos, ou a sua arte, ou a sua literatura, mas o seu
amor. <Vede como se amam>78, maravilhavam-se os pagãos. Tertuliano comentou que a pureza do amor cris-
tão se tornou patente no mundo romano porque os romanos tinham pouca experiência da amizade e da confian-

74
Questões atuais do cristianismo, n. 10.
75
Caminho, n. 82.
76
Cf. John F. Coverdale, Uncommon Faith: The Early Years of Opus Dei, 1928-1943, Scepter, Princeton, 2001, pág. 114.
77
Cf. entrevista de D. Javier Echevarría a Paulina Lo Celso, publicada em http://www.opusdei.es/art.php?p=5132
78
Tertuliano, Apologia, 39, 1.
ça. A sua sociedade era promiscuamente adúltera, e tanto homens como mulheres não se atreviam a dar as
costas aos seus amigos. Mas os cristãos eram diferentes.

O que foi eficaz para os nossos antecessores cristãos é hoje eficaz para nós. O apostolado deve ser
obra de um amor pessoal e desinteressado, se quiser ser bem-sucedido. A amizade move os corações muito
mais do que as melhores técnicas de venda e mecanismos publicitários de evangelização que os comitês ecle-
siásticos possam elaborar.

Disso tenho experiência pessoal – e nisso tenho grande confiança.

36
Secularidade e secularismo
<Sede homens e mulheres do mundo, mas não sejais homens ou mu-
lheres mundanos>. Caminho, n. 939.

Há alguns anos, um comediante norte-americano arrancava gargalhadas das suas audiências notur-
nas imitando um tele-evangelista. Todas as vezes que pronunciava a palavra secular, silibava como se se tra-
tasse de um codinome de serpente demoníaca no jardim do Éden. Como sátira, não está mal. Para alguns cris-
tãos a palavra secular representa a fonte e a somatória de todos os males do mundo. Para esses cristãos, secular
é exatamente o oposto de sagrado.

É fácil ver de onde procedem essas ideias. Os movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX
opuseram propositadamente esses termos um ao outro. Consideravam-se assuntos seculares os que eram de 37
interesse público. A religião, o reino do sagrado, era assunto privado da consciência individual. Em alguns
países, essa não manifestou-se pela separação entre a Igreja e o Estado. Mas, em outros, à separação seguiu-se
a supressão; como a religião era um assunto privado, declarou-se que deveria restringir-se à esfera privada e
nunca influir nas discussões públicas ou políticas.

Esse fenômeno revestiu-se de várias formas extremas. No México, por exemplo, os padres começa-
ram por ser proibidos de usar vestes clericais em público; mais tarde, foram completamente proibidos de exer-
cer o seu sacerdócio. Na França, recentemente, uma lei proibiu as mulheres muçulmanas de usar véus que
cobrissem a cabeça em escolas públicas. No meu país, temos hoje uma situação muito estranha: as cidades
estão proibidas de montar presépios em espaços públicos durante a quadra do Natal, mas artistas cujos traba-
lhos caricaturizam ícones religiosos recebem subvenções do governo.

Da separação à supressão há um pequeno passo, e foi esse movimento que levou o comediante a si-
bilar ao proferir a palavra secular. Quando a religião é condenada à prisão domiciliar, então o próprio secular
se torna uma religião, certeiramente chamada <secularismo>.

Se ao menos tivéssemos mundo e tempo suficientes

O secularismo submete as sociedades e os indivíduos a uma falsa dicotomia. São Josemaria expli-
cou-o bem: não se pode separar a religião da vida, nem no pensamento nem na realidade cotidiana>79. No pen-
samento cristão, sagrado e secular designam duas ordens distintas, mas não separadas. A palavra secular deri-
va do latim saecula, que significa ambas as coisas: <o mundo> e <os séculos>, e envolve todas as coisas no
continuum espaço-temporal>, toda a Criação. Por isso, as tradicionais bênçãos e preces latinas terminam fre-
quentemente com a frase <per omnia saecula saeculorum>, que significa simultaneamente <por todo o mun-
do> e <por todos os séculos dos séculos>. Uma bênção cristã comum, portanto, consagra o mundo e tudo o que
há nele. É o prolongamento na história de uma das mais famosas passagens do Evangelho: Deus amou de tal
modo o mundo que lhe deu o seu Filho único [...]. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele (Jo3, 16-17).

A Igreja não despreza a realidade secular. Um leigo católico não deve desprezar o mundo. Na reali-
dade, a vida de um leigo católico é a resposta de Deus à tradicional petição de bênçãos <per omnia saecula
saeculorum>. Porém, devemos fazer aqui uma distinção entre a vocação do leigo e a vocação para uma vida
com votos religiosos.

A vocação religiosa é, por natureza, uma chamada a separar-se do mundo. Sacerdotes religiosos,
monges, irmãos e irmãos leigos seguem um caminho para a santidade que os afasta dos assuntos mundanos.
Renunciam ao casamento, à posse de bens e à liberdade. Abraçam, em diferentes graus, uma atitude que a
literatura espiritual denomina <desprezo do mundo> (contemptos mundi). Nas palavras de Santa Clara de As-
sis, abandonam as coisas do tempo pelas coisas da eternidade. Separam-se delas tanto para a sua própria salva-
ção como para que as suas preces possam santificar o mundo. Monges e freiras fogem do mundo e remedeiam
à distância os seus males. Frequentemente, o regulamento de uma ordem religiosa sobre o modo de vestir – o
hábito – distingue ainda mais os seus membros do curso ordinário da humanidade.

Já o leigo cristão é chamado a santificar o mundo a partir de dentro. A marca distintiva dos homens
e mulheres leigos é o seu caráter secular, uma orientação que, às vezes, é chamada <secularidade>. Os leigos
79
Sulco, n. 308
católicos não devem abandonar as coisas temporais para encontrar as coisas da eternidade. <Na linha do hori-
zonte, meus filhos parecem unir-se o céu e a terra – disse São Josemaria -. Mas não: onde de verdade se juntam
é no coração, quando se vive santamente a vida diária>80. A ordem temporal é domínio de Deus e, por isso, é
também domínio dos seus filhos. O Catecismo da Igreja Católica cita, a este respeito, o Concílio Vaticano II:
<É específico dos leigos, pela sua própria vocação, procurar o Reino de Deus, exercendo funções temporais e
ordenando-as segundo Deus>81. O Código de Direito Canônico diz que a missão do leigo é permear e aperfei-
çoar a ordem temporal das coisas com o espírito do Evangelho>82.

São Josemaria delineou bem os necessários contrastes entre a espiritualidade secular e a religiosa e
enfatizou que a <secularidade> é essencial também para os sacerdotes do Opus Dei, já que são <sacerdotes
seculares> e não membros de uma ordem religiosa. Não fazem votos. <Nada distingue os meus filhos, nada
têm em comum com os membros das congregações religiosas. Amo os religiosos e venero e admiro as suas
clausuras, os seus apostolados, o seu afastamento do mundo – o seu contemptos mundi -, que não outros sinais
de santidade na Igreja. Mas o Senhor não me deu vocação religiosa, e desejá-la para mim seria uma desordem.
Nenhuma autoridade na terra poderá obrigar-me a ser religioso, assim como nenhuma autoridade pode forçar-
me a contrair matrimônio. Sou sacerdote secular: sacerdote de Jesus Cristo, que ama o mundo apaixonadamen- 38
te>83.

Ter jeito para lidar com o mundo

O secularismo não nasce do nada. Houve ocasiões em que veio à tona como reação a um efetivo
abuso da autoridade religiosa, O abuso pode ser oficial, como quando um Estado ou partido político reivindica
que o seu posicionamento é o único posicionamento católico válido. Ao longo da história, houve exemplos
desastrosos de governantes que invocaram a aprovação de Deus ou da Igreja quando lhes faltavam argumentos
persuasivos, boas razões ou apoio popular. A história também nos fala de alguns padres e hierarcas que usaram
os seus púlpitos ou outros símbolos da sua autoridade eclesiástica para exercer uma influência indevida em
matéria de negócios ou de assuntos políticos – questões que na verdade eram moralmente neutras.

