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SUMARIO

Apresentação 2
Introdução 8

PARTE 1. Práticas de espiritualidade na vitrina religiosa brasileira


1. Espiritualidade num cristianismo idolátrico 15
2. Espiritualidade fertilizada pela magia e pelo fetichismo 36
3. Espiritualidade como fenômeno de mercado 41
4. Espiritualidade que supervaloriza o estético em detrimento do
ético 46
5. Espiritualidade gnóstica e sensitiva 51
PARTE 2. Fundamentos da espiritualidade e missão
6. A graça de Deus - o relacionamento na espiritualidade 63
7. Amor - o coração da espiritualidade 72
8. Humildade - essência e estética na espiritualidade 84
9. Fé e justiça -transcendência e resposta ética na espiritualidade 89

Referências bibliográficas 105


APRESENTAÇÃO

ESPIRITUALIDADE tem sido um tema muito em


evidência nos últimos tempo. A espiritualidade não é
mais uma abordagem de interesse apenas de pessoas
religiosas. Um dos últimos livros que li, de Afonso
Murad, aborda as relações entre a gestão e a
espiritualidade. Várias empresas estão investindo tempo
e recursos para que seus trabalhadores desfrutem de
algum momento de espiritualidade. Não se descarta a
possibilidade de que o propósito último das empresas
seja o melhor desempenho dos trabalhadores, com vistas
à produção e ao lucro, e não ao desenvolvimento da
espiritualidade das pessoas. Como a espiritualidade gera
bem-estar, obviamente favorece melhores
relacionamentos nas empresas, maior capacidade de
produção e, consequentemente, o lucro.
Em Busca da Espiritualidade - o mercado da fé e o evangelho da
graça não se propõe a este fim. Aqui procuro apresentar
uma espiritualidade que possa gerar mais vida do que
lucro material, mais virtudes do que sucesso, mais amor
às pessoas do que apego às coisas, mais solidariedade do
que competição, mais integridade e virtudes do que
religiosidade e hipocrisia, mais sensibilidade humana,
mais renúncia de si mesmo e coragem para lutar pela
garantia de direitos para todas as pessoas.
Nos últimos anos tenho relacionado espiritualidade
e missão, partindo do pressuposto de que para cada tipo
de espiritualidade manifestam-se práticas missionárias
correspondentes. Uma espiritualidade legalista, por
exemplo, desembocará numa manifestação missionária
formal, ritualista, intransigente, tendente à hipocrisia e ao
fundamentalismo opressor. Uma espiritualidade
intimista e egoísta poderá inspirar uma vocação e missão
voltadas para o isolamento e distanciamento das demais
relações com a sociedade, denominada de mundana. Ou,
como já sinalizei, podemos cair no risco de fomentar uma
espiritualidade para tomar homens e mulheres mais
produtivos, porém alienados e escravos do lucro e da
produção.
Eu poderia relacionar várias outras manifestações
de espiritualidade. Porém, interessa neste momento citar
apenas algumas para ilustrar as formas mais evidentes e
que, possivelmente, estão direcionando o jeito de ser e de
fazer missão no cristianismo brasileiro.
Em Busca da Espiritualidade surge neste cenário em que
o entendimento e a prática da espiritualidade podem
significar tudo ou qualquer coisa. Mas como encontrar
um roteiro em busca de uma espiritualidade que possa
nos fazer pessoas mais humanas, desfrutando de todas as
dimensões importantes da vida? Sem excluir outras
possibilidades, ou experiências semelhantes, resolvi
partir de minhas percepções tomando como campo de
observação a espiritualidade praticada pelo Jesus Cristo
de Nazaré e a primeira geração de discípulos. Peço a sua
bondade para acolher algumas ilustrações pessoais sobre
exercícios ou práticas de espiritualidade que vão
surgindo ao longo das páginas. Meu propósito é
testemunhal e pedagógico, partindo da ideia de que a
espiritualidade faz parte de todas as peregrinações da
existência. Então, uso o texto e as reflexões como se você
estivesse peregrinando comigo nos meus caminhos e
roteiros - práticos e teóricos.
Jesus Cristo de Nazaré e a primeira geração de
discípulos são os nossos guias e inspiração. Meus
testemunhos são indicações fortuitas de alguém que tem
procurado responder com muitas limitações, mas
permanente deslumbramento, ao jeito de ser e viver dos
discípulos de Jesus Cristo.
Este livro está dividido em duas partes. Na primeira
parte, são relacionadas cinco formas de espiritualidade
visíveis nas prateleiras religiosas brasileiras, indicando o
tipo de vocação e missão evidenciadas a partir dessas
práticas de espiritualidade. Os títulos para cada forma de
espiritualidade são uma escolha descritiva; não há a
pretensão de desenvolvê-los como se fossem categorias
específicas. Mesmo que cada prática de espiritualidade
seja observada separadamente em nosso texto, tudo
indica que elas interagem entre si, atraindo para o espaço
religioso manifestações da mesma natureza. Os discursos
e as expectativas dos devotos ou clientes em torno do
“altar” são marcados por uma fé materialista, pela busca
de soluções individualistas e pelo lucro dos
empreendimentos religiosos.
Cada forma de espiritualidade identificada na
vitrina religiosa brasileira é observada negativamente.
Concluímos que, por mais legítimas que sejam tais
espiritualidades, na essência elas e seus respectivos
negócios religiosos são antagônicos à missão e
espiritualidade vividas e anunciadas por Jesus Cristo.
Em se tratando da cristandade brasileira, aqui não
se diferenciará a espiritualidade católica da protestante.
O sincretismo instalado nos dois segmentos e a
concorrência por clientes têm gerado, do ponto de vista
da espiritualidade e missão, aspectos bem semelhantes
tanto no catolicismo quanto no protestantismo. Além dos
pentecostais e neopentecostais, o protestantismo histórico
tem passado por uma de suas transições mais com-
prometedoras entre a sua identidade histórica e a
necessidade de contextualização. Claro, o crescimento
dos evangélicos no Brasil, aliado a fatores culturais, tem
gerado um sincretismo religioso sem precedentes no
processo de formação do protestantismo brasileiro.
Outros fatores relacionados ao “espírito da época” têm
influenciado e comprometido a espiritualidade e missão
da igreja.
Devido à complexidade e à ampla presença das
formas de espiritualidade a que faço referência neste
livro, uma nomenclatura aberta é estabelecida para
descrever as manifestações de espiritualidade e missão
recorrentes nos diversos terrenos da cristandade
brasileira. Atenção a esta nomenclatura, pois é
exatamente no final de cada uma que, de maneira
resumida, explicita-se a missão como decorrência de cada
tipo de espiritualidade. Elas são apresentadas
separadamente, mas, de fato, acredito que todas elas se
manifestam de maneira interativa e estão inter-
relacionadas. Logo, uma espiritualidade marcada pela
magia e pelo fetiche, aliada aos elementos das idolatrias,
encontra no mercado uma grande oportunidade para
fomentar a mercantilização da fé nas empresas religiosas.
A busca da espiritualidade é uma condição
peculiar da natureza humana. Assim, nessa busca as
pessoas podem encontrar nos ambientes religiosos que
lidam com a mercantilização da fé experiências
geradoras de opressão e espoliação, de enganos e
esperanças falsas. A sinceridade da busca, aliada à
crença de que no “ambiente sagrado” tudo é puro e
honesto, torna os clientes da religião de mercado
vulneráveis à manipulação e exploração. Como evitar
este risco?
É dessa pergunta que surge a segunda parte do livro.
Na busca da espiritualidade, podemos ser engodados
pelos encantos e fascínios das promessas dos
empreendedores das indústrias da fé. A outra opção, que
considero mais geradora de sobriedade e compromisso
com a vida, é a busca da espiritualidade tendo como
inspiração e modelo algumas virtudes presentes na vida
e no evangelho do Jesus Cristo de Nazaré.
Portanto, na segunda parte busco em quatro eixos
do evangelho - (1) graça; (2) amor; (3) humildade; e (4) fé
e justiça - os critérios para discernirmos melhor uma
espiritualidade que nos aproxime do Deus revelado no
Jesus Cristo de Nazaré e, como consequência, nos
alimente de uma missão mais humanizadora e em
comunhão com todas as dimensões da vida.

Carlos Queiroz
Julho de 2013
INTRODUÇÃO

SEMPRE que se fala de espiritualidade, pressupõe-se


uma experiência humana exclusiva no campo religioso e
subjetivo da fé, alienada das demais experiências da vida.
Por outro lado, no cristianismo quando se fala sobre
missão muitas vezes a ênfase recai no ativismo, como
serviço prestado ao próximo quer pela proclamação do
evangelho, quer por obras de misericórdia e justiça.
Neste livro, considero espiritualidade e missão como
eixos paralelos do mandamento principal das Escrituras:
amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo (cf. Mt 22.37,39). Assim, amar a Deus é uma
espiritualidade que nos leva a amar as pessoas, do
mesmo modo que amar o próximo é uma missão que
gera comunhão com Deus - duas manifestações
espirituais que se evidenciam de forma interativa e
interdependente.
Outro texto fundamental para os seguidores de
Jesus é a conhecida oração dominical ou oração do Pai-
Nosso. Nesse texto, Jesus ensina seus discípulos a orarem
ao “Pai nosso celestial” pelo “pão nosso de cada dia” (Mt
6.9,11). Já na narrativa sobre a tentação de Jesus, Mateus e
Lucas também fazem referência tanto à importância do
pão quanto da Palavra de Deus: “Não só de pão viverá o
homem, mas de toda palavra que procede da boca de
Deus” (Mt 4.4). Ambos os textos fazem referência à
sobrevivência física (pão) e à experiência transcendente
(“Pai nosso” e “palavra da boca de Deus”). O pão é um
bem compartilhado ou acumulado - portanto,
fermentado de implicações sociais, econômicas e
políticas; da mesma forma, a “palavra” procedente da
boca de Deus e “Pai nosso” possuem implicações
transcendentes. À luz destas passagens, a espiritualidade
inspirada expressa uma prática devocional que encontra
em Deus a fonte de amor em missão ao próximo.
Se adorar ao Senhor for entendido como um evento
em que os adoradores têm uma experiência de encontro
com Deus, a espiritualidade visível de tal evento será
perceptível à proporção que os adoradores praticarem
uma missão de serviço aos seres humanos e ao mundo.
De modo que espiritualidade pode ser entendida como
uma experiência humana no campo da fé, enquanto que
missão é a resposta ética desta mesma fé. Apenas para
efeito de exposição das ideias missão e espiritualidade
são separadas em categorias distintas; na verdade elas
confluem e interagem na vida e no testemunho dos
seguidores de Jesus Cristo.
Reafirmemos a ideia de que missão e
espiritualidade, no evangelho de Jesus, manifestam-se
nos espaços em que há sinais da sobrevivência humana:
suprimento com a Palavra de Deus e com o pão de cada
dia. É inerente à natureza humana alimentar-se de
virtudes espirituais que possam tornar a vida mais
suprida de todas as necessidades básicas. O ideal de uma
sociedade plenamente espiritual seria aquela em que
todos os seus participantes desfrutassem dos bens
necessários para o gozo de uma vida abundante. Quando
pessoas exercitam algum tipo de religiosidade com
indiferença diante da miséria e da fome dos outros, há
sinais de ausência de uma espiritualidade evangélica.
Toda a nossa deficiência espiritual é uma deficiência em
nossa capacidade de amar. Por isso a falta de pão na
mesa do pobre pode ser uma denúncia da falta de
espiritualidade no altar dos cristãos.
Há dois extremos reducionistas que precisamos
evitar no que diz respeito à prática de disciplinas de
espiritualidade e à prática da missão:
1. A missão se torna um serviço ativista voltado somente para
o problema da falta de pão para os necessitados.
Neste aspecto até mesmo um ateu confesso pode
praticar uma missão com critérios filantrópicos e
evangélicos, mesmo não possuindo uma fé confessional
cristã. Assim como um cristão pode praticar a filantropia,
utilizando-se da necessidade do pobre como meio de
promoção pessoal ou institucional.
Na teoria, os capitalistas acreditam que a economia
tem um tipo de racionalidade comercial dos bens
(inclusive do pão/alimento) com vista ao lucro; tendo o
pão como um bem necessário a todos os seres humanos,
o mercado também se utiliza da comercialização do pão,
e esse ato apenas lucrativo não representa uma atividade
espiritual.
Não há uma opção integral de espiritualidade na
prática filantrópica focada apenas no suprimento do pão
para alguns, sem as manifestações objetivas da justiça em
que o alimento se torne um direito disponível para todos.
Lembremos que os alimentos produzem saúde, geram
oportunidades de diálogo, festa, alegria, liturgias -
aspectos inerentes à espiritualidade anunciada no
evangelho.
2. A espiritualidade se toma uma tarefa exclusiva para atrair
mais devotos em torno do altar religioso, sem implicações sociais,
políticas e econômicas para os empobrecidos e espoliados.
Há um crescimento muito evidente das
manifestações de espiritualidade religiosa no Brasil. A
cristandade tem se tornado mais praticante e militante,
porém, mesmo que numericamente expressiva, não tem
conseguido inverter de forma satisfatória a estrutura
injusta em que se funda a nossa sociedade. Ainda
detemos uma perversa relação socioeconômica baseada
na concentração e acumulação de bens e renda. No nosso
país há um segmento religioso cristão praticante e rico
indiferente à realidade de mais de 26 milhões de
brasileiros vivendo em miséria e extrema pobreza. Em
muitos casos, a prática religiosa não tem conseguido
transformar o cinismo e a hipocrisia das pessoas de mau
caráter, nem minimizado o estado de degradação moral
que afeta a nossa geração. Uma vez que estamos falando
de espiritualidade, não há como desvincular de nossa
perspectiva a constatação de que há um escandaloso
vínculo entre religião, corrupção e violência no atual
contexto brasileiro. A violência se evidencia na
linguagem dos sacerdotes, nas letras de várias músicas
religiosas, nos eventos de “louvor” invadidos por gritos,
paradigmas de guerra e fanatismo. A corrupção e a
violência contra o cidadão vão desde a utilização dos
espaços públicos, como se fossem propriedades
particulares das religiões hegemônicas, até às
negociações e trocas de favores entre líderes religiosos
inescrupulosos e políticos corruptos. Ou seja, não tem
havido uma proporção equilibrada entre o crescimento
das práticas de espiritualidade na vitrina brasileira e o
crescimento de ações ou atitudes como resposta ética
desta mesma espiritualidade.
Assim como um ateu pode possuir uma prática de
justiça com critérios evangélicos sem uma prática
devocional ou confessional, um religioso devoto pode
conviver com uma espiritualidade subjetiva, alienada das
práticas sociopolíticas de misericórdia e justiça. Neste
caso, contudo, está já não será uma espiritualidade
reconhecida pelos critérios do evangelho de Jesus Cristo.
A espiritualidade no evangelho é fruto da fé que acolhe o
encontro misterioso com Deus, refluindo em missão ao
mundo através da mesma fé, que, sendo ética, está
marcada por sinais de amor, justiça e paz.
PARTE 1

