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O ESPÍRITO SANTO — Por Sinclair B.

Ferguson Título original em


inglês: The Holy Spirit © Sinclair B. Ferguson, 1996
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem a
autorização por escrito dos editores, excetuando-se citações em
resenhas.
© OS PURITANOS, 2014
1ª Edição Digital em Português — Março de 2014
EDITOR:
Manoel Canuto
TRADUTOR: Valter Graciano Martins REVISOR: Waldemir Magalhães
DESIGNER: Heraldo Almeida
 

SUMÁRIO

Créditos

Epígrafe

Prefácio

1. O ESPÍRITO SANTO & SUA HISTÓRIA

2. O ESPÍRITO DE CRISTO

3. O DOM DO ESPÍRITO

4. PENTECOSTES HOJE?

5. O ESPÍRITO DE ORDEM

6. O ESPÍRITO RECRIADOR

7. O ESPÍRITO DE SANTIDADE

8. A COMUNHÃO DO ESPÍRITO

9. O ESPÍRITO & O CORPO

10. DONS PARA O MINISTÉRIO

11. O ESPÍRITO CÓSMICO

PARA LEITURAS ADICIONAIS

Nossos livros

Mídias
“O Verbo assumiu forma física para que pudéssemos receber o
Espírito Santo; Deus tornou-se o portador de um corpo para que os
homens fossem portadores do Espírito.”
— Atribuído a Atanásio
Prefácio
Espírito Santo! Era comum em meus dias de estudante, autores,
conferencistas e pregadores começarem seus comentários de temas
sobre o Espírito Santo com a seguinte afirmação: “O Espírito Santo, até
recentemente, era a pessoa negligenciada da Deidade.” Atualmente,
nenhum escrito sobre este tema empregaria tal linguagem. O impacto
do pentecostalismo e do movimento carismático foi de tal amplitude,
que a literatura sobre o Espírito Santo passou a desfrutar de espaço
considerável no meio evangélico, atingindo a proporções tais que o
domínio exercido na literatura evangélica existente estaria além dos
poderes de qualquer indivíduo.
O Espírito Santo não é mais considerado como uma “pessoa
negligenciada” da Deidade. Na medida em que isso justifica os fatos, os
cristãos de todas as convicções devem regozijar-se. Aliás, é possível
imaginar que o pêndulo, até então, tem oscilado na direção de uma
obsessão tão intensa pelos poderes do Espírito, que um enorme volume
de livros sobre o Espírito Santo tem sido uma realidade e grande anseio
da parte de muitos. Somente as exigências de uma série como esta
justificaria a composição de mais um estudo sobre um tema já
focalizado de maneira tão intensa.
Mas a ideia generalizada que se tornou comum entre os
evangélicos, bem como entre os demais, de que o Espírito Santo foi
quase que de novo descoberto no século XX, é um risco da heresia da
modernidade e é, no mínimo, culpado de uma certa miopia histórica.
Fica no esquecimento, por exemplo, que foi com boas razões que o
pastor-teólogo da Reforma, João Calvino, foi descrito como “o teólogo
do Espírito Santo”.[1] Além do mais, cada século, desde seu tempo,
testemunhou eventos que foram atribuídos à incomum operação do
Espírito Santo. Mesmo no século XX, as duas opera magna sobre o
Espírito Santo subsistem nos extensos estudos de autoria do puritano
do século XVII, John Owen, Vice-Chanceler da Universidade de Oxford,
e do grande teólogo-político holandês, Abraham Kuyper, fundador da
Universidade Livre de Amsterdam. Fazendo uma retrospectiva ainda
mais distante, a pretensão de que o século XX redescobriu a verdade
perdida desde os dois primeiros séculos, exibe uma atitude arrogante
diante do material redescoberto de H. B. Swete, em sua valiosa série de
estudos sobre o Espírito, iniciada há mais de um século. Estes estudos
demonstram, ricamente, a atenção que, muitos séculos antes, se dava
ao Espírito Santo, conferindo-lhe a devida honra, juntamente com o Pai
e o Filho.
Os que fazem a afirmação de que o Espírito Santo outrora era
esquecido, agora se portam como se não fosse mais necessária uma
ênfase sobre o assunto. Embora a obra do Espírito tenha sido
reconhecida, Ele permanece, para muitos cristãos, um aspecto
anônimo, desbotado, do ser divino. O próprio título “Espírito Santo”,
evoca uma gama de emoções diferentes daquelas expressas em resposta
aos títulos “Pai” e “Filho”. Talvez toda essa celeuma sobre o assunto
fosse solucionada descrevendo-se o Espírito Santo como a pessoa
desconhecida, em vez de a pessoa esquecida (ou mesmo a pessoa
“escondida”, como recentemente se fez) da Trindade. As demandas de
uma série doutrinal requerem contribuintes que cubram o terreno
básico do locus designado para eles. Neste volume, na série Contours of
Christian Theology[2] (Perfis da Teologia Cristã), o centro do interesse é
delinear a revelação da identidade e da obra do Espírito de uma forma
bíblico-teológica e histórico-redentiva. Não significa dizer que a
teologia histórica esteja falida e que, também, devamos rejeitar o
princípio apostólico de que precisamos entender as riquezas do
evangelho em consonância com toda a igreja (Ef 3.18-19). Espero que
fique bem claro e evidente o meu interesse e senso de obrigação para
com o entendimento que a igreja deve ter quanto ao Espírito Santo.
Segundo Tomás de Aquino, a teologia vem de Deus, ensina sobre
Deus e nos leva a Deus (a Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit).
Isso é verdade num sentido especial sobre a teologia do Espírito Santo.
O grande anseio em toda a nossa reflexão sobre o Espírito é
seguramente o alvo da comunhão pessoal e íntima com ele, por meio de
quem somos conduzidos a adorar, glorificar e obedecer ao Pai e ao
Filho. Este consórcio de teologia e ortodoxia é normativo nas páginas da
Escritura; e é por essa razão que as páginas que se seguem delineiam a
obra do Espírito de uma forma bíblico-teológica.
Far-se-á evidente no que se segue que tenho tomado o cânon do
Antigo e Novo Testamentos em seu real valor, crendo que, aqui,
encontramos a palavra de Deus, e que a forma através da qual ela
chegou até nós (indubitavelmente por vários meios) é o único
fundamento confiável sobre o qual podemos construir uma teologia do
Espírito Santo. Mas, conservando a preocupação geral da série
Contours of Christian Theology, compartilho da convicção de que ainda
há uma nova luz faiscando da palavra de Deus sobre a igreja.
A pessoa e obra do Espírito Santo continuam sendo uma área de
controvérsia entre os cristãos. Neste aspecto, alguns leitores,
provavelmente muitos, crerão que eles mesmos veem luz onde não vejo.
É um fato notável na história eclesiástica recente que as convicções que
geraram controvérsia em meus dias de estudante nos anos 1960 a 1970,
agora são tão amplamente adotadas que os pontos de vista principais
daqueles dias são agora considerados como pontos de controvérsia. Não
obstante, tentei conservar em minha mente, tanto a injunção apostólica
para se manter a unidade do Espírito no vínculo da paz, quanto meus
próprios votos de ordenação de manter um espírito fraterno com todo o
povo do Senhor. Minha esperança e oração é que as opiniões expressas
em áreas de controvérsia mencionadas neste livro, não prejudiquem os
companheiros cristãos como um todo.
Este volume faz parte da série Contours of Christian Theology entre
o estudo de “A obra de Cristo e a igreja”. Portanto, ele inclui algumas
discussões de elementos de soteriologia (a aplicação da obra de Cristo)
e a eclesiologia (os dons do Espírito para o corpo de Cristo). Ele assim
serve como ponto entre estes companheiros estudiosos e, assim espero,
será lido em conexão com eles.
Desejo agradecer a Gerald Bray, Editor Geral desta série, o convite
para contribuir com o volume sobre O Espírito Santo. Sou grato a David
Kingdon, editor dos livros teológicos da IVP (Inter Vasity Press), tanto
por sua amizade quanto por sua paciência para com um autor
procrastinante, acostumado com apenas uma pitada ocasional de
lisonja! A conclusão destas páginas representa o pagamento adiantado
de duas dívidas adicionais: primeiro, ao Board of Trustees of
Westminster Theological Seminary, Filadélfia, por conceder-me licença
sabática no semestre do outono de 1994; e, principalmente, a minha
esposa Dorothy que, mais que ninguém, encorajou-me a completar esta
obra.

— Sinclair B. Ferguson
Westminster Theological Seminary
Filadélfia, Pensilvânia

[1] B. B. Warfield, Calvin and Calvinism (Nova York: Oxford University Press, 1931), p. 21
[2] O autor se reporta a uma série editada por Gerald Bray na década de 1990, em
consulta com IVP (InterVasity Press) e que oferece uma apresentação sistemática de
muitas das maiores doutrinas de forma a complementar os livros-textos tradicionais,
dando atenção especial aos problemas contemporâneos e se propondo também a
recuperar a posição evangélica ortodoxa de uma maneira desafiadora.
1
O ESPÍRITO SANTO &
SUA HISTÓRIA

O que é ou quem é o Espírito Santo? A maioria dos cristãos pronta e


ardorosamente responderia à descrição de Jesus como o Filho de Deus,
não só por causa de sua humanidade (Jesus), mas também porque a
designação “Filho” indica uma identidade relacional (filho-pai) com a
qual estamos familiarizados. Além disso, quando, em Cristo,
aprendemos a chamar Deus de “Pai”, título que comunica um rico
caleidoscópio de imagens que nos ajudam a entender e a responder a
Deus como aquele que nos governa, supre, guarda e ama a seus filhos.
Mas o nome “Espírito Santo” tende a comunicar uma imagem fria,
até mesmo remota. Além do mais, o que é “Espírito”? Provavelmente
este nome tão antigo, “Espírito Santo”, com suas conotações vagas,
misteriosas e carentes de substancialidade, sempre expressou o que
muitos cristãos experimentam: o Espírito Santo é visto um tanto
distante e impessoal em comparação com o Pai e o Filho. “Não sabemos
o que são os espíritos, nem o que é nosso próprio espírito”, escreveu
Abraham Kuyper.[3]
Quanto menos capazes somos nós de compreender o Espírito de
Deus!
O quê ou quem é o Espírito Santo?

O Santo ruach
O significado da raiz do termo bíblico “santo” (Heb. qāḏôš, qōḏeš; Gr.
hagios) tem sido alvo de muita discussão. Mas há um consenso geral de
que a raiz deste termo traz consigo ideias tais como “cortar” ou
“separar de”, “ser colocado à distância”; daí o sentido de “ser posto à
parte” a fim de pertencer a Deus. Empregando esta linguagem
metaforicamente especial, o Antigo Testamento frisa a “diversidade” do
Ser do Espírito. A ilustração clássica disto, o encontro devastador de
Isaías com o Santo de Israel (Is 6.1-13), exemplifica o modo como a
imagem espacial é empregada para comunicar distância moral. Deus é
“sublime”, enquanto Isaías é humilde; “elevado” (RSV, AV) e “exaltado”
(NVI), enquanto Isaías é prostrado. A presença de Deus (“as abas de
suas vestes”) enche o templo, enquanto Isaías recua-se num canto. A
santidade de Deus é a visão da pureza de seu eterno e infinito Ser. À
maneira de comparação, Isaías se sente impuro e perdido.
As palavras bíblicas para “espírito” (Heb. ruach;[4] Gr. pneuma)
são termos onomatopéicos. Sua formação etimológica e seu som
comunicando certo matiz de seu significado básico: a expulsão do vento
ou fôlego, a ideia de ar em movimento. “Espírito” expressa, em sua
forma mais fundamental (“o fôlego de vida”), poder, energia e vida.
No mundo da filosofia helenística, o qual forneceu o ambiente
intelectual mais amplo do último período bíblico, pneuma era um termo
usado para significar um tipo de matéria profundamente refinada e
purificada (matéria originariamente considerada como arruinada e má
por definição). Na filosofia dos estóicos, por exemplo, ela era
considerada a substância da alma, um tipo de “fluído sensitivo vital”
que se estende desde a alma, permeando toda a pessoa, dotando-a com
energia e vida.[5]
Embora às vezes entendido como imaterialidade próxima, de fato o
termo veterotestamentário, ruach, mais particularmente frisa a
presença de energia e atividade. Embora o ar, ou vento, possa servir
muito bem como analogia para a matéria supremamente refinada, isto
não é o ponto principal ou centro de atenção no uso bíblico de ruach
(ou, por esse motivo, pneuma). No Antigo Testamento, ruach,
ordinariamente, implica ar em movimento, amiúde manifestado na
ordem natural como um poderoso vento ou tormenta (p. ex., Jó 1.19, e
provavelmente em mais de um quarto dos exemplos
veterotestamentários), ou no fôlego de vida do indivíduo. E assim, por
exemplo, os prodígios da sabedoria e realizações de Salomão deixaram
a Rainha de Sabá sem fôlego (1Rs 10.4-5: “ela sentiu-se esmagada”,
como o expressa a NVI, “não tinha mais ruach”, é o que diz o texto).
Aliás, na atividade humana, ruach pode referir-se não meramente à
respiração, mas ao resfolego (p. ex., 2Sm 22.16; Jó 4.9). O que está em
pauta é energia, em vez de imaterialidade.
Embora na ordem natural ruach, ocasionalmente, indique uma
brisa amena (como em algumas traduções de Gn 3.8), a ideia
dominante no Antigo Testamento é a de poder. O paralelismo em
Miqueias 3.8 ilustra bem esse fato: “Eu, porém, estou cheio do poder do
Espírito do Senhor.”[6] Portanto, quando usado em referência a Deus
(cerca de um terço do uso veterotestamentário), ruach não indica a ideia
de imaterialidade divina (espírito, não matéria), ainda que, sem dúvida,
isso esteja implícito na perspectiva bíblica geral. A ênfase é posta,
antes, em sua esmagadora energia; aliás, alguém quase poderia falar
da violência de Deus. Daí, “Espírito divino” indica “a energia da vida em
Deus”,[7] como no extraordinário paralelismo de Isaías 31.3: “Pois os
egípcios são homens, e não Deus; seus cavalos carne, e não espírito.” A
ênfase está no contrate entre fraqueza e poder, não no contraste entre
material e imaterial. Aqui, Espírito contrasta-se com carne, cuja
“característica é inércia, ausência de poder, o que só pode ser removido
pelo Espírito de Deus”.[8]
Os resultados da atividade de ruach estão em conservar sua
natureza. Quando o ruach Yahweh vem sobre os indivíduos, estes
recebem o impulso de uma energia “estranha” e agem com poderes
inusitados: o desalento se converte em ação; habilidades humanas
excepcionais são exibidas; é possível que se experimente êxtase. O ruach
de Yahweh é, por assim dizer, o sopro de Deus, o poder irresistível pelo
qual ele concretiza seus propósitos, quer criativos, quer destrutivos. Por
seu ruach ele cria o exército do céu (Sl 33.6), dá poder a juízes
salvadores como Otniel e Sansão (Jz 3.10; 14.6), arrebata profetas,
eleva-os e os coloca em outros lugares (p. ex., Ez 3.12, 14; 11.1; cf. 1Rs
18.12). Os que são os sujeitos da atividade do divino ruach agem de
maneira supernatural, com energia e poderes supernaturais. O ruach de
Deus, portanto, expressa a força irresistível, a energia todo-poderosa de
Deus na ordem criada. Ele não pode ser “dominado” pelos homens. Ao
contrário, através de seu ruach ele é capaz de “domar” ou subjugar
todas as coisas para o cumprimento de seu propósito pessoal.
Esta dimensão quase violenta do Espírito é vividamente retratada
por Isaías: “Pois virá como torrente [ruach] impetuosa, impelida pelo
Espírito [ruach] do Senhor” (Is 59.19); “Seca-se a erva, e caem as flores,
soprando nelas o hálito [ruach] do Senhor” (Is 40.7).
Não obstante, já se faz evidente, à luz das várias referências
bíblicas supracitadas, que ruach indica mais do que simplesmente a
energia de Deus; a palavra descreve Deus envolvendo-se num esforço
ativo em sua criação e de uma forma pessoal. Isso traz a lume a questão
para a qual devemos volver nossa atenção: essas referências ao Espírito
devem ser consideradas meramente como que descrevendo o modo da
presença de Deus no mundo, ou como que denotando distinções
hipostáticas (pessoais) dentro do Ser de Deus, prefigurando a
diversidade em Deus que seria expressa na doutrina posterior da igreja
acerca da Trindade?
Ao abordar este tema, devemos antes de tudo avançar pelos
meandros do ensino veterotestamentário sobre o Espírito Santo.

Espírito Criador?
As alusões bíblicas consistem em que o Espírito de Deus esteve sempre
envolvido em todas as suas obras desde o princípio. Na teologia cristã
antiga isso foi traçado retrospectivamente até a obra da criação.[9]
Quando “a terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a
face do abismo, e o Espírito de Deus [ruach elohim] pairava por sobre as
águas” (Gn 1.2).
Aqui, ruach elohim às vezes tem sido compreendido como uma
referência ao Espírito de Deus e traduzido de maneira consistente.
Embora nunca houvesse unanimidade sobre este ponto, mais
recentemente, dentro da tradição cristã de exegese, este conceito tem
sido vigorosamente defendido; extensamente, a pressuposição é que por
detrás da interpretação tradicional está um desejo hermenêutico
deslocado para achar uma hipostatização antiga ou, pelo menos,
embrionária, do Espírito, e (dentro da exegese cristã) um trinitarismo
embrionário correspondente, nas palavras iniciais de Gênesis.
Além disso, o modo como são apresentadas as características do
vento nos mitos da criação, no Oriente Próximo, particularmente a
narrativa fenícia da criação, a alguns eruditos parece sugerir que o
vento, e não o Espírito divino, é que provavelmente esteja em pauta.[10]
Portanto, às vezes o texto é lido como uma descrição do sombrio caos da
criação nascente. Assim, a vacuidade da terra assolada, as trevas e o
ruach teriam se associado como a massa incipiente de existência que
seria dominada e transformada na ordem e plenitude que Gênesis 1 por
fim descreveria. O fato de que não se faz nenhuma alusão adicional à
atividade do ruach é tomado como uma indicação de que ele pertence ao
caos e não à ordem de agente criador. Por isso, embora alguns, como
Gerhard von Rad, se disponham ainda a traduzir ruach elohim como
“tempestade de Deus”, outros de modo ainda mais radical separam
ruach totalmente das ações divinas e traduzem ruach elohim como um
“poderoso vento”.
Tal reserva e hesitação em ver algum vestígio de hipostatização,
como também de trinitarismo, nos primeiros versículos da Bíblia,
naturalmente não representam nenhuma novidade. Já no século
dezesseis, Calvino (e ele não foi o único a encontrar a doutrina da
Trindade no próprio texto veterotestamentário) estava familiarizado
com tal opinião, mas a descreveu como “frígida demais para requerer
refutação”.[11]
No entanto, o contexto de Gênesis 1.2 sugere que o ruach elohim
não está em relação antitética com o agente criador. Ao contrário, o que
está em pauta é a ordem cósmica sendo estabelecida pelo ruach elohim.
As referências mais claras (Gn 1.1, 3) à atividade de elohim como
atividade divina criativa sugerem que a redação mais natural de ruach
elohim, no versículo 2, deve ser em termos de atividade divina. O verbo
traduzido “pairar” (rāḥap) comunica a ideia de “abalar” ou “flutuar”. É
usado somente em outros dois lugares no Antigo Testamento. Em
Jeremias 23.9, é usado nos ossos sendo movimentados. A despeito de
sugestões contrárias,[12] abalar, seguramente, seria um modo inusitado
de descrever a atividade do vento.
Além do mais, encontramos uma série significativa de (deliberadas)
conexões posteriores na Escritura entre a criação, o Êxodo e o Espírito.
Isaías 63.7-14 identifica claramente o Espírito como o executivo do
Êxodo. Mas, anteriormente, em Deuteronômio, o executivo do Êxodo é
alguém que protege o povo “num ermo e solitário povoado de uivos...
como a águia... voeja sobre seus filhotes” (Dt 32.10-11). Este é o outro
exemplo do uso da palavra ṯōhû (“informe”) no Pentateuco (ainda que
seu uso repetido em Jr 4.23 seja instrutivo). Não pode ser acidental que,
aqui em Deuteronômio 32.1-11, como em Gênesis 1.2, ela ocorra em
conjunção com o verbo rāḥap. Assim, se introduz uma analogia (por
certo deliberada) no Antigo Testamento entre o “pairar” do ruach
elohim sobre a criação insipiente e a presença do Espírito de Deus na
obra de redenção ainda incompleta. Isso sugere que ruach elohim, já em
Gênesis 1.2, visava a denotar o Espírito divino.
Outras reflexões mais gerais do Antigo Testamento sobre a
narrativa de Gênesis, quando se celebrava a obra divina na ordem
criada, sugerem que os intérpretes mais antigos de Gênesis 1 (i.e., os
autores bíblicos posteriores) também detectaram a presença do Espírito
divino na obra da criação. Daí o Salmo 104.30 registrar: “Envias o teu
Espírito [ruach], eles são criados.” Isso faz um paralelo com “Se ocultas
o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e
voltam ao seu pó” (104.29). Aqui uma vez mais transparece um eco
deliberado de Gênesis 1.2 e 2.7. O ruach de Deus e a face de Deus são
ideias complementares, ambas indicativas da presença divina pessoal.
Evidentemente, ruach se posiciona ao lado de Deus, não ao lado do
caos.
Jó 33.4 aponta na mesma direção: “O Espírito [ruach] de Deus me
fez; e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida.” Enquanto a segunda
metade do versículo ecoa Gênesis 2.7, a primeira metade parece ecoar
Gênesis 1.2. Aqui ruach significa mais que vento ou borrasca.
À luz desta tradição exegética dentro do próprio Antigo
Testamento, ruach, em Gênesis 1.2, é mais bem discernido como uma
referência à atividade do Espírito divino, e não a uma atividade
impessoal do vento. A disputa de Pannenberg de que traduzir ruach, em
Gênesis 1.2, como “tormenta” ou “ciclone” é “grotesco”, pode parecer
reacionário demais; mas, à luz do fato que em outra parte ruach elohim
pretende significar Espírito de Deus, ele com certeza está certo em
duvidar da intensidade do esforço em rejeitar tal significado em Gênesis
1.2.[13] No mínimo, à luz das próprias reflexões do Antigo Testamento, o
pairar e o mover-se, em Gênesis 1.2, devem ser tomados como
indicativos da presença do poder do Espírito.[14] Aliás, embora
geralmente despercebido na exposição de Gênesis 1, pode-se
argumentar que o reconhecimento da presença do Espírito divino em
Gênesis 1.2 forneceria o “elo perdido” na interpretação do “Façamos...”
em Gênesis 1.26-27. Portanto, o Espírito de Deus seria o único
referencial possível deste discurso dentro da estrutura do próprio relato.
[15] Neste caso, o envolvimento do Espírito na obra da criação marcaria

o início e o fim de um inclusio literário em Gênesis 1.


Não significa reivindicar que o Antigo Testamento forneça uma
análise detalhada do papel do Espírito de Deus na criação, ou que a
declaração enigmática em Gênesis 1.2 somente seja adequada como
base da ideia de que o Espírito de Deus é uma hipóstase divina distinta.
Muita coisa permanece obscura. O que interessa é que a atividade do
divino ruach é precisamente aquela da extensa presença de Deus na
criação de uma forma tal que ordena e completa o que fora planejado
na mente de Deus. Este é exatamente o papel que o Espírito,
caracteristicamente, cumpre em toda a Escritura. No Novo Testamento,
o Espírito desempenha seu papel na concretização da redenção: o Pai
envia, o Filho vem, o Espírito vindica (1Tm 3.16); o Pai planeja, o Filho
se sacrifica e ressuscita, o Espírito aplica (p. ex., 1Pe 1.1-2).
Ao lado das referências (admissivelmente escassas) à obra do
Espírito como o executivo na realização da criação estão outros fios
fundamentais do ensino veterotestamentário: o Espírito de Deus é o
executivo da poderosa presença de Deus na administração da ordem
criada.

Presença governante
Ruach expressa a ideia de vento ou ar em movimento. Como tal, ele
serve bem como um termo de ligação para descrever o Criador partindo
rumo à criação.
O divino ruach é o modo da poderosa presença de Deus no meio de
seu povo. Ezequiel insinua uma relação íntima entre o Espírito de Deus
e o rosto ou presença de Deus: “Já não esconderei deles o meu rosto,
pois derramarei o meu Espírito sobre a casa de Israel, diz o Senhor
Deus” (Ez 39.29; ver Ez 37 para a efusão em questão; cf. também Sl
104.29-30; 139.7).
A poderosa presença de Deus se revela em seu Espírito com vistas
ao cumprimento de uma variedade de propósitos na história redentora.
Ele não só leva indivíduos para além de suas capacidades físicas
normais; ele lhes dá habilidades que se estendem para além de suas
faculdades naturais. E assim ele distribui dons de diplomacia e perícia
profissional. José e Daniel, as duas principais figuras com savoir faire
[habilidade] no Antigo Testamento, foram homens em quem “o espírito”
de outro mundo foi visto habitar numa grande e inusitada medida (Gn
41.38; Dn 4.8-9; 5.11-14). Ambos exibiram as características que
seriam plenamente expressas na atividade do Espírito messiânico mais
claramente descrito em Isaías 11.1-5, especialmente a sabedoria e
entendimento que são o fruto de conhecer e temer a Deus.
Semelhantemente, Moisés foi revestido com o divino Espírito que o
capacitou para governar, e isso, por seu turno, foi compartilhado com
os setenta anciãos que suportaram com ele o fardo da administração e
governo entre o povo redimido de Deus (Nm 11.25). Justamente como o
Espírito produziu ordem e propósito na “matéria” primeva criada sem
forma e vazia (Gn 1.2), também, quando a nação foi renascida, porém
enfrentava o risco de cair no caos social, o Espírito de Deus operou
criativamente, produzindo um governo justo, ordem e diretriz entre os
refugiados no Egito (cf. Is 63.7-14).
Ao perseguir seus propósitos entre os convocados de seu povo, o
Espírito de Deus também concedeu dons de desígnio e sua execução a
homens como Bezalel e Aoliabe (Êx 31.1-11; 35.30-35). Aqui temos
outra vez um significativo padrão teológico operativo. A beleza e a
simetria da obra executada por esses homens na construção do
tabernáculo não só causaram deleite estético, mas também um padrão
físico no coração do acampamento que serviu para restabelecer
expressões concretas da ordem e glória do Criador e suas intenções em
prol de sua criação. E assim deu-se a noção de que a obra de
“recriação” começaria com o povo eleito. Entre eles estabeleceram-se os
reflexos terrenos do lugar de habitação de Deus. Como Calvino
corretamente afirma: “O tabernáculo era uma espécie de imagem visível
de Deus.”[16] Aqui, já na narrativa do Êxodo, encontramos o princípio
que só mais tarde emergirá com plena clareza no Novo Testamento: o
Espírito ordena (ou reordena) e por fim embeleza a criação divina. No
Jardim do Éden, no tabernáculo e no templo, o adorador descobre a
beleza da santidade, a qual é apenas um reflexo da beleza do próprio
Deus (1Cr 16.29; Sl 96.9). No templo final, no homem cheio do Espírito,
Jesus (Jo 2.19-22), este padrão alcançará seu ápice. No entanto, já
desde o início o ministério do Espírito teve em vista a conformação de
todas as coisas à vontade de Deus e, por fim, ao seu próprio caráter e
glória.

O Espírito Recriador
O ministério do Espírito não se limita aos dons que servem para o
estabelecimento nacional do povo de Deus. Sua obra é também moral e
redentiva. Já no Antigo Testamento o Espírito de Deus é o Santo
Espírito. Seja qual for o objetivo e orientação cúltica que a “santidade”
tenha, ela também envolve características morais e éticas. Por isso, no
Salmo 51.11, Davi confessa que sua relação santa com o Espírito de
Deus, ficou comprometida pelo fracasso moral.
Isaías 63.7-14, cuja referência já foi feita, é particularmente
iluminadora neste respeito, servindo de comentário à narrativa do
Êxodo. Visto que Deus se tornara seu Salvador:
Celebrarei as benignidades do Senhor e seus atos gloriosos...
Mas eles foram rebeldes
e contristaram seu Espírito Santo...
Então o povo se lembrou dos dias antigos,
de Moisés, e disse:
Onde está aquele que fez subir do mar
o pastor do seu rebanho?
Onde está o que pôs nele
seu Espírito Santo?
Aquele que os guiou pelos abismos,
como o cavalo no deserto,
de modo que nunca tropeçaram?
Como o animal que desce aos vales,
o Espírito do Senhor lhes deu descanso.

Aqui o Espírito de Deus é visto como quem esteve ativamente


presente nas peregrinações do deserto (Deus “enviou seu Espírito Santo
entre eles”, 63.11). O povo foi guiado pelo Espírito (63.13-14). Mas se
rebelaram e “contristaram seu Espírito Santo” (63.10).
Aqui chegamos muito perto de como o Antigo Testamento, por toda
a parte, faz uma hipostatização explícita do Espírito. “Contristar-se”
não só pressupõe certa distinção entre Deus transcendente e imanente,
mas é uma atividade interpessoal. Dificilmente convence negar isto com
base no fato que, embora o texto atribua ao povo a motivação de
tristeza, ele não atribua ao Espírito o “contristar-se”.[17]
Quando se diz que um contrista outro, todas as regras comuns de
interpretação implicam que o outro é contristado.
Mas podemos levar isso ainda mais longe. O Espírito é o executivo
da atividade salvífica de Deus. Isaías 63.7-14 esclarece isso com suas
reflexões sobre o Êxodo, o grande ato redentivo paradigmático do
Antigo Testamento:
(1) O Espírito se associa à atividade de Moisés na operação de
milagres (ver Êx 8.19; note a similaridade aqui com Jesus e os apóstolos,
Lc 11.20; Hb 2.1-4). Ele é a testemunha divina da atividade redentiva de
Deus (Is 63.11-12);
(2) O Espírito orienta e guia o povo à benção da concretização do
pacto: “Como o gado que desce à planície, o Espírito do Senhor lhes deu
descanso” (Is 63.14). O que Cristo, no Novo Testamento, dá através da
obra do Espírito (Mt 11.28-30), no Antigo Testamento Deus dá
prolepticamente na figura (tipo) do Êxodo e a entrada na terra através
do mesmo Espírito;
(3) O Espírito é o executivo da redenção do Êxodo operada por
Deus, o Salvador (Is 63.8). É Deus quem salva, e é contra ele que o povo
mais tarde se rebela. Ao rebelar-se contra Deus, porém, é
especificamente Deus como Espírito Santo que eles ofendem — frase que
é tomada e explicada por Paulo num contexto profundamente
soteriológico em Efésios 4.30, insinuando que o Novo Testamento
interpretava a declaração de Isaías em termos pessoais.
O ministério do Espírito no Antigo Testamento, pois, não pode
limitar-se à criação de uma entidade política, uma teocracia no sentido
externo. Esse ministério inclui a ordenação moral do povo. Isso é
confirmado de uma maneira profundamente pessoal na grande
lamentação do Salmo 51. O medo que Davi nutria de perder o Espírito
envolve mais do que os resultados de seu adultério em desqualificá-lo do
elevado ofício para o qual havia sido ungido. Sua oração: “nem me
retires o teu Santo Espírito” (51.11) é analisada dentro do mesmo
Salmo como seu clamor, não para que não fosse expulso da presença do
Senhor, mas, antes, para que pudesse desfrutar da alegria da salvação
que lhe seria restaurada. Só pelo fato de possuir o Espírito seu coração
poderia ser puro e alegre e seu próprio espírito seria sustentado,
disposto e voluntário (Sl 51.10, 12). Davi poderia de fato recear que
estivesse à mercê de experimentar a sorte de Saul e ser removido da
função régia (1Sm 16.14). Mas, em seus lábios, a oração tem uma
orientação subjetiva, pessoal e soteriológica, e não meramente uma
orientação objetiva, oficial e teocrática. Aqui, o que o preocupa é a
comunhão pessoal com Deus, e não simplesmente a segurança de sua
monarquia. Para Davi, a presença do Espírito e a posse da salvação e
sua alegria são correlatas.
Qualquer teologia bíblica da obra do Espírito deve reconhecer o
caráter progressivo e cumulativo da revelação histórica. Mas
considerações sistemáticas ou lógicas levam à conclusão de que a
atividade do Espírito, na época do Antigo Testamento, envolvia
renovação pessoal da natureza moral e espiritual.
No discernimento neotestamentário da salvação, certas
características morais e espirituais são produzidas exclusivamente pelo
Espírito. Mas estas (p. ex., o fruto do Espírito em Gl 5.22, 23) já estão
exemplificadas pelos crentes do Antigo Testamento. Além do mais, esses
crentes são postos diante dos crentes do Novo Testamento não só como
exemplos da justificação pela fé (p. ex., Abraão em Rm 4), mas também
da vida de fé (p. ex., Hb 11.1-40; Tg 2.14-26; 5.17-18) ou do que
significa andar no Espírito. Daí, os cristãos podem voltar-se para os
salmos, não só para descobrir suas próprias experiências de tristeza, de
dúvida, de temor e mesmo de desespero refletidos ali, mas, como
comumente se confessa, encontrar exemplos de adoração e devoção
sinceras que exemplificam o que significa adorar a Deus no Espírito.
Tais exibições da presença do fruto salvífico do Espírito convence da
presença de seu ministério soteriológico tanto no antigo quanto no novo
pacto.
Nesta conexão, às vezes se declara haver uma maior dicotomia
entre o ministério do Espírito no antigo e no novo pacto. Daí, por
exemplo, às vezes se questiona se os crentes do período do Antigo
Testamento eram regenerados. A incapacidade de Nicodemos de
compreender o ensino de Jesus sobre a necessidade de regeneração é
amiúde tomada como exemplo disso (Jo 3.4).
No Novo Testamento, o novo nascimento ou regeneração pode
servir muito bem de sugestão para a atividade de Deus especificamente
no novo pacto, inaugurada pela obra de Cristo em sua morte,
ressurreição, ascensão e o envio de seu próprio Espírito (cf. Jo 3.12-15).
Mesmo o menor no reino é maior que João Batista (Mt 11.11). Mas o
curso de João 3 indica que Nicodemos teria sido capaz de entender a
necessidade de uma obra de renovação e da promessa de um novo pacto
no qual ela seria efetuada, à luz de sua Bíblia hebraica (Jo 3.7). Não há
razão para ele ficar surpreso. Já no antigo pacto, o Senhor circundava
os corações do povo (Dt 30.6); nova vida provinda da mão de Deus era
uma realidade já no antigo pacto, mesmo quando apenas prefigurava a
realidade de participar da ressurreição de Cristo para a vida.
Apesar disso, uma das tentações de uma teologia do Espírito que
reconheça a continuidade da revelação profundamente radicada na
Bíblia é enfatizar tanto a continuidade do ministério do Espírito, que
corremos o risco de nivelar os contornos da história da redenção e de
enfraquecer a genuína diversidade e desenvolvimento desde o antigo até
o novo pacto. O ensino de Paulo em 2 Coríntios 3 indica que há um
desenvolvimento notável do antigo ao novo, precisamente em termos do
ministério do Espírito. Isso se tornará mais evidente quando por fim
dermos mais atenção à importância da vinda do Espírito no Pentecostes
(no capítulo 3).

O Espírito e a Palavra
Enquanto não chegarmos nas passagens do Novo Testamento, não
encontraremos uma reflexão mais sistemática sobre a obra do Espírito
na ministração do Antigo Testamento (p. ex., em 2Tm 3.14-17, embora
mesmo aqui a ênfase é posta na função da Escritura). Entretanto,
quando os autores neotestamentários enunciam este tema, é evidente
que se veem como simples exegetas do Antigo Testamento. A convicção
de que os profetas do Antigo Testamento eram “arrastados pelo Espírito
Santo” (2Pe 1.21) reflete a própria reivindicação dos profetas em prol
da inspiração: “a mão do Senhor” estava sobre eles; seus oráculos eram
“a palavra do Senhor” (p. ex., Jr 1.2, 8, 15, 19, et passim).
Jeremias registra o que é de fato o paradigma de tal inspiração:
“Eis que ponho em tua boca [de Jeremias] minhas palavras [de Deus]”
(Jr 1.9). Isaías especificamente associa o Espírito com as palavras de
Deus, tanto na inspiração quanto na iluminação: “Quanto a mim, esta
é a minha aliança com eles, diz o Senhor: o meu Espírito, que está sobre
ti, e as minhas palavras, que pus em tua boca, não se apartarão dela,
nem da de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão
desde agora e para todo o sempre, diz o Senhor” (Is 59.21).
Portanto, a doutrina da inspiração não é uma invenção dos
escritores do Novo Testamento, mas lhes é inerente. Ela é sumariada
pelas últimas palavras proféticas de Davi: “O Espírito do Senhor fala
por meu intermédio, e sua palavra está em minha língua” (2Sm 23.2).
O registro escrito dos poderosos feitos de Deus e as palavras
interpretativas são o fruto da atividade contínua do Espírito entre o
povo redimido. É a palavra que procede da boca de Deus. É theopneustic
[teopnêustica], vinda, por assim dizer, do sopro divino (Mt 4.4), e é
dada através de homens movidos por seu Espírito (2Pe 1.20-21). Toda a
Escritura é assim vista como o sopro de Deus e serve ao propósito de
instruir, convencer, curar e equipar o povo de Deus (2Tm 3.16-17).
Quanto ao como esta expiração divina e influência do Espírito na
produção da Escritura, pouco é dito ou reivindicado. Deus se revela de
várias maneiras: sonhos, visões, iluminação e exames individuais,
assim também as providências divinas ordinárias e extraordinárias se
acham envolvidas no processo. Os autores da Escritura manifestam
certo interesse no produto mais que no processo. O modo da operação
do Espírito divino sobre o espírito humano permanece tão misterioso
como sua atividade na criação e recriação (cf. Sl 139.7-16; Lc 1.35; Jo
3.8-9). É evidente que a atividade de Deus não minimiza a
individualidade dos autores humanos. Na verdade, é o contrário, visto
que as personalidades dos autores humanos parecem estar estampadas
em todo o produto final. Simultaneamente, como toda a revelação
divina, a revelação que é apresentada na Escritura é de caráter
autopística: contém e expressa seu próprio testemunho quanto à sua
autoria divina. No Novo Testamento, descobrimos esta ideia um pouco
mais claramente sistematizada, e, como veremos, o Espírito é dado aos
apóstolos em parte por seu papel como escritores da Escritura em
pauta. Mas em lugar algum se explica o modus operandi da atividade
do Espírito. As palavras de Eclesiastes são tão genuínas aqui como em
outro lugar: “Assim como não sabes qual o caminho do vento, nem
como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também
não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas” (Ec 11.5).
Portanto, ao longo do Antigo Testamento a atividade do Espírito é
identificada com o Ser de Deus. Há lugares em que esta atividade é
descrita em termos pessoais, como uma expressão do poder desnudo,
aparentemente violento de Deus, caindo sobre ou impelindo indivíduos
e assenhoreando-se de suas vidas para uma função divina (p. ex., Jz
3.10; 11.29; 14.6, 9). As testemunhas veterotestamentárias, porém, vão
além disso. Empregam-se termos mais pessoais. Por isso, quando o
Espírito vem, ele reveste as vidas sobre as quais desce (Jz 6.34; 1Cr 12.8;
2Cr 24.20). Ele molda um vínculo ético (i.e., santo e pessoal) entre si e o
povo redimido; ele pode ser “contristado” pela conduta deles como o foi
durante o Êxodo.

Espírito Hipostático?
Portanto, o Espírito de Deus não é meramente um sinônimo para o
poder de Deus. Mas a questão permanece: devemos imaginar o Espírito
como um modo da presença de Deus, ou (como faria a ortodoxia
trinitária posterior) em termos pessoais (hipostáticos)?
Desde a era pós-apostólica tem havido dentro da tradição cristã
certa tendência, e até certa ansiedade, para detectar a presença
hipostática do Filho ou do Espírito ainda no Antigo Testamento. Isso
era compreensível no contexto da apologética cristã em face do
judaísmo. Se o caráter trino de Deus é uma ideia bíblica, ele já não seria
evidente no Antigo Testamento? Daí, em Gênesis 1, o uso da forma
plural, elohim, para Deus, e as palavras enigmáticas, “Façamos...”
(1.26-27), eram com frequência vistos como indicadores de uma tríplice
hipostatização do Ser divino.[18]
A abordagem mais sóbria à teologia bíblica emergiu da leitura
histórica do texto pela Reforma Protestante e seu princípio de que a
doutrina é extraída do texto da Escritura somente mediante “boa e
necessária consequência”. Mas, recentemente, a erudição crítica tendia
a destruir a confiança na possibilidade de uma teologia sistemática
unificada construída sobre as bases da Escritura; e isso tem levado
muitos mestres bíblicos à dúvida se o Antigo Testamento fornece
alguma alusão de uma existência hipostática distinta para o Espírito.
[19]
A mais sábia abordagem desta questão é parti-la em suas partes
fundamentais, perguntando:
(1) A atividade do Espírito é atividade divina? A resposta é
certamente afirmativa.
(2) A atividade do Espírito é atividade pessoal? Uma vez mais, a
resposta é, com certeza, afirmativa. O Espírito dirige o povo de Deus. É
axiomático o fato de que somente um Espírito pessoal poderia engajar-
se na atividade do mais alto nível no relacionamento com outras
pessoas.
Isso nos conduz à terceira e crucial pergunta:
(3) A atividade do Espírito é hipostaticamente distinta? A ação do
Espírito na criação, no êxodo e no governo do reino, é certamente tanto
pessoal quanto divina; mas o Espírito é meramente um modo existencial
de Deus — o divino visto da perspectiva de sua imanência na ordem
criada em distinção de sua autossuficiência transcendente — e,
portanto, semelhante a expressões tais como “o braço do Senhor”?
Portanto, devemos pensar no Espírito de Deus como extensão mais que
hipostatização? Ou podemos, com base na “consequência boa e
necessária” da evidência veterotestamentária, avançando para mais um
estágio?
Seria axiomático em toda a teologia cristã que o Espírito Santo
(como também o Pai) nos seja cabalmente revelado somente em e
através de Jesus Cristo. Isso já se antecipou em boa medida sob o antigo
pacto. Reconhece-se que há um caráter parcial na obra do Espírito que
só atingirá sua plenitude no Messias (Is 11.1-10) e, portanto, na mais
íntima e mais ampla experiência do Espírito (Ez 36.25-27; Jl 2.28-32).
Portanto, devemos esperar um forte elemento do enigmático no
testemunho veterotestamentário sobre o Espírito paralelo ao que os
autores da profecia messiânica descobriram em suas próprias profecias
sobre Cristo (cf. 1Pe 1.10-11). Somente através da revelação do Espírito
no Messias é que o testemunho enigmático do Antigo Testamento
emerge em sua verdadeira luz, de modo que a atividade do Espírito é
vista como sendo mais que uma mera extensão da presença de Deus.
O valioso comentário de B. B. Warfield sobre a revelação da
Trindade em geral pode ser tomado como uma abordagem igualmente
sábia sobre a revelação do Espírito hipostático em particular:
O Antigo Testamento se assemelha a um salão ricamente mobilado, mas
parcamente iluminado; a introdução de luz nada lhe realça que nele não
existisse antes; mas nos faz ver mais, põe em relevo com maior nitidez muito
do que mal se via anteriormente, ou mesmo não houvesse sido percebido. O
mistério da Trindade não é revelado no Antigo Testamento; mas o mistério da
Trindade está subentendido na revelação do Antigo Testamento, e aqui e
acolá é quase possível vê-lo. Assim, a revelação de Deus no Antigo Testamento
não é corrigida pela revelação mais plena que se lhe segue, mas é,
simplesmente, aperfeiçoada, prolongada e ampliada.[20]

A sabedoria desta afirmação se torna evidente quando examinamos


as muitas referências veterotestamentárias ao Espírito de Deus. Sem
dúvida, a partir da perspectiva do Novo Testamento, o relacionamento
entre a obra do Espírito, no Antigo e no Novo Testamentos, é o de
continuidade. Sem dúvida, também, a natureza do ministério do
Espírito no Antigo prefigura a hipostatização que emerge no Novo. Mas
é duvidoso se nos justificamos afirmando que o Antigo Testamento
inequivocamente esclarece que o ruach Yahweh é uma hipóstase
distinta dentro de um Ser trinitariano. O famoso bon mot de Agostinho
é tão verdadeiro aqui como é em outro lugar:
Novum Testamentum in Vetere latet,
et in Novo, Vetus palet.[21]
[O Novo está latente no Antigo;
e o Antigo está patente no Novo.]

Portanto, há algo de incompleto na revelação do Antigo


Testamento, sobre o Espírito, assim como há em sua revelação acerca
do Filho (cf. Hb 1.1-2; 11.39-40; Ef 3.1-13), e no que diz respeito ao Pai
(Jo 1.18; 14.6). Como na revelação de Cristo (cf. 1Pe 1.10-12), os
profetas dos tempos veterotestamentários eram cônscios desse fato. O
Espírito esteve ativo no seio do povo de Deus; sua atividade, porém, era
enigmática, esporádica, teocrática, seletiva e, em alguns aspectos,
externa. Os profetas suspiravam por dias melhores. Moisés desejava,
porém não viu, uma vinda mais plena, universalmente ampla, do
Espírito sobre o povo de Deus (Nm 11.29). À maneira de contraste,
antecipado no novo pacto, o Espírito seria derramado de uma maneira
universal, habitando neles pessoal e permanentemente (cf. Jl 2.28-32.;
Ez 36.24-32).
Há mais neste princípio do que pode parecer à primeira vista. Pois
não é só por causa de Cristo que chegamos a conhecer mais plenamente
o Espírito, mas, realmente, em Cristo. Aliás, é evidentemente um
princípio da operação do Espírito divino que ele queira revelar-se de
uma outra forma (Jo 16.13-15). Ele não será conhecido tal como é em si
mesmo à parte de Cristo. Antes que o Espírito possa repousar
permanentemente em todos os filhos fiéis de Deus, ele antes deve
repousar no Filho de Deus que é o único realmente fiel (cf. Jo 1.33).
Nas páginas do Novo Testamento, a deidade pessoal do Espírito
finalmente se torna clara. Ele se engaja na atividade divina, possui
conhecimento divino das coisas divinas (1Co 2.10-11) e exerce
prerrogativas divinas (Rm 15.19; 1Co 12.11). Mas, talvez o mais
impressionante testemunho sobre o Espírito como hipostaticamente
distinto, não obstante plenamente divino, se encontra em sua frequente
presença ao lado do Pai e do Filho nos escritos apostólicos. A “benção”
(2Co 13.13) é apenas uma de uma série de passagens nas cartas de
Paulo nas quais o Espírito se associa plena e igualmente ao Pai e ao
Filho na obra da salvação; “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de
Deus e a comunhão do Espírito Santo” seria uma benção empobrecida,
se interpretada em termos modalísticos ou arianos! É a coerência
improvisada de tais afirmações que as faz testemunhas tão
constrangedoras da dignidade divina e autoridade pessoal do Espírito.
Este ponto poderia ser argumentado exaustivamente, mas seria muito
mais persuasivo se se admitisse que o testemunho da Escritura fale por
si só (p. ex., a leitura das seguintes seções em Paulo: Rm 14.17-18;
15.16, 30; 2 Co 1.21-22; Gl 3.11-14; 4.6; Ef 2.20-22; 3.14-16; Fp 3.3).
Por este prisma, são inexpressivos os argumentos contra a
natureza hipostática do Espírito que se derivam do uso do pronome
neutro em relação à sua atividade, em vista do fato que a palavra grega
pneuma pertence ao gênero neutro. Isso significa confundir regras de
gramática com princípios de teologia. Mas, ao contrário, o uso do
pronome demonstrativo na forma masculina para representar o Espírito
(cf. Jo 14.26; 15.26) é, com certeza, a expressão do senso do ser pessoal
do Espírito.
A igreja cristã tem, amiúde e corretamente, introduzido este
contexto às palavras da Grande Comissão (Mt 28.18-20) como o locus
classicus para o papel do Espírito dentro da Deidade trina. Aqui, como
realçou Atanásio na controvérsia ariana, somos compelidos a ver tanto
o caráter hipostático do Espírito quanto sua plena deidade; pois, do
contrário, o batismo seria ministrado em nome de Deus e de duas de
suas criaturas. O que vem a lume, pois, no clímax da história da
redenção, é um perfil do Espírito no qual a posse dos atributos divinos e
a participação na natureza divina se manifestam de tal maneira que se
revela hipostaticamente distinta da do Pai e da do Filho.
A ortodoxia clássica tem falado do Espírito como a terceira
“pessoa” da Trindade. É oportuno observar nesta conexão que o termo
latino, pessoa, não significa “pessoa” no sentido moderno. Não
obstante, como realça J. N. D. Kelly, como antigamente fez Tertuliano,
“ela conectava a apresentação concreta de um indivíduo como tal”,
mesmo quando “a ideia atual de autoconsciência, associada com
‘pessoa’ e ‘pessoal’, não seja proeminente.”[22] Provavelmente não
surpreende que Karl Barth, com sua primeira ênfase sobre a infinita
diferença qualitativa entre Deus e o homem, ficasse inconformado com o
uso do termo clássico. Não obstante, expôs-se tão seriamente a mal-
entendidos, totalmente desnecessários, quando prefere o termo
“modos” de ser de Deus, ao falar do Pai, Filho e Espírito. Isso não só
levou Barth a ser acusado de modalismo; inevitavelmente, se foi por
descuido, foi também com o intuito de ignorar um axioma teológico que
teria reorientado muito de sua teologia: o Deus que, de uma
perspectiva, é totaliter aliter (“totalmente outro”), não obstante criou o
homem à sua imagem. Há uma analogia criada do divino. Se a imago
Dei é pessoa, é de uma maneira análoga à pessoal em Deus. É com base
neste princípio que podemos corretamente usar qualquer linguagem
humana para descrever Deus, e assim falar do Espírito Santo em termos
pessoais.
Mas tudo isso aguarda o desvendamento da revelação redentiva de
Deus em Cristo. Sendo este o caso, deve-se dizer que a história do
Espírito permanece incompleta quando limitada às páginas do Antigo
Testamento. O Evangelho de João torna isto bem claro: “pois o Espírito
até esse momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda
glorificado” (Jo 7.39). Toda a revelação veterotestamentária tem um
“ainda não” escrito como a olhar para seu alvo em Cristo.
Essa foi uma iluminação especial para os que viveram antes da
vinda de Cristo, ao silenciar a voz profética durante os séculos após a
restauração, silêncio este quebrado nos acontecimentos em torno do
nascimento de João Batista e de Jesus Cristo. As promessas centrais do
novo pacto ainda aguardavam seu cumprimento: “Porei dentro em vós o
meu Espírito...” (Ez 36.27). O dia há muito esperado, prometido pelos
lábios de Joel, era “ainda não”: “E acontecerá depois que derramarei o
meu Espírito sobre toda carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões” (Jl 2.28). Portanto,
no período veterotestamentário, o grande Dia do futuro seria o Dia do
Espírito. O Dia em que o Messias viria e encheria com o Espírito (Is
11.1-10; 42.1-9; 61.1-11) ainda não chegara.
Portanto, ainda mais significativo é que o Evangelho de Lucas
começa com o anúncio de João Batista como aquele que seria cheio do
Espírito desde o nascimento (= profecia restaurada, Lc 1.15); a sombra
que o Espírito lançaria sobre Maria (= o início da nova criação, Lc
1.35); e Isabel e Zacarias sendo cheios do Espírito (Lc 1.41, 67). Simeão,
em cuja vida o Espírito estava presente muito tempo antes, entendeu a
íntima significação da vinda do Messias. Chegara a aurora da salvação
no Cristo infante. O Messias prometido chegara. Aquele em quem o
Espírito, por fim, repousaria (Is 11.2).
Na vinda de Jesus, o Dia do Espírito finalmente raiara.

[3] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 118.
[4] Embora tecnicamente traduzido por rûah, por conveniência a forma familiar, ruach, é
usada em todo este livro.
[5] Ver E. DeWitt Burton, Spirit, Soul, and Flesh (Chicago, IL: University of Chicago Press,
1918), p. 113. Cf. G. L. Prestige, God in Patristic Thought (Londres: SPCK, 1952), pp.
17ss.
[6] Todas as citações bíblicas em itálico procedem de minha própria ênfase.
[7] Geerhardus Vos, Biblical Theology (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948), p. 257.
[8] Idem, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1952), p.
300.
[9] Ver, por exemplo, Irineu, Against Heresies, 3.24.2; 4.7.4; 4.20.1. Os Pais consideravam
com frequência referências bíblicas à atividade da Sabedoria como indicação do Espírito
de Deus. Ver ainda W. H. McLellan, “The Meaning of Ruah “Elohim in Genesis 1, 2” Biblica
15 (1936), pp. 519-520; H. M. Orlinsky defende a tradução “vento” em “The Plain Meaning
of RUAH em Gn 1.2” in Jewish Quarterly Review 48 (1957-58), pp. 174-180.
[10] Ver B.S. Childs, Myth and Reality in the Old Testament (Londres: SCM Press, 1960),
pp. 32-33.
[11] João Calvino, Commentary on Genesi, 1563, tradução de John King (Edinburgo:
Calvin Translation Society, 1847), p. 73.
[12] Cf. Gordon J. Wnham, Genesis (Waco, TX: Word, 1987), p. 16.
[13] Wolfhart Pannenberg, Systematic Theology, tr. G. W. Bromiley (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1994), vol. 2, p. 77.
[14] Cf. M. G. Kline, Images of the Spirit (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1980), pp.
13-15. Gordon J. Wenham fornece uma via media ao traduzir ruach Elohim como “Vento
de Deus” (Notem-se as letras maiúsculas), mas vê isso “como uma imagem concreta e
vívida do Espírito de Deus. A frase realmente expressa a poderosa presença de Deus se
movendo misteriosamente sobre a face das águas” (op. cit., p. 17).
[15] Ver Kline, loc. cit.
[16] João Calvino, Comentário à Epístola aos Hebreus, tradução de Valter Graciano
Martins, Edições Paracletos, São Paulo, 1997, 1.ª edição, p. 238.
[17] Como faz L. Neve, The Spirit of God in the Old Testament (Tóquio: Seibunsha, 1972),
pp. 128-129.
[18] Ver, por exemplo, Irineu, Against Heresies, 4.20. Justino faz a mais modesta e
logicamente acurada sugestão em seu Dialogue With Trypho, lxii, no sentido de que há
“pelo menos duas”!
[19] O vínculo disto se encontra na maneira pela qual, mesmo para um estudioso menos
radical do Novo Testamento como C. F. D. Moule, há, para dizer o mínimo, uma opacidade
sobre o status hipostático do Espírito: “triplicidade é, talvez, menos vital para a
concepção cristã de Deus do que a eterna duplicidade de Pai e Filho” (The Holy Spirit)
[Oxford: Mowbray, 1973], p. 51). Mais radicalmente, para G. W. H. G. Lampe, Espírito é
tudo o que há em relação a Deus. Ver seu God as Spirit (Oxford: Oxford University Press,
1977), passim.
[20] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929;
reimpresso em Edinburgo: Banner of Truth, 1988), pp. 141-142.
[21] Agostinho, Questiones in Heptateuchum, 2.73.
[22] J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines, rev. ed. (Nova York: Harper Collins, 1978), p.
115. Cf. também Prestige, op. cit., pp. 157ss.
2
O ESPÍRITO DE CRISTO
No que diz respeito ao ministério do Espírito, o ensino mais
concentrado e importante que existe nos Evangelhos é o que
encontramos no discurso de despedida que Cristo pronunciou (Jo 13–
16). Neste discurso anuncia-se a importância da vinda do Espírito em
termos programáticos: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse
dará testemunho de mim; e vós também testemunhareis, porque estais
comigo desde o princípio” (Jo 15.26-27).
O testemunho que a igreja dava de Jesus Cristo tornou-se parte tão
importante e central da visão cristã, que podemos ser levados a perder
de vista a importância teológica e histórico-redentiva desta afirmação
de Jesus Cristo. A linguagem é legal e natural, em consonância com um
motivo que permeia todo o Evangelho de João: Jesus está em prova.
Na primeira metade do Evangelho de João, o “livro dos sinais”
(capítulos 1-12), várias “testemunhas” comparecem e dão seu
testemunho. Eventualmente, o autor indica que a função de seu
Evangelho é a de atuar como um testemunho documental da identidade
de Cristo: “Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é
o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 20.31). Não surpreende, pois, que a
linguagem testemunhal surja com mais frequência neste Evangelho do
que em toda a somatória do restante do Novo Testamento.
Nesta prova contínua, o leitor está sendo confrontado com a
evidência sobre Jesus e é desafiado a alcançar seu próprio veredicto (cf.
20.30-31). Além do mais, este será um processo contínuo; Jesus
pretende enviar os apóstolos pelo mundo para que sejam suas
testemunhas (“vós também testificareis”, Jo 15.27; cf. Mt 28.18-20; Lc
24.48; At 1.8). Dentro deste contexto, contudo, lemos agora que a
principal testemunha de Cristo será o Espírito Santo a quem ele enviará
da parte do Pai (Jo 15.26). Ele é o paraklētos.
O paraklētos
Muita atenção se tem devotado aos estudos joaninos quanto ao
significado e identidade do paraklētos. Um composto de kaleō, “chamar”,
e para, “ao lado de”, o termo denota alguém que é chamado para o
auxílio ou defesa de outrem. Um paraklētos é, no sentido mais antigo do
termo, um “consolador” (lat. cum forte), ou, seja, alguém que vem para
fortalecer. Entretanto, agora se reconhece mais geralmente que em João
o termo possui uma conotação forense. O Espírito é a testemunha e o
advogado que testifica de Cristo.
Os apóstolos também são testemunhas. É importante observar o
que os qualifica. Na verdade, o que os impele a serem assim: “e vós
também testemunhareis, porque estais comigo desde o princípio” (Jo
15.27).
O amor de João pelo double entendre [duplo ouvir] sugere aqui uma
analogia entre os apóstolos e o Espírito. Compartilham da mesma
atividade, ou, seja, dar testemunho; e da mesma qualificação para ela:
têm estado com Cristo desde o princípio de seu ministério, justamente
como o Espírito tem estado com ele “desde o princípio”. Os discípulos e
o Espírito compartilham da qualificação essencial para testificarem de
forma oficial.
Na cultura em que nosso Senhor vivia, os processos eram
conduzidos não por advogados agindo pela instauração e defesa, mas
por um juiz a extrair a verdade da testemunha que se apresentava com
evidência (cf. Dt 17.6). Em tal contexto, era necessário que o “advogado”
ou o “conselho de defesa” que uma pessoa acusada buscava fosse não
um profissional altamente qualificado, mas alguém que a defendesse,
falando a verdade. Uma testemunha ocular e/ou uma testemunha de
caráter era o que se requeria. Alguém cujo relacionamento com o
acusado o capacitava a falar com autoridade. Um amigo íntimo e não
uma pessoa profissionalmente treinada no manuseio da lei.
Neste cenário, o Espírito é, idealmente, o indicado para ser a
principal testemunha em prol de Cristo, visto que ele era o íntimo
companheiro de Jesus ao longo de seu ministério. Como o grande pai
capadócio, Basílio de Cesareia (c. 330–379) expôs, o Espírito Santo era
o companheiro inseparável de Jesus Cristo “...toda a atividade de Cristo
se manifestava na presença do Espírito Santo...”.[23] Eis por que seu
testemunho é tão importante, poderoso e confiável. Desde o ventre até o
túmulo e até o trono, o Espírito foi o constante companheiro do Filho.
Como resultado, quando vem aos cristãos com o fim de habitar neles,
ele vem como o Espírito de Cristo de tal maneira que possuí-lo equivale
a possuir o próprio Cristo, assim como a ausência dele equivale à
ausência de Cristo.
Esse relacionamento está implícito nas palavras de Paulo em
Romanos 8.9-10, onde o Espírito e Cristo são virtualmente termos
intercambiáveis, apontando para sua equivalência econômica enquanto
reconhece suas distinções pessoais:
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de
Deus habita em vós. E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é
dele. Se, porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa
do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça.”

Aqui, evidentemente, as afirmações “Espírito de Deus vive em vós”,


“tem o Espírito de Cristo” e “Cristo está em vós” são três formas de
descrever a singular realidade da habitação do Espírito. Este fenômeno
complexo e multifacetado indica que há uma identidade econômica
entre Cristo e o Espírito. O Espírito possui esta identidade precisamente
porque ele estava com Cristo “desde o princípio” (Jo 15.27).
Este aspecto do ministério do Espírito tem sido consideravelmente
negligenciado na história da teologia, a despeito de notáveis exceções.
Abraham Kuyper estava certo quando escreveu que “o Espírito
manifestava a obra de Cristo”.[24]
Já no perfil que Isaías traça do Messias, ele foi visto como o Homem
do Espírito par excellence ([por excelência] Is 11.1; 42.1; 61.1). Além do
mais, o Novo Testamento intencionalmente se refere ao ministério do
Espírito ao longo da vida de Jesus, desde o ventre de sua mãe até o
túmulo no horto e além dele. Uma análise da maneira como isso se
revela reforçará nosso conhecimento do Espírito e nos ajudará a
remover o anonimato de sua identidade. Três “estágios” distintos
podem ser traçados.

Estágio I: Concepção, nascimento e crescimento


O Espírito, ao ressurgir do longo silêncio da profecia, foi proclamado
por sua atividade preparatória em conexão com o nascimento de Jesus.
Maria foi agraciada com a mensagem do Espírito: “Eis que conceberás e
darás à luz um filho...”. Ela concebeu porque o Espírito Santo a
“protegeu” e o poder do Altíssimo “veio sobre ela” (Lc 1.31, 35).
Há pouca reflexão ou explicação teológica clara sobre este tema no
Novo Testamento. Não obstante, as narrativas do nascimento fornecem
sugestões da importância do ministério do Espírito na encarnação.
(1) O Espírito Santo “veio sobre” a virgem Maria (Lc 1.35).
Lucas sublinha aqui a continuidade do ministério do Espírito Santo
exercido no período veterotestamentário e o exercido na encarnação,
fazendo uso da expressão-padrão veterotestamentária para descrever
sua atividade (p. ex., 1Sm 10.6, 10; 16.13). Quando o Espírito “vem”
sobre um indivíduo, ele “veste” a vida de tal pessoa, ele a capacita,
adequando-a aos seus próprios propósitos. Além do mais, ao equipar
uma pessoa com um padrão divino há muito estabelecido, enfatizando a
atividade monergística de Deus na história da redenção, o Espírito pode
fazer com que uma mulher “estéril” se torne frutífera (cf. Gn 17.15-19;
18.9-14; Jz 13.1-24; 1Sm 1.1-20; Is 32.15). Aliás, na história de Jesus
encontramos a ilustração máxima deste princípio. Quando o Espírito
chega para marcar a aurora da nova era messiânica, não é apenas uma
mulher estéril que se torna frutífera, mas é uma virgem que é agraciada
com um filho (Is 7.14; Mt 1.23).
(2) O “poder do Altíssimo envolverá [episkiasei]” Maria.
Na Septuaginta, o verbo episkiazō traduz o hebraico sāḵaḵ, que é
usado em referência à nuvem da gloriosa presença de Deus a pairar (Êx
40.35, 29, LXX). No Salmo 91.4 (LXX, 90.4), ele descreve o pairar
protetor de Deus sobre seu povo, reminiscência da gloriosa nuvem de
sua presença que guardava e guiava o povo pelo deserto.
Já notamos a conexão entre o Espírito de Deus pairando, como
uma ave, sobre as águas na criação original, e o pairar do Senhor, como
uma águia, sobre seu povo na nuvem do Êxodo.[25] Aquele que conduziu
o povo pelo deserto como uma coluna de nuvem e como uma coluna de
fogo (Êx 13.21) é o Espírito Santo (Is 63.10-11). Essa nuvem — a nuvem
da glória do Espírito — reaparece na nuvem que representa a presença
da glória de Deus no tabernáculo (Êx 40.34-39) e no templo (Is 6.1-4). É
o que chegou a ser expresso como sendo a shekinah. Numa das mais
dramáticas visões de Ezequiel, ele testificou da glória-shekinah de Deus
partindo do templo (Ez 10.1-22). Ela só regressará na emergência do
novo templo (Ez 43.1-5).
A glória de Deus representada pela nuvem shekinah foi um dos
aspectos lamentados como estando ausente em conexão com a
edificação do segundo templo. Não obstante, o Senhor prometeu que
sua glória seria vista ali (Ag 2.7-9) e deveras, subitamente, regressaria
(Ml 3.1-5).
De acordo com o Novo Testamento, Jesus Cristo é essa glória
prometida. Desde o início de sua vida, o Espírito da glória de Deus o
protegeu. A glória estava oculta no templo (cf. Jo 2.19-22). Só
ocasionalmente ela se deixou ver (Jo 1.14), como no monte da
transfiguração onde, significativamente, a nuvem protegeu o grupo de
discípulos, e a voz divina se fez ouvir novamente. Temos aí a mais clara
indicação da continuação do motivo veterotestamentário, cuja
reapresentação seria muito difícil. Lucas, porém, sublinha isto apenas
com o uso do verbo episkiazō em seu Evangelho (Lc 9.34) para descrever
a proteção da nuvem, bem como para descrever o tópico da conversação
entre Jesus e Moisés e Elias como o exodus (lit.) que “ele estava para
cumprir” (Lc 9.31).
Esses ecos da criação e do Êxodo sugerem que a obra do Espírito na
encarnação pode ser interpretada numa visão dupla.
Primeiro, é uma obra divina da nova criação. Como na criação
original, a obra do Espírito é de novo, porém não é ex nihilo. Ao
contrário, ele opera em materiais já existentes (a humanidade de
Maria) a fim de produzir o “segundo homem” e através dele restaurar a
verdadeira ordem, justamente como ele trouxe ordem e plenitude ao
informe e vazio da criação original.
Segundo, é o início da obra redentiva, o novo exodus. O Espírito
pairava sobre o Filho legítimo de Deus ao longo de suas tentações no
deserto e ao longo de toda sua vida e ministério (cf. Lc 4.1; 22.28). O
cuidado de Deus pelo Filho que ele chamou do Egito, expresso de modo
tão eloquente em todo o Antigo Testamento (cf., p. ex., Dt 8; Ez 16), tem
aqui seguimento no cuidado do Espírito pelo Filho encarnado (a quem
igualmente chamou do Egito, Mt 2.15), mesmo em estado embrionário.
Não há dúvida também de que há nesta expressão um elemento de
mistério, quase se poderia dizer de simplicidade teológica. Se, como
Davi reconhece (Sl 139.13), Deus traz à existência a mais excelente de
suas obras, desde a câmara escura do ventre de uma mulher, é
especialmente oportuno que a concepção de nossa frágil humanidade,
através do poderoso Filho de Deus, fosse guardada e protegida da vista
e da compreensão humanas, pela proteção do Espírito.
A mais séria questão que circunda o testemunho de Mateus e
Lucas, em relação ao nascimento de Cristo, diz respeito à historicidade
da concepção e nascimento provenientes de uma virgem. Isso é
amplamente visto pela erudição moderna como uma tradição
midrástica ou mitológica, ecoando Isaías 9.7, e não como parte do
kerigma primitivo. E essa tradição teria estabelecido o primeiro
testemunho da identidade de Jesus (um Senhor ressurreto requereria um
modo supernatural de entrar no mundo). Tal erudição rejeita a noção
agostiniana de que a concepção de uma virgem se fazia necessária para
a conservação da impecabilidade do Senhor, e considera o testemunho
dos credos antigos em relação ao nascimento virginal como carente de
reinterpretação.
Tal cepticismo tem tido resposta com muita frequência.[26] Aqui,
nosso interesse é exclusivamente indagar que função do Espírito Santo
se vê em atividade neste liame do ensino neotestamentário.
A promessa feita a Maria de que o Espírito “viria sobre” ela e a
“protegeria” tinha em vista um propósito específico: “por isso também,
o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35). A
função do Espírito Santo era conservar a santidade e a impecabilidade
daquele que estava para nascer.
O Novo Testamento, em parte alguma, sugere que isso seria
efetuado simplesmente pela ausência do progenitor masculino. A noção
de que o estado pecaminoso é o resultado do ato sexual, ou a
transmissão da linhagem através do homem e não da mulher, não
encontra apoio na Escritura. Portanto, presume-se com frequência que
é supérflua a doutrina da concepção e nascimento provenientes de uma
virgem.
Entretanto, cinco coisas estão realmente em pauta:
(1) A ação do Espírito Santo (somada com a ausência de
concepção “por vontade do homem” [Jo 1.13]) aponta para a soberana
novidade da obra que Deus está concretizando.
Uma antiga tradição textual patrística, descoberta no fim do
segundo século em Irineu e Tertuliano, traz a redação de João 1.13
como se referindo a Jesus como aquele que “nasceu não da decisão
humana ou da vontade do esposo, mas nasceu de Deus”.[27] A evidência
nas tradições textuais em prol disto é fraca, mas alguns eruditos têm
vigorosamente defendido esta redação patrística com base em que ela é
mais antiga que a evidência manuscrita existente.[28] Mas, mesmo que
tais palavras se refiram ao novo nascimento cristão, não se pode
argumentar que o double entendre [duplo ouvir] joanino torna provável
que o autor fosse cônscio do paralelo entre o nascimento de Cristo e o
exercício da soberania divina no novo nascimento do cristão. Como
raciocinou Abraham Kuyper: “João, indubitavelmente, tomou por
empréstimo esta gloriosa descrição de nosso supremo nascimento
provindo do ato extraordinário de Deus, que cintila na concepção e
nascimento de Cristo.”[29] Enquanto Maria é envolvida na concepção
virginal, ela é completamente passiva nela, uma vez que ela é o
resultado direto da misteriosa ação do Espírito Santo. Aqui, como o
sublinha Barth, contra a posição que a teologia da igreja romana dá a
Maria, anula-se a contribuição ativa da humanidade em prover a
salvação.
Mencionam-se cinco mães na genealogia de Jesus. Enquanto Perez
e Zerá são ek tēs Thamar (“cuja mãe era Tamar”, Mt 1.3), Boaz ek tēs
Raabe, e Obede ek tēs Rute (1.5), e Salomão ek tēs tou Ouriou (“cuja
mãe foi [a esposa] de Urias”, 1.6), a concepção e nascimento de Jesus
(1.16) requerem qualificação adicional. Esta concepção é
exclusivamente ek pneumatos hagiou (“do Espírito Santo”; 1.18-20).
(2) A natureza humana que foi assumida pelo Filho de Deus não
foi criada ex nihilo, mas herdada através de Maria. Ela é nossa
natureza humana, “viciada a tantas misérias”, como vividamente o
coloca Calvino.[30] Sujeito às dores e tentações desta vida, sua natureza
humana necessitava da influência do Espírito Santo a fim de santificar-
se. Embora o Novo Testamento em parte alguma elucide o que tal fato
envolvia, ele é, no entanto, a implicação central da obra do Espírito
Santo. Unicamente pela obra do Espírito poderia a pessoa do Logos
assumir a genuína natureza humana, vindo “em semelhança de homem
pecaminoso” (Rm 8.3), permanecendo, no entanto, como “ santo,
inculpável, imaculado” (Hb 7.26) e como “o santo” (Lc 1.35).
(3) A revelação da concepção virginal pelo Espírito proíbe qualquer
cristologia adocionista. Não há lugar para a noção de que o homem
Jesus de Nazaré se fez Filho de Deus por adoção. A verdade é o reverso:
o Filho de Deus se torna o homem Cristo Jesus por meio da encarnação
pelo poder do Espírito. A concepção virginal, portanto, sublinha as
palavras de Jesus em João 8.23: “Eu sou lá de cima.” Seu nascimento é
também “lá de cima” (cf. Jo 3.3, 5). A adição moderna a uma cristologia
exclusivamente “cá de baixo” é o reverso da compreensão bíblica de
Cristo. Essa cristologia “cá de baixo” representa uma pneumatologia
truncada, bem como uma cristologia deformada.
(4) A concepção de Jesus pelo Espírito sublinha tanto sua
identificação com nossa fragilidade (ele assume nossa natureza em sua
[natureza] menor e mais frágil) e sua distinção essencial, não em
relação à realidade de sua humanidade, mas em relação à sua
suscetibilidade à culpa. Ele é “o último Adão”, o “homem do céu” (1Co
15.45, 47-49). A obra do Espírito preserva tanto a realidade de sua
união conosco em genuína natureza humana quanto sua isenção da
culpa e da maldição oriundas da queda de Adão (Rm 5.12-21). Visto
que sua pessoa não provém do tronco adâmico, ele não participa da
culpa e condenação de Adão (Rm 5.12-14). Já que ele assumiu a
natureza humana por intermédio do Espírito que santificou esta união
desde o momento de sua concepção, ele foi um de nós e foi capaz de
levar a culpa alheia como um que não era pessoalmente responsável por
ela. Se sua origem fosse “da terra”, ele seria participante da culpa e da
condenação de “o homem terreno” (1Co 15.48).
Por isso, como o inaugurador da nova humanidade, o “segundo
homem” é introduzido no mundo pela agência do Espírito. Sua
concepção virginal é, por isso, essencial à nossa salvação, e foi,
apropriadamente, originada pelo Espírito que é o executor dessa
salvação.
(5) A concepção de Jesus, pelo Espírito Santo, é o modo pelo qual
se efetuou o envio do Filho pelo Pai. Como tal, ela sublinha o princípio
de que, na obra da redenção que Cristo encabeça, cada pessoa da
Trindade é engajada. A máxima patrística de que todas as pessoas da
Trindade tomam parte em todos os atos externos de Deus (opera ad
extra trinitatis indivisa sunt, “as obras externas da Trindade são
indivisas”) é aqui (como na ressurreição) perfeitamente ilustrada.
Todavia, na linguagem da teologia mais antiga, há uma apropriação da
concepção do Filho de Deus pelo Espírito Santo. A execução do conselho
do Pai e do Filho é uma vez mais vista como a grande característica de
sua obra.
É bem notória a ausência de informações dos Evangelhos no
desenvolvimento de Jesus através de sua infância e da adolescência, até
chegar à fase adulta. No final da visita que Jesus fez ao templo, na idade
de doze anos, Lucas registra que ele “crescia em sabedoria, estatura e
graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52). Daí se deduz a razão da
perplexidade dos mestres ante o discernimento que Jesus já possuía.
Essa narrativa não tem um sentido isolado. Ela reflete o
cumprimento de vários temas veterotestamentários. A pessoa que
medita nela, que ama e que conhece a Palavra de Deus, pode ter maior
percepção do que os mestres e mais discernimento do que os anciãos (Sl
119.99-100). Tal sabedoria é a evidência da obra do Espírito messiânico
e, nesse sentido, Lucas 2.52 é o cumprimento e aplicação de Isaías 11.1-
3a:
Do tronco de Jessé sairá um rebento,
e de suas raízes, um renovo.
Repousará sobre ele o Espírito do Senhor,
o Espírito de sabedoria e de entendimento,
o Espírito de conselho e de fortaleza,
o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor.
Ele se deleitará no temor do Senhor.