O nome desse abuso é clericalismo, e parece inevitável que provoque uma onda de anticlericalis-
84
mo . Há muito poucos desejos humanos tão repulsivos como a ambição de poder, que é especialmente impró-
pria em homens que foram ordenados sacerdotes para servir. O clero possui autoridade em matérias que são da
competência da Igreja, mas exercer essa autoridade é sempre uma operação delicada. O sacerdote exerce uma
função que merece respeito, mas não lhe cabe esperar obediência senão em matérias para as quais possui legí-
tima autoridade. Os nossos clérigos podem dizer-nos quando devemos ir à missa, ou com quem nos podemos
casar validamente, mas não lhes compete dizer a que restaurante devemos ir ou qual o partido político a que
devemos filiar-nos. (A sua autoridade, no entanto, estende-se à filiação partidária quando existem partidos
essencialmente imorais. Em várias oportunidades, os bispos católicos proibiram legitimamente os seus fiéis de
tornar-se membros de associações políticas filiadas ao nazismo, ao comunismo e à maçonaria).

Também os leigos não devem comportar-se em relação à hierarquia de um modo servil ou exagera-
damente obsequioso. Um diretor de empresa não tem por que submeter ao pároco local os planos estratégicos
da sua empresa. Quando um leigo católico se deixa infectar por uma mentalidade clerical, manifesta normal-
mente uma exagerada deferência perante o clero, estendendo a autoridade da Igreja a matérias que lhe são
genuinamente indiferentes. O sucesso dos nossos esforços seculares deve ser julgado segundo critérios secula-
res: não devemos buscar um atalho para o sucesso aplicando aos trabalhos que executamos o rótulo oficial de
<católico>. Do mesmo modo, quando os leigos organizam atividades culturais ou programas de assistência aos
pobres, não há necessidade de apresentarem esses serviços como programas da Igreja Católica. São simples-
mente serviços sociais seculares, como os que qualquer outro cidadão poderia prestar.

Na sua vida e no seu ministério sacerdotal, São Josemaria mostrou que é possível para os católicos
terem alma sacerdotal e mentalidade laical: tanto os sacerdotes como os leigos podem cultivar os dois aspectos.
Sempre reverenciou o trabalho das ordens religiosas e dos seus santos, como Santo Inácio de Loyola e Santa
Teresa de Lisieux. Durante muitos anos, teve por confessor um jesuíta, e podemos ouvir ecos do <pequeno

80
Questões atuais do cristianismo, n. 116.
81
Lumen gentium, n. 4; Catecismo da Igreja Católica, n. 898.
82
Código de Direito Canônico, n. 225.
83
Questões atuais do cristianismo, n. 118.
84
Sobre o problema do clericalismo, não há análises mais claras de que as de Russell Shaw, que é uma voz que clama no deserto. Cf. especialmente os seus
livros Catholic Laity in the Missiono f the Chrurch, Réquiem, Bethune, 2005; To Hunt, to Shoot, to Entertain: Clericalism and the Catholic Laity, Ignatius
Press, San Francisco, 1993; Ministry or Apostolate?: What Should the Catholic Laity Be doing, Our Sunday Visitor, Huntington, 2002; e, com Germain
Grisez, Personal Vocation: God Calls Everyone by Name, Our Sunday Visitor, Huntington, 2003.
caminho> de Santa Teresa na própria insistência do fundador a respeito do valor das <pequenas coisas>. No
85
entanto, por disposição divina, os seus caminhos não eram, evidentemente, os deles .

Com efeito, os seus caminhos revelam também a influência do seu próprio aprendizado no período
que antecedeu a Guerra Civil Espanhola, em que se encontrou no meio de um povo cruelmente dividido entre
facções clericais e anticlericais. Por entre aquela acrimônia a confusão, Deus mostrou-lhe o verdadeiro cami-
nho – e que não era clerical nem anticlerical: era católico, pois respeitava por igual a liberdade e a dignidade
própria tanto dos clérigos como dos leigos. O jornalista John Allen identificou muito agudamente no caminho
86
de São Josemaria ao toque de finados do clericalismo> .

Sobrenaturalmente natural

Nas palavras do Concílio Vaticano II, o <caráter secular é próprio [...] do laicato>, e esse caráter
particular dá origem a um estilo de espiritualidade próprio.
39

O amor ao mundo habilita os leigos a viverem e trabalharem com <naturalidade> em quaisquer cir-
cunstâncias, sem roupas ou comportamentos que os distingam. Devem distinguir-se somente pela sua retidão e
caridade. Se devemos distinguir-nos de algum outro modo, que seja pela excelência do trabalho que realizamos
– com espírito de serviço, como uma oferenda a Deus. Secularidade significa comportarmo-nos de um modo
coerente com o nosso lugar na vida, que é o verdadeiro lugar onde Deus nos chamou.

Não seria natural que chamássemos a atenção com demonstrações públicas de piedade, assim como
não seria natural que a minha esposa e eu chamássemos a atenção 6com manifestações exageradas de afeto em
público. A reserva com que manifesto o meu afeto – seja quando rezo ou quando beijo – não indica que eu me
envergonhe da minha condição de cristão ou de homem casado com Kimberly. Nem significa que queira guar-
dar a todo custo uma espécie de segredo. É simplesmente aquela discrição adequada ao mundo – pelo menos,
ao recanto particular do mundo em que vivo.

Da mesma forma, não há necessidade de que os nossos lares sejam decorados como uma igreja me-
dieval para que possam ser santificados. Podem ter alguns detalhes que os identifiquem como cristãos, é claro,
mas também devem ser caracteristicamente lares, e não catedrais.

Não obstante, neste terreno da secularidade, como em qualquer outra coisa boa, podemos cometer
exageros. Na preocupação por laicizar a nossa piedade, não deveríamos fazer com que as pessoas tivessem de
adivinhar que somos cristãos. Seria uma atitude tão estranha, em sentido inverso, como a de alguém que usasse
um hábito de monge sobre as suas roupas de trabalho. A nossa secularidade nunca deve cair no secularismo.

<Tens de viver como os outros que te rodeiam, com naturalidade – disse São Josemaria -, mas so-
brenaturalizando cada instante do teu dia>87.

O lado luminoso

Assim que me encaminhei para a Igreja Católica, o sentido de secularidade do Opus Dei tocou-me
de um modo muito pessoal. Dada a minha anterior formação calvinista, tinha aprendido a ver o mundo e a
queda da raça humana em termos de <total corrupção>. Por essa visão do mundo, pode parecer algo natural
sibilar a palavra <secular>, como fazem os comediantes quando imitam os tele-evangelistas e como fazem os
tele-evangelistas quando temem a corrupção do mundo.

Mas nada poderia ultrapassar o otimismo que encontrei na Obra. É um otimismo fundamentado na
secularidade – e na descrição bíblica da soberania de Deus sobre a Criação. São Josemaria disse: <O Senhor
quis que os seus filhos, os que recebemos o dom da fé, manifestássemos a original visão otimista da Criação, o
88
“amor ao mundo” que palpita no cristianismo> .