PRÁTICAS DE ESPIRITUALIDADE NA
VITRINA RELIGIOSA BRASILEIRA
1.
ESPIRITUALIDADE NUM
CRISTIANISMO IDOLÁTRICO

O SER humano é essencialmente espiritual e expressa a


sua espiritualidade de muitas maneiras, principalmente
através de formas religiosas. Mas há também formas não
religiosas de espiritualidade. Os ateus confessos, por
exemplo, podem manifestar sentimentos e compromissos
espirituais quando envolvidos por uma causa em favor
da vida. Conheço ateus que acreditam em “energias” da
natureza ou em forças humanas subjetivas que, segundo
a sua crença, poderiam interferir nos rumos da vida - e
isto também é espiritualidade.
Cumprindo a minha vocação pastoral, um dia
desses atendi a um convite para orar por uma senhora
enferma. Ao chegar à casa, fui recebido por uma moça
falando comigo com expressões firmes e contundentes.
De imediato ela foi dizendo que não acreditava em nada;
aceitava a oração, respeitando o desejo das outras
pessoas da família. Chegando ao quarto onde a senhora
estava, vi ao redor da cama muitas pedras em forma de
pirâmide. Sem emitir qualquer juízo, fiquei surpreso com
as palavras da menina que há tão pouco tempo se
confessara descrente de tudo: “Eu coloquei essas pedras
porque elas emitem energias positivas e poderão ajudar a
curar a minha mãe”. Imagina se ela acreditasse em
alguma coisa! Podemos ver, então, que há várias formas
de espiritualidade e de crença.
A idolatria e o panteísmo, por exemplo, são também
formas de espiritualidade. Pode parecer contraditório,
mas há muitas formas de espiritualidade que expressam
descrença no Deus eterno, egoísmo, orgulho, arrogância e
idolatria.
Neste capítulo, falo da espiritualidade marcada pela
idolatria. Contudo, importa primeiro explicar como
surgem as idolatrias e quais as implicações missionárias
de uma espiritualidade idolátrica. Sendo verdade que a
natureza de cada tipo de espiritualidade influencia a
vocação e missão das pessoas, é muito importante
discernir a missão resultante de uma espiritualidade
idolátrica. Você já pensou em alguém cumprindo uma
missão que Deus não pediu para ser cumprida? Ou
quando a missão religiosa significa o absurdo de se
sacrificar pessoas frágeis ou não “produtivas”? A fé
religiosa idolátrica gera fanatismo, de tal forma que se
chega a casos extremos de suicídios coletivos, de
deflagração das chamadas “guerras santas” e de novas
“inquisições” contra os “hereges” que questionam a fé
religiosa.
No caso da religiosidade brasileira, não existe um
problema de descrença. Em geral os brasileiros são cheios
de uma fé mercantilista e acentuadamente materialista.
Diante da falta de respostas para as questões mais
complexas da vida é a partir da fé que os seres humanos
vão em busca de explicações místicas e sobrenaturais nas
religiões. Nas sociedades mais primitivas, uma epidemia
qualquer, por exemplo, é atribuída à ira de algum deus.
Para aplacar a suposta ira da divindade, iniciam-se as
negociações (sacrifícios e oferendas) entre os “clientes” e
os “agentes mágicos”, especialistas da transação
religiosa. O cenário básico para a transação religiosa
acontece por causa da crença dos devotos, ou clientes, de
que suas divindades são ávidas por oferendas e
sacrifícios, de modo que, atendendo às tais exigências, os
devotos obterão a solução de seus problemas, as
respostas para seus desejos e aspirações.
Como as divindades aparecem? São muitas
histórias e folclores. Para alguns, as divindades estão no
mar e nos rios para proteger os navegantes. Para outros,
elas foram encontradas em forma de objetos. Há algumas
que vão sendo elaboradas de maneira mais sutil - são as
divindades invisíveis, representadas em poderes
estabelecidos coletivamente, como, por exemplo, a
divindade de mercado.
Antes de continuar tratando especificamente sobre
a idolatria e o surgimento das divindades, decidi
apresentar como a teologia cristã lida com o tema da
revelação de Deus para os seres humanos. A fé cristã
pressupõe a existência de Deus. Este livro não tem o
objetivo de explicar a existência de Deus. Estou
escrevendo para quem acredita num Deus pessoal,
amoroso, justo e pleno em graça e misericórdia. Portanto,
para se discernir a idolatria como uma resposta errada
dos seres humanos em busca de Deus, estou indicando a
fé no seu sentido ético, como resultado da revelação que
as pessoas assumem como tendo sido uma manifestação
de Deus. Assim, espero sinalizar algumas pistas que nos
ajudem continuamente a avaliarmos os riscos entre a fé
idolátrica, como elaboração da criatividade humana, e a
fé ética, que, em adoração, testemunha acerca da
revelação recebida a respeito de um Senhor de amor,
santidade e justiça.

REVELAÇÃO COMO "OBJETO" INTERPRETADO


Na teologia, o ato em que Deus se permite ser
"conhecido" é denominado de revelação; e a fé é um dom
de Deus concedido aos seres humanos para
decodificarem a revelação dada. Assim, tanto a revelação
quanto a fé são, a priori, de Deus e não dos seres humanos.
Mesmo que, do ponto de vista da teologia, esta premissa
seja amplamente aceitável, este trabalho assume a fé e a
revelação como elementos antropológicos, com suas
manifestações tangíveis e avaliáveis. Quanto à fé, não
fugimos de uma abordagem da teologia cristã, que
também a admite como uma resposta humana ao
chamado de Deus, especialmente quando se expressa
num conjunto de argumentos confessionais e como
resposta ética para as questões da vida. A revelação
também está sendo observada neste trabalho a partir da
elaboração testemunhal.
Desse modo, revelação e fé são analisadas como
dado interpretado, como evento narrado, escrito,
registrado; como uma experiência humana testemunhal,
uma compulsão da natureza humana por acreditar,
confiar em outros campos da vida "fora" das demais
experiências racionais circunscritas aos acontecimentos
concretos e imediatos.
Então, em vez de afirmar que o Senhor tem se
manifestado das mais variadas formas, focaremos a ideia
de que os seres humanos são potencialmente dotados de
percepção para acolherem as diferentes formas de
manifestação de Deus. Assim, não pretendemos
desconsiderar a informação teológica sobre o ato
soberano da revelação de Deus, sem a qual a percepção
humana a respeito dele seria uma mera especulação
criativa, exatamente de onde vem a idolatria.
No que diz respeito à revelação e à fé, estamos
limitando o nosso campo de observação neste trabalho;
elas serão observadas a partir da informação e do
testemunho registrados nas Escrituras. Tomaremos como
“objeto concreto referido”, o registro ou testemunho de
uma determinada revelação a respeito de Deus - a cristã.
Aqui, interessa a informação dada por seres humanos
sobre o que testemunharam: a crença, a fé, as percepções
sobre suas experiências místicas, ou mesmo quando
atribuem a Deus um momento histórico, um fato real do
cotidiano, a provisão e o cuidado pela vida.
Naturalmente os códigos de interpretação são limitados,
uma vez que nós, humanos, utilizamos analogias que,
por aproximação, buscam descrever atributos de Deus
como amor, justiça, soberania, poder criador etc.
A fé muitas vezes se manifesta sem nenhuma
prerrogativa de quem a desfruta, ou mesmo sem a sua
identificação objetiva e racional. Meu pai, suas irmãs e
irmãos não desfrutaram das oportunidades do ensino
formal, mas possuíam uma fé muito evidente. Eles me
passaram a impressão de que, mesmo desfrutando de
uma fé admirável, não conseguiam explicá-la
racionalmente.
Nesta parte do livro, observamos a fé como uma
sensibilidade humana que percebe, acolhe, através dos
sentidos, as variadas formas da revelação de Deus na
história da humanidade, e se decodifica racionalmente.
Como consequência, ela é evidenciada e percebida por
outros na vida dos seguidores de Jesus Cristo por meio
de suas práticas de misericórdia e justiça e do anúncio
público de sua crença.
As Escrituras estão repletas de confissões e
depoimentos nos quais pessoas, em experiências
diversas, registraram suas percepções, ainda que parciais,
a respeito de Deus:
- Na contemplação da natureza, alguém testemunha

uma dada comunicação de Deus ou a respeito de Deus


(SI 19; At 17.22-31; Rm 1.18-21).
- Testemunhos de experiências cultivadas na
interioridade: “Se com a tua boca confessares e em teu
coração creres...” (Rm 10,9),
- O testemunho dado por outras pessoas que gerou

no interlocutor a crença na mensagem de Deus (At 2, 8,


10).
- A confissão de uma experiência mística num

encontro pessoal com Deus (Êx 3; Is 6; At 9; Ap 4-5).


- Na voz dos profetas - mensageiros em nome de

Deus que proferiram suas mensagens - o Senhor se fez


reconhecido, aceito ou repudiado.
- Nos livros de Mateus, Marcos, Lucas e João as

narrativas anunciam o Jesus Cristo de Nazaré como a


revelação mais plena e perfeita de Deus. E nos registros a
respeito dos ensinos de Cristo, Deus é revelado também
na criança, nos pobres, oprimidos e marginalizados (Mt
25.31-46; Lc 10.21-24; Jo 1.1-4, 14; 14.8-11).
Portanto, nas Escrituras Sagradas, Deus é revelado
como preexistente; ele é antes de todas as pessoas e
coisas; é eterno e toma a iniciativa de se tornar conhecido
das pessoas, assumindo as vulnerabilidades humanas na
encarnação do Messias.
A adoração é o ato em que os seres humanos, pela
fé, colocam inteligência, emoção e todas as energias em
torno da submissão e da gratidão a Deus. Nesse aspecto,
a adoração é a busca de nossa complementaridade
humana no Outro totalmente outro. Enquanto adoramos,
buscamos no encontro criativo o resgate da imago Dei -
imagem e semelhança de Deus - que fomos perdendo ao
longo do tempo. No encontro pessoal entre o Criador e
os seres humanos, quem adora resgata em si mesmo um
processo para maximização de sua humanidade.
Na idolatria, os ídolos são uma replicação de nossa
imagem caída e refletem a semelhança de nossos
pecados, uma espécie de reprodução de nossos
arquétipos interiores. Por isso, tornam-se semelhantes
aos ídolos os que os fazem e os que os adoram (SI 115).
Cada idólatra vai encontrando sentido na materialização
de seu homem interior, de suas realidades, sejam elas
compostas de sonhos, medos, aspirações ou projeções
pessoais e coletivas. Não é preciso hesitar ao afirmar que
os idólatras se tornam insensíveis e indiferentes tanto
quanto a imagem petrificada de seus ídolos. Quem troca
Deus por objetos do mercado fica vulnerável a trocar o
coração de carne por um coração de pedra.
Enquanto na adoração somos animados a um
relacionamento amoroso com o inominável, o
indescritível que se revela a nós, em confluência com as
relações de amor e respeito pelos seres humanos, na
idolatria a veneração por objetos condiciona os seres
humanos a se reduzirem ou reduzirem os outros a
objetos - uma espécie de coisificação de si mesmo e das
outras pessoas.
FÉ COMO UMA PECULIARIDADE DA NATUREZA
HUMANA

Tomemos como base a fé cristã, que acredita na


existência de um único Deus - Pai, Filho e Espírito Santo -
e que anuncia a iniciativa de Deus em se fazer conhecido
de todas as pessoas. Ele age de maneira tal que todos
possam compreender a sua vontade e tenham a
oportunidade de responder em obediência aos seus
mandamentos. Na teologia cristã, a fé é a condição básica
para se crer em Deus e em suas manifestações e é
também compreendida como um dom de Deus (Ef 2.8-
10), sem o qual “é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6).
Para que as pessoas passem a confiar em objetos
sagrados, esquemas religiosos, ideologias, se faz
necessária a manifestação dessa peculiaridade dos seres
humanos que denominamos fé. Esta capacidade
influencia as pessoas a decodificarem as mais variadas
formas de manifestação a respeito de Deus. Todavia, pela
fé as pessoas também podem ser iludidas ou fazer
projeções de sua realidade, criando divindades ou ídolos
visíveis e invisíveis. Por isso a necessidade de
reconhecermos, humildemente, quão longe estamos do
conhecimento de Deus. Nesta obra, proponho o exemplo
do Jesus Cristo de Nazaré nas quatro narrativas do
evangelho como critério para acolhimento da revelação
que mais pode nos aproximar de Deus - E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e
vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo
1.14).

RELIGIÃO E IDOLATRIA
Toda religião depende de três agentes principais para o
seu funcionamento:
- divindade(s);

- sacerdote(s) ou especialistas da religião;

- devotos.

Os demais elementos são desdobramentos da


criatividade dos especialistas e dos devotos da religião.
Eles vão criando lugares e elementos ou símbolos de
poder, utilizados exclusivamente pelos empreendedores
do negócio religioso. A religião, como uma expressão
social, possui outros aspectos - desde sua
representatividade pública, estrutura organizacional,
hierarquias, conjunto de ensinamentos referentes à
doutrina religiosa até questões morais e éticas.1
Os sacerdotes e empreendedores da religião
Criando-se o ídolo e os elementos sagrados, fazem-se
necessários os agentes intermediadores da religião. Só os
agentes dotados de poderes “sobrenaturais”
especializam-se no manuseio dos elementos sagrados
para realização das transações ou “trocas simbólicas”
entre os clientes e o ídolo. No espaço religioso, somente
os especializados da religião podem manusear as “coisas
sagradas da religião”. Só os especialistas têm acesso ao
altar e podem consagrar os objetos, supostamente

1 No livro A Oração Nossa de Cada Dia (Ultimato. 2013), abordo detalhadamente os três agentes referidos: a divindade, o sacerdote e os
devotos. Aqui concentro-me apenas nos dois últimos.
sacralizados. Na cristandade católica, cabe aos padres a
oração pela hóstia consagrada, o batismo de crianças, a
celebração de casamentos. Tais ritos não são diferentes no
cristianismo de perfil protestante. Mudam-se os
personagens, as formas, os objetos, mas o
empoderamento para o manuseio dos sacramentos é
restrito aos sacerdotes ou agentes mágicos da religião.
Vem desta distorção a separação entre clero e
laicado (sacerdote e povo). A ideia do sacerdócio
universal de todos os santos, propagada pelos
reformadores, traz consigo duas indicações inovadoras.
Primeiro, todas as pessoas em suas profissões cotidianas
estão exercendo um tipo de sacerdócio. É tão sagrado ser
padre ou pastor quanto pedreiro, sapateiro ou médico.
Segundo, todos, mulheres e homens, têm acesso a Deus
sem necessidade de intermediação sacerdotal. Todos os
bens sagrados da vida estão disponíveis a todas as
pessoas. Os sacramentos religiosos, por sua vez, são
dados seletivamente através de critérios estabelecidos em
geral pelos especializados ou empreendedores no terreno
religioso.
Na vivência de Jesus e da primeira geração de
discípulos não existiam especialistas para mediação. Eles
não dependiam de lugares ou objetos sagrados. Qualquer
criança era prioridade em seu reino e os plebeus tinham
acesso direto a ele, sem a burocracia religiosa. Aos
pecadores e às pecadoras se garantiam os “primeiros
assentos”. Para Jesus, o religare não era religião, era a
simples convivência dos seres humanos entre si em
confluência com o amor de Deus. As religiões, inclusive
da cristandade, vão continuar fabricando e formatando
seus especialistas e separando o povo do ofício sagrado
religioso. Todavia, se compreendermos bem a
(des)ordem das comunidades inspiradas na vida de Jesus
Cristo e da primeira geração de discípulos, veremos que
essas comunidades não se parecem com as maquetes
religiosas que conhecemos hoje.
Sabemos das limitações dos ídolos. Eles são o
simulacro entre os empreendedores da religião e devotos.
Podem ser trancafiados num templo, num oratório, no
bolso, na mão do sacerdote ou do devoto. O ídolo só
ganha valor e importância depois de abençoado por um
agente especializado da religião, pois, no imaginário dos
devotos, os objetos sagrados só possuem valor divino
quando abençoados pelo especialista da religião ou
sacerdote. Se um ser humano consegue se relacionar com
uma divindade construindo esse nível de controle sobre a
divindade, como não será o seu poder de controle sobre
as pessoas? Num ambiente idolátrico, as condições para o
engano, a usura, a manipulação, o controle e a
dominação sobre as pessoas são fermentadas com mais
facilidade.

