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SUMÁRIO
Créditos
Epígrafe
Prefácio
2. O ESPÍRITO DE CRISTO
3. O DOM DO ESPÍRITO
4. PENTECOSTES HOJE?
5. O ESPÍRITO DE ORDEM
6. O ESPÍRITO RECRIADOR
7. O ESPÍRITO DE SANTIDADE
8. A COMUNHÃO DO ESPÍRITO
Nossos livros
Mídias
“O Verbo assumiu forma física para que pudéssemos receber o
Espírito Santo; Deus tornou-se o portador de um corpo para que os
homens fossem portadores do Espírito.”
— Atribuído a Atanásio
Prefácio
Espírito Santo! Era comum em meus dias de estudante, autores,
conferencistas e pregadores começarem seus comentários de temas
sobre o Espírito Santo com a seguinte afirmação: “O Espírito Santo, até
recentemente, era a pessoa negligenciada da Deidade.” Atualmente,
nenhum escrito sobre este tema empregaria tal linguagem. O impacto
do pentecostalismo e do movimento carismático foi de tal amplitude,
que a literatura sobre o Espírito Santo passou a desfrutar de espaço
considerável no meio evangélico, atingindo a proporções tais que o
domínio exercido na literatura evangélica existente estaria além dos
poderes de qualquer indivíduo.
O Espírito Santo não é mais considerado como uma “pessoa
negligenciada” da Deidade. Na medida em que isso justifica os fatos, os
cristãos de todas as convicções devem regozijar-se. Aliás, é possível
imaginar que o pêndulo, até então, tem oscilado na direção de uma
obsessão tão intensa pelos poderes do Espírito, que um enorme volume
de livros sobre o Espírito Santo tem sido uma realidade e grande anseio
da parte de muitos. Somente as exigências de uma série como esta
justificaria a composição de mais um estudo sobre um tema já
focalizado de maneira tão intensa.
Mas a ideia generalizada que se tornou comum entre os
evangélicos, bem como entre os demais, de que o Espírito Santo foi
quase que de novo descoberto no século XX, é um risco da heresia da
modernidade e é, no mínimo, culpado de uma certa miopia histórica.
Fica no esquecimento, por exemplo, que foi com boas razões que o
pastor-teólogo da Reforma, João Calvino, foi descrito como “o teólogo
do Espírito Santo”.[1] Além do mais, cada século, desde seu tempo,
testemunhou eventos que foram atribuídos à incomum operação do
Espírito Santo. Mesmo no século XX, as duas opera magna sobre o
Espírito Santo subsistem nos extensos estudos de autoria do puritano
do século XVII, John Owen, Vice-Chanceler da Universidade de Oxford,
e do grande teólogo-político holandês, Abraham Kuyper, fundador da
Universidade Livre de Amsterdam. Fazendo uma retrospectiva ainda
mais distante, a pretensão de que o século XX redescobriu a verdade
perdida desde os dois primeiros séculos, exibe uma atitude arrogante
diante do material redescoberto de H. B. Swete, em sua valiosa série de
estudos sobre o Espírito, iniciada há mais de um século. Estes estudos
demonstram, ricamente, a atenção que, muitos séculos antes, se dava
ao Espírito Santo, conferindo-lhe a devida honra, juntamente com o Pai
e o Filho.
Os que fazem a afirmação de que o Espírito Santo outrora era
esquecido, agora se portam como se não fosse mais necessária uma
ênfase sobre o assunto. Embora a obra do Espírito tenha sido
reconhecida, Ele permanece, para muitos cristãos, um aspecto
anônimo, desbotado, do ser divino. O próprio título “Espírito Santo”,
evoca uma gama de emoções diferentes daquelas expressas em resposta
aos títulos “Pai” e “Filho”. Talvez toda essa celeuma sobre o assunto
fosse solucionada descrevendo-se o Espírito Santo como a pessoa
desconhecida, em vez de a pessoa esquecida (ou mesmo a pessoa
“escondida”, como recentemente se fez) da Trindade. As demandas de
uma série doutrinal requerem contribuintes que cubram o terreno
básico do locus designado para eles. Neste volume, na série Contours of
Christian Theology[2] (Perfis da Teologia Cristã), o centro do interesse é
delinear a revelação da identidade e da obra do Espírito de uma forma
bíblico-teológica e histórico-redentiva. Não significa dizer que a
teologia histórica esteja falida e que, também, devamos rejeitar o
princípio apostólico de que precisamos entender as riquezas do
evangelho em consonância com toda a igreja (Ef 3.18-19). Espero que
fique bem claro e evidente o meu interesse e senso de obrigação para
com o entendimento que a igreja deve ter quanto ao Espírito Santo.
Segundo Tomás de Aquino, a teologia vem de Deus, ensina sobre
Deus e nos leva a Deus (a Deo docetur, Deum docet, ad Deum ducit).
Isso é verdade num sentido especial sobre a teologia do Espírito Santo.
O grande anseio em toda a nossa reflexão sobre o Espírito é
seguramente o alvo da comunhão pessoal e íntima com ele, por meio de
quem somos conduzidos a adorar, glorificar e obedecer ao Pai e ao
Filho. Este consórcio de teologia e ortodoxia é normativo nas páginas da
Escritura; e é por essa razão que as páginas que se seguem delineiam a
obra do Espírito de uma forma bíblico-teológica.
Far-se-á evidente no que se segue que tenho tomado o cânon do
Antigo e Novo Testamentos em seu real valor, crendo que, aqui,
encontramos a palavra de Deus, e que a forma através da qual ela
chegou até nós (indubitavelmente por vários meios) é o único
fundamento confiável sobre o qual podemos construir uma teologia do
Espírito Santo. Mas, conservando a preocupação geral da série
Contours of Christian Theology, compartilho da convicção de que ainda
há uma nova luz faiscando da palavra de Deus sobre a igreja.
A pessoa e obra do Espírito Santo continuam sendo uma área de
controvérsia entre os cristãos. Neste aspecto, alguns leitores,
provavelmente muitos, crerão que eles mesmos veem luz onde não vejo.
É um fato notável na história eclesiástica recente que as convicções que
geraram controvérsia em meus dias de estudante nos anos 1960 a 1970,
agora são tão amplamente adotadas que os pontos de vista principais
daqueles dias são agora considerados como pontos de controvérsia. Não
obstante, tentei conservar em minha mente, tanto a injunção apostólica
para se manter a unidade do Espírito no vínculo da paz, quanto meus
próprios votos de ordenação de manter um espírito fraterno com todo o
povo do Senhor. Minha esperança e oração é que as opiniões expressas
em áreas de controvérsia mencionadas neste livro, não prejudiquem os
companheiros cristãos como um todo.
Este volume faz parte da série Contours of Christian Theology entre
o estudo de “A obra de Cristo e a igreja”. Portanto, ele inclui algumas
discussões de elementos de soteriologia (a aplicação da obra de Cristo)
e a eclesiologia (os dons do Espírito para o corpo de Cristo). Ele assim
serve como ponto entre estes companheiros estudiosos e, assim espero,
será lido em conexão com eles.
Desejo agradecer a Gerald Bray, Editor Geral desta série, o convite
para contribuir com o volume sobre O Espírito Santo. Sou grato a David
Kingdon, editor dos livros teológicos da IVP (Inter Vasity Press), tanto
por sua amizade quanto por sua paciência para com um autor
procrastinante, acostumado com apenas uma pitada ocasional de
lisonja! A conclusão destas páginas representa o pagamento adiantado
de duas dívidas adicionais: primeiro, ao Board of Trustees of
Westminster Theological Seminary, Filadélfia, por conceder-me licença
sabática no semestre do outono de 1994; e, principalmente, a minha
esposa Dorothy que, mais que ninguém, encorajou-me a completar esta
obra.
— Sinclair B. Ferguson
Westminster Theological Seminary
Filadélfia, Pensilvânia
[1] B. B. Warfield, Calvin and Calvinism (Nova York: Oxford University Press, 1931), p. 21
[2] O autor se reporta a uma série editada por Gerald Bray na década de 1990, em
consulta com IVP (InterVasity Press) e que oferece uma apresentação sistemática de
muitas das maiores doutrinas de forma a complementar os livros-textos tradicionais,
dando atenção especial aos problemas contemporâneos e se propondo também a
recuperar a posição evangélica ortodoxa de uma maneira desafiadora.
1
O ESPÍRITO SANTO &
SUA HISTÓRIA
O Santo ruach
O significado da raiz do termo bíblico “santo” (Heb. qāḏôš, qōḏeš; Gr.
hagios) tem sido alvo de muita discussão. Mas há um consenso geral de
que a raiz deste termo traz consigo ideias tais como “cortar” ou
“separar de”, “ser colocado à distância”; daí o sentido de “ser posto à
parte” a fim de pertencer a Deus. Empregando esta linguagem
metaforicamente especial, o Antigo Testamento frisa a “diversidade” do
Ser do Espírito. A ilustração clássica disto, o encontro devastador de
Isaías com o Santo de Israel (Is 6.1-13), exemplifica o modo como a
imagem espacial é empregada para comunicar distância moral. Deus é
“sublime”, enquanto Isaías é humilde; “elevado” (RSV, AV) e “exaltado”
(NVI), enquanto Isaías é prostrado. A presença de Deus (“as abas de
suas vestes”) enche o templo, enquanto Isaías recua-se num canto. A
santidade de Deus é a visão da pureza de seu eterno e infinito Ser. À
maneira de comparação, Isaías se sente impuro e perdido.
As palavras bíblicas para “espírito” (Heb. ruach;[4] Gr. pneuma)
são termos onomatopéicos. Sua formação etimológica e seu som
comunicando certo matiz de seu significado básico: a expulsão do vento
ou fôlego, a ideia de ar em movimento. “Espírito” expressa, em sua
forma mais fundamental (“o fôlego de vida”), poder, energia e vida.
No mundo da filosofia helenística, o qual forneceu o ambiente
intelectual mais amplo do último período bíblico, pneuma era um termo
usado para significar um tipo de matéria profundamente refinada e
purificada (matéria originariamente considerada como arruinada e má
por definição). Na filosofia dos estóicos, por exemplo, ela era
considerada a substância da alma, um tipo de “fluído sensitivo vital”
que se estende desde a alma, permeando toda a pessoa, dotando-a com
energia e vida.[5]
Embora às vezes entendido como imaterialidade próxima, de fato o
termo veterotestamentário, ruach, mais particularmente frisa a
presença de energia e atividade. Embora o ar, ou vento, possa servir
muito bem como analogia para a matéria supremamente refinada, isto
não é o ponto principal ou centro de atenção no uso bíblico de ruach
(ou, por esse motivo, pneuma). No Antigo Testamento, ruach,
ordinariamente, implica ar em movimento, amiúde manifestado na
ordem natural como um poderoso vento ou tormenta (p. ex., Jó 1.19, e
provavelmente em mais de um quarto dos exemplos
veterotestamentários), ou no fôlego de vida do indivíduo. E assim, por
exemplo, os prodígios da sabedoria e realizações de Salomão deixaram
a Rainha de Sabá sem fôlego (1Rs 10.4-5: “ela sentiu-se esmagada”,
como o expressa a NVI, “não tinha mais ruach”, é o que diz o texto).
Aliás, na atividade humana, ruach pode referir-se não meramente à
respiração, mas ao resfolego (p. ex., 2Sm 22.16; Jó 4.9). O que está em
pauta é energia, em vez de imaterialidade.
Embora na ordem natural ruach, ocasionalmente, indique uma
brisa amena (como em algumas traduções de Gn 3.8), a ideia
dominante no Antigo Testamento é a de poder. O paralelismo em
Miqueias 3.8 ilustra bem esse fato: “Eu, porém, estou cheio do poder do
Espírito do Senhor.”[6] Portanto, quando usado em referência a Deus
(cerca de um terço do uso veterotestamentário), ruach não indica a ideia
de imaterialidade divina (espírito, não matéria), ainda que, sem dúvida,
isso esteja implícito na perspectiva bíblica geral. A ênfase é posta,
antes, em sua esmagadora energia; aliás, alguém quase poderia falar
da violência de Deus. Daí, “Espírito divino” indica “a energia da vida em
Deus”,[7] como no extraordinário paralelismo de Isaías 31.3: “Pois os
egípcios são homens, e não Deus; seus cavalos carne, e não espírito.” A
ênfase está no contrate entre fraqueza e poder, não no contraste entre
material e imaterial. Aqui, Espírito contrasta-se com carne, cuja
“característica é inércia, ausência de poder, o que só pode ser removido
pelo Espírito de Deus”.[8]
Os resultados da atividade de ruach estão em conservar sua
natureza. Quando o ruach Yahweh vem sobre os indivíduos, estes
recebem o impulso de uma energia “estranha” e agem com poderes
inusitados: o desalento se converte em ação; habilidades humanas
excepcionais são exibidas; é possível que se experimente êxtase. O ruach
de Yahweh é, por assim dizer, o sopro de Deus, o poder irresistível pelo
qual ele concretiza seus propósitos, quer criativos, quer destrutivos. Por
seu ruach ele cria o exército do céu (Sl 33.6), dá poder a juízes
salvadores como Otniel e Sansão (Jz 3.10; 14.6), arrebata profetas,
eleva-os e os coloca em outros lugares (p. ex., Ez 3.12, 14; 11.1; cf. 1Rs
18.12). Os que são os sujeitos da atividade do divino ruach agem de
maneira supernatural, com energia e poderes supernaturais. O ruach de
Deus, portanto, expressa a força irresistível, a energia todo-poderosa de
Deus na ordem criada. Ele não pode ser “dominado” pelos homens. Ao
contrário, através de seu ruach ele é capaz de “domar” ou subjugar
todas as coisas para o cumprimento de seu propósito pessoal.
Esta dimensão quase violenta do Espírito é vividamente retratada
por Isaías: “Pois virá como torrente [ruach] impetuosa, impelida pelo
Espírito [ruach] do Senhor” (Is 59.19); “Seca-se a erva, e caem as flores,
soprando nelas o hálito [ruach] do Senhor” (Is 40.7).
Não obstante, já se faz evidente, à luz das várias referências
bíblicas supracitadas, que ruach indica mais do que simplesmente a
energia de Deus; a palavra descreve Deus envolvendo-se num esforço
ativo em sua criação e de uma forma pessoal. Isso traz a lume a questão
para a qual devemos volver nossa atenção: essas referências ao Espírito
devem ser consideradas meramente como que descrevendo o modo da
presença de Deus no mundo, ou como que denotando distinções
hipostáticas (pessoais) dentro do Ser de Deus, prefigurando a
diversidade em Deus que seria expressa na doutrina posterior da igreja
acerca da Trindade?
Ao abordar este tema, devemos antes de tudo avançar pelos
meandros do ensino veterotestamentário sobre o Espírito Santo.
Espírito Criador?
As alusões bíblicas consistem em que o Espírito de Deus esteve sempre
envolvido em todas as suas obras desde o princípio. Na teologia cristã
antiga isso foi traçado retrospectivamente até a obra da criação.[9]
Quando “a terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a
face do abismo, e o Espírito de Deus [ruach elohim] pairava por sobre as
águas” (Gn 1.2).
Aqui, ruach elohim às vezes tem sido compreendido como uma
referência ao Espírito de Deus e traduzido de maneira consistente.
Embora nunca houvesse unanimidade sobre este ponto, mais
recentemente, dentro da tradição cristã de exegese, este conceito tem
sido vigorosamente defendido; extensamente, a pressuposição é que por
detrás da interpretação tradicional está um desejo hermenêutico
deslocado para achar uma hipostatização antiga ou, pelo menos,
embrionária, do Espírito, e (dentro da exegese cristã) um trinitarismo
embrionário correspondente, nas palavras iniciais de Gênesis.
Além disso, o modo como são apresentadas as características do
vento nos mitos da criação, no Oriente Próximo, particularmente a
narrativa fenícia da criação, a alguns eruditos parece sugerir que o
vento, e não o Espírito divino, é que provavelmente esteja em pauta.[10]
Portanto, às vezes o texto é lido como uma descrição do sombrio caos da
criação nascente. Assim, a vacuidade da terra assolada, as trevas e o
ruach teriam se associado como a massa incipiente de existência que
seria dominada e transformada na ordem e plenitude que Gênesis 1 por
fim descreveria. O fato de que não se faz nenhuma alusão adicional à
atividade do ruach é tomado como uma indicação de que ele pertence ao
caos e não à ordem de agente criador. Por isso, embora alguns, como
Gerhard von Rad, se disponham ainda a traduzir ruach elohim como
“tempestade de Deus”, outros de modo ainda mais radical separam
ruach totalmente das ações divinas e traduzem ruach elohim como um
“poderoso vento”.
Tal reserva e hesitação em ver algum vestígio de hipostatização,
como também de trinitarismo, nos primeiros versículos da Bíblia,
naturalmente não representam nenhuma novidade. Já no século
dezesseis, Calvino (e ele não foi o único a encontrar a doutrina da
Trindade no próprio texto veterotestamentário) estava familiarizado
com tal opinião, mas a descreveu como “frígida demais para requerer
refutação”.[11]
No entanto, o contexto de Gênesis 1.2 sugere que o ruach elohim
não está em relação antitética com o agente criador. Ao contrário, o que
está em pauta é a ordem cósmica sendo estabelecida pelo ruach elohim.
As referências mais claras (Gn 1.1, 3) à atividade de elohim como
atividade divina criativa sugerem que a redação mais natural de ruach
elohim, no versículo 2, deve ser em termos de atividade divina. O verbo
traduzido “pairar” (rāḥap) comunica a ideia de “abalar” ou “flutuar”. É
usado somente em outros dois lugares no Antigo Testamento. Em
Jeremias 23.9, é usado nos ossos sendo movimentados. A despeito de
sugestões contrárias,[12] abalar, seguramente, seria um modo inusitado
de descrever a atividade do vento.
Além do mais, encontramos uma série significativa de (deliberadas)
conexões posteriores na Escritura entre a criação, o Êxodo e o Espírito.
Isaías 63.7-14 identifica claramente o Espírito como o executivo do
Êxodo. Mas, anteriormente, em Deuteronômio, o executivo do Êxodo é
alguém que protege o povo “num ermo e solitário povoado de uivos...
como a águia... voeja sobre seus filhotes” (Dt 32.10-11). Este é o outro
exemplo do uso da palavra ṯōhû (“informe”) no Pentateuco (ainda que
seu uso repetido em Jr 4.23 seja instrutivo). Não pode ser acidental que,
aqui em Deuteronômio 32.1-11, como em Gênesis 1.2, ela ocorra em
conjunção com o verbo rāḥap. Assim, se introduz uma analogia (por
certo deliberada) no Antigo Testamento entre o “pairar” do ruach
elohim sobre a criação insipiente e a presença do Espírito de Deus na
obra de redenção ainda incompleta. Isso sugere que ruach elohim, já em
Gênesis 1.2, visava a denotar o Espírito divino.
Outras reflexões mais gerais do Antigo Testamento sobre a
narrativa de Gênesis, quando se celebrava a obra divina na ordem
criada, sugerem que os intérpretes mais antigos de Gênesis 1 (i.e., os
autores bíblicos posteriores) também detectaram a presença do Espírito
divino na obra da criação. Daí o Salmo 104.30 registrar: “Envias o teu
Espírito [ruach], eles são criados.” Isso faz um paralelo com “Se ocultas
o teu rosto, eles se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem e
voltam ao seu pó” (104.29). Aqui uma vez mais transparece um eco
deliberado de Gênesis 1.2 e 2.7. O ruach de Deus e a face de Deus são
ideias complementares, ambas indicativas da presença divina pessoal.
Evidentemente, ruach se posiciona ao lado de Deus, não ao lado do
caos.
Jó 33.4 aponta na mesma direção: “O Espírito [ruach] de Deus me
fez; e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida.” Enquanto a segunda
metade do versículo ecoa Gênesis 2.7, a primeira metade parece ecoar
Gênesis 1.2. Aqui ruach significa mais que vento ou borrasca.
À luz desta tradição exegética dentro do próprio Antigo
Testamento, ruach, em Gênesis 1.2, é mais bem discernido como uma
referência à atividade do Espírito divino, e não a uma atividade
impessoal do vento. A disputa de Pannenberg de que traduzir ruach, em
Gênesis 1.2, como “tormenta” ou “ciclone” é “grotesco”, pode parecer
reacionário demais; mas, à luz do fato que em outra parte ruach elohim
pretende significar Espírito de Deus, ele com certeza está certo em
duvidar da intensidade do esforço em rejeitar tal significado em Gênesis
1.2.[13] No mínimo, à luz das próprias reflexões do Antigo Testamento, o
pairar e o mover-se, em Gênesis 1.2, devem ser tomados como
indicativos da presença do poder do Espírito.[14] Aliás, embora
geralmente despercebido na exposição de Gênesis 1, pode-se
argumentar que o reconhecimento da presença do Espírito divino em
Gênesis 1.2 forneceria o “elo perdido” na interpretação do “Façamos...”
em Gênesis 1.26-27. Portanto, o Espírito de Deus seria o único
referencial possível deste discurso dentro da estrutura do próprio relato.