Se perguntarmos como o Espírito produziu isso na vida de Jesus, a


resposta em parte formaria paralelo com as palavras do terceiro cântico
do Servo em Isaías:
O Senhor Deus me deu língua de eruditos,
para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado.
Ele me desperta todas as manhãs,
desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos.
O Senhor Deus me abriu os ouvidos
para que eu ouça como os eruditos.
(Is 50.4-5)

Por detrás de tudo isso está oculta a mais antiga identificação do


Servo:
“Eis aqui meu servo, a quem sustenho;
meu escolhido, em quem minha alma se compraz [cf. o comentário de Lucas,
dizendo que Jesus crescia na graça de Deus];
Pus sobre ele meu Espírito.
(Is 42.1)

O quadro é um que fala de comunhão diária e constante com Deus,


que se manifesta no sentido novo e virtualmente sem paralelo da
intimidade com Deus, expressa nas palavras de Jesus: “Não sabíeis que
me cumpria estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49).[31]
A convergência desses vários liames do Antigo Testamento sugere
que o ministério do Espírito em relação a Jesus, durante os “anos
ocultos”, relacionava-se intimamente com o seu discernimento da
palavra de Deus e sua sensibilidade e obediência a ela, quando veio a
reconhecer sua significação para sua vida pessoal. Em termos
específicos, Lucas chama a atenção para isto (Lc 2.47) em termos do
cumprimento de Isaías 11.2 na vida de Jesus; e, portanto, da presença
do Espírito messiânico nele.
A íntima familiaridade de Jesus com a Escritura não procedeu de
caelo (“do céu”) durante o período de seu ministério público. Sem
dúvida, estava fundado em sua educação primária, porém nutrida por
longos anos de meditação pessoal. Mais tarde, em seu ministério
público, tornou-se evidente que ele adquirira íntima familiaridade com
o conteúdo das Escrituras (como se faz evidente do uso que ele faz de Dt
8, no combate às tentações no deserto); e o fato que ele também
possuía, em sua natureza humana, através do Espírito, profundo
conhecimento de Deus, o que revestiu seu ensino de coisas novas, de
autoridade e do senso de realidade (Mt 7.28-29).
Há na vida de Jesus um ministério contínuo do Espírito
(“enchendo-se”, plēroumenon em Lc 2.40, indica uma experiência que
era tanto progressiva como passiva). Podemos presumir, à luz do
comentário que Lucas faz, dizendo que Jesus “crescia em sabedoria, em
estatura e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52), que ele
deu expressão ao fruto apropriado do Espírito em cada período de seu
desenvolvimento humano. Como declarou Irineu de forma tão
eloquente, vista no contexto da recapitulação distintiva de sua
cristologia:
“Ele percorreu cada estagio da vida. Tornou-se um infante para os infantes,
santificando a infância; um menino entre os meninos, santificando a meninice,
estabelecendo um exemplo de afeição filial, de justiça e obediência; um jovem
entre os jovens, tornando-se um exemplo para eles, e santificando-os para o
Senhor.”[32]

Estágio II: Batismo, Tentações e Ministério


Se Jesus foi cheio do Espírito desde a concepção, que significação existe
na vinda do Espírito em seu batismo?
(1) Jesus foi ungido pelo Espírito (At 10.38). O Espírito veio sobre
ele enquanto orava, seguindo-se seu batismo (Lc 3.21). Nos escritos de
Lucas, o Espírito é regularmente dado em resposta à oração e em
conexão com o avanço do reino (ver Lc 11.13; At 1.4; 2.1-4; 4.23-31).
Tal evento marca o aparecimento público de Jesus e a consagração
ao seu ministério messiânico, como mais tarde explicou em seu sermão
na sinagoga de Nazaré, quando identificou-se com a figura apresentada
em Isaías 61 (Lc 4.16-21). Ele entra em cena como o profeta de Deus há
muito esperado (Dt 18.18; Jo 1.21, 25). Além disso, a referência que
Lucas faz de Jesus com trinta anos de idade (Lc 3.23) provavelmente
reflete a idade de ingresso no serviço sacerdotal.[33] Assim, Jesus é
também visto como um sacerdote ungido. Do mesmo modo como o
Sumo Sacerdote se preparava para seu ministério no dia da expiação,
lavando-se e ungindo-se, também Jesus recebeu a ablução desse
batismo e a unção do Espírito com vistas ao seu próprio ministério
sacerdotal. Em seu batismo com água ele se consagrou, através da
oração, para o batismo vindouro de sua morte (cf. Jo 17.19). A voz
celestial que ele ouve faz ecoar as palavras de entronização do Salmo
2.7, anunciando que Jesus se ingressa no ministério do Rei Universal. A
vinda do Espírito, pois, é uma unção para o tríplice ofício messiânico
prefigurado pelos profetas, sacerdotes e reis.
Este é um novo estágio de serviço para Jesus. Ele entra na arena
pública. Na fragilidade da carne humana, ele se vê carente de um novo e
mais profundo revestimento do Espírito, a fim de que, através de sua
morte, ressurreição e ascensão, ele viesse ser Aquele que toma posse,
infinitamente, do Espírito para que seja capaz de batizar com o Espírito
Santo (cf. Jo 1.33-34). Jesus, que foi sustentado pelo Espírito durante os
primeiros trinta anos de sua vida, agora, paulatinamente, expressa sua
relação com o Espírito na concretização de nossa redenção. Ele o recebe
sem medida [infinitamente]. Justamente como os que foram batizados
por João punham toda sua vida em seu batismo para arrependimento (e
eram convocados a viver uma vida de arrependimento), Jesus também
foi batizado com o Espírito e viveu sob seu senhorio. Assim também
fazem os que sucessivamente recebem o batismo de Cristo para que
sejam conformados a Cristo.
De uma maneira muito significativa, o contraste que João Batista
traça entre seu próprio ministério e o de Jesus Cristo é em termos de
dois batismos. Pode-se concluir que o contraste fundamental seja entre
João, como testemunha, e Jesus, como Salvador; e que, portanto, se faz
uma referência primordial à obra sacrificial de Jesus Cristo. Enquanto
ela está presente, por implicação (na referência de João ao Cordeiro de
Deus, Jo 1.29), mais notável ainda é a ênfase sobre o batismo com o
Espírito como o telos [propósito] da presença de Cristo entre os homens.
(2) O céu se abre, significando uma revelação divina (Mc 1.10);
uma voz reveladora fala. A abertura do céu é um fenômeno
caracteristicamente apocalíptico, e nos prepara para nova revelação (cf.
Ap 4.1). Aqui a descida do Espírito ocorre visivelmente, ao pousar sobre
Jesus na forma corpórea de uma pomba. Deus fala desde o céu,
identificando-o como seu Filho amado (Mc 1.11). Jesus, aqui, está sendo
equipado para o conflito, indicado pelo fato de que, em cada um dos
Evangelhos Sinóticos, a narrativa do batismo é seguida imediatamente
das tentações no deserto.
Na experiência de Jesus, a palavra de Deus e o Espírito de Deus
cooperam para produzir uma convicção inabalável de sua própria
identidade e ministério como Filho de Deus e o Sofredor Servo-Messias.
A manifestação física do Espírito e a voz audível são-lhe um “selo” (cf.
Jo 6.27). A voz interpreta a importância da manifestação do Espírito.
Significa: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1.11; as
alusões são ao Sl 2.7 e Is 42.1, combinando uma passagem messiânica e
uma sobre o Servo na confirmação da identidade e ofício de Jesus).
Neste sentido, a descida do Espírito sobre Jesus e sua nova experiência
com ele servem para assegurar-lhe o amor do Pai (o que é essencial, se
ele deve ser sustentado quando surgir o conflito), e a realidade da
filiação que está para expressar-se em sua espontaneidade de sofrer
como o Servo do Senhor (um princípio essencial para apossar-se
quando está para aparar os ataques de Satanás, o qual busca persuadi-
lo de que filiação e sofrimento são ideias mutuamente excludentes, cf.
Mt 4.3, 6).
Para Jesus, pois, o Espírito é um Espírito de Filiação e de
segurança, que testificará com seu espírito de que ele é o Filho de Deus,
e que o capacitará, mesmo no Getsemane, a chamar Deus de “Abba!
Pai!” (cf. Rm 8.15-16). Assim, o Espírito sela e confirma o vínculo de
amor e de confiança entre o Pai e o Filho encarnado.
Embora não se possa ter certeza dogmática sobre a significação
precisa do aparecimento do Espírito na forma de pomba, todas as
nuanças possíveis da questão bíblico-teológica apontam na mesma
direção.
É possível que haja aqui um eco geral da obra do Espírito pairando,
à semelhança de uma ave, sobre as águas na primeira criação (Gn 1.2).
É possível que a alusão seja oriunda da narrativa do dilúvio e da
descida da pomba sobre a “nova criação”, a qual surge da “destruição
da terra (Gn 8.12-21). De fato, ambos os ecos poderiam estar presentes,
ressaltando que Jesus é o “segundo homem” e o “último Adão” que se
tornará o espírito doador de vida (1Co 15.45-47), o novo Noé que,
finalmente, concretizará as esperanças dos fieis depositadas naquele
que trará descanso a um mundo amaldiçoado (cf. Gn 5.29; Is 63.14; Mt
11.28-30).
Pode ser igualmente relevante que na tradição judaica a pomba
servia como símbolo de Israel. Cristo, o novo Adão, é também o novo
Israel, o genuíno Servo do Senhor. Como acréscimo a esse cenário, é
possível ainda que a aparição da semelhança de pomba pretendesse
despertar a imaginação para a função da pomba como oferta pelo
pecado, feita pelo pobre, no sistema sacrificial levítico (Lv 5.7; cf. Jo
2.14, 16).
E assim o Espírito vem sobre Cristo como a cabeça da nova criação;
mas essa criação só emergirá do caríssimo sacrifício de si mesmo como
uma oferta pelo pecado feita no Calvário (cf. 2Co 5.21).[34]
Não obstante, central em todo o evento é o fato do advento do
Espírito. Esta é a evidência de que “o tempo chegou” (Mc 1.15). A
aurora prometida por fim chegara, o ano do último Jubileu (Lc 4.18, 19)
que introduziria o reino e redundaria no triunfo de Deus, durante o qual
se cumpririam as promessas da era vindoura, feitas no Antigo
Testamento. Jesus é ungido “com o Espírito Santo e com poder” para
seu ministério (At 10.38). Neste sentido, o batismo de Jesus e a recepção
do Espírito messiânico, sem medida, por parte dele (Jo 3.34),
constituem o prelúdio essencial para batizar a igreja com o Espírito no
Dia de Pentecostes, quando os discípulos, por seu turno, receberiam
poder (At 1.8).
Para o Novo Testamento, estes eventos, separados no tempo, são
teologicamente entrelaçados. Existe uma interconexão semelhante entre
a recepção do Espírito messiânico, por Jesus, e as tentações deste.
Jesus foi “levado pelo Espírito” ao deserto para ser tentado pelo
diabo (Mt 4.1; Lc 4.1). Enquanto Lucas usa um verbo relativamente
inócuo (agō, “levar”), o relato de Marcos é marcantemente mais
vigoroso: o Espírito “impeliu [ekballei] a Jesus” (Mc 1.12). Logo após o
emprega novamente, agora em referência ao exorcismo de demônios
(Mc 1.34). Mateus usa o mesmo verbo quando registra a ênfase que
Jesus põe na prática da oração por seus discípulos em prol de
trabalhadores na ceifa do campo espiritual (Mt 9.38).
Esses usos adicionais imprimem um colorido novo e dão
significativa expressão ao ministério do Espírito aqui: “expulsar”
expressa a energia e o poder do Espírito quando o Senhor, no avanço do
reino de Deus, entra no território ocupado do inimigo. Este é
precisamente o ambiente do ministério de Jesus no deserto.
Tem sido comum interpretar as tentações de Jesus como sendo
análogas ou quase um modelo para a tentação do cristão: Cristo foi
tentado como o somos, porém resistiu; portanto devemos resistir de
maneira semelhante. Mas isso conduz a uma interpretação parcial e
negativa de suas experiências. Suas tentações constituem um evento
memorável. Não são meramente pessoais, porém cósmicas. Constituem
a tentação do último Adão.[35] De fato, há certo vínculo comum entre
suas tentações e as nossas: ele é real e pessoalmente confrontado pelos
poderes das trevas. Mas o destaque e significação do evento não estão
no fato de que nossas tentações são como as suas, mas na singularidade
e unicidade das experiências de Jesus Cristo. Ele foi conduzido ao
deserto por uma força súbita. Seu teste foi posto no contexto de uma
guerra santa na qual ele entrou nos domínios do inimigo, amorteceu
seus ataques e o obrigou a retirar-se (ver Mt 4.11 e, especialmente, Lc
4.13). No poder do Espírito, Jesus avançou como o divino guerreiro, o
Deus das batalhas que luta em favor de seu povo e de sua salvação (cf.
Êx 15.3; Sl 98.1). Seu triunfo demonstrou que “o reino de Deus está
próximo” e que o conflito messiânico havia começado.
A narrativa de Lucas forma uma ponte entre o batismo no Jordão e
as tentações no deserto com uma tábua genealógica que remonta a
linhagem de Jesus a Adão (Lc 3.23-38). Aqui o inclusio [inclusão] de
toda a história humana entre Adão e Jesus sugere que a tentação e
vitória do último Adão devem ser interpretadas à luz do teste e da
derrota do primeiro, com toda sua nociva herança. Assim se pode ver
que o segundo Filho-homem desfez o que fora feito pelo primeiro filho-
homem: obedeceu e venceu como o último Adão, e agora já não há
necessidade de figura representativa.
Portanto, o conflito em que Jesus se engajou deve ser visto como
uma reexibição do Éden. Como Adão antes dele, Jesus foi incitado a “ser
como Deus” e a rejeitar sua palavra. Ele, porém, escolheu o caminho da
obediência e do sofrimento que glorifica a Deus. Sua resistência e
fidelidade se contrastam também com os quarenta anos de
peregrinação e teste durante os quais o povo de Deus fez mais por
entristecer o Espírito do que por obedecer às suas diretrizes (cf. Is 63.7-
14). Rebelaram-se contra o Espírito que os havia tirado do Egito,
entristecendo-o; Jesus, ao contrário, ungido com o Espírito, foi levado,
obediente e vitoriosamente, à prova no mau dia do deserto.
E assim, no poder do Espírito, no inóspito deserto onde o mundo se
transformara através do pecado do primeiro Adão, o segundo homem, o
Adão escatológico (ho eschatos Adam, 1Co 15.45), reconquistara o
território ocupado pelo inimigo. A consequência imediata de tudo isso
consiste em que Jesus se capacitou soberanamente para despachar o
diabo (“Afasta-te de mim, Satanás!” Mt 4.10), o qual se viu forçado a
partir até que encontrasse “um momento oportuno” (Lc 4.13). O
resultado imediato e seu desdobramento é que, havendo repelido
Satanás em seu “próprio território”, Jesus agora estava numa posição
de infligir temor em suas legiões e expulsá-las.
O registro que Marcos faz das tentações termina de forma mais
abrupta e não contém nenhum registro, nem de seu conteúdo nem de
sua conclusão. Assim ele indica que há no evento uma perspectiva
adicional: é a abertura de uma batalha que prosseguirá ao longo de
todo o curso do ministério de Jesus. De diversas maneiras, todo o
Evangelho dá expressão a este motivo de conflito.
O papel do Espírito no ministério de Jesus fica assim em evidência.
Ele serve como o cartógrafo celestial e divino estrategista que delineia a
batalha terrena e dirige o Rei-Guerreiro no ponto estratégico do
conflito. Ele é o general coadjuvante de Jesus Cristo na santa guerra que
é deflagrada pela encarnação.
E assim Jesus, à semelhança de um general romano, regressa de
sua conquista secreta “para a Galileia no poder do Espírito” (Lc 4.14).
O efeito imediato do fato que “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o
Espírito Santo e poder” consiste em que ele “andou por toda parte,
fazendo o bem e curando a todos os que estavam sob o poder do diabo,
porque Deus era com ele” (At 10.38; cf. 4.37). Para Lucas, todo o
ministério de Jesus, que se seguiu desde seu batismo, é exercido no
poder do Espírito messiânico. Ele foi ungido a fim de engajar-se num
poderoso conflito. Portanto, nele o ano final do Jubileu chegou: há
liberdade (Lc 4.18-19; Lv 25.8-55). O resultado é que sua pregação é
saturada de autoridade (Lc 4.32); sua palavra contém poder para
exorcizar e para libertar (Lc 4.33-37); e seu toque cura a “todos” (Lc
4.40). Nada fica fora de seu domínio. Os prodígios que ele realiza são
feitos na energia e pela presença do Espírito Santo (cf. Mt 12.18). Essa é
a razão por que servem como sinais da vinda da era messiânica na qual
o poder do Espírito se manifestará plenamente e curará toda a
natureza.
A presença do Espírito nesta obra de recapitulação marca o
alvorecer do Dia do Senhor. Na vinda do reino, as profecias do Antigo
Testamento encontram um cumprimento profético:
Naquele dia o Senhor castigará,
no céu, as hostes celestes,
e os reis da terra, na terra.
Serão ajuntados como presos em masmorra,
e encerrados num cárcere,
e serão castigados depois de muitos dias.
A lua se envergonhará,
e o sol se confundirá
quando o Senhor dos Exércitos reinar
no monte Sião e em Jerusalém;
perante seus anciãos haverá glória.
(Is 24.21-23)

Tal cumprimento ocorre em Cristo, não no clímax da história, mas


no segmento, inesperadamente. Ninguém se espanta mais do que os
poderes demoníacos que indagam de Jesus: “Viste aqui atormentar-nos
antes do tempo?” (Mt 8.29).
Tudo isso evidencia que Aquele cujo advento foi prometido é de fato
Jesus, e que nele o Espírito veio em poder. Isso ajuda a explicar por que,
enquanto a blasfêmia contra o Filho do Homem pode ser perdoada, a
que é proferida contra o Espírito não o será. Esta envolvia não apenas
uma reação pessoal em relação a Jesus, mas uma rejeição do ministério
do Espírito; e, portanto, da evidência de que o reino havia chegado e
que uma nova era havia raiado (cf. Mt 12.25-29; Lc 10.21).
K. Rengstorf sublinha a seriedade do resultado: “Tal pecado se
comete quando uma pessoa reconhece a missão de Jesus pelo Espírito
Santo e, no entanto, a afronta, resiste e amaldiçoa. A declaração revela
a seriedade da situação. É a última vez em que o senhorio de Deus é
perturbado.”[36] Neste sentido, a blasfêmia contra o Espírito de que
Cristo fala pertence à hora imediatamente antes do juízo de Deus bater
meia-noite e o dia da salvação chegar a seu fim. A última hora então
chegou.
Deste modo focalizamos o ministério do Espírito na obra e nas
ações de Jesus Cristo, sobre o qual os Evangelhos tecem comentários
específicos.
Observações menos específicas, ainda que não menos importantes,
são feitas sobre a relação entre o Espírito e o caráter de Jesus. Quando
regressou à Galileia após as tentações, ele foi “no poder do Espírito” (Lc
4.14). As palavras de Lucas prefaciam o relato do sermão de Jesus na
sinagoga de Nazaré acerca do cumprimento de Isaías 61.1-3: “O
Espírito do Senhor está sobre mim...” Todo o extrato se concentra não
nas obras de Jesus, mas em suas palavras. O efeito de sua presença é
significativo: “E ensinava nas sinagogas, sendo glorificado por todos”
(Lc 4.15). “Todos lhe davam testemunho e se maravilhavam das
palavras de graça que lhe saíam dos lábios” (Lc 4.22).
Pelo prisma de Lucas 2.52 e 3.22 (com sua alusão ao Cântico do
Servo em Isaías 42.1-17.), isso nos direciona para as características
pessoais que o Espírito produzia na vida de Jesus. Ele crescera em
sabedoria e em outras qualidades que evocavam o favor tanto divino
quanto humano. Mais adiante, Isaías 42.1-17 é especificamente citado
em referência a Jesus (ver Mt 12.18-21): “... ele proclamará justiça...
não contenderá nem gritará...”
Aqui descobrimos referência ao seu espírito manso e gracioso em
seguir após a justiça. Ele não quebra a cana esmagada nem apaga o
pavio fumegante; não atrai a atenção para si mesmo nem ostenta suas
próprias habilidades. Eis a consequência do dom divino: “Porei nele o
meu Espírito” (Is 42.1). O que Paulo descreverá como “andar no
Espírito” e produzir “o fruto do Espírito” (Gl 5.22-26) encontra seu
protótipo no próprio Jesus, como faz a rica discrição de Paulo do amor
como a primeira e mais essencial marca do Espírito (1Co 13.1-13).
Portanto, o fato de Jesus ser o homem do Espírito não é meramente
uma categorização teológica; é uma realidade de carne e sangue. O que
se produziu nele estava plenamente compreendido na santidade. Ele era
a encarnação da bendita vida do concerto e das beatitudes do reino, que
são seus frutos (Mt 5.1-12.; cf. Sl 1).
Semelhantemente, Jesus cresceu na sabedoria que vem do alto, a
qual era, primeiramente, pura, e também pacífica, indulgente, tratável,
saturada de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem fingimento
(Tg 3.17). Ele era o homem sábio que revela tal sabedoria através de
sua vida saudável e dos atos feitos na humildade que procede da
sabedoria (Tg 3.13). Eis o que lhe significava viver no poder e graça do
Espírito.
Mas, o que dizer, na experiência de Jesus, da presença e dos dons
do Espírito? Que ele operava milagres, nota-se na mais simples leitura
do texto dos Evangelhos. Às vezes se sugere que ele falava em línguas,
[37] mas em parte alguma lemos isso. Também não se vê, na história da

redenção, ser comunicada a função distintiva de falar em línguas. Tudo


isto não passa de pressuposição gratuita. Que ele exerceu multiformes
dons verbais do Espírito é evidente em todo o seu ensino, como também
o fato de que ele, através do Espírito, desfrutou de íntima comunhão
com Deus, e, oportunamente, exultou em sua presença e poder (Lc
10.21). O fato da expressão de sua exultação ser ocasional e não
constante, repentina e nem permanente sublinha a realidade de que sua
comunhão com o Espírito ocorria dentro de toda a gama das emoções
humanas. Mas o interesse predominante do Novo Testamento está não
em sua experiência com esses dons, ou em suas emoções como tais, mas
no genuíno conhecimento de Deus que ele possuía em comunhão com o
Espírito e sua consequente exemplificação do fruto do Espírito.

Estágio III: Morte, Ressurreição e Ascensão


Os Evangelhos sugerem que todo o ministério de Jesus era conduzido no
poder do Espírito. Não obstante, a única referência ao ministério do
Espírito durante os sofrimentos e morte de Jesus está em Hebreus 9.14:
“Cristo que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu a Deus...”
Pode-se apresentar um exemplo para se compreender o pneuma no qual
Jesus Cristo se ofereceu, como sendo uma referência ao Espírito divino.
[38]
Nenhuma explicação adicional se nos oferece nesta conjuntura com
o intuito de responder a perguntas que possam surgir em nossas mentes
ou a uma possível especulação equivocada.
Semelhantemente breves, talvez menos críticas, são as reflexões
neotestamentárias sobre o papel do Espírito na ressurreição de Cristo.
Aqui, uma vez mais, encontramos uma ilustração da máxima patrística,
opera ad extra trinitatis indivisa sunt (“as obras externas da Trindade
são indivisas”) — mesmo que tais opera sejam “apropriadas” a uma ou
a outra pessoa da Deidade.
A ressurreição, ainda que atribuída principalmente ao Pai (At
2.32; 17.31; Rm 8.11; 1Co 15.15), é também vista como sendo uma ação
do Filho (Jo 2.19-21; 10.17-18). Mas, segundo o Pai, foi também “pelo
Espírito de santidade” que Jesus “foi designado Filho de Deus com
poder, mediante a ressurreição dos mortos” (Rm 1.4). Isso, associado
ao ensino de que Jesus foi “justificado pelo Espírito” (uma referência à
ressurreição como sua “justificação”, 1Tm 3.16), bem como às palavras
de Pedro: “Cristo morreu, uma única vez, para conduzir-vos a Deus;
morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito [Espírito]...” (1Pe 3.18),
sublinha o papel do Espírito na ressurreição.
Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos no poder do Espírito —
“pela glória do Pai” (Rm 6.4). Paulo tem em vista a transformação
radical da própria natureza física de Jesus Cristo. Ela se tornou um
corpo de glória (Fp 3.21). O corpo da ressurreição pode ser identificado
com o corpo que morreu, mas certamente não é idêntico em
propriedades, como é óbvio à luz do comportamento do corpo de nosso
Senhor após a ressurreição. Seus atributos se contrastam fortemente
com seus atributos anteriores; ele é poderoso e não mais frágil e sujeito
à morte. É um corpo espiritual, que foi introduzido e apropriado ao
senhorio do Espírito. Tal é a plenitude do Espírito em Jesus na
ressurreição, que Paulo pôde dizer que “o último Adão [tornou-se] um
espírito vivificante” (1Co 15.45).
Esta última afirmação, “o último Adão [tornou-se] um espírito
vivificante” (1Co 15.45), é tão significativa quanto extraordinária. Aqui
nossas versões [brasileiras] podem fazer-nos errar, pois “espírito”, neste
contexto, provavelmente se refira ao Espírito Santo e deveria ser [E]
maiúsculo.[39] Cristo, em sua ascensão, chegou a uma posse tão
completa do Espírito que o havia sustentado através de seu ministério
que, economicamente, o Cristo ressurreto e o Espírito são um para nós.
Para nós, ele é alter Christus, outro Cristo; ministerialmente, ele é
deveras allos [outro] paraklētos.
Aqui, Paulo está explicando a natureza da ressurreição do corpo. A
ressurreição do corpo de Jesus Cristo são as primícias e o protótipo de
uma nova humanidade. Não só isso, mas Cristo, como o Espírito
vivificante, é a fonte da existência de nossa ressurreição. Ele gera vida
adaptada ao Espírito. Entretanto, ele diz ainda muito mais: Cristo,
como “Filho de Deus em poder” (para contrastar o “Filho de Deus em
fraqueza”) tornou-se Espírito vivificante.
Certamente não podemos considerar isso como uma afirmação
equivalente à fusão ontológica (ou, seja, uma negação da distinção na
existência pessoal entre o Filho e o Espírito). Paulo emprega
constantemente uma formulação trinitária ao descrever a obra de Deus,
e reconhece a permanência da distinção das três pessoas (p. ex., Rm
8.14-17; 15.30; 2Co 13.13). Mas o conceito de Paulo quanto ao
relacionamento entre Jesus Cristo e o Espírito tem claros paralelos com
a ideia presente no testemunho joanino: o Filho e o Espírito
compartilham uma identidade de ministério. O Filho é paraklētos; o
Espírito é allos [outro] paraklētos. Ambos atuam como paraklētos, e
assim agem, sucessivamente, na esfera terrena, com o Espírito sendo
outro do mesmo gênero que o Filho (cf. Jo 14.16, onde “outro” [alllos]
certamente comunica a noção “outro do mesmo gênero”, mesmo quando
a distinção clássica entre allos e heteros nem sempre seja mantida).[40]
Portanto, ter o Espírito é ter Jesus Cristo; ter Jesus Cristo é ter o
Espírito. Não ter o Espírito de Jesus Cristo é privar-se de Jesus Cristo.
Ter o Espírito de Jesus Cristo é ser habitado por Jesus Cristo (Rm 8.9-
11). Não há clara distinção ontológica, mas equivalência econômica ou
funcional. Neste sentido, pela ressurreição e ascensão, Cristo “tornou-
se Espírito Vivificante”.
A explicação para isso se encontra numa notável afirmação
adicional: “Ora, o Senhor [o antecedente é ‘Cristo’, 2Co 3.17,18] é o
Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade. E todos nós,
com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do
Senhor, somos transformados de glória em glória, em sua própria
imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2Co 3.17-18).
Esta última frase, que traduzida literalmente seria “do Senhor que
é o Espírito”, traduz três palavras gregas: apo (de), kyriou (Senhor, caso
genitivo seguindo a preposição apo) e pneumatos (Espírito, também no
caso genitivo). A afirmação é suscetível a mais de uma interpretação:
(1) “do Espírito do Senhor”; (2) “do Senhor, que é o Espírito”; (3) “do
Senhor do Espírito”. A terceira opção pode, à primeira vista, aparentar
menos provável, mas é a tradução mais natural por ser suma e
teologicamente iluminadora. Paulo está, pois, dizendo que o Senhor
Jesus Cristo é o Senhor do Espírito. Não há confusão ontológica aqui,
mas uma equivalência econômica; nem há uma subordinação
ontológica; mas, ao contrário, uma plena intimidade de relacionamento
entre Jesus e o Espírito.
De fato, Paulo está ensinando que, através de sua vida e
ministério, Jesus tomou uma posse tão completa do Espírito, recebendo-
o e experimentando-o “sem limite” (Jo 3.34), que agora ele é o “Senhor”
do Espírito (2Co 3.18). Com respeito ao seu ministério econômico em
relação a nós, o Espírito foi “impresso” com o caráter de Jesus.[41] Isso
é, precisamente, o que significa Jesus haver enviado o Espírito como
allos paraklētos.
O grande teólogo holandês, Herman Bavinck, expressou esta ênfase
neotestamentária de maneira excelente:
“Este tomar posse do Espírito por parte de Cristo é uma apropriação tão
absoluta que o apóstolo Paulo pôde dizer dela em 2 Coríntios 3.17 que o
Senhor (ou, seja, Jesus Cristo como o Senhor exaltado) é o Espírito.
Naturalmente, Paulo não quer, com essa afirmação, obliterar a distinção entre
os dois, pois no versículo seguinte ele imediatamente fala novamente ‘do
Espírito do Senhor’ (ou, como expressa outra tradução, ‘do Senhor do
Espírito’). Mas o Espírito Santo veio a ser propriedade plenária de Jesus
Cristo, e foi, por assim dizer, absorvido em Cristo ou assimilado por ele. Pela
ressurreição e ascensão, Jesus Cristo se tornou o Espírito Vivificante (1Co
15.45). Ele está agora de posse dos sete Espíritos (ou, seja, o Espírito em sua
plenitude), como também está de posse das sete estrelas (Ap 3.1).[42]

As evidências mais claras desta identificação de ministérios se


encontram no Evangelho de João, particularmente no discurso de
despedida de Jesus Cristo. Não obstante, ali a identificação é
sublinhada para assegurar aos discípulos que o ministério do Espírito
permanece em plena continuidade com o do Filho. Como Jesus Cristo, o
paraklētos é enviado pelo Pai e procede do Pai. Jesus Cristo é a verdade;
o paraklētos é o Espírito da verdade que guia os cristãos à verdade (Jo
14.6, 17; 15.26; 16.13). Jesus Cristo é o mestre de seus discípulos
(14.23, 26); o Paraklētos vem para instrui-los ainda mais. Jesus Cristo é
a testemunha que Deus envia; o paraklētos é enviado ao mundo para ser
uma testemunha (18.37; 15.26). O mundo não conhece nem aceita a
Jesus Cristo (5.43; 12.48); igualmente o mundo não reconhece o
paraklētos (14.17). Em todos esses sentidos, o paraklētos é aquele que
“recebe o que pertence a Jesus Cristo” (cf. 16.14).
E assim, quando Jesus Cristo anuncia sua retirada dos discípulos,
porém lhes assegura que “voltará para eles” (14.18), ele não está
falando de sua ressurreição e reaparecimento (20.14, 19), nem de seu
antecipado regresso final, mas de sua “vinda” no dom do Espírito. Tão
plena é a união entre Jesus Cristo e o paraklētos, que a vinda deste é a
vinda do próprio Jesus Cristo no Espírito.
A importância disto se fará ainda mais clara quando voltarmos,
como ora o fazemos, a considerar o significado da vinda do Espírito no
Pentecostes.
O ministério do Espírito nesta crescente identificação com Jesus
Cristo é, em ordem, a seguinte: sendo “formado” como Espírito
messiânico pela vida e ministério de Jesus Cristo, ele pode vir a nós
assim qualificado para transformar-nos, tornando-nos “semelhantes a
Cristo”, outorgando-nos a graça de passarmos de um grau a outro de
glória (2Co 3.17-18). Essa é a função primordial do Espírito Santo na
vida do crente em Jesus Cristo.

[23] Basílio, On the Holy Spirit, 16.39.


[24] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 97. Uma notável exceção na teologia inglesa se encontra em John
Owen, Works, ed. W. H. Goold (Edinburgo: Johnstone & Hunter, 1850-53; repr. Londres:
Banner of Truth, 1965), vol. 3, pp. 152-188. Para uma recente reformulação deste tema,
ver G. F. Hawthorne, The Presence and the Power (Dallas, TX: Word, 1991).
[25] Isto foi particular e exaustivamente respondido por J. Gresham Machen em “The
Virgin Birth” (New York: Harper, 1930).
[26] A resposta veio particularmente de J. Gresham Machen, The Virgin Birth (Nova York:
Harper, 1930).
[27] Ver Irineu, Against Heresies, 3.16.2; 5.1.3. Tertuliano acusa os gnósticos
valentinianos de corromperem o texto. Ver On the Flesh of Christ, 19.24.
[28] E.g. T. F. Torrance, escrevendo na vigília de uma controvérsia sobre o Nascimento
Virginal. Scottish Bulletin of Evangelical Theology, 12.1 (primavera de 1994), pp. 8ss. Ele
dá prosseguimento à obra de Harnack e Peter Hofrichter.
[29] Kuyper, op. cit. pp. 81-82.
[30] João Calvino, The Gospel according to John, 1–10, tr. T. H. L. Parker, ed. D.W. e T. F.
Torrance (Edingurgo: St. Andrew Press, 1959), p. 20.
[31] Assim comenta J. Jeremias: “Dirigir-se Jesus a Deus como “meu Pai” é, pois, algo
novo” (The Prayers of Jesus [Londres, SCM Press, 1967], p. 57). Embora alguns eruditos se
expressem cautelosamente sobre algumas das conclusões de Jeremias, sua ênfase sobre a
radical distinção da intimidade a que Jesus dá expressão tem sólido fundamento.
[32] Irineu, Against Heresies, 2.22.4.
[33] Ver Números 4.3 e passim. Números 8.24 dá a idade como sendo vinte e cinco, mas
isso poderia indicar que algum tipo de período de aprendizagem precedia o pleno
exercício do serviço.
[34] Ver ª Feuillet, “Le symolisme de la Combe dans les récits évangéliques du baptême”
(Recherche de Sciences Religieuse 46 [1958], pp. 524-544).
[35] Geerhardus Vos, Biblical Theology (Grand Rapids, MI: Eeerdmans, 1948), p. 358.
[36] K. Rengstorf, em Theological Dictionary of the New Testament, ed. G. Kittel e G.
Friedrich, tr. G. W. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), vol. 1, p. 304.
[37] E.g. ª Bittlinger, Gifts and Graces (Londres: Hodder & Stoughton, 1967), pp. 48-50.
[38] Os comentários de Calvino são particularmente notáveis neste contexto: “O autor
agora mostra claramente como a morte de Cristo deve ser avaliada — não pelo prisma de
seu ato externo, mas do poder do Espírito” (Comentário a Hebreus, trad. Valter Graciano
Martins, Edições Parakletos, S. Paulo, 1997), p. 231.
[39] Ver H. N. Ridderbos, Paul: An Outline of his Theology, tr, J. R. de Witt (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1975), p. 88.Cf. Richard B. Gaffin, Jr., Perspectives on Pentecost
(Phillipsburg, NJ: Presbyterian & Reformed, 1979), pp. 18-19.
[40] A distinção clássica entre allos (distinção de indivíduos, não distinção em gênero) e
heteros (distinção em gênero) não é constantemente mantida no Novo Testamento; mas a
teologia desta seção requer que reconheçamos alguma nuança para allos neste contexto
particular.
[41] J. D. G. Dunn, Jesus and the Spirit (Londres: SCM Press, 1975), p. 322.
[42] H. Bavinck, Our Reasonable Faith, tr. H. Zylstra (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956),
p. 387.
3
O DOM DO ESPÍRITO
Durante o período entre sua ressurreição e sua ascensão, Jesus
continuou a instruir seus discípulos no poder do Espírito Santo (At 1.2).
Instruções lhes foram ministradas no período que seguiu imediatamente
a ascensão: “E, comendo com eles, determinou-lhes que não se
ausentassem de Jerusalém, mas esperassem a promessa do Pai... mas
vós sereis batizados com o Espírito Santo... mas recebereis poder, ao
descer sobre vós o Espírito Santo” (At 1.4-5, 8; cf. Lc 24.49). O
cumprimento destas promessas começou no Dia de Pentecostes. Mas, o
que está implícito no Pentecostes?
O Pentecostes marca publicamente a transição do antigo para o
novo pacto, e significa o começo do “agora” do dia da salvação (2Co
6.2). É o umbral do último dia e inaugura a nova era na qual a vida
escatológica do futuro invade a presente era ruim de uma maneira
proléptica. E assim, pela ótica neotestamentária, o “cumprimento [ou
‘fim’, ta telē] das eras raiou” (lit.) naqueles que, pelo dom do Espírito,
estão “em Cristo” (1Co 10.11). Portanto, aquilo que é “novo” no
ministério do novo pacto do Espírito se relaciona inextricavelmente com
a significação do evento do Pentecostes.
O Novo Testamento fornece dois liames distintos e maiores, ainda
que harmoniosos, de interpretação para os eventos do Pentecostes: o de
Lucas e o de João.

O Testemunho de Lucas
O Novo Testamento vê o Pentecostes, como vê o Calvário, como um
evento com significação multifacetada. Uma variedade de tributários da
teologia bíblica flui dele. O modo em que ele é entendido como um
aspecto da obra de Cristo é central à sua interpretação.
O relacionamento de Jesus com o Espírito em Lucas e Atos pode ser
traçado através dos três estágios que já analisamos. O primeiro estágio
está em sua concepção de Maria pelo poder do Espírito. O segundo
começa com seu batismo, quando recebeu a unção messiânica como o
novo Adão (cf. Lc 3.22-23 com 4.37), o Homem da era messiânica, cheio
do Espírito (Lc 4.1, 18-21). Ungido com o Espírito, ele andou por toda
parte fazendo o bem, ou, seja, proclamando que o reino está agora
presente, e revelando evidências de sua presença em suas obras
poderosas (cf. At 10.38). O terceiro estágio começou com sua
ressurreição e ascensão, quando ele foi batizado com água por João, e
ele mesmo é quem batizava com o Espírito Santo (Lc 3.16; At 1.5; 11.16)
e revestiu seus discípulos “com o poder do alto” (Lc 24.49). Aquele que
primeiro recebeu, ficou cheio do Espírito e foi sustentado por ele, então
entrou na nova era de relacionamento, em quem a promessa do Pai se
cumpriu (Lc 24.49), e agora possuía a prerrogativa de enviar o Espírito.

Espírito e Fogo
O batismo que Jesus recebeu no Jordão e o batismo que ele inicia no
Pentecostes são notavelmente diferentes, mas se relacionam
estreitamente. João anunciou que o batismo de Jesus seria com o
Espírito e com fogo, introduzindo a era messiânica através da
destruição cataclísmica.
Jesus entendeu que, ao conceder o Espírito a seu povo e introduzir a
nova era, ele mesmo experimentaria a realidade que seu batismo no
Jordão transmitiu, ou, seja, um batismo de fogo. Toda sua vida
emocional se engrenava a esse evento como suas próprias palavras
testificam: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem quisera que já
estivesse a arder. Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser
batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize” (Lc 12.49-
50). O que João Batista não conseguia entender claramente era que o
“fogo” do qual ele falava cairia sobre o próprio Messias, na solidão da
cruz. De fato, mais tarde João expressou sua dúvida sobre a significação
do ministério de Jesus, aparentemente por lhe faltar “fogo” (Lc 7.18-23).
As pesquisas de Lucas não eram insuficientes então, quando, em
seu registro das palavras pós-ressurreição de Jesus aos discípulos sobre
ser batizado com o Espírito Santo, ele não faz menção de fogo. Suas
chamas haviam sido exauridas em Cristo. Parte do simbolismo das
“línguas de fogo” que os discípulos viram no Dia de Pentecostes (At 2.3)
bem que poderia ser uma insinuação de que este é um batismo de poder
gracioso em vez de poder destrutivo, em virtude do juízo que Cristo
havia vicariamente suportado em sua paixão.[43]

Promessa Cumprida
Em seu sermão no Pentecostes, Simão Pedro nos faz momentaneamente
recuar aos eventos da história a fim de fornecer-nos um vislumbre de
uma transação entre o Pai e o Filho-Mediador com o fim de dar-nos
mais percepção do significado do Pentecostes: “Exaltado, pois, à destra
de Deus, tendo [Cristo] recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vedes e ouvis” (At 2.33).
Há nessa promessa dois aspectos. O dom do Espírito é um
elemento central no novo pacto, o qual Deus prometera dar a seu povo
(cf. Ez 36.27), e a essência interna da promessa dada a Abraão (cf. Gl
3.14). No entanto, outro aspecto emerge, pois o dom do Espírito foi
prometido a Cristo a fim de cumprir as promessas messiânicas: “assim
aspergirá muitas nações, e os reis fecharão suas bocas por causa dele...
Por isso eu lhe darei muitos como sua parte e com os poderosos
repartirá ele o despojo” (Is 52.15; 53.12). É pelo dom do Espírito a
Cristo, e a concessão do Espírito por Cristo, que se cumpriu a promessa
do Pai a seu Filho feita no Salmo 2.8: “Pede-me, e eu te darei as nações
por tua herança...”. O cumprimento da Grande Comissão se concretiza
no poder do Espírito. A súbita realidade revelada publicamente pelo
Pentecostes consiste em que o Cristo que subiu, e agora pedia ao Pai
que cumprisse sua promessa, recebeu o Espírito para seu povo e agora o
derramou sobre a igreja, para que a era messiânica iniciada na
ressurreição de Cristo pudesse alcançar, em seu fluxo, os que se unem a
ele pela participação no único Espírito. Portanto, a semente de Abraão
seria agora uma benção para todas as nações da terra (Gn 12.3; Gl
3.13-14).

Nova Criação
Os acompanhamentos físicos e visíveis da vinda do Espírito ajudam a
derramar mais luzes sobre sua significação multifacetada, visto que
levam os ecos de vários temas do Antigo Testamento. O “som como o
soprar de um vento violento” ecoa a imagem da poderosa operação do
ruach elohim da criação (Gn 1.2), sugerindo que o evento que estava por
acontecer marcava o início de uma nova ordem mundial.

Juízo Revertido
Na manhã do Pentecostes, os discípulos começaram a falar em outras
línguas para que os visitantes a Jerusalém ouvissem a mensagem do
evangelho em seu próprio idioma (At 2.4). A declaração de Lucas aqui é
acompanhada por uma “lista de nações” (At 2.8-12), justamente como
o registro de Gênesis, onde a linguagem humana foi confundida, é
acompanhado por uma “lista de nações” (Gn 10.1-32). Portanto, parte
da resposta à pergunta, “Que quer isto dizer?” (At 2.12), parece ser que
temos aqui o reverso de Babel, a fundação da comunidade dos
reconciliados. I. H. Marshall realçou que o número 120 (At 1.15) era o
número mínimo de homens requerido “para estabelecer uma
comunidade com seu próprio conselho”, de modo que esses primeiros
cristãos fossem capazes de “formar uma nova comunidade”.[44] No Dia
de Pentecostes, essa nova comunidade tornou-se a esfera na qual o
reverso escatológico dos efeitos do pecado começou a aparecer num
povo reconciliado, consistindo de judeus e gentios, possuindo um só
Senhor, uma só fé e um só batismo (Ef 4.1-6), unido pelo Espírito.
Os efeitos de Babel foram assim reprimidos. Agora a palavra da
reconciliação será pregada em muitos idiomas, já que os discípulos
receberam o poder prometido do Espírito que os capacitou a testificar de
Cristo por todo o mundo (Lc 24.48; At 1.4).
Há, contudo, outra dimensão para esse inusitado fenômeno de
falar em línguas, caso as línguas em pauta, aqui e na igreja de Corinto,
sejam da mesma natureza de línguas estrangeiras. Ao discutir a
questão do falar em línguas, em 1 Coríntios 14, Paulo cita Isaías 28.11-
12 (“Pelo que por lábios gaguejantes e por língua estranha falará o
Senhor a este povo, ao qual disse: Este é o descanso, dai descanso ao
cansado; e este é o refrigério; mas não quiseram ouvir”) e indica que
línguas constituem “um sinal”, não para os crentes, mas para os
incrédulos” (1Co 14.21-22).
O contexto destas palavras em Isaías é o da rejeição do pacto. Em
razão da imaturidade das disposições comportamentais de seu povo,
Deus falará numa pronúncia que não será bem-vinda: “Pelo que por
lábios gaguejantes e por língua estranha falará o Senhor a este povo”
(Is 28.11). Aqui, como em outra parte, o ouvir línguas estranhas é um
sinal do juízo prometido por Deus a seu povo pactual (cf. Dt 28.49; Jr
5.15), e indicação de que o reino está sendo tirado deles e dado a um
povo que produzirá fruto apropriado (Mt 21.43). O universalismo do
Pentecostes também tem seu lado escuro: Israel começou a
experimentar um endurecimento parcial até que a “plenitude” dos
gentios seja introduzida (Rm 11.25).

Pentecostes e Sinai
Até o primeiro século, tudo indica que o Dia do Pentecostes estava
associado à promulgação da lei no Sinai. Até o segundo século,
pensava-se que isso envolvera os setenta idiomas do mundo, e essa
tradição já era comum.[45] Mas, mesmo que essa associação no
judaísmo seja questionada, um Pentecostes-Sinaítico paralelo é
estabelecido no próprio Novo Testamento. A revelação de Deus a Moisés
no Sinai foi acompanhada por fogo, vento e um idioma divino (Hb
12.18-21). Moisés havia subido ao monte. Quando desceu, tinha em sua
posse os Dez Mandamentos, a lei de Deus. Cristo também recentemente
subira. No Pentecostes, ele desceu, não com a lei escrita em tábuas de
argila, mas com o dom de seu próprio Espírito para escrever a lei nos
corações dos crentes e com seu poder capacitá-los a cumprir as
demandas da lei. Assim, a promessa do novo pacto começa a cumprir-
se (cf. Jr 31.31-34; Rm 8.3-4; 2Co 3.7-11).

A Significação da Profecia
Na exposição que Pedro faz da significação dos acontecimentos do
Pentecostes, as palavras da profecia de Joel 2.28-32 são centrais:
“E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor,
que derramarei do meu Espírito sobre toda carne;
vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos jovens terão visões,
e sonharão vossos velhos;
até sobre meus servos e sobre minhas servas
derramarei do meu Espírito naqueles dias,
e profetizarão.” (At 2.17-18)

Tem-se provado que o termo “profecia” não é de fácil definição nos


estudos bíblicos.[46] Mas, o que é claro neste contexto, é que Pedro
entendeu o profetizar a que se refere Joel como se cumprindo no
fenômeno do falar em línguas de modo que o povo pudesse entender. E
assim Pedro considerava as línguas quando entendidas naturalmente
pelos ouvintes ou interpretadas para eles, como o equivalente funcional
de profecia.
O período do Espírito foi o cumprimento da profecia de Joel nos
últimos dias. O Dia do Senhor, há muito esperado, enfim chegara; os
poderes das eras vindouras enfim se concretizaram. O aspecto
característico disto era uma distinção na distribuição do Espírito. Agora
ele foi “derramado” por Cristo numa medida irrestrita, e distribuído
sem limitação geográfica e étnica, “sobre todo o povo”.
Implícito nisto está o princípio de que o caráter distintivo da
economia pactual mosaica, divinamente dado, porém temporariamente,
agora veio a ser obsoleto. Esse é o papel de Atos 2.17-18. No antigo
pacto, o efeito típico da vinda do Espírito era a profecia, com seus vários
modos de produção (cf. Nm 11.24-29; 1Sm 10.10-11). Para expressar
em termos gerais, ele só se limitava a uns poucos homens, quase que
exclusivamente. Agora, no novo pacto, as fronteiras da economia
mosaica, dentro das quais o Espírito se havia, de modo geral,
manifestado previamente, se tornaram obsoletas. Todos, filhos e filhas,
profetizam; os jovens têm visões; os idosos têm sonhos. Estes eram,
naturalmente, métodos de comunicar o conhecimento de Deus sob o
antigo pacto. Agora, em Cristo, as antigas distinções são anuladas.
Agora, todo o povo do Senhor possui o conhecimento de Deus
anteriormente experimentado só pelos profetas. Isso foi exatamente o
que Moisés mesmo esperara com anseio, ainda quando jamais pudesse
ser experimentado sob a economia mosaica: “Tomara todo o povo do
Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse seu Espírito” (Nm 11.29).
Agora se tornava realidade.
Quando visto dentro desta velha/nova perspectiva pactual, a
preocupação central aqui não está nos resultados específicos que tanto
fascinam a igreja contemporânea (p. ex., se as mulheres podem pregar
ou profetizar, ou se a profecia é um dom contínuo para a igreja em
todas as épocas etc.). Aqui, “profecia” é uma metonímia para a
participação do Espírito messiânico e a experiência do conhecimento do
Senhor, o qual só o Espírito de Deus pode dar (cf. 1Jo 2.20, 27). Já no
Antigo Testamento, o “homem do Espírito” era o profeta (Os 9.7); e, no
judaísmo desse período, “possuir o Espírito de Deus era ser profeta”.[47]
Aquilo que veio ao povo de modo geral, através dos canais oficiais na
economia mosaica (via profetas, sacerdotes e reis), agora pertence a
todo o povo do Senhor por Cristo, através de seu Espírito. Um status
(profeta) e relação (conhecimento íntimo, cf. Am 3.7) com Deus,
conhecidos em primeira mão somente pelos poucos sob o antigo pacto,
agora podiam ser desfrutados por todos.
Agora todos receberam a unção messiânica. Existe um sentido em
que a promessa do novo pacto se cumpre: “Não ensinará jamais cada
um a seu próximo, nem cada um a seu irmão, dizendo: Conhece ao
Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior
deles” (Jr 31.34). Jamais se ungirá um mediador humano requerido para
ensinar-nos a conhecer o Senhor; agora todos os que recebem o Espírito
de Jesus, o exaltado Profeta-Messias, participam da unção profética (cf.
1Jo 2.20, 27). Em Cristo, possuem o conhecimento pessoal e imediato de
Deus. Todos, neste sentido, são profetas, sacerdotes e reis.
O Pentecostes se dava no décimo quinto dia da Páscoa. Era a Festa
das Primícias, celebração e oferecimento da colheita (Êx 23.16; Lv
23.15-21). Há, pois, certa adequação no grande número e ampla
representatividade étnica de convertidos naquele dia — as primícias do
evangelho na nova era. Mas o Pentecostes era também, como já
notamos, crescentemente visto como uma comemoração da
promulgação da lei no Sinai. Apropriadamente para esse dia, a
exposição de Pedro indica que a economia peculiarmente mosaica se
tornou obsoleta. O fim da era mosaica e a pregação e recepção
universais do evangelho são dois lados da mesma moeda. A vinda do
Espírito marca o fim das limitações constituídas na transitoriedade da
economia mosaica, divinamente ordenada, e do começo da nova era.
O Pentecostes é assim retratado por Lucas como um evento de rica
significação na história da redenção. Justamente como no Calvário os
padrões e promessas veterotestamentários encontraram seu
cumprimento, o mesmo também se dá no Pentecostes.

O Testemunho de João
João registra um incidente ocorrido no dia da ressurreição que, depois
de séculos, tem causado considerável dificuldade aos intérpretes de seu
Evangelho. Jesus apareceu aos discípulos e disse:
“Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E,
havendo dito isto, soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se
de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são
retidos.”
(Jo 20.21-23).

Pentecostes Joanino?
Tem-se tornado comum falar deste incidente como o Pentecostes
Joanino, na suposição de que ele serve à mesma função na teologia de
João, como o Pentecostes, na teologia de Lucas. Isso implica que a
reconstrução histórica tem dado prioridade à exatidão histórica a tal
ponto que os acontecimentos podem ser radicalmente remodelados (ou
mesmo inventados de novo) para os propósitos da história. À maneira
de contraste, embora os escritos de Lucas tenham uma função teológica
definida, ele os apresenta como o fruto de pesquisa histórica (Lc 1.1-4).
É possível, pois, perceber a síntese no Evangelho de João como uma
peça de teologia funcional em vez de história? Bem fora do interesse
dogmático (i.e., as implicações para a doutrina da Escritura), há boas
razões para considerar estes incidentes como completamente distintos,
embora teologicamente relacionados, dos incidentes do Pentecostes. De
fato, o enfoque em João 20 é muito diferente daquele em Atos 1.
Dentro da estrutura joanina, a vinda do Espírito é dependente da
ascensão e exaltação de Cristo (Jo 14.16-17; 16.7). Na manhã da
ressurreição, Jesus indicara a Maria que a ascensão ainda não havia
ocorrido (Jo 20.17). Seria uma notável inconsistência no pensamento de
João se ele, no mesmo capítulo, retratasse os acontecimentos dessa
tarde como o envio prometido do Espírito.
O registro joanino sublinha duas coisas, em relação às quais os
atos de Jesus pareciam ser em grande escala simbólicos.[48]
(1) Jesus soprou sobre seus discípulos como Deus soprara o fôlego
de vida em Adão (Gn 2.7). O simbolismo é aquele do princípio de uma
nova criação. Aqui, apropriando-se de termos paulinos, o último Adão
agora vem a ser “o Espírito Vivificante” (escatológico).
(2) Jesus equipou os apóstolos com seu próprio Espírito para um
novo estágio de seu ministério no qual serviriam em sua ausência como
seus representantes ministeriais. Daí, o enfoque da narrativa está em
sua comissão para perdoar pecados (Jo 20.22-23; cf. Mt 16.19), mais do
que na vinda do Espírito na qual todo o povo de Deus seria participante.
Não obstante, implícito nisto está precisamente o cumprimento das
promessas do novo pacto e do dom universal do Espírito (Jr 31.33-34;
Ez 36.25-27).
Nesta conexão, a ausência de Tomé no grupo comissionado foi
reparada na semana seguinte (Jo 20.2-10) quando foi convidado a pôr
sua mão no lado ferido de Jesus, donde fluíram sangue e água,
provavelmente insinuando, como veremos, que o dom do Espírito
provinha de Jesus como o “exaltado” na crucifixão.

O Espírito e a Cruz
Entre outras passagens no Evangelho de João, as quais derramam luz
sobre o Pentecostes, particularmente significativas são as palavras de
João 7.37-39:
No último dia, o grande dia da festa,[49] levantou-se Jesus e exclamou: Se
alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim,[50] como diz a
Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com respeito
ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até esse
momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado.

A Festa dos Tabernáculos se constituía numa ocasião espetacular.


Suas cerimônias retrocediam à peregrinação no deserto e apontavam
para os dias do Messias quando a água vivificante de Deus seria
usufruída (Is 43.20; Ez 47.1) e o Espírito seria derramado (Ez 36.25-27).
A água era extraída do Poço de Siloé e derramada no altar do templo
todos os dias, exceto no último dia, como memorial das bençãos que
dera ao povo no deserto, quando Moisés extraíra água da rocha.
Através de Zacarias 9 a 14, o evento tornou-se associado ao triunfo
antecipado de Deus e a benção de Jerusalém, e apontava para o tempo
em que a grande profecia de Isaías se cumpriria:
“Eis que Deus é minha salvação;
confiarei e não temerei,
porque o Senhor Deus é minha força e meu cântico;
ele tornou-se minha salvação.
Vós com alegria tirareis águas das fontes da salvação.
Direis naquele dia:
Dai graças ao Senhor, invocai seu nome,
tornai manifestos seus feitos entre os povos,
relembrai que é excelso seu nome.
Cantai louvores ao Senhor,
porque fez coisas grandiosas;
saiba-se isto em toda a terra.
Exulta e jubila, ó habitante de Sião,
porque grande é o Santo de Israel no meio de ti.”
(Is 12.1-6)

No último dia da celebração (cf. Jo 7.37), a água cerimonial era


representada com um drama especial. Nessa ocasião, somente a
multidão festiva andava ao redor do altar sete vezes. Tudo indica que
foi nesse “grande dia da festa” que Jesus falou do dom do Espírito, sob a
forma de água viva.
Aqui nos deparamos com a notória dificuldade na interpretação de
João 7.37-39, realçada pelo problema da identificação da citação da
Escritura. Jesus falou do transbordamento das fontes de água viva,
“como diz a Escritura”. Contudo não se cita nenhum texto específico do
Antigo Testamento. A quê, pois, Jesus se refere?
Duas traduções e interpretações possíveis nos são franqueadas,
envolvendo diferentes pontuações do texto grego (não pontuado). A
escolhida entre elas envolve a pergunta: Significa que devemos entender
essas fontes a fluírem do interior do crente (o assim chamado ponto de
vista oriental que segue o texto NVI e a Orígenes e aos Pais Gregos), ou
do interior de Cristo (o ponto de vista ocidental que segue a NVI
(margem) e aos Pais Latinos)? Os intérpretes permanecem divididos.
Embora aqui seja impossível qualquer dogmatismo, o ponto de
vista teologicamente satisfatório é que Jesus mesmo é a fonte de água
viva, o cumprimento da rocha golpeada por Moisés no deserto (Êx 17.5-
6) de quem flui a água viva (cf. 1Co 10.4), e/ou o novo templo de Deus
divisado em Ezequiel 47, donde emana as águas. Se esse for o caso,
então o que está em pauta é o dom do Espírito emanando de Cristo para
seu povo. Portanto, dentro do contexto joanino, é através da morte de
Jesus que se entende o Espírito vindo para a igreja. Cristo crucificado
dará o Espírito. De seu lado flui tanto água como sangue; o sangue do
perdão; a água do Espírito. Só quando for crucificado é que ele poderá
dar o Espírito messiânico.
Esta nota está profundamente embutida na urdidura e textura da
cristologia de João, e dá a visão da tendência para double entendre
[duplo ouvir] que já observamos em seu escrito. No registro de João,
Jesus, o Messias, se torna Aquele que tem sede (cf. Jo 19.16) sob a
maldição do pacto divino (cf. Dt 38.48), de modo que, àqueles que
sentem sede, ele oferece o Espírito que estanca a sede (Jo 19.30). Além
disso, somente João é quem nota que, quando um dos soldados perfurou
o lado de Cristo, dali fluiu água e sangue (Jo 19.34; cf. 1Jo 5.6-8). A
morte de Cristo tem sido vista tanto como um sacrifício pelos pecados
quanto como o meio pelo qual a água da nova vida no Espírito flui para
nós.
Isso é exatamente o que foi enfatizado na primeira afirmação
editorial de João: literalmente, “o Espírito ainda não fora dado, visto
que Jesus não havia sido glorificado”.
Uma interpretação gramaticalmente horizontal destas palavras
seria exegeticamente impossível, visto que o evangelho já fala da pessoa
e ministério do Espírito (p. ex., 1.32-33). Além do mais, anterior à
glorificação de Jesus, o Espírito era tanto presente quanto conhecido (cf.
14.17: “Vós me conheceis, porque eu vivo convosco”). Portanto, a
afirmação deve conter significação econômica, não ontológica. O que
João pretende pode ser assim expresso: até a exaltação de Cristo, o
Espírito de Deus não podia ser recebido em sua identidade econômica
específica como o Espírito do Cristo que ascendeu. Por meio da
exaltação de Cristo (que para João parece incluir sua morte vitoriosa),
ele seria [recebido].
Uma nuança adicional deste mesmo ensino se encontra em João
14.17, quando Jesus diz que o Espírito da verdade está “com” os
discípulos, e mais tarde diz que estará “neles”. O que está em pauta não
é tanto uma distinção entre o Espírito apenas estando “com” os crentes
no antigo pacto, enquanto que no novo ele habita “neles”, embora esse
conceito conte com amplo apoio. Ao contrário, durante os dias de sua
humilhação, o Espírito de Cristo estava em Cristo; e, portanto, e neste
sentido, estava “com” os discípulos. Na exaltação, porém, Cristo
sopraria seu Espírito sobre os discípulos. Ele agora os habitaria em sua
identidade como o Espírito do exaltado Salvador. Aquele que estava
“com” eles, na presença de Cristo, então estaria “neles” como o Espírito
do Cristo encarnado e exaltado. O contraste é posto não tanto na
maneira de sua habitação, como na capacidade em que habita. A
doação do Espírito assim anuncia a exaltação divina de Cristo à destra
do Pai. É a expressão pública de sua coroação (Jesus está agora
“glorificado”). Tudo isso é retratado nos acontecimentos do Cenáculo.
O Evangelho de João exerce uma função explicitamente
evangelística (Jo 20.30-31). Parte de sua mensagem consiste em que o
Salvador crucificado em quem ele nos intima a crer também concede o
Espírito aos que nele confiam. Seu enfoque está no fundamento
teológico para a fé e recepção do Espírito, enquanto que o interesse de
Lucas está no desenvolvimento da forma histórico-redentiva da vinda
do Espírito. Portanto, é desnecessário recorrer a uma aglutinação dos
acontecimentos de João 20.30-31 com o Pentecostes a fim de interpretar
os testemunhos de Lucas e João.
Dentro deste contexto, o discurso em João 14 a 16 aponta para os
quatro aspectos do ministério do Espírito que derramam luz sobre quem
ele enviou e o que ele realizará.
Convicção e Conversão
Em seu sermão de despedida, Jesus fez uma predição adicional da
importância da vinda do Espírito: “Convém-vos que eu vá, porque, se eu
não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-
lo enviarei. Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça
e do juízo; do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou
para o Pai, e não me vereis mais; do juízo, porque o príncipe deste
mundo já está julgado” (Jo 16.7-11).
A aplicação imediata destas palavras à igreja contemporânea
destrói sua significação. Na primeira instância, antecipam um evento
específico na história da redenção, ou, seja, “quando ele [o Espírito]
vier”. As palavras de Jesus não devem ser aplicadas à nossa situação
contemporânea sem primeiro perguntar qual era sua significação para
os primeiros que as ouviram. São, de fato, uma profecia específica sobre
os eventos do Dia de Pentecostes e, consequentemente, são correlatas à
afirmação editorial de João 7.39. Lendo-as numa forma
descontextualizada (“O que estes versículos nos falam sobre nossa
experiência?”), deixa de levar em contra seu enfoque fundamentalmente
cristocêntrico e histórico-redentivo. A vinda do Espírito e a convicção
que ele produz se relacionam diretamente com o status de Cristo que
está revelado nela.
Há uma íntima relação entre a promessa de João 16.8-11 e os
acontecimentos descritos em Atos 2.22-24. Ali, no primeiro sermão de
Pedro, ele deu testemunho da exaltação de Cristo, verdade essa que,
pela obra do Espírito no coração dos ouvintes, os convence de seu
pecado (“vós... o matastes”); e da justiça de Cristo (“mas Deus o
ressuscitará dos mortos”; cf. At 3.13-16); e do juízo, já que a
ressurreição dos mortos, considerada como a condenação do príncipe
das trevas e da morte e o precursor do Dia do Senhor e do juízo final,
aconteceu nele (“era impossível que a morte o retivesse”). Pedro vê a
vinda do Espírito não só como o cumprimento da profecia de Joel, mas
também como o cumprimento do Salmo 16.8-11 e Salmo 110.1, o qual
antecipa a exaltação do Senhor e o período seguinte quando seus
inimigos seriam subjugados diante dele.
O resultado da proclamação do exaltado Senhor pelo Espírito
capacitante ilustra o parâmetro esboçado em João 16.8-11:
“compungiu-se-lhes o coração e perguntaram: Que faremos, irmãos?”
(At 2.37). A obra do Espírito na convicção conduzia à conversão; e o
batismo ao arrependimento, à fé e ao perdão (“os que lhe aceitaram a
palavra foram batizados; havendo um acréscimo naquele dia de quase
três mil pessoas”, At 2.41).

Inspiração
A segunda chave de João 14 a 16 para a significação da vinda do
Espírito é conectada com a função dos apóstolos na redação das
Escrituras neotestamentárias.
Perguntaram a Jesus por que ele planejou revelar-se aos apóstolos
e não ao mundo (Jo 14.22). Sua resposta faz remontar seu próprio
ensino ao ensino do Pai, com isso enfatizando sua autoridade e origem
divinas e absolutas (Jo 14.23-24). Suas palavras equivalem a uma
reivindicação à inspiração divina de seu ensino. Esta inspiração,
acrescenta ele, não cessa com sua partida, pois, quando o Consolador
vier, “ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que
eu vos disse” (Jo 14.16).
A significação dessas palavras é também comumente destruída
quando recebe aplicação imediata aos cristãos contemporâneos. A
verdade, porém, é que constituíam uma promessa específica aos
apóstolos que encontraram seu cumprimento na composição das
Escrituras neotestamentárias. Os Evangelhos contêm as memórias do
que Jesus havia dito e ensinado; nas cartas encontramos mais
iluminação que receberam através do Espírito Santo. Portanto, quando
Jesus mais tarde falou que o testemunho deles seria o do Espírito (“o
Consolador... testificará de mim. E vós também testificareis...”, Jo
15.26-27), o exemplo permanente dessa atividade conjunta se encontra
nas páginas do Novo Testamento, o qual é obra do Espírito e,
simultaneamente, também o testemunho dos apóstolos. Além do mais,
em João 16.13-14, a promessa de que o Espírito “dirá tudo o que tiver
ouvido, e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará
porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar” encerra a
formação das Escrituras neotestamentárias em ambos os seus aspectos:
profético e plenitude cristológica.
Não há dúvida de que essas palavras possuem uma significação
contínua para os cristãos de hoje, mas não na maneira direta em que
são às vezes entendidas (o Espírito me guiará a toda a verdade de uma
maneira imediata). Ao contrário, elas indicam que é por meio do
testemunho apostólico (agora escrito no Novo Testamento), não por
meio de revelação direta dada pelo Espírito aos crentes individualmente
ou por meio de revelação corporativa para instruir os oficiais
(reivindicação que foi desenvolvida no magisterium da igreja romana)
que se fazem conhecer a pessoa de Cristo, seu ensino e seus propósitos
futuros.

Comunhão
A vinda do Espírito inaugura a comunhão com Cristo na qual o Espírito
que habita Cristo agora habita com e nos crentes. Este elemento é
realçado no discurso de despedida, quando Jesus promete aos discípulos
“outro Consolador” que seria seu equivalente econômico, já que ele é
seu próprio Espírito. Jesus mesmo voltará para eles (Jo 14.18), não só
na ressurreição, mas nesta nova forma.
Esta perspectiva ilumina a força do que está expresso em João 16.7:
“Mas eu vos digo a verdade: Convém-vos que eu vá, porque, se eu não
for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo
enviarei.” A vinda do Espírito equivale ao habitar de Jesus. Isto é para o
bem dos discípulos, já que implica uma união tão estreita com Cristo,
que ele habita neles, não simplesmente com eles. Eis a razão por que
Jesus explica assim a significação da vinda do Espírito: “Naquele dia
[i.e., o Dia em que o Pai lhes dará outro Consolador = o Dia de
Pentecostes] vós conhecereis que [a] eu estou em meu Pai e [b] vós em
mim e [c] eu em vós” (Jo 14.20). A união trinitária e a comunhão do Pai
e do Filho no Espírito constituem a analogia para a união e comunhão
entre Cristo e seu povo.
Já vimos a mesma questão formulada por Paulo em 1 Coríntios
15.45. Cristo se tornou “Espírito Vivificante”. Ter o Espírito equivale a
— aliás o próprio modo de — ter o Cristo encarnado, obediente,
crucificado, ressurreto e exaltado nos habitando, para que sejamos
unidos a ele como ele é unido ao Pai.
É neste sentido que João vê a diferença que o Pentecostes faz no
ministério do Espírito. Agora, como o vínculo de união com Deus, o
Espírito habita todos os que creem nele como o Espírito do Senhor Jesus
Cristo. Este é um desenvolvimento de proporções notáveis. O Espírito
que estava presente e ativo na concepção de Cristo como o líder da nova
criação, por quem foi ungido no batismo (Jo 1.32-34), que o dirigia em
todas as suas tentações (Mt 4.1), capacitando-o em seus milagres (Lc
11.20), comunicando-lhe energia em seu sacrifício (Hb 9.14) e
defendendo-o em sua ressurreição (1Tm 3.16; Rm 1.4), agora habita os
discípulos nesta identidade específica. Este é o significado das palavras
de nosso Senhor, de outra forma vem a ser impossível de compreender:
“Convém-vos que eu vá” (Jo 16.7).
A profunda implicação experiencial disto é sumariada por
Abraham Kuyper: “O de que uma alma redimida necessita é de
santidade humana.” Santidade angélica não serviria para o homem
caído. Se é para sermos santos, tal santidade tem que ser operada em
nossa humanidade. Isso é o que Cristo realizou. E agora o Espírito, de
sua união com o Filho encarnado, traz esses recursos para afetar as
vidas dos crentes. Em virtude de seu ministério em Cristo, ele pode
agora habitar-nos para reproduzir a mesma santidade em nossas vidas.
E assim, acrescenta Kuyper: O Espírito Santo encontra esta santa
disposição em sua forma requerida, não no Pai, nem nele mesmo, mas
no Emanuel que, como o Filho de Deus e o Filho do homem, possui
santidade nessa forma peculiar.”[51]
Jesus mesmo expressa este ministério do Espírito laconicamente
quando diz: “Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e
vo-lo há de anunciar” (Jo 16.14). Em certo sentido, os vários aspectos
da implicação da redenção são simplesmente respostas bíblicas
adicionais à pergunta: como o Espírito realiza esta obra?

