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Avenida Higienópolis, 174, Centro AUTOR IA

86020-908 — Londrina/PR Venerável João de Jesus


editorapadrepio.org
Maria
CAPA
Klaus Bento
DIAGRAMAÇÃO
Eduardo de Oliveira
TRATADO DA ORAÇÃO
DIR EÇÃO DE CR IAÇÃO
Luciano Higuchi
© Todos os direitos desta edição
pertencem e estão reservados à EDIÇÃO E R EVISÃO
Editora Padre Pio. Éverth Oliveira
TRADUÇÃO
Redempti ac vivificati Christi sanguine, Christo nihil Equipe Christo Nihil
præponere debemus, quia nec ille quidquam nobis præposuit. Præponere

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jesus Maria, João de, 1564-1615


Tratado da oração [livro eletrônico] / João
de Jesus Maria ; tradução Equipe Christo Nihil
Præponere. - Londrina, PR : Instituto Padre Pio,
2023.
PDF
Título Original: Tratado de Oración
ISBN: 978-85-52993-08-7
1. Meditação 2. Oração – Cristianismo
3. San Pedro Ustárroz, Juan de, 1564-1615
4. Teologia I. Título.
23-177865 CDD-248.32

Índices para catálogo sistemático:


1. Oração : Cristianismo 248.32
SUMÁRIO

Biografia do Venerável João de Jesus Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

Doutrina espiritual do autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

TRATADO DA ORAÇÃO

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

Breve exemplo da oração, composta das partes


sobreditas, tendo por matéria as dores e humilhações
de Cristo Crucificado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Das partes da oração em geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Da preparação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Da meditação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Da presença de Deus e do uso da imaginação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Da inspiração dos afetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Das securas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Sobre os gostos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Das partes afetivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Da oração em geral e de suas circunstâncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59


BIOGRAFIA DO VENERÁVEL
JOÃO DE JESUS MARIA
1
Dicastério para as Causas dos Santos

João de Jesus Maria (no século: Juan de San Pedro y Ustárroz)


nasceu em Calahorra (Rioja, Espanha) em 27 de janeiro de
1564, em uma família de judeus convertidos ao catolicismo.
Sua infância foi marcada pela epidemia da peste, que lhe
deixou com uma saúde frágil. Frequentou a Faculdade de
Filosofia da Universidade de Alcalá de Henares entre 1579 a
1582, quando entrou no noviciado dos carmelitas descalços
de Pastrana, segundo convento fundado por Santa Teresa de
Ávila. Após renunciar a todos os seus bens através de testa-
mento notarial, emitiu a profissão religiosa em 30 de janeiro
de 1583. Prosseguiu os estudos de filosofia em Alcalá e, em
1585, foi transferido para Gênova, local do primeiro convento
dos carmelitas descalços na Itália, onde completou os estudos
de teologia. E em 1589 foi ordenado sacerdote.

Em 1593 participou do Capítulo de Cremona, no qual os


carmelitas “descalços” separaram-se dos “calçados”. No
mesmo ano foi nomeado mestre de noviços em Gênova.
Em 1597 foi transferido para Roma e nomeado membro da

1. João de Jesus Maria foi declarado venerável em 25 de novembro de 2021,


por decreto do Papa Francisco, e o processo de beatificação continua em
andamento no Dicastério para as Causas dos Santos. Texto traduzido de
<https://www.causesanti.va/it/venerabili/giovanni-di-gesu-maria-al-secolo-
-giovanni-de-san-pedro-y-ustarro.html>. Acesso em 3 out. 2023.

5
T RATA D O DA O RAÇÃO

comissão encarregada de redigir as constituições da nas-


cente Ordem dos Carmelitas Descalços, a qual, junto ao
carisma contemplativo originário, desenvolveu o espírito
missionário na linha do ensinamento de Santa Teresa. De
1600 a 1611, assumiu o cargo de vigário no convento de
Santa Maria della Scala em Roma. No capítulo geral de
1605, foi eleito segundo definidor geral e mestre de novi-
ços, continuando ao mesmo tempo seu encargo de vigário
em Santa Maria della Scala. Três anos depois, foi eleito de-
finidor e procurador geral.

Trabalhou no processo de beatificação de Teresa de Ávi-


la, sobre a qual escreveu uma biografia em 1609. Dedicou
muita energia à atividade de escritor, produzindo uma obra
literária composta de 27 obras, nas quais se ocupou de teo-
logia, Sagrada Escritura, vida religiosa, governo, pedagogia
e mística. Foi eleito prepósito geral em 1611 e passou a go-
vernar as casas por meio de cartas, pois sua saúde debilitada
não lhe permitia viajar. Promoveu a abertura missionária da
Ordem.

Morreu em 28 de maio de 1615 no convento “São Silvestre”


do Monte Compatri (Roma, Itália), onde repousa até hoje
seu corpo incorrupto.

João viveu de modo heroico a fé, em uma vida marcada pela


constante subida para a perfeição. Todos os seus propósitos
eram orientados à conquista dos bens eternos, deixando-se
guiar pelo cumprimento da vontade de Deus. Seguindo a
tradição carmelitana, viveu sua própria noite escura. Mes-
mo o impulso missionário que deu à Ordem, nascia de seu

6
Biografia

desejo de propagação da fé para a salvação das almas. Seus


numerosos escritos contêm uma sã doutrina rica em espiri-
tualidade, inspirada na Sagrada Escritura, em Santo Tomás
de Aquino e em Santa Teresa de Jesus.

Exerceu a esperança heroica, sobretudo na orientação to-


tal para o Céu e na confiança incondicionada em Deus. A
tentação de desanimar e desconfiar da misericórdia de Deus
marcou por muito tempo o sofrimento interior do Servo
de Deus, o qual, entretanto, esperou contra toda esperan-
ça, demonstrando exteriormente uma singular mansidão e
doçura de alma.

Destacou-se também na virtude da caridade para com Deus


e o próximo, na medida em que amava a Deus sobre todas as
coisas e procurava sua glória em todas as situações. Talvez a
causa disto tenha sido o sentimento de inadequação frente
à imensidade do amor de Deus, ao qual não conseguia cor-
responder e que desejava possuir a todo custo. No amor ao
próximo, desejava imitar o amor de Cristo que deu sua vida
por nós. Amava a todos sem preferência, e era amado por
todos. Governou com paciência e caridade, promovendo o
espírito originário da fundadora e preocupando-se com o
bem dos confrades.

7
DOUTRINA ESPIRITUAL
DO AUTOR
2
Antonio Royo Marín

João de Jesús Maria (1564-1615) foi o terceiro superior geral


da reforma carmelitana. Como escritor, é sua figura mais
importante depois dos dois sublimes reformadores. Nascido
em Calahorra, foi noviço carmelita em Pastrana e estudou
em Alcalá. Dirigiu-se a Gênova, e viveu fora da Espanha até
sua morte em 1615.

Comentou em estilo elegantíssimo o Livro de Jó, o Cântico


dos Cânticos e as Lamentações de Jeremias. Mas seu pensa-
mento místico encontra-se principalmente em sua Teolo-
gia mística e em sua Escola de oração e de contemplação.

Segundo ele, a oração ordinária tem seis partes: preparação,


leitura, meditação, ação de graças, oferecimento e petição.
A contemplação infusa é efeito do dom de sabedoria e, por-
tanto, não pode dar-se numa alma que esteja em pecado
mortal, dada a conexão entre os dons do Espírito Santo e a
graça santificante. A contemplação infusa está ao alcance de
todas as almas em graça. Basta que o Espírito Santo mova
ou atue o dom de sabedoria — que todas as almas em graça
possuem como hábito — para que se produza o fenômeno
contemplativo com maior ou menor intensidade.

2. Traduzido de: Los grandes maestros de la vida espiritual. Madrid: BAC,


1973, p. 319.

8
TRATADO
DA ORAÇÃO
VENERÁVEL JOÃO DE JESUS MARIA
INTRODUÇÃO

Oração é propriamente uma petição feita à divina Majesta-


de; mas segundo o uso ordinário, este nome “oração” signi-
fica uma subida ou elevação da alma a Deus, nosso Senhor.
Neste <último> sentido, compreende todas as partes da ora-
ção, qualquer que seja; mas no primeiro significado, convém
apenas à última parte.

As partes da oração são seis: preparação, leitura, meditação,


ação de graças, oferecimento e petição.

A preparação é feita de duas maneiras: remota e próxima.


A preparação remota consiste em fugir das ocasiões de dis-
tração e das preocupações com outras coisas contrárias ao
recolhimento interior. A próxima consiste em considerar a
Majestade divina e a própria vileza, dispondo-se com afetos
de reverência e amor para com a divina Majestade, e com
afetos de humildade para consigo mesmo, humilhando-se e
tendo contrição ante a vileza do pecado. Com este afeto se
há de começar a orar, assim como o publicano, cuja oração
agradou tanto a Deus, nosso Senhor.

A leitura há de ser: primeiro, atenta; segundo, pausada e


com sossego; terceiro, com a escolha do ponto mais cha-
mativo, tomando o que lhe dá mais força para meditar ou
discorrer a respeito, a fim de mover a vontade. Não impor-
ta que a leitura seja feita antes ou depois da preparação.

A meditação há de ser: primeiro, moderada; segundo, eficaz.


Note-se que da meditação na qual se consideram os benefí-

10
I n t ro d u ção

cios de Deus nasce o agradecimento, o qual têm duas partes:


o afeto de gratidão interior, e o fazer algo em retribuição se-
gundo as próprias forças. E a este fim se faz o oferecimento,
no qual se oferecem os propósitos de fazer obras virtuosas
interiores e exteriores.

A ação de graças consiste: primeiro, em despertar afetos de


agradecimento; segundo, em fazer alguns atos de amor e
louvores a Deus pelos benefícios que foram considerados
na meditação.

O oferecimento consiste: primeiro, em oferecer-se todo ao


Senhor; segundo, em oferecer outros infinitos corações que
se tivesse; terceiro, em propor-se a fazer excelentes atos de
virtudes interiores e exteriores, principalmente das que se
sente mais necessitado, e de lutar contra as paixões e tenta-
ções que mais lhe combatem.

A petição consiste em pedir: primeiro, todo bem convenien-


te ao homem; segundo, em pedir a vitória das tentações
e vícios que mais lhe afligem; terceiro, em pedir a virtude
que, por então, lhe é mais necessária; quarto, em pedir pelo
próximo; quinto, em pedir com grande fé por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor.

As razões destas seis partes são as seguintes:

1.É muito conforme à razão que quem há de falar com um


grande Príncipe, e muito mais com a Majestade de Deus,
prepare-se e considere com quem quer tratar e o que lhe
quer dizer. A este fim serve a preparação.

11
T RATA D O DA O RAÇÃO

2.A mesma razão pede que se escolha a matéria de que se


há de tratar. A este fim serve a leitura, que torna presente a
matéria a ser meditada.