Esse otimismo estende-se mesmo aos piores pecadores e aos que não aceitam Jesus Cristo. Porque
também eles foram criados por Deus e são tão capazes de conversão quanto nós. Contra os primeiros reforma-
dores protestantes, o Concílio de Trento ensinou que é possível realizar <boas obras> mesmo fora do estado de

85
Pra mais informações sobre como São Josemaria venerava o trabalho das ordens religiosas, cf. Andrés Vázquez de Prada, O fundador do Opus Dei, vol. 2,
pág. 494 e segs. Cf. também Mike Aquilina, ne Hundred Years Down the Little Way>, Our Sunday Vistior, 28.09.1997.
86
John Allen Jr., Opus Dei, pág. 374.
87
Forja, n. 508.
88
Idem, n. 703
graça. O Papa Pio V condenou a ideia protestante de que <todas as obras dos não crentes são pecados e as
89
virtudes dos filósofos [pagãos] são meros vícios> . Sem o Batismo, os seres humanos encontram-se em estado
90
de queda e precisam de um redentor, mas continuam a ser portadores da imagem de Deus . A nossa natureza
acha-se ferida pelo pecado original, mas não está destruída.

Como católicos, podemos, pois, reconhecer a verdadeira bondade que existe nas obras dos nossos
vizinhos. Podemos alegrar-nos com o verdadeiro valor que têm as virtudes dos nossos colegas, ainda que, sob
muitos outros aspectos, pareçam estar longe de Cristo.

Isto não significa que devamos contentar-nos com essa visão meramente natural. Porque só a graça
pode dar valor de salvação às obras humanas. Só a graça pode converter os nossos trabalhos em Opus Dei.
Todos os bens da salvação provêm do Espírito Santo, que derrama a sua graça em nossos corações de filhos
adotivos de Deus. É nosso dever trazer os nossos amigos e colega para mais perto de Cristo – mais plenamente
para a sua vocação de filhos de Deus. Porque só Deus pode dotar as suas obras de poder divino.

São Tomás de Aquino expôs sucintamente a questão. À pergunta sobre <se o homem sem a graça 40
pode desejar realizar o bem>, respondeu:

<Como a natureza humana não está de tal modo corrompida pelo pecado que esteja privada de todo
bem da natureza, um homem pode, mesmo no estado de natureza caída, por virtude da sua natureza, fazer al-
gum bem particular, como edificar casas, plantar vinhas e outras coisas semelhantes, embora não possa fazer
todo o bem que lhe é conatural [...], assim como um doente pode fazer alguns movimentos, ainda que não com
91
a perfeição do homem sadio, enquanto não se restabelecer com o auxílio da medicina> .

Este é o nosso apostolado: sermos canal da graça para o bem das pessoas que encontramos em todos
os lugares, reconhecer que não estão totalmente corrompidas. Com efeito, podemos reconhecer as suas virtudes
como virtudes – e reconhecer quando nos excedem em virtude. Podemos ajuda-las a ir mais longe, ajuda-las a
enxergar novos horizontes para si próprias, para a sua vida familiar e para o seu trabalho. Através do nosso
exemplo e da nossa amizade, podemos guia-las para a fé, tornando-as capazes de oferecer o seu trabalho como
corredentores com Cristo, participando do seu sacerdócio comum.

Podemos não ser muita coisa. Mas as nossas mãos podem dar todo o impulso de que os nossos ami-
gos necessitam para alcançar Jesus Cristo, pois Ele sempre se está abaixando em direção a eles. Logo que fo-
ram divinizados pela graça, as suas virtudes elevar-se-ão do plano natural para o sobrenatural. E não há nada
melhor do que isso.

O apostolado leigo é um apostolado encantador, precisamente por essa riqueza própria da sua secu-
laridade. Deveríamos sentir-nos felizes de não ter de sibilar quando pronunciamos essa palavra, porque o leigo
92
não precisa retrair-se de <amar o mundo apaixonadamente> .

<O mundo espera-nos. Sim! Amamos apaixonadamente este mundo porque Deus assim no-lo ensi-
nou: “Sic Deus dilextimundum...” – tanto amou Deus o mundo -; e porque é o lugar do nosso campo de batalha
93
– uma formosíssima guerra de caridade -, para que todos alcancemos a paz de Cristo veio instaurar> .

89
Denzinger-Schönmetzer, n. 1925.
90
A possibilidade de se fazerem <boas obras> mesmo fora do estão de graça foi muito bem analisada pelo papa João Paulo II na sua Audiência Geral de
10.11.1993, disponível em www.vatican.va.
91
Cf. Summa Theologiae, I-II, q. 109, a. 2.
92
É o título da homilia mais conhecida de São Josemaria Escrivá, publicada no livro Questões atuais do cristianismo.
93
Sulco, n. 290.
Sexo e sacrifício
<Estás rindo porque te digo que tens “vocação matrimonial”? – Pois
é verdade: isso mesmo, vocação>. Caminho, n. 27.

A experiência cristã da filiação divina encontra-se no coração do Opus Dei. Deus é nosso Pai. So-
mos seus filhos em Jesus Cristo, o Filho eterno; este modo, reunidos em torno da sua mesa, a Igreja é a família
de Deus na terra, assim como a Trindade é a Família de Deus no céu.

O Papa João Paulo II escreveu sobre este mistério: <Deus, no seu profundo mistério, não é um soli-
tário, mas uma família, já que tem em si mesmo a paternidade, a filiação e a essência da família, que é o
94
amor> . Note-se que o Papa não apresenta a família como uma metáfora para a Trindade. Não diz que Deus é
como uma família. Diz que Deus é uma família. Seria mais verdadeiro dizer que as famílias humanas são como 41
uma família do que dizer que Deus é como uma família.

Todas as famílias na terra são imagens da divindade, e são igrejas domésticas. Seria difícil superes-
timar a sua importância na vida espiritual. Pelo contrário, como as nossas famílias nos são tão... familiares, é
95
fácil subestimarmos a sua importância .

Como os padres renunciam ao matrimônio, os cristãos falam às vezes da vida de casados como uma
vocação de segunda classe, como um desvio da oração, da contemplação e do apostolado. Mas não é assim, ou
pelo menos não precisa ser assim. Certa vez, alguém perguntou a São Josemaria: <Padre, como podemos tornar
compatível a dedicação à nossa família com a dedicação a Deus?> E São Josemaria respondeu-lhe: <Meu Fi-
lho, você não agradará a Deus se não se dedicar à sua família [...]. Não há conflito entre esses dois deveres:
96
estão fundidos, exatamente como os vários fios que, entrelaçados, formam uma corda> .

Momentos difíceis

Na sua pregação e ensinamentos, o fundador do Opus Dei estabelecia constantes analogias entre a
vida espiritual e a vida familiar, entre a vida institucional (na Igreja e na Obra) e a vida do lar. Dizia que a Obra
era simultaneamente <família e milícia>. Desejava para ambas o tipo de paz que experimentou no seu lar de
infância.

<Falo sobre o sacramento do matrimônio com emoção, porque me lembro do amor dos meus pais>,
recordava certa vez. <Como se portavam bem em todos os momentos!, e às vezes eram momentos verdadeira-
mente difíceis. Sabiam como encorajar um ao outro, como educar-nos cristãmente e como aceitar a vontade de
97
Deus com a piedade que a graça divina lhes inspirava> .

Dizer que havia <momentos difíceis> é uma maneira eufemística de falar. Josemaria era o segundo
dos seis filhos de José e Dolores Escrivá. Apenas três deles sobrevieram à primeira infância. O próprio Josema-
ria quase morreu de uma febre quando criança, e a sua mãe atribuiu a sua miraculosa cura à intervenção da
Bem-aventurada Virgem Maria. O sr. José era um comerciante que vinha prosperando e que perdeu tudo – o
seu negócio e todas as economias familiares – em consequência de práticas questionáveis do seu sócio. A famí-
lia Escrivá ficou reduzida a uma situação humilhante de relativa pobreza.

Entrado em anos, o sr. José suportou tudo com dignidade e sem amargura. Daí em diante, teve que
trabalhar mais arduamente e ganhar menos, em um emprego de menor nível, e foi provavelmente por esses
esforços que veio a morrer mais cedo. O lar dos Escrivá. Não obstante, continuou a ser um remanso de paz, e
todos os seus membros se mantiveram unidos no meio dessas dificuldades.

