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O CAMINHO

00 CORACÃO
Ensaios sobre a Trindade
e a Espiritualidade Cristã

Ricardo Barbosa de Sousa


O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

O LUGAR DO DESERTO NA CONVERSÃO


DO CORAÇÃO
"No silêncio e na quietude a alma devota faz
progressos e aprende os mistérios escondidos nas
Sagradas Escrituras. "
Tomás a Kempis
/O deserto tem ocupado um lugar de destaque na
espiritualidade cristã em toda a história. Tomou-se up símbolo
_
do lugar de lutas e encontro do homem com Deus.t Um lugar
de desnudamento da alma, de abandono das ilusões, de falência
de conceitos. e teologias que insistem em aprisionar b�us e
determinar suas ações. O deserto é essencial à espiritualidade/
Não como um fato em si, um acidente geográfico, mas como
um estado do coração diante de Deus e de nós mesmos. Analisar
o lugar e importância do deserto na experiência humana e cristã
é, sem dúvida, mais um desafio para a igreja do final do século
vinte.
O mundo moderno é um mundo que se caracteriza pela
superficialidade nas relações, inclusive a espiritual. Richard
Foster inicia seu livro Celebração da Disciplina com a seguinte
afirmação: ''A superficialidade é a maldição do nosso tempo. A
doutrina da satisfação instantânea é, antes de tudo, um
problema espiritual. A necessidade urgente hoje não é de um
maior núm_��?_-4.�._pess�oas inteligentes, ou dotadas, mas de
pessoas!J:frofundé!i'/.35 E neste sentido que considero o deserto
como um espaço de aprofundamento das relações espirituais
que, pela sua própria natureza, não sobrevive à superficialidade
do mundo moderno.
Apenas como exemplo, gostaria de citar algumas
características da espiritualidade moderna. Primeiro, ela é
caracterizada pelo pragmatismo. Tudo precisa ter um sentido
prático e p rodutivo; a relevância de qualquer coisa é
determinada pela sua utilidade imediata. Isto, obviamente 1 leva•
nos a relações superficiais e utilitárias. Segundo, pela
necessidade de preencher todo espaço vazio. Não se pode deixar
34. FOSTER, Richard. Celebração da Disciplina - O caminho do crcschn,mto iJN/'lrltmf/, IM,
Vida, São Paulo, 1978, p. 9.
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

lacunas na agenda, no diálogo ou na convivência; o silêncio e a


quietude são, paradoxalmente, realidades inquietantes. Acho
que foi Rubem Alves que disse que os verdadeiros amigos são
aqueles que, mesmo em silêncio, sentem prazer quando estão
juntos. Terceiro, pelo consumismo, que determina o sentido,
valor e realização do homem. Tudo isto torna o deserto uma
realidade espiritual absolutamente necessária para o
enfrentamento de uma espiritualidade que se torna cada vez
mais utilitária, consumista, superficial e pragmática.
Recentemente, recebi um pequeno livro cujo título
chamou-me muito a atenção: Café com Deus - Guia
devocional para pessoas que não dispõem de muito tempo.
Na última capa há a seguinte afirmação: "Enfim, um verdadeiro
'fast food' devocional; de leitura rápida, mas nem por isso
desprovido de conteúdo. Para pessoas que não dispõem de
tempo, mas desejam adquirir o saudável hábito da comunhão
diária com Deus - na meditação em sua Palavra e na prática da
oração". 36 Na verdade, trata-se de uma tentativa do autor em
produzir algo que, com humor e praticidade, leve o leitor que
não dispõe de muito tempo a refletir sobre princípios bíblicos
para o dia-a-dia da vida. Até aqui tudo bem. O que me chamou
a atenção foi, a proposta apresentada pelo autor: "Fast food
devocional". JÉ pos�ível alguém que ama a Deus não dispor de
tempo para Deus?/� possível construir uma amizade profunda,
íntima e �essoal com Deus sem dispor de tempo para este
encontro?jDe certa forma, o autor tenta se adequar aos tempos
modernos,
.
ajustando a vida devocional ao corre-corre
1
de todos
nós. )Mas será que é disto que estamos precisando?JNão seria
exatament_e o contrário a proposta a ser apresentada ao homem
moderno?!A redescobe1;:ta do deserto aponta para um caminho
completamente opostof O "fast food" não satisfaz o apetite da
alma que anseia por Deus. A meditação e a contemplação',
próprias do deserto, exigem tempo e silêncio. No deserto
encontramos um banquete, uma mesa farta, onde a comunhão
e a amizade acontecem enquanto a alma é alimentada pela
graça e amor de Deus.

36. RUBINHO. Café com Deus - Guia devocional para pessoas que não dispõem de tempo.
Ed. Vida, São Paulo, 1994.
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

Redescobrir o deserto é redescobrir um caminho de


crescimento espiritual. É conhecer Deus, não nas experiências
i
religiosas ou informações teológicas, mas na intimidade do
nosso coração.\ O deserto é sempre um lugar de quietude,)('
silêncio e buscá. Não há nada nele que nos distraia, que nos
des':'ie a atenção, que aponte para outro lugar. Nele estamos
sós. \Apenas nós e o nosso Senhori1 É lá onde tudo o que nos
ilude ou engana é desmascarado e coloca-nos face a face com
Deus.
O D ESERTO NA TRADIÇÃO CRISTÃ
Uma das grandes lacunas que encontramos na
espiritualidade protestante é que em nossa análise histórica
freqüentemente damos um salto do primeiro século da era cristã
para o século dezesseis, do cristianismo primitivo dos apóstolos
para a Reforma P rotestante, sem considerar a grande
contribuição de diversos movimentos que tiveram seu lugar
entre os séculos III e XV Aquilo que hoje chamamos de
"espiritualidade do deserto" encontra neste período sua maior
expressão. A partir do século quarto, muitos irmãos e irmãs
migraram para os desertos e lugares solitários da Palestina, Síria,
Egito, levando consigo apenas o desejo sincero e ardente de
resgatar uma espiritualidade que haviam perdido no processo
de secularização da religião, Alguns se organizaram na forma
de comunidades, outros optaram pelo eremitismo, mas todos
caminhavam em direção a um encontro verdadeiro com Deus.
Na verdade, muitos destes movimentos nasceram, não
de uma revolução hermenêutica como foi a Reforma do século
dezesseis, ou a mais recente Teologia da Libertação, mas de
um desejo sincero e profundo de conhecer a Deus e obedecer
seus mandamentos/Foram movimentos que nasceram da sede
da alma por uma relação mais pessoal e íntipla com Deu�"Sua
· preocupação maior foi com a oração e a comunhão com Deus.
Daí sua importância para a espiritualidade cristã.
O monasticismo, conhecido também como "Pnis tio
Deserto", foi o movimento que mais caracterizou este período,
Sem dúvida alguma, seus precursores trouxeram \Un&
maiores contribuições à espiritualidade cristã. NoHI AI'.\."
deste movimento não será determinada 1tpc1uu1 p�lll í
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

história, nem mesmo pelos desvios de natureza doutrinária


que ocorreram, mas pela herança espiritual que nos legou.

O MONASTICISMO
A partir do ano 311 d. C., na época em que a paz
conquistada pelo imperador Constantino estava sendo
implantada e os cristãos procurando se ajustar às mudanças
sociais e religiosas do império, surgiu um movimento religioso
que, de forma variada, procurou manifestar sua rejeição aos novos
valores. Esta rejeição não era apenas aos valores mundanos da
sociedade pagã, mas também à introdução destes valores
seculares e mundanos dentro da própria igreja. Portanto, era
um movimento contracultural, tanto dentro corno fora da igreja.
Este movimento, conhecido como monasticismo, teve seu
início no começo do século quarto e caracterizou-se pelo seu
radicalismo, tanto na leitura e obediência ao ensino bíblico
como na renúncia às instituições religiosas e seculares. No ano
de 35 6, Atanásio, Bispo de Alexandria, escreveu A Vida de
Santo Antônio, biografia daquele que é considerado hoje o
pai do monasticismo. Neste livro, Antônio é descrito como um
jovem, filho de um próspero fazendeiro, que certo dia entrou
em uma igreja e ouviu a leitura de um texto do Evangelho de
Mateus, que diz: "Se queres ser perfeito vai, vende tudo o que
possuis ...". Estas palavras tocaram profundamente no coração
de Antônio e sua vida foi radicalmente transformada. Ele,
literalmente, vendeu tudo o que possuía, distribuiu entre os
pobres e, em seu novo estado de pobreza e necessidade,
começou a seguir a Cristo. Sua busca por santidade e perfeição
conduziu-o até o deserto, onde, em absoluta solidão, imitou o
gesto de Jesus e permaneceu por quarenta dias em jejum e
oração, buscando sempre pôr em primeiro lugar l"o reino de
,j
Deus e a sua justiça" certo de que tudo o mais lhe seria
acrescentado.
Atanásio reconhece que o monasticismo começou com a
conversão de Antônio e sua subseqüente busca por uma perfeita
comunhão com Deus no deserto. Após algum tempo, outros,
inspirados pelo seu exemplo e modelo de vida, partiram também
para o deserto e o persuadiram a ser seu "guia espiritual". A
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

partir daí, sua busca solitária transformou-se numa busca


comunitária e deu origem a um dos mais significativos
movimentos de oração, ascetismo e coragem evangélica de que
se tem notícia.
Muito embora a exatidão histórica de Atanásio seja
contestada, a contribuição espiritual não o é. O movimento
monástico trouxe uma grande contribuição para a
espiritualidade cristã. Ao se retirarem para a solidão do deserto,
buscavam nesse gesto um rompimento com o processo de
mundanização da igreja e uma aproximação literal com o que
reconheciam ser a proposta dos evangelhos e o modelo da igreja
primitiva. Para eles "o ideal cristão não é o herói que vai para
o campo de batalhas, nem mesmo o envolvimento com os
negócios do estado, mas a santidade caracterizada pela
simplicidade, autonegação e um profundo amor pela fé, por
Deus e pela igreja". 37 Segundo eles, a luta central do cristão
era o domínio próprio, visto por Santo Antônio como uma :
luta contra demônios, e que precisava ser travada com
1
disciplina, oração e leitura da Bíblia, jejuns, vigílias e virtudes
tais como humildade, mansidão e amor. A preocupação destes
monges não era simplesmente fugir do mundo, mas imitar â
Cristo em todos os sentidos. Da mesma forma corno a
experiência de Jesus no deserto da Judéia foi crucial na definição
do seu ministério, os primeiros monges sentiram-se compelidos
pela realidade do mundo e pelo poder da Palavra de Deus a
deixar o mundo e iniciar uma busca por Deus nas regiões
desérticas do Egito e da Palestina.