Processão
Ao discutirmos a revelação do Espírito no antigo pacto, notamos que é
inevitável na revelação progressiva, histórica e cristocêntrica que só na
vinda do Filho é que o Espírito (tanto quanto o Pai, Jo 14.9) se revelou
plenamente. Portanto, esperaríamos que, na vinda do Filho, o
relacionamento do Espírito com o Pai e com o Filho também fosse mais
claramente desvendado.
Em seu discurso de despedida, Jesus envia o Espírito “da parte do
Pai” (para tou patros) como aquele que “sai do [“procede do”] Pai” (ho
para tou patros ekporeuetai, Jo 15.26). Esta afirmação tem como alvo a
significação trinitária do Pentecostes. Embora seja Jesus quem envia o
Espírito, isso ocorre em resposta ao seu pedido para que o Pai o faça
(14.16, 26). Portanto, o Espírito é enviado pelo Pai e pelo Filho como
Mediador. Há uma dupla fonte para sua missão. Ele “avança” para ela
“da parte do Pai e da parte do Filho”. Em termos da Trindade
econômica, podemos, portanto, falar de um “duplo envio”.
A igreja cristã logo conseguiu geral concordância sobre este ponto.
Mas suscita-se a pergunta: Esta mesma estrutura relacional caracteriza
as relações essenciais e íntimas das pessoas na Deidade?
Este, naturalmente, é o maior problema teológico que chegou a
dividir as Igrejas Oriental e Ocidental desde o tempo do Grande Cisma
em 1054.[52]
A baliza das Confissões Cristãs de Nicéia (325) e Constantinopla
(381) afirmava que a processão do Espírito era do Pai. Embora vários
modos de descrever sua relação com o Filho eram informalmente
empregados, a definição desta relação não foi considerada pela igreja
universal como um resultado passageiro. H. B. Swete habilmente
sumaria a situação na aurora do quarto século:
A Igreja passou a buscar uma resposta às perguntas: “Donde vem o Espírito:
de Deus e de Cristo? Como ele se relaciona com o Pai? Como se relaciona com
o Filho? Na África do norte e Alexandria, a resposta já havia sido dada: “Ele
procede do Pai; ele existe através do Filho”. Mas nenhuma igreja, nem mestre
individualmente se havia aventurado a dizer: “Ele procede de ambos”. Em
contrapartida, tampouco ouvimos mesmo o mais leve sussurro em resposta:
“Ele procede do Pai, e tão-somente do Pai”.[53]

Não obstante, paulatinamente desenvolveu-se entre os cristãos de


tradição latina a ideia de uma “dupla processão”. Na época do Terceiro
Concílio de Toledo (589), a fórmula corrente entre os cristãos ocidentais
era entesourada na confissão em forma de credo, de modo que se
confessa que o Espírito procedia a Patre Filioque (do Pai e do Filho).
Esse era o ponto de vista que havia sido favorecido por Agostinho,
oriundo de sua compreensão da essência de Deus como amor.[54] O
Espírito procedeu do amor mútuo entre Pai e Filho, e ele mesmo era esse
amor, e portanto o vínculo essencial entre Pai e Filho. Seu ponto de
vista quase tornou inevitavelmente a posição dominante entre os
cristãos ocidentais, embora a confissão do Filioque no uso litúrgico do
Credo não passasse sem contestação (p. ex., pelo Papa Leo III). Mais
tarde, depois do Grande Cisma, o Concílio de Florença, no século
quinze, sustentou que a doutrina do Filioque era integral ao
pensamento trinitário correto, em vista do fato que a única distinção
teológica legítima entre Pai e Filho era a paternidade do primeiro e a
filiação do segundo. O Decreto do Concílio para os gregos (1439)
expressou isto nos seguintes termos:
Visto que o Pai, através de geração, deu ao Filho unigênito tudo o que
pertence ao Pai, exceto ser Pai, o Filho tem também, eternamente, da parte do
Pai, de quem eternamente nasceu, que o Espírito Santo proceda do Filho.[55]

No oriente, contudo, a cláusula sobre o Filioque foi rejeitada sobre


bases tanto eclesiásticas quanto teológicas. Ela jamais contou com o
apoio de um concílio ecumênico. Mas, para os teólogos orientais
fundamentalistas, ela parece ameaçar a unidade da Trindade,
postulando duas fontes para o Espírito, a saber, o Pai e o Filho. Tal
acusação, expressa de uma maneira particularmente veemente por
Photius (820-91), o Patriarca de Constantinopla (858-67 e 880-86),
não levou em conta a insistência ocidental de que a processão do
Espírito era do Pai e do Filho como um. Aliás, embora Agostinho
concorde que a processão era a Patre Filioque, ele mantinha que o
Espírito procede principalmente do Pai.[56]
Além disso, não obstante, a Igreja Ocidental era profundamente
suspeita na maneira como o Filioque parecia fornecer um suporte
teológico à supremacia papal — suspeita essa não destituída de
fundamento à luz da história. O ponto de vista de que o Filho era a
fonte do Espírito parecia aumentar mais o status do Vigário de Cristo.
[57]
Falando em termos gerais, o cristianismo protestante
contemporâneo tende a ficar impaciente com questões teológicas sutis e
distinções tais como esta. Além disso, muitos exegetas modernos
sustentam que a posição “ocidental” radicava-se numa exegese frágil,
extraindo a processão ontológica das afirmações neotestamentárias que
refletem apenas a missão temporária do Espírito.
Não obstante, os teólogos ocidentais estavam certos? É uma pena
que a Igreja Ocidental tenha adotado a forma do credo que não contava
com a adoção do Oriente, embora para mitigá-lo seja preciso lembrar-
se de que a teologia cristã começou a desenvolver-se em duas tradições
separadas geográfica e linguisticamente. A cláusula do Filioque não foi
tanto a causa quanto a ocasião do cisma.
Em virtude das barreiras geográficas e idiomáticas, talvez seja
inevitável que até certo ponto as duas tradições tendiam a falar uma à
outra sobre o resultado em termos de passado, sem reconhecer
adequadamente diferenças pressuposicionais. Isso foi especialmente
evidente na preocupação dos teólogos orientais — que uma dupla
processão ameaçava a unidade da Deidade. Os teólogos orientais
estavam pesadamente comprometidos com o ponto de vista da Trindade
no qual o Pai era visto como a fonte mestra da divindade de toda a
Deidade (e, portanto da divindade tanto do Filho quanto do Espírito) e o
único guardião da unidade da Trindade. A cláusula do Filioque punha
em risco este princípio de uma maneira prima facie. Em contrapartida,
tudo indica que a teologia ocidental não possuía consistência suficiente
para reconhecer o problema. Não chegara ainda o tempo quando
Calvino exporia o cerne da diferença. Ele afirmou que o Filho (e por
implicação o Espírito) possuía divindade não derivada. Ele é autotheos.
No que tange às relações, existe mutualidade: Filho e Pai são noções
mutuamente dependentes. Mas cada pessoa da Deidade compartilha de
uma e a mesma divindade não derivada. Não há espaço para atribuição
de origem de divindade, assim como não há espaço para
subordinacionismo de natureza essencial.
O ponto de vista oriental, à maneira de contraste, contém em si
mesmo uma tendência inerente para subordinacionismo na maneira em
que ele vê a divindade de ambos, Filho e Espírito, como derivada do Pai.
Nesse contexto, a dupla processão aparece como uma ameaça à
unidade da Deidade.
De modo inverso, a doutrina da dupla processão parece fornecer
uma dupla vantagem teológica. Ela sublinha o princípio de que Deus é,
em seu próprio ser, o que ele revela ser em si mesmo, de modo que a
Trindade econômica é um genuíno, por mais acomodada que ela seja,
reflexo da Trindade ontológica. Ela também indica uma relação entre o
Filho e o Espírito que é mais do que econômica (justamente como as
ideias da geração do Filho pelo Pai, e a processão do Espírito do Pai,
indica a natureza da relação entre o Pai e ambos, Filho e Espírito).
Não obstante, o ponto de vista ocidental encontra algum apoio
direto da Escritura? Como já observamos, neste aspecto o consenso da
erudição neotestamentária moderna se inclina a uma resposta negativa.
Aqui, a crux interpretum é geralmente vista como estando em João
15.26. O consenso moderno consiste em que isto tem referência à
atividade econômica do Espírito.
O seguinte raciocínio representa o ponto de vista agostiniano,
como aquele que introduziu-se na igreja com refinamentos mais
recentes (p. ex., em Anselmo de Canterbury e Tomás de Aquino):[58]
(1) O Pai envia o Espírito no nome do Filho (Jo 14.26); o Filho
também envia o Espírito no nome do Pai (“da parte do Pai”, Jo 15.26).
Portanto, o Espírito vem no (único) nome de ambos, Pai e Filho. Embora
este envio do Espírito seja econômico, ele está radicado nas relações
pessoais e ontológicas da Trindade (“Pai” e “Filho” sendo vistos como
mais do que nomenclatura meramente econômica).
O Filho envia o Espírito da parte do Pai. O Espírito que é assim
“enviado” da parte do Pai “procede” ou “sai” (ekporeuomai) do Pai (Jo
15.26).
Se estas duas ideias (ser enviado e proceder) pertencem à mesma
ordem de realidade, certa redundância parece estar vinculada a esta
afirmação. Além do mais, uma clara distinção de sentidos é evidente
nestas palavras: Jesus enviará (pempsō, tempo futuro); o Espírito
procede (ekporeuomai, tempo presente contínuo). Isto pressupõe que há
uma distinção entre o enviar e o proceder, e não só no sentido em que o
que é “passivo” com respeito ao enviar é “ativo” com respeito ao
proceder. O enviar é uma ocorrência futura específica (e se cumpre no
Pentecostes); o proceder, contudo, parece ser constantemente veraz no
tocante ao Espírito. Proceder do Pai constitui sua natureza.
É axiomático para a integridade da teologia que Deus é como ele se
revela ser. O envio do Espírito pelo Pai em algum sentido reflete a
processão do Espírito do Pai. Não fica implícito que o envio do Espírito
pelo Filho reflita sua processão do Filho?
(2) O Espírito é o Espírito do Pai, visto que ele procede dele. Lemos
também que ele é o Espírito do Filho (Gl 4.6), a quem o Pai enviou como
enviou o próprio Filho. Como o Espírito é “do” Pai ontologicamente,
antes de ser enviado pelo Pai economicamente, devemos também pensar
nele como “do Filho tanto ontologicamente quanto economicamente?
Do contrário, o que se pretende com o Espírito sonda as profundezas de
Deus para fazê-lo plenamente conhecido a nós (cf. 1Co 2.10-13)?
(3) Não é uma consideração sem importância que sem o Filioque
não temos conhecimento da relação tanto ontológica quanto econômica
do Pai com o Filho e com o Espírito, mas só conhecimento da relação
econômica entre o Filho e o Espírito. Isso deixaria uma lacuna prima
facie em nosso conhecimento de Deus como ele é em si mesmo, e uma
área do conhecimento de Deus à qual não pertence o princípio de que
ele é como se revela ser. E resulta um agnosticismo em relação ao ser
real de Deus.
Se as relações econômicas da Trindade iluminam as relações
ontológicas dentro da Trindade (que é o caso em todo o NT), então,
visto que o Espírito procede, em sua missão, de ambos, o Pai e o Filho, é
apropriado pensar nele como procedendo pessoalmente, dentro da
Deidade (ontologicamente, neste sentido), de ambos, o Pai e o Filho.
Se inquirirmos mais o que significa a processão do Espírito e como
ela se distingue da relação do Filho com o Pai, poderíamos sentir-nos
incapazes de uma resposta plenamente satisfatória (e certamente uma
resposta abrangente). Oportunamente, isto, acoplado com perguntas
tais como “Donde o Espírito procede eternamente?”, tem sido
considerado como um reductio ad absurdum da posição clássica
ocidental. Mas não precisamos preocupar-nos com isso. A “processão”
pessoal ou ontológica do Espírito, do Pai, pode com plena aceitação ser
vista como “ao Filho” e semelhantemente “do Filho” ao Pai. Neste
sentido geral podemos concordar com Agostinho de que o Espírito é o
vínculo de amor entre eles.[59] Sua relação mútua é distinta; no entanto
ambas experimentam o Espírito em comum, em mútua união e
comunhão. Essa é precisamente a implicação da analogia de Jesus entre
a união do Pai e o Filho, e a união do Filho e os crentes (cf. Jo 14.20;
17.20-23) — o mesmo Espírito é comum a ambas.
Portanto, o mistério do ministério do Espírito aponta para a glória
da comunhão do cristão com Deus. Nossa comunhão no Espírito é com
o Pai e com o Filho (1Jo 1.3).[60]

[43] I. H. Marshall, “The Significance of Pentecost”, Scottish Journal of Theology 30


(1977), p. 351 (contra J. D. G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit [Londres: SCM Press,
1970], pp. 42ss.), considera tal ponto de vista como “improvável”, argumentando que
fogo é simplesmente o símbolo do qual o Espírito é a realidade, ou, seja, poder. Mas a
citação virtual de Lucas 3.16 em Atos 1.5 sugere que a ausência de qualquer referência a
fogo é mais significativa do que incidental.
[44] I. H. Marshall, The Acts of the Apostles, Tyndale New Testament Commentary
(Leicester: Inter-Varsity Press, 1980), p. 64. Embora ele não encontre evidência explícita
no próprio texto para o contraste com Babel, em razão da presença da tábua das nações e
o fenômeno da linguagem que Lucas registra, é difícil resistir a conclusão de que o
Pentecostes seja um evento de proporções universais que tem paralelo e é posto em
antítese com Babel. Ver especialmente J. g. Davies, ‘pentecost and Glossolalia’, Journal
of Theological Studies, nova série, 5 (1952), pp. 228-231.
[45] Ver B. Lindars, New Testament Aplogetic (Londres: SCM, 1961), p. 44; J. Dupont,
“Ascension du Christ et don de l’Esprit dá après Acters 2.33”, em B. Lindars e S. Smelley
(eds.), Christ and Spirit in the New Testament (Londres: Cambridge University Press,
1973), pp. 219-228. Cf. J. D. G. Dunn, Jesus and the Spirit (Londres: SCM Press, 1975),
pp. 48-49.
[46] Ver especialmente D. E. Aune, Prophecy in Early Christianity and the Ancient
Mediterranean World (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1983); W. ª Grudem, The Gift of
Prophecy in 1 Corinthians (Lanham, MD: University Press of America, 1982); D. Hill, New
Testament Prophecy (Londres: Marshalls, 1979); J. Panagopoulos (ed.), Prophetic Vocation
in the New Testament and Today (Novum Testamentum Supplement 45; Leiden: abril,
1977).
[47] J. Jeremias, New Testament Theology, tr. J. Bowden (Londres: SCM Press, 1971), vol.
1, p. 78.
[48] Provavelmente aqui se devesse reconhecer que o conceito de que o ato de Jesus
soprar sobre os discípulos é apenas simbólico, defendido por Teodoro de Mopsuestia (c.
350–428), foi condenado pelo Concílio de Constantinopla em 553!
[49] Esta era a festa dos tabernáculos, que celebrava a colheita e a bondade de Deus
durante as peregrinações no deserto. Durante os sete dias da festa, o povo vivia em
cabanas de folhas, daí o nome.
[50] Ver NVI, margem, para o texto de João 7.37b-38a.
[51] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 461.
[52] Para a discussão da processão formulada dentro do contexto da doutrina da Trindade
como tal, ver o volume que acompanha esta série, Gerald Bray, The Doctrine of God
(Leicester: Inter-Varsity Press, 1993), pp. 153-196. Para um sumário anterior dos
resultados e argumentos, ver P. Schaff, History of the Christian Church, quarta edição
(repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1981), vol. IV, pp. 484-489. Muito da melhor obra
sobre a doutrina da Trindade em geral, e do Filioque em particular que este século teve,
em minha opinião, vem dos teólogos católico-romanos, e aqui se pode fazer menção do
excelente volume de autoria de Bertrand de Margerie, The Christian Trinity in History,
traduzido de La Trinité Chrétienne dans l’Histoire (1975), de E. J. Fortman (Petersham,
MA: St Bede’s Publications, 1982). Ver particularmente pp. 160-178 para sua discussão
sobre o Filioque.
[53] H. B. Swete, On the History of the Doctrine of the Procession of the Holy Spirit
(Cambridge: Deighton, Bell & Co., 1876), pp. 73-74.
[54] Ver Agostinho, On the Trinity, 15.17.29.
[55] Citado em J. Neuner e J. Dupois (eds.), The Christian Faith in the Doctrinal
Documents of the Catholic Church, ver. ed. (Nova York: Alba House, 1982), p. 110.
[56] Ver Agostinho, loc. cit.
[57] Insinuações disto podem ser encontradas em de Margerie, op. cit. p. 176.
[58] Ver, sobre ambos os lados da questão, Raymond E. Brown, Gospel according to John
(Londres: Chapman, 1971), vol. 2, p. 689; M–J. Lagrange, Evangile selon Saint Jean (1924;
Pais: Gabalda, 1948), p. 413.
[59] Ver Agostinho, loc. cit.
[60] Para uma nítida exposição deste tema, ver John Owen, Communion With God, in The
Works of John Owen (Edinburgo: Johnstone & Hunter, 1950-53; repr. Londres: Banner of
Truth, 1965), pp. 1–274.
4

PENTECOSTES HOJE?

A vinda do Espírito no Dia de Pentecostes deve ser interpretada, como


já vimos, como um evento cristológico, e sua significação
pneumatológica deve ser vista por esse prisma. Não obstante, fica uma
indagação: O Pentecostes contém implicações de continuidade para a
vida da igreja?
O Novo Testamento explora com certos detalhes a significação
existencial de todos os pontos focais na obra de Cristo, particularmente
sua morte, ressurreição e exaltação (cf. Rm 6.1-14; Gl 2.20; Cl 2.11–
3.4). O mesmo é verdade no que respeita ao notável acontecimento do
derramamento do Espírito: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos
batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer
livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1Co 12.13). Eis
uma linguagem idêntica àquela usada em outra parte do Pentecostes
(Lc 3.16 e paralelas; At 1.5; 11.16).
A afirmação de Paulo é todo-inclusiva e programática em seu
caráter. O que é verídico a respeito de Paulo e seus companheiros e,
presumivelmente, dos coríntios, presume-se ser verídico a respeito de
cada crente (é mediante o batismo do Espírito que somos introduzidos
no único corpo ao qual pertencem todos os crentes) e de todas
categorias de crentes (judeus, gregos, escravos, livres).
Aqui se suscitam diversas questões importantes, embora
controversiais — com significativas implicações para se construir uma
teologia da atual experiência que a igreja tem do Espírito:
(1) Qual é a relação entre o Pentecostes e as primeiras
experiências que os discípulos tiveram do Espírito?
(2) Qual é a relação entre o Pentecostes e as experiências do
Espírito registradas em Atos, que ocorreram em Samaria (At 8.4-25), no
lar de Cornélio (At 10.1-8) e em Éfeso (At 19.1-7 — na primeira e na
última das quais a vinda do Espírito parece sugerir que a conversão é
distinta da segunda experiência?).
(3) Qual é a relação entre o Pentecostes e o batismo do Espírito de
que fala Paulo em 1 Coríntios 12.13?
(4) Que elementos do Pentecostes, se é que eles existem, são
permanentes, e que elementos podem ser vistos como possíveis de
repetição ou mesmo normativos na experiência da igreja?

O Pentecostes e os Discípulos
Os discípulos que se reuniram após a ressurreição de Jesus eram crentes
genuínos (cf. Mt 16.15-20); já se achavam “purificados” e unidos a
Cristo (Jo 15.1-11). Por implicação, esse é o fruto da obra do Espírito
em suas vidas. Evidentemente, porém, não tinham ainda recebido o
batismo do Espírito que fora prometido (At 1.5). Sua experiência do
Espírito era progressiva em seu caráter.
Entretanto, não é possível argumentar partindo desta premissa
para a conclusão de que a experiência dos discípulos é paradigmática
para a igreja, pela óbvia razão de que unicamente eles abarcam o
período de transição da fé do antigo e do novo pactos. Sua experiência é
uma encruzilhada e, consequentemente, atípica e sem paradigma em
sua natureza. Necessariamente, seu ingresso na plena medida do
ministério do Espírito ocorreu em dois estágios distintos, refletindo um
padrão de continuidade (o mesmo Espírito) e descontinuidade (somente
no Pentecostes ele chegou à sua capacidade e ministério como o Espírito
do Cristo exaltado). Este padrão está radicado na emergência da nova
era procedente da antiga. Portanto, há uma singularidade acerca da
experiência deles, assim como houve acerca da experiência de Jesus.

Cesareia, Samaria, Éfeso


Então, o que dizer da vinda do Espírito em Samaria (At 8.9-25), no lar
de Cornélio (At 10.44-48), e em Éfeso (At 19.1-7)?
O mais direto desses acontecimentos ocorreu no lar de Cornélio, e é
descrito em termos que ecoam o Pentecostes. Usa-se linguagem idêntica
em relação à vinda do Espírito: derramamento (At 2.17-18, 33; 10.45);
batismo (At 1.5; 11.16); e dom (At 2.38; 11.17). O fenômeno de falar em
outras línguas é reiterado (At 2.4; 10.6). Além do mais, Pedro vê
especificamente uma analogia entre os eventos: “Quando, porém,
comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre eles, como também sobre
nós no princípio. Então me lembrei da palavra do Senhor, como disse:
João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o
Espírito Santo. Pois se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos
outorgou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu para que
pudesse resistir a Deus?” (At 11.15-17).
A interpretação que Pedro faz deste incidente consiste em que, ao
pôr em prática o programa de Atos 1.8, a vinda do Espírito à casa de
Cornélio marca o ingresso do evangelho no mundo gentílico. Isso é
confirmado pela igreja de Jerusalém: “E, ouvindo eles estas coisas,
apaziguaram-se e glorificaram a Deus, dizendo: Logo, também aos
gentios foi por Deus concedido o arrependimento para vida” (At 11.18).
O evento é considerado como inusitado, programático, em vez de
paradigmático.
Não obstante, no caso dos samaritanos e dos efésios, parece ser um
segundo estágio distinto em sua experiência com o Espírito. Os
samaritanos “deram crédito a Filipe, que os evangelizava a respeito do
reino de Deus e do nome de Jesus Cristo”, e “eram batizados”, mas sua
experiência com o Espírito Santo só aconteceu quando Pedro e João
oraram em seu favor, “para que recebessem o Espírito Santo; porquanto
não havia ainda descido sobre nenhum deles, mas somente haviam sido
batizados no nome do Senhor Jesus. Então lhes impunham as mãos, e
receberam estes o Espírito Santo” (At 8.12, 15-17).
Mais tarde, Paulo perguntou aos efésios: “Recebestes, porventura,
o Espírito Santo quando crestes?” A resposta, neste último estágio da
narrativa de Atos, é surpreendente: “Pelo contrário, nem mesmo
ouvimos que existe o Espírito Santo.” Depois de lhes proclamar a Cristo,
“E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo; e
tanto falavam em línguas como profetizavam” (At 19.1-7).
Amiúde se argumenta, com base na experiência dos apóstolos no
Pentecostes, em Samaria e em Éfeso, se Lucas em Atos pressupõe um
modelo de acesso, em dois estágios, à posse da benção plena do
Espírito. Embora descritos de forma variada, esses estágios são
ordinariamente imaginados assim:
(1) Regeneração pelo Espírito (conversão e iniciação);
(2) Batismo com o Espírito.

E assim, em algum ponto durante o período descrito pelos


Evangelhos, os apóstolos foram regenerados. Mais tarde, no
Pentecostes, experimentaram uma nova operação do Espírito: foram
batizados e enchidos com o Espírito e falaram em outras línguas como
evidência desse novo estágio de sua atividade em suas vidas. Nisto,
alegam, devem ser vistos como modelos dos dois estágios do Espírito,
ou, pelo menos, de duas obras dimensionais, de um novo pacto.
Ao manter esta perspectiva, em Samaria e em Éfeso,
semelhantemente encontramos crentes (i.e., pessoas já regeneradas)
que ainda não haviam recebido (no sentido de ser batizado com) o
Espírito. Este segundo estágio é conceitualmente, e nestes casos
cronologicamente, separados e separáveis da regeneração.
Já vimos que, embora a experiência dos apóstolos,
indubitavelmente, constitua dois estágios em seu caráter, ela não é
paradigmática prima facie em sua natureza. Não obstante, não é o
padrão em dois estágios que mais tarde surge em Atos a indicar que tal
padrão era paradigmático, ou pelo menos comum, na igreja?
Um conceito de dois estágios da obra do Espírito é característico
não só nos pentecostais e carismáticos, mas também nas tradições
católicas. Nestas, o indivíduo é confirmado na comunhão do Espírito
pela imposição das mãos, geralmente no contexto de uma sucessão
apostólica quase física (cf. At 8.17; 19.6); naqueles, o batismo com o
Espírito, com sua comuníssima manifestação do dom de línguas, é visto
como um estágio adicional na experiência espiritual, distinto e
separável (ainda que não cronológica e necessariamente separado) da
conversão.
Nos Atos de Lucas, como já argumentamos, o Pentecostes é
retratado como um evento histórico-redentivo. Não carece que se
interprete primariamente como existencial e pneumatológico, mas como
escatológico e cristológico. Por sua própria natureza, ele faz parte do
caráter decisivo, uma vez para sempre, de todo o evento que envolve
Cristo (morte, ressurreição e ascensão de Jesus). Neste contexto, os Atos
dos Apóstolos é não tanto “os Atos do Espírito Santo”, mas “os Atos
[contínuos] de Jesus Cristo através do Espírito Santo” (sendo assim Atos
1.1-4 implicaria entender-se que o evento prometido em Atos 1.5 marca
uma nova época em tudo o que Jesus, pessoalmente, como o Senhor
exaltado, faria e ensinaria).
Interpretados dentro deste arcabouço — o qual o próprio Atos nos
fornece —, os eventos em Samaria e Cesareia marcam o segundo e
terceiro estágios dos três pontos decisivos do avanço na difusão do reino
de Cristo delineado em Atos 1.8:
(1) O evangelho vem a Jerusalém no Dia de Pentecostes.
(2) O evangelho vem a Samaria. Atos 8, com sua descrição do
notável despertar da fé através do ministério de Filipe, seguido pela
visita de Pedro e João como uma delegação apostólica (At 8.14) e a
subsequente concessão do Espírito, faz melhor sentido quando
entendido dentro do contexto dos estágios específicos do avanço do
evangelho apostólico prometido por Jesus. Por essa razão, embora seja
possível ser assim, não é necessário argumentar que os samaritanos
não eram ainda convertidos.[61]
(3) O evangelho vem a Cesareia como representante do mundo
gentílico (“os confins da terra”, At 1.8; cf. especialmente At 11.18). A
cobertura dada a este incidente em Atos (sessenta e seis versículos)
indica sua decisiva e programática importância para Lucas. O fato não
constitui meramente uma “narrativa de surpreendentes conversões”, um
paradigma para todas as épocas. Ao contrário, é um desenvolvimento
específico e estratégico em todo o programa missionário de Atos 1.8.
Os incidentes em Éfeso não pertencem à mesma ordem daqueles de
Samaria e Cesareia. O grupo que Paulo encontrou, descritos como
“alguns discípulos” (At 19.1), é deliberadamente apresentado como
idiossincrático e atípico. Lucas nos fornece uma série de sinais que
indicam que ele não via estes homens como cristãos, no sentido
neotestamentário:
(1) O incidente é posto dentro do contexto da compreensão
inadequada do evangelho que marcou o ministério inicial de Apolo;
Lucas menciona especificamente o fato que “ele só conhecia o batismo
de João” (At 18.25).[62]
(2) É possível que os que conheciam somente o batismo de João
constituíssem um grupo distinto em Éfeso; são descritos como “alguns
discípulos” num contexto em que havia a possibilidade de um maior
número de cristãos. Lucas afirma explicitamente que havia somente
doze homens no grupo. Enquanto se chamassem “discípulos”, seria
estúpido argumentar que, uma vez que em outro lugar isto descreve os
cristãos genuínos, então todos esses assim descritos também o eram. De
fato, tudo indica que esses, para todos os propósitos práticos, eram
discípulos de João Batista.
(3) Não haviam recebido o batismo cristão. Foi somente em
coordenação com seu último batismo cristão e a imposição das mãos é
que “o Espírito Santo veio sobre eles, e então falavam em línguas e
profetizavam” (At 10.6). As marcas do surgimento do novo pacto só
então se evidenciaram. Como os primeiros discípulos no Pentecostes,
muitos dos quais também haviam recebido o batismo de João, estes
doze homens se viam assim em transição da era da expectativa para a
era do cumprimento.
Às vezes argumenta-se contra a doutrina dos dois estágios,
dizendo que ela constitui um princípio hermenêutico básico de que não
devemos buscar extrair de Atos qualquer doutrina, justamente como
não devemos tentar fazê-lo dos livros dos Reis. Temos que achar
doutrina que já está formulada e ilustrada em outras partes das
narrativas históricas. Geralmente, este é um princípio valioso. A
estrutura da teologia cristã deve radicar-se na exposição e prescrição
teológicas da Escritura e não derivada dos incidentes históricos (os
quais, embora factuais, necessariamente não são normativos, e por sua
própria natureza podem requerer interpretação teológica ulterior).
Este princípio, porém (o qual, pela própria natureza, tem sido
energicamente contestado), neste caso não é relevante ao argumento.
Pois aqui a estrutura e fluxo teológicos de Atos indicam propriamente
que esses incidentes não devem ser tomados como paradigmáticos, mas,
cada um em seu próprio contexto, como sui generis.
Atos não nos apresenta os dois estágios na experiência dos
apóstolos como normativos para os futuros cristãos. Aqui a apologia de
Pedro em prol do incidente em Cesareia é iluminadora. Especificamente,
ele identifica a experiência na casa de Cornélio com a experiência dos
discípulos no Dia de Pentecostes (At 11.15: “caiu o Espírito Santo sobre
eles, como também sobre nós no princípio”) e interpreta o incidente
nestes termos: “Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos
outorgou quando cremos [pisteusasin; talvez seja melhor considerá-lo
como incentivo: ‘quando cremos’] no Senhor Jesus” (At 11.17). Embora
os discípulos sem dúvida cressem em Jesus antes do Pentecostes, o novo
e distintivo em sua fé era a natureza de seu objeto: enquanto
previamente a fé era correlata com Cristo nos dias de sua humilhação,
agora ela era correlata com o Cristo encarnado em seu novo status
como Senhor exaltado segundo a promessa messiânica (Sl 110.1).
O que, necessariamente, foi efetuado na experiência dos apóstolos
em dois estágios em virtude da própria natureza da história redentiva,
agora se torna uma realidade unificada na experiência de conversão dos
crentes. A fé salvífica é agora absolutamente correlata com Cristo como
Senhor. Assim sendo, crer é tomar posse do mesmo dom como os
primeiros discípulos receberam no Pentecostes, a saber, o Espírito
Santo. As línguas e profecias manifestadas em Atos 10.46, 19.6 e,
possivelmente, 8.17, não eram evidências de uma experiência
normativamente distinta e existencial, e sim sinais da introdução
histórico-redentiva na era do novo pacto, alcançando assim um clímax
muito mais significativo.
Portanto, a perspectiva do Novo Testamento não é que o
Pentecostes (ou o livro de Atos como um todo) nos forneça um
paradigma em dois estágios para a experiência pessoal do Espírito,
mas, antes, que em questão de fé participamos individualmente do
efeito do derramamento do Espírito no Pentecostes.
Abraham Kuyper nos apresenta uma analogia gráfica para ilustrar
a comparação entre a experiência do Espírito antes e depois do
Pentecostes, e para explicar o derramamento do Espírito no futuro. Em
virtude de todas as suas limitações, ele sublinha o fato que o
Pentecostes e os incidentes que o seguem exigem uma grade para serem
interpretados corretamente:
Suponha-se que uma cidade, cujos cidadãos por muito tempo têm bebido cada
um de sua própria cisterna, propõem-se construir um reservatório que supra
todos os lares. Quando o trabalho é completado, permite-se que a água corra
através do sistema de condutores e tubos e entre em cada casa... Suponha-se
que a cidade supramencionada consista de uma parte baixa e outra alta,
sendo ambas supridas pelo mesmo reservatório... a distribuição da água
ocorre de uma só vez, o que se dá com a abertura formal do sistema
hidráulico, o que pode se dar apenas uma vez; enquanto isso a distribuição da
água na parte superior da cidade, embora extraordinária, só pode acontecer
como um efeito posterior ao primeiro incidente... No Pentecostes, ele [o
Espírito] é derramado no corpo, mas somente para estancar a sede de uma
parte, a saber, dos judeus... daí haver um derramamento original em
Jerusalém, no Dia de Pentecostes, e um derramamento suplementar, em
Cesareia, para a parte gentílica da Igreja; ambos da mesma natureza, mas
cada um tendo seu próprio caráter especial. Além desses há alguns
derramamentos isolados do Espírito Santo, assistidos pela imposição das
mãos dos apóstolos... de tempo em tempo novas conexões são feitas entre
casas individuais e o reservatório da cidade, e assim novas partes do corpo de
Cristo eram acrescidas à igreja externa, sobre a qual o Espírito Santo era
derramado a partir do corpo para os novos membros...[63]

O que ocorreu em Samaria, na casa de Cornélio e em Éfeso, deve


ser interpretado em termos do cenário histórico único da igreja
primitiva. O Pentecostes não é “repetido”, assim como a morte e
ressurreição de Cristo não se repetem. Ao contrário, entramos nele de
tal maneira que o Espírito é derramado em nossos corações através da
fé em Cristo (cf. Rm 5.5). Assim cada um [ou cada uma] bebe do
Espírito, pessoalmente (1Co 12.13).
Isso torna tudo ainda mais claro quando vemos o Pentecostes como
um aspecto da obra de Cristo, não um incidente separado dela e em
adição a ela. É a manifestação visível de uma coroação. Os incidentes
do Dia de Pentecostes são as expressões públicas da realidade secreta
de que Cristo foi exaltado como o Senhor da glória e que seu pedido
messiânico pelo Espírito, feito como o Mediador em nosso favor, foi
concedido.
Como já vimos em parte, a afirmação de Pedro em Atos 2.33 chama
a atenção para este cumprimento da promessa messiânica do Salmo
2.6-8 (“Eu, porém, constituí meu Rei sobre meu santo monte Sião.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e as extremidades da
terra por tua possessão”). O Cristo que subiu agora faz este pedido,
solicitando que o Espírito realize o cumprimento da promessa que veio
em estágios (cf. Gl 3.13-14; Jr 31.31-6; Jo 14.16). O pedido de Cristo foi
atendido. O Pentecostes, como as manifestações visíveis de toda a
coroação, é por sua própria natureza sui generis. Não é mais repetível
como um evento assim com não o é a crucificação, a ressurreição, ou a
ascensão de nosso Senhor. É um evento na história da redenção
(historia salutis), e não deve ser incluído na grade da aplicação da
redenção (ordo salutis).
Portanto, a vinda do Espírito é a evidência da entronização de
Cristo, assim como a ressurreição é a evidência da eficácia e sua morte
como expiação (Rm 4.24). Não equivale dizer que o Pentecostes não tem
dimensão existencial ou relevância contemporânea. Mas significa que
não mais devamos antecipar um “Pentecostes pessoal”, como não
devemos experimentar um Jordão, um deserto, um Getsemani ou um
Gólgota pessoal. Embora tal linguagem às vezes tem sido popularmente
empregada, é teologicamente mal-entendida. O Pentecostes
propriamente dito não é mais repetível assim com não o é o é a
crucificação, ou o túmulo vazio, ou a ascensão. Não é correto presumir-
se que ele seja equivalente à produção de uma forma “pentecostal” da
massa medieval, repetindo o que não é repetível e, consequentemente,
diminuindo, se não realmente negando, sua verdadeira significação.[64]

Diferentes Batismos do Espírito?


Então, qual é a relação entre o batismo do Espírito descrito em Atos 2 e
o batismo do Espírito descrito por Paulo em 1 Coríntios 12.13?
O Novo Testamento sublinha enfaticamente o princípio de que a
crucificação, a ressurreição e a ascensão de Cristo conduzem a
profundas implicações para nossa presente experiência. Os crentes
participam das implicações de todos os eventos histórico-redentivos,
tais como a morte, sepultamento, ressurreição e reinado de Cristo (Rm
6.1-14.; Gl 2.20; Cl 2.9–3.4). Portanto, embora o Pentecostes tenha
também, uma vez por todas, em seu caráter implicações do batismo com
o Espírito, o qual ocorreu naquela ocasião, transbordaram as
ribanceiras daquele Dia e continuam a transbordar através dos séculos.
Assim como o sangue de Cristo purifica os homens e mulheres de cada
tribo, língua, povo e nação (Ap 5.9), assim o Espírito flui da ferida de
Cristo no Pentecostes de Jerusalém, e de lá se difunde por toda a Judeia,
reunindo multidões em Samaria e também até aos confins da terra (At
1.8). Todos quantos vêm a Jesus Cristo como Senhor, crendo, recebem o
mesmo dom como o receberam os discípulos. Consequentemente, os
crentes participam das implicações do Pentecostes, assim como
participam das implicações da morte, ressurreição e ascensão de Cristo:
“Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados [en heni pneumati...
ebaptisthēmen] em um corpo” (1Co 12.13).
Tem-se argumentado com frequência que aqui Paulo está falando
de um batismo com o Espírito distinto do batismo com o Espírito
profetizado por João e Jesus, e experimentado no Pentecostes. No último
batismo, Cristo é o batizador e o Espírito é o elemento; neste batismo, o
Espírito é o batizador e o corpo de Cristo é o objeto no qual somos
batizados. Mas, como observa James Dunn:
No NT, en com baptizein nunca designa aquele que efetua o batismo; ao
contrário, sempre indica o elemento no qual o batizando é imerso (ou com o
qual ele é submerso) — exceto, naturalmente, quando ele é parte de uma frase
mais completa...[65]

Seria contrário a uma interpretação natural ler as palavras em


outra parte usadas como descrição de Cristo batizando com o Espírito
no Pentecostes (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5; 11.16), como
se denotasse não meramente uma experiência cronologicamente
diferente, mas um batismo completamente diferente. A navalha de
Ockham às vezes é tão relevante na teologia bíblica como o era na
filosofia medieval!
Em 1 Coríntios 12.13, Paulo indica que todos os crentes são
batizados com o Espírito e bebem da água do Espírito. Os elementos do
evento do Pentecostes são assim reduplicados nos crentes de todos os
tempos. Mas, como podemos distinguir os aspectos histórico-redentivos
(uma vez para sempre) do Pentecostes de seus aspectos existenciais e
repetíveis?
Os diversos elementos do Pentecostes claramente pertencem à sua
significação como um evento ocorrido uma vez para sempre. A espera
dos discípulos pertence a esta categoria, como as manifestações físicas
do som como de um vento forte e das línguas de fogo. Estes não são
repetidos nem mesmo dentro do livro de Atos.
A eclosão das línguas, entretanto, é repetida na casa de Cornélio
(At 10.46) e em Éfeso (At 19.6). Muitos comentaristas pressupõem, à luz
do caráter visível da presença do Espírito em Samaria (At 8.17-18), que
as línguas estiveram em evidência também ali. Portanto, as línguas do
Pentecostes foram repetidas. Mas, como já vimos, estes três incidentes
são considerados dentro do próprio livro de Atos como idiossincráticos.
O fenômeno não é registrado no caso de outros (p. ex., o tesoureiro
etíope, Saulo de Tarso, Lídia, o carcereiro de Filipos). Tais repetições
são aspectos da significação distinta do evento no qual ocorreram.
Samaria e Cesareia são plataformas no avanço do programa de Atos
1.8; Éfeso marca a transição do mundo do antigo pacto; e o batismo de
João, ao mundo do novo pacto e o batismo com o Espírito que procede
de Cristo. Dentro do próprio livro de Atos (seja qual for a verdade
quanto ao restante do NT), as línguas do Pentecostes não são tidas
como um elemento normalmente repetido na experiência de iniciação
dos crentes posteriores.
Há, porém, mais um aspecto do Pentecostes. Jesus prometeu a seus
discípulos que a vinda do Espírito traria “poder”, como uma
consequência da qual seriam testemunhas por toda a terra (Lc 24.49; At
1.8). No Dia de Pentecostes, os discípulos ficaram “cheios do Espírito
Santo” em resultado do qual falaram em línguas. Embora a repetição de
falar em línguas seja raramente mencionada em Atos, o revestimento de
poder com que o Espírito encheu a indivíduos é repetido em inúmeras
ocasiões.
Atos de Lucas fala de estar cheio com ou de estar cheio do Espírito
como uma condição contínua, mas também descreve ocasiões
particulares quando indivíduos pareciam experimentar emoções
distintas. No primeiro caso, usa-se o familiar plēroō (p. ex., Lc 4.1; At
6.3; cf. Ef 5.18); no último caso, emprega-se o verbo pimplēmi (p. ex., Lc
1.41, 67; At 2.4; 4.8, 31; 9.17). No primeiro sentido, estar cheio do
Espírito refere-se predominantemente à exibição do fruto do Espírito
numa vida que se acha sob o senhorio do Espírito (cf. Ef 5.18). Mas em
ocasiões posteriores refere-se a um influxo especial de capacidade e
poder no serviço do reino. Isso é o que se vê em Atos 1.8 e também
evidenciado em Atos 2.4. É interessante notar que isso parece estar de
modo invariável relacionado com a linguagem daqueles a quem o
Espírito enche. Recebem “poder” para serem testemunhas de Cristo.
Essa manifestação de poder no Pentecostes, e o encher do Espírito,
embora extraordinários em si, em Atos não são vistos como um
fenômeno isolado, ou como limitado ao programa específico de Atos 1.8.
Sua repetição não segue esse padrão. Este aspecto da obra do Espírito
parece, pois, ser repetível.

Avivamento
Um aspecto relacionado com o Pentecostes é refletido no que às vezes
chamamos “avivamento”, quando declaramos que os crentes são
despertados e os não-cristãos são introduzidos no reino em grande
número, cada um com o senso individual de pecado e necessidade, mas
no contexto de um amplo senso da presença e poder do Espírito Santo.
Em alguns aspectos, o Pentecostes pode ser considerado como o
avivamento inaugural da era neotestamentária.[66] Certamente a
descrição da experiência da convicção de pecado, o “senso de temor”
(At 2.43) que era evocado, e o detalhado modelo do que deve ser a vida
da igreja (At 2.44-47) apontam nessa direção. Eis o que significa
avivamento. Para desenvolver ainda mais a metáfora do fluir da água,
podemos dizer que o avivamento são as energias ininterruptas e
incontidas do Espírito de Deus demolindo os diques que foram erguidos
contra o seu ministério de convencer e converter pessoas em todas as
comunidades de indivíduos, como aconteceu no Pentecostes e nos
“despertamentos” que têm ocorrido.
Nestes contextos, duplicando o padrão do Dia de Pentecostes, a
proclamação dos cristãos parece possuir um acesso especial de “poder”
quando o Espírito dá testemunho juntamente com Cristo, com e através
do testemunho dos discípulos (Jo 15.26-27; cf. At 4.33; 6.8; 10.38). Isto
se faz evidente na missão de Filipe em Samaria. As cartas de Paulo
indicam que ele havia experimentado isto numa série de centros
estratégicos no curso de suas viagens (p. ex., 1Co 2.4; 1Ts 1.5).
A poderosa vinda do Espírito de modo algum resolveu todos os
problemas. Os avivamentos espirituais que sempre ocorreram parecem
ter ocasionado um misto de consequências diversificadas mesmo em seu
caráter, expondo-se às influências destrutivas de orgulho espiritual e à
obstinação, como em Corinto. Portanto, não nos causa surpresa que a
mesma coisa tenha acontecido nos últimos “despertamentos” ocorridos
na história da igreja.
Jonathan Edwards, o teólogo do avivamento da Nova Inglaterra,
pode com razão ser culpado de nada mais fazer senão escrever com
demasiada ênfase:
“Pode-se observar que, desde a queda do homem até nossos dias, a obra de
redenção em seu efeito tem sido realizada, principalmente, por notáveis
comunicações do Espírito de Deus. Ainda que haja uma influência mais
constante do Espírito de Deus, sempre atendendo, em algum grau, a suas
ordenanças, contudo a forma como as maiores coisas têm sido feitas para
concretização da obra, sempre foi pelas suas notáveis efusões em tempos
especiais de misericórdia.”[67]

Tais ocasiões poderiam ser o que se vê nas palavras de Pedro em


Atos 3.19-20: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para serem
cancelados os vossos pecados, a fim de que da presença do Senhor
venham tempos de refrigério, e que envie ele o Cristo...”. Aqui, a ordem
da cláusula (perdão, refrigério e regresso de Cristo) sugere que estão em
pauta os tempos de renovação e avivamento.
E assim encontramos dois fenômenos no padrão de Atos. São-nos
dadas “todas as matérias” na atividade do Espírito na regeneração e na
conversão espirituais. Mas é pelo magistral revestimento de poder,
provindo do Espírito (exemplificado primeiramente no Pentecostes), que
os monumentais avanços ocorrem no reino de Cristo. O derramamento
inaugural do Espírito cria ondulações à medida que o Espírito continua
vindo em poder. O Pentecostes é o epicentro; mas o terremoto avança
mais após os impactos. Esses estrondos prosseguem pelos séculos a
fora. O Pentecostes propriamente dito não se repete; mas uma teologia
do Espírito que não suscita oração por sua vinda em poder não é uma
teologia do ruach!

O Alvo
Vimos, pois, que existem essas duas dimensões para o Pentecostes: o
histórico-redentivo e o existencial-pessoal. O primeiro elemento ocorre
uma vez para sempre e não se repete; o segundo elemento deve ser visto
como aspectos do ministério contínuo do Espírito.
Além disso, a tarefa do Espírito é restaurar a glória da criação
caída. Como diz muito bem Calvino, este mundo foi criado como um
teatro da glória de Deus. E em sua plenitude exibe visivelmente as
perfeições de sua natureza invisível. Particularmente no homem e na
mulher, sua imagem, essa glória teria que ser refletida. Mas recusaram
“glorificar” a Deus (Rm 1.21); danificaram o refletor (Rm 1.28) e foram
destituídos de sua glória (Rm 3.23).
Agora, porém, em Cristo, que é “o esplendor da glória de Deus”
(Hb 1.3), essa glória é restaurada. Havendo-se feito carne por nós, ele
agora foi exaltado em nossa carne em glória muito maior. O alvo
escatológico da criação foi consumado nele como suas primícias. Agora
ele envia seu Espírito, o companheiro íntimo de toda sua encarnação,
com o fim de recobrar a glória em nós. E é assim que “nós, com o rosto
desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor,
somos transformados de glória em glória, em sua própria imagem,
como pelo Senhor, o Espírito” (2Co 3.18).

Recebendo o Espírito Santo


O Novo Testamento descreve a iniciação na comunhão do Espírito a
partir de duas perspectivas básicas: a doação divina e a recepção
humana. O Espírito é dado pelo Pai (Lc 11.13). Mas é também recebido
pelo indivíduo (Jo 7.39; At 19.2; Rm 8.15; Gl 3.2).
Num contexto em que se reflete a psicologia envolvida nesta
recepção, Paulo indica que ela ocorre “pelo crerdes no que ouvistes”, em
contraste com “observar a lei” (Gl 3.2, 5). O Espírito é recebido no
contexto do vir à fé em Cristo, o Senhor. Para Paulo, pois, no padrão
normal da experiência no mundo gentílico, o Espírito não é recebido
separadamente da fé-iniciação em Cristo. É crendo em Cristo que o
Espírito de Cristo é recebido. Pois crer em Cristo conduz à realidade do
receber a Cristo e sua habitação. Esta é uma e a mesma realidade da
recepção e habitação do Espírito, visto que é no Espírito e pelo Espírito
que Cristo vem habitar em nós. Como deixa claro o ensino de Paulo em
Romanos 8.8,9, há uma interação entre o habitar de Cristo e o habitar
do Espírito. As duas realidades são, economicamente, uma só, vividas
pelo indivíduo como uma experiência única. Não há, pois, outro modo
de se receber o Espírito além da recepção da fé em Cristo. Ter a Cristo é
ter o Espírito. Como isso ocorre, e quais as suas implicações, são os
temas dos capítulos seguintes.

[61] Como, p. ex., J. D. G. Dunn argumenta em Baptism in the Holy Spirit (Londres: SCM
Press, 1970), pp. 55-72.
[62] Ver C. K. Barrett, “Apollos and the Twelve Disciples of Ephesus”, em W. C. Weinrich,
The New Testament Age (Macon, GA: Mercer University Press, 1984), vo. 1, pp. 29-39.
[63] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), pp. 123-126.
[64] Comparando a igreja medieval e a moderna, pode parecer excessivo, mas há notáveis
paralelos: a presença de milagres, culto que é dirigido pela emoção em vez de ser
dirigido pelo intelecto, oferecendo Cristo ou o Espírito por meios físicos (Cristo nos
elementos sacramentais, ou o Espírito pelo toque do líder carismático). Isso pode explicar
porque o movimento carismático tem sido passível de aproximação dentro do catolicismo
romano.
[65] Dunn, op. cit. , p. 128.
[66] J. R. W. Stott, The Message of Acts (Leicester: Inter-Varsity Press, 1990), p. 61. Ver,
nesta conexão, a breve, porém marcante seção sobre “O Espírito num despertamento
religioso”, e especialmente os comentários sobre oração, em G. Smeaton, The Doctrine of
the Holy Spirit (Edinburgh: T. & T. Clark, 1882), PP. 282ss.
[67] Jonathan Edwards, A History of the Work of Redemption, Period I, Part 1, in The
Works of Jonathan Edwards (London, 1834, repr. Edinburgh: Banner of Truth, 1974), vol.,
1, p. 539.
5
O ESPÍRITO DE ORDEM
O Espírito de Deus, derramado na igreja no Pentecostes, é o Espírito de
restauração.[68] Como tal, ele veio primeiramente sobre Jesus como a
cabeça da nova criação, equipando-o para o serviço como o segundo
homem e o último Adão que restauraria o domínio justo (1Co 15.45-49;
Gn 1.26-28; Sl 8.3-8). Ainda não vemos isso concretizado (Hb 2.8); a
criação ainda geme com dores de parto que são precursoras daquele
dia; os cristãos crentes, semelhantemente, gemem em seu íntimo
quando suspiram por ele (Rm 8.22-25). Neste sentido, a presente
atividade do Espírito, embora escatológica no sentido em que marca a
inauguração da glória do último dia, é semi-escatológica no sentido em
que é caracterizada pela incompletude. Essa glória, que Deus já
restaurou em Cristo, a cabeça da nova criação, aguarda o evento ainda
futuro.
Portanto, a atividade pós-Pentecostes do Espírito permeia toda a
história como diques concêntricos num reservatório. Como no tempo do
Antigo Testamento, também no do Novo, sua atividade é soteriológica,
comunal, cósmica e escatológica, e envolve a transformação do
indivíduo, o governo da igreja e do mundo e a introdução de uma nova
era.
Indicações deste padrão já se acham presentes na narrativa dos
Atos dos Apóstolos. Pessoas são levadas à fé em Cristo como Redentor e
Senhor, através do poder do Espírito (At 1.8), ou em números
consideráveis (At 2.41; 5.14; 6.7; 8.14; 11.24) ou como indivíduos
isolados (At 8.26-40, especialmente v. 29). A nova comunidade é
formada e sustentada sob o governo e atividade do Espírito (At 6.3, 5;
7.55; 10.19, 44-48; 13.2-4; 15.28; 16.6-10); os poderes da era vindoura
são liberados na presente era pelo ministério dos apóstolos (Hb 2.4;
2Co 12.12; At 3.1-10; 5.12). Jesus assim prossegue a obra de edificação
de sua igreja que começou durante sua encarnação (cf. Mt 16.18; At
1.2).
Evidentemente, se temos de ser transferidos de uma morte inglória
em pecado (Ef 2.1-4) para a participação da glória de Cristo, há um
longo caminho a percorrer. De que forma traçaremos os passos e os
movimentos do Espírito?

A Ordem da Salvação
Na história da teologia, detalhado exame crítico dos problemas
soteriológicos só surgiram depois dos problemas teológicos peculiares e
quando a cristologia se estabeleceu com algum detalhe. No período
patrístico, predominaram as questões concernentes ao Ser de Deus e à
pessoa e naturezas de Cristo. Mesmo o problema da divindade do
Espírito se estabeleceu quase como uma implicação secundária da
divindade de Cristo. Mais tarde, questões concernentes à obra de Cristo
vieram à tona com as discussões das assim chamadas teorias clássicas
da expiação, dos seguidores de Anselmo e Abelardo. Somente nas
discussões da Idade Média e do período da Reforma se buscaram e
forneceram afirmações mais definitivas sobre a soteriologia. A
exposição clássica da Igreja Católica Romana da justificação foi
promulgada depois do Concílio de Trento (1545-63). Mesmo neste
contexto, alguns delegados nutriam esperanças de que viesse à tona
uma declaração evangélica (luterana) sobre a justificação pela fé.
A interpretação de como se consumou a redenção por Cristo
carrega consigo inevitáveis implicações pela natureza de sua aplicação
ao indivíduo. Neste contexto, o principal aspecto da teologia da Idade
Média era o elo da graça salvífica com os sacramentos e, portanto, com
o ministério sacerdotal da igreja, no processo da justificação (processus
justificationis). A obra do Espírito foi assim encerrada dentro da
administração dos sete sacramentos. Tal sacramentalismo produziu um
mecanismo que, certamente pela ótica da Reforma, negava a obra
soberana do Espírito, a qual não era dependente da administração dos
ritos da igreja.
A teologia medieval foi amplamente entregue a um processo de
justificação, e portanto dava grande importância ao modo de
preparação para a graça. No processo da graça preveniente levando a
vontade a odiar o pecado e a aspirar pela justiça ou justificação
(justitia), o indivíduo se dispunha a receber a graça habitual. A tristeza
imperfeita pelo pecado (attritio), que carecia das qualidades da tristeza
perfeita (contritio), era compensada por meio do sacramento da
penitência. Não sendo mais um rito uma vez na vida, propiciando a
oportunidade de regressar à graça do batismo, a penitência tornou-se,
deste modo, um aspecto regular no processo contínuo rumo à justitia.
Na raiz disto está a noção agostiniana de que a justificação significava
ser feito justo (justum facere), não (como na teologia bíblica da
Reforma) ser declarado ou reputado ou constituído justo aos olhos de
Deus. Quando a justificação se confundiu com a justiça interna e
passou a ser vista mais subjetivamente do que como algo de caráter
forense, deficiente de santidade pessoal perfeita, ela, a justificação,
jamais poderia ser completa. Como resultado, à parte do privilégio
raramente concedido de revelação especial ao indivíduo, as bençãos da
justificação jamais poderiam ser asseguradas; daí a negação de certeza
feita pelo Concílio de Trento e a afirmação do famoso teólogo jesuíta,
Robert Bellarmine (1542-1621) de que a certeza era a maior de todas as
heresias protestantes.[69]
As discussões sobre a justificação levaram, eventualmente, à
Reforma Protestante. Aliás, neste contexto, as lutas de Martinho Lutero
em prol de Cristo e da Reforma dependiam em grande medida da
transformação (e em importantes aspectos, o reverso) da ordo salutis
medieval que ardia em sua consciência mediante sua nova compreensão
de Romanos 1.16-17. Ele agora via que Paulo não falava de sua ação
para a obtenção da justiça, mas da provisão divina dela no evangelho.
Um poderoso repensar ocorreu em seu entendimento da ordo salutis, e o
texto que ele interpretara fazendo uso da ordo salutis romana, agora,
ao contrário, se tornava a porta aberta para o Paraíso.
De forma alguma é um acidente ou um exagero que o francês de
nascença e reformador de Genebra da segunda geração na Suiça, João
Calvino, seja descrito, como temos notado, como “o teólogo do Espírito
Santo”. Naturalmente, a nova compreensão da natureza da justificação
(justiça imputada, não infusa, alheia, não auto-obtida) era uma
característica do novo ensino. Mas isso foi acompanhado por uma
dessacramentalização na aplicação da redenção, e uma restauração
correspondente do papel do Espírito. Não que os sacramentos fossem
despidos de seu poder, tanto quanto subordinado à ação conjunta da
Palavra e do Espírito.
Na igreja medieval, os sacramentos atuavam como um marco na
estrada da justificação. Onde quer que o catolicismo tridentino
posterior tenha mantido o poder, todas as bençãos da união com Cristo
foram atribuídas e mediadas pela ação motivadora e instrumental do
sistema sacramental, especialmente a missa e a eucaristia. À maneira
de contraste, no ensino reformado enfatizava-se que o Espírito Santo
conduzia o indivíduo à direta comunhão com Cristo, comunhão essa da
qual os sacramentos eram vistos como sinais e selos.
Portanto, se a pergunta “Como o Espírito se relaciona com o Pai e
o Filho?” estava no coração do primeiro grande cisma da cristandade, a
pergunta “Como o Espírito aplica as bençãos de Cristo ao indivíduo?”
adentrou o coração do segundo grande cisma.
Portanto, o padrão pelo qual o Espírito opera é de grande
significação. Ele chegou a ser discutido sob a rubrica latina, ordo
salutis, a ordem da salvação.[70]
O termo é, pelo menos em geral, auto-explicativo. Ordo significa
uma série, uma linha, uma ordem de sucessão. Cícero usou ordo para
uma fileira de assentos no teatro, ou uma fileira de remos num navio.
Quando usada para a aplicação da redenção, ordo salutis denota o
arranjo ordenado dos vários aspectos da salvação em sua concessão aos
homens e mulheres. Particularmente, ela busca responder esta
indagação: “De que maneira os vários aspectos da aplicação da
redenção (tais como justificação, regeneração, conversão e santificação)
se relacionam uns com os outros?” Discussões da ordo salutis tentam
desembaralhar a coerência e lógica interiores da aplicação que o
Espírito faz da obra de Cristo.
Esta, de fato, é uma questão mais antiga do que as discussões
medievais dela, e já se insinua na Escritura, por exemplo, nas
controvérsias sobre a relação entre graça e lei. Paulo explicitamente
indica que este problema soteriológico é também um problema
pneumatológico, quando ele escreve: “Quero apenas saber isto de vós:
recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?” (Gl
3.2).
É fácil ficar impaciente em relação a certos aspectos da discussão
sobre a ordo salutis. Pois há desacordo sobre a ordem envolvida até
mesmo entre os teólogos que pertencem conscientemente à tradição
reformada, e houve crítica paulatina sobre a própria ideia. Além do
mais, é natural que o cristão entusiasta sinta que os teólogos tenham
gasto tempo demais falando da ordem da salvação em vez de
proclamarem o evangelho! Mas as antíteses implícitas em tal reação
(proclamação do evangelho verso ordem da salvação) são prejudicadas.
Pois a maneira como apresentamos o evangelho invariavelmente
expressa uma compreensão implícita da ordo salutis. Além do mais, a
discussão é importante porque salienta a consciência da lógica
embutida em nossa compreensão do modo como o Espírito opera no
indivíduo, bem como em esclarecer a matriz do pensamento que governa
a forma na qual o evangelho cristão é proclamado.

Que Ordem É Essa?


A motivação na ordem das discussões clássicas da ordo salutis consistia
em descobrir, não o arranjo cronológico, mas um arranjo lógico; a
ordem em pauta era, primariamente, não de prioridade temporal, mas
focalizada em relações lógicas, numa ordem da natureza.[71]
Na tradição de língua inglesa, o exemplo clássico de uma ordo
salutis se encontra na obra do antigo puritano inglês, William Perkins
(1558–1602). Em sua obra, A Golden Chaine,[72] ele delineou as causas
de todos os vários aspectos da redenção, remontando à sua fonte na
pessoa de Cristo e dos eternos propósitos de Deus. Além disso, Perkins
produziu um catecismo visual, o qual pudesse ser seguido por aqueles
que estavam aptos a ler suas várias exposições.
Esta formulação era largamente dependente de Romanos 8.28-30,
especialmente a declaração de Paulo que, aqueles que Deus
predestinou, ele chamou, justificou e glorificou. Estes, Perkins viu como
elementos distintos numa sequência inquebrável, um elo preso ao outro
na “cadeia de ouro” da salvação. De fato, o diagrama de Perkins tinha
algo que parecia a sequência de elos encadeados uns nos outros.
A ideia e sua execução continham um certo brilhantismo pastoral.
De fato, ainda que raramente reconhecido, o modelo de Perkins (cuja
teologia pode ser retrocedida à influência do sucessor de Calvino em
Genebra, Theodore Beza) chegou a dominar o pensamento evangélico
nos séculos subsequentes. Mesmo onde seu nome era desconhecido,
onde seu centro cristológico enfraqueceu-se, e onde foram rejeitados os
pontos específicos de sua própria ordo salutis reformada, o modelo de
uma cadeia de causas e efeitos formou, durante séculos, o contexto de
discussões e controvérsias evangélicas. É possível que surja
discordância quanto a, por exemplo, se o novo nascimento era a causa
da fé (como na construção calvinista, a qual enfatiza a prioridade
necessária da atividade divina em vista da depravação da natureza
humana) ou se a fé e o arrependimento são a causa da regeneração
(como no conceito arminiano, o qual pressupunha que a
responsabilidade de crer deve impor a capacidade natural de o assim
fazer). Mas quase nunca se reconheceu que alguma forma do modelo da
“cadeia” de Perkins fosse o denominador comum a ambos, e fornecia a
matriz dentro da qual se processava a discussão da obra interna do
Espírito.
A falha em reconhecer isso consistia em que, raramente ou nunca,
se perguntou se o modelo de uma “cadeia” causal era um modelo bíblico
ou completamente inadequado. Em discussões mais recentes, contudo,
este modelo voltou a ser alvo considerável da crítica. Passagens tais
como Romanos 8.28-30 têm sido interpretadas como a refletir menos
numa ordem para a aplicação da redenção e mais na plenitude e
riqueza da benção da salvação. Neste prisma, ver Paulo como se
estivesse analisando uma ordem de eventos é, portanto, uma construção
exegética equivocada. Se ele fosse agir assim, certamente teria incluído
a ideia de santificação. Tal omissão tendia a ofuscar os primeiros
escritores. Mas para um teólogo moderno da envergadura de G. C.
Berkouwer, ela indica que Paulo não tinha absolutamente em vista uma
ordem distinta de elementos. Seria inconcebível numa ordem tal que o
elemento de santificação estivesse ausente. A crítica de Berkouwer não
é, de forma alguma, nova, mas nela ele reuniu figuras influentes tais
como Karl Barth e Otto Weber.[73] Embora nos seja possível apelar para
a relação entre predestinação e conformidade com a imagem de Cristo
dentro deste contexto como indicativo do papel da santificação, sua
ausência no que presumivelmente é uma afirmação programática é
seguramente significativa. Tivesse sido a teologia de Paulo elaborada
aqui pelo estilo das categorias da ordo salutis de Perkins, seguramente
ele teria incluído a santificação.
Uma preocupação mais ampla é também relevante aqui. Quando
expressa em termos do modelo de uma cadeia de causas e efeitos, a
tradicional ordo salutis corre o risco de deslocar Cristo do seu lugar
central na soteriologia. Os frutos de sua obra podem ser relacionados
uns com os outros na cadeia de sequência causa e efeito, em vez de
vistos fundamentalmente em relação à obra do Espírito em introduzir-
nos na união e comunhão com o próprio Cristo. Assim, a eleição é
expressa como a causa da regeneração, que por seu turno é a causa da
fé, da qual a santificação e a perseverança são os efeitos invariáveis e
inevitáveis. A relação de cada um com o próprio Cristo é assim
obscurecida ou mesmo minimizada.
O perigo aqui é que a medieval cadeia sacramental de causas e
efeitos foi simplesmente substituída por uma cadeia pós-Reforma de
causas e efeitos subjetivos. Em ambas, o ministério do Espírito de Cristo
é deslocado de seu papel central. Permanece sem solução o problema de
Lutero de que o homem é por natureza curvatus in se (voltado para si
mesmo em vez de para fora, pondo sua confiança no Senhor). O foco da
atenção está no que se tem feito em nós, obscurecendo Aquele que é o
autor e consumador da fé, e nossa união com ele. Assim escreve H. N.
Ridderbos:
“Na pregação de Paulo não existe aquilo a que chamam desenvolvimento
sistemático da ordo salutis, uma doutrina detalhada da aplicação
antropológica da salvação. A causa disto não é só que o caráter da doutrina
de Paulo não é “sistemático” no sentido científico do termo, mas, acima de
tudo, que seu ponto de vista é diferente.”[74]

Tais críticas contêm considerável peso, embora às vezes sejam


exageradas, e algumas delas têm sido injustamente postas aos pés de
William Perkins.[75] Não obstante, é verdade que, quando foi libertada
da rigorosa estrutura cristocêntrica e profundamente pactual em que
Perkins e outros a imbuíram, a ordo salutis pôde facilmente deslizar-se
paulatinamente para um insalubre subjetivismo.
Não obstante essas reservas, a questão real não é tanto se devemos
nutrir a noção de ordo salutis. Não podemos evitar o pensamento
ordenado, quando estamos na teologia. Acima de tudo, o Espírito é o
Espírito de ordem (1Co 14.33)! Como Hendrikus Berkhof comenta de um
modo deturpado sobre as críticas severas de Barth acerca da ordo
salutis, quando Barth escreve sobre soteriologia em seu Church
Dogmatics “ele também precisa de um tipo de ordem lógica”![76]
Ninguém, com certeza, afirma que regeneração e conversão, justificação
e santificação se relacionam aleatoriamente. Portanto, a questão é:
sobre que princípio ou modelo se deve construir a ordem da obra do
Espírito? Um modelo preferível será encontrado na noção que é central
a todo o ministério do Espírito no Novo Testamento.