Os clientes no espaço idolátrico

Se o ídolo não tem inteligência, obviamente não possui


vontade, iniciativa, projetos... Só os especialistas da
religião e os clientes ou devotos têm neurônios e
inteligência. Então quem controla os interesses e as
vontades no terreno idolátrico? A resposta parece muito
óbvia - os clientes e os empreendedores do negócio
religioso, Sendo assim, a idolatria pode ser identificada
pela linguagem e pelas trocas simbólicas, e não apenas
pelos objetos de materialização da idolatria.
No terreno idolátrico, os agentes mágicos decretam,
determinam, seduzem, controlam e também negociam
poder e dinheiro com os clientes interessados e ávidos
pelas benesses supostamente resultantes da magia. Como
o ídolo não possui conta bancária, não tem poder, não
recebe reconhecimento, decerto alguém - indivíduos ou
instituições - se beneficia das oferendas e reconhecimento
dos clientes.
O sacerdote, agente intermediário ou
empreendedor religioso assume total controle sobre as
tarefas e os favores a serem “executados” pelo ídolo. O
cliente é animado pelo sacerdote a determinar, decretar,
ordenar, ofertar, pressupondo que assim poderá
manipular seu ídolo com promessas, oferendas, frases
mágicas etc. O cliente, dono do desejo, determina o que a
divindade fará. Aproxima-se do empreendedor religioso
e diz qual bem ou mal deve ser executado pela
divindade. Seja qual for o desejo do cliente, a tarefa da
divindade é se manter em silêncio inanimado, enquanto
o cliente espera a consumação da magia pelo suposto
poder de seu agente intermediário.
Neste cenário religioso, o agente intermediário é
maior do que a divindade, uma vez que a divindade sem
inteligência, vontade própria, sem projeto algum, existe
apenas como expressão da esperteza dos sacerdotes-
empreendedores, que conseguem visualizar
oportunidades de oferecer respostas aos desejos e
aspirações dos devotos.
No momento em que o mercado está aquecido para
a compra de casa própria, o esperto empreendedor do
negócio religioso oferece o caminho do milagre para
aquisição desse bem de forma mais ágil. Num dos
momentos de escassez de cimento no Brasil, vi uma
esperteza inusitada numa dessas empresas da fé. O
pastor estava oferecendo saquinhos de cimento
abençoados, em troca de uma “oferta de fé”, para
construtores e pessoas que tivessem suas obras de
construção paradas pela falta de cimento. Fiquei
impressionado com a busca dos clientes!
Se o ídolo é inanimado, sem vida, sem conta
bancária, quem lucra com a troca dos saquinhos de
cimento por uma “oferta de fé”?
Também, se o ídolo não tem vontade e desejos,
então é o empreendedor religioso (sacerdote) quem
manuseia e “controla” o terreno mágico da religião.
Diferentemente do evangelho, os devotos e gestores
dessas religiões não precisam orar dizendo “se possível
passa de mim este cálice” ou “seja feita a tua vontade”
(cf. Mt 26.39). Nesse ambiente religioso, o ídolo não tem
vontade, somente os clientes e os sacerdotes.
Tem sido muito evidente na cristandade idolátrica,
de perfil protestante ou católico, o surgimento de
pastores e padres controlando, decretando,
determinando, não somente as transações dos desejos
dos seus devotos/clientes, como também controlando os
rumos e os processos decisórios da vida das pessoas que
estão sob o seu feudo religioso. Já vi situações extremas
em que os jovens não podem decidir sobre namoro e
casamento sem a aprovação de seu líder espiritual. Para
uma pessoa visitar outra igreja, mesmo que da mesma
irmandade, precisa receber a autorização do agente
mágico ou empreendedor do negócio religioso. Para
surpresa nossa, enquanto em outras empresas os clientes
são livres para buscarem opções no mercado, na empresa
religiosa o cliente é coisificado a devoto oprimido e
escravizado pelo medo do castigo da divindade de índole
petrificada.
Desfrutar de um acompanhamento para dialogar,
refletir, discernir sobre os rumos da vida é, sem dúvida
alguma, fundamental para quem está começando em
qualquer experiência da vida. Todavia, manter uma
relação infantil e de dependência marcada pela ilusão da
transferência de poder é doentio.
Nas narrativas do Novo Testamento, Jesus Cristo
manifesta um Deus livre e libertador, revestido de
sabedoria, graça e amor. Pensa por si mesmo, tem
vontade própria e soberana, e seus adoradores
livremente decidem segui-lo por obediência e fé.
Enquanto na idolatria os devotos estabelecem as
regras na relação, no Evangelho, Jesus Cristo nos inspira
às alianças com Deus e ao caminho a ser obedecido. Ele
mesmo orou reconhecendo a soberania de Deus - fez
referência ao Pai que está nos céus, confessou sua total
submissão à vontade dele, referiu-se ao seu Reino, que
deve ser acolhido (Mt 6.9-10). Assim, quem tem o
controle é Deus e não os adoradores. Ele é o Senhor; seus
seguidores são administradores fiéis para que a vida seja
mais justa para o bem de todas as pessoas.
Certas orações em vários cultos cristãos, incluindo
evangélicos, deixam a desconfiança de que há uma
invasão de idolatria, mesmo que invisível, em nossas
liturgias, cânticos, orações e confissões.
Numa espiritualidade em que o
sacerdote/intermediário tem o controle e a “soberania”
das coisas, tanto a divindade quanto o devoto são apenas
objetos na transação mercantilista. A missão é reduzida a
técnicas e métodos para aumentar a clientela, que serve
de meio para promoção dos sacerdotes e de suas respecti-
vas instituições. No máximo, a missão é reduzida à
filantropia, neste caso utilizando a miséria das pessoas
como oportunidade de prestígio pessoal e publicidade
institucional. Neste tipo de espiritualidade, ainda que se
faça algo tão nobre como ajudar o próximo, quem é
promovido é o “agente compadecido”, mantendo a
inércia e dependência do indigente necessitado. Foi
diante de um quadro assim que Jesus Cristo advertiu
seus discípulos a “esconderem a mão esquerda” quando
fizessem um bem a alguém com a “mão direita” (cf. Mt
6.2-4). Em outras palavras, o Mestre estava condenando a
publicidade pessoal ou institucional, construída sob a
utilização da miséria dos pobres.
Egolatria - quando o sacerdote e o ídolo se
fundem num mesmo personagem

A egolatria é um caso especial de idolatria. Não é um


culto a um objeto inanimado ou a um sistema de ideias.
Não devemos confundir egolatria com o cuidado consigo
mesmo. Cuidar de si é uma virtude que nos ensina a
amar mais aos outros. A egolatria também não é um
sentimento de egoísmo, o ato de viver exclusivamente
para si. A pessoa egoísta tem a expectativa de que todas
as coisas e pessoas estejam em torno de seus interesses, o
que sem dúvida é pecado, mas não é ainda um culto ao
ego. Enquanto o egoísta deseja que todas as coisas
existam para atender seus interesses, o ególatra acredita
que possui poder para mover todas as coisas através do
prestígio, recompensas materiais ou simbólicas, com a
expectativa de que os outros venerem sua personalidade.
Denominamos aqui de espiritualidade ególatra
aquela que é caracterizada pela prática religiosa em que a
ambiência favorece a promoção de superestrelas e o
fanatismo dos clientes em torno de líderes carismáticos e
narcisistas. A síndrome de lúcifer é marca principal da
egolatria. Os ególatras querem assumir o lugar de Deus,
receber as honras que são devidas somente ao Senhor.
Procuram viver de maneira nababesca com as oferendas
dos clientes fanáticos ou ingênuos; alimentam nos
devotos uma atitude de prostração e obediência cega:
"Tudo isso te darei se prostrado me obedeceres”. O
ególatra acredita que pode tudo. Pode se apossar de
qualquer bem - basta determinar, decretar; pode destruir
ideias, pessoas - seja pela opressão, perseguição,
inquisição...
A egolatria é a mais danosa das idolatrias. Nestas, a
divindade é inanimada. O mal causado na idolatria é o
condicionamento psicoemocional do devoto em relação
ao objeto de veneração. O ídolo, conforme já
apresentamos, não é gestor de projetos, não administra
situações, não tem inteligência nem vontade. Na
egolatria, entretanto, o “ego-deus” tem boca e fala, tem
nariz e cheira, tem pés e anda. Tem inteligência ardilosa.
Em geral possui carisma e cativa as massas. O “ego-
deus” consegue passar a ideia de que é o único possuidor
de uma missão especial; possui poderes místicos,
santidade excludente. É sempre alguém que se considera
carregado de “energias misteriosas”. Nesse tipo de
espiritualidade, a capacidade, de descoberta dos
“fenômenos ocultos” cabe somente aos “iniciados” -
superdotados da habilidade de desvendar os mistérios
escondidos no além, uma visão especial, sob o aval ou
cobertura de si mesmos.
Na idolatria, o sacerdote ou agente mágico
intermedeiam as relações dos devotos com um ídolo
inanimado. Na egolatria, o sacerdote ou agente mágico se
confundem com a divindade. Agente mágico e,
divindade são dois em um. O sacerdote ou agente mágico
idolatrado faz discurso sobre Deus, mas, quando fala
sobre Deus, qualquer observador mais atento perceberá
que o indivíduo está mais se autodescrevendo do que
dizendo algo sobre Deus, Como todo ego-deus é
materialista, possessivo, vingativo, tais discursos estão
permeados de ódio, dinheiro, dominação e controle.
Na egolatria há também busca e exaltação das
sombras e projeções que algumas pessoas fazem de si
mesmas. A necessidade de promoção pessoal, vanglória e
arrogância é marcante. Os ególatras necessitam de títulos
que lhes tirem da normalidade. Em se tratando da
vocação pessoal, os dons e ministérios não representam
habilidades para servir às pessoas, mas títulos e posições
especiais que projetam os indivíduos a poderes
atribuídos somente às divindades. Notemos que, em
Mateus 23.1-12, Jesus Cristo condena a concepção que se
faz dos títulos, muito mais do que os títulos em si
mesmos: “A ninguém chameis de vosso pai, vosso guia,
vosso mestre...”. Padre, pastor, bispo, apóstolo em
ambientes egolátricos deixam de ser carismas do Espírito
Santo e assumem uma categoria de divinização do
possuidor do título. Os ególatras são portadores da
soberania dos seus feudos religiosos e das redes de
submissão sob o seu controle.
Na espiritualidade egolátrica há uma tendência de
se distanciar os “espirituais” do mundo real. Os
espirituais são vistos somente à distância, por isso os
meios virtuais e midiáticos favorecem a proliferação
dessa espiritualidade, repleta de líderes intocáveis, que se
individualizam e se isolam da comunidade. Para as
pessoas com tal mentalidade, os espirituais são reconhe-
cidos por níveis superiores e inferiores. Os “iniciados”
passam a ser identificados como indivíduos especiais,
cheios de “energia positiva”, pessoas dotadas de
capacidades espetaculares. Vale, nesse caso, a
experiência, a capacidade de encontrar-se com o “além”,
o poder que seres humanos “evoluídos” adquirem para
controlar “forças espirituais” ou serem influenciados por
elas.
Nas instituições caracterizadas pela egolatria, há a
necessidade de intermediários entre os clientes e o ego-
deus. Por essa razão, os papéis, cargos, “ministérios” são
concessões do ego-deus a esses mediadores, sob a
condição de trocas simbólicas e reais. A obediência cega
dos intermediários entre o líder ególatra e os clientes da
religião é também uma condição para o exercício de
cargos e funções. Diante de um ego-deus, portanto, todos
os seguidores obedecem sem o mínimo de discernimento.
Qualquer atitude crítica assumida por um devoto é
interpretada como gesto de rebeldia ao “deus” do
ambiente.
Se numa comunidade as pessoas dão mais ênfase à
experiência espiritual que isola, discrimina os de fora e
coloca os "espirituais’’ em pedestais superiores, difíceis
de serem alcançados por outros seres humanos, é bem
provável que elas estejam mais próximas de uma
espiritualidade egolátrica do que diante do modelo
proposto pelo Jesus Cristo de Nazaré.
Sem dúvida alguma, há um crescimento gradativo
das pessoas no modelo ensinado por Jesus, todavia é um
desenvolvimento em direção ao alcance mais singelo de
nossa plena humanidade, e nada mais. Paulo escreve
sobre essa transformação ou crescimento pelo Espírito
Santo, de "glória em glória” até a imagem de Jesus Cristo
(2Co 3.16-17). A espiritualidade ensinada por Jesus nos
faz seres humanos mais plenos de amor e humildade e,
consequentemente, cada vez mais próximos das pessoas,
especialmente as empobrecidas e marginalizadas.
No evangelho de Cristo, o que é aparentemente
oculto é revelado aos pequeninos do seu reino. As boas
novas “escondidas” em Deus, de fato, estavam sempre
presentes, mas os seres humanos sofisticados não
compreenderam a singeleza do evangelho. Aos pobres e
aos pequeninos foram reveladas as boas novas a respeito
do reino de Deus (Lc 10.21). As “revelações” óbvias
recebidas pelos poderosos dos empreendimentos
religiosos não dizem respeito à mesma revelação
anunciada por Jesus Cristo aos pobres e pequeninos. É
muito importante discernirmos entre a espiritualidade
revelada no Jesus de Nazaré e a espiritualidade dos
espaços egolátricos na cristandade brasileira.

***

Numa espiritualidade em que a divindade é


reduzida a objetos para utilização e satisfação dos
interesses dos devotos, as pessoas acabarão sendo
também coisificadas para atendimento de interesses
egoístas. Coisificação da vida e fanatismo religioso são
manifestações gêmeas.
2.
ESPIRITUALIDADE FERTILIZADA
PELA MAGIA E PELO FETICHISMO

TÊM-SE associado ao cristianismo evangélico brasileiro


elementos estranhos tanto à sua herança cristã
reformada, quanto à sua configuração histórica. Nunca
fez parte da crença dos protestantes a fé no poder e na
mediação dos objetos ou qualquer tipo de crença no
poder mágico das frases - seja para fazer o bem, seja para
produzir o mal. Havia uma percepção crítica e rejeição
explícita tanto da água benta e da incorporação de Jesus
Cristo na hóstia, no terreno católico, quanto dos objetos
dos cultos afro-brasileiros.
Porém, mesmo que os evangélicos tivessem as suas
críticas sobre o poder dos objetos consagrados de outros
arraiais religiosos, não significa que não se utilizassem
das mesmas crenças oriundas da “magia judaico-cristã”.
Como qualquer religião, os cristianismos (católico,
protestante, ortodoxo, pentecostal, neopentecostal etc.)
também praticam a magia para agregação de valor aos
seus objetos sagrados. Consagram-se templos, altares,
fitas, sal, os elementos litúrgicos das celebrações (pão,
vinho, água para batismo etc.). As religiões possuem um
DNA baseado na crença de fetichização dos objetos. Do
ponto de vista religioso, tudo isso é legitimo, mas não
pode ser considerado fundamento dos ensinos de Jesus.
Usar as figuras ou objetos como instrumentos
pedagógicos de comunicação para ilustrar verdades
profundas e espirituais é uma coisa; outra, totalmente
diferente, é utilizar as figuras ou objetos como elementos
mágicos no mercantilismo religioso.
É da natureza do negócio religioso a crença de que
os sacerdotes ou agentes mágicos da religião possuem
um poder sobrenatural para manusear os objetos,
tomando-os sagrados ou amaldiçoados. Em alguns
grupos (no cristão, inclusive), esta crença é de tal forma
evidente, que se elaboram documentos de orientação
sobre quem pode ou não se apropriar das práticas de
abençoar objetos, bens e propriedades. Se o sacerdote faz
uma prece pela água, esta já não será apenas H 20; o sal
abençoado já não será apenas cloreto de sódio (NaCl). Os
devotos ou clientes dos negócios religiosos são
alimentados pela crença de que tais objetos “ungidos” ou
consagrados somam bons dividendos aos seus negócios,
relacionamentos, saúde etc.
Diante da concorrência religiosa, os clientes são
também induzidos a acirrar as guerras religiosas a partir
da confrontação de seus objetos consagrados. Os objetos
“ungidos” da minha religião vencem o poder dos objetos
“ungidos” da religião dos outros. A lógica é simples:
você tem um “encosto” pela magia do outro, e eu destruo
a sua desgraça pela magia da minha religião. Nessa
matriz, surge o sacerdote-mágico-charlatão
argumentando com o cliente que se alguém lhe fez algum
mal, ou se um espírito ou um encosto o persegue, existem
amarras misteriosas que somente ele - o “sacerdote”, pelo
poder da magia, vai conseguir “mover o sobrenatural” e
desatar os nós na vida do cliente,
São conhecidos alguns discursos evangélicos
denunciando que corrupção, violência, depravação
sexual e outros males no Brasil são resultantes da
consagração de certos territórios brasileiros aos
demônios. Digamos que historicamente essas
consagrações tenham acontecido. Num primeiro plano
desse tipo de argumentação está a crença no poder que se
atribui a esses agentes mágicos - é muito poder. Do outro
lado, é. acreditar que pela magia litúrgica com os
elementos da “minha religião” vou conseguir anular o
mal causado pelos elementos da outra religião - é poder
excedente! Essa crendice tem alienado cada vez mais as
pessoas e gerado omissão no que diz respeito às
necessidades de transformação cultural, política,
econômica e social da nação. Talvez isso explique o fato
de convivermos no maior país católico do mundo e o
segundo maior país protestante do mundo e, assim
mesmo, continuarmos sendo um dos mais corruptos e
injustos do planeta, A magia é fruto da mentira e do
engano. Mentira, violência e roubo são filhos da mesma
família. E quando passam a fazer parte da cultura de um
povo, todos os segmentos sociais, são influenciados pela
mesma lógica.
Essa lógica perversa da magia e do fetichismo tem
afetado os arraiais evangélicos, que passaram a confiar
também no poder dos objetos, nas frases mágicas, nos
“demônios” que habitam em máscaras, roupas e
desenhos. Lembremos que nas narrativas bíblicas os
demônios habitaram em pessoas, e, no máximo, como
exceção e numa única ocasião, invadiram uma manada
de porcos com a permissão de Jesus, conforme relata
Lucas 8.31-33.
De fato, o cristianismo brasileiro passa por um
processo de sincretismo interno e externo. Basta
observarmos que, do ponto de vista da liturgia, o
catolicismo pentecostalizou-se, enquanto que, do ponto
de vista da magia, o protestantismo catolicizou-se ou
umbandicizou-se.
Numa espiritualidade mágica, basta um toque em
qualquer objeto sagrado, um passe, um “banho de
arruda”, uma frase “profética” e as coisas
milagrosamente passarão a acontecer conforme os
desejos e decretos dos agentes religiosos. Neste tipo de
espiritualidade, o bom caráter, as virtudes, a ética podem
ser esquecidas. Depois de uma semana de libertinagem
no carnaval, por exemplo, basta uma cruz em forma de
cinza riscada na testa e todos os pecados
deliberadamente assumidos e praticados serão banidos.
Sem emitir juízo de valor no que diz respeito às
negociações dos símbolos e das expressões religiosas,
precisamos atentar para a possibilidade de que, diante de
uma espiritualidade marcada pela magia, superficial e
alienada do pão de cada dia para todos, a missão passe a
ser uma interferência exclusiva pela via da magia
milagrosa e não um desdobramento de uma práxis
evangélica. Se as coisas são supostamente resolvidas por
uma frase positiva, por uma declaração energizada,
acentua-se a alienação quanto à exploração e à injustiça
social, comprometendo a missão que exige mudança do
coração das pessoas e das conjunturas político-
econômicas injustas.
3.
ESPIRITUALIDADE COMO
FENÔMENO DE MERCADO