[15] Neste caso, o envolvimento do Espírito na obra da criação marcaria
Presença governante
Ruach expressa a ideia de vento ou ar em movimento. Como tal, ele
serve bem como um termo de ligação para descrever o Criador partindo
rumo à criação.
O divino ruach é o modo da poderosa presença de Deus no meio de
seu povo. Ezequiel insinua uma relação íntima entre o Espírito de Deus
e o rosto ou presença de Deus: “Já não esconderei deles o meu rosto,
pois derramarei o meu Espírito sobre a casa de Israel, diz o Senhor
Deus” (Ez 39.29; ver Ez 37 para a efusão em questão; cf. também Sl
104.29-30; 139.7).
A poderosa presença de Deus se revela em seu Espírito com vistas
ao cumprimento de uma variedade de propósitos na história redentora.
Ele não só leva indivíduos para além de suas capacidades físicas
normais; ele lhes dá habilidades que se estendem para além de suas
faculdades naturais. E assim ele distribui dons de diplomacia e perícia
profissional. José e Daniel, as duas principais figuras com savoir faire
[habilidade] no Antigo Testamento, foram homens em quem “o espírito”
de outro mundo foi visto habitar numa grande e inusitada medida (Gn
41.38; Dn 4.8-9; 5.11-14). Ambos exibiram as características que
seriam plenamente expressas na atividade do Espírito messiânico mais
claramente descrito em Isaías 11.1-5, especialmente a sabedoria e
entendimento que são o fruto de conhecer e temer a Deus.
Semelhantemente, Moisés foi revestido com o divino Espírito que o
capacitou para governar, e isso, por seu turno, foi compartilhado com
os setenta anciãos que suportaram com ele o fardo da administração e
governo entre o povo redimido de Deus (Nm 11.25). Justamente como o
Espírito produziu ordem e propósito na “matéria” primeva criada sem
forma e vazia (Gn 1.2), também, quando a nação foi renascida, porém
enfrentava o risco de cair no caos social, o Espírito de Deus operou
criativamente, produzindo um governo justo, ordem e diretriz entre os
refugiados no Egito (cf. Is 63.7-14).
Ao perseguir seus propósitos entre os convocados de seu povo, o
Espírito de Deus também concedeu dons de desígnio e sua execução a
homens como Bezalel e Aoliabe (Êx 31.1-11; 35.30-35). Aqui temos
outra vez um significativo padrão teológico operativo. A beleza e a
simetria da obra executada por esses homens na construção do
tabernáculo não só causaram deleite estético, mas também um padrão
físico no coração do acampamento que serviu para restabelecer
expressões concretas da ordem e glória do Criador e suas intenções em
prol de sua criação. E assim deu-se a noção de que a obra de
“recriação” começaria com o povo eleito. Entre eles estabeleceram-se os
reflexos terrenos do lugar de habitação de Deus. Como Calvino
corretamente afirma: “O tabernáculo era uma espécie de imagem visível
de Deus.”[16] Aqui, já na narrativa do Êxodo, encontramos o princípio
que só mais tarde emergirá com plena clareza no Novo Testamento: o
Espírito ordena (ou reordena) e por fim embeleza a criação divina. No
Jardim do Éden, no tabernáculo e no templo, o adorador descobre a
beleza da santidade, a qual é apenas um reflexo da beleza do próprio
Deus (1Cr 16.29; Sl 96.9). No templo final, no homem cheio do Espírito,
Jesus (Jo 2.19-22), este padrão alcançará seu ápice. No entanto, já
desde o início o ministério do Espírito teve em vista a conformação de
todas as coisas à vontade de Deus e, por fim, ao seu próprio caráter e
glória.
O Espírito Recriador
O ministério do Espírito não se limita aos dons que servem para o
estabelecimento nacional do povo de Deus. Sua obra é também moral e
redentiva. Já no Antigo Testamento o Espírito de Deus é o Santo
Espírito. Seja qual for o objetivo e orientação cúltica que a “santidade”
tenha, ela também envolve características morais e éticas. Por isso, no
Salmo 51.11, Davi confessa que sua relação santa com o Espírito de
Deus, ficou comprometida pelo fracasso moral.
Isaías 63.7-14, cuja referência já foi feita, é particularmente
iluminadora neste respeito, servindo de comentário à narrativa do
Êxodo. Visto que Deus se tornara seu Salvador:
Celebrarei as benignidades do Senhor e seus atos gloriosos...
Mas eles foram rebeldes
e contristaram seu Espírito Santo...
Então o povo se lembrou dos dias antigos,
de Moisés, e disse:
Onde está aquele que fez subir do mar
o pastor do seu rebanho?
Onde está o que pôs nele
seu Espírito Santo?
Aquele que os guiou pelos abismos,
como o cavalo no deserto,
de modo que nunca tropeçaram?
Como o animal que desce aos vales,
o Espírito do Senhor lhes deu descanso.
O Espírito e a Palavra
Enquanto não chegarmos nas passagens do Novo Testamento, não
encontraremos uma reflexão mais sistemática sobre a obra do Espírito
na ministração do Antigo Testamento (p. ex., em 2Tm 3.14-17, embora
mesmo aqui a ênfase é posta na função da Escritura). Entretanto,
quando os autores neotestamentários enunciam este tema, é evidente
que se veem como simples exegetas do Antigo Testamento. A convicção
de que os profetas do Antigo Testamento eram “arrastados pelo Espírito
Santo” (2Pe 1.21) reflete a própria reivindicação dos profetas em prol
da inspiração: “a mão do Senhor” estava sobre eles; seus oráculos eram
“a palavra do Senhor” (p. ex., Jr 1.2, 8, 15, 19, et passim).
Jeremias registra o que é de fato o paradigma de tal inspiração:
“Eis que ponho em tua boca [de Jeremias] minhas palavras [de Deus]”
(Jr 1.9). Isaías especificamente associa o Espírito com as palavras de
Deus, tanto na inspiração quanto na iluminação: “Quanto a mim, esta
é a minha aliança com eles, diz o Senhor: o meu Espírito, que está sobre
ti, e as minhas palavras, que pus em tua boca, não se apartarão dela,
nem da de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão
desde agora e para todo o sempre, diz o Senhor” (Is 59.21).
Portanto, a doutrina da inspiração não é uma invenção dos
escritores do Novo Testamento, mas lhes é inerente. Ela é sumariada
pelas últimas palavras proféticas de Davi: “O Espírito do Senhor fala
por meu intermédio, e sua palavra está em minha língua” (2Sm 23.2).
O registro escrito dos poderosos feitos de Deus e as palavras
interpretativas são o fruto da atividade contínua do Espírito entre o
povo redimido. É a palavra que procede da boca de Deus. É theopneustic
[teopnêustica], vinda, por assim dizer, do sopro divino (Mt 4.4), e é
dada através de homens movidos por seu Espírito (2Pe 1.20-21). Toda a
Escritura é assim vista como o sopro de Deus e serve ao propósito de
instruir, convencer, curar e equipar o povo de Deus (2Tm 3.16-17).
Quanto ao como esta expiração divina e influência do Espírito na
produção da Escritura, pouco é dito ou reivindicado. Deus se revela de
várias maneiras: sonhos, visões, iluminação e exames individuais,
assim também as providências divinas ordinárias e extraordinárias se
acham envolvidas no processo. Os autores da Escritura manifestam
certo interesse no produto mais que no processo. O modo da operação
do Espírito divino sobre o espírito humano permanece tão misterioso
como sua atividade na criação e recriação (cf. Sl 139.7-16; Lc 1.35; Jo
3.8-9). É evidente que a atividade de Deus não minimiza a
individualidade dos autores humanos. Na verdade, é o contrário, visto
que as personalidades dos autores humanos parecem estar estampadas
em todo o produto final. Simultaneamente, como toda a revelação
divina, a revelação que é apresentada na Escritura é de caráter
autopística: contém e expressa seu próprio testemunho quanto à sua
autoria divina. No Novo Testamento, descobrimos esta ideia um pouco
mais claramente sistematizada, e, como veremos, o Espírito é dado aos
apóstolos em parte por seu papel como escritores da Escritura em
pauta. Mas em lugar algum se explica o modus operandi da atividade
do Espírito. As palavras de Eclesiastes são tão genuínas aqui como em
outro lugar: “Assim como não sabes qual o caminho do vento, nem
como se formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também
não sabes as obras de Deus, que faz todas as coisas” (Ec 11.5).
Portanto, ao longo do Antigo Testamento a atividade do Espírito é
identificada com o Ser de Deus. Há lugares em que esta atividade é
descrita em termos pessoais, como uma expressão do poder desnudo,
aparentemente violento de Deus, caindo sobre ou impelindo indivíduos
e assenhoreando-se de suas vidas para uma função divina (p. ex., Jz
3.10; 11.29; 14.6, 9). As testemunhas veterotestamentárias, porém, vão
além disso. Empregam-se termos mais pessoais. Por isso, quando o
Espírito vem, ele reveste as vidas sobre as quais desce (Jz 6.34; 1Cr 12.8;
2Cr 24.20). Ele molda um vínculo ético (i.e., santo e pessoal) entre si e o
povo redimido; ele pode ser “contristado” pela conduta deles como o foi
durante o Êxodo.
Espírito Hipostático?
Portanto, o Espírito de Deus não é meramente um sinônimo para o
poder de Deus. Mas a questão permanece: devemos imaginar o Espírito
como um modo da presença de Deus, ou (como faria a ortodoxia
trinitária posterior) em termos pessoais (hipostáticos)?
Desde a era pós-apostólica tem havido dentro da tradição cristã
certa tendência, e até certa ansiedade, para detectar a presença
hipostática do Filho ou do Espírito ainda no Antigo Testamento. Isso
era compreensível no contexto da apologética cristã em face do
judaísmo. Se o caráter trino de Deus é uma ideia bíblica, ele já não seria
evidente no Antigo Testamento? Daí, em Gênesis 1, o uso da forma
plural, elohim, para Deus, e as palavras enigmáticas, “Façamos...”
(1.26-27), eram com frequência vistos como indicadores de uma tríplice
hipostatização do Ser divino.[18]
A abordagem mais sóbria à teologia bíblica emergiu da leitura
histórica do texto pela Reforma Protestante e seu princípio de que a
doutrina é extraída do texto da Escritura somente mediante “boa e
necessária consequência”. Mas, recentemente, a erudição crítica tendia
a destruir a confiança na possibilidade de uma teologia sistemática
unificada construída sobre as bases da Escritura; e isso tem levado
muitos mestres bíblicos à dúvida se o Antigo Testamento fornece
alguma alusão de uma existência hipostática distinta para o Espírito.
[19]
A mais sábia abordagem desta questão é parti-la em suas partes
fundamentais, perguntando:
(1) A atividade do Espírito é atividade divina? A resposta é
certamente afirmativa.
(2) A atividade do Espírito é atividade pessoal? Uma vez mais, a
resposta é, com certeza, afirmativa. O Espírito dirige o povo de Deus. É
axiomático o fato de que somente um Espírito pessoal poderia engajar-
se na atividade do mais alto nível no relacionamento com outras
pessoas.
Isso nos conduz à terceira e crucial pergunta:
(3) A atividade do Espírito é hipostaticamente distinta? A ação do
Espírito na criação, no êxodo e no governo do reino, é certamente tanto
pessoal quanto divina; mas o Espírito é meramente um modo existencial
de Deus — o divino visto da perspectiva de sua imanência na ordem
criada em distinção de sua autossuficiência transcendente — e,
portanto, semelhante a expressões tais como “o braço do Senhor”?
Portanto, devemos pensar no Espírito de Deus como extensão mais que
hipostatização? Ou podemos, com base na “consequência boa e
necessária” da evidência veterotestamentária, avançando para mais um
estágio?
Seria axiomático em toda a teologia cristã que o Espírito Santo
(como também o Pai) nos seja cabalmente revelado somente em e
através de Jesus Cristo. Isso já se antecipou em boa medida sob o antigo
pacto. Reconhece-se que há um caráter parcial na obra do Espírito que
só atingirá sua plenitude no Messias (Is 11.1-10) e, portanto, na mais
íntima e mais ampla experiência do Espírito (Ez 36.25-27; Jl 2.28-32).
Portanto, devemos esperar um forte elemento do enigmático no
testemunho veterotestamentário sobre o Espírito paralelo ao que os
autores da profecia messiânica descobriram em suas próprias profecias
sobre Cristo (cf. 1Pe 1.10-11). Somente através da revelação do Espírito
no Messias é que o testemunho enigmático do Antigo Testamento
emerge em sua verdadeira luz, de modo que a atividade do Espírito é
vista como sendo mais que uma mera extensão da presença de Deus.
O valioso comentário de B. B. Warfield sobre a revelação da
Trindade em geral pode ser tomado como uma abordagem igualmente
sábia sobre a revelação do Espírito hipostático em particular:
O Antigo Testamento se assemelha a um salão ricamente mobilado, mas
parcamente iluminado; a introdução de luz nada lhe realça que nele não
existisse antes; mas nos faz ver mais, põe em relevo com maior nitidez muito
do que mal se via anteriormente, ou mesmo não houvesse sido percebido. O
mistério da Trindade não é revelado no Antigo Testamento; mas o mistério da
Trindade está subentendido na revelação do Antigo Testamento, e aqui e
acolá é quase possível vê-lo. Assim, a revelação de Deus no Antigo Testamento
não é corrigida pela revelação mais plena que se lhe segue, mas é,
simplesmente, aperfeiçoada, prolongada e ampliada.[20]
[3] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 118.
[4] Embora tecnicamente traduzido por rûah, por conveniência a forma familiar, ruach, é
usada em todo este livro.
[5] Ver E. DeWitt Burton, Spirit, Soul, and Flesh (Chicago, IL: University of Chicago Press,
1918), p. 113. Cf. G. L. Prestige, God in Patristic Thought (Londres: SPCK, 1952), pp.
17ss.
[6] Todas as citações bíblicas em itálico procedem de minha própria ênfase.
[7] Geerhardus Vos, Biblical Theology (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948), p. 257.
[8] Idem, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1952), p.
300.
[9] Ver, por exemplo, Irineu, Against Heresies, 3.24.2; 4.7.4; 4.20.1. Os Pais consideravam
com frequência referências bíblicas à atividade da Sabedoria como indicação do Espírito
de Deus. Ver ainda W. H. McLellan, “The Meaning of Ruah “Elohim in Genesis 1, 2” Biblica
15 (1936), pp. 519-520; H. M. Orlinsky defende a tradução “vento” em “The Plain Meaning
of RUAH em Gn 1.2” in Jewish Quarterly Review 48 (1957-58), pp. 174-180.
[10] Ver B.S. Childs, Myth and Reality in the Old Testament (Londres: SCM Press, 1960),
pp. 32-33.
[11] João Calvino, Commentary on Genesi, 1563, tradução de John King (Edinburgo:
Calvin Translation Society, 1847), p. 73.
[12] Cf. Gordon J. Wnham, Genesis (Waco, TX: Word, 1987), p. 16.
[13] Wolfhart Pannenberg, Systematic Theology, tr. G. W. Bromiley (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1994), vol. 2, p. 77.
[14] Cf. M. G. Kline, Images of the Spirit (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1980), pp.
13-15. Gordon J. Wenham fornece uma via media ao traduzir ruach Elohim como “Vento
de Deus” (Notem-se as letras maiúsculas), mas vê isso “como uma imagem concreta e
vívida do Espírito de Deus. A frase realmente expressa a poderosa presença de Deus se
movendo misteriosamente sobre a face das águas” (op. cit., p. 17).
[15] Ver Kline, loc. cit.
[16] João Calvino, Comentário à Epístola aos Hebreus, tradução de Valter Graciano
Martins, Edições Paracletos, São Paulo, 1997, 1.ª edição, p. 238.
[17] Como faz L. Neve, The Spirit of God in the Old Testament (Tóquio: Seibunsha, 1972),
pp. 128-129.
[18] Ver, por exemplo, Irineu, Against Heresies, 4.20. Justino faz a mais modesta e
logicamente acurada sugestão em seu Dialogue With Trypho, lxii, no sentido de que há
“pelo menos duas”!
[19] O vínculo disto se encontra na maneira pela qual, mesmo para um estudioso menos
radical do Novo Testamento como C. F. D. Moule, há, para dizer o mínimo, uma opacidade
sobre o status hipostático do Espírito: “triplicidade é, talvez, menos vital para a
concepção cristã de Deus do que a eterna duplicidade de Pai e Filho” (The Holy Spirit)
[Oxford: Mowbray, 1973], p. 51). Mais radicalmente, para G. W. H. G. Lampe, Espírito é
tudo o que há em relação a Deus. Ver seu God as Spirit (Oxford: Oxford University Press,
1977), passim.
[20] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929;
reimpresso em Edinburgo: Banner of Truth, 1988), pp. 141-142.
[21] Agostinho, Questiones in Heptateuchum, 2.73.
[22] J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines, rev. ed. (Nova York: Harper Collins, 1978), p.
115. Cf. também Prestige, op. cit., pp. 157ss.
2
O ESPÍRITO DE CRISTO
No que diz respeito ao ministério do Espírito, o ensino mais
concentrado e importante que existe nos Evangelhos é o que
encontramos no discurso de despedida que Cristo pronunciou (Jo 13–
16). Neste discurso anuncia-se a importância da vinda do Espírito em
termos programáticos: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse
dará testemunho de mim; e vós também testemunhareis, porque estais
comigo desde o princípio” (Jo 15.26-27).
O testemunho que a igreja dava de Jesus Cristo tornou-se parte tão
importante e central da visão cristã, que podemos ser levados a perder
de vista a importância teológica e histórico-redentiva desta afirmação
de Jesus Cristo. A linguagem é legal e natural, em consonância com um
motivo que permeia todo o Evangelho de João: Jesus está em prova.
Na primeira metade do Evangelho de João, o “livro dos sinais”
(capítulos 1-12), várias “testemunhas” comparecem e dão seu
testemunho. Eventualmente, o autor indica que a função de seu
Evangelho é a de atuar como um testemunho documental da identidade
de Cristo: “Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é
o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 20.31). Não surpreende, pois, que a
linguagem testemunhal surja com mais frequência neste Evangelho do
que em toda a somatória do restante do Novo Testamento.
Nesta prova contínua, o leitor está sendo confrontado com a
evidência sobre Jesus e é desafiado a alcançar seu próprio veredicto (cf.
20.30-31). Além do mais, este será um processo contínuo; Jesus
pretende enviar os apóstolos pelo mundo para que sejam suas
testemunhas (“vós também testificareis”, Jo 15.27; cf. Mt 28.18-20; Lc
24.48; At 1.8). Dentro deste contexto, contudo, lemos agora que a
principal testemunha de Cristo será o Espírito Santo a quem ele enviará
da parte do Pai (Jo 15.26). Ele é o paraklētos.
O paraklētos
Muita atenção se tem devotado aos estudos joaninos quanto ao
significado e identidade do paraklētos. Um composto de kaleō, “chamar”,
e para, “ao lado de”, o termo denota alguém que é chamado para o
auxílio ou defesa de outrem. Um paraklētos é, no sentido mais antigo do
termo, um “consolador” (lat. cum forte), ou, seja, alguém que vem para
fortalecer. Entretanto, agora se reconhece mais geralmente que em João
o termo possui uma conotação forense. O Espírito é a testemunha e o
advogado que testifica de Cristo.
Os apóstolos também são testemunhas. É importante observar o
que os qualifica. Na verdade, o que os impele a serem assim: “e vós
também testemunhareis, porque estais comigo desde o princípio” (Jo
15.27).
O amor de João pelo double entendre [duplo ouvir] sugere aqui uma
analogia entre os apóstolos e o Espírito. Compartilham da mesma
atividade, ou, seja, dar testemunho; e da mesma qualificação para ela:
têm estado com Cristo desde o princípio de seu ministério, justamente
como o Espírito tem estado com ele “desde o princípio”. Os discípulos e
o Espírito compartilham da qualificação essencial para testificarem de
forma oficial.
Na cultura em que nosso Senhor vivia, os processos eram
conduzidos não por advogados agindo pela instauração e defesa, mas
por um juiz a extrair a verdade da testemunha que se apresentava com
evidência (cf. Dt 17.6). Em tal contexto, era necessário que o “advogado”
ou o “conselho de defesa” que uma pessoa acusada buscava fosse não
um profissional altamente qualificado, mas alguém que a defendesse,
falando a verdade. Uma testemunha ocular e/ou uma testemunha de
caráter era o que se requeria. Alguém cujo relacionamento com o
acusado o capacitava a falar com autoridade. Um amigo íntimo e não
uma pessoa profissionalmente treinada no manuseio da lei.