3. A mesma razão pede que se reflita sobre a matéria a ser


tratada. A este fim serve a meditação, que pondera aquela
matéria discorrendo sobre ela.

4. Depois se segue a aplicação do afeto, que nasce da medi-


tação, na qual se consideraram os benefícios da divina Ma-
jestade. Porque a mesma razão da qual se originou a prepa-
ração, a escolha da matéria e o discurso sobre ela, pede que,
quando naquela consideração se conhecem mais claramen-
te as misericórdias de Deus, a alma se reconheça agradecida
a tão grande benfeitor, e por elas lhe dê graças com íntimos
afetos do coração. A este fim serve a ação de graças.

5. Também pede a razão que, além daquele agradecimento


interior, a alma agradecida faça a retribuição que pode. A
este fim serve o oferecimento, no qual o homem se oferece
todo com aquele afeto de agradecimento, e com o propósito
de que fará obras virtuosas pelo Senhor.

6. Mas como o homem, segundo a doutrina católica, não


pode pagar esta dívida e agir santamente sem o favor e a
graça de Deus, a razão pede que a última parte seja recorrer
com a petição ao seu Criador e Senhor, pedindo-lhe forças
para cumprir com as próprias obrigações, para desvenci-
lhar-se do peso dos pecados, para alcançar as virtudes e, fi-
nalmente, para todas as coisas necessárias ou convenientes
para chegar à vida eterna.

12
BREVE EXEMPLO DA ORAÇÃO,
COMPOSTA DAS PARTES SOBREDITAS,
TENDO POR MATÉRIA AS DORES E
HUMILHAÇÕES DE CRISTO CRUCIFICADO
Supõe-se a leitura deste mistério.

P REPARAÇÃO

Eu, vilíssimo pecador, hei de falar contigo, ó Majestade altís-


sima, excelentíssimo Senhor e Deus meu! Grande coisa é esta,
Senhor, não há dúvida. Mas é próprio de tua infinita bondade
e doçura querer que eu fale com tua divina Majestade e encon-
tre ocasião de tratar com ela, eu, que sou um vermezinho vil e
desprezível, que haveria de ser afastado de ti eternamente. Ado-
ro-te, ó Altíssimo Rei dos reis e, diante de tua grandeza imensa,
me prostro, e te consagro minha alma, para dedicar-me a ti.
Com todo meu coração, arrependo-me de meus pecados, supli-
cando-te que tenhas por bem perdoar-me e ajudar-me a usar
bem e com proveito esta hora de oração.

MEDITAÇÃO

Hei de meditar a passagem de tua santa Cruz, ó Filho do Deus


vivo, e queria saber considerar aquelas gravíssimas dores e hu-
milhações que padeceste por mim. Estou certo, ó meu infinito
Bem, que aquelas dores ultrapassam qualquer exagero.

Porque quando te vejo rendido naquele madeiro, desconjunta-


dos os ossos, cravadas as mãos e os pés com aqueles cravos, a
sacratíssima cabeça com aqueles espinhos terríveis, agonizan-

13
T RATA D O DA O RAÇÃO

do com angústias de crudelíssima morte; quando percebo que


teu puríssimo corpo foi formado pelo Espírito Santo com uma
compleição delicadíssima e muito sensível às dores, mais que
qualquer outro homem, sei, sem dúvida, que foram inefáveis
tuas penas, e que deveriam mover até mesmo as pedras a mui
íntima compaixão.

E se acrescento a isso também aquela admirável invenção de tua


divina Pessoa, que soube encontrar aquele modo tão maravilhoso
de unir-se a uma natureza passível para sofrer tantas dores, outra
coisa não sei dizer senão que fui uma criatura muito cruel e in-
grata, que fui a causa deste espetáculo da justiça que recaiu sobre
o inocente Filho do Deus vivo, que morreu por mim.

E se depois de tudo, ponho-me a escutar os escárnios e igno-


mínias de teus inimigos, que vendo-te em tão grandes penas,
crucificam-te de novo com suas línguas infernais, dizendo mil
insultos e divertindo-se ao ver-te morrer com tanta humilha-
ção e dor, não sei o que responder, senão que fui um Judas, que
com meus graves pecados coloquei-te nas mãos daqueles lobos
raivosos, para que se fartassem da presa que tanto desejavam.

Suplico-te, meu Senhor amabilíssimo, que me digas como é


possível que tu por mim tenhas te entregado nas mãos de tais
inimigos? Eu sei que te ofendi e provoquei tua ira; como então
lutas por mim com tanta doçura e mansidão? Por que há de
morrer o inocente pelo culpado e ingratíssimo pecador?

Note-se que esta meditação e as outras partes se podem


estender mais, segundo o tempo, que deve ser empregado
principalmente nas três partes seguintes, que são o fruto da
boa meditação.

14
B r ev e ex emp l o da o r ação

AGRADECIMENTO

Eu te dou infinitas graças, meu eterno Bem, e quisera ter infini-


tos corações para cantar e celebrar com todos eles a tua infinita
misericórdia. Este e os seguintes atos devem ser multiplica-
dos, de acordo com o tempo.

OFERECIMENTO

Eu, meu Senhor benigníssimo, te ofereço totalmente a mim


mesmo e infinitos corações que queria ter para oferecê-los a ti.
Proponho, em correspondência de tanto amor, servir-te fidelissi-
mamente, mortificar-me em tal coisa e naquela que tenho mais
dificuldade etc., estendendo ou ampliando, como foi dito.

P ETIÇÃO

Mas eu, Senhor, não posso fazer algo bom sem ti. Ajuda-me, Rei
generosíssimo. Dá-me graça para que alcance a vitória sobre
esta paixão que me aflige, e para alcançar esta virtude que me é
muito necessária para chegar à eterna glória.

15
DAS PARTES DA ORAÇÃO EM GERAL

DÚVIDA 1: Há outras partes além das que foram ditas?

Respondo que não. Na verdade, muitos santos as reduzem


a menos <partes>; todavia, esta divisão é utilíssima para os
principiantes.

Note-se que alguns livros espirituais colocam a contem-


plação nessa sequência das partes da oração, o que é cau-
sa de erro aos iniciantes. Com efeito, embora seja verdade
que se pode compreender <a contemplação> sob o nome
de oração, uma vez que ela é uma altíssima elevação da
alma a Deus, contudo, falando propriamente, há grande
diferença; e os novos, querendo experimentar a contem-
plação, além de perder tempo, perdem o proveito da ora-
ção ordinária.

DÚVIDA 2: É necessário fazer todas essas partes?

Respondo que é conveniente no princípio, para empregar


aquele tempo com fruto. Mas não é de tal maneira neces-
sário que, se aquele que reza se sente bem ocupado, por
exemplo, na preparação (o mesmo digo das outras partes
afetivas), tenha de deixar aquele pasto certo por um incerto,
exercitando-se nas outras partes.

16
Da s pa rt es da o r ação em g er a l

Note-se que, quando a preparação não foi feita antes, é sem-


pre conveniente fazê-la no próprio oratório. 3

DÚVIDA 3: É obrigatória a ordem que estabelecemos?

Respondo que é proveitosa, enquanto a alma não se sente


levar pelo Senhor de outra maneira. Mas quando, de ime-
diato, sente-se ocupar, digamos, na petição ou no ofereci-
mento, bem pode seguir aquele impulso, embora ainda não
tenha meditado, e depois aplicar-se à meditação.

Note-se que a leitura pode ser feita antes ou depois da pre-


paração, indiferentemente.

Note-se também que, depois da meditação, não convém


atar a alma à ordem daquelas últimas três partes afetivas,
senão deixá-la aplicar-se primeiro àquela parte a qual mais
se inclina o afeto.

3. Denomina-se “oratório” o lugar em que os religiosos se reúnem para rezar.


(Nota do Tradutor)

17
DA PREPARAÇÃO

DÚVIDA 4: A matéria da oração deve ser preparada antes de


ir ao oratório?

Respondo que sim; mas é preciso notar um erro que pode


ocorrer na preparação. Com efeito, a forma da preparação
é aquela que foi colocada acima e nela está a excelência da
boa preparação. Não obstante, na preparação da matéria
acontece que, aquele que não está acostumado, temendo
que lhe falte matéria em que ocupar-se, ao invés de orar,
gasta o tempo em pensar muitos conceitos para meditá-los
depois na oração e, com o demasiado discorrer, perde o
fruto da oração.

Não se deve fazer assim, mas seguir a ordem das meditações


habituais, e considerar um pouco em sua cela o ponto que
lhe causa mais impressão. Por exemplo, se a meditação será
sobre o Inferno, convém notar o ponto que mais lhe move
(ou o rigor das penas, ou a privação de Deus, ou a duração
etc.), e procurar conservar aquele sentimento e retomá-lo
depois no momento da oração, caso não se sinta mover mais
eficazmente por algum outro ponto dos que ali se lerem. E
não convém preparar muitas ideias ou razões para depois
repeti-las artificiosamente na oração, mas ir com humildade
e simplicidade, porque deste modo a alma é mais instruída e
consolada pelo Senhor através das verdades e pensamentos
que Ele inspira no momento da oração.

18
Da p r epa r ação

Da mesma maneira, não convém preparar artificiosamente o


afeto que se queira tirar, porque, se a meditação é boa e pro-
porcionada, o afeto se despertará com ela.

Verdade é que bem se pode, e deve, não sempre, mas muitas


vezes, ir com intenção específica, por exemplo: de obter afe-
tos de contrição ou dor dos pecados, quando se faz o exame
para uma confissão geral; ou de humildade, quando se com-
bate a própria estima. Todavia, isto merece mais o nome de
intenção que de preparação do afeto.

Disse que não convém ir sempre com intenção de obter um


afeto específico, porque não convém estreitar demasiada-
mente a alma; ao contrário, deve-se dar a ela mais liberdade,
a fim de que, com a meditação, simplesmente se mova aos
bons afetos; afinal, se a vontade for enternecida, tiraremos
dela qualquer bom afeto e, como <acontece> à cera, incli-
ná-la-emos àquela ternura que quisermos, a saber, ao abor-
recimento do pecado, ao amor desta ou daquela virtude, à
mortificação desta ou daquela paixão e, finalmente, a qual-
quer coisa boa.

19
DA MEDITAÇÃO

DÚVIDA 5: O que é meditação?

Respondo que é um discurso do intelecto orientado a mo-


ver a vontade. Donde se segue que tanto se há de usar dela
quanto for necessário para mover a vontade, e não mais.

20
DA PRESENÇA DE DEUS E
DO USO DA IMAGINAÇÃO

DÚVIDA 6: O que é presença de Deus?

Respondo que é uma aplicação da alma a pensar em Deus,


imaginária ou intelectualmente. E, com esta aplicação, diz-se
corretamente que nós temos Deus presente.