União com Cristo


O papel central do Espírito consiste em revelar a Cristo e unir-nos a ele
e a todos os que são participantes de seu corpo. Assim como a
habitação de Cristo e a habitação do Espírito são dois aspectos de uma
e mesma realidade no Novo Testamento, também sustentar-nos “em
Cristo” (expressão que, com suas variantes, Paulo usa cerca de 160
vezes) é o coração e a alma do ministério do Espírito.
A implicação consiste em que o modelo que empregamos para
estruturar o ministério do Espírito tem de ser o da união com Cristo.
Cada faceta da aplicação da obra de Cristo deve relacionar-se com o
modo como o Espírito nos une ao próprio Cristo, e visto como
diretamente resultante da comunhão pessoal com ele. O motivo
dominante e o princípio arquitetônico da ordem da salvação seriam,
portanto, a união com Cristo no Espírito.
Isso está no coração da teologia evangélica, como se faz evidente à
luz do modo como Calvino inicia o Livro III de suas Institutas:
“Impõe-se-nos ver agora como nos advêm as benesses que o Pai conferiu ao
Filho Unigênito, não para seu uso particular, mas para que enriquecesse a
pobres e a indigentes. E, primeiramente, deve-se ter em conta que, por quanto
tempo Cristo está fora de nós e nós estamos dele separados, tudo quanto ele
sofreu e fez para a salvação do gênero humano nos é improfícuo e de nenhuma
relevância. Portanto, para que compartilhe conosco aquilo que recebeu do Pai,
ele precisa tornar-se nosso e habitar em nós; por isso, ele é não só chamado
“nossa Cabeça” (Ef 4.15), mas ainda “o primogênito entre muitos irmãos”
(Rm 8.29). Nós, também, de nossa parte, somos declarados “estar enxertados
nele” (Rm 11.17) e “dele estarmos vestidos” (Gl 3.27), porquanto, como já foi
dito, tudo quanto ele possui nada é para nós até que com ele nos tornemos
um. Mas, ainda que seja verdadeiro que consigamos isto através da fé,
entretanto, quando vemos que nem todos, indiscriminadamente, abraçam a
comunhão de Cristo que é oferecida mediante o evangelho, ensina-nos a
própria razão a subir algo mais e inquirir da secreta operação do Espírito,
mercê da qual se dá que fruamos de Cristo e de todas as suas benesses.”[77]

Calvino tem ainda palavras iluminadoras em seus comentários


sobre este assunto, o que sublinha quão profundamente radicado na
teologia evangélica está o princípio de que a união com Cristo deve ser
considerada como o arcabouço dentro do ministério do Espírito.
Comentando Romanos 6.11 (“Assim também vós considerai-vos mortos
para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo”), ele diz:
“Prefiro, contudo, reter as palavras de Paulo, em Cristo Jesus, em vez da
tradução de Erasmo, por Cristo Jesus, visto que aquela comunica mais
claramente o ato de enxertar, pelo qual somos feitos um com Cristo.”[78]

Semelhantemente, comentando 1 Coríntios 1.5 (“Porque em tudo


fostes enriquecidos nele, em toda palavra e em todo conhecimento”),
Calvino afirma:
“Prefiro conservar o termo ‘nele’ em vez de mudá-lo para ‘por meio dele’,
porque, em minha opinião, é mais vívido e vigoroso. Pois somos enriquecidos
em Cristo, porque somos membros de seu corpo, e fomos enxertados nele; e,
ainda mais, visto que fomos feitos um com ele, então ele compartilha conosco
de tudo quanto recebeu do Pai.”[79]

Calvino está sublinhando aqui (e em comentários semelhantes em


outras partes) que as bênçãos da redenção não devem ser consideradas
como tendo meramente Cristo como sua fonte última, mas como só
sendo nossas pela direta participação em Cristo, em união com ele
através do Espírito. Esta abordagem representa melhor a perspectiva
bíblica sobre como o Espírito opera. As bençãos da salvação se tornam
nossas através do Espírito, exclusiva, imediata, simultânea e
escatologicamente em Cristo. Nos termos paulinos, somente “nele” é
que as bençãos da redenção se tornam nossas; e é somente pelo Espírito
que estamos “em Cristo”. Em Cristo, porém, todas as bençãos
espirituais são nossas aqui e agora (Ef 1.3-14.), embora cada benção
esteja em condição de exercer sua própria consumação distintiva.
Esta abordagem conta com várias vantagens sobre uma “série” ou
modelo de “cadeia causal” cuja tendência é dominar as exposições da
ordo salutis. Significa que não podemos meditar nem desfrutar das
bênçãos do evangelho, quer isoladas umas das outras, quer separadas
do próprio Benfeitor. Isso promove uma saudável centralidade de Cristo
no viver cristão, e também salvaguarda o ensino evangélico do vício de
isolar os efeitos do evangelho da fé no próprio Cristo tanto como
Salvador quanto como Senhor. Neste sentido, é bem-vindo o famoso
dito anti-escolástico de Melanchthon: “conhecer a Cristo é conhecer
seus benefícios.”[80]
Esta perspectiva também remove o perigo do subjetivismo nocivo e
desequilibrado na experiência cristã. Nunca foi uma implicação
logicamente necessária do modelo de Perkins que produziria nociva e
ansiosa introspecção. Não obstante, quando separada da robusta
cristocentralidade de Perkins, ela pode e às vezes tem levado ao
desenvolvimento de um subjetivismo nocivo, no qual a localização da
presente experiência na cadeia da salvação substitui o próprio Jesus
Cristo como o centro de atenção e de fé.
Além do mais, quando a união com Cristo é o princípio
arquitetônico para interpretar-se o ministério do Espírito, os vários
aspectos da implicação da redenção retêm a vital dimensão
escatológica (uma tensão) que caracteriza tão amplamente o
pensamento neotestamentário. Os que vivem no Espírito, e assim
participam de Cristo, também vivem neste mundo, dominado como é
pela carne. Por essa razão, há sempre um caráter já/ainda-não em
relação à presente experiência da salvação. É duvidoso se a “cadeia”
modelo poderia expressar isso de forma plena. Sua própria forma
sugere que um elo é completo em si mesmo e, portanto isolado dos
demais; e assim, por exemplo, a regeneração é vista como chegando ao
fim, onde a fé começa. No Novo Testamento, à maneira de contraste,
permanece um aspecto ainda-a-ser-consumado para cada faceta da
salvação.
A cadeia modelo para a obra do Espírito tende a criar a impressão
de que o inaugurado é também o plenamente realizado. Mas há uma
estrutura escatológica (“já/ainda-não”) para cada aspecto da
soteriologia. A regeneração é uma realidade presente, mas também
aguarda a consumação (Mt 19.28). A santificação já envolve um radical
rompimento uma vez para sempre com o domínio do pecado (1Co 6.11;
Rm 6.1-14), mas também se desenvolve progressivamente até sua
perfeição (1Ts 5.23). Mesmo a glorificação, embora consumada no
futuro, em certo sentido já começou aqui e agora através da habitação
do Espírito de graça e glória (2Co 4.18; Rm 8.28; 1Pe 4.13). E embora
requeira ser criteriosamente preservada, é também verdade que a
justificação é uma realidade já realizada e aperfeiçoada, mas aguarda
sua consumação — da mesma forma em que a adoção (como a
justificação, um ato legal no NT) entrará num novo estágio quando
recebermos aquilo pelo quê esperamos ardente e pacientemente, a
saber, “nossa adoção de filhos, a redenção de nossos corpos” (Rm 8.23).
Semelhantemente, embora os crentes já tenham sido justificados com
irreversível finalidade, comparecerão perante o tribunal de Cristo para
receber o que se lhes deve (2Co 5.10). Então, em sua capacidade de
“justo Juiz” (ho dikaios kritēs), o Senhor dará “a coroa da justiça [ho tēs
dikaiosynēs stephanos] a todos os que anelam por sua vinda” (2Tm 4.8).
Portanto, como o impecável documento reformado, que é o Breve
Catecismo Westminster, declara: “Na ressurreição, sendo os crentes
ressuscitados em glória, serão publicamente reconhecidos e declarados
justos no dia do juízo...”[81]

Cristo Como Paradigma e Fonte


Esta perspectiva da simultaneidade da benção redentiva em união com
Cristo, através do Espírito, está de fato profundamente radicada na
estrutura escatológica da teologia paulina.[82] Seguida criteriosamente,
essa teologia derrama considerável luz em nosso entendimento sobre a
aplicação da redenção em Cristo. A análise deste ensinamento pode ser
dividida em três estágios:
(1) O pensamento central do apóstolo nesta conexão consiste no
fato de que, para Paulo, o fundamento de nossa redenção está na
participação não só na morte, mas também na ressurreição de Cristo
(p. ex., Rm 6.3-14; Ef 2.5-6; Cl 2.12-13; 3.1). Este ressuscitar com
Cristo ocorreu de forma representativa na ressurreição histórica de
Cristo, assim como, no mesmo sentido, quando Cristo morreu, também
morremos (2Co 5.14-15). Mas ela é realizada ou existencializada na
regeneração e conversão do crente, que é marcada sacramentalmente
pelo batismo. Estes dois “momentos”, a ressurreição de Cristo e a
nossa, se pertencem logicamente, embora separadas pelo tempo.
Comum a ambas é o ministério do Espírito.
(2) Paulo vê a ressurreição de Cristo dentre os mortos como sua
“redenção”. Sua morte é tudo o que a morte realmente é. Em sua
qualidade de segundo homem, o último Adão, ele experimenta a morte
como o salário do pecado, separação da vida, juízo sob a ira divina e
alienação da face do Pai (Rm 6.10; 2Co 5.21; Gl 3.13). Ele morreu para
o pecado sob cujo poder ele veio (Rm 6.10: “quanto a ter morrido, de
uma vez para sempre morreu para o pecado”). Mas da morte assim
concebida, Cristo ressuscitou, libertou, vindicou ou “salvou” através da
ressurreição (1Tm 3.15). Em sua ressurreição, ele foi “redimido” e
libertado da morte pelo poder do Espírito Santo. Como sugere R. B.
Gaffin:
“Portanto, falar da ressurreição como a redenção de Cristo é não só
significativo, mas também necessário. A ressurreição nada é senão seu
livramento do poder e maldição da morte que estava em vigor até o momento
de ressuscitar... A ressurreição é a salvação de Jesus como o último Adão; e
nenhum outro evento em sua experiência é o ponto de sua transição da ira
para a graça.”[83]
(3) Na exposição que Paulo faz do evangelho, as categorias usadas
para descrever a aplicação da redenção ao crente são as categorias que
explicam o significado da ressurreição de Cristo. Em outros termos, a
aplicação da redenção a nós está radicada na aplicação da redenção a
Cristo.
A ressurreição de Cristo é vista como sua justificação (1Tm 3.15).
Nela ele foi vindicado ou justificado (edikaiōthē) pelo Espírito. Havendo
em sua morte se tornado pecado, em sua ressurreição ele foi declarado
justo como nosso representante (o que de fato ele sempre e
pessoalmente foi). Ele não “viu corrupção” porque era o Santo de Deus
(At 2.27). Morrendo em nosso lugar como um condenado, ele
ressuscitou como um justificado.
Paulo também insinua que a ressurreição pode ser vista como a
adoção de Jesus. Quanto à sua natureza humana, Jesus “foi
descendente de Davi”; mas, “segundo o Espírito de santidade”, ele “foi
designado Filho de Deus com poder, pela ressurreição dentre os mortos”
(Rm 1.4).
Os intérpretes mais antigos leem Romanos 1.3-4 dentro da matriz
da cristologia patrística clássica, como uma afirmação das duas
naturezas de Cristo. Mas o contraste em pauta não é entre as duas
naturezas, e sim os dois estados de Cristo; e, mais precisamente, entre
os dois aeônios de sua existência: “segundo a carne” e “segundo o
Espírito”; sua humilhação e sua exaltação. Sua ressurreição assim o
constitui Filho de Deus com poder; nela ele é adotado como o Filho do
novo período.[84]
A ressurreição pode também ser vista como a santificação de
Cristo. O que é fundamental para nossa santificação encontra-se,
primeiramente, no próprio Cristo: ele morreu para o pecado uma vez
por todas, e ressuscitou para a novidade de vida na qual ele para
sempre vive para Deus (Rm 6.9-10).
Esta perspectiva permanecerá estranha a menos que se reconheça
que o uso caracteristicamente paulino da linguagem dos conceitos sobre
a santificação, em seus aspectos definitivos antes que progressivos,
como um livramento radical do domínio do pecado, o que fornece o
fundamento para um livramento progressivo da influência do pecado.
[85] Em sua morte, Cristo se pôs sob o domínio do pecado; em sua

ressurreição, ele foi libertado desse domínio. Esse livramento é o


fundamento da santificação, seja em nós seja em Cristo. Daí podermos
propriamente falar da ressurreição de Cristo no poder do Espírito como
nada menos que sua santificação pelo Espírito.
Além do mais, a ressurreição constituiu a glorificação de Cristo.
Como as “primícias dos que dormem” (1Co 15.20), ele foi o primeiro
cujo corpo “semeia-se na corrupção, ressuscita na incorrupção; semeia-
se em desonra, ressuscita em glória; semeia-se em fraqueza, ressuscita
em poder; semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual” (1Co
15.42-44). Pelo poder do Espírito, sua existência física foi transformada
numa existência de glória (cf. Fp 3.21).
Estar “em Cristo” significa tomar parte em tudo o que Cristo tem
realizado. Mais especificamente, significa que aqueles que se acham
unidos ao Cristo ressurreto têm parte em sua justificação, adoção,
santificação e glorificação. Assim como no caso de Cristo, esses são
todos aspectos do singular evento escatológico de sua ressurreição e
nele são simultâneos e inseparáveis, como se dá conosco. Segue-se que,
no caso dos crentes, estar unido a Cristo pelo Espírito significa ter parte
em sua justificação, adoção, santificação e glorificação. Em Cristo, estas
coisas são nossas imediata, escatológica e simultaneamente.
Por certo, a justificação, adoção, santificação e glorificação são
categorias distintas da aplicação da redenção, e jamais devem ser
confundidas. Mas não devem ser vistas como incidentes separados; são
aspectos ou facetas do único evento de nossa união com Cristo em sua
glória ressurgida, efetuada pelo poder do Espírito e operada
progressivamente através do ministério contínuo do Espírito.
Na união singular entre Cristo e seu povo, é possível traçar vários
níveis de ordens da natureza em que, logicamente, um elemento em
nossa união com Cristo parece ser o pré-requisito para o outro. No
entanto, buscar reduzir os elementos a uma fonte de causas e efeitos
tem o impacto imediato de nivelar as dimensões da graça envolvida.
A aplicação da redenção é a efetuação de relação bilateral. Esse,
naturalmente, é o padrão já evidenciado no caráter pactual da salvação
na Escritura, onde o divino monergismo do estabelecimento do pacto
leva à mutualidade da comunhão pactual em fé e obediência. No
coração de seu novo pacto está a obra de Cristo através de quem se
concede o perdão, e a promessa do Espírito através de quem vem
renovação e restauração. A união com Deus, no novo pacto, é
especificamente união a Cristo pelo Espírito que nos traz a comunicação
das bençãos redentivas.
Cada elemento na ordo salutis clássica é assim uma perspectiva
adicional naquela realidade da união do crente com Cristo. Este se
torna nosso parceiro pactual, como o Espírito Santo nos une a ele. Tudo
o que é seu, como ele é para nós, é nosso. Tornamo-nos um com Cristo
na misteriosa união da qual o tornar-se uma só carne no matrimônio é
uma analogia (Ef 5.30-32). A intimidade da união depende de nossa
posse mútua e de nossa posse do Espírito. Por ele, Cristo nos confere
todos os seus bens.
Essa é uma expressão quase chocante apresentada por Paulo em 1
Coríntios 6.12-20. Contrapondo-se à imoralidade sexual, ele insinua
que o cristão não pode convenientemente deixar pendente sua união
com Cristo só com o fim de entregar-se à carne. Absolutamente, não!
Tão íntima e holística é a união com Cristo que isso equivaleria a tomar
os membros de Cristo e entregá-los ao pecado. Pois “aquele que se une
ao Senhor é um só espírito com ele” (1Co 6.17). Aqui se pode apresentar
um forte exemplo para escrever “espírito” com [E] maiúsculo, à luz do
fato de que Paulo, então, prossegue enfatizando que nossos corpos são
templos do Espírito Santo.[86] O Espírito que fez do corpo de Cristo um
templo habita em nós para realizar a mesma função. Ele é o vínculo de
uma união inquebrável.
A exposição de Paulo é essencialmente uma obra externa do ensino
de Jesus no discurso de despedida. Os discípulos conhecem o Espírito,
“porque ele habita convosco [i.e., o próprio Cristo] e estará em vós [i.e.,
depois do Pentecostes]” (Jo 14.17). Mas, “Naquele dia [i.e., no
Pentecostes] vós conhecereis que eu estou em meu Pai e vós em mim, e
eu em vós” (Jo 14.20). A forma como Cristo nos une a si, o vínculo
comum que lhe torna possível dizer que estaria nos discípulos, é o fato
de que seriam possuídos do mesmo Espírito que ele mesmo possuía.
Esta doutrina central encontra expressão no Novo Testamento de
formas variadas, especialmente em Paulo. Um século atrás, os
estudiosos na escola da história das religiões ligaram sua origem às
antigas religiões de mistério. Mas a herança teológica de Paulo do
Antigo Testamento, reinterpretada à luz de Cristo, fornece um cenário
adequado para o conceito. Ela não aparece ex nihilo na Escritura.
Insinuações ocorrem nas figuras representativas, tais como o Sumo
Sacerdote, que age a favor do povo e está unido a ele como seu
representante, e o Servo Sofredor, que é retratado como alguém que,
identificado com os pecadores, leva os pecados de outros e sofre em seu
lugar (Is 53.4-6, 11, 12).
Encontramos a ideia também presente no ensino de Jesus. Em
Mateus 25.31-46, ele indica que agir em relação a seus irmãos é agir em
relação a ele mesmo. Ainda mais claramente, a união avança no
discurso joanino de despedida. Cristo é a videira, seus discípulos são os
ramos; permanecem nele, e ele permanece neles (Jo 15.1-11). Tão
íntima é esta união, através do Espírito, que Cristo está nos crentes, e
eles permanecem nele (Jo 17.26, 21).
Como em boa parte da teologia de Paulo, o germe desta doutrina se
encontra na revelação em torno de sua conversão. Enquanto assume
que era perseguidor da igreja, Saulo de Tarso é assenhoreado pela voz
que intencionalmente lhe pergunta por que veio a ser perseguidor do
Senhor Jesus. Tal é o vínculo de união entre Cristo e seu povo, que
perseguir este é perseguir aquele. Significativamente, Paulo mais tarde
vê parte de sua função apostólica, de fazer conhecido aos gentios este
grande mistério: “Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.27).
Portanto, união com Cristo, pela habitação do Espírito, é o tema central
no qual Paulo denomina [o evangelho] de “meu evangelho” (Rm 2.16;
16.25).
As diversas proposições usadas para descrever o vínculo dos
crentes com Cristo, através do Espírito, lançam luz sobre a intimidade e
extensão da união com ele.
(1) Os crentes estão unidos a Cristo num vínculo de união tal que
ele podia dizer que ele [Cristo] havia morrido “por” eles (hyper, p. ex.,
Rm 5.6, 8; 8.32; 2Co 5.21). Tal relacionamento de união fora forjado
entre Cristo e seu povo, que o que ele faz é deles.
(2) Nos momentos redentivos centrais na obra de Cristo, os crentes
lhe estão unidos de tal forma que podem dizer que estão “com” ele
neles, de modo que esses eventos têm perenes implicações para sua
presente vida.
Às vezes “com [syn] Cristo” significa “presente com” (p. ex., em Fp
1.23). Mas, em outras partes, em verbos compostos com o prefixo syn,
ele comunica a ideia de participação em (p. ex., Gl 2.20, “crucificado
com Cristo”; Rm 6.4, “sepultado com ele”; Rm 6.8, “viver com ele”).
(3) Supremamente em Paulo, e característico de seu pensamento, é
o uso da frase “em Cristo” (en Christō). Ela sumaria tudo o que significa
ser cristão, e deveras é usada como um sinônimo virtual de “cristão” em
2 Coríntios 12.2 (“Conheço um homem em Cristo”) e Romanos 16.7
(“Andrônico e Júnias, meus parentes... estavam em Cristo antes de
mim”).
A chave mais forte para apreciar-se a significação teológica desta
ideia está na frase paralela de Paulo “em Adão” (1Co 15.22; cf. Rm
5.12-21). Estar “em Adão” equivale a estar unido a ele de tal maneira
que tudo o que fez Adão, em sua qualidade representativa, torna-se
meu, e determina minha existência, seja pelo pecado conduzindo à
morte, ou pela justiça conduzindo à vida. Num modo analógico, estar
“em Cristo” significa que tudo o que ele fez por mim,
representativamente, se torna realmente meu.
Esta união com Cristo pode ser vista por três prismas diferentes,
porém complementares. Podemos ainda dizer que ela ocorre em três
“momentos”: o eternal, o encarnacional e o existencial.
(1) Os crentes foram eleitos em Cristo antes da fundação do
mundo, a fim de, abençoados na união pactual com ele, fossem para o
louvor de sua glória (Ef 1.3, 4, 11, 12). Há uma dimensão desta união
que transcende nossa própria existência pessoal e recua ao plano e
propósito de Deus na eternidade. Aqui está em pauta uma
determinação soberana e monergística, mas Paulo não esclarece mais (e
talvez não pudesse) o significado do que ele diz. Não obstante, ele nos
diz que a eleição divina dos crentes se relaciona com sua escolhida pré-
criação de Cristo o Mediador.
Cristo e seus membros são o que Agostinho e outros têm chamado:
totus Christus, o Cristo integral, inseparavelmente unido por eterna e
divina determinação. O que em Cristo nos tornamos não repousa no que
somos, mas tem a eleição de Cristo mesmo como seu fundamento. União
com Cristo, pois, tem a mais profunda possível de todas as raízes.
(2) A união com Cristo se acha radicada em sua encarnação em
nossa carne. Isto tem dois aspectos.
No poder do Espírito Santo, o Filho de Deus tomou nossa carne a
fim de, nela, poder prover a salvação de que carecemos, perfeitamente
adaptada às nossas necessidades. Ele veio “em semelhança humana”
(Fp 2.7); “na semelhança de homem pecaminoso” (Rm 8.3). Ele tomou
nossa carne, uniu-se à nossa humanidade, a fim de levar, por nós,
nossos pecados. Além do mais, ele entrou em nossa carne a fim de ser o
archēgos de nossa salvação, aquele que exerceu obediência e justiça
para que as mesmas fossem, então, exercidas em nós através do Espírito
(Rm 8.3-4). “Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem
todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória,
aperfeiçoasse por meio de sofrimentos o Autor [archēgos] da salvação
deles. Pois, tanto o que santifica, como os que são santificados, todos
vêm de um só... Visto, pois, que os filhos têm participação comum de
carne e sangue, destes também ele igualmente participou... Por isso
mesmo convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos
irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas
referentes a Deus, e para fazer propiciação pelos pecados do povo” (Hb
2.10-17; cf. 12.2).
Em virtude de nossa união com Cristo estar radicada em sua carne,
e ter seu Espírito como seu agente hipotecário, temos parte nas
implicações dos grandes momentos de sua obra redentiva; estamos
assim crucificados, sepultados, ressuscitados e ascendidos nele (cf. Gl
2.19-20; Rm 6.1ss.; Ef 2.6; Cl 2.6–3.4). Nossas vidas não mais são
determinadas pelo que Adão fez, mas pelo que Jesus Cristo tem feito
(Rm 5.12-21; 1Co 15.20-28.).
Todavia somos unidos a ele não só no que ele efetuou em nosso
lugar, mas também no status em que ele, como Mediador, inaugurou
por meio de Deus. Em união com ele, nosso status é assim radicalmente
transformado. Além disso, nossa condição pessoal é progressivamente
alterada até que ele nos transforme no último grau de glória quando
regenerar nossa existência física e transformá-la em fotocópia de seu
próprio corpo glorioso (Fp 3.21). E assim, pelo vínculo do Espírito de
união com Cristo, tudo o que é dele, como Mediador, nos é concedido
pela graça. Nossa vida genuína e final está oculta com Cristo em Deus
(Cl 3.3; cf. 1Jo 3.2).
(3) Além do mais, esta união, que no tocante ao seu aspecto ideal
foi proposta na mente de Deus antes de haver tempo, e no espaço de
tempo contínuo se baseia na encarnação, torna-se uma realidade
existencial através da habitação do Espírito de Cristo em sua fé
correlata. Isso determina a totalidade da vida. Segundo o Novo
Testamento, é “em Cristo” que somos livres; nele vivemos para o louvor
da glória de Deus; é nele que nos unimos e damos as boas-vindas uns
aos outros; é em Cristo que falamos e temos sabedoria; é em Cristo que
morreremos. Nossos próprios corpos são, em certo sentido, membros de
Cristo, visto que, como pessoas físicas, participamos de um só Espírito
com ele (1Co 6.15, 19).
Há também mutualidade nesta união. Embora ela tenha uma
dimensão supratemporal e supraindividual (estávamos em Cristo antes
da fundação do mundo), é também próprio falar de “antes” e “depois”.
Sua plena realização se dá em nossa própria existência quando o
Espírito nos une a Cristo mediante a fé. Na linguagem idiossincrática de
Paulo, “cremos em [pisteuein eis] Cristo”. Por isso, embora tenhamos
sido eleitos em Cristo “antes da criação do mundo” (Ef 1.4), até
confiarmos nele somos propriamente vistos como “por natureza objetos
da ira” (Ef 2.3) e “separados de Cristo” (2.12). Somente quando formos
justificados pela graça, através da fé, e o propósito pactual de Deus se
concretizar em nós, podemos falar em estarmos unidos a Cristo.
Consequentemente, em Romanos 16.7, numa notável mudança da frase,
Paulo fala de seus parentes, Andrônico e Júnias, como estando “em
Cristo antes de mim”.
Esta união nos introduz na órbita da transformação escatológica
efetuada por Cristo em sua ressurreição, transformação e glória.
Quando alguém está em Cristo, diz Paulo, a nova criação (não
simplesmente “nova criatura”) é a herança (2Co 5.17). Como feitura de
Deus (Ef 2.10), somos introduzidos na esfera da regeneração divina de
todas as coisas que já foram inauguradas na ressurreição de Cristo.
Todavia, ao mesmo tempo o Espírito de tal forma engaja todo nosso ser
para que, ao pertencer a Cristo há uma “mutualidade” ou “vínculo
pactual”, de modo que a obra do Espírito e a fé dos crentes são
absolutamente correlatas na união (como Paulo indica em Gl 2.17–3.4).
Aliás, uma teologia reformada, não menos vigorosa que a de B. B.
Warfield, está preparada para descrever isto, intrepidamente, por meio
da linguagem de “sinergismo”:
Mas é um sinergismo de tal caráter que não só a iniciativa é tomada por Deus
(pois “todas as coisas estão em Deus”, 2Co 5.18; cf. Hb 6.6), mas a ação
divina está na excessiva grandeza do poder de Deus, segundo a operação da
força de seu poder que ele operou em Cristo quando este ressuscitou dos
mortos (Ef 1.19). Portanto, o “novo homem” que é o resultado desta mudança
é aquele que é descrito como “criado” (ktisthenta) em justiça e santidade da
verdade (Ef 4.24).[87]

É da natureza da atividade da fé que este sinergismo, ou


mutualidade pactual, não comprometa a soberania absoluta e a
diáfana graça de Deus em nossa salvação. É sempre “por causa dele
[Deus]” que estamos “em Cristo Jesus” (1Co 1.30).
Quais, pois, são as implicações de considerar-se a união com
Cristo através da fé como a perspectiva que envolve a obra do Espírito
na aplicação da redenção? Pode-se observar três pontos aqui.

Implicações
Primeiramente, a obra do Espírito é essencialmente o ministério de
unir-nos a Cristo, e então desvendar para nós e em nós as riquezas da
graça de Deus as quais herdamos em Cristo. Calvino, uma vez mais,
capta isto numa de suas mais eloquentes passagens:
Vemos que nossa salvação e todas as suas partes se acham compreendidas em
Cristo (At 4.12). Portanto, tomamos cuidado para não derivar a mínima
porção dela de qualquer outra fonte. Se buscamos a salvação, somos
instruídos pelo próprio nome de Jesus que ela procede “dele” (1Co 1.30). Se
buscamos quaisquer outros dons do Espírito, serão encontrados em sua
unção. Se buscamos força, ela se encontra em seu domínio; se pureza, em sua
concepção; se mansidão, ela aparece em seu nascimento... Se buscamos
redenção, ela está em sua pessoa; se absolvição, em sua condenação; se
remissão da maldição, em sua cruz (Gl 3.13); se satisfação, em seu sacrifício;
se purificação, em seu sangue; se reconciliação, em sua descida ao inferno; se
mortificação da carne, em seu túmulo; se novidade de vida, em sua
ressurreição... Em suma, já que o rico depósito de todo gênero de bem
transborda dele, bebamos desta fonte nossa suficiência, e de nenhuma outra.
[88]
A segunda implicação, enfatizada de várias formas no Novo
Testamento, consiste em que, embora continuemos sendo influenciados
por nossa vida pregressa, “na carne”, ela não mais é a influência
dominante em nossa presente existência. Não mais vivemos na carne,
mas no Espírito (Rm 8.9). O passado de Cristo (se assim podemos
expressar) é agora dominante. Nosso passado está “em Adão”; nossa
presente existência é “em Cristo”, no Espírito. Isto implica não só em
termos sociedade com ele na comunhão do Espírito, mas em que nele
nossa culpa pregressa é tratada com a lei, bem como nossa escravidão
ao pecado, e a morte, já chegou a um fim.
Em terceiro lugar, a união com Cristo, por meio do Espírito, se
baseia em sua união conosco em nossa humanidade. É a partir daí que
nossa transformação é efetuada pelo Espírito. Pois união com Cristo
não é equivalente a deificação ou misticismo. O Verbo se fez carne a fim
de tornar-se o archēgos de uma humanidade salva. O alvo do Espírito é
a transformação à imagem de Deus como aquela que se expressa na
humanidade de Cristo, de modo que os crentes se tornam
progressivamente mais verdadeira e plenamente humanos.
Isso, igualmente, contém maiores e mais importantes ramificações
que veremos em evidência mais adiante, quando discutirmos o
ministério santificador do Espírito. Elas são sucintamente expressas por
Louis Berkhof, quando diz:
“Por meio desta união, os crentes são transformados na imagem de Cristo
segundo sua natureza humana. O que Cristo efetua em seu povo é, em certo
sentido, uma réplica ou reprodução do que aconteceu com ele. Não só
objetivamente, mas também num sentido subjetivo, levam a cruz, são
crucificados, morrem e ressuscitam para novidade de vida com Cristo. Em
certa medida participam das experiências de seu Senhor.”[89]

[68] Ver Willem ª Van Gemeren, “The Spirit of Restoration”, Westminster Theological
Journal 50.1 (1988), pp. 81-102.
[69] Robert Bellarmine, De Justificatione, III.2.3. Semelhantemente, o Concílio de Trento
declarou que “Ninguém pode saber com certeza de fé... que obteve a graça de Deus”
(Decreto sobre a Justificação, Sessão VI, capítulo 9).
[70] A expressão tem sido atribuída a F. Buddeus, Institutiones Theologiæ Dogmaticæ
(1724) e J. Karpov, Theologia Revelata Dogmatica (1739), indicando a emergência da
terminologia, mas de forma alguma a ideia propriamente dita, na assim chamada
ortodoxia escolástica protestante do século dezessete.
[71] Ver Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, la Ilae q. 112, “On the Cause of Grace”.
[72] The Wokes of William Perkins (3 Vols; Cambridge, 1612-19), vol. 1, pp. 11-117.
[73] Cf. G. C. Berkouwer, Faith and Justification (Grand Rapids, MI: Eeerdmans, 1954),
pp. 29-33; Karl Barth, Church Dogmatics, tr. G. W. Bromiley e T. F. Torrance (Edinburgo: T.
& T. Clark, 1958), IV.2, p. 502; Otto Weber, Foundations of Dogmatics, tr. D. Guder (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1983), vol. 2, pp. 336ss.
[74] H. N. Ridderbos, Paul: An Outline of his Theology, tr. J. R. de Witt (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1975), p. 206.
[75] Ver R. ª Muller, Christ and the Decree (1986; repr. Grand Rapids, MI: Baker Book
House, 1988), para uma equilibrada defesa de Perkins e outros escritores pós-Reforma
com respeito à questão de sua cristocentricidade.
[76] Hendrikus Berkhof, The Christian Faith, tr. S. Woustgra (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1979), p. 479.
[77] João Calvino, Instituição da Religião Cristã, tradução de Waldyr Carvalho Luz, (Casa
Editora Presbiteriana, São Paulo, 1989), p. 1.
[78] João Calvino, Comentário a Romanos, tradução de Valter Graciano Martins, Edições
Parakletos, São Paulo, 1997, p. 212.
[79] João Calvino, Comentário a 1 Coríntios, tradução de Valter Graciano Martins, Edições
Parakletos, São Paulo, 1996, p. 36.
[80] Fhilip Melanchthon, Loci Communes, 2.7.
[81] Breve Catecismo Westminster, questão 38.
[82] Para o que se segue, ver Richard B. Gaffin, Jr., Resurrection and Redemption
(originalmente publicado como The Centrality of the Resurection, 1978; Grand Rapids,
MI: Baker Book House, 1987), pp. 114-127.
[83] Ibid. p. 116.
[84] Ver o notável ensaio de Geerhardus Vos, “The Escchatological Aspect of the Pauline
Conception of the Spirit” (1912), originalmente publicado em Biblical and Theological
Studies (Nova York, 1912), e agora reimpresso em Richard B. Gaffin, Jr. (ed.), Redemptive
History and Biblical Interpretation (Phillipsburg, NJ: Presbyterian & Reformed, 1980), pp.
91-125, esp. pp. 103-105.
[85] Ver John Murray, “Definitive Sanctification”, in Collected Writings (Edinburgo:
Banner of Truth, 1977), vol. 2, pp. 277ss.
[86] Ver, p. ex., Charles Hodge, I Corinthians (1857; repr. Londres: Banner of Truth, 1858),
p. 105. Gordon Free mantém nitidamente a ambiguidade: “O crente é unido ao Senhor, e
por isso se torna um só E/espírito com ele...” The First Epistle to the Corinthians [Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1987], p. 260.
[87] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929; repr.
Edinburgo: Banner of Truth, 1988), p. 451.
[88] Institutas, II.16.9.
[89] L. Berkhof, Teologia Sistemática, Luz para o Caminho, Campinas-SP, 1990, p. ?
6
O ESPÍRITO RECRIADOR
A união com Cristo, à qual o Espírito nos conduz, é multidimensional
em seu caráter. Estar “em Cristo”, diz Paulo, é ingressar-se na “nova
criação” (2Co 5.17); a velha ordem de pecado e morte, a era dominada
pela carne e pelo diabo, cedeu lugar a uma nova ordem de realidade na
ressurreição de Cristo. E assim, a obrigação mútua entre Cristo e seu
povo, no Espírito, é a concretização de tudo o que fora prefigurado no
antigo pacto firmado entre Yahweh e seu povo no Êxodo e na entrada na
terra do descanso; com base na obra do Messias, ela é formada pela
obra contínua do Espírito, criando uma nova humanidade.
Em virtude de ser multidimensional, a vida em união com Cristo é
necessariamente vista no Novo Testamento a partir de várias
perspectivas. Ela envolve identificação com ele em sua morte,
ressurreição e ascensão; mas envolve também uma correlação da ação
de Deus com a ação do homem. Como já vimos, a Escritura realça suas
raízes monergísticas (Deus é seu autor); é bilateral em sua natureza,
com a fé como sua outra polaridade. Os liames da regeneração e da fé
são inextricavelmente entretecidos. O Espírito é ativo em ambas as
dimensões de atividade. Esses liames são suscetíveis de análise (aliás,
não devem ser considerados como idênticos), mas não podem ser
existencialmente separados uns dos outros. Pertencem-se de tal
maneira que não podemos marcar uma ligadura onde a ação
monergística de Deus termina e a atividade do crente começa. Neste
contexto, é significativo que ambos, a regeneração e os elementos da
conversão, são, no Novo Testamento, considerados como dons de Deus.

Regeneração
A união com Cristo é inaugurada pela obra renovadora do Espírito, na
qual ele começa a transformação à imagem de Cristo, a qual se
completará no eschaton. Assim se cumpre a antiga promessa de que
Deus daria a seu povo um novo coração e novo espírito pela habitação
de seu Espírito, resultando num novo estilo de vida (Ez 36.24-27).
No Novo Testamento, esta transição foi marcada pelo rito do
batismo. Durante o tempo de Justino Mártir e Irineu, no final do
segundo século d.C., a regeneração já parecia ter-se tornado tão
estreitamente associada ao símbolo do batismo, que se interpretavam
os dois como sendo coincidentes. Tal suposição tornou-se tão refinada,
que o sinal e o elemento significado se relacionavam de uma forma sine
qua non, e um ponto de vista sacramentalista da regeneração chegou a
dominar a teologia da igreja. Mesmo na visão de Agostinho, para quem
os reformadores olhavam como o grande teólogo da graça, a ideia da
regeneração à parte do batismo com água era inimaginável. A doutrina
do limbus infantum, para aqueles que morriam na infância sem o
batismo, tornou-se assim virtualmente uma necessidade dogmática
para a igreja medieval.
Embora os principais pensadores da Reforma continuassem a
enfatizar o papel e a necessidade do batismo como o sinal da
regeneração, argumentavam que qualquer identificação dos dois tem de
ser vista como sacramental e mecânica; o sinal e o elemento significado
não devem ser confundidos, como se a graça indicada pelo sinal
estivesse contida nele.
Particularmente no ensino de Calvino, o termo “regeneração” era
usado para denotar a renovação que o Espírito efetua em todo o curso
da vida cristã. Para ele, ela descreve a mesma realidade denotada pela
“conversão” e pelo “arrependimento”, porém vista por um prisma
diferente.[90] Mais tarde, em muitos escritores do século dezessete,
houve a tendência de se tratar a vocação eficaz e a regeneração como
sinônimas. Só no desenvolvimento contínuo da teologia evangélica o
termo veio a ser usado no sentido mais limitado e particular da
inauguração da nova vida pela soberana e secreta atividade de Deus.[91]
Enquanto isso servia para focalizar a atenção no poder de Deus em
doar a nova vida, quando separado de seu contexto teológico próprio,
era suscetível de ser subjetivado e posto no campo da psicologia numa
extensão tal que o termo “novo nascimento” veio a desloca-se de suas
raízes bíblicas.
Mas, o que o próprio Novo Testamento tem em vista quando fala de
“regeneração”? Na estrutura da soteriologia evangélica, a regeneração
tem ocupado um papel tão central, que o “segundo nascimento” chegou
a ser considerado como o elemento definitivo da genuína experiência
cristã. No entanto, o termo neotestamentário para regeneração,
palingenesia (de palin, “de novo”, e genesis, “começo”), ocorre somente
duas vezes no Novo Testamento. Em Mateus 19.28, ele indica a
“renovação” de todas as coisas, o renascimento final do universo,
significado esse que se põe em marcante contraste com seu uso no
pensamento estóico, como sendo a restauração periódica do mundo.
Aqui, palingenesia é a ressurreição final, a adoção concretizada
dos filhos de Deus, a redenção de seus corpos e de toda a criação
gemente (Rm 8.19-25.), bem como o estabelecimento dos novos céus e
da nova terra, onde habita a justiça (2Pe 3.13). Ela é cósmica em seus
efeitos.
A outra ocorrência de palingenesia se encontra em Tito 3.5, onde
Paulo fala do “lavar do renascimento [palingenesia] e renovação pelo
Espírito Santo”. É difícil ser dogmático sobre o significado desta frase. A
lavagem consiste em renascimento, efetua o renascimento, ou simboliza
o novo nascimento (através do batismo)? A afirmação indica duas ações
(lavagem e renovação), ou é hendíades (em que uma ideia singular é
denotada por duas expressões).
Esta última interpretação parece razoável; e se for válida sugere
uma notável conexão entre a regeneração do indivíduo e o raiar da nova
era, já que somente o outro uso que Paulo faz de “renovação”
(anakainōsis, Rm 12.2) serve à função de enfatizar o contraste entre a
presente ordem mundial e a da era por vir. Além do mais, como realça
H. N. Ridderbos, o derramamento do Espírito a que Paulo se refere
neste contexto constitui uma “terminologia tipicamente escatológica”.
[92] Ele sublinha o fato que Paulo vê a regeneração dentro de um
contexto mais amplo, como um compartilhar da ressurreição e da
renovação que foram inauguradas pelo Espírito em Cristo. Portanto, a
renovação que se efetua na regeneração (e simbolizada no batismo) é
não meramente uma mudança interior; é a incursão de uma nova
ordem na presente ordem de realidade. Assim a regeneração
(palingenesia) e os cognatos (anagennaō, gennēthēnai anōthen)
denotavam não simplesmente o fenômeno da mudança espiritual
dentro, de baixo, por assim dizer, mas transformação de fora e de cima,
causada pela participação no poder da nova era, e mais especificamente
pela comunhão, através do Espírito, com o Cristo ressurreto como o
segundo homem, suas primícias, o Adão escatológico (ho eschatos
Adam, 1Co 15.45). Esta é a nota que se tornou emudecida no ensino da
igreja pós-apostólica, mas que precisa ser redescoberta.

Nova Criação — Nova Vida


Embora o termo “regeneração” não seja estritamente associado à obra
do Espírito Santo no Novo Testamento, ele amplia a ideia de
inauguração no reino de Deus como o Espírito que opera o novo
nascimento, e é de fato fundamental na teologia joanina: “Mas, a todos
quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a
saber: aos que creem em seu nome; os quais não nasceram do sangue,
nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.12-13). Que este
nascimento é obra do Espírito, se realça mais adiante pelas palavras de
Jesus a Nicodemos: “Quem não nascer da água e do Espírito, não pode
entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é
nascido do Espírito, é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-
vos nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves sua voz, mas não
sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido de
novo” (Jo 3.5-8). Ser “nascido de Deus” (i.e., através do Espírito) vem a
ser uma descrição tão característica de ser um cristão, na teologia
joanina, como a expressão “em Cristo” no corpus paulino (cf. 1Jo 2.29;
3.9; 4.7; 5.1, 4, 18).
Em outras partes do Novo Testamento usa-se linguagem
semelhante da obra renovadora de Deus. Embora a referência ao
Espírito seja menos direta, não obstante subentende-se sua ação
soberana (p. ex., Tg 1.18; 1Pe 1.3, 23). Paulo vê os cristãos como sendo
semelhantes a Isaque, filhos da promessa, “nascidos pelo poder do
Espírito” (Gl 4.29).
A regeneração se radica de modo causal na ressurreição de Cristo
(1Pe 1.3). Semelhança produz semelhança; nossa regeneração é o fruto
da ressurreição de Cristo. Em união com Cristo, ela se efetua aqui e
agora e se consumará em seu regresso. Ele é as primícias da
ressurreição-regeneração do fim dos tempos; tomaremos parte na ceifa
final; mas, através do vínculo de união no Espírito Santo, já
partilhamos das primícias (Rm 8.23).
Aqui, pois, nas profundas estruturas do pensamento
neotestamentário, se realça a natureza escatológica da regeneração. O
Espírito que veio no Pentecostes é o Espírito da era vindoura; o mundo
para o qual ele leva os crentes é marcado pelos poderes do aiônio por
vir (Hb 6.4-5), como era o ministério de Jesus no sentido em que seus
milagres eram em si sinais confirmatórios de que a antecipação da era
futura do Messias e seu Espírito já havia chegado.

Monergismo Divino
As declarações do Novo Testamento sobre a regeneração enfatizam a
atividade soberana, monergística, do Espírito. A metáfora do
nascimento propriamente dita implica não só um novo e radical
começo, mas um [novo começo] que nunca é autônomo. Em outra parte,
por detrás deste novo nascimento, o monergismo divino é expresso em
antíteses: nascemos, não por nossa própria vontade, mas por decisão
divina (Jo 1.12); de cima, não de baixo; do Espírito, não da carne (Jo
3.3, 5-6); de Deus, não do homem (1Jo 2.29; 3.9; 4.7; 5.1, 4, 18); pela
eleição divina, não pela nossa; através de sua palavra, não das energias
de uma vontade autônoma (Tg 1.18). Aqui, a prioridade é segundo
Deus, não segundo o homem. A razão para isso é que o homem é
“carne”.
Em sua conversação com Nicodemos, Jesus lhe diz que ele não
devia sentir-se surpreso com o fato de que ele tinha que “nascer de
novo/de cima” (Jo 3.7). Tal necessidade é universal: sem o novo
nascimento, ninguém pode ver o reino de Deus e nem entrar nele (Jo 3.3,
5). Aqui, o acento é posto fortemente na incapacidade do homem. A
negação da capacidade humana (no negativo do verbo dynasthai, “ser
capaz, ter o poder”) ocorre cinco vezes em João 3.3-10. Como carne, o
homem só pode gerar mais carne. não pode gerar espírito, nem o que é
espiritual. Somente o Espírito de Deus pode fazer isso (Jo 3.6). Já que o
reino de Deus é o reino do Espírito, nenhuma carne lhe tem acesso.
É amplamente aceito que “carne” (sarx) provavelmente tenha em
João uma nuança diferente daquele uso característico de Paulo (sarx =
natureza humana debilitada pelo pecado). Visto que para João o Logos
eterno se fez sarx (Jo 1.14), isto teria em vista fraqueza e debilidade,
antes que estado pecaminoso, como tal, da natureza humana. O
comentário de E. Schweitzer é representativo: “Está completamente
ausente a nuança daquilo que é pecaminoso ou que seduz ao
pecado.”[93] Assim, o homem está sendo visualizado à parte de Deus, e
em contraste com ele, em sua energia espiritual inexaurível.
Tal uso de sarx não nega o estado pecaminoso do homem como a
raiz e causa da condição sem o Espírito, mas o que está em pauta é o
efeito em vez de causa. Sarx focaliza o homem à parte de Deus. Como
carne, requer-se de nós o novo nascimento, uma vez que nos achamos
privados da vida e da energia do mundo do Espírito. Se temos que
pertencer ao reino, ou à família, do Espírito, então temos que “nascer
de cima”, pelo Espírito. Só assim seremos capazes de “adorar no
Espírito” (Jo 4.23-24).
Como carne, os homens e mulheres não podem ver (i.e.,
experimentar, Jo 3.36; 8.51) ou entrar no reino de Deus (Jo 3.3, 5). Ser
carne é ser cego e insensível para com as realidades do reino de Deus
governado pelo Espírito, e deixar de entender ou aceitar a natureza da
realidade espiritual (cf. 1Co 2.14).
A conversação de Jesus com Nicodemos fornece uma notável
ilustração deste fato. Nicodemos pergunta como o novo nascimento é
possível. Ele não consegue entender as palavras de Jesus. O “segredo do
reino de Deus” é um completo mistério para o homem que vem “de
noite” (Jo 3.2); ele ainda necessita de sair das trevas intelectuais
comuns a todos aqueles a quem não foi dado nascer do Espírito (cf. Jo
3.2, 19-21).
Isso conduz a mais um estágio. O homem é não só espiritualmente
cego, mas também espiritualmente impotente para entrar no reino: “A
menos que alguém nasça da água e do Espírito, não pode entrar no
reino de Deus” (Jo 3.5, RSV). Deixando de lado, por um instante, a
enigmática frase, “da água e do Espírito”, esta afirmação enfatiza
claramente a incapacidade humana. Embora em Cristo o reino já tenha
vindo, o homem é impotente para ingressar nele por meio de “a vontade
da carne” (cf. 3.3: incapaz de ver, ou dynatai idein; e 3.5: incapaz de
entrar, ou dynatai eiselthein). Ninguém pode ir a Cristo (i.e., crer nele)
a menos que seja atraído (soberanamente) pelo Pai (Jo 6.44-45).
Consequentemente, em João a regeneração é considerada como o
sine qua non da vida eterna. Isso só pode ser efetuado de cima.
Evidentemente, não podemos ser introduzidos no reino sem auxílio, da
mesma forma como não podemos ser concebidos nem nascer sem
auxílio.
Portanto, o que está envolvido na obra da regeneração efetuada
pelo Espírito?

Aspectos da Regeneração
O que é regeneração? A obra do Espírito de renovação radical envolve
vários elementos. O primeiro implica iluminação espiritual: o reino de
Deus, que outrora não era reconhecido, agora se torna nitidamente
visível.
João explica isso em termos daquela “unção” que os cristãos têm
recebido, que resulta em seu conhecimento da verdade (1Jo 2.20). Não
dependem de alguém que os ensine (1Jo 2.27). Ora, em Cristo, todos os
crentes tomam parte em sua unção com o Espírito, e têm conhecimento
do Senhor sem mediação humana, em distinção do antigo conhecimento
pactual de Deus que era mediado pelos profetas, sacerdotes e reis. Isso
é o que estava implícito na promessa do novo pacto (Jr 31.33).
Não significa que o indivíduo regenerado entenda tudo no instante
da regeneração, como o cego que, ao receber sua vista, não vê tudo
imediata e simultaneamente. Ele vê aquilo em que seus olhos se fixam
quando recebem sua visão, e então isso é posto num contexto mais
amplo. Assim é com aqueles que nascem do alto e têm seu entendimento
espiritual iluminado. Essa é uma das razões por que a consciência dos
indivíduos, na regeneração, é constrangida a diferenciar uma pessoa da
outra.[94]
O segundo é que a regeneração envolve libertação da vontade, de
sua escravidão numa natureza dominada pelo pecado. O homem é
incapaz de entrar no reino de Deus sem regeneração. Segue-se que o
elemento central na regeneração consiste naquele revestimento de
poder do Espírito na vontade humana, de uma forma orientada, dentro
do reino. Antes da regeneração, ele não deseja vir para a luz (Jo 3.5,
20). Agora ele vem para a luz; aliás, ele não consegue recusá-la.
O terceiro é que há na regeneração um aspecto de purificação.
Provavelmente este seja o significado da difícil frase “nascer da água”
(3.5). Várias interpretações deste elemento têm sido aceitas na igreja,
pondo-o em pé de igualdade com o batismo (envolvendo a regeneração
batismal), determinando que a referência, aqui, é à geração natural,
como em João 1.12, já que no pensamento antigo água, chuva e orvalho
são geralmente usados como uma referência ao sêmen masculino; neste
caso, Jesus estaria simplesmente realçando a necessidade de ser
“duplamente nascidos”: homens e mulheres.
Contudo, a referência à água é melhor interpretada à luz do
provável antecedente desta seção do ensino de Jesus na promessa do
novo pacto em Ezequiel 36.25-27: “Então aspergirei água pura sobre
vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícies e de todos os
vossos ídolos...”. No restante da passagem, Jesus só fala de um
nascimento, o nascimento de cima (3.3, 6, 7). Provavelmente, “água e
Espírito se referem à dupla obra do Espírito na regeneração:
simultaneamente, ele confere nova vida e purifica o coração.[95]
Em qualquer caso, a purificação que ocorre na regeneração é
realçada em Tito 3.5, e provavelmente também em 1 Coríntios 6.11:
“Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados
em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus.” Aqui,
“lavados” e “santificados” são equivalentes a regeneração. Na
regeneração, os desejos são renovados e purificados, pelo que Thomas
Chalmers (1780-1847) chamou de “o poder expulsivo de uma nova
afeição”. O Espírito faz o espírito nascer (Jo 3.6), no sentido de criar
apetite para o novo estado e suas realidades. Como Ezequiel o expressa
de modo maravilhoso, a obra renovadora do Espírito faz seus
recipientes “solícitos” em fazer a vontade do Senhor (Ez 36.27).
Portanto, a obra do Espírito na regeneração é plenária na extensão
de seu poder transformador. É o indivíduo, como tal, que é regenerado,
o homem em sua totalidade. Porquanto a regeneração é a concretização
da promessa de Deus de dar-nos um novo coração (Ez 36.26; cf. Jr
31.33), indicando que a obra renovadora do Espírito é tanto intensiva
quanto extensiva: ela atinge os impulsos mais recônditos da vida do
indivíduo e não deixa intocada nenhuma parte de seu ser.
A regeneração, consequentemente, é tão abrangente como a
depravação. Com base em tais declarações, de que “o coração... é
desesperadamente corrupto” (Jr 17.9), os teólogos o têm expresso em
termos de depravação total, significando não que o homem seja tão mau
quanto poderia ser, mas que nenhuma parte de seu ser escapa de ser
atingida pela influência do pecado. A regeneração reverte essa
depravação, e é universal no sentido de que, embora o indivíduo
regenerado não seja ainda santo como poderia ser, não existe nenhuma
parte de sua vida que não seja influenciada por esta obra renovadora e
purificadora. Aliás, assim como a depravação total leva à desintegração
moral e, finalmente, até mesmo física, assim a regeneração total leva à
renovação moral e, finalmente, também à renovação física, na
regeneração de todo o ser na ressurreição (Fp 3.21; 1Co 15.42-44). O
novo homem é revestido; ele está sendo constantemente renovado pelo
Espírito (Cl 3.10) e, finalmente, será ressuscitado e glorificado pelo
poder do Espírito.
Os teólogos mais antigos falavam desta mudança radical como
“física”. Embora a expressão agora pareça infeliz, sua preocupação era
realçar o fato que a regeneração não é meramente uma persuasão
intelectual; é uma transformação da natureza (physis) caída. Ela
penetra profundamente. É a dádiva de um novo coração.[96]

A Soberania do Espírito
Como o Espírito efetua o novo nascimento? Sua obra é tão misteriosa
quanto soberana. Jesus compara sua atividade ao vento, provavelmente
refletindo as palavras de Eclesiastes 11.5: “Assim como não sabes qual
o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher
grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as
coisas.” Ouvimos o som que o vento faz quando roça pelos objetos em
seu percurso, mas não sabemos donde ele vem nem para onde vai. A
presença do Espírito é percebida exclusivamente por seus efeitos.
Portanto, em certo sentido não temos acesso à divina atividade na
regeneração, somente aos seus acompanhamentos imediatos. Ouvimos
“o som” que o Espírito efetua em expressões de fé e de arrependimento.
Os que inicialmente não queriam confiar em Cristo, agora o fazem livre
e espontaneamente.
Nessa conjuntura, as clássicas formulações protestantes da
regeneração corretamente recusam-se comprometer seja a integridade
da pessoa humana (não somos “forçados” por pressão externa), seja a
necessidade do monergismo divino (estamos “mortos” espiritualmente,
e não podemos conduzir-nos à vida por um ato de nossa própria
vontade). E assim observam que Deus ilumina as mentes humanas
…Isto ele o faz iluminando seus entendimentos, espiritual e salvificamente, a
fim de compreenderem as coisas de Deus, tirando-lhes seus corações de pedra
e dando-lhes corações de carne, renovando suas vontades e determinado-as,
por sua onipotência, para aquilo que é bom, e atraindo-os eficazmente a Jesus
Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos
por sua graça.[97]

O ponto de tensão que encontramos aqui — os que são indispostos


se tornam dispostos — de fato é um subitem da questão maior do
engajamento do divino-humano e, de diversas maneiras, forma paralelo
com o mistério semelhante na interação do divino e do humano, tanto
na providência quanto na inspiração da Escritura. O equívoco mais
comum praticado nas tentativas de resolver esta tensão consiste em
tentar dividir o campo de atividade entre o Espírito e o homem (esta é
uma obra do Espírito, em sua maior parte, mas parcialmente do
homem, ou igualmente do Espírito e do homem?). A concepção comum
consiste nisto: se ela é uma obra monergística do Espírito, então a
vontade da pessoa humana tem de ser forçada. E assim não
conseguimos reconhecer o princípio bíblico em pauta, a saber, que o
Espírito e o indivíduo são ambos ativos no mesmo campo — uma vida
humana — simultaneamente. Mas a vinda espontânea a Cristo, com fé,
depende da soberana atração do Espírito. Visto que o Espírito opera em
nós, somos capazes de uma resposta espontânea. A soberana atividade
divina não nega a necessidade da atividade humana; ao contrário, ela é
a base e a torna possível.
A Escritura não vê as operações do Espírito com base nos poderes
mentais, volitivos e afetivos como independentes da integridade do
indivíduo, como se a regeneração do indivíduo fosse uma ocorrência
abstrata. Ao contrário, o indivíduo é uma criatura que pensa, quer e
sente. É uma pessoa completa. O Espírito opera dentro de um contexto
amplo da mente, vontade e emoções. Consequentemente, embora a
regeneração seja vista por João como uma atividade soberana e
monergística, ela não se concretiza num vácuo, mas efetua-se através
das ordenanças de Deus direcionadas à pessoa como um todo. Através
da palavra do evangelho há apelo à mente e os sentidos são afetados
pelo testemunho e cuidado cristãos, de modo que a fé se vê
constrangida. A nível de análise, o indivíduo muda sua mente
(arrependimento) e se converte para Cristo (fé). Mas isso — que ele faz,
ainda que impotente para fazê-lo — ele o faz através da obra
renovadora do Espírito.
Portanto, fica evidente que a soberania do Espírito na regeneração
não é antitética a uma ênfase radical sobre o papel da fé na salvação;
pois a fé é oriunda do contexto da palavra (Rm 10.14).
No Novo Testamento, isso é realçado por afirmações que sugerem
que a regeneração propriamente dita se concretiza por meio da palavra
de Deus (p. ex., 1Pe 1.23; Tg 1.18; Jo 15.3, em tudo o que a palavra é
vista como instrumental na regeneração). A palavra de Deus nos engaja
na esfera de nossa consciência, evocando uma resposta. Ela opera na
esfera de nossa ação responsiva.
Mas, como pode a regeneração ocorrer através da palavra sem que
isso enfraqueça a atividade monergística e soberana do Espírito?
Visto que certa ênfase sobre o monergismo divino tem sido uma
diretriz característica da teologia agostiniana, não surpreende que no
âmago de sua tradição alguns teólogos, particularmente, têm sido
sensíveis a esta dificuldade. No século dezenove, o teólogo norte-
americano, W. G. T. Shedd, por exemplo, argumenta que o que é visto
aqui é a “dispensação evangélica”.[98] Outros equiparam a palavra com
o próprio Cristo, o qual soberanamente chama à ação a semente da
nova vida implantada pelo Espírito.
Uma resolução comum vê a regeneração como tendo uma dimensão
mais estreita e uma mais ampla; um aspecto subconsciente e um
consciente. Assim observa B. B. Warfield:
Na raiz de tudo está um ato perceptível somente a Deus e não mediado por
nada; um ato criativo direto do Espírito, o novo nascimento. Este novo
nascimento se estende à própria consciência do homem através do chamado
da Palavra, que é respondido sob os movimentos persuasivos do Espírito; a
consciente posse dela pelo homem é então mediada pela Palavra.[99]

Entretanto, para os escritores neotestamentário não há alusão


alguma de uma ameaça à soberania divina no fato de a palavra ser a
causa instrumental da regeneração, embora o Espírito seja a causa
eficiente. Isso é assinalado no Novo Testamento pelo uso da preposição
ek para indicar a causa divina operante (p. ex., Jo 3.5; 1Jo 3.9; 5.1) e dia
para expressar a causa instrumental (p. ex., Jo 15.3; 1Co 4.15; 1Pe
1.23).
Uma vez que a obra do Espírito na regeneração envolve a
transformação do homem como um todo, inclusive suas faculdades
cognitivas e afetivas, é plenamente apropriada a assistência da
iluminação interior do Espírito, mediante a revelação externa da
Palavra (e vice-versa). Uma vez que a fé envolve conhecimento, ela
ordinariamente vem a lume em relação ao ensino do evangelho
encontrado na Escritura. A regeneração, e a fé que ela faz nascer, são
vistas como que se concretizando não pela divina soberania sem a
revelação, mas dentro da matriz da pregação da Palavra e do
testemunho do povo de Deus (cf. Rm 10.1-15). Sua instrumentalidade
na regeneração não colide com a soberana atividade do Espírito. A
Palavra e o Espírito mutuamente se pertencem.
Portanto, a regeneração do indivíduo é análoga, neste ponto, à
regeneração final de todas as coisas. A regeneração e a ressurreição
escatológicas se concretizarão através do poder do Espírito Santo (Rm
8.11), como um ato de soberania sem mistura. Não obstante, ao mesmo
tempo serão efetuadas pela Palavra de Deus: “Porquanto o Senhor
mesmo, dada sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e
ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo
ressuscitarão primeiro” (1Ts 4.16). Ele dirá, como disse diante do
túmulo de Lázaro, “Sai para fora” (Jo 11.43). Mas então, como agora
na regeneração, o uso instrumental da palavra não compromete a
soberania das ações regeneradoras do Espírito.

A Fé como um Dom
Isso é ainda mais enfatizado no Novo Testamento pelo fato de a fé ser
um fruto do ministério do Espírito e ser vista no Novo Testamento como
um dom de Deus. Aqui também há uma evidente tensão entre a
atividade do Espírito e a resposta humana. Paulo provê para nós uma
importante perspectiva neste aspecto, delineando uma analogia ulterior
entre crer e sofrer: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29). O sofrimento, como a
fé, é um dom da graça na experiência cristã. Mas o dom do sofrimento
não nos é dado convenientemente como um fait accompli. Quem sofre
somos nós, não Deus. Não obstante, esse sofrimento é um dom
procedente dele. De uma forma paralela, a fé não é um pacote posto em
nossas mãos. É a atividade do homem como um todo, direcionada pelo
Espírito para Cristo. Deus não crê por nós, nem em nós; nós é que
cremos. Todavia, é somente pela graça de Deus que cremos. Seu dom é
simultaneamente um ato nosso.
O texto clássico em relação a isso é Efésios 2.8: “Porque pela graça
sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.” Há
aqui um problema exegético bem notório: qual é o antecedente de “isto”,
e, portanto, o que exatamente constitui o dom?
Para o leitor casual, “fé” se lê como o antecedente natural (é o
antecedente imediato). Mas “isto” (touto) é neutro, enquanto ambos os
antecedentes prévios são femininos (charis, “graça”, e pistis, “fé”);
assim também “salvação” (paraklētos), que pode ser entendida como o
antecedente não escrito: “e isto (a saber, a salvação) não vem...”).
É um princípio há muito reconhecido que em linguagens onde o
gênero gramatical de um pronome não pode concordar com o gênero do
próprio antecedente, também não pode concordar com o gênero da
palavra que o denota.[100] Neste contexto específico, visto que tanto
pistis como charis não são gêneros neutros, tampouco podem servir de
antecedentes.
Três considerações sugerem que o antecedente (i.e., a coisa que é o
dom de Deus) é a fé (pistis).
(1) Ela é o antecedente imediato e, portanto, o mais natural;
(2) Seria uma tautologia não usual (porém admissivelmente não
impossível, como Rm 2.24 e 5.15 indicam) falar da graça como um dom
de Deus, já que, por definição, a graça é um dom de Deus;
(3) Ela fornece uma redação coerente do pensamento-padrão de
Paulo, o qual pode ser parafraseado assim:
• Deus nos vivificou — pela graça sois salvos (2.5).
• Deus nos ressuscitou — para mostrar sua graça (2.6, 7).
• E é deveras pela graça que tendes sido salvos (2.8)!
• Esta graça, porém, não só não nos envolve como também ignora nossa ação
(a salvação é pela fé, ou, seja, envolve nossa resposta ativa).
• Não obstante, esta fé ativa, de nossa parte, não prejudica a graça.
• Pois até mesmo a capacidade de crer não é nossa independentemente.
• A fé (também) é o dom de Deus.
• Portanto: a salvação que é pela graça é também pela fé.
• Mas, como agora se torna claro, esta salvação,
— embora recebida por nossa ação (fé),
— não é desse modo “pelas obras”.
• Ela envolve nossa atividade,
— mas não deixa espaço para nossa vanglória (2.9).
• Daí:
a salvação não é obra nossa;
ao contrário, somos feitura de Deus (2.10).

Mesmo que adotemos o ponto de vista de que “ser salvo através da


fé” é que forma o antecedente (ponto de vista favorecido por Calvino e
outros), haveria ainda um indício de que a fé é um dom da graça. Que a
fé, em qualquer caso, é vista por Paulo como um dom, é confirmado em
Efésios 6.23, quando ele ora pela “fé, da parte de Deus o Pai e do
Senhor Jesus Cristo”. Haveria pouca importância orar pelo que procede
do Pai e do Filho, a menos que a fé seja, em algum sentido, conferida
por eles. Semelhantemente, Pedro se reporta aos crentes como aqueles
que “obtiveram fé igualmente preciosa na justiça de nosso Deus e
Salvador Jesus Cristo” (2 Pe 1.1), o que parece ser uma referência ao
conteúdo da fé (fides quae creditur), não do ato (fides qua creditur).
Além do mais, no Novo Testamento, o arrependimento (do qual a fé é
inseparável) é visto como um dom (At 5.31; 11.18; 2Tm 2.25); não
surpreende, pois, se a fé seja também vista como um dom da graça.
Aqui, pois, se dá prioridade à soberania divina (ela é o sine qua non da
fé) sem minimizar a realidade e a significação da atividade dos crentes.
Além do mais, o exercício ativo da fé (nós é que cremos, e não
Deus) não compromete a graça da obra do Espírito na implicação da
salvação. É da natureza da fé que por meio dela recebamos ativamente
a Cristo e a justificação nele, sem nada contribuirmos para isso. Acima
de tudo, fé é confiança em outro. É a antítese de toda autocontribuição e
autoconfiança.
Paulo faz alusão a isso quando diz que a promessa da salvação é
pela fé para que a mesma pudesse ser pela graça e ser garantida aos
crentes (Rm 4.16). Fé envolve graça sem transformar a salvação em
mérito humano.
Warfield expressa isso de um modo pitoresco, quando diz:
Portanto, o poder salvífico da fé reside não em si mesma, mas no Onipotente
Salvador em quem ela repousa. Na Escritura, nunca se concebe a fé, por causa
de sua natureza formal como um ato psíquico, como sendo salvífica — como se
essa disposição mental ou a atitude do coração fosse em si uma virtude que
reivindique de Deus sua recompensa... Não é a mera fé que salva, e sim a fé
em Jesus Cristo... Estritamente falando, não é nem mesmo a fé em Cristo que
salva, mas é Cristo quem salva pela instrumentalidade da fé.[101]

Somos salvos por Cristo através da fé. O poder salvífico da fé não


reside em si mesma, e sim no objeto de sua confiança. Como G. C.
Berkouwer escreve em outra conexão: “A fé não possui um único
momento construtivo e criativo; ela repousa única e exclusivamente na
realidade da promessa.”[102] Há um envolvimento total do crente; mas,
ao mesmo tempo, a graça não é comprometida. O caráter da salvação
pela graça é que ela envolve o homem sem prejudicar a gratuidade da
salvação recebida. Otto Weber o expressa bem: “A fé, segundo a
compreensão bíblica, consiste não em ser o homem excluído, mas em ser
ele envolvido ao máximo.”[103]

Implicações
Não nos surpreenderíamos agora se as evidências da obra do Espírito
na regeneração, por um lado, e as ações da fé e do arrependimento, por
outro, fossem uma e a mesma coisa e refletissem a união com Cristo da
qual ele é o vínculo. Mediante a obra do Espírito somos unidos a Cristo;
participamos da morte do velho homem e da ressurreição do novo. Já
morremos para o pecado e já ressuscitamos para novidade de vida em
Cristo (Rm 6.1-14); não obstante, simultaneamente, nós mesmos
crucificamos a carne com suas paixões, e nos despimos do velho homem
e nos vestimos do novo (Ef 4.22-24; Cl 3.9-10; Gl 5.24). Operamos
nossa salvação em razão de Deus, o Espírito, operar em nós o querer e o
fazer segundo seu beneplácito (Fp 2.12-13). Por isso, os que possuem o
Espírito vivem segundo o Espírito e põem sua mente nas coisas do
Espírito; põem seus afetos nas coisas lá do alto (Rm 8.5; Cl 3.1-2).
Torna-se evidente um desprazer pela velha ordem e um anseio pela
nova ordem escatológica (cf. Ez 36.25-26).
Um enfoque semelhante é processado em 1João 3.9 e 5.18, na
notável afirmação de que aquele que nasce do Espírito não peca
(hamartian ou poiei). Muitos comentaristas e versões entendem João
como se aqui ele falasse do pecado como um hábito prevalecente.[104]
Mas a linguagem enfática que ele usa (o cristão “não peca”)
provavelmente se refira ao livramento crítico e radical das
manifestações específicas do reinado do pecado que ocorre no ponto de
união com Cristo. Em vez de permanecer cativo ao domínio do pecado,
como hábitos concretos, o cristão se torna justo precisamente nessas
áreas (cf. 1Jo 2.29; 3.10). E assim, o Saulo regenerado busca a
comunhão, não o massacre, dos crentes; o novo homem Zaqueu doa
dinheiro em vez de roubá-lo; o transformado carcereiro de Filipos cuida
de seus prisioneiros, em vez de maltratá-los; o Onésimo fugitivo,
“inútil” em sua vida pregressa, torna-se um servo fiel e é “útil” a Paulo.
Do mesmo modo, o novo nascimento transforma o relacionamento
do cristão com a presente ordem do mundo. Isso é expresso de maneira
variada pelos escritores neotestamentários (p. ex., para Paulo, já
estamos “crucificados” para ele [o mundo], Gl 6.14). Para João, aquele
que é nascido de Deus vence o mundo pela fé (1Jo 5.4). Aqui, “mundo”
significa o mundo em rebelião contra Deus, sob o controle do maligno
(1Jo 5.19; cf. Jo 12.31; 14.30), em trevas e pecado (Jo 1.5; 12.46). Os
ardentes anseios do homem pecaminoso, a concupiscência dos olhos, a
vanglória do que o homem possui e faz — tudo isso é o espírito do
mundo (1Jo 2.16). Este é vencido por aquele que nasce de Deus. Em
termos paulinos, na consagração da fé, a mente do crente é renovada, e
ele não se conforma ao mundo nem permite que ele o molde (Rm 12.1-
2) nem segue seu curso (Ef 2.2).
A centralidade de todas essas manifestações da nova vida é a fé
que tem o renascido como seu contexto inaugural. Todo aquele que crê
em Jesus como o Cristo já nasceu de Deus (1Jo 5.1). Estes são dois
aspectos de uma e mesma realidade, vista pelo prisma da ação divina e
da resposta do indivíduo.

Preparação?
À luz do precedente, faz-se evidente que a fé e o arrependimento
constituem o lado fenomenológico da obra do Espírito na regeneração.
Mas, como isso se concretiza? Acima de tudo, é difícil conceber alguém
vindo para a fé em Cristo como Salvador e Senhor sem compreender por
que antes de tudo se faz necessário um Salvador, ou, seja, um senso
antecedente de necessidade pessoal de salvação. Sem isso, a própria
ideia de justificação pela fé parece incompreensível. Então existe uma
preparação para a justificação na qual o Espírito Santo é ativo? Esta
pergunta nos leva de volta à discussão anterior sobre a ordo salutis e ao
contraste entre os conceitos católico-romanos e protestantes dela.
No contexto do legado de Agostinho à teologia da igreja, no qual o
batismo era visto como o sine qua non da regeneração, e a justificação
era entendida como justum facere, “tornar-se justo ou reto”, a teologia
medieval às vezes enfatizava o processo da justificação.
Neste processo, “a primeira justificação” se dava no batismo, no
qual a culpa e o castigo pelo pecado eterno e atual eram removidos.
Mas permanecia o assim chamado fomes peccati (o “pavio” do pecado,
o qual pode conflagrar-se mais tarde). Para “a justificação final”, o
amor egoísta tinha de dar lugar ao amor de Deus, por amor a Deus. Isso
demandava uma cooperação do indivíduo com a graça preveniente de
Deus para fazer-se o que está em seu poder (facere quod in se est, como
o expressava Gabriel Biel). Guiado do temor da justiça divina à
esperança da misericórdia divina, o indivíduo desenvolvia o ódio pelo
pecado, ou contrição. O problema, naturalmente, consistia no fato de
que os homens não eram perfeitamente contritos. Daí a provisão do
sacramento da penitência, o qual servia de ponte sobre o abismo, entre
a tristeza (attritio) real, porém inadequada, e a contrição (contritio)
genuína que conduzia à fé coberta de amor (fides formata caritate) que
produzia (a segunda) justificação.
Dentro deste sistema, a certeza da salvação era virtualmente
impossível, e alegar a experiência dela era potencialmente heresia. Aqui
vemos por que a segurança da justificação final dependida de uma
contrição suficiente, da qual ninguém podia estar certo. Na verdade,
toda a ordo consistia numa preparação para a justificação futura. O
que ainda não havia sido concretizado poderia não tornar-se a base
para uma confiança bem fundamentada.
A Reforma converteu esta ordo salutis em seu tema-mestre. Em
termos bíblicos, ela fazia distinção entre justificação e santificação; e,
seguindo Paulo criteriosamente, pôs uma justificação forense no
fundamento da vida cristã, não em seu fim. Ela rejeitou o conceito
romanista da preparação na qual a penitência preparava o indivíduo
para a justificação.
Entretanto, ao fazer isso, os teólogos da Reforma e seus sucessores
não pretendiam negar a obra do Espírito anterior à conversão e
justificação reais. Sustentavam, à luz de João 16.8-11, que a condução
do indivíduo à convicção do pecado, da justiça e do juízo, que teve sua
concretização inicial no Pentecostes, era uma atividade contínua do
Espírito no mundo contemporâneo. Mas convicção não equivale a
arrependimento e fé; não faz o indivíduo mais disposto para a
justificação.
Não obstante, a penitência, ou o arrependimento, precede e em
algum sentido nos prepara para a fé e justificação? O expediente de
Louis Berkhof, em seu livro amplamente usado pelos estudantes, parece
assumir esta posição: “Não há dúvida de que, logicamente, o
arrependimento e o conhecimento do pecado precedem a fé que se rende
a Cristo em confiante amor.”[105]
Na Escritura, em contraste, fé e arrependimento são dons
inseparáveis do Espírito. Os apelos que acompanham a pregação do
evangelho podem ser fraseados como “arrependei-vos e crede” (Mc
1.15). Mas, em outras ocasiões, é simplesmente: “Arrependei-vos!” (Mt
3.2; At 2.38; 17.30). Em outras ocasiões, é apenas: “crê!” (Jo 3.16; cf. At
16.30-31). De forma bem interessante, em Atos 17.34 (cf. 17.30, supra),
onde se exigiu a resposta do arrependimento, a verdadeira reação dos
poucos convertidos é descrita como “e creram”.
É claro, à luz deste fato, que, embora denotando diferentes
elementos na obra do Espírito em realizar a conversão a Cristo, tanto a
fé como o arrependimento lhe são tão essenciais, que uma (a fé) não
pode existir sem o outro (o arrependimento). Em consequência, um pode
ser usado onde ambos são intencionados — como se a fé ou o
arrependimento pudessem funcionar em forma de sinédoque, para fé e
arrependimento. A fé será sempre penitente; o arrependimento será
sempre crente, caso seja genuíno. Não há regeneração que não seja
expressa em ambos — fé e arrependimento.
Entretanto, no nível da consciência, um pode predominar sobre o
outro, dependendo de qual objeto tem sido o foco central nos
acontecimentos que circundam o novo nascimento. Se este for um
profundo senso de pecado, o arrependimento, com sua acompanhante
tristeza pelo pecado, pode ser a influência dominante nas emoções do
indivíduo. Alternativamente, o indivíduo pode ter um senso esmagador
da graça e da gratuidade de Cristo, em cujo caso a fé, com uma jubilosa
consciência de perdão e aceitação, pode predominar. Mas, tampouco
pode propriamente existir na ausência do outro. Dependendo do
contexto da conversão ativa, o nível da consciência de um pode ser
difuso com o senso de um sobre o outro.
A chave teológica para se entender isto encontra-se numa excelente
afirmação da Confissão de Fé de Westminster: a fé “age de
conformidade com aquilo que cada passagem contém em particular,
prestando obediência aos mandamentos, tremendo às ameaças e
abraçando as promessas de Deus para esta vida e para a futura”.[106] A
essência é que na variada obra do Espírito os acompanhamentos
psicológicos e emocionais da conversão são correspondentemente
diversos. Mas, em nenhum caso a conversão real ocorre sem a presença
de ambos — da fé e do arrependimento.
A “conversão”, da qual se acham ausentes a tristeza pelo pecado,
bem como o afastamento dele, que recebe a Palavra somente com
alegria, mas não conhece nenhum outro impacto do evangelho,
provavelmente não passa de fé temporária, segundo Jesus (cf. Mc 4.16-
17). Em contraste, a “conversão” que não passa de tristeza pelo pecado,
eventualmente satisfará a si mesma e morrerá.

Arrependimento
Então, o que se acha envolvido no arrependimento, neste contexto? Dois
elementos primários:
(1) Um reconhecimento de ofensa contra Deus e contra o pacto que
ele fez com seu povo (cf. Sl 51.4, onde o reconhecimento de Davi de que
seu pecado é contra Deus reflete esta orientação pactual). Por exemplo,
Isaías retrata o povo como filhos do pacto que se rebelaram contra seu
Pai. A consequência inevitável é que terminam no exílio “distante de
casa”, individualizado na parábola de Jesus sobre o filho pródigo (Lc
15.13), mas ameaçado muito tempo antes no pacto mosaico (cf. Dt
28.36).
Os homens estão debaixo do juízo pactual de Deus por sua rejeição
das obrigações de fé e obediência (cf. Am 4.6-11 com Dt 28.15).
Arrependimento envolve um reconhecimento disto; uma realização da
importância de estar “longe de casa”, separado do Pai.
(2) Arrependimento também envolve um afastamento do pecado à
luz das graciosas provisões do pacto divino. Arrependimento equivale a
volver-se ao espírito de criatura humana diante do Criador, em
reconhecimento de sua misericórdia em favor dos crentes penitentes (cf.
Dt 30.11-14). A impiedade é então rejeitada e a justiça é abraçada.
Tal arrependimento é evocado pelo Espírito através do senso do
que Deus é, e portanto por meio da consciência do genuíno caráter do
pecado. Ele é uma resposta centrada em Deus; aliás, é o princípio da
genuína centralidade divina. É um afastamento do pecado no volver-se
rumo a Deus.
O arrependimento é tão necessário para a salvação quanto a fé. A
salvação é salvação do pecado. Envolve mais que perdão. Inclui nossa
santificação. Deve, pois, engajar os que são salvos no afastamento do
pecado, afastamento esse envolvido no arrependimento. Não pode
haver salvação que permite um padrão inalterável de continuar em
pecado (cf. Rm 6.1-14). Mas, embora o arrependimento seja tão
necessário para a salvação quanto a fé, ele se relaciona com a
justificação de uma maneira diferente. Cristo é recebido unicamente
pela fé, e nele descansa como Salvador. A justificação é pela fé
(unicamente!), não pelo arrependimento. Mas o arrependimento é tão
necessário para a salvação mediante a fé quanto o tornozelo para
firmar o pé no chão, ou como a pulsação do coração o é para o uso dos
olhos na visão. Ambos são essenciais, mas não se relacionam da mesma
forma no mesmo ato. Fé é a confiança individual em Cristo;
arrependimento é a mesma renúncia individual do pecado. Um não
pode existir à parte do outro.
Temos definido arrependimento em termos de volver-se do pecado
para Deus e nos termos concretos de sua relação pactual conosco em
Cristo. Visto, porém, ser ele a atividade da autoconsciência individual,
segue-se que a experiência de arrependimento variará de indivíduo para
indivíduo, tão certamente como acontece na expressão e consciência de
pecado de cada um. A misericórdia divina não é meramente uma
medicina universalmente aplicável ao pecado; ela é prescrita para o
estado pecaminoso particular e para a culpa particular. A consciência
individual de arrependimento, ou o que poderíamos chamar a
psicologia do arrependimento, se vê obrigada a deixar-se influenciar
por este. Aqui também encontramos o princípio que caracteriza o
ministério do Espírito: seus métodos de operar são diversos. Herman
Bavinck escreve algumas palavras sábias a esse respeito:
O arrependimento, a despeito de sua singularidade em essência, é diferente,
na forma, de acordo com as pessoas em quem ele se concretiza e as
circunstâncias nas quais ele ocorre. O modo como os filhos de Deus andam é
um só, mas eles são conduzidos diferentemente neste modo de andar, e têm
experiências variadas. Que variedade há na diretriz que Deus dá aos vários
patriarcas! Que variedade há na conversão de Manassés, de Paulo e de
Timóteo! Quão dessemelhantes são as experiências de Davi e de Salomão, de
João e de Tiago! E encontramos também essa mesma diferença fora da
Escritura, na vida dos pais da igreja, dos reformadores e de todos os santos.
No momento em que temos olhos para contemplar as riquezas da vida
espiritual, nos volvemos para a prática de julgar outrem segundo nossa
paupérrima medida. Há pessoas que conhecem apenas um método, que não
reconhecem a ninguém arrependido a menos que falem das mesmas
experiências espirituais que tiveram ou que alegam ter tido. A Escritura,
porém, é muito mais rica e muito mais ampla do que a estreiteza de tais
fronteiras... O arrependimento genuíno não consiste no que o homem faz dele,
mas no que Deus diz dele. Na diversidade das providências e experiências, ele
(o arrependimento) consiste e deve consistir na morte do velho e na
ressurreição do novo homem.[107]

No entanto, dentro deste arcabouço geral há diversos elementos


que podemos traçar, os quais serão comuns a todos os incidentes do
arrependimento que é efetuado em nós pelo Espírito.