Neste cenário, o Espírito é, idealmente, o indicado para ser a
principal testemunha em prol de Cristo, visto que ele era o íntimo
companheiro de Jesus ao longo de seu ministério. Como o grande pai
capadócio, Basílio de Cesareia (c. 330–379) expôs, o Espírito Santo era
o companheiro inseparável de Jesus Cristo “...toda a atividade de Cristo
se manifestava na presença do Espírito Santo...”.[23] Eis por que seu
testemunho é tão importante, poderoso e confiável. Desde o ventre até o
túmulo e até o trono, o Espírito foi o constante companheiro do Filho.
Como resultado, quando vem aos cristãos com o fim de habitar neles,
ele vem como o Espírito de Cristo de tal maneira que possuí-lo equivale
a possuir o próprio Cristo, assim como a ausência dele equivale à
ausência de Cristo.
Esse relacionamento está implícito nas palavras de Paulo em
Romanos 8.9-10, onde o Espírito e Cristo são virtualmente termos
intercambiáveis, apontando para sua equivalência econômica enquanto
reconhece suas distinções pessoais:
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de
Deus habita em vós. E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é
dele. Se, porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa
do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça.”
O Testemunho de Lucas
O Novo Testamento vê o Pentecostes, como vê o Calvário, como um
evento com significação multifacetada. Uma variedade de tributários da
teologia bíblica flui dele. O modo em que ele é entendido como um
aspecto da obra de Cristo é central à sua interpretação.
O relacionamento de Jesus com o Espírito em Lucas e Atos pode ser
traçado através dos três estágios que já analisamos. O primeiro estágio
está em sua concepção de Maria pelo poder do Espírito. O segundo
começa com seu batismo, quando recebeu a unção messiânica como o
novo Adão (cf. Lc 3.22-23 com 4.37), o Homem da era messiânica, cheio
do Espírito (Lc 4.1, 18-21). Ungido com o Espírito, ele andou por toda
parte fazendo o bem, ou, seja, proclamando que o reino está agora
presente, e revelando evidências de sua presença em suas obras
poderosas (cf. At 10.38). O terceiro estágio começou com sua
ressurreição e ascensão, quando ele foi batizado com água por João, e
ele mesmo é quem batizava com o Espírito Santo (Lc 3.16; At 1.5; 11.16)
e revestiu seus discípulos “com o poder do alto” (Lc 24.49). Aquele que
primeiro recebeu, ficou cheio do Espírito e foi sustentado por ele, então
entrou na nova era de relacionamento, em quem a promessa do Pai se
cumpriu (Lc 24.49), e agora possuía a prerrogativa de enviar o Espírito.
Espírito e Fogo
O batismo que Jesus recebeu no Jordão e o batismo que ele inicia no
Pentecostes são notavelmente diferentes, mas se relacionam
estreitamente. João anunciou que o batismo de Jesus seria com o
Espírito e com fogo, introduzindo a era messiânica através da
destruição cataclísmica.
Jesus entendeu que, ao conceder o Espírito a seu povo e introduzir a
nova era, ele mesmo experimentaria a realidade que seu batismo no
Jordão transmitiu, ou, seja, um batismo de fogo. Toda sua vida
emocional se engrenava a esse evento como suas próprias palavras
testificam: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem quisera que já
estivesse a arder. Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser
batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize” (Lc 12.49-
50). O que João Batista não conseguia entender claramente era que o
“fogo” do qual ele falava cairia sobre o próprio Messias, na solidão da
cruz. De fato, mais tarde João expressou sua dúvida sobre a significação
do ministério de Jesus, aparentemente por lhe faltar “fogo” (Lc 7.18-23).
As pesquisas de Lucas não eram insuficientes então, quando, em
seu registro das palavras pós-ressurreição de Jesus aos discípulos sobre
ser batizado com o Espírito Santo, ele não faz menção de fogo. Suas
chamas haviam sido exauridas em Cristo. Parte do simbolismo das
“línguas de fogo” que os discípulos viram no Dia de Pentecostes (At 2.3)
bem que poderia ser uma insinuação de que este é um batismo de poder
gracioso em vez de poder destrutivo, em virtude do juízo que Cristo
havia vicariamente suportado em sua paixão.[43]
Promessa Cumprida
Em seu sermão no Pentecostes, Simão Pedro nos faz momentaneamente
recuar aos eventos da história a fim de fornecer-nos um vislumbre de
uma transação entre o Pai e o Filho-Mediador com o fim de dar-nos
mais percepção do significado do Pentecostes: “Exaltado, pois, à destra
de Deus, tendo [Cristo] recebido do Pai a promessa do Espírito Santo,
derramou isto que vedes e ouvis” (At 2.33).
Há nessa promessa dois aspectos. O dom do Espírito é um
elemento central no novo pacto, o qual Deus prometera dar a seu povo
(cf. Ez 36.27), e a essência interna da promessa dada a Abraão (cf. Gl
3.14). No entanto, outro aspecto emerge, pois o dom do Espírito foi
prometido a Cristo a fim de cumprir as promessas messiânicas: “assim
aspergirá muitas nações, e os reis fecharão suas bocas por causa dele...
Por isso eu lhe darei muitos como sua parte e com os poderosos
repartirá ele o despojo” (Is 52.15; 53.12). É pelo dom do Espírito a
Cristo, e a concessão do Espírito por Cristo, que se cumpriu a promessa
do Pai a seu Filho feita no Salmo 2.8: “Pede-me, e eu te darei as nações
por tua herança...”. O cumprimento da Grande Comissão se concretiza
no poder do Espírito. A súbita realidade revelada publicamente pelo
Pentecostes consiste em que o Cristo que subiu, e agora pedia ao Pai
que cumprisse sua promessa, recebeu o Espírito para seu povo e agora o
derramou sobre a igreja, para que a era messiânica iniciada na
ressurreição de Cristo pudesse alcançar, em seu fluxo, os que se unem a
ele pela participação no único Espírito. Portanto, a semente de Abraão
seria agora uma benção para todas as nações da terra (Gn 12.3; Gl
3.13-14).
Nova Criação
Os acompanhamentos físicos e visíveis da vinda do Espírito ajudam a
derramar mais luzes sobre sua significação multifacetada, visto que
levam os ecos de vários temas do Antigo Testamento. O “som como o
soprar de um vento violento” ecoa a imagem da poderosa operação do
ruach elohim da criação (Gn 1.2), sugerindo que o evento que estava por
acontecer marcava o início de uma nova ordem mundial.
Juízo Revertido
Na manhã do Pentecostes, os discípulos começaram a falar em outras
línguas para que os visitantes a Jerusalém ouvissem a mensagem do
evangelho em seu próprio idioma (At 2.4). A declaração de Lucas aqui é
acompanhada por uma “lista de nações” (At 2.8-12), justamente como
o registro de Gênesis, onde a linguagem humana foi confundida, é
acompanhado por uma “lista de nações” (Gn 10.1-32). Portanto, parte
da resposta à pergunta, “Que quer isto dizer?” (At 2.12), parece ser que
temos aqui o reverso de Babel, a fundação da comunidade dos
reconciliados. I. H. Marshall realçou que o número 120 (At 1.15) era o
número mínimo de homens requerido “para estabelecer uma
comunidade com seu próprio conselho”, de modo que esses primeiros
cristãos fossem capazes de “formar uma nova comunidade”.[44] No Dia
de Pentecostes, essa nova comunidade tornou-se a esfera na qual o
reverso escatológico dos efeitos do pecado começou a aparecer num
povo reconciliado, consistindo de judeus e gentios, possuindo um só
Senhor, uma só fé e um só batismo (Ef 4.1-6), unido pelo Espírito.
Os efeitos de Babel foram assim reprimidos. Agora a palavra da
reconciliação será pregada em muitos idiomas, já que os discípulos
receberam o poder prometido do Espírito que os capacitou a testificar de
Cristo por todo o mundo (Lc 24.48; At 1.4).
Há, contudo, outra dimensão para esse inusitado fenômeno de
falar em línguas, caso as línguas em pauta, aqui e na igreja de Corinto,
sejam da mesma natureza de línguas estrangeiras. Ao discutir a
questão do falar em línguas, em 1 Coríntios 14, Paulo cita Isaías 28.11-
12 (“Pelo que por lábios gaguejantes e por língua estranha falará o
Senhor a este povo, ao qual disse: Este é o descanso, dai descanso ao
cansado; e este é o refrigério; mas não quiseram ouvir”) e indica que
línguas constituem “um sinal”, não para os crentes, mas para os
incrédulos” (1Co 14.21-22).
O contexto destas palavras em Isaías é o da rejeição do pacto. Em
razão da imaturidade das disposições comportamentais de seu povo,
Deus falará numa pronúncia que não será bem-vinda: “Pelo que por
lábios gaguejantes e por língua estranha falará o Senhor a este povo”
(Is 28.11). Aqui, como em outra parte, o ouvir línguas estranhas é um
sinal do juízo prometido por Deus a seu povo pactual (cf. Dt 28.49; Jr
5.15), e indicação de que o reino está sendo tirado deles e dado a um
povo que produzirá fruto apropriado (Mt 21.43). O universalismo do
Pentecostes também tem seu lado escuro: Israel começou a
experimentar um endurecimento parcial até que a “plenitude” dos
gentios seja introduzida (Rm 11.25).
Pentecostes e Sinai
Até o primeiro século, tudo indica que o Dia do Pentecostes estava
associado à promulgação da lei no Sinai. Até o segundo século,
pensava-se que isso envolvera os setenta idiomas do mundo, e essa
tradição já era comum.[45] Mas, mesmo que essa associação no
judaísmo seja questionada, um Pentecostes-Sinaítico paralelo é
estabelecido no próprio Novo Testamento. A revelação de Deus a Moisés
no Sinai foi acompanhada por fogo, vento e um idioma divino (Hb
12.18-21). Moisés havia subido ao monte. Quando desceu, tinha em sua
posse os Dez Mandamentos, a lei de Deus. Cristo também recentemente
subira. No Pentecostes, ele desceu, não com a lei escrita em tábuas de
argila, mas com o dom de seu próprio Espírito para escrever a lei nos
corações dos crentes e com seu poder capacitá-los a cumprir as
demandas da lei. Assim, a promessa do novo pacto começa a cumprir-
se (cf. Jr 31.31-34; Rm 8.3-4; 2Co 3.7-11).
A Significação da Profecia
Na exposição que Pedro faz da significação dos acontecimentos do
Pentecostes, as palavras da profecia de Joel 2.28-32 são centrais:
“E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor,
que derramarei do meu Espírito sobre toda carne;
vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos jovens terão visões,
e sonharão vossos velhos;
até sobre meus servos e sobre minhas servas
derramarei do meu Espírito naqueles dias,
e profetizarão.” (At 2.17-18)
O Testemunho de João
João registra um incidente ocorrido no dia da ressurreição que, depois
de séculos, tem causado considerável dificuldade aos intérpretes de seu
Evangelho. Jesus apareceu aos discípulos e disse:
“Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E,
havendo dito isto, soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se
de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são
retidos.”
(Jo 20.21-23).
Pentecostes Joanino?
Tem-se tornado comum falar deste incidente como o Pentecostes
Joanino, na suposição de que ele serve à mesma função na teologia de
João, como o Pentecostes, na teologia de Lucas. Isso implica que a
reconstrução histórica tem dado prioridade à exatidão histórica a tal
ponto que os acontecimentos podem ser radicalmente remodelados (ou
mesmo inventados de novo) para os propósitos da história. À maneira
de contraste, embora os escritos de Lucas tenham uma função teológica
definida, ele os apresenta como o fruto de pesquisa histórica (Lc 1.1-4).
É possível, pois, perceber a síntese no Evangelho de João como uma
peça de teologia funcional em vez de história? Bem fora do interesse
dogmático (i.e., as implicações para a doutrina da Escritura), há boas
razões para considerar estes incidentes como completamente distintos,
embora teologicamente relacionados, dos incidentes do Pentecostes. De
fato, o enfoque em João 20 é muito diferente daquele em Atos 1.
Dentro da estrutura joanina, a vinda do Espírito é dependente da
ascensão e exaltação de Cristo (Jo 14.16-17; 16.7). Na manhã da
ressurreição, Jesus indicara a Maria que a ascensão ainda não havia
ocorrido (Jo 20.17). Seria uma notável inconsistência no pensamento de
João se ele, no mesmo capítulo, retratasse os acontecimentos dessa
tarde como o envio prometido do Espírito.
O registro joanino sublinha duas coisas, em relação às quais os
atos de Jesus pareciam ser em grande escala simbólicos.[48]
(1) Jesus soprou sobre seus discípulos como Deus soprara o fôlego
de vida em Adão (Gn 2.7). O simbolismo é aquele do princípio de uma
nova criação. Aqui, apropriando-se de termos paulinos, o último Adão
agora vem a ser “o Espírito Vivificante” (escatológico).
(2) Jesus equipou os apóstolos com seu próprio Espírito para um
novo estágio de seu ministério no qual serviriam em sua ausência como
seus representantes ministeriais. Daí, o enfoque da narrativa está em
sua comissão para perdoar pecados (Jo 20.22-23; cf. Mt 16.19), mais do
que na vinda do Espírito na qual todo o povo de Deus seria participante.
Não obstante, implícito nisto está precisamente o cumprimento das
promessas do novo pacto e do dom universal do Espírito (Jr 31.33-34;
Ez 36.25-27).
Nesta conexão, a ausência de Tomé no grupo comissionado foi
reparada na semana seguinte (Jo 20.2-10) quando foi convidado a pôr
sua mão no lado ferido de Jesus, donde fluíram sangue e água,
provavelmente insinuando, como veremos, que o dom do Espírito
provinha de Jesus como o “exaltado” na crucifixão.
O Espírito e a Cruz
Entre outras passagens no Evangelho de João, as quais derramam luz
sobre o Pentecostes, particularmente significativas são as palavras de
João 7.37-39:
No último dia, o grande dia da festa,[49] levantou-se Jesus e exclamou: Se
alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim,[50] como diz a
Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com respeito
ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até esse
momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado.
Inspiração
A segunda chave de João 14 a 16 para a significação da vinda do
Espírito é conectada com a função dos apóstolos na redação das
Escrituras neotestamentárias.
Perguntaram a Jesus por que ele planejou revelar-se aos apóstolos
e não ao mundo (Jo 14.22). Sua resposta faz remontar seu próprio
ensino ao ensino do Pai, com isso enfatizando sua autoridade e origem
divinas e absolutas (Jo 14.23-24). Suas palavras equivalem a uma
reivindicação à inspiração divina de seu ensino. Esta inspiração,
acrescenta ele, não cessa com sua partida, pois, quando o Consolador
vier, “ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que
eu vos disse” (Jo 14.16).
A significação dessas palavras é também comumente destruída
quando recebe aplicação imediata aos cristãos contemporâneos. A
verdade, porém, é que constituíam uma promessa específica aos
apóstolos que encontraram seu cumprimento na composição das
Escrituras neotestamentárias. Os Evangelhos contêm as memórias do
que Jesus havia dito e ensinado; nas cartas encontramos mais
iluminação que receberam através do Espírito Santo. Portanto, quando
Jesus mais tarde falou que o testemunho deles seria o do Espírito (“o
Consolador... testificará de mim. E vós também testificareis...”, Jo
15.26-27), o exemplo permanente dessa atividade conjunta se encontra
nas páginas do Novo Testamento, o qual é obra do Espírito e,
simultaneamente, também o testemunho dos apóstolos. Além do mais,
em João 16.13-14, a promessa de que o Espírito “dirá tudo o que tiver
ouvido, e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará
porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar” encerra a
formação das Escrituras neotestamentárias em ambos os seus aspectos:
profético e plenitude cristológica.
Não há dúvida de que essas palavras possuem uma significação
contínua para os cristãos de hoje, mas não na maneira direta em que
são às vezes entendidas (o Espírito me guiará a toda a verdade de uma
maneira imediata). Ao contrário, elas indicam que é por meio do
testemunho apostólico (agora escrito no Novo Testamento), não por
meio de revelação direta dada pelo Espírito aos crentes individualmente
ou por meio de revelação corporativa para instruir os oficiais
(reivindicação que foi desenvolvida no magisterium da igreja romana)
que se fazem conhecer a pessoa de Cristo, seu ensino e seus propósitos
futuros.
Comunhão
A vinda do Espírito inaugura a comunhão com Cristo na qual o Espírito
que habita Cristo agora habita com e nos crentes. Este elemento é
realçado no discurso de despedida, quando Jesus promete aos discípulos
“outro Consolador” que seria seu equivalente econômico, já que ele é
seu próprio Espírito. Jesus mesmo voltará para eles (Jo 14.18), não só
na ressurreição, mas nesta nova forma.
Esta perspectiva ilumina a força do que está expresso em João 16.7:
“Mas eu vos digo a verdade: Convém-vos que eu vá, porque, se eu não
for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo
enviarei.” A vinda do Espírito equivale ao habitar de Jesus. Isto é para o
bem dos discípulos, já que implica uma união tão estreita com Cristo,
que ele habita neles, não simplesmente com eles. Eis a razão por que
Jesus explica assim a significação da vinda do Espírito: “Naquele dia
[i.e., o Dia em que o Pai lhes dará outro Consolador = o Dia de
Pentecostes] vós conhecereis que [a] eu estou em meu Pai e [b] vós em
mim e [c] eu em vós” (Jo 14.20). A união trinitária e a comunhão do Pai
e do Filho no Espírito constituem a analogia para a união e comunhão
entre Cristo e seu povo.
Já vimos a mesma questão formulada por Paulo em 1 Coríntios
15.45. Cristo se tornou “Espírito Vivificante”. Ter o Espírito equivale a
— aliás o próprio modo de — ter o Cristo encarnado, obediente,
crucificado, ressurreto e exaltado nos habitando, para que sejamos
unidos a ele como ele é unido ao Pai.
É neste sentido que João vê a diferença que o Pentecostes faz no
ministério do Espírito. Agora, como o vínculo de união com Deus, o
Espírito habita todos os que creem nele como o Espírito do Senhor Jesus
Cristo. Este é um desenvolvimento de proporções notáveis. O Espírito
que estava presente e ativo na concepção de Cristo como o líder da nova
criação, por quem foi ungido no batismo (Jo 1.32-34), que o dirigia em
todas as suas tentações (Mt 4.1), capacitando-o em seus milagres (Lc
11.20), comunicando-lhe energia em seu sacrifício (Hb 9.14) e
defendendo-o em sua ressurreição (1Tm 3.16; Rm 1.4), agora habita os
discípulos nesta identidade específica. Este é o significado das palavras
de nosso Senhor, de outra forma vem a ser impossível de compreender:
“Convém-vos que eu vá” (Jo 16.7).
A profunda implicação experiencial disto é sumariada por
Abraham Kuyper: “O de que uma alma redimida necessita é de
santidade humana.” Santidade angélica não serviria para o homem
caído. Se é para sermos santos, tal santidade tem que ser operada em
nossa humanidade. Isso é o que Cristo realizou. E agora o Espírito, de
sua união com o Filho encarnado, traz esses recursos para afetar as
vidas dos crentes. Em virtude de seu ministério em Cristo, ele pode
agora habitar-nos para reproduzir a mesma santidade em nossas vidas.
E assim, acrescenta Kuyper: O Espírito Santo encontra esta santa
disposição em sua forma requerida, não no Pai, nem nele mesmo, mas
no Emanuel que, como o Filho de Deus e o Filho do homem, possui
santidade nessa forma peculiar.”[51]
Jesus mesmo expressa este ministério do Espírito laconicamente
quando diz: “Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e
vo-lo há de anunciar” (Jo 16.14). Em certo sentido, os vários aspectos
da implicação da redenção são simplesmente respostas bíblicas
adicionais à pergunta: como o Espírito realiza esta obra?
Processão
Ao discutirmos a revelação do Espírito no antigo pacto, notamos que é
inevitável na revelação progressiva, histórica e cristocêntrica que só na
vinda do Filho é que o Espírito (tanto quanto o Pai, Jo 14.9) se revelou
plenamente. Portanto, esperaríamos que, na vinda do Filho, o
relacionamento do Espírito com o Pai e com o Filho também fosse mais
claramente desvendado.
Em seu discurso de despedida, Jesus envia o Espírito “da parte do
Pai” (para tou patros) como aquele que “sai do [“procede do”] Pai” (ho
para tou patros ekporeuetai, Jo 15.26). Esta afirmação tem como alvo a
significação trinitária do Pentecostes. Embora seja Jesus quem envia o
Espírito, isso ocorre em resposta ao seu pedido para que o Pai o faça
(14.16, 26). Portanto, o Espírito é enviado pelo Pai e pelo Filho como
Mediador. Há uma dupla fonte para sua missão. Ele “avança” para ela
“da parte do Pai e da parte do Filho”. Em termos da Trindade
econômica, podemos, portanto, falar de um “duplo envio”.
