Você está na página 1de 28

Um Pequeno Catecismo Sobre o Concílio Vaticano II

Por Frei Pierre-Marie, O.P.


(Extraído da revista Le Sel de la terre 93, Verão 2015)

Prefácio
O Vaticano II não é um concílio como os outros. Este concílio, que foi realizado na Basílica de São
Pedro no Vaticano em quatro sessões de 1962 a 1965 sob os pontificados dos Papas João XXIII
(1958–1963) e Paulo VI (1963–1978), foi a ocasião, se não a causa principal, da mais grave crise que
a Igreja conheceu em sua história.
Os estudos relativos a este concílio são numerosos, mas muitas vezes volumosos e muito técnicos.
Pensamos que seria útil fornecer aos católicos de boa vontade um texto relativamente curto,
explicando o que o Vaticano II declarou e o que é inaceitável para os católicos que querem
permanecer fiéis aos ensinamentos tradicionais infalíveis da Igreja.
Após uma breve introdução sobre a autoridade do concílio, analisaremos brevemente cada um dos 16
documentos, apresentando-os em uma ordem temática.

Introdução
A autoridade do Concílio Vaticano II
1. O que é um concílio ecumênico?
Um concílio ecumênico é uma assembleia de bispos do mundo inteiro convocada pelo Papa, que
conduz suas reuniões (chamadas “sessões”), diretamente ou via legados, e que aprova os textos, para
que tenham um valor vinculante para toda a Igreja. Houve na história da Igreja vinte concílios
ecumênicos desde o Concílio de Nicéia em 325 até o Concílio Vaticano I em 1870.
2. O Vaticano II é um concílio como os outros?
O Vaticano II é um concílio atípico porque os papas que o convocaram e conduziram, João XXIII e
Paulo VI, declararam que não era um concílio dogmático, como todos os concílios anteriores, mas
um concílio pastoral. Em outras palavras, seu objetivo não era definir doutrina contra erros, mas
realizar uma atualização (aggiornamento) desta doutrina para adaptá-la ao pensamento de nossos
contemporâneos.
3. O Concílio Vaticano II contém ensinamentos infalíveis?
Também aqui, diferentemente de todos os concílios ecumênicos precedentes, o Concílio Vaticano II
não contém nenhum ensinamento infalível. Para que um concílio seja infalível, ele deve pronunciar
julgamentos solenes, o que este concílio se recusou a fazer.
4. Mesmo que não seja infalível, não se pode admitir que o Vaticano II foi assistido pelo Espírito
Santo?
Nosso Senhor Jesus Cristo prometeu a assistência do Espírito Santo para a transmissão da Revelação:
“Mas o Paráclito, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as
coisas, e vos recordará tudo o que vos tenho dito. ”. (Jo 14,26) [versão Pe. Matos Soares].
Mas, sem renunciar à transmissão da Revelação, o Concílio propôs o aggiornamento da Igreja, ou
seja, sua adaptação ao mundo moderno, notadamente introduzindo na Igreja “os valores mais bem
expressos de dois séculos de cultura ‘liberal’”1, e trabalhando para “suavizar o caminho para a unidade
da humanidade”2.
5. Por que o Espírito Santo não pode ajudar a Igreja a adquirir os valores da cultura liberal, uma
vez purificados e corrigidos3?
O liberalismo é um erro condenado por dois séculos de ensinamentos do Magistério da Igreja. Tal
condenação é infalível em virtude do Magistério Ordinário Universal da Igreja.
Como o Espírito Santo não pode contradizer-Se, Ele não pode ajudar os padres do concílio a fazer
com que estes valores do liberalismo entrem na Igreja.
6. Por que o Espírito Santo não pode ajudar a Igreja a trabalhar para a unidade da humanidade?
A Igreja foi fundada para salvar almas e uni-las a Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao fazer isso, a Igreja
trabalha indiretamente pela paz, propagando a caridade nas almas:
“Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça [a união com Nosso Senhor Jesus
Cristo pela graça], e todas estas coisas [incluindo a paz] vos serão dadas por acréscimo. ”. (Mt
6,33) [versão Pe. Matos Soares].
Mas hoje a Maçonaria procura remodelar a unidade da humanidade (“globalismo”) por meios
humanos e excluindo positivamente Nosso Senhor Jesus Cristo em virtude do “secularismo”. Como
foi visto especialmente após o Concílio (com a secularização dos Estados e reuniões inter-religiosas),
os homens da Igreja colaboram neste trabalho através da liberdade religiosa, do ecumenismo e do
diálogo inter-religioso. O Espírito Santo não pode ajudar a Igreja a trabalhar para um fim que não é
o Seu.

Continuação da Introdução:
7. Na medida em que os papas e bispos falaram no Concílio, não se deve então obedecer e aceitar
o Vaticano II?
Os Padres do concílio decidiram adotar “formas de investigação e formulação literária do pensamento
moderno”4, ou seja, a “nova teologia”5 fundamentada na filosofia moderna. Ora, esta filosofia é
subjetiva: a verdade não vem de fora; ela vem, pelo menos em parte, do sujeito conhecedor. Mas se
a verdade não vem de fora, a hierarquia não pode impô-la: assim, o Concílio inaugurou um novo tipo
de magistério, um magistério vivo e “dialogante” que perdeu seu aspecto vinculante.
8. Por que os Padres do concílio adotaram esta nova teologia?
Como eles queriam adaptar o ensinamento da Igreja ao mundo moderno, tinham que encontrar uma
maneira de modificar este ensinamento. A solução foi adotar uma filosofia subjetivista moderna,
segundo a qual, como dissemos, a verdade vem, pelo menos em parte, do sujeito conhecedor. E,

1
[1] Cardeal Ratzinger, entrevista com a revista mensal “Jesus”, de novembro de 1984, p. 72: “O problema dos anos 60 era adquirir os melhores valores
expressos de dois séculos de cultura ‘liberal’. Há valores que, mesmo que nasçam fora da Igreja, podem encontrar seu lugar — purificado e corrigido
— em sua visão do mundo. Isto é o que foi feito”. O cardeal especifica apenas o que o próprio Concílio disse: “Este Concílio, antes de tudo, deseja
avaliar nesta luz [da fé] aqueles valores que são mais valorizados hoje e relacioná-los com sua fonte divina. Na medida em que provêm de dons
conferidos por Deus ao homem, estes valores são extremamente bons. No entanto, eles são frequentemente arrancados de sua função legítima pela
mancha no coração do homem e, portanto, necessitam de purificação”. (GS 11,2) [www.vatican.va].
2
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962, DC 1383 (04 de novembro de 1962): “Enquanto ele [o Concílio] concentra as principais
energias da Igreja e se esforça sinceramente para que as pessoas aceitem mais favoravelmente a mensagem de salvação, é, por assim dizer, preparando
e consolidando o caminho que pode trazer aquela unidade da raça humana” [tradução Komonchak §20].
3
Cardeal Ratzinger, entrevista com a revista mensal “Jesus”, de novembro de 1984, p. 72.
4
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962 (do texto italiano [tradução Komonchak]). O mesmo texto em: João XXIII — Paulo VI,
Discours au Concile, Paris, le Centurion, 1966, p. 64.
5
Esta expressão significa a teologia neo-modernista dos anos 40. Ver Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, O.P., “La nouvelle Théologie où va-t-elle? ”,
Angelicum 23 (1946), p. 126–145, traduzido em Réginald Garrigou-Lagrange, “Where Is the New Theology Leading Us? ”, trad. Por Suzanne M. Rini,
Catholic Family News Reprint Series #309.
consequentemente, evolui com ele. O que era verdade ontem (por exemplo, que a Igreja não pode
adotar a liberdade religiosa) não é verdade hoje6.
Assim, graças a esta nova teologia, pode-se fazer uma atualização da Igreja e reconciliá-la com o
mundo moderno.
9. Existem ambiguidades calculadas no concílio?
O próprio Padre Schillebeeckx afirma isso na revista holandesa “De Bazuin” (23 de janeiro de 1965)7:
Um teólogo da comissão doutrinária — a quem, já durante a segunda sessão, eu havia expressado
minha decepção diante do minimalismo sobre a colegialidade papal — me respondeu, para me
acalmar: “Explicaremos de forma diplomática, mas depois do concílio tiraremos as conclusões
implícitas”.
10. Existiram influências externas no concílio?
O poder da mídia exerceu uma influência muito forte. Foi o medo desta influência que fez com que
Pio XI e Pio XII abandonassem seus projetos para reunir novamente um concílio para prosseguir os
trabalhos interrompidos pelo Concílio Vaticano I.
Houve também uma influência mais discreta, mas real, devido aos acordos mais ou menos secretos
com os Ortodoxos, Protestantes, Judeus, Comunistas e Maçons8.
Com os ortodoxos e os comunistas: Por ter convidado observadores ortodoxos para o concílio, João
XXIII se comprometeu a não condenar o comunismo9.
Com os judeus: Os líderes judeus receberam secretamente, no Centro Comunitário da Paz em
Estrasburgo durante o inverno de 1962–1963, o Padre Congar O.P., enviado pelo Cardeal Bea em
nome de João XXIII, à beira do Concílio, para perguntar o que os judeus esperavam da Igreja
Católica10; o próprio Cardeal Bea visitou secretamente o Comitê Judeu Americano em Nova York,
em 31 de março de 1963, com o mesmo objetivo11.
Com os Protestantes e Maçons: Em setembro de 1961, o Cardeal Bea reuniu-se secretamente em
Milão com o pastor Willem A. Visser’t Hooft, secretário geral do Concílio Ecumênico das Igrejas
(organização muito maçônica de origem protestante). Mais tarde, em 22 de julho de 1965, o mesmo
Concílio Ecumênico das Igrejas publicou a lista de seus sete requisitos relativos à liberdade religiosa:
todos eles foram satisfeitos pelo Concílio no documento Dignitatis humanæ12.

6
Cardeal Ratzinger, “Magistère et théologie”, ORLF, 10 de julho de 1990, p. 9: “Nos detalhes relacionados ao conteúdo, [as decisões anti-modernistas
da Igreja] estavam ultrapassadas, depois de terem cumprido sua necessidade pastoral em um determinado momento”.
7
Ralph M. Wiltgen, The Rhine Flows into the Tiber, Charlotte, Carolina do Norte, TAN Books, 2014, p. 288–9, relata isso de uma maneira ligeiramente
diferente.
8
Sobre estes acordos secretos, ver Pe. Matthias Gaudron, Catechisme catholique de la crise dans l’Église (No Brasil, Catecismo católico da crise na
Igreja), 5th edn, Le Sel, Avrillé, 2012, pergunta 26.
9
“O Cardeal Tisserant recebeu ordens formais para negociar o acordo e supervisionar sua execução exata durante o concílio. Cada vez que um bispo
levantava a questão do comunismo, o cardeal, de sua mesa onde presidia, intervinha” (Mons. Roche, Itinéraires 285, p. 157). Houve em 1962 um acordo
entre o Vaticano e Moscou segundo o qual, em troca da presença no concílio de observadores russos cismáticos, ele se absteria de falar de comunismo.
Ver sobre este assunto Le Sel de la terre 53 (verão 2005), p. 68–70; Le Sel de la terre 62 (outono 2007), p. 189–194; Jean Madiran, “L’accord Rome-
Moscou”, Itinéraires n° 280, fevereiro de 1984 e n° 285 de julho-agosto de 1984, p. 151–160; Sì sì no no, 15 de setembro de 1984.
10
“Os judeus, mantidos após quase vinte séculos à margem da sociedade cristã, muitas vezes tratados como subordinados, inimigos e deicídas —
exigiam sua completa reabilitação. Emitidos diretamente da raça Abraâmica, de onde veio o Cristianismo, eles pediram para serem considerados como
irmãos, parceiros de igual dignidade, da Igreja Cristã”. Lazare Landau no n° 1001 da Tribuna Juive (de 25–31 de dezembro de 1987).
11
Ver Sel de la terre 34, p. 196: «Comment les juifs ont changé la pensée catholique» (Joseph Roddy, Veja, 25 de janeiro de 1966).
12
“Durante a última sessão do concílio, o bispo de Mônaco, Dom Rupp, em um discurso muito curto, pediu que o concílio se contentasse em atender a
esses sete pedidos e confirmá-los com sua própria autoridade […]. Na realidade, o concílio não o fez. Não só tomou para si estes sete pedidos, em
termos equivalentes, mas os justificou solidamente […]”. Mons. Willebrands, in Vatican II — La liberté religieuse, coleção Unam Sanctam, Paris, Cerf,
1967, p. 241–242.
Os documentos do concílio: Visão geral
1. Quais são os documentos do concílio?
O concílio promulgou 16 documentos:
4 Constituições (documentos de conteúdo essencialmente doutrinário, sendo os dois primeiros
qualificados como “dogmáticos”, o quarto como “pastoral”):
Lumen Gentium (LG): a Igreja.
Dei Verbum (DV): Revelação Divina.
Sacrosanctum Concilium (SC): a liturgia.
Gaudium et Spes (GS): a Igreja e o mundo contemporâneo.
9 decretos (textos de ordem prática e aplicação concreta):
Christus Dominus (CD): o dever pastoral dos bispos.
Presbyterorum Ordinis (PO): o ministério e a vida dos sacerdotes.
Perfectæ Caritatis (PC): a renovação e adaptação da vida religiosa.
Optatam totius Ecclesiæ Renovationem (OT): a formação dos sacerdotes.
Apostolicam Actuositatem (AA): o apostolado dos leigos.
Ad Gentes (AG): a atividade missionária da Igreja.
Orientalium Ecclesiarum (OE): as Igrejas Católicas Orientais.
Unitatis redintegratio (UR): o ecumenismo.
Inter Mirifica (IM): os meios de comunicação de massa.
3 Declarações (textos dirigidos a todos os homens):
Dignitatis Humanæ (DH): liberdade religiosa.
Nostra Aætate (NA): as relações com as religiões não-cristãs.
Gravissimum Educationis Momentum (GE): A educação cristã.
2. De onde vieram estes textos?
Antes do concílio, uma importante preparação estava em andamento. Cerca de vinte esquemas
preparatórios foram lançados. Mas a maioria dos esquemas foi rejeitada pelos padres do concílio
porque foram julgados demasiadamente “manchados” com a doutrina tradicional13. Assim, os textos
poderiam ser desenvolvidos a partir dos esquemas que adotaram “as formas de investigação e
formulação literária do pensamento moderno”14, como exigia o Papa João XXIII.
3. Este ensino é completo?
O ensino é extenso: a edição das Atas do concílio pelo Centurião compreende mais de 700 páginas.
No entanto, falta-lhe um documento chave: um texto condenando os erros atuais que põem em perigo