NUNCA foi novidade empreendedores de mercado se


utilizarem de elementos da religião para agregar valor
aos seus produtos. A magia dos sacerdotes abençoando
lojas, indústrias e objetos a fim de tomarem os negócios
rentáveis é muito antiga. Também não é novidade a
mercantilização dos negócios da religião. Talvez a grande
surpresa seja a capacidade empreendedora dos
especialistas da religião na utilização das modernas
técnicas de mercado para venda de seus produtos de fé.
Estruturar uma expressão religiosa com o nome de
igreja ou outro título semelhante passou a ser um grande
negócio. Já não sabemos se os sacerdotes dos nossos
tempos são atraídos pela vocação ministerial ou pela
tentação de poder, fama e acúmulo de bens. Os
empreendimentos religiosos têm se tomado rentáveis.
Não se põe neles capital de risco, e sociedade civil e
governo não exercem o mínimo de supervisão ou
regulamentação deste “mercado”.
Certa propaganda de motocicleta ilustra bem essa
correlação entre religião e mercado. Apareciam três
jovens com vestimentas sacerdotais (batina e colarinho
clerical), cantando: “Se a igreja usa o marketing, o
marketing usa a igreja”. Cantavam e dançavam, usando
ritmo e coreografia bastante semelhantes aos cânticos e às
danças utilizadas nos espaços religiosos. Usar o
marketing como instrumento de propaganda ou a
coreografia é irrelevante na questão em referência.
Precisamos discernir, na verdade, se o fenômeno a priori é
religioso ou de mercado. Se for de mercado, não há
novidade quanto à gana dos empreendedores de grandes
negócios ao buscarem todos os meios possíveis para
maximização do lucro e enriquecimento próprio. Não nos
surpreende, então, que, diante do fascínio pelo lucro,
percebam a oportunidade de utilização de elementos
religiosos para agregarem valor de mercado aos seus
produtos.
O problema está na artimanha de se fazer dinheiro
com a religião. Em geral, a religião deveria ser praticada
para inspirar virtudes, valores e princípios de justiça,
amor e solidariedade. Afinal, as práticas de valorização
da vida pelo enriquecimento foram sempre denunciadas
por Jesus Cristo.
Um dos orgulhos dos antigos protestantes
pentecostais brasileiros, em crítica à riqueza do Vaticano,
era a aplicação da frase de Pedro: “Não possuo prata nem
ouro, mas o que tenho, isso te dou...” (At 3.6). A ideia era:
vocês possuem o dinheiro perecível em Roma, nós
possuímos o poder de Deus. Não se pode mais dizer o
mesmo das grandes empresas religiosas que se
originaram de vertentes pentecostais e protestantes. Em
muitos casos, além de riquezas, existem propriedades
particulares de personagens carismáticos ou de
oligarquias familiares, e ainda não se tem controle ou
acompanhamento, interno ou externo, dos lucros de tais
“holdings” religiosas.
O comércio do produto religioso tem sido praticado
com muita eficácia. Os seus empreendedores utilizam
técnicas de marketing e comunicação e de todos os meios
possíveis de magia e de fetiche. Podemos denominar de
“espiritualidade mercadológica” o uso que se faz das
técnicas de mercado, da magia e do paradigma da
idolatria, como resposta às aspirações, necessidades e
desejos dos seus clientes, em troca de dinheiro. Sem
sacrifício e pagamento em moeda corrente, a divindade
de mercado não se compadece do pedido do devoto.
Leonardo Boff analisa de maneira crítica essa
instrumentalização da espiritualidade:
É importante [...] manter sempre nosso espírito
crítico, porque com espiritualidade também se
pode fazer dinheiro. Há verdadeiras empresas
manejando os discursos da espiritualidade
para criar um exército de seguidores que
muitas vezes falam mais aos seus bolsos do
que aos seus corações. (BOFF, 2001, p. 12-13).
Como vimos, numa experiência idolátrica os
devotos criam suas próprias divindades. O ídolo
funciona como mera projeção dos desejos e das
aspirações dos clientes e dos empreendedores do
mercado religioso. O dinheiro é o símbolo ilusório, a
imagem de escultura da divindade de mercado,
confeccionado pelas mãos de seus adoradores, No espaço
idolátrico, chega-se a um ponto em que o ídolo é quem
controla as questões mais importantes da vida dos seus
adoradores. Por isso, ali se veneram mais os objetos do
que os seres humanos. Toda idolatria é fruto de uma fé
materialista. Quanto mais impregnados de dinheiro,
quanto mais próximos dos altares (bancos, cofres) do
ídolo, tanto mais semelhança (ou semelhanças?) entre os
adoradores e o ídolo. Cada devoto do dinheiro vai se
tomando à imagem e semelhança do mercado. As
pessoas passam a ser reconhecidas dependendo da
quantidade de dinheiro que possuem, e quanto mais
dinheiro têm, mais parecidos com o ídolo de mercado
tais devotos se tomam. Vão se tomando frios, calculistas,
obtusos e retangulares como as cédulas em seus bolsos.
Como diz a Palavra: “Tornem-se semelhantes a eles os
que os fazem, e quantos neles confiam” (SI 115.8). Ficam
insensíveis tanto quanto seus deuses; possuem olhos,
mas não veem os problemas dos outros. Quando o
mercado fica “nervoso”, todos os seus adoradores
também ficam, e, na tentativa de aplacarem a ira do seu
ídolo, sacrificam os excluídos dessa religião - os pobres,
os desprovidos de dinheiro.
Esse ídolo tem sido capaz de controlar desejos e
aspirações, influenciar toda uma sociedade cativa aos
seus interesses e caprichos. Exige sacrifício dos mais
pobres, devoção forçada ao trabalho, para o lucro e
benefício dos intermediários e empreendedores, seja de
outros negócios ou negócios da fé. A prece subjacente a
este ambiente de espiritualidade é: “venha o reino do
lucro e seja feita a vontade egoísta e materialista do
agente mágico da religião”.
Mais do que nas situações de omissão, nesse
modelo religioso germina uma “espiritualidade” cuja
lógica está fundamentada no lucro e nos benefícios
materialistas. As bênçãos são avaliadas dentro de
critérios pragmáticos. Os possuidores de fé são aqueles
capazes de alcançar as benesses do mercado; os fracos na
fé são aqueles que não conquistam a bondade divina,
portanto, desprovidos da imagem cultual denominada
dinheiro. Os transbordantes de dinheiro e prosperidade,
cheios do "espírito do mercado" são os mais santos e
abençoados, de modo que os mais espirituais, na religião
de mercado, podem ser os mais desumanos dentre todos
os devotos.
4.
ESPIRITUALIDADE QUE
SUPERVALORIZA O ESTÉTICO EM
DETRIMENTO DO ÉTICO

NA DÉCADA de 1990, entre os programas de televisão


surgiram os programas das “meninas mascaradas” -
jovens bonitas, com o corpo quase 100% descoberto e
com máscaras encobrindo o belo da fisionomia. A face e
os olhos formam uma parte do corpo por meio da qual se
expressam as intenções, os desejos mais íntimos, os
sentimentos. São muito conhecidas expressões como
“Vamos conversar olho no olho”, “Vamos falar cara a
cara”, que indicam a importância da fisionomia como
sinalizadora de verdades e mentiras que queremos
informar ou esconder. Por que, então, cobrir o rosto com
máscaras? Porque as mesmas meninas se apresentam
quase despidas, com suas expressões estéticas expostas
na vitrina e o rosto encoberto com máscaras? Não se trata
de uma questão moralista. Este exemplo vem à tona para
fazer comparação com a espiritualidade religiosa, que,
semelhantemente, travestiu-se de aparência cosmética e
teatral, gerando uma certa estética visual tão atraente e
enganadora que mascara a necessidade de uma religião
mais ética e comprometida com a vida.
Muitas vezes até mesmo a arquitetura religiosa
engana, haja vista as catedrais. Há toda uma estética
sinalizando pompa e arrogância. Os altares estão
postos de maneira que se observem os
empreendedores da religião como se fossem os únicos
dignos de se aproximarem de Deus. As roupas, desde
o paletó e gravata até outros paramentos que
representam poder e magia, indicam ostentação e
poder.
Não é o caso de anularmos o possível benefício
pedagógico das liturgias religiosas, mas questionar
quais as mensagens anunciadas e percebidas num
contexto em que a religião tem se fortalecido como
empreendimento mercantilista. Uma boa imagem
pública é uma questão estética. Preservar a
arquitetura dos templos como expressão cultural de
uma época; manter uma liturgia harmoniosamente
adequada, com o uso de objetos de arte, gravuras etc.
para comunicar de maneira pedagógica informações
sobre amor, justiça, graça são coisas importantes.
Há aspectos estéticos significativos no
cristianismo que no segmento protestante foram
abandonados, principalmente os relacionados às artes
plásticas e ao teatro. Aqui, falamos dos ícones ou
peças artísticas usadas como instrumentos de comu-
nicação criativa de verdades éticas, inclusive.
Precisamos, pois, entender a estética como meio de
comunicação sintonizado com os paradigmas do
evangelho. O nascimento de Jesus Cristo numa
manjedoura, por exemplo, é uma opção icônica que
comunica verdades sobre a humildade e simplicidade
da família de Jesus Cristo. A entrada triunfal do
Messias em Jerusalém montado num jumentinho é
uma expressão estética de profunda singeleza e
humildade.
Estamos condenando o estético dentro dos
parâmetros daquilo que coletivamente se
convencionou como sendo feio ou bonito. O não
aceito é o sem aparência e formosura, pessoas e
coisas fora do padrão do mercado de consumo. Em
zootecnia, os animais que não atendem às exigências
do mercado são eliminados por não atenderem a
certos critérios estabelecidos, levando-se em
consideração as regras de produção, consumo e
lucro. O animal descartado - o feio - é aquele que não
gera lucro.
A mesma lógica se repete no espaço religioso
contemporâneo. Os portadores de limitações físicas
ou mentais não encontram lugar nas liturgias. O altar
é esteticamente arrumado como palco de show e não
como ambiente para acolhimento de todas as
pessoas; é o lugar do especializado, do
empreendedor religioso, do mágico ou do animador
capaz de trazer os devotos para perto dos deuses. O
sacerdote muitas vezes é aceito dependendo da sua
aparência física e da capacidade empreendedora e de
comunicação, não se levando mais em consideração
o seu caráter e vida moral. Carisma e estética no uso
dos discursos facilmente escondem os indivíduos de
mau caráter. As máscaras embutidas nas roupas
sacerdotais possuem o mesmo potencial.
Todas as nossas expressões estéticas precisam
ser avaliadas, inclusive para constatação das
discriminações sociais, reafirmação de injustiças e
poderes opressores. Todavia, como tais
comunicações estéticas estão batizadas de
sacralidade, em geral as visualizamos como obras
cultuais e não como expressões da cultura marcadas
por ambiguidades e contradições de nossa
desumanidade Quando Jesus referiu-se aos
“sepulcros caiados" (Mt 23.27) estava falando desta
roupagem estética, bem elaborada na exterioridade e
podre por dentro. Em geral, a etiqueta religiosa é
bastante estética, e muitas pessoas rigorosas com a
etiqueta à mesa podem saborear com classe suas
refeições sem levarem consideração a necessidade de
adoçar mais as palavras, diminuir as amarguras da
alma, o azedume dos sentimentos. Será que o excesso
de burocracia e a estética religiosa potencializam e
encobrem a falta da boa ética e moral dos
empreendedores da fé?
Tiago ressalta que a religião pura e verdadeira é
visitar os órfãos e as viúvas e se manter puro (Tg 1.27).
Aqui encontramos equilíbrio entre o ético e o estético:
manter-se puro pode estar relacionado à imagem pessoal
e coletiva diante da sociedade. Jesus disse: “Felizes os
puros de coração” (Mt 5.8). Cuidar dos órfãos e das
viúvas (pessoas à margem da sociedade), por sua vez, é
ético do que estético, é manter a coerência da mensagem
do evangelho, amar ao próximo como Cristo ama, ser
integro e transparente, ser uma igreja sem máscaras, sem
hipocrisias.
A espiritualidade apenas estética é meramente
ritualista, superficial, predispondo seus praticantes a
uma missão que gira em torno do sucesso e da
popularidade de seus sacerdotes ou do reconhecimento
de suas arquiteturas cultuais. Com o fim de desmascarar
esse tipo de espiritualidade, Jesus usou duas figuras:
falou de lobos vestidos de cordeiro e de sepulcros
caiados (Mt 7.15; 23.27).
A missão do povo de Deus é a expressão de uma fé
exposta nos símbolos, confissões, liturgias, tudo em
confluência com a manifestação ética desta mesma fé.
Tiago afirma: “Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me
essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei a
minha fé” (Tg 2.18).
5.
ESPIRITUALIDADE
GNÓSTICA E SENSITIVA