Meditando na vida de amor e sacrifício de seus pais, São Josemaria desenvolveu uma profunda es-
tima pela família em geral e pela Sagrada Família de Nazaré em particular. O seu próprio nome é um reflexo
dessa estima. Fora batizado com o nome de <José Maria>, com o dois nomes separados, mas, já adulto, come-

94
Papa João Paulo II, Puebla: A Pilgrimage of Faith, Daughters of Saint Paul, Boston, 1979, pág. 86.
95
Sobre a relação entre Deus e a <família>, é crucial notar que há importantes distinções a serem feitas entre as famílias humanas e a <família divina>. Cf.,
por exemplo, Catecismo da Igreja Católica, ns. 239 e 370.
96
Transcrição de uma tertúlia no colégio Tajamar, Madri, em 28.10.1972. Os nossos agradecimentos ao Instituto Histórico San Josemaria por ceder-nos esta e
outras transcrições não publicadas.
97
Transcrição de uma tertúlia em Guadalaviar, Valência, 18.11.1972.
çou a usá-los unidos, <Josemaria>, sem espaço entre eles, para expressar a unidade de Maria e José – uma
unidade que ele desejava para todas as famílias humanas.

Uma moeda de ouro

Falava frequentemente da alegria da vida de casados. No entanto, insistia em que <o matrimônio não
é apenas satisfação do coração e dos sentidos. É também sofrimento; tem dois lados, como uma moeda>.

<De um lado, a alegria de se saber querido, o entusiasmo de construir e fazer singrar um lar, o amor
conjugal, o consolo de ver os filhos crescerem. De outro, dores e contrariedades, o passar do tempo, que con-
some os corpos e ameaça azedar os caracteres, a aparente monotonia dos dias que aparecem sempre iguais.

Formaria um pobre conceito do matrimônio e do carinho humano quem pensasse que, ao tropeçar
com essas dificuldades, o amor e a alegria se acabam. Precisamente então, quando os sentimentos que anima- 42
vam aquelas criaturas revelam a sua verdadeira natureza, é que a doação e a ternura se enraízam e se manifes-
98
tam como um afeto autêntico e profundo, mas poderoso do que a morte> .

Como aprendeu da sua própria infância, o sofrimento é algo inevitável. A falência de um negócio, a
morte dos entes queridos... são acontecimentos impossíveis de prever e de preparar-se para eles. Não menos
extenuante é a labuta diária de um homem subempregado, que trabalha muito abaixo da sua posição, que ganha
muito menos do que precisa. Mas essas são as circunstâncias de incontáveis famílias comuns.

Parafraseando o dito do adesivo de carro, suffering happens, <os sofrimentos acontecem>. É o que
fazemos com esses sofrimentos, contudo, que nos torna santos ou infelizes. A opção é nossa, mas não é um
assunto que nos diga respeito unicamente a nós. Quando vivemos no seio de uma família – ou de qualquer tipo
de comunidade -, as nossas opções afetam todas as pessoas que temos à nossa volta. Ou sabemos transformar o
nosso sofrimento em alegria para os outros, ou multiplicamos a miséria nos nossos lares. Em dias difíceis, o
maior sacrifício pode ser sorrir quando não temos vontade de sorrir. <Tenho dito muitas vezes – comentava são
99
Josemaria – que a mortificação mais difícil pode ser sorrir. Pois bem, então sorria!>

<Amor, meus filhos, é sacrifício>, disse. <Um homem casado tem de amar a esposa, e mostrar-lhe
100
que a ama>. As mulheres, por sua vez, <não devem dar o marido por garantido> . Durante o namoro e o
noivado, o afeto mútuo flui naturalmente, mas com o decorrer dos anos requer esforço e até mesmo planeja-
mento e preparação. São Josemaria animava os casais a demonstrarem afeição um pelo outro ao longo de toda
a vida de casados. Dizia-lhes: <Não percais nunca a delicadeza que tínheis quando éreis noivos; senão, as coi-
101
sas não irão bem> . Encorajava-os a esforçar-se nos detalhes: no vestir-se, na disposição com que se chega a
casa ao fim de um cansativo dia de trabalho, no esmero em preparar uma refeição, no modo de se cumprimen-
tarem. O sorriso era, para ele, algo importante; e explicava que os casais cristãos deveriam <sacrificar-se ale-
102
gremente sem chamar a atenção> .

O altar do leito conjugal

O fundador não se esquivava a conversar sobre as relações sexuais dos casados. Mais ainda, falava
disso em uma época em que muitos cristãos fugiam completamente de tocar no assunto, e outros só o mencio-
navam usando os ásperos termos de <dever> ou de uma <concessão à fraqueza>. Ele, pelo contrário, falava do
leito matrimonial como <um altar>. O que se coloca sobre o altar é algo santo e é oferecido a Deus. O sexo, tal
como a vida corrente, deve ser parte do sacrifício vivo, santo e aceitável a Deus de que falava São Paulo (Rom
12, 1). A nossa sexualidade vem de Deus e a Ele retorna por meio da oferenda sacrificial o casal cristão – a
completa doação de sai mesmos, do dom de suas vidas inteiras, entregues um ao outro e a Deus. São Josemaria
dizia claramente: <O sexo é coisa santa e nobre – participação no poder criador de Deus-, feito para o matri-
103
mônio> .

Louvava a expressão sexual pura do amor dos casados e insistia em que esse louvor era justificado –
e mesmo mandado – pela doutrina católica: <O matrimônio é um sacramento que faz de dois corpos uma só

98
É Cristo que passa, n. 24.
99
Transcrição de uma tertúlia no Clube Xénon, Lisboa, 3.11.1972.
100
Ibidem.
101
Ibidem.
102
Transcrição de uma tertúlia no Clube Xénon, Lisboa, 4.11.1972.
103
Amigos de Deus, n. 185.
carne; como diz com expressão forte a teologia, a sua matéria são os próprios corpos dos nubentes. O Senhor
santifica e abençoa o amor do marido pela mulher e o da mulher pelo marido; estabelece não somente a fusão
de suas almas, mas também a de seus corpos. Seja ou não chamado à vida matrimonial, nenhum cristão pode
104
desprezá-la> .

A expressão sexual do amor conjugal é algo que distingue os seres humanos dos animais. O verda-
deiro sexo humano sela, renova e fortalece o vínculo de unidade entre um homem e uma mulher. Os dois se
tornam um, e essa unidade é tão real que, em nove meses, poderão dar-lhe um nome. Os seres humanos, em
outras palavras, não se limitam a ter relações sexuais; fazem amor, e o seu amor faz mais seres humanos. Por
isso, a Igreja Católica sempre ensinou que as relações sexuais têm o seu lugar próprio somente no matrimônio,
em um compromisso por toda a vida que cria um lar estável onde os filhos pode ser muito melhor recebidos. A
Igreja ensinou, além disso, que todo ato sexual deve respeitar a dupla finalidade do sexo: a unidade do casal e a
procriação.

Deus projetou a vida familiar como meio para nos tirar gradualmente de nós mesmos, do nosso ego-
ísmo, para que aprendêssemos a fazer sacrifícios maiores e mais amorosos em benefício dos outros. Inicial- 43
mente, cada um de nós vive sozinho, mas ou menos como Adão, mas não é bem viver só. Depois, entramos em
uma vida com outra pessoa, através do matrimônio. E então os filhos, e depois os netos, tiram-nos cada vez
mais do nosso mundo enclausurado, para que imitemos a Deus, para que amemos como Deus, que se entregou
inteira e indistintamente por todos os seus filhos.

