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6/11/2020 Contra Impugnantes: Sedevacantismo, um erro capital

Sedevacantismo, um erro capital


Sidney Silveira
Anunciou-se ao final de outro texto que o Nougué apresentará no blog os problemas
— insanáveis, sob variados ângulos! — acarretados pela tese dos
chamados sedevacantistas, que afirmam o seguinte: a Sede de Pedro está vaga, ou
seja: o atual Papa não é Papa, assim como os dois que o precederam também não o
teriam sido, em razão de presumíveis heresias em que tenham incorrido. Abro eu o
tema, para que ele depois prossiga.

Um dos documentos do Magistério em que os sedevacantistas apóiam a sua tese é a


Bula de Paulo IV  Cum ex Apostolatus Officio, de 1559, da qual o Nougué falará
amiúde noutra oportunidade. Mas lembro desde logo que,  em qualquer tese mal
formulada, não são os argumentos que determinam a conclusão, mas a
“conclusão” que busca qualquer argumento para afirmar-se, como muito bem
destaca o Padre Juan Carlos Ceriani, canonista dedicado ao problema de que vamos
tratar, ao qual este pensamento se aplica muito bem.

Antes de tudo, vejamos a  definição de  heresia, tanto no Código de Direito


Canônico de 1917, como no Código atualmente vigente.

“É herege quem, após ter recebido o batismo, conservando o nome de cristão, nega
pertinazmente alguma das verdades que hão de ser cridas com fé divina e católica,
ou as põe em dúvida” (Post receptum baptismum si quis, nomen retinens
christianum, pertinaciter aliquam ex veritatibus fide divina et catholica credendis
denegat aut de ea dubitat, haereticus est, Código de 1917, nº 1.325, parágrafo 2º).

Ou ainda:

“Chama-se heresia a negação pertinaz, após o recebimento do batismo, de alguma


verdade que se há de crer com fé divina ou católica, ou a dúvida pertinaz sobre ela”
(Dicitur haeresis, pertinax, post receptum baptismum, alicuius veritatis divina et
catholica credendae denegatio, aut de eadem pertinax dubitatio, Código atual, nº
751). 

Por ora, não enumerarei os  tipos  de heresia (formal, material, interna, externa,
materialmente oculta, formalmente oculta, pública, notória  de fato, notória  de
direito, etc.). Deixo isto para outra ocasião. Mas, seguindo o que o Padre Ceriani
afirma num dos seus livros sobre o tema, deixo registrado que, para comprovar a
sua errônea tese, os sedevacantistas precisariam vencer três dificuldades
iniciais: 1ª.Mostrar como se prova a heresia formal de alguém, em geral; 2ª. Provar
a heresia formal do Sumo Pontífice, especificamente;  3ª. Provar a perda do
Pontificado, caso o Papa incorresse em comprovada heresia formal. E, depois,
resolver ainda o problema de quem aplicaria a pena eclesiástica devida, caso tudo
isto se comprovasse.

Dada a relevância do tema, caminhemos devagar e nos fixemos no que o Padre


Ceriani — apoiado em vários documentos do Magistério — adverte:

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a) Nem toda heresia faz perder a fé. A heresia material (que é o erro involuntário
ou então sem pertinácia nem consciência clara) não é imputável.
b) Pode-se perder a fé por outro pecado que não seja a heresia.
c) Nem toda heresia faz incorrer em excomunhão.
d) A heresia externa (a que é manifestada publicamente), pela qual se incorre em
excomunhão,  não faz perder  ipso facto  a jurisdição, no caso das autoridades
eclesiais.

A estas dificuldades agrega-se, de acordo com Ceriani, o princípio da imunidade


judicial do Sumo Pontífice, já que, no tocante à fé, a Santa Sé não pode ser
julgada por ninguém, segundo o Código de Direito Canônico e uma longa tradição
magisterial, como vemos a seguir:

Nicolau I: Na carta Proposueramus quidem, diz que nem por todos os clérigos, nem
pelo povo, nem pelos reis pode a Santa Sé ser julgada. (Dz. 330)
São Leão IX: Na carta Pax hominibus, de 1053, afirma que não é lícito a nenhum
homem pronunciar um juízo antecipado contra a Sé Suprema, caso em que
receberia o anátema de todos os Padres e de todos os Veneráveis Concílios. (...)
Assim, Pedro e seus sucessores têm livre juízo sobre toda a Igreja, e ninguém pode
fazê-los mudar de lugar, pois a Sé Suprema por ninguém pode ser julgada. (Dz.
352-353).
São Gregório VII: No seu dito papal nº 19, formula um texto imperioso, nas
acertadas palavras do Padre Ceriani:  Quod a nemine (romanus Pontifex) judicari
ebeat. Em suma: ninguém pode julgar o Papa, quanto à fé.
Bonifácio VIII: Esse Papa faz afirmação simular na Bula  Una Sanctam. “Se o
poder terreno se desvia, será julgado pelo poder espiritual [inferior]; se o poder
espiritual inferior se desvia, será julgado pelo espiritual superior; mas se o poder da
autoridade suprema [do Papa] se desvia, só Deus o poderá julgar, pois a nenhum
homem é dado esse poder”. (Dz. 469).
Clemente VI: Na carta  Super quibusdam, frisa o seguinte: Se creste e crês que
tenha existido, que existe e que existirá a  suprema e preeminente autoridade,
assim como o poder jurídico dos Romanos Pontífices — ou seja: daqueles
que  foram, de Nós que  somos  e dos que, no futuro, o  serão  —, crês então que
ninguém pôde no passado julgá-los, nem a Nós no presente e nem aos que virão, no
futuro. Todos foram preservados, se preservam e se preservarão para ser
julgados somente por Deus, e, no tocante a nossas sentenças [relativas à fé], (...) não
se pôde, não se pode e não se poderá jamais apelar a nenhum juiz”. (Dz. 570).

Poderíamos aduzir várias outras citações. Mas estas bastam para mostrar o
seguinte:  ninguém pode concluir,  de direito, que o Sumo Pontífice seja
formalmente um herege sem, com isto, emitir no ato um juízo que só pertence a
Deus (...a solo Deo, non ad hominibus, potest judicari).

Após vencer essa baita dificuldade, teriam os sedevacantistas de responder


ao  Concílio Vaticano I, que ensina o seguinte: o Papa não é Vigário  da Igreja,
mas  do próprio Cristo  (Dz. 1823). Isto implica que a Igreja não tem o poder de
julgar ou de depor um Papa, o que é confirmado pelos cânones 1.556 e seguintes do
Código de 1917.

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Não trataremos aqui em detalhe dos casos em que houvesse renúncia tácita do
Romano Pontífice, ou negligência em assumir o seu supremo cargo (por exemplo:
se ele não se apresentasse para a sua consagração), ou de outras conjecturas já
tratadas por grandes canonistas do passado — como, por exemplo, as hipóteses de
abandono da residência da Santa Sé sem motivo razoável; apresentação do Papa
num tribunal civil para contrair matrimônio e fixar residência alhures; seu
alistamento em milícias seculares, para atuar no  front; afiliação em uma seita
acatólica ou cismática, rompendo com isto todo o seu vínculo com o Catolicismo;
etc. Nestes e noutros casos de abandono completo e público da fé, poderia alegar-se
que a Sede está vacante. Mas poderíamos aplicar tal casuística ao Papa Bento XVI,
ao Papa João Paulo II e ao Papa Paulo VI? Firmemente respondemos: não!

O Padre Ceriani diz que os fiéis e toda a Igreja universal poderiam, sim, pensar (nos
casos de acachapante evidência) que o Papa caiu  materialmente  em heresia, mas
nunca, jamais, em tempo algum, pensar ou afirmar que tenha caído formalmente em
heresia, pois para emitir tal juízo ninguém, seja leigo ou clérigo, tem autoridade —
mas apenas Aquele que a delegou a Pedro e a todos os seus sucessores: o próprio
Cristo.

(continua, com o Nougué)

Em tempo:  Alguns católicos liberais tentaram (nos primeiros meses do  Contra
Impugnantes) identificar-nos, a mim e ao Nougué, como pessoas contrárias ao Papa
atual, como são os sedevacantistas, só porque mencionamos, aqui e ali, o Magistério
bimilenar da Igreja. Calaram-se depois de alguns petelecos intelectuais, e também
depois de ter a sua malícia exposta aos muitos leitores que o blog vem tendo. Outros
ainda querem fazer isso, mas sempre no terreno das pequenas alusões e dos
murmúrios de coxia, ou então com a tentativa de atirar-nos “cascas de
banana”, como se disse noutro lugar. É claro que essas pessoas não afirmaram nem
afirmarão abertamente tais coisas — e outras baboseiras piores, como a de que
“excomulgamos” fulano ou sicrano. Entre outras coisas, simplesmente porque têm
medo de se expor, ou melhor: têm medo de perder o debate aos olhos das pessoas
para quem fazem pose — debate que, na prática, gostariam de vencer sem precisar
ter razão. Mas, para isto, precisarão é de um suplemento de testosterona, de uma
boa dose de coragem e de muito blá-blá-blá.

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