O GNOSTICISMO não será apresentado nesse livro


como um simples fenômeno religioso passageiro, que
facilmente se combate e se erradica, uma fortuita
doutrina equivocada. O gnosticismo, pela forma invasora
com que vem atingindo os diversos segmentos sociais,
nos causa a sensação de que ser gnóstico tomou-se um
modo de viver, um comportamento cada vez mais
comum, que de certa maneira até concede credenciais de
uma “elite” espiritual. É possível, por exemplo, perceber
manifestações gnósticas no budismo, no zoroastrismo, no
hinduísmo, no cristianismo.
Observando bem, o gnosticismo não foi uma
ameaça apenas à espiritualidade e à missão da igreja dos
primeiros séculos. Para o pastor Eugene Peterson, “o
gnosticismo é um vírus na corrente sanguínea da religião,
e continua reaparecendo a cada geração ou sendo
anunciado como algo inteiramente inédito’ (PETERSON,
2007, p. 79).
A palavra gnosticismo vem do radical grego gnosis,
6.
que significa "conhecimento”. Entretanto, não é o
conhecimento de fatos concretos e materiais. No
gnosticismo, acredita-se que há pessoas dotadas da
capacidade de perceberem os mistérios sagrados das
divindades, os mistérios do além, o futuro; é um tipo de
conhecimento tido como superior, ou de uma esfera de
alcance de poucas pessoas superdotadas.
O gnosticismo é dualista. Apresenta um universo
espiritual bom e um mundo material mau. E matéria e
espírito não são apenas realidades opostas; o espírito é
visto como categoria superior e a matéria como categoria
inferior. O corpo, por exemplo, é apenas um envelope
passageiro para oferecer significado aos “fluidos
superiores” da vida. Essas concepções afetaram as pri-
meiras comunidades cristãs de tal modo que não se
acreditava na plena encarnação do Jesus Cristo de
Nazaré. Para os cristãos gnósticos, Deus não se
“promiscuiria” com a carne - o corpo é matéria
desprezível. Na concepção gnóstica, o corpo de Jesus era
um mero invólucro emprestado e não tinha nada a ver
com a vida de Deus entre nós. Deus num corpo humano
era uma espécie de água e óleo na mesma vasilha -
substâncias que se aproximam, mas não se misturam.
Os apóstolos, especialmente Paulo e João,
precisaram combater essas doutrinas invasoras das
primeiras comunidades cristãs. Para ele, Jesus Cristo de
Nazaré foi uma encarnação histórica de Deus, uma
manifestação real, palpável, de carne e osso (Jo 1.1-4,14; l
Jo U-% 4.2; Fp 2.5-11). 6.
A dualidade nunca fez parte da perspectiva divina
para o homem e a criação. Verifica-se, nas Escrituras
Sagradas, que as experiências pessoais são, acima de
tudo, um encontro com Deus na esfera espiritual, com
implicações no cuidado com o corpo, com o meio
ambiente. Terra e céu (Gn 1.1), bem como corpo e alma
(ICo 15; lTs 5.23) possuem a mesma importância - são
partes complementares de uma mesma unidade.
Levando-se em consideração a experiência pessoal,
há registros nas narrativas bíblicas que são de natureza
espetacular, que fogem ao corriqueiro e ao plano
“material”, todavia, não geraram discriminação e
isolamento das pessoas, ou seja, não criaram pessoas
superiluminadas que se distanciavam dos outros:
- A capacidade visionária dos profetas. Apesar do
conhecimento de fatos e realidades dado somente a eles,
eles se achavam pequenos, incapazes, pecadores, trapos
de imundície (Jr 1.1-6; Is 6.1-8).
- A transfiguração de Jesus no Jardim das Oliveiras,
a ressurreição de Jesus Cristo em corpo glorioso são
manifestações extraordinárias, mas não anulam a
humanidade do Jesus Cristo de Nazaré que “sendo
rico, se fez pobre” (2Co 8.9).
- Os momentos de êxtase espiritual de João na ilha
de Patmos (cf. Ap 1.9-10 ss) e do apóstolo Paulo (2Co
12.2).
Essas experiências geraram muito mais sentimento
de humildade do que de orgulho e arrogância; mais
aproximação e comunhão do6. que sectarismo. Além do
mais, as experiências subjetivas narradas nas Escrituras,
diferentemente do gnosticismo, não desconsideravam a
importância do corpo, das necessidades materiais das
pessoas. Jesus Cristo curou enfermos, restaurou as
condições de pessoas debilitadas fisicamente. Afinal, nos
ensinos do Novo Testamento o corpo é considerado
templo do Espírito Santo (1Co 6.19-20), o corpo físico é
tão importante quanto o espírito imaterial.
A espiritualidade no evangelho gera simplicidade e
humildade e nos toma mais humanos e sensíveis aos
acontecimentos comuns da vida. O evangelho nos
aproxima dos pobres, das crianças, dos sofridos e
oprimidos (Lc 4.18-19; Mt 25.31-46). A espiritualidade
gnóstica, por outro lado, tende a privilegiar os gurus, os
quais se individualizam, isolam-se da comunidade. Para
as pessoas com mentalidade gnóstica, os espirituais são
reconhecidos por níveis superiores. Os “iniciados”
passam a ser identificados como indivíduos especiais,
dotados de capacidades espetaculares. Vale, nesse caso, a
experiência, a capacidade de encontrar-se com o “além”,
o poder que “seres humanos evoluídos” adquirem para
controlar “energias” ou serem influenciados por estas.
Se num grupo as pessoas estão dando mais ênfase à
experiência espiritual que isola, discrimina os de fora,
coloca os “espirituais” em pedestais superiores, como
sujeitos inalcançáveis e intocáveis, é bem provável que
estejamos mais diante de uma espiritualidade gnóstica e
sensitiva do que diante do modelo proposto por Jesus de
Nazaré. 6.
Sem dúvida alguma o modelo ensinado por Jesus
Cristo proporciona o crescimento das pessoas, contudo é
o desenvolvimento em direção ao alcance mais singelo de
nossa plena humanidade e nada mais - singeleza que nos
aproxima das demais pessoas, com mais amor e
humildade. Quanto mais perto de Deus as pessoas
chegam, mais pecadoras se percebem. Os santos não
veem santidade em si mesmos, mas desfrutam da
espiritualidade quando se percebem como pessoas
pecadoras e encontram o Senhor nas pessoas,
principalmente nas mais frágeis, pobres e vulneráveis.
Espiritualidade sensitiva
A espiritualidade que prioriza a experiência
emocional em detrimento da reflexão inteligente como
meio de interpretação do fenômeno religioso é sensitiva.
Nesse tipo de manifestação espiritual, não se busca
qualquer interpretação racional dos acontecimentos. O
evangelho de fato é profundamente arraigado ao campo
dos sentimentos, contudo, só sentir, sem discernimento,
pode conduzir o religioso a isolamento, fanatismo e
alienação.
Paulo, em sua Carta aos Romanos, exorta a igreja a
que pratique um culto racional (Rm 12.1-2). As narrativas
dos quatro evangelistas e as epístolas do NT são
documentos permeados de argumentações lúcidas, que
procuram, pela via da razão, explicar os fenômenos da fé.
Nas mesmas narrativas bíblicas, tanto Jesus quanto os
seus discípulos vivenciam experiências sensitivas
extraordinárias, todavia todas elas explicitavam ainda
6.
mais a vocação solidária e comunitária, bem como o
chamado de serviço ao mundo.
Jesus Cristo exerceu sua vocação com muita
sensibilidade. Chorou várias vezes, sentiu emoções
profundas. Paulo e os demais apóstolos viveram e
escreveram suas experiências evidenciando a
profundidade de seus sentimentos. Mas não era
emocionalismo. Seus sentimentos eram fruto das
revelações recebidas de Deus, das suas experiências
pessoais e das suas relações intensas de amor com
pessoas e comunidades envolvidas na missão do reino de
Deus.
Faz parte do evangelho chorarmos com os que
choram é nos alegrarmos com os que se alegram.
Confessar as culpas e levar as cargas uns dos outros
também é uma prática que envolve sentimentos. Não
podemos descartar os sentimentos em nossas
experiências espirituais. Portanto, não negamos a
importância dos sentimentos legítimos, que expressam a
nossa mais profunda humanidade e percepção do amor e
da graça de Deus. Afinal de contas Jesus afirmou:
“Felizes os que choram, porque eles serão consolados”
(Mt 5.4).
O que preocupa é o aproveitamento desonesto que
se faz de momentos de catarse emocional coletiva para
explorar e extorquir o dinheiro dos clientes das empresas
religiosas. Muitas celebrações religiosas contemporâneas
são manifestações de um espiritualismo exageradamente
emocional, que valida a espiritualidade pela força da
6.
emoção. São gritos e frases repetidas, até que se chegue
ao ápice das emoções, verdadeiros casos de histeria
coletiva, com evidências de desrespeito à dignidade
humana.
Todos nós já ouvimos falar de “lágrimas de
crocodilo”. O crocodilo solta lágrimas enquanto mastiga
sua presa entre as mandíbulas. Não sejamos presa
infantil diante das lágrimas apelativas dos religiosos,
diante dos exploradores da boa-fé das pessoas.
Ser infantil em algum momento da vida é
compreensível. Paulo escreve sobre experiências infantis,
que precisam ser abandonadas: “Quando eu era menino,
falava como menino, pensava como menino e raciocinava
como menino. Quando me tornei homem, deixei para
trás as coisas de menino” (1Co 13.11). Na versão bíblica
Revista e Atualizada, a expressão “raciocinava como
menino” é substituída por “sentia como menino”. Por
mais preciosos e úteis que tenham sido nossos
sentimentos, eles não podem continuar gerenciando a
nossa espiritualidade. Imagine só um adulto, como se
fosse criança, pedindo todo domingo à noite uma
mamadeira de leite espiritual aos seus pais ou fazendo,
durante toda a vida, “biquinho” de menino rebelde com
o fim de atrair a atenção dos adultos. Chorar e pensar
com o jeito das crianças são expressões legítimas na fase
da infância - e é sempre aceitável em todo começo. Porém
“pensar como menino”, “sentir como menino", ser
comandado como um infante é, pode se tornar um hábito
de adultos que não conseguem alcançar um pouco mais
6.
de maturidade.
Uma pessoa sem sentimentos perde a essência de
sua humanidade. Chorar é uma grande virtude humana.
Portanto, o propósito aqui não é combater os sentimentos
profundos, sinalizadores de que somos seres humanos
vivos. Muito pelo contrário, meu propósito é combater a
banalização dos sentimentos nessas sessões de catarse
emocional em que se transformaram certos cultos e
alertar sobre a vulnerabilidade na qual as pessoas se
encontram diante de qualquer situação em que não
possam mais garantir o gerenciamento das emoções.
Como estou falando sobre espiritualidade, sinalizo
que a espiritualidade inspirada na vida do Jesus Cristo
de Nazaré não pode ser identificada apenas por uma
catarse emocional. Precisamos “deixar para trás as coisas
de menino” - os sentimentos infantis e as dependências
tolas de “pais protetores”. Esses sentimentos bloqueiam
nosso crescimento espiritual e humano.
Entre os meus 16 e 20 anos, mergulhado em minhas
vivências pentecostais, desfrutei de alguns momentos
arrebatadores. Chorei copiosamente meus pecados e
mazelas - chorei como criança. Pensei muitas vezes como
um menino dependente de tutores. Dou muitas graças a
Deus pela preciosidade desses momentos e pela
idoneidade e responsabilidade dos líderes que me
inspiraram e me conduziram por caminhos sábios. Dou
graças a Deus por ter me livrado, nesta fase da vida, de
líderes religiosos inescrupulosos, manipuladores dos
sentimentos humanos. Hoje, 6. desfruto de outras estações
da vida, mais ancorado na graça de Deus, acolhido pelo
amor de Jesus Cristo e fortalecido pelas virtudes do
Espírito Santo.
O critério de Paulo no texto de 1 Coríntios 13, para
discernir entre o sentimento do “menino” e da pessoa
amadurecida ("estatura de varão perfeito”, cf. Ef 4.13) é o
amor. Ou seja, quanto mais amamos, mais espirituais e
humanos nos tomamos.
A diferença de uma espiritualidade gnóstica
sensitiva para uma espiritualidade encarnacional é que,
na primeira, os indivíduos passam por experiências e,
como consequência, se consideram superiores às outras
pessoas; seus códigos infantis geram projeções
megalomaníacas e ilusões. Na espiritualidade
encarnacional o discípulo é estimulado a uma experiência
de encontro com Deus, no poder do Espírito Santo, sendo
transformado, de glória em glória, até a semelhança de
Cristo (2Co 3.18). Inspirado na vida deste Jesus, o
discípulo vive humildemente em comunhão numa
comunidade de fé, em serviço ao mundo, considerando
os outros superiores a si mesmo. No projeto
encarnacional, confluem-se racionalidade e emoção,
espiritualidade e missão. A experiência de conversão do
discípulo de Jesus Cristo desemboca numa
espiritualidade batizada de discernimento e sabedoria.
Tal espiritualidade é íntima, pessoal e comunitária; é
uma espiritualidade holística, que leva em consideração
o cuidado com todas as áreas da vida, incluindo o meio
ambiente. Uma espécie de 6. espiritualidade “psico-eco-
lógica”.
No evangelho ensinado por Jesus, oramos ao Pai
nosso que está nos céus - espiritualidade transcendente. E
enquanto buscamos ao Pai na transcendência, devemos
buscá-lo também em comunidade. A oração é feita na
primeira pessoa do plural, o Pai é nosso, é Pai da
comunidade e na comunidade.
O Pai-nosso é ainda a oração do pão nosso de cada
dia. Portanto, não buscamos o Pai desprezando o corpo.
Cuidar do alimento para o corpo é tão sagrado quanto
cuidar da relação com o Pai. Sem cuidado com o corpo, o
espírito está sob o risco de não fazer história; sem
cuidado com a espiritualidade o corpo está sob o risco de
não ser virtuoso e assim pode ser corrompido e destruído
pelo entorno material, o fascínio e os encantamentos do
mundo. Além disso, como o pão é um bem que pode ser
acumulado ou socializado, quando se ora pelo “pão
nosso de cada dia” se está orando alimentado pela espi-
ritualidade que propõe bem-estar social, político e
econômico para todas as pessoas. Na Oração Dominical,
espiritualidade e missão são manifestações
transcendentes inseridas na realidade de todas as esferas
da vida.

6.
FUNDAMENTOS DA
ESPIRITUALIDADE E MISSÃO

6.
6.
A GRAÇA DE DEUS
0 RELACIONAMENTO NA ESPIRITUALIDADE

GRAÇA NO ANTIGO TESTAMENTO


Na teologia cristã, a graça é um ato exclusivo da
soberania e da natureza de Deus. Ela é inerente à própria
natureza de Deus, faz parte de sua essência e caráter. A
graça nos é dada a conhecer no Antigo Testamento a
partir da criação, que em si mesma já é uma iniciativa
exclusiva da soberana missão de Deus: “No princípio
criou Deus os céus e a terra...” (Gn 1.1), Nas palavras de
John Wesley,
foi a livre graça que formou o homem do pó
da terra e nele soprou a alma vivente, estampando
nessa alma a imagem de Deus e sujeitando todas as
coisas debaixo de seus pés. A mesma graça chega até
nós, neste dia, traduzindo-se em vida, respiração e
todas as coisas. Nada do que somos, ou
possuímos, ou realizamos, merece o mínimo favor
das mãos de Deus, [...] e, qualquer que seja a
justiça que se encontre no homem, ainda será uma
dádiva de Deus. (WESLEY, 1981, p. 31)
A história bíblica está repleta de alianças feitas pela
iniciativa de Deus com a humanidade, a despeito dos
erros e da desobediência que os seres humanos vão
cometendo no percurso da sua caminhada. Deus fez
alianças com Abraão, Moisés, Davi, Rute, Maria, com os
profetas, e o alicerce destes pactos foi sempre a graça de
Deus, independente das pessoas.
No Antigo Testamento, a palavra hebraica hesed,
usada com o significado de graça ou misericórdia, tem
como fundamento o pacto unilateral de Deus em relação
a Israel. As iniciativas das alianças procedem de Deus,
bem como os conteúdos e as bases de aplicação. Tudo é
feito tendo como esteio a soberana graça divina, e até a
capacidade de cumprir o pacto por parte das pessoas é
resultante da provisão do Senhor. A vocação de Israel,
por exemplo, atribui-se à iniciativa de Deus, pela sua
graça e seu amor, e não como decorrência da justiça dos
israelitas.
No livro de Êxodo, o povo pobre e oprimido no
Egito foi socorrido pela soberana iniciativa de Deus. Os
eventos de libertação são narrados como atos exclusivos
de Jeová. As parteiras, incentivadas por Faraó a matarem
as crianças das mulheres judias, se encontram envolvidas
de graça e bondade e preservam a vida dos meninos
inocentes. No mesmo contexto, nasce o pequeno Moisés,
acolhido pela graça maternal da filha do Faraó. A sensi-
bilidade feminina se manifesta nos primeiros relatos de
Êxodo como expressão da graça que não espera nada em
troca (Êx 1-2).
Deus amou o mundo de tal maneira (Jo 3.16)...
Amou também a Israel. Podemos perceber Israel como
ilustração da misericórdia do Pai por qualquer etnia ou
grupo humano. Israel não ilustra um amor particular do
Senhor, mas o amor incomparável de Deus, capaz de
amar até os rebeldes e desobedientes.
Porque tu és povo santo ao Senhor teu Deus; o
Senhor teu Deus te escolheu, a fim de lhe seres o seu
próprio povo, acima de todos os povos que há sobre
a terra. O Senhor não tomou prazer em vós nem vos
escolheu porque fôsseis mais numerosos do que todos os
outros povos, pois éreis menos em número do que
qualquer povo; mas, porque o Senhor vos amou, e
porque quis guardar o juramento que fizera a vossos
pais, foi que vos tirou com mão forte e vos resgatou
da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito.
Deuteronômio 7.6-8, grifos do autor
Nas Escrituras, a graça de Deus é compreendida
como a ação de um Deus soberano em favor de
pequeninos que não podem lhe oferecer nada em troca.
De modo que o mérito das alianças do Senhor com os
seres humanos é unilateral, tanto no conteúdo quanto nas
condições e na sua aplicação. O que surge de bom e
gracioso nos seres humanos é decorrente da graça
recebida de Deus.

GRAÇA NO NOVO TESTAMENTO


No Novo Testamento, a ideia de graça é semelhante às
observações feitas com respeito ao Antigo Testamento.
Nas narrativas dos quatro evangelistas fica bastante
evidente que Deus tomou a iniciativa de enviar seu Filho
ao mundo - ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo (Jo 1.29). “Deus amou o mundo de tal maneira
que deu o seu filho..." (Jo 3.16).
No evangelho, o paradigma da graça quebra a
lógica da troca de favores, serviços e bens das estruturas
econômicas e religiosas. A graça de Deus se manifesta
nos libertando desses modelos que escravizam e geram
dependência material e psicoemocional das pessoas.
Quem conhece a graça do Pai não se permite escravo,
nem se torna senhor de ninguém. As ações de Jesus
Cristo em favor de publicanos e pecadores, por exemplo,
deixam bastante claro que Deus age numa via, cujas
regras estão alinhadas por ele mesmo.
Nas narrativas dos quatro evangelistas e no livro de
Atos, Deus enviou o Espírito Santo como ato livre e
gracioso para inspirar, consolar e enviar o seu povo em
missão de serviço ao mundo. Deus enviou primeiramente
o seu filho Jesus Cristo: “Aquele que é a Palavra tornou-
se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória
como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de
verdade” (Jo 1.14, NVI). As comunidades que viram e
acolheram a graça e o amor de Deus são, hoje, a
expressão visível da mesma graça e do mesmo amor
revelados no Jesus Cristo de Nazaré.
Paulo, na carta aos Romanos, descreve o ser
humano como pecador justificado por graça. Deus trata a
nova criatura como se nunca houvera pecado. Em
resumo, o capítulo 6 da epístola trata da natureza
humana maculada pela maldade e sem alternativas de
salvação; no capítulo 7, o ser humano busca
desesperadamente alguma alternativa de encontro com
Deus e libertação de si mesmo - puro desencanto consigo
mesmo. O apóstolo, representando a natureza humana,
exclama: “Miserável homem que sou!” (Rm 7.24). O
capítulo 8 mostra que o Senhor vem em direção aos seres
humanos e os salva de todas as suas maldades. Isto é
pura graça.
Na carta aos Efésios, a salvação é
fundamentalmente um atributo da graça de Deus:
Deus nos ressuscitou com Cristo e com ele
nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo
Jesus, para mostrar, nas eras que hão de vir, a
incomparável riqueza de sua graça, demonstrada
em sua bondade para conosco em Cristo Jesus.
Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e
isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por
obras, para que ninguém se glorie.
Efésios 2.6-9, NVI
Fora da graça de Deus, qualquer outro modelo é
apenas a repetição da exploração religiosa existente. Pela
graça e somente por ela, somos capazes de descobrir um
novo relacionamento com Deus baseado no amor e na
intimidade paterno-filial, de forma livre, sem troca ou
dívida. Pela preciosa graça de Deus podemos ser livres
de nós mesmos, de nossa presunção, do orgulho que, por
natureza, quer nos elevar à condição de “divindade”.
Somos libertos das empresas religiosas e de seus deuses
de opressão e exploração.
Do ponto de vista bíblico, John Stott está correto
quando argumenta que “A missão da igreja resulta da
própria missão de Deus” (STOTT, 1982, p. 35). Paulo
afirma a missão de Deus como um projeto que antecede a
criação do mundo: “Como também nos elegeu nele antes
da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em amor” (Ef 1.4). Referindo-
se ao projeto de encarnação de Jesus Cristo, Pedro afirma:
“o qual, na verdade, foi conhecido ainda antes da fun-
dação do mundo, mas manifesto no fim dos tempos por
amor de vós” (lPe 1.20). Compreendendo esse ato
soberano de Deus, entendemos que todas as suas
iniciativas, no que diz respeito a nossa participação na
missão do reino de Deus, é resultante da sua graça
infinita.
Esta missão é ao mesmo tempo imanente: possui
geografia e história. O mundo é a paróquia onde se
concretiza a missão do povo de Deus, razão pela qual a
revelação transcendente se manifesta por meio de
homens e mulheres culturalmente mergulhados num
contexto ideológico, político, religioso e econômico -
ambiente dos deuses deste século - portanto, homens e
mulheres comprometidos com sua cultura.
Consequentemente, qualquer missão no mundo está
vulnerável aos equívocos de seu próprio tempo, seja pela
via da secularização, seja pelo caminho do sincretismo.
No caso brasileiro, mais do que nunca a espiritualidade e
a missão da igreja correm sérios riscos nos dois aspectos.
Resgatar uma espiritualidade fundamentada na
graça de Deus como expressão da missão que emerge da
própria natureza do nosso Senhor é fundamental para
vivermos o evangelho e anunciarmos as boas novas do
reino de Deus. Entendendo o paradigma da graça de
Deus seremos capazes de distinguir a missio Dei de outras
missões alheias a sua vontade. Alicerçados na graça do
Pai, os seguidores do Jesus de Nazaré, em missão,
poderão estabelecer resistência e oposição ao
mercantilismo da fé e ao charlatanismo, tão evidentes nas
empresas religiosas.
Graça que não desemboca em missão, marcada pela
misericórdia e justiça, é favor barato, do mesmo modo
que missão que não brota incondicionalmente da graça
de Deus é apenas mercantilização entre as partes
envolvidas.