OS IDEAIS DO MONASTICISMO
Reconheço que falar para os cristãos evangélicos de um
movimento como o monasticisrno às vezes me dá a impressão
de estar falando mais de bandidos do que de mocinhos. Alguns
personagens deste movimento ou são-nos completamente
desconhecidos ou tidos como hereges. Eu mesmo confesso que
o meu primeiro contato com personagens como Santo AntOniQ1
3 7. MAGIL, Frank N. e McGreal, lan P. Christian Spirit1mlit;y -- 'fhd 2Nlllllt/ffl
the Most lnjluential Spiritual Writings of the Christi1111 Tratlitilm. l·l11rpcr1 IAt'lll
New York, 1988, p. 19.
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

Atanásio, Agostinho, Benedito, Bernardo, João da Cruz e Tereza


de Ávila colocou-me com um pé atrás. Qual poderia ser a
contribuição destes personagens, muitas vezes tão controvertidos,
na nossa espiritualidade? Infelizmente, não iremos analisar as
influências e contribuições de cada um deles em particular, nem
mesmo deter-nos nas controvérsias doutrinárias, mas buscar na
história e nos movimentos o legado que nos deixaram na sua
busca por santidade e pureza de vida.
Qualquer consideração sobre as origens da espiritualidade
cristã, como forma sistemática de busca da alma por Deus,
deve começar pela análise dos movimentos que tiveram seu
início no final do terceiro século. Sabemos que a vida cristã
tem sido vivida e praticada com fervor e intensidade, tanto
por indivíduos como por comunidades, desde os tempos
apostólicos. No entanto, foi por volta do final do terceiro século
e começo do quarto que esta busca por santidade, pureza e
devoção, através dos movimentos religiosos, trouxe conceitos
e modelos que influenciaram a igreja em toda a história na sua
peregrinação espiritual.
É neste período que encontramos os santos da igreja.
Até o século dezesseis, o teólogo e o santo eram uma coisa só.
Não havia distinção entre eles. O teólogo era um sábio, alguém
cuja experiência e intimidade com Deus havia conferido um
grau de integridade, devoção e santidade que o levava a falar
de Deus com autoridade. Portanto, o pressuposto básico para
um teólogo era que fosse um convertido, que conhecesse a Deus
e gozasse de íntima comunhão com Ele. Após o século dezesseis,
com o surgimento do Racionalismo, fruto de revoluções
culturais como o Renascimento e o Iluminismo, desenvolveu­
se o conceito do teólogo como aquele que é capaz de explicitar
e articular a realidade de Deus. Neste sentido, todo cristão
passou a ser, potencialmente, um teólogo. Hoje, a teologia
tornou-se uma ciência. Até mesmo uma pessoa que não goza
de qualquer relacionamento pessoal com Deus pode ser um
teólogo. Não temos mais os nossos santos. Temos pastores,
mestres, evangelistas, teólogos, missiólogos, doutores, mas não
temos os santos. Não me refiro aqui aos santos no sentido
bíblico em que todos nós fomos santificados em Cristo Jesus,
1 mas aos santos como categoria de pessoas cuja intimidade,
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

sabedoria e santidade nos inspiram e motivam à oração,


meditação e contemplação.,
Ao refletir sobre os Pais do Deserto estamos buscando
resgatar alguns dos valores e dos ideais que fizeram destes
homens e mulheres os santos que foram. Isto porque carecemos
deles hoje. Nossos ideais cristãos estão sendo determinados
pelos mesmos ideais que determinam os valores da sociedade
secular. A busca pela realização profissional, o uso do marketing
na propaganda religiosa, a definição de sucesso a partir das
pesquisas estatísticas, têm-nos levado a buscar um modelo de
liderança que corresponde mais ao modelo "Lair Ribeiro"38 do
que ao "São João da Cruz". 39 Hoje os santos foram substituídos
pelos ídolos religiosos e pelas celebridades. Admiramos muito
aqueles líderes bem-sucedidos, com suas megaigrejas e
orçamento de fazer inveja a muitas empresas de médio porte.
Mas aqueles que trilham o caminho da humildade e renúncia,
da autonegação e piedade, da oração como caminho para a
amizade com Deus e compreensão da sua vontade não inspiram
os suspiros das multidões.
Os ideais do monasticismo descrevem um pouco a
natureza desta busca e a influência que este movimento teve
ao longo de toda a história cristã, inclusive sobre alguns dos
mais respeitados movimentos de renovação e avivamento na
história do protestantismo. Os ideais que vamos analisar são:
ascetismo, imitação de Cristo, protesto, solitude e
contemplação, martírio, obediência e submissão.
Ascetismo - "São Basílio, o Grande (540- 604), disse:
'Não podemos nos aproximar do conhecimento da verdade, com
o coração inquieto'. Por isso devemos nos esforçar para evitar
tudo o que agita o nosso coração, tudo o que é causa de falta de
atenção, de superexcitação, tudo o que desperta as paixões ou
nos torna ansiosos. Na medida do possível, devemos nos libertar
do barulho, da agitação e da inquietação que se produzem por

38. Lair Ribeiro é autor de vários livros de auto-ajuda de grande s1-11:em1 em t«Ulfj\,- ;'
país. Seus livros apontam o caminho do sucesso pessoal ntravés do u�o de t4í!l\•• , 'é
reprogramação da vida e potencialidades.
39. COLLIANDER, Tito. Caminho dos Ascetlls - Jnlt'/aç,111 d Vida Ji.tpltl'#HMlr
Paulinas, São Paulo, 1986. p. 31.
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

objetos sem importância. Pois, quando servimos ao Senhor, não


nos devemos 'inquietar e agitar por muitas coisas', mas lembrar
sempre que uma só é necessária' (Lc 10.41 e 42)."40
O monasticismo, na sua origem, foi o esforço de cristãos
honestos e dedicados que viviam numa época de intensa
inquietação e corrupção religiosa e moral, de recuperar da forma
mais integral possível os ideais perdidos do cristianismo
primitivo. Estes ideais foram então perseguidos com completa
dedicação e uma rigorosa autodisciplina espiritual. A forma
radical e literal com que interpretaram certos textos bíblicos
como... "Vai, vende tudo o que tens... " ou "Se alguém não
tomar sua cruz..." levou-os a um exagero ascético. Este exagero
foi também reforçado por uma forte influência gnóstica que
separava o espiritual do material. Em termos concretos, esta
paixão pela autodisciplina e o rigor ascético poderia ser expressa
pela frase: "Se meu corpo me mata, eu o matarei." 41
O ascetismo é uma prática espiritual que encontra ampla
rejeição no mundo ocidental, principalmente na sociedade
moderna. O nosso imediatismo, aliado a uma permanente busca
pelo prazer, elimina qualquer possibilidade do exercício ascético.
Por outro lado, os exageros que .acompanharam os monges da
antiguidade contribuíram para uma rejeição ainda maior desta
prática espiritual. No entanto, imagino que alguma coisa
poderia ser aproveitada desta herança monástica na
espiritualidade contemporânea.
Reconhecemos que o rigor ascético não tem nenhum poder
contra a sensualidade do coração humano (Cl 2.23), a qual só
pode ser derrotada mediante o poder da morte e ressurreição de
Cristo. Por outro lado, o apóstolo Paulo usa a figura do atleta
para mostrar a importância dofdomínio sobre o corpo/com a.
finalidÁde dy'a�ançar o prêmio da "coroa incorruptível". Ele
diz que, ââ mesma forma como um atleta procura se dominar
em tudo para alcançar seus objetivos olímpicos, o cristão deveria

40. COLLIANDER, Tito. Caminho dos Ascetas - Iniciação à Vida Espiritual. Edições
Paulinas, São Paulo, 1986. p. 31.
41. GANNON, Thomas M. e TRAUB, George W The Desert and the City -An
lnterpretation of the History of Christian Spiritualiry. Loyola University Press, Chicago,
1969. p. 28.
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

também dominar-se para alcançar seus objetivos espirituais. Diz


o apóstolo: "Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão,
para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser
desqualificado" (1 Co 9.27). Não seria esta afirmação do apóstolo
uma proposta ascética?.O que significa "esmurrar" e "reduzir o
corpo à escravidão" senão uma atitude ascética?
A realidade que levou os monges a buscarem o deserto e a
vida ascética é, de certa forma, a mesma na qual estamos também
inseridos. Já consideramos os exageros da experiência monástica,
mas devemos considerar, a partir da nossa própria realidade, o
lugar do ascetismo na espiritualidade contemporânea. A
dificuldade que encontramos para separar um tempo para
meditação e oração, as opções de entretenimento de que
dispomos, o acúmulo de compromissos que agendamos, exigem
de nós uma postura, uma opção. Não temos mais tempo para
meditar nas Escrituras e muito menos para Órar, quanto mais
para nos dedicarmos ao silêncio e contemplação (falaremos sobre
isto depois)./Não dispomos mais de tempo para cuidar da nossa
vida interiqr, nem mesmo para construir amizades mais íntimas
e pessoais.J':Somos ocupados demais para sermos boas esposas
para nossós maridos, bons maridos para nossas esposas, bons
pais para nossos filhos e bons amigos para os nossos amigos, e
não temos tempo algum para sermos amigos daqueles que não
têm amigos" .f2 Pouco a pouco vamos sendo absorvidos por uma
roda-viva de reuniões, compromissos e afazeres e logo
percebemos que a nossa vida está se esvaindo, dando-nos tão
pouco da paz, gozo e serenidade que encontramos nos
evangelhos.
A opção pelo "fast-food" espiritual torna-se quase que a
única opção, pela impossibilidade de encontrarmos outros
caminhos para o nosso crescimento espiritual. Estamos todos
com a agenda sobrecarregada. A bem da verdade, estar com a
agenda cheia e não ter tempo para nada tornou-se um "status"
para o homem moderno. Ninguém daria valor a um médico
cuja sala de espera estivesse completamente vazia e ele
assentado confortaveltnente em seu consultório lendo uma

42. KELLY, Thomas. A Testament of Devotion. Harper & Brot/11:rs, New York, l 941.
(Extraído do texto "Simplificação da Vida", traduzido por Paul Freston)
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

revista ou jornal. Para nós, um bom profissional é aquele que


está com a agenda cheia para os próximos meses, cuja sala de
espera está sempre cheia de pessoas disputando uma vaga na
agenda já cheia do médico. No mundo religioso não é diferente.
Nós, pastores, sentimo-nos mais valorizados se temos uma
agenda abarrotada de compromissos. É comum as pessoas se
aproximarem de nós dizendo: "Sei que você tem uma vida muito
atarefada e quase não tem tempo, mas seria possível...". A
verdade é que não temos tempo e não gostamos de olhar para
nossa agenda e encontrar buracos vazios nela. Agenda cheia
dá-nos a sensação de importância, de valor.
O pecado age em nós como um vício. Nós o tratamos
como sendo fatos isolados que acontecem e que, uma vez
confessados, são resolvidos: No entanto ele age em nós com o
poder destruidor do vício que nos aprisiona e consome. Nosso
estilo de vida faz parte de um vício que já se incorporou em
nossa vida diária. Para constatar isto, basta retirar da casa de
muitos cristãos modernos a televisão, que logo se perceberá um
enorme vazio na casa e nas relações familiares. Ou sair de férias
e passar um mês num lugar solitário, sem multidões, televisão
ou qualquer outro entretenimento artificial que criamos. A
sensação de vazio, solidão e abandono é muito grande.
Antigamente, quando um cristão se encontrava triste e
deprimido, procurava uma igreja, onde no silêncio do santuário
buscava na contemplação do Cristo crucificado o alívio para
suas dores e feridas./Hoje, quando esse mesmo cristão está triste
ou deprimido, corre até o "shopping" mais próximo e, se tem
dinheiro, faz alguma compra para aliviar seu "stress" e depressão.
Se não tem dinheiro, contenta-se com as vitrines. Mas nossos
vícios não ficam apenas no estilo de vida agitado e consumista,
mas também no nosso caráter, que absorve valores e culturas
que negam a vida e a liberdade dos evangelhos.
Quem já trabalhou com recuperação de viciados ou teve
a oportunidade de acompanhar a recuperação de alguém pode
observar o processo que envolve a libertação do vício. O·
reconhecimento do vício e o desejo de libertar-se dele é o
primeiro passo, ma� n�o é suficiente. É necessário um processo
de\pesintoxicação\e 1reeducáçãd\ para que o viciado seja
reintegrado a uma nova vida. Algumas clínicas especializadas
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