As Marcas do Arrependimento
No arrependimento, o Espírito produz uma nova atitude em relação ao
pecado. Atitude esta que, devido ao pecado, inevitavelmente será
acompanhada por um senso de humilhação e tristeza (Rm 6.21; cf. Lc
15.19). Tal atitude em relação ao pecado será tão concreta como o
pecado ao qual se direciona a nova atitude. Arrependimento significa
volver-se alguém para trás, num espírito de obediência, na vereda que
havia percorrido num espírito de desobediência, e é operado nos termos
específicos de obediência concreta aos mandamentos de Deus (cf. Dt
30.2). Portanto, nos Evangelhos, o arrependimento a que o jovem rico
foi intimado foi tomado na forma concreta de desenvolver a renúncia na
mesma área que ele desenvolvera a autoindulgência; no caso de
Zaqueu, ele significa a devolução do que havia tomado injustamente (cf.
Mc 10.17-31; Lc 19.8).
Neste sentido, Paulo descreve o arrependimento que resulta do
coração regenerado quando diz que as justas exigências da lei são
satisfeitas naqueles que não andam segundo a carne, mas segundo o
Espírito (Rm 8.3-4).
Disto se segue que o arrependimento não se limita ao ato do
momento, mas se desenvolve num estilo permanente de vida.
No arrependimento, o Espírito também desperta uma atitude
responsável em relação ao próprio indivíduo. Arrepender-se é morrer
para os velhos costumes e crucificar a carne. O arrependimento inicial é
simplesmente o início da mortificação. É uma mudança profundamente
radical. Envolve a concorrência com o juízo divino de toda realidade,
inclusive de si próprio — justificando a Deus em sua justiça e
condenando a si próprio em seu estado pecaminoso. É levar a cruz e
negar-se a si mesmo — não através de uma abnegação ontológica, mas
pelo despir-se do velho homem (Cl 3.9; Ef 4.22) e pela crucificação da
carne com suas concupiscências (Gl 5.24). Isso é também uma
responsabilidade permanente com implicações perenes. Significa não
fazer qualquer provisão para a carne, buscando satisfazer suas
concupiscências (Rm 13.14).
De passagem, é digno de nota que isso conta com profundo suporte
do resultado da visão cristã que cada um deve ter de si próprio. Deve ser
tanto simples (tornarmo-nos novos homens e novas mulheres em Cristo)
quanto complexo (somos imperfeitamente renovados). Portanto, o
cristão se vê como alguém que morreu para o pecado e ressuscitou para
uma nova vida. Mas tal mortificação e vivificação caracterizam todo o
curso de sua vida, como veremos mais adiante.
O arrependimento tem também em sua raiz uma atitude
responsável para com Deus efetuada pela obra do Espírito. Nenhum dos
dois primeiros elementos poderia existir sem este. O arrependimento
está radicado numa genuína visão de Deus. Se ele fosse observar
iniquidades, ninguém ficaria de pé; nele, porém, há perdão para que
seja temido (Sl 130.4). Arrependimento evangélico, a inauguração e
continuação da vida de piedoso temor, é sempre difuso com a promessa
e esperança de perdão. Na teologia bíblica, um senso do estado
pecaminoso por si só nunca se aplaca com arrependimento. Por isso, o
estímulo para o arrependimento consiste em que “há ainda esperança
para Israel” (Ez 10.2). O genuíno arrependimento de Pedro após sua
negação de Cristo (que parece estar em deliberado contraste com a
tristeza e arrependimento, bem como o desespero final de Judas) é
produzido quando ele se lembra da palavra do Senhor, que neste caso
incluía a promessa: “Orarei por ti, para que tua fé não desfaleça; e,
quando te converteres, fortalece a teus irmãos” (Lc 22.32, lit.; 22.61-
62).
O padrão clássico da obra do Espírito, em despertar o
arrependimento, se encontra no Salmo 51 que, segundo escreve Artur
Weiser, não expressa:
…a disposição transitória de uma consciência deprimida, mas o nítido
conhecimento de uma pessoa que, abalada por esse conhecimento [i.e., de seu
estado pecaminoso], se torna cônscia de sua responsabilidade; é um
conhecimento que exclui todo gênero de autoengano, por mais bem-vindo que
ele seja, e vê as coisas como realmente elas são.[108]

Daí o Salmo começar (51.1-6) com uma análise abrangente da


natureza do pecado como rebelião (pešaʿ, “transgressão”); como
distorção (ʽāwôn, “iniquidade”); como falha (ḥaṭṭāʾṯ, “pecado”); como
oposição (“pequei contra ti, contra ti somente”); como mácula que
precisa ser purificada (“purifica-me... lava-me”); como falsidade e
ausência de autenticidade e integridade (“te comprazes na verdade
[ᵉmeṯ] no íntimo”). Arrependimento também se desenvolve num
reconhecimento do perigo que o pecado representa, como aquilo que nos
põe sob o juízo divino (5.14), e sob o risco de sermos expulsos de sua
presença (51.11). Ele envolve o desvendar da intransigência
profundamente radicada do pecado (51.5), visto que ele está sediado em
nossa natureza, desde o ventre.
À luz disto, o arrependimento genuíno, inevitavelmente, envolve
um quebrantamento do espírito (51.17). Não propriamente um espírito
profundamente emotivo. É um espírito no qual penetraram a
autossuficiência e a autodefesa que, por fim, sucumbiram.
O Salmo também deixa evidente que o arrependimento emana não
só do âmago da iluminação de nossa condição efetuada pelo Espírito,
mas na esperança do perdão para o qual ele nos atrai. Faz-se apelo ao
inabalável amor do Senhor (51.1); o clamor do penitente se direciona
para Aquele que é capaz de salvar e que realmente salva (51.14).
Além do mais, a realidade de tal arrependimento é evidenciada
numa nova preocupação pela santidade: um novo desejo por um
coração dominado pela realidade e por uma vida limpa (51.6-7), pela
pureza e renovação (51.10). Acoplado a isso está o desejo de servir e
salvar a outros (51.13) que flui do orgulho quebrantado. Finalmente, o
arrependimento genuíno, por estar delineado no contexto da graça,
conduz e energiza para o culto: “Abre, Senhor, meus lábios, e minha
boca manifestará teus louvores” (51.15).
Todo o peso da culpa de Davi, em certo sentido, se resume na
súplica: “Não me repulses de tua presença, nem me retires teu Santo
Espírito. Restitui-me a alegria de tua salvação, e sustenta-me com um
espírito voluntário” (51.11, 12). O que está em pauta aqui é muito mais
do que unção real e oficial. Davi compreende que sem o ministério do
Espírito não pode haver nem arrependimento nem seu fruto na alegria
da restauração (o verbo, significativamente, é šûḇ).
O fato de o arrependimento ser um dom do Cristo exaltado
outorgado a seu povo (At 5.31) indica que ele nos vem especificamente
através do ministério do Espírito. Sua natureza indica quão multiforme
e abrangente é seu ministério.
Cristo é o “Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o
arrependimento e a remissão de pecados” (At 5.31). Ao indagarmos:
“Por quais meios Deus nos conduz ao arrependimento?”, a resposta
deve ser que é pela revelação de si mesmo, em sua Palavra, iluminados
pelo Espírito. Uma correta visão de Deus como santo e misericordioso é
o único fundamento para o genuíno arrependimento evangélico. A
santidade divina é o fundamento da necessidade do arrependimento;
sua graça e misericórdia garantem sua possibilidade.
A fé e o arrependimento, como expressões da regeneração, são,
portanto, aspectos da vida cristã não meramente inaugurais, mas
característicos e frutos do ministério contínuo do Espírito. Aliás, todo o
progresso da santificação é simplesmente a regeneração produzindo seu
fruto, e a fé e o arrependimento tornando-se mais e mais as notas
dominantes da vida no Espírito.

[90] Ver o notável título das Institutas, III.3: “Nossa Regeneração pela Fé:
Arrependimento”, descrição essa que, se fora escrita por um autor anônimo, o teria
estigmatizado imediatamente como teologicamente arminiano!
[91] Assim, p. ex., H. Vitsius, The Economy of the Covenants (1677), tr. W. Crookshank
(Londres, 1822; repr. San Diego, CA: den Dulk Foundation, 1990), vol. 1, pp. 359-361.
[92] H. N. Rideerbos, Paul: An Outline of his Theology, tr. J. R. de Witt (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1975), p. 226.
[93] E. Schweitzer, in Theological Dictionary of the New Testament, ed. G. Kittel e G.
Friedrich, tr. G. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1971), vol. 7, p. 138. Para uma
defesa do ponto de vista mais antigo do uso joanino de sarx, ver John Murray, Collected
Writings (Edinburgo: Banner of Truth, 1977), vol. 2, pp. 184-185.
[94] Ver os comentários sensíveis e sábios de Archibald Alexander em Thoughts on
Religious Experience (1844; 3.ª edição, reimpresso em Londres: Banner of Truth, 1967), p.
64.
[95] Uma explicação semelhante é elaborada no detalhe de Linda L. Belleville: “’Born of
Water and Spirit’: João 3.5”, Trinity Journal 1 (1980), pp. 125-141, mas o enfoque geral
tem uma longa árvore genealógica.
[96] Essa linguagem pode ser encontrada nos teólogos europeus do século 17, tais como
Peter Van Mastricht, mas também em escritores ingleses, tais como John Owen. Embora
os teólogos reformados mais recentes compreensivelmente expressassem certas reservas
sobre tal linguagem, naturalmente sua preocupação central era preservar a obra radical
do Espírito na totalidade do indivíduo, afetando não só mente e vontade.
[97] Confissão de Fé de Westminster (Londres, 1647), X.1. Cf. IX.4.
[98] W. G. T. Shedd, Dogmatics (Nova York: 1888), vol. 1, p. 509, n. 1.
[99] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929; repr.
Edinburgo: Banner of Truth, 1988), p. 457; cf. C. Hodge, Systematic Theology (3 Vols.
1872-73; repr. Londres: James Clark, 1960), vol. 2, pp. 702-703.
[100] Cf. Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova York: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 412; Robert E. Countess, “Thank God for the Genitive”, Bulletin of
the Evangelical Theological Society 12 (1969), pp. 117-122.
[101] Warfield, op. cit., p. 504.
[102] G. C. Berkouwer, The Sacraments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1969), p. 147.
[103] Otto Weber, Foundations of Dogmatics, tr. Guder (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1983), vol. 2, p. 147.
[104] Cf. NIV. J. R. W. Stott, Commentary on the Epistles of John (Londres: Tyndale Press,
1964), pp. 130-136; Raymond E. Brown, The Epistles of John (Nova York: Doubleday,
1982), pp. 407-416.
[105] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Luz para o Caminho, Campinas.
[106] Confissão de Fé de Westminster, Editora Os Puritanos, Recife, XIV.ii.
[107] Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, tr. H. Zylstra (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1956), p. 438.
[108] Artur Weiser, The Psalms (Londres: SCM Press, 1962), p. 403.
7

O ESPÍRITO DE SANTIDADE

O Espírito Santo opera na regeneração a fim de unir-nos a Cristo


através da fé. O alvo de sua atividade é a transformação na semelhança
de Cristo (Rm 8.29). Numa palavra, para o Novo Testamento,
santificação, ou santidade, é semelhança com Cristo ou, como diversos
teólogos em toda a história da igreja o têm descrito, “conformidade com
Cristo”.[109] Dentro do contexto da justificação está o desenvolvimento
da semente da regeneração e a operação da união com Jesus Cristo.
O homem foi criado à imagem de Deus e porta sua semelhança (Gn
1.26, 27). Ele foi chamado para expressá-la em cada aspecto de seu ser.
Mas ele caiu desse sublime estado. A salvação, e sua operação na
santificação, consequentemente tem em vista a restauração do homem à
imagem de Deus.
Em nosso pecado, todos nós somos destituídos da glória de Deus
(Rm 3.23). Aqui, a linguagem de Paulo se acha carregada com a ideia
bíblica da imagem divina. Na Escritura, imagem e glória são ideias
inter-relacionadas. Como a imagem de Deus, o homem foi criado para
refletir, expressar e participar da glória de Deus, em miniatura, como
criatura. A restauração a este estado se efetua através da obra de
santificação realizada pelo Espírito, na qual ele toma os que têm
distorcido a imagem de Deus na ignomínia do pecado e os transforma
naqueles que portam essa imagem em glória. Isso é o que significa
tornar-se “participantes da natureza divina” (2Pe 1.4).
A santificação, contudo, não nos transforma em seres super-
humanos. Ao contrário, homens e mulheres se tornam, se convertem
plena e genuinamente naquilo para o quê foram criados: agora, de
modo incipiente; no porvir, em completude. Essa é a perspectiva de
afirmações apostólicas, tais como 1 Coríntios 15.49: “assim como
portamos a imagem do homem que é do pó, também portaremos a
imagem do homem que é do céu” (1Co 15.49; cf. 2Co 3.18; 1Jo 3.2).

Santidade no Antigo Testamento


Não se deve perder de vista estas considerações da linguagem que a
Escritura usa para santificação. Os termos para “santificar”, em
hebraico (qādaš) e em grego (hagiazein), comunicam a ideia de
separação. Mas, já no ensino do Antigo Testamento, isto inclui o
sentido de possessão pessoal. Deus separa homens e coisas para sua
própria possessão e propósito. Mais plenamente, “santificar” significa
que Deus toma posse novamente de pessoas e coisas que haviam sido
dedicadas a outros usos, e haviam sido possuídas para outros
propósitos, e não para sua glória, e as toma para sua própria possessão
a fim de que venham a refletir sua própria glória.
Esta é a significação para a santificação dos pactos divinos no
Antigo Testamento. Esses vínculos que eram selados em sangue criam
ou, melhor, recriam e restabelecem o laço familial entre Deus e seu
povo. Recriam e restauram a fragmentada família de Deus para que
expresse a semelhança ou imagem familial. Isso se faz evidente
especialmente na formulação do pacto no Êxodo. É a adoção de Israel
na própria família de Deus (Rm 9.4; cf. Os 11.1). O relacionamento
original entre Deus e o homem é restaurado pela graça. Israel é filho de
Deus, e deve apresentar seus louvores; portando, paulatinamente, a
imagem da glória de Deus.
Portanto, os indicativos e imperativos do relacionamento pactual
do Antigo Testamento não podiam ser meras e frias formalidades. Elas
possuem uma conotação distintivamente familial. Almejam reproduzir a
semelhança familial — piedade ou divindade — no povo. Assim como o
cerne do relacionamento pactual é “serei o vosso Deus, e sereis o meu
povo”, ou “sou o vosso Pai, e vós sois os meus filhos”, assim o cerne da
santificação, no Antigo Testamento, é uma aplicação disso: “Eu sou o
Senhor vosso Deus: portanto vós vos consagrareis, e sereis santos,
porque eu sou santo” (cf. Lv 11.44-45; 19.2; 20.7).
Os elementos nesta revelação da santidade divina e na forma da
santidade humana foram gerados para o período de infância da
revelação veterotestamentária. A ideia que expressa a imagem divina é
assim sublinhada: devemos ser santos como ele é santo. Santificação no
Antigo Testamento envolve os primeiros passos infantis do filho adotivo
de Deus na vereda, buscando expressar a plena e final glória de Deus.
Como é o caso do cuidado paterno de todos os filhos jovens, assim a
família de Deus, sob o antigo pacto, era governada sob o código de leis
levíticas, por regulamentos e diretrizes que eram específicos,
compreensíveis e, amiúde, exprimidos em termos fortemente negativos.
Daí, a experiência do período da administração mosaica ser vista à luz
do novo pacto como “nada diferente [daquela] de escravo” (Gl 4.1). Ela
possui em si uma glória; mas, confrontada com a nova, “se o que se
desvanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente”,
o pacto em cujo cerne está a obra de Cristo e o subsequente e novo
ministério do Espírito (2Co 3.7-18).
No Antigo Testamento, a pessoa e o caráter de Deus também
fornecem motivo para santificação: ele é santo, portanto seu povo deve
ser santo. E Deus é também o agente desta santificação: ele é o Senhor
que nos faz santos (Êx 37.13; cf. Lv 20.8; 21.8). O padrão de santidade
está sempre na forma de imperativos de obediência emanando de
indicativos da graça. Deus redimiu da escravidão a seu povo, portanto
devem conformar-se com seus padrões (Êx 20.1-2).
Nesta conexão, é interessante notar como alguns estudiosos do
Antigo Testamento têm defendido o ponto de vista de que o Decálogo
não contém meramente mandamentos negativos, mas realmente
formula promessa visando ao futuro em conformidade com eles.
Em todo caso, os dez imperativos foram escritos em tábuas de
pedra e apresentavam detalhada aplicação ao período mosaico das
diversas ordenanças éticas, civis e cerimoniais, nas quais seus
princípios eram aplicados.

Santidade no Novo Testamento


O motivo, alvo e padrão de santificação no Novo Testamento têm a
mesma estrutura básica que no Antigo, embora o conteúdo de cada uma
[santificação] seja agora mais completo, ou cristocentricamente mais
definido.
O alvo é o mesmo: a restauração da imagem divina (Ef 4.24; Cl
3.10). O padrão é o mesmo: os indicativos da graciosa autorrevelação
de Deus deu origem aos imperativos do coração e à conformidade da
vida com ele. Agora, porém, o motivo, o alvo e o padrão são mais
agudamente focalizados, em Jesus Cristo. O que fora revelado de uma
forma opaca e fragmentada, no antigo pacto, é plenamente claro no
novo. A salvação é em Jesus Cristo, que é o telos [propósito] do pacto;
santificação significa ser restaurado à glória-imagem de Deus,
tornando-se semelhante a Jesus Cristo.
No novo pacto, o conteúdo específico da nova obediência envolve
despir-se do velho e vestir-se do novo homem (cf. Ef 4.24; Cl 3.10). O
fim em vista está expresso na afirmação panorâmica de Romanos 8.29:
“Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para
serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmãos.” Semelhança com Cristo é o fim em
vista; santificação é a transformação que ela produz. Agora “eu sou o
Senhor que vos santifica” se torna “eu sou Jesus Cristo que por meu
Espírito vos transformarei em meus semelhantes”. “Sede santos, porque
eu sou santo” significa “vós pertenceis à família de Deus; Jesus Cristo é
vosso Irmão mais velho; seu Espírito habita em vós, capacitando-vos a
seguirdes seus passos; sede como ele.” Santidade é semelhança com
Cristo. Como o Espírito de Cristo, o Espírito Santo é o agente desta
transformação.

Cristo, Santificado por Nós


Uma só afirmação panorâmica no Novo Testamento resume o
fundamento da santificação. Em sua “oração sacerdotal”, Jesus diz a
seu Pai: “E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles
também sejam santificados na verdade” (Jo 17.19). Sob o antigo pacto, o
sumo sacerdote, como representante do povo, passava por um rigoroso
processo de santificação cerimonial em preparação para sua função no
ritual do Dia da Expiação. Assim também o Sumo Sacerdote, que é
maior que Arão, deveria santificar-se para o genuíno ministério
sacrificial da expiação.
Calvino diz de Cristo que ele assumiu tanto o nome quanto o
caráter dos pecadores, a fim de tomar seu lugar em todo o curso de sua
vida. Por meio de sua obediência durante a vida, ele fez o que deveria
fazer; por sua obediência à morte de cruz, ele não se fez culpável do que
temos feito no [âmbito do] pecado. Toda sua vida era santificada ou
devotada a Deus para a concretização de seu ministério.
No sentido mais fundamental, o Novo Testamento vê Jesus como o
autor da santificação, seu pioneiro (archēgos). Perfeita humanidade,
perfeita santidade, é antes de tudo expressa nele. Assim como ele não
morreu por si próprio, mas para fazer o efeito de sua morte uma
propiciação disponível a nós; nem viveu para si próprio, mas para
tornar-nos disponível, pela união com ele, a santificação que ele
consumou em nossa humanidade. A santidade humana, que se torna
nossa através do Espírito, teve sua origem na santidade operada por
Cristo ao longo do curso da encarnação. Ele se santificou a si próprio
por nossa causa, para que, pela união com o Santo, nos tornemos
santos (Hb 2.10-12), e pela participação da natureza divina (a saber,
sua santidade) expressa em nossa humanidade, possamos escapar-nos
da corrupção do mundo oriunda dos maus desejos (2Pe 1.4).
Já observamos a natureza multidimensional da união com Cristo,
radicada não só na ordenação divina, mas especificamente na união do
Filho conosco em nossa humanidade. Agora a relevância disto, para a
santificação, vem à tona. A natureza da santificação consiste no fato de
ser ela genuína semelhança com Deus. Visto a semelhança com Cristo
ser a plena expressão da imagem de Deus no homem, genuína
santificação é genuína humanidade.
Os únicos recursos para tal santificação se encontram em Cristo.
Nossa santificação é a santificação do próprio Cristo em nossa
humanidade progressivamente aplicada a nós e realizada em nós
através do ministério do Espírito Santo. É nesse sentido que Paulo diz
que “Cristo Jesus... se tornou para nós sabedoria de Deus — ou, seja,
nossa... santidade” (1Co 1.30). Nas palavras de Hebreus, “Pois, tanto o
que santifica como os que são santificados, todos são da mesma
família” (ex henos, i.e., “vêm de um só”, Hb 2.11). A santificação só
pode ser nossa por meio dos benefícios de Cristo, trazidos a nós através
do Espírito Santo quando ele toma o que é de Cristo, no-lo revela e
assim nos conforma mais e mais à semelhança dele, de um a outro grau
de glória, quando olhamos para a glória do Senhor (2Co 3.18).
Quando assim vemos Cristo como o autor e fonte, e o Espírito como
o agente da santificação, temos um sólido fundamento para o segundo
elemento da santificação.

Participação em Cristo
Antes da encarnação, havia uma santificação comparativamente opaca
e formal. Aqueles que viveram na infância da revelação redentora
especial, nem sempre viam com clareza por que certos elementos no
estilo de vida veterotestamentário eram característicos da santificação
ao Senhor. De fato, eram imagens imprecisas de Cristo, de modo que
somente quando ele veio é que sua real significação surge claramente
(ele é o “fim da lei” nesse sentido também, Rm 10.4). O alvo da lei
sempre foi a restauração da imagem de Deus. Esta santidade,
estabelecida em Cristo, agora se torna nossa através da participação
em Cristo pela graça e fé.
Quando o Novo Testamento expõe este fato, ele põe ênfase especial
sobre a união com ele nos grandes atos-chave da redenção (p. ex., Gl
2.20; Cl 2.6–3.17; Rm 6.1-23).
Nenhuma passagem é mais pertinente para entender-se o que está
envolvido na obra do Espírito, em ligar os crentes a Cristo, do que
Romanos 6.1-23. Aqui, em detalhes complexos, Paulo descreve o cerne
da santificação como o livramento do pecado e a liberdade de servir ao
Senhor com justiça. O relacionamento anterior com o pecado é
conduzido a um fim; o cristão é “libertado do pecado” (Rm 6.7, 18).
Em Romanos 5.12-21, Paulo expusera as riquezas da obra
redentiva de Cristo, contrastando-a com o pecado de Adão. Em Adão,
todos morreram; em Cristo, o delito é perdoado. Onde o pecado
prevaleceu, a graça se manifestou muito mais abundante (Rm 5.20).
Quanto maior é o pecado, maior exibição da graça Deus faz.
Evidentemente, pode-se extrair disto uma conclusão falsa e
maliciosa (aliás, isso tem acontecido). Podemos continuar pecando na
pressuposição de que nosso pecado fornecerá um teatro para exibições
ainda mais impressionantes da graça (Rm 6.1)?
Paulo instintivamente recua ante tal insinuação de licenciosidade:
“De modo nenhum. Como viveremos ainda no pecado, nós que para ele
morremos?” (Rm 6.2). O pensamento lógico de todo cristão reage
contra tal ideia, visto que ela traspassa o coração do evangelho; Paulo
vem explicando que a graça reina através da justiça para a vida eterna
(Rm 5.21). Continuar pecando seria pôr-se em conflito com o estilo do
domínio da graça.
A esse recuo instintivo, Paulo adiciona uma explanação da
importância da união com Cristo à qual o Espírito nos conduz. Ele
explica por que os cristãos não continuam, nem realmente podem
continuar, na vereda do pecado: Morremos para o pecado. Como
poderíamos continuar vivendo em pecado? A ideia é inerentemente
contraditória.
Um dos muitos detalhes significativos na exposição de Paulo é seu
uso, aqui, de uma forma distintiva do pronome relativo (hoitines [de
hostis]: hoitines apethanomen tē hamartia, “nós os que morremos para o
pecado”). Isso contém a nuança de pertencer a uma determinada classe.
É usada neste sentido para realçar a qualidade característica (“nós, que
somos os que...”).[110] Podemos expressar a força da linguagem de
Paulo, traduzindo: “Nós, que pertencemos à categoria de pessoas que
morreram para o pecado.” A ideia é que, por definição, os crentes são os
que morreram para o pecado. Sendo esse o caso, é inconcebível uma
contradição de quem e do que somos, que casualmente continuemos
pecando. Insinuar tal coisa é demonstrar que alguém não compreendeu
que a graça que traz o perdão vem “reinar através da justiça... através
de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.21), ou, seja, através da união com
Cristo.
Os crentes em Cristo têm uma identidade nova e distinta em
virtude do laço de união que o Espírito cria entre eles e Cristo. Se, por
definição, já morreram para o pecado, não podem continuar vivendo
nele. Além do mais, também já ressuscitaram, ao operar o Espírito a fé-
união com Cristo para novidade de vida (Rm 6.8, 11). A própria ideia de
continuar em pecado, a logomarca da velha vida, sugere o impossível —
que o cristão pode engajar-se numa autocontradição, negando sua nova
vida em Cristo.
Mas, por qual ministério do Espírito os crentes morreram para o
pecado e ressuscitaram para uma nova vida? E quais são as implicações
disso? Eis aqui as perguntas formuladas e respondidas neste
seguimento. De forma apropriada, ele começa com um apelo ao batismo
a fim de explicar a identidade do crente. Todos quantos foram
batizados, foram batizados na morte de Cristo.
Aqui, a água do batismo está na mente de Paulo; ele usa linguagem
semelhante em Colossenses 2.11-12, onde a água do batismo,
indubitavelmente, está em pauta. Esse batismo, porém, é naturalmente
o sinal físico do qual o batismo com o Espírito é a realidade. Ele marca
o ponto em que os indivíduos são publicamente identificados como
pertencentes à comunidade pactual, como cristãos. No batismo,
recebem o nome de Cristo e são postos sob uma nova autoridade,
batizados, por assim dizer, de seu próprio nome para o nome de Cristo.
Aqui, Paulo elabora detalhadamente o que tal ato implica.
Se foram batizados em união com Cristo, e este é o cerne de sua
nova identidade, então se segue que foram batizados na morte e
ressurreição de Cristo. Mas, (1) se foram batizados na morte de Cristo,
então participam da significação daquela morte; e (2) se foram
batizados na ressurreição de Cristo, então participam também do que
essa ressurreição significa.
Portanto, a questão exegética central é: Qual é a significação da
morte e ressurreição de Cristo? Paulo o explica assim:
A morte de Cristo foi uma morte para o pecado: “Pois, quanto a ter
morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado” (Rm 6.10). A
morte é o salário do pecado (Rm 6.23); Cristo quitou esse salário e
subjugou na cruz a servidão do pecado. Ele veio sob o domínio do
pecado, e morreu para todas as reivindicações dele [o pecado] contra si
mesmo. Agora, o pecado não tem mais reivindicações contra Cristo,
nosso substituto. Todos os seus salários foram pagos em sua morte;
suas reivindicações são exauridas.
Se tal é o significado da morte de Cristo para o pecado, segue-se
que é nisto que participamos da morte de Cristo para o pecado. Em
Cristo, em união com ele, também já morremos para a servidão do
pecado. O domínio do pecado findou-se. Não somos mais seus súditos.
A ressurreição de Cristo, no poder do Espírito, foi uma ressurreição
para a vida escatológica, a vida pneumatológica (Rm 1.3-4; 1Co 15.45).
A vida que ele agora vive, em contraste com a morte que ele morreu
para o pecado, é uma “vida para Deus” (Rm 6.10). Se fomos unidos com
ele, segue-se que fomos constituídos como cristãos, em união com ele
pelo Espírito, a viver para Deus (Rm 6.4b).
Visto que estes elementos são verdadeiros em relação a nós (e é
para o que o batismo aponta), agora fica em evidência por que Paulo
recua ante a ideia de que podemos continuar no pecado para que a
graça seja abundante. Pois, fazer isso contradiz o modo no qual a graça
já transbordou, ou, seja, pelo ato de o Espírito nos unir a Cristo em sua
morte para o pecado e sua ressurreição para a justiça. Continuar em
pecado seria negar nossa identidade básica como cristãos. Seria
eliminar da água de nosso batismo toda a significação do batismo do
Espírito, do qual ela é o emblema.
Paulo continua explicando as implicações disto na mais complexa
declaração de sua exposição: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele
nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não
sirvamos ao pecado como escravos” (Rm 6.6).
Aqui está a rica tapeçaria da obra do Espírito; mas as expressões
cruciais tais como “velho ego”, “corpo do pecado”, “feito impotente” e
“livre do pecado” demandam todas elas uma análise mais detalhada.
Velho ego (ho palaios anthrōpos): Neste contexto, esta expressão
não indica (como sugerido pela NVI, “velho eu”, e pela NEB, “o homem
que uma vez existia”) meramente o que eu tinha no volume de minha
biografia. Sua significação se deriva do cenário de Romanos 5.12-21;
ela põe a primeira vida em seu contexto cósmico, que é seu contexto
adâmico. “Velho ego/homem” sugere um contraste verbal com o que
agora eu sou em Cristo, o “novo ego/homem”. O “velho homem” é tudo
o que eu fui em Adão antes de ser unido a Jesus Cristo: na carne, sob o
domínio do pecado, sob a condenação da lei e destinado à morte.
Mas o velho ego/homem foi crucificado com Cristo. Embora isso
fosse representativamente verdadeiro na cruz, este “com Cristo” (syn
Christō) denota união existencialmente realizada, operada pelo
Espírito, com aquele que, como já vimos, é multidimensional em seu
caráter. Esta crucificação historicamente redentiva concretizou-se no
Calvário; existencialmente, sua significação e implicações são
realizadas em nós pelo Espírito na regeneração, arrependimento e fé.
Esta última realização está radicada na historicidade da primeira. O
crente não mais se identifica em termos do adâmico, mas em termos do
crístico. Na terminologia de Paulo, o crente foi “crucificado com Cristo”;
quem vive não é mais ele, e sim Cristo; no entanto ele vive — na vida do
novo homem em Cristo — pela fé no Filho de Deus, que o amou e deu-se
a si mesmo por ele (Gl 2.20).
Corpo do pecado: O fruto direto da morte do velho ego/homem
consiste em que “o corpo do pecado” é “feito impotente”. Alguns
comentaristas tomam “corpo do pecado” no sentido de “a massa do
pecado”, sendo o pecado visto como um corpo ou massa; mas é
preferível tomar a expressão como análoga à última frase que Paulo
usa: “corpo da morte” (Rm 7.24). Evidentemente, ele tem em vista ali o
corpo físico. Portanto, é mais provável que, também aqui, denote o
corpo físico real (ao qual Paulo faz referência novamente em 7.11), visto
num aspecto particular de sua existência: o corpo visto como o
instrumento através do qual o pecado exerce seu domínio, e seja o
árbitro de nossos seres.
Feito impotente: Visto que somos novos homens e novas mulheres
em Cristo, nossos corpos, mediante o Espírito, pertencem a Cristo (cf.
1Co 6.15). Não são mais propriedade do pecado; portanto não estão
mais disponíveis a servir aos propósitos do pecado. Neste sentido, o
corpo se torna impotente como instrumento do pecado. No conflito
entre pecado e justiça, o pecado não pode mais contar com o corpo do
crente como seu aliado; o corpo do crente é agora aliado de Cristo (cf.
Rm 6.12-13; 12.1-2). Em consequência disso, os crentes não são mais
escravos do pecado.
Livre do pecado: Visto neste contexto, as considerações supra
ajudam a solucionar a dificuldade causada pela declaração radical
neste seguimento: “Porquanto quem morreu, justificado está do pecado”
(Rm 6.7). Em que sentido a obra do Espírito tem unido o crente a Cristo
ou o tem libertado do pecado? Essa é uma questão crucial para nossa
compreensão da santificação.
Determinadas interpretações podem ser de pronto rejeitadas,
especialmente aquelas que sugerem um quase perfeccionismo. J. B.
Phillips, em sua paráfrase arbitrária de Romanos, traduz assim as
palavras de Paulo: “pois pode-se afirmar com segurança que uma
pessoa morta está livre do poder do pecado” (provavelmente seguindo o
que em seus dias era o comentário padrão inglês sobre Romanos, de W.
Sanday e A.C. Headlam). Mas tal interpretação é exegética e
existencialmente impossível. Paulo evidentemente não considera nem a
si nem a seus companheiros cristãos imunes ao pecado. Ele, como nós,
podia sentir seu poder. Ele podia seguramente dizer que não era imune
ao pecado!
Outros comentaristas limitam as palavras de Paulo à ideia de
justificação.[111] De fato, a frase que ele usa, “livre do pecado”
(dedikaiōtai apo tēs hamartias), pode, como uma declaração isolada, ser
compreendida como “aquele que morreu está [literalmente] justificado
do pecado”, livre do pecado no sentido de estar livre de sua culpa. Não
obstante, três considerações sugerem que as palavras de Paulo, aqui,
não podem ser limitadas à significação forense.
(1) No contexto, ele está explicando por que não somos mais
escravos do pecado (Rm 6.6). Ele, pois, está fundamentando a liberdade
da servidão do pecado, não meramente de sua culpa, segundo o que ele
diz. O uso que Paulo faz de dikaioō, neste contexto, parece, pois, conter
a nuança de “quitar”, ou, seja, “isentar de obrigação”. O cristão não é
mais responsável pelo pecado.
(2) Mais adiante, nesta mesma passagem, quando Paulo aplica seu
ensinamento, ele afirma mais diretamente que o crente está livre do
pecado no sentido de livramento da escravidão à sua autoridade:
“outrora escravos do pecado” (Rm 6.17) implica que não mais o são. E
acrescenta: “e, uma vez libertados [eleutherōthentes] do pecado, fostes
feitos servos da justiça” (Rm 6.18). Aqui ele usa o verbo-padrão para
liberdade do cativeiro ou escravidão. Visto que todo o contexto de
Romanos 6.16-20 consiste na escravidão ao pecado e no livramento do
mesmo, não meramente da culpa do pecado e seu perdão, pode haver
pouca dúvida de que Paulo esteja ensinando que o crente é libertado da
escravidão tanto quanto da penalidade do pecado.
(3) Aqui se fornece mais uma chave no fato que, ao longo desta
seção de Romanos, Paulo parece encarar o pecado como um poder
estranho e, virtualmente, o personifica como “O Pecado” (hē hamartia;
cf. 5.12, 20, 21; 6.1, 2, 6, 10, 12, 13, 17, 18, 2, 22, 23). Suas descrições
da atividade dele [o pecado] visam a enfatizar o seguinte: o pecado é
retratado como o rei que reina (“o pecado reinou na morte”, 5.21; “não
reine o pecado”, 6.12); como um general que emprega nossos corpos
como armas em sua guerra (“instrumentos” ou “armas” [hopla] de
impiedade, 6.13); como um árbitro que tiraniza (“o pecado não mais
será vosso árbitro”, 6.14, NEB); e como um empregador que paga
salários (“o salário do pecado é a morte”, 6.23).[112]
Portanto, por toda a passagem o foco de Paulo é sobre o domínio
ou reinado do pecado, e não sobre a culpa que ele traz. Esse reinado foi
desfeito por aqueles que já foram batizados em Cristo, e que através do
Espírito vieram a participar da morte de Cristo para o pecado e a
ressurreição para a nova vida.
Não significa que a natureza inerente do pecado tenha mudado,
ainda quando seus direitos sobre o crente chegaram ao fim. Tampouco
significa que a presença do pecado seja erradicada. Ao contrário,
significa que os cristãos estão em relação para com o pecado na mesma
tensão escatológica que marca toda a presente vida no Espírito: “seu
reinado “já” se findou, mas sua presença “ainda não” foi eliminada.
Deixar de compreender esta dimensão da união com Cristo
inevitavelmente leva a conclusões dramaticamente errôneas, sendo
extraídas da pressuposição apostólica de que, pelo Espírito, somos, em
Cristo, livres do pecado. Às vezes isso toma a forma de uma escatologia
e espiritualidade excessivamente concretizadas, nas quais a união com
Cristo, que é nossa no Espírito, implica um perfeccionismo radical, ou
pelo menos um livramento do domínio da carne para o domínio menos
angustiante do Espírito. Mas tal ponto de vista falha em entender o fato
de que a vida no Espírito, em união com Cristo, é vivida “entre os
tempos”.
Mais de meio século após a ocorrência, a ilustração de Oscar
Cullmann dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial continua
valiosa para iluminar o presente caráter da vida no Espírito. Nessa
guerra, o Dia-D (a intervenção decisiva da invasão das Forças Aliadas
da Europa em 1944) se deu um ano antes da vinda do Dia-VE (o fim da
guerra na Europa em 1945). No ínterim, as batalhas continuaram
ferozes e sangrentas, mesmo quando o ato decisivo houvesse ocorrido.
Assim também é com a história da redenção. O Dia-D da redenção
ocorreu com a morte, ressurreição, ascensão de Cristo e a doação do
Espírito. Ele tem agido decisivamente contra os poderes do pecado, de
Satanás e da morte que tiranizavam seu povo. Não obstante, os
conflitos com o pecado (e também com Satanás e a morte) continuam
árduos. São reais e dolorosos. Mas ocorrem dentro de um contexto
diferente de qualquer batalha contra o pecado que marcou a antiga vida
em Adão da qual o Espírito estava ausente. Agora o cristão se engaja no
conflito com o pecado da perspectiva do livramento dos prisioneiros no
campo de guerra; a vitória decisiva sobre o domínio do pecado é uma
realidade presente no Espírito; a vitória final é assegurada. Mas há
ainda sangria, e é preciso vestir-se de toda a armadura de Deus. O
cristão, como sublinha Abraham Kuyper, está ainda “sob o tratamento
do Espírito”.[113] O Dia-D está ainda por vir.
Isso é confirmado pelo fato de Paulo seguir a série de afirmações
indicativas em Romanos 6.3-10, onde ele descreve as novas realidades
da união com Cristo, com uma série de imperativos em 6.11-14, os
quais delineiam implicações para a vida entre os tempos:
(1) Compreenda que em Cristo o reinado do pecado terminou e
você morreu para o pecado (6.11).
(2) Que o pecado não mais reina existencialmente, visto que ele
realmente não mais tem autoridade sobre você (6.12).
(3) Não permita que seu corpo seja oferecido em serviço
mercenário ao pecado, induzido pelos prazeres imediatos que ele
oferece (6.13).
(4) Entregue-se deliberadamente ao Senhor como alguém que
reconhece sua nova identidade, como alguém que foi “trazido da morte
para a vida”. Ponha os membros de seu corpo no arsenal do Senhor
(6.13).
As demandas ou deveres da graça são coextensivos com a divina
obra da graça. O padrão de regeneração-fé, no qual o Espírito nos
inaugura na união com Cristo, continua ao longo da vida inteira. Os
imperativos do evangelho operam no mesmo campo que os indicativos.
Deus está santificando a pessoa inteira: corpo, alma e espírito (1Ts
5.23); o crente deve, portanto, santificar a pessoa inteira: corpo, alma e
espírito. Deus está operando nos crentes tanto o querer como o realizar,
segundo seu beneplácito; os crentes, pois, estão desenvolvendo a
significação de sua união com Cristo na morte para o pecado e na vida
para Deus, em vidas de obediência e consagração universais (cf. Fp
2.12-13).
Aqui, o ensino de Paulo é o cerne da doutrina da santificação. Ele
sublinha o que significa morrer para o pecado, ou seja, não é um
produto de nossa própria experiência. Nesta conexão, John Murray tem
um comentário de incisiva significação prática e pastoral:
Estamos também prontos a dar atenção àquilo que julgamos ser os difíceis e
empíricos fatos da confissão cristã, e temos apagado a clara linha de
demarcação que define a Escritura. Como resultado, perdemos nossa visão da
sublime vocação de Deus em Cristo Jesus. Nossa ética perdeu sua dinâmica e
nos conformamos a este mundo. Desconhecemos o poder da morte para o
pecado na morte de Cristo, e não somos capazes de suportar o rigor da
liberdade da emancipação redentora. “Morremos para o pecado”: a glória da
realização de Cristo e a garantia da ética cristã estão atadas a esta doutrina.
Se vivemos em pecado, então não morremos para ele; e se já morremos para o
pecado, então não mais vivemos nele; pois, “como viveremos ainda no pecado,
nós os que para ele morremos?” (Rm 6.2).[114]

Este mesmo fundamento para a santificação é lançado por Paulo


num contexto diferente, porém não menos interessante, em Colossenses
2.6–3.17. Aqui, ele está combatendo o falso ensino sobre a vida no
Espírito.
Ao fazer uma leitura nas entrelinhas, alguém tem a impressão de
que alguns dos colossenses ainda não haviam descoberto que a vida no
Espírito era tudo o que esperavam. Particularmente, tudo indica que
haviam retrocedido pela influência contínua do pecado em suas vidas.
Eram, pois, solo frutífero para o cultivo de um conceito herético sobre a
santificação que prometia plenitude espiritual. A heresia colossense,
qualquer que fosse sua identidade precisa, envolve claramente um
determinado ascetismo místico como a via de acesso a tal plenitude e
perfeição (Cl 2.16-23). Segundo Paulo, não obstante, o ascetismo
externo jamais poderá restringir a indulgência da carne (2.23).
Então, o que capacita os crentes a tratar do pecado, visando ao
progresso e santificação? Paulo baseia sua resposta no fato de que, os
que já foram batizados em Cristo estão unidos a ele de uma forma tal
que participam de sua morte, sepultamento, ressurreição, ascensão e
glorificação final. Esta nova identidade em união com Cristo é o
princípio fundamental que o Espírito estabelece para tratar
adequadamente da presença contínua do pecado. Sobre esta base, os
crentes são despidos das características do velho homem e vestidos das
características do novo homem que está sendo renovado no
conhecimento, segundo a imagem do Criador (Cl 3.10). O fato da união
com Cristo, em sua morte para o pecado e na nova vida para Deus, é o
fundamento para o crescimento em santidade; o conhecimento dela
comunica motivação.
Imitação de Cristo
Se a glória de Deus é o alvo último de todas as coisas, inclusive de nossa
santificação, a conformidade com Cristo é o alvo imediato dessa
santificação. Somos chamados para sermos semelhantes a ele. Nossa
correspondente responsabilidade deve assemelhar-se a ele.
Embora a noção de que a imitação de Cristo venha a ser o
fundamento e essência da vida cristã seja nitidamente antibíblica,
também seria deficiente desenvolver-se uma doutrina da santificação
que não desse atenção a esta ênfase neotestamentária. Pois o alvo do
ministério do Espírito na santificação consiste na reprodução da
semelhança com Cristo e, neste sentido, reproduzir a imitação de
Cristo. Portanto, envolve seguir a Jesus Cristo, tomar a cruz e negar-se
a si mesmo. Aliás, os últimos dois elementos são realmente aplicações e
exposições contínuas do primeiro.
No contexto em que Pedro chama a atenção para o sofrimento dos
cristãos, ele nota que Cristo havia dado a seus discípulos um exemplo.
O termo que ele usa (hypogrammos) indica a lousa do professor por
cuja imitação a criança aprende a escrever (1Pe 2.21).
Os imperativos do evangelho devem ser então vistos como a obra
concreta da imitação de Cristo. No mesmo sentido, a vida de santo
amor descrita em 1 Coríntios 13 é uma imitação de Cristo. O fato de
nossa participação e comunhão com ele através do Espírito torna
possível tal imitação; as exortações do Novo Testamento dão a essa
imitação forma concreta e diretriz específica.
Isso já se faz evidente no próprio ato de nosso Senhor cingir-se com
a toalha de servo (Jo 13.1-20). Embora esta fosse uma parábola
intencional de sua obra, também serviu como a lousa do professor:
“Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós
deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo
[hypodeigma; poderíamos dizer, “paradigma”], para que, como eu vos
fiz, façais vós também. Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados
sois se as praticardes” (Jo 13.14-15, 17; cf. 14.26 para o papel do
Espírito no contexto).
O princípio de imitação é explorado de várias formas no restante
do Novo Testamento. Dois claros exemplos seriam suficientes. Filipenses
2.1-11 que realça a necessidade de crescermos na unidade cristã. O
segredo desta unidade é a humildade: a mente que temos em união com
Cristo e na comunhão do Espírito é aquela posta no exercício em prol
uns dos outros, considerando os outros como sendo mais importantes
do que nós mesmos. Semelhantemente, Romanos 15.1-7 insta para que
busquemos a benção que vise aos outros, e não ao nosso agrado
pessoal. Por quê? A resposta de Paulo é uma das mais simples, porém
das mais devastadoramente eloquentes. Cristo não buscou agradar-se a
si mesmo (15.3). A implicação é tão poderosa que não necessita ser
realçada. O que Cristo fez, imitem-no, porque vocês são dele e seu
Espírito habita em vocês.
Entretanto, tal progresso na vida do Espírito não se concretiza sem
resistência ou sem obstáculo.

Espírito Versus Carne


A característica mais fundamental do cristão é estar em Cristo. Não
obstante, os crentes não estão somente em Cristo; eles ainda estão em
consórcio com o mundo, em virtude da Queda. Por exemplo, em Corinto
os crentes estão também neste mesmo consórcio, embora sejam eles
santificados em Cristo (1Co 1.2). Além do mais, a nova vida no Espírito
é vivida na carne, na existência física que leva as marcas de uma
associação pregressa, sutil e perpétua ao pecado. A ruptura radical com
o pecado, como dominação, já ocorreu; mas a ruptura final com o
pecado, em termos de sua presença, ainda não se concretizou. Ainda
não somos perfeitos (Fp 3.12; 1Jo 3.8-10). A crise final da glorificação
ainda não se concretizou.
O cristão vive numa nova esfera, num novo aiônio. Mas essa nova
ordem de existência é vivida num mundo ainda sob a dominação do
passado. Até onde isso é verdadeiro, a tensão, o conflito e a luta se
unem como um aspecto dominante do status do crente e, com
frequência, de sua consciência subjetiva.
Há uma dimensão nesta batalha que envolve o mundo e o diabo;
mas há uma dimensão ulterior dela: um conflito entre carne (sarx) e
E/espírito (pneuma).
Os termos “espírito” e “carne” são às vezes usados na Escritura
como termos totalmente antropológicos, designando a dupla dimensão
da existência humana, física e espiritual. Mas, já no Antigo Testamento,
se põem em contraste mais numa relação complementar: “Os egípcios
são homens e não Deus; seus cavalos são carne e não espírito” (Is 31.3).
Afirma Geerhardus Vos: “Segundo esta afirmação, ‘carne’ é o oposto
direto de ‘Espírito’, por nenhuma outra razão além de sua característica
inércia, falta de poder, isso pode ser removido pelo Espírito de Deus.”
[115]
Esta antítese é mais desenvolvida no Novo Testamento: a carne é
sem qualquer proveito; somente o Espírito traz proveito (Jo 6.63). A
carne só traz proveito a si própria (Jo 3.6).
Agora se reconhece amplamente que nos escritos de Paulo a
antítese entre carne e E/espírito reflete uma dimensão supraindividual.
As características da vida na carne incluem autoabsorção,
autoconfiança e indulgência, dependência de cerimônia e ritual
externos, e não da realidade espiritual interior, apegando-se à sombra e
não à concretização em Cristo (Gl 3.3; 5.19-21).
Na verdade, isso não passa do bafejo de uma atmosfera de
contaminação espiritual que tem sido aspirada desde há muito. A carne
é todo um mundo de existência. Vem desde Adão e está no presente
aiônio como uma ordem mundial fragmentada. Estar “na carne” é
contrastado com viver “no Espírito”, de maneira que é claramente
paralelo e sem conexão com o contraste entre estar em Adão e estar em
Cristo, pertencente ao presente aiônio mau e pertencente ao novo aiônio
escatológico inaugurado pelo triunfo de Cristo e o dom do Espírito (Rm
5.12–8.27).
Anterior à união com Cristo, os que jazem em Adão estão “em” e
vivem “segundo” a carne. Agora que estão em Cristo, estão “no Espírito”
e vivem “segundo o Espírito”. Paulo, propositadamente, afirma que os
crentes cristãos não estão na carne (en sarki), mas no Espírito (en
pneumati) (Rm 8.9). A antítese é radical e completa. A ideia de um
cristão “sárkico” é uma contradição irracional, como Paulo sublinha
(1Co 3.1-3), em virtude de ser ele habitação do Espírito e, por definição,
ser “pneumático”.
Em seu uso da linguagem carne-Espírito, Paulo indica que a
situação é ainda mais complexa. Embora “crucificada com Cristo” (Gl
2.20), a carne continua sendo uma ameaça à vida no Espírito; ela
“deseja o que é contrário ao Espírito” (Gl 5.17). Daí os imperativos para
que não se permita que a mente hesite ante o desejo de satisfazer a
carne (Rm 13.14; Gl 5.16).
Assim, a vida no Espírito não é ainda vivida no contexto da ordem
final após a ressurreição. Ao contrário, a vida kata pneuma é vivida no
contexto da vida kata sarka. O cristão pertence à comunidade da ordem
da ressurreição, porém vive no contexto da presente ordem. Mesmo a
nova vida em Cristo, vivida no Espírito, tem como seu contexto a
existência física e mental que é desde muito dominada pela carne.
O conflito ou tensão que vem à tona pode ser retratada bem
vividamente, assentando lado a lado duas afirmações de Paulo:
GÁLATAS 2.20 ROMANOS 7.17-20
Fui crucificado com Cristo,
e já não sou eu quem vive,
Neste caso, quem faz isso
já não sou eu,
mas é o
pecado que habita em
mim…
mas
Eu sei que em mim, isto é,
Cristo vive em mim.
em minha carne, não
habita bem nenhum.
Mas, se eu faço o que não
quero, já não sou eu quem
o faz,
e sim
o pecado que habita em
mim.

Aqui está o mais desconcertante elemento do presente status do


cristão. O conflito suprapessoal, carne-Espírito, possui um profundo
eco na existência do crente. Cristo habita, pela fé, o coração (Ef 3.17).
Não obstante, o pecado também habita ali. De fato, a situação não é
que dois poderes iguais se opõem um ao outro. A graça está reinando
através da justiça! Não estamos “na carne”, mas “no Espírito”. Por essa
mesma razão, porém, a tensão e o conflito se tornam, com isso, muito
mais amargos e urgentes.
Há uma situação radical e profundamente radicada de conflito no
progresso de santificação que nunca deve ser minimizada. Agir assim
seria inclinar-nos ou a cair no incipiente perfeccionismo (a carne não
tem vigor algum em mim), ou a ter uma visão inadequada da salvação
(deixar de compreender, através do Espírito, que o Senhor Jesus Cristo
habita em nós como a esperança da glória).
O locus classicus deste conflito tem sido tradicionalmente
estabelecido no ensino de Paulo em Romanos 7.13-25, passagem essa
que se tem comprovado ser um campo de batalha exegético.

Quem É o Homem Miserável?


O ponto de vista de que esta passagem se refere à vida cristã de Paulo
tem recebido a defesa de muitas das grandes figuras na história da
teologia. Atanásio o sustentava; Agostinho se bandeou para ele;
Calvino o expôs. Nomes de peso, porém, na recente erudição bíblica, se
põem contra ele, e o mesmo conta hoje com bem poucos defensores. Um
ponto de vista mais semelhante ao sustentado pelos pais gregos, e mais
tarde por Armínio, cuja tendência é dominar a erudição
neotestamentária desde 1930, seguindo a publicação, em 1929, da
notável monografia de W. G. Kümmel, Römer 7 un die Bekehrung des
Paulus (Romanos 7 e a Conversão de Paulo). Segundo este ponto de
vista, aqui Paulo não está descrevendo sua experiência cristã; em certo
sentido, ele não está descrevendo absolutamente sua experiência
pessoal, pelo menos no sentido estritamente histórico. Ao contrário, ele
está olhando para si (em alguns lances do texto) como um judeu, sob a
lei, mas descrito pelo prisma de um novo homem em Cristo. O “Eu” de
Romanos 7 é, estritamente falando, uma figura retórica.
Várias versões desta abordagem “histórico-redentiva”, e não
“autobiográfica e existencial”, tem sido poderoso pomo de discussão.
[116] A chave para ela está no reconhecimento de que temos aqui uma

descrição teológica de um indivíduo na era do antigo pacto, o qual


ainda não descobriu o livramento da lei que é concedido em Cristo, no
Espírito. Daí, em Romanos 7, não se faz referência alguma ao ministério
do Espírito, ainda que tais referência sejam abundantes no capítulo 8.
Seria impossível fazer aqui uma avaliação completa desta questão.
Além do mais, a agenda historicamente assentada para esta discussão
poderia muito bem ter o efeito de desviar-nos da real ênfase de Paulo
sobre a natureza e papel da lei. Não obstante, é digno de nota por que a
interpretação clássica — de que esta é uma descrição de um aspecto da
vida de fé — tem prosseguido a granjear defensores.[117]
Há uma objeção prima facie contra qualquer exposição destes
versículos que adote o conceito de que aqui Paulo está falando em
termos gerais ou historicamente redentivos, de uma maneira tal que os
elementos pessoais e autobiográficos se acham ausentes de seu
pensamento. A abrupta intensidade de suas afirmações fazem tal
conceito psicologicamente improvável. Porquanto Paulo, então, estaria
descrevendo um “Eu” que não tinha qualquer existência real. Além do
mais, o conceito de que o indivíduo sob a lei (o judeu
veterotestamentário) está sendo descrito a partir do prisma do
livramento da lei, significa que as afirmações em Romanos 7.14-25 são
antes fictícias do que pessoais e reais. Mas a força do pessoal no que
Paulo diz (especialmente à luz do caráter não autobiográfico do que ele
tem exposto até aqui) torna isso improvável.
Além disso, a continuidade do tema da passagem — o “Eu” — no
contexto da transição do pretérito (em 7.6-13) para o presente (usado
constantemente em 7.14-25) é dramático e, seguramente, significativo.
Mantém-se com absoluta consistência que interpretar as palavras como
sem qualquer referência à presente experiência de Paulo parece evitar o
óbvio, por mais difícil que seja desembaraçar alguns dos detalhes
exegéticos. Ainda que se conceda a possibilidade teórica de que neste
ponto de sua carta Paulo esteja se envolvendo numa discussão da pré-
condição cristã, a abrupta e consistente mudança para o tempo
presente milita contra o conceito de que ele de fato assim age.
Em contrapartida, determinada versão da interpretação
agostiniana clássica desta passagem consiste em manter a estrutura do
pensamento nestes capítulos de Romanos. Paulo está apresentando o
que significa não mais viver em Adão, e sim em Cristo. No capítulo 6,
Paulo argumentou dizendo que o crente está livre do domínio do
pecado, porém não ainda livre da presença do pecado.
Consequentemente, o crente batalha contra o pecado, num combate
mortal. O poderoso livramento que a graça traz estabelece um poderoso
conflito no Espírito.
A estrutura do capítulo 7 é semelhante. O crente já morreu para a
lei mediante o corpo de Cristo (7.4). Ele não vive mais sob sua
condenação, mas vive agora “livre da lei” (7.6). No entanto a lei, como
expressão da santidade de Deus, ainda não morreu. Mesmo o melhor
dentre os crentes está longe de ser perfeito, segundo os padrões da lei.
Enquanto o crente estiver na carne, nele permanece aquilo que a lei
condena, o qual (visto em sua própria luz) o faz prisioneiro da lei.
Portanto, o que está envolvido não é simplesmente uma luta contra o
pecado, um inevitável senso de frustração em relação à lei, até que o
livramento por fim se concretize na ressurreição.
Esta perspectiva geral consiste em conservar uma série de
considerações-chave adicionais nas afirmações específicas nesta
passagem:
(1) Ao distinguir, em Romanos 7.17, entre seu ego genuíno (“o
próprio eu”) e o pecado que habita nele, Paulo de modo algum procura
isentar-se da responsabilidade por seu pecado; contudo se distancia do
pecado de uma maneira certamente característica do cristão crente que
está “em Cristo”, mas ainda não é plenamente “semelhante a Cristo” na
obediência às demandas da lei.
(2) O reconhecimento de Paulo (em 7.18) de sua corrupção, em sua
carne (en tē sarki mou), parece indicar que existe outra perspectiva
donde sua vida pudesse ser visualizada (i.e., “no Espírito”). Além disso,
esta perspectiva dual da vida só é possível, da ótica bíblica, para o
crente e a partir do crente.
(3) Paulo fala de seu deleite na lei de Deus (7.22). Ainda que
discutível, isso pode ser um deliberado eco do espírito do Salmo 1.2. Em
sua mente, Paulo serve à lei de Deus (7.25). Diante de suas observações
posteriores sobre a mente não convertida que não se sujeita à lei de
Deus (especialmente Rm 8.7), é natural ler isso como a visão de um
homem em Cristo.
(4) O presente reconhecimento de Paulo, de que Cristo por fim o
salvará deste corpo de morte (7.24) forma um todo com o precedente.
Esta é uma confissão distintamente cristã.
(5) Particularmente significativa é a resolução final da posição em
7.25b: “De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente sou escravo da
lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado.” Aqui reaparece a
dualidade que é válida somente no tocante ao crente (autos egō e tē de
sarki). A impressão que fica é de uma contradição aparentemente
contínua. Paulo pode descrever-se a partir de duas perspectivas
distintas: no tocante à mente, ele serve à lei de Deus; no tocante à
carne, ele serve ao pecado. Isto segue significativamente a afirmação de
7.25a acerca da certeza de seu livramento em Cristo. Seria o caso de que
aqui esteja falando um crente da antiga dispensação? Ou, pelo menos,
ser a descrição veterotestamentária de um crente visto da ótica
neotestamentária? Pode ser; limitar, porém, as palavras de Paulo desta
maneira não explica nem a mudança para um uso consistente do
presente do indicativo nem fortalece a convicção de que Cristo traz
livramento.
Paulo reconhece que ele vive no contexto do conflito entre dois
domínios opostos. Há mais que uma mera contradição expressa neste
ponto de vista; porém não mais do que entre o que Paulo diz em
Romanos 7 e o que ele diz no capítulo 6 ou 8. A contradição existe no
íntimo do próprio Paulo, e vem à tona tanto em Romanos 6 e 8 como em
Romanos 7. O conflito cósmico final sofre um transbordamento em
nosso mundo, na colisão desta presente era com o estabelecimento da
era vindoura da igreja de Deus. Estas duas dimensões, porém, têm seu
campo de batalha e aliados no recôndito da existência psicossomática
do próprio Paulo. Sua mente é renovada pelo Espírito; ele não está na
carne, e sim no Espírito. Ele, porém, vive no corpo (Gl 2.20) como o
corpo da morte. A natureza da carne como tal não sofre mudança, como
se dá com o corpo físico, mesmo no homem que não mais vive “na
carne” no sentido de ser dominado ou de viver segundo a carne. Não
obstante, assegura-se do livramento de tudo o que impede a perfeita
obediência à lei de Deus. Nesse prisma Paulo é capaz de viver com todas
as tensões que seu presente contexto cria.
Tal conceito não é isento de dificuldades. Estas incluem o seguinte:
Paulo se descreve como estando “vendido à escravidão do pecado”
(7.14). Ele se vê como um “prisioneiro da lei do pecado que está em seus
membros” (7.23); ele se qualifica de “homem miserável” (7.24). Por
natureza, ele é “escravo da lei do pecado” (7.25). Tais descrições são
difíceis de se conciliar com suas descrições em outras partes da vida no
Espírito.
Acaso tais afirmações não indicam que o homem em pauta aqui
não possa ser o crente do novo pacto? Com certeza seria o Saulo de
Tarso, o incrédulo, ou no mínimo Saulo antes da vinda do Espírito,
ainda quando existam indicações — aliás, os próprios detalhes que
levam a interpretar o “Eu” como sendo um crente — que insinuam ser
este o homem veterotestamentário, visto de uma perspectiva da fé
neotestamentária.
Estas afirmações, porém, simplesmente sublinham o senso que
Paulo nutria da contradição inerente de alguém em quem o pecado
continua a habitar, quando não mais está sob o domínio da carne, e sim
do Espírito. Pois aquele que compreende que a habitação sincronizada
do Espírito de Cristo e do pecado apresenta uma espantosa contradição
— não um mero paradoxo — se vê obrigado a expressá-lo em termos
que pendem para o contraditório, e provavelmente o seja.
Portanto, Paulo não está se contradizendo quando, ao falar da
libertação do pecado, no capítulo 6, no capítulo 7 pode sentir-se ainda
um prisioneiro da lei do pecado. Ele está, ao contrário, dando expressão
à contradição que é inerente à participação do novo ser em Cristo,
anterior ao tempo em que a perfeita e final renovação se concretizasse e
ele fosse por Jesus Cristo libertado do corpo da morte. Ainda que se
visse resgatado do presente mundo perverso (Gl 1.4), ele não está ainda
removido da esfera de sua influência.
Não obstante, tais afirmações não devem ser tomadas como a
soma total das perspectivas neotestamentárias sobre a vida cristã. O
apóstolo está visualizando a si próprio à luz de um aspecto particular,
ou, seja, à luz da lei de Deus, que é santa e espiritual (7.14, 16). Sob
essa luz, mesmo como crente, a permanência do pecado se revela em
toda sua repulsiva rebelião contra Deus. O pecado permanece, assim
como sua natureza como rebelião e também permanecem imutáveis
suas tendências escravistas naturais.
Assim como Paulo havia morrido para o pecado, todavia não tinha
se libertado dele em termos finais, assim também ele reconhece que,
como alguém que está no Espírito, já morreu para a condenação
procedente da lei, mas ainda não se tornou perfeito de acordo com as
demandas dela.
Como pode alguém que já morreu para o pecado, e está isento dele
(6.2, 7, 18, 22), falar de si mesmo como “vendido à escravidão do
pecado” e como um “homem miserável”? Tais contradições de expressão
sublinham o fato de que o cristão experimenta muito mais que um
simples paradoxo ou uma antinomia. O crente vive dentro do contexto
de uma contradição real, no qual foi introduzido pelo dom do Espírito.
Ele foi vendido como escravo do pecado; e a redenção ainda não
oblitera as influências dessa servidão — pelo menos, ainda não. Um
castelo em ruína, mesmo quando devidamente reedificado, continua a
ser caracterizado pelas devastações por que passou. Assim na vida
cristã. Em vez de diminuir o contraste de carne e Espírito, Paulo o
afirma enfaticamente. Somente quando Cristo por fim libertá-lo do
corpo da morte (7.24) é que a contradição se desfará finalmente (cf. Rm
8.23).
Portanto, os clamores de Paulo devem ser lidos não tanto como
clamores oriundos do desespero, do homem sem o Espírito, como os
clamores oriundos de um cristão frustrado, que virá à tona nesta forma
espasmodicamente intensificada ao longo de todo o curso de sua vida.
Até mesmo este ponto de vista de Romanos 7.14-25 não deve ser
tomado como sugestão de que Paulo visualiza o cristão como paralisado
pelo pecado e pela carne. Ao contrário, é a tarefa do cristão fazer
morrer os malfeitos do corpo (Rm 8.1-14; Cl 3.4) à luz da união com
Cristo e a diretriz e habitação do Espírito de filiação.
Este conflito também não tem paralelo. A graça reina através da
justiça tanto em nós como por nós. Daí a afirmação clássica e enfática
da Confissão Westiminster (a despeito da infeliz expressão, aos nossos
ouvidos, que diz, “a parte regenerada”):
“Nesta guerra, embora prevaleçam por algum tempo as corrupções que
restam, contudo, pelo contínuo socorro da eficácia do santificador Espírito de
Cristo, a parte regenerada vence, e assim os santos crescem em graça,
aperfeiçoando sua santidade no temor de Deus.[118]

Resumindo, pois, podemos afirmar três coisas:


(1) O aspecto interno do conflito carne-Espírito é real; o crente em
Cristo prossegue pela vida fora “anulando os sintomas” no
desenvolvimento da santidade. Havendo interrompido a antiga
inclinação, o pecado cria conflito, em vez de destruí-lo.
(2) Além do mais, esta é uma realidade permanente. Mas não
significa dizer que é contínua ou conscientemente vivida pelo crente no
mesmo nível de intensidade. Romanos 7.14-25 não é a única perspectiva
que o crente tem de si mesmo, embora seja uma perspectiva essencial.
(3) Não cabe dúvida quanto à resolução deste conflito. No
presente, o crente clama por livramento do corpo de morte, ainda que,
por meio da habitação do Espírito, já possua a garantia desse
livramento. A surpreendente realidade da santificação divina consiste
em que a presença do Espírito em nossos corações é a causa
fundamental do estabelecimento do conflito. Os que possuem as
primícias do Espírito são os que gemem intimamente enquanto
aguardam ansiosamente a adoção, a redenção de seus corpos (Rm
8.23).
O próprio Espírito constitui as primícias da redenção final. Ele é o
penhor ou depósito, o selo ou garantia do que está ainda por vir (Ef
1.13-14; 4.30). À luz deste fato, o crente não mais vive como devedor à
carne, a ponto de viver kata sarka; não está hipotecado a ela; ao
contrário, sua dívida pendente é com o Espírito, a ponto de viver kata
pneuma, uma vez que ele pertence a Jesus Cristo e a ele está hipotecado
em fé e em amor para todo o sempre, numa dívida que jamais poderá
ser reembolsada (Rm 8.12).
Eis precisamente o contexto dos imperativos relativos à
mortificação e vivificação que emergem constantemente da exposição
dos indicativos da graça redentora e lhes são correspondentes. Os
crentes são novos homens e novas mulheres em Cristo; por isso se
despem do antigo e se vestem do novo (Rm 6.11-14; Cl 3.5-14), até que
a adoção pela qual anelam, consumada na redenção do corpo, seja
concretizada.

Espírito e Lei
Qualquer determinação do ensino de Paulo em Romanos 7 suscita a
pergunta mais ampla sobre a relação do ministério do Espírito no
tocante à lei. Esse é apenas um aspecto das questões mais
fundamentais na teologia cristã: Como o evangelho se relaciona com a
lei, o novo com o antigo pacto, Cristo com Moisés, o Pentecostes com o
Sinai?
Os acontecimentos do Dia de Pentecostes nos intimam a levar em
conta esta questão. Já notamos o paralelismo antitético que parece
operar entre o Pentecostes e o Sinai. No Sinai, Moisés subiu à presença
de Deus; e a lei de Deus, escrita em tábuas de pedra, foi trazida ao
povo. No Pentecostes, Jesus subiu à presença de Deus e o Espírito
desceu, escrevendo a lei nos corações do povo. No contexto de sua
exposição desses acontecimentos, Pedro frisa a seus ouvintes o
cumprimento de Joel 2.28-30, pondo sua ênfase na diferença entre a
administração sinaítica e a administração pentecostal. Na antiga, as
primeiras distinções sob a lei são desfeitas; uma nova administração
teve início por intermédio do Espírito.
Tudo indica que o Dia de Pentecostes e a ação do Espírito marcam
o fim do Dia do Sinai; e muito do ensino neotestamentário surge como
uma confirmação dessa premissa. Por exemplo, João traça esta
comparação: enquanto a lei veio por intermédio de Moisés, a graça e a
verdade vêm por intermédio de Jesus Cristo (Jo 1.17). Com certeza,
fazendo esta leitura de maneira isolada, a mesma parece insinuar o
cancelamento da lei.
De modo semelhante, Paulo é diretamente acusado de ensinar o
mesmo cancelamento (p. ex., At 21.28). Além disso, muitas de suas
afirmações, de uma maneira prima facie [direta], parecem confirmar
isso: somos justificados pela fé sem as obras da lei (Rm 3.28); estamos
debaixo da graça, não debaixo da lei (Rm 6.14-15); morremos para a
lei, e estamos livres dela (Rm 7.4, 6; cf. Gl 2.19); a lei do Espírito nos
libertou da lei do pecado e da morte (Rm 8.2). Numa palavra, Cristo é o
fim da lei para a justiça daqueles que creem (Rm 10.4). O que era
glorioso em seu próprio tempo agora, no Dia do Espírito, é visto, como
comparação, ser completamente destituído de glória (2Co 3.10).
Entretanto, uma leitura mais atenta do Novo Testamento revela
que a relação entre o Espírito e a lei é muito mais complexa do que isso.
Em conexão com esse liame “ab-rogatório” do ensino, põe-se outra
ênfase sobre a continuidade. Jesus não veio destruir a lei, mas cumpri-
la (Mt 5.17-20; cf. 21-48). De fato, a própria natureza do amor consiste
em cumprir a lei (Rm 13.8-10), a qual é boa, santa e também espiritual
(Rm 7.12, 14). Uma indicação de vida no Espírito é que os justos
requerimentos da lei sejam cumpridos naqueles que andam no Espírito
(Rm 8.3-4).
Como é possível resolver esta aparente contradição? A vinda do
Espírito de Cristo põe, ou não, fim às relações com a lei que Deus deu no
Sinai?
A resolução clássica deste dilema se radica numa formulação da lei
que teve seu floruit [apogeu] na teologia evangélica do século dezessete.
Ela distinguia três dimensões na lei dada pelas mãos de Moisés: civil,
cerimonial e moral.
Na lei mosaica, esses três aspectos eram sólida e inextricavelmente
entrelaçados. A lei de Moisés, porém, destinava-se a ser uma
administração divina e temporária da lei. Como tal, ela foi adicionada à
promessa dada a Abraão (Gl 3.17); não era original no que diz respeito
às relações pactuais de Deus com seu povo eleito. Ao contrário, ela
serviu a seus propósitos: (1) em governar um povo distinto até o tempo
quando o Messias prometido se levantaria dentre eles; e (2) em
prescrever um método de expiação para os que violassem as demandas
morais de Deus. Portanto, na administração mosaica, a lei de Deus, em
seus requerimentos morais (o Decálogo), revelava a necessidade de um
Redentor; em seus requerimentos cerimoniais, ela comunicava
esperança de redenção; em suas regulamentações civis, ela preservaria
para Deus a nação de cujo seio o Redentor se levantaria.
Eis o ponto que Paulo realça em sua importante afirmação: “Qual,
pois, era o propósito da [administração mosaica da] lei? Foi adicionada
[i.e., à promessa] por causa das transgressões, até que viesse o
descendente a quem se fez a promessa [i.e., no pacto abraâmico]” (Gl
3.19).
Neste contexto, a lei mosaica basicamente explica e aplica a perene
lei de Deus para a vida humana num contexto específico, extenso,
porém temporário. O Decálogo reproduz isto no contexto mosaico. Isto
explica por que é possível traçar linhas diretas do Decálogo aos
capítulos introdutórios da Bíblia e relacionar as exortações contidas
nele com o desígnio divino original para a vida humana.[119]
A erudição moderna tem demonstrado pouca paciência em relação
a esta tríplice divisão clássica da lei. É prematura, porém, a rejeição
indiscriminada do valor desta categorização. Naturalmente, é
importante reconhecer que, a partir da perspectiva do Antigo
Testamento, a lei mosaica era um manto inconsútil, e não uma colcha
de retalhos para o crente veterotestamentário. Não obstante, não
significa dizer que o crente veterotestamentário não reconhecia seu
caráter multifacetado. Uma ou outra dessa interpretação é de fato
assumida por uma série de ênfases neotestamentárias. Só na
formulação desta premissa é que faz sentido a insistência de Jesus de
que ele cumpre a lei, em vez de a abolir (Mt 5.17-20).
Efésios 2.14-18 parece ter em vista uma divisão semelhante da lei.
Aqui Paulo fala de Jesus como “abolindo em sua carne a lei com seus
mandamentos na forma de ordenanças”. Mas se ele pode referir-se
livremente ao mandamento de honrar pai e mãe como sendo válido
(como faz em Efésios 6.1), parece evidente que ele, em algum sentido,
faz distinção entre o Decálogo (lei moral), o qual ele impõe, e o restante
das ordenanças mosaicas. A carta aos Hebreus, semelhantemente, trata
da lei cerimonial como que, em algum sentido, possuindo certa função
distinta num período provisório de tempo.
Alguma indicação deste caráter multifacetado, ou concêntrico, da
lei já se acha presente no próprio Antigo Testamento. Por exemplo,
somente o Decálogo foi proclamado por Deus no monte; somente o
Decálogo foi impresso pelo dedo divino em tábuas de pedra; somente o
Decálogo foi depositado na Arca da Aliança. Entretanto, deve-se
enfatizar que é somente à luz da obra de Cristo que são soltos os fios
que juntam estes aspectos da lei, e as distinções implícitas se tornam
explícitas.[120] O que se fez evidente na promulgação da lei foi que suas
diferentes dimensões se pertenciam na administração mosaica como os
princípios do fundamento se relacionam com aplicações particulares.
[121] Enquanto os aspectos civis e cerimoniais se tornam obsoletos, a

dimensão “moral” é permanente, e, portanto, permanece aplicável na


era do novo pacto.[122]
Entretanto, algo mais precisa ser dito. Pois de fato se muda o
status da lei no novo pacto. Revela-se muito mais do que uma mera
confirmação da autoridade permanente da lei. A esperança que foi
transmitida sob a administração do antigo pacto era que também ela se
internalizaria de um modo novo: nos indicativos da obra do Espírito,
Deus cumpriria os imperativos da lei. O princípio que Paulo enuncia é
cumprimento, mais que obrigação:
“Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne [dia
tēs sarkos], isso fez Deus enviando seu próprio Filho em semelhança de carne
pecaminosa [en homoiōmati sarkos hamartias], e no tocante ao pecado; e, com
efeito, condenou Deus, na carne, o pecado. A fim de que o preceito da lei se
cumprisse em nós que não andamos segundo a carne [kata sarka], mas
segundo o Espírito [kata pneuma] (Rm 8.3, 4).
O indicativo do antigo pacto, “Estes mandamentos... estarão em
vossos corações” (Dt 6.6) pôs diante do povo de Deus uma norma. Mas,
segundo o enfatizou Jeremias, “o pecado de Judá está escrito com um
ponteiro de ferro, e com diamante pontiagudo gravado na tábua de seu
coração e nas pontas de seus altares. Enganoso é o coração, mais do
que todas as coisas, e desesperadamente corrupto...” (Jr 17.1, 9). O
pecado, não a lei, estava escrito no coração, daí a necessidade da
promessa do novo pacto. “Porque esta é a aliança que firmarei com a
casa de Israel... Na mente lhes imprimirei minhas leis, também no
coração lhas escreverei... porque todos me conhecerão” (Jr 31.33-34).
Promessas similares são transmitidas através de Ezequiel: “Dar-lhes-ei
um só coração, espírito novo porei dentro neles; tirarei de sua carne o
coração de pedra, e lhes darei coração de carne; para que andem em
meus estatutos, e guardem meus juízos, e os executem.” Uma vez mais,
isso é posto dentro de um contexto pactual: “Eles serão o meu povo, e eu
serei o seu Deus” — a expressão fundamental do Antigo Testamento de
relacionamento pactual (Ez 11.19-20; cf. 36.25-27).
A antecipação da experiência no novo pacto, visualizada dentro do
cenário do antigo pacto, é que a nova era trará o cumprimento do que
foi ordenado, a saber, a “lei no coração”. Isto é visto como um elemento
distinto no dom e ministério do Espírito. A lei no coração e a habitação
do Espírito são dois aspectos da única realidade do novo pacto. Essa é a
chave para a afirmação um tanto enigmática de Paulo: “Anulamos,
pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei”
(Rm 3.31).
De fato a lei veio por intermédio de Moisés, mas a graça e a
verdade, para as quais ela apontava, vieram exclusivamente em Cristo e
só podem ser efetuadas pela habitação do Espírito. Consequentemente,
o crente do novo pacto não pode receber a lei moral da mesma maneira
que o crente sob a administração mosaica; agora ela é recebida em
Cristo, o qual cumpriu suas ordenanças e sofreu, em nosso lugar, a
penalidade de sua violação, bem como no poder do Espírito que
energiza o povo de Cristo a cumpri-la em sua própria vida.
O fruto que o Espírito produz cumpre e exemplifica tudo o que
estava em vista no Decálogo transmitido de forma negativa. “Mas, se
sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei” (Gl 5.18; cf. Rm 6.14-
15). Mas, em que sentido? No sentido em que estar sob a lei significa
estar em oposição à lei, ter alguém a lei “contra” si como pecador. Não
obstante, em Cristo este não é mais o caso; não há condenação para
aqueles que estão nele; andam segundo o Espírito e exibem o fruto do
Espírito; “contra tais coisas [isto é, o fruto do Espírito] não há lei” (Gl
5.23). O ministério do Espírito produz o telos [fim, propósito] da lei em
vez de sua condenação. Agora o crente que não está sob a lei está, pelo
Espírito, “isento da lei” em relação a Cristo (ennomos Christou, 1Co
9.21). Ao unir-se a Cristo mediante o Espírito, a santa lei vem a ser
também do crente.