0 REFLUXO DA GRAÇA DE DEUS


Falar da unilateralidade da graça de Deus é fazer
referência ao mérito da ação de Deus. Cabe a ele toda a
glória, por ser digno de honra e louvor. Unilateralidade
enfatiza também a ação amorosa do Senhor que se doa
sem expectativa de retribuição. Uma doação que espera
troca já não é mais graciosa. Este paradigma da graça é
fundamental nas nossas relações com Deus e com as
pessoas, pois quem experimenta um relacionamento com
o Pai alicerçado na graça se torna uma pessoa graciosa. A
graça divina torna-se um refluxo natural nas demais
relações da vida: quem foi alcançado por Deus, pela sua
infinita graça, passa a tratar as pessoas com graça
semelhante.
Todas as pessoas naturalmente já experimentam
vivências de troca de mercadorias por dinheiro, troca de
afetos, troca de farpas etc. Algumas trocas fazem parte da
natureza humana. Do que somente alguns poucos
desfrutam, e que faz parte também da natureza humana,
é da virtude da gratuidade. Há pessoas que possuem na
sua essência um jeito precioso de servir sem expectativa
de reconhecimento ou qualquer forma de paga. O
processo de gestação é um desses fenômenos de
gratuidade - uma mãe oferecendo o útero para gerar uma
vida pelo sublime prazer de ser mãe. Neste caso, estamos
diante de um dos exemplos objetivos que mais se
aproximam da graça e da misericórdia de Deus.
Uma espiritualidade fundamentada e inspirada na
graça não alimenta expectativas de troca, pagamento,
nem mesmo reconhecimento. Quem ama, age por conta
dessa fonte inesgotável dentro de si mesmo. Os
empobrecidos, os espoliados, os injustiçados não se
tornam devedores da missão de misericórdia e justiça
realizada pelos seguidores de Jesus Cristo. Quem vive
uma espiritualidade e uma missão marcadas pela graça
de Deus não se frustra quando não recebe aplausos, nem
põe sob dívida quem desfruta de sua missão. Os seres
humanos invadidos pela graça de Deus socializam a
mesma graça com as demais pessoas, como refluxo
daquilo que receberam.
Uma missão batizada pela espiritualidade da graça
é fonte de realização numa via dupla: pela graça, quem
tem acesso aos bens necessários à vida os socializa e
desfruta, pela mesma graça, dos dons virtuosos dos
pobres. Não há dívida e pagamento - há, tão somente,
fluxo e refluxo da mesma graça.
7.

AMOR
O CORAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE

0 AMOR COMO SINAL DE SANTIDADE


Iniciamos esta parte de nossa reflexão reconhecendo1 o
reducionismo que provocamos quando buscamos
definições para as virtudes mais relevantes da vida. O
amor é uma destas virtudes, que não se conceituam, não
se explicam, apenas se experimentam, desfrutam-se e
vivem-se delas.
Assim como uma planta naturalmente produz
frutos da sua espécie, o discípulo de Jesus Cristo produz
o fruto do Espírito Santo: “amor, paz, alegria, bondade,
fidelidade, mansidão...” (G15.22). O amor é a marca com
a qual deve ser identificada a comunidade de Jesus. Para
Francis Schaeffer, o amor é uma espécie de emblema, um
selo que o Espírito confere para identificar o cristão em
todos os tempos e em todos os lugares (SCHAEFFER,
1992, p. 5). Este selo é a marca que gera o diferencial de
santidade do povo de Deus. Isto posto, toda a nossa
deficiência em sermos santos é uma falha em nossa
capacidade de expressar amor por meio do que somos,
fazemos e dizemos: “Nisto conhecerão todos que sois
meus discípulos; se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo
13.35). Na ótica de João, amamos a Deus quando de fato
amamos aquele a quem vemos (1Jo 4.20-21). As mulheres
e os homens reconhecidos como santos receberam esse
reconhecimento por seus atos de amor em humildade. A
santidade não depende do alimento que comemos, dos
bens que possuímos; depende daquilo que socializamos,
dos bens que dividimos. As santas e os santos foram mais
identificados pelo que dividiram do que por terem
possuído ou acumulado bens. Suas liturgias se
confundiam com a sua própria vida - eram a liturgia do
cotidiano, e não mera burocracia religiosa. Foram
considerados santos por causa de seus atos devocionais
de misericórdia e justiça. O amor foi sempre a marca de
santidade dos seguidores do Jesus Cristo de Nazaré.
Cumprir os mandamentos de Deus é uma prática
que gera santidade. E, na verdade, existe um único e
grande mandamento: amar a Deus e ao próximo; todos
os demais são seus desdobramentos,
Como amar também é mandamento, o amor existe
para ser obedecido. Esta constatação não implica que o
amor deva ser praticado por imposição, mas apenas
enfatiza que não se trata de um mero sentimento. Amar é
também um caminho, o jeito de ser, o modus vivendi do
discípulo. O seguidor de Jesus ama como resposta ao
amor recebido de Deus, amar faz parte da sua pulsação
natural, da expressão de maturidade humana e de uma
espiritualidade inspirada pelo Espírito Santo. Porém,
ainda que circunstâncias adversas queiram inibir a
capacidade natural do discípulo de amar, ele amará, no
poder do Espírito Santo, por obediência ao mandamento.
Se amamos a Deus e naturalmente obedecemos ao
Seu mandamento de amar as pessoas, também
precisamos amar incondicionalmente, como
consequência do novo ser humano que habita em nós, em
permanente transformação pelo poder do Espírito Santo:
Mas quando alguém se converte ao Senhor, o véu é
retirado. Ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o
Espírito do Senhor, ali há liberdade. E todos nós, que
com a face descoberta contemplamos a glória do
Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados com glória cada vez maior, a qual
vem do Senhor, que é o Espírito.
2 Coríntios 3.16-18, NVI
Deus nos fez à sua imagem e semelhança na mais
profunda essência de tudo que ele é - Deus é santo na
essência do seu amor. Se a espiritualidade pudesse ser
mensurada, se existisse uma espécie de “espiritômetro”,
este aparelho nos indicaria o quanto da santidade
amorosa de Deus existe em nós, e só poderíamos
visualizar isto através de um indicador que mostrasse a
nossa maior ou menor capacidade para amar as pessoas.

0 AMOR COMO SERVIÇO


Nas Escrituras, o povo de Deus é uma comunidade
distintiva, santa, vocacionada para servir. A Igreja é
composta pelos “filhos da luz” que, por essa condição,
“andam na luz” e amam a luz (Ef 5.8). Na linguagem dos
apóstolos é possível identificar o uso da primeira pessoa
do plural (nós) e, às vezes, segunda pessoa do plural
(vós), para fazer referência a essa comunidade escolhida
por Deus a fim de manifestar ao mundo a multiforme
sabedoria de Deus (Ef 3.10).
Deus convoca o seu povo para amar e abençoar a
muitos e não para privilegiar alguns. No Novo
Testamento, fica evidente a existência de uma
comunidade universal, que tem respondido
positivamente ao ato redentor do amor de Deus, devendo
diferenciar-se de outros, a quem Paulo chama de “filhos
da desobediência” (Ef 2.2-3). O apóstolo continua: “Mas
Deus sendo rico em misericórdia por causa do grande
amor com que nos amou...” (Ef 2.4), e ainda afirma em
outra carta: “Deus prova o seu próprio amor para
conosco, pelo fato de ter Cristo Jesus morrido por nós,
sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Pedro usa a
segunda pessoa do plural: “vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa...” (1Pe 2.9). João é mais
enfático quando descreve o amor entre Deus e o seu
povo: “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1Jo
4.19). Afinal, a Bíblia se resume nessa fascinante iniciativa
de Deus de salvar a humanidade através do Seu amor.
Entendendo a comunidade de Jesus Cristo como
povo alcançado pela bondade do Pai e não apenas como
estrutura institucionalizada, as possibilidades da missão
se ampliam. As instituições são limitadas, não possuem
neurônios nem sentimentos, logo, não são capazes de
amar, e mesmo que em certos momentos sejam úteis ao
Reino de Deus, podem, em outras situações, prestar um
desserviço ao Reino dada a sua necessidade institucional
de se autopreservar.
O amor às pessoas é o paradigma que não permite
sacrificar seres humanos em benefício de bens, lucro, ou
do pragmatismo.
Quem ama, cuida, não abandona. A
comunidade do povo de Deus deve ser a expressão
deste amor. E como o fará? No Novo Testamento, a
manifestação do amor acontece na diaconia. Como
expressa o bispo anglicano Sebastião G. Soares, “A
igreja de Jesus Cristo ou é diaconia, ou não é Igreja
de Jesus Cristo” (SOARES, 2000, p. 12). A figura de
servo, atribuída ao Messias, fez mais sentido como
“diácono da humanidade” do que como escravo.
Pensando desta maneira, vamos compreender a
“diaconia” como missão essencial do povo de Deus,
pois ela é serviço e, como sabemos, tudo na igreja
deve ser um serviço - diaconia da proclamação,
diaconia da evangelização, diaconia social, das artes,
política, diaconia por justiça e paz.
No Sermão do Monte (Mt 5-7), a
espiritualidade não se restringe ao ato de levar
oferta ao altar. A missão de buscar o outro para o
espaço da reconciliação, para o ambiente da paz e da
partilha do pão é ensinado pelo Mestre como
devoção e espiritualidade.
Não seria verdade afirmar que espiritualidade
é o ato de fazermos desdobrar a experiência
transcendente em amor ao próximo, enquanto que
missão seria, por exemplo, a tarefa de transformar
num culto a Deus a nossa ação sociopolítica em
favor dos pobres e oprimidos? Não seria também o
ato de convertermos a nossa profissão, talentos e
habilidades num culto ao Senhor? Ou seja, quanto
mais devoção e busca de Deus, tanto mais
compromisso com a vida e serviço ao próximo; e
quanto mais serviço ao próximo, tanto mais vida
devocional e compreensão do amor e da justiça do
nosso Senhor.

AMAR É SERVIR A SI MESMO


Amar a si mesmo não é amar as sombras e imagens
que não representam a singularidade de uma
pessoa. Algumas pessoas trazem no corpo mazelas,
enfermidades que a ele foram se agregando. A
doença não é o núcleo básico do nosso ser, da
mesma forma que cometemos erros e imperícias,
entretanto nossos equívocos não nos constituem. Por
outro lado, vivemos e vamos adquirindo títulos,
prestígio, imagem pública. Essas imagens também
não são o núcleo básico do nosso ser; algumas
pessoas não percebem que não se amam, mas que
têm paixão por suas funções e papéis e não por si
mesmas. Portanto, amar a si mesmo é cuidar da
essência singular, significa amar o projeto mais
original criado por Deus. Amar a si mesmo não é
gostar de sombras e projeções, nem amar as
expectativas que outras pessoas construíram em
torno de uma vida.
Quem se ama, cuida dos eventos que guardam uma
relação estreita com a própria vida. Identificar e cultivar
as experiências nobres que nos deram razão e sentido de
existir é fundamental para que cuidemos de nós mesmos.
O propósito da vida não está na experiência em si, seja
ela positiva, seja negativa; antes, se constrói na
elaboração que vamos fazendo de cada uma. Por isso
mesmo um grande sofrimento pode ser transformado
num surpreendente benefício, da mesma forma que, por
causa da imaturidade, um grande bem pode ser reduzido
a uma terrível desgraça.
Uma espiritualidade madura se manifesta na
aceitação de nós mesmos e a vida que Deus nos deu.
Quem ama a si mesmo consegue reelaborar para o bem
as suas experiências, por mais traumáticas que sejam.
Todas as pessoas, em maior ou menor intensidade,
passaram por momentos encantadores e frustrantes. Na
forma como encaramos essas experiências podemos
identificar novas motivações para continuarmos a
peregrinação da existência. Com certeza somos ávidos
por nos animarmos com as experiências boas. Vários
salmos na Bíblia são exemplos de como os eventos
favoráveis inspiraram os narradores e nos ensinam a
cuidar melhor de todo o nosso ser. Nos deparamos
também com experiências consideradas negativas,
resultantes de pecados; todavia, pela confissão e pelo
arrependimento, os salmos mostram que podemos
acolher o perdão de Deus. Quando causamos males a nós
mesmos ou a outras pessoas, e temos consciência disto, o
arrependimento e a reparação da maldade podem gerar
paz e segurança interior - e isto também é cuidar de si
mesmo.
Cuidar de si mesmo em celebração e gratidão a
Deus pelas virtudes e por meio do arrependimento e da
confissão de pecados; buscando sarar as feridas
emocionais, tratando os ruídos interiores não resolvidos;
usando o tempo também para repouso e lazer, a fim de
assegurar uma boa saúde física e emocional. Cuidar de si
mesmo em oração e devoção profundas, exercitando a
capacidade de escuta, sendo temperante no uso da
palavra, bondoso e criterioso no cuidado com “as janelas
da vida” - os olhos que vão construindo os paradigmas
do corpo e da alma (Mt 6.22-23). Cuidar de si mesmo é
manter um corpo saudável e uma mente fecunda de
sabedoria e relações amorosas, confiáveis e empáticas.
Cuidar de si mesmo é cuidar de todo o entorno que
favorece a vida abundante para todas as pessoas e toda a
natureza criada por Deus.
Amar é servir ao próximo
Gostar de alguém semelhante a si mesmo por causa da
profissão, dos títulos, da classe social ou religião pode
não ser uma demonstração de amor. Neste caso, há a
possibilidade de gostarmos apenas do elemento
semelhante que o outro possui em relação a nós mesmos.
Podemos admirar a capacidade de produção ou a
piedade religiosa que vemos no outro, o que não significa
gostar da pessoa. Não precisamos depreciar os títulos, as
funções e os papéis, apenas precisamos lembrar que o ser
humano é muito mais do que os papéis que ocupa. Não
há grande virtude em simplesmente apreciarmos alguém
por causa de uma boa conta bancária; a riqueza, por
exemplo, é uma condição da pessoa, mas não faz parte da
sua essência. Com certeza, todo ser humano pode ter
valor social e político agregado como consequência de
papéis que assume, contudo muitas pessoas se
aproximam de outras por causa do proveito que podem
tirar, e não por causa do amor.
O amor é evidenciado em sua mais profunda
pureza quando é devotado ao outro totalmente outro. E
no contraste entre a santidade de Deus e os nossos
pecados que percebemos o eterno amor de Deus. Já
comentamos que toda a criação é uma expressão do amor
de Deus, mas a revelação do Seu amor se tornou mais
perceptível depois da morte voluntária de Jesus Cristo:
“Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo
morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). O
amor de Deus transita no limite, alcança o extremo: tem
altura, largura, profundidade, amplitude (Ef 3.17-19). Por
isso nós só vamos ao limite quando realmente somos
uma fonte de amor. Jesus Cristo foi, voluntariamente, até
o extremo último da existência natural dos seres
humanos, a morte, e seu amor e resistência ao mal
ficaram evidentes na cruz.
Cristo usou um argumento semelhante no Sermão
do Monte para falar desse amor que ultrapassa as
fronteiras relacionais: “Se amardes os que vos amam, que
galardão havereis? [...] E, se saudardes unicamente os
vossos irmãos, que fazeis de mais?” (Mt 5.4647). A ideia
de Jesus está conectada com o fato de que “ele [Deus] faz
raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre
justos e injustos” (Mt 5.45). E por que não entendemos
esta forma de Deus agir? O fato é que Deus não age
baseado no jeito de ser do outro. Deus age baseado em
seus atributos e virtudes. Precisamos cultivar uma
espiritualidade que nos torne cada vez mais semelhantes
ao Pai celestial (Mt 5.48), dedicando amor a todas as
pessoas, sem distinção.
Paulo, em uma de suas poesias, escreve que se
desfrutarmos de manifestações sobrenaturais (falar as
línguas dos homens e dos anjos, ter fé e conhecimento,
por exemplo) e, por outro lado, não estivermos
revestidos de amor, nada disso se aproveitará. Ou se
possuirmos conhecimento misterioso e científico, mas
não tivermos a prática do amor, insiste o apóstolo, nada
disso adiantaria. No seu ponto de vista, podemos até
praticar a filantropia e fazer sacrifícios, todavia se o amor
não for o fundamento e a motivação de tais práticas, de
nada vão servir (1 Co 13.1-3).
O princípio da unidade dos seguidores de Jesus está
fundamentado no amor, de modo que o povo de Deus
precisa ser internamente uma sociedade em comunhão,
afetividade, fraternidade, um espaço de pessoas
acolhedoras e misericordiosas, a expressão mais explícita
de amor, onde as pessoas possam se sentir cuidadas e
tocadas por Deus por meio do testemunho de pessoas
transbordantes de candura, inundadas de misericórdia,
batizadas de sinceridade, paz e justiça. Testemunhar do
amor de Deus ao mundo depende da unidade, em amor,
dos discípulos de Jesus Cristo. Ele mesmo disse: “Que
eles sejam um para que o mundo saiba que tu me
enviaste...” (Jo 17.23-24).
Muito de nossa deficiência espiritual é, de fato, uma
falha em nossa capacidade de amar. Numa
espiritualidade e missão marcadas pelos sinais do
evangelho e inspirada na vida do Jesus Cristo de Nazaré
serão evidentes os sinais de amor, fé, graça e justiça.