Os filhos santificam-nos. Trazem-nos fantásticas alegrias e exigem certos sacrifícios. Precisam ser
alimentados, vestidos, educados, disciplinados e supervisionados. Tudo isso pode ser custoso em termos finan-
ceiros e humanos. Mas nós não podemos escolher as alegrias da paternidade e rejeitar os sacrifícios. Nem po-
demos planejar a vida de modo a maximizar uma coisa e minimizar a outra. A vida não segue os nossos planos.
Como diz uma canção popular, a vida é o que acontece enquanto você está ocupado em fazer planos.

São Josemaria estimulava as famílias a estar muito abertas a uma nova vida, a cooperar com Deus
generosamente. Falava sempre dos filhos como uma <bênção> ao casal: <Medo de ter filhos? Não! Deves
amar muito a Deus e agradecer-lhe profundamente quando te enviar um filho. Cada vez que chega um filho à
tua família, é uma prova da confiança que Deus tem em ti. Alegra-te. Lá de onde venho, diz-se que cada filho
105
vem com um pão debaixo do braço> .

Ele sabia que isso ia contra a corrente em uma época em que se distribuíam rotineiramente contra-
ceptivos aos recém-casados. Mas encorajava os casais a resistir: <Não tolereis essa infame propaganda anticris-
tã. Querem tratar-vos como animais! É por isso que vos digo que vos rebeleis, que sejais rebeldes. Eu o sou: eu
106
não quero viver como um animal. Quero viver como um filho de Deus,; e vós também o quereis> .

Nem todos os atos de união conjugal serão abençoados com uma gravidez, e há certamente casos em
que o planejamento familiar natural é legítimo. Mas todos esses atos devem estar abertos à possibilidade de
uma nova vida.

Nem todos os casais são abençoados com filhos. Alguns têm de enfrentar a infecundidade por toda a
vida. São Josemaria ensinou-os a amarem-se muito um ao outro e a derramarem o seu amor generosamente nas
pessoas ao seu redor – a dedicarem mais do seu tempo a atividades apostólicas e ao serviço dos seus amigos. É
isso o que significa, nesses casos, viver na família de Deus. Assim, essas vidas, tal como a dos que são pais,
alcançarão totalmente a sua plenitude.

Deus na sua providência, tem duas maneiras de abençoar os casais: uma, dando-lhe filhos; e outra,
às vezes, porque os ama muito, não lhes dando filho. Não sei qual é a melhor bênção. Em qualquer caso, cada
um deve aceitar a sua própria.

Aos casais que não têm filhos, digo-lhe que se amem muito um ao outro, muito. O amor humano
dentro do matrimônio é gratíssimo a Deus. Amai um ao outro com toda a vossa lama, de acordo com a lei natu-
107
ral e a lei de Deus .

Um dos ainda mais generosos da sexualidade humana é o celibato pelo reino de Deus. O celibato dá
aos homens e mulheres maior liberdade para servirem a Deus em variadas circunstâncias, com a máxima mobi-
lidade. Uma vida celibatária, além disso, antecipa a gloriosa plenitude da vida em Cristo após o fim dos tem-
pos. Quando ressuscitarem dentre os mortos, nem os homens tomarão mulheres, nem as mulheres maridos, mas
todos serão como anjos no céu (Mc 12, 25). Um bom número de membros do Opus Dei aceitou essa chamada.

104
É Cristo que passa, n. 24.
105
Transcrição de uma tertúlia em Pozoalbero, Jerez de laFrontera, 3.11.1972.
106
Ibidem.
107
Ibidem.
Vinha de Deus, mas eles a ouviram de São Josemaria: <Muitos vivem como anjos no meio do mundo. Tu... por
108
que não?>

Pensando com a Mãe

Como disse atrás, São Josemaria aplicou o paradigma da família à vida no Opus Dei e também à vi-
da na Igreja. Essa foi outra qualidade que tornou o Opus Dei atraente para mim, como católico-novo. Os seus
membros não gostavam de dividir a Igreja em esquerda e direita, em liberal e conservadora, ou segundo quais-
quer outras linhas de facção. Viam a Igreja como uma família, cuja unidade essencial superava todas as dife-
renças de opinião, de gosto e de preferências. Pareceu-me que os membros do Opus Dei achavam fácil <pensar
com a Igreja> porque pensavam na Igreja como uma família, mais do que como uma instituição ou uma ideo-
logia. Para são Josemaria, a Igreja Católica era a <Mãe Igreja>, que alimenta os seus filhos com a sua própria 44
substância na Eucaristia e que os educa para a vida com a boa doutrina.

Aquilo que os fiéis do Opus Dei possuíam, desejavam compartilhá-lo. Era a verdade eterna do cris-
tianismo. E ainda mais do que isso: era fazerem parte de uma família, viverem como filhos de Deus na casa de
Deus. E o seu apostolado tinha sempre, a par de um conteúdo catequético, um estilo caritativo, que respeitava a
verdadeira liberdade dos filhos de Deus, sem deixar de censurar e corrigir suavemente, sempre que necessário.

Na altura da minha vida em que encontrei essa boa gente, já era marido e pai. Deus estava arrancan-
do-me de mim mesmo e abrindo-me novos horizontes.

Desde o começo, senti-me no Opus Dei como em meu lar.

108
Caminho, n. 122
A oficina de Nazaré: em unidade de vida
<Quietude. – Paz. – Vida intensa dentro de ti. Sem galopar, sem a
loucura de mudar de lugar, no posto que na vida te corresponde, co-
mo um poderoso gerador de eletricidade espiritual, a quantos não da-
rás luz e energia!..., sem perderes o teu vigor e a tua luz>. Caminho,
n. 837.

Os membros do Opus Dei cultivam uma viva devoção a São José, que aprenderam de São Josema-
ria. Todos os dias, o fundador iniciava o seu tempo de oração mental pedindo a ajuda do pai adotivo de Jesus,
dirigindo-se a ele como <meu pai e senhor>. Todos os anos, na festa de São José, 19 de março, os fiéis da
prelazia que já fizeram a <oblação> renovam o seu compromisso vocacional.
45
A devoção a São José é um fenômeno surpreendente e repetido na história. O grande Patriarca não
nos deixou nenhuma palavra na Sagrada Escritura. Moveu-se silenciosamente pelas páginas de dois Evange-
lhos, sempre aberto às solicitações dos anjos, sempre atento à segurança da sua esposa e do Menino. Nos ou-
tros Evangelhos, aparece brevemente, quando se menciona Jesus como <o filho do carpinteiro>.

Não há dúvida de que era o tipo do homem forte e silencioso. E quão forte deve ter sido – forte na
fé, no corpo e na virtude paterna – para levar a sua família em segurança ao Egito e trazê-la de volta a Nazaré,
quando todos os poderes de Herodes e do inferno se tinham levantado contra eles!

Se tudo o que São Josemaria nos tivesse ensinado fosse a devoção a São José, já nos teria ensinado
muito. Porque na vida de São José vemos todos os elementos essenciais do Opus Dei. Vemos a paternidade e a
filiação. Vislumbramos uma vida familiar feliz, no meio de muitas dificuldades. Vemos uma piedade ativa.
Encontramos um homem que trabalha arduamente e é conhecido pelo seu trabalho. E todos esses vários ele-
mentos se apresentam juntos na sua vida. São José viveu a sua vida em paz porque não se deixou arrastar em
muitas direções. Viveu bem a qualidade que São Josemaria chamava de <unidade de vida>.

Em casa com o Verbo

Pode ser instrutivo imaginarmos como devia ser o lar da Sagrada Família – não só a sua vida famili-
ar, mas também o seu ambiente físico.

A casa era, provavelmente, uma residência típica daquele tempo: uma pequena construção de pedra
ou madeira, com uma única sala iluminada por uma única lâmpada e ventilada por uma única porta. Pelo
Evangelho de Lucas, sabemos que a Sagrada Família era pobre; na apresentação de Jesus no Templo, oferece-
ram o sacrifício prescrito para as famílias pobres – um par de rolas ou dois pombinhos (Lc 2, 24). No entanto,
parece razoável pensar que, como São José era um artesão, a sua casa seria mais bem construída do que a mai-
oria das outras, ainda que fosse modesta em tamanho.