A igreja cristã logo conseguiu geral concordância sobre este ponto.
Mas suscita-se a pergunta: Esta mesma estrutura relacional caracteriza
as relações essenciais e íntimas das pessoas na Deidade?
Este, naturalmente, é o maior problema teológico que chegou a
dividir as Igrejas Oriental e Ocidental desde o tempo do Grande Cisma
em 1054.[52]
A baliza das Confissões Cristãs de Nicéia (325) e Constantinopla
(381) afirmava que a processão do Espírito era do Pai. Embora vários
modos de descrever sua relação com o Filho eram informalmente
empregados, a definição desta relação não foi considerada pela igreja
universal como um resultado passageiro. H. B. Swete habilmente
sumaria a situação na aurora do quarto século:
A Igreja passou a buscar uma resposta às perguntas: “Donde vem o Espírito:
de Deus e de Cristo? Como ele se relaciona com o Pai? Como se relaciona com
o Filho? Na África do norte e Alexandria, a resposta já havia sido dada: “Ele
procede do Pai; ele existe através do Filho”. Mas nenhuma igreja, nem mestre
individualmente se havia aventurado a dizer: “Ele procede de ambos”. Em
contrapartida, tampouco ouvimos mesmo o mais leve sussurro em resposta:
“Ele procede do Pai, e tão-somente do Pai”.[53]
PENTECOSTES HOJE?
O Pentecostes e os Discípulos
Os discípulos que se reuniram após a ressurreição de Jesus eram crentes
genuínos (cf. Mt 16.15-20); já se achavam “purificados” e unidos a
Cristo (Jo 15.1-11). Por implicação, esse é o fruto da obra do Espírito
em suas vidas. Evidentemente, porém, não tinham ainda recebido o
batismo do Espírito que fora prometido (At 1.5). Sua experiência do
Espírito era progressiva em seu caráter.
Entretanto, não é possível argumentar partindo desta premissa
para a conclusão de que a experiência dos discípulos é paradigmática
para a igreja, pela óbvia razão de que unicamente eles abarcam o
período de transição da fé do antigo e do novo pactos. Sua experiência é
uma encruzilhada e, consequentemente, atípica e sem paradigma em
sua natureza. Necessariamente, seu ingresso na plena medida do
ministério do Espírito ocorreu em dois estágios distintos, refletindo um
padrão de continuidade (o mesmo Espírito) e descontinuidade (somente
no Pentecostes ele chegou à sua capacidade e ministério como o Espírito
do Cristo exaltado). Este padrão está radicado na emergência da nova
era procedente da antiga. Portanto, há uma singularidade acerca da
experiência deles, assim como houve acerca da experiência de Jesus.
Avivamento
Um aspecto relacionado com o Pentecostes é refletido no que às vezes
chamamos “avivamento”, quando declaramos que os crentes são
despertados e os não-cristãos são introduzidos no reino em grande
número, cada um com o senso individual de pecado e necessidade, mas
no contexto de um amplo senso da presença e poder do Espírito Santo.
Em alguns aspectos, o Pentecostes pode ser considerado como o
avivamento inaugural da era neotestamentária.[66] Certamente a
descrição da experiência da convicção de pecado, o “senso de temor”
(At 2.43) que era evocado, e o detalhado modelo do que deve ser a vida
da igreja (At 2.44-47) apontam nessa direção. Eis o que significa
avivamento. Para desenvolver ainda mais a metáfora do fluir da água,
podemos dizer que o avivamento são as energias ininterruptas e
incontidas do Espírito de Deus demolindo os diques que foram erguidos
contra o seu ministério de convencer e converter pessoas em todas as
comunidades de indivíduos, como aconteceu no Pentecostes e nos
“despertamentos” que têm ocorrido.
Nestes contextos, duplicando o padrão do Dia de Pentecostes, a
proclamação dos cristãos parece possuir um acesso especial de “poder”
quando o Espírito dá testemunho juntamente com Cristo, com e através
do testemunho dos discípulos (Jo 15.26-27; cf. At 4.33; 6.8; 10.38). Isto
se faz evidente na missão de Filipe em Samaria. As cartas de Paulo
indicam que ele havia experimentado isto numa série de centros
estratégicos no curso de suas viagens (p. ex., 1Co 2.4; 1Ts 1.5).
A poderosa vinda do Espírito de modo algum resolveu todos os
problemas. Os avivamentos espirituais que sempre ocorreram parecem
ter ocasionado um misto de consequências diversificadas mesmo em seu
caráter, expondo-se às influências destrutivas de orgulho espiritual e à
obstinação, como em Corinto. Portanto, não nos causa surpresa que a
mesma coisa tenha acontecido nos últimos “despertamentos” ocorridos
na história da igreja.
Jonathan Edwards, o teólogo do avivamento da Nova Inglaterra,
pode com razão ser culpado de nada mais fazer senão escrever com
demasiada ênfase:
“Pode-se observar que, desde a queda do homem até nossos dias, a obra de
redenção em seu efeito tem sido realizada, principalmente, por notáveis
comunicações do Espírito de Deus. Ainda que haja uma influência mais
constante do Espírito de Deus, sempre atendendo, em algum grau, a suas
ordenanças, contudo a forma como as maiores coisas têm sido feitas para
concretização da obra, sempre foi pelas suas notáveis efusões em tempos
especiais de misericórdia.”[67]
O Alvo
Vimos, pois, que existem essas duas dimensões para o Pentecostes: o
histórico-redentivo e o existencial-pessoal. O primeiro elemento ocorre
uma vez para sempre e não se repete; o segundo elemento deve ser visto
como aspectos do ministério contínuo do Espírito.
Além disso, a tarefa do Espírito é restaurar a glória da criação
caída. Como diz muito bem Calvino, este mundo foi criado como um
teatro da glória de Deus. E em sua plenitude exibe visivelmente as
perfeições de sua natureza invisível. Particularmente no homem e na
mulher, sua imagem, essa glória teria que ser refletida. Mas recusaram
“glorificar” a Deus (Rm 1.21); danificaram o refletor (Rm 1.28) e foram
destituídos de sua glória (Rm 3.23).
Agora, porém, em Cristo, que é “o esplendor da glória de Deus”
(Hb 1.3), essa glória é restaurada. Havendo-se feito carne por nós, ele
agora foi exaltado em nossa carne em glória muito maior. O alvo
escatológico da criação foi consumado nele como suas primícias. Agora
ele envia seu Espírito, o companheiro íntimo de toda sua encarnação,
com o fim de recobrar a glória em nós. E é assim que “nós, com o rosto
desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor,
somos transformados de glória em glória, em sua própria imagem,
como pelo Senhor, o Espírito” (2Co 3.18).
[61] Como, p. ex., J. D. G. Dunn argumenta em Baptism in the Holy Spirit (Londres: SCM
Press, 1970), pp. 55-72.
[62] Ver C. K. Barrett, “Apollos and the Twelve Disciples of Ephesus”, em W. C. Weinrich,
The New Testament Age (Macon, GA: Mercer University Press, 1984), vo. 1, pp. 29-39.
[63] Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova Iorque: Funk &
Wagnalls, 1900), pp. 123-126.
[64] Comparando a igreja medieval e a moderna, pode parecer excessivo, mas há notáveis
paralelos: a presença de milagres, culto que é dirigido pela emoção em vez de ser
dirigido pelo intelecto, oferecendo Cristo ou o Espírito por meios físicos (Cristo nos
elementos sacramentais, ou o Espírito pelo toque do líder carismático). Isso pode explicar
porque o movimento carismático tem sido passível de aproximação dentro do catolicismo
romano.
[65] Dunn, op. cit. , p. 128.
[66] J. R. W. Stott, The Message of Acts (Leicester: Inter-Varsity Press, 1990), p. 61. Ver,
nesta conexão, a breve, porém marcante seção sobre “O Espírito num despertamento
religioso”, e especialmente os comentários sobre oração, em G. Smeaton, The Doctrine of
the Holy Spirit (Edinburgh: T. & T. Clark, 1882), PP. 282ss.
[67] Jonathan Edwards, A History of the Work of Redemption, Period I, Part 1, in The
Works of Jonathan Edwards (London, 1834, repr. Edinburgh: Banner of Truth, 1974), vol.,
1, p. 539.
5
O ESPÍRITO DE ORDEM
O Espírito de Deus, derramado na igreja no Pentecostes, é o Espírito de
restauração.[68] Como tal, ele veio primeiramente sobre Jesus como a
cabeça da nova criação, equipando-o para o serviço como o segundo
homem e o último Adão que restauraria o domínio justo (1Co 15.45-49;
Gn 1.26-28; Sl 8.3-8). Ainda não vemos isso concretizado (Hb 2.8); a
criação ainda geme com dores de parto que são precursoras daquele
dia; os cristãos crentes, semelhantemente, gemem em seu íntimo
quando suspiram por ele (Rm 8.22-25). Neste sentido, a presente
atividade do Espírito, embora escatológica no sentido em que marca a
inauguração da glória do último dia, é semi-escatológica no sentido em
que é caracterizada pela incompletude. Essa glória, que Deus já
restaurou em Cristo, a cabeça da nova criação, aguarda o evento ainda
futuro.
Portanto, a atividade pós-Pentecostes do Espírito permeia toda a
história como diques concêntricos num reservatório. Como no tempo do
Antigo Testamento, também no do Novo, sua atividade é soteriológica,
comunal, cósmica e escatológica, e envolve a transformação do
indivíduo, o governo da igreja e do mundo e a introdução de uma nova
era.
Indicações deste padrão já se acham presentes na narrativa dos
Atos dos Apóstolos. Pessoas são levadas à fé em Cristo como Redentor e
Senhor, através do poder do Espírito (At 1.8), ou em números
consideráveis (At 2.41; 5.14; 6.7; 8.14; 11.24) ou como indivíduos
isolados (At 8.26-40, especialmente v. 29). A nova comunidade é
formada e sustentada sob o governo e atividade do Espírito (At 6.3, 5;
7.55; 10.19, 44-48; 13.2-4; 15.28; 16.6-10); os poderes da era vindoura
são liberados na presente era pelo ministério dos apóstolos (Hb 2.4;
2Co 12.12; At 3.1-10; 5.12). Jesus assim prossegue a obra de edificação
de sua igreja que começou durante sua encarnação (cf. Mt 16.18; At
1.2).
Evidentemente, se temos de ser transferidos de uma morte inglória
em pecado (Ef 2.1-4) para a participação da glória de Cristo, há um
longo caminho a percorrer. De que forma traçaremos os passos e os
movimentos do Espírito?
A Ordem da Salvação
Na história da teologia, detalhado exame crítico dos problemas
soteriológicos só surgiram depois dos problemas teológicos peculiares e
quando a cristologia se estabeleceu com algum detalhe. No período
patrístico, predominaram as questões concernentes ao Ser de Deus e à
pessoa e naturezas de Cristo. Mesmo o problema da divindade do
Espírito se estabeleceu quase como uma implicação secundária da
divindade de Cristo. Mais tarde, questões concernentes à obra de Cristo
vieram à tona com as discussões das assim chamadas teorias clássicas
da expiação, dos seguidores de Anselmo e Abelardo. Somente nas
discussões da Idade Média e do período da Reforma se buscaram e
forneceram afirmações mais definitivas sobre a soteriologia. A
exposição clássica da Igreja Católica Romana da justificação foi
promulgada depois do Concílio de Trento (1545-63). Mesmo neste
contexto, alguns delegados nutriam esperanças de que viesse à tona
uma declaração evangélica (luterana) sobre a justificação pela fé.
A interpretação de como se consumou a redenção por Cristo
carrega consigo inevitáveis implicações pela natureza de sua aplicação
ao indivíduo. Neste contexto, o principal aspecto da teologia da Idade
Média era o elo da graça salvífica com os sacramentos e, portanto, com
o ministério sacerdotal da igreja, no processo da justificação (processus
justificationis). A obra do Espírito foi assim encerrada dentro da
administração dos sete sacramentos. Tal sacramentalismo produziu um
mecanismo que, certamente pela ótica da Reforma, negava a obra
soberana do Espírito, a qual não era dependente da administração dos
ritos da igreja.
A teologia medieval foi amplamente entregue a um processo de
justificação, e portanto dava grande importância ao modo de
preparação para a graça. No processo da graça preveniente levando a
vontade a odiar o pecado e a aspirar pela justiça ou justificação
(justitia), o indivíduo se dispunha a receber a graça habitual. A tristeza
imperfeita pelo pecado (attritio), que carecia das qualidades da tristeza
perfeita (contritio), era compensada por meio do sacramento da
penitência. Não sendo mais um rito uma vez na vida, propiciando a
oportunidade de regressar à graça do batismo, a penitência tornou-se,
deste modo, um aspecto regular no processo contínuo rumo à justitia.
Na raiz disto está a noção agostiniana de que a justificação significava
ser feito justo (justum facere), não (como na teologia bíblica da
Reforma) ser declarado ou reputado ou constituído justo aos olhos de
Deus. Quando a justificação se confundiu com a justiça interna e
passou a ser vista mais subjetivamente do que como algo de caráter
forense, deficiente de santidade pessoal perfeita, ela, a justificação,
jamais poderia ser completa. Como resultado, à parte do privilégio
raramente concedido de revelação especial ao indivíduo, as bençãos da
justificação jamais poderiam ser asseguradas; daí a negação de certeza
feita pelo Concílio de Trento e a afirmação do famoso teólogo jesuíta,
Robert Bellarmine (1542-1621) de que a certeza era a maior de todas as
heresias protestantes.[69]
As discussões sobre a justificação levaram, eventualmente, à
Reforma Protestante. Aliás, neste contexto, as lutas de Martinho Lutero
em prol de Cristo e da Reforma dependiam em grande medida da
transformação (e em importantes aspectos, o reverso) da ordo salutis
medieval que ardia em sua consciência mediante sua nova compreensão
de Romanos 1.16-17. Ele agora via que Paulo não falava de sua ação
para a obtenção da justiça, mas da provisão divina dela no evangelho.
Um poderoso repensar ocorreu em seu entendimento da ordo salutis, e o
texto que ele interpretara fazendo uso da ordo salutis romana, agora,
ao contrário, se tornava a porta aberta para o Paraíso.
De forma alguma é um acidente ou um exagero que o francês de
nascença e reformador de Genebra da segunda geração na Suiça, João
Calvino, seja descrito, como temos notado, como “o teólogo do Espírito
Santo”. Naturalmente, a nova compreensão da natureza da justificação
(justiça imputada, não infusa, alheia, não auto-obtida) era uma
característica do novo ensino. Mas isso foi acompanhado por uma
dessacramentalização na aplicação da redenção, e uma restauração
correspondente do papel do Espírito. Não que os sacramentos fossem
despidos de seu poder, tanto quanto subordinado à ação conjunta da
Palavra e do Espírito.
Na igreja medieval, os sacramentos atuavam como um marco na
estrada da justificação. Onde quer que o catolicismo tridentino
posterior tenha mantido o poder, todas as bençãos da união com Cristo
foram atribuídas e mediadas pela ação motivadora e instrumental do
sistema sacramental, especialmente a missa e a eucaristia. À maneira
de contraste, no ensino reformado enfatizava-se que o Espírito Santo
conduzia o indivíduo à direta comunhão com Cristo, comunhão essa da
qual os sacramentos eram vistos como sinais e selos.
Portanto, se a pergunta “Como o Espírito se relaciona com o Pai e
o Filho?” estava no coração do primeiro grande cisma da cristandade, a
pergunta “Como o Espírito aplica as bençãos de Cristo ao indivíduo?”
adentrou o coração do segundo grande cisma.
Portanto, o padrão pelo qual o Espírito opera é de grande
significação. Ele chegou a ser discutido sob a rubrica latina, ordo
salutis, a ordem da salvação.[70]
O termo é, pelo menos em geral, auto-explicativo. Ordo significa
uma série, uma linha, uma ordem de sucessão. Cícero usou ordo para
uma fileira de assentos no teatro, ou uma fileira de remos num navio.
Quando usada para a aplicação da redenção, ordo salutis denota o
arranjo ordenado dos vários aspectos da salvação em sua concessão aos
homens e mulheres. Particularmente, ela busca responder esta
indagação: “De que maneira os vários aspectos da aplicação da
redenção (tais como justificação, regeneração, conversão e santificação)
se relacionam uns com os outros?” Discussões da ordo salutis tentam
desembaralhar a coerência e lógica interiores da aplicação que o
Espírito faz da obra de Cristo.
Esta, de fato, é uma questão mais antiga do que as discussões
medievais dela, e já se insinua na Escritura, por exemplo, nas
controvérsias sobre a relação entre graça e lei. Paulo explicitamente
indica que este problema soteriológico é também um problema
pneumatológico, quando ele escreve: “Quero apenas saber isto de vós:
recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?” (Gl
3.2).
É fácil ficar impaciente em relação a certos aspectos da discussão
sobre a ordo salutis. Pois há desacordo sobre a ordem envolvida até
mesmo entre os teólogos que pertencem conscientemente à tradição
reformada, e houve crítica paulatina sobre a própria ideia. Além do
mais, é natural que o cristão entusiasta sinta que os teólogos tenham
gasto tempo demais falando da ordem da salvação em vez de
proclamarem o evangelho! Mas as antíteses implícitas em tal reação
(proclamação do evangelho verso ordem da salvação) são prejudicadas.
Pois a maneira como apresentamos o evangelho invariavelmente
expressa uma compreensão implícita da ordo salutis. Além do mais, a
discussão é importante porque salienta a consciência da lógica
embutida em nossa compreensão do modo como o Espírito opera no
indivíduo, bem como em esclarecer a matriz do pensamento que governa
a forma na qual o evangelho cristão é proclamado.
Implicações
Primeiramente, a obra do Espírito é essencialmente o ministério de
unir-nos a Cristo, e então desvendar para nós e em nós as riquezas da
graça de Deus as quais herdamos em Cristo. Calvino, uma vez mais,
capta isto numa de suas mais eloquentes passagens:
Vemos que nossa salvação e todas as suas partes se acham compreendidas em
Cristo (At 4.12). Portanto, tomamos cuidado para não derivar a mínima
porção dela de qualquer outra fonte. Se buscamos a salvação, somos
instruídos pelo próprio nome de Jesus que ela procede “dele” (1Co 1.30). Se
buscamos quaisquer outros dons do Espírito, serão encontrados em sua
unção. Se buscamos força, ela se encontra em seu domínio; se pureza, em sua
concepção; se mansidão, ela aparece em seu nascimento... Se buscamos
redenção, ela está em sua pessoa; se absolvição, em sua condenação; se
remissão da maldição, em sua cruz (Gl 3.13); se satisfação, em seu sacrifício;
se purificação, em seu sangue; se reconciliação, em sua descida ao inferno; se
mortificação da carne, em seu túmulo; se novidade de vida, em sua
ressurreição... Em suma, já que o rico depósito de todo gênero de bem
transborda dele, bebamos desta fonte nossa suficiência, e de nenhuma outra.
[88]
A segunda implicação, enfatizada de várias formas no Novo
Testamento, consiste em que, embora continuemos sendo influenciados
por nossa vida pregressa, “na carne”, ela não mais é a influência
dominante em nossa presente existência. Não mais vivemos na carne,
mas no Espírito (Rm 8.9). O passado de Cristo (se assim podemos
expressar) é agora dominante. Nosso passado está “em Adão”; nossa
presente existência é “em Cristo”, no Espírito. Isto implica não só em
termos sociedade com ele na comunhão do Espírito, mas em que nele
nossa culpa pregressa é tratada com a lei, bem como nossa escravidão
ao pecado, e a morte, já chegou a um fim.
Em terceiro lugar, a união com Cristo, por meio do Espírito, se
baseia em sua união conosco em nossa humanidade. É a partir daí que
nossa transformação é efetuada pelo Espírito. Pois união com Cristo
não é equivalente a deificação ou misticismo. O Verbo se fez carne a fim
de tornar-se o archēgos de uma humanidade salva. O alvo do Espírito é
a transformação à imagem de Deus como aquela que se expressa na
humanidade de Cristo, de modo que os crentes se tornam
progressivamente mais verdadeira e plenamente humanos.
Isso, igualmente, contém maiores e mais importantes ramificações
que veremos em evidência mais adiante, quando discutirmos o
ministério santificador do Espírito. Elas são sucintamente expressas por
Louis Berkhof, quando diz:
“Por meio desta união, os crentes são transformados na imagem de Cristo
segundo sua natureza humana. O que Cristo efetua em seu povo é, em certo
sentido, uma réplica ou reprodução do que aconteceu com ele. Não só
objetivamente, mas também num sentido subjetivo, levam a cruz, são
crucificados, morrem e ressuscitam para novidade de vida com Cristo. Em
certa medida participam das experiências de seu Senhor.”[89]
[68] Ver Willem ª Van Gemeren, “The Spirit of Restoration”, Westminster Theological
Journal 50.1 (1988), pp. 81-102.