13
Ver Ralph M. Wiltgen, The Rhine Flows into the Tiber, Charlotte, Carolina do Norte, TAN Books, 2014, p. 32 (Fr. Schillebeeckx, O.P., consegue
opor-se aos primeiros quatro esquemas dogmáticos em 16 de outubro de 1962) e p. 71–75 (a rejeição do esquema sobre as fontes da Revelação).
14
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962 (do texto italiano [tradução Komonchak]).
a fé, como fizeram todos os concílios anteriores. Havia até mesmo um esquema preparado para uma
“Constituição dogmática para preservar a fé intacta”15, mas foi rejeitado com os outros.
O Papa João XXIII pediu “o remédio da misericórdia ao invés das armas da severidade; e, ela acha
que atende às necessidades de hoje explicando mais plenamente a validade de sua doutrina do que
condenando”16. No entanto, o “bom papa João” reconheceu que “existem… doutrinas, opiniões ou
perigos falsos a serem evitados e dispersos”17. Entre estas doutrinas falsas, havia a “nova teologia”
condenada, entre outras, pelo esquema da “Constituição dogmática sobre o depósito da fé”, e que se
encontra em grande parte dos textos promulgados pelo Concílio e pela Igreja Conciliar18.

As Quatro Constituições, parte I


Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja
Papa Paulo VI
1. Qual é a importância desta Constituição?
Ela vem primeiro, porque a nova teologia sendo subjetiva, como já dissemos, os Padres Conciliares
primeiro focalizam sua atenção no assunto (a Igreja) antes de se concentrarem no objeto (a doutrina
a ensinar). Mas ao modificar a concepção da Igreja, ao adotar uma “nova eclesiologia”19, o concílio
derruba a Igreja inteira e começa sua autodestruição.
2. Quais são os principais erros contidos nesta Constituição?
Esta constituição muda a noção de Igreja e apresenta os princípios de colegialidade e revolução
litúrgica.
3. Onde esta constituição muda a noção de Igreja?
Até o Vaticano II, a Igreja era uma sociedade na qual se entrava por batismo válido, e da qual se saía
por apostasia, heresia, cisma, ou uma excomunhão maior20.
Na LG (Lumen Gentium), a Igreja não é definida de forma precisa:
A LG diz que é “como um sacramento ou como sinal e instrumento tanto de uma união muito estreita
com Deus como da unidade de todo o gênero humano” (§1), o que permite acrescentar à sua finalidade
própria (a união com Deus através de Nosso Senhor Jesus Cristo) uma segunda finalidade (a unidade
de toda a humanidade).
A LG também diz que a Igreja é o “povo de Deus” (uma expressão usada quarenta vezes em LG), o
que permite incluir:
Não-Católicos, que erroneamente afirmam ser “cristãos” [N.Trad.: no entanto, se admite que se
chamem “cristãos” em sentido lato], através da ideia de conexão (coniunctio: isto significa que existe
uma certa comunhão imperfeita em Cristo, que realiza uma “união real no Espírito Santo”, §15),

15
Acta Synodalia Sacrosancti Concilii æcumenici Vatican II, Volumen I (Periodus prima), Pars IV (Congregationes generales XXXI-XXXVI), Typis
polyglottis Vaticanis, 1971, p. 653 et sq. [Tradução Komonchack: “Em defesa intacta do depósito de fé” em The Council that Might Have Been].
16
João XXIII, Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962 [tradução Komonchak].
17
Ibidem.
18
A Igreja Conciliar é a coleção de católicos que aceitam o Concílio como uma norma de pensamento. Sobre a contradição entre o esquema da
“Constituição dogmática sobre o depósito da fé” e o ensino da Igreja Conciliar, ver “La Révélation et la foi”, Le Sel de la terre 92, primavera de 2015.
19
Ver, por exemplo: Pe. Pierre-Marie, “Comparative Ecclesiology”, Le Sel de la terre 1, verão de 1992, p. 25.
20
Ver Pio XII, Mystici Corporis, 29 de junho de 1943.
e aqueles que nem sequer afirmam ser cristãos, através da ideia de ordenação (ordinatio: isto significa
mais ou menos que existe uma certa comunhão, mas imperfeita, no mesmo Deus)21.
Finalmente, a LG diz que “a Igreja de Cristo “subsiste na” Igreja Católica” (§8), em vez de afirmar
que são idênticas22.
Todas essas afirmações diluem os limites da Igreja e também preparam o caminho para o ecumenismo
e o diálogo inter-religioso, como o que foi praticado depois do Concílio.
4. Onde esta constituição introduz o bicefalismo [i.e. a condição de ter duas cabeças] na Igreja23?
A LG, depois de ter lembrado que o Papa “tem poder pleno, supremo e universal sobre a Igreja”,
acrescenta imediatamente que “A ordem dos bispos, que sucede ao colégio dos apóstolos e dá
continuidade a este corpo apostólico, é também sujeito de poder supremo e pleno sobre a Igreja
universal” (§22). Enquanto a Igreja era até então uma monarquia com o único poder supremo, o do
Papa, a LG de repente afirma um duplo poder supremo, uma Igreja de duas cabeças. Ao lado do papa,
o colégio dos bispos (incluindo o papa) também tem o poder supremo.
Esta mudança de doutrina foi tão significativa que o Papa Paulo VI considerou necessário intervir e
redigir uma “nota explicativa prævia” (nota preliminar de explicação) para aderir à Constituição, onde
ele mitigou esta mudança: “para que a plenitude do poder pertencente ao Romano Pontífice não seja
posta em questão […] o Colégio, sempre e por necessidade, inclui sua cabeça, pois no Colégio ele
preserva sem entraves sua função de Vigário de Cristo e de Pastor da Igreja universal”.
Esta nota impede assim que o colégio exerça sozinho o poder supremo na Igreja, o que é uma heresia
condenada, mas não suprime o “bicefalismo”. O novo Código de Direito Canônico de 1983 ratifica
esta doutrina de duplo poder supremo em seu cânon 336: “O Colégio dos Bispos, cujo chefe é o Sumo
Pontífice e cujos membros […] é também sujeito de poder supremo e pleno sobre a Igreja universal”.
5. Onde esta Constituição apresenta os princípios da colegialidade?
Além do fato de que LG atribui poder supremo ao Colégio Episcopal, afirma também que “a
consagração, juntamente com o ofício de santificar, confere também o ofício de ensinar e de
governar” (§21) e que “se constitui membro do corpo episcopal em virtude da consagração
sacramental e da comunhão hierárquica com o chefe e os membros do corpo”, sendo “a ordem dos
bispos” “também o sujeito do poder supremo e pleno sobre a Igreja universal” (§22).
Assim, a LG sugere que os bispos já têm uma certa jurisdição, pelo menos sobre a Igreja universal,
antes de recebê-la do Papa. E a nota explicativa prævia não corrige este ponto.
Pelo contrário, a doutrina tradicional, repetida novamente em 1958 por Pio XII24, ensina que a
jurisdição sobre sua própria diocese chega ao bispo através do Papa, que lhe dá o poder de jurisdição
realmente distinto das ordens. Além disso, o Papa, se quiser, pode fazer com que o corpo de bispos

21
Cardeal Joseph Ratzinger, Igreja, Ecumenismo, & Política: New Endeavors in Ecclesiology, Ignatius Press, 2008, p. 24: “Alguns (teólogos alemães)
se perguntavam (nos anos 30) se a imagem do Corpo Místico não era muito estreita como ponto de partida para definir as múltiplas formas de afiliação
com a Igreja que realmente existiram na confusão da história humana. A imagem do Corpo fornece apenas uma noção de afiliação, a do “membro”;
alguém é membro ou não é, e não há graus intermediários. No entanto — perguntaram as pessoas — esta imagem não é muito restritiva exatamente em
seu ponto de partida, já que existem graus intermediários? Assim, eles se atiram à expressão “Povo de Deus”, que, neste aspecto, é mais espaçosa e
flexível. A Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium a adotou para este mesmo propósito quando descreveu a situação dos não-Católicos que
erroneamente se dizem “cristãos”, dizendo que de alguma forma estão ‘unidos’ (coniunctio) à Igreja Católica e aqueles que não se dizem cristãos,
dizendo que estão ‘relacionados’ (ordinatio) à Igreja; em ambos os casos, o documento se baseia na ideia do Povo de Deus (nos. 15 e 16)”
22
Ver Pio XII, Mystici Corporis, 29 de junho de 1943: “…esta verdadeira Igreja de Jesus Cristo — que é a Igreja una, santa, católica, apostólica e
romana” (Humani generis repete esta afirmação e a torna obrigatória: Dz 2319, ausente do DS).
23
Sobre esta e a seguinte questão, ver a nota do Cardeal Larraona publicada em Msgr. Lefebvre, I Accuse the Council!, Kansas City, Angelus Press,
1998, p. 51, 55: “De monárquica, a Igreja torna-se episcopal e colegial, e isto por direito divino e em virtude da consagração episcopal. […] se a doutrina
proposta no esquema fosse verdadeira, a Igreja estaria vivendo há séculos em oposição direta à lei divina”!
24
Ver Pio XII, encíclica Ad Apostolorum Principis, de 29 de junho de 1958, que se refere às encíclicas Mystici Corporis (1943) e Ad Sinarum Gentem
(1954).
participe do poder supremo de ensinar e governar a Igreja universal, unindo-os em um concílio
ecumênico, mas somente durante o concílio25.
6. Onde esta constituição apresenta o princípio da democracia e da revolução litúrgica na Igreja?
Até o Concílio Vaticano II, a Igreja era considerada essencialmente hierárquica, com uma distinção
de direito divino entre os clérigos, que sozinhos detêm o triplo poder (de ordens, jurisdição e ensino),
e os leigos: “Por instituição divina, os clérigos na Igreja são distintos dos leigos” (Código de Direito
Canônico de 1917, c. 107).
A LG começa por tratar o “Povo de Deus” em geral (capítulo 2) antes de falar da hierarquia (capítulo
3), como se ela fosse emitida a partir dela; trata do “sacerdócio comum dos fiéis” antes de falar do
“sacerdócio ministerial”, como se houvesse duas formas diferentes do mesmo sacerdócio.
É para esquecer que a hierarquia da Igreja forma os fiéis: Nosso Senhor Jesus Cristo formou uma
dúzia de apóstolos que fundaram eles mesmos a Igreja: “Que tu és Pedro; e sobre esta pedra edificarei
a minha Igreja” (Mt 16,18).
É também esquecer que somente o sacerdote ministerial é um sacerdote no sentido próprio da palavra.
Sacerdos (sacerdote) vem de “sacra dans”: aquele que dá coisas sagradas, e somente aqueles que
receberam o poder das ordens podem fazer isso; os leigos batizados só têm o poder de receber essas
coisas sagradas.
Sem dizer abertamente, a porta foi aberta para a invasão dos leigos, homens e mulheres, nos postos
de governo da Igreja (dos comitês litúrgicos paroquiais aos dicastérios romanos) e a revolução
litúrgica recebeu uma base doutrinária, ao relegar o sacerdote ao simples papel de presidente da
assembleia. E assim Paulo VI assinou esta definição herética da nova missa: “A Ceia do Senhor, ou
Missa, é a reunião ou congregação sagrada do povo de Deus reunido, o sacerdote que preside, para
celebrar o memorial do Senhor”. Por esta razão, a promessa de Cristo se aplica eminentemente a tal
reunião local de Santa Igreja: ‘Onde dois ou três se reúnem em meu nome, lá estou eu no meio
deles’.26".
7. Existem outros erros na LG?
No parágrafo nº 29, este documento abre a possibilidade de ordenar diáconos casados sem exigir que
eles pratiquem perfeita continência, ao contrário do uso da Igreja preservada no Ocidente desde os
Apóstolos. Paulo VI realizará isto no motu proprio de 18 de junho de 1967, Sacrum Diaconatus
Ordinem, que se refere expressamente a esta passagem de LG.

As Quatro Constituições, parte II


Constituição Dogmática Dei Verbum sobre as fontes da Revelação
Papa João XXIII
1. Quais são os principais erros contidos nesta constituição?
Esta Constituição dá um passo importante em direção à teologia protestante ao se recusar a distinguir
claramente as duas fontes da Revelação.