Provavelmente, a unida sala da casa estava escassamente mobiliada, para servir de sala de jantar du-
rante o dia e de quarto de dormir durante a noite. E poderia ter servido igualmente de oficina para o negócio da
família. As camas deviam seresteiras sobre o chão e, no tempo de frio, o espaço em que se dormia seria com-
partilhado com os animais domésticos, se os tinham, côo acontecia em algumas famílias.

Não devia existir uma linha de separação nítida entre quem era da <família nuclear> e quem não. No
norte da Palestina, na Galileia dos gentios, as aldeias eram, com freqüência, colônias tribais. Assim, qualquer
pessoa dentro daquele mundo limitado de camponeses era <da família>.

Não havia, com efeito, uma palavra específica para designar <primo>, todos os parentes consanguí-
neos eram considerados <irmãos e irmãs>, qualquer que fosse o grau de parentesco. Mais ainda, os laços fami-
liares estendiam-se ainda mais longe, a todos os membros das doze tribos de Israel ou , pelo menos, aos rema-
nescentes destas que ainda subsistiam nas terras dos ancestrais.

Uma aldeia, de certo modo, definia os horizontes do mundo de uma pessoa. As viagens longas eram
difíceis e um pouco perigosas, porque os salteadores e os animais predatórios rondavam pelos caminhos à
noite. Quando os habitantes das aldeias iam a Jerusalém – por exemplo, por ocasião das peregrinações nos
grandes dias de festa -, viajavam com toda a sua tribo, não com estranhos, como fazemos hoje em dia com
tanta freqüência. E as caravanas deviam ser muito grandes – tão grandes, tão seguras e tão familiares que as
crianças podiam desaparecer por todo um dia antes que os seus pais começassem a preocupar-se (cf. Lc 2, 42-
45).

As peregrinações marcavam os pontos altos do calendário religioso dos judeus. Mas falar de <calen-
dário religioso> pode induzir em erro, porque, para o povo escolhido de Deus, só havia um calendário, molda-
do pela Lei e pela liturgia da aliança. Mas a liturgia não consistia apenas nos sacrifícios que se realizavam no
Templo distante ou nas cerimônias que se observavam nas assembléias reunidas duas vezes por semana na
sinagoga; a liturgia permeava a vida inteira. A Lei de Israel prescrevia que cada dia começasse com uma invo-
cação ao Todo-Poderoso e que cada refeição fosse um evento sagrado e começasse com uma bênção.

Assim era a vida de São José, um trabalhador comum da tribo de Judá, em uma província do vasto
Império. Sob muitos aspectos, foi diferente da sua vida e da minha. Mas foi uma vida de oração, trabalho,
família, alegria e sofrimento, e foi uma vida perfeitamente integrada. São José deu a São Josemaria um modelo
de <unidade de vida>, e também pode dá-lo a todos nós.

Este modelo é um desafio para o homem moderno nas sociedades secularizadas. A nossa cultura le- 46
va-nos a arranjar um tempo para a religião, mas isolando esse tempo: podemos programá-lo na nossa agenda de
bolso ou eletrônica, mantendo as nossas manhãs de domingo invioláveis e sagradas. Mas onde fica Deus no
resto da nossa semana? Onde está Deus quando trabalhamos, quando praticamos esporte, quando descansamos
ou ajudamos os nossos filhos nos problemas de álgebra?

São Josemaria viu que a grande tentação moderna para os cristãos era a de <levar uma vida dupla: a
vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, pro-
fissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas>. Mas insistiu em que não devemos cair nessa tenta-
ção: <Há uma unida vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser – na alma e no corpo – santa e plena
109
de Deus, desse Deus invisível que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais> .

A vida que São Josemaria propôs foi a de uma vida integrada, como a de São José – totalmente se-
cular e ao mesmo tempo totalmente santa, imersa na agitação da aldeia (seja a da Galileia, seja a global), mas
também sempre imersa em Deus. Uma vida que unisse o divino e o humano, o teórico e o prático, o profissio-
nal e o familiar. Uma vida dirigida para o céu e, amais ainda, em certo sentido já no próprio céu.

Este é o segredo que torna os dias felizes, mesmo no meio das dificuldades, e que explica a alegria
que encontrei nos primeiros membros do Opus Dei com quem travem conhecimento. <O Senhor não nos incita
a ser infelizes enquanto caminhamos, esperando a consolação apenas no mais além>, pregava São Josemaria.

Deus nos quer felizes também aqui, se bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa outra
felicidade, que só Ele pode consumar plenamente.

Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas almas, o amor
ao próximo como fruto saboroso do amor a Deus, representam já uma antecipação do céu, uma incoação desti-
nada a crescer de dia para dia. Nós, os cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de
110
vida simples e forte, em que se fundamental e se compenetram todas as nossas ações .

A filiação divina é o princípio unificador. São José aprendeu a ser filho de Deus contemplando o
crescimento do Filho de Deus no meio de nós. Jesus era uma criança verdadeiramente adorável e, certamente,
seu pai adotivo o adorava, aprendendo de um Filho como confiar em seu Pai e abandonar-se à sua Vontade.
Nós também podemos aprender das crianças pequenas e, de fato, devemos fazê-lo. O próprio Jesus nos infor-
mou: <Em verdade vos digo, quem não se fizer como uma criança não entrará no reio dos céus>(Mt 18, 3).

As crianças pequenas não têm uma vida dividida. Podem desempenhar diferentes papéis em diversos
jogos de hora para hora, mas permanecem elas próprias, estão muito à vontade em casa de seus pais, no mundo
de seus pais. Quando aprendemos delas, a nossa vida de infância espiritual traz unidade à nossa vida.

A vida espiritual do Opus Dei é rica em costumes e devoções. Ouvi descrever essa espiritualidade
como <Trinitária>, <Eucarística>, <Cristocêntrica> e <Mariana>. Ela é todas essas coisas – adicionando mais
uma saudável dose de angelologia -, e é capaz de ser todas essas coisas porque tudo isso se condensa na filia-
ção divina, uma vida de infância. <Essa unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, nosso Pai,
111
pode e deve ser uma realidade diária> , nas palavras do fundador.

A presença de Deus é a chave. Deus está sempre conosco, quer o reconheçamos, quer não. Está
sempre olhando-nos,atento e desejoso de ajudar-nos, bastando que lho peçamos. Esse ato de tomar consciência

109
Questões atuais do cristianismo, n. 114.
110
É Cristo que passa, n. 126.
111
Idem, n. 11.
e esse ato de pedir marcam a diferença entre um trabalho nosso e um trabalho de Deus, entre opus nostereopus
Dei. O nosso trabalho pode fazer as horas passarem, mas o trabalho de Deus faz vir o Reino. O segundo é um
modo muito mais pleno de uma pessoa gastar a sua vida.

O plano de vida que São Josemaria deixou à Igreja, a espiritualidade que transmitiu é emblemática
do seu papel de <semeador de paz e de alegria>. Onde há unidade há vida não há divisão, e então há muito
menos conflitos interiores e muito mais serenidade interior. <Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração.
Pesquisar assim é oração. Não saímos nunca do mesmo: tudo é oração tudo pode e deve levar-nos a Deus,
alimentar esse convívio contínuo com Ele, da manhã até a noite. Todo trabalho honrado pode ser oração; e todo
trabalho que for oração é apostolado. Desse modo, a alma se robustece em uma unidade de vida simples e
112
forte> .