[69] Robert Bellarmine, De Justificatione, III.2.3. Semelhantemente, o Concílio de Trento
declarou que “Ninguém pode saber com certeza de fé... que obteve a graça de Deus”
(Decreto sobre a Justificação, Sessão VI, capítulo 9).
[70] A expressão tem sido atribuída a F. Buddeus, Institutiones Theologiæ Dogmaticæ
(1724) e J. Karpov, Theologia Revelata Dogmatica (1739), indicando a emergência da
terminologia, mas de forma alguma a ideia propriamente dita, na assim chamada
ortodoxia escolástica protestante do século dezessete.
[71] Ver Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, la Ilae q. 112, “On the Cause of Grace”.
[72] The Wokes of William Perkins (3 Vols; Cambridge, 1612-19), vol. 1, pp. 11-117.
[73] Cf. G. C. Berkouwer, Faith and Justification (Grand Rapids, MI: Eeerdmans, 1954),
pp. 29-33; Karl Barth, Church Dogmatics, tr. G. W. Bromiley e T. F. Torrance (Edinburgo: T.
& T. Clark, 1958), IV.2, p. 502; Otto Weber, Foundations of Dogmatics, tr. D. Guder (Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1983), vol. 2, pp. 336ss.
[74] H. N. Ridderbos, Paul: An Outline of his Theology, tr. J. R. de Witt (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1975), p. 206.
[75] Ver R. ª Muller, Christ and the Decree (1986; repr. Grand Rapids, MI: Baker Book
House, 1988), para uma equilibrada defesa de Perkins e outros escritores pós-Reforma
com respeito à questão de sua cristocentricidade.
[76] Hendrikus Berkhof, The Christian Faith, tr. S. Woustgra (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1979), p. 479.
[77] João Calvino, Instituição da Religião Cristã, tradução de Waldyr Carvalho Luz, (Casa
Editora Presbiteriana, São Paulo, 1989), p. 1.
[78] João Calvino, Comentário a Romanos, tradução de Valter Graciano Martins, Edições
Parakletos, São Paulo, 1997, p. 212.
[79] João Calvino, Comentário a 1 Coríntios, tradução de Valter Graciano Martins, Edições
Parakletos, São Paulo, 1996, p. 36.
[80] Fhilip Melanchthon, Loci Communes, 2.7.
[81] Breve Catecismo Westminster, questão 38.
[82] Para o que se segue, ver Richard B. Gaffin, Jr., Resurrection and Redemption
(originalmente publicado como The Centrality of the Resurection, 1978; Grand Rapids,
MI: Baker Book House, 1987), pp. 114-127.
[83] Ibid. p. 116.
[84] Ver o notável ensaio de Geerhardus Vos, “The Escchatological Aspect of the Pauline
Conception of the Spirit” (1912), originalmente publicado em Biblical and Theological
Studies (Nova York, 1912), e agora reimpresso em Richard B. Gaffin, Jr. (ed.), Redemptive
History and Biblical Interpretation (Phillipsburg, NJ: Presbyterian & Reformed, 1980), pp.
91-125, esp. pp. 103-105.
[85] Ver John Murray, “Definitive Sanctification”, in Collected Writings (Edinburgo:
Banner of Truth, 1977), vol. 2, pp. 277ss.
[86] Ver, p. ex., Charles Hodge, I Corinthians (1857; repr. Londres: Banner of Truth, 1858),
p. 105. Gordon Free mantém nitidamente a ambiguidade: “O crente é unido ao Senhor, e
por isso se torna um só E/espírito com ele...” The First Epistle to the Corinthians [Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1987], p. 260.
[87] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929; repr.
Edinburgo: Banner of Truth, 1988), p. 451.
[88] Institutas, II.16.9.
[89] L. Berkhof, Teologia Sistemática, Luz para o Caminho, Campinas-SP, 1990, p. ?
6
O ESPÍRITO RECRIADOR
A união com Cristo, à qual o Espírito nos conduz, é multidimensional
em seu caráter. Estar “em Cristo”, diz Paulo, é ingressar-se na “nova
criação” (2Co 5.17); a velha ordem de pecado e morte, a era dominada
pela carne e pelo diabo, cedeu lugar a uma nova ordem de realidade na
ressurreição de Cristo. E assim, a obrigação mútua entre Cristo e seu
povo, no Espírito, é a concretização de tudo o que fora prefigurado no
antigo pacto firmado entre Yahweh e seu povo no Êxodo e na entrada na
terra do descanso; com base na obra do Messias, ela é formada pela
obra contínua do Espírito, criando uma nova humanidade.
Em virtude de ser multidimensional, a vida em união com Cristo é
necessariamente vista no Novo Testamento a partir de várias
perspectivas. Ela envolve identificação com ele em sua morte,
ressurreição e ascensão; mas envolve também uma correlação da ação
de Deus com a ação do homem. Como já vimos, a Escritura realça suas
raízes monergísticas (Deus é seu autor); é bilateral em sua natureza,
com a fé como sua outra polaridade. Os liames da regeneração e da fé
são inextricavelmente entretecidos. O Espírito é ativo em ambas as
dimensões de atividade. Esses liames são suscetíveis de análise (aliás,
não devem ser considerados como idênticos), mas não podem ser
existencialmente separados uns dos outros. Pertencem-se de tal
maneira que não podemos marcar uma ligadura onde a ação
monergística de Deus termina e a atividade do crente começa. Neste
contexto, é significativo que ambos, a regeneração e os elementos da
conversão, são, no Novo Testamento, considerados como dons de Deus.
Regeneração
A união com Cristo é inaugurada pela obra renovadora do Espírito, na
qual ele começa a transformação à imagem de Cristo, a qual se
completará no eschaton. Assim se cumpre a antiga promessa de que
Deus daria a seu povo um novo coração e novo espírito pela habitação
de seu Espírito, resultando num novo estilo de vida (Ez 36.24-27).
No Novo Testamento, esta transição foi marcada pelo rito do
batismo. Durante o tempo de Justino Mártir e Irineu, no final do
segundo século d.C., a regeneração já parecia ter-se tornado tão
estreitamente associada ao símbolo do batismo, que se interpretavam
os dois como sendo coincidentes. Tal suposição tornou-se tão refinada,
que o sinal e o elemento significado se relacionavam de uma forma sine
qua non, e um ponto de vista sacramentalista da regeneração chegou a
dominar a teologia da igreja. Mesmo na visão de Agostinho, para quem
os reformadores olhavam como o grande teólogo da graça, a ideia da
regeneração à parte do batismo com água era inimaginável. A doutrina
do limbus infantum, para aqueles que morriam na infância sem o
batismo, tornou-se assim virtualmente uma necessidade dogmática
para a igreja medieval.
Embora os principais pensadores da Reforma continuassem a
enfatizar o papel e a necessidade do batismo como o sinal da
regeneração, argumentavam que qualquer identificação dos dois tem de
ser vista como sacramental e mecânica; o sinal e o elemento significado
não devem ser confundidos, como se a graça indicada pelo sinal
estivesse contida nele.
Particularmente no ensino de Calvino, o termo “regeneração” era
usado para denotar a renovação que o Espírito efetua em todo o curso
da vida cristã. Para ele, ela descreve a mesma realidade denotada pela
“conversão” e pelo “arrependimento”, porém vista por um prisma
diferente.[90] Mais tarde, em muitos escritores do século dezessete,
houve a tendência de se tratar a vocação eficaz e a regeneração como
sinônimas. Só no desenvolvimento contínuo da teologia evangélica o
termo veio a ser usado no sentido mais limitado e particular da
inauguração da nova vida pela soberana e secreta atividade de Deus.[91]
Enquanto isso servia para focalizar a atenção no poder de Deus em
doar a nova vida, quando separado de seu contexto teológico próprio,
era suscetível de ser subjetivado e posto no campo da psicologia numa
extensão tal que o termo “novo nascimento” veio a desloca-se de suas
raízes bíblicas.
Mas, o que o próprio Novo Testamento tem em vista quando fala de
“regeneração”? Na estrutura da soteriologia evangélica, a regeneração
tem ocupado um papel tão central, que o “segundo nascimento” chegou
a ser considerado como o elemento definitivo da genuína experiência
cristã. No entanto, o termo neotestamentário para regeneração,
palingenesia (de palin, “de novo”, e genesis, “começo”), ocorre somente
duas vezes no Novo Testamento. Em Mateus 19.28, ele indica a
“renovação” de todas as coisas, o renascimento final do universo,
significado esse que se põe em marcante contraste com seu uso no
pensamento estóico, como sendo a restauração periódica do mundo.
Aqui, palingenesia é a ressurreição final, a adoção concretizada
dos filhos de Deus, a redenção de seus corpos e de toda a criação
gemente (Rm 8.19-25.), bem como o estabelecimento dos novos céus e
da nova terra, onde habita a justiça (2Pe 3.13). Ela é cósmica em seus
efeitos.
A outra ocorrência de palingenesia se encontra em Tito 3.5, onde
Paulo fala do “lavar do renascimento [palingenesia] e renovação pelo
Espírito Santo”. É difícil ser dogmático sobre o significado desta frase. A
lavagem consiste em renascimento, efetua o renascimento, ou simboliza
o novo nascimento (através do batismo)? A afirmação indica duas ações
(lavagem e renovação), ou é hendíades (em que uma ideia singular é
denotada por duas expressões).
Esta última interpretação parece razoável; e se for válida sugere
uma notável conexão entre a regeneração do indivíduo e o raiar da nova
era, já que somente o outro uso que Paulo faz de “renovação”
(anakainōsis, Rm 12.2) serve à função de enfatizar o contraste entre a
presente ordem mundial e a da era por vir. Além do mais, como realça
H. N. Ridderbos, o derramamento do Espírito a que Paulo se refere
neste contexto constitui uma “terminologia tipicamente escatológica”.
[92] Ele sublinha o fato que Paulo vê a regeneração dentro de um
contexto mais amplo, como um compartilhar da ressurreição e da
renovação que foram inauguradas pelo Espírito em Cristo. Portanto, a
renovação que se efetua na regeneração (e simbolizada no batismo) é
não meramente uma mudança interior; é a incursão de uma nova
ordem na presente ordem de realidade. Assim a regeneração
(palingenesia) e os cognatos (anagennaō, gennēthēnai anōthen)
denotavam não simplesmente o fenômeno da mudança espiritual
dentro, de baixo, por assim dizer, mas transformação de fora e de cima,
causada pela participação no poder da nova era, e mais especificamente
pela comunhão, através do Espírito, com o Cristo ressurreto como o
segundo homem, suas primícias, o Adão escatológico (ho eschatos
Adam, 1Co 15.45). Esta é a nota que se tornou emudecida no ensino da
igreja pós-apostólica, mas que precisa ser redescoberta.
Monergismo Divino
As declarações do Novo Testamento sobre a regeneração enfatizam a
atividade soberana, monergística, do Espírito. A metáfora do
nascimento propriamente dita implica não só um novo e radical
começo, mas um [novo começo] que nunca é autônomo. Em outra parte,
por detrás deste novo nascimento, o monergismo divino é expresso em
antíteses: nascemos, não por nossa própria vontade, mas por decisão
divina (Jo 1.12); de cima, não de baixo; do Espírito, não da carne (Jo
3.3, 5-6); de Deus, não do homem (1Jo 2.29; 3.9; 4.7; 5.1, 4, 18); pela
eleição divina, não pela nossa; através de sua palavra, não das energias
de uma vontade autônoma (Tg 1.18). Aqui, a prioridade é segundo
Deus, não segundo o homem. A razão para isso é que o homem é
“carne”.
Em sua conversação com Nicodemos, Jesus lhe diz que ele não
devia sentir-se surpreso com o fato de que ele tinha que “nascer de
novo/de cima” (Jo 3.7). Tal necessidade é universal: sem o novo
nascimento, ninguém pode ver o reino de Deus e nem entrar nele (Jo 3.3,
5). Aqui, o acento é posto fortemente na incapacidade do homem. A
negação da capacidade humana (no negativo do verbo dynasthai, “ser
capaz, ter o poder”) ocorre cinco vezes em João 3.3-10. Como carne, o
homem só pode gerar mais carne. não pode gerar espírito, nem o que é
espiritual. Somente o Espírito de Deus pode fazer isso (Jo 3.6). Já que o
reino de Deus é o reino do Espírito, nenhuma carne lhe tem acesso.
É amplamente aceito que “carne” (sarx) provavelmente tenha em
João uma nuança diferente daquele uso característico de Paulo (sarx =
natureza humana debilitada pelo pecado). Visto que para João o Logos
eterno se fez sarx (Jo 1.14), isto teria em vista fraqueza e debilidade,
antes que estado pecaminoso, como tal, da natureza humana. O
comentário de E. Schweitzer é representativo: “Está completamente
ausente a nuança daquilo que é pecaminoso ou que seduz ao
pecado.”[93] Assim, o homem está sendo visualizado à parte de Deus, e
em contraste com ele, em sua energia espiritual inexaurível.
Tal uso de sarx não nega o estado pecaminoso do homem como a
raiz e causa da condição sem o Espírito, mas o que está em pauta é o
efeito em vez de causa. Sarx focaliza o homem à parte de Deus. Como
carne, requer-se de nós o novo nascimento, uma vez que nos achamos
privados da vida e da energia do mundo do Espírito. Se temos que
pertencer ao reino, ou à família, do Espírito, então temos que “nascer
de cima”, pelo Espírito. Só assim seremos capazes de “adorar no
Espírito” (Jo 4.23-24).
Como carne, os homens e mulheres não podem ver (i.e.,
experimentar, Jo 3.36; 8.51) ou entrar no reino de Deus (Jo 3.3, 5). Ser
carne é ser cego e insensível para com as realidades do reino de Deus
governado pelo Espírito, e deixar de entender ou aceitar a natureza da
realidade espiritual (cf. 1Co 2.14).
A conversação de Jesus com Nicodemos fornece uma notável
ilustração deste fato. Nicodemos pergunta como o novo nascimento é
possível. Ele não consegue entender as palavras de Jesus. O “segredo do
reino de Deus” é um completo mistério para o homem que vem “de
noite” (Jo 3.2); ele ainda necessita de sair das trevas intelectuais
comuns a todos aqueles a quem não foi dado nascer do Espírito (cf. Jo
3.2, 19-21).
Isso conduz a mais um estágio. O homem é não só espiritualmente
cego, mas também espiritualmente impotente para entrar no reino: “A
menos que alguém nasça da água e do Espírito, não pode entrar no
reino de Deus” (Jo 3.5, RSV). Deixando de lado, por um instante, a
enigmática frase, “da água e do Espírito”, esta afirmação enfatiza
claramente a incapacidade humana. Embora em Cristo o reino já tenha
vindo, o homem é impotente para ingressar nele por meio de “a vontade
da carne” (cf. 3.3: incapaz de ver, ou dynatai idein; e 3.5: incapaz de
entrar, ou dynatai eiselthein). Ninguém pode ir a Cristo (i.e., crer nele)
a menos que seja atraído (soberanamente) pelo Pai (Jo 6.44-45).
Consequentemente, em João a regeneração é considerada como o
sine qua non da vida eterna. Isso só pode ser efetuado de cima.
Evidentemente, não podemos ser introduzidos no reino sem auxílio, da
mesma forma como não podemos ser concebidos nem nascer sem
auxílio.
Portanto, o que está envolvido na obra da regeneração efetuada
pelo Espírito?
Aspectos da Regeneração
O que é regeneração? A obra do Espírito de renovação radical envolve
vários elementos. O primeiro implica iluminação espiritual: o reino de
Deus, que outrora não era reconhecido, agora se torna nitidamente
visível.
João explica isso em termos daquela “unção” que os cristãos têm
recebido, que resulta em seu conhecimento da verdade (1Jo 2.20). Não
dependem de alguém que os ensine (1Jo 2.27). Ora, em Cristo, todos os
crentes tomam parte em sua unção com o Espírito, e têm conhecimento
do Senhor sem mediação humana, em distinção do antigo conhecimento
pactual de Deus que era mediado pelos profetas, sacerdotes e reis. Isso
é o que estava implícito na promessa do novo pacto (Jr 31.33).
Não significa que o indivíduo regenerado entenda tudo no instante
da regeneração, como o cego que, ao receber sua vista, não vê tudo
imediata e simultaneamente. Ele vê aquilo em que seus olhos se fixam
quando recebem sua visão, e então isso é posto num contexto mais
amplo. Assim é com aqueles que nascem do alto e têm seu entendimento
espiritual iluminado. Essa é uma das razões por que a consciência dos
indivíduos, na regeneração, é constrangida a diferenciar uma pessoa da
outra.[94]
O segundo é que a regeneração envolve libertação da vontade, de
sua escravidão numa natureza dominada pelo pecado. O homem é
incapaz de entrar no reino de Deus sem regeneração. Segue-se que o
elemento central na regeneração consiste naquele revestimento de
poder do Espírito na vontade humana, de uma forma orientada, dentro
do reino. Antes da regeneração, ele não deseja vir para a luz (Jo 3.5,
20). Agora ele vem para a luz; aliás, ele não consegue recusá-la.
O terceiro é que há na regeneração um aspecto de purificação.
Provavelmente este seja o significado da difícil frase “nascer da água”
(3.5). Várias interpretações deste elemento têm sido aceitas na igreja,
pondo-o em pé de igualdade com o batismo (envolvendo a regeneração
batismal), determinando que a referência, aqui, é à geração natural,
como em João 1.12, já que no pensamento antigo água, chuva e orvalho
são geralmente usados como uma referência ao sêmen masculino; neste
caso, Jesus estaria simplesmente realçando a necessidade de ser
“duplamente nascidos”: homens e mulheres.
Contudo, a referência à água é melhor interpretada à luz do
provável antecedente desta seção do ensino de Jesus na promessa do
novo pacto em Ezequiel 36.25-27: “Então aspergirei água pura sobre
vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícies e de todos os
vossos ídolos...”. No restante da passagem, Jesus só fala de um
nascimento, o nascimento de cima (3.3, 6, 7). Provavelmente, “água e
Espírito se referem à dupla obra do Espírito na regeneração:
simultaneamente, ele confere nova vida e purifica o coração.[95]
Em qualquer caso, a purificação que ocorre na regeneração é
realçada em Tito 3.5, e provavelmente também em 1 Coríntios 6.11:
“Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados
em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus.” Aqui,
“lavados” e “santificados” são equivalentes a regeneração. Na
regeneração, os desejos são renovados e purificados, pelo que Thomas
Chalmers (1780-1847) chamou de “o poder expulsivo de uma nova
afeição”. O Espírito faz o espírito nascer (Jo 3.6), no sentido de criar
apetite para o novo estado e suas realidades. Como Ezequiel o expressa
de modo maravilhoso, a obra renovadora do Espírito faz seus
recipientes “solícitos” em fazer a vontade do Senhor (Ez 36.27).
Portanto, a obra do Espírito na regeneração é plenária na extensão
de seu poder transformador. É o indivíduo, como tal, que é regenerado,
o homem em sua totalidade. Porquanto a regeneração é a concretização
da promessa de Deus de dar-nos um novo coração (Ez 36.26; cf. Jr
31.33), indicando que a obra renovadora do Espírito é tanto intensiva
quanto extensiva: ela atinge os impulsos mais recônditos da vida do
indivíduo e não deixa intocada nenhuma parte de seu ser.
A regeneração, consequentemente, é tão abrangente como a
depravação. Com base em tais declarações, de que “o coração... é
desesperadamente corrupto” (Jr 17.9), os teólogos o têm expresso em
termos de depravação total, significando não que o homem seja tão mau
quanto poderia ser, mas que nenhuma parte de seu ser escapa de ser
atingida pela influência do pecado. A regeneração reverte essa
depravação, e é universal no sentido de que, embora o indivíduo
regenerado não seja ainda santo como poderia ser, não existe nenhuma
parte de sua vida que não seja influenciada por esta obra renovadora e
purificadora. Aliás, assim como a depravação total leva à desintegração
moral e, finalmente, até mesmo física, assim a regeneração total leva à
renovação moral e, finalmente, também à renovação física, na
regeneração de todo o ser na ressurreição (Fp 3.21; 1Co 15.42-44). O
novo homem é revestido; ele está sendo constantemente renovado pelo
Espírito (Cl 3.10) e, finalmente, será ressuscitado e glorificado pelo
poder do Espírito.
Os teólogos mais antigos falavam desta mudança radical como
“física”. Embora a expressão agora pareça infeliz, sua preocupação era
realçar o fato que a regeneração não é meramente uma persuasão
intelectual; é uma transformação da natureza (physis) caída. Ela
penetra profundamente. É a dádiva de um novo coração.[96]
A Soberania do Espírito
Como o Espírito efetua o novo nascimento? Sua obra é tão misteriosa
quanto soberana. Jesus compara sua atividade ao vento, provavelmente
refletindo as palavras de Eclesiastes 11.5: “Assim como não sabes qual
o caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher
grávida, assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as
coisas.” Ouvimos o som que o vento faz quando roça pelos objetos em
seu percurso, mas não sabemos donde ele vem nem para onde vai. A
presença do Espírito é percebida exclusivamente por seus efeitos.
