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Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (III)

Carlos Nougué
Comecemos pois a compreender a falácia do  sedevacantismo  estudando uma de
suas formas, que, como se disse no artigo anterior, “é muito mais sofisticada que as
mais conhecidas, mas, por outro, ainda mais radicalmente reconstrói de modo ideal
a história”.

Sem dúvida, seu ponto de partida é o mesmo de todos os tipos de sedevacantismo, a


saber, a conclusão de que desde (pelo menos) o Papa João XXIII a Sede Romana
estaria vacante por defeito de autoridade, porque não poderia ser cabeça da Igreja
aquele que, por heresia, nem sequer pertencesse a seu corpo. Sem dúvida também,
tal conclusão não brota do nada; segue-se de uma premissa, ou melhor, da forte
impressão causada no espírito de fiéis católicos por novidades introduzidas a partir
do Concílio Vaticano II. Sucede porém que tal premissa é tênue em dois sentidos:
primeiro, em si mesma, porque, como veremos dentro de alguns artigos, seria
preciso primeiro verificar se se trata de heresia formal ou material; segundo, porque
para servir de premissa a tal conclusão seria preciso provar, antes, que qualquer
heresia implica ipso facto a perda da suprema autoridade da Igreja. Ou seja, entre
aquela premissa e esta conclusão, há um verdadeiro salto lógico. Ora, ainda que
sabedores disso, os propugnadores de tal tipo de sedevacantismo não buscaram,
teológica nem prudentemente, investigar com profundidade a premissa e a
possibilidade real de seguir-se dela tal conclusão, mas aferraram-se a esta, e saíram
em busca de outras premissas, mais sólidas, para ela. Na prática, tratava-se de uma
conclusão apriorística, ou melhor, da inversão entre conclusão e premissa que
caracteriza a espécie geral de pensamento mágico que chamo de “reconstrução ideal
da história”.

Pois bem, nessa busca, os sedevacantistas encontraram o seguinte (e tentarei


descrevê-lo da forma mais sintética possível, sem subtrair-lhe, porém, nenhuma
nota essencial; ao contrário, quanto mais fiel e estimulantemente a expuser, de
modo que seja capaz de impressionar ou “morder” o leitor, tanto melhor, porque
assim mais precisão e robustez teológica terá de ter a refutação; é esse,
aliás,  mutatis mutandis, o princípio mesmo da  disputatio, que Santo Tomás de
Aquino elevou a um grau de perfeição inigualável):

1) A fé teologal é um testemunho da verdade divina que Deus mesmo nos infunde
na inteligência e no coração, para que possamos,  infalivelmente, distinguir a
verdade do erro ou da heresia, e a graça santificante é uma criação nova, um
renascimento do homem mediante a participação da vida divina;

2) A fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas


depende tudo o mais. Não obstante, desde o fim da civilização cristã (leia-se século
XIII), ambas essas verdades se foram deslocando, nas almas católicas, de sua
posição central, para ser pouco a pouco substituídas pelo culto do dever, pela prática
dos mandamentos, pela observância escrupulosa dos preceitos morais e pela
obediência cega às autoridades, como se tudo isso não dependesse precisamente da
graça santificante e da fé teologal.
3) Passou-se progressivamente, com isso, a ver a graça como mero auxílio à boa
conduta e ao combate aos vícios e paixões, e a fé, como algo decorrente da
obediência. Ora, tudo isso não só lembra mas tem estreito vínculo com a moral
kantiana e seu imperativo categórico, diretamente decorrentes do protestantismo
vitorioso em boa parte de uma Europa fraturada e minada pela heresia.

4) Pois bem, quanto à relação entre o fiel e a autoridade eclesiástica, também se deu
uma inversão, conseqüente daquela: em vez da fé considerada como a razão formal
da aceitação do ensino da Igreja, temos agora a autoridade do magistério
eclesiástico considerada como a razão formal da fé. Radical inversão da realidade,
pela qual se reduz a fé teologal a mera fé humana, que até pode ter a verdade
revelada por objeto, mas evidentemente não é a fé sobrenatural —  a única que
salva.

