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Apresentação 2
Introdução 8
Carlos Queiroz
Julho de 2013
INTRODUÇÃO
PRÁTICAS DE ESPIRITUALIDADE NA
VITRINA RELIGIOSA BRASILEIRA
1.
ESPIRITUALIDADE NUM
CRISTIANISMO IDOLÁTRICO
RELIGIÃO E IDOLATRIA
Toda religião depende de três agentes principais para o
seu funcionamento:
- divindade(s);
- devotos.
1 No livro A Oração Nossa de Cada Dia (Ultimato. 2013), abordo detalhadamente os três agentes referidos: a divindade, o sacerdote e os
devotos. Aqui concentro-me apenas nos dois últimos.
sacralizados. Na cristandade católica, cabe aos padres a
oração pela hóstia consagrada, o batismo de crianças, a
celebração de casamentos. Tais ritos não são diferentes no
cristianismo de perfil protestante. Mudam-se os
personagens, as formas, os objetos, mas o
empoderamento para o manuseio dos sacramentos é
restrito aos sacerdotes ou agentes mágicos da religião.
Vem desta distorção a separação entre clero e
laicado (sacerdote e povo). A ideia do sacerdócio
universal de todos os santos, propagada pelos
reformadores, traz consigo duas indicações inovadoras.
Primeiro, todas as pessoas em suas profissões cotidianas
estão exercendo um tipo de sacerdócio. É tão sagrado ser
padre ou pastor quanto pedreiro, sapateiro ou médico.
Segundo, todos, mulheres e homens, têm acesso a Deus
sem necessidade de intermediação sacerdotal. Todos os
bens sagrados da vida estão disponíveis a todas as
pessoas. Os sacramentos religiosos, por sua vez, são
dados seletivamente através de critérios estabelecidos em
geral pelos especializados ou empreendedores no terreno
religioso.
Na vivência de Jesus e da primeira geração de
discípulos não existiam especialistas para mediação. Eles
não dependiam de lugares ou objetos sagrados. Qualquer
criança era prioridade em seu reino e os plebeus tinham
acesso direto a ele, sem a burocracia religiosa. Aos
pecadores e às pecadoras se garantiam os “primeiros
assentos”. Para Jesus, o religare não era religião, era a
simples convivência dos seres humanos entre si em
confluência com o amor de Deus. As religiões, inclusive
da cristandade, vão continuar fabricando e formatando
seus especialistas e separando o povo do ofício sagrado
religioso. Todavia, se compreendermos bem a
(des)ordem das comunidades inspiradas na vida de Jesus
Cristo e da primeira geração de discípulos, veremos que
essas comunidades não se parecem com as maquetes
religiosas que conhecemos hoje.
Sabemos das limitações dos ídolos. Eles são o
simulacro entre os empreendedores da religião e devotos.
Podem ser trancafiados num templo, num oratório, no
bolso, na mão do sacerdote ou do devoto. O ídolo só
ganha valor e importância depois de abençoado por um
agente especializado da religião, pois, no imaginário dos
devotos, os objetos sagrados só possuem valor divino
quando abençoados pelo especialista da religião ou
sacerdote. Se um ser humano consegue se relacionar com
uma divindade construindo esse nível de controle sobre a
divindade, como não será o seu poder de controle sobre
as pessoas? Num ambiente idolátrico, as condições para o
engano, a usura, a manipulação, o controle e a
dominação sobre as pessoas são fermentadas com mais
facilidade.
***
6.
FUNDAMENTOS DA
ESPIRITUALIDADE E MISSÃO
6.
6.
A GRAÇA DE DEUS
0 RELACIONAMENTO NA ESPIRITUALIDADE
AMOR
O CORAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE
Cingi-vos todos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes concede a sua
graça. Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo oportuno, os
exalte.
1 Pedro 5.5b-6
FÉ TRANSCENDENTE
Aqui a fé será explicada como experiência a priori ou
anterior a outras formas de expressão cognitiva, sejam
elas culturais, políticas, econômicas ou sociais. A fé é
crença inabalável, convicção naquilo que não se vê,
conhecimento e confiança no Inominável, Indescritível,
busca pelo Ser interminável, eterno. Na teologia cristã,
esse conhecimento é denominado de revelação, ato
exclusivo da parte de Deus em se fazer conhecido a quem
ele quer se manifestar. A fé, então, é o atributo ou
sensibilidade humana capaz de responder a essa
manifestação do Eterno. Esta fé transcendente é própria
da natureza humana, está em todas as pessoas, bastando
apenas ser cultivada e desfrutada.
O Antigo Testamento está repleto de exemplos de
pessoas que se permitiram possuir pela natureza desta fé.
É só lembrarmos dos patriarcas, dos profetas, de
mulheres na Bíblia que testemunharam uma percepção
aguçada sobre as manifestações de Deus em suas vidas.
Os relatos sobre as experiências registradas nas
Escrituras mostram-nos a revelação de Deus de uma
forma sobrenatural e aceita somente na esfera do
sentimento da fé subjetiva.
Depois da ressurreição, Jesus apareceu aos seus
discípulos e, diante da descrença de Tomé, lhe disse:
“Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não
viram e creram” (Jo 20.29). Na carta aos Efésios, Paulo se
refere à fé como, um dom de Deus (Ef 2.8-9). O escritor
da carta aos Hebreus, por sua vez, diz: “A fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam, e a prova das
coisas que não se veem.[...] Ora, sem fé é impossível
agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se
aproxima de Deus creia que ele existe, e que é
galardoador dos que o buscam” (Hb 11.1, 6).
Outro exemplo desta verdade na Bíblia é o que
Paulo diz de Abraão, o pai da fé:
E recebeu o sinal da circuncisão, selo da justiça da fé
que teve quando ainda não era circuncidado, para
que fosse pai de todos os que creem, estando eles na
incircuncisão, a um de que a justiça lhes seja
imputada, bem como fosse pai dos circuncisos, dos
que não somente são da circuncisão, mas também
andam nas pisadas daquela fé que teve nosso pai
Abraão, antes de ser circuncidado.
Romanos 4-11-12
Paulo completa dizendo simplesmente que Abraão
creu e “isso lhe foi imputado como justiça...” (Rm 4.22). O
apóstolo está falando de uma confiança em Deus, que se
evidenciou no patriarca antes de qualquer resultado que
a sua fé pudesse manifestar.
No Antigo Testamento, a expressão da fé se dá
como resultado da crença nas Alianças de Deus com
pessoas e nações. Assim, muitos sinais e milagres se
manifestam como confirmação da fé, seja para a missão
específica de alguém, seja para reafirmar o poder de
Deus. Todavia, estamos identificando a fé dentro do
campo do sentimento humano que encontra significado
simplesmente na crença, na confiança total e absoluta em
Deus, uma fé que tentamos descrever com algumas
analogias, mas que jamais será explicada apenas com
meras definições.
Em João 3.1-21, Jesus procurou decodificar para
Nicodemos o mundo espiritual e, mesmo assim,
Nicodemos não o entendeu. O Mestre ironizou: “Se vos
falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se
vos falar das celestiais?” (Jo 3.12). Ensinando aos
Coríntios, Paulo fala de um conhecimento não
interpretável “naturalmente”, refere-se a coisas que olhos
não viram, ouvidos não ouviram, nem jamais penetrou o
conhecimento racional (1Co 2.8-9). Ele discorre sobre
conhecimentos que são discernidos com um critério
espiritual e por pessoas espirituais. Em passagens como
estas, a espiritualidade assume uma esfera sobrenatural,
transcendente.
Pela invasão desta fé subjetiva, muitos homens e
mulheres que acreditaram na morte e ressurreição de
Jesus Cristo tiveram suas vidas ceifadas. Pelo testemunho
de suas vidas e pelo compromisso assumido com o
evangelho de Cristo, tais pessoas foram apedrejadas,
cerradas ao meio, sofreram as mais variadas formas de
tortura e mesmo assim não negaram a sua fé (Hb 11.35-
38).
A espiritualidade inspirada na experiência do
Senhor Jesus foi sempre movida por uma resposta
humana que nos leva a confiar em Deus e a agir tendo
como modelo a vida do Mestre de Nazaré. Por mais que
se tente racionalizar a fé descrita nas Escrituras, ela é
fruto de experiências transcendentes.2 Vemos, portanto, a
fé como uma qualidade do sentimento humano que nos
move em direção a Deus, mesmo antes de qualquer
manifestação religiosa. Existe uma espiritualidade
antropológica que vem antes das religiões. Acreditar, ser
possuído pela fé, é peculiaridade dos seres humanos.
Ainda que as circunstâncias e as experiências da vida
pareçam tão contraditórias e ambíguas, continuamos
acreditando.
2 É o que Paulo denomina de mistério, não concedido a outras gerações, mas a ele, “o menor de todos os santos*, a quem foi “dado
conhecer o mistério da multiforme sabedoria de Deus* (Ef 3.1-1 S). 0 apóstolo procura explicar de maneira racional o significado desta
fé evangélica nas epístolas que escreve. As duas epístolas mais doutrinárias são as de Romanos e Efésios.
De um lado, podemos observar a intenção dos
narradores do Novo Testamento, procurando
sistematizar, de forma inteligente e com argumentação
racional, os fundamentos de sua fé. Lucas, Paulo e Tiago
sinalizam vários elementos dessa tentativa de
sistematização racional da fé. De outro lado, podemos
olhar para as narrativas observando a atitude dos
personagens de cada história. Aí vamos encontrar textos
cuja ênfase está na fé da pessoa doente ou daqueles que
cercavam o Senhor Jesus (Mt 8.10; Mc 2.5; 5.34; 10.52), ou
na falta de fé, que limitava a intensidade dos milagres: “E
não podia fazer ali nenhum milagre, a não ser curar
alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. E
admirou-se da incredulidade deles...” (Mc 6.5-6).
Os milagres realizados por Cristo são narrados
como sinais fora da normalidade. A transformação de
água em vinho, a ressurreição de Lázaro e vários outros
são anunciados no Evangelho de João como testemunhos
da revelação de Deus na vida do Filho. Mesmo que já
percebamos a vida como um milagre per si, os feitos
milagrosos de Cristo fogem se destacam porque fogem
aos acontecimentos naturais de nossa existência.
A fé chega a ser mensurável. Encontramos no Novo
Testamento expressões como: “grande é a tua fé”, ou “fé
como um grão de mostarda”, ou ainda “homens de
pequena fé”. Nestes casos, a fé se apresenta como um
sinal de que as pessoas estão - às vezes mais, às vezes
menos - potencialmente abertas às possibilidades dos
milagres que Deus pode realizar em suas vidas ou por
meio de suas vidas.
Por esta lógica, podemos dizer que a espiritualidade
se caracteriza pela condição individual ou coletiva de se
realizar “o impossível”. A abertura para confiar na
possibilidade do milagre é uma virtude espiritual
desfrutada pelos seguidores de Jesus Cristo. A fé, neste
aspecto, é uma virtude espiritual segundo a qual, pela
oração ou pela escuta, nos tornamos mais ávidos por
confiar no Senhor.
A prática da oração fortalece a fé: “Edifiquem-se,
porém, amados, na santíssima fé que vocês têm, orando
no Espírito Santo” (Jd 20). Também somos fortalecidos
quando praticamos a escuta da Palavra de Deus.
Portanto, a espiritualidade depende da oração e de uma
escuta empática a respeito dos feitos de Deus, tanto
através das Escrituras, quanto ouvindo os testemunhos
dos milagres do Senhor na natureza e na vida das
pessoas.
FÉ CONFESSIONAL
Enquanto as narrativas do Novo Testamento são, em
geral, uma tentativa de convencer, pelo argumento
inteligente, que Jesus Cristo é o Salvador, o Messias
enviado por Deus, as cartas paulinas, especialmente as
doutrinárias, são elaborações sistematizadas, racionais,
que pretendem dar à experiência cristã transcendente um
conteúdo prático e lógico, histórico, tangível e
decodificável, ainda que por meio de analogias, apenas
nos aproximando das realidades espirituais mais
profundas.
É assim que, na tentativa de elaboração da prática
da fé e de sua sistematização, foram e vão surgindo as
confissões e declarações de fé no mundo cristão, um jeito
fascinante de não permitir que a experiência sensitiva
conduza o povo de Deus a um espiritualismo
individualista, fanático e desconectado das realidades da
vida presente. A fé, neste aspecto, deve ser entendida
como baliza da conduta moral, ética e confessional da
comunidade do povo de Deus.
Contudo, devemos reconhecer também que, a partir
da fé confessional, os divisores de águas foram se
estabelecendo no mundo religioso cristão. De início, as
doutrinas eram apenas testemunhos dos novos
discípulos que, pelo arrependimento e pela fé, confissão
de seus pecados e pelo engajamento na comunidade
cristã, confessavam aos “de fora" a sua fidelidade ao
Senhor Jesus Cristo ressuscitado. Depois, foram surgindo
as doutrinas para estabelecer linhas demarcatórias,
também dentro do cristianismo. São bem conhecidos os
documentos mais interconfessionais, como, por exemplo
os credos Apostólico e Niceno.
Com a Reforma Protestante, essas confissões
passaram a ser basicamente um tratado teológico e
doutrinário, e não mais apenas um “hino” confessional
usado na liturgia. A Dieta de Augsburgo, em 1530, ilustra
esse novo momento confessional da igreja cristã.
Outro símbolo deste discurso confessional de teor
teológico aparece no ambiente evangelical
contemporâneo com o Pacto de Lausanne, de 1974, no qual
se verifica também um teor estratégico e ético da missão
da igreja no mundo.
A fé, portanto, quando interpretada com sentido
confessional, assume através dos tempos algumas
particularidades:
1) Inicialmente, com a intencionalidade de
testemunhar e explicitar a fé no evangelho de Jesus
Cristo, para os de “fora”;
2) Num segundo momento, para posicionar-se diante
de ameaças doutrinárias internas ou externas, uma
espécie de busca da unidade pela verdade;
3) Por último, com o propósito de “discernir os
tempos” e praticar com fidelidade e eficácia a missão do
povo de Deus no mundo.
É importante não confundirmos o que estamos
denominando de fé confessional - conjunto de
ensinamentos capaz de discernir e explicitar, por
analogia inteligente, os fenômenos da revelação - com o
neofundamentalismo doutrinário prepotente, desumano,
exclusivista e criminoso, que suprime o dinamismo da
“confissão de fé” como forma de responder
adequadamente aos desafios éticos e sociais de cada nova
geração. Uma fé confessional que gera orgulho
acadêmico, prepotência teológica, divisionismo
doutrinário, discriminação e opressão não sinaliza uma
espiritualidade confessional inspirada na vida do Jesus
Cristo de Nazaré.
A confissão como expressão de nossa fé é uma
manifestação espiritual que busca comunicar, por
analogias e com linguagens variadas, os feitos de Deus na
vida de seu povo ao longo da história da humanidade.
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