25
Ver Sì Sì No No, 31 de janeiro de 2013, que acrescenta: “O corpo de bispos não é, portanto, um grupo estável e permanente que com Pedro e sob ele
tem o poder supremo de ensinar e governar toda a Igreja. Como se pode ver, a colegialidade está intimamente relacionada, mesmo que mais atenuada
ou mitigada, ao conciliarismo e ao galicanismo teológico”.
26
Artigo 27 da Institutio Generalis da nova missa. Ver também Daniel Raffard de Brienne, Lex Orandi, lex credendi — La Nouvelle Messe et la Foi,
1983 (disponível no site do portal latino, ou no número 107, maio-junho de 1984, de Lecture et Tradition): “A ceia (palavra protestante) ou missa é,
portanto, a assembléia do povo de Deus; o sacerdote é apenas um presidente; um trabalho da comunidade, a Ceia é apenas a celebração do memorial
do Senhor; segundo a segunda frase, a presença de Cristo, puramente espiritual, é realizada pela assembléia. Lutero não falou diferente”.
2. Como a DV altera a doutrina das duas fontes da Revelação?
A DV deixa de lado a doutrina dos Concílios de Trento e do Vaticano I sobre as “duas fontes” da
Revelação (Tradição e Sagrada Escritura), para fazer com que a Tradição e o Magistério converjam
apenas para a Escritura: “tradição sagrada e a Sagrada Escritura […] de certa forma se fundem em
uma unidade e tendem para o mesmo fim. […Elas] formam um depósito sagrado da palavra de Deus”
(§9 e 10).
Note na passagem a expressão “de certa forma (quodammodo)”: as coisas são deixadas em fluxo sem
ousar afirmar francamente o erro. Encontraremos em outro lugar esta maneira de falar.
É um passo importante para reconciliar-se com a heresia protestante que nega a Tradição como fonte
da Revelação.
3. Como a DV fala de um progresso da Tradição?
De acordo com a infalível doutrina da Igreja Católica, a Revelação terminou com a morte do último
Apóstolo27: Portanto, não há progresso objetivo do depósito da fé (por novas verdades que seriam
reveladas); no máximo, há um progresso subjetivo (uma definição mais precisa das verdades contidas
no depósito da fé).
Sem fazer esta grande distinção, a DV admite um progresso da Tradição: “Agora o que foi transmitido
pelos Apóstolos […] desenvolve-se [proficit] na Igreja com a ajuda do Espírito Santo. […] Pois à
medida que os séculos se sucedem, a Igreja avança constantemente em direção à plenitude da verdade
divina até que as palavras de Deus alcancem nela sua completa realização”. (§8).
4. Como o DV introduziu a noção modernista de Tradição viva?
No parágrafo 12, a DV diz que a Sagrada Escritura deve ser lida levando em conta “a tradição viva
de toda a Igreja”. Esta é também uma expressão ambígua que poderia receber uma interpretação
ortodoxa (a imutável Tradição recebida dos Apóstolos também continua hoje a ser transmitida pelo
atual Magistério vivo da Igreja), mas que evidentemente, no contexto, favorece a ideia modernista de
uma Tradição que é viva porque é a expressão do sentido da fé do povo de Deus, e, portanto, suscetível
à evolução.
É este último significado que será utilizado após o concílio: Em nome da Tradição viva, a Igreja
Conciliar tentará excomungar Dom Lefebvre28 e justificar a “hermenêutica da reforma na
continuidade” (a afirmação de que a Igreja pós-conciliar está em continuidade com a Igreja antes do
Concílio, porque há uma continuidade do sujeito vivo, mesmo que haja descontinuidade no plano
doutrinário29).
5. Existem outros erros na DV?
Por ocasião do 40º aniversário do Vaticano II, Le Sel de la terre 55 (pp. 26–38) indicou como pontos
contestáveis:
Uma falsa noção de Revelação descrita como um diálogo de salvação e uma conversa com Deus (DV
2), não como um depósito de verdades sobrenaturais;

27
Decreto do Santo Ofício Lamentabili (aprovado e confirmado por São Pio X) em 3 de julho de 1907, proposição 21 (condenada): “A revelação, que
constitui o objeto da fé católica, não foi completada (completa) com os Apóstolos”.
28
João Paulo II, Ecclesia Dei adflicta, 2 de julho de 1988, § 5 (que DV §8 cita): “A raiz deste ato cismático pode ser discernida em uma noção incompleta
e contraditória da Tradição. Incompleta, porque não leva suficientemente em conta o caráter vivo da Tradição, que, como o Concílio Vaticano II ensinou
claramente, ‘vem dos apóstolos e progride na Igreja com a ajuda do Espírito Santo. […]’”
29
Bento XVI, 22 de dezembro de 2005, dirigindo-se à Cúria: “Por outro lado, há a ‘hermenêutica da reforma’, da renovação na continuidade do único
sujeito — a Igreja que o Senhor nos deu. Ela é um sujeito que aumenta no tempo e se desenvolve, mas sempre permanecendo o mesmo, o único sujeito
do Povo de Deus peregrino”.
Uma nova abordagem da fé (DV 5) considerada como um abandono total da pessoa a Deus é
conciliada com a fé-confiança dos protestantes ou a fé-sentimento dos modernistas;
A protestantização da Santa Igreja e em particular o abandono da noção tradicional de inerrância das
Escrituras em benefício de uma verdade relativa à salvação (DV 11).30
Também poderia ser acrescentado que a DV incentiva traduções ecumênicas da Bíblia31, o que é uma
novidade inédita na Igreja.

As Quatro Constituições, parte III


Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia
1. Quais são os principais erros contidos nesta constituição?
A SC não afirma claramente erros, mas abre portas que serão grandemente abertas após o concílio.
Por exemplo:
No §22, diz-se que a Sé Apostólica sozinha — e, dentro de certos limites, o bispo — pode regular a
liturgia. Mas, no §23, são permitidas inovações, se for útil;
No §36, é claramente afirmado que “o uso da língua latina deve ser preservado nos ritos latinos”. No
parágrafo seguinte, pode-se ler, surpreendentemente: “Mas como o uso da língua vernácula […]
frequentemente pode ser de grande vantagem para o povo, os limites de seu emprego podem ser
estendidos”.
2. Você poderia dar um exemplo de ambiguidade calculada?
A SC fala frequentemente da “participação ativa” dos fiéis na liturgia. Esta expressão — que é
encontrada cerca de vinte vezes — seria bem compreendida se favorecesse a participação espiritual,
pois “é na cooperação do poder do sacramento e do esforço humano, da vida seriamente cristã e da
sincera tendência à perfeição espiritual que consiste no segredo da fé viva32. ”
Mas, como o que se seguiu mostrou, em nome desta participação ativa a liturgia se tornou cada vez
mais barulhenta, os leigos passaram a ocupar o lugar dos clérigos, etc., sem nenhum proveito para os
fiéis33.
3. Existem outros erros na SC?
Pode-se coletar um certo número de paralelismos com a doutrina protestante34:
A noção de mistério pascal que enfatiza nossa Redenção na Ressurreição de Nosso Senhor e apaga a
realidade de um sacrifício expiatório na liturgia (§5 e 6);

30
Padre Brandler, FSSPX, em seu estudo [publicado por Le Sel de la terre 7, 10 e 12] “De Dei Filius à Dei Verbum: un progrès? (De Dei Filius à Dei
Verbum: um progresso?), observa que o texto do DV favorece três erros:
1. A negação, ou mesmo a confusão, das ordens naturais e sobrenaturais (DV 6);
2. A fé vista como um sentimento, uma confiança, e não como um conhecimento intelectual (DV 5);
3. A Sagrada Escritura que não é mais que um “mito”: uma forma de pensar que não está sem nenhum erro (DV 19).
31
DV 22: “E se surgir a oportunidade e as autoridades da Igreja aprovarem, se essas traduções forem produzidas também em cooperação com os irmãos
separados, todos os cristãos poderão utilizá-las”.
32
Pio XII, Instrução pastoral quaresmal aos sacerdotes e pregadores de Roma, 17 de fevereiro de 1945, AAS 37 (1945), p. 39.
33
São Pio X foi o primeiro, parece, a falar da “participação ativa nos mistérios sacrossantos e na oração pública e solene da Igreja” em seu Motu proprio
Tra le sollicitudini sobre a música sagrada (22 de novembro de 1903) onde ele encorajou o canto gregoriano: “é necessário restabelecer o canto
gregoriano no uso do povo, para que os fiéis possam novamente ter uma parte mais ativa no ofício eclesiástico, como nos tempos antigos”. Isto está
longe das missas de violão que se seguiram ao Concílio.
34
Ver Pe. Franz Schmidberger, “La protestantisation du concil Vatican II”, Autorité et réception du concile Vatican II — 4e Symposium de Paris 2005,
Vu de haut hors série, Paris, 2006, p. 208–210.
A Presença de Cristo na Missa é praticamente colocada no mesmo nível na Sua presença no ministro
da ação litúrgica, no poder dos sacramentos, em Sua palavra e em duas ou três pessoas unidas em Seu
nome (§7);
O §34 pede para fazer uma reforma dos ritos para que retornem ao esplendor de uma nobre
simplicidade e sejam desprovidos de “repetições inúteis” (esta influência racionalista e antilitúrgica
levará à substituição do ofertório sacrifical por uma simples “apresentação dos dons” na nova missa);
subjacente ao §37 encontra-se a inculturação e a chamada unidade na pluralidade litúrgica, oposta à
verdadeira unidade da Igreja e do espírito romano;
O §47 não usa, para designar o Santo Sacrifício da Missa, nem a noção de “repræsentatio” do
Concílio de Trento, nem a de “renovação” dos últimos papas (até Pio XII inclusive), mas fala de
“perpetuar” o sacrifício e de “memorial”;
O §55 pede para dar, em certas ocasiões particulares, a Eucaristia sob duas espécies, à maneira dos
protestantes;
O §81 exige a supressão de pensamentos sombrios sobre a morte, usando outras cores litúrgicas além
do preto. Isto agrada aos protestantes que não reconhecem nem o purgatório nem a oração pelos
falecidos.
4. Que julgamento se deve fazer desta Constituição?
A árvore é julgada por seus frutos: a muito desastrosa reforma litúrgica é o fruto da SC. Em resumo,
pode-se dizer que a liturgia, que foi teocêntrica até o Concílio Vaticano II, tornou-se antropocêntrica
após o Concílio. O culto ao homem tomou o lugar do culto a Deus.

As Quatro Constituições, parte IV


Constituição Dogmática Gaudium et Spes sobre o lugar da Igreja no mundo moderno
1. Qual é a importância deste texto?
Porque o concílio pretendia realizar uma atualização (aggiornamento) para aproximar a Igreja do
mundo moderno, esta Constituição é a mais representativa do concílio. Assim como o Syllabus de
Pio IX de certa forma constituiu a carta da posição da Igreja diante do mundo moderno antes do
Vaticano II35, assim também é GS a carta da Igreja Conciliar:
“Gaudium et Spes é (junto com os textos sobre liberdade religiosa e religiões do mundo) uma revisão
do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus. […] este texto desempenha o papel de um
contra-Syllabus na medida em que representa uma tentativa de reconciliar oficialmente a Igreja com
o mundo como ele se tornou desde 178936. ”
Papa Pio IX
Papa Pio IX condenou, no “Syllabus errorum”, a tese seguinte: “O Pontífice Romano pode e deve
conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna. ”
2. Qual é o erro fundamental deste texto?
O erro fundamental deste texto, que é o do Vaticano II e de maneira geral o da Igreja Conciliar, é ter
tentado esta “reconciliação oficial da Igreja com o mundo como ela se tornou desde 1789”, enquanto
o Papa Pio IX condenou solenemente de antemão tal atitude na última proposição do Syllabus: “O

35
Veja o dossiê do Syllabus que aparece no Le Sel de la terre 90 (outono de 2014).
36
Cardeal Ratzinger, Les Principes de la théologie catholique, Paris, Téqui, 1985, p. 426–427. Este livro foi reeditado sem alterações em 2005, após a
eleição do autor para o Pontificado Soberano, com um prefácio do Cardeal Poupard.
Romano Pontífice pode, e deve reconciliar-se, e aceitar o progresso, o liberalismo e a civilização
moderna”. (Proposição condenada).
Dom Gaume explica isso bem em seu Petit catéchisme du Syllabus37:
O Soberano Pontífice não pode nem deve se reconciliar com estas três coisas38 porque elas tendem a
arruinar a autoridade tutelar da Igreja, degradar o homem e torná-lo miserável39.
A prova é estabelecida pelos fatos; depois do Vaticano II, a ruína da autoridade da Igreja e a
degradação e o estado miserável dos homens só aceleraram.
3. Existe uma influência maçônica neste texto?
A doutrina maçônica aparece claramente neste texto, como aparece no texto sobre a liberdade
religiosa. Além disso, estes dois documentos são os únicos que o Arcebispo Lefebvre se recusou a
aprovar no Concílio.
4. Onde aparece a doutrina maçônica da gnose?
Em vários lugares, em particular quando o texto afirma que “…afirmando que nele [no homem] está
depositado um germe divino…” (§3, 2), e que “por Sua encarnação o Filho de Deus uniu-se de alguma
forma a todo homem” (§22, 2).
A GS o afirma de todo homem; isso só pode ser compreendido na perspectiva da gnose segundo a
qual há no fundo do homem uma centelha de divindade, e que o homem deve recuperar a consciência
de sua dignidade, sem ter necessidade da fé ou do batismo.
Observemos que no §22, 2 encontramos a expressão “de alguma forma”, que permite afirmar uma
heresia sem afirmar claramente. Mas depois, “de alguma forma” será suprimida e a heresia da
redenção universal será claramente ensinada, notadamente por João Paulo II40.
5. Onde aparece a doutrina maçônica do humanismo?
O humanismo maçônico é uma consequência de sua gnose; porque o homem é “como Deus”, deve-
se afirmar sua dignidade e até mesmo fazer dele o centro do universo. A GS insiste muito na
“dignidade” do homem41.
Todo o capítulo 1 da GS está relacionado com a dignidade do homem, notadamente a de sua
consciência, independentemente de ele seguir ou não a lei moral: “A consciência frequentemente erra
da ignorância invencível sem perder sua dignidade”. (§16, 1).
A dignidade do homem não se perde, mesmo se ele adere ao erro: “é necessário distinguir entre o
erro, que sempre merece repúdio, e a pessoa em erro, que nunca perde a dignidade de ser uma pessoa”
(§28, 2).
Esta dignidade foi até aumentada, para todos os homens, pela Encarnação: “Uma vez que a natureza
humana como Ele assumiu que não foi anulada, por esse mesmo fato ela foi elevada a uma dignidade
divina também em nosso respeito. Pois por Sua encarnação o Filho de Deus uniu-se de alguma forma
a todos os homens”. (§22, 2).