Onde está o teu lar, aí está o teu coração


47
Somos filhos de Deus no eterno Filho de Deus, que é também Filho de Maria. Estamos em casa na
Trindade, em casa na Missa. Mas também estamos em casa na oficina, como José na oficina de Nazaré. E, é
lógico,estamos em casa quando estamos em casa.

Nisto consiste uma vida unitária, vivida em união com Deus, com a sua Igreja e com todos os seus
filhos, Jesus não admite [...] divisão. Ninguém pode servir a dos senhores, porque ou terá aversão a um e amor
ao outro, ou, se se submete ao primeiro, olhará com desdém o segundo (Mt 6, 24). A opção exclusiva que um
cristão faz por Deus, quando aceita com plenitude a sua chamada, impele-o a dirigir tudo para o Senhor e, ao
113
mesmo tempo, a dar também ao próximo tudo o que em justiça lhe cabes> .

112
Idem, n. 10.
113
Amigos de Deus, n. 165.
Uma mãe trabalhadora
<Mas... não tens visto as mães da terra, de braços estendidos, segui-
rem os seus meninos quando se aventuram, temerosos, a dar os pri-
meiros passos sem ajuda de ninguém? – Não estás só; Maria está
junto de ti>. Caminho, n. 900.

Um pai constrói uma casa, mas uma mãe faz um lar.

Os sacerdotes do Opus Dei, seguindo o exemplo de são Josemaria, costumam encerrar as suas medi-
tações e homilias invocando Nossa Senhora. Uma grinalda mariana ornamenta todo o plano de vida, com o
terço diário e o Ângelus, uma Salve-Rainha semanal e romaria anual. Todos os fiéis da Obra, e muitos que
praticam o seu espírito, concluem as suas orações com a invocação: <Santa Maria, esperança nossa, sede da 48
sabedoria, rogai por nós!> ou <Santa Maria, esperança nossa, escrava do Senhor, rogai por nós!>

Ao chamar-nos seus filhos, Deus deu-nos a sua vida, sem reservas. Tudo o que Ele deu ao seu Filho
unigênito, dá-o agora à assembléia dos primogênitos (Hebr 12, 23). Como membros da sua família, somos
herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo (Rom 8, 17) e assim compartilhamos todas as coisas que são de
Cristo. Compartilhamos a sua casa, a Igreja (cf. Ef 2, 19-20). Compartilhamos o seu Nome, no qual fomos
batizados (cf Mt 28, 18-20). Sentamo-nos à sua mesa (cf. 1 Cor 10, 21). Compartilhamos a sua própria carne e
sangue (cf. Hebr 2, 14).

E compartilhamos a sua Mãe. Maria é a Mãe do Deus que veio à terra para ser nosso Irmão. Ela é
Mãe de Deus e também nossa mãe.

Deus introduziu-nos na sua casa, na sua família, e as famílias normalmente têm mães. Nem todas as
famílias têm mães, é claro, mas aquelas que perderam a mãe sentem a sua falta.

O <código> do Opus Dei não é secreto. Nem é obscuro ou arcano. É a filiação divina. Somos filhos,
filhos de Deus. E porque somos filhos de Deus, somos filhos de Maria.

São Josemaria deu-lhe a honra que lhe é devida como mãe na sua pequena família, a Obra. Por isso,
mas do que São José – e mais porque Deus a preservou de modo todo pecado -, Ela é uma imagem, um ícone
do amor, do sacrifício e da comunhão do Opus Dei.

Nossa Mãe é modelo de correspondência à graça, e, ao contemplarmos a sua vida, o Senhor nos dará
luz para que saibamos divinizar a nossa existência de todos os dias [...]. Imitar, em primeiro lugar, o seu amor.
A caridade não se limita aos sentimentos: deve estar presente nas palavras, mas sobretudo nas obras. A Virgem
não se limitou a dizer Fiat, mas cumpriu em todos os momentos essa decisão firme e irrevogável. Assim tam-
bém nós: quando o amor de Deus nos aguilhoar e soubermos o que Ele quer, deveremos comprometer-nos a ser
fiéis, leais, mas a sê-lo efetivamente. Porque nem todo o que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus;
mas o que faz a vontade do meu Pai celestial, esse entrará no reino dos céus (Mt 7, 21).

Temos que imitar a sua natural e sobrenatural elegância. Maria é uma criatura privilegiada na histó-
ria da salvação: nela o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14). Foi testemunha delicada, que passa
despercebida; não foi amiga de receber louvores, porque não ambicionou a sua própria glória. Maria assiste aos
mistérios da infância de seu Filho, mistérios, se assim se pode dizer, cheios de normalidade; mas à hora dos
grandes milagres e das aclamações populares, desaparece. Em Jerusalém, quando Cristo – montado sobre um
jumentinho – é vitoriado como um Rei, Maria não se encontra presente. Mas reaparece junto da Cruz, quando
todos fogem. Este modo de se comportar tem o sabor – não procurado – da grandeza, da profundidade, da
santidade da sua alma.

Procuremos aprender também do seu exemplo de obediência a Deus, nessa delicada combinação de
escravidão e fidalguia. Em Maria não há nada que lembre a atitude das virgens néscias, que obedecem, mas
estouvadamente. Nossa Senhora ouve com atenção o que Deus quer, pondera o que não entende, pergunta o
que não sabe. Depois, entrega-se por completo ao cumprimento da vontade divina: Eis aqui a escrava do Se-
nhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1, 38). Vemos a maravilha? Santa Maria, mestre de toda a
nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a Deus não é servilismo, não subjuga a consciência; pelo
114
contrário, move-nos interiormente a descobrir a liberdade dos filhos de Deus (cf. Rom 8, 21) .

114
É Cristo que passa, n. 173.
Aumentar o romance
<Se o amor, mesmo o amor humano, dá tantas consolações aqui, o
que será o Amor no Céu?>Caminho, n. 428

Ainda me lembro do momento em que <captei> o Opus Dei. Até então, tinha admirado a sua fideli-
dade à doutrina cristã, o seu plano de vida e a gentileza e inteligência dos seus membros. Mas não tinha verda-
deiramente entendido o que distingue o Opus Dei de qualquer outra coisa.

Olhando para trás, vejo que tinha boas desculpas para a minha incompreensão. Primeiro, porque era
novo na fé católica. E além disso porque andava preocupado – a ponto de ficar ansioso. A minha fé recém-
descoberta tinha introduzido uma tensão no meu casamento; todo o tempo de que poderia dispor para estudar o
espírito do Opus Dei, gastava-o em preparar as minhas explanações apologéticas sobre as diversas doutrinas e 49
prática católicas. Estais sempre prontos, disse São Pedro, para responder a todo aquele que vos pedir a razão da
vossa esperança (1 Pe 3, 15). Imagino que isso se agrava se quem pede essas razões é a própria esposa do inte-
ressa.

Kimberly era (e ainda é) filha de um ministro presbiteriano, muito coerente, muito bem educada,
muito devota e ardorosa. Obteve um mestrado em uma das mais respeitadas escolas de teologia evangélica dos
Estados Unidos. Conhecia bem aquilo em que acreditava e sabia por que acreditava.

Como uma calvinista inteligente e bem informada, sabia por que era protestante. A verdadeira subs-
tância da reforma protestante era um protesto contra certas doutrinas e devoções católicas tradicionais. Em
suma, Kimberly, tinha objeções muito sérias ao catolicismo, pelo menos tal como o entendia. Preocupava-a
que a minha crescente simpatia pela devoção mariana me afastasse de Jesus Cristo. Preocupava-a que a minha
freqüência dos sacramentos pudesse ser supersticiosa e a minha invocação aos santos, idolátrica.

Fiz então o que qualquer racionalista faria em tal situação. Gastei horas e horas, todos os dias, pes-
quisando cuidadosamente e elaborando respostas para as suas objeções, construindo argumentos para sustentar
essas respostas e ensaiando mentalmente as melhores maneiras de apresentar esses argumentos.

E fiquei genuinamente surpreso quando percebi que a minha estratégia não funcionava. Kimberly e
eu ficávamos acordados até as três da madrugada a debater questões doutrinais e depois continuávamos a con-
versa no café da manhã. NO entanto, quanto mais irrefutáveis eram os meus argumentos, mas pareciam afastá-
la – não apenas da Igreja Católica, mas também de mim. Depois de algum tempo, recusou-se a ler os artigos e
livros que eu lhe recomendava. Recusou-se até mesmo a ler um simples parágrafo de um certo artigo sobre a
Santíssima Virgem Maria. Percebi que começava a temer essas nossas conversas pelo medo de como pudessem
terminar.

Eu estava frustrado e com o coração partido. Recorri a uma amigo, de nome Gil, que era membro do
Opus Dei. Explique-lhe com todo o detalhe como havia tentado antever as objeções de Kimberly e com que
cuidado havia tentado dissipar cada uma delas.

Reparei que Gil estremecia.

- Que acontece? – perguntei-lhe. – Que há de errado?

Olhou-me do modo mais fraternal e disse-me:

- Por que você não diminui o volume da apologética e aumenta o do romance?

Inicialmente, fiquei cético. Mas depois levei o problema ao meu confessor, um sacerdote do Opus
Dei, que, para meu espanto, me deu um conselho semelhante. O recado não podia ser mais claro:

- Alivie a teologia, Scott. E jogue pesado no carinho.

Isso não me parecia acertado. Ali estava eu, um teólogo, sendo aconselhado a abandonar a rainha
das ciências, o mais nobre empenho que eu conhecia – em troca de quê? De luz de velas e doces ninharias?

Mas o raio havia caído duas vezes no mesmo lugar do meu coração, e os relâmpagos tinham partido
de dois homens que eu respeitava profundamente. Devia tentar.
Tentei, em primeiro lugar, redescobrir o terreno comum do nosso casamento, para pôr o foco naqui-
lo que nos unira como um casal, em vez de pô-lo nas coisas que nos dividiam. Comecei a perceber quão rara-
mente, por exemplo, havia puxado conversa sobre os nossos filhos, que naquela época eram muito pequenos.
Começamos novamente a rir juntos e a apreciar as pequenas descobertas diárias das nossas crianças.

Finalmente, voltamos a ser capazes de rezar juntos, sem disputas nem provocações.

Estava funcionando. Em vez de tentar construir argumentos perfeitos, tentava ser melhor marido pa-
ra minha esposa, melhor pai para os meus filhos, melhor filho para os meus pais e os meus sogros.

O efeito sobre o nosso casamento foi revigorante. Pouparei vocês dos detalhes. Só quero salientar
que chegou o dia em que Kimberly começou a fazer-me perguntas sobre a fé católica. E pouco depois ela tam-
bém pediu para ser recebida na plena comunhão da Igreja.

<Aumentar o romance> conseguiu o que infindáveis debates nunca iriam conseguir.

Portanto, isso é o que o Opus Dei é para mim. 50

Muito do espírito do Opus Dei estava embrulhado naquele simples conselho: <Aumente o roman-
ce>. O que Gil tinha querido dizer-me com ele?

Disse-me que respeitasse a liberdade de Kimberly (e isso é Opus Dei).

Disse-me que a graça constrói sobre a natureza (e isso é Opus Dei).

Dirigiu-me para a secularidade e desviou-me de uma colocação irritantemente clerical do problema


(e isso é Opus Dei).

Enfatizou a importância (e até mesmo a vertente sexual) da vida familiar cotidiana (e isso é Opus
Dei).

Tudo isso era consequência da verdade que palpita no coração do Opus Dei: a filiação divina. O que
Gil me levou a enxergar foi que toda a Criação aguarda a manifestação e a liberdade gloriosa dos filhos de
Deus (cf. Rom 8, 19-21), mas que essa revelação seria feita por Deus no seu devido tempo. O meu trabalho
consistia em ser fiel à minha aliança matrimonial, por caminhos que vinha negligenciando havia muito tempo.

Quando por fim consegui confiar em que a conversão de Kimberly seria obra de Deus e não minha,
pude amá-la mais verdadeiramente e de uma maneira mais transparente para ela.

Amar como Jacó

Esse sucesso inesperado no nosso lar produziu um efeito que repercutiu em toda a minha vida. En-
contrei-me aplicando os princípios de Gil ao meu trabalho profissional e à minha oração. Isto não quer dizer
que tenha começado a buscar romances no trabalho..., mas que <aumentei o romance> na minha vida espiritual
como um todo.

Um episódio bíblico pode servir de ilustração. Consideremos a história de Jacó, no livro do Gênesis
(Gên 29). Um dia, ao viajar, o jovem passou por uma moça bela e amável chamada Raquel. Ficou tão apaixo-
nado que chorou. Foi ter com o pai de Raquel, Labão, e pediu-lhe o privilégio de casar-se com ela. Apaixona-
ra-se tanto que prometeu trabalhar nas terras de Labão por sete anos, afim de merecer tal esposa. Jacó, pois,
serviu sete anos por Raquel, e estes lhe pareceram dias, tão grande era o amor que lhe tinha (Gên 29, 20). Para
falar a verdade, Jacó viria a trabalhar outros sete anos, por causa dos artifícios de Labão.

Observemos, porém, que Jacó não trabalhou com amargura. Não pensava com amargura em todos
os lugares onde poderia estar se não tivesse de ficar conduzindo ovelhas pelos pastos de um homem pouco
digno de confiança. Trabalhou com alegria porque o seu coração estava apontado para a meta: o amor de Ra-
quel. Conservou um espírito de serviço porque estava a serviço do único homem que poderia levá-lo a essa
meta. Com efeito, depois que tudo se cumpriu e Jacó se casou com Raquel, serviu Labão ainda outros sete
anos, por gratidão!

Todos temos muito que aprender. E já não me refiro aqui à felicidade doméstica, mas a alguma coisa
muito maior: a nossa meta de alcançarmos o céu.
Por essa meta, quanto tempo deveríamos estar dispostos a trabalhar? Sete anos? Catorze? Vinte e u?
Setenta? A mais longa de todas as vidas não seria suficiente.

E quanta alegria não deveria transbordar dos nossos corações ao trabalharmos pelo amor de Deus?
Quanto amor e lealdade não deveríamos ter para com o nosso chefe e para com os nossos colegas?
115
Não há em Jacó o menor toque de misticismo <oxalateiro> . Ele não sonha acordado com as delí-
cias de uma longínqua aposentadoria. Impelido pelo amor, põe mãos à obra, uma hora após a outra, e depois
outra hora após a outra, até se passarem sete anos, que lhe parecem apenas uns poucos dias.

O Opus Dei ensinou-me a buscar o tipo de amor que Jacó viveu, a conservar o sentido de aventura
na vida conjugal e nos afazeres cotidianos, a estar atento aos enormes resultados que podem depender de umas
conversas normais, a reconhecer as conseqüências eternas que podem ter uns olhares demorados – especial-
mente quando dirigidos ao céu.

Tudo isto é verdade na ordem da graça e da natureza. A Obra de Deus consiste em trabalhar com 51
amor e alegria, aumentando diariamente o volume do <romance> na vida ordinária. Porque Deus espera o
nosso terno amor, quem quer que sejamos e a todo momento.

É desse romance que são feitos os bons lares, na Igreja como no mundo.

115
A expressão original é de São Josemaria: <mística ojalatera>, traduzida antes como <mística do oxalá>. Envolve um trocadilho intraduzível: hojalata é, em
castelhano, folha de flandres ou lata; e ojalá equivale exatamente ao nosso <oxalá>. Como é óbvio, o autor pretende frisar a ideia de que essa mística não vale
nada, que é de lata (N. do T.).

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