5) Com efeito, segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito,
para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer
virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência
intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a
verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos
seus que alcançarem infalivelmente a verdade.

6)  Mas como é possível existir, em nossa inteligência, a capacidade de conhecer


com infalibilidade as verdades divinas, que sabidamente estão além da capacidade
até de homens como Platão e Aristóteles? Sempre de acordo com o Doutor Comum,
é a adesão interior ou íntima às verdades divinas, infundida sobrenaturalmente na
inteligência, o que as torna discerníveis aos homens (e também aos anjos). Mais que
isso, porém: sem tal adesão não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural. Por
isso, pela ciência infusa, que é um dom de Deus, o cristão está provido de uma
prerrogativa única: a inerrância em matéria de fé, no que diz respeito a tudo quanto
necessita para a sua salvação.

7)  Mas como, precisamente, é possível aos cristãos conhecer e confessar de


modo infalível todos os artigos de fé e suas incontáveis sutilezas? Ora, os autênticos
fiéis  lutam  por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (“... si nos
fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est
necessarium”, diz Santo Tomás). Qualquer cristão recebe de Deus um
verdadeiro  instinto da fé, que o faz evitar ou rejeitar os erros com respeito à
verdade divina, ainda que se trate dos artigos e sutilezas da fé ensinados pela Igreja.

8) Isso porém tem uma pré-condição: o cristão pode professar todos esses artigos e
suas sutilezas porque pode professar o primeiro, o supremo de tais artigos – Deus
mesmo –, do qual decorrem e para o qual convergem todos os demais. Ora, as
verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de
conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus. É verdade que tais verdades
nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e que
comumente tal pregação é a condição para a crença nelas. Mas dizer condição não
quer dizer  suficiência  — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com
respeito já àquele primeiro e fundamental ato de fé (crer em Deus) ela não pode ter
senão caráter de persuasão. Mais: não  tem ela  autoridade  para tal, ainda que
confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus
mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as
Suas verdades.

9)  Tudo isso, contudo, como já dito, foi sendo esquecido desde o século XIII.
Deixando-se de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-
los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso
dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos.
Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram
um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de
Cristo em substituto de Nosso Senhor.

10) Foi desse modo que a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência
beata, cega e incondicional ao rei terreno. Tal obediência implica um axioma
imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer
responsabilidade própria. Para comprová-lo, vejamos algo do que diz o Doutor
Comum acerca da obediência (cf. Suma Teológica, IIa IIae, q. 10). Antes de tudo, a
própria obediência a Deus não é a maior das virtudes. Ela vem abaixo das virtudes
teologais (fé, esperança e caridade), e vem abaixo delas porque, ainda se tratando de
obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da
vontade própria, ela não é senão um meio para aquela adesão. Em verdade, as
virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem
diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para
nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a
obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a
vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude
subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela
própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser
virtude, e se mudará em vício.

11) Ora, ao fim desse processo nada mais natural que a heresia tomasse de assalto a
própria Sé de Pedro, o que de fato sucedeu já com João XXII, mas especialmente a
partir do Concílio Vaticano II. Com efeito, com uma cristandade inerme, ou seja,
destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade
da Sé de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a
partir desse momento estará propriamente vacante.

Em tempo: Como se vê, neste artigo TÃO-SOMENTE SE EXPÔS A TESE DO


ADVERSÁRIO. Nos dois próximos, ela, por falaz e sofística, será refutada.
Trata-se, no entanto, apenas do primeiro tipo de sedevacantismo. Mas, como disse e
repito, não se prova o erro de uma tese com rótulos nem diatribes ou invectivas,
nem com uma colcha de retalhos de citações descontextualizadas, verdade que a
maioria dos sedevacantistas permanentemente nega na prática. Quanto a nós, ou
seja, a mim e ao leitor deste blog, tenhamos sempre presente que a paciência e a
lisura são pressupostos permanentes da verdade.

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