37
Prelado francês antiliberal do século XIX.
38
Liberdade, igualdade, fraternidade.
39
Le Sel de la terre 90 (outono de 2014), p. 80–81. Dom Gaume explica em detalhes estes três motivos.
40
Ver as revisões das obras do professor Johannes Dörmann, L’Étrange théologie de Jean-Paul II et l’esprit d’Assise (A estranha teologia de João Paulo
II e o espírito de Assis) em Le Sel de la terre 5, p. 185; 16, p. 186; 33, p. 218; 46, p. 191.
41
Na realidade, não existe mais “dignidade do homem” após o pecado original; existe apenas dignidade do homem regenerado pela graça, ou seja, de
um cristão.
Esta dignidade é igual em todos os homens (§29, 3); instituições privadas e públicas estão a seu
serviço (§29, 4); estabelece a relação entre a Igreja e o mundo (§40, 1); melhor que todas as outras, a
Igreja assegura seu respeito (§41); é necessário honrá-la e promovê-la também na vida social e
econômica; a consciência desta dignidade aumentou em nosso tempo (§26 e 72), etc.
Mas a passagem mais incrível da GS continua sendo a afirmação:
“Segundo a opinião quase unânime de crentes e descrentes, todas as coisas na Terra deveriam estar
relacionadas ao homem como seu centro e seu termo”. (§12).
Dom Tissier de Mallerais julga que “esta passagem conciliar é a expressão de um antropocentrismo
que se aproxima da blasfêmia”42.
6. Onde aparece a doutrina maçônica dos direitos do homem?
O texto fala frequentemente deles (três vezes mais frequentemente que os deveres do homem),
dizendo que a Igreja, em virtude do Evangelho que lhe foi confiado, os proclama (§41, 3), que pede
que sejam desenvolvidos em todos os regimes que os reconhecem (§41, 3), que estes direitos são
universais e invioláveis (§26, 2), que é necessário respeitá-los (§65, 66, 75), protegê-los (§26, 2),
onde se diz que esta é uma das vantagens da “socialização”, (§29), promovê-los (incluindo os direitos
de “expressar a própria opinião e professar a própria religião tanto pública como privadamente”, §73),
e defendê-los (incluindo, se necessário, por meio de greves — embora em certos países civilizados a
greve seja justamente proibida pela lei, e.g. em certos cantões suíços).
Em resumo:
“Com respeito aos direitos fundamentais da pessoa, todo tipo de discriminação, seja ela social ou
cultural, seja baseada em sexo, raça, cor, condição social, idioma ou religião, deve ser superada e
erradicada como sendo contrária à intenção de Deus. Pois, na verdade, ainda deve ser lamentado que
os direitos fundamentais da pessoa ainda não estejam sendo universalmente honrados [§29, 2]. ”
Sabe-se que a doutrina dos Direitos do Homem, emitida pelas lojas maçônicas, foi proclamada pela
Revolução Francesa (depois pelos Estados Unidos) e condenada pela Igreja como a expressão de um
novo direito que não se baseia na lei natural e no Evangelho, mas na vontade geral43.
Posteriormente, os papas mais recentes procuraram proclamar uma doutrina correta dos “direitos
fundamentais” da pessoa humana diante do totalitarismo44. Seja qual for o sucesso de tal
empreendimento, o texto da GS favorece a interpretação maçônica da doutrina dos Direitos do
Homem, mesmo que apenas porque não menciona nenhuma das condenações do novo direito45.
7. A GS fala de laicismo?
Não, não mais do que os outros textos do concílio, enquanto um concílio pastoral deveria ter falado
disso, “a praga que agora infecta a sociedade”46, que consiste em negar os direitos de Nosso Senhor
Jesus Cristo sobre a sociedade. Certamente a GS pede aos católicos que se conduzam assim no âmbito
da vida pública (§43, 1), mas especifica que é “função de sua consciência cristã bem formada ver que
a lei divina está inscrita na vida da cidade terrestre”. (§43, 2). Este desvio para a “consciência” é

42
Fideliter, no. 94, p. 7. Compare a GS 12 com a segunda parte do “princípio e fundamento” de Santo Inácio (Exercícios Espirituais, no. 23B).
43
Ver Pio VI, Quod Aliquantulum de 10 de março de 1791, que refuta e condena a Declaração dos Direitos do Homem de 1789.
44
Veja a resposta do Arcebispo Lefebvre ao Cardeal Seper em Mons. Lefebvre et le Saint-Office, em Itinéraires 233, p. 68–81. Ver também Arcebispo
Marcel Lefebvre, They Have Uncrowned Him: From Liberalism to Apostasy, the Conciliar Tragedy (No Brasil, Do liberalismo à apostasia), Kansas
City, Angelus Press, 1988.
45
Sobre a questão dos direitos dos homens, ver padre Guillaume Devillers, “L’idéologie des droits de l’homme” em Le Sel de la terre 30 (outono de
1999), p. 56–61; texto republicado e melhorado em seu livro Politique chrétienne (No Brasil, Política Cristã) disponível em Éditions du Sel.
46
“…a peste que agora infecta a sociedade. Referimo-nos à praga do anti-clericalismo, seus erros e atividades impiedosas”. (Pio XI, Quas Primas, 11
de dezembro de 1925).
suficiente para anular o caráter objetivo e obrigatório da submissão da sociedade a Cristo Rei. O
laicismo é muito caro aos maçons, e é sem dúvida por isso que o concílio não o atacaria.
8. Onde aparece a realização do objetivo da Maçonaria?
O objetivo da Maçonaria é a “reconstrução do Templo”, ou seja, a reunificação da humanidade
dispersa após o episódio da Torre de Babel. Este “grandioso trabalho” maçônico é realizado sob a
orientação do Grande Arquiteto do Universo, que não é outro senão Lúcifer que procura ser adorado
no lugar de Deus e que também prepara a vinda do Anticristo. Ele liderará o governo mundial quando
o objetivo for implementado47.
Agora, vimos, o concílio estabeleceu o objetivo de trabalhar pela “unidade de toda a raça humana”
(§42, 3), e é sobretudo na GS que este desejo é expresso. Em seu prefácio, o texto une a ideia de uma
“fraternidade de todos os homens” (§3, 2) à tese gnóstica do “germe divino” semeada em todos os
homens:
“Portanto, este sagrado sínodo, proclamando o nobre destino do homem e defendendo a semente
divina que foi semeada nele, oferece à humanidade a ajuda honesta da Igreja para fomentar aquela
fraternidade de todos os homens que corresponde a este seu destino”. [§3, 2].
E em sua conclusão, a GS volta ao assunto, afirmando que este é o objetivo da constituição e que esta
“irmandade de todos os homens” inclui todos os homens, crentes e descrentes.
“Extraídas dos tesouros do ensino da Igreja, as propostas deste sínodo sagrado parecem ser de ajuda
para cada homem de nosso tempo, quer ele acredite em Deus, quer não O reconheça explicitamente.
Se adotados, eles promoverão entre os homens uma visão mais aguçada de seu destino pleno, e assim
os levarão a moldar o mundo mais para a dignidade suprema do homem, a buscar uma fraternidade
universal e mais profundamente enraizada, e a atender as urgências de nossos tempos com um esforço
galante e unificado nascido do amor”. [§91, 1].
9. Você poderia, por favor, identificar alguns outros erros ensinados ou favorecidos pela GS?
O texto sugere a inversão dos fins do casamento48 e a condenação da doutrina católica da guerra justa
(§82), favorece a objeção de consciência (§ 78 e 79), promove a democracia em detrimento de outras
formas legítimas de governo (notavelmente § 31, 3 e 7549), etc.
Pode-se até indicar o escandaloso silêncio da GS, uma constituição pastoral dedicada aos problemas
de nosso tempo, sobre o comunismo que perseguia selvaticamente os cristãos de então, apesar de um
pedido de mais de 450 bispos. Mas este silêncio foi o resultado de um pacto secreto Roma-Moscou.

Os Nove Decretos, parte I


Os três decretos sobre bispos e sacerdotes
 Christus Dominus (CD): o dever pastoral dos bispos.
 Presbyterorum ordinis (PO): o ministério e a vida dos sacerdotes.
 Optatam totius Ecclesiæ renovationem (OT): a formação dos sacerdotes.

47
O Livro do Apocalipse (Ap 13) prevê que a “Besta da terra”, uma pseudo-Igreja, servirá à “Besta do mar”, ou seja, ao governo do mundo satânico.
Ver Josef Pieper, De la Fin des temps, Éditions Ad Solem, 2013, p. 96–97; Fr. R-Th. Calmel O.P., “ de l’Antéchrist “ in Itinéraires 111, março de 1967,
p. 156.
48
§48, 1 e 50, 1. Ver também §49 sobre o amor conjugal colocado antes do §50 sobre a fecundidade do casamento. Esta inversão foi promulgada pelo
novo Código de Direito Canônico: CIC 1983, pode. 1055, §1.
49
No índice das edições do Centurião, na palavra “democracia”, lê-se: “A palavra não é empregada nos documentos conciliares, mas se encontra aí a
afirmação de suas exigências”. Ver acima, p. 10, com a nota.
1. Como a Christus Dominus (CD) descreve o bispo?
[Nota do editor: lembrete de que LG=”Lumen Gentium”].
O CD, em conformidade com a LG (especialmente seu capítulo 3), vê o bispo acima de tudo como
um pastor (exercendo o poder de governar) em detrimento de seus dois outros aspectos de doutor e
pontífice (tendo o poder de ensinar e santificar) (§1, 2, 9, 11, 16).
2. O CD mudou a doutrina relativa ao episcopado?
A principal mudança diz respeito ao poder dado pela sagração. Segundo a doutrina tradicional,
somente o poder das ordens é dado pela consagração episcopal, com aptidão para receber jurisdição50.
Mas o CD, em seu §3, afirma que os bispos recebem seu “ofício episcopal” através da “consagração
episcopal”, referindo-se à LG §21: “A sagração episcopal, juntamente com o ofício de santificar,
confere também o ofício de ensinar e de governar”.
3. Que observações você faz sobre o Presbyterorum ordinis (PO)?
O §2 (de acordo com a LG §2, 4, e 17) fala primeiro do sacerdócio de todos os batizados (“todos os
fiéis são feitos um sacerdócio santo e real”) e depois do sacerdócio ministerial (“O mesmo Senhor,
entretanto, estabeleceu ministros entre seus fiéis”), como se o último emanasse do primeiro, uma idéia
protestante.
O §9 encoraja os padres a compartilhar a atitude ecumênica do Concílio: “Cientes das prescrições
sobre ecumenismo [uma nota refere-se à UR], que não esqueçam seus irmãos que não gozam de plena
comunhão eclesiástica conosco”.
Finalmente, o §12 encoraja os sacerdotes a serem “consistentemente melhores instrumentos ao
serviço de todo o Povo de Deus” para “cumprir seus desejos pastorais de uma renovação interna da
Igreja [entendida: a formação de uma nova Igreja Conciliar], da difusão do Evangelho em toda terra
[a nova evangelização], e de um diálogo com o mundo de hoje” [o diálogo substituindo o trabalho
missionário]”. Como se pode ver, o PO expressa, nas entrelinhas, uma nova concepção do sacerdote
e de sua missão.
4. Que observações você faz sobre o Optatam totius (OT)?
O objetivo deste decreto é acrescentar “novos elementos… que correspondem às constituições e
decretos deste sagrado concílio e às condições alteradas do nosso tempo” (preâmbulo) e “formando
os futuros sacerdotes de Cristo no espírito da renovação promovida por este sínodo sagrado”. Trata-
se, portanto, de formar sacerdotes com o espírito do Concílio Vaticano II.
Em particular, eles devem ser formados para o diálogo (§15 e 19), um termo “completamente
desconhecido e não utilizado no ensino da Igreja antes do concílio”51. O OT se refere à encíclica
Ecclesiam suam de Paulo VI (6 de agosto de 1964), que introduziu a nova concepção de diálogo, em
detrimento do espírito missionário. Antes do concílio, foram formados sacerdotes para serem
missionários. Agora eles são formados para o diálogo.
O §15 é muito insuficiente no que diz respeito aos estudos filosóficos. Não há nenhuma menção a
Santo Tomás de Aquino, mas apenas a “confiar num patrimônio filosófico que é perenemente válido”
(com uma referência a Ecclesiam suam de Paulo VI); “levando em conta as investigações filosóficas
de épocas posteriores” é recomendado. Agora, a crise atual na Igreja adere essencialmente à