Reino contra Reino


Esta obra do Espírito de unir-nos a Cristo introduz a vida cristã numa
atmosfera escatológica. Ela é vivida nas esferas celestiais (Ef 1.3; 2.6).
Mas essas são também as esferas do conflito escatológico, onde o dia
mau é enfrentado (Ef 6.12-13). A vida no Espírito é vivida no contexto
dos últimos dias, caracterizados como são por “tempos [kairoi] de
angústia” (2Tm 3.1). O Espírito nos introduz no conflito
multidimensional que foi inaugurado pela vinda de Cristo. Além disso,
da guerra entre a carne e o Espírito, somos introduzidos numa
dimensão ulterior de conflito.
Nos Evangelhos Sinóticos, a inauguração do ministério público de
Jesus marca o princípio do fim, a emergência da batalha do fim dos
tempos. Isso é assinalado no registro que Mateus faz dos
endemoninhados gadarenos que, reconhecendo a Jesus como o Filho de
Deus, clamaram: “Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo
[designado]?” (Mt 8.29; cf. Lc 8.31). A derrota que Cristo desferiu
contra Satanás nas tentações sofridas no deserto é aqui visualizada
como uma incursão antecipada da vitória do fim dos tempos (cf. Jo
12.31; Cl 2.15; Hb 2.14-15; 1 Jo 3.8; Ap 12.7-12; Rm 16.20). Mas o fim
ainda não chegou. Até onde este é o caso, ao viver “entre os tempos”, a
igreja cristã existe não só dentro do contexto de tensão entre esta era e
a era vindoura, e do conflito entre a carne e o Espírito, mas também
dentro da zona de guerra na qual o reino de Deus avança contra os
poderes das trevas. A igreja, como disse Jesus, enfrenta as portas do
inferno.
Abraham Kuyper expressa esse fato de forma excelente:
Uma vez que a cortina foi afastada, e o mundo espiritual por detrás dela veio a
lume, expõe-se ante nossa visão espiritual uma batalha tão intensa, tão
convulsiva, arrastando tudo em sua fúria, que a batalha mais feroz deflagrada
sobre a terra pareceria, por comparação, um mero brinquedo. Não aqui, mas
além, é onde eclode o conflito real. Nossa luta terrena ecoa por entre as
escarpas.[123]

Por essa razão somos vestidos com toda a armadura de Deus para
que permaneçamos firmes em Cristo.
Há aqui um importante paralelo com o fim do domínio do pecado.
Seu reinado em nossos corpos tornou-se nulo e sem efeito, ainda que
sua presença não esteja ainda finalmente destruída. Semelhantemente,
Cristo venceu o diabo na cruz e o desarmou (Cl 2.15; Ef 2.2). O conflito
da igreja e do crente com as forças satânicas só é possível porque já
fomos libertados de seu cativeiro. Ele é intensificado em virtude da
contínua presença do pecado no crente.
Há, pois, um alinhamento do conflito carne-Espírito com o conflito
reino-Reino; pois, distintamente de Cristo, os cristãos não podem dizer
que, quando Satanás está em ação, “ele nada tem em mim” (Jo 14.30).
Há um ponto de contato para o reino das trevas na quinta coluna da
habitação do pecado. Esta “plataforma” se posiciona em nossa
contínua disposição para o pecado, e é ignorada em nosso perigo.
É provável que uma insinuação disto surja já em Romanos 7 com
seus ecos provindos dos capítulos iniciais do Gênesis. (Aliás, o espectro
de Adão jaz à espreita em toda a primeira metade de Romanos.) Em
Romanos 7.11, a linguagem de Gênesis 3.13 (LXX) reaparece. Em
Romanos 5.12-21, Paulo está em Adão antes de estar em Cristo; mas,
se estamos certos, entendendo Romanos 7.14-25 como uma descrição
da experiência cristã, então, em certo sentido, as ruínas de Adão
permanecem em Paulo mesmo depois de ser um novo homem em Cristo.
[124] Como já vimos, aquele que é habitado por Cristo, ainda é habitado

pelo pecado. Assim, em Romanos 7.21: “Então, ao querer fazer o bem,


encontro a lei de que o mal [to kakon] reside em mim.” Ou, poderíamos
dizer “o maligno”?
Satanás é apresentado no Novo Testamento numa ampla série de
papéis da qual o cristão deve estar cônscio e contra a qual deve
defender-se bem: Satanás é obstáculo (1Ts 2.18); o acusador dos
irmãos (Ap 12.10); o diabo (diabolos), o difamador (Mt 4.1-11; Ef 6.10-
20; cf. 1Tm 3.7, “as ciladas do diabo”; 2Tm 2.26). Ele é o tentador (Mt
4.3; 1Ts 3.5; 1Co 7.5); e o querelante ou adversário (antidikos) que se
nos opõe e busca, à luz das palavras de Pedro, devorar-nos (1Pe 5.8).
Por essa razão, o imperativo central deste elemento de santificação
é: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação” (Mc 14.38). Os que
pensam que estão de pé, que tomem cuidado; e os que se preocupam
com a maneira como outros têm caído em tentação, que se ponham em
guarda, para que, ao tentarem ajudá-los, não caiam no mesmo pecado,
ou em pecado semelhante (Gl 6.1).
O foco da tentação original era de caráter teológico: destruir a
confiança e fé na benevolência paternal de Deus. Esse método
permanece em toda batalha de Satanás contra os eleitos de Deus. Ele
sabe que não pode destruir seu relacionamento com Deus, por isso se
esforça de todas as maneiras possíveis para impedir o desfrute desse
relacionamento e pervertê-lo de uma comunhão filial a uma escravidão
abjeta. É contra isso em particular que toda a armadura de Deus é
providenciada como meio de defesa. Cristo mesmo a usou (Is 59.16-17).
Essa é a garantia de sua absoluta confiabilidade também em nossa
proteção, quando a usamos lançando mão de todos os recursos que
temos em união com Cristo.

O Morrer e o Ressuscitar da “Pessoa Externa”


As tensões e conflitos escatológicos aos quais o crente é conduzido pelo
Espírito criam uma dimensão adicional à obra externa da união com
Cristo. Morrer para o pecado e ressuscitar para nova vida em Cristo são
acompanhados pelo morrer e ressuscitar do que Paulo chama pessoa
externa (hô exō hēmōn anthrōpos, 2Co 4.16), fenômeno que será
consumado na morte e ressurreição físicas.
À luz deste fato, Paulo alude a uma declaração programática:
“Para o conhecer, e o poder de sua ressurreição, e a comunhão de seus
sofrimentos, conformando-me com ele em sua morte; para de algum
modo alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Fp 3.10, 11).
Nestas palavras se fazem evidentes diversos aspectos incomuns.
Primeiro, além de fornecer uma declaração da posição pessoal, Paulo
parece estar falando contra um perfeccionismo incipiente que, segundo
ele vê, põe em risco a estabilidade dos cristãos em Filipos (3.12-16).
Um aspecto adicional e impressionante consiste na maneira como
ele menciona “o conhecer o poder da ressurreição” de Cristo antes de
referir-se à participação da comunhão de seus sofrimentos e de
conformar-se a ele em sua morte, a fim de obter a ressurreição. Nesta
estrutura quiástica, ressurreição-morte e morte-ressurreição, Paulo vê
que, como alguém que se acha unido, pelo Espírito, ao Cristo ressurreto
e que, portanto, vive em novidade de vida, também se acha unido ao
Cristo crucificado e toma parte na operação externa da morte de Cristo.
Há, pois, um processo, tanto externo como interno, no qual o padrão da
vida do crente se conforma ao padrão básico da vida de Cristo, ou, seja,
morte e ressurreição. Ele se consumará na ressurreição do corpo,
quando este for transformado e vier a ser semelhante ao glorioso corpo
de Cristo (Fp 3.11, 21).
Calvino se refere a este aspecto da obra do Espírito em conduzir-
nos tanto à comunhão quanto à união com Cristo como um duplex, ou
algo dúplice, mortificação (mortificatio) e vivificação (vivificatio).
Internamente, santificação envolve morte para o pecado, rejeição do
pecado e consagração a Deus numa vida nova; externamente (já que a
santificação atinge todo nosso ser),[125] ela envolve a mortificação
provinda de carregar a cruz mediante todas as formas de aflições e
perseguições, e finalmente a vivificação provinda da ressurreição.[126]
É neste sentido que os cristãos de Tessalônica, que haviam
experimentado grande sofrimento, se tornaram modelo (typos, 1Ts 1.7)
para outros crentes. Neles o paradigma da união com Cristo em seus
sofrimentos foi nitidamente exibido para que outros o vissem. E este, de
modo natural, é o duplo propósito de Deus na mortificação e vivificação.
Assim, por intermédio de seu Espírito, ele conforma seu povo à imagem
de seu Filho (Rm 8.29). Este é o “bem” em vista, na forma como o
Espírito opera juntamente todas as coisas (Rm 8.28).[127]
Paulo elucida mais as ramificações deste princípio em três
importantes passagens em 2 Coríntios:
(1) 2 Coríntios 13.4: “Porque, de fato [Cristo] foi crucificado em
fraqueza, contudo vive pelo poder de Deus. Porque nós também somos
fracos nele, mas viveremos com ele para vós outros pelo poder de Deus.”
Os “superapóstolos” de Corinto menosprezavam a “fraqueza” de
Paulo (“sua presença física é fraca”, 2Co 10.10). Diziam que ele era
“inexpressivo” (2Co 10.10). Paulo responde, indicando que é em sua
fraqueza que ele é uma analogia de Cristo para os homens. O poder de
Deus não destrói necessariamente a fraqueza; aliás, seu poder salvífico
é expresso através da fraqueza provinda da cruz (cf. 1Co 1.25-31).
Aqui se requer cuidadosa atenção a fim de sentir-se a importância
da linguagem de Paulo. Ele não diz: “Somos fracos em nós mesmos, mas
somos fortes em Cristo.” Isso expressaria a verdade, como ele explica
em outra parte (2Co 12.10; cf. Fp 4.13). Ao contrário, ele tem uma
perspectiva diferente: atado pelo Espírito ao Cristo crucificado e
ressurreto, ele é fraco em Cristo e, ao mesmo tempo, poderoso nele. Sua
fraqueza não é apenas em si mesmo, enquanto (em contraste) ele acha
força em Cristo através do Espírito. Ao contrário, sua fraqueza é uma
consequência direta de sua união com Cristo em sua fraqueza na
crucificação. A fraqueza de Paulo não é uma motivação para buscar a
união com Cristo a fim de poder ser forte; ela é a direta consequência,
implicação e operação dessa mesma união no Espírito.
Este, pois, é o método de santificação, porque ela é o modo de
conformar-se a Cristo e, finalmente, o modo no qual se completa a
restauração da imagem da glória divina.
(2) Tudo o que Paulo diz em 2 Coríntios 13.4 reflete seu ensino
anterior em 2 Coríntios 4.7-12.
Aqui, uma vez mais, ele está defendendo seu apostolado ao
descrever o caráter do ministério autêntico em Cristo. Dois aspectos
dominam o que ele diz:
(a) Há um uso e repetição inusitados do nome de Jesus sem título
adicional (4.10, 11). Isso chama a atenção para a humanidade que
nosso Senhor partilha conosco.
(b) Há um uso reiterado do contraste morte-e-vida:

Levamos a morte de Jesus


para revelar a vida de Jesus
Que estamos vivos para sermos
entregues à morte,
sua vida é revelada em nossos corpos
para que sejamos sujeitos à morte,
a morte opera em nós;
a vida opera em nós.

Aqui atingimos o cerne da experiência cristã: pelo Espírito, somos


unidos a Cristo, em sua morte e ressurreição. Assim como esse era o
telos [propósito] da vida de Cristo, e, portanto, o padrão determinante
de toda ela, assim ele é o telos da obra do Espírito em nossa vida e vem
a ser seu padrão determinante. A santificação é a obra do Espírito na
pessoa inteira de uma vida-através-da-morte em união com Cristo.
Em termos de santificação, Paulo argumenta que somos entregues
à morte, a mortificação externa, a fim de que haja a manifestação de
Cristo, ou, seja, a manifestação de sua vida em nós. Levamos por toda
parte o morrer de Jesus em nossos próprios corpos, para que o viver de
Jesus também seja visível neles. Conformidade com o Cristo ressurreto
só é possível quando se faz presente a conformidade com o Cristo
crucificado.
Em termos das consequências disto, ele os descreve assim: “a
morte [ou, seja, o efeito da união com Cristo em sua morte] opera em
nós”. O grão de trigo tem de cair no solo e morrer a fim de produzir
muito fruto (Jo 12.24); a consequência é que a vida (a evidência da
união com o Cristo ressurreto) opera em outros, visando à sua salvação.
(3) Paulo já havia falado graficamente disto em 2 Coríntios 1.5. Ali
ele diz que, em união com Cristo, como consequência da unção do
Espírito, os sofrimentos de Cristo permeiam nossas vidas.
Por detrás destas palavras é possível colocarmos o quadro do sumo
sacerdote no Salmo 133. Arão foi ungido para o serviço de Deus; aquele
óleo da unção se derramou em todo seu corpo. Os crentes, como o corpo
de Cristo, participam da unção para o serviço messiânico de seu Sumo
Sacerdote. Da mesma forma, diz Paulo, em associação com Cristo por
meio do Espírito, um transbordamento de seus sofrimentos se difunde
em nossas vidas. Não somos justificados por tal sofrimento; nossos
sofrimentos não são expiatórios; mas nos conformam paulatinamente
com Cristo. E assim, o que fica faltando em nossa comunhão nos
sofrimentos de Cristo é progressivamente levado à consolidação (cf. Cl
1.24).
Este princípio é simplesmente um desembrulhar da declaração de
Paulo em Romanos 8.29. O propósito de Deus consiste em conformar-
nos à imagem de seu Filho; reproduzir em nós a semelhança familial.
Ele faz isso empregando o padrão que usou quando seu Filho o
santificou por amor a nós. Era-lhe necessário morrer e ressuscitar, para
que pudesse entrar em sua glória. Não é menos necessário que se
formule analogicamente o padrão em nossas vidas, para que também,
por fim, sejamos conformados com a imagem da glória de Deus quando
finalmente experimentarmos a adoção, a redenção de nossos corpos, o
conhecimento face a face e o resplendor da glória de Cristo. Daí,
segundo Pedro, os cristãos se regozijarem em participarem dos
sofrimentos de Cristo para que possam encher-se de júbilo quando sua
glória for revelada. Esta é a evidência máxima de que “o Espírito de
glória e de Deus repousa sobre eles” (1Pe 4.13-14).
União com Cristo, em sua morte e ressurreição, é, portanto, o
plano básico para a obra do Espírito de santificação no mais básico
nível da existência cristã. Unidos com Cristo em sua morte, plantados
com ele ou crescendo juntamente com ele nela (Rm 6.5), os crentes
participarão igualmente de sua ressurreição. Isso é verdadeiro agora,
tanto interior quanto exteriormente; um dia, no eschaton, será
verdadeiro plena e finalmente.

[109] Ver P. E. Hughes, Lefevre, Pioneer of Ecclesiastical Renewal in France (Grand


Rapids, MI: Eeerdmans, 1984), pp. 46ss., 192ss.
[110] Ver C. F. D. Moule, Idiom Book of the New Testament (Cambridge: Cambridge
University, 1960), pp. 123-125.
[111] Cf., entre outros, Robert Haldane, The Epistle to the Romans (repr. Londres: Banner
of Truth, 1966), ad loc.; C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the
Epistle to the Romans (2 vols., Edingurgo: T. & T. Clark, 1975, 1979), pp. 123-125.
[112] Neste contexto, os vibrantes comentários de Anders Nygren são ainda de valor em
Romanos, tr. C. S. Rasmussen (Filadélfia: Fortress Press, 1949), especialmente pp. 239ss.
[113] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova York: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 205.
[114] John Murray, Principles of Conduct (Londres: Tyndale Press, e Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1957), p. 205.
[115] Geerhardus Vos, The Pauline Eshatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1952), p. 300.
[116] Uma exposição particularmente persuasiva deste ponto de vista encontra-se na obra
de H. N. Ridderbos, de forma sucinta em Paul: An Outline of his Theology (1966), tr. J. R.
de Witt (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1975), e com maior e mais persuasivo detalhe em
seu Aan de Romeinen (Kampen: Kok, 1959).
[117] Estes incluem (em ordem cronológica) os maiores comentários de John Murray, C. E.
B. Cranfield e James D. G. Dunn.
[118] Confissão de Fé de Westminster, Editora Os Puritanos, 1999), XIII.iii.
[119] Entender a queda de Adão como violação dos princípios mais tarde enunciados no
Decálogo foi uma característica da teologia reformada do século dezessete. Dá-se novo
ímpeto no contexto de uma abordagem moderna da teologia bíblica na teologia
sistemática de Murray, Principles of Conduct.
[120] Ver patrick Fairbairn, The Revelation of Law in Scripture (Edingurgo: T. & T. Clark,
1868), pp. 82-146, para uma extensa discussão que, embora detalhada, permanece
valiosa.
[121] Para uma valiosa exposição deste ponto de vista, por um estudioso contemporâneo
do Antigo Testamento que resiste o consenso com base em considerações textuais, ver a
contribuição de Bruce K. Waltke em W. S. Barker e W. R. Godfrey (eds.), Theonomy: A
Reformed Critique (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1990), pp. 70-73. Para uma nota
complacente, porém precavida, ver Vern S. Poythress, The Shadow of Christ in the Law of
Moses (Brentwood, TN: Wolgemuth & Hyatt, 1991), pp. 99-103.
[122] Cf. G. E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1974), pp. 509-510.
[123] Citado de Kuyper em G. C. Berkouwer, A Half Century of Theology (1970), tr. L. B.
Smedes (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1977), p. 196.
[124] Ver R. N. Longenecker, Paul, Apostle of Liberty (1964; repr. Grand Rapids, MI: Baker
Book House, 1976), p. 113.
[125] Ver Confissão de Fé de Westminster (1999), cap. XIII.
[126] Institutas, III.8.
[127] O argumento para entender-se o Espírito como o sujeito de Romanos 8.28 é
formulado por vários estudiosos do Novo Testamento. Cf. M. Black, “The Interpretation of
Romans 8.28”, em Neotestamentica et Patristica (Leiden: Brill, 1962), pp. 166ss. Se
exegeticamente é correto ou não, o princípio geral de que o Espírito é o executivo da
Trindade implica que neste operar no mundo o Espírito é o agente.
8

A COMUNHÃO DO ESPÍRITO

A união com Cristo, à qual o Espírito nos conduz, é o fundamento e o


prelúdio para a comunhão com Cristo no Espírito. O crente que é
batizado em Cristo, é batizado tanto em sua ressurreição como em sua
morte, tanto em novidade de vida como em sua morte para o pecado. Ao
despir-se dos hábitos do velho homem, ele assume os hábitos do novo
homem e a vida no Espírito tem o seu início.
Portanto, toda a vida cristã com suas profundas raízes no amor do
Pai e seu fundamento na graça de Cristo é caracterizada pelo que Paulo
chama a koinōnia do Espírito Santo (2Co 13.13; cf. Fp 2.1). Aqui, o
genitivo que Paulo usa (tou hagiou pneumatos) nos propõe o feliz
problema de decidir se a comunhão é aquela que o Espírito cria ou
aquela na qual o Espírito é participante. Podem-se aduzir fortes
argumentos para ambos os aspectos, e é possível que a expressão
pretenda, por si só, cobrir os dois aspectos da questão. É em comunhão
com o Espírito que experimentamos a comunhão que o Espírito cria nas
bençãos do evangelho no contexto da igreja de Cristo. Estas são
ordinariamente inseparáveis.
Esta Comunhão do Espírito ou com o Espírito é, como já vimos,
paradigmaticamente expressa na vida e ministério de Jesus, o homem
do Espírito par excellence [por excelência]. Como tal, ele era cheio do
Espírito e andava no Espírito; os cristãos são exortados a tomar posse
de tal comunhão. O Novo Testamento expõe este fato na estrutura em
que ele põe o ministério do Espírito e nas descrições que ele atribui ao
papel do Espírito.

Estrutura Escatológica
As diversas descrições do papel do Espírito como coparticipante do
cristão possui uma estrutura inerentemente escatológica; por definição,
sublinham a natureza já/ainda-não de toda a presente experiência em
Cristo.
No antigo pacto, Deus era imanente entre seu povo por intermédio
do Espírito; a consumação dessa imanência se encontra em Cristo,
Aquele que é ungido com a presença e poder do Espírito; a consequência
de sua obra é a dádiva do Espírito para habitar os crentes.
A habitação do Espírito é retratada no Novo Testamento como
inerentemente pessoal: o Espírito, pessoalmente, habita os crentes
considerados como entidades físicas, corporais (Rm 8.11; 1Co 3.16;
6.19). O relacionamento é mais íntimo do que o de uma mera influência,
mas o caráter exato da habitação do Espírito em parte alguma é
explicado ou explorado. Na natureza do caso, ele faz paralelo com os
mistérios do engajamento divino-humano na providência, inspiração e
encarnação. A analogia que temos oferecido é que a mútua habitação
de Cristo e do crente é formada segundo o padrão de relacionamentos
intertrinitários. Assim como há um mútuo habitar do Pai e do Filho
revelado pelo Espírito, assim, mediante o habitar do mesmo Espírito,
Cristo e o crente se acham unidos (Jo 14.20).
O cristão é, em seu presente corpo mortal, habitado pelo Espírito
(1Co 6.19); no futuro, seu corpo mortal será revivificado e transformado
num corpo incorruptível, em poder e glória (1Co 15.42-49). Alguém
poderia até dizer que o corpo será “espiritualizado”, não no sentido de
tornar-se “espírito”, mas em ser transformado num corpo adaptado à
vida num novo mundo e habituado ao domínio do Espírito. Como
Geerhardus Vos o expressa: “o Espírito não é apenas o autor do ato da
ressurreição, mas igualmente o permanente substrato da vida provinda
da ressurreição, à qual ele supre o elemento interno e básico e a
atmosfera externa”.[128]
Uma ênfase apropriada sobre a natureza pessoal do Espírito pode
levar-nos, erroneamente, a mudar esta perspectiva impessoal
(“atmosfera externa”) em pessoal. Proceder assim, porém, levaria ao
perigo de minimizar a natureza multifacetada da obra do Espírito sob o
pretexto de maximizar seu ser pessoal. Essas diferentes perspectivas
bíblicas devem ser visualizadas como complementares, não
contraditórias. Uma diferença entre a presente e a futura experiência do
Espírito é esta: ele agora habita pessoalmente naqueles que são seres
frágeis, mortais e fisicamente atingidos pela ignomínia; então não só
habitará neles, mas transformará toda sua existência no que, pela falta
de um termo mais adequado, devemos chamar existência física
espiritual. A natureza de sua vida cobrirá e transformará a natureza de
nossas vidas.
A natureza radical da transformação aqui conjeturada não deve
ser minimizada, ainda que movido por um interesse sinceramente
bíblico, a enfatizar a continuidade entre a presente existência e a vida
futura. O princípio de continuidade sublinhado na doutrina da
ressurreição do corpo deve ser salvaguardado a todo custo, segundo
Paulo (cf. 1Co 15.12-19). Mas a continuidade não deve ser mantida em
detrimento da descontinuidade, pois o estado de glória excede
sobremaneira até mesmo o estado de graça (cf. Rm 8.18-23; 2Co 4.17-
18; 1Jo 3.1-3). Uma obra radical e final do Espírito está ainda por vir.
Não obstante, a obra escatológica do Espírito não se limita ao futuro.
Ele invade o presente na forma proléptica através de sua habitação.
O caráter de sua habitação subescatológica é expressa por três
metáforas que ligam sua obra presente e a futura, o “já” e o “ainda-
não” da experiência cristã.

1. Penhor
O Espírito é um arrabōn (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14), palavra carregada de
semitismo equivalente a fiança ou pagamento antecipado, garantia de
que a última prestação da salvação e glória é assegurada. Neste
sentido, sua habitação é provisória, mas pertence à mesma ordem de
realidade que a consumação.
Aqui, o movimento é significativo. Para a Bíblia, a plenitude do
Espírito pertence a uma época futura, não à presente. Não obstante,
não se expressa plenamente o papel do Espírito dizer simplesmente que
o temos agora e conheceremos mais de sua presença no futuro. Ao
contrário, o que nos é dado agora é o Espírito que justamente pertence
ao futuro, cuja presença residente nos crentes implica que a realidade
futura já se tornou prolepticamente presente. Vos novamente expressa
isto muito bem, embora em linguagem fortemente condensada:
“A esfera própria do Espírito é o aiônio futuro; donde ele se projeta no
presente e se torna uma profecia de si mesmo em suas operações
escatológicas.[129]

Paulo torna isso claro em suas afirmações sobre o Espírito em


Romanos 8.9-11 ao descrever sua atividade como doador de vida aos
corpos mortais. Ele por fim faz isso através da ressurreição do corpo;
mas já, antes do tempo, ele dá vida aos corpos da morte; então ele trará
livramento final, não da existência corporal, mas da existência do
corpo-da-morte (cf. Rm 7.24).
Nesta atribuição, o Espírito é o penhor da herança final. Sua
presença como o “Espírito doador da vida”, no corpo da morte,
intensifica em vez de diminuir a consciência cristã das tensões
implícitas na vida no Espírito. Qualquer suposição de que a plenitude
do Espírito arrefece os conflitos desta vida deforma o ensinamento do
Novo Testamento. De fato, a presença do Espírito tende a maximizar em
vez de minimizar o senso de contraste entre o presente e o futuro, como
realça a segunda metáfora.
2. Primícias
O Espírito é também as primícias da consumação escatológica: “E não
somente ela, mas também nós que temos as primícias [aparchē] do
Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção
de filhos, a redenção de nosso corpo” (Rm 8.23). A afirmação é ainda
mais notável para sua visão cósmica do que é para sua eloquência
excitante. O que é agora e o que ainda há de ser pertencem à mesma
ordem de realidade. Os crentes já são filhos adotivos de Deus (cf. Rm
8.12-17). A partir de outro prisma, porém, aguardam a adoção de filhos
no sentido em que a ressurreição do corpo expressará e consumará esta
realidade já experimentada.
No papiro grego, o termo aparchē é usado para o certificado de
nascimento de um cidadão nascido de ventre livre,[130] e à luz das
afirmações de Paulo sobre filhos e heranças pode parecer atraente
imaginar a posse do Espírito como a garantia de nossa legitimidade
como filhos de Deus.[131] Aqui, porém, o que é mais provável é um
universo agrário, em vez de um universo legal de discurso. No mundo
judaico de Paulo, as primícias eram tanto o início da colheita como a
garantia de sua plenitude por vir. É isto que a Festa de Pentecostes
celebrava. Como tal, aparchē serve bem como descrição da presença
neotestamentária do Espírito. Ter o Espírito é ter não só a garantia da
redenção final, mas também possuir já aquilo que (ou, melhor, Aquele
que) é definitivo dessa condição final, a saber, o Espírito de Cristo.
Tampouco se deve concluir disto simplesmente nos termos objetivos
de um novo status. No início de Romanos, Paulo falara do regozijo do
cristão proveniente da esperança de participar da glória de Deus (Rm
5.2). Aqui, como em outras partes, “esperança” não é um desejo vago e
sentimental, mas a confiança numa realidade ainda futura. Tal
esperança não trará desapontamento, argumenta Paulo, visto que Deus
já “derramou seu amor em nossos corações pelo Espírito Santo que já
nos deu” (Rm 5.5). O céu é “um mundo de... amor” (Jonathan Edwards).
[132] Desde já o Espírito capacita os crentes a experimentarem, por
assim dizer, uma inundação desse mundo. Embora sejam apenas
primícias do que ainda há de ser mais plenamente vivido, visto em si
mesmo, constituem um transbordamento do amor divino, como indica o
uso do verbo ekcheō em Romanos 5.5 (cf. seu uso em conexão com o
Espírito em At 2.17, 18, 33). Experimentamos a abundância do amor de
Deus no Espírito tanto agora como depois.
Este ser inundado com um senso do amor divino foi o selo da
experiência cristã em muitas e diferentes tradições, ao longo dos
séculos. Mas não se deve entender o amor divino como uma referência
generalizada, misticamente interpretada, pois Paulo especifica, aqui e
em outras partes, seu caráter: ele é historicamente manifestado na
[morte de Cristo] e condicionado pela morte de Cristo e definido em
termos dela. A prova e medida desse amor consistem em que Cristo
morreu pelos pecadores quando eram ainda ímpios e fracos (Rm 5.5-8;
cf. 1Jo 4.9-10). O amor de Cristo exerce no crente uma força
constrangedora como resultado da interpretação da cruz como vicária
(2Co 5.14).
Este é também um aspecto do ministério geral do Espírito em dar
glória a Cristo. Nesta estrutura histórico-redentiva, o senso do amor de
Deus permeia a consciência do cristão e o leva a dizer: “o Filho de
Deus... me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20). À luz desse fato, os
cristãos são “cheios de uma inexprimível e gloriosa alegria”, a qual é o
fruto do Espírito (1Pe 1.8; Gl 5.22; cf. 1Ts 1.6; Rm 14.17). A presente
experiência de Cristo, por intermédio do Espírito, é uma prelibação da
plenitude futura. Mesmo no sofrimento e perseguição, os cristãos
podem desfrutar desta prelibação, já que o Espírito repousa sobre eles,
em sua dual atribuição como “o Espírito de graça e glória” (cf. 1Pe 1.8;
4.13-14). A verdade é que “Os homens da graça descobriram a glória
começando de baixo” (Isaac Watts).

3. Selo
Os cristãos não devem entristecer o Espírito por quem foram selados
para o dia da redenção (Ef 4.30). Paulo inclui “fostes selados [sphragis]
com o Santo Espírito da promessa” entre as muitas bençãos espirituais
que são nossas em Cristo (Ef 1.13; cf. 2Co 1.22).
A selagem pode indicar uma variedade de coisas: ela tanto
assegura como também pode autenticar um objeto com vistas a alguma
ocasião futura (segundo Paulo, “para o dia da redenção”).
Na história da teologia, discussão considerável se tem centrado na
natureza e regulação desta selagem. Já no período pós-apostólico, a
ideia da selagem do Espírito era assimilada com o batismo, e sempre
existiram advogados do ponto de vista de que o batismo propriamente
dito está em pauta.[133]
Entretanto, o procedimento do Novo Testamento implica que o
próprio Espírito é o selo do crente, assim como a selagem de Cristo (Jo
6.27) é melhor entendida não como a água de seu batismo, como tal,
mas como a vinda do Espírito sobre ele em seu batismo. No Novo
Testamento, conversão e batismo eram ordinariamente dois aspectos do
mesmo evento tanto cronológica como teologicamente; mas, embora
estejam assim associados, são também claramente distintos – a coisa
significada nunca se reduz ao sinal, nem se separa dele. O papel da fé,
oriunda do Espírito, é sempre visto como o elo vital entre ambos (cf. Gl
3.2-3).[134]
Uma última e mais interessante discussão sobre o selo do Espírito
surgiu no contexto da teologia experimental do Movimento Puritano
inglês. Aqui, no despertar de precursores tais como William Perkins,
Richard Sibbes (1577-1635), o “Doce Conta-gotas”, foi um notável
expoente de um ponto de vista que exerceria considerável influência
sobre a tradição evangélica.[135]
Sibbes fazia do selo do Espírito uma analogia com os selos com que
estava familiarizado. Estes poderiam, por exemplo, portar a imagem do
monarca e reproduzir sua semelhança. Portanto, para ele a função da
selagem do Espírito era estampar de novo em nossas vidas a imagem de
Jesus Cristo.
Ao discutir a questão adicional da natureza do genitivo (o selo do
Espírito denota a selagem que o Espírito efetua, ou o selo é o próprio
Espírito?), Sibbes argumentava que, visto que esta selagem é operada
pelo Espírito, este não pode ser o próprio selo. Ao contrário, a selagem
seria algum efeito da presença do Espírito no crente. Particularmente,
Sibbes a interpretava como sua obra conformadora, que ocorre após o
primeiro exercício da fé. “Como a fé honra a Deus, assim Deus honra a
fé com um selo e conformação superadicionados.” Sibbes reconhecia
que isso é de uma natureza escatológica, produzindo êxtases espirituais
que são o próprio início do céu”, de modo que o cristão “está no céu
antes do tempo”. Isso envolve uma certeza secreta de que o crente é de
Cristo; é “um doce ósculo dado na alma”.[136]
Duas observações são muito apropriadas aqui. A primeira é que
esse tipo de descrição da experiência espiritual de forma alguma se
limita aos mais distintos do puritanismo. Tais experiências, embora
descritas em diferente nomenclatura, são amplamente atestadas dentro
da tradição cristã.
Em segundo lugar, porém, tais experiências não são
autointerpretativas; geralmente são interpretadas e colocadas num
esquema mais amplo de exegese bíblica. Havendo passado por tais
experiências após a primeira vinda da fé viva, Sibbes e outros, como
Thomas Goodwin, as colocaram teologicamente à luz da tradição mais
antiga de tradução de Efésios 1.13: “em quem [ou, seja, Cristo] também,
depois que crestes [pisteusantes], fostes selados com o Santo Espírito da
promessa” (Ef 1.13, AV; cf. At 19.2).
Os tradutores dos dias de Tiago I (Tiago VI da Escócia) limitaram
a significação do particípio aoristo aqui (pisteusantes) ao pretérito. Mas
a ação denotada pelo particípio aoristo pode preceder, coincidir com, ou
seguir a ação do verbo principal. Aqui, em Efésios 1, o selo do Espírito
funciona como um “depósito a garantir nossa herança”. Ambos os fatos
– a presença do Espírito no próprio crente e a ideia de que as bençãos
delineadas em Efésios 1 pertencem a todos os que estão em Cristo –
apoiam o ponto de vista de que o selar e o crer são dois aspectos de um
e o mesmo evento de iniciação.
O uso que Paulo faz da metáfora do selo mais adiante em Efésios
4.30 confirma isso. Ele aconselha os cristãos em geral a não
entristecerem o Santo Espírito com quem foram selados para o dia da
redenção. A selagem do Espírito dificilmente poderá ser uma
experiência ou evento subsequente à conversão quando se pretende que
o mesmo pertence a todos os cristãos – ponto de vista ainda mais
seriamente sublinhado caso Efésios seja considerada uma carta
circular.
Todavia, seria igualmente errôneo imaginar o selo do Espírito
como uma presença permanente que não tinha correlativo na
consciência subjetiva do crente. Como já vimos em conexão com a
presença do Espírito como arrabōn e aparchē, se o Espírito é dado como
sphragis, anteciparíamos um efeito correspondente à consciência
daquele que recebe o selo. Portanto, Sibbes, entre outros, estava certo
em observar que o Espírito assegura a herança que está sendo guardada
para os cristãos e para a qual estão sendo guardados por Deus
mediante a fé (cf. 1Pe 1.4-9). Ainda assim os contemporâneos de
Sibbes, que hesitaram em seguir sua exegese de Efésios 1.13,
reconheceram a validade das experiências que ele descreveu, mas se
dispunham a considerá-las como sendo o fruto da habitação do
Espírito, em vez de uma obra adicional do Espírito.[137]

Espírito de Filiação
De todas as descrições dadas do Espírito no Novo Testamento,
provavelmente a mais rica seja “Espírito de filiação”. Embora seja usada
somente uma vez, é com alguma percepção que João Calvino alista isto
como sendo o primeiro título do Espírito,[138] correspondendo ao que
seria visto como o mais elevado dos privilégios da redenção, a saber: a
filiação.
O tema é explorado de forma eloquente por Paulo em Romanos
8.12-21:
“Assim, pois, irmãos, somos devedores, não à carne como se constrangidos a
viver segundo carne. Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte; mas, se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente
vivereis. Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de
Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez
atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos: Abba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que
somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros,
herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo: se com ele sofrermos, para que
também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que os
sofrimentos do tempo presente não são para comparar com a glória por vir a
ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos
filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente,
mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação
será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus.”

A eloquente exposição de Paulo labora através das multifacetadas


implicações da filiação adotiva; primeiro, em termos das obrigações que
ela impõe sobre aqueles que são guiados pelo Espírito como filhos de
Deus. Aqui, a “diretriz do Espírito” em pauta não indica elementos
místicos na orientação divina, mas o caráter moral da conduta cristã:
os filhos de Deus devem exibir a familial peculiaridade da santidade, e
isso implica fazer morrer o pecado através do poder do Espírito que
neles habita (Rm 8.13).
O Espírito, a quem os crentes têm recebido, não é um espírito de
escravidão, mas o “Espírito de filiação”. A evidência desse fato é que no
Espírito “clamamos: Abba Pai”, sendo que a implicação disto é que o
cristão participa de uma comunhão com Deus, vivida inicialmente pelo
próprio Jesus; daí o eco da própria linguagem de oração de Jesus na
vida de oração da igreja (Gl 4.6; cf. Mc 14.36).
Esse extraordinário uso da linguagem infantil (“Pai=Papai”) é tão
notável que às vezes tem obscurecido a força do ensino de Paulo; pois o
verbo que ele usou, “clamar” (krazein), é vigorosamente onomatopéico e
indica a presença de intensa emoção. É usado na Septuaginta como um
alto brado e intensa emoção (Jó 35.12; Sl 3.5, LXX) e, similarmente, no
Novo Testamento, é usado para descrever o agudo brado do
endemoninhado geraseno (Mc 5.5), os gritos estrepitosos do espírito que
possuía o menino epiléptico (Mc 9.26), os gritos do cego Bartimeu (Mc
10.47, 48) e o clamor de Jesus na cruz (Mt 27.50). A atmosfera aqui não
é de tranquilidade, e sim de crise.
A conexão entre isto e o que segue (“O próprio Espírito testifica
com o nosso espírito que somos filhos de Deus”) carece de fundamento e
é discutível. É preferível tomar essas palavras como epexegético da
afirmação antecedente. No mínimo, este clamor, “Abba, Pai”, é
ilustrativo, talvez até mesmo definitivo, do Espírito dando testemunho
com o nosso espírito de que somos filhos de Deus e, portanto, herdeiros
juntamente com Cristo.
A lógica é clara: através do Espírito vivenciamos o senso da filiação
que Jesus experimentou no contexto de nossa humanidade; portanto,
temos evidência experimental de nossa adoção. Sabendo isto, também
chegamos a compreender as implicações de nosso novo status: somos
filhos de Deus, irmãos de Cristo (cf. Rm 8.29) e, portanto, herdeiros
juntamente com ele (8.17). Tudo isso é posto no contexto quase legal do
testemunho dual do espírito dos crentes, e do Santo Espírito que
(segundo a lei veterotestamentária) estabelece a verdade nos lábios de
duas testemunhas (Dt 19.15). Mas, ainda mais notável do que as
implicações lógicas, é o fenômeno experimental: é no clamor que os
filhos de Deus vocalizam que o Espírito dá testemunho.
O verbo (symmartyreō) que Paulo usa pode significar ou “dar
testemunho com” ou “dar testemunho a”. C. E. B. Cranfield rejeita
qualquer ideia de associar o testemunho do Espírito (“testemunho
com”) com base no fato de que qualquer testemunho de nossos próprios
espíritos quanto à nossa filiação a Deus é totalmente irrelevante: “Mas,
que posição nosso espírito mantém nesta questão?” (ou, seja, de
confirmar nossa filiação a Deus), pergunta ele.[139] A questão é bem
apropriada, mas a resposta de Cranfield (“De si mesmo certamente não
tem qualquer direito de testificar de que somos filhos de Deus”) revela a
hipersensibilidade de um caráter bartiano em seu receio de atribuir ao
espírito humano algo que o capacite a testemunhar.
O fato é que o próprio espírito do cristão revela uma consciência de
filiação, como deixa claro o restante do Novo Testamento (p. ex., 1Jo
3.1-10), por mais espantoso isso seja. O problema é que essa
consciência é constantemente embotada, e os filhos de Deus podem até
mesmo achar-se duvidando de seu gracioso status e privilégios.
Entretanto, o que Paulo está dizendo é que, mesmo no momento mais
trevoso, há um testemunho cooperativo e afirmativo dado pelo Espírito.
Encontra-se no próprio fato que, embora seja quebrantado e esmagado,
tomado de temores e dúvidas, o filho de Deus, não obstante, em sua
necessidade, clama: “Pai!”, tão instintivamente como um filhinho que,
quando cai e se fere, grita com linguagem semelhante: “Papai, ajude-
me!” A certeza da filiação não é reservada para um cristão altamente
santificado; é o direito de primogenitura até mesmo do crente mais
frágil e oprimido. Esta é sua glória.
Esta interpretação é confirmada não só pelo uso que Paulo faz dos
diversos sinônimos que compõem este contexto geral (herdeiros
juntamente com, sofrendo juntamente com, sendo glorificado
juntamente com, Rm 8.17), mas também pela forma como ele constrói
suas afirmações na primeira passagem paralela em Gálatas 4.1-7. Ali é
o Espírito, não o crente, que se diz clamar: “Abba, Pai” (Gl 4.6), embora
em Romanos 8.16 seja o crente quem clame. Estas duas afirmações são
melhor harmonizadas pelo reconhecimento de que o clamor: “Abba,
Pai”, é visto por Paulo como que expressando o testemunho coordenado
do crente e do Espírito. Há alguém que clama, mas esse clamor tem
duas fontes: a consciência do crente e o ministério do Espírito. Assim o
Espírito dá testemunho juntamente com nosso próprio espírito de que
somos filhos de Deus no clamor que flui de nossos lábios: “Abba, Pai.”
Assim como ninguém pode dizer: “Jesus é Senhor”, senão pelo Espírito
(1Co 12.3), de modo similar, ninguém pode dizer: “Abba, Pai”, senão
pelo mesmo Espírito. B. B. Warfield expressa isso muito bem, quando
descreve o testemunho do Espírito assim: “Distinto na fonte, no entanto
ele é liberado fluentemente com o testemunho de nossa própria
consciência.”[140]
Aqui também a descrição do ministério do Espírito sublinha seu
caráter subescatológico. O clamor que expressa seu testemunho
conjunto é posto no contexto tanto da criação como do gemer cristão em
antecipação da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”; é o clamor de
alguém que já conhece a realidade da filiação adotiva, mas que anela
por sua consumação em “a adoção, a redenção de nossos corpos” que
ainda virão (Rm 8.23). Só então se cumprirá a promessa pactual
escatológica que já tem seu princípio: “Eu serei o seu Deus, e ele será o
meu filho” (Ap 21.7). Portanto, o clamor “Abba, Pai” é o instinto mais
básico daqueles que, através do Espírito, já renasceram na família de
Deus e já passaram a participar da natureza divina.
A expressão, “comunhão do Santo Espírito”, se entendida como a
incluir a comunhão com ele, implica ainda um vínculo de sociedade
dentro de um contexto de conhecimento mútuo. Aqui chegamos a um
significativo hiato na discussão sobre o Espírito. É comum discutir a
questão sobre sua personalidade divina, sua obra na aplicação da
redenção e no fruto que ele produz, ou a natureza de seus dons e o papel
deles na igreja contemporânea; mas a comunhão com ele, num
progressivo conhecimento dele, costuma ser muito menos explorada.
Pode-se imaginar que este hiato possua sólidos fundamentos
bíblicos. Depois de tudo, o Espírito não atrai a atenção para si mesmo;
ele tem sido até mesmo mencionado como o membro “discreto” da
Trindade. Sua tarefa é glorificar a Cristo, não falar de si mesmo, nem
atrair a atenção para si mesmo (cf. Jo 16.13-15). É um equívoco, porém,
chegar à conclusão de que não devemos absolutamente focalizar nossa
atenção sobre o Espírito, ou desenvolver nosso conhecimento pessoal
dele. O fato que na economia da atividade divina ele não chama a
atenção para si mesmo, e sim para o Filho e o Pai, é realmente uma
razão para buscarmos conhecê-lo melhor, experimentar a comunhão
com ele mais intimamente, não o contrário. Ele deve ser glorificado
juntamente com o Pai e o Filho.
A revelação da identidade do Espírito e a intensificação da
comunhão com ele são temas-chave no discurso em João 13–16. Uma
vez que “o objetivo primordial da morte de Cristo foi a comunicação do
Santo Espírito”,[141] cabia a Jesus explicar a seus seguidores por que e
como lhes seria vantajoso que ele os deixasse a fim de que o Espírito
viesse para eles (Jo 16.7). Ele faz isso ensinando-lhes a pensar no
Espírito como o Parácleto.

O Parácleto
Jesus prometeu enviar a seus discípulos outro parácleto (allos
paraklētos, Jo 14.16). Neste contexto, como temos visto, isso indica que o
Espírito é um parácleto da mesma espécie que o próprio Jesus. Ele é
“outro, semelhante a Cristo”.
Como Aquele que acompanhou Jesus ao longo de seu ministério, o
Espírito viria para os discípulos nessa prerrogativa específica. Ele
estivera “com” eles, em Cristo; agora estaria “neles” como o Espírito de
Cristo (Jo 14.17).
Aqui, a distinção em pauta não é entre sua presença com os
discípulos e sua habitação neles, como tal, mas entre o ministério do
Espírito em Cristo (ou, seja, “convosco” neste sentido) e seu subsequente
ministério como o Espírito de Cristo nos discípulos (“em vós”). Por meio
desse novo modo de habitação, o ministério de Cristo será contínuo e
progressivo. Como observa Raymond E. Brown: “Virtualmente, tudo o
que foi dito sobre o Parácleto foi dito sobre Jesus em outras partes dos
Evangelhos.”[142] Ambos entram no mundo; ambos são enviados pelo
Pai. Jesus é a Verdade, o Parácleto é o Espírito da verdade; Jesus é o
Santo de Deus, o Espírito é o Santo Espírito. Jesus é o Mestre, assim
como o é o Parácleto. Jesus dá testemunho, e o Parácleto é uma
testemunha. O mundo não reconhece Jesus, assim como não reconhece
o Parácleto.
De tudo o mais extraordinário é: Jesus vai para o Pai a fim de
preparar uma morada (monē, Jo 14.2) para os discípulos, enquanto que
o Parácleto vem do Pai a fim de preparar uma morada (monē, Jo 14.23)
para o Pai e o Filho. Que as únicas duas ocorrências de monē, no Novo
Testamento, seriam de uma justaposição tão estreita é um forte
indicador do paralelo que está sendo sublinhado aqui. Como Parácleto
(1Jo 2.1), Cristo cria um lar para seu povo na presença do Pai; como
Parácleto, o Espírito cria um lar para o Pai e o Filho no crente, que se
torna individual e eclesiasticamente “uma habitação na qual Deus vive
por meio de seu Espírito” (Ef 2.22). O Espírito é o divino “construtor de
lares”, desconhecido e não reconhecido pelo mundo (Jo 14.17b),
efetuando, porém, nova vida, desenvolvimento, nutrição e mudança
dentro do círculo doméstico.

O Mestre
Como o Parácleto, que é semelhante a Cristo, o Espírito cumpre a
função de mestre. Sem dúvida isso tem uma especial significação
histórico-redentiva para os discípulos, visto que o ministério docente do
Espírito para eles se relaciona com a doação da Escritura (Jo 14.26;
16.13). Mas há também uma dimensão mais ampla. Pois quando o
Espírito vem, também traz iluminação aos discípulos de Cristo. Por
meio do Espírito, lhes será ensinado interiormente sobre a natureza de
seu relacionamento com Cristo, bem como o relacionamento de Cristo
com o Pai: “Naquele dia vós compreendereis que eu estou em meu Pai e
vós em mim e eu em vós” (Jo 14.20).
“Aquele dia”, neste contexto, refere-se não só à ressurreição de
Cristo, mas também ao dom do Espírito no Pentecostes. Nisto repousa
forte encorajamento para os primeiros discípulos. Temiam que
conhecessem menos de Cristo, e que a costumeira intimidade chegasse
ao fim quando ele se apartasse deles. Agora os ensinava que de fato o
conheceriam melhor e discerniriam mais sobre ele e seu relacionamento
com ele. “Naquele dia” reconheceriam: “estou em meu Pai, e vós em
mim, e eu em vós.”
Nenhuma linguagem pode definir, muito menos exaurir, o
significado desses relacionamentos. O Espírito ajudaria os discípulos a
reter a intimidade da habitação do Filho pelo Pai e do Pai – o que os
teólogos antigos chamavam circumincessio ou perichoresis, a mútua
habitação em alguém pelas pessoas da Trindade, o “dançar em volta”
de alguém em quem a mútua harmonia e amor entre as pessoas da
Trindade encontra expressão. Assim, o Espírito cria a imaginação de
que o Filho habita no seio do Pai, e face a face com o Pai (Jo 1.1, 18). E,
igualmente, ele manifesta a glória do Filho.
Ainda mais do que isso é ensinado pelo Espírito. Dele os discípulos
aprenderam que estão “em” Cristo, e que Cristo também habita neles.
Em vez de “perdê-lo”, eles o “ganhariam” de uma forma muito mais
íntima. É preciso conservar isto: a união com Cristo se torna,
virtualmente, o tema central do restante do Novo Testamento.

Espírito de Intercessão
Como Parácleto, o Espírito é também o Espírito de intercessão. Ainda
que o Espírito seja dado em resposta à oração (especialmente na
teologia de Lucas; p. ex., Lc 11.13), seu ministério na oração é
mencionado sem muita frequência. Não obstante, é possível reunir um
breve quadro composto de sua obra em termos da teologia mais ampla
do Novo Testamento.
Oração é uma expressão de culto e adoração, bem como de
necessidade pessoal. Ninguém pode chamar Jesus de “Senhor” ou Deus
de “Pai” senão pelo Espírito (1Co 12.3; Gl 4.6). Assim como Jesus, é no
Espírito que os cristãos são capazes de alegrar-se nas obras de Deus (Lc
10.21).
Portanto, “orar no Espírito Santo” (Ef 6.18; Jd 20) não é estático no
sentido de algo ininteligível. Ao contrário, é a analogia, na vida de
oração, ao que é andar no Espírito em toda a vida cristã: conformidade
com a palavra que Deus falou. Orar no Espírito é a oração que se
conforma à vontade e propósito do Espírito. Isso é o que Tertuliano e
Calvino chamavam de oração legítima: continuar alguém firme nas
promessas de Deus até que elas se cumpram.[143]
Em outro nível, a oração é a expressão de fraqueza e de
necessidade. Oramos porque reconhecemos nossa impotência;
apresentamos a Deus nossos rogos porque não podemos satisfazer-nos
a nós mesmos. Paulo, porém, indica a necessidade do ministério do
Espírito numa fraqueza ainda mais profunda que isso: “Também o
Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não
sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós
sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os
corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de
Deus é que ele intercede pelos santos” (Rm 8.26-27).
Aqui o crente é retratado como sujeito a uma fraqueza tal que se
torna impossível qualquer petição coerente. A oração se converte em
gemido. Esse gemido, porém, é uma indicação da presença e ministério
do Espírito. Embora tomado por Crisóstomo como uma referência ao
falar em línguas, e mais recentemente por Ernst Käsemann como uma
referência a algum tipo de linguagem estática na congregação, o
elemento de profunda frustração e inexpressível emoção, segundo o que
Paulo diz, nos aponta outra direção: incoerência. Eis um perfil da
absoluta e total fraqueza do crente, uma fraqueza por demais frágil
para expressar coerentemente sua necessidade.
A graça do ministério do Espírito consiste em que, mesmo quando
os cristãos se sentem por demais fracos para formular uma oração, ele
efetua a determinação do Pai de reunir seus filhos em seus braços e
engajá-los em seus propósitos. Em tais ocasiões, os inexpressíveis
gemidos de intercessão se assemelham a grunhidos ou gemidos
daqueles cujas capacidades cerebrais foram prejudicadas, ainda que
sejam maravilhosamente interpretados por seus amados.
Um tema simples emerge quando recapitulamos o que a comunhão
com o Espírito significa: as bençãos que ele traz fornece graça para os
que enfrentam necessidade. É na fraqueza que Deus revela seu poder
através do Espírito (2Co 12.9; cf. 1Co 1.25, 27b). Nisto, supremamente,
o Espírito é outro Parácleto, à semelhança de Cristo.

[128] Geerhardus Vos, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1952), p. 165.
[129] Ibid.
[130] Ver C. Spicq, Theological Lexicon of the New Testament, tr. e ed. J. D. Ernest
(Peabody, MA: Hendrickson, 1994), vol. 1, p. 148; H. Balz e G. Schneider, Exegetical
Dictionary of the News Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), vol. 1, p. 116.
[131] Cf. W. Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early
Christian Literature, tr. W. F. Arndt e F. W. Gingrech, rev. F. W. Gingrich e F. W. Danker
(Chicago, IL: University of Chicago, 1979), sub aparche.
[132] Jonathan Edwards, Charity and its Fruits (1852; repr. Londres: Banner of Truth,
1969), pp. 323ss.
[133] Cf. W. H. Lampe, The Seal of the Spirit (Londres: Longmans, 1951).
[134] Para uma rejeição da identificação do selo com o batismo ou confirmação, ver J. D.
G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit (Londres: SCM Press, 1970), pp. 132-134, 160.
[135] Ver The Works of Richard Sibbes, ed. A. B. Grosart (6 vols., 1862-64; repr.
Edingurgo: Banner of Truth, 1979-83), vol. 3, pp. 453ss.
[136] Ibid., p. 456.
[137] Discuti isto detalhadamente em John Owen and the Christian Life (Edinburgo:
Banner of Truth, 1987), pp. 117-121.
[138] Institutas, III.1.3.
[139] C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the
Romans (Edinburgo: T. & T. Clark, 1975), vol. 1, p. 403.
[140] B. B. Warfield, Faith and Life (1916; repr. Edinburgo: Banner of Truth, 1974), p.
184.
[141] Charles Hodge, 1 and 2 Corinthians (1857, 1859; repr. num só volume, Edinburgo:
Banner of Truth, 1974), p. 689.
[142] Raymond E. Brown, Gospel according to John (Londres: Chapman, 1971), p. 1140.
[143] Ver a magistral exposição de Calvino nas Institutas, III.20 (tratado sobre a oração
em seu uso correto). Cf. Sinclair B. Ferguson, “Oração: Uma Obra Pactual”, Banner of
Truth Magazine 137 (1975), pp. 23ss.
9

O ESPÍRITO & O CORPO

Explorar o ministério do Espírito equivale, em alguns aspectos, a


escalar uma alta montanha. Pelo prisma de quem escala, um pico mais
baixo é escalado somente para revelar-se que o topo está ainda por
escalar. De uma forma análoga, a regeneração individual envolve uma
transformação pessoal radical; ver, porém, apenas isso seria perder de
vista a plena escalada da operação do Espírito e sentir-se satisfeito com
a visão dos declives mais baixos. Pois a regeneração pessoal é apenas
um aspecto de uma nova criação que está ainda por ser consumada.
Como já observamos, visto achar-se radicada na ressurreição de Cristo,
essa nova criação é inseparável dela e deve ser vista à luz dela, como
uma obra mais ampla, mais incorporada de renovação, na qual o
Espírito de Cristo se acha engajado ao longo de toda a história.
O programa de Cristo é sumariado nas palavras: “Edificarei minha
igreja; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18).
No meio do conflito escatológico (indexado pelo verbo katischuē,
“prevalecer”), Cristo está chamando a si não meramente indivíduos,
mas uma ekklēsia, uma assembleia inteira.
Este caráter corporativo da obra de Cristo é expresso em diferentes
graus em algumas das analogias usadas pelo Novo Testamento para
descrever os seguidores de Jesus. São ovelhas de um rebanho, ramos de
uma oliveira, amigos do noivo, pedras de um templo, o novo Israel. Daí
as exortações do Novo Testamento que, embora se destinem a ser
tomadas a sério individualmente, geralmente são expressas no plural
para toda a igreja. O Espírito não isola indivíduos, mas cria uma nova
comunidade.
Na teologia paulina, nenhuma analogia é mais central do que
aquela que somente ele emprega: a igreja é o corpo de Cristo no qual
somos introduzidos pelo ministério do Espírito:
“Porque, assim o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros,
sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo.
Pois, em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus,
quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só
Espírito” (1Co 12.12-13).

Aqui, o ingresso no corpo de Cristo, que é constituído de muitas


partes, é efetuado pelo batismo do Espírito. Duas perguntas vêm a lume
imediatamente: (1) O que Paulo quer dizer quando fala da igreja como
o “corpo” de Cristo, no qual as barreiras sociais e culturais entre as
pessoas são derrubadas? (2) Como o Espírito se envolve no batismo
neste corpo?

O Corpo de Cristo
A primeira destas perguntas tem atraído uma pequena montanha de
discussão no empenho de traçar a origem do uso que Paulo faz da
analogia do corpo na esperança de esclarecer o significado que ele soma
ou une a ela. Até certo ponto, tal empenho pode muito bem ser visto
como correr atrás de uma pista falsa; o significado textual não pode
derivar-se meramente da origem de um termo ou da inspiração para o
mesmo. Na melhor das hipóteses, a análise das várias formas nas quais
o conceito de corpo poderia ter-se originado no mundo do pensamento
paulino nos proveria com uma série de possibilidades.
A literatura do império romano nos fornece os precursores do
conceito do corpo humano sendo usado como uma analogia para um
grupo de pessoas unido em importantes aspectos. A mais conhecida
destas é a fábula de Menenius Agrippa (c. 494 a.C.), a qual Livy registra
em sua History of Rome. Menenius Agrippa apela para a plebe com o
fim de refrear uma rebelião, valendo-se do uso de uma fábula na qual
as várias partes de um corpo, invejosas do estômago, recusam-se a
alimentá-lo – resultando no definhamento de todo o corpo.[144]
Outros têm apelado para a teologia sacramental de Paulo e para a
participação dos cristãos no pão partido que é simultaneamente o
emblema do corpo de Cristo e da união de seu povo. Mais recentemente,
tem-se feito apelo para um fenômeno coríntio local: escavações
arqueológicas do Asclepião coríntio têm desenterrado representações de
terracota de várias partes da anatomia humana, presumindo-se
representar partes do corpo curado pelo filho de Apolo, Asclepius, o
deus da cura do panteão grego.[145] Mas, em vista do uso que Paulo faz
da analogia em outras partes, esta conexão parece ser completamente
inverossímil.
A explicação mais simples, e talvez a melhor, da origem da
metáfora, consiste em que a ideia de uma comunidade como um “corpo”
estava “no ar”. Paulo a emprega de seu próprio modo distintivo, para
seus próprios propósitos. Em particular, o “corpo” que ele descreve é
singular, porque é o corpo de Cristo. Ele é sua cabeça e governante.
Assim como ele é a cabeça sobre o cosmos (Ef 1.22) e o dirige segundo
seus propósitos providenciais, assim ele é a cabeça sobre a igreja (Cl
1.18) e a dirige segundo os princípios de seu reino. Aqui, “cabeça”
(kephalē) contém uma conotação relacional, não anatômica. Cristo é o
Senhor e governante tanto do kosmos como da ekklēsia. Indivíduos são
introduzidos na igreja, a qual é o corpo de Cristo, que é a sociedade
daqueles que, em virtude de sua união com Cristo, pela graça e fé, são
inextricavelmente unidos num só feixe de vida; pertencem uns aos
outros porque pertencem a Cristo, seu Senhor e cabeça.[146]

O Batismo com o Espírito


Portanto, qual é a natureza da atividade do Espírito no batismo deste
corpo?
No Novo Testamento, o batismo e o Espírito se relacionam
mutuamente em sete ocasiões. Seis delas se referem claramente ao
Pentecostes, e fazem isso em linguagem virtualmente idêntica no que diz
respeito ao papel do Espírito:

Mateus 3.11 en pneumati hagiō


Marcos 1.8 en pneumati hagiō
Lucas 3.16 en pneumati hagiō
João 1.33 en pneumati hagiō
Atos 1.5 en pneumati... hagiō
Atos 11.16 en pneumati hagiō

Em cada um desses casos, o que batiza é sempre Jesus Cristo. O


Espírito é o instrumento. A sétima referência é:

1 Coríntios 12.13 en pneumati

Qual é a função da preposição en nesta afirmação? Ela indica que


o Espírito é o agente (“pelo Espírito”), ou o instrumento (“com/no
Espírito”) deste batismo? A resposta pode lançar luz sucessivamente
sobre as perguntas adicionais: Quando este batismo ocorre? O que ele
envolve?
Embora en possa ser traduzida como “por”, “com” ou “em”, a
conclusão de que Paulo vê o Espírito como o instrumento (“com/em o
Espírito”) e não o agente (“pelo Espírito”) é irresistível. Porque, a
linguagem, Espírito-batismo, permanece essencialmente imutável
sempre que a encontramos, e assim o Novo Testamento
consistentemente vê Cristo, não o Espírito, como o que batiza: “ele
batizará...”.
Em 1 Coríntios 12.13, a tese de Paulo é que o corpo é um só, porque
todos os seus membros participam do único Espírito que receberam
simultaneamente com sua incorporação no corpo de Cristo. Há dois
aspectos de uma e a mesma realidade. Consequentemente, fica claro
que Paulo não se refere nem a uma obra da qual o Espírito é o autor,
nem a uma experiência pós-conversão do Espírito, mas à recepção
inicial do Espírito, o rio de água viva da qual os crentes podem beber
sem jamais sofrer sede novamente (cf. Jo 4.13-14; 7.37-39).
Todos os crentes são assim batizados por Cristo num só corpo; o
Espírito é o instrumento desse batismo. A vida, porém, neste corpo é
governada pelos meios que Cristo estabelece para o desenvolvimento e
crescimento de seu povo: particularmente pelas ordenanças do batismo,
da Ceia do Senhor e do ministério.

O Batismo
A ministração da água batismal é um sinal de inauguração. Esse era o
caso do batismo de judeus prosélitos, embora tenha havido tanta
discussão se ele é ou não anterior aos Evangelhos.[147] Com certeza
procede dizer que o batismo de João marcou a inauguração do genuíno
arrependimento em resposta à vinda do reino. O batismo de Jesus pelas
mãos de João ato contínuo marcou sua entrada pública na era
messiânica e no ministério que atingiria seu ponto central no batismo
da cruz (cf. Lc 12.50).
O batismo com o Espírito nos introduz na vida de união com Cristo.
O batismo com água caracteriza isso externamente: “Arrependei-vos, e
cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão de
vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Aqui,
arrependimento, água batismal, o perdão dos pecados e o dom do
Espírito são vistos como aspectos correlativos da única realidade do
ingresso em Cristo, e assim em (a comunhão de) o nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo (Mt 28.19).
De tempos em tempos na história da igreja tem-se formulado a
seguinte pergunta: Em vista do caráter espiritual e interno do novo
pacto em Cristo, tais ritos externos são consistentes com sua novidade?
Isso não avilta a plenitude do ministério do Espírito? Por isso, em pleno
dilúvio do ensino da “luz interior” do século dezessete, Robert Barclay
comenta: “Este batismo é simplesmente uma coisa espiritual... do qual
o batismo de João era uma figura, o qual fora ordenado por certo tempo
e não continuou para sempre.”[148]
Todavia, em contraste, a igreja primitiva continuou com a prática
do batismo com água no espírito de Mateus 28.18-20, e fez cuidadosa
distinção entre batismo com água e batismo com o Espírito (At 10.47;
cf. 11.16). Aqui, Barclay e aqueles que partilharam de sua perspectiva
deixaram de reconhecer as estruturas teológicas que reforçavam o rito
externo e físico do batismo. Tanto o batismo como a Ceia do Senhor
funcionavam exatamente da mesma maneira que os sinais (palavras)
usados nas expressões verbais do evangelho; neles e através deles Cristo
se faz conhecido. Aliás, em vez de tornar-se obsoleto na era que é
dominada pelo Espírito de Cristo, o batismo e a Ceia do Senhor ilustram
ainda o modo no qual o evangelho se ajusta à nossa condição humana,
assim como se ajusta à nossa condição pecaminosa. Daí, a Grande
Comissão implica que o batismo deve ser ministrado à medida que os
discípulos de Cristo se preparam, e ele mesmo continua a estar presente
com a igreja (Mt 28.18-20).
O Espírito de Deus age como o vínculo interior de todos os
relacionamentos pactuais de Deus com seu povo. Cada pacto feito com
eles foi confirmado por um sinal específico, selando a promessa
entesourada na palavra pactual. O arco-íris, no caso do pacto noéico, e
a circuncisão, no caso do pacto abraâmico, são ilustrações claras (Gn
9.8-17; 17.1-4). Estes simbolizam a promessa pactual e funcionam
como sinais físicos que a confirmam para a fé. Embora a linguagem de
“sinal e selo” seja usada exclusivamente para a circuncisão (Rm 4.11),
ela descreve bem o modus operandi de todos os sinais pactuais. Assim,
por exemplo, Noé pôde vislumbrar o sinal pactual depois de uma
tempestade e assegurar-se de que Deus estava recordando sua
promessa pactual (Gn 9.12-17). Além da promessa propriamente dita, o
sinal funcionou como uma confirmação (selo) física e visível dela.
Segundo o próprio testemunho de João, a função central de seu
batismo, em distinção de sua significação existencial e pessoal para os
que o recebiam, era prover o contexto histórico no qual o Messias se
revelaria: “Eu mesmo não o conhecia, mas a fim de que ele fosse
manifestado a Israel, vim, por isso, batizando com água” (Jo 1.31). Esta
afirmação muitíssimo negligenciada, tomada com o testemunho dado
sobre Jesus em seu batismo (Mc 1.11) e sua própria visão da cruz como
o cumprimento de tudo o que seu batismo significava (Lc 12.50; Mc
10.38-39), sublinha que, mesmo no caso de Jesus, a água batismal
serviu para indicar seu significado (sinal) interior e confirmar-lhe, com
isso, como ele o recebeu (o selo). Seu batismo foi assistido pela palavra
do Pai que explica sua significação, e pelo Espírito do Pai que veio
equipá-lo para levar o que era significado à plena realização em seu
verdadeiro e final batismo na cruz, como o forjamento de um novo pacto
em seu sangue, em cujo coração ficava o dom do Espírito (Ez 36.26-27).
Os dois eventos no Antigo Testamento que são considerados como
“batismos” pelo Novo Testamento, ou, pelo menos, como análogos ao
batismo, ambos têm a forma de testes com água através dos quais o
eleito de Deus desfrutava de livramento, enquanto que outros se
enquadravam numa maldição. Esse foi o caso de Noé e de sua família
(1Pe 3.18-21), e de Moisés e os israelitas (1 Co 10.2).[149]
O verdadeiro batismo de Jesus na cruz também tem o caráter de um
teste com água. O Salmo 69 é justamente uma descrição desse teste com
água:
Salva-me, ó Deus,
porque as águas me sobem até a alma.
Estou atolado em profundo lamaçal,
que não dá pé;
estou nas profundezas das águas,
e a corrente me submerge. (Sl 69.1-2)

Este Salmo é no Novo Testamento considerado messiânico em seu


caráter, e suas palavras são colocadas nos lábios de Jesus (Sl 69.9 em Jo
2.17 e Rm 15.3; 69.4 em Jo 15.25; 69.25 em At 1.20; 69.22-23 em Rm
11.9-10). Na cruz, sua grande prova simbolizada por seu batismo com
água se tornou realidade. O sinal administrado no Jordão se cumpre na
esmagadora força da tempestade da ira divina que na cruz desce sobre
sua cabeça. Ele experimenta uma dor e desolação tais que, por si
mesmas, quase o matam (Mc 14.33-34). Aqui, o simbolismo de sua
circuncisão (Lc 2.21) e de seu batismo se mistura (cf. Cl 2.11-15). Cristo
é “eliminado da terra dos viventes” (Is 53.8). É oprimido (Is 53.7-8)
quando a “iniquidade de todos nós” é posta em seus ombros (Is 53.5-6,
8, 10).
Por esse meio, o perdão e a salvação nos são trazidos pelo Espírito.
Cristo sofreu a maldição pactual para que a benção dada a Abraão
pudesse cumprir-se no dom do Espírito para os que creem (Gl 3.13-14).
O batismo do novo pacto é batismo no nome de Jesus, ou, seja, ele
significa e sela a substância da fé-união com Cristo para a mesma fé
que nos une a ele. Portanto, a partir dele a fé evoca tudo o que é
significado e selado pelo batismo com água. Desse modo, o Espírito abre
nossos olhos para o significado interior do batismo de Jesus na cruz em
nosso favor.
Portanto, a obra do Espírito em generalizar e ativar a fé é o tertium
quid [terceiro quê] entre o sinal e a realidade que ela significa. Isso está
implícito no ensino neotestamentário; está pressuposto em todas as
afirmações do Novo Testamento sobre o batismo.
O ensino de Paulo em Romanos 6 é um exemplo primordial deste
princípio. Todos quantos têm sido batizados em Cristo Jesus são
encorajados a pensar em si mesmos como batizados em sua morte,
sepultados com ele e ressuscitados para novidade de vida no poder de
sua ressurreição.
Naturalmente, os intérpretes aqui visam a sinalizar suas
convicções eclesiásticas assumindo, ou quase, um sacramentalismo ou
uma forma de reação, insistindo que o que Paulo tem em vista não é o
batismo com água, e sim o batismo com o Espírito. Tertium non datur:
não se permite uma terceira opção. Mas, seria perder o fio do ensino
geral do Novo Testamento imaginar que o rito em si mesmo, à parte da
fé, efetua o que ele significa. Pressupõe-se um tertium quid [terceiro
quê]; há uma terceira possibilidade: o ministério do Santo Espírito em
unir-nos a Cristo. Como resultado, através do batismo, o Espírito
ilumina para a fé o significado da união com Cristo e sua significação
para nós (“Naquele dia compreendereis que... estais em mim, e eu em
vós” (Jo 14.20). Assim, há um paralelo direto entre seu ministério em
relação à palavra e seu ministério em relação ao sacramento. Ambos
são sinais objetivos; em ambos os casos, o Espírito desvenda e aplica
seu significado, e ele efetua nos crentes a realidade para a qual eles
apontam.
O batismo é visto reiteradas vezes como se fosse primordialmente
um espelho de nossa experiência espiritual da conversão, e como se o
cerne de sua significação fosse o testemunho à nossa fé em Cristo. Ele é
assim interpretado como um sinal de nossa resposta ao evangelho na
conversão. Mas essa não é a perspectiva neotestamentária, e minimiza
o ministério iluminador do Espírito em relação ao batismo, para não
mencionar a minimização correspondente da benção do batismo, já que
todos os indivíduos tendem a ver nele o reflexo do topo de sua própria
fé.
Ao contrário, o batismo é, primeiramente e acima de tudo, um
sinal e selo da graça, da atividade divina em Cristo, bem como das
riquezas de sua provisão para nós. Não é a fé que é significada ou
selada. É Cristo. Ele é Aquele cuja graça divisamos na água do batismo.
A fé, pois, não é selada diretamente pelo batismo. Ao contrário, o
evangelho de Cristo é selado pelo sinal ao qual, quanto à promessa na
palavra, a fé responde. Assim, o evangelho nos é confirmado pelo
Espírito que opera com o sinal interpretado pela palavra, e, por essa
confirmação, a fé propriamente dita é fortalecida e assegurada.
Portanto, no batismo, assim como na Escritura e através dela, o
Espírito dá testemunho a Cristo, toma do que lhe pertence e o revela a
seu povo, vestido com as roupagens de seu ministério messiânico. A
palavra nunca fracassa, mas cumpre sua função, quer em transformar
ou em endurecer (Is 55.11; Mc 4.10-12). Semelhantemente, os
sacramentos do evangelho, ao atender nossa resposta ao ministério do
Espírito em exibir a graça de Cristo, ou se transformará em graça, ou
insensibilizará o coração ante o juízo. Paulo explicitamente insinua isto
quando adverte os coríntios que, ao se chegarem para a Ceia do Senhor
num espírito displicente, não saem sem culpa. De fato, comem e bebem
juízo (1Co 11.27-30). É tão possível transgredir contra o Espírito,
reagindo aos emblemas do evangelho, como é rejeitando a palavra do
evangelho.
Martinho Lutero, reconhecendo este princípio, diria a si mesmo
quando pressionado por tentação: “Sou um homem batizado”; assim,
evocando a graça e os recursos de Cristo, os quais o Espírito ilumina
através do batismo, ele respondeu com uma confissão de fé. Desta
maneira, o batismo realiza o que ele significa, justamente como a
palavra de Deus consuma aquilo pelo qual ele o envia.
Um entendimento do modo como o Espírito usa o batismo (como
também a Ceia) nos preserva de dois erros comuns na teologia
sacramental: (1) o erro de subjetivar tanto o simbolismo do rito que
nosso uso dele ressoa sobre nossas próprias ações, decisões e
experiências, e assim distorce a função da fé, que é resvalar-se dos
recursos e ações do crente para a graça que é sua em Cristo Jesus; e (2)
objetivar tanto a eficácia da benção do símbolo que identificamos a
recepção do sinal com a recepção do que ele significa, e não dar lugar
algum à fé que encontra o próprio Cristo revelado no sinal, ou ao
ministério contínuo do Espírito. A eficácia do batismo e da Ceia do
Senhor não pode ser separada do ministério do Espírito, da mesma
forma que não o pode a eficácia da leitura e da audição das Escrituras.

A Ceia do Senhor
O batismo e a Ceia do Senhor têm importantes aspectos em comum:
ambos são sinais e selos pactuais; ambos nos apontam Jesus Cristo e
sua graça salvífica. Não obstante, cada um serve a sua própria função
específica e tem um enfoque distintivo. O batismo é inaugural e é
recebido apenas uma vez como sinal da união com Cristo. A Ceia do
Senhor, em contrapartida, é um sinal de comunhão contínua com Cristo
e deve ser recebida com frequência.
Qual a razão especial do testemunho que o Espírito dá na Ceia do
Senhor?
O cerne da Ceia é o pão quebrado e o vinho derramado, que servem
como símbolos do corpo quebrado e o sangue derramado de Cristo. A
recepção deles é um meio de comunhão com Cristo como Aquele cujo
corpo foi quebrado e cujo sangue foi derramado por nós: “Porventura o
cálice da benção que abençoamos não é a comunhão [koinōnia] do
sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de
Cristo?” (1Co 10.16).
Isso também, como o simbolismo do batismo, deve ser entendido
em termos pactuais. Comer o cordeiro pascal (do qual a Ceia é o
cumprimento, 1Co 5.7-8) implicava comunhão com a benção na morte
do cordeiro, como proteção contra a maldição oriunda do juízo divino
expresso na obra do anjo da morte (cf. Êx 12). Significava unir-se ao
povo de Deus pactualmente redimido e abençoado.
O mesmo é válido no tocante à Ceia. Ela sela o novo pacto no
sangue de Cristo. Como o cordeiro pascal, Cristo assumiu, na morte, a
maldição divina em forma de juízo, a fim de compartilhar conosco as
bençãos da presença de Deus.
No cenáculo, Jesus deu a seus discípulos o cálice do novo pacto de
comunhão com Deus. No horto do Getsemani ele recebeu das mãos do
Pai o cálice de juízo e maldição pactuais. Seu apelo, “Se possível, passe
de mim este cálice”(Mt 26.39), alude ao cálice do juízo divino do qual os
profetas veterotestamentários falaram (Sl 75.8; Is 51.17, 22; Jr 25.15,
17; Ez 23.31-33; Hc 2.16 – passagens destinadas a leitura penitencial).
Ao beber o cálice, Jesus submeteu-se à maldição do pacto divinamente
designada, morrendo em trevas (Mt 27.45; cf. Gn 15.12), em fome,
nudez, pobreza e sede (cf. Dt 28.45-48). Ele foi esmagado pela
experiência de ser o maldito pendurado em madeiro (Gl 3.13). Ele
sentiu-se abandonado por Deus, ferido e oprimido por ele (Is 53.4-6,
10; Mt 27.46).
Mais tarde, após sua ressurreição, ele exibiu a seus discípulos suas
mãos e seus pés (Lc 24.37). É com o Cristo crucificado e agora
ressurreto que eles tinham comunhão. Ele foi reconhecido no partir do
pão.
Portanto, a dinâmica fundamental do pacto divino é operativa:
Deus leva o maldito juízo a seu próprio coração; os que creem recebem,
por sua vez, a benção pactual através da fé, que é, em essência,
comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e exaltado.
Deve ficar claro agora por que o papel do Espírito é tão vital na
Ceia. Somente entendendo sua obra é que podemos deixar de cair nos
equívocos que levaram tanto católicos (ex opere operato) como
evangélicos (memorialistas) a entenderem mal a Ceia. Não é pela
administração da igreja, ou meramente pela atividade de nossas
memórias, mas pela operação do Espírito que desfrutamos da
comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e agora exaltado.
Porquanto Cristo não está localizado no pão e no vinho (ponto de vista
católico), nem está ausente da Ceia como se nossa suprema atividade
fosse lembrar-nos dele (ponto de vista memorialista). Ao contrário, ele é
conhecido através dos elementos, por intermédio do Espírito. Há na
Ceia uma genuína comunhão com Cristo. Assim como na pregação da
Palavra ele se faz presente, não na Bíblia (localmente), nem pelo crer,
mas pelo ministério do Espírito, assim ele também se faz presente na
Ceia, não no pão e no vinho, mas pelo poder do Espírito. O corpo e o
sangue de Cristo não se acham encerrados nos elementos, já que ele
está à destra do Pai (At 3.21); mas, pelo poder do Espírito, somos
introduzidos à sua presença e ele se põe entre nós.
Neste contexto, é difícil resistir à ideia de que é para o ministério
do Espírito na Ceia que João aponta quando registra as palavras de
Jesus à igreja de Laodiceia: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém
ouvir minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele
e ele comigo” (Ap 3.20). Porventura isso não aponta para o fato de que
João cria que a igreja poderia desfrutar com ele, quando estava “no
Espírito no dia do Senhor” (Ap 1.10)?
Ao longo da história, os teólogos da igreja têm-se esforçado por
sustentar esta perspectiva. Isidoro de Seville (560-636), por exemplo,
parece ter enfatizado que o Espírito Santo faz o corpo de Cristo presente
aos crentes, assim se prendendo ao corpo de Cristo para que ele possa
mediar o virtus ou o poder da Ceia aos que a recebem com fé. Ratramus
de Corbie (morto em 868), em sua célebre controvérsia sobre a presença
de Cristo na Ceia do Senhor, com Paschasius Radbertus (morto em 865,
às vezes considerado o teólogo da transubstanciação), semelhantemente
procurava preservar o entendimento da real presença de Cristo como
sua presença por intermédio do Espírito.
Provavelmente, nenhum teólogo se esforçou mais para expressar
este mistério do que João Calvino. E, no entanto, mesmo em suas
expressões mais fortes do significado da Ceia, permanece a admissão de
mistério:
E ainda que pareça incrível que a carne de Cristo, tão afastada de nós pela
distância, chegue até nós, fazendo-se nosso alimento, pensemos até que ponto
a oculta virtude do Espírito excede e supera nosso entendimento, e quão vã e
louca coisa é querer medir sua imensidão com a nossa medida. Assim, pois, o
que nosso entendimento não pode compreender, a fé o recebe: que o Espírito
verdadeiramente junta as coisas que permanecem afastadas, e Jesus Cristo
assegura e sela na Ceia esta participação de sua carne e de seu sangue, pela
qual faz fluir e transfere para nós sua vida, nem mais nem menos como se
entrasse em nossos ossos e em nossa medula. E não nos oferece um sinal vazio
e sem valor, senão que nos mostra nele a eficácia de seu Espírito, cumprindo o
que promete. E, verdadeiramente, oferece e dá a todos os que tomam parte
neste banquete espiritual, a realidade nele significada, ainda que somente os
fiéis a recebam com proveito, posto que recebem tão imensa liberalidade do
Senhor com verdadeira fé e profunda gratidão.[150]

Tal pensamento (assim chamado “virtualismo” em virtude de sua


ênfase sobre o virtus da ascendida humanidade de Cristo) permeia a
doutrina eucarística de Calvino. Cristo vem a seu povo no mesmo corpo
no qual encarnou-se, foi crucificado, sepultado e ressuscitou, subiu e
está agora glorificado. A vida é assim “infusa em nós a partir da
substância de sua carne”.[151]
A linguagem de Calvino tem evocado radicalmente diferentes
reações mesmo dentro da tradição que traça sua linhagem até ele. No
século dezenove, teólogos tais como Charles Hodge e R. L. Dabney,
denodados defensores da teologia calvinista nos Estados do norte e do
sul da América, e William Cunningham, o prendado teólogo escocês,
todos reagiram negativamente a tal ensino, questionando-o como sendo
ou seriamente equivocado, ou simplesmente incompreensível. Em outros
lugares, à maneira de contraste, ele tem sido recebido como,
virtualmente, a mais profunda visão sacramental de Calvino.[152]
Não há dúvida de que a linguagem de Calvino é muito mais realista
do que costuma ser o ensino evangélico sobre a Ceia do Senhor; e,
consequentemente, sua exposição é lida como sendo excessivamente
material. Ora, o mesmo poderia seguramente ser dito sobre a
linguagem de João 6.51-58 e, para essa matéria, sobre 1 Coríntios
10.16; devemos ser prudentes para que a paridade do raciocínio não
implique que o desconforto produzido pela linguagem de Calvino
dissimule o desconforto produzido pela linguagem da própria Escritura.
O próprio Calvino insistia em que nem todos os que sustentam comer e
beber de Cristo de forma real sustentam comer e beber de forma carnal.
O que amiúde se tem negligenciado neste contexto é o papel e o
poder que Calvino atribui ao Espírito Santo. Fundamental ao seu
pensamento sobre a Ceia é a obra da correlação entre Cristo subindo e
o Espírito descendo. O Espírito desce a fim de elevar-nos à comunhão
com Cristo (cf. Cl 3.1-4). Semelhantemente, na Ceia, o Espírito vem
“fechar a fenda”, por assim dizer, entre Cristo no céu e o crente na
terra, e produzir comunhão com o Salvador exaltado.
Mas a pergunta que Calvino formula é: “Com que Cristo o crente
tem comunhão à mesa?” Sua resposta é: “O Cristo vestido da
humanidade na qual sofreu, morreu, foi sepultado, ressuscitou e na
qual ele agora subiu em glória. Não há nenhum outro Cristo além do
Verbo encarnado (Logos ensarkos). Não há nenhuma outra via da graça
senão através da união e comunhão com ele como ensarkos. Na Ceia,
pois, comungamos com a pessoa de Cristo no mistério da união
hipostática; fazemos isso espiritualmente, isto é, pelo poder do Espírito.
Calvino não precisa ser interpretado como a dizer mais do que isso.
Nós mesmos não dizemos menos; do contrário, ou negaríamos a
realidade da koinōnia de que fala o Novo Testamento (1Co 10.16), ou,
muito mais seriamente, nos acharíamos negando a realidade contínua
da humanidade do Cristo glorificado. Aqui a dificuldade jaz não tanto
no que Calvino diz em seu ensino sobre a Ceia, mas na questão de que
muito pensamento cristológico não leva em conta adequadamente o fato
de que não existe outro Cristo. Não leva plenamente a sério a
veracidade da ressurreição e ascensão físicas de Cristo. Uma vez sendo
isto apreendido, a teologia eucarística de Calvino se torna menos
desconcertante, ainda que a verdade para a qual ela aponta (como o
próprio reformador admite) permanece um mistério. Mas o mistério não
é maior aqui do que noutros aspectos da obra do Espírito.
Qual, pois, é o papel do Espírito na Ceia?
Pode ser satisfatoriamente descrito nas palavras de João 16.14. O
Espírito tomará o que é de Cristo e “o fará conhecido” a seus discípulos.
Ele faz isso fundamentalmente através da revelação apostólica, de
modo que nada é revelado na Ceia que já não se tenha feito conhecer
nas Escrituras. Na Ceia, porém, há (1) representação visual e (2)
enfoque simples e específico sobre a carne partida e o sangue
derramado de Cristo. Isso nos leva ao cerne da questão, e de fato ao
centro do ministério do Espírito: iluminar a pessoa e a obra de Cristo.
Nenhuma nova revelação é dada; nenhum outro Cristo é feito
conhecido. Mas, como disse bem Robert Bruce (1554-1631), embora
não obtenhamos um Cristo diferente e melhor na Ceia do que o Cristo
obtido na Palavra, podemos obter melhor o mesmo Cristo que o Espírito
ministra pelo testemunho dos emblemas físicos sendo associados à
Palavra.[153]
Escritores cristãos no passado, sem dúvida influenciados por uma
interpretação alegórica do Cântico de Salomão, empregaram a
linguagem do namoro, do amor e matrimônio para descrever a relação
entre Cristo e seu povo. Falaram do “ósculo” de Cristo. Este é o
ministério secreto do Espírito. Assim como o emblema ou a ação física
de um ósculo comunica (bem como simboliza) amor, assim os emblemas
físicos que apontam para um Salvador crucificado e ressurreto são
empregados pelo Espírito operando no coração para comunicar ao povo
de Cristo o amor que ele tem por eles. Como confirmação da graça e fé,
a Ceia é usada nas mãos do Espírito para ministrar paz, alegria, amor e
segurança. Aqui pode haver “alegria indizível e cheia de glória” (1Pe
1.8), uma prelibação concedida pelo Espírito da plenitude da presença
de Cristo, a qual o crente antecipa quando proclama a morte de Cristo
“até que ele venha”. Então a obra regeneradora do Espírito será
consumada (1Co 11.26). Então, quando o Espírito disser: “Vem!” (Ap
22.17), a plena realidade expressa pelos símbolos estará presente e
estes se tornarão, como o edifício do templo, redundantes (Ap 21.22).

[144] Livy, History of Rome, 2.32.


[145] A. E. Hill, “The Temple of Asclepius: An Alternative source of Paul’s Body
Theology?” Journal of Biblical Literature 99 (1980), pp. 297-309; J. Murphy-O’Connor, St
Paul’s Corinth: Texts and Archaeology (Delaware: Michael Glazier, 1983), pp. 161-167.
[146] Para uma recente discussão, ver Gosnell L. O. R. Yorke, The Church as the Body of
Christ in the Pauline Corpus: A Re-examination (Lanham, MD: University Press of America,
1991).
[147] Ver G. R. Beasley-Murray, Baptism in the New Testament (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1962), pp. 18ss. para discussão.
[148] Robert Barclay, The Confession of the Society of Friends, Proposition XII.
[149] Ver M. G. Kline, By Oath Consigned (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1969), pp. 65ss.
[150] João Calvino, Institutas, ed. J. T. McNeill, tr. F. L. Battles (Londres: SCM Press, e
Filadélfia: Westminster, 1961), IV.17.10.
[151] Ibid. IV.17.4.
[152] Por exemplo, pelo teólogo de Mercersburgo, J. W. Nevins, “The Doctrine of the
Reformed Church on the Lord’s Supper”, The Mercersburg Review (1850), pp. 421-549. Cf.
T. F. Torrance em sua introdução a Robert Bruce, The Mystery of the Lord’s Supper
(Edinburgo: James Clark, 1958).
[153] Ver Robert Bruce, op. cit. pp. 64, 85.
10
DONS PARA O MINISTÉRIO

O Cristo que subiu aos céus continua a expressar seu amor para com o
seu povo por meio dos sacramentos. Eles marcam o ingresso e
permanência do eleito na comunhão de um só corpo do qual Cristo é a
cabeça. Os sacramentos, que são dons de Deus, expressam a unidade
que existe na diversidade do povo de Deus (1Co 10.17; Ef 4.1-7).
Não obstante, o Novo Testamento também enfatiza que o Cristo
que subiu fortalece a unidade dos diversos membros de seu corpo
através de dons de outro gênero, os quais são também dados através do
Espírito.
A correlação entre a ascensão de Cristo e a descida do Espírito
assinala que o dom e os dons do Espírito servem como a manifestação
externa do triunfo e entronização de Cristo. Paulo sublinha esta verdade
com a citação do Salmo 68.18, em Efésios 4.7-8: “Quando ele subiu às
alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens.” O
derramamento desses dons do Espírito marca a ruína dos inimigos de
Cristo e o início da igreja (Mt 16.18). Assim como no caso da construção
do tabernáculo (Êx 31.3), também no caso da construção do novo
templo de Deus, dons do Espírito são dados para equipar o povo de
Deus e capacitá-lo a pôr em evidência a glória de Deus, a plenitude de
Cristo, no templo de Deus (Ef 4.12, 16). Cristo assim adorna sua
esposa, seu corpo.
Em nossos próprios dias, esses “dons ativos” (dons espirituais)
têm-se convertido de tal forma em arena de debates e discordância
como os “dons sinais” (os sacramentos) o foram na história da Igreja
Primitiva.
Aqui se podem dizer duas coisas como comentário preliminar sobre
essa exaustiva área de discussão.
(1) O ministério da Palavra dado ao povo de Deus é ponto central
no exercício de qualquer dom do Espírito. Não há lista exaustiva dos
dons do Espírito em qualquer uma das passagens neotestamentárias.
Mas, nas listas bíblicas existentes (Rm 12.3-8; 1Co 12.7-11, 28-30; Ef
4.11; 1Pe 4.10-11), fica claro e evidente (ver o gráfico abaixo) que o
ministério da Palavra revelatória de Deus é central e básico para o uso
de todos os demais dons. É a Palavra que os estabiliza e os nutre; eles,
por sua vez, dão expressão a essa Palavra de várias maneiras:
palavra de sabedoria
palavra de conhecimento

dons de cura
1 Coríntios 12.8-11 operação de milagres
profecia
discernimento de espírito
falar em línguas
interpretação de línguas

apóstolos
profetas
mestres
operadores de milagres
1 Coríntios 12.28
cura
socorros
administração
línguas

profecia
serviço
ensino
Romanos 12.6-8 exortação
contribuição
liderança
ministério de misericórdia

apóstolos
profetas
Efésios 4.11 evangelistas
pastores/
mestres
1 Pedro 4.11 falar
servir

Embora seja difícil um agrupamento eclético desses vários dons e,


talvez, até mesmo a tentativa redunde em teimosia, uma estrutura
básica está claramente presente: a Palavra revelatória, através do
apóstolo ou do profeta, é fundamental (Ef 2.20), enquanto tudo mais é
explicitado por ela e emana dela. Assim, se a Palavra revelatória de
Deus vem imediatamente através do apóstolo ou profeta, ou
mediatamente através da exposição das Escrituras (cf. 1Tm 4.13; 2Tm
3.16–4.5), ela exerce papel dominante na vida da igreja e ocupa status
canônico. O Espírito que dá a Palavra a usa para equipar o povo de
Deus a fim de exercer os dons específicos que eles, individualmente,
tenham recebido (Ef 4.11-16).
Essa perspectiva geral é de grande importância prática para a vida
da igreja; perdê-la de vista seria perder o equilíbrio da Escritura.
(2) O segundo ponto a notar-se é a ênfase que o Novo Testamento
dá ao papel do amor no exercício dos dons espirituais (implícito em Rm
12.3-8, explícito em 1Pe 4.10-11, e como princípio diretor em 1Co 13.1-
13, bem como em Ef 4.16); ou, seja, o corpo se edifica quando seus dons
são exercidos em amor. Assim também o fruto do Espírito (“amor...”, Gl
5.22) deve ser distinguido dos dons do Espírito, mas jamais deve estar
ausente no exercício deles, pois, sem amor e sem a humildade que o
acompanha (Rm 12.3; 1Co 4.7), o propósito dos dons do Espírito fica
prejudicado (1Co 13.1-3). Eles são dados através do Espírito de Cristo
para equipar os crentes a servirem uns aos outros no corpo de Cristo e
assim colocar em realce a unidade da igreja no contexto de sua
diversidade, e vice-versa. Para isto, o amor é essencial.
Nesta perspectiva, dois princípios são fundamentais: (a) Os dons
espirituais refletem mais a graça do Doador do que a graciosa condição
do agraciado. No Novo Testamento, considera-se como real e séria
possibilidade que um indivíduo pode experimentar e exercer poderes
espirituais, ainda que lhe falte a graça e a salvação (cf. Mt 7.22). O
autor de Hebreus faz referência à possibilidade de se experimentarem os
poderes da era por vir sem que se possuam as “coisas que acompanham
a salvação” (Hb 6.5, 9). (b) Os dons são dados para capacitar os que os
recebem a ministrarem a outros. Implícito na posse dos dons está o
duplo princípio de dependência a Cristo e serviço prestado a outros,
visto que os dons do Espírito são dados ao indivíduo essencialmente
para a edificação de outros, muito mais que a si próprio.
Ignorar tais considerações como princípios diretivos no exercício
dos dons espirituais é abrir caminho para o desastre espiritual e,
possivelmente, também para o desastre moral da igreja.
Pode não ser possível ter certeza sobre a natureza precisa de todos
os dons que o Novo Testamento menciona. Mas é possível ter melhor
entendimento e clareza no caso dos dons relacionados com a tarefa do
ministério da palavra da divina revelação – apóstolo, profeta,
evangelista, pastor e mestre – embora, mesmo aqui, ocorram debates
contínuos.
Apóstolos, neste contexto, são aqueles que foram diretamente
designados por Cristo e capacitados pelo Espírito a darem testemunho
de sua ressurreição (Jo 15.26-27; 20.1-3; 1Co 9.1-2). Quanto a outros
que foram intitulados “apóstolos” no Novo Testamento, parece que
eram mensageiros das igrejas, em vez de testemunhas oculares do
Cristo ressurreto (At 14.14 é esclarecedor neste sentido).
Os profetas também exerciam um ministério fundamental. A igreja
é “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Cristo
a principal pedra angular” (Ef 2.20). Aqui, “profetas” geralmente eram
considerados como um grupo separado no seio das igrejas primitivas, os
quais recebiam o dom de falar a divina palavra da revelação como
contemporâneos dos apóstolos. Entretanto, tem-se argumentado que a
declaração de Paulo constitui uma hendiadis: “os apóstolos que são
profetas”.
Este último ponto de vista tem sido defendido com detalhes por
Wayne Grudem, em seu influente estudo, The Gift of Prophecy in the
New Testament and Today.[154] Como veremos, com este ponto de vista
Grudem fundamenta sua tese de que há dois diferentes “níveis” de
profecia no Novo Testamento. Diante disto, argumenta ele, podemos
falar de profecia “não-revelatória que continua na igreja hoje sem
ameaçar a finalidade e suficiência da Escritura. Mas, à luz da distinção
que Paulo traça entre profetas e apóstolos (Ef 4.11; cf. 1Co 12.28), é
duvidoso se esta seja a redação mais correta e natural do texto. Nas
listas dos dons que aparecem para seguir uma ordem hierárquica, o
papel do profeta é mais estreitamente relacionado com o de apóstolo do
que com o papel de evangelista, mesmo quando este último pareça ter
funcionado como uma espécie de plenipotenciário apostólico.[155] Isso
parece sublinhar e evidenciar o caráter revelatório do ministério de um
profeta.
“Pastores e mestres”, às vezes considerados como dois papéis
distintos, recente e geralmente têm sido lidos como uma hendiadis,
descrevendo a obra de um indivíduo em termos de uma função dual. É
questionável se esses vários títulos também devam ser entendidos ou
vistos sob o mesmo prisma das ideias do servir, ensinar e liderar, que
são notadas em Romanos 12.7-8. Sem dúvida, os dons envolvidos no
cumprimento desses ministérios vão além daqueles que eram
reconhecidos na igreja de uma maneira quase oficial.
O dom de cura (a forma plural em 1Co 12.9, 30 é digna de
destaque) deve, presumivelmente, ser identificado com as curas diretas
dos apóstolos, descritas nos Atos dos Apóstolos (p. ex., At 3.6-8; 5.16;
8.6-7; 14.9; 28.9). Mais difícil é dogmatizar sobre ideias tais como logos
(“mensagem”, NVI) de sabedoria e conhecimento. Provavelmente, a
interpretação mais natural seja pensar no primeiro como visão prática
dos caminhos de Deus, e no último como visão da revelação de Deus em
Cristo, embora seja importante a lembrança de que, no início de 1
Coríntios, Paulo denomina Cristo como a sabedoria de Deus. Deste
modo, talvez aqui não exista uma distinção rígida e segura.
Não obstante, o que é digno de nota, em vista do modo como a
igreja moderna desenvolve um tacanho e centralizado conceito de
ministério, são as distinções relativamente sutis entre alguns desses
dons presumivelmente exercidos por diferentes pessoas: sabedoria é
distinta de conhecimento; o ensino é distinto de exortação. Tem-se
antecipado dom para todo o corpo e assegurado um espaço para seu
exercício. As manifestações do Espírito em prol do bem comum (1Co
12.7) nos ministérios da Palavra se difundiram entre o povo de Deus. O
ministério neotestamentário, no sentido mais fundamental, é sempre
carismático.
O Novo Testamento em parte alguma analisa a natureza precisa
desses dons espirituais, nem sua relação com as habilidades e
disposições naturais dos indivíduos. Essa relação é inevitavelmente
complexa. Mas podemos com segurança presumir, à luz do caráter
totalmente divino e totalmente humano do modo como o Espírito deu a
Escritura, que ele não deixa de lado totalmente as características
específicas de nossa humanidade, ao distribuir esses outros dons.
A dificuldade mais premente da análise surge quando
consideramos a natureza do ato de falar em línguas e da profecia. Isso
se deve a uma combinação paradoxal de circunstâncias: de um lado, o
aparente declive desses dons no período seguinte até o final da era
apostólica; e, do outro, o dramático surge nas reivindicações de sua
restauração ou continuação no século passado ou neste. Têm-se feito
tentativas para demonstrar sua continuação ou repetição na história da
igreja, mas o caráter espasmódico da evidência simplesmente realça
sua ausência da norteadora experiência cristã.
O avivamento ou restauração desses fenômenos, reivindicados
hoje, ainda que estatisticamente surpreendente, cria complexidade
adicional ao avaliar-se a identificação reivindicada entre os fenômenos
neotestamentários e os contemporâneos, bem como as conflitantes
interpretações de sua significação. Os restauracionistas
contemporâneos, buscando uma explicação para isso, são levados a
concluir, ou que a maioria dos cristãos entre o segundo século e o século
vinte [e um] não exerceu fé de uma maneira apropriada, ou que a
repetição desses dons pressagia a aurora dos dias finais. A fragilidade
do primeiro ponto de vista consiste em que é de mui pouca consistência
com o testemunho frequentemente reiterado de que, por exemplo, a
experiência de falar em línguas vem espontaneamente e de uma forma
soberana. (Por que não veio soberanamente ao longo dos séculos?) A
fragilidade do segundo consiste na escatologia distintiva a que se
prende.
Portanto, é possível explorar duas questões: (1) a natureza desses
fenômenos no período neotestamentário, e (2) a questão da
continuação ou cessação.

As Línguas
Falar em línguas como um efeito da vinda do Espírito é explicitamente
mencionado em quatro contextos neotestamentários: no Dia de
Pentecostes (At 2.4, 11), na casa de Cornélio (At 10.46), pelos
“discípulos” de Éfeso que haviam recebido somente o batismo de João
(At 19.6) e no contexto da igreja em Corinto (1Co 12, 14 passim).
Tem-se discutido com muita frequência a natureza do falar em
línguas, e aqui não é possível ser explorada exaustivamente.[156] De
forma fascinante, e até mesmo perplexiva, perguntas vêm à tona nesta
conexão. Por que, diferentemente de outros dons, este se encontra
exclusivamente no Novo Testamento, e não no Antigo (diferentemente
de profecia, milagres, curas e outros dons)? Por que somente em uma
carta do Novo Testamento há clara referência ao fenômeno? O
fenômeno é idêntico em cada caso em que aparece?
Esta última pergunta é de certa importância. Tem-se argumentado
que o milagre real no Pentecostes estava na audição (At 2.6, 8, 11) e
que as “línguas” eram de fato uma forma de elocução estática, e não
um idioma identificável. Essa, porém, é uma redação inusitada de Atos
2.1-13, a qual registra a elocução em outras línguas, bem como a
audição na “língua nativa” e nas “línguas” dos que estavam presentes
no Dia de Pentecostes.
É difícil resistir à conclusão de que as línguas faladas na casa de
Cornélio e pelos “discípulos” de Éfeso eram idênticas em caráter
àquelas do Pentecostes. Mas, o que dizer das línguas a que Paulo alude
em 1 Coríntios? Aqui os exegetas não chegam a um acordo. Com certeza
glōssa (cf. At 2.4; 1Co 12–14), ordinariamente, tem a ver com um
idioma real; e, além do mais, Paulo reconhece que falar em línguas
requer interpretação ou tradução, já que ele comunica uma mensagem
coerente. Categoricamente, os diferentes dons do Espírito não parecem
estar em pauta.
A diferença entre o Pentecostes e Corinto está no fato de que os que
ouviram línguas em Jerusalém já possuíam a chave para sua
interpretação: entenderam as línguas faladas porque elas eram suas
línguas nativas (At 2.11); não se requeria nenhuma tradução. Em
contraste, lá em Corinto, para falar, fazia-se necessário um intérprete.
Mas não há motivo algum para se concluir que houvesse alguma
diferença essencial entre a natureza das línguas faladas nos dois
contextos.
Essas línguas, porém, eram idiomas humanos identificáveis?
Também aqui encontramos diversidade de opinião. Tem-se alegado que
“línguas” indicam o idioma dos anjos, em virtude da intrigante
referência que Paulo faz a “línguas dos homens e dos anjos” (1Co 13.1).
Menciona-se idioma angélico no livro apócrifo, O Testamento de Jó, em
48.3, onde Hemera, uma das filhas de Jó, fala num dialeto angelical.
Não obstante, é possível que “línguas dos anjos” (como uma série de
expressões em 1 Coríntios) expresse uma pretensão dos coríntios, e não
um conceito apostólico. Isso se adequaria bem aos elementos do falso
ensino corrente em Corinto (a defeituosa escatologia que levou alguns a
afirmarem que a ressurreição já havia se realizado, e que, portanto, os
crentes já se assemelhavam a anjos celestiais). Mas a ideia de que as
línguas representam o idioma dos anjos não é consistente com o uso que
Paulo faz de Isaías 28.11-12 em 1 Coríntios 14.21. Aqui ele explica que
parte da significação interior das línguas não interpretadas é a forma
como podem funcionar como “um sinal, não para os crentes, mas para
os incrédulos” (1Co 14.22). Para Paulo, as línguas servem parcialmente
como o sinal do juízo de Deus sobre seu povo pactual. O que caracteriza
o reverso de Babel e indica a universalidade do novo pacto também
indica juízo sobre o povo pactual pela rejeição de Cristo. Babilônia
revertida é, noutro sentido, Jerusalém julgada (“sua perda significa
riquezas para os gentios”, Rm 11.12). O uso de línguas além da língua
pactual comum é um sinal de hostilidade divina. A linguagem angelical
dificilmente seria apropriada como um sinal de rejeição! Portanto,
fazendo Paulo a aplicação de Isaías, é mais consistente ver as línguas
em Corinto como idiomas estrangeiros exigindo tradução e
interpretação. Como no Pentecostes, quando interpretado, o falar em
línguas era equivalente a profecia (At 2.17-18; 1Co 14.5).[157] Os
fenômenos, se não realmente idênticos, são com certeza funcionalmente
equivalentes na igreja.

A Profecia
No Antigo Testamento, o profeta (nāḇî’) era a boca de Deus e o
instrumento de revelação divina. Naturalmente, essa revelação vinha
em várias formas e era pronunciada numa variedade de maneiras (Hb
1.1; At 2.17). Entretanto, comum a todos os modos era a noção de que
as palavras do Senhor se tornavam as palavras dos profetas: sua
palavra em suas bocas e em seus lábios (Dt 18.18-19; cf. Jr 1.9).
Portanto, prefixar as afirmações de alguém com a sacra reivindicação:
“Isso é o que diz o Soberano Senhor” era professar ser um veículo da
revelação divina.
No Novo Testamento, a profecia tem sido entendida de maneira
semelhante. Mas, com a convicção muito difusa que despertou no seio
da igreja a ideia de que as Escrituras constituíam um único e completo
repositório da revelação divina, tornou-se comum interpretar as muitas
referências neotestamentárias à “profecia” como equivalente a
pregação, permitindo assim que tais passagens tivessem uma
significação direta para a vida ordeira da igreja contemporânea. Assim
a obra de William Perkins, do final do século dezesseis, The Art of
Prophesying, tornou-se um manual para jovens estudantes e ministros
a ensinar-lhes a arte da pregação expositiva. Estudos mais recentes têm
explorado a possibilidade de que a profecia seja entendida como uma
percepção imediata e sem premeditação do significado da Escritura.
Recentemente, um grupo de escritores tem sugerido que
encontramos no Novo Testamento dois níveis de ministério profético:
(1) aquele associado com os apóstolos e caracterizado por uma
reivindicação implícita por infalibilidade; e (2) um segundo nível de
profecia que reivindica a percepção do que foi divinamente dado, mas
não necessariamente pela infalibilidade da expressão verbal. Este ponto
de vista, especialmente, mas não exclusivamente, tem sido defendido
por Wayne Grudem em diversas publicações.[158]
Grudem observa que, no mundo helenista, a variação semântica do
termo “profeta” era de fato muito ampla; ele argumenta que devemos
reconhecer uma variação semelhante no Novo Testamento. Embora na
religião helenista se faça certa distinção entre os diferentes “níveis” de
profecia envolvida na inspiração e interpretação,[159] observe-se, no
entanto, que o antecedente controlador do pensamento do Novo
Testamento não é a profecia helenista, e sim a profecia hebraica, com
sua reivindicação implícita, e às vezes explícita, de inspiração divina,
inclusive quando refletida nos eventos futuros.
Grudem sustenta que na era do novo pacto o papel dos profetas
inspirados tem segmento na obra dos apóstolos, e que esse último título
é usado para evitar confusão entre os “profetas” da cultura religiosa
contemporânea. Assim, em Efésios 2.20, os “apóstolos e profetas”,
sobre quem a igreja é edificada, constitui uma hendiadis para “os
profetas apostólicos”. Isso, porém, dificilmente seria um raciocínio
convincente e persuasivo. Embora seja procedente o fato de que há
importantes analogias entre as funções dos profetas
veterotestamentários e os apóstolos neotestamentários, se tivesse
havido a possibilidade de a igreja entender mal o termo “profeta”, não
faria sentido algum ter ela usado o termo e, certamente, nem mesmo os
apóstolos o usariam.
Em sua primeira obra, Grudem mencionou dois diferentes gêneros
de profecia; na obra mais recente, ele esclarece sua intenção falando de
dois diferentes níveis de autoridade. Então ele procura demonstrar que
o primeiro desses casos envolve uma alegação de infalibilidade; o
segundo, não. Portanto, o primeiro não é contínuo; o segundo pode
continuar.
(1) Grudem destaca diversas indicações nos Atos dos Apóstolos
que, para ele, apoiam sua tese. Em minha opinião, seus argumentos
mais importantes são os seguintes:
Na profecia de Ágabo sobre a vinda de fome (At 11.28), a
linguagem de Lucas (“pelo Espírito”) expressa uma relação muito
espontânea entre o Espírito Santo e o profeta, uma vez que ela dá lugar
a um imenso grau de influência pessoal vinda da própria pessoa
humana. Aqui, Grudem argumenta com base na analogia de Romanos
8.37 e 1 Timóteo 1.14.[160]
Não obstante, este é um argumento supérfluo. A própria doutrina
da Escritura, defendida por Grudem, requer que o ministério do Espírito
que efetua a inerrância das Escrituras proféticas também,
ordinariamente, dê lugar à plena expressão das características e
atividades pessoais do autor humano. Mas, como ele mesmo reconhece,
isso não reduz sua autoridade a um nível mais baixo nem enfraquece
seu caráter infalível.
A profecia neotestamentária registrada inevitavelmente tem a
mesma forma essencial, como as palavras de Ágabo esclarecem: “Isto
diz o Espírito Santo” (At 21.11). A inadequação da tese de Grudem
neste ponto se percebe pelo fato de que ela o põe na situação paradoxal
de insinuar que, quando Ágabo falou sob a influência geral do Espírito
(“pelo Espírito”, At 11.28), ele profetizou mais acuradamente o futuro
do que quando falou (menos acuradamente, no conceito de Grudem)
sobre o destino de Paulo como sendo o que “o Espírito Santo diz” (At
21.11)!
O caso de Ágabo poderia nem ser essencial a esta tese,[161] mas
esta, de fato, exerce um papel mais relevante na demonstração de
Grudem, visto que tal caso é reivindicado como uma ilustração explícita
de profecia falível, que não é profecia falsa. O problema com a tese
consiste em que, se este é o caso, a linha entre o falível e o falso se torna
perigosamente tênue. Podemos legitimamente perguntar: Como o falível
é falso? Porque, se seguirmos a hipótese da profecia em dois níveis,
neste caso particular, Ágabo laborou em erro duplo: (a) Sua profecia
erra em detalhes – e, segundo o conceito de Grudem, em detalhes que se
acham no cerne da profecia; (b) Além disso, Ágabo parece não estar
cônscio da própria distinção que Grudem considera como um período
muito difundido no Novo Testamento – a distinção entre profecia de
primeiro e de segundo nível. Do contrário, em vez de dizer “Isto diz o
Espírito Santo” (At 21.11), ele teria dito algo mais ou menos assim:
“Para mim é como se o Espírito estivesse, quem sabe, indicando que
algo como isto pode muito bem acontecer a Paulo, se ele for a
Jerusalém; mas eu poderia estar equivocado, especialmente nos
detalhes.” Com certeza, o registro de Lucas não dá respaldo à tese de
Grudem de que se trata de um exemplo de suposição progressiva, ou de
Ágabo ou de Paulo.
(2) Grudem afirma que seu ponto de vista é estabelecido pelo
profetizar dos “discípulos” de Éfeso. “Por certo que sua profecia é
diferente do discurso divinamente oficial de Paulo e dos demais
apóstolos.”[162] Mas isso confunde significação com inspiração. O que
esses crentes efésios “profetizaram” teria sido, no conceito de Grudem,
relativamente incidental, em comparação, com as convincentes
afirmações dos apóstolos. Genuínas, porém irrelevantes. Pois o
relativamente incidental e insignificante não é, por definição, menos
acurado ou menos divinamente inspirado do que o mais grave e
significativo. Sem dúvida, as declarações: “Pois todos pecaram e
carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus
propôs, em seu sangue, como propiciação, mediante a fé para
manifestar sua justiça, por ter Deus, em sua tolerância, deixado
impunes os pecados anteriormente cometidos” (Rm 3.23-25) são de
importância quase infinitamente maior do que a mensagem: “Saudai a
meu parente Herodião” (Rm 16.11). Mas o próprio Grudem com isso
não afirmaria que o primeiro caso possua uma inspiração ou
autoridade que é “certamente diferente” do segundo caso.
Presumivelmente, nem Paulo foi mais ativo em formular a redação do
segundo caso do que do primeiro.
(3) Segundo esta hipótese, Atos registra profecias que Paulo
desobedece. Ele não teria feito isso se as considerasse como que
contendo autoridade divina infalível. Implicitamente, pois, Paulo
reconhecia diferentes “níveis” de discurso profético. Em Atos 21.4,
Lucas alude aos discípulos de Tiro que, “movidos pelo Espírito,
recomendavam a Paulo que não fosse a Jerusalém”. Enquanto aqui não
se menciona explicitamente profecia, é evidente o paralelo com Atos
11.28 (“e apresentando-se um deles, chamado Ágabo, dava a entender,
pelo Espírito, que estava para vir grande fome por todo o mundo, a qual
sobreveio nos dias de Cláudio”). A menos que desejemos acusar Paulo
de rejeitar a clara orientação de Deus, devemos atribuir um status
secundário a essa profecia.
Entretanto, o próprio Grudem interpreta este evento de uma
maneira que parece malograr sua própria defesa de uma autoridade de
nível secundário em tal profecia:
“Suponha-se que alguns dos cristãos de Tiro tivessem algum tipo de
‘revelação’ ou indicação vinda de Deus acerca do sofrimento que Paulo
enfrentaria em Jerusalém. Então lhes teria sido muito natural acoplar sua
profecia subsequente (sua notícia sobre esta revelação) com sua própria
interpretação (errônea), e com isso aconselhar Paulo a não ir. Em suma, esta
passagem indica um tipo de profecia que não era reconhecida como que
possuindo autoridade divina absoluta em suas palavras reais: os profetas de
Tiro não estavam falando ‘palavras do Senhor’.”[163] (Itálico meu.)

Aqui, a explanação dada no primeiro parágrafo é por si só


adequada. Não requer a conclusão delineada no segundo parágrafo (em
itálico). Paulo reconhecia a diferença entre a revelação dada no Espírito
e a interpretação desta revelação dada pelos cristãos (distinção essa
reconhecida nos conceitos de Grudem, sobre “profecia” e
“interpretação”); Paulo aceitou claramente a primeira como profecia
divinamente transmitida, mas rejeitou a segunda como sendo contrária
ao propósito de Deus, já revelado, para sua vida (“E agora,
constrangido em meu espírito, vou para Jerusalém, não sabendo o que
ali me acontecerá, senão que o Espírito Santo, de cidade em cidade, me
assegura que me esperam cadeias e tribulações” At 20.22-23).
Tal interpretação é muitíssimo verossímil em virtude da reiteração
intensificada da cena em Cesareia. Agora não são meramente os
discípulos de Tiro que falam acerca dos perigos que aguardavam Paulo;
não é outro senão Ágabo, o homem cuja primeira profecia provou ser
acurada e muitíssimo significativa para as ações da igreja (cf. At 11.28-
30). Neste momento, todo o colégio apostólico, em pranto, suplica a
Paulo que não suba a Jerusalém (note bem a característica de Lucas,
“nós”, em At 21.12). A pressão psicológica era fortíssima (At 21.13);
Paulo, porém, a resistiu. Ele compreendeu que uma profecia dos
acontecimentos que se concretizariam, caso fosse a Jerusalém, em si
mesma não era indicação de que ele não devesse ir. Não há necessidade
de recorrer à tese de que dois níveis de profecia estão em vista,
especialmente quando nem o Novo Testamento, em geral, nem Ágabo,
em particular, faz referência ou revela a consciência de tal distinção. O
que está em pauta é uma distinção entre uma profecia divinamente
revelada e uma conclusão errônea extraída dela. Paulo não está
recusando a profecia divina; ele recusa, sim, uma resposta à profecia
completamente equivocada; equivocada porque ele sabe que seu destino
é sofrer por causa do evangelho; equivocada, ainda que prefaciada por
“estamos falando isso pelo Espírito”.
(4) Grudem apela para Atos 21.10-11: “desceu da Judeia um
profeta chamado Ágabo; e, vindo ter conosco, tomando o cinto de
Paulo, ligando com ele seus próprios pés e mãos, declarou: Isto diz o
Espírito Santo: Assim os judeus em Jerusalém farão ao dono deste cinto,
e o entregarão nas mãos dos gentios.” Grudem chama isso de “uma
profecia com dois pequenos equívocos”,[164] visto que (a) os judeus não
prenderam a Paulo; e (b) quem entregou Paulo aos gentios não foram os
judeus. De fato, foram os romanos que o prenderam (At 21.33; cf.
22.29); e, em vez de ser-lhes entregue pelos judeus, Paulo teve que ser
libertado das mãos dos judeus pelos romanos (At 22.24).
Aqui surgem várias perguntas. Uma delas é se tal interpretação é
uma afirmação geral como se ela pretendesse dar detalhes específicos.
De fato, Grudem afirma que esses “detalhes” são os elementos
essenciais nesta profecia em particular. Mas as implicações disto
reduzem grandemente a credibilidade de Ágabo. Pois se presumirmos
que a igreja primitiva partilhava do ponto de vista de Grudem quanto à
profecia em dois níveis, ou Ágabo não a entendeu, ou se enganou
seriamente, pois ele alega falar como a boca do Espírito. É difícil ver
como equívocos em questões essenciais possam ser considerados
“pequenos”! O profeta, uma vez preciso, cuja profecia afetou
profundamente o comportamento apostólico, agora se sente confuso e
desorientado, se não realmente falso.
É difícil pressupor, como faz Grudem, apelando para os pais
apostólicos, Inácio e Barnabé, que quando Ágabo diz “Isto é o que diz o
Espírito Santo” (At 21.11), equivale a dizer: “Geralmente (ou
aproximadamente), é isto o que o Espírito Santo nos está dizendo.”[165]
Na verdade, Ágabo não parece ter entendido essa citação, e nem Lucas,
a julgar pelo modo de seu registro. Além do mais, as passagens em
Inácio e Barnabé, às quais ele apela, não fornecem base para tal
argumento.[166]
Além do mais, o próprio relato retrospectivo dos acontecimentos
que Paulo faz em Atos 28.17-20 parece ser expresso por Lucas como um
eco deliberado da profecia de Ágabo. Uma comparação resulta
iluminadora:
Ágabo (At 21.11) Paulo (At 28.17)
Os judeus de Jerusalém Em Jerusalém
ligarão fui aprisionado [preso]
[dēsousin, de deō] [desmios, de deō]
entregarão entregue nas mãos
[paradōsousin, [paredothēn,
de paradidōmi] de paradidōmi]
aos gentios. dos romanos.

Grudem se queixa[167] de que a tradução NVI de desmios ex


Ierosolymōn paredothēn eis tas cheiras tōn Rōmaiōn é equivocada. A
tradução teria esclarecido que Paulo foi entregue nas mãos dos
romanos como um prisioneiro de [ex] Jerusalém, não um prisioneiro em
Jerusalém. Paulo está falando sobre ser levado de Jerusalém como
prisioneiro e entregue nas mãos dos romanos, não sobre ser agarrado
em Jerusalém e ali entregue aos romanos.
Isso poderia ser assim. Mas a repetição da linguagem de Ágabo nas
afirmações de Paulo sugere que o apóstolo mesmo via as afirmações
(mais gerais?) de Ágabo cumpridas nos acontecimentos reais. Além
disso, é significativo que a linguagem de ambas as passagens ecoe nas
próprias palavras de Paulo em Atos 20.20-23 (onde o passivo de deō e o
substantivo desmos são também usados). Pode-se igualmente queixar
que a NVI traduz desmios como “aprisionado”, em vez de “preso”,
obscurecendo assim a possibilidade de que Paulo esteja se referindo ao
que os Judeus fizeram quando o agarraram e o arrastaram do templo. É
plenamente possível que os judeus mesmos o prendessem a fim de fazer
isso (talvez com o próprio cinto de Paulo!). Em qualquer caso, a leitura
que Grudem faz da profecia de Ágabo não é nem a boa nem a necessária
consequência do texto. Ao contrário, vendo Ágabo a cometer “dois
pequenos equívocos”,[168] a linguagem de Lucas apresenta seu registro a
fim de condicionar o leitor de Atos a sentir que Paulo tinha em mente
uma extensa série de profecias como sendo já cumpridas. A versão de
Ágabo da amplitude da profecia acerca do futuro de Paulo veio, além de
tudo, na forma inusitada de uma parábola simulada. Inevitavelmente, o
cumprimento pode conter detalhes que não estejam presentes na
profecia, mas que são consistentes com ela. Em vez de confirmar a tese
de Grudem de que a profecia de Ágabo contém erros, o testemunho de
Paulo pressupõe sua exatidão. Não temos razão para crer que a
profecia de Ágabo tenha falhas e seja equivocada. Lucas não apresenta
indicação de que Paulo a encarasse assim.
Enquanto o argumento em prol de dois níveis da profecia não prova
ser convincente, parte da agenda de Grudem, aqui, é louvável por
promover a unidade e comunhão cristãs. Sua tese parece resistir uma
via media que pode estender-se sobre o abismo entre os pontos de vista
carismático e o cessacionista da profecia e as experiências espirituais
em geral. Se ele fosse reconhecido por advogados de ambos os pontos de
vista, de que a forma que a profecia contínua assume hoje pertence a
um nível de autoridade completamente diferente do ministério profético
revelatório dos apóstolos, a tendência de criar polarização ou
antagonismo, em discussão e debate, seria minimizada. Algumas
diferenças seriam vistas como sendo mais semânticas do que reais. Os
cessacionistas, como os carismáticos, poderiam ter experiências
mentais inusitadas, o que um cessacionista chamaria de “sentimentos,
impressões, convicções, anseios, inibições, impulsos, responsabilidades,
resoluções”.[169] Se reconhecessem que isto é virtualmente idêntico ao
que se pretende por “profecia [nível inferior]”, e se os continuístas
fizessem reivindicações mais modestas em prol da “profecia”, então se
obteria entendimento mútuo e maior harmonia. Os continuístas
evitariam expressões implicitamente infalibilistas tais como “Isto é o
que diz o Senhor”, de modo que não haveria problema de suas profecias
parecerem pretender rivalizar-se com a autoridade da Escritura; então
os cessacionistas e os continuístas seriam capazes de reconhecer que
partilham de experiências similares de iluminação espiritual, mesmo
que as descrevam ou as categorizem diferentemente. O acordo mútuo
estaria ao alcance.
O cessacionista e o restauracionista, o carismático e o não-
carismático, seguramente, teriam grande participação na experiência
espiritual. Mas a falha na tese de Grudem consiste na pretensão de que
a hipótese dos dois níveis se acha presente no Novo Testamento. Além
do mais, ali surge a mais fundamental pergunta: se o Novo Testamento
nos leva ou não a esperar pela continuação da profecia e dos dons
similares.

Um Caso em Prol da Continuação?


Os fatos poderiam ser apresentados assim: Na era apostólica, sinais e
prodígios assistiam o testemunho da igreja primitiva. Curas, profecias,
línguas, exorcismos e outros fenômenos incomuns são mencionados nos
Atos dos Apóstolos. Aliás, são mencionados precisamente porque são
“incomuns” mesmo pelos padrões da experiência dos cristãos
neotestamentários.
Algum tempo relativamente breve após este período, tais
fenômenos gradualmente começaram a desaparecer do curso da vida da
igreja. Alegações em prol de sua continuação ou restauração aparecem
de tempo em tempo desde o segundo século em diante.
Interpretar isso não é de forma alguma fácil, por várias razões.
Primeiramente, é difícil determinar a relação entre o desenvolvimento
de igrejas de estruturas mais fortes e a hierarquia episcopal e o lugar
concedido ao extraordinário. O crescente formalismo (mesmo num
sentido não pejorativo) destrói a espiritualidade e a fé?
Em contrapartida, os muitos apelos à continuação na igreja dos
fenômenos descritos em Atos parecem carecer de um princípio
controlador. O que fazer, por exemplo, com o extraordinário Bispo da
Neo-Cesareia, Gregório Taumaturgo, do terceiro século, a quem
Gregório de Nissa e Basílio de Cesareia atribuíram poderes
extraordinários: não só exorcismo e cura, mas ainda fazendo as pedras
levitarem à sua ordem, e fazendo um lago secar para acalmar um
conflito suscitado entre dois irmãos no tocante à sua propriedade?
Devemos, com o Cardeal Newman,[170] considerar isso como sendo
perfeitamente crível e simplesmente uma continuação dos fenômenos do
Novo Testamento? Teríamos que ver um núcleo de fatos históricos aqui
incrustados pela lenda (visto que, no caso de Gregório, os
acontecimentos só foram registrados um século após sua morte)? Ou
esses registros devam ser tratados especificamente? Tal reserva é um
sinal de que temos abandonado o supernaturalismo em prol do
racionalismo e do iluminismo?[171]
Tais atestações miraculosas têm sido frequentemente reivindicadas
na tradição católica e, deveras, é um elemento comum no processo de
canonização de um santo. Há, naturalmente, uma certa consistência
nisto, visto que Roma também sustenta que a revelação continua além
da Escritura.
Durante o século passado [19], experiências dos dons de profecia,
línguas, cura e outros fenômenos “extraordinários”, tais como
“extinguir o Espírito”, têm sido amplamente reivindicadas por muitos
indivíduos e todos os grupos tanto nas tradições católico-romanas
quanto nas tradições protestantes. Estima-se que haja agora,
provavelmente, em torno de trezentos e cinquenta milhões de pessoas
(rapidamente aumentando) que se identificam com este agrupamento
pentecostalista/carismático. Portanto, um vasto número de cristãos
professos não só creem que esses dons particulares do Espírito
continuam (ou têm sido restaurados) na igreja, mas também creem que
suas próprias experiências confirmam isso. Muitos falam línguas, ou
profetizam; alguns possuem poderes supernaturais de conhecimento.
Enquanto ainda outros curam ou “matam”; outros riem ou correm,
latem como cães ou rosnam como leões; e todos no poder do Espírito.
A tese em prol da continuação repousa sobre quatro considerações
básicas:
(1) O “fato bruto” da experiência contemporânea. (É possível que
muitos milhões de cristãos estejam errados ou equivocados?);
(2) O Novo Testamento em parte alguma afirma que quaisquer dos
dons do Espírito sejam interrompidos; portanto, eles continuam;
(3) O ponto de vista cessacionista implicaria que há duas
dispensações distintas, ou, pelo menos, distinguíveis: a da nova era que
Jesus inaugurou através de sua morte e ressurreição; e, a dos dons do
Espírito; ou, seja, a era apostólica e a era pós-apostólica. Mas o Novo
Testamento só reconhece uma era, a saber, a era inaugurada pelo
Espírito escatológico. Portanto, pode-se presumir que estes dons se
destinassem à igreja ao longo da nova era e fossem característicos dela;
(4) Ao reconhecer que a profecia eventualmente cessaria, Paulo
indica que tal coisa só se daria quando “viesse a perfeição” (1Co 13.10).
Então o imperfeito desapareceria. Aqui, o que está em pauta é o
escathon. Portanto, implícita está a ideia de que a profecia (e
presumivelmente os demais dons) continuaria até o regresso de Cristo.
À luz de tais considerações, a posição cessacionista, que sequer
uma vez prevaleceu sem sérios rivais, como a aceitou a ortodoxia nas
igrejas reformadas, é hoje amplamente considerada como reacionária e,
deveras, potencialmente acendendo o Espírito. O continuinismo ou
restauracionismo agora tenta tornar-se ortodoxia evangélica
normativa. Não obstante, a posição restauracionista continua a
enfrentar sérias dificuldades, as quais jamais pôde suplantar.

Um Caso em Prol da Cessação?


A posição cessacionista pode ser sucintamente delineada como segue:
(1) Em geral, o restauracionismo não fornece explicação teológica
convincente para o desaparecimento de determinados dons durante a
maior parte da existência da igreja. Atribuir isso à falta de fé é
seguramente inadequado (se não arrogância espiritual e teológica) em
virtude da qualidade de fé possuída por tantos cristãos nos primeiros
séculos, para não mencionar o princípio (tão sublinhado noutros
contextos por “continuístas”) de que o Espírito distribui seus dons
graciosa e soberanamente.
Neste contexto, tem-se tornado comum rejeitar a clássica “defesa”
do cessacionismo do século vinte, das esmagadoras preleções de B. B.
Warfield, publicadas em 1918 como Counterfeit Mracles, sobre a
alegação de que Warfield não pôde apelar para um único texto da
Escritura para provar seu ponto de vista. Isso é inadequado por duas
razões. Primeiro, as preleções de Warfield se destinavam a um escopo
amplamente histórico; seu propósito central não era tratar da matéria
exegeticamente. Sem dúvida, pois, os cessacionistas deveriam ter sido
um pouco mais humildes em apelar para Warfield, como se sua
intenção fosse fornecer um exemplo bíblico-teológico eficaz; mas, pela
mesma indicação, a crítica-padrão de sua obra perde seu elemento real.
Entretanto, em segundo lugar, neste argumento se acha envolvido
certo truque. É uma falácia lógica afirmar que a prova de sua própria
negativa (“nenhum texto neotestamentário ensina a cessação”)
estabelece uma alternativa positiva (“o Novo Testamento ensina o
continuinismo”).
(2) Este último ponto é de considerável significação, pois o conceito
restauracionista ou continuísta tende a pretender que o incomum e
miraculoso são biblicamente normais e normativos e, portanto,
naturalmente continuam. De fato, nas Escrituras, os dons
extraordinários parecem limitar-se a uns poucos e breves períodos na
história bíblica, nos quais servem como sinais confirmativos da nova
revelação e de seus embaixadores e como um meio de estabelecer e
defender o reino de Deus de maneira magistralmente significativa. Fora
desta perspectiva, alguns milagres bíblicos seriam triviais e quase no
nível de truques mágicos. Somente dentro deste contexto do reino é que
faz sentido um machado flutuar (2Rs 6.1-5) ou uma moeda surgir na
boca de um peixe (Mt 17.27).
As eclosões dos dons-sinais miraculosos no Antigo Testamento
foram, falando em termos gerais, limitados aos períodos da história da
redenção nos quais uma nova era de revelação pactual era atingida e,
durante a qual, o reino de Deus necessitava de defesa especial contra o
perigo de aniquilamento pelos poderes das trevas: os dias do Êxodo, a
entrada na terra da promessa e o estabelecimento do povo ali; o tempo
de Elias e Eliseu e o estabelecimento do ministério profético; e os dias
do Exílio. É natural que Deus continuasse a operar poderosamente em
outros tempos, às vezes de maneiras extraordinárias. Mas esses sinais e
feitos nunca foram normativos. Tampouco o Antigo Testamento
pressupõe que tivessem continuado inalterados mesmo ao longo da era
histórico-redentiva que inauguraram. Onde estão os milagres de
Jeremias, Obadias, Malaquias, Amós e os demais profetas? Na própria
Escritura, é evidente que na natureza de cada caso, esses sinais
especiais funcionaram temporariamente de maneira confirmatória,
defendendo e estabelecendo o reino, no contexto de uma nova época dos
propósitos divinos revelados.
Em harmonia com este padrão, a obra de Cristo e dos apóstolos foi
confirmada por “sinais e prodígios”. “Jesus, o Nazareno, varão
aprovado por Deus diante de vós, com milagres, prodígios e sinais, os
quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós
mesmos sabeis” (At 2.22). Semelhantemente, Paulo e Barnabé falaram
“ousadamente no Senhor, o qual confirmava a palavra de sua graça,
concedendo que por mão deles se fizessem sinais e prodígios” (At 14.3).
Cristo fez grandes realizações através de Paulo, “para conduzir os
gentios à obediência, por palavra e por obras, por força de sinais e
prodígios, pelo poder do Espírito Santo; de maneira que, desde
Jerusalém e circunvizinhança, até ao Ilírico, tenho divulgado o
evangelho de Cristo, esforçando-me deste modo por pregar o evangelho,
não onde Cristo já fora anunciado, para não edificar sobre fundamento
alheio [uma vez mais, o novo avanço é significativo]” (Rm 15.18-20).
Em consonância com isso está a forma através da qual esses
inusitados fenômenos servem como sinais confirmativos (embora de
forma alguma os únicos) do genuíno ministério apostólico. Para Paulo,
eles estão entre “as coisas que caracterizam um apóstolo – sinais,
prodígios e milagres” (2Co 12.12). Uma perspectiva similar é sugerida
pelo autor de Hebreus: “Como escaparemos nós, se negligenciarmos tão
grande salvação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo
Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram; dando Deus
testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários
milagres, e por distribuição do Espírito Santo segundo sua vontade” (Hb
2.3-4). Aqui, outra vez, o ministério apostólico e as confirmações
especiais dele se acham inextricavelmente associados. A significação
específica atribuída aos fenômenos se relaciona ao que é mais
característico do ministério apostólico em seu aspecto fundamental.
Um contra-argumento frequentemente usado é que, embora esses
dons fossem exercidos pelos apóstolos, a experiência deles de forma
alguma se limitava a eles; por exemplo, a obra tanto de Estevão (At 6.8)
quanto de Filipe (At 8.6) era assistida por sinais miraculosos.
Entretanto, tudo indica que Estevão e Filipe agiram como
delegados apostólicos, ou, seja, aquilo que o Novo Testamento descreve
como “evangelistas” (Filipe, mais tarde, é especificamente designado
assim, At 21.8). Aliás, pode ser que esta categorização seja uma
designação preferível para eles e seus companheiros de ministério em
Atos 6.1-7 do que pensar neles como os primeiros “diáconos”, ainda
quando o ministério diaconal distintivo pode ser delineado a partir
desse incidente. O ponto a ser firmado não é que somente os apóstolos
exerceram esses dons, mas que esses dons exerceram uma função
distinta como evidências confirmativas do evangelho e ministério
apostólico nas igrejas, e por isso consolidou a credibilidade da nova
revelação então comunicada.
Visto que isto está registrado no Novo Testamento como uma chave
exegética para o significado destes fenômenos, seria ilegítimo
interpretá-los à parte desta matriz. Os apóstolos exerceram um
ministério fundamental ao qual se deu atestação apropriada. Como
resultado, as manifestações do Espírito que serviram como
confirmações da nova revelação surgida nas igrejas. A função primária
desses dons em si sugere sua não-permanência. Propiciado o cenário
histórico, seria tão equivocado esperar que a cessação desses sinais
confirmatórios fosse sincronizada com a morte do último apóstolo,
como se deve assumir que a aceitação do cânon bíblico fosse datado no
momento em que o último livro do Novo Testamento fosse
primeiramente lido. Na natureza do caso, tal cessação seria tão gradual
como a reunião e estabelecimento do cânon. Neste sentido, a cessação
gradual desses dons segue o padrão que sugere sua significação interior.
A afirmação de Paulo de que “quando vier a perfeição, o imperfeito
desaparece” (1Co 13.10) às vezes tem sido entendido pelos
cessacionistas como uma referência à completude do cânon bíblico, e
com ele a cessação dos dons especiais dos quais a profecia, línguas e
conhecimento revelatório são representativos (1Co 13.8). Então veremos
“face a face” e não por “um pobre reflexo” (1Co 13.12; aqui a tela de
fundo é Nm 12.8; a referência é à intimidade de Moisés, face a face,
uma comunhão com Deus não enigmática). Mesmo o conhecimento que
Moisés tinha de Deus era enigmático, em comparação com o que veio
então na nova revelação pactual (2Co 3.12, 13). Daí argumentar-se que
esta “perfeição” ou “completude” (i.e., a nova revelação) seria
acompanhada da cessação de profecia e o falar em línguas (“o que é
imperfeito”, 1Co 13.10).
(3) A maioria dos estudiosos modernos tem rejeitado todas as
formas desta interpretação sobre as bases de que, para Paulo, “o
perfeito” é um conceito escatológico, não canônico. O contraste de
Paulo, “agora conheço em parte; então conhecerei plenamente, como eu
sou plenamente conhecido [por Deus]” (1Co 13.12), só pode referir-se à
visão beatífica. Há quem argumente mais dizendo que, visto que isto é
paralelo à primeira afirmação, “quando vier a perfeição, o imperfeito
desaparece” (1Co 13.10), a cessação das línguas e da profecia seria
coincidente com o fim dos séculos. Isto implica necessariamente sua
continuação até o fim dos séculos.
Muito embora esta não seja a única passagem à qual se apela,[172]
se esta exegese for correta então o resultado do que a Escritura ensina
vem a ser um só. Podem-se elaborar duas respostas.
Primeiramente, é ainda discutível, embora menos popular entre os
exegetas modernos, que por “perfeição” Paulo se refere não à visão
celestial, mas a um intervalo de conhecimento ainda mais abrangente
(completo) de Deus atingível pela totalidade do ensino apostólico. De
outra forma, não só as línguas e a profecia, mas também os escritos
apostólicos (e portanto o Novo Testamento) são caracterizados como
imperfeitos.
Podemos parafrasear 1 Coríntios 13.8-12 assim:
O amor nunca chegará ao fim, visto que Deus mesmo é amor; mas os dons
especiais, como a profecia e falar línguas, bem como a palavra do
conhecimento têm um fim determinado, já que eles são apenas modos
temporários em que o Deus de amor se nos faz conhecido. No momento, o
conhecimento de Deus que recebemos da profecia, das línguas e das palavras
do conhecimento só nos proporciona um conhecimento fragmentário de Deus.
Quando tivermos o quadro completo, estes dons perderão sua função –
‘quando chegar a perfeição, a imperfeição se esquivará’; como dizem, ‘o
homem crescido renunciará seus brinquedos infantis’.