Portanto, em certo sentido não temos acesso à divina atividade na
regeneração, somente aos seus acompanhamentos imediatos. Ouvimos
“o som” que o Espírito efetua em expressões de fé e de arrependimento.
Os que inicialmente não queriam confiar em Cristo, agora o fazem livre
e espontaneamente.
Nessa conjuntura, as clássicas formulações protestantes da
regeneração corretamente recusam-se comprometer seja a integridade
da pessoa humana (não somos “forçados” por pressão externa), seja a
necessidade do monergismo divino (estamos “mortos” espiritualmente,
e não podemos conduzir-nos à vida por um ato de nossa própria
vontade). E assim observam que Deus ilumina as mentes humanas
…Isto ele o faz iluminando seus entendimentos, espiritual e salvificamente, a
fim de compreenderem as coisas de Deus, tirando-lhes seus corações de pedra
e dando-lhes corações de carne, renovando suas vontades e determinado-as,
por sua onipotência, para aquilo que é bom, e atraindo-os eficazmente a Jesus
Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos
por sua graça.[97]
A Fé como um Dom
Isso é ainda mais enfatizado no Novo Testamento pelo fato de a fé ser
um fruto do ministério do Espírito e ser vista no Novo Testamento como
um dom de Deus. Aqui também há uma evidente tensão entre a
atividade do Espírito e a resposta humana. Paulo provê para nós uma
importante perspectiva neste aspecto, delineando uma analogia ulterior
entre crer e sofrer: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29). O sofrimento, como a
fé, é um dom da graça na experiência cristã. Mas o dom do sofrimento
não nos é dado convenientemente como um fait accompli. Quem sofre
somos nós, não Deus. Não obstante, esse sofrimento é um dom
procedente dele. De uma forma paralela, a fé não é um pacote posto em
nossas mãos. É a atividade do homem como um todo, direcionada pelo
Espírito para Cristo. Deus não crê por nós, nem em nós; nós é que
cremos. Todavia, é somente pela graça de Deus que cremos. Seu dom é
simultaneamente um ato nosso.
O texto clássico em relação a isso é Efésios 2.8: “Porque pela graça
sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.” Há
aqui um problema exegético bem notório: qual é o antecedente de “isto”,
e, portanto, o que exatamente constitui o dom?
Para o leitor casual, “fé” se lê como o antecedente natural (é o
antecedente imediato). Mas “isto” (touto) é neutro, enquanto ambos os
antecedentes prévios são femininos (charis, “graça”, e pistis, “fé”);
assim também “salvação” (paraklētos), que pode ser entendida como o
antecedente não escrito: “e isto (a saber, a salvação) não vem...”).
É um princípio há muito reconhecido que em linguagens onde o
gênero gramatical de um pronome não pode concordar com o gênero do
próprio antecedente, também não pode concordar com o gênero da
palavra que o denota.[100] Neste contexto específico, visto que tanto
pistis como charis não são gêneros neutros, tampouco podem servir de
antecedentes.
Três considerações sugerem que o antecedente (i.e., a coisa que é o
dom de Deus) é a fé (pistis).
(1) Ela é o antecedente imediato e, portanto, o mais natural;
(2) Seria uma tautologia não usual (porém admissivelmente não
impossível, como Rm 2.24 e 5.15 indicam) falar da graça como um dom
de Deus, já que, por definição, a graça é um dom de Deus;
(3) Ela fornece uma redação coerente do pensamento-padrão de
Paulo, o qual pode ser parafraseado assim:
• Deus nos vivificou — pela graça sois salvos (2.5).
• Deus nos ressuscitou — para mostrar sua graça (2.6, 7).
• E é deveras pela graça que tendes sido salvos (2.8)!
• Esta graça, porém, não só não nos envolve como também ignora nossa ação
(a salvação é pela fé, ou, seja, envolve nossa resposta ativa).
• Não obstante, esta fé ativa, de nossa parte, não prejudica a graça.
• Pois até mesmo a capacidade de crer não é nossa independentemente.
• A fé (também) é o dom de Deus.
• Portanto: a salvação que é pela graça é também pela fé.
• Mas, como agora se torna claro, esta salvação,
— embora recebida por nossa ação (fé),
— não é desse modo “pelas obras”.
• Ela envolve nossa atividade,
— mas não deixa espaço para nossa vanglória (2.9).
• Daí:
a salvação não é obra nossa;
ao contrário, somos feitura de Deus (2.10).
Implicações
Não nos surpreenderíamos agora se as evidências da obra do Espírito
na regeneração, por um lado, e as ações da fé e do arrependimento, por
outro, fossem uma e a mesma coisa e refletissem a união com Cristo da
qual ele é o vínculo. Mediante a obra do Espírito somos unidos a Cristo;
participamos da morte do velho homem e da ressurreição do novo. Já
morremos para o pecado e já ressuscitamos para novidade de vida em
Cristo (Rm 6.1-14); não obstante, simultaneamente, nós mesmos
crucificamos a carne com suas paixões, e nos despimos do velho homem
e nos vestimos do novo (Ef 4.22-24; Cl 3.9-10; Gl 5.24). Operamos
nossa salvação em razão de Deus, o Espírito, operar em nós o querer e o
fazer segundo seu beneplácito (Fp 2.12-13). Por isso, os que possuem o
Espírito vivem segundo o Espírito e põem sua mente nas coisas do
Espírito; põem seus afetos nas coisas lá do alto (Rm 8.5; Cl 3.1-2).
Torna-se evidente um desprazer pela velha ordem e um anseio pela
nova ordem escatológica (cf. Ez 36.25-26).
Um enfoque semelhante é processado em 1João 3.9 e 5.18, na
notável afirmação de que aquele que nasce do Espírito não peca
(hamartian ou poiei). Muitos comentaristas e versões entendem João
como se aqui ele falasse do pecado como um hábito prevalecente.[104]
Mas a linguagem enfática que ele usa (o cristão “não peca”)
provavelmente se refira ao livramento crítico e radical das
manifestações específicas do reinado do pecado que ocorre no ponto de
união com Cristo. Em vez de permanecer cativo ao domínio do pecado,
como hábitos concretos, o cristão se torna justo precisamente nessas
áreas (cf. 1Jo 2.29; 3.10). E assim, o Saulo regenerado busca a
comunhão, não o massacre, dos crentes; o novo homem Zaqueu doa
dinheiro em vez de roubá-lo; o transformado carcereiro de Filipos cuida
de seus prisioneiros, em vez de maltratá-los; o Onésimo fugitivo,
“inútil” em sua vida pregressa, torna-se um servo fiel e é “útil” a Paulo.
Do mesmo modo, o novo nascimento transforma o relacionamento
do cristão com a presente ordem do mundo. Isso é expresso de maneira
variada pelos escritores neotestamentários (p. ex., para Paulo, já
estamos “crucificados” para ele [o mundo], Gl 6.14). Para João, aquele
que é nascido de Deus vence o mundo pela fé (1Jo 5.4). Aqui, “mundo”
significa o mundo em rebelião contra Deus, sob o controle do maligno
(1Jo 5.19; cf. Jo 12.31; 14.30), em trevas e pecado (Jo 1.5; 12.46). Os
ardentes anseios do homem pecaminoso, a concupiscência dos olhos, a
vanglória do que o homem possui e faz — tudo isso é o espírito do
mundo (1Jo 2.16). Este é vencido por aquele que nasce de Deus. Em
termos paulinos, na consagração da fé, a mente do crente é renovada, e
ele não se conforma ao mundo nem permite que ele o molde (Rm 12.1-
2) nem segue seu curso (Ef 2.2).
A centralidade de todas essas manifestações da nova vida é a fé
que tem o renascido como seu contexto inaugural. Todo aquele que crê
em Jesus como o Cristo já nasceu de Deus (1Jo 5.1). Estes são dois
aspectos de uma e mesma realidade, vista pelo prisma da ação divina e
da resposta do indivíduo.
Preparação?
À luz do precedente, faz-se evidente que a fé e o arrependimento
constituem o lado fenomenológico da obra do Espírito na regeneração.
Mas, como isso se concretiza? Acima de tudo, é difícil conceber alguém
vindo para a fé em Cristo como Salvador e Senhor sem compreender por
que antes de tudo se faz necessário um Salvador, ou, seja, um senso
antecedente de necessidade pessoal de salvação. Sem isso, a própria
ideia de justificação pela fé parece incompreensível. Então existe uma
preparação para a justificação na qual o Espírito Santo é ativo? Esta
pergunta nos leva de volta à discussão anterior sobre a ordo salutis e ao
contraste entre os conceitos católico-romanos e protestantes dela.
No contexto do legado de Agostinho à teologia da igreja, no qual o
batismo era visto como o sine qua non da regeneração, e a justificação
era entendida como justum facere, “tornar-se justo ou reto”, a teologia
medieval às vezes enfatizava o processo da justificação.
Neste processo, “a primeira justificação” se dava no batismo, no
qual a culpa e o castigo pelo pecado eterno e atual eram removidos.
Mas permanecia o assim chamado fomes peccati (o “pavio” do pecado,
o qual pode conflagrar-se mais tarde). Para “a justificação final”, o
amor egoísta tinha de dar lugar ao amor de Deus, por amor a Deus. Isso
demandava uma cooperação do indivíduo com a graça preveniente de
Deus para fazer-se o que está em seu poder (facere quod in se est, como
o expressava Gabriel Biel). Guiado do temor da justiça divina à
esperança da misericórdia divina, o indivíduo desenvolvia o ódio pelo
pecado, ou contrição. O problema, naturalmente, consistia no fato de
que os homens não eram perfeitamente contritos. Daí a provisão do
sacramento da penitência, o qual servia de ponte sobre o abismo, entre
a tristeza (attritio) real, porém inadequada, e a contrição (contritio)
genuína que conduzia à fé coberta de amor (fides formata caritate) que
produzia (a segunda) justificação.
Dentro deste sistema, a certeza da salvação era virtualmente
impossível, e alegar a experiência dela era potencialmente heresia. Aqui
vemos por que a segurança da justificação final dependida de uma
contrição suficiente, da qual ninguém podia estar certo. Na verdade,
toda a ordo consistia numa preparação para a justificação futura. O
que ainda não havia sido concretizado poderia não tornar-se a base
para uma confiança bem fundamentada.
A Reforma converteu esta ordo salutis em seu tema-mestre. Em
termos bíblicos, ela fazia distinção entre justificação e santificação; e,
seguindo Paulo criteriosamente, pôs uma justificação forense no
fundamento da vida cristã, não em seu fim. Ela rejeitou o conceito
romanista da preparação na qual a penitência preparava o indivíduo
para a justificação.
Entretanto, ao fazer isso, os teólogos da Reforma e seus sucessores
não pretendiam negar a obra do Espírito anterior à conversão e
justificação reais. Sustentavam, à luz de João 16.8-11, que a condução
do indivíduo à convicção do pecado, da justiça e do juízo, que teve sua
concretização inicial no Pentecostes, era uma atividade contínua do
Espírito no mundo contemporâneo. Mas convicção não equivale a
arrependimento e fé; não faz o indivíduo mais disposto para a
justificação.
Não obstante, a penitência, ou o arrependimento, precede e em
algum sentido nos prepara para a fé e justificação? O expediente de
Louis Berkhof, em seu livro amplamente usado pelos estudantes, parece
assumir esta posição: “Não há dúvida de que, logicamente, o
arrependimento e o conhecimento do pecado precedem a fé que se rende
a Cristo em confiante amor.”[105]
Na Escritura, em contraste, fé e arrependimento são dons
inseparáveis do Espírito. Os apelos que acompanham a pregação do
evangelho podem ser fraseados como “arrependei-vos e crede” (Mc
1.15). Mas, em outras ocasiões, é simplesmente: “Arrependei-vos!” (Mt
3.2; At 2.38; 17.30). Em outras ocasiões, é apenas: “crê!” (Jo 3.16; cf. At
16.30-31). De forma bem interessante, em Atos 17.34 (cf. 17.30, supra),
onde se exigiu a resposta do arrependimento, a verdadeira reação dos
poucos convertidos é descrita como “e creram”.
É claro, à luz deste fato, que, embora denotando diferentes
elementos na obra do Espírito em realizar a conversão a Cristo, tanto a
fé como o arrependimento lhe são tão essenciais, que uma (a fé) não
pode existir sem o outro (o arrependimento). Em consequência, um pode
ser usado onde ambos são intencionados — como se a fé ou o
arrependimento pudessem funcionar em forma de sinédoque, para fé e
arrependimento. A fé será sempre penitente; o arrependimento será
sempre crente, caso seja genuíno. Não há regeneração que não seja
expressa em ambos — fé e arrependimento.
Entretanto, no nível da consciência, um pode predominar sobre o
outro, dependendo de qual objeto tem sido o foco central nos
acontecimentos que circundam o novo nascimento. Se este for um
profundo senso de pecado, o arrependimento, com sua acompanhante
tristeza pelo pecado, pode ser a influência dominante nas emoções do
indivíduo. Alternativamente, o indivíduo pode ter um senso esmagador
da graça e da gratuidade de Cristo, em cujo caso a fé, com uma jubilosa
consciência de perdão e aceitação, pode predominar. Mas, tampouco
pode propriamente existir na ausência do outro. Dependendo do
contexto da conversão ativa, o nível da consciência de um pode ser
difuso com o senso de um sobre o outro.
A chave teológica para se entender isto encontra-se numa excelente
afirmação da Confissão de Fé de Westminster: a fé “age de
conformidade com aquilo que cada passagem contém em particular,
prestando obediência aos mandamentos, tremendo às ameaças e
abraçando as promessas de Deus para esta vida e para a futura”.[106] A
essência é que na variada obra do Espírito os acompanhamentos
psicológicos e emocionais da conversão são correspondentemente
diversos. Mas, em nenhum caso a conversão real ocorre sem a presença
de ambos — da fé e do arrependimento.
A “conversão”, da qual se acham ausentes a tristeza pelo pecado,
bem como o afastamento dele, que recebe a Palavra somente com
alegria, mas não conhece nenhum outro impacto do evangelho,
provavelmente não passa de fé temporária, segundo Jesus (cf. Mc 4.16-
17). Em contraste, a “conversão” que não passa de tristeza pelo pecado,
eventualmente satisfará a si mesma e morrerá.
Arrependimento
Então, o que se acha envolvido no arrependimento, neste contexto? Dois
elementos primários:
(1) Um reconhecimento de ofensa contra Deus e contra o pacto que
ele fez com seu povo (cf. Sl 51.4, onde o reconhecimento de Davi de que
seu pecado é contra Deus reflete esta orientação pactual). Por exemplo,
Isaías retrata o povo como filhos do pacto que se rebelaram contra seu
Pai. A consequência inevitável é que terminam no exílio “distante de
casa”, individualizado na parábola de Jesus sobre o filho pródigo (Lc
15.13), mas ameaçado muito tempo antes no pacto mosaico (cf. Dt
28.36).
Os homens estão debaixo do juízo pactual de Deus por sua rejeição
das obrigações de fé e obediência (cf. Am 4.6-11 com Dt 28.15).
Arrependimento envolve um reconhecimento disto; uma realização da
importância de estar “longe de casa”, separado do Pai.
(2) Arrependimento também envolve um afastamento do pecado à
luz das graciosas provisões do pacto divino. Arrependimento equivale a
volver-se ao espírito de criatura humana diante do Criador, em
reconhecimento de sua misericórdia em favor dos crentes penitentes (cf.
Dt 30.11-14). A impiedade é então rejeitada e a justiça é abraçada.
Tal arrependimento é evocado pelo Espírito através do senso do
que Deus é, e portanto por meio da consciência do genuíno caráter do
pecado. Ele é uma resposta centrada em Deus; aliás, é o princípio da
genuína centralidade divina. É um afastamento do pecado no volver-se
rumo a Deus.
O arrependimento é tão necessário para a salvação quanto a fé. A
salvação é salvação do pecado. Envolve mais que perdão. Inclui nossa
santificação. Deve, pois, engajar os que são salvos no afastamento do
pecado, afastamento esse envolvido no arrependimento. Não pode
haver salvação que permite um padrão inalterável de continuar em
pecado (cf. Rm 6.1-14). Mas, embora o arrependimento seja tão
necessário para a salvação quanto a fé, ele se relaciona com a
justificação de uma maneira diferente. Cristo é recebido unicamente
pela fé, e nele descansa como Salvador. A justificação é pela fé
(unicamente!), não pelo arrependimento. Mas o arrependimento é tão
necessário para a salvação mediante a fé quanto o tornozelo para
firmar o pé no chão, ou como a pulsação do coração o é para o uso dos
olhos na visão. Ambos são essenciais, mas não se relacionam da mesma
forma no mesmo ato. Fé é a confiança individual em Cristo;
arrependimento é a mesma renúncia individual do pecado. Um não
pode existir à parte do outro.
Temos definido arrependimento em termos de volver-se do pecado
para Deus e nos termos concretos de sua relação pactual conosco em
Cristo. Visto, porém, ser ele a atividade da autoconsciência individual,
segue-se que a experiência de arrependimento variará de indivíduo para
indivíduo, tão certamente como acontece na expressão e consciência de
pecado de cada um. A misericórdia divina não é meramente uma
medicina universalmente aplicável ao pecado; ela é prescrita para o
estado pecaminoso particular e para a culpa particular. A consciência
individual de arrependimento, ou o que poderíamos chamar a
psicologia do arrependimento, se vê obrigada a deixar-se influenciar
por este. Aqui também encontramos o princípio que caracteriza o
ministério do Espírito: seus métodos de operar são diversos. Herman
Bavinck escreve algumas palavras sábias a esse respeito:
O arrependimento, a despeito de sua singularidade em essência, é diferente,
na forma, de acordo com as pessoas em quem ele se concretiza e as
circunstâncias nas quais ele ocorre. O modo como os filhos de Deus andam é
um só, mas eles são conduzidos diferentemente neste modo de andar, e têm
experiências variadas. Que variedade há na diretriz que Deus dá aos vários
patriarcas! Que variedade há na conversão de Manassés, de Paulo e de
Timóteo! Quão dessemelhantes são as experiências de Davi e de Salomão, de
João e de Tiago! E encontramos também essa mesma diferença fora da
Escritura, na vida dos pais da igreja, dos reformadores e de todos os santos.
No momento em que temos olhos para contemplar as riquezas da vida
espiritual, nos volvemos para a prática de julgar outrem segundo nossa
paupérrima medida. Há pessoas que conhecem apenas um método, que não
reconhecem a ninguém arrependido a menos que falem das mesmas
experiências espirituais que tiveram ou que alegam ter tido. A Escritura,
porém, é muito mais rica e muito mais ampla do que a estreiteza de tais
fronteiras... O arrependimento genuíno não consiste no que o homem faz dele,
mas no que Deus diz dele. Na diversidade das providências e experiências, ele
(o arrependimento) consiste e deve consistir na morte do velho e na
ressurreição do novo homem.[107]
As Marcas do Arrependimento
No arrependimento, o Espírito produz uma nova atitude em relação ao
pecado. Atitude esta que, devido ao pecado, inevitavelmente será
acompanhada por um senso de humilhação e tristeza (Rm 6.21; cf. Lc
15.19). Tal atitude em relação ao pecado será tão concreta como o
pecado ao qual se direciona a nova atitude. Arrependimento significa
volver-se alguém para trás, num espírito de obediência, na vereda que
havia percorrido num espírito de desobediência, e é operado nos termos
específicos de obediência concreta aos mandamentos de Deus (cf. Dt
30.2). Portanto, nos Evangelhos, o arrependimento a que o jovem rico
foi intimado foi tomado na forma concreta de desenvolver a renúncia na
mesma área que ele desenvolvera a autoindulgência; no caso de
Zaqueu, ele significa a devolução do que havia tomado injustamente (cf.
Mc 10.17-31; Lc 19.8).
Neste sentido, Paulo descreve o arrependimento que resulta do
coração regenerado quando diz que as justas exigências da lei são
satisfeitas naqueles que não andam segundo a carne, mas segundo o
Espírito (Rm 8.3-4).
Disto se segue que o arrependimento não se limita ao ato do
momento, mas se desenvolve num estilo permanente de vida.
No arrependimento, o Espírito também desperta uma atitude
responsável em relação ao próprio indivíduo. Arrepender-se é morrer
para os velhos costumes e crucificar a carne. O arrependimento inicial é
simplesmente o início da mortificação. É uma mudança profundamente
radical. Envolve a concorrência com o juízo divino de toda realidade,
inclusive de si próprio — justificando a Deus em sua justiça e
condenando a si próprio em seu estado pecaminoso. É levar a cruz e
negar-se a si mesmo — não através de uma abnegação ontológica, mas
pelo despir-se do velho homem (Cl 3.9; Ef 4.22) e pela crucificação da
carne com suas concupiscências (Gl 5.24). Isso é também uma
responsabilidade permanente com implicações perenes. Significa não
fazer qualquer provisão para a carne, buscando satisfazer suas
concupiscências (Rm 13.14).