50
“Os bispos recebem sua jurisdição atual não com a ordenação sacerdotal, mas, direta ou indiretamente, com o mandato jurídico” (1º esquema do
Vaticano I sobre a Igreja). Ver Le Sel de la terre 29, p. 41–44.
51
Romano Amerio, Iota Unum: A Study of Changes in the Catholic Church in the XXth Century, Kansas City, Angelus Press, 2004, § 151.
introdução de uma falsa filosofia subjetiva, em detrimento da filosofia realista de Santo Tomás de
Aquino. É por isso que São Pio X propôs como principal remédio do modernismo “a filosofia
escolástica… que o Doutor Angélico nos legou” (Pascendi, §45) e insistiu vigorosamente em seu
último Motu proprio, Doctoris angelici (29 de junho de 1914): “se eles [‘professores de filosofia e
teologia sagrada’] se desviaram tanto quanto um passo, especialmente em metafísica, de Tomás de
Aquino, eles se expuseram a um grave risco”.
O §16 pede para inspirar-se na LG e SC, cujas diferenças temos visto52.
5. Dom Lefebvre não contou com o OT para a formação de seus sacerdotes?
O OT foi preparado por uma comissão presidida pelo Cardeal Giuseppe Pizzardo, que foi Prefeito da
Congregação para Seminários desde 1937 e que ocupou cargos na Cúria desde 1908, sob o reinado
de São Pio X. Não é surpreendente encontrar ali algumas boas passagens. Um parágrafo do OT (§16),
que dizia respeito ao lugar de Santo Tomás de Aquino no curso de teologia, inspirou Mons. Lefebvre
para seu seminário; ele também extraiu deste decreto a ideia de um ano de espiritualidade (§12).

Os dois decretos sobre os religiosos e os leigos[4]


 Perfectæ caritatis (PC): a renovação e adaptação da vida religiosa.
 Apostolicam actuositatem (AA): o apostolado dos leigos.
1. Que adaptação o Perfectæ caritatis (PC) realizou?
O PC adapta a vida religiosa… ao espírito do mundo.
A Igreja sempre honrou a vida religiosa, que considera como um estado de perfeição superior ao
estado ordinário dos cristãos, visando adquirir mais facilmente a santidade, ou seja, o exercício
heroico das virtudes cristãs.
Do preâmbulo, a vida religiosa é apresentada não como um estado de perfeição, mas como “um
esplêndido sinal do reino celestial”. O PC não fala de estado de vida, evita a expressão “estado de
perfeição” e menciona virtudes heroicas apenas incidentalmente à busca de perfeição ou santidade53.
Outra ausência notável neste Decreto: a virtude da religião (a palavra não aparece), que, no entanto,
caracteriza a vida religiosa ao ponto de lhe ter dado seu nome. É pela prática assídua desta virtude
que os religiosos alcançam fácil e rapidamente a perfeição da vida cristã.
Em nome da nova “virtude” da igualdade, o PC apaga a hierarquia entre os cristãos do mundo e os
religiosos54, entre os religiosos leigos e os religiosos do coro55.
Assim, o Decreto satisfez as objeções dos protestantes que não queriam ouvir falar de uma
superioridade da vida religiosa sobre a vida no mundo, nem de clérigos sobre os leigos.
Finalmente, enquanto encoraja os religiosos a preservar “sua retirada do mundo” (§7), o PC “os exorta
a ajustar seu modo de vida às necessidades modernas” (§10), “às necessidades de nosso tempo” (§18),
“às exigências do tempo e… às condições modernas” (§20). E de fato a adaptação “com as

52
“Da mesma forma, o ensino do direito canônico e da história da Igreja deve levar em conta o mistério da Igreja, de acordo com a Constituição
dogmática De Ecclesia [Lumen gentium] promulgada por este sínodo sagrado. […] A sagrada liturgia […] deve ser ensinada de acordo com a mente
dos artigos 15 e 16 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia [Sacrosanctum Concilium]”.
53
A palavra “perfeição” é empregada uma vez na citação de São Paulo para designar a caridade (“vínculo de perfeição”) e a palavra “santidade” uma
vez para caracterizar os contemplativos que emprestam “brilho ao povo de Deus que se inspira em seu exemplo”. A expressão “estado religioso” aparece
apenas uma vez, no final do documento.
54
Enquanto o antigo código de 1917 dividia as pessoas em três categorias (clérigos, religiosos, leigos), o novo código de 1983 — aplicando o Vaticano
II — divide o “Povo de Deus” (sic) em três grupos assim ordenados: os fiéis de Cristo, a constituição hierárquica da Igreja, e os institutos de vida
consagrada (nos quais os religiosos são diluídos).
55
“Que todos os membros sejam mais estreitamente unidos pelo vínculo do amor fraterno, aqueles que são chamados de irmãos leigos, assistentes, ou
algum nome semelhante, devem ser atraídos de perto para a vida e o trabalho da comunidade. A menos que as condições realmente sugiram algo mais,
deve-se ter o cuidado de que haja apenas uma classe de Irmãs nas comunidades de mulheres”. (§ 15).
necessidades de nossa era” (§2) será mais aplicada do que a “separação do mundo” que caracterizou
a vida religiosa e o espírito no passado.
Não é surpresa que ao revisar as constituições das ordens religiosas56 após o Concílio, a vida religiosa
em toda a Igreja tenha sido destruída em poucos anos. Os poucos religiosos que permanecem hoje —
além dos resistentes que tentam, contra os ventos e as marés, conservar a antiga concepção de vida
religiosa — dificilmente se distinguem dos leigos, e não apenas pelo fato de não usarem um hábito!
(Além disso, como um aparte, o PC também permitiu a adaptação do hábito religioso57).
2. Quais são as deficiências do Apostolicam actuositatem (AA)?
Este Decreto tende a promover indevidamente os leigos, a autonomia da ordem natural
ambiguamente, a Ação Católica imprudentemente, o falso ecumenismo, e se cala sobre o flagelo do
laicismo.
3. Como o AA promove os leigos?
A promoção dos leigos é feita sob o pretexto de lutar contra o que os progressistas chamam de
“clericalismo” e que, na realidade, é apenas a vontade divina de uma hierarquia entre os clérigos e os
leigos58.
Sem suprimir explicitamente esta hierarquia, este Decreto abre portas que servirão em grande parte,
após o Concílio, para permitir que os leigos entrem no governo da Igreja.
Alguns exemplos de frases ambíguas exageram o papel dos leigos:
“A vocação cristã por sua própria natureza é também uma vocação ao apostolado” (§2): deve-se
lembrar que o apostolado dos leigos é por natureza diferente do apostolado da hierarquia, e que —
exceto em casos particulares — os leigos são santificados primeiro pelo bom exercício de seu dever
de Estado: a principal missão de uma mãe de família é educar bem seus filhos, e não ir realizar um
apostolado fora de sua casa!
“Mas os leigos também participam do ofício sacerdotal, profético e real de Cristo e, portanto, têm sua
própria participação na missão de todo o povo de Deus na Igreja e no mundo”. (§2): exagero do
“sacerdócio” dos leigos. Para o cristão leigo, este “sacerdócio” consiste em oferecer-se em sacrifício
como uma hóstia santa (Rm 12,1), não em exercer um apostolado “na Igreja e no mundo”.
4. Pode-se falar de uma autonomia da ordem natural?
O concílio, em vários de seus textos, abre o caminho para uma forma de naturalismo ao insistir na
autonomia da ordem natural (§759). O AA também fala das “muitas áreas da vida humana [que] se
tornaram cada vez mais autônomas” (§2), da “autonomia da família” (§11) e da “autonomia de…
várias associações e empresas leigas” (§26).

56
“Portanto, que as constituições… sejam devidamente reeditadas e… adaptadas aos Decretos deste Sínodo sagrado”. (§3).
57
“O hábito religioso… deve ser… adequado às circunstâncias de tempo e lugar e às necessidades do ministério envolvido”. Os hábitos tanto dos
religiosos como das religiosas que não estão de acordo com estas normas devem ser mudados”. (§ 17).
58
Certamente os clérigos podem abusar da superioridade que têm por causa de seu estado clerical. Pode haver um clericalismo censurável. Mas uma
coisa é lutar contra o abuso de uma hierarquia legítima e outra coisa é querer suprimir esta hierarquia.
59
Lê-se neste mesmo §7: “Todas as coisas que compõem a ordem temporal, ou seja, as coisas boas da vida e a prosperidade da família, cultura, assuntos
econômicos, as artes e profissões, as leis da comunidade política, as relações internacionais e outros assuntos deste tipo, assim como seu
desenvolvimento e progresso, não só ajudam a alcançar o objetivo final do homem, mas também possuem seu próprio valor intrínseco”. Certamente as
realidades naturais têm um valor (natural), mas o principal valor desses bens é servir como um meio para o fim sobrenatural!
É verdade que existem leis (“lei” é chamado de “nomos” em grego) próprias da ordem natural, da
família e das diversas atividades humanas, mas é perigoso falar de autonomia em uma época tão
distinta pelo espírito de independência e dificuldade em se submeter a uma hierarquia.
Não pode ser uma coincidência que o “maio de 1968” [tumultos na França] tenha ocorrido três anos
após o fim do concílio, e que hoje toda intervenção da Igreja no domínio temporal e laico seja
facilmente interpretada como clericalismo.
5. O que o AA diz sobre a ação católica?
Um parágrafo inteiro (§20) do AA elogia a ação católica entendida segundo Pio XI como uma
“colaboração dos leigos no apostolado da hierarquia”. “Este santíssimo concílio recomenda
seriamente estas associações [de ação católica]… que… produziram excelentes resultados para o
reino de Cristo. Estas sociedades foram merecidamente recomendadas e promovidas pelos papas e
por muitos bispos”.
Mas sabe-se como a ação católica, inicialmente concebida por São Pio X como um movimento de
católicos com o objetivo de restaurar uma sociedade católica, mais tarde tornou-se um movimento
progressista, um suposto apostolado “pelo meio ambiente”, na verdade um centro de agitação e
protesto na Igreja.
6. Como o AA se sacrifica ao ecumenismo?
Tendo o Vaticano II um objetivo ecumênico, era necessário que aparecesse no decreto do AA: “A
herança quase comum do Evangelho e do dever comum do testemunho cristão resultante dele
recomendam e frequentemente exigem a cooperação dos católicos com outros cristãos… valores
humanos comuns, não raro exigem a cooperação entre cristãos que buscam objetivos apostólicos e
aqueles que não professam o nome de Cristo, mas reconhecem esses valores. Por esta… cooperação…
os leigos dão testemunho de Cristo, o Salvador do mundo, assim como da unidade da família
humana”. (§ 27).
Infelizmente, como será visto com o decreto UR, o ecumenismo promovido pelo Concílio é um falso
ecumenismo visando não à conversão de não católicos, mas à promoção maçônica da unidade da
humanidade: que posteriormente levaram aos horrores das várias reuniões “em Assis” e do diálogo
inter-religioso pós-conciliar.