Amar é servir ao mundo


Sendo o povo de Deus uma comunidade de amor como
consequência de sua própria natureza, seria contraditório
viver para dentro de si mesma e não para os “de fora”.
As comunidades cristãs precisam manter o diferencial de
ser uma sociedade em que os associados vivem a serviço
dos não associados. A lógica de quem ama é viver para o
bem do outro e não de si mesmo. Logo, a unidade do
povo de Deus, como expressão interna do amor, não
deve ser vivida de forma excludente, antes deve ser a
manifestação do testemunho de amor entre os seguidores
de Jesus Cristo, a despeito de suas diferenças e de sua
diversidade, a fim de que os “de fora” creiam que Jesus
Cristo é o Messias enviado por Deus. O amor fortalece a
comunhão interna do Corpo de Cristo, ao mesmo tempo
em que libera sua gente para praticar obras de
misericórdia e justiça em favor de outros, com o fim de
revelar ao mundo a graça de Deus no seu tratamento com
as pessoas.
Uma espiritualidade fundamentada no amor
aprecia todas as manifestações de Deus e com elas se
deslumbra; impregnada de amor, tem sensibilidade
aguçada para todos os dons da vida, vive o exercício
permanente de contemplação da natureza nos seus mais
variados cenários. É amor que nos inspira ao cuidado
incontido pelo próximo e a viver diligentemente em
comunidade. Viver em amor é viver em diaconia - em
serviço e missão, o que nos salva de nossa própria
desumanidade, do isolamento, da indiferença, da
insensibilidade; nos salva da ganância, do egoísmo, da
acumulação e, consequentemente, nos salva desta
correria célere contra a vida. Quem assim ama, vive em
missão permanente, missão com vistas à busca de vida
abundante para todos os homens e harmonia nas relações
com Deus e com a natureza.
8.
HUMILDADE
ESSÊNCIA E ESTÉTICA NA ESPIRITUALIDADE

Cingi-vos todos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes concede a sua
graça. Humilhai-vos, portanto, sob a poderosa mão de Deus, para que ele, em tempo oportuno, os
exalte.
1 Pedro 5.5b-6

A HUMILDADE COMO ESSÊNCIA DE NOSSA HUMANIDADE

Ser humilde e simples são virtudes que expressam a


essência da natureza humana. Húmus é raiz tanto da
palavra humildade, quanto da palavra humanidade.
Portanto, ser humilde, na perspectiva do evangelho, é ser
humano no máximo de nossas possibilidades. Para o
Reino, quanto mais humildes formos, mais humanos
seremos. A humildade não coloca a pessoa num pedestal
religioso superior, muito pelo contrário, as pessoas santas
percebem-se pecadoras e são sempre identificadas como
pessoas especialmente humanas. A humildade é, pois,
uma condição natural de se viver uma espiritualidade
mais humana. A humildade de uma pessoa será melhor
identificada quando ela conseguir manifestar em suas
relações o núcleo básico de sua singularidade.
Quando pedimos um café simples, estamos falando
de um café sem acompanhamento ou acessórios, apenas
o cafezinho puro. Esta analogia tão limitada pode nos
ajudar a entender que pessoas simples evitam capas de
arrogância ou imagens e sombras adicionais. Elas são
percebidas mais pelas virtudes e singularidade pessoal
do que pelos títulos, pela fama ou pelo prestígio que
possuem. Orgulho, prepotência, vaidade são
quinquilharias totalmente dispensáveis à vida. São
penduricalhos estranhos a uma espiritualidade
comprometida com a vida do Jesus de Nazaré.
Num contexto em que a espiritualidade é inspirada
por humildade e simplicidade não há lugar para a
proliferação de ególatras, não há como desenvolver
mercantilismo religioso alimentado pelos rótulos
engenhosos da vaidade. Por isso não há como relacionar
o sucesso das manifestações religiosas na vitrina dos
negócios da fé com a vida e o testemunho dos seguidores
de Cristo. O Jesus anunciado nas vitrinas dos shoppings
da religião pode ser escrito com as mesmas letras e
pronunciado da mesma forma, mas deve ser algum mito
bem diferente do Jesus Cristo de Nazaré proclamado
pelos apóstolos.
A humildade e a simplicidade erradicam a
conhecida síndrome de projeção pessoal e institucional,
identificada nos discursos que procuram impressionar
pela arrogância da voz, pela arquitetura ostensiva das
catedrais, pela exuberância dos altares e púlpitos, pela
estética das roupas caras.
De fato, os apetrechos que adicionamos às nossas
vidas apenas embotam a possibilidade de sermos
percebidos em nossa essência mais profunda. O belo da
vida está em anunciarmos a singeleza do que nos
tornamos em Cristo Jesus.
Por certo a humildade não é meramente estética e
externa, mas o coração humilde só se torna visível pela
simplicidade como se expressa externamente. Deus
sonda os corações e não precisa de atos externos para
conhecer a humildade e santidade de uma pessoa. Os
homens, por sua vez, só identificarão a humildade de
uma pessoa pela coerência entre interioridade e
expressão externa. Alguém pode nos enganar, usando
uma estética simples para demonstrar humildade e
mesmo assim ser uma pessoa arrogante e hipócrita.
Contudo, mais difícil ainda é alguém supostamente de
coração humilde tentar expressar o seu caráter numa
aparência pomposa e arrogante.
As expressões religiosas reconhecidas pelo seu
poder político e econômico, batizadas por riqueza e
glamour, são uma contradição e uma afronta aos ensinos
de Jesus, o qual combateu, veementemente, as pessoas
que gostam de orar nos lugares públicos, que exigem as
primeiras cadeiras nas sinagogas a fim de serem
percebidas e ovacionadas pelos espectadores, e ainda
condenou o amor ao dinheiro (Mt 6.5, 24; 23.1-10).
Um dos sinais mais importantes da espiritualidade
é a humildade, uma espécie de vestimenta dos
seguidores do Senhor Jesus. Quando contemplamos a
vida de pessoas reconhecidas como espirituais não temos
como negar a humildade que cultivam. No conhecido
Cântico de Maria, encontramos um célebre exemplo
desta verdade: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o
meu espírito exulta em Deus meu Salvador; porque
atentou na condição humilde de sua serva” (Lc 1.46-48).

0 MAIOR EXEMPLO DE HUMILDADE


Jesus Cristo é o nosso maior referencial de vida, e o
apóstolo Paulo, escrevendo aos filipenses, apresenta a
sua humildade como exemplo a ser seguido:
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em
Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não
julgou por usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se
esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em seme-
lhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si
mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz.
Filipenses 2.5-8, grifos do autor
É evidente que a humildade de Cristo fazia parte de
sua essência, todavia se tornou ainda mais perceptível
em vários momentos da sua vida. Sua encarnação
comunicou a profundidade de sua humildade; seu
nascimento numa singela manjedoura, sua morada na
desprezível Nazaré, sua aproximação e acolhimento de
pessoas pecadoras e enfermas, sua atitude despojada
quando humildemente lavou os pés de seus discípulos,
sua entrada triunfal em Jerusalém, montado num
jumentinho, todos esses exemplos ilustram quão humilde
e simples foi o Filho de Deus. Ele mesmo animou os seus
discípulos a observarem o seu modelo: "Aprendei de
mim porque sou manso e humilde de coração” (Mt
11.29).
O suprassumo dos ensinos de Jesus é registrado por
Lucas e Mateus no conhecido Sermão do Monte (Mt 5-7),
e a primeira declaração feita se refere justamente à
humildade: “Felizes os humildes (pobres) de espírito,
porque deles é o reino dos céus” (MT 5.3). Mateus usa a
expressão: “pobres de espírito” para referir-se à
humildade, àquele sentimento da pessoa que se percebe
vazia de tudo, pobre de tudo e, por isso, necessitada de
Deus. O humilde ou pobre de espírito é espiritual
porque, mesmo tendo sido visitado pelo sentimento
humano da presença de Deus, não se sente saciado e
continua precisando do Pai; e é esta busca de quem tem
fome e sede do Deus vivo que alimenta mais ainda a
espiritualidade.
9.
FÉ E JUSTIÇA
TRANSCENDÊNCIA E RESPOSTA ÉTICA NA
ESPIRITUALIDADE

INICIEMOS este capítulo com uma afirmação de Rudolf


Otto, reconhecido teólogo alemão:
Os elementos não racionais que permanecem vivos
numa religião preservam-na da degeneração em
racionalismo. Os elementos racionais que nela são
abundantemente saturados, preservam-na de cair no
fanatismo ou no misticismo ou de neles permanecer, e
elevam-na ao nível de religião qualitativamente
superior, culta, religião da humanidade. A presença
desses dois elementos e sua harmonia estabelecem
um critério para medir a superioridade de uma
religião... (OTTO, 1985, p. 120).
Baseado neste critério, Otto descreve o cristianismo
como religião superior às demais religiões, considerando,
ainda, que o cristianismo toma para si uma forma que ele
denomina de “clássica e nobre”.
Sem entrarmos no mérito da discussão sobre a
superioridade do cristianismo, este livro deseja animá-lo
a cultivar uma fé capaz de gerar uma espiritualidade
subjetiva e, ao mesmo tempo, racional. A fé, na
perspectiva do evangelho de Jesus Cristo é prática, ética e
consequente. À luz de vários textos bíblicos, vejamos
algumas manifestações da fé evangélica e como cada uma
delas podem avaliar e inspirar a nossa prática de
espiritualidade.

FÉ TRANSCENDENTE
Aqui a fé será explicada como experiência a priori ou
anterior a outras formas de expressão cognitiva, sejam
elas culturais, políticas, econômicas ou sociais. A fé é
crença inabalável, convicção naquilo que não se vê,
conhecimento e confiança no Inominável, Indescritível,
busca pelo Ser interminável, eterno. Na teologia cristã,
esse conhecimento é denominado de revelação, ato
exclusivo da parte de Deus em se fazer conhecido a quem
ele quer se manifestar. A fé, então, é o atributo ou
sensibilidade humana capaz de responder a essa
manifestação do Eterno. Esta fé transcendente é própria
da natureza humana, está em todas as pessoas, bastando
apenas ser cultivada e desfrutada.
O Antigo Testamento está repleto de exemplos de
pessoas que se permitiram possuir pela natureza desta fé.
É só lembrarmos dos patriarcas, dos profetas, de
mulheres na Bíblia que testemunharam uma percepção
aguçada sobre as manifestações de Deus em suas vidas.
Os relatos sobre as experiências registradas nas
Escrituras mostram-nos a revelação de Deus de uma
forma sobrenatural e aceita somente na esfera do
sentimento da fé subjetiva.
Depois da ressurreição, Jesus apareceu aos seus
discípulos e, diante da descrença de Tomé, lhe disse:
“Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não
viram e creram” (Jo 20.29). Na carta aos Efésios, Paulo se
refere à fé como, um dom de Deus (Ef 2.8-9). O escritor
da carta aos Hebreus, por sua vez, diz: “A fé é o firme
fundamento das coisas que se esperam, e a prova das
coisas que não se veem.[...] Ora, sem fé é impossível
agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se
aproxima de Deus creia que ele existe, e que é
galardoador dos que o buscam” (Hb 11.1, 6).
Outro exemplo desta verdade na Bíblia é o que
Paulo diz de Abraão, o pai da fé:
E recebeu o sinal da circuncisão, selo da justiça da fé
que teve quando ainda não era circuncidado, para
que fosse pai de todos os que creem, estando eles na
incircuncisão, a um de que a justiça lhes seja
imputada, bem como fosse pai dos circuncisos, dos
que não somente são da circuncisão, mas também
andam nas pisadas daquela fé que teve nosso pai
Abraão, antes de ser circuncidado.
Romanos 4-11-12
Paulo completa dizendo simplesmente que Abraão
creu e “isso lhe foi imputado como justiça...” (Rm 4.22). O
apóstolo está falando de uma confiança em Deus, que se
evidenciou no patriarca antes de qualquer resultado que
a sua fé pudesse manifestar.
No Antigo Testamento, a expressão da fé se dá
como resultado da crença nas Alianças de Deus com
pessoas e nações. Assim, muitos sinais e milagres se
manifestam como confirmação da fé, seja para a missão
específica de alguém, seja para reafirmar o poder de
Deus. Todavia, estamos identificando a fé dentro do
campo do sentimento humano que encontra significado
simplesmente na crença, na confiança total e absoluta em
Deus, uma fé que tentamos descrever com algumas
analogias, mas que jamais será explicada apenas com
meras definições.
Em João 3.1-21, Jesus procurou decodificar para
Nicodemos o mundo espiritual e, mesmo assim,
Nicodemos não o entendeu. O Mestre ironizou: “Se vos
falei de coisas terrestres, e não credes, como crereis, se
vos falar das celestiais?” (Jo 3.12). Ensinando aos
Coríntios, Paulo fala de um conhecimento não
interpretável “naturalmente”, refere-se a coisas que olhos
não viram, ouvidos não ouviram, nem jamais penetrou o
conhecimento racional (1Co 2.8-9). Ele discorre sobre
conhecimentos que são discernidos com um critério
espiritual e por pessoas espirituais. Em passagens como
estas, a espiritualidade assume uma esfera sobrenatural,
transcendente.
Pela invasão desta fé subjetiva, muitos homens e
mulheres que acreditaram na morte e ressurreição de
Jesus Cristo tiveram suas vidas ceifadas. Pelo testemunho
de suas vidas e pelo compromisso assumido com o
evangelho de Cristo, tais pessoas foram apedrejadas,
cerradas ao meio, sofreram as mais variadas formas de
tortura e mesmo assim não negaram a sua fé (Hb 11.35-
38).
A espiritualidade inspirada na experiência do
Senhor Jesus foi sempre movida por uma resposta
humana que nos leva a confiar em Deus e a agir tendo
como modelo a vida do Mestre de Nazaré. Por mais que
se tente racionalizar a fé descrita nas Escrituras, ela é
fruto de experiências transcendentes.2 Vemos, portanto, a
fé como uma qualidade do sentimento humano que nos
move em direção a Deus, mesmo antes de qualquer
manifestação religiosa. Existe uma espiritualidade
antropológica que vem antes das religiões. Acreditar, ser
possuído pela fé, é peculiaridade dos seres humanos.
Ainda que as circunstâncias e as experiências da vida
pareçam tão contraditórias e ambíguas, continuamos
acreditando.

FÉ COMO MANIFESTAÇÃO DE FEITOS SOBRENATURAIS

Especialmente nos textos dos quatro evangelistas,


encontramos registros sobre a fé na perspectiva da
realização de proezas e milagres. Nesse sentido, o
anúncio dos milagres não tinha como objetivo gerar uma
elaboração racional da fé. O propósito do narrador era
gerar a crença como confiança em Deus e confirmação de
que Jesus Cristo é Filho de Deus enviado ao mundo. O
apóstolo João, por exemplo, referindo-se aos registros em
seu livro, diz que “estão escritos para que creiais que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31).