De passagem, é digno de nota que isso conta com profundo suporte
do resultado da visão cristã que cada um deve ter de si próprio. Deve ser
tanto simples (tornarmo-nos novos homens e novas mulheres em Cristo)
quanto complexo (somos imperfeitamente renovados). Portanto, o
cristão se vê como alguém que morreu para o pecado e ressuscitou para
uma nova vida. Mas tal mortificação e vivificação caracterizam todo o
curso de sua vida, como veremos mais adiante.
O arrependimento tem também em sua raiz uma atitude
responsável para com Deus efetuada pela obra do Espírito. Nenhum dos
dois primeiros elementos poderia existir sem este. O arrependimento
está radicado numa genuína visão de Deus. Se ele fosse observar
iniquidades, ninguém ficaria de pé; nele, porém, há perdão para que
seja temido (Sl 130.4). Arrependimento evangélico, a inauguração e
continuação da vida de piedoso temor, é sempre difuso com a promessa
e esperança de perdão. Na teologia bíblica, um senso do estado
pecaminoso por si só nunca se aplaca com arrependimento. Por isso, o
estímulo para o arrependimento consiste em que “há ainda esperança
para Israel” (Ez 10.2). O genuíno arrependimento de Pedro após sua
negação de Cristo (que parece estar em deliberado contraste com a
tristeza e arrependimento, bem como o desespero final de Judas) é
produzido quando ele se lembra da palavra do Senhor, que neste caso
incluía a promessa: “Orarei por ti, para que tua fé não desfaleça; e,
quando te converteres, fortalece a teus irmãos” (Lc 22.32, lit.; 22.61-
62).
O padrão clássico da obra do Espírito, em despertar o
arrependimento, se encontra no Salmo 51 que, segundo escreve Artur
Weiser, não expressa:
…a disposição transitória de uma consciência deprimida, mas o nítido
conhecimento de uma pessoa que, abalada por esse conhecimento [i.e., de seu
estado pecaminoso], se torna cônscia de sua responsabilidade; é um
conhecimento que exclui todo gênero de autoengano, por mais bem-vindo que
ele seja, e vê as coisas como realmente elas são.[108]
[90] Ver o notável título das Institutas, III.3: “Nossa Regeneração pela Fé:
Arrependimento”, descrição essa que, se fora escrita por um autor anônimo, o teria
estigmatizado imediatamente como teologicamente arminiano!
[91] Assim, p. ex., H. Vitsius, The Economy of the Covenants (1677), tr. W. Crookshank
(Londres, 1822; repr. San Diego, CA: den Dulk Foundation, 1990), vol. 1, pp. 359-361.
[92] H. N. Rideerbos, Paul: An Outline of his Theology, tr. J. R. de Witt (Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1975), p. 226.
[93] E. Schweitzer, in Theological Dictionary of the New Testament, ed. G. Kittel e G.
Friedrich, tr. G. Bromiley (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1971), vol. 7, p. 138. Para uma
defesa do ponto de vista mais antigo do uso joanino de sarx, ver John Murray, Collected
Writings (Edinburgo: Banner of Truth, 1977), vol. 2, pp. 184-185.
[94] Ver os comentários sensíveis e sábios de Archibald Alexander em Thoughts on
Religious Experience (1844; 3.ª edição, reimpresso em Londres: Banner of Truth, 1967), p.
64.
[95] Uma explicação semelhante é elaborada no detalhe de Linda L. Belleville: “’Born of
Water and Spirit’: João 3.5”, Trinity Journal 1 (1980), pp. 125-141, mas o enfoque geral
tem uma longa árvore genealógica.
[96] Essa linguagem pode ser encontrada nos teólogos europeus do século 17, tais como
Peter Van Mastricht, mas também em escritores ingleses, tais como John Owen. Embora
os teólogos reformados mais recentes compreensivelmente expressassem certas reservas
sobre tal linguagem, naturalmente sua preocupação central era preservar a obra radical
do Espírito na totalidade do indivíduo, afetando não só mente e vontade.
[97] Confissão de Fé de Westminster (Londres, 1647), X.1. Cf. IX.4.
[98] W. G. T. Shedd, Dogmatics (Nova York: 1888), vol. 1, p. 509, n. 1.
[99] B. B. Warfield, Biblical Doctrines (Nova York: Oxford University Press, 1929; repr.
Edinburgo: Banner of Truth, 1988), p. 457; cf. C. Hodge, Systematic Theology (3 Vols.
1872-73; repr. Londres: James Clark, 1960), vol. 2, pp. 702-703.
[100] Cf. Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, tr. H. De Vries (Nova York: Funk &
Wagnalls, 1900), p. 412; Robert E. Countess, “Thank God for the Genitive”, Bulletin of
the Evangelical Theological Society 12 (1969), pp. 117-122.
[101] Warfield, op. cit., p. 504.
[102] G. C. Berkouwer, The Sacraments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1969), p. 147.
[103] Otto Weber, Foundations of Dogmatics, tr. Guder (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1983), vol. 2, p. 147.
[104] Cf. NIV. J. R. W. Stott, Commentary on the Epistles of John (Londres: Tyndale Press,
1964), pp. 130-136; Raymond E. Brown, The Epistles of John (Nova York: Doubleday,
1982), pp. 407-416.
[105] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Luz para o Caminho, Campinas.
[106] Confissão de Fé de Westminster, Editora Os Puritanos, Recife, XIV.ii.
[107] Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, tr. H. Zylstra (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1956), p. 438.
[108] Artur Weiser, The Psalms (Londres: SCM Press, 1962), p. 403.
7
O ESPÍRITO DE SANTIDADE
Participação em Cristo
Antes da encarnação, havia uma santificação comparativamente opaca
e formal. Aqueles que viveram na infância da revelação redentora
especial, nem sempre viam com clareza por que certos elementos no
estilo de vida veterotestamentário eram característicos da santificação
ao Senhor. De fato, eram imagens imprecisas de Cristo, de modo que
somente quando ele veio é que sua real significação surge claramente
(ele é o “fim da lei” nesse sentido também, Rm 10.4). O alvo da lei
sempre foi a restauração da imagem de Deus. Esta santidade,
estabelecida em Cristo, agora se torna nossa através da participação
em Cristo pela graça e fé.
Quando o Novo Testamento expõe este fato, ele põe ênfase especial
sobre a união com ele nos grandes atos-chave da redenção (p. ex., Gl
2.20; Cl 2.6–3.17; Rm 6.1-23).
Nenhuma passagem é mais pertinente para entender-se o que está
envolvido na obra do Espírito, em ligar os crentes a Cristo, do que
Romanos 6.1-23. Aqui, em detalhes complexos, Paulo descreve o cerne
da santificação como o livramento do pecado e a liberdade de servir ao
Senhor com justiça. O relacionamento anterior com o pecado é
conduzido a um fim; o cristão é “libertado do pecado” (Rm 6.7, 18).
Em Romanos 5.12-21, Paulo expusera as riquezas da obra
redentiva de Cristo, contrastando-a com o pecado de Adão. Em Adão,
todos morreram; em Cristo, o delito é perdoado. Onde o pecado
prevaleceu, a graça se manifestou muito mais abundante (Rm 5.20).
Quanto maior é o pecado, maior exibição da graça Deus faz.
Evidentemente, pode-se extrair disto uma conclusão falsa e
maliciosa (aliás, isso tem acontecido). Podemos continuar pecando na
pressuposição de que nosso pecado fornecerá um teatro para exibições
ainda mais impressionantes da graça (Rm 6.1)?
Paulo instintivamente recua ante tal insinuação de licenciosidade:
“De modo nenhum. Como viveremos ainda no pecado, nós que para ele
morremos?” (Rm 6.2). O pensamento lógico de todo cristão reage
contra tal ideia, visto que ela traspassa o coração do evangelho; Paulo
vem explicando que a graça reina através da justiça para a vida eterna
(Rm 5.21). Continuar pecando seria pôr-se em conflito com o estilo do
domínio da graça.
A esse recuo instintivo, Paulo adiciona uma explanação da
importância da união com Cristo à qual o Espírito nos conduz. Ele
explica por que os cristãos não continuam, nem realmente podem
continuar, na vereda do pecado: Morremos para o pecado. Como
poderíamos continuar vivendo em pecado? A ideia é inerentemente
contraditória.
Um dos muitos detalhes significativos na exposição de Paulo é seu
uso, aqui, de uma forma distintiva do pronome relativo (hoitines [de
hostis]: hoitines apethanomen tē hamartia, “nós os que morremos para o
pecado”). Isso contém a nuança de pertencer a uma determinada classe.
É usada neste sentido para realçar a qualidade característica (“nós, que
somos os que...”).[110] Podemos expressar a força da linguagem de
Paulo, traduzindo: “Nós, que pertencemos à categoria de pessoas que
morreram para o pecado.” A ideia é que, por definição, os crentes são os
que morreram para o pecado. Sendo esse o caso, é inconcebível uma
contradição de quem e do que somos, que casualmente continuemos
pecando. Insinuar tal coisa é demonstrar que alguém não compreendeu
que a graça que traz o perdão vem “reinar através da justiça... através
de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.21), ou, seja, através da união com
Cristo.
Os crentes em Cristo têm uma identidade nova e distinta em
virtude do laço de união que o Espírito cria entre eles e Cristo. Se, por
definição, já morreram para o pecado, não podem continuar vivendo
nele. Além do mais, também já ressuscitaram, ao operar o Espírito a fé-
união com Cristo para novidade de vida (Rm 6.8, 11). A própria ideia de
continuar em pecado, a logomarca da velha vida, sugere o impossível —
que o cristão pode engajar-se numa autocontradição, negando sua nova
vida em Cristo.
Mas, por qual ministério do Espírito os crentes morreram para o
pecado e ressuscitaram para uma nova vida? E quais são as implicações
disso? Eis aqui as perguntas formuladas e respondidas neste
seguimento. De forma apropriada, ele começa com um apelo ao batismo
a fim de explicar a identidade do crente. Todos quantos foram
batizados, foram batizados na morte de Cristo.
Aqui, a água do batismo está na mente de Paulo; ele usa linguagem
semelhante em Colossenses 2.11-12, onde a água do batismo,
indubitavelmente, está em pauta. Esse batismo, porém, é naturalmente
o sinal físico do qual o batismo com o Espírito é a realidade. Ele marca
o ponto em que os indivíduos são publicamente identificados como
pertencentes à comunidade pactual, como cristãos. No batismo,
recebem o nome de Cristo e são postos sob uma nova autoridade,
batizados, por assim dizer, de seu próprio nome para o nome de Cristo.
Aqui, Paulo elabora detalhadamente o que tal ato implica.
Se foram batizados em união com Cristo, e este é o cerne de sua
nova identidade, então se segue que foram batizados na morte e
ressurreição de Cristo. Mas, (1) se foram batizados na morte de Cristo,
então participam da significação daquela morte; e (2) se foram
batizados na ressurreição de Cristo, então participam também do que
essa ressurreição significa.
Portanto, a questão exegética central é: Qual é a significação da
morte e ressurreição de Cristo? Paulo o explica assim:
A morte de Cristo foi uma morte para o pecado: “Pois, quanto a ter
morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado” (Rm 6.10). A
morte é o salário do pecado (Rm 6.23); Cristo quitou esse salário e
subjugou na cruz a servidão do pecado. Ele veio sob o domínio do
pecado, e morreu para todas as reivindicações dele [o pecado] contra si
mesmo. Agora, o pecado não tem mais reivindicações contra Cristo,
nosso substituto. Todos os seus salários foram pagos em sua morte;
suas reivindicações são exauridas.
Se tal é o significado da morte de Cristo para o pecado, segue-se
que é nisto que participamos da morte de Cristo para o pecado. Em
Cristo, em união com ele, também já morremos para a servidão do
pecado. O domínio do pecado findou-se. Não somos mais seus súditos.
A ressurreição de Cristo, no poder do Espírito, foi uma ressurreição
para a vida escatológica, a vida pneumatológica (Rm 1.3-4; 1Co 15.45).
A vida que ele agora vive, em contraste com a morte que ele morreu
para o pecado, é uma “vida para Deus” (Rm 6.10). Se fomos unidos com
ele, segue-se que fomos constituídos como cristãos, em união com ele
pelo Espírito, a viver para Deus (Rm 6.4b).
Visto que estes elementos são verdadeiros em relação a nós (e é
para o que o batismo aponta), agora fica em evidência por que Paulo
recua ante a ideia de que podemos continuar no pecado para que a
graça seja abundante. Pois, fazer isso contradiz o modo no qual a graça
já transbordou, ou, seja, pelo ato de o Espírito nos unir a Cristo em sua
morte para o pecado e sua ressurreição para a justiça. Continuar em
pecado seria negar nossa identidade básica como cristãos. Seria
eliminar da água de nosso batismo toda a significação do batismo do
Espírito, do qual ela é o emblema.
Paulo continua explicando as implicações disto na mais complexa
declaração de sua exposição: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele
nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não
sirvamos ao pecado como escravos” (Rm 6.6).
Aqui está a rica tapeçaria da obra do Espírito; mas as expressões
cruciais tais como “velho ego”, “corpo do pecado”, “feito impotente” e
“livre do pecado” demandam todas elas uma análise mais detalhada.
Velho ego (ho palaios anthrōpos): Neste contexto, esta expressão
não indica (como sugerido pela NVI, “velho eu”, e pela NEB, “o homem
que uma vez existia”) meramente o que eu tinha no volume de minha
biografia. Sua significação se deriva do cenário de Romanos 5.12-21;
ela põe a primeira vida em seu contexto cósmico, que é seu contexto
adâmico. “Velho ego/homem” sugere um contraste verbal com o que
agora eu sou em Cristo, o “novo ego/homem”. O “velho homem” é tudo
o que eu fui em Adão antes de ser unido a Jesus Cristo: na carne, sob o
domínio do pecado, sob a condenação da lei e destinado à morte.
Mas o velho ego/homem foi crucificado com Cristo. Embora isso
fosse representativamente verdadeiro na cruz, este “com Cristo” (syn
Christō) denota união existencialmente realizada, operada pelo
Espírito, com aquele que, como já vimos, é multidimensional em seu
caráter. Esta crucificação historicamente redentiva concretizou-se no
Calvário; existencialmente, sua significação e implicações são
realizadas em nós pelo Espírito na regeneração, arrependimento e fé.
Esta última realização está radicada na historicidade da primeira. O
crente não mais se identifica em termos do adâmico, mas em termos do
crístico. Na terminologia de Paulo, o crente foi “crucificado com Cristo”;
quem vive não é mais ele, e sim Cristo; no entanto ele vive — na vida do
novo homem em Cristo — pela fé no Filho de Deus, que o amou e deu-se
a si mesmo por ele (Gl 2.20).
Corpo do pecado: O fruto direto da morte do velho ego/homem
consiste em que “o corpo do pecado” é “feito impotente”. Alguns
comentaristas tomam “corpo do pecado” no sentido de “a massa do
pecado”, sendo o pecado visto como um corpo ou massa; mas é
preferível tomar a expressão como análoga à última frase que Paulo
usa: “corpo da morte” (Rm 7.24). Evidentemente, ele tem em vista ali o
corpo físico. Portanto, é mais provável que, também aqui, denote o
corpo físico real (ao qual Paulo faz referência novamente em 7.11), visto
num aspecto particular de sua existência: o corpo visto como o
instrumento através do qual o pecado exerce seu domínio, e seja o
árbitro de nossos seres.
Feito impotente: Visto que somos novos homens e novas mulheres
em Cristo, nossos corpos, mediante o Espírito, pertencem a Cristo (cf.
1Co 6.15). Não são mais propriedade do pecado; portanto não estão
mais disponíveis a servir aos propósitos do pecado. Neste sentido, o
corpo se torna impotente como instrumento do pecado. No conflito
entre pecado e justiça, o pecado não pode mais contar com o corpo do
crente como seu aliado; o corpo do crente é agora aliado de Cristo (cf.
Rm 6.12-13; 12.1-2). Em consequência disso, os crentes não são mais
escravos do pecado.
Livre do pecado: Visto neste contexto, as considerações supra
ajudam a solucionar a dificuldade causada pela declaração radical
neste seguimento: “Porquanto quem morreu, justificado está do pecado”
(Rm 6.7). Em que sentido a obra do Espírito tem unido o crente a Cristo
ou o tem libertado do pecado? Essa é uma questão crucial para nossa
compreensão da santificação.
Determinadas interpretações podem ser de pronto rejeitadas,
especialmente aquelas que sugerem um quase perfeccionismo. J. B.
Phillips, em sua paráfrase arbitrária de Romanos, traduz assim as
palavras de Paulo: “pois pode-se afirmar com segurança que uma
pessoa morta está livre do poder do pecado” (provavelmente seguindo o
que em seus dias era o comentário padrão inglês sobre Romanos, de W.
Sanday e A.C. Headlam). Mas tal interpretação é exegética e
existencialmente impossível. Paulo evidentemente não considera nem a
si nem a seus companheiros cristãos imunes ao pecado. Ele, como nós,
podia sentir seu poder. Ele podia seguramente dizer que não era imune
ao pecado!
Outros comentaristas limitam as palavras de Paulo à ideia de
justificação.[111] De fato, a frase que ele usa, “livre do pecado”
(dedikaiōtai apo tēs hamartias), pode, como uma declaração isolada, ser
compreendida como “aquele que morreu está [literalmente] justificado
do pecado”, livre do pecado no sentido de estar livre de sua culpa. Não
obstante, três considerações sugerem que as palavras de Paulo, aqui,
não podem ser limitadas à significação forense.
(1) No contexto, ele está explicando por que não somos mais
escravos do pecado (Rm 6.6). Ele, pois, está fundamentando a liberdade
da servidão do pecado, não meramente de sua culpa, segundo o que ele
diz. O uso que Paulo faz de dikaioō, neste contexto, parece, pois, conter
a nuança de “quitar”, ou, seja, “isentar de obrigação”. O cristão não é
mais responsável pelo pecado.
(2) Mais adiante, nesta mesma passagem, quando Paulo aplica seu
ensinamento, ele afirma mais diretamente que o crente está livre do
pecado no sentido de livramento da escravidão à sua autoridade:
“outrora escravos do pecado” (Rm 6.17) implica que não mais o são. E
acrescenta: “e, uma vez libertados [eleutherōthentes] do pecado, fostes
feitos servos da justiça” (Rm 6.18). Aqui ele usa o verbo-padrão para
liberdade do cativeiro ou escravidão. Visto que todo o contexto de
Romanos 6.16-20 consiste na escravidão ao pecado e no livramento do
mesmo, não meramente da culpa do pecado e seu perdão, pode haver
pouca dúvida de que Paulo esteja ensinando que o crente é libertado da
escravidão tanto quanto da penalidade do pecado.
(3) Aqui se fornece mais uma chave no fato que, ao longo desta
seção de Romanos, Paulo parece encarar o pecado como um poder
estranho e, virtualmente, o personifica como “O Pecado” (hē hamartia;
cf. 5.12, 20, 21; 6.1, 2, 6, 10, 12, 13, 17, 18, 2, 22, 23). Suas descrições
da atividade dele [o pecado] visam a enfatizar o seguinte: o pecado é
retratado como o rei que reina (“o pecado reinou na morte”, 5.21; “não
reine o pecado”, 6.12); como um general que emprega nossos corpos
como armas em sua guerra (“instrumentos” ou “armas” [hopla] de
impiedade, 6.13); como um árbitro que tiraniza (“o pecado não mais
será vosso árbitro”, 6.14, NEB); e como um empregador que paga
salários (“o salário do pecado é a morte”, 6.23).[112]
Portanto, por toda a passagem o foco de Paulo é sobre o domínio
ou reinado do pecado, e não sobre a culpa que ele traz. Esse reinado foi
desfeito por aqueles que já foram batizados em Cristo, e que através do
Espírito vieram a participar da morte de Cristo para o pecado e a
ressurreição para a nova vida.
Não significa que a natureza inerente do pecado tenha mudado,
ainda quando seus direitos sobre o crente chegaram ao fim. Tampouco
significa que a presença do pecado seja erradicada. Ao contrário,
significa que os cristãos estão em relação para com o pecado na mesma
tensão escatológica que marca toda a presente vida no Espírito: “seu
reinado “já” se findou, mas sua presença “ainda não” foi eliminada.