Deus está presente em todo lugar, mesmo que não pense-


mos nele. Todavia, não se diz que nós o tenhamos presente
ou que estejamos na presença de sua Majestade (segundo o
sentido e linguagem dos santos), se não fazemos aquela apli-
cação da alma. Quando aplicamos a alma sem formar ima-
gens, <essa aplicação> é chamada “presença intelectual de
Deus”; e quando a aplicamos formando imagens, chama-se
“presença de Deus imaginária”. Segundo este ensinamento,
a meditação se pode exercitar com imagens ou sem elas.
4

4. A palavra meditação está aqui sendo usada em sentido amplo, como qual-
quer oração em que elevamos a mente aos mistérios de Deus com concentra-
ção intelectual e reflexão. É possível pensar nas coisas de Deus sem produzir
uma imagem na fantasia, por exemplo, quando pensamos na presença de
Deus que está em nós após a comunhão sacramental; neste caso é fácil re-
zar sem produzir imagens. No entanto, quando se trata dos momentos mais
longos de oração, em que geralmente se utiliza um método, quase sempre
ou sempre convém produzir imagens na fantasia, pois estas ajudam a inteli-
gência a concentrar-se no tema meditado. Ademais, mesmo quando não há
produção de imagens na fantasia, a imaginação nem por isso deixa de ser uti-
lizada, porque aquelas frases e colóquios interiores que travamos com Deus
sem externalização sonora, também são produzidas na imaginação. (N.T.)

21
T RATA D O DA O RAÇÃO

DÚVIDA 7: Como a presença de Deus, escolhida no início do


dia ou da semana, pode ser harmonizada com a matéria me-
ditada na oração?

Acerca desta harmonia, respondo: Quem reza não tem necessi-


dade de cansar-se buscando artificiosamente a correspondên-
cia entre a matéria e a presença de Deus. Ao contrário, imagi-
ne-se na presença de Cristo, nosso Senhor, da maneira que traz
a presença de Deus daquele dia, e procure meditar a matéria
5

preparada, advertindo que está diante do mesmo Senhor. E se


a matéria da meditação concorrer com a da presença de Deus,
já haverá proporção para harmonizar ambas; se não concorrer,
será suficiente ter a advertência sobredita [isto é, que está dian-
te do mesmo Senhor]. De outra maneira, gasta-se o tempo sem
proveito em especulações e não em orar com afeto.

Esta resposta aplica-se aos casos em que a matéria da medi-


tação não é igual <à da presença de Deus> (que utiliza, por
exemplo, Cristo enquanto Deus ou enquanto homem), mas
trata de outras coisas, como do juízo ou da morte etc. Nestes
casos, convém representar-se na presença de Deus escolhi-
da naquele dia, e refletir sobre a matéria que quiser, como
quem está diante de Cristo.

5. O autor sugere a escolha de uma cena da vida de Cristo ou um misté-


rio específico de Deus para exercitar-se na prática da presença de Deus, por
exemplo: durante a semana, trazer na mente a imagem de Cristo flagelado.
Responde então à dúvida de um noviço que, nestas circunstâncias, tivesse de
meditar sobre um tema diferente da flagelação, como o Inferno. Por um lado,
teria de pensar em Cristo flagelado durante a semana, e por outro, teria de
meditar sobre o Inferno; como harmonizar os dois temas? A isto se dirige a
resposta. (N.T.)

22
Da p r es en ça d e De u s e d o u s o da i m ag i n ação

Todavia, se escolher por presença de Deus a passagem de


Cristo <atado> à coluna e quiser meditar sobre Cristo cru-
cificado, certamente deverá deixar a presença da coluna e
tomar a de Cristo crucificado.

DÚVIDA 8: Acerca da meditação, há de se formar alguma ima-


gem para meditar?

Respondo que sim. Exceto se aquele que reza, depois de ter


boa experiência disso e com conselho do mestre , tiver per- 6

missão de rezar sem formar imagens, atento apenas à pre-


sença intelectual de Deus.

Note-se que há alguns que não podem formar imagens, e para


estes é o que acabamos de dizer: depois de ter boa experiência.

DÚVIDA 9: Os que não podem formar imagens, a não ser im-


perfeitamente, devem deixar a obra da imaginação e entregar-
-se à presença intelectual?

Respondo que não. Devem contentar-se com aquela forma


imperfeita e utilizá-la enquanto seu mestre não lhes der ou-
tra ordem. Porque, dado que não formem bem as imagens,
ao fim aquele modo imperfeito lhes basta para fazer bem
sua oração, para o que, não é necessária, e muitas vezes nem
sequer é conveniente, a perfeita formação das imagens.

6. O termo se refere ao mestre de noviços, religioso encarregado da formação


espiritual dos noviços numa Ordem religiosa. Como o autor destinara o livro
primeiramente aos membros da Ordem Carmelita, ressalta a importância de o
leitor submeter-se ao juízo do mestre. Não obstante, as funções que atribui ao
mestre de noviços, são certamente próprias a qualquer diretor espiritual. (N.T.)

23
T RATA D O DA O RAÇÃO

Além disso, o caminho mais seguro é não se elevar tão rá-


pido às coisas intelectuais, sem passar <antes> pela imagi-
nação dos quatros Novíssimos e da humanidade de Cristo,
nosso Senhor.

DÚVIDA 10: Que remédio terão para meditar a Paixão de Cris-


to, nosso Senhor, e outras coisas imagináveis aqueles que qua-
se não podem formar imagem alguma e, se a formam, logo
são perturbados com outras imagens impertinentes?

Respondo que hão de se contentar com aquelas breves ima-


gens, aplicar-se a discorrer sobre elas e esforçar-se para não
fazer caso das imaginações pertinentes, porque desse modo
terão uma boa oração.

Não se deve deixar a consideração da vida e Paixão de Cristo


por causa da inconstância da imaginação ou imagens im-
pertinentes. Como aquele que, anoitecendo o dia, está con-
versando com alguém: embora não possa distinguir suas
feições, contenta-se com tê-lo presente e saber que lhe ouve
e lhe responde o necessário.

DÚVIDA 11: Os que têm facilidade para representar qualquer


coisa em sua imaginação, de tal maneira que lhes parece que
a veem, devem utilizar aquela perfeita representação?

Respondo que não. Ao contrário, devem moderar aquela vi-


vacidade e veemência, e não deter-se a imaginar, digamos
por exemplo, a fisionomia do rosto de Cristo e outras pe-
quenas particularidades. Contentem-se com um modo im-
perfeito e foquem nos atos e partes da oração. Porque de ou-
tro modo aquela perfeição de imaginações lhes faria dano,

24
Da p r es en ça d e De u s e d o u s o da i m ag i n ação

e vez ou outra viriam a crer sem dúvida terem tido algumas


visões ou revelações, não sendo mais que imaginações ou
ilusões do demônio, que tende a fazer muitos enganos a
pessoas semelhantes.

DÚVIDA 12: As imagens devem ser representadas próximas,


dentro ou longe de si?

Respondo que, analisando a coisa em si, é melhor imaginá-


-las próximas ou dentro de si mesmo, porque favorece mais
o recolhimento interior. Alguns, porém, sentem dificulda-
de nisto, e a experiência mostra que de outras maneiras se
faz bem a oração. Por isso, experimente cada um como tem
mais proveito e, dando conta disso a seu mestre, siga o que
ele lhe aconselhar.

DÚVIDA 13: É bom algumas vezes deter-se para olhar a ima-


gem que foi formada (por exemplo, de Cristo, nosso Senhor)
sem discorrer?

Respondo que às vezes será bom fazê-lo, como quando a


vontade já está inflamada; de maneira que seja uma atenção
ou um olhar sincero, humilde e afetuoso, o qual geralmente
ajuda a despertar mais o afeto.

Todavia, não é bom que os que têm a imaginação tão perfei-


ta, como antes dizíamos, fixem com força os olhos naque-
la imagem, ou se ponham a olhar para os olhos, boca etc.,
senão que se contentem com aquela presença indistinta de
que falamos.

25
T RATA D O DA O RAÇÃO

Note-se também que, quando está inflamada a vontade, é


bom parar alguma vez para olhar a Cristo; o qual se há de
entender interrompendo um pouco o discurso e a frequên-
cia dos atos, mas não absorto de tal maneira que queira sus-
pender-se e como adormecer-se, sem advertir a presença do
Senhor, pois isto seria imprudência e erro. Porque os arreba-
tamentos na oração não vêm por nossas diligências, senão
pela graça divina, quando o Senhor os quer dar.

26
DA INSPIRAÇÃO DOS AFETOS

DÚVIDA 14: Quando a alma se sente atraída mais eficazmente


a outros pontos diferentes da matéria que havia preparado e
do discurso que faz na oração, deve deixar-se levar por eles?

Respondo que sim, supondo que sejam pontos piedosos e


úteis. Porque aquela inspiração é sinal de que o Senhor quer
dar alimento à alma em outra coisa mais importante do que
aquela em que pensava. Porém, se isto sucede muitas vezes e
a alma percebe que, cessado aquele calor do movimento que
sente, não lhe sobra outro bem, ou que o fruto é pouco, não
se deixe levar facilmente, porque perderá o discurso contí-
nuo da oração, que ajuda muito para instruir a inteligência,
convencer e mover a vontade com mais firmeza, e é como o
pão de cada dia que sustenta a alma. Aquele que sentir essas
coisas, comunique-as todas ao seu mestre.

DÚVIDA 15:Que deve fazer quem percebe que a meditação não


move a vontade?

Respondo que, se o não mover é no princípio, há de perseve-


rar por um tempo, suplicando ao Senhor que envie seu favor
para obter o afeto. Mas se passa, por exemplo, da meia hora
acostumada de oração, deixe a meditação em que encon-
tra secura e tome outro qualquer ponto ou consideração ao
qual a alma se inclina, com esperança de mover a vontade;
ou se aplique a fazer as últimas partes da oração, que são
a ação de graças, oferecimento e petição, embora seja sem
devoção sensível.

27
T RATA D O DA O RAÇÃO

Porque aqueles são verdadeiros atos de virtude, e são o fim


e o fruto da oração. O movimento sensível da vontade não é
necessário e, muitas vezes, não é conveniente.

Este ensinamento é útil para quem sofre tentações e não


pode formular discursos: este deve proceder como quando a
meditação não move a vontade, nem obtém afetos.

Note-se que nesta matéria o termo “afeto” refere-se a quais-


quer atos da vontade, que se produzem com comoção ou
fervor dela. Refere-se também a qualquer ato do apetite sen-
sitivo, que chamam pelo nome de “paixão”, porque se pro-
duz com alguma comoção ou alteração do corpo.

A oração é a oficina dos afetos da vontade, os quais costumam


nascer ou sozinhos, ou em companhia daqueles produzidos
pelo apetite sensitivo. É por isso que, quem reza com secura
esforçando-se para fazer bons atos e propósitos com a vonta-
de, não obtém afetos propriamente ditos, embora seja verda-
de que faça muitos atos bons e cheios de méritos.

DÚVIDA 16: Que se deve fazer quando a meditação move súbi-


ta ou brevemente o afeto, mas logo se esfria?

Respondo que se deve retornar à meditação e soprar uma,


e outra, e muitas vezes o fogo. Neste caso convém mesclar
aquelas meditações breves com as últimas partes afetivas,
pois é como soprar muitas vezes o fogo, levantar a chama;
e logo que apagar-se, faça-se o mesmo novamente.

Note que há pessoas que, com pouca meditação, movem o


afeto: em alguns isto pode nascer das meditações passadas,

28
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

com cujo exercício a vontade ficou enternecida e fácil de ser


movida, o que é sinal de <progresso na> virtude; em outros,
isto pode proceder do temperamento, e ser sinal de delicade-
za excessiva e pouca consistência de ânimo. Os primeiros fa-
zem bem em meditar pouco. Mas não agem bem os segundos
se, no princípio de sua conversão, não fazem violência consi-
go quando começam a dedicar-se à oração; porque, como se
comovem rapidamente, ocupam-se em suspiros e choros de
pouco proveito e não dão espaço à reflexão sobre as virtudes.
Bem diverso é o proceder dos que alcançaram facilidade para
mover o afeto após terem dado tempo e ocasião à considera-
ção. E isto é digno de grande atenção.

DÚVIDA 17: Que se há de fazer quando, com a força da medi-


tação, inflama-se muito o afeto?

Respondo que se deve moderar a comoção sensível, princi-


palmente nos principiantes; porque prejudica a cabeça e o
coração, não traz proveito espiritual, nem permite prestar
atenção ao conhecimento das virtudes e vícios, e dos exem-
plos dos santos, pois tais coisas exigem a inteligência e não
somente o afeto.

DÚVIDA 18: Que se há de fazer quando o afeto não se move,


nem pouco nem muito, nem com a matéria preparada nem
com o que se lê no oratório?

Respondo que se pode e deve tomar qualquer outro pon-


to com o qual se sinta atraído para as coisas de Deus. Por
exemplo: supondo que a matéria de hoje seja a morte, e eu
não possa despertar-me ao exercício das partes afetivas, que

29
T RATA D O DA O RAÇÃO

são o fruto da oração; se vejo que me moverá mais o pensar


em Cristo crucificado, embora não seja hoje o dia assinalado
para esta meditação, farei bem em pensar nele.

E o mesmo se pode fazer (desde que se tenha preparado a


matéria) quando, no início da oração, se oferece outro pon-
to ao qual se inclina mais a vontade.

DÚVIDA 19: Se a vontade já está movida a algum bom afeto


com a meditação, mas ao orante parece que inflamará mais o
afeto discorrendo mais sobre ele, e inclusive sente-se inclinado
a discorrer mais; neste caso deve fazê-lo?

Respondo que não, se a moção é proveitosa: afinal, supon-


do que já encontrou alimento suficiente, que é a finalidade
da meditação, não deve deixar o certo pelo incerto, e o fim
pelos meios, mas aplicar-se aos atos das partes afetivas e úl-
timas da oração. Esta resposta é boa e proveitosa; mas não se
deve ter escrúpulo se vez ou outra a alma, embora a vontade
já esteja movida, passa adiante com o discurso para infla-
mar-se mais, porque pode suceder que lhe seja proveitoso; e
se notar que não o foi, servirá de aviso para o futuro.

DÚVIDA 20: Que se há de fazer quando o afeto se move em


direção a Deus, sem inclinar-se a algum objeto particular de
seu serviço?

Respondo que o orante deve fazer atos particulares e propó-


sitos de fazer aquelas coisas em que sente mais dificuldade,
e diversos atos de virtudes, como por exemplo, de esperan-
ça, de amor; a fim de que o afeto experimentado em rela-
ção ao Senhor seja de tal maneira apascentado nele, que o

30
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

<orante> busque fazer grandes coisas por sua Majestade nas


ocasiões que surgirão.

DÚVIDA 21: Quem quer meditar dois ou três pontos, mas não
sente particular atração na vontade quando vai discorrendo,
deve esperar para alcançar o afeto no fim do discurso sobre os
três pontos, ou procurar obtê-lo de cada um?

Respondo que deve discorrer até certo prazo, como até


meia hora de oração, pouco mais ou menos, percebendo se
em algum daqueles pontos se move. E se então a vontade
não se move, deve aplicar-se às últimas partes afetivas da
oração, ainda que seja com secura: porque aquelas partes
são atos de virtudes, para os quais não é necessária aquela
moção que se espera, como se disse acima na dúvida 15.
Contudo, se antes da meia hora o afeto é despertado, em-
bora esteja discorrendo sobre o primeiro ponto, é melhor
deixar o discurso e aplicar-se ao afeto.

Note-se nesta dúvida um erro dos principiantes, que pen-


sam ser necessário obter o afeto com força, como espre-
mendo a alma, da maneira que se espremem as uvas na
prensa. Não se deve fazer assim, mas procurar discorrer e
recolher a alma suavemente para que se mova, e abster-se
de fazer força para obter o afeto; porque a vontade se move
com verdades e não com forças corporais.

DÚVIDA 22: Que se deve fazer quando a vontade se move a


algum bom afeto ou ao desejo de alguma virtude?

Respondo que se deve fazer muitos propósitos de trabalhar


para alcançá-la, imaginando algumas ocasiões que prova-

31
T RATA D O DA O RAÇÃO

velmente sucedem, e determinando-se a vencer aquela


dificuldade varonilmente. Também há de pedir com ins-
tância ao Senhor que lhe ajude; e nestes atos pode deter-se
por muito tempo.

DÚVIDA 23: Ao meditar sobre a Paixão do Senhor, é bom de-


ter-se em qualquer ponto do qual se possa obter um bom afeto
em particular?

Respondo que, em qualquer ponto de onde nasce algum


bom afeto, é bom deter-se um pouco; mas não é bom fazer
força sobre cada ponto para obter um afeto como que es-
premido. Convém dirigir a meditação a duas finalidades: 1.ª
iluminar a inteligência; 2.ª inflamar o afeto.

Acerca de querer obter afeto específico, é bom ir algumas


vezes com essa intenção. Por exemplo: quando se há de me-
ditar sobre os pecados passados, ir com intenção de obter
afeto de contrição; quando se há de meditar sobre as ofensas
sofridas por Cristo, buscar obter afetos de humildade. Mas
se depois nascem outros bons afetos, é bom servir-se deles,
com o propósito de agir bem em geral, e no ponto particular
intencionado (contrição, humildade etc.).

DÚVIDA 24: Uma pessoa que medita algum mistério da Pai-


xão (como o da lança que transpassou o Coração do Senhor)
pergunta como há de fazer para obter afetos de humildade e
modéstia, particularmente em algumas matérias que não pa-
recem oferecer motivos para alcançar aquelas virtudes previa-
mente escolhidas, e, se tais motivos são procurados na oração,
acabam por causar distração.

32
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

Respondo que não é bom fazer tais diligências para encontrar


aqueles motivos próprios, porque, na maioria das vezes, se
perde o tempo sem proveito; e que, se são passagens da Pai-
xão ou de qualquer outra matéria, donde a alma não encontra
facilmente aqueles motivos próprios, sirva-se dos comuns.

Ponhamos por exemplo: deseja-se alcançar a virtude da mo-


déstia, e a meditação é sobre a lança; já se sabe que aquele
mistério da lança foi ordenado por Cristo, nosso Senhor,
com todos os seus outros mistérios, ao fim de nossa santi-
ficação, para a qual é necessário ser modesto, humilde etc.
Então, aquele que não encontrar facilmente razões particu-
lares, sirva-se das comuns daquele fim que teve Cristo, no
qual se inclui a modéstia e qualquer outra virtude, e faça
propósitos de ser modesto, para satisfazer ao intento que
Cristo teve, e peça afetuosamente a modéstia.

DÚVIDA 25: É uma oração mais proveitosa para pessoas afli-


tas e atribuladas, colocar-se no Coração chagado de Cristo
e ali considerar seu amor imenso ou algum mistério dos que
mais inspiram compaixão, para se compadecer de suas dores e
obter forças para imitá-lo?

Respondo que não se pode dar regra mais certa que a expe-
riência, de maneira que se há de experimentar e ater-se àque-
le mistério de maior proveito para cada um, ou seja, onde en-
contrar mais luz e mais verdadeiro afeto de imitar a Cristo.
Advirta-se que devem ser evitados certos modos de rezar que
têm alguns indecorosos acerca das chagas de Cristo, imagi-
nando-se que entram dentro delas com certos modos e atos
de excessiva familiaridade: a devoção há de ser acompanhada
de reverência.

33
T RATA D O DA O RAÇÃO

DÚVIDA 26: Quando não se encontra fruto em outras maté-


rias, mas apenas em uma (por exemplo, em pensar na glória),
deve-se deixar as outras e aplicar-se àquela?

Respondo que se há de fazer primeiro boa experiência. E


se ficar claro que aquela matéria lhe ajuda a ganhar muitas
virtudes, mortificar as paixões, humilhar-se etc., como ver-
dadeiramente costuma acontecer a alguns, então regular-
mente há de aplicar-se àquela; e não deixar de todo a consi-
deração das outras, mas exercitá-las de vez em quando, para
adquirir conhecimento das coisas espirituais e praticá-las,
o que fará com o calor e fervor que encontra naquele único
ponto que lhe move.

DÚVIDA 27: Quem medita sobre as penas do Inferno, poderá


ir misturando-a com a meditação da glória ou de coisas se-
melhantes?

Respondo que sim, quando aquela mistura serve para mover


a vontade, como verdadeiramente pode e costuma servir,
quando a meditação passa do horror das penas do Inferno,
aos consolos da glória, com cuja contraposição se conside-
ram bem as penas eternas. E o mesmo digo em outros casos,
por exemplo: quando se considera a própria vileza e miséria,
pode-se intercalar com a consideração da grandeza, majes-
tade, bondade e misericórdia divinas.

DÚVIDA 28: Aquela maneira de oração que alguns ensinam,


de simplesmente meditar em como poderia servir melhor a
Deus, guardar seus santos mandamentos, exercer bem seu ofí-
cio, cumprir as obrigações de seu estado, é útil para todo tipo
de pessoas?

34
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

Respondo que é bom que quaisquer pessoas se concentrem


nesses quatro pontos; e que, os que se sentem movidos na
oração, façam atos e propósitos de aplicarem-se aos quatro
pontos ditos, e de pedirem a nosso Senhor graça para eles.

Mas isto não basta para instruir suficientemente a ninguém,


se não descemos aos pontos particulares e não ensinamos
a maneira de fazer oração (quanto à forma e quanto à ma-
téria). De sorte que é necessário dar-lhes um modo e um
método das partes da oração, e ensinar-lhes a matéria por
sua ordem, começando regularmente desde os quatro No-
víssimos e a vida e Paixão de Cristo. Observada, pois, esta
doutrina <que acabamos de ensinar>, é bom que todos se
apliquem àqueles quatro pontos sobreditos, como verda-
deira e realmente fazem todos os que se dedicam de fato
ao santo exercício da oração; os quais se aplicam às obras
de supererrogação, certamente, <mas> de tal maneira que
<seu> cuidado principal está nas obras de preceito, às quais
pertencem três dos quatro pontos mencionados na dúvida.

DÚVIDA 29: Suponha-se uma pessoa que já está acostumada


a meditar sobre os benefícios divinos, e sabe claramente que
tudo quanto fez, faz, fará ou pode fazer, tudo isto é nada para
satisfazer àqueles benefícios. Pergunta-se o que será melhor
para ela: continuar a meditação para chegar à contempla-
ção e obter os afetos? Ou, naquele tempo em que iria meditar,
exercitar-se em diversos atos de virtudes, como de agradeci-
mento e de caridade, pedindo graças para si e para os outros,
oferecendo-se etc.?

35
T RATA D O DA O RAÇÃO

Resposta: Se tal pessoa estiver muito habituada e, com as me-


ditações ou considerações precedentes, sua inteligência ficou
tão esclarecida que, ao pôr-se em oração, percebe que a von-
tade se move, ordinariamente poderá usar o tempo destinado
à oração para fazer aqueles atos. Porque, com o trabalho das
meditações passadas, chegou ao fim e fruto da meditação,
que são os ditos atos.

Não obstante, muitas vezes deverá fazer suas meditações


continuadas, não tanto para mover o afeto, mas para consi-
derar os pontos das virtudes, como por exemplo, na vida de
Cristo, nosso Senhor, e aplicar-se à imitação delas.

DÚVIDA 30: Suponha-se alguém que já no início se sente levar


por algum afeto diferente do que foi lido na meditação, sem dis-
curso algum, o qual <afeto> dura pouco. Pergunta-se: Deve vol-
tar a ruminar aquele pouco afeto, ou usar da matéria que leu?

Respondo que, se isso acontece poucas vezes, bem pode


aproveitar-se daquele afeto e aplicar-se com ele a exercitar
as partes afetivas e últimas da oração, enquanto durar; e isso
para avaliar o bem trazido por aquele afeto, o qual algumas
vezes poderá servir de oração continuada, quando, ao retor-
nar a ele, <a alma> se sentir afervorada.

Mas, se acontece muitas vezes, e se aquele calor passa logo e


não deixa outro fruto, então deverá meditar sobre a matéria
lida ou sobre a que fora preparada; porque de outro modo
privaria o intelecto daquele esclarecimento que nasce da
meditação, a qual, quando é boa, ilumina mais o intelecto e
produz uma impressão mais profunda na vontade.

36
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

Se este afeto acontecer muitas vezes, deve-se comunicar ao


mestre, porque as circunstâncias podem ser tais, que será
bom aplicar-se a semelhantes afetos mais ou menos menos
vezes, e por mais ou menos tempo.

DÚVIDA 31: No discurso da meditação, fora daquelas matérias


nas quais se consideram circunstâncias, poderia a alma bus-
car outros discursos e palavras para ruminar e mover a von-
tade com os pontos preparados, ou somente repetir e voltar a
usar apenas as palavras dos mesmos pontos até que se mova
o afeto?

Respondo que não é necessário restringir-se apenas ao uso


daquelas palavras, mas servir-se delas e de outro qualquer
pensamento capaz de mover o afeto acerca dos pontos pre-
parados.

DÚVIDA 32: Para obter bons afetos na oração, é necessário


usar aquela técnica de considerar as circunstâncias com aque-
la ordem que alguns ensinam (porque este cuidado parece an-
tes causar secura), ou se deve apenas proceder com simplicida-
de? E é necessário considerá-las todas? Porque às vezes apenas
uma já faz arder o coração e, quem quer passar adiante para
considerar as outras, acaba perdendo aquele bom afeto.

Acerca da consideração das circunstâncias, respondo que


não é necessária a ordem entre elas, mas que se pode to-
mar primeiro uma ou outra indiferentemente, como se qui-
ser, ou como se apresentarem à alma, ou como melhor se
acomodarem. Também não é necessário considerar todas,
senão aquela ou aquelas que <o orante> percebe que efeti-
vamente bastam para inflamar o coração.

37
T RATA D O DA O RAÇÃO

DÚVIDA 33: Que modo de meditar a Paixão do Senhor será


proveitoso e suave para os que não podem considerar todas
as circunstâncias nem obter afeto dela à força de razões, pelo
menos não sem dificuldade e cansaço do corpo e da alma?

Resposta: O modo correto será imaginar Cristo, nosso Se-


nhor, nas passagens da Paixão sem fazer força com a cabeça
ou com o peito e, com simplicidade, querer estar ali com sua
Majestade, fazendo-lhe companhia, com reverência e agra-
decimento do que padeceu por nós, fazendo muitos atos de
adoração, amor, agradecimento e suplicando-lhe que im-
prima aquelas suas dores em nossas almas, para que ame-
mos o sofrer junto com ele; e de vez em quando lembrar,
suavemente, da Majestade de sua divina Pessoa, e de nossos
pecados, pelos quais padeceu; concluindo a oração com pro-
pósitos muito firmes de padecer por seu amor.

Neste modo de oração estão unidas a meditação e as partes


afetivas, de tal maneira que não cansa e é proveitoso, ainda
que não se sinta devoção.

DÚVIDA 34: Como dilatar e exercitar mais os afetos na oração?

Acerca da ampliação ou dilatação dos afetos, respondo que


não é bom empenhar-se <nisso> artificiosamente, mas re-
cebê-los como o Senhor os comunica; e fomentá-los mais
com simplicidade e muita participação da vontade, que com
retórica, fazendo muitos atos de virtudes e propósitos de vi-
ver perfeitamente, enquanto dura o afeto, segundo inspirar
o Senhor.

38
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

DÚVIDA 35: Que fazer para conservar os bons afetos e pôr em


prática os santos propósitos feitos na oração?

Resposta: Repeti-los muitas vezes ao dia, exercitá-los, e for-


talecê-los com a presença de Deus habitual daquele dia ou
com outra maneira de elevar o coração na qual a alma sente
mais facilidade e prontidão. Para esta conservação, também
é útil andar atento para não dissipar a alma com olhares e
conversas imprudentes.

Quanto à prática dos propósitos: se pertencem à observância


ordinária, ou aos atos de virtudes e à mortificação das pai-
xões próprios ao modo comum de caminhar para a perfeição,
usados pelos bons religiosos, não é necessário senão cooperar
com a graça do Senhor, esforçar-se para vencer as dificulda-
des, e aproveitar as ocasiões com o calor recebido na oração,
procurando manterem-se fiéis a Cristo, nosso Senhor.

Se os propósitos forem de coisas extraordinárias, é necessá-


rio comunicá-los ao superior, para que dê ordem de cum-
pri-los se lhe parecer conveniente; de modo que a vontade,
tanto quanto lhe cabe, esteja pronta e disposta para a exe-
cução deles.

DÚVIDA 36: Que deve fazer quem, por andar mendigando os


atos das virtudes que faz na oração, encontra-se distraído e
com pouco fruto?

Resposta: Na vida religiosa, quem quer, sabe de si mesmo


qual virtude lhe é mais necessária, através das provações que
lhe ocorrem e do empenho em progredir. Portanto, não há
razão para estar com divagações mendigando diferentes atos

39
T RATA D O DA O RAÇÃO

de virtudes, quando isto lhe causa distração. Ao contrário,


aplique-se àquelas das quais sabe que tem mais necessidade,
e faça atos delas, com ou sem devoção, pois deste modo não
ficará vagueando, e fará verdadeiros atos de virtudes, com
menos distração. E quando estiver com devoção, faça aqueles
atos aos quais se sente mais inclinado, com o afeto que pre-
domina, e acerca daquilo que sabe que lhe é mais necessário
(como foi dito), sem distrair-se em buscar outros, a fim de que
aquela preocupação em buscá-los não deixe tíbio o afeto. Po-
derá também fazer outros atos de virtudes, quando sentir que
isto não lhe causa distração.

DÚVIDA 37: Que deve fazer quem, pela pouca força que a von-
tade recebe, não se determina a fazer propósitos das virtudes
por crer que não os manterá?

Respondo que deponha aquela consciência errônea e faça


aqueles atos. Pois sabe que, com a graça de Deus, poderá
cumpri-los; e sabe que o Senhor não a negará, se ele quiser
cooperar com os auxílios divinos. Portanto, nossa fragilida-
de não é impedimento, porque os atos das virtudes se fazem
com as forças de Deus.

Para confirmá-lo, recorde-se cada um de sua vida passada e


da vitória que, com a graça divina, alcançou sobre vícios que
pareciam invencíveis. Sendo assim, por que não há de espe-
rar a vitória de dificuldades menores com a ajuda do Senhor,
aquele que com Ele mesmo venceu as maiores?

40
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

DÚVIDA 38: É bom notar os sentimentos e movimentos da


vontade que sucedem na oração?

Respondo que sim, para dar conta deles ao mestre ou con-


fessor, sem fazer juízo determinado do que são enquanto a
obediência não os julgar. Neste ponto, as pessoas dedicadas
à oração devem ser fidelíssimas, sem jamais confiar apenas
no seu próprio parecer.

Note-se que, quando a vontade moveu-se eficazmente com


algumas verdades importantes, é bom repetir alguns dias
aquelas mesmas verdades e meditar os mesmos pontos, com
o conselho do mestre ou confessor.

DÚVIDA 39: Em que matéria se há de meditar regularmente?

Respondo que regularmente se há de começar: ou com os


quatro Novíssimos somente; ou só com a vida e Paixão de
Cristo, nosso Senhor; ou com estas duas matérias, mas em
momentos diferentes. Depois se há de subir aos mistérios
da divindade.

Mas como há muitas e várias circunstâncias nas pessoas que


se dedicam à oração, cada um deve aconselhar-se com seu
mestre espiritual, para não errar na escolha da matéria em
particular.

41
T RATA D O DA O RAÇÃO

DÚVIDA 40: Que fazer quando as meditações ordinariamente


lidas na oração, por serem sempre as mesmas, causam tédio e,
consequentemente, pouco fruto?

Respondo que se pode tomar outra matéria para meditar com


o conselho do mestre, cuidando para não dar lugar ao tédio.
Com efeito, a distribuição das meditações como são lidas en-
tre nossos religiosos pelos dias da semana, é muito adequada
para considerar perfeitamente os principais pontos que ser-
vem para os que começam e progridem; por isso é necessário
repeti-las muitas vezes, para melhor penetrá-las e para esta-
belecer um bom fundamento no edifício espiritual.

DÚVIDA 41:Deve-se meditar falando sempre em segunda pes-


soa com Deus, nosso Senhor?

Respondo que não é necessário este modo, embora muitas


vezes seja conveniente. A orientação certa é: que cada um
experimente e use o modo que mais lhe ajuda a chegar ao
afeto. Algumas vezes, a alma se moverá mais falando com o
Senhor; outras, falando consigo mesma; outras, consideran-
do o ponto que medita, sem falar com Deus nem consigo.

DÚVIDA 42: É boa a oração quando os conceitos são abun-


dantes e a meditação é extensa?

Resposta: Frequentemente é oração de pouco valor, porque


nela se fala muito, contra o conselho de Cristo, e não se dá
tempo às partes últimas da oração, que são as melhores. A
boa oração tem poucas palavras e muitos desejos de Deus.
Contudo, costuma ser boa a oração quando a meditação de
tal maneira é extensa, que vá também mesclada com muitos

42
Da i n s p i r ação d o s a f e t o s

afetos, os quais saltam como centelhas da força das verda-


des, com as quais a inteligência move a vontade.

DÚVIDA 43: Na meditação podem ser rezadas algumas ora-


ções vocais?

Respondo que sim, quando se reza sozinho e em local retira-


do, e <quando> aquelas orações vocais servem para desper-
tar o afeto. Mas não quando se reza em comunidade; a não
ser que o movimento dos lábios e o falar sejam tão baixos
que ninguém escute; e quando o que reza, sabe que aquela
pronúncia de palavras lhe ajuda a mover o afeto. Note-se
que muitas pessoas espirituais oram vocal e mentalmente
ao mesmo tempo, quando se encontram em lugares solitá-
rios, e levantam a voz com muito proveito para suas almas.

43
DAS SECURAS

DÚVIDA 44: Que deve fazer alguém que, no começo da oração,


tem muito trabalho para se recolher?

Resposta: Deve humilhar-se e suplicar ao Senhor que se digne


dar-lhe a graça para estar naquele momento conforme a sua
santíssima vontade. Depois disso, sirva-se de qualquer coisa
boa que a seu parecer lhe possa causar recolhimento interior:
um Pai Nosso, o versículo de um Salmo, a recordação de algu-
ma imagem de Cristo ou dos santos ou dos mortos, ou qual-
quer outro motivo que lhe sirva para recolher-se; usando tais
coisas com destreza e suavidade, de maneira que a alma se
aplique a algum objeto daqueles ou, pelo menos, não dê lugar
às distrações, para meditar na matéria preparada.

DÚVIDA 45: Que deve fazer na oração uma alma que sente
uma dificuldade insuportável para dizer alguma palavra a
nosso Senhor por causa das tentações de ódio, impiedade,
blasfêmia, desconfiança, e outras semelhantes que naquele
momento a combatem, e das <tentações> de escrúpulo e ou-
tras similares, que não a deixam chegar-se a seu Deus?

Resposta: 1.º Diga esta alma ao Senhor que, por seu amor,
quer sofrer aquelas tentações da melhor maneira possível.
2.º Faça o seguinte pacto com o Senhor: que suas intenções,
naqueles movimentos de ódio, blasfêmia etc., tenham o
sentido contrário, e sejam outros tantos oferecimentos e sa-
crifícios espirituais de si mesma. 3.º Ainda que com grande
sofrimento seu, diga de vez em quando algumas palavras, ou
vocais (se estiver sozinho), ou mentais (se estiver em comu-

44
Da s s ec u r a s

nidade), palavras de louvor e glória a Deus, nosso Senhor. 4º


Faça alguns atos de adoração, espiritual ou corporalmente,
de acordo com o lugar onde se encontra e as pessoas que o
acompanham. 5.º Saiba que esses atos, feitos com paciência
e resignação, são uma excelente oração para almas tão gra-
vemente afligidas.

DÚVIDA 46: Qual é o remédio para as pessoas que padecem


tentações desonestas na oração, e até às vezes causadas pela
própria oração?

Respondo que não devem afligir-se os que padecem dificul-


dades semelhantes, quando por outra parte vivem casta e
cautelosamente, porque costuma ser diligência do demô-
nio colocar tropeços junto aos objetos mais puros e santos,
como, por exemplo, a humanidade de Cristo, nosso bem, e
a Santíssima Virgem; e algumas vezes se sentem deleites e
movimentos tão desordenados, que se chega a alguma efu-
são de líquido.

O remédio para isso é recorrer ao seu mestre e confiar no que


ele dirá. Às pessoas que padecem semelhantes trabalhos se
lhes há de aconselhar que observem se encontram alimento
para a alma e bons afetos em outros objetos, e então, ordina-
riamente será bom abster-se daqueles donde provêm os ditos
movimentos desordenados.

Mas quando se vê por experiência que a alma não encon-


tra alimento nem afeto senão naqueles <objetos> nos
quais sente os ditos movimentos, significa que é tentação
do demônio para atribular aquelas almas. Então se lhes há

45
T RATA D O DA O RAÇÃO

de aconselhar que não façam caso daqueles movimentos e


imundícies, pois com isso serão afastados facilmente.

Note-se aquela palavra ordinariamente. Porque há casos e


circunstâncias de pessoas em que se pode proceder de outra
maneira, quando se percebe que a tal proibição seria preju-
dicial à pessoa que é pura e casta.

DÚVIDA 47: Se na oração feita fora da comunidade o religioso


nota que não poderá pensar em algo bom, deve então deixá-la
logo e ocupar-se em outro exercício?

Respondo que deve experimentar, e se depois vir que habi-


tualmente acontece como dito na pergunta, poderá ler bons
livros, detendo-se nos pontos que chamam mais atenção,
enquanto dura aquele calor, retornando à leitura quando ele
acaba, e assim terá oração mesclada com leitura.

DÚVIDA 48: Que deve fazer o orante quando sente fraqueza


na cabeça?

Respondo que há de rezar suavemente, sem tanta aplicação


como quando a cabeça está boa. Portanto, se sente dificul-
dade em discorrer ou não pode recolher-se, contente-se de
estar presente com humildade diante do Senhor, fazendo
alguns atos de diferentes virtudes, pois com isso ganha-
rá muitos méritos. Este ensinamento é ótimo para os que,
natural ou ocasionalmente, por enfermidade, dificuldades
interiores, tentações, cansaço ou outra qualquer causa, não
podem discorrer.

46
Da s s ec u r a s

DÚVIDA 49: O que fazer quando não se acha nada que mova
na oração, mas tudo é secura?

Respondo que a secura costuma proceder de diferentes cau-


sas. E de acordo com a diversidade delas, será a dos remé-
dios. Tais são as causas:

1. As imperfeições.
2. As ocupações excessivas.
3. Uma contínua indisposição natural da imaginação
muito inconstante.
4. Uma indisposição natural ocasional, causada pela al-
teração dos humores, do tempo etc.
5. As tentações do demônio.
6. A disposição de Deus, que costuma querê-lo para
provar os seus servos, embora eles façam todas as di-
ligências e vivam com grande pureza.
7. Uma simultaneidade das causas ditas, que algumas
vezes, embora raras, costuma durar por longo tempo.

Para a primeira causa deste mal, o remédio é óbvio: sendo a


causa as ditas imperfeições que se cometem, olhando, falan-
do e vivendo com pouca mortificação, o remédio será abs-
ter-se dessas coisas.

Para a segunda, que são as excessivas ocupações, ainda que


sejam impostas por obediência, servirá o andar e viver com
atenção, cuidando do coração em meio aos negócios, ele-
vando-o muitas vezes a Deus, para não se deixar levar pelas
obras nem se distrair excessivamente; e ajudar-se fazendo
força para se recolher no lugar da oração, colocando todas

47
T RATA D O DA O RAÇÃO

as forças de sua alma e clamando ao Senhor com humildade


e confiança, pedindo-lhe sua graça para meditar nas coisas
de sua divina vontade; e quando não puder fazer outra ora-
ção além desta, não ficará sem fruto. E dado que o Senhor
não lhe faça este favor, porque nem sempre convém, poderia
esforçar-se fazendo muitos atos ou orações jaculatórias, que
sem meditação contínua são de grandíssimo fruto, como se
sabe por experiência de muitos que quase nunca podem dis-
correr e passam toda, ou quase toda, a vida com estes atos
ou jaculatórias.

Para a terceira causa, que é uma indisposição natural e con-


tínua da imaginação inconstante, servirão os recursos ditos
no caso precedente, e particularmente o uso dos atos e ora-
ções jaculatórias.

Para a quarta causa, que é uma indisposição natural ocasio-


nal, causada pela alteração dos humores, do tempo etc., no
que não costuma haver culpa, será de proveito sofrer com
paciência a secura, esforçando-se para fazer atos de virtu-
des, embora sejam com desgosto. Seria bom também neste
caso, com a permissão da obediência, não forçar a alma, por
então, a ter oração regularmente, mas ocupar-se em alguma
outra coisa da vida ativa, cuidando de elevar a Deus muitas
vezes o coração em meio às ocupações.

Para a quinta causa, que são as tentações e distrações, de-


ve-se usar de todos os meios que, devidamente, podem dar
alimento à alma, como seria: rezar o Pai Nosso, algum ver-
sículo dos Salmos, alguma passagem do Evangelho, pensan-
do nisso o melhor (ou o menos mal) que puder, pois deste
modo não ficará sem recompensa.

48
Da s s ec u r a s

Todavia, se nem isto pode fazer, como costuma acontecer a


algumas almas que, por disposição divina (sexta causa citada
acima), chegam a uma tal aflição interior que parece irre-
mediável, não creia, quem padece isso, que fica sem fruto:
porque quando não se faz outra coisa senão estar durante
a oração lutando contra as tentações e pensamentos im-
portunos, sem consenti-los, para a glória do Senhor, faz-se
boníssima oração, e talvez melhor que se tivesse muitos gos-
tos de Deus.

Quando as molestas tentações, distrações e desamparo de


Deus chegam a este extremo, e se tem experiência que não
servem os remédios sobreditos ou outros semelhantes, seria
bem, com a licença da obediência, ler algum livro espiritual
em um lugar isolado naquelas horas destinadas à oração,
procurando ler com atenção e aos poucos, fazendo pausa
onde a alma se sente mover; e quando acabar o fervor, voltar
à leitura. Mas quando isto não é permitido fazer, o remédio
é a paciência e a esperança com firmeza no Senhor que quer
provar a alma, e estar com os demais rezando em comunida-
de; pois a tribulação passará, e após ela sucederá uma gran-
de paz e abundância espiritual.

E este modo de consolar-se também serve para aqueles que


se encontram afligidos de muitas, ou todas, as sobreditas
causas juntas, que foi o caso colocado em sétimo lugar.

DÚVIDA 50: Quando alguém percebe que, após muitos meses


ou anos de prática da oração, não encontra senão secura e
desamparo de Deus, deve mudar de exercício, aplicando-se à
vida ativa?

49
T RATA D O DA O RAÇÃO

Respondo que não, mas que persevere, utilizando os remé-


dios sobreditos, e acredite que aquela maneira de estar em
oração com aquela secura é um sacrifício muito agradável à
divina Majestade e muito proveitoso para si.

A experiência tem mostrado que a estas pessoas desampa-


radas, depois de uma longa prova, o Senhor as visita não
apenas concedendo-lhes excelente oração, mas também al-
tíssima contemplação.

O Patriarca José, vendo seus irmãos trazidos pela fome aos


celeiros do Egito, embora no exterior se lhes mostrasse ás-
pero e rigoroso, provando-os de muitas maneiras e dizendo-
-lhes que eram espiões, contudo, tinha tanta compaixão da
dificuldade deles que, para dissimular o afeto e esconder as
lágrimas, teve de se retirar depressa a seu aposento, e ao fim,
não podendo mais conter-se, se lhes deu a conhecer, comu-
nicando-lhes abundantemente do que precisavam. Assim
parece, em certa maneira, que o faz nosso Salvador com al-
guns de seus amigos, pois os prova tratando-os severamente
e lhes multiplica as aflições; mas ao fim, as entranhas da sua
misericórdia se enternecem; e não podendo conter-se mais,
manifesta-se a eles, e os recebe nos braços de sua correspon-
dência, e lhes dá em abundância as consolações divinas.

50
SOBRE OS GOSTOS

DÚVIDA 51: Que é devoção?

Respondo que devoção é um ato da vontade, que ela mesma


produz pelo hábito da virtude chamada religião; e este ato
não é outra coisa senão um querer pronto e determinado
para as coisas do culto divino. Este querer se pode encon-
trar sem devoção sensível, e até com repugnância sensível
da parte inferior.

Note-se que, segundo os exemplos dos santos, deve-se con-


servar a devoção, mesmo a sensível; e quando ela falta, deve-
-se procurá-la, com as diligências que se ordenam a afeiçoar
o coração às coisas do culto divino.

DÚVIDA 52: Deve-se desejar consolos e gostos na oração?

Respondo que não. A menos que sejam desejados enquanto


podem servir para alcançar maior perfeição, o que se há de
deixar à vontade divina, que sabe quais consolos e gostos
favorecem isso.

Advirta-se que, falando teologicamente, os gostos de Deus


podem ser desejados e pedidos, pelos bons efeitos que cau-
sam: de maior humildade, luz de Deus, desprezo do mundo
e outros muitos bens. Não obstante, ordinariamente as pes-
soas espirituais aconselham que não se deseje nem se peça
<tais gostos>, porque são pouquíssimas as almas tão puras

51
T RATA D O DA O RAÇÃO

que, ao desejá-los ou pedi-los, tenham em vista apenas a


glória de Deus e seu progresso espiritual.

DÚVIDA 53: Todos os gostos interiores são iguais?

Respondo que não, mas muito diferentes, segundo o que o


Senhor quer comunicar. Algumas vezes, sente-se como que
uma fragrância de perfume suavíssimo, que conforta a alma
e o corpo; outras vezes um sabor, até na língua corporal, que
causa grande refrigério.

Outras vezes, sente-se uma alegria na parte inferior, que


supera todas as alegrias do mundo, e com a qual os princi-
piantes no serviço do Senhor costumam prorromper em atos
exteriores com tal júbilo que não se podem conter. Esta cos-
tuma chamar-se embriaguez espiritual; e algumas vezes é tão
grande o seu ímpeto que faz cuspir sangue, pela muita força.

Outras vezes costuma vir um grande contentamento es-


piritual no discurso da meditação com lágrimas e suspiros
do coração.

Outras vezes, sem o trabalho de meditar, parece que nasce


no íntimo da alma uma fonte de consolação suavíssima, que
com grande paz e quietude vai se entendendo e difundindo
por todas as partes do homem; e esse tipo parece melhor
que as outras que se sentem na parte inferior, e é menos
suspeitosa. O certo é que ninguém deve confiar em si nestes
gostos, mas ser cauteloso e buscar o conselho de pessoas sá-
bias e espirituais.

52
Sobre os gostos

Além destes, há também outras maneiras de gostos, por


exemplo: uma maneira de satisfação interior que sente a
alma algumas vezes; o que não é propriamente um gosto ou
deleite, mas, como foi dito, uma satisfação, porque a alma
julga que está bem.

E finalmente, há outros gozos mais elevados na parte supe-


rior, que o Senhor comunica de diferentes maneiras e que
são coisas delicadíssimas e inexplicáveis: e quanto mais pu-
ramente pertencem à parte intelectual da alma, mais seguros
são. Estes são próprios da contemplação e da teologia mística.

Acerca dos gostos, notem os novatos no exercício da oração


que não acertam aqueles que se acostumam a estar em ora-
ção gozando daqueles gostos como que arrebatados e meio
adormecidos, passando assim muito tempo. Esses tais de-
vem despertar e dedicar-se à consideração da vida, Paixão e
virtudes de Cristo, à mortificação das paixões, e à conquista
das virtudes.

E caso se escusem dizendo que não podem discorrer porque


logo vêm o afeto e outros gostos, façam força; e se não pude-
rem discorrer, ao menos farão muitos e diferentes propósitos
e atos de virtudes, advertidos que estão na presença da divina
Majestade. E rejeitem aquela abstração pouco proveitosa, ou,
para melhor dizer, danosa à alma e ao corpo, que acaba fican-
do prejudicado.

Note-se nesta matéria de gostos que, quando vêm com mui-


tas lágrimas e suspiros, devem ser moderados, para que não
causem fraqueza nem façam danos; portanto, muitas vezes
convém desviar-se. Mas não é contra este ensinamento o

53
T RATA D O DA O RAÇÃO

dar licença às lágrimas em alguns casos particulares: como


quando Santo Agostinho se converteu, e se entregava todo
a elas; e em outros casos que não são ordinários, como após
uma grande secura, e quando as lágrimas vêm sem comoção
corporal, e parecem como uma chuva enviada pelo Senhor.

DÚVIDA 54: Que gostos são melhores: os que são como que
espremidos com a força da meditação, ou os que vêm sem
aquela força?

Respondo que são melhores os segundos, pois fecundam


mais a alma. Estes são como chuva; os primeiros, como a
água que vai por canos ou canais.

DÚVIDA 55: Quando se sentem os gostos na oração, deve-se


desprezá-los ou estimá-los?

Respondo que não se deve desprezá-los, porque podem ser


de Deus; nem se devem estimá-los demasiadamente, por-
que podem ser do demônio.

Se forem de Deus, não são, ordinariamente, sinais de maior


perfeição; antes, costumam ser de almas imperfeitas, que se
não fossem mimadas daquela maneira voltariam atrás no
caminho espiritual.

Advirta-se que, quando os gostos são de almas progredidas


depois de muitos trabalhos e provas do Senhor, são mais de
estimar, porque é mais provável que sejam de Deus, como
sinais de virtude provada, e de uma alma que passou do fogo
ao refrigério.

54
Sobre os gostos

DÚVIDA 56: Quando sente gostos espirituais, a alma deve es-


tendê-los ou fazer esforços para mais gozá-los?

Respondo que não, senão acostumar-se a recebê-los mode-


radamente, sem fazer essas diligências para aumentá-los.
Porém, é de notar que quando a alma passou por uma longa
secura, não é contra esse ensinamento ela como que abrir
os poros espirituais para a chuva do Céu: como a terra seca,
depois de muito tempo sem chuva, costuma abrir-se com
brechas para ser bem molhada. O que não se aplica aos no-
vos no espírito que são muitas vezes visitados com gostos
espirituais, porque eles devem receber desses gostos com
mais cautela, para que não venham a degenerar numa espé-
cie de luxúria espiritual.

DÚVIDA 57: Quando vêm gostos que parecem seguros e visões


que parecem de Deus, e não parece haver razão para duvidar,
devem ser comunicados ao mestre espiritual?

Respondo que sim, mesmo que pareça a coisa mais clara que
o sol. E particularmente, quando são visões ou revelações,
há de se fazer o mais rápido possível, para que a alma não se
acostume a algum engano ou conversação do demônio, com
aparências de Deus.

Note-se que é escrúpulo não comunicar logo estas coisas a


pessoas sábias e experientes, falando segundo as regras da
teologia: porque a alma que faz isso, põe-se em perigo de
errar gravemente, visto que uma mesma imagem que apa-
rece, pode ser de Deus, do demônio ou também da própria
imaginação.

55
T RATA D O DA O RAÇÃO

DÚVIDA 58: Que há de fazer o pai espiritual com as almas que


têm visões, revelações ou locuções na oração?

Respondo que deve examinar a compleição física: se é vee-


mente ou melancólica, frágil etc. Há de examinar os costu-
mes: se são bons, e se foram bons, e por quanto tempo etc.
Há de notar se as visões, revelações ou locuções são verda-
deiras e conformes à Sagrada Escritura e ao ensinamento
dos santos. Há de observar se a matéria das visões, revela-
ções ou locuções é honesta, santa, útil ou necessária, ou, ao
contrário, se é curiosa e pouco digna da divina Majestade.

Há de observar os efeitos que fazem estas coisas interiores.


Se forem bons e estiverem unidos às outras coisas aponta-
das, que são necessárias para proferir um juízo favorável,
convém ajudar essas almas para que cooperem com o Es-
pírito de Deus. Do contrário, convém desviá-las [das visões,
revelações e locuções], para livrá-las do espírito maligno.

56
DAS PARTES AFETIVAS

DÚVIDA 59: Se a alma sente dificuldade com o agradecimento,


oferecimento e petição, pode deixá-los, e acabar o tempo fa-
zendo alguns atos de virtudes?

Respondo que alguma vez se pode deixar e dar lugar ao afe-


to, caso sinta-se mais inclinado a outros bons atos.

A ordem das partes da oração deve ser observada, mas de ma-


neira que não se tenha por regra inviolável quando a alma se
sente mover a outros bons atos em outra ordem; contanto
que habitualmente, em toda oração discursiva, haja algo de
meditação e algo de afetos, pois deste modo se ilumina o en-
tendimento e move a vontade.

Ademais, não se há de ter por regra obrigatória que a medi-


tação deva ser feita primeiro isoladamente, e depois as par-
7

tes afetivas ou outros atos de virtudes. Porque, se no meio


da meditação, surgirem (como aliás é frequente) diversos
afetos ou aspirações jaculatórias, não se deve desprezá-los,
mas dar-lhes lugar, mesclando-os com a meditação; pois
aquelas centelhas de vários afetos, saltam da vontade com a
força ou os impulsos causados nela pela meditação.

DÚVIDA 60: Como utilizar certas partes da oração (por exem-


plo, a ação de graças) em algumas matérias particulares como

7. O termo meditação está sendo aqui usado pelo autor no sentido de consi-
deração, reflexão da inteligência sobre o tema da oração. N.T.

57
T RATA D O DA O RAÇÃO

a da morte ou do juízo, para quem não sabe reconhecer nelas


benefícios particulares?

Resposta: Pode-se utilizá-las dando graças ao Senhor por lhe


haver livrado de uma morte desgraçada em mau estado, e
haver-lhe dado tempo para preparar-se. E por esta conside-
ração, pode exercitar o oferecimento, e concluir com a peti-
ção de uma boa morte.

Não é necessário forçar a conformidade entre aquelas partes


<e a matéria meditada> quando esta <conformidade> não se
encontra facilmente. É melhor obter e exercitar os bons afe-
tos de maneira livre e espontânea, na medida em que a for-
ça da meditação inclina a alma. Por exemplo, na meditação
sobre a morte, <é melhor> adquirir o temor de Deus, fazer
propósitos de viver cautelosamente removendo as ocasiões
de pecado e pedir misericórdia etc., seguindo o movimento
dos afetos, embora algumas vezes se deixe a ação de graças
ou outra parte da oração.

58
DA ORAÇÃO EM GERAL
E DE SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

DÚVIDA 61: Deve-se ter alguma atenção acerca do lugar e do


tempo da oração?

Respondo que sim. Quanto ao lugar, há de procurar que


seja o mais afastado e quieto possível. Quanto ao tempo, é
boníssimo para orar o da noite, após ter descansado o su-
ficiente, para ter a cabeça livre, isto é, não pesada de sono.
Outras horas são também oportunas para este santo exercí-
cio, principalmente em lugares solitários, nos quais, embora
seja de dia, goza-se da comodidade do silêncio, semelhante
ao da noite.

DÚVIDA 62: É necessário ter muita atenção?

Respondo que sim. Mas não se deve fazer muita força com
a cabeça e com o peito, senão aplicar suavemente a alma,
com estima pelas inspirações divinas, e com esperança de
receber graças do Senhor. Pois ajuda muito a ter atenção,
[considerar] a importância da atividade realizada, dando-lhe
o devido apreço.

Note-se que muitos erram nesta parte, interrompendo o


discurso da oração e parando com muita atenção para ouvir
ou escutar a Deus, como se, logo que eles calam, começasse
o Senhor a falar realmente com eles. Não se deve fazer as-
sim, porque quando o Senhor quer, Ele sabe fazer-se ouvir
de mil maneiras. De onde se entende a bobeira de alguns,

59
T RATA D O DA O RAÇÃO

que se põem a fazer perguntas a Deus, e logo param a ou-


vir-lhe; e respondem-se a si mesmos, com a imperfeição de
sua imaginação.

DÚVIDA 63: Deve haver esforço para manter o corpo compor-


tado na oração?

Respondo que sim, para que não atrapalhe a alma. Porque


ali se deve estar com muita composição e reverência, evi-
tando todo tipo de inquietudes, como cuspir, respirar com
ruído e se mover a uma e outra parte.

Da mesma maneira, deve-se evitar toda comodidade [prove-


niente] do amor próprio, que não seja necessária, como en-
costar-se, sentar-se etc. Afinal, a experiência comprova que
a pessoa que vai à oração com aquela frouxidão, querendo
seu conforto, embora seja em coisas mínimas (quando é sem
uma justa causa de enfermidade, fraqueza ou outra seme-
lhante), põe tudo a perder e não obtém fruto da oração.

DÚVIDA 64: Quando será bom estar com os olhos abertos na


oração, olhando alguma coisa?

Resposta: É bom fazê-lo quando o que reza percebe que lhe


ajuda no recolhimento interior. Sabe-se que há alguns que
não conseguem fazer oração se não fecham os olhos; com
outros, dá-se o contrário.

60
Da o r ação em g er a l e d e s ua s c i rc u n s tâ n c i a s

DÚVIDA 65: Que fazer quando se está sonolento?

Respondo que se deve usar diferentes remédios, por exem-


plo: beliscar os braços, pôr-se de pé, fazer alguns atos fervo-
rosos, levantando o coração a Deus com eficácia, sacudindo
a preguiça, como fazem as aves quando se despertam, pois
parece que para esta finalidade sacodem algumas vezes as
asas. E finalmente, além de muitos outros remédios que se
poderiam citar: colocar todo o esforço em rezar com a apli-
cação da alma, e pedir o favor do Senhor e do anjo da guarda,
principalmente quando se vê que aquele sono é tentação do
demônio (por exemplo, se dormiu o suficiente). Isso acontece
muitas vezes, como se vê pelo efeito: pois se ao que é tentado
de sono mandam que vá dormir, não consegue; e voltando à
oração, retorna o sono também a lhe perseguir.

Note-se que, em algumas vezes, o sono procede do tempo ou


de outras causas naturais. Então, é boa oração lutar contra o
sono, para estar diante da Majestade de Deus naquele lugar
de oração. Este ensinamento serve também para quando se
sente algum cansaço, ocasionado pelo tempo, como costu-
ma acontecer no verão.

DÚVIDA 66: Que deve fazer o orante quando nota que quase
terminou o momento de oração, mas não fez coisa alguma
proveitosa, por causa das distrações, negligência ou outras
causas?

Respondo que deve se esforçar para fazer alguns atos inten-


sos de virtude, como por exemplo, de contrição, de humil-
dade, de amor, procurando recuperar o prejuízo do tempo
perdido, com tanto maior afeto quanto mais breve é o tem-

61
T RATA D O DA O RAÇÃO

po que lhe resta; imitando nisto os caminhantes, que quan-


do veem chegar a noite, por terem caminhado com lentidão,
duvidando que podem chegar ao lugar onde iam, começam
a andar mais depressa e procuram, com a diligência presen-
te, remediar o prejuízo da negligência passada.

Todavia, se para mover a vontade lhe sobrevém alguma ver-


dade que antes não aparecera, e se o tempo que sobra é sufi-
ciente para desenvolvê-la e fazer impressão na vontade, será
bom aplicar-se àquela verdade com brevidade e diligência,
obtendo aquele afeto da vontade, e depois recolher-se na cela
ou em outra parte, para fazer as partes afetivas da oração; mas
se não puder recolher-se devido às ocupações, bastará fazer
aquelas partes com breves aspirações, enquanto se ocupa de
seus afazeres.

DÚVIDA 67: Como se deve pedir na oração?

Respondo que, se são coisas indiferentes, peça sob condição,


ao menos implícita; a expressa não convém sempre, porque
costuma arrefecer o fervor. As coisas que ajudam a alcançar
a verdadeira santidade e salvação da alma, hão de se pedir
absolutamente, com muito esforço e confiança.

DÚVIDA 68: Que condições são requeridas para a eficácia da


oração?

Respondo que são quatro, de acordo com a sentença comum


dos santos. A primeira é pedir coisas necessárias à salvação
eterna. A segunda, pedir piedosamente, isto é, com fé, espe-

62
Da o r ação em g er a l e d e s ua s c i rc u n s tâ n c i a s

rança e verdadeiro desejo. A terceira, pedir para si. A quarta,


pedir com perseverança.

DÚVIDA 69: Quais são os efeitos da oração?

Respondo que são três: merecer, satisfazer e interceder. Os


dois primeiros encontram-se nas outras obras piedosas e
satisfatórias. O terceiro é mais próprio da oração, porque
se ordena a impetrar do Senhor aquilo que se pede com as
condições requeridas.

Há também muitos outros efeitos admiráveis, como a luz de


Deus, a elevação do coração às realidades eternas, o despre-
zo das [coisas] temporais, e muitos outros.

DÚVIDA 70: Quais são os sinais de progresso na oração?

Respondo que são uma maior luz para conhecer a si mesmo


e a Deus, nosso Senhor, um maior recolhimento interior,
uma maior mortificação e outros semelhantes.

DÚVIDA 71: Dado que muitos se dedicam à oração, por que são
poucos os que se aperfeiçoam com ela?

Respondo que duas são as causas principais. A primeira é a


pouca mortificação, por exemplo: o muito falar, o olhar com
curiosidade etc. Estas imperfeições, por serem quotidianas,
destroem tanto ou mais do que o que se edifica com a oração
de cada dia. Isto é notório pela experiência de pessoas que
não cometem culpas graves: vê-se que, embora rezem, não

63
T RATA D O DA O RAÇÃO

progridem, por não quererem se empenhar em viver mais


mortificadamente, segundo a disciplina dos santos.

A outra causa de não progredir é a pouca estima do santo


exercício da oração, para a qual se preparam pouco. Ademais,
quando estão nela, dão lugar à frouxidão de ânimo, de modo
que estão ali com grande desânimo e sem recolhimento e
aplicação do espírito; por isso, as tentações e distrações en-
contram tais pessoas como cidades sem muros e guardas.

DÚVIDA 72: A oração deve ser longa?

Respondo que, quando a oração é em comunidade, deve ser


conforme à obediência, que estabelece precisamente o tem-
po da oração, de modo que não seja breve, nem demasiada-
mente longo.

Mas quando alguém reza em particular, a oração costuma


ser tanto mais proveitosa quanto mais longa, consideran-
do a saúde e as forças do que reza. Aqui os principiantes
devem guiar-se pelo conselho de seu mestre espiritual.

DÚVIDA 73: Que devem fazer os que, por diversas circunstân-


cias, ficam impedidos de rezar no horário costumeiro, ou não
têm lugar adequado, ou não podem fazer a oração no tempo
oportuno que tinham reservado para ela?

Respondo que, se têm tempo, rezem antes ou depois da co-


munidade. Quanto ao lugar, considerem todo lugar como
oratório, quando não falta o tempo. E se não podem rezar
uma hora inteira, rezem 30 ou 15 minutos seguidos, e pro-
curem recuperar o restante com orações jaculatórias, eleva-

64
Da o r ação em g er a l e d e s ua s c i rc u n s tâ n c i a s

ções do coração intercaladas, e atos interiores de virtudes


no resto do dia.

DÚVIDA 74: Como podem ser ensinadas as pessoas ignorantes


e simples, para que façam um pouco de oração?

Resposta: Um bom modo será instruí-las em como devem


pensar que Deus, nosso Senhor, está em todo lugar, e dizer-
-lhes como devem imaginar a humanidade de Cristo, nos-
so Senhor, e os quatro Novíssimos; que devem ir à oração
com reverência à divina Majestade, com dor e humilhação
por seus pecados, e que fiquem ali pensando o melhor que
puderem em algumas destas coisas ditas, começando pelos
Novíssimos e pela humanidade de Cristo, nosso Senhor.
Assim, estando no lugar da oração, em presença da divina
Majestade, fazendo propósitos de viver santamente e de fu-
gir de todo pecado; oferecendo-se ao Senhor, crendo nele,
esperando nele, amando-o e pedindo-lhe sua divina ajuda; e
em todos estes atos, procedendo com simplicidade e abun-
dância de vontade, farão uma boa oração.

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