As línguas, as palavras do conhecimento, as profecias – estão


todos mirando os espelhos que tornaram vocês, coríntios, tão famosos!
Mas, mesmo um espelho com “Made in Corinto” impresso nele não
passa de paupérrimo substituto para se contemplar (e portanto se
conhecer) tão claramente quanto é possível a outra pessoa vê-lo e
conhecê-lo![173] Mas, no futuro, quando tivermos o conhecimento
completo que Deus planejou para nós, então não mais teremos
necessidade desses espelhos imperfeitos das línguas, das palavras do
conhecimento e da profecia. Então conheceremos a Deus
completamente, não por uma mera forma fragmentária, como as outras
pessoas nos conhecem.”
Essa paráfrase tem o mérito de questionar a facilidade com que a
“perfeição” e o “conhecer plenamente, assim como sou plenamente
conhecido” têm sido equiparado com a parousia e “ser conhecido por
Deus”, e indica que, quanto mais as questões exegéticas são
estabelecidas, menos se requer um triunfalismo garantido. Com a fé e a
esperança, o amor continua, enquanto que profecias, línguas e palavras
de conhecimento são parciais e cessarão, porque funcionam
temporariamente; o quando é declarado apenas de uma forma mais
geral; aliás, “quando a perfeição chegar, o que é imperfeito
desaparecerá”, pode ser pouco mais que um apelo a um dito proverbial
de caráter geral. (Não é muitíssimo significativo que precisamente aqui
alguém descobre diversos apelos continuístas ao dito quase proverbial
de Calvino de que quando o sol nasce todas as luzes menores são
extintas?).
Em segundo lugar, os exegetas que adotam pontos de vistas
opostos sobre a questão mais ampla de cessação têm afirmado que esta
passagem não declara mais do que o ponto geral de que estes dons
cessarão em algum ponto futuro; exatamente quando não estiver em
vista. D. A. Carson, um continuísta moderado, observa que estas
palavras não “significam necessariamente que um dom carismático não
poderia ser descartado como não o pode a parousia”;[174] enquanto B.
Gaffin, Jr., um cessacionista, ao sustentar que o horizonte em vista na
expressão “perfeição” é o regresso de Cristo, afirma ser “gratuito”
argumentar, à luz desta passagem, que os dons mencionados
continuam até a parousia. Tal ponto de vista
...lê Paulo tão explicitamente em termos dos resultados oriundos da
controvérsia atual sobre os dons espirituais... Aqui Paulo não é orientado para
a distinção entre o período apostólico, fundamentalmente presente, e o
período além. Ao contrário, ele tem em vista o período inteiro até o regresso de
Cristo, sem levar em conta se as descontinuidades podem ou não intervir
durante o curso deste período, no interesse de enfatizar a qualidade durável
da fé, da esperança e, especialmente, do amor (vv. 8, 13).[175]
Se o Novo Testamento não faz um pronunciamento específico,
então a função desses dons determinará sua longevidade.
O ponto de vista continuísta-restauracionista não faz conta
suficiente do fato que o Novo Testamento propriamente dito divide os
últimos dias em dimensões ou períodos apostólicos e pós-apostólicos.
Há em vista um período de assentamento da fundação, caracterizado
pelo ministério dos apóstolos e profetas, e há um período pós-fundação,
pós-apostólico (como se acha implícito em Ef 2.20). Não nos deve
surpreender que os fenômenos ocorram no primeiro período e que não
se destinavam a ir além dele, não mais que os milagres de Moisés, Elias
ou Eliseu continuaram a ser realizados por seus dotados sucessores.
Amiúde se esquece que o resultado das atestações miraculosas do
evangelho não é peculiar à igreja contemporânea, nem é a posição
cessacionista uma invenção de Warfield ou uma mera reação aos
desenvolvimentos do século vinte [e um]. Era um elemento maior e
crítico nos debates que emergiram no século dezesseis, durante o tempo
da Reforma Protestante. Uma das críticas mais rigorosas ao movimento
da Reforma, feita pela Igreja Católica Romana, é que ele não tinha
atestação miraculosa! Parte do argumento de Roma em prol da
autenticidade de sua doutrina está num apelo à atestação dela por meio
do miraculoso. A resposta de Calvino a esse argumento, em sua famosa
carta a Francisco I que prefacia suas Institutas, era de natureza
essencialmente histórico-rendentiva: o novo pacto foi atestado pela
abundância do miraculoso. Esse é um testemunho adequado. Não temos
uma nova mensagem; não carecemos de novo transbordar do
miraculoso.[176]
(4) Em termos dos dons individuais, que na tradição agostiniana
eram vistos como pertencentes à era apostólica, o ponto de vista
restauracionista da glossolalia em particular enfrenta mais dificuldades
ainda.
Já argumentamos que falar em línguas em Atos e em 1 Coríntios é
mais naturalmente lido como falar idiomas estrangeiros. Mas a
glossolalia contemporânea não é normalmente identificada com falar
idiomas estrangeiros.
Além do mais, fora de 1 Coríntios não há registro ou da ocorrência
ou da regulamentação desse fenômeno. Apelar para a maneira como o
Espírito “intercede por nós com gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26), como
um exemplo de falar em línguas, seguramente está muito longe do alvo;
gemidos não são glossolalia; o que não se pode expressar não pode ser
identificado com idiomas que pode ser expresso.
Sem dúvida, os argumentos com base no silêncio são
escorregadiços; mas este silêncio, que é de maior amplitude
especialmente nas cartas pastorais, que foram claramente escritas para
regulamentar a vida eclesiástica pós-apostólica, parece provir de uma
eloquente mudança na orientação que já havia ocorrido na imediação
das línguas e sua interpretação para o ensino da tradição apostólica (cf.
1Tm 1.10-11; 3.9; 4.6; 6.3; 2Tm 1.13; 2.15; 3.10–4.5; Tt 1.9; 2.1). É
particularmente digno de nota que as cartas pastorais não antecipem a
necessidade de regulamentar o exercício de tais dons como a profecia e
o falar em línguas.
No Novo Testamento, as línguas traduzidas são tratadas como o
equivalente de profecia (identificação essa embrionariamente presente
na referência ao profetizar em Atos 2.14-18 como uma explicação das
línguas no Pentecostes). A menos que haja tradução ou interpretação, a
profecia é claramente superior às línguas. Mas se houver interpretação
então se comunica “revelação ou conhecimento ou profecia” (1Co 14.6).
Portanto, quando interpretado, falar em línguas é o equivalente
funcional de profecia,[177] e é revelatório em sua natureza.
A teologia cristã geralmente tem diferenciado entre revelação e
iluminação. A distinção concepcional é bíblica (Sl 119.18; 2Tm 2.7),
embora a mesma terminologia (“revelação”) possa ser usada em
referência a ambas. A revelação é dada a Paulo e aos apóstolos num
sentido especial (Ef 3.5); no entanto ele ora para que os efésios
adquiram um espírito de revelação a fim de conhecerem melhor a Deus
(Ef 1.17; cf. Mt 16.17). A terminologia comum denota não um conceito
singular, mas qualquer um dos dois relacionava ideias que possuem
determinadas características análogas. A revelação é usada por Paulo
para referir-se a ambas, a doação da verdade e a iluminação de seu
significado. Esses, porém, são fenômenos claramente distintos. Existe
uma distinção categórica entre a autoridade permanente que fixa a
revelação apostólica e a “revelação” ou iluminação subjetiva que vem a
todo o povo de Deus através do Espírito. Os teólogos sistemáticos
sabiamente têm fixado isto através de uma distinção semântica entre
“revelação” e “iluminação”, mesmo quando permanece perfeitamente
legítimo orarmos pedindo o “Espírito de... revelação no pleno
conhecimento dele” (Ef 1.17).
A despeito dos repúdios,[178] o que está em risco aqui é a suficiência
da Escritura em dirigir a igreja e o indivíduo. A revelação de Deus
sempre foi suficiente em cada estágio da revelação redentora. O clímax
da redenção em Cristo foi acompanhado por uma revelação nas
Escrituras correspondentemente suficiente, de modo que o princípio da
suficiência bíblica que Paulo descreve (2Tm 3.16-17), embora referente
ao Antigo Testamento, agora inclui ambos os Testamentos. Mas
enquanto o Novo Testamento estava sendo composto, o princípio
diretor, ou cânon, da igreja primitiva era múltiplo: o Antigo
Testamento, as diretrizes apostólicas, as profecias e aquelas partes do
Novo Testamento já escritas. Agora este cânon múltiplo, ou regra de fé
e de vida, dá forma a um cânon singular: as Escrituras do Antigo e Novo
Testamentos. Eles agora contêm “tudo de que Deus tem a dizer-nos
para a salvação, para nossa perfeita confiança e perfeita obediência”.
[179]
A implicação lógica da suficiência da Escritura consiste em que não
há mais necessidade de qualquer revelação adicional para a igreja ou
para o indivíduo. O que se necessita é iluminação. Daí a doutrina da
Reforma, sola Scriptura, contra a doutrina da Igreja Católica Romana
de que a Escritura e a tradição constituem igualmente a divina
revelação.[180] Este conceito de sola Scriptura encontrou expressão
clássica na afirmação dos doutores de Westminster:
“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias à glória
dele e à salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na
Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se
acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por
tradições dos homens...”.[181]

Isso nos leva diretamente ao “centro do vendaval” da controvérsia


em pauta. Nova revelação, seja na forma de tradição ou das tábuas de
ouro de Joseph Smith, destrói principalmente a suficiência da Escritura
e se torna de facto o fator dominante, pelo menos em certos pontos, no
cânon pelo qual o indivíduo vive. Portanto, não é patrocínio especial da
parte dos evangélicos alegar que as profecias recebidas por eles
funcionam de uma maneira totalmente diferente? Embora se negue que
se façam adições ao cânon da Escritura, não obstante fica implícito que
se está fazendo uma adição real ao cânon em existência. Do contrário, a
iluminação da Escritura e a sabedoria em aplicá-la seriam suficientes.
Não é próprio neste contexto sugerir (como Grudem e outros fazem)
que os que exercem profecia de segundo nível devem evitar de prefaciar
suas “profecias” com declarações tais como “Assim diz o Senhor”.
Afinal, Ágabo, no “exemplo” de profecia de segundo nível, prefacia suas
palavras com “Diz o Espírito Santo” (At 21.11). Essa é a linguagem
comum da profecia. Em termos de origens, autoridade e confiabilidade,
ela pertence exatamente ao universo do discurso que Atos em outra
parte usa da inspiração divina e da autoridade plenária da Escritura
(At 4.25; cf. 1.16; 28.25).
Entretanto, há um perigo oposto, ainda que não seja da mesma
magnitude. É possível que os cessacionistas rejeitem a genuína
iluminação precisamente porque ela é (falsamente em seu ponto de
vista) apresentada em termos da fórmula de revelação. Infelizmente,
mesmo a tese em prol da profecia de segundo nível se expõe a tal
reação. Expressar iluminação como se fosse revelação não enaltece os
legítimos discernimentos bíblicos.
Grudem mesmo sugere que a expressão “Assim diz o Senhor” deve
ser “dosada”, e parece concordar com Timothy Pain que seria mais
apropriado um fraseado mais ou menos assim: “Creio que o Senhor está
sugerindo algo como...”.[182] É correto sugerir que a primeira linguagem
gera certa confusão da “profecia de segundo nível” com a profecia
canônica. Mas, sem dúvida, precisamos avançar mais; pois nenhum
nível de profecia na Escritura é introduzido por “Creio que o Senhor está
sugerindo algo mais ou menos assim”. Falar assim é não falar profecia
nenhuma. O reconhecimento de que essa não é profecia em nenhum
sentido bíblico resolveria a dificuldade sem qualquer dano ao apagar o
Espírito tão temido pelos restauracionistas.
As fogueiras são intensificadas neste debate, não só pela
consequência doutrinal da suficiência da Escritura, mas pelos fatos
evidentemente rudes da experiência pessoal. Portanto, pode ser útil
distinguir entre negação da realidade de uma experiência e a diferença
na interpretação dela. Aqui, pode ser útil o princípio há muito
reconhecido de que há certa analogia na obra do Espírito na revelação e
sua obra na iluminação. E assim, por exemplo, o teólogo do século
dezessete, John Owen, um cessacionista, argumenta que, embora alguns
dons especiais na era neotestamentária não são mais dados à igreja,
alguns dons em continuação têm muito em comum com eles:
“Mas, embora todos esses dons e operações tenham cessado em algum
aspecto, alguns deles, em termos absolutos, e alguns deles, quanto ao modo
imediato de comunicação e grau de excelência, todavia, até onde a edificação
da igreja estava embutida neles, algo análogo a eles continuava e ainda
continua.”[183]

Por exemplo, há analogias importantes entre o ministério do


apóstolo e o ministério do pregador. A iluminação da mente ocorreu na
geração da revelação neotestamentária, mas também ocorre no
processo do estudo e do ensino bíblico: a Escritura, o Espírito e as
operações da mente humana se acham envolvidos em ambos os
contextos. Todavia, a existência da analogia não nos envolve em
confusão oriunda do vocabulário ou dos conceitos.
Aliás, em parte o problema aqui é de categorização. Os teólogos
têm-se esforçado muito em distinguir entre revelação e iluminação e às
vezes têm sido mais fortes na exposição da primeira categoria. Por um
lado, a neo-ortodoxia tem-se inclinado a misturar e mesmo a confundir
revelação e iluminação, de tal modo que a revelação não é real
enquanto não houver iluminação. Do outro, o perigo carismático é
confundir iluminação com revelação de maneira tal que a diferença
entre a revelação apostólica e nossa compreensão e resposta a ela corre
o risco de, de facto, desmoronar. Se a revelação especial de Deus
continua de uma maneira extrabíblica, há uma probabilidade
psicológica de que a mesma venha a exercer uma função canônica. É
curioso que os evangélicos, que tão amiúde têm assumido que esta é
uma falha fatal na doutrina católico-romana de revelação contínua
extrabíblica (na tradição), não reconheçam o paralelo dentro do
protestantismo.
O Espírito não deve ser apagado, nem desprezada a profecia (1Ts
5.19-20). Toda a iluminação e discernimento dados pelo Espírito devem
ser recebidos e acolhidos pelo que são. Todavia, categorizá-los como
profecia é antes de tudo confundir a obra do Espírito, a já completada e
a contínua, e, pior ainda, distrair o povo de Deus no tocante à
suficiência da Escritura.
O que dizer, pois, das línguas? Pode o ponto de vista cessacionista
realmente evitar a evidência da experiência de milhões de cristãos
contemporâneos? Não obstante, há uma discordância básica muito
difundida sobre o que realmente constitui o fenômeno das línguas. Elas
constituem um idioma (celestial ou terreno)? São uma vocalização? São
idênticas às experiências em Atos dos Apóstolos? Há dois tipos de
línguas na Escritura? E ambos os tipos estão em vigência hoje? Essas
perguntas sublinham a dificuldade de se aceitar as reivindicações
contemporâneas em face de seu valor, particularmente quando diferem
umas das outras ou se contradizem. Com o devido respeito, será difícil
afirmar, como o faz Gordon Fee, que é “provavelmente algo irrelevante”
se falar em línguas, em termos tanto contemporâneos quanto os de
Corinto, é idêntico quando há uma relação análoga entre ambos (i.e.,
um tipo de equivalência funcional).[184]
Como já argumentamos, se há somente um tipo de falar em línguas
na Escritura, e esse provém de uma capacitação dada pelo Espírito para
falar idiomas estrangeiros ordinariamente desconhecidos de quem fala,
então, totalmente à parte de argumentos teológicos, muito do que é
reivindicado como sendo línguas “bíblicas” não pode identificar-se com
o fenômeno neotestamentário. Na melhor das hipóteses, ele é
vocalização espontânea, quer deliberadamente praticada, quer
espontaneamente evocada.
Tais atividades, como amplamente reconhecidas, induzem a um
senso de bem-estar psicológico. Não surpreenderia totalmente se isso
produz nos cristãos uma euforia que, por ser interpretada por uma
grade centrada em Cristo, é diferente da experiência da vocalização
espontânea num contexto não cristão. Não precisa ser considerada
como demoníaca (mesmo que em alguns contextos venha a ser uma
expressão do demoníaco); não deve ser considerada mais espiritual do
que falar nosso idioma, e em muitos aspectos menos que isso.[185] E
mesmo a vocalização espontânea, se sua significação for mal
interpretada, pode levar às mais sinistras repercussões.
Nenhum cristão de pensamento sóbrio negaria que Deus continua
em atividade no mundo, fazendo coisas maravilhosas em favor de seu
povo, especialmente em resposta às suas orações, conservando
fielmente suas promessas. É ainda oportuno para o enfermo não só
consultar um médico, mas também “chamar os presbíteros da igreja
para que orem por ele e o unjam com óleo em nome do Senhor”. A
promessa permanece sendo que “a oração oferecida com fé fará bem à
pessoa enferma, e o Senhor a levantará” (Tg 5.14, 15). Pessoas
continuam sendo curadas por Deus – através de meios, acima deles e
mesmo contra eles.[186] Aliás, escreve John Owen, “Não é improvável
que Deus, em determinadas ocasiões, por mais de uma vez, manifeste
seu poder em algumas operações miraculosas.”[187] Entretanto, seria
um sério equívoco tirar conclusão daí que tais eventos são normativos
ou que em tais eventos indivíduos estão novamente sendo coroados com
os dons do Pentecostes. É um equívoco imaginar que devamos tentar
categorizar cada elemento da experiência contemporânea dessa forma.
Tentar fazer isso seria equivalente a assumir que somos
sistematicamente capazes de analisar e categorizar todos os eventos e
experiências que constituem as providências divinas.

Uma Explicação?
Como, pois, podemos explicar os fenômenos sobre os quais tantos
testificam? A pergunta é legítima, mas de modo algum é fácil. Ela traz
certas dificuldades tanto para os continuístas quanto para os
cessacionistas. A dificuldade para o ponto de vista continuísta é
explicar a diferença existente entre o século vinte [e um] e todos os
séculos anteriores da história da igreja. Em contrapartida, como
podemos explicar a experiência de trezentos e cinquenta milhões de
pessoas, a maioria das quais afirma falar em línguas, muitas das quais
afirmam profetizar, enquanto outras afirmam curar?
Distintos de outras diferenças teológicas (a saber, sobre a relação
entre o corpo de Cristo e o pão da Ceia do Senhor), esses fenômenos são
observáveis e medíveis. Os fatos parecem falar por si sós. Contudo, esse
é precisamente o cerne do problema: o fenômeno é de fato
experienciado, porém não é uma realidade autointerpretativa. Isso se
aplica igualmente às línguas e à profecia, palavras de sabedoria e
conhecimento, bem como à operação de milagres e cura por mãos
humanas. Um importante elemento de interpretação, apesar de
largamente desconsiderado, é envolvido no continuinismo.
Já observamos isso anteriormente com respeito às línguas. No caso
da profecia, seria mais consistente com sua natureza revelatória (e,
portanto, sua função existencialmente canônica) para os continuístas
reconhecerem que suas percepções da palavra de Deus e seu senso do
propósito dele não são real e absolutamente profecia, e sim iluminação,
percepção falível e aplicação contemporânea da verdade bíblica.
Além do mais, o que dizer da recorrência do dom neotestamentário
de cura? Este, seguramente, é um “fato brutal”. Aqui se faz necessário
agir com muito cuidado. Deus continua a responder às orações de seu
povo por cura (Tg 5.14, 15). A convicção de que certos dons exercidos
por indivíduos, no Novo Testamento, não se destinavam a ter
continuidade na igreja de maneira permanente não deve ser tomado no
sentido de que Deus não mais opera de forma gloriosa e sobrenatural
em favor de seu povo. Mesmo que a alguém fosse assegurado o que às
vezes é tão prontamente feito, ou seja, que a cura é muito mais
frequente entre os continuístas do que entre os cessacionistas, a razão
pode não estar no grau interpretativo adotado, e sim na fé que busca (e
que pode até mesmo antecipar) a intervenção de Deus.
A única ajuda que nos é dada no Novo Testamento para analisar
os “dons de cura” (1Co 12.9, 30) retrata este dom em termos dos quais
as reivindicações contemporâneas guardam pouca lembrança. Um
número maciço de curas é efetuado; defeitos congênitos são curados;
coxos de nascença são imediatamente capazes de andar; não há
qualquer registro de fracasso, seja em parte ou total, nenhuma sugestão
de reincidência e, presumivelmente, nenhuma vem à nossa imaginação.
Essa é uma ordem de fatos reais, diferente da realidade contemporânea.
Deus é ainda Javé que cura (Gn 15.26); mas ele não tem nenhuma nova
revelação a dar que seja atestada e dada a indivíduos por meio de “dons
de cura”. A única nova revelação que devemos antever é o aparecimento
final de Jesus Cristo. Aí, então, a cura sem precedente e final ocorrerá
na maior de todas as escalas.
O mesmo princípio acontece bem mais amplamente com respeito à
“experiência” do batismo com o Espírito Santo. “Experiência” que, às
vezes, tem estado estreitamente ligada ao continuinismo. Não é
necessário negar a experiência com o divino; somente a interpretação
dela. O que tem sido um equívoco em relação ao batismo pós-conversão
com o Espírito poderia não passar de uma nova emoção provinda do
Espírito, uma nova plenitude de certeza e alegria, uma nova ousadia em
dar vazão à fé em Cristo. Isso não se prova experimentalmente uma vez
por todas na primeira sensação proveniente do Espírito que ocorre na
regeneração, na conversão e no batismo com o Espírito.
Se esse é o caso, então tudo indica que houve uma má
interpretação em grande escala no século vinte. Até onde isso procede,
uma reinterpretação que fixe a experiência em um maior número de
categorias bíblicas, não só produzirá uma harmonia teologicamente
mais ampla na doutrina do Espírito Santo; também unirá a experiência
à verdade de uma forma tal que maior estabilidade e mais rico fruto do
Espírito serão gerados na vida e no caráter da igreja de Jesus Cristo.
Este, além de tudo, é o alvo ao qual se direciona todos os dons do
Espírito (cf. Ef 4.7-16).

O Espírito e a Pregação
Nas listas que o Novo Testamento apresenta, é dado um lugar central
aos dons para o ensino e a pregação da Palavra de Deus. Isso já era
verdadeiro nos dias apostólicos, como deixa transparecer claramente o
ministério dos apóstolos.
O ministério de Paulo em Éfeso exibe este enfoque com grande
clareza. Ele chegou a ser caracterizado pelos sinais confirmativos do
ministério apostólico até mesmo além do normal: “Deus fazia milagres
extraordinários...” (At 19.11). Todavia, a peça central da obra de Paulo
foi a preleção na escola de Tirano, onde por dois anos ele ensinou
diariamente aos discípulos. Seu comentário pessoal sobre aquele
período de sua vida é iluminador: ensinou aos efésios, pregou o reino e
proclamou todo o conselho de Deus (At 20.20; 25; 27). De fato, uma
tradição textual sugere que ele fez isso até durante o período da sesta
(descanso) diária, por várias horas, talvez por cinco horas a fio, a cada
dia.
À luz disto, as instruções de Paulo a Timóteo, que ultimamente
estava ministrando em Éfeso, adquire uma significação especial. O foco
de sua atenção é posto no papel central do ensino e pregação bíblicos
no período pós-apostólico. Timóteo devia dar atenção não só à leitura
(1Tm 4.13), mas devotar-se ao manejo da Palavra de Deus com eficácia
(2Tm 2.15). Deveria pregar de tal maneira que ficasse bem claro como a
Escritura é “útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça”. Enquanto assim pregasse a palavra, ele
deveria “corrigir, repreender e encorajar – com grande paciência e
criteriosa instrução” (3.16–4.2; a divisão normal de capítulo não é
muito feliz aqui).
Nesta conexão, Paulo considera a palavra de Deus como “a espada
do Espírito” (Ef 6.17), com isso tendo em mente não só que ela foi
forjada pelo Espírito (inspiração), mas também que ela é empregada
pelo Espírito com poderoso efeito (cf. Hb 4.12-13). Através dela, o
Espírito honra a Cristo e produz convicção de pecado (Jo 16.8-11), como
ele fez através da pregação de Pedro no Dia de Pentecostes. Embora a
proclamação feita pelas línguas tenha impressionado alguns dos que a
ouviram, foi a pregação que Pedro fez com base nas Escrituras que
efetuou a conversão de três mil pessoas.
Em outra parte, Paulo indica o que está no cerne de comunhão tão
eficaz. Ela não provém de nenhuma retórica, sabedoria ou oratória
humanas, mas do poder — a marca registrada do Espírito (cf. At 1.8).
Sua pregação aos coríntios foi “não com sabedoria e palavras
persuasivas, mas com a demonstração do poder do Espírito” (1Co 2.4).
Sua pregação aos tessalonicenses foi de um caráter semelhante: “nosso
evangelho veio a vós não simplesmente com palavras, mas também com
poder, com o Espírito Santo e com profunda convicção... recebestes a
mensagem com alegria produzida pelo Espírito Santo” (1Ts 1.5, 6).
Várias coisas caracterizavam tal pregação. A primeira era o
evidente enfoque de Paulo centrado na pessoa e obra de Cristo (1Co
1.23; 2.2) e, particularmente, no Cristo crucificado como o poder e
sabedoria de Deus. A segunda era a maneira como ela se adequava na
grade da função das Escrituras dadas pelo Espírito (ensino, repreensão,
correção e cura, e treinamento na justiça, cf. 2Tm 3.16–4.2). A terceira
era o contexto no qual ela era posta na vida do pregador. Aqui se torna
relevante nossa discussão anterior sobre a união com Cristo, pois a
poderosa pregação de Paulo parece ter sido com frequência um
correlato de sua experiência de provações e angústias. Ele vivia em
Corinto “em fraqueza e temor, e... muito tremor” (1Co 2.3). Foi na
incitação do sofrimento e insulto em Filipos que ele pregou em
Tessalônica de forma muito frutífera (1Ts 2.2). Em Cristo ele era fraco,
ainda que vivesse com Cristo para servir em seu ministério (2Co 13.5).
A marca registrada da pregação que o Espírito efetua é a “ousadia”
(parrhēsia=pan+rhēsis, At 4.13, 29, 31; Fp 1.20; cf. 2Co 7.2). Como no
Antigo Testamento, quando o Espírito enche o servo de Deus, ele “se
veste” com essa pessoa, e os aspectos da autoridade do Espírito são
ilustrados na corajosa declaração da palavra de Deus. Essa ousadia
parece envolver exatamente o que ela denota: há liberdade de
expressão. Obtemos vislumbres ocasionais disto em Atos dos Apóstolos.
O que foi dito do antigo pregador da Nova Inglaterra, Thomas Hooker,
se torna uma visível realidade: quando ele pregava, os que o ouviam
sentiam como se ele tivesse tomado um rei e posto em seu bolso! Há um
senso de harmonia entre a mensagem que está sendo proclamada e o
modo como o Espírito se veste com o mensageiro. Aqui as cortantes
palavras de Gordon Fee certamente acertam o alvo:
A oratória polida às vezes ouvida dos púlpitos, onde o próprio sermão parece
ser o alvo do que se diz, causa admiração se o texto for ouvido. O próprio
ponto de Paulo requer uma nova audição. O perigo está sempre em deixar a
forma e o conteúdo substituir aquilo que deve ser a única preocupação: o
evangelho proclamado através da fragilidade humana, mas acompanhado
pela poderosa obra do Espírito, de tal sorte que as vidas são transformadas
pelo encontro do divino-humano. Isso é difícil de se ensinar num curso de
homilética, mas ainda permanece como a verdadeira necessidade na pregação
genuinamente cristã.[188]

A pregação da palavra de Deus é o dom central do Espírito, dado


por Cristo à igreja. Por meio dela a igreja é edificada em Cristo (Ef 4.7-
16). Provar-se-á ser um dos enigmas da vida eclesiástica
contemporânea, quando visualizada à luz de alguma era futura, que a
abdicação da qualidade e da confiança na exposição da Escritura e a
fascinação com a imediação das línguas, interpretações, profecia e
milagres eram coincidências?
A vida eclesiástica contemporânea, quando visualizada à luz de
alguma era futura, não nos provará que um dos seus enigmas, qual
seja, a abdicação da qualidade e da confiança na exposição da Escritura
e a fascinação com a imediação das línguas, interpretações, profecia e
milagres, eram coincidência?

[154] Wayne Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today
(Westchester, IL: Crossway, 1988), pp. 45-63.
[155] O ponto de vista de que Efésios 2.20 deva ser considerado como um fato controlador
nesta discussão tem sido criticado por Grudem e seu colega, D. A. Carson. A crítica que
Carson faz a este ponto de vista como apresentado por Richard B. Gaffin, Jr., é
particularmente severa, para não dizer acerba. Ele argumenta: “É tão ilegítimo para
Gaffin usar este versículo como o fator controlador em seu entendimento do dom
neotestamentário de profecia como seria concluir à luz de Tito 1.12 (“Foi mesmo dentre
eles, um seu profeta que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres
preguiçosos”) que os profetas neotestamentários eram poetas pagãos de Creta” (D. A.
Carson, Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12.–14 [Grand
Rapids, MI: Baker Book House, 1987], p. 97). Essa é uma crítica infeliz. Considerar Tito
1.12 como uma afirmação controladora seria prima facie [diretamente] burlesca. Mas se
Efésios 2.20, como muitos comentaristas sustentam, se refere a dois ofícios, ele
inevitável e necessariamente, exerce uma função controladora, porque explicitamente
afirma que esses ofícios são fundamentais. Considerar isso como “um uso anômalo de
‘profetas’ no Novo Testamento”, como Carson faz, é seguramente um mal-entendido, em
vista da precedência consistente dada à profecia no ministério fundamental, porém não
necessário, de pastores e mestres (cf. Rm 12.6-8; 1Co 12.28; Ef 4.11), tanto quanto os
evangelistas.
[156] Como amostra representativa de estudos, ver Gordon Fee, The First Epistle to the
Corinthians (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1987), pp. 652-698; A. Bittlinger, Gifts and
Graces: A Commentary on 1 Corinthians 12–14 (Londres: Hodder & Stoughton, 1967);
Gunther Bornkamm, Early Christian Experience, tr. Paul L. Hammer (Londres: SCM Press,
1969); A. A. Hoekema, What About Tongues-Speaking? (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1967); Carson, op. cit.; O. P. Robertson, A Palavra Final (São Paulo: Editora os Puritanos,
1999, tradução de Valter Graciano Martins); W. J. Samarin, Tongues of Men and Angels:
The Religious Language of Pentecostalism (Nova York: Macmillan, 1972).
[157] Ver Richard B. Gaffin, Jr., Perspectives on Pentecost (Phillipsburg, NJ: Presbyterian
& Reformed, 1979), p. 75.
[158] Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Lanham, MD: University of
America Press, 1982); idem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today
(Wstchester, IL: Crossway e Eastbourne: Kingsway, 1988); idem, Systematic Theology
(Grand Rapids: Zondervan e Leicester: Inter-Varsity Press, 1994). Para uma breve
discussão, ver Roy Clements, Word and Spirit: The Bible and the Gift of Prophecy Today
(Leicester: UCCF, 1986). Graham Houston, Prophecy Now (Leicester: Inter-Varsity Press,
1989); US ed. Prophecy: A Gift for Today [Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1989], é
uma bem-vinda contribuição do método como a profecia contemporânea pode manifestar-
se.
[159] Ver Platão, Timaeus, 71b; Phaedrus, 244a – d.
[160] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 90.
[161] Ver também o apelo a Ágabo em D. Hill, “Christian Prophets as Teachers or
Instructors in the Church”, em J. Panagopoulos (ed.), Prophetic Vocation in the New
Testament and Today (Novum Testamentum Supplement 45; Leiden: Brill, 1977), p. 124.
[162] Gridem, op. cit., p. 93.
[163] Ibidem, p. 94.
[164] Ibidem, p. 96.
[165] Grudem, Systematic Theology, p. 1052. Ele apela para a Epístola aos Filipenses de
Inácio, 7.1-2, e a Epístola de Barnabé, 6.8; 9.2, 5.
[166] As passagens para as quais Grudem apela refletem o teste da Escritura; não é
possível, com base em leitura natural delas, alinhá-las com a ideia de autoridade de
segundo nível ou apenas exatidão relativa.
[167] Grudem, Systematic Theology, p. 1052.
[168] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 96.
[169] John Murray, “The Guidance of the Holy Spirit”, em Collected Writings of John
Murray (Edinburgo: Banner of Truth, 1976), vol. 1, p. 188.
[170] J. H. Newman, Two Essays on Biblical and Ecclesiastical Miracles (Londres: 1873),
pp. 261-270.
[171] Esta é a acusação de Jon Ruthven contra o Counterfeit Miracles de B. B. Warfield
(Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1918; Londres: Banner of Truth, 1972). Seu
cessacionismo, argumenta Ruthven, se baseia num racionalismo radicado no ponto de
vista iluminista de milagre posto dentro do contexto do senso comum do realismo
escocês. Ver Jon Ruthven, On the Cessation of the Charismata: The Protestant Polemic
on Postbiblical Miracles (Journal of Pentecostal Theology Supplement Series 3; Sheffiel:
Sheffield Academic Press, 1993), especialmente pp. 41-111. Warfield de forma alguma
escreveu a última palavra sobre este tópico. Mas, totalmente à parte de outros críticos
dos argumentos de Ruthven, ele certamente não quis sugerir que seja racionalismo
iluminista não adulterado examinar, por exemplo, os relatos dos dons miraculosos de
Gregório Taumaturgo. Em tais contextos, não se deve dizer nada em prol do senso comum
escocês?
[172] Em sua crítica contra Warfield, Ruthven apela, por extenso, para 1 Coríntios 4.1-8;
Efésios 4.7-13 e para várias outras passagens nesta conexão. Op. cit., pp. 123-187.
[173] Para a qualidade imperfeita de espelhos antigos, ver C. Spicq, Theological Lexicon
of the New Testament (Peabody, MA: Hendrickson, 1994), vol. 2, pp. 73-76.
[174] Carson, op. cit., p. 70.
[175] Gaffin, op. cit., pp. 109-110.
[176] Institutas, Prefácio Dirigido ao Rei Francisco I de França.
[177] Cf. E. Earle Ellis, “Prophecy in the New Testament Church and Today”, em
Panagopolous (ed.), op. cit., p. 53.
[178] Max M. B. Turner contesta que falar em termos de “a perigosa possibilidade de uma
nova revelação oficial” é realmente “uma tentativa de desviar o assunto” (“Spiritual Gifts
Then and Now”, Vox Evangelica, 1985, p. 55). Isso, porém, ignora o fato de que toda
revelação divina é de caráter oficial.
[179] Grudem, Systematic Theology, p. 127; cf. The Gift of Prophecy in the News
Testament and Today, p. 299.
[180] Algumas vozes dentro de Roma têm argumentado, seguindo a J. R. Geiselmann, que
as formulações do Concílio de Trento podem ser lidas de uma maneira que se harmonize
com sola Scriptura, afirmando que os pais tridentinos ensinaram que a tradição não traz
tanto acréscimo à Escritura, mas que contém o iluminado discernimento da igreja do
conteúdo da Escritura. Cf. J. R. Geiselmann, “Scripture, Tradition, and the Church: An
Ecumenical Problem”, em D. J. Callahan, H. A. Oberman e D. J. O’Hanlong (eds.),
Christianity Divided (Londres: Sheed & Ward, 1962), pp. 39-72. Ver, porém, a réplica de
J. Ratzinger, Cardeal Prefeito da Sacra Congregação da Doutrina da Fé: “como um teólogo
católico [Geiselmann], tem de defender os dogmas católicos como tais, mas nenhum
deles de ser tido como sola scriptura ...” (K. Rahner e J. Ratzinger, Revelation and
Tradition, tr. W. J. O’Hora [Nova York: Herder & Herder, e Londres: Searche Press, 1966],
p. 33).
[181] Confissão de Fé de Westminster, I.vi.
[182] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 113.
[183] John Owen, A Discurso of Spiritual Gifts, em The Works of John Owen, ed. W. H.
Goold Edinburgo: Johnstone & Hunter, 1850-53), vol. 4, p. 475; cf. p. 454.
[184] Gordon D. Fee, God’s Empowering Presence (Peabody, MA: Hendrickson, e Caarlisle:
Paternoster, 1994), p. 890.
[185] Cf. a discussão de J. I. Packer em Keep in Step with the Spirit (Old Tappan, NJ:
Revell e Leicester: Inter-Varsity Press, 1984), pp. 202-213, especialmente p. 211.
[186] Ver Confissão de Fé de Westminster, V.iii.
[187] Owen, op. cit., p. 475.
[188] Fee, op. cit., pp. 96-97.
11
O ESPÍRITO CÓSMICO

A igreja tem falado através dos séculos do Spiritus creator, o Espírito


criador. O Novo Testamento mostra, em variadas e diferentes formas,
que esta obra na vida, no ministério, na morte e ressurreição de Cristo
deve ser vista como a inauguração de uma nova criação através do
segundo homem e último Adão; ele é o Spiritus recreator. O que já havia
sido concretizado em Cristo pelo Espírito é agora reduplicado na nova
humanidade pelo mesmo Espírito.
O Espírito que pairava sobre as águas no primeiro dia da criação
também pairou sobre a virgem Maria na concepção da cabeça da nova
criação, Jesus. Ora, nos dias atuais (que também constituem “os
últimos dias”), o mesmo Espírito paira sobre homens e mulheres para
produzir-lhes, “de cima”, o novo nascimento.
Surge aqui a seguinte indagação, na pneumatologia não menos que
na cristologia: Qual é a relação entre a ordem das coisas criadas e a
ordem redimida? Na cristologia é comum falar-se sobre o Cristo
cósmico. O Criador é também o Redentor; nele todas as coisas serão
reconciliadas (Cl 1.19, 20). O cosmos atual encontra seu sentido último
no cosmos futuro, visto que seu destino está encerrado no futuro dos
filhos de Deus (Rm 8.20, 21).
Então, o que dizer do Espírito? Se ele é o Espírito criador, podemos
também falar dele como o Espírito cósmico, de modo que os propósitos
de Deus para o mundo como tal, não meramente para os indivíduos,
nem ainda para a igreja, estão conduzindo tudo à consumação através
de seu ministério? Esta se tornou uma ênfase comum na teologia
moderna, às vezes expressa de uma forma distintivamente pós-
iluminismo. O maior impacto epistemológico do iluminismo na teologia
está na rejeição do transcendente como cognoscível. Ele não se revelou
através do imanente. Esse desvio manifestou-se de muitas maneiras.
Em termos da doutrina do Espírito Santo, ele emergiu na perda da
confiança na fórmula trinitária ortodoxa, na qual o Espírito era visto
como a terceira pessoa de um Deus que não pode ser conhecido, e como
alguém que serve como o executivo do Pai e do Filho. O “Espírito” veio
para ser concebido no imanente, mas em termos não pessoais. O
resultado foi um tipo de teologia de imanência trinitária: o Espírito é
Deus identificando-se com o mundo. O panteísmo característico do
recente processo da teologia é uma expressão disto: no Deus como
Espírito é que vivemos e nos movemos e temos nossa existência. Ele não
está longe de nós; a experiência dele e a nossa se acham
inextricavelmente jungidas e mutuamente interdependentes.

Universalismo
O universalismo de vários tipos é característico de tal teologia. Embora
não confinado ao protestantismo liberal, ele é característico dessa
perspectiva de ver o Espírito de Deus em ação de uma forma unificadora
em todos os povos e religiões. O cristianismo pode ser o ápice, mas não
está antiteticamente relacionado com outras religiões; o mesmo Espírito
pode ser delineado em todas as maiores “crenças” e ainda em nenhuma.
O reconhecimento da presença e atividade cósmicas do Espírito tornou
assim obsoleta a antiga e radical substituição da teoria missionária (de
que Cristo deve substituir todas as demais divindades rivais). Tal
exclusivismo é contrário ao Espírito, é equivocado, intolerante,
colonialista e protetor. Reivindicando a capacitação do Espírito, a igreja
desvirtua a significação do Espírito. No rastro dessa teologia, os Boards
de Missão Mundial têm-se convertido em Boards de Missão Mundial e
Unidade. Somos um em Cristo e há um só Espírito que transcende a
resposta humana à revelação.
Stanley J. Samartha dá expressão a esta abordagem (que veio a
caracterizar em grande medida a obra do Concílio Mundial de Igrejas)
quando escreve: “Por onde quer que os frutos do Espírito são
encontrados... quer na vida dos cristãos ou amigos de outras crenças,
acaso o próprio Espírito de Deus não está presente?”[189]
Isso é amplamente interpretado não só como um reconhecimento
da benevolência geral de Deus e sua sustentação da ordem cósmica,
guardando a criação de sua tendência rumo ao caos, mas também de
sua graça redentora. Particularmente entre os teólogos católico-
romanos, isso chegou a ser expresso em termos da doutrina dos assim
chamados “cristãos anônimos”. Por essa doutrina, busca-se uma forma
de manter o antigo princípio católico extra Ecclesiam nulla salus est[190]
(“fora da Igreja não há salvação”), embora se admita a salvação no
sentido corrente (se não necessária e totalmente universal, no sentido
origenista de apokatastasis).
Karl Rahner, que se associa com frequência à ideia do cristão
anônimo, dá expressão a uma maior força propulsora por detrás desta
abordagem quando sugere que o cristão não pode aceitar que “a
esmagadora massa de seus irmãos... seja inquestionavelmente e em
princípio excluída... e condenada à miséria eterna”.[191]
Ele apela para os princípios teológicos do pacto noético, o qual, diz
ele, é selado em Cristo em prol de todos, e a convicção paulina de que
Deus é o Salvador de todos, especialmente dos que creem (1Tm 2.4). Ele
assim baseia a convicção de que, em Cristo, a salvação deve
fundamentar-se no que acontece no coração, pelo Espírito, não na
compreensão cognitiva de proposições teológicas sobre Cristo. No
pensamento de Rahner, a existência humana é em si mesma “ordenada
pelo insuperavelmente Absoluto”. O homem, pois, aceita a revelação até
onde ele realmente se aceita; ao agir assim, ele aceita Cristo, que é a
revelação de Deus.
Inevitavelmente, Rahner tem sido criticado no seio do catolicismo
romano, de ambos os lados: por Hans Urs von Balthasar ao tornar
relativa a unicidade da revelação real de Cristo no evangelho; e, em
contrapartida, por Hans Küng ao denegrir as religiões não-cristãs, por
sua ênfase sobre o Cristo-revelação! Mas o princípio católico ao qual
Rahner dá expressão tem-se provado muitíssimo atraente a muitos,
como deixou em evidência o Segundo Concílio Vaticano, em seu Decree
on Ecumenism em The Constitution of the Church. Expressões disto
variam, mas no seio do agostinianismo católico-romano, com sua
ênfase sobre a ideia do amor, tem-se tornado comum afirmar que, uma
vez que o fruto do Espírito é o amor, onde quer que o amor se manifeste,
ali o Espírito de Deus está em ação.[192] De uma forma inesperada, aqui
parece emergir, curiosamente, a religião de “o homem na rua” e a
sofisticada pneumatologia dos teólogos modernos.
Quando consideramos esta ênfase sobre o ministério cósmico e
universal do Espírito à luz das afirmações explícitas do Novo
Testamento, imediatamente encontramos um dado surpreendente. O
Novo Testamento coloca o Espírito e o mundo num relacionamento
antitético, não conciliatório. O mundo não pode ver nem conhecer o
Espírito (Jo 14.17); o Espírito convence o mundo (Jo 16.8-11); o espírito
do mundo e o Espírito de Deus são um contra o outro (1Co 2.12-14; 1Jo
4.3).
Este princípio, característico da mais antiga teologia conservadora,
foi declarado com grande vigor por W. H. Griffith Thomas em seu Stone
Lectures, em Princeton, em 1913:
“Embora a maioria dos escritores modernos, no que diz respeito a este tema
do Espírito Santo, fale do Espírito como que relacionado com o mundo da
humanidade, nada é mais notável do que o simples fato de que não se pode
descobrir no Novo Testamento nem uma única passagem que se refira à ação
direta do Espírito no mundo... mesmo os que favorecem o ponto de vista da
ação do Espírito Santo sobre o mundo, fracassam quando tentam apresentar
em seu favor uma evidência neotestamentária definida.”[193]

Thomas argumenta que não podemos atribuir ao Espírito Santo


“todos os esforços da consciência no mundo pagão”.[194] Ele atribui isso
ao Logos, e não ao Espírito. Essa é uma divisão questionável de
trabalho, mas há uma interessante corroboração de sua perspectiva
geral na obra de Gordon Fee, God’s Empowering Presence.[195] No curso
de um estudo exegético maciço de quase mil páginas sobre o ensino de
Paulo acerca do Espírito Santo, não se faz nenhuma menção do
relacionamento entre o Espírito e o cosmos.
O que faremos com isso? Se o Antigo Testamento pode falar do
Ciro pagão, ungido por Deus para cumprir sua vontade (Is 45.1), não se
deve deduzir disso que o Espírito de Deus estará em ação ainda mais
ampla e generosamente na época em que tem sido derramado sobre
toda carne? Acima de tudo, não servem os sete espíritos enviados por
toda a terra (Ap 1.4; 5.6-7) como símbolos daquele Espírito de Deus que
sustenta todas as coisas como um executivo imanente do Ser de Deus?
E, sendo verdade, mesmo admitindo a autoria mosaica, que Gênesis 1.2
foi escrito à luz da obra do Espírito no Êxodo (cf. Is 63.9-14), não se
deve esperar também que o Espírito, que é o executivo do novo êxodo em
Cristo (cf. Lc 9.31), possa ser considerado como o Espírito cósmico,
ativo em e através de tudo, bem como Aquele que conduz tudo à
comunhão com Deus?
O mais sábio enfoque teológico, aqui como em outra parte, é
sempre remover as aparências das afirmações bíblicas concretas para
princípios estabelecidos a fim de, somente então, extrapolar as
generalizações mais amplas. Qualquer outro procedimento é carente de
controle e perde a capacidade de exercer discriminação com respeito à
identificação da obra do Espírito que, como já vimos, nunca cessa de ser
misteriosa.
Um interessante exemplo dessa problemática aparece na afirmação
feita pelo teólogo holandês, Hendrikus Berkhof. Eis seu argumento:
“A Revolução Francesa, com seus ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, teve muito mais a ver com Jesus Cristo do que tiveram os que a
resistiram em nome dele. Depois da Revolução Francesa testemunhamos a
emancipação dos escravos, das mulheres, dos trabalhadores, das raças
negras. Desde a Segunda Guerra Mundial, esse movimento revolucionário
avança com rapidez acelerada por todo o mundo. O poder libertador e
transformador do Espírito de Jesus Cristo está em ação por toda parte onde os
homens são livres da tirania da natureza, do estado, da cor, da casta, do sexo,
da pobreza, da doença e da ignorância. Eugene Rosenstock fala neste contexto
ainda de uma mudança biológica na natureza do homem. Prefiro falar de uma
mudança pneumatológica. As velhas estruturas da vida humana, com seus
efeitos desumanizadores, são substituídas pelos poderes transformadores do
Espírito.”[196]

Berkhof prossegue falando desta obra do Espírito como parte da


conformação da raça humana à sua cabeça — Jesus Cristo.
Surge a pergunta: o Espírito opera dessa maneira sem referência à
revelação de Cristo e sua obra, e sem evocar a fé viva? Por qual cânone
de critério somos capazes de detectar a obra do Espírito no mundo,
aprová-la e unir-nos a ela? Como sabermos qual é o Espírito de Deus e
qual é o espírito deste século? Se é verdade que o Espírito está engajado
na atividade que parece ser resistida por cristãos professos (como
sugere Berkhof ser o caso no tempo da Revolução Francesa), então se
torna ainda mais urgente para a igreja uma resposta a esta pergunta.
Nesta conexão, um princípio hermenêutico comum se emprega
amiúde, o qual envolve identificação e universalidade: se o que é
afirmado for verdadeiro quanto ao indivíduo em particular na Escritura,
então presume-se ser verdadeiro no tocante à totalidade da
humanidade mutatis mutandis. Para ilustrar: à luz do fato de que o
Espírito dotou Bezalel com dons de desenhar e artesanar (Êx 31.1-15),
presume-se que todos os dons artísticos, quanto mais usados, são dotes
gerais do Espírito. Portanto, que objeção se poderia fazer à
reivindicação de Nancy Sinatra, em sua biografia de seu pai, Frank
Sinatra: A American Legend, de que, “de alguma maneira muito
profunda, o Espírito Santo se move e habita nele” – mesmo quando
canta “I did it my way” [“Eu fiz meu caminho”]?[197] O problema surge
quando tais dons, atribuídos ao Espírito, tendem a ser confundidos com
as marcas dos laços pactuais da salvação. Isso pressupõe demais. É
apropriado crer, com Calvino e muitos outros, que toda a veracidade da
verdade divina, mesmo quando se encontra na boca dos ímpios, e todos
os dons positivos nos vêm de cima (Jo 1.17). Não obstante, é uma coisa
totalmente distinta pressupor que essa é uma evidência da presença
salvífica e transformadora do Espírito.
Além disso, é simplista o argumento, com base em Romanos 8.28,
de que o Espírito está operando em todas as coisas. Na verdade, o que
Paulo afirma é restritivo: Deus opera para o bem daqueles que amam a
Deus e que foram chamados segundo seu propósito, o que
imediatamente é descrito nos termos soteriológicos da justificação e
glorificação. Ele não está aqui fazendo uma afirmação geral que pode
estar implícita universalmente.
Não obstante, segundo a Escritura, somos feitos imagem de Deus, e
em algum sentido permanecemos assim ainda em nossa condição
apóstata. O que Eliú diz no livro de Jó é um princípio universal: “Na
verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz
sábio” (Jó 32.8). Jó, pessoalmente, confirma a precisão disto: “O
Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida” (Jó
33.4).
Ricas, variadas e extraordinárias capacidades e habilidades estão,
portanto, presentes na raça humana, porque o Espírito continua sua
obra como o executivo de Deus em relação à ordem criada. Ele é o
ministro da bondade de Deus no tocante ao justo e ao injusto
igualmente (Mt 5.45). Mas essas são exibições da misericórdia
restringente de Deus enquanto seu Espírito contende com o homem (Gn
6.3). Sem isso, o mundo ou se destruiria ou seria destruído. A
misericórdia é real, mas não é arbitrária. Ela se põe dentro de limites e
tem em vista o arrependimento (Rm 2.4; 2Pe 3.3-9). É neste único
contexto que esse ministério geral do Espírito deve ser admitido. Ainda
mais porque é evidente no Novo Testamento que mesmo o exercício dos
“dons espirituais” jamais deve ser identificado com a obra do Espírito
na graça salvífica. É possível que aqueles estejam presentes onde esta
esteja dolorosamente ausente.
À vista disto, é mais sábio dizer com Calvino:
“Não devemos esquecer os mais excelentes benefícios do divino Espírito, os
quais ele distribui a quem ele quer, para o bem comum do gênero humano. O
entendimento e conhecimento de Bezalel e Ooliabe, necessários à construção
do tabernáculo, tiveram que ser instilados neles pelo Espírito de Deus (Êx
31.2-11; 35.30-35).

Não é de admirar, pois, que o conhecimento de tudo o que é mais excelente na


vida humana diz-se ser-nos comunicado através do Espírito de Deus.
Tampouco há razão para alguém perguntar: ‘O que têm os ímpios, que são
totalmente estranhos de Deus, a ver com seu Espírito?’ Devemos entender a
declaração de que o Espírito de Deus habita unicamente nos crentes (Rm 8.9)
como uma referência ao Espírito de santificação através de quem somos
consagrados como templos de Deus (1Co 3.16). Não obstante, ele enche,
move-se e vivifica todas as coisas pelo poder do mesmo Espírito, e faz assim
segundo o caráter que ele concede a cada espécie pela lei da criação. Se o
Senhor, porém, quiser que sejamos auxiliados em física, dialética, matemática
e outras disciplinas afins, por obra e ministério dos ímpios, que façamos uso
dessa assistência... Mas para que ninguém pense que uma pessoa é realmente
abençoada [com a benção salvífica] quando aquinhoada com a posse de
grande capacidade para compreender a verdade sobre os elementos deste
mundo (cf. Cl 2.8), devemos prontamente acrescentar que toda essa
capacidade para discernir, com todo o entendimento que a segue, é uma coisa
instável e transitória à vista de Deus, quando um sólido fundamento não lhe
serve de alicerce.[198]

Calvino distingue não só entre os dons gerais e especiais do


Espírito (habilidades incomuns entrando na última categoria), mas
também entre esses dois dons e as atividades salvíficas do Espírito, as
quais são totalmente diferentes dos dons gerais e especiais. Ao atribuir
todo bem à atividade do Espírito, devemos revestir-nos de cuidado para
sublinhar que o Espírito habita somente nos crentes. Nem toda
atividade divina é atividade salvífica.
Entretanto, essa habitação não é um conceito limitador; contém
implicações limitadas para o presente. A esperança bíblica nos aponta
para um período futuro em que a atividade redentora do Espírito será
sem limite.
O Espírito Cósmico e Escatológico
Joel profetizou que o Espírito seria derramado sobre toda carne antes
que viesse o grande e terrível dia do Senhor. A igreja primitiva entendeu
o Dia de Pentecostes como sendo o cumprimento dessa palavra
profética. O Antigo Testamento, porém, em grande estilo, antecipou os
efeitos do ministério do Espírito, conforme as palavras de Isaías:
...até que se derrame sobre nós o Espírito lá do alto,
o deserto se tornará em pomar, e o pomar será tido por bosque;
o juízo habitará no deserto,
e a justiça morará no pomar.
O efeito da justiça será paz,
e o fruto da justiça, repouso e segurança,
para sempre. (Is 32.15-17)

(Cf. Is 44.3; 65.17-25; 66.22-23; Ez 36.27; 2Pe 3.13; Ap 21.1-4.)


Essas promessas não são finalmente cumpridas no evento do
Pentecostes. Está em evidência aqui uma renovação da face de toda a
terra a uma extensão até agora nunca vista (cf. Sl 104.30). A visão se
refere à restauração de todas as coisas. Como vamos entender, e como o
Espírito se relaciona com isso?
A resposta a essa pergunta se encontra no relacionamento entre a
protologia e a escatologia, entre o primeiro e o último Adão.
O primeiro foi criado à imagem de Deus. O conhecimento de Deus e
a comunhão com ele em justiça e santidade eram a marca registrada de
sua vida (Ef 4.10; Cl 3.24). Não obstante, ele foi criado para uma
condição ou estado além de seu atual; do contrário, as condições
experienciais, as quais enfrentou no contexto do Éden, não serviriam a
nenhum propósito. Sua condição protológica se destinava a ser a
precursora de uma condição escatológica, a qual, no evento,
permaneceu oculta por não ser atingível. Ainda que não especificadas,
muitas indicações são apresentadas como sugestão de que essa
condição final era a de glória. Não inferior a essas é a afirmação de
Paulo que, quando o homem pecou, recusou-se glorificar a Deus, como
Deus, e mudou a glória de Deus em imagens de seres criados, inferiores
a eles próprios (Rm 1.21, 22). “Todos pecaram e destituídos estão da
glória de Deus” (Rm 3.23). O alvo para o qual fomos criados, mas que
perdemos de vista, era a glória. Pecamos e não mais conseguimos
atingir tal destino.
Contra este cenário, a tarefa do Espírito pode ser declarada
simplesmente assim: conduzir-nos à glória, criar glória em nosso
interior e glorificar-nos juntamente com Cristo. A surpreendente
significação disso pode ser mais clara se a expressarmos assim: o
Espírito é dado para nos glorificar; isso não significa “acrescentar”
glória como uma coroa que nos é destinada, mas realmente transformar
a própria constituição de nosso ser de modo a nos tornarmos gloriosos.
No Novo Testamento, essa glorificação é vista como a começar nos
crentes já na presente ordem. Através do Espírito, eles já estão sendo
transformados de glória em glória, a contemplar e a refletir a face do
Senhor (2Co 3.17, 18). Mas a consumação dessa glorificação aguarda o
eschaton e o ministério do Espírito na ressurreição. Também aqui o
padrão de sua operação é: como em Cristo, assim nos crentes e, por
implicação, no universo.
O Espírito realiza isso primeiramente em Cristo. Ele se relaciona
com Adão, o primeiro homem, como um antítipo com o tipo: “Adão...
era um padrão [prefiguração] daquele que havia de vir” (Rm 5.14). O
homem oriundo do pó da terra é o tipo do homem oriundo do céu (1Co
15.48). Estes são o primeiro e o segundo homem. Do primeiro Adão vem
condenação, morte e ignomínia; através do segundo Adão vem
obediência, justiça, justificação, vida e glória. O Espírito é vida por
causa da justiça (Rm 8.10).
Não há nenhum homem verdadeiro entre Adão e Cristo, o segundo
homem; não há necessidade de mais um Adão depois de Cristo, porque
não há necessidade de um Adão exercendo qualquer função a cumprir-
se depois de Cristo, o último Adão. Ele é o primeiro, aliás o único,
homem a vencer incólume o período de prova. Ele foi amplamente
obediente. Em consequência, ele é o primeiro homem a ingressar-se no
aspirado destino escatológico do mundo protológico, o primeiro a ser
glorificado em nossa humanidade através de sua ressurreição e
transformação (Jo 17.1, 5, 24; cf. 7.39; 11.4; 12.16, 23; 13.31; At 3.13).
Na glorificação de sua humanidade como archēgos está o padrão, os
recursos e a causa de nossa glorificação.

O Espírito e o Último Adão


Como, pois, a obra do Espírito se relaciona com a ressurreição de
Cristo, com aqueles que pertencem a Cristo e, finalmente, com o
cosmos?
Já vimos que a ressurreição de Cristo é sua redenção. Nela ele foi
justificado pelo Espírito (1Tm 3.16). Entretanto, essa justificação é
limítrofe com sua isenção santificadora do pecado. Em Cristo, o forense
e o transformacionista são um só (Rm 6.7). Mais ainda, justificação,
santificação e glorificação são uma só; declaratório, transformatório e
consumatório aglutinados nessa ressurreição.
Embora às vezes Paulo atribua ao Espírito a ressurreição de Cristo,
de uma forma um tanto perifrástica, não há dúvida de que ele age
assim:[199] “[ele] foi designado Filho de Deus com poder, segundo o
espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus
Cristo” (Rm 1.4; cf. 1Tm 3.16). Mesmo quando Paulo atribui a
ressurreição à atividade do Pai, é evidente que ele vê uma estreita
conexão entre o Pai e o Espírito como seu executivo no mundo (Rm
8.11). Aliás, a notável afirmação de que Cristo ressuscitou dentre os
mortos pela glória do Pai (Rm 6.4) pode ser uma alusão perifrástica à
operação dinâmica do Espírito. O efeito consistiu em transformar o
corpo de Cristo num corpo de glória, o qual forma o protótipo do corpo
ressurreto de todos os crentes. Este último é oferecido “pelo poder que o
capacita a trazer tudo sob seu controle” (Fp 3.21) – uma vez mais, uma
referência implícita, se não perifrástica, à obra contínua do Espírito
Santo. A implicação parece ser que, se essa transformação ocorre na
ressurreição por meio do Espírito, foi assim primeiramente no caso de
Cristo. A ceifa final tem como seu precursor Cristo, as primícias (1Co
15.20). A imagem e os porta-imagens são um no Espírito até o fim, de
sorte que, quando Cristo aparecer em glória, os porta-imagens são um
com ele nessa glória (Cl 3.4). Ressuscitamos com Cristo, em Cristo, por
Cristo, para sermos semelhantes a ele.
A complexa exposição disto em 1 Coríntios 15 pode ser resumida
nestes termos: Adão é o tipo de Cristo; ele é o primeiro homem,
enquanto Cristo é o segundo Adão. Como Adão é o primeiro de uma
raça (a velha humanidade), assim Cristo é o primeiro de uma nova raça
(a nova humanidade). Adão é o primeiro homem representativo (Rm
5.12-21); Cristo é não meramente o segundo, mas o último (eschatos)
Adão, já que não pode haver necessidade de mais um Adão-imagem ou
figura depois dele.
Não obstante, as origens destes dois homens diferem: Adão é o
homem da terra e do pó; Cristo é do céu. Não apenas isso, mas há uma
diferença fundamental entre o que eles se tornaram. Numa clara alusão
a Gênesis 2.7 (“o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou
em suas narinas o fôlego de vida, e o homem tornou-se um ser vivente”),
Paulo diz que “O primeiro homem Adão recebeu o fôlego de Deus; o
último Adão é Aquele que possui o próprio Fôlego que dá vida a seu
povo: “o último Adão [tornou-se] um espírito vivificante” (1Co 15.45).
Por meio dessa afirmação, Paulo indica o modo através do qual
Cristo, como o último Adão, foi plenariamente possuído pelo Espírito e
entrou na plena posse dele, em sua glorificação. Sua implicação é que o
Cristo ressurreto e glorificado, o Adão do Espírito, agora cria vida em
uma nova ordem, vida como a sua própria, pelo poder do Espírito: vida
escatológica, cuja característica dominante é [E]spiritualidade. Assim, o
corpo que é semeado na sepultura, na morte, é um corpo natural (sōma
psychikon); mas na ressurreição-transformação, ele se torna um corpo
[E]spiritual (sōma pnehmatikon, 1Co 15.44).
O Corpo Espiritual
Então, o que significa um corpo [E]spiritual? É um corpo apropriado ao
mundo do Espírito que é o agente de sua transformação. Numa série de
contrastes com o corpo natural, que é perecível, semeado (na sepultura)
em desonra e fraqueza, Paulo expressa o que isso significa: o corpo
espiritual ressuscita (da sepultura) imperecível (en aphtharsia), glorioso
(en doxē) e poderoso (en dynamei; cf. 1Co 15.42-44).
A chave para essas afirmações admiravelmente enigmáticas pode
estar no contraste entre “pó” e “céu” (1Co 15.47). Aquilo que emerge do
pó pode retornar ao pó, já que não possui poderes autossustentadores
em sua própria natureza constituinte. Em contraste, aquilo que
pertence ao celestial, ou, seja, à esfera e ordem do Espírito, não pode
reduzir-se a nada mais além de si mesmo. Como [E]spiritual,
necessariamente ele é imperecível. Não apenas isso, mas, já que a
esfera celestial do Espírito é também a esfera da glória de Deus, e
constituída de sua glória, o corpo ressurreto é também glorioso. Além
do mais, visto que o Espírito expressa a energia de Deus
emanentemente, o corpo ressurreto é também poderoso.
Este último contraste entre a fraqueza do corpo natural e o poder
do corpo ressurreto nos enriquece com uma importante visão. As
energias de Deus, o Espírito, são plenamente liberadas no corpo
ressurreto; os que o possuem consequentemente experimentam o fim da
inércia e letargia da carne, e uma disposição em servir a Deus na plena
capacidade de seu ser.
Atualmente, os crentes são habitados pelo Espírito; o Espírito de
Cristo os energiza no contexto de sua fragilidade (2Co 12.9, 10; 13.4; Fp
4.13). A presente vida é vivida na tensão entre o “já” e o “ainda-não”
da graça, onde a fraqueza da carne e a energia do Espírito habitante
estão juntas. Na ressurreição do corpo, porém, essa tensão cessará de
existir, pois esse novo corpo é constituído de [E]spiritualidade.
No Antigo Testamento, o “Espírito” se posiciona não apenas como
a terceira pessoa da Trindade, mas, como diz Geerhardus Vos, “aparece
como a fórmula abrangente para o transcendental, o supernatural”.[200]
Portanto, aqui o Espírito é visto não só como a fonte do corpo
ressurreto, mas também como “o substratum da ressurreição-vida, o
elemento, por assim dizer, no qual, como em sua atmosfera
circundante, a vida do aiônio vindouro será vivida.”[201] Havendo
habitado o crente na presente era, o Espírito tomará posse absoluta do
ser inteiro do crente. O corpo no qual a vida futura é vivida será tanto
[E]spiritual quanto gloriosa em sua própria constituição.
A ressurreição do corpo é simultaneamente nossa adoção, a
redenção do corpo (Rm 8.23), nossa vindicação abrangente (“a coroa da
justiça”, 2Tm 4.8) e nossa glorificação. Contra o cenário da significação
cósmica da queda de Adão, a ressurreição-transformação também
porta consequências cósmicas. Ele ocasiona não só a liberdade da
glória dos filhos de Deus, mas também a glorificação da criação inteira.
Paulo retrata a ordem criada como sujeita à frustração na
atualidade; ela toma parte nas consequências do pecado de Adão. A
própria terra está amaldiçoada. Essa frustração, porém, antecipa um
dia de libertação do princípio de entropia no qual se acha presa. Essa
libertação envolve participação no “glorioso reino [talvez seja preferível
“liberdade da glória”] dos filhos de Deus” (Rm 8.21). Isso é claramente
coincidente com “nossa adoção como filhos, a redenção de nossos
corpos” (Rm 8.23), ou, seja, a ressurreição – a qual constitui a ceifa
final da qual as atuais experiências do Espírito são as primícias.
Então a habitação do Espírito dará lugar a algo integralmente
relacionado com ela, todavia ainda maior em sua magnitude, assim
como as primícias tomam parte em e apontam para a natureza da ceifa
final. Então o Espírito não habitará meramente em corpos mortais, mas
lhes “comunicará vida” (Rm 8.11). Isso não envolverá simplesmente
restauração do corpo à condição vivida pelo primeiro Adão; significará
transformá-lo (“Nem todos dormiremos, mas seremos todos
transformados”, 1Co 15.51).
Visto que Adão foi criado como o vice-regente de toda a criação e a
cabeça de todo o cosmos abaixo de Deus, quando ele caiu, toda a
criação caiu com ele em servidão, frustração e entropia. A ressurreição
de Cristo marca o início do grande reverso disto, o princípio
embrionário da transformação cósmica que atingirá sua consumação
na ressurreição final. Visto, porém, que a ressurreição nos traz não só
repristinização, mas também escatologização, segue-se que haverá
tanto repristinização quanto escatologização do mundo caído de Adão.
Ele também será transformado, libertado de sua frustração e
escravidão, para voltar a participar da gloriosa liberdade dos filhos de
Deus (Rm 8.21).
Temos apresentado apenas leves pinceladas disto na Escritura. Se,
como a maioria dos comentaristas crê, a passagem de 2 Pedro 3.7, 10-
13, reflete a purificação do universo no futuro, então, segundo a
Escritura, isso ocorrerá através do juízo (cf. o dilúvio).
A teologia luterana inclinava-se a ver aqui o aniquilamento do
universo original e a criação de um novo. Mas, com base na analogia da
“destruição” do mundo pelo dilúvio, é preferível ver que haverá
continuidade entre o novo e o antigo cosmos, assim como haverá entre o
corpo ressurreto e o corpo atual. Além do mais, a visão do futuro em
Romanos 8.20, 21 antecipa a libertação e a renovação, não a destruição
e recriação ex nihilo, do universo.
À luz desta destrutiva purificação-para-a-glória emergirá “um
novo céu e uma nova terra, onde haverá justiça” (2Pe 3.13). Aliás, céu e
terra, por assim dizer, formarão um reino de justiça no qual o Espírito
de Deus será a atmosfera todo-permeadora, assim como o Senhor Deus
e o Cordeiro serão o templo, e a glória de Deus, sua luz, e o Cordeiro de
Deus, sua lâmpada. Como novamente observa Vos: “O Espírito é não só
o autor da ressurreição-ato, mas igualmente o substratum da
ressurreição-vida, a qual ele supre com o elemento interior, básico, e a
atmosfera exterior”.[202]
Assim, o papel do Espírito de Deus que tem exercido, na história, a
energia executiva do Pai e trouxe glória ao Filho, será visto em seu
estado consumado. Então, aquilo pelo qual o Espírito foi dado no
Pentecostes, e com vistas ao qual ele sela a igreja, será concretizado em
sua totalidade.
Então, enfim, a obra do Espírito alcançará o tempo da ceifa, e Deus
será tudo em todos (1Co 15.28). Com isso em vista, tanto o Espírito
quanto a Noiva dirão: “Vem!” (Ap 22.17).

[189] Stanley J. Samartha em Emílio de Castro (ed.), To the Wind of God’s Spirit
(Genebra: WCC Publications, 1990), pp. 60-61.
[190] Este princípio, expresso variadamente, deriva-se de Cipriano, Epistles 73.21.
[191] Karl Rahner, Theological Investigations, tr. K.-H. e B. Kruger (Londres: Darton,
Longman & Todd, 1969), vol. 6, p. 391.
[192] Para uma exposição moderna disto, ver Bryan Gaybba, The Spirit of Love (Londres:
Chapman, 1987).
[193] W. H. Griffith Thomas, The Holy Spirit of God (1913; Londres: Church Book Room
Press, 1972), pp. 185-186.
[194] Ibidem, p. 187.
[195] Gordon D. Fee, God’s Empowering Presence (Peabody, MA: Hendrikson e Carlisle:
Paternoster, 1994).
[196] Hendrikus Berkhof, The Doctrine of the Holy Spirit (Londres: Epworth, 1965), p.
102.
[197] Citado na revista de Nicholes Shakespeare, Daily Telegraph, 9 de dezembro de 1995,
Arts and Books Section, p. 7.
[198] Institutas, II.2.16. Cf. seus comentários em II.11,12; e em seus comentários em
Gênesis 4.20; Êx 20.4; 34.17.
[199] Ver Fee, op. cit., pp. 80ss.
[200] Geerhardus Vos, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1952), p. 162.
[201] Idem, p. 163.
[202] Ibidem, p. 165.
PARA LEITURAS ADICIONAIS
1. O Espírito e Sua História
Para estudos sobre o Espírito de Deus no Antigo Testamento, além das
obras teológicas e teologias do Antigo Testamento, ver L. Wood, The
Holy Spirit in the Old Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1976);
L. Neve, The Spirit of God in the Old Testament (Tokyo: Seibunsha,
1972); M. A. Inch, Saga of the Spirit (Grand Rapis, MI: Baker Book
House, 1985), pp. 1-68; G. Smeaton, The Doctrine of the Holy Spirit
(Edinburgo: T. & T. Clark, 1843), pp. 9-43; B. B. Warfield, “The Spirit
of God in the Old Testament” (1895), reimpresso em Biblical Doctrines
(Nova York: Oxford University Press, 1929; Edingurgo: Banner of Truth,
1988), pp. 101-129.

2. O Espírito de Cristo
O relacionamento entre o Espírito e o Cristo encarnado é um tema
muitíssimo negligenciado na teologia sistemática. Um belo sumário do
ensino do Novo Testamento que temos, embora por demais breve, é tão
antigo que remonta aos dias de Basílio o Grande, em seu pequeno
estudo Sobre o Espírito Santo. O desenvolvimento mais completo se
acha em John Owen, Works, ed. W. H. Goold (Edinburgo: Jhonstone &
Hunter, 1850-53; reimpressão em Londres: Banner of Truth, 1965), vol.
3, pp. 152-188. Matérias podem ser encontradas, por exemplo, em H. B.
Swete, The Holy Spirit in the New Testament (Londres: Macmillan,
1909); C. K. Barrett, The Holy Spirit and the Gospel Tradition (Londres:
SPCK, 1947); F. X. Durrwell, Holy Spirit of God (Londres: Chapman,
1986), cap. 5. T. A. Smail, Reflected Glory (Londres: Hodder &
Stoughton, 1975) fornece um interessante estudo sobre o tema de “O
Espírito em Cristo e nos Cristãos”, a partir da perspectiva carismática
moldado por uma teologia influenciada tanto pelo evangelicalismo
quanto por Karl Barth. O único livro valioso e extenso de estudo é de G.
F. Hawthorne, The Presence and the Power (Dallas, TX: Word, 1991).
Parte Um de J. D. G. Dunn, Jesus and the Spirit (Londres: SCM, 1975), é
um estudo de “A Experiência Religiosa de Jesus”. Dunn vê a experiência
que Jesus teve do Espírito como o elo essencial entre fazer “cristologia
de baixo” (o que ele favorece) e uma “cristologia de cima”.
A significativa escatologia distintiva do ministério do Espírito é
exposta no marcante ensaio de G. Vos, “The Eschatological Aspects of
the Pauline Concept of the Spirit” (1912), reimpresso em R. B. Gaffin, Jr.
(ed.), Redemptive History and Biblical Interpretation (Phillipsburg, NJ:
Presbyterian & Reformed, 1980), pp. 91-125. Ver também N. Q.
Hamilton, The Holy Spirit and Eschatology in Paul (Edinburgo: Scottish
Journal of Theology Occasional Papers no. 6, 1957).

3. O Dom do Espírito & 4. Pentecostes Hoje?


São abundantes os estudos sobre o Pentecostes e os dons do Espírito.
Obras modernas notáveis incluem: J. D. G. Dunn, Baptism in the Holy
Spirit (Londres: SCM, 1970); F. D. Bruner, A Theology of the Holy Spirit
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1970); R. B. Gaffin, Jr., Perspectives on
Pentecost (Phillipsburg, NJ: Presbyterian & Reformed, 1979). Para uma
crítica ponto a ponto da posição de Dunn, ver H. M. Ervin, Conversion-
Initiation and the Baptism in the Holy Spirit (Peabody, MA:
Hendrickson, 1984). Este debate é continuado no contexto de perguntas
sobre continuidade e descontinuidade em L. D. Pettegrew, The New
Covenant Ministry of the Holy Spirit (Lanham, MD: University of
America Press, 1993). Para o papel do Pentecostes como um evento-
missão, ver H. R. Boer, Pentecost and Missions (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1961); J. V. Taylor, The Go-Between God: The Holy spirit
and the Christian Mission (Londres: SCM, 1972).
Para discussões sobre a história e teologia da cláusula Filioque, ver
o estudo de H. B. Swete, On the History of the Doctrine of the Procession
of the Holy Spirit (Cambridge: Deighton, Bell & Coll, 1876), e seu livro
mais recente, The Holy Spirit in the Ancient Church (Londres:
Macmillan) ainda é de muito valor. Discussões ecumênicas são
sumariadas pelos ensaios em L. Vischer (ed.), Spirit of God, Spirito of
Christ (Londres: SPCK, 1981). Em adição ao seu volume sobre The
Doctrine of God (também nesta série Contours of Christian Theology), o
artigo de Gerald L. Bray, “The Filioque Clause in History and Theology”,
Tyndale Bulletin 34, 1983, pp. 91-144, fornece uma valiosa e criteriosa
visão, e favorece a adição. A defesa de Barth do Filioque aparece em sua
Church Dogmatics I.1, tr. G. T. Thomson (Edinburgo: T. & T. Clark,
1936). G. S. Hendry oferece uma discussão crítica em The Holy Spirit in
Christian Theology (Londres: SCM, 1965), pp. 11-52. A exposição de J.
Moltmann pode ser encontrada em The Trinity and the Kingdom of God
(Londres: SCM, 1981).
Discussões mais amplas do desenvolvimento histórico da doutrina
do Espírito podem ser encontradas em J. J. Fortman, The Triune God
(Filadélfia: Westminster, 1972); Bertrand de Margerie, The Christian
Trinity in History, tr. E. J. Fortman (Petersham, MA: St Bde’s
Publications, 1982). A. W. Wainwright’s The Trinity in the New
Testament (Londres: SPCK, 1962) permanece um valioso estudo do
Novo Testamento, matérias relevantes para a doutrina da Trindade.

5. O Espírito de Ordem & 6. Espírito Re-criador


Para uma discussão contemporânea da ordo salutis e as várias facetas
da aplicação da redenção, ver A. A. Hoekema, Salvos pela Graça (São
Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 1997). R. B. Gaffin, Jr., Resurrection
and Redemption (1978; Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989) é
um estudo bíblico teológico seminal com importantes implicações nesta
área. Sobre a união com Cristo, ver L. B. Smedes, Union with Christ
(versão revisada de All Things Made New, 1970; Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1983). God’s Empowering Presence, de Gordon Fee
(Peabody, MA: Hendrickson, 1994), pp. 846-869, contém seu sumário
do ensino paulino. Para uma exposição clássica da perspectiva
reformada, ver John Murray, Rendenção – Consumada e Aplicada (São
Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 1993, reeditado).
Sobre a regeneração, a obra padrão, ainda que um tanto leve,
permanece sendo B. Citron, New Birth (Edinburgo: Edinburgo
University Press, 1951). O estudo em Dogmática, de G. C. Berkouwer,
fornece uma série de estudos correlacionando a fé com vários aspectos
da aplicação da obra de Cristo: Faith and Sanctification (Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1952; Leicester: Inter-Varsity Press, 1973); Faith and
Justification (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1954); Faith and
Perseverance (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1958).
Para estudos extensos da aplicação da redenção na igreja da pré-
reforma, ver Alister E. McGrath, Iustitia Dei (Cambridge: Cambridge
University Press, 1986), vol. 1, Desde o Início até 1500, e a importante
obra de Heiko Oberman, The Harvest of Medieval Theology: Gabriel Biel
and Late Medieval Nominalism (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1967).

7. O Espírito de Santidade & 8. A Comunhão do Espírito


Além dos estudos sobre o Espírito em John Owen, Works, ed. W. H.
Goold (Edinburgo: Johnstone & Hunter, 1850-53; repr. Londres:
Banner of Truth, 1965), vol. 3, e Abraham Kuyper, The Work of the Holy
Spirit (Nova York: Funk & Wagnalls, 1900), pp. 431-507, ver Owen,
Works, vols. 6 e 7, para o ensino evangélico clássico sobre os métodos
nos quais o Espírito desenvolve a santidade. O Livro III das Institutas de
Calvino é um tesouro amiúde negligenciado da visão bíblica desta área.
J. I. Packer, Keep in Step with the Spirit (Old Tappan, NJ: Revell, and
Leicester: Inter-Varsity Press, 1984), poderá também ser compendiado
com proveito. Para um tratado extenso da comunhão com o Espírito, ver
John Owen, Communion with God, em Works, Vol. 2. A. R. George,
Communion with God in the New Testament (Londres: Epworth, 1953)
trata do tópico de uma forma mais geral.

9. O Espírito e o Corpo & 10. Os Dons para o Ministério


A literatura sobre o ministério do Espírito dentro do corpo de Cristo tem
inevitavelmente pretendido focalizar a atenção sobre os dons
espirituais. Como um exemplo representativo, ver A. Bittlinger, Gifts
and Graces (Londres: Hodder & Stoughton, 1967); idem, Gifts and
Ministries (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1973); D. A. Carson, Showing
the Spirit (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1987). Sobre o tema
da profecia, ver particularmente: W. Grudem, The Gift of Prophecy in 1
Corinthians (Lanham, MD: University of America Press, 1982), e seu
estudo mais popular, The Gift of Prophecy in the New Testament and
Today (Westchester, IL: Crossway Books, and Eastbourne: Kingsway,
1988); Graham Houston, Prophecy Now (Leiscester: Inter-Varsity Press,
1989); US ed. Prophecy: A Gift for Today [Downers Grove, IL: Inter-
Varsity Press, 1989]). Em defesa do ponto de vista cessacionista, a
declaração clássica nos dias atuais está em B. B. Warfield, Counterfeit
Miracles, originalmente publicado em 1918 como Miracles Yesterday
and Today (Londres: Banner of Truth, 1972). Variações do ponto de
vista de Warfield pode ser encontradas em R. B. Gaffin, Jr., Perspectives
on Pentecost (Phillipsburg, NJ: Presbyterian & Redormed, 1979); T. R.
Edgar, Miraculous Gifts: Are For Today? (Neptune, NJ: Loizeaux
Brothers, 1983); O. P. Robertson, A Palavra Final (São Paulo, SP:
Editora Os Puritanos, 1999). O crítico mais completo de Warfield é Jon
Ruthven, On the Cessation of the Charismata (Sheffild: Sheffield
Academic Press, 1993). Em contraste com o resultado dos dons
espirituais, o papel do Espírito nas ordenanças da vida da igreja não
tem servido bem no escrito teológico, e é geralmente tratado só como
parte de estudos mais amplos. Ver H. W. Robinson, The Christian
Experience of the Holy Spirit (Londres: Nisbet & Co., 1928), pp. 184-
198; J. G. Davies, Spirit, Church and Sacraments (Londres: 1956). Ver
também os comentários de Calvino nas Institutas, IV.14.7-13 e IV.17.8-
10.
Infelizmente, pouca atenção se tem dado, na literatura recente, ao
papel do Espírito em relação à pregação, mas há um emocionante relato
do D. Martyn Lloyd-Jones (depois de ouvi-lo, Emil Brunner comentou
que foi a maior pregação que já ouvira), em Pregação e Pregadores
(Editora Fiel). Ver também Tony Sargent, The Sacred Anointing
(Londres: Hodder & Stoughton, 1994).

11. O Espírito e a Palavra


Para discussão da atividade do Espírito no mundo, ver H. Berkhof, The
Doctrine of the Holy Spirit (Londres: Epworth, 1965); J. Comblin, The
Holy Spirit and Liberation (Londres: Burns & Oates, 1989), pp. 1-76.
Para um estudo mais amplo, ver A. Kuyper, Lectures on Calvinism
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1898). Para a obra do Espírito na
consumação, ver G. Vos, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1952).
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