2 É o que Paulo denomina de mistério, não concedido a outras gerações, mas a ele, “o menor de todos os santos*, a quem foi “dado
conhecer o mistério da multiforme sabedoria de Deus* (Ef 3.1-1 S). 0 apóstolo procura explicar de maneira racional o significado desta
fé evangélica nas epístolas que escreve. As duas epístolas mais doutrinárias são as de Romanos e Efésios.
De um lado, podemos observar a intenção dos
narradores do Novo Testamento, procurando
sistematizar, de forma inteligente e com argumentação
racional, os fundamentos de sua fé. Lucas, Paulo e Tiago
sinalizam vários elementos dessa tentativa de
sistematização racional da fé. De outro lado, podemos
olhar para as narrativas observando a atitude dos
personagens de cada história. Aí vamos encontrar textos
cuja ênfase está na fé da pessoa doente ou daqueles que
cercavam o Senhor Jesus (Mt 8.10; Mc 2.5; 5.34; 10.52), ou
na falta de fé, que limitava a intensidade dos milagres: “E
não podia fazer ali nenhum milagre, a não ser curar
alguns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. E
admirou-se da incredulidade deles...” (Mc 6.5-6).
Os milagres realizados por Cristo são narrados
como sinais fora da normalidade. A transformação de
água em vinho, a ressurreição de Lázaro e vários outros
são anunciados no Evangelho de João como testemunhos
da revelação de Deus na vida do Filho. Mesmo que já
percebamos a vida como um milagre per si, os feitos
milagrosos de Cristo fogem se destacam porque fogem
aos acontecimentos naturais de nossa existência.
A fé chega a ser mensurável. Encontramos no Novo
Testamento expressões como: “grande é a tua fé”, ou “fé
como um grão de mostarda”, ou ainda “homens de
pequena fé”. Nestes casos, a fé se apresenta como um
sinal de que as pessoas estão - às vezes mais, às vezes
menos - potencialmente abertas às possibilidades dos
milagres que Deus pode realizar em suas vidas ou por
meio de suas vidas.
Por esta lógica, podemos dizer que a espiritualidade
se caracteriza pela condição individual ou coletiva de se
realizar “o impossível”. A abertura para confiar na
possibilidade do milagre é uma virtude espiritual
desfrutada pelos seguidores de Jesus Cristo. A fé, neste
aspecto, é uma virtude espiritual segundo a qual, pela
oração ou pela escuta, nos tornamos mais ávidos por
confiar no Senhor.
A prática da oração fortalece a fé: “Edifiquem-se,
porém, amados, na santíssima fé que vocês têm, orando
no Espírito Santo” (Jd 20). Também somos fortalecidos
quando praticamos a escuta da Palavra de Deus.
Portanto, a espiritualidade depende da oração e de uma
escuta empática a respeito dos feitos de Deus, tanto
através das Escrituras, quanto ouvindo os testemunhos
dos milagres do Senhor na natureza e na vida das
pessoas.

FÉ CONFESSIONAL
Enquanto as narrativas do Novo Testamento são, em
geral, uma tentativa de convencer, pelo argumento
inteligente, que Jesus Cristo é o Salvador, o Messias
enviado por Deus, as cartas paulinas, especialmente as
doutrinárias, são elaborações sistematizadas, racionais,
que pretendem dar à experiência cristã transcendente um
conteúdo prático e lógico, histórico, tangível e
decodificável, ainda que por meio de analogias, apenas
nos aproximando das realidades espirituais mais
profundas.
É assim que, na tentativa de elaboração da prática
da fé e de sua sistematização, foram e vão surgindo as
confissões e declarações de fé no mundo cristão, um jeito
fascinante de não permitir que a experiência sensitiva
conduza o povo de Deus a um espiritualismo
individualista, fanático e desconectado das realidades da
vida presente. A fé, neste aspecto, deve ser entendida
como baliza da conduta moral, ética e confessional da
comunidade do povo de Deus.
Contudo, devemos reconhecer também que, a partir
da fé confessional, os divisores de águas foram se
estabelecendo no mundo religioso cristão. De início, as
doutrinas eram apenas testemunhos dos novos
discípulos que, pelo arrependimento e pela fé, confissão
de seus pecados e pelo engajamento na comunidade
cristã, confessavam aos “de fora" a sua fidelidade ao
Senhor Jesus Cristo ressuscitado. Depois, foram surgindo
as doutrinas para estabelecer linhas demarcatórias,
também dentro do cristianismo. São bem conhecidos os
documentos mais interconfessionais, como, por exemplo
os credos Apostólico e Niceno.
Com a Reforma Protestante, essas confissões
passaram a ser basicamente um tratado teológico e
doutrinário, e não mais apenas um “hino” confessional
usado na liturgia. A Dieta de Augsburgo, em 1530, ilustra
esse novo momento confessional da igreja cristã.
Outro símbolo deste discurso confessional de teor
teológico aparece no ambiente evangelical
contemporâneo com o Pacto de Lausanne, de 1974, no qual
se verifica também um teor estratégico e ético da missão
da igreja no mundo.
A fé, portanto, quando interpretada com sentido
confessional, assume através dos tempos algumas
particularidades:
1) Inicialmente, com a intencionalidade de
testemunhar e explicitar a fé no evangelho de Jesus
Cristo, para os de “fora”;
2) Num segundo momento, para posicionar-se diante
de ameaças doutrinárias internas ou externas, uma
espécie de busca da unidade pela verdade;
3) Por último, com o propósito de “discernir os
tempos” e praticar com fidelidade e eficácia a missão do
povo de Deus no mundo.
É importante não confundirmos o que estamos
denominando de fé confessional - conjunto de
ensinamentos capaz de discernir e explicitar, por
analogia inteligente, os fenômenos da revelação - com o
neofundamentalismo doutrinário prepotente, desumano,
exclusivista e criminoso, que suprime o dinamismo da
“confissão de fé” como forma de responder
adequadamente aos desafios éticos e sociais de cada nova
geração. Uma fé confessional que gera orgulho
acadêmico, prepotência teológica, divisionismo
doutrinário, discriminação e opressão não sinaliza uma
espiritualidade confessional inspirada na vida do Jesus
Cristo de Nazaré.
A confissão como expressão de nossa fé é uma
manifestação espiritual que busca comunicar, por
analogias e com linguagens variadas, os feitos de Deus na
vida de seu povo ao longo da história da humanidade.

FÉ COMO RESPOSTA ÉTICA

Nas Escrituras, a fé é também apresentada como uma


resposta humana que testemunha, pratica as boas obras
do Reino de Deus e resiste a toda espécie de injustiça. A
fé, nesta perspectiva, não é uma mediadora entre Deus e
as pessoas, visto que o mediador é Deus-Filho, em si
mesmo, e não a nossa fé. Assim, constatamos que há
expressões de fé que, transpondo a perspectiva relacional
com Deus, se manifestam na habilidade de se responder
com justiça às demandas e desafios de nossa história.
A prática de uma espiritualidade com ausência de
resposta ética à busca e à prática da justiça denuncia um
tipo de crença que não se enquadra dentro do que o
Novo Testamento reconhece como sendo a fé ensinada
por Jesus Cristo e pelos apóstolos. Os demônios, por
exemplo, creem e se rebelam contra Deus ao mesmo
tempo (Tg 2.19). Observamos, então, que eles
reconhecem que Deus é absolutamente melhor e, mesmo
assim, não se submetem à sua vontade. Já para aqueles
que são reconciliados com Deus a fé passa a ser uma
consequência espiritual e moral, traduzindo-se em ações
de misericórdia e justiça. Escrevendo às igrejas do
primeiro século, Paulo usa expressões como: "Por isso
também eu, tendo ouvido falar da fé que entre vós há no
Senhor Jesus e do vosso amor para com todos os
santos...” (Ef 1.15); "Primeiramente dou graças ao meu
Deus, mediante Jesus Cristo, por todos vós, porque em
todo o mundo é anunciada a vossa fé...” (Rm 1.8); “Desde
que ouvimos falar da vossa fé em Cristo Jesus, e do amor
que tendes a todos os santos...” (Cl 1.4).
Não é possível separarmos a fé como imagem
pessoal (comportamento, integridade, caráter) da fé como
ato público de misericórdia e luta pela justiça em favor
dos oprimidos e injustiçados. A imagem pública da igreja
é também resultante dos seus atos de compaixão e
justiça. Aqui, a fé precisa ser entendida como a força que
gera no discípulo o encorajamento para amar os
injustiçados e oprimidos e a defendê-los das garras dos
déspotas e poderosos. A justiça é esta manifestação ética
das boas-novas de libertação e esperança do Reino de
Deus entre nós (Lc 4.18-19).
O amor e a justiça caracterizam o modo de ser
próprio dos discípulos de Jesus Cristo: “Vós sois a luz do
mundo...”, “Vós sois o sal da terra” (Mt 5.13-14). Desse
modo, a fé concede à comunidade dos discípulos um
caráter distintivo: “para que vos torneis irrepreensíveis e
sinceros, filhos de Deus imaculados no meio de uma
geração corrupta e perversa, entre a qual resplandeceis
como luminares no mundo” (Fl 2.15).
A história está repleta de exemplos de pessoas que
sofreram prisão injusta, tortura, foram assassinadas por
causa do compromisso com uma fé ética impregnada de
luta pela justiça. Trazemos à memória a resistência de
Dietrich Bonhoeffer contra a política nazista de Adolf
Hitler. Ou a luta ativa de Martin Luther King jr. contra o
racismo dos brancos radicais nos Estados Unidos. As
últimas palavras de seu discurso proferido em Detroit,
Michigan, em 23 de junho de 1963, resumem bem as
implicações de uma fé ética:
Tenho um sonho esta tarde de que a fraternidade
entre os homens tornar-se-á liberdade um dia.
E, com esta fé, sairei e cavarei um túnel de esperança
pela montanha do desespero. Com esta fé, sairei com
vocês e transformarei o passado de escuridão num
futuro radiante. Com esta fé, seremos capazes de
atingir esse novo dia em que todos os filhos de Deus,
negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e
católicos, cantarão de mãos dadas, a velha canção dos
negros:
“Livres afinal! Livres Afinal!
Graças a Deus Todo-Poderoso,
Estamos livres afinal!” (KING JR., 2006,65)
Portanto, olhando desta maneira, podemos afirmar
que a fé é uma resposta (consequência) ética à graça
recebida de Deus: “Porque a graça de Deus se
manifestou, trazendo salvação a todos os homens,
ensinando-nos, para que, renunciando à impiedade e às
paixões mundanas, vivamos no presente mundo sóbria, e
justa, e piamente” (Tt 2.11-12). As palavras do apóstolo
dão a ideia de salvação como um ato ou processo de
reeducação da nova criatura em Cristo. A Bíblia enfoca
este aspecto da fé como sendo a formação de Cristo em
nós, uma espécie de metamorfose ou transformação
profunda de nossa natureza humana. O Senhor
transforma o coração de pedra, insensível, desumano,
num coração de carne - humano, sensível, justo, fiel,
confiável (Ez 18.31; 36.26; Jr 31.31-34).
O cristianismo estabelece um novo modo de ser dos
discípulos de Jesus Cristo, o que provoca reações nas
pessoas, às vezes de aceitação, outras vezes de repúdio e
perseguição. A história está repleta de casos de
hostilidade e crueldade contra o povo de Deus.
Referindo-se aos discípulos, Jesus mesmo afirma que eles
serão perseguidos por causa da justiça, da mesma forma
como foram perseguidos os profetas:
Bem-aventurados os perseguidos por causa da
justiça, pois deles é o Reino dos céus. Bem-
aventurados serão vocês quando, por minha causa,
os insultarem, os perseguirem e levantarem todo
tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e
regozijem-se, porque grande é a sua recompensa
nos céus, pois da mesma forma perseguiram os
profetas que viveram antes de vocês.
Mateus 5.10-12, NV1, grifos do autor
Pedro, escrevendo às igrejas da Ásia Menor,
também estimula estas comunidades a confirmarem a fé,
a despeito de tribulações:
Nisso vocês exultam, ainda que agora, por um pouco
de tempo, devam ser entristecidos por todo tipo de
provação. Assim acontece para que fique comprovado que a fé
que vocês têm, muito mais valiosa do que o ouro que
perece, mesmo que refinado pelo fogo, é genuína e
resultará em louvor, glória e honra, quando Jesus
Cristo for revelado. Mesmo não o tendo visto, vocês o
amam; e apesar de não o verem agora, creem nele e
exultam com alegria indizível e gloriosa, pois vocês
estão alcançando o alvo da sua fé, a salvação das suas almas.
1 Pedro 1.6-9, NVI, grifas do autor
As comunidades de Jesus Cristo são formadas por
essas pessoas que, mesmo sob perseguição, buscam uma
fé pessoal fruto da experiência do encontro com Deus por
meio de Jesus e do Espírito Santo. E, ao mesmo tempo,
comunitária, partilhada na comunhão com o povo de
Deus e expressa no serviço ao mundo, fé marcada por
devoção interior e obras públicas de caridade e justiça.
Na ótica de Tiago, as obras se convergem para a fé e
com ela interagem: “Mostra-me a tua fé sem as obras, e
eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (Tg 2.18).
Para o jovem pastor, uma comunidade que discrimina o
pobre e não cuida dos necessitados deve ser submetida à
avaliação da sua fé (Tg 2.1-11). E arremata o seu
argumento com uma pergunta: “Que proveito há, meus
irmãos, se alguém disser que tem fé e não tiver obras?
Porventura essa fé pode salvá-lo?” (Tg 2.14). Tiago
enfatiza as obras como manifestação pública de uma fé
vivenciada na intimidade da alma e, daí, também como
critério para constatação da veracidade dessa experiência
pessoal.
Portanto, há duas dimensões da fé como resposta
ética. A primeira é devocional, que se inicia numa
espiritualidade íntima, pessoal, privada: “entra no teu
quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em
secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”
(Mt 6.6). Com isso, evita-se o uso publicitário da
espiritualidade em benefício pessoal. Mas, como essa fé
desemboca em serviço, não há como evitar a sua
publicidade para a glória do Pai.
A outra dimensão é missionária: “Assim resplandeça
a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas
boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus”
(Mt 5.16). Fé que se expressa através de uma
espiritualidade comunitária - vossa luz, vossas boas obras,
vosso Pai; fé pública, sociopolítica, é manifestada “diante
dos homens” através de obras visíveis. E, finalmente, uma
fé com uma missão nobre, que tem como finalidade
última a glorificação do Pai que está nos céus. A nossa
espiritualidade precisa ser avaliada mediante esse
critério.
Observando o testemunho de Jesus Cristo e dos
profetas, podemos afirmar que eles praticavam uma
espiritualidade e missão marcadas por atos de
misericórdia e de justiça. A nossa espiritualidade e a
nossa missão precisam estar fermentadas ao mesmo
tempo pela fé transcendente e pela prática de justiça no
ambiente de construção de nossa história. Precisamos
buscar uma espiritualidade missionária, que se doa na
luta pela vida, na garantia e defesa de direitos junto com
os empobrecidos e marginalizados, principalmente.
Ruth Tucker, em sua historiografia sobre o
cristianismo, faz referência à igreja dos três primeiros
séculos sendo percebida até pelos seus opositores e
críticos como uma comunidade que acolhia pessoas
“inúteis, desprezíveis, escravos, mulheres, pobres e
crianças”. O imperador Juliano chegou a comentar que os
cristãos cuidavam “de seus próprios pobres, mas também
dos nossos” (TUCKER, 1986, p. 26-27). A linguagem do
imperador Juliano - “inúteis”, “desprezíveis”, “escravos”
- apenas testemunha como os poderosos, em geral,
descrevem os mais pobres. Mas a comunidade dos
seguidores de Cristo foi sempre formada por homens e
mulheres vindos das classes mais oprimidas e pobres e
por pessoas que, mesmo pertencendo a outras classes
sociais privilegiadas, estão comprometidas com uma
espiritualidade e missão promotoras da misericórdia e
justiça para todos.

***

Pai, conceda-nos uma espiritualidade marcada e


inspirada na vida do Jesus Cristo de Nazaré. Cristifica o
nosso testemunho, para que tenhamos uma vida
alicerçada na graça, no amor, na humildade, na fé e na justiça!
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
KING JR., Martin Luther. Um apelo à consciência-, os melhores
discursos de Martin Luther King. Selecionado e organizado
por Claybone e Kris Shepard. Trad. Sérgio Lopes. Rio de
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Coleção Ética e Negócios. São Paulo: Paulinas, 2007.
OTTO, Rudolf. O sagrado. São Bernardo do Campo: Imprensa
Metodista, 1985.
PETERSON, Eugene H. A maldição do Cristo genérico-, a
banalização de Jesus Cristo na espiritualidade atual. São
Paulo: Mundo Cristão, 2007.
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Brasília: Comunicarte, 1992.
SOARES, Sebastião A. G. Diaconia e profecia. In: Ação Diaconal;
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2000.
STOTT, John. A base bíblica da evangelização. In: A missão da
Igreja no mundo de hoje. São Paulo: ABU Editora e Visão
Mundial, 1982.
TUCKER, Ruth A. Até os confins da terra. São Paulo: Edições Vida
Nova, 1986.
WESLEY, John. Sermões de Wesley. Trad. Nicodemos Nunes. 2.
ed. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1981.

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