recomendam at�;;;e rnesç_�e tratamento intensivo para que


este processo te�a um resultadb positivo. Nosso problema é
que não reconhecemos a mesma gravidade em relação aos outros
vícios que igualmente nos dominam e e!c;ravizam� corno a
maledicência, glutonaria, irnoralldadê, idolatria, preguiça, etc.
Muitos cristãos desenvolveram urna verdadeira dependência
para com outras formas de vícios não reconhecidos corno tal, a
ponto de nem perceberem o quanto esta dependência afeta
sua espiritualidade.
A proposta monástica de ascetismo é buscar a libertação
dos vícios que o pecado cria em nós, e resgatar os ideais cristãos
apresentados por Jesus· nos evangelhos, a fim de experimentarmos
a liberdade conquistada por Cristo. O atleta, para conquistar seus
objetivos, submete-se a urna rigorosa dieta, tanto alimentar quanto
social. Essa dieta não significa urna prisão, nem mesmo urna
limitação da sua liberdade; pelo contrário, representa seu
passaporte para ser aquilo para que se sente vocacionado.
O ascetismo, para evitar que se torne num fim em si
mesmo, precisa ser considerado corno urna postura do cristão
diante da vida e da realidade do mundo e do pecado. Ele não
se constitui num fim em si mesmo, mas num meio, numa
disciplina espiritual que contribui para que sejamos aquilo para
o qual Deus nos criou. Vale afirmar mais urna vez que o único
meio de transformação ·da vida e do caráter do cristão é a graça
de Jesus Cristo. As. disciplinas espirituais são apenas o meio
que nos prepara para absorvermos mais adequadamente tudo
quanto a graça de Deus tem reservado para nós.
Um movimento que absorveu muito do rigor ascético do
período monástico foi o puritanismo. Os puritanos souberam
conciliar a supremacia da graça de Deus em nos salvar e santificar,
com disciplinas espirituais extremamente rigorosas, porque
conheciam bem sua natureza pecaminosa e rebelde contra Deus.
_;;,:Uma família puritana tinha em média três cultos diários no lar,_
Na primeira hora da manhã, antes de saírem para-o trabalh() e
os afazeres domésticos, todos se reuniam para leitura da Bíblia <:
Z oração. Logo após o almoço, novamente se reuniam para leitura
, da Bíblia e oração, e à noite, juntos, além da leitura bíblica c1
i oração, reservavam momentos para cânticos de adoração e louvor,
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

Participavam regularmente dos cultos públicos aos domingos,


geralmente um pela manhã e outro à noite, durando em média
duas horas cada um, com grande ênfase na leitura bíblica e na
exposição da mesma. Guardavam com respeito e reverência o
"dia do Senhor" e cumpriam com suas obrigações religiosas e
civis, procurando sempre "adornar" a pessoa de Cristo pelas
suas obras. Os puritanos eram pessoas extremamente
disciplinadas e coerentes com sua fé. O rigor disciplinar que
impunham sobre si acabou se transformando, em gerações
futuras, num forte apelo legalista; mas, nos seus primórdios,
tratava-se apenas de um meio para se chegar a um fim: a
santificação e a glória de Deus.
O que vemos hoje, na prática espiritual da igreja, é
exatamente o oposto de tudo isto. Muitos alegam que lhes
falta tempo para a prática devocional. Em parte eu creio que é
um fato. Mas, também, não tenho dúvida de que vivemos um
momento de afrouxamento das exigências da nossa fé em Cristo.
Os cristãos do deserto, ou mesmo os puritanos do século XVI,
quando tinham algum vício de caráter que reconheciam ser
contrário ao caminho de santidade proposto nas Escrituras,
lutavam com zelo, humildade e temor diante de Deus até verem
e experimentarem a transformação operada pela graça de Deus.
Hoje a prática é um pouco diferente. Se encontramos algum
vício do caráter que ofende a santidade e justiça divina,
procuramos logo um especialista em identificar de que demônio
se trata e, num ato de exorcismo, amarramo-lo e tornamo-nos
livres das amarras daquele mal. A luta contra o pecado, para os
Pais do Deserto ou para os puritanos, era sempre uma luta
contra nós mesmos, contra o pecado que habita em nós, com
nosso velho homem. Não era uma luta fora de nós.
Reconheciam que o agente do pecado e do mal era sempre o
diabo, mas sua luta era contra a própria carne. Isto implicava,
na maioria das vezes, num certo ascetismo, numa renúncia às
paixões para alcançar o verdadeiro prazer em Deus.
Qualquer prática ascética precisa ter em mente que o
propósito da vida cristã e da espiritualidadé bíblica é nossa
transformação em Cristo. Caminhamos em direção "à unidade
da fé e do pleno conhecimento do- filho de Deus, à perfeita
varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo" (Ef
108
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

4.13)/Este é o objetivo da vida espiritual. Maturidade não vem


pelo conheciment�J!)telectual, rn;m por experiências religiosas,
mas pela��ã.} em Cristo}\busca por esta transformação
é o objeto do ascetismo.
O resgate de práticas ascéticas equilibradas, que
preservem a centralidade e a eficiência da cruz e da graça de
Jesus Cristo, traria, sem dúvida alguma, uma grande
contribuição à espiritualidade moderna. A busca quase que
obssessiva pela experiência ou pelo simples conhecimento tem
levado muitos a perderem de vista a natureza central da sua
vocação, que é a de serem "santos" e viverem como "filhos do
Pai celeste". E, para andarmos de modo digno da nossa vocação,
será preciso mais uma vez "esmurrar o nosso corpo e reduzi-lo
à escravidão" para não sermos desclassificados e condenados
com os do mundo. A santidade e a ética cristã exigem de nós
uma postura ascética em relação ao mundo.
Imitação de Cristo - O desejo de servir a Deus em
completa submissão à sua vontade era tão intenso que os monges
do deserto não pouparam nenhum esforço físico ou psicológico
para alcançar este intento. Seu compromisso com a vida
monástica era voltado mais para uma "imitação de Cristo" do
que para a rejeição do mundo. Não estavam tão preocupados
com o mundo e seus desvios, mas com Cristo e sua Palavra.
A "imitação de Cristo" na tradição monástica representa
um dos princípios mais radicais no estilo de vida optado por
eles. O ascetismo e todas as outras práticas espirituais não
tinham outra finalidade senão a de conduzi-los a um estado
de perfeição encontrado somente em Cristo. Na verdade, o
que buscavam era uma vida cristã que fosse apenas o que
deveria ser, sem as complicações, distrações e compromissos
impostos pela realidade eclesiástica e social na qual se
encontravam no século quarto.
O exemplo de Cristo precisava ser seguido em todas as
coisas. Havia uma grande preocupação com a influência do
ensino secular que era baseado nas vaidades humanas. Imitar
a Cristo era a forma mais saudável de romper com os apelos
mundanos e buscar uma mente e coração mais puros e aptot
para receber a Palavra de Deus. Tomás de Kempis, que vlv-au
Ili
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entre os séculos XIV e XV, e escreveu o que é, talvez, uma das


mais c9phecidas e lidas obras espirituais: A Imitação de
Cristo/Nesta ele afirma que no dia do julgamento final Deus
não ncis inquirirá acerca do que lemos, mas de como vivemos
nossa vida/ "Por isso, anda sempre preparado e vive de tal
modo que' te não encontre a morte despreve'nido. Muitos
morrem repentina e inesperadamente; 'pois na hora em que
menos se pensa, virá o Filho do Homem' (Lc 12.40). Quando
vier aquela hora derradeira, começarás a julgar mui
diferentemente toda a tua vida passada e doer-te-á muito teres
vivido tão negligente e remisso." 43 Para ele, nossa vida tomaria
outro rumo se considerássemos sempre o quão distante
estamos do nosso verdadeiro lar, presos em nosso exílio, e
quão grande é o perigo a que nossa alma constantemente é
exposta neste mundo.
O convite de Jesus ao discipulado sempre foi um convite
para segui-lo, para andar com Ele. O que seus discípulos faziam
era simplesmente viver a vida ao lado do Mestre. Iam com Ele
por todos os lugares, procuravam imitá-lo nos gestos simples e
obedecê-lo em suas orientações e ensino. Não havia muitas
elaborações sistemáticas da fé e seu significado, mas uma
vivência radical das implicações dos compromissos e valores
assumidos pelo próprio Senhor. Esta vivência radical é que
levaria os discípulos a um resgate da imagem de Deus, que é o
alvo de todo discípulo.
A imagem de Deus deverá ser restaurada no
homem. Trata-se de um aspecto global. Alvo e destino
do homem é, não que o homem aprenda novamente a
conceituar a Deus corretamente, não que novamente
submeta seus atos à Palavra de Deus, mas que, como
um todo, como criatura viva, volte a ser imagem de
Deus. Corpo, alma e espírito, toda a estrutura do
homem deve levar a imagem de Deus na terra. Deus
tem agrado somente em sua imagem peifeita. 44 .

43. KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Círculo do Livro, São Paulo, p. 45.
44. BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1980, p.
189.

llO
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

Esta vivência radical e comprometedora estava ameaçada;


a fé relaxava-se à medida que o cristianismo era popularizado
e começava a assumir o "status" de religião oficial, com todas
as benesses que isto representava. Seguir a Cristo deixou de
ser um projeto radical de vida e serviço, para ser um novo
símbolo de "status".
A "imitação de Cristo" foi a tentativa de redescobrir a
radicalidade do discipulado. A contribuição do monasticismo
para os nossos dias é perguntar, mais uma vez, qual o lugar e
significado do discipulado cristão hoje. Como podemos e
devemos viver a vida cristã, ou, usando a mesma linguagem
dos Pais do Deserto: como podemos imitar a Cristo no mundo
moderno onde o cristianismo toma-se cada vez mais popular,
atraindo adeptos de todas as partes, criando um "modus
vivendi" que, sob vários aspectos, nega a fé evangélica?
O sociólogo Paul Freston escreveu um livro intitulado Fé
Cristã e Crise Brasileira, onde em um dos capítulos ele fala
sobre a questão das posses e a radicalidade do discipulado
bíblico. Ali podemos ter uma rápida noção do que implica para
o cristão, hoje, seguir a Cristo. Enquanto o que vemos hoje é o
espírito do capitalismo neoliberal determinando que a
prosperidade material é o único caminho de constatação da
presença e bênção de Deus, Paul apresenta-nos a opção pela
simplicidade como caminho de liberdade para a vida e a
proclamação profética. O que os Pais do Deserto estavam
propondo, ao falar de "imitar a Cristo", era apenas o resgate
da natureza radical do discipulado cristão. Talvez o apelo
monástico deva ser encarado, hoje, não apenas como uma
memória de um passado cheio de controvérsias, mas como uma
opção que se renova na perspectiva de resgatar o� ideais do
cristianismo primitivo, que a cada dia se corrompe por uma
espiritualidade secularizada e manipuladora.
Protesto -À exceção de alguns grupos, o monasticismo
nasceu como uma ruptura com a igreja; tinha um ideal, estilo
de vida e proposta institucional que procuravam estabelecer
sua própria identidade, independente ou mesmo superior à
igreja institucional. ''A mudança para o deserto representou
tanto um protesto como uma afirmação foi um protesto contra

Ul
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

uma estrutura eclesiástica excessivamente institucionalizada e


decadente, e uma reafirmação do ensino do evangelho para
encarar as mudanças do seu tempo. " 45
O processo de acomodação no qual a igreja instalou-se
após a conversão de Constantino ao cristianismo (século IV),
e especialmente após a aliança firmada entre a Igreja e o Estado,
levou os cristãos preocupados com os ideais primitivos a
b uscarem uma nova forma de espiritualidade e vida
comunitária, na qual os ideais da religião, como por exemplo a
renúncia, encontrassem novamente seu lugar e significado. O
monasticismo foi, como já vimos, um movimento de
contracultura, tanto fora como dentro da própria igreja.
Os santos pregavam a necessidade do caminho e a
porta estreitos. Mas o caminho largo com o qual eles
comparavam o caminho estreito não era apenas o
caminho do mundo, mas o caminho do mundo dentro
da igreja; dos bispos que buscavam a riqueza; das
pessoas que, embora dizendo-se cristãs, eram na
verdade pagãs no coração; de homens que, tão logo
eram ordenados sacerdotes, aumentavam as barras
de suas vestimentas, cavalgavam sobre cavalos vistosos
e efegantes e habitavam em casas de muitos quartos,
com portas esculpidas e guarda-roupas pintados. O
monge temia a cobra na relva verde, porque com o
inimigo declarado e confesso ele podia encontrar-se e
lutar. 46
Aqui podemos entender a razão do radicalismo do
movimento monástico e sua importância para a igreja do final do
século vinte. Há, hoje, muitas cobras que se misturam na relva
verde e enve�nam a fé e o coração de muitos cristãos ingênuos e
desavisados. lQ que nos preocupa não é aquilo que vemos, os
inimigos que já conhecemos, mas aqueles que não conhecemos,
que se misturam conosco e tor nam sua identificação
extremamente difícil. É contra este inimigo que devemos protestar

45. CANNON, Thomas M. e TRAUB, George W. Op. Cit. p. 31.


46. GANNON, Thomas M. e TRAUB, George W. Op. Cit. p. 22 e 23. (Citação de
Herbert Workman, Monasticism: Its Ideais and History. London, Williams and Norgate,
1901. p. 28)
ll2
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

e reagir. Um inimigo que se encontra dentro e não fora, e que se


mistura conosco a tal ponto de tomar-se um de nós.
Os movimentos espirituais ao longo da história da igreja
quase sempre se caracterizaram por um espírito reformador e
profético. Cada um respondeu a uma realidade específica do
seu tempo. Na Bíblia encontramos, entre outros, movimentos
renovadores como o de Josias (2 Rs 22-23) que, ao redescobrir o
Livro da Lei que estava literalmente perdido, leva o povo à
renovação da aliança com Deus e a um processo purificador e
transformador da realidade espiritual e social que se encontrava
corrompida. Poderíamos citar também as reformas no tempo de
Neemias e outros. A Reforma Protestante do século XVI também
traz um pouco deste espírito reformador e profético num
contexto de corrupção religiosa que exigiu coragem, fé e
determinação de homens como Lutero, Calvino, Zwinglio, entre
outros. O movimento monástico também pode ser enquadrado
entre os movimentos de reforma e renovação da igreja.
O êxodo para o deserto de um importante número
de crentesfoi, antes de tudo, um movimento afirmativo,
um movimento do Espírito, e seria erro julgá-lo
meramente como reação a um estado de decadência
social e eclesial, ou a uma corrente de preservação
ante iminentes desastres políticos e econômicos. Mas,
fator de resposta para uma crise na cristandade ... A
vivência dafé relaxava-se com o aumento, já maciço,
de conversões, com a diminuição da perseguição e dos
martírios, e com o prestígio temporal do cristianismo.
A memória do Cristo crucificado e seu seguimento
radical estavam em perigo. 47
Não restam dúvidas de que vivemos, hoje também,
momentos de muita confusão e crise institucional. Muitos há
que se levantam falando em nome dos evangélicos, propondo
alianças políticas e econômicas com grupos ou pessoas cuja
ética põe em dúvida as intenções. O grande protesto que,
precisamos manifestar hoje é o protesto a favor da ética cristã
e de uma espiritualidade c_en:t.rada na J;HbJia e inspirada mi
47. GALILEA, Segundo. A Sabedoria do Deserto - Atualltladc dos l'titlri/N dtJ lJl'Nfjg
Espiritualidade Contemporânea. Edições Paulinas, São Paulo, ! 986, il, 2a,
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

história. Há muita coisa acontecendo em nome do evangelho


que nada tem a ver com o ensino de Jesus. Se queremos
preservar os ideais do cristianismo primitivo será necessário
elaborar e manifestar nosso protesto a muita coisa que está
por aí. Paul Freston, na palestra que apresentou no I Congresso
Nacional da AEVB, afirmou o seguinte:
Quando uma igreja cresce, se tranefonna, se toma
mais parecida com a sociedade. Por um lado, a igreja
evangélica se tomou, como na Idade Média, triunfalista,
supersticiosa e mercantilista. Isso nos faz lembrar de
duas reações diferentes mas igualmente válidas que
podem pautar a nossa ação hoje. Primeiro, no século IV
surgiu o movimento monástico para guardar a pureza
da fé. Estamos numa situação parecida: cada vez menos
podemos nos pautar (e deixar que novos convertidos ou
nossos próprios filhos se pautem) pela média da
comunidade evangélica. Precisamos ser contra-culturais
na igreja, não só na sociedade. Por isso, precisamos de
equivalentes evangélicos de monasticismo, que preservem ',
a fé contra-cultural, que valorizem o pequeno e busquem
uma vida cristã mais séria e abnegada. Em segundo
lugar, no século XVI surgiu a Refonna Protestante, a
tentativa de mudar a face de toda a igreja, ou da maior
parcela possível. Precisamos trabalhar nos dois níveis,
o micro e o macro. 48
O protesto, como já vimos, caracterizou todos os
movimentos reformadores da história do cristianismo. É dele
que nascem as reformas. O protesto precede as mudanças.
Necessitamos dos instrumentos teológicos e sociais que nos
ajudem a olhar e entender a igreja hoje. Precisamos resgatar os
profetas da modernidade. O protesto não é obra do meu
inconformismo pessoal, mas da descaracterização do evangelho.
Historicamente, ele sempre existiu em momentos de grande
crescimento da igreja e da conseqüente popularização da
mensagem cristã. O protesto sempre aponta para um retorno
às origens. Não na sua forma, mas no conteúdo. É um
movimento espiritual e não necessariamente político. É um

48. FRESTON, Paul. ln ULTIMATO. Nº 230, Setembro 1994.

114
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

processo que envolve o lavar o rosto de Deus, maculado pelo


nosso pecado e ambição.
Solitude e contemplação - Normalmente, quando
se fala em solitude e contemplação, o que de imediato nos vem
à mente são as figuras dos velhos eremitas, mergulhados numa
total solidão, alienados do mundo e seus problemas, ou dos
monges enclausurados nos velhos mosteiros, debatendo sobre
o velho tema de quantos anjos podem dançar na cabeça de um
alfinete. Na verdade, trata-se de mais uma prática espiritual
que foi quase que completamente ignorada pelo cristianismo
ocidental e que trouxe uma grande contribuição para a
espiritualidade na Idade Média. O mundo moderno
desenvolveu uma espiritualidade mais voltada para o trabalho
do que para o silêncio e a contemplação. O que veremos aqui é
o valor dessas disciplinas espirituais no processo de crescimento
e transformação da vida cristã.
É interessante notar que as grandes descobertas científicas
não aconteceram dentro dos laboratórios, por cientistas cercados
de livros, fórmulas e produtos químicos; mas por pessoas que,
pelo silêncio e contemplação, conseguiram captar os fenômenos
que estavam presentes no mundo, mas que não podiam ser
percebidos por aqueles cuja mente andava ocupada com outras
coisas. Conta-se que Isaac Newton, matemático inglês do século
XVII, achava-se um dia sentado no jardim quando viu uma maçã
cair de uma árvore e perguntou: "Por que será que esta maçã
caiu e não flutuou ou se elevou no ar?". Meditando sobre este
fato, estudou até chegar à conclusão de que todos os corpos são
atraídos para o centro da terra. Depois, dando mais um passo,
descobriu que também os planetas são atraídos para o sol, e,
por fim, a lei da gravitação universal, que explica o movimento
de todos os corpos celestes. As conclusões de Newton demoraram
aproximadamente sete anos_. Foram sete anos de observação,
imaginação e contemplação. Como Isaac Newton, muitos outros
cientistas, que na verdade eram considerados sábios, .usaram
sua imaginação e paciência contemplativa para chegarc1n a
conclusões científicas que revolucionaram o mundo. Se para
descobrir os fenômenos da natureza, que são tão claros e patentes
diante de nós, é preciso ter paciência e contemplação, qutU\tC •
mais exigirá de nós penetrar nos mistérios de Deus e da vidaf ·
Ui
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

Falar sobre silêncio e contemplação para nossa sociedade


moderna parece um contra-senso. Hoje, o que define a
espiritualidade de um cristão moderno é sua agenda repleta de
compromissos que venham a ocupá-lo o dia todo com reuniões,
trabalhos evangelísticos, pregações, visitas, etc. As igrejas não
desejam como líder um pastor que passe algumas horas do dia
recolhido em silêncio e oração; quase sempre procuram alguém
que seja "dinâmico", cheio de novas idéias, que esteja sempre
pronto a mobilizar a igreja para os grandes empreendimentos,
ativo e que não desperdice seu tempo com atividades não
produtivas. Nossos cultos e nossa vida religiosa precisam ser
preenchidos de forma a não deixar espaços vazios, pois para o
homem moderno o silêncio atua como a presença de uma pessoa
inoportuna que insiste em denunciar nossos fracassos. Não há
nada mais constrangedor num culto ou reunião de oração do
que os espaços vazios entre uma oração e outra. Se estes espaços
não são preenchidos rapidamente por orações ou cânticos, eles
o são por gritos de aleluia. Richard J. Foster diz que:
na sociedade contemporânea nosso Adversário se
especializa em três coisas: ruído, pressa e multidões.
Se ele puder manter-nos ocupados com a "grandeza"
e "quantidade", descansará satiifeito. 49
A televisão, o rádio, o toca-fitas, transformaram-se nos
amigos dos homens solitários. Necessitamos de algum ruído,
de movimento, de grandes projetos para nos sentirmos "vivos".
O silêncio, para os Pais do Deserto, não significa apenas
o não falalj mas também uma postura diante de Deus e de nós
mesmos. E um silêncio que nos habilita a ouvir, meditar e
contemplar as obras e mistérios de Deus. Eles diziam: "Um
homem pode parecer silencioso, mas se em seu coração está
condenando os outros, está falando sem cessar".5º Na meditação
esotérica o silêncio é uma tentativa de esvaziar a mente,
enquanto que o silêncio na contemplação cristã é uma tentativa
de esvaziar a mente dos pensamentos humanos e enchê-la com
os pensamentos de Deus. "O silêncio é muito mais do que a

49. FOSTER, Richard j, Celebração da Disciplina O Caminho do Crescimento Espiritual.


Editora Vida, São Paulo, 1983, p. 25.
SO. GALILEA, Segundo. Op. Cit., p. 56.
116
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

ausência de fala. Essencialmente, silêncio é ouvir". 51 O salmo


afirma: ''Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (Sl 46.lüa). O
profeta também fala: "O Senhor, porém, está no seu santo
templo; cale-se diante dele toda a terra" (Hc 2.20). O silêncio
e contemplação na tradição cristã é a postura que assumimos
diante de Deus para ouvir-lhe a voz. Os cristãos ortodoxos
entenderam melhor esta necessidade do coração e da alma
humana, e desenvolver9,m ao longo da história uma forte
tradição contemplativa./Para eles, a pração é muito mais uma
questão de ouvir do que de falar/Ao invés de apresentar a
Deus a lista de "supermercado", com súplicas e gratidão, eles
procuram aguardar em silêncio para ouvir o que Deus tem a
dizer e então respondem em oração. Para eles, o grande exemplo
de oração na Bíblia é Maria, mãe de Jesus, que apenas
respondeu dizendo/Eis aqui a serva do Senhor, que se cumpra
em mim segundo a tua vontade/(Lc 1.38). Oração é a nossa
resposta à proposta e chamado de Deus. A primeira palavra é
sempre de Deus; a nós nos cabe a segunda palavra, a resposta.
Keneth Leech52 apresenta três razões para justificar a
importância do silêncio. Primeiro, o silêncio e a solitude são
, importantes porque nos ajudam a conhecer-nos a nós mesmos,
. e isto é um passo fundamental para o conhecimento de Deus.
11Segundo, são também importantes porque abrem novos
! caminhos para uma experiência mais profunda e contemplativa
,: na oração, partilhando da oração que o Espírito Santo realiza
e_m nós. Terceiro, o silêncio e a solitude são elementos
importantes na prática pastoral. Nada é mais útil e necessário
no cuidado pastoral e na prática da direção espiritual do que a
habilidade para ouvir, uma habilidade que é nutri_da pela i
contemplação. Mais do que qualquer outro dom pastoral, as /
pessoas procuram por pastores que possuem uma quietud�J
interior. Para Leech, o silêncio é o caminho no qual nós nos
aproximamos da Palavra, digerimo-la e a absorvemos, até que
ela se transforma numa parte do nosso ser e nos transforma.

SI. NEMECK, Francis Kelly. COOMBS, Marie Theresa. The J.%y oJSplrltual 1:11
A Michael Glazier Book, The Liturgical Press, Minnesota, 1936, p. 199.
S2. LEECH, Kenneth. Spirituality and Pastoral Carc. Cowlc)' Publ
Massachusetts, 1989, p. 20-21.
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

A forma que Jesus preferiu usar para comunicar os


mistérios do seu reino foi através de parábolas. As parábolas
eram histórias comuns, casuais, sobre sementes, ovelhas,
fazendeiros, banquetes ... Através dessas histórias ? Jesus
procurava estimular a imaginação dos seus ouvintes para que
entendessem os mistérios do reino de Deus. Ele não procurava,
de forma paternalista, como um professor· em sala de aula,
apresentar as fórmulas e conceitos previamente definidos. As
parábolas não eram ilustrações que facilitavam a compreensão
dos conceitos filosóficos complicados da teologia; na verdade,
elas exigiam dos ouvintes atenção, silêncio, imaginação e
contemplação para que fossem entendidas. Eram um exercício
da paciência e da fé.
O apóstolo Paulo afirma-nos ,que somos o templo do
Espírito Santo, o lugar da sua morada. Ele está em nós e vive
em nós. Por que será, então, que muitos cristãos hoje não gozam
da vida do Espírito? Será que é apenas pelo fato de que ainda
não o experimentaram plenamente? Pode ser. Imagino, porém,
que a grande dificuldade que muitos crist_ãos hoje enfrentam
na sua vida espiritual não seja a necessidade de mais
experiências, mas de se voltarem para dentro da alma e do
coração para, de fato, conhecerem o Deus que hahita ali. Para
João Cassiano (365-435), a libertação dos impulsos frenéticos
que freqüentemente nascem das nossas inquietações interiores
é que nos conduz a uma verdadeira e livre comunhão com.
Deus e os homens.53.
Para São João da Cruz, o silêncio leva-nos a uma crise
purificadora. No seu livroA Noite Escura, onde descreve seú
deserto pessoal, ele afirma que o sofrimento liberta-nos da
dependência dos resultados exteriores. Tornamo-nos cada vez
menos impressionados com a religião dos grandes
, acontecimentos, dos templos, dinheiro e milagres, para nos
preocuparmos mais com aquilo que de fato necessitamos.
Tornamo-nos cada vez menos preocupados com o nosso destino
e nos colocamos mais e mais nas mãos de Deus e dos outros.

53. MAAS, Robin e ODONNELL, Gabriel. Spiritual Traditionsfor the Contemporary


Church, Abingdon Press, Nashville, 1990, p. 64.

118
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

E passavam quase despercebidos.


No entanto, também a vida encorajada
Começa a brotar mais firme e sólida,
E nos surpreende a prefundidade ignorada
Que surge em nós mesmos,
A partir de nossa abertura
Para o infinito Deus.

III O silêncio, então, se transforma em luta,


Corpo a corpo com os vícios da alma,
E com os fantasmas e seus exércitos de medos,
E as novas exigências
De uma autonomia inesgotável.
O silêncio é tenso,
Implacável e decisivo.

Na luta, algo em mim morre,


Algo volta a ser clandestino,
Mas também algo novo se afirma.
Saio, no entanto, marcado
Pela agonia do arrependimento,
E traniformado pelo Espírito.

IV O silêncio se cristaliza
Diante desta acolhedora e santa presença.
Passa-se da loucura do "cronos"
Para o descanso do "sabat"
E para a plenitude de um "kairos"
Fértil de convicções infinitas
E de vida recém-nascida.
Sereno estar em companhia
De quem me abre o espaço
De seu amor discreto e silencioso,
Onde se faz consistente minha harmonia
E minha paz de alma.

O silêncio se faz silêncio pleno,


Confiante, alegre, repousante, inovador.
Q silêncio é palavra encarnada
E oração sem palavras. 54

54. Poema de autor desconhecido, traduzido e adaptado por Osmar Ludovico da Silva.
120
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

Martírio: Uma das preocupações dos Pais do Deserto


era a ausência do martírio e sofrimento que a tranqüilidade
constantiniana havia criado/O sangue dos mártires sustentava a
integridade dos cristãos e do evangelho/e, uma vez que ele não
era mais requerido por não haver mais nenhum tipo de
perseguição, t emia-se por uma frouxidão religiosa e,
conseqüentemente, um esfriamento da fé apostólica.
E preciso mais uma vez lembrar que o movimento
monástico foi uma resposta a um contexto muito específico, e
que sua grande contribuição para a história da igreja está
exatamente na forma radical com que responderam aos seus
desafios. Talvez, de todos os ideais monásticos, o que mais nos
choca pela sua radicalidade seja o martírio, que chegou até
mesmo a impor sessões de autoflagelo àqueles que buscavam
uma vida de pureza e santidade. Mas, como não é nosso objetivo
analisar detalhadamente o monasticismo com seus
desvirtuamentos, mas sim suas contribuições para a
espiritualidade cristã, resta-nos perguntar qual a contribuição
do martírio para a espiritualidade moderna.
A fé cristã tem como símbolo a cruz. O Rev. John Stott
mostra o paradoxo que é para muitos cristãos aceitar a cruz
como símbolo da sua fé. O que ela representou para o Senhor
crucificado deve continuar representando para a igreja moderna.
A escolha que os cristãos .fizeram da cruz como
símbolo da suafé é tanto mais surpreendente quando
nos lembramos do horror com que era tida a
crucificação no mundo antigo. Podemos compreender
por que a mensagem da cruz que Paulo pregava era
"loucura" para muitos (1 Co 1.18-23). Como
poderia uma pessoa de mente sadia adorar como Deus
um homem morto, justamente condenado como
criminoso e submetido à forma mais humilhante de
execução? Essa combinação de morte, crime e vergonha
colocava-o muito além do respeito, sem falar da
adoração. ss

SS. STOTT, John. A Cruz de Cristo. Editora Vida, Miami, I 99 I, p . I 7.


O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

A cruz, além de simbolizar o triunfo de Cristo sobre o


pecado, o mal e a morte, simboliza também o caminho do
discipulado cristão, da fé em Cristo, da peregrinação da igreja
no mundo. Sempre que os cristãos vivem momentos de paz,
tranqüilidade e prosperidade, a cruz é facilmente trocada por
outros símbolos da fé. Hoje, não seria exagero dizer que para
muitos um carro novo, de preferência importado, ou uma bela
casa de campo ou praia, associada à ;nansão ou duplex da
cidade, são os novos símbolos da fé./Vivemos um momento
em que o sofrimento é consideraqo maldição e a prosperidade
material é,? único referencial concreto da presença e bênção
de Deus/E bem possível que a cruz, com tudo o que ela
representou e tem representado na história do cristianismo,
esteja perdendo seu poder de transformar-nos em verdadeiros
discípulos do "Servo Sofredor".
O martírio foi, em certo sentido, uma tentativa de resgatar
o significado da cruz para o discípulo de Cristo. De uma forma
ou de outra, a igreja sempre cresceu e caminhou sob a sombra
dos seus mártires. Viver a experiência cristã onde o martírio não
era contemplado como um fato decorrente da fé representava,
no mínimo, um grande perigo. O sofrimento não era visto como
um acidente, mas um fato que acompanhava a vida de todos
aqueles que desejassem seguir a Cristo e sua Palavra. Não há
como fugir dele. John Yoder, em seu livro A Política de Jesus,
ao expor o texto bíblico que afirma a necessidade de cada seguidor
de Cristo tomar sua própria cruz, renunciar a tudo quanto tem,
e então segui-lo, define esta cruz que todo cristão carrega, não
como aqueles acidentes imprevisíveis, enfermidades inesperadas,
mas como o fruto de uma opção consciente e previsível que
cada um faz ao se decidir por Cristo.56 O caminho do discipulado
cristão é definido pelo mesmo significado que a cruz teve para a
missão de Cristo. Mas, seria possível para a igreja fabricar um
martírio? Provocar alguma perseguição? Não estaria ela correndo
o risco de ser uma comunidade masoquista? É possível que sim,
mas a lição que os mártires nos legaram foi a de que a cruz
continua no centro da fé cristã. Não é preciso provocar o martírio,
nem mesmo alguma perseguição. O caminho do discipulado
sempre será um caminho em direção ao Calvário. Não é
S6. YODER, John. A Política de Jesus. Ed. Sinodal, São Leopoldo, 1988, p. 64.
122
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

necessário assumir o voto da castidade para impor sobre nós


alguma forma de sofrimento, mas é preciso entender que ainda
há muito o que fazer para conduzir a igreja de Cristo à comunhão
com o seu Senhor. Como o apóstolo Paulo diz: ''.Agora me regozijo
nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições
de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja"
(CI 1.24). O apóstolo descreve aqui um sofrimento (martírio)
constante ao qual é submetido todo aquele que deseja servir a
igreja de Cristo. Ele não está falando de um sofrimento vicário
- este, Cristo já realizou por completo -mas de uma comunhão
no mesmo sofrimento de Cristo por sua igreja.
Os Pais do Deserto buscavam viver com tal radicalidade
o discipulado, que impunham sobre si tudo quanto o seu Senhor
sofreu. Muitos tentaram jejuar por quarenta dias e quarenta
noites, praticamente todos despojaram-se dos seus pertences,
muitos assumiram a mendicância na sua forma mais radical
por acharem que é assim que o cristão alcança a plena
dependência de Deus e sua graça. O princípio que os movia a
tal atitude não era o de alcançar alguma graça divina, mas o de
reconhecer que não podiam viver de forma diferente da que
viveu o seu Senhor. Para eles era uma grande honra e privilégio
sofrer como Cristo. Penso que a grande contribuição do martírio
na espiritualidade monástica é o resgate do lugar do sofrimento
na teologia cristã. Tudo o que vimos até agora (ascetismo,
imitação, silêncio) traz, em alguma medida, uma forma de
martírio ou sofrimento. Até mesmo o silêncio, como exercício
ascético, não deixa de ser uma prática dolorosa.
A preocupação do homem moderno é a de criar meios
que evitem sofrimento e dor. Os grandes avanços da ciência
dão-se exatamente nesta área. O padrão de vida e conforto
do homem neste final de século alcança níveis jamais
imaginados, e quanto maior o conforto, menor a disposição
para o sofrimento e renúncia. Sem dúvida alguma, vivemos
hoje um momento muito semelhante ao dos séculos III e IV.
O crescimento das igrejas evangélicas, sua popularização e
inserção no mundo político, econômico e social, a conversão
de personalidades famosas deu aos evangélicos um "status"
àté então jamais experimentado. Todo o sentimento de
minoria e perseguição que caracterizou o protestantismo no
123
O Caminho do CorafáO Ricardo Barbosa de Sousa

Brasil desde a chegada dos primeiros missionários desaparece,


dando lugar a um novo sentimento de "minoria ascendente e
popular". Os evangélicos agora têm presença garantida nos
grandes fóruns do debate nacional e nas manchetes dos
jornais, revistas e TY. Se isto, por um lado, representa novas
oportunidades de evangelismo, por outro é motivo de
preocupação e cautela. No tempo de Constantino, a igreja
experimentou algo muito semelhante com a conversão dele.
O cristianismo, além de tornar-se uma religião oficial, tornou­
se também popular, atraindo para si homens e mulheres cuja
; principal motivação não era Cristo e sua cruz, mas os
· benefícios materiais, sociais e políticos que esta "conversão"
poderia proporcionar.
Foi dentro deste contexto que muitos cristãos deixaram
suas cidades e igrejas para iniciarem um dos movimentos mais
significativos da história do cristianismo. A busca pela
preservação daquilo que acreditavam ser as raízes do
cristianismo primitivo foi sua motivação básica. Talvez a igreja
evangélica moderna necessite hoje pensar numa proposta
monástica que a leve a preservar a natureza original do
cristianismo histórico. O monasticismo moderno não necessita
reproduzir a mesma experiência do monasticismo dos séculos
III e lV, mas buscar um caminho que nos ajude a preservar a
cruz no centro da experiência cristã. Quando olhamos para
trás, para a história, reconhecemos que o que preservou a igreja
não foi o cristianismo decadente do império, com seu luxo e
riqueza, mas os grupos monásticos cenobíticos57 ou os eremitas
que, com sua radicalidade e sinceridade, mesmo cometendo
erros grosseiros, deram sustentação àquilo que criam ser a
natureza e vocação da igreja.
Sofrimento e dor deram lugar à segurança e ao conforto.
O único antídoto contra a tentação do comodismo é o resgate
da cruz e seu significado para o discipulado. O martírio na
tradição monástica contribuiu para que a igreja não perdesse
de vista a natureza de sua vocação missionária e profética. O
desafio da igreja moderna diante do seu crescimento e
popularização é o de buscar meios que preservem para gerações

57. Expressão que define uma categoria de mosteiros comunitários.

124
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

situação, nem como instrumento de manipulação de Deus e


sua vontade, mas como instrumento de humilhação e
conformidade com a vontade e propósito do Criador. Muitos
hoje, em virtude de terem desaprendido o significado da
obediência, entendem a oração apenas como instrumento de
realização dos seus próprios projetos e desejos. Oram exigindo
que Deus faça conforme eles mesmos determinam. Revoltam­
se e duvidam do amor e justiça de Deus quando não vêem
suas orações sendo atendidas na f orma e no tempo que
estabeleceram. Esta arrogância espiritual própria do nosso
tempo nasce de uma completa perda da natureza da submissão
e da obediência a um Deus que revela o nosso pecado, bem
como sua glória e justiça.
A obediência, para os Pais do Deserto, conduzia a dois
caminhos. Primeiro, ao caminho em direção ao próprio Deus.
Para eles/o orgulho era uma forma de mentira e cegueira que
distorce agnagem de Deus e compromete toda a espiritualidade
humana/E somente através da obediência e humildade que
podemos resgatar a imagem de Deus e estabelecer um
relacionamento sadio e transformador: Segundo, ao caminho
em direção a nós mesmos e aos outros. Para os Pais do Deserto,
o orgulho também afeta o que pensamos de nós mesmos e dos
outros. Portanto, a obediência tem a ver com a forma como
ífalamos com os outros e dos outros. Tem a ver com os juízos'
'que estabelecemos sobre os outros e nós mesmos, e a paciência''
_,, �e perdão com que recebemos essas pessoas.
Como podemos ver, a obediência e a submissão, quando
reconhecidas como virtudes espirituais que tornam o coração
humano mais dócil e receptivo, abrem portas e quebram
barreiras pari; a construção de relacionamentos mais profundos
e pessoais. E somente quando no silêncio e contemplação
conhecemos o amor e o poder de Deus que nos tornamos aptos
para entregar-nos em submissão e obediência a Deus e aos
outros.
/Normalmente é a insegurança afetiva que leva muitos. a
bptarem pelo poder e controle e não pelo amor e obediência/A
submissão é a opção que fazemos pelo amor e a renúncia ao
poder. Como já disse, não se trata de uma estrutura de poder

127
O Caminho do CorafãO Ricardo Barbosa de Sousa

onde a obediência é exigida, mas de uma opção pelo amor onde


a obediência é experimentada como caminho de conhecimento e
crescimento. A submissão de um marido a sua esposa, e vice­
versa, não se dá por uma estrutura de poder estabelecida no lar,
que determina quem manda em quem, mas por uma relação de
amor onde ambos depõem suas armas e, humildemente, buscam
juntos a verdade. O orgulhoso e arrogante nunca busca nem
encontra a verdade porque vive sozinho, não se sujeita a ninguém,
nem mesmo a Deus.
Recentemente, conversando com um grupo de amigos
sobre o lugar da obediência e submissão na experiência espiritual,
concluímos que, na verdade, nenhum de nós tinha alguém a
quem devesse prestar contas da sua espiritualidade. Eramas
cristãos avulsos e, conseqüentemente, vulneráveis. A obediência
coloca-nos mais próximos em relação aos outros, cria vínculos e
laços afetivos, desarma o coração e a mente e abre-nos a
possibilidade para uma verdadeira experiência comunitária. Esta
sujeição que descobrimos que não tínhamos, reconhecemos ser
essencial à sobrevivência da alma. É diferente de uma obediência
formal, hierárquica, estrutural; trata-se de urna postura, uma
disposição do coração e alma, uma opção pelo amor e uma
renúncia ao poder e ao controle. Esta disposição é encontrada
não somente na nossa relação com Deus, mas igualmente ,na
nossa postura para com os homens e os mistérios da vida. E a
disposição do coração de quem reconhece que sozinho nada irá
encontrar, mas que na companhia dos outros encontra o caminho
da vocação e da comunhão.
É sempre bom lembrar que a nossa salvação tornou-se
possível por causa da obediência de um homem, a saber, Jesus
Cristo. "Porque, como pela desobediência de um só homem
muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da
obediência de um só muitos se tornarão justos" (Rrn 5 .19).
Foi por sua postura obediente que Jesus nos trouxe a salvação.
A segurança que encontrara na comunhão com o Pai deu a ele
a liberdade de sujeitar-se aos homens, inclusive aos mais
perversos. Quando Pilatos o interroga e afirma que o poder,
tanto para sua condenação como para sua absolvição, está em
suas mãos, Jesus responde dizendo que o verdadeiro poder não
pertence a Pilatos, mas ao seu Pai, a quem de fato sua vida e
128
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

destino já estavam determinados pelo seu amor. A submissão


de Jesus só era possível porqµe não temia a nenhum outro
senão o Pai do céu.
Se queremos crescer pessoalmente, espiritualmente e
vocacionalmente, precisamos descobrir a virtude da submissão
como disciplina espiritual. Quero convidá-lo a refletir nas
palavras de George Matheson, que apresentou este grande
paradoxo da submissão e liberdade nestes versos:
Faz-me um cativo, Senhor,
E livre então serei;
Obriga-me a entregar a espada
E serei conquistador.
Nos alannes da vida me afundo
Quando estou só;
Aprisiona-me em teus braços,
Eforte minha mão será. 60

O LUGAR DO DESERTO NO ENCONTRO


COM DEUS
O deserto deve ser visto não necessariamente como um
afastamento geográfico e social, mas como uma atitude, uma
postura diante de Deus e de nós mesmos. É o lugar ou situação
onde aquilo que supomos ser é desmascarado, onde nossas
ilusões são confrontadas com a verdade e nossas idéias e
conceitos sobre Deus são substituídos pela revelação de Deus
mesmo. Às vezes somos levados a ele, como no caso de Jó;
outras o provocamos, como o fizeram os Pais do Deserto; mas
o essencial é a postura, a disposição para este encontro. Jó foi
conduzido involuntariamente ao seu deserto para esta
experiência com o vazio, despojando tudo o que não era Deus
para encontrar-se com Deus; já os monges do deserto
provocaram-no, retirando-se para as regiões desérticas e remotas
do Egito, Palestina e Síria. Não importa onde é o deserto de
cada um, mas sim sua importância e necessidade no encontro
com Deus e conosco mesmo.

60. FOSTER, Richard. Op. Cit., p. 141.


O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

Muitas vezes, uma mudança ou uma enfermidade, a


perda de um emprego estável ou de um ente querido pode se
transformar num deserto. Quando alguém que se julga famoso,
conhecido pelo que faz, honrado e respeitado pela sua
comunidade, é colocado num lugar onde ninguém mais o
conhece e nunca soube dos seus feitos, pode encontrar ali o
seu deserto. O deserto é um lugar de dor, mas também um
lugar de transformação. O mundo nos ilude, a igreja muitas
vezes também nos ilude, nossas fantasias e máscaras alimentam
estas ilusões e criam um mundo irreal, falso, onde lutamos
desesperadamente para preservar nossas ilusões.
O deserto é o lugar onde os ídolos são quebrados.
Facilmente apegamo-nos a tudo aquilo que, de alguma forma,
dá-nos proteção, significado e realização. São pequenos ídolos,
aparentemente inofensivos, mas que atuam com enorme poder
sobre a vida humana, a ponto de reduzir Deus a uma mera
força espiritual preservadora do "status" alcançado pelos nossos
ídolos. Deixe-me ser um pouco mais claro. Para muitos cristãos,
o centro em tomo do qual giram suas vidas não é Deus e a
vontade divina, mas é seu trabalho, posição social, família,
estabilidade econômica, realização profissional, etc. Quando
uma ou mais destas coisas são abaladas, ou mesmo arrancadas
de nós, seja a estabilidade econômica ou familiar,
freqüentemente perguntamos: "Onde está Deus?" Como se
Deus tivesse ido embora com a estabilidade. De fato, para
muitos ele vai embora quando se perdem bens de grande valor.
A estabilidade, os bens ou mesmo a profissão transformam-se
facilmente em nossos ídolos, e Deus não passa de urna força
que opera na preservação daquilo que de fato sustenta nossa
crença. O deserto é o lugar onde os ídolos modernos são
quebrados, onde, não existe nenhum outro valor que possa
substituir Deus. E tamb�m no deserto que o homem não tem
mais onde se esconder. E lá que experimentamos a proteção,
significado e realização que vem somente de Deus. Isto porque
facilmente nos acostumamos a dizer que é Deus quem nos
protege, que nos dá significado e razão para viver, quando, na
verdade, a verdadeira fonte da nossa alegria, felicidade e
segurança não é ele, mas os diversos escudos atrás dos quais
nos escondemos. No deserto não há esses escudos, lá não existe
130
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

nenhuma posição social ou eclesiástica atrás da qual possamos


nos esconder. É o lugar da nossa nudez, do nosso total abandono
e do encontro real e verdadeiro com Deus.
O Salmo 139 fala-nos desta experiência do deserto, da
constante tendência que tem o homem de fugir de um Deus
que o conhece plenamente. Não há nada mais desejável, e ao
mesmo tempo mais rejeitado, do que relacionar-nos com alguém
que nos conhece totalmente. Ter um relacionamento pessoal
com Deus é se relacionar com alguém para quem não há
segredos, não há nada que ele não saiba, não há gestos, palavras,
passado, pensamentos, sentimentos, desejos, que Deus não
conheça completamente. Às vezes fico me perguntando como
é que se dá um relacionamento com alguém para quem eu não
tenha nenhum segredo. Com quem eu não precise vestir minhas
fantasias, nem tentar impressionar com minhas conquistas.
Onde não tenha que me afirmar com minhas realizações,
alguém que não é seduzido por minhas conversas vazias?
Nossos relacionamentos são basicamente construídos assim.
Desde cedo aprendemos a representar, a procurar impressionar
as pessoas, a buscar a auto-afirmação no trabalho e nas
conquistas. Os relacionamentos são com pessoas que não nos
conhecem pelo que somos e sim pelo que fazemos, que nos
amam não necessariamente porque nos conhecem, mas porque
nos julgam úteis, de quem procuramos sempre esconder aquilo
que sabemos poderia prejudicar a imagem que queremos que
tenham de nós. O Salmo 139 fala-nos da descoberta de um
Deus para quem não há segredos, que nos conhece e nos ama
exatamente pelo que somos. Este é um relacionamento único,
que tem seu princípio no encontro com Deus no deserto.
Nos primeiros seis versículos, o salmista faz afirmações
acerca do conhecimento que Deus tem do homem,
conhecimento que penetra os lugares mais sombrios e secretos
da alma humana; e conclui gue "tal conhecimento é
maravilhoso demais para mim". E um conhecimento que nos
assusta, desarma-nos, coloca-nos numa posição de completa
vulnerabilidade. Deus não apenas conhece o que fazemos e o
que somos como também antecipa nossas ações. O que falamos,
pensamos, por onde andamos e até os segredos do silêncio do
nosso quarto são conhecidos por Deus. Este conhecimento
uu
O Caminho do Corafão Ricardo Barbosa de Sousa

íntimo que Deus tem do homem é que assombra o salmista, "é


maravilhoso demais", é difícil até de suportar. Ele revela o
caráter pessoal de um Deus que nos conhece como pessoas
que somos e que também revela seu caráter relacional. Deus
não apenas nos conhece como pessoas, mas deseja relacionar­
se conosco pessoalmente.
1
. Do verso 7 ao 12, o salmista descreve a luta constante
, do homem que tenta desesperadamente fugir da presença de
Deus. É bom que fique claro que a presença de Deus é descrita
aqui como um conhecimento pessoal e íntimo que Deus tem
do homem que ele criou conforme sua imagem e semelhança.
Fugir da presença de Deus é fugir deste relacionamento pessoal
que revela quem somos; é continuar nos escondendo de nós
mesmos. Nenhum homem obtém conhecimento de si mesmo
fora de um relacionamento. Não é possível ter um
conhecimento objetivo sobre nós mesmos sem entrarmos numa
relação de amizade e amor. Talvez seja por isto que o
relacionamento humano e pessoal é sempre algo que desejamos
e rejeitamos. Vivemos permanentemente neste conflito entre
a solidão e a comunhão. Para os Pais do Deserto, encontrar
\
. com Deus implica também um encontro conosco mesmos. _1
O problema que o salmista enfrenta e que todos nós
também enfrentamos é que, apesar de ser nossa inclinação
natural tentar nos esconder de quem nos conhece, fugir da
presença de quem sabe nossos segredos mais íntimos, cedo ou
tarde concluiremos que de Deus não poderemos jamais nos
esconder. Não existe um lugar onde o homem possa fugir da
presença de Deus. "Se subo aos céus", diz ele, "lá estás." A
constatação assombrosa do salmista é que não há um lugar no
universo onde eu possa me encontrar absolutamente só. Este é
o dilema. A natureza humana procura sempre esconder-se da
face do Criador porque sabemos que ele nos conhece muito
bem e não nos interessa relacionar-nos com alguém para quem,
não é possível esconder coisa alguma. Foi assim no início, logo ..
após a queda, quando o homem, ao descobrir sua nudez,,
escondeu-se do Criador e do próximo; e assim tem sido por
toda a história. Sonhamos com algum lugar, seja ele um abismo
ou o próprio céu, uma ilha deserta no fim do mundo ou as
trevas dos nossos vícios e loucuras; mas precisamos de um lugar
132
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

onde ninguém nos conheça, um lugar onde possamos nos


esconder. Este lugar poderia ser nosso ministério ou, quem sabe,
nosso trabalho. Mas precisamos de um lugar para nos
escondermos da face do Senhor; porque, ao contemplarmos
sua face, teremos que contemplar a nossa também, e é disto
que fugimos.
O salmo continua, agora revelando-nos a ação de Deus
em criar-nos, em tecer-nos desde o útero de nossa mãe. Tudo o
que somos, cada célula dó nosso organismo, traz consigo o
toque do Criador. Antes mesmo que houvesse alguma forma
em nós, Deus já nos contemplava e conhecia. Os nossos dias,
nossos passos, cada pensamento, decisão, planos, tudo foi
contemplado, determinado e escrito, quando nada havia ainda,
nem sequer um esboço do que haveríamos de ser. Não há nada,
nenhum momento, gesto ou passagem da nossa história que
não tenha sido contemplado por Deus desde antes da nossa
vinda ao mundo. Diante deste fato, sabemos que a única
possibilidade de nos conhecermos como de fato somos não é
através de análises terapêuticas, mas na relação com Aquele, o
único que nos conhece, aceita e ama como de fato somos. Não
existe ninguém que nos c�mheça tão plenamente e tão
intimamente como Deus. E certo que nossas relações de
amizade são fundamentais para conhecermos mais a Deus e a
nós mesmos; no entanto, o que o salmista nos afirma é que
ninguém nos conhece como Deus e que não há nenhum
conhecimento objetivo sobre nós mesmos fora desta relação
única com ele. Uma das afirmações deste salmo que mais chama
minha atenção é a do verso 14, que diz: ",Graças te dou, visto
que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as
tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem".
O que determina a auto-in;iagem, a identidade do salmista,
não são os outros com suas impressões, nem o espelho com
sua imagem refletida, mas sua própria alma. É sua alma que
sabe muito bem o que Deus fez e como fez. O deserto
proporciona isto, a possibilidade de dizer "a minha alma o sabe
muito bem" fNão vivo mais na dependência de definir quem
sou pelas máscaras e fantasias que o mundo e os homens
continuam insistindo que eu use, mas Deus, em seu amor e
graça, me conhece, ama e aceita, criou-me para ser único e,

iH
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

quando olho para esta extraordinária obra do Criador, posso


dizer que minha alma, meu ser mais profundo, minha realidade
última, sabe quem sou, e tudo é maravilhoso demais.
É somente diante de Deus que me torno livre para
relacionar-me com outros. É somente diante dele que sou aceito
e amado pelo que sou, por alguém que me conhece
perfeitamente e para quem não existem segredos a meu respeito,
e por isso posso também desnudar-me perante os outros em
confissão e comunhão.�inguérn jamais se aventuraria a se
expor diante do�,outros sem a certeza, mínima que seja, de ser
amado e aceito,)Mas, diante de Deus, podemos experimentar
esta sensação ,!. certeza do amor e aceitação que nos liberta
para relacionamentos mais humanos e verdadeiros. Esta é,
basicamente, a experiência espiritual que o deserto possibilita.

O salmo conclui com urna oração. Uma oração para que


Deus compartilhe conosco este conhecimento, para que nos revele
aquilo que somos diante dos seus olhos. Urna oração que é também
um convite para que, ao invés de fugir da presença de Deus,
façamos do nosso coração ,e alma o lugar da sua habitação, da
comunhão e da amizade. íSonda-me, ó Deus, e conhece o meu
coração", revela o que há denv.? de mim, quem sou, meus pecados
e virtudes, meu amor e ódiQ/'t esta a oração que fazemos diante
de alguém que nos conhece� ama tanto. Diante do conhecimento
maravilhoso da graça de Deus em formar-nos, por saber que o
que somos é, antes de tudo, um ato do seu amor, somos levados a
abrir o coração e deixar que Deus penetre, que nos revele os
pensamentos, os caminhos e os segredos. Não há lugar onde eu
possa me esconder do Deus que me conhece e ama.
O deserto na vida espiritual tem este papel. Ele nos levá
a esta oração: "Sonda-me, ó Deus". Foi assim que aconteceu
com Jó e tem acontecido com todos que, após inúmeras
tentativas frustradas de fugir de Deus, se rendem ao seu amor
e permitem que Ele lhes desnude a alma e o coração, revele os
segredos mais profundos de suas vidas, arranque as máscaras
de suas ilusões e resgate a beleza de sua humanidade, fazendo
deles pessoas verdadeiras, que estabelecem com Ele uma nova
relação pessoal, afetiva e íntima.

134
O Lugar do Deserto /Ul Conversão do Coração

O DESERTO NA EXPERIÊNCIA BÍBLICA


O povo hebreu viveu literalmente uma experiência de
deserto que ilustra bem o que estamos tentando demonstrar.
Sabemos que este povo passou mais de quatro séculos vivendo
sob o domínio e cativeiro egípcio. Durante todos estes anos,
muitos valores, hábitos e costumes pagãos, estranhos aos
propósitos de Deus, foram incorporados à sua própria cultura
e religião, sem que se dessem conta da gravidade destas
mudanças. Em parte conservaram sua identidade religiosa, seu
monoteísmo, sua esperança na terra prometida. Mas o vírus
do paganismo já havia minado suas bases religiosas e sociais, e
separar uma coisa da outra não era tarefa fácil.
Após todos aqueles anos foram enfim libertos e iniciaram
sua jornada pelo deserto, em direção à terra prometida. Durante
a peregrinação, os vícios que foram incorporados no tempo do
cativeiro começaram a mostrar seu poder e domínio. Aqueles
valores que jaziam silenciosamente nos compartimentos
secretos do coração, diante da dor e solidão do deserto vieram
à luz, mostraram sua face; trouxeram para o cenário uma
realidade muito mais dura do que o cativeiro em si: o cativeiro
do coração. A saudade da "segurança" que gozavam no cativeiro
tornou-se aguda. A liberdade, a terra para plantar e ver crescer
os filhos, um lugar de culto e adoração onde pudessem
livremente celebrar o Deus da vida já não eram a coisa mais
importante. A segurança da certeza de ter refeições na hora
certa, a garantia do "futuro" dos seus filhos, a certeza de que
não seriam perseguidos e massacrados pelas forças inimigas,
fizeram com que muitas vezes eles desejassem retornar ao
cativeiro seguro do Egito.
O deserto foi, na verdade, uma experiência espiritual,
pedagógica e libertadora. Espiritual porque revelou a distância
em que se encontravam de Deus. Embora os conceitos
monoteístas com que foram educados e as tradições dos seus
pais permanecessem na memória deles, Deus como Criador e
Senhor de suas vidas já não ocupava o mesmo lugar. Puderam
perceber com clareza dramática o vazio da alma. Foi também
uma experiência pedagógica porque demonstrou através dt�
fatos e da própria experiência a verdade sobre o caráter de um

l.H
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

povo que, conquanto afirmasse sua fé inabalável no Criador,


pôde perceber que esta fé não era tão sólida quanto eles
afirmavam ser; o conhecimento de Deus não era tão claro e
sua esperança não era tão real. Por fim, foi libertadora porque
o povo, através de todas as experiências vividas, pôde, ao
perceber a verdade sobre sua própria fé e caráter, experimentar
um processo de libertação das suas próprias ilusões.
Embora os hebreus desejassem a liberdade e buscassem
ansiosamente por um lugar que fosse seu, não tinham sequer
noção do significado dela. Ninguém daquela geração que foi
liberta do cativeiro havia tido alguma experiência com a
liberdade. Todos eram filhos, netos e bisnetos de escravos. A
liberdade existia apenas como um anseio, um anelo distante,
um sonho acalentado e compartilhado por um povo cansado
de ser explorado. A peregrinação pelo deserto torna este sonho
de liberdade uma experiência real onde o preço a ser pago para
conquistá-la pode ser a ilusão da segurança que a escravidão
cria. Neste sentido, o deserto funcionou como um agente
purificador e transformador. Durante a peregrinação, aqueles
vícios e valores que estavam guardados nos lugares secretos do
coração e da alma do povo foram expostos de forma
insofismável. O deserto revelou os segredos mais profundos da
alma, inclusive a idolatria que orgulhosamente rejeitavam e
que jamais seriam suficientemente honestos para reconhecer.
A verdade é que daquela geração ninguém, com exceção de
Josué e Calebe, entrou na Terra da Promessa. Todos pereceram
no deserto. Somente uma geração que nasceu fora do cativeiro,
filhos da liberdade, é que entrou.
De uma forma ou de outra, todos nós carregamos nossos
segredos na alma, segredos que somente o deserto é capaz de
expor diante de nós e de Deus. Muitas vezes, nem mesmo nós
conhecemos esses segredos, mas eles estão lá, determinando
os rumos e valores da nossa vida. São nossos ídolos secretos
que, como já vimos, precisam ser expostos no deserto da nossa
existência, para serem conhecidos e exorcizados. Esses ídolos
podem ser nosso trabalho, ministério, família, igreja, missão,
dinheiro, poder, sexo e muitas outras coisas que, ao invés de
proporcionarem liberdade e amor, tornam-nos escravos da sua
segurança e das sensações que nos criam. Na verdade, o ídolo
136
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

não é outra coisa senão uma negação do próprio Deus. Quando


qualquer uma destas coisas substitui aquilo que somente Deus
pode fazer, transforma-se num ídolo. Quando nossa realização
só se dá no trabalho, nossa segurança depende da conta
bancária, nossa felicidade do sexo, transformamos num deus
aquilo que deveria ser uma dádiva divina. O deserto existe
para expor estes segredos do coração.
Este é o grande legado da experiência monástica. A solidão
do deserto é absolutamente necessária para a purificação da alma
e do coração. Não temos sequer a idéia do quanto nosso coração
está impregnado de valores mundanos. Como diria o salmista,
nascemos em pecado e em pecado fomos concebidos. O pecado
está presente em nossas entranhas, determinando o sentido da
vida e até mesmo da experiência da fé. Experimentar o deserto,
seja ele na forma literal dos Pais do Deserto, ou na forma do
sofrimento de Jó, ou mesmo numa experiência única e singular
que a graça de Deus nos conceder, é sempre um caminho para
estreitar nossa comunhão com Deus.
O encontro com Deus e o cultivo da sua presença em
comunhão e adoração é a finalidade de toda a experiência cristã,
bem como do ensino teológico. O Catecismo Maior da
Confissão de Fé de Westminster começa assim: "A finalidade
principal do homem é conhecer a Deus e gozá-lo para sempre".
Este encontro com Deus é também, na linguagem de Santo
Agostinho, um encontro conosco, com nosso coração, uma vez
que é lá que Deus habita. Conhecer a Deus e não conhecer a
nós mesmos é uma grande falácia.
Diante de Deus, está sempre a descoberto o abismo
da consciência humana: que poderia haver de oculto
em mim para Deus, por mais que eu não quisesse
dizer a verdade? Conseguiria apenas ocultar Deus
aos meus olhos, mas não poderia ocultar-me dos seus. 61
Para Agostinho, esconder a verdade sobre mim mesmo é
me esconder de Deus. O deserto promove estas duas fontes de
conhecimento: a de nós mesmos e a de Deus. Por um lado, o

6I. AGOSTINHO, Santo. As Confissões. 2ª edição. Quadrante, São Paulo, 1989, p.


177.
O Caminho do CorafãO Ricardo Barbosa de Sousa

deserto é o processo pelo qual as verdades secretas da nossa


alma são reveladas, ajudando-nos a conhecer a nós mesmos. Já
falamos sobre isto. Por outro lado, juntamente com o processo
de desnudamento de nós mesmos, o deserto promove também
uma revelação mais profunda e íntima de Deus. Isto se dá
porque enquanto mantemos a ilusão sobre nós mesmos,
agasalhando uma falsa imagem sobre nós e o mundo que nos
cerca, criamos também uma imagem falsa de Deus e do seu
reino. A busca pelo deserto, na experiência monástica, tinha
exatamente esta finalidade: fugir do mundo e suas paixões para
o encontro com Deus. Esta fuga, como já dissemos, não é como
a de muitos hoje em dia, mais próxima de um escapismo
irresponsável, mas, sim, uma busca por santificação e comunhão
íntima com Deus mediante a renúncia das paixões mundanas
e o encontro do coração com Deus.

O LUGAR DO DESERTO
NA EXPERIÊNCIA CRISTÃ
Para Segundo Galilea,62 o deserto na experiência espiritual
significa pelo menos quatro coisas. Primeiro, "uma experiência
do absoluto de Deus e do relativo de tudo o mais, incluídas aí as
pessoas e nós mesmos". É no deserto que nos encontramos sós
diante de Deus. Ali não existe nenhuma outra alternativa, senão
Deus somente. Todas as outras coisas são relativizadas, colocadas
no seu devido lugar, e somente Deus pode dar sentido a elas. Jó,
no meio da sua crise, viu-se exatamente assim. Não havia mais
nada, a não ser Deus. Todos os seus valores, bens, família,
teologia, foram relativizados. Sua única esperança era que Deus
mesmo viesse ao seu encontro revelando a gratuidade da sua
graça. Deserto significa espera, silêncio, encontro para poder
dizer: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te
vêem" (Jó 42.5). Por isto torna-se necessário para todos os
cristãos promoverem sua experiência pessoal de deserto. Separar
um momento ou criar situações onde seja possível relativizar
aquilo que facilmente absolutizamos em nossa vida. Ou seja,
colocar o trabalho, a família, o dinheiro, o "status", o lazer, o
ministério, a igreja, as experiências espirituais no seu devido
62. GALILEA, Segundo. Op. Cit., p. 48.

138
O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

lugar. Não permitir que nenhuma destas realidades da vida ocupe


o lugar soberano de Deus na nossa alma.
Infelizmente, não aprendemos a cultivar nosso deserto
voluntariamente. Invariavelmente somos levados a ele em virtude
de crises ou sofrimentos que se instalam no nosso caminho, e que
nos levam, muitas vezes, a uma reação de inconformismo e
rebeldi_é! e não de aprend!z;ª-.do e r�n!lnda. Normalmente, um
padé�te em estadotenninal oÜ--s-e revolta com a injustiça da
situação em que se encontra, ou, humildemente, reconhece a
fragilidade da existência humana e aprende, mesmo que num
processo doloroso, a colocar as coisas no seu devido lugar..
Em segundo lugar, "o deserto é o lugar da autenticidade
e da verdade". Sendo um lugar de solidão, é também o lugar
do encontro conosco mesmo, com nossas mentiras e ilusões.
Vemo-nos como Deus nos vê. Ali não temos para onde correr
nem esconder. A ambigüidade das nossas motivações vem à
tona, e todas aquelas ambições que nos ocupam dia e noite,
como realização, poder, riqueza, profissão, prestígio e
conhecimento, perdem seu poder de enganar desviando-nos
da verdade. É no deserto que se dá a · nossa conversão e
santificação. "O deserto é o caminho da libertação interior,
onde 'Deus fala _ao coração' e onde o espírito do mundo, que
nos fascina, pode emudecer".63
Um dos textos bíblicos que melhor definem o propósito
pedagógico do deserto encontra-se em Deuteronômio 8.2, que
diz: "Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor
teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te
humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração,
se guardarias ou não os seus mandamentos". A finalidade dos
quarenta anos no deserto para o povo hebreu foi a de revelar
os segredos do coração e expor suas mentiras e ilusões. Já
falamos sobre isto, mas vale a pena deixar bem claro este
princípio: um dos grandes obstáculos à espiritualidade cristã
são nossas próprias ilusões.
Em terceiro lugar, "o deserto nos abre à verdadeira
solidariedade e misericórdia para com o irmão; ensina-nos a

63. GALILEA, Segundo. Op. Cit., p. 48


139
O Caminho do Coração Ricardo Barbosa de Sousa

amar verdadeiramente". Ao sermos confrontados conosco


mesmos, e ao relativizarmos tudo, passamos a experimentar
uma nova relação com o próximo. O deserto proporciona uma
consciência mais real e verdadeira sobre mim mesmo, e isso
livra-me de julgar os outros, de criticá-los, de sentir-me superior.
Por outro lado, ao relativizar tudo, minha percepção do próximo
deixa de ser determinada pelo que ele tem ou faz, para ser
determinada por quem ele é. O pobre deixa de ser um
"problema" ou mesmo um objeto da minha ação missionária e
pastoral, e passa a ser uma pessoa com a qual eu me relaciono
em amor e afeto. O deserto tem o poder de humilhar-nos, de
fazer-nos reconhecer e aceitar quem realmente somos.
A competitividade e o individualismo são os obstáculos
maiores que encontramos no caminho do amor e do
relacionamento pessoal. O deserto, na experiência monástica,
tinha o poder de resgatar a virtude do amor e da humildade,
uma vez que ali não havia estes dois elementos tão nocivos ao
relacionamento pessoal. A partir do momento em que tudo o
que temos somos nós, nosso próximo e Deus, só nos resta então
a alternativa do amor. O deserto elimina tudo aquilo que se
coloca entre nós e o nosso próximo.
Em quarto e último lugar, "o deserto é o lugar da tentação
e da crise, e sua superação". Da mesma forma que para Jó, o
deserto é o lugar do encontro com Deus, mas também com o
demônio. Deus e o diabo estavam presentes na crise de Jó. O
deserto era a oportunidade de Jó escolher se seguiria com Deus,
apenas pelo desejo de amá-lo e servi-lo, ou se fechar-se-ia dentro
de si mesmo, dando ao diabo o prazer da vitória. Ir para o deserto
é expor-se à tentação, à semelhança de Jesus. É ali que vamos
definir se iremos ceder aos caprichos e seduções do diabo ou se
vamos render a mais completa obediência e submissão ao Pai.
É por tudo isto que o deserto nos prepara para superar
não só os "desertos" da condição humana, mas também
as tentações e crises às quais somos mais vulneráveis no
decorrer da nossa vida cotidiana. Pois afonna com que
tenhamos reconhecido e rejeitado a sedução do "demônio
do deserto" nos dá a atitude efortaleza para reconhecê­
lo e rejeitá-lo no caminho da nossa vida. 64

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O Lugar do Deserto na Conversão do Coração

A verdadeira guerra espiritual é aquela que se dá no


deserto, no silêncio do nosso quarto, no momento em que nos
retiramos das inúmeras atividades do dia-a-dia. É ali que somos
confrontados com nosSél,S ambições, com a futilidade dos nossos
caprichos. Ao ser tentado no deserto da Judéia, Jesus rejeitou
os caprichos sedutores apresentados pelo diabo para deter-se
apenas naquilo que realmente daria sentido à sua vida e missão.
A sedução do poder e da glória foi resistida pela humildade da
obediência.
O deserto, na linguagem bíblic�, significa confronto, luta,
tentação, despojamento e entrega. E o lugar onde não apenas
resgatamos os propósitos originais da fé cristã que, com o tempo,
se deterioram e são corrompidos, mas também o lugar do nosso
encontro com Deus e conosco mesmo. Quando a igreja
encontra-se numa fase de prosperidade é preciso ter cuidado.
A história já mostrou-nos diversas vezes o tamanho deste risco.
Não podemos e nem devemos impedir o crescimento e
prosperidade do evangelho, mas isto nunca deve ser alcançado
pondo em risco a natureza da fé evangélica. Por isto, torna-se
necessário, em tempos como os que vivemos hoje, reencontrar
o lugar e significado do deserto a fim de preservarmos a fé
apostólica para as gerações que nos seguirão.
O deserto espiritual é esta experiência de encontro com
Deus, onde tudo o que não é Deus se desfaz para que a alma
humana o contemple e adore. Sendo assim, o deserto torna-se
imprescindível para a sociedade moderna como caminho para
expurgar tudo aquilo que confunde nossa alma e coração.
"Fizeste-nos para ti, ó Deus, e nossa alma não repousará
tranqüila enquanto não repousar em ti". Foi assim que Santo
Agostinho expressou seu desejo por Deus. Nossa fome é de
Deus, nossa busca é por Deus. Nossa alma não se satisfará
com nenhuma outra coisa que não seja Deus mesmo. Por isso
o deserto é a opção para todos os que desejam este encontro
1

com Deus. E lá, sem as distrações do mundo, que nossa alma o


verá e se deleitará nele.

64. GALILEA, Segundo. Op. Cit., p. 50.

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