Os Nove Decretos, parte II


Os dois decretos sobre a atividade missionária e os meios de comunicação social
 Ad Gentes (AG): a atividade missionária da Igreja.
 Inter mirifica (IM): os meios de comunicação social.
1. Que tipo de caridade é promovida pelo Ad Gentes (AG)?
A atividade missionária é uma consequência da caridade que trabalha para a salvação das almas. Mas
o AG tem uma falsa concepção de caridade: “A caridade cristã se estende verdadeiramente a todos,
sem distinção de raça, credo ou condição social”. (§12). A caridade cristã certamente se estende a
todos os homens, mas com distinções. Há uma ordem na caridade: deve-se primeiro amar aqueles que
estão mais próximos, e especialmente nossos irmãos na fé: “Logo, enquanto temos tempo, façamos
bem a todos, mas principalmente aos irmãos na fé. ” (Gl 6,10).
2. O que diz o AG sobre o ecumenismo e a liberdade religiosa?
O ecumenismo também obriga o AG a se sacrificar pelo modelo:
“O espírito ecumênico deve ser alimentado nos neófitos, que devem levar em conta que os irmãos
que crêem em Cristo são discípulos de Cristo, renascidos no batismo, participantes com o Povo de
Deus em muitas coisas boas. Na medida em que as condições religiosas o permitam, a atividade
ecumênica deve ser promovida de tal forma que, excluindo qualquer aparência de indiferença ou
confusão por um lado, ou de rivalidade insalubre por outro, os católicos devem cooperar num espírito
fraterno com seus irmãos separados, entre as normas do Decreto sobre Ecumenismo, fazendo diante
das nações uma profissão de fé comum, na medida em que suas crenças sejam comuns, em Deus e
em Jesus Cristo, e cooperando em projetos sociais e técnicos, assim como em projetos culturais e
religiosos. Que cooperem especialmente em nome de Cristo, seu Senhor comum: que Seu nome seja
o vínculo que os une! Esta cooperação deve ser empreendida não somente entre pessoas privadas,
mas também, sujeita à aprovação do Ordinário local, entre as igrejas ou comunidades eclesiais e suas
obras. ” (§15).
O conteúdo deste parágrafo e a referência ao decreto UR mostram que o ecumenismo em questão
aqui é o falso ecumenismo conciliar que foi condenado antecipadamente por Pio XI em Mortalium
animos (6 de janeiro de 1928).
AG também diz: “A Igreja proíbe estritamente forçar qualquer pessoa a abraçar a Fé, ou atrair ou
seduzir as pessoas através de artimanhas preocupantes. Pelo mesmo motivo, ela também insiste
fortemente neste direito, de que ninguém se afaste da Fé por causa de vexações injustas por parte de
outros”. (§13).
Esta frase seria bem compreendida se não fizesse uma nota de rodapé para a Dignitatis Humanæ, 2,
4, 10. Assim, deve-se entender por “artimanhas preocupantes” uma leve pressão moral exercida pelos
poderes públicos que reconheceriam — como é seu direito — a religião católica como a religião do
Estado.
3. O que o Inter Mirifica (IM) diz sobre as “maravilhas da tecnologia”?
Em seu primeiro parágrafo, o IM lista os meios de comunicação social (imprensa, cinema, rádio,
televisão e outras tecnologias semelhantes) como “Entre as maravilhosas descobertas tecnológicas
que os homens de talento, especialmente na época atual, fizeram com a ajuda de Deus”. Ter-se-ia
querido um pouco menos de elogios a estas tecnologias, tornando-se rapidamente um poderoso meio
de deterioração moral.
4. O que diz o IM sobre o direito à informação?
O IM exige um “direito à informação”, desde que haja “pleno respeito às leis da moralidade e aos
legítimos direitos e dignidade do indivíduo”. No entanto, a DH lista a falsa liberdade religiosa entre
os direitos do homem, e a GS — como temos visto — ensina erros sobre a dignidade do homem e os
direitos do homem. O “direito à informação” não é, portanto, adequadamente limitado: não está em
conformidade com a doutrina da Igreja sobre a liberdade de imprensa60.
Não é surpreendente que em 2015, cinquenta anos após o concílio, após o ataque contra a revista
Charlie-Hebdo61, os bispos da França tenham assinado um texto a favor da “liberdade de expressão”:

60
“Aqui devemos incluir essa liberdade prejudicial e nunca suficientemente denunciada para publicar quaisquer escritos e divulgá-los ao povo, que
alguns ousam exigir e promover com um clamor tão grande”. (Gregório XVI, Mirari Vos, 15 de agosto de 1832). — “Os homens têm o direito livre e
prudente de propagar por todo o Estado o que é verdadeiro e honroso, para que o maior número possível possa possuí-los; mas as opiniões mentirosas,
do que nenhuma praga mental é maior, e os vícios que corrompem o coração e a vida moral devem ser diligentemente reprimidos pela autoridade
pública, para que não trabalhem insidiosamente a ruína do Estado”. (Leão XIII, Libertas præstantissimum, 20 de junho de 1888)
61
Jornal blasfemo que ataca regularmente Nosso Senhor, Nossa Senhora e a Igreja com desenhos animados horríveis.
“Somos unânimes nas defesas dos valores da República, liberdade, igualdade, fraternidade e, em
particular, na defesa da liberdade de expressão. Comprometemo-nos a continuar este curso de
partilha, de diálogo e de fraternidade”.

Os dois decretos sobre as Igrejas Orientais e sobre o ecumenismo


 Orientalium Ecclesiarum (OE): as Igrejas Católicas Orientais.
 Unitatis redintegratio (UR): o ecumenismo.
1. Quais novidades o texto Orientalium Ecclesiarum (OE) contém a respeito das Igrejas
Católicas Orientais?
Este decreto afirma alistar as Igrejas Católicas Orientais (também chamadas “uniatas” porque não são
cismáticas como os ortodoxos, mas unidas a Roma) no falso ecumenismo conciliar.
Também, isto é recomendado a eles: “As Igrejas Orientais em comunhão com a Sé Apostólica de
Roma têm o dever especial de promover a unidade de todos os cristãos, especialmente os cristãos
orientais, de acordo com os princípios do decreto “Sobre o Ecumenismo” deste sagrado concílio. ”
(§24).
2. Qual é o ensinamento deste Decreto a respeito da Communicatio in sacris?
É uma pura contradição que põe em perigo o princípio da não-contradição, e também a fé católica.
O Decreto começa lembrando exatamente a proibição da communicatio in sacris:
“A participação comum no culto (communicatio in sacris) que prejudica a unidade da Igreja ou
envolve a aceitação formal do erro ou do perigo de aberração na fé, do escândalo e do indiferentismo,
é proibida pela lei divina”. (§26).
Mas este simples lembrete é seguido por um “mas” em que se diz o contrário: “Por outro lado, a
experiência pastoral mostra claramente que, em relação aos nossos irmãos orientais”…
E sem qualquer argumento doutrinário, chega a contradizer o princípio proposto, ao mesmo tempo
em que especifica que os princípios permanecem propostos:
“Sem prejuízo dos princípios já mencionados anteriormente, os cristãos orientais que estão de fato
separados de boa fé da Igreja Católica, se eles pedirem por sua própria vontade e tiverem as
disposições corretas, podem ser admitidos aos sacramentos da Penitência, da Eucaristia e da Unção
dos Enfermos. Além disso, os católicos podem pedir esses mesmos sacramentos aos ministros não-
católicos cujas igrejas possuem sacramentos válidos, tantas vezes quanto a necessidade ou um
benefício espiritual genuíno recomenda tal curso e o acesso a um padre católico é física ou
moralmente impossível. Além disso, dados os mesmos princípios, a participação comum
[communicatio in sacris] dos católicos com seus irmãos separados orientais em funções, coisas e
lugares sagrados é permitida por uma causa justa”. [§27 e 28].
Estamos em contradição com a doutrina e a prática da Igreja pré-conciliar. Remetemos os leitores
para a Sel de la terre 40, pp. 79 a 81, onde será encontrada a doutrina tradicional sobre communicatio
in sacris. Aqui estão alguns trechos:
“É proibido que os Sacramentos da Igreja sejam ministrados aos hereges e cismáticos, mesmo que os
solicitem e estejam de boa fé, a menos que de antemão, rejeitando seus erros, eles se reconciliem com
a Igreja”. (Código de Direito Canônico de 1917, cân. 731, §2).
“Não se pode jamais pedir, exceto em caso de necessidade, um sacramento de um ministro herético
ou cismático; aqueles que violarem esta defesa cairão sob a pena de excomunhão contra os credentes
[aqueles que aderirem à heresia]. Em caso de necessidade extrema, de perigo de morte próximo, só é
permitido pedir os sacramentos necessários (batismo ou absolvição ou, por falta de absolvição,
extrema unção). Se houver risco de perversão, deve-se contentar com um ato de contrição perfeita”.
(Dicionário de Teologia Católica, artigo “heresia”, escrito por A. Michel).
3. O que se deve pensar do Decreto Unitatis redintegratio (UR) sobre o ecumenismo?
É um dos piores textos do Concílio. Só ele mereceria um estudo detalhado62. Indicaremos aqui apenas
os principais erros:
4. O propósito da Encarnação é “a unidade da raça humana”?
Sabe-se que a solução mais comum para a questão do motivo da Encarnação é que Deus encarnou
“para nossa salvação” (Credo da Missa).
Mas, até então, nenhum teólogo havia pensado no motivo proposto pelo concílio, “a unidade da raça
humana”: “O que revelou o amor de Deus entre nós é que o Pai enviou ao mundo Seu Filho unigênito,
para que, sendo feito homem, Ele pudesse, por Sua redenção, dar nova vida a toda a raça humana e
unificá-la”. (§2).
É verdade que Nosso Senhor quer reunir suas ovelhas em seu aprisco, mas é necessário, para ser uma
ovelha, começar por acreditar nEle. Aqueles que se recusam a acreditar não podem participar desta
unidade.
“A unidade da raça humana” não é o propósito da Encarnação, mas o projeto utópico procurado pela
Maçonaria.
Para atingir este objetivo, o Concílio irá desenvolver novos conceitos: “comunhão imperfeita”,
“incorporação plena”, e “elementos da Igreja”.
5. A concepção de “comunhão imperfeita” é tradicional?
“Mas nos séculos seguintes surgiram dissensões muito mais sérias e comunidades bastante grandes
vieram a ser separadas da plena comunhão com a Igreja Católica […]. Pois os homens que acreditam
em Cristo e que foram verdadeiramente batizados estão em comunhão com a Igreja Católica, mesmo
que essa comunhão seja imperfeita”. (§3).
O conceito de comunhão plena ou imperfeita é uma invenção do Concílio Vaticano II63. Ou se
preenche as três condições para pertencer à Igreja — batismo, fé, submissão à hierarquia legítima —
e se está em comunhão com ela, ou falta uma condição e não se está em comunhão: “Est est, non
non”. (Mt. 5,37).
Mas o que é particularmente grave é a sugestão de que uma comunhão tão imperfeita permite que se
salve sem que seja necessário abandonar a heresia ou o cisma.
6. Qual é o perigo para a Igreja de uma “incorporação plena”?
Para ser “plenamente incorporada” na Igreja, o UR nos diz que, além das três condições usuais, é
necessária uma quarta condição: “possuir o Espírito de Cristo” (LG §14)64. Isto significa que os
pecadores, assim como os protestantes (UR 3), não estão totalmente incorporados à Igreja.

62
Ver Pe. Pierre-Marie, “Bref examen critique de Unitatis Redintegratio” in L’Unité spirituelle du genre humain dans la religion de Vatican II — Études
théologiques — Troisième Symposium de Paris, Paris, Vu de haut hors série, 2005, p. 163–192.
63
Ver Pe. Pierre-Marie, “L’Unité de l’Église”, La Tentation de la “la cuménisme”, Versailles, Courrier de Rome, 1999, e o editorial de Sel de la terre
64
Ver Pe. Pierre-Marie, “Ayant l’esprit du Christ?”, Sel de la terre 49 (verão de 2004), p. 6.
O perigo é formular uma Igreja com duas categorias de membros: a categoria dos cristãos perfeitos
(os “puros” totalmente incorporados) e a dos cristãos imperfeitos não totalmente incorporados. E
como os sacramentos são dados em certos casos aos protestantes e cismáticos, por que não os dar
também aos pecadores?
7. Como o conceito de “elementos de Igreja” introduz uma ideia falsa?
“Além disso, alguns e mesmo muitos dos elementos e dons significativos que juntos vão para
construir e dar vida à própria Igreja, podem existir fora dos limites visíveis da Igreja Católica: a
palavra escrita de Deus; a vida da graça; fé, esperança e caridade, com os outros dons interiores do
Espírito Santo, e elementos visíveis também. Todos estes, que vêm de Cristo e conduzem de volta a
Cristo, pertencem por direito à única Igreja de Cristo”. (§3).
Antes do Vaticano II, falava-se de “remanescentes”, para designar o que resta da verdadeira Igreja
nas comunidades que estão separadas de seu seio. Este termo faz pensar em “ruínas” e foi considerado
muito negativo. Assim, optou-se pela noção de “elementos”, também usada na LG, no. 8. Mas
fazendo isto introduziu uma ideia falsa, sugerindo que estes elementos são suficientes por si mesmos
para levar a pessoa a Cristo, sem a necessidade de desejar pertencer à Igreja.
Note que esta nova teologia pode abrir a porta para um certo reconhecimento de uniões ilegítimas
(concubinato, “casamento experimental”, uniões não-naturais, etc.), como o Cardeal Kasper
observou65 e como Le Sel de la terre indicou na ocasião66.
8. Qual é o principal erro deste Decreto?
O decreto tende a destruir o dogma da necessidade da Igreja Católica para a salvação. Além do que
dissemos a respeito da “comunhão imperfeita” e dos “elementos da Igreja”, há a afirmação de que as
seitas heréticas ou cismáticas também são classificadas como “meios de salvação” que o Espírito de
Cristo não se abstém de usar (§3)67.
Se se compreende esta afirmação no sentido de que o Espírito Santo pode usar estas seitas para salvar
seus membros mesmo quando eles não têm qualquer desejo de deixá-los, esta proposição é herética,
porque se opõe diretamente ao dogma “fora da Igreja não há salvação”68. Para ser salvo, é necessário
pelo menos o desejo implícito de pertencer à Igreja Católica, ou seja, o desejo de deixar estas seitas.
Se se compreende esta afirmação no sentido de que o Espírito Santo usa estas seitas para dar a seus
membros o desejo de pertencer à Igreja Católica, é, no mínimo, irrealista.
Mas a pior frase poderia ser: “as Igrejas e Comunidades separadas […] não foram, de forma alguma,
privadas de significado e importância no mistério da salvação”. Isto é negar a unidade da intenção
divina de salvar pela Igreja que Jesus fundou e não por outra. Atribuir um propósito divino (“mistério

65
“A doutrina da Igreja não é um sistema fechado: o Concílio Vaticano II nos ensina que há um desenvolvimento, o que significa que é possível
aprofundar esta questão. Pergunto-me se é possível um entendimento mais profundo, semelhante ao que vimos na eclesiologia: embora a Igreja Católica
seja a verdadeira Igreja de Cristo, há elementos de eclesialidade além das fronteiras institucionais da Igreja também. Não poderiam alguns elementos
do casamento sacramental também ser reconhecidos nos casamentos civis em certos casos? Por exemplo, o conceito de compromisso vitalício, amor e
cuidado mútuos, vida cristã e uma declaração pública de compromisso que não existe nos casamentos de direito comum [ou seja, uniões livres-N.E.]”.
Vatican Insider, 18 de setembro de 2014.
66
Ver Le Sel de la terre 43 (inverno 2002–2003, p. 252). Em uma revisão sobre um artigo do Padre de La Soujeole que defendeu a nova teologia
conciliar sobre a Igreja, o revisor escreveu: “O que nosso dominicano também não vê são as possíveis aplicações de sua teoria do ‘conjunto potencial’.
Portanto, as uniões ilegítimas (concubinato, ‘casamento experimental’, união não natural, etc.) também poderiam ser qualificadas como partes potenciais
do casamento. Então, por que a Igreja não as abençoa? ”
67
“Segue-se que as Igrejas e Comunidades separadas como tais, embora acreditemos que elas sejam deficientes em alguns aspectos, não foram de forma
alguma privadas de significado e importância no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não se absteve de usá-las como meios de salvação que
derivam sua eficácia da própria plenitude da graça e da verdade confiada à Igreja”. (UR 3, 4).
68
“Agora, entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar, há também aquela declaração infalível pela qual nos é ensinado que
não há salvação fora da Igreja”. Carta do Santo Ofício ao arcebispo de Boston, 8 de agosto de 1949, DS 3866. — Sobre este dogma, ver Abade François
Laisney, “Le baptême de désir”, em Le Sel de la terre 11 e 12; Hugon (père) Édouard, Hors de l’Église point de salut ?, Eguelshardt, Clovis, 1995
(revisão em Le Sel de la terre 14).
de salvação”) à ação de uma seita parece ser novamente uma blasfêmia a sabedoria de Deus e a
unidade de Seu plano.
9. O que mais você nota neste decreto?
Ele inaugura a era do arrependimento e sugere que a Igreja Católica tem faltas perdoáveis para os
“irmãos separados”: “pedimos humildemente perdão a Deus e a nossos irmãos separados” (§7).
Ele abre a porta para a communicatio in sacris: “dois princípios principais que regem a prática desse
culto comum [communicatio]: primeiro, o de testemunhar a unidade da Igreja, e segundo, o de
compartilhar os meios de graça” (§8). Na prática, o segundo princípio servirá para sacrificar o
primeiro.
Recusa-se a empregar “polêmicas” nas relações com “os irmãos separados”, suprimindo em um golpe
da caneta uma boa parte da Tradição.
Ele introduz a ideia de que “na doutrina católica existe uma ‘hierarquia’ de verdades” (§11), sem
lembrar que a “última” verdade de fé é tão necessária quanto a primeira para a salvação.
O §12 espera que “antes que o mundo inteiro deixe todos os cristãos confessarem sua fé no Deus
Trino”, colocando a fé divina (dos católicos) e a fé humana dos hereges no mesmo nível.
Este mesmo parágrafo espera a colaboração social dos “cristãos”, sem levar em conta o perigo desta
colaboração e a mudança sobre este ponto com a disciplina anterior da Igreja.
O §14 sugere que ao longo dos séculos a Sé Romana não exerceu a primazia, o que implica que as
Igrejas Orientais particulares são irmãs da Igreja Romana, e, portanto, não estavam sujeitas à sua
jurisdição ordinária, e que as Igrejas Orientais cismáticas de hoje são as mesmas que foram fundadas
pelos Apóstolos, como se a cisão não introduzisse nenhuma ruptura.
O §15 também afirma que os cismáticos orientais se beneficiam sem reservas da “sucessão
apostólica”, e recomenda “algum culto em comum (communicatio in sacris), dadas as circunstâncias
adequadas e a aprovação da autoridade eclesiástica”.
O §16 afirma que certos aspectos do mistério revelado às vezes foram melhor compreendidos e
explicados pelos orientais (cismáticos) do que pelos católicos.
O §19 reduz a diferença entre a fé católica e a heresia protestante às diferenças “na interpretação da
verdade revelada”.
O §23 afirma que os “irmãos separados”, portanto hereges, têm a “fé em Cristo”, como se fosse
sistematicamente o caso; que “a vida cristã diária desses irmãos é alimentada por sua fé em Cristo e
fortalecida pela graça do Batismo”, ao passo que isso só é verdade para as crianças ou para os hereges
na ignorância invencível; e que eles têm “uma verdadeira caridade”, ao passo que a caridade não
existe sem a fé sobrenatural.
10. Que julgamento você emite sobre toda a doutrina do decreto?
A doutrina do UR desvia-se impressionantemente, em seu conjunto como em seus detalhes, da
teologia católica sobre as relações entre a Igreja e outras seitas cristãs, tal como foi expressa nos
esquemas preparatórios do Concílio Vaticano I, no esquema “Ottaviani” do Vaticano II, e em
encíclicas papais, em particular em Satis Cognitum de Leão XIII (29 de junho de 1896), Mortalium
Animos de Pio XI (6 de janeiro de 1928), e Mystici Corporis de Pio XII (29 de junho de 1943).
As três Declarações, parte I
Dignitatis Humanæ (DH): liberdade religiosa
1. Qual é a significância da Dignitatis humanæ (DH) para a liberdade religiosa?
Embora DH seja apenas uma Declaração, portanto em princípio um texto menor, ela tem uma
importância muito grande69. O Cardeal Bea, após sua visita secreta com o secretário geral do
Conselho Ecumênico das Igrejas, preparou um esquema sobre este tema, que provocou um grave
incidente durante a última sessão da comissão central preparatória: Mons. Lefebvre falou
freqüentemente do confronto entre o Cardeal Bea e o Cardeal Ottaviani, porque pode ser visto como
um prelúdio do confronto entre as “duas Romas”70.
Ao adotar o “princípio essencial do Estado moderno”71, o concílio aceitou uma das reivindicações
fundamentais da Maçonaria: “Os cristãos não devem esquecer que todos os caminhos [ou seja, todas
as religiões] levam a Deus e sustentam esta corajosa noção de liberdade de pensamento que — e
pode-se realmente falar a este respeito de uma revolução saindo de nossas lojas maçônicas — está
maravilhosamente espalhada sobre a cúpula de São Pedro”72.
2. Qual é o ensinamento fundamental da DH?
A DH (§2) ensina que “a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade significa
que todos os homens devem ser imunes à coerção por parte de indivíduos ou de grupos sociais e de
qualquer poder humano, de tal forma que ninguém deve ser obrigado a agir de forma contrária a suas
próprias crenças, seja em particular ou publicamente, seja sozinho ou em associação com outros,
dentro dos justos limites”. Este direito “tem seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana”;
“deve ser reconhecido na lei constitucional… e, portanto, deve se tornar um direito civil”; e “continua
a existir mesmo naqueles que não cumprem sua obrigação de buscar a verdade e aderir a ela e o
exercício deste direito não deve ser impedido, desde que a justa ordem pública seja observada”.
3. Este ensino é oposto ao ENSINO tradicional da Igreja? 73
Sim, este ensino é oposto a numerosos textos magistrais, por exemplo,
– A Mirari vos (15 de agosto de 1832) de Gregório XVI:
“Esta fonte vergonhosa de indiferentismo dá origem àquela proposta absurda e errônea que afirma
que a liberdade de consciência deve ser mantida para todos. Espalha a ruína nos assuntos sagrados e
civis, embora alguns se repitam vezes sem conta com o maior descaramento que daí advém alguma
vantagem para a religião. “Mas a morte da alma é pior que a liberdade de erro”, como Agostinho
costumava dizer”.
– A Quanta Cura (8 de dezembro de 1864) por Pio IX:
“E, contra a doutrina da Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, eles não hesitam em afirmar que
‘essa é a melhor condição da sociedade civil, na qual nenhum dever é reconhecido, como ligado ao
poder civil, de coibir, por meio de penalidades decretadas, os infratores contra a religião católica,

69
“Inesperadamente, o encontro com os grandes temas da época moderna não aconteceu na grande Constituição Pastoral Gaudium et spes, mas sim em
dois documentos menores, cuja importância só gradualmente veio à tona no contexto da recepção do concílio. Primeiro, há a Declaração sobre a
Liberdade Religiosa [Dignitatis humanæ]” (Bento XVI em Osservatore Romano de 11 de outubro de 2012).
70
Sobre este confronto, ver Le Sel de la terre 39, pp. 117–118.
71
Bento XVI, discurso na Cúria em 22 de dezembro de 2005.
72
Yves Marsaudon, L’eueucuménisme vu par un franc-maçon de tradition, éd. Vitiano, Paris, 1964, p. 121. O barão Marsaudon é um maçom de 33°
grau, ministro do Conselho Supremo da França da R.E.A.A. (Rito Escocês Antigo e Aceito).
73
Para mais detalhes, veja os trabalhos de Mons. Lefebvre: “They Have Uncrowned Him”, “From Liberalism to Apostasy”, “The Conciliar Tragedy”
(No Brasil, “Do liberalismo à apostasia), Angelus Press, 1988, e The Dubia: “My doubts About the Vatican II Declaration of Religious Liberty”,
Angelus Press, 2001. Veja também: Pe. Pierre-Marie, “La déclaration sur la liberté religieuse du concile Vatican II est-elle compatible avec la
Tradition?” in Le Sel de la terre 2, p. 7.
exceto na medida em que a paz pública possa exigir’. E com esta idéia do governo social,
absolutamente falsa, não hesitam em consagrar aquela opinião errônea, em extremo perniciosa à
Igreja católica e à saúde das almas, chamada por Gregório XVI, Nosso Predecessor, de feliz memória,
loucura, isto é, que “a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que
todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir…”. Ao sustentar afirmação tão temerária, não
pensam nem consideram que com isso pregam a liberdade de perdição. ”
– E, sobretudo, à condenação das propostas do Syllabus de Pio IX (8 de dezembro de 1864):
77. “Nos dias de hoje não é mais conveniente que a religião católica seja considerada a única religião
do Estado, com exclusão de todas as outras formas de culto”.
Alocução “Nemo Vestrum”, 26 de julho de 1855.
78. “Assim, foi sabiamente decidido por lei, em alguns países católicos, que as pessoas que vierem
residir neles deverão desfrutar do exercício público de seu próprio culto peculiar. ”
Alocução “Acerbissimum”, 27 de setembro de 1852.
79. “Além disso, é falso que a liberdade civil de toda forma de culto, e o pleno poder, dado a todos,
de manifestar abertamente e publicamente quaisquer opiniões e pensamentos, conduzem mais
facilmente à corrupção da moral e da mente do povo, e à propagação da praga do indiferentismo. ”
Alocução “Nunquam Fore”, 15 de dezembro de 1856.
4. Este ensino é contrário à PRÁTICA tradicional da Igreja?74
De fato, de Constantino ao Vaticano II, a Igreja sempre pediu aos príncipes cristãos que proibissem
falsos cultos, “exceto por real necessidade de tolerância”75. Nunca considerou que “não perturbar a
ordem pública” é um motivo necessário de tolerância, exceto para dar a esta expressão um significado
diferente daquele do Vaticano II.
Mas, como disse Santo Tomás de Aquino: “O costume da Igreja tem uma autoridade muito grande e
deve ser observado zelosamente em todas as coisas… Por isso, devemos obedecer à autoridade da
Igreja e não à de um Agostinho ou de um Jerônimo ou de qualquer doutor”. (II-II, q. 10, a. 12).
Assim, é certo que a declaração DH dá um falso ensinamento.
5. Será que a Igreja Conciliar não percebe a contradição?
A Igreja Conciliar percebe a dificuldade de conciliar os ensinamentos. Afirmou com autoridade que
a reconciliação é possível (porque, para eles, o Vaticano II não pode estar equivocado) e gerou muitos
estudos para tentar conciliar os dois ensinamentos, mas sem sucesso, cada estudo desenvolvendo um
novo argumento de como o anterior não é suficiente76. Finalmente, durante as discussões doutrinárias,
a Igreja Conciliar convidou a Fraternidade de São Pio X a “entrar na Igreja” para ajudá-la a encontrar
uma solução!
De fato, a solução mais simples e honesta é a do futuro Bento XVI que admitiu: “há decisões
magistrais que não podem ser a palavra final sobre um determinado assunto como tal, mas, apesar do
valor permanente de seus princípios, são principalmente também um sinal de prudência pastoral, uma
espécie de política provisória. Seu núcleo permanece válido, mas os detalhes determinados pelas

74
Para mais detalhes, ver Pe. Pierre-Marie, “A Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Concílio Vaticano II é compatível com a Tradição? ” Em Le
Sel de la terre 2, p. 7.
75
Cardeal Billot, de Ecclesia, q. 19, a. 1, § 3.
76
Estudamos vários deles em Le Sel de la terre. Veja por exemplo: Le Sel de la terre 30, p. 202.
circunstâncias podem precisar de correção. A este respeito, provavelmente se recordarão […] as
declarações pontifícias do século passado sobre a liberdade religiosa”77.
6. A DH é baseada em uma falsa filosofia?
Sim, DH baseia-se em uma filosofia personalista ao considerar que o bem comum “consiste
principalmente na proteção dos direitos e no cumprimento dos deveres da pessoa humana” (§6).
Sem falar da origem maçônica da doutrina dos Direitos do Homem, é pelo menos paradoxal definir
o bem comum como a proteção dos direitos de pessoas particulares. O bem particular é ordenado para
o bem comum, e não o contrário. A filosofia personalista, colocando a pessoa acima da sociedade, é
a fonte de um espírito de protesto, egoísmo e subversão.

As três Declarações, parte II


 Nostra ætate (NA): Religiões não-cristãs
1. Qual é a significância da Nostra ætate (NA) nas relações com as religiões não-cristãs?
Como a DH, é uma declaração, um texto de pouca importância em princípio. E, no entanto, também
é um dos documentos mais importantes do Concílio78. Para favorecer a unidade da raça humana, não
basta promover o ecumenismo entre os cristãos; também é necessário inaugurar o diálogo inter-
religioso.
2. Como a NA dá um novo ensinamento?
Nunca a Igreja elogiou outras “religiões”. Ela se apresentou como a única religião verdadeira, a única
que realmente merece este nome, porque só ela vincula [religa] o homem a Deus.
Mas este documento descreve positivamente as falsas religiões, ignorando os aspectos negativos (da
jihad dos muçulmanos, sacrifícios humanos em várias “religiões”, idolatria terrível, infâmias morais,
etc.79). Aqui estão alguns exemplos:
“No hinduísmo, os homens contemplam o mistério divino e o expressam através de uma inesgotável
abundância de mitos e através da busca de investigação filosófica. […] O budismo, em suas diversas
formas, percebe a insuficiência radical deste mundo mutável; ele ensina uma maneira pela qual os
homens, num espírito devoto e confiante, podem ser capazes de adquirir o estado de perfeita
libertação, ou alcançar, por seus próprios esforços ou por meio de ajuda superior, a iluminação
suprema. […] A Igreja Católica não rejeita nada que seja verdadeiro e santo nestas religiões. Ela
considera com sincera reverência essas formas de conduta e de vida, esses preceitos e ensinamentos
[…]
A Igreja também considera com estima os muçulmanos. Eles adoram o único Deus, vivo e subsistente
em si mesmo; misericordioso e todo-poderoso, o Criador do céu e da terra, que falou aos homens […]
Além disso, aguardam o dia do julgamento, quando Deus entregará seus desertos a todos aqueles que
foram ressuscitados dentre os mortos. Finalmente, eles valorizam a vida moral e adoram a Deus
especialmente através da oração, esmola e jejum. […]
No entanto, segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito
amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento. […] Ainda que as autoridades

77
Cardeal Ratzinger, “Magistério e Teologia”, L’Osservatore romano, 10 de junho de 1990. [Tradução de The Ratzinger Reader, p. 216].
78
“O segundo documento que deveria ser importante para o encontro da Igreja com a era moderna surgiu quase por acaso, e se desenvolveu em várias
fases. Refiro-me à Declaração Nostra Aetate sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não-Cristãos”. (Bento XVI em Osservatore Romano de 11 de
outubro de 2012).
79
O relator explica que foi adotado um princípio: não falar toda a verdade, mas apenas o que une a Igreja. Este princípio foi amplamente aplicado
posteriormente para falsificar o significado da Escritura, notadamente a frase: “os dons e o chamado de Deus são sem arrependimento”. (Rm 11, 29).
Ver “Le principe de partialité” em Le Sel de la terre 58, p. 10–11.
dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à morte (13) não se pode, todavia,
imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que
na Sua paixão se perpetrou. E embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus
devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da
Sagrada Escritura. […]
A Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer discriminação ou
violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião. ”
3. Você poderia apontar um sofisma deste novo ensinamento?
Por exemplo, a declaração: “A Igreja Católica não rejeita nada que seja verdadeiro e santo nestas
religiões”.
Certamente existem verdades nestas falsas religiões, caso contrário, elas não atrairiam ninguém.
Porém, como o Pe. Garrigou-Lagrange, O.P. disse corretamente, a verdade é cativa do erro. Mas estas
religiões utilizam estas verdades parciais para afastar os homens da Igreja Católica, a única arca da
salvação. De que serve conhecer estas verdades se alguém perde sua alma?80
4. Quais são as consequências deste novo ensinamento?
A NA contém a semente para todas as reuniões inter-religiosas que se sucederam às que João Paulo
II convocou em Assis, em outubro de 1986. As diferentes religiões são apresentadas como boas e
capazes de salvar seus adeptos. As orações realizadas nestas religiões são consideradas como
agradáveis a Deus.
No que diz respeito ao judaísmo em particular, a NA foi o início de um compromisso.81 A Igreja não
é mais apresentada como o novo povo eleito que vem substituir o antigo.82 A antiga Aliança ainda
seria válida para os judeus, e eles não precisariam se tornar cristãos para serem salvos.
No que a Igreja se torna neste concerto de religiões?
A Igreja Conciliar torna-se, segundo a feliz expressão do Abade de Nantes, o MASDU: o Movimento
de Animação Espiritual da Democracia Universal. Usando o prestígio moral acumulado pelos 2000
anos da Tradição Católica, as autoridades da Igreja contribuíram para estabelecer a nave espiritual do
Templo Maçônico descrita por Dom Delassus em La Conjuration antichrétienne83.
Gravissimum educationis (GE): Educação Cristã
5. O que você diz sobre a Gravissimum educationis momentum (GE) sobre a educação cristã?
Mesmo se for um documento de menor importância, encontramos nele os mesmos erros habituais:
Uma ideologia liberal, com referências às declarações dos Direitos do Homem de 1948 e aos direitos
da criança de 1959 (preâmbulo) — a palavra “direito” ocorrendo 28 vezes no texto;

80
Sobre esta questão, releia o editorial da Sel de la terre 35: “Dominus Jesus et les éléments d’Église”. E notadamente os apêndices: “Jugnet et les
vérités gauchies” e “Le père Garrigou-Lagrange et la vérité servante”. Lê-se, por exemplo, no primeiro texto: “O judaísmo e o islamismo sempre
insistem na unidade de Deus (que é uma verdade), mas o fazem intencionalmente, de forma unilateral, o que exclui o dogma cristão da Trindade —
Lutero insiste no fato de que é somente a graça que justifica e, em seu estado bruto, esta fórmula é verdadeira. Mas, no que lhe diz respeito, ela exclui
a economia católica dos sacramentos, etc.”
81
Ver Michel Laurigan, “Chronologie d’un engrenage”, artigo no Le Sel de la terre 55 e brochura em Éditions du Sel.
82
Esta doutrina tradicional é desprezivelmente chamada de “teologia da substituição” por seus adversários.
83
Mons. Henri Delassus, La Conjuration antichrétienne — Le Temple maçonnique voulant s’élever sur les ruines de l’Église catholique, t. 3, Lille,
Desclée De Brouwer, 1910, p. 629 e seguintes (No Brasil: A Conjuração Anticristã. Castela Editorial)
A recomendação do ecumenismo — um dos papéis das faculdades é promover “o diálogo com nossos
irmãos separados e com não-cristãos” (§11) em vista do decreto sobre ecumenismo e com o método
do Ecclesiam Suam;
A recomendação do direito à liberdade religiosa (§7).
Observamos que o concílio não afirma que o objetivo de uma escola católica é transmitir a Fé, mas
que “sua função própria é criar para a comunidade escolar uma atmosfera especial animada pelo
espírito evangélico de liberdade e caridade, para ajudar a juventude a crescer de acordo com as novas
criaturas que elas foram feitas através do batismo” (§ 8).

Conclusão
Poder-se-ia objetar que não tenhamos citado as numerosas passagens que podem ter um significado
aceitável. É verdade que, neste breve estudo, notamos especialmente os pontos defeituosos dos textos
conciliares. Mas basta, para um texto, conter um erro para ser mau, como diz o ditado escolástico:
bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu (algo é bom quando é inteiramente bom; o
menor defeito o torna mau).
Desejamos fazer uma espécie de síntese para compreender os principais defeitos dos documentos
conciliares. Pensamos que este estudo, em particular, mostra que estes textos transmitem uma nova
doutrina, que hoje permite à Igreja conciliar colaborar com o estabelecimento do globalismo.
Pode-se também perguntar por que não houve uma reação mais viva, durante o concílio, para rejeitar
este novo ensinamento. Foi, sem dúvida, necessário aguardar a aplicação do concílio e a
implementação progressiva do globalismo após 50 anos, para julgar melhor esses textos e sua
influência. O professor Johannes Dörmann iniciou seus estudos sobre a nova teologia conciliar
quando entendeu que a reunião inter-religiosa de Assis em 1986 era uma conseqüência do Concílio.
84

Hoje, em retrospectiva, pode-se perguntar se os planos da Grande Loja, elaborados há um século e


meio atrás, estão realmente sendo realizados:
“Você deseja estabelecer o reinado dos eleitos sobre o trono da prostituta da Babilônia? Deixe o clero
marchar sob sua bandeira na crença de que sempre marcham sob a bandeira das Chaves Apostólicas.
[…] coloque suas redes como Simão Barjonas. Coloque-as no fundo das sacristias, dos seminários e
dos conventos […]. Você terá empreendido uma Revolução de Tiara e Capa marchando com Cruz e
bandeira — uma Revolução que só precisa ser impulsionada um pouco para colocar os quatro cantos
do mundo em chamas. […] [O sonho] das sociedades secretas será realizado pela mais simples das
razões, porque se baseia nas paixões do homem. […] nossos planos serão bem-sucedidos um dia
acima até mesmo de nossos cálculos mais improváveis85.
Nós colocamos um pesado fardo sobre seus ombros, querido Volpe. Devemos trabalhar pela educação
imoral da Igreja e chegar a ela, por pequenos meios e de forma gradual, ao triunfo da idéia
revolucionária por parte de um Papa. Neste projeto que sempre pareceu um cálculo sobre-humano,
nós caminhamos ainda às apalpadelas86. ”

84
Veja as revisões de sua obra A Jornada Teológica de João Paulo II ao Encontro de Oração das Religiões em Assis, que aparece em Le Sel de la terre
5, 16, 22, e 46. Na primeira revisão, vê-se a influência da cerimônia de Assis sobre a crescente consciência da nova doutrina conciliar.
85
Instrução secreta permanente dada aos membros da Alta Loja (Alta Vendita), datada de 1819. [tradução em inglês: Mons. George F. Dillon, The War
of Antichrist with the Church and Christian Civilization (Dublin; Londres; Burns and Oates, 1885) pp. 71–72. Estes documentos da Alta Loja foram
publicados a pedido do Papa Pio IX por Jacques Crétineau-Joly em seu livro: L’Église romaine en face de la Révolution em 1859 (1ª edição completa,
Paris, Cercle de la Renaissance française, 1976, prefácio de Mons. Lefebvre). Por seu dossiê de aprovação, em 25 de fevereiro de 1861, dirigido ao
autor, Pio IX garantiu a autenticidade dos documentos revelados. Este resumo é reproduzido em Le Sel de la terre 28, primavera de 1999, p. 69.
86
Carta de Nubius, o chefe da Alta Loja, para Volpe, datada de 03 de abril de 1824. [Tradução em inglês: Existe uma igreja conciliar? Um estudo do
Bispo Tissier de Mallerais].
Mons. Lefebvre comenta esta última frase:
“‘Cálculo sobre-humano’, disse Nubius; ele quer dizer um cálculo diabólico! Porque é para calcular
a subversão da Igreja por sua própria cabeça, que Dom Delassus87 chama de ataque supremo, porque
não se pode imaginar nada mais subversivo para a Igreja do que um papa conquistado pelas ideias
liberais, do que um papa utilizando as chaves de São Pedro a serviço da contra-Igreja! Mas, não é
isso o que vemos atualmente, desde o Vaticano II, desde o novo Direito Canônico? Com o falso
ecumenismo e a falsa liberdade religiosa promulgados no Vaticano II e aplicados pelos papas com
uma fria perseverança, apesar de todos os destroços que provoca após mais de vinte anos88. ”
Assim, o ataque supremo foi cometido? O “famoso” sonho maçônico89 foi realizado?
Independentemente da — necessariamente oculta — influência da Maçonaria no desdobramento do
Concílio, não se pode negar, simplesmente analisando os textos, que a doutrina da Igreja foi
modificada de tal forma que os católicos puderam colaborar na construção do Templo, ou seja, na
unificação da humanidade, como os “filhos da viúva90” a entendem?

87
Henri Delassus, Le problème de l’heure présente — Antogonisme de deux civilisations, Lille-Paris, DDB, 1904, t. 1. p. 195. “Le suprême attentat”
constitui o capítulo 32 do livro.
88
M. Lefebvre, Ils l’ont découronné, 2ª edição, Escurolles, Fideliter, 1987, p. 148. Marcel Lefebvre, They have Uncrowned Him: From Liberalism to
Apostasy, the Conciliar Tragedy (Kansas City, MO: Angelus Press, 1988) ].
89
Ver Le Sel de la terre 92, primavera de 2015, p. 134.
90
Para entender o projeto dos maçons de estabelecer um Estado global no qual o homem se tornará deus, recomendamos o trabalho de Jean-Claude
Lozac’hmeur, Les Origines occultistes de la franc-maçonnerie — Recherches sur une religion d’État, Ed. des Cimes, 2015.

Você também pode gostar