Deixar de compreender esta dimensão da união com Cristo
inevitavelmente leva a conclusões dramaticamente errôneas, sendo
extraídas da pressuposição apostólica de que, pelo Espírito, somos, em
Cristo, livres do pecado. Às vezes isso toma a forma de uma escatologia
e espiritualidade excessivamente concretizadas, nas quais a união com
Cristo, que é nossa no Espírito, implica um perfeccionismo radical, ou
pelo menos um livramento do domínio da carne para o domínio menos
angustiante do Espírito. Mas tal ponto de vista falha em entender o fato
de que a vida no Espírito, em união com Cristo, é vivida “entre os
tempos”.
Mais de meio século após a ocorrência, a ilustração de Oscar
Cullmann dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial continua
valiosa para iluminar o presente caráter da vida no Espírito. Nessa
guerra, o Dia-D (a intervenção decisiva da invasão das Forças Aliadas
da Europa em 1944) se deu um ano antes da vinda do Dia-VE (o fim da
guerra na Europa em 1945). No ínterim, as batalhas continuaram
ferozes e sangrentas, mesmo quando o ato decisivo houvesse ocorrido.
Assim também é com a história da redenção. O Dia-D da redenção
ocorreu com a morte, ressurreição, ascensão de Cristo e a doação do
Espírito. Ele tem agido decisivamente contra os poderes do pecado, de
Satanás e da morte que tiranizavam seu povo. Não obstante, os
conflitos com o pecado (e também com Satanás e a morte) continuam
árduos. São reais e dolorosos. Mas ocorrem dentro de um contexto
diferente de qualquer batalha contra o pecado que marcou a antiga vida
em Adão da qual o Espírito estava ausente. Agora o cristão se engaja no
conflito com o pecado da perspectiva do livramento dos prisioneiros no
campo de guerra; a vitória decisiva sobre o domínio do pecado é uma
realidade presente no Espírito; a vitória final é assegurada. Mas há
ainda sangria, e é preciso vestir-se de toda a armadura de Deus. O
cristão, como sublinha Abraham Kuyper, está ainda “sob o tratamento
do Espírito”.[113] O Dia-D está ainda por vir.
Isso é confirmado pelo fato de Paulo seguir a série de afirmações
indicativas em Romanos 6.3-10, onde ele descreve as novas realidades
da união com Cristo, com uma série de imperativos em 6.11-14, os
quais delineiam implicações para a vida entre os tempos:
(1) Compreenda que em Cristo o reinado do pecado terminou e
você morreu para o pecado (6.11).
(2) Que o pecado não mais reina existencialmente, visto que ele
realmente não mais tem autoridade sobre você (6.12).
(3) Não permita que seu corpo seja oferecido em serviço
mercenário ao pecado, induzido pelos prazeres imediatos que ele
oferece (6.13).
(4) Entregue-se deliberadamente ao Senhor como alguém que
reconhece sua nova identidade, como alguém que foi “trazido da morte
para a vida”. Ponha os membros de seu corpo no arsenal do Senhor
(6.13).
As demandas ou deveres da graça são coextensivos com a divina
obra da graça. O padrão de regeneração-fé, no qual o Espírito nos
inaugura na união com Cristo, continua ao longo da vida inteira. Os
imperativos do evangelho operam no mesmo campo que os indicativos.
Deus está santificando a pessoa inteira: corpo, alma e espírito (1Ts
5.23); o crente deve, portanto, santificar a pessoa inteira: corpo, alma e
espírito. Deus está operando nos crentes tanto o querer como o realizar,
segundo seu beneplácito; os crentes, pois, estão desenvolvendo a
significação de sua união com Cristo na morte para o pecado e na vida
para Deus, em vidas de obediência e consagração universais (cf. Fp
2.12-13).
Aqui, o ensino de Paulo é o cerne da doutrina da santificação. Ele
sublinha o que significa morrer para o pecado, ou seja, não é um
produto de nossa própria experiência. Nesta conexão, John Murray tem
um comentário de incisiva significação prática e pastoral:
Estamos também prontos a dar atenção àquilo que julgamos ser os difíceis e
empíricos fatos da confissão cristã, e temos apagado a clara linha de
demarcação que define a Escritura. Como resultado, perdemos nossa visão da
sublime vocação de Deus em Cristo Jesus. Nossa ética perdeu sua dinâmica e
nos conformamos a este mundo. Desconhecemos o poder da morte para o
pecado na morte de Cristo, e não somos capazes de suportar o rigor da
liberdade da emancipação redentora. “Morremos para o pecado”: a glória da
realização de Cristo e a garantia da ética cristã estão atadas a esta doutrina.
Se vivemos em pecado, então não morremos para ele; e se já morremos para o
pecado, então não mais vivemos nele; pois, “como viveremos ainda no pecado,
nós os que para ele morremos?” (Rm 6.2).[114]
Espírito e Lei
Qualquer determinação do ensino de Paulo em Romanos 7 suscita a
pergunta mais ampla sobre a relação do ministério do Espírito no
tocante à lei. Esse é apenas um aspecto das questões mais
fundamentais na teologia cristã: Como o evangelho se relaciona com a
lei, o novo com o antigo pacto, Cristo com Moisés, o Pentecostes com o
Sinai?
Os acontecimentos do Dia de Pentecostes nos intimam a levar em
conta esta questão. Já notamos o paralelismo antitético que parece
operar entre o Pentecostes e o Sinai. No Sinai, Moisés subiu à presença
de Deus; e a lei de Deus, escrita em tábuas de pedra, foi trazida ao
povo. No Pentecostes, Jesus subiu à presença de Deus e o Espírito
desceu, escrevendo a lei nos corações do povo. No contexto de sua
exposição desses acontecimentos, Pedro frisa a seus ouvintes o
cumprimento de Joel 2.28-30, pondo sua ênfase na diferença entre a
administração sinaítica e a administração pentecostal. Na antiga, as
primeiras distinções sob a lei são desfeitas; uma nova administração
teve início por intermédio do Espírito.
Tudo indica que o Dia de Pentecostes e a ação do Espírito marcam
o fim do Dia do Sinai; e muito do ensino neotestamentário surge como
uma confirmação dessa premissa. Por exemplo, João traça esta
comparação: enquanto a lei veio por intermédio de Moisés, a graça e a
verdade vêm por intermédio de Jesus Cristo (Jo 1.17). Com certeza,
fazendo esta leitura de maneira isolada, a mesma parece insinuar o
cancelamento da lei.
De modo semelhante, Paulo é diretamente acusado de ensinar o
mesmo cancelamento (p. ex., At 21.28). Além disso, muitas de suas
afirmações, de uma maneira prima facie [direta], parecem confirmar
isso: somos justificados pela fé sem as obras da lei (Rm 3.28); estamos
debaixo da graça, não debaixo da lei (Rm 6.14-15); morremos para a
lei, e estamos livres dela (Rm 7.4, 6; cf. Gl 2.19); a lei do Espírito nos
libertou da lei do pecado e da morte (Rm 8.2). Numa palavra, Cristo é o
fim da lei para a justiça daqueles que creem (Rm 10.4). O que era
glorioso em seu próprio tempo agora, no Dia do Espírito, é visto, como
comparação, ser completamente destituído de glória (2Co 3.10).
Entretanto, uma leitura mais atenta do Novo Testamento revela
que a relação entre o Espírito e a lei é muito mais complexa do que isso.
Em conexão com esse liame “ab-rogatório” do ensino, põe-se outra
ênfase sobre a continuidade. Jesus não veio destruir a lei, mas cumpri-
la (Mt 5.17-20; cf. 21-48). De fato, a própria natureza do amor consiste
em cumprir a lei (Rm 13.8-10), a qual é boa, santa e também espiritual
(Rm 7.12, 14). Uma indicação de vida no Espírito é que os justos
requerimentos da lei sejam cumpridos naqueles que andam no Espírito
(Rm 8.3-4).
Como é possível resolver esta aparente contradição? A vinda do
Espírito de Cristo põe, ou não, fim às relações com a lei que Deus deu no
Sinai?
A resolução clássica deste dilema se radica numa formulação da lei
que teve seu floruit [apogeu] na teologia evangélica do século dezessete.
Ela distinguia três dimensões na lei dada pelas mãos de Moisés: civil,
cerimonial e moral.
Na lei mosaica, esses três aspectos eram sólida e inextricavelmente
entrelaçados. A lei de Moisés, porém, destinava-se a ser uma
administração divina e temporária da lei. Como tal, ela foi adicionada à
promessa dada a Abraão (Gl 3.17); não era original no que diz respeito
às relações pactuais de Deus com seu povo eleito. Ao contrário, ela
serviu a seus propósitos: (1) em governar um povo distinto até o tempo
quando o Messias prometido se levantaria dentre eles; e (2) em
prescrever um método de expiação para os que violassem as demandas
morais de Deus. Portanto, na administração mosaica, a lei de Deus, em
seus requerimentos morais (o Decálogo), revelava a necessidade de um
Redentor; em seus requerimentos cerimoniais, ela comunicava
esperança de redenção; em suas regulamentações civis, ela preservaria
para Deus a nação de cujo seio o Redentor se levantaria.
Eis o ponto que Paulo realça em sua importante afirmação: “Qual,
pois, era o propósito da [administração mosaica da] lei? Foi adicionada
[i.e., à promessa] por causa das transgressões, até que viesse o
descendente a quem se fez a promessa [i.e., no pacto abraâmico]” (Gl
3.19).
Neste contexto, a lei mosaica basicamente explica e aplica a perene
lei de Deus para a vida humana num contexto específico, extenso,
porém temporário. O Decálogo reproduz isto no contexto mosaico. Isto
explica por que é possível traçar linhas diretas do Decálogo aos
capítulos introdutórios da Bíblia e relacionar as exortações contidas
nele com o desígnio divino original para a vida humana.[119]
A erudição moderna tem demonstrado pouca paciência em relação
a esta tríplice divisão clássica da lei. É prematura, porém, a rejeição
indiscriminada do valor desta categorização. Naturalmente, é
importante reconhecer que, a partir da perspectiva do Antigo
Testamento, a lei mosaica era um manto inconsútil, e não uma colcha
de retalhos para o crente veterotestamentário. Não obstante, não
significa dizer que o crente veterotestamentário não reconhecia seu
caráter multifacetado. Uma ou outra dessa interpretação é de fato
assumida por uma série de ênfases neotestamentárias. Só na
formulação desta premissa é que faz sentido a insistência de Jesus de
que ele cumpre a lei, em vez de a abolir (Mt 5.17-20).
Efésios 2.14-18 parece ter em vista uma divisão semelhante da lei.
Aqui Paulo fala de Jesus como “abolindo em sua carne a lei com seus
mandamentos na forma de ordenanças”. Mas se ele pode referir-se
livremente ao mandamento de honrar pai e mãe como sendo válido
(como faz em Efésios 6.1), parece evidente que ele, em algum sentido,
faz distinção entre o Decálogo (lei moral), o qual ele impõe, e o restante
das ordenanças mosaicas. A carta aos Hebreus, semelhantemente, trata
da lei cerimonial como que, em algum sentido, possuindo certa função
distinta num período provisório de tempo.
Alguma indicação deste caráter multifacetado, ou concêntrico, da
lei já se acha presente no próprio Antigo Testamento. Por exemplo,
somente o Decálogo foi proclamado por Deus no monte; somente o
Decálogo foi impresso pelo dedo divino em tábuas de pedra; somente o
Decálogo foi depositado na Arca da Aliança. Entretanto, deve-se
enfatizar que é somente à luz da obra de Cristo que são soltos os fios
que juntam estes aspectos da lei, e as distinções implícitas se tornam
explícitas.[120] O que se fez evidente na promulgação da lei foi que suas
diferentes dimensões se pertenciam na administração mosaica como os
princípios do fundamento se relacionam com aplicações particulares.
[121] Enquanto os aspectos civis e cerimoniais se tornam obsoletos, a
Por essa razão somos vestidos com toda a armadura de Deus para
que permaneçamos firmes em Cristo.
Há aqui um importante paralelo com o fim do domínio do pecado.
Seu reinado em nossos corpos tornou-se nulo e sem efeito, ainda que
sua presença não esteja ainda finalmente destruída. Semelhantemente,
Cristo venceu o diabo na cruz e o desarmou (Cl 2.15; Ef 2.2). O conflito
da igreja e do crente com as forças satânicas só é possível porque já
fomos libertados de seu cativeiro. Ele é intensificado em virtude da
contínua presença do pecado no crente.
Há, pois, um alinhamento do conflito carne-Espírito com o conflito
reino-Reino; pois, distintamente de Cristo, os cristãos não podem dizer
que, quando Satanás está em ação, “ele nada tem em mim” (Jo 14.30).
Há um ponto de contato para o reino das trevas na quinta coluna da
habitação do pecado. Esta “plataforma” se posiciona em nossa
contínua disposição para o pecado, e é ignorada em nosso perigo.
É provável que uma insinuação disto surja já em Romanos 7 com
seus ecos provindos dos capítulos iniciais do Gênesis. (Aliás, o espectro
de Adão jaz à espreita em toda a primeira metade de Romanos.) Em
Romanos 7.11, a linguagem de Gênesis 3.13 (LXX) reaparece. Em
Romanos 5.12-21, Paulo está em Adão antes de estar em Cristo; mas,
se estamos certos, entendendo Romanos 7.14-25 como uma descrição
da experiência cristã, então, em certo sentido, as ruínas de Adão
permanecem em Paulo mesmo depois de ser um novo homem em Cristo.
[124] Como já vimos, aquele que é habitado por Cristo, ainda é habitado
A COMUNHÃO DO ESPÍRITO
Estrutura Escatológica
As diversas descrições do papel do Espírito como coparticipante do
cristão possui uma estrutura inerentemente escatológica; por definição,
sublinham a natureza já/ainda-não de toda a presente experiência em
Cristo.
No antigo pacto, Deus era imanente entre seu povo por intermédio
do Espírito; a consumação dessa imanência se encontra em Cristo,
Aquele que é ungido com a presença e poder do Espírito; a consequência
de sua obra é a dádiva do Espírito para habitar os crentes.
A habitação do Espírito é retratada no Novo Testamento como
inerentemente pessoal: o Espírito, pessoalmente, habita os crentes
considerados como entidades físicas, corporais (Rm 8.11; 1Co 3.16;
6.19). O relacionamento é mais íntimo do que o de uma mera influência,
mas o caráter exato da habitação do Espírito em parte alguma é
explicado ou explorado. Na natureza do caso, ele faz paralelo com os
mistérios do engajamento divino-humano na providência, inspiração e
encarnação. A analogia que temos oferecido é que a mútua habitação
de Cristo e do crente é formada segundo o padrão de relacionamentos
intertrinitários. Assim como há um mútuo habitar do Pai e do Filho
revelado pelo Espírito, assim, mediante o habitar do mesmo Espírito,
Cristo e o crente se acham unidos (Jo 14.20).
O cristão é, em seu presente corpo mortal, habitado pelo Espírito
(1Co 6.19); no futuro, seu corpo mortal será revivificado e transformado
num corpo incorruptível, em poder e glória (1Co 15.42-49). Alguém
poderia até dizer que o corpo será “espiritualizado”, não no sentido de
tornar-se “espírito”, mas em ser transformado num corpo adaptado à
vida num novo mundo e habituado ao domínio do Espírito. Como
Geerhardus Vos o expressa: “o Espírito não é apenas o autor do ato da
ressurreição, mas igualmente o permanente substrato da vida provinda
da ressurreição, à qual ele supre o elemento interno e básico e a
atmosfera externa”.[128]
Uma ênfase apropriada sobre a natureza pessoal do Espírito pode
levar-nos, erroneamente, a mudar esta perspectiva impessoal
(“atmosfera externa”) em pessoal. Proceder assim, porém, levaria ao
perigo de minimizar a natureza multifacetada da obra do Espírito sob o
pretexto de maximizar seu ser pessoal. Essas diferentes perspectivas
bíblicas devem ser visualizadas como complementares, não
contraditórias. Uma diferença entre a presente e a futura experiência do
Espírito é esta: ele agora habita pessoalmente naqueles que são seres
frágeis, mortais e fisicamente atingidos pela ignomínia; então não só
habitará neles, mas transformará toda sua existência no que, pela falta
de um termo mais adequado, devemos chamar existência física
espiritual. A natureza de sua vida cobrirá e transformará a natureza de
nossas vidas.
A natureza radical da transformação aqui conjeturada não deve
ser minimizada, ainda que movido por um interesse sinceramente
bíblico, a enfatizar a continuidade entre a presente existência e a vida
futura. O princípio de continuidade sublinhado na doutrina da
ressurreição do corpo deve ser salvaguardado a todo custo, segundo
Paulo (cf. 1Co 15.12-19). Mas a continuidade não deve ser mantida em
detrimento da descontinuidade, pois o estado de glória excede
sobremaneira até mesmo o estado de graça (cf. Rm 8.18-23; 2Co 4.17-
18; 1Jo 3.1-3). Uma obra radical e final do Espírito está ainda por vir.
Não obstante, a obra escatológica do Espírito não se limita ao futuro.
Ele invade o presente na forma proléptica através de sua habitação.
O caráter de sua habitação subescatológica é expressa por três
metáforas que ligam sua obra presente e a futura, o “já” e o “ainda-
não” da experiência cristã.
1. Penhor
O Espírito é um arrabōn (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14), palavra carregada de
semitismo equivalente a fiança ou pagamento antecipado, garantia de
que a última prestação da salvação e glória é assegurada. Neste
sentido, sua habitação é provisória, mas pertence à mesma ordem de
realidade que a consumação.
Aqui, o movimento é significativo. Para a Bíblia, a plenitude do
Espírito pertence a uma época futura, não à presente. Não obstante,
não se expressa plenamente o papel do Espírito dizer simplesmente que
o temos agora e conheceremos mais de sua presença no futuro. Ao
contrário, o que nos é dado agora é o Espírito que justamente pertence
ao futuro, cuja presença residente nos crentes implica que a realidade
futura já se tornou prolepticamente presente. Vos novamente expressa
isto muito bem, embora em linguagem fortemente condensada:
“A esfera própria do Espírito é o aiônio futuro; donde ele se projeta no
presente e se torna uma profecia de si mesmo em suas operações
escatológicas.[129]
3. Selo
Os cristãos não devem entristecer o Espírito por quem foram selados
para o dia da redenção (Ef 4.30). Paulo inclui “fostes selados [sphragis]
com o Santo Espírito da promessa” entre as muitas bençãos espirituais
que são nossas em Cristo (Ef 1.13; cf. 2Co 1.22).
A selagem pode indicar uma variedade de coisas: ela tanto
assegura como também pode autenticar um objeto com vistas a alguma
ocasião futura (segundo Paulo, “para o dia da redenção”).
Na história da teologia, discussão considerável se tem centrado na
natureza e regulação desta selagem. Já no período pós-apostólico, a
ideia da selagem do Espírito era assimilada com o batismo, e sempre
existiram advogados do ponto de vista de que o batismo propriamente
dito está em pauta.[133]
Entretanto, o procedimento do Novo Testamento implica que o
próprio Espírito é o selo do crente, assim como a selagem de Cristo (Jo
6.27) é melhor entendida não como a água de seu batismo, como tal,
mas como a vinda do Espírito sobre ele em seu batismo. No Novo
Testamento, conversão e batismo eram ordinariamente dois aspectos do
mesmo evento tanto cronológica como teologicamente; mas, embora
estejam assim associados, são também claramente distintos – a coisa
significada nunca se reduz ao sinal, nem se separa dele. O papel da fé,
oriunda do Espírito, é sempre visto como o elo vital entre ambos (cf. Gl
3.2-3).[134]
Uma última e mais interessante discussão sobre o selo do Espírito
surgiu no contexto da teologia experimental do Movimento Puritano
inglês. Aqui, no despertar de precursores tais como William Perkins,
Richard Sibbes (1577-1635), o “Doce Conta-gotas”, foi um notável
expoente de um ponto de vista que exerceria considerável influência
sobre a tradição evangélica.[135]
Sibbes fazia do selo do Espírito uma analogia com os selos com que
estava familiarizado. Estes poderiam, por exemplo, portar a imagem do
monarca e reproduzir sua semelhança. Portanto, para ele a função da
selagem do Espírito era estampar de novo em nossas vidas a imagem de
Jesus Cristo.
Ao discutir a questão adicional da natureza do genitivo (o selo do
Espírito denota a selagem que o Espírito efetua, ou o selo é o próprio
Espírito?), Sibbes argumentava que, visto que esta selagem é operada
pelo Espírito, este não pode ser o próprio selo. Ao contrário, a selagem
seria algum efeito da presença do Espírito no crente. Particularmente,
Sibbes a interpretava como sua obra conformadora, que ocorre após o
primeiro exercício da fé. “Como a fé honra a Deus, assim Deus honra a
fé com um selo e conformação superadicionados.” Sibbes reconhecia
que isso é de uma natureza escatológica, produzindo êxtases espirituais
que são o próprio início do céu”, de modo que o cristão “está no céu
antes do tempo”. Isso envolve uma certeza secreta de que o crente é de
Cristo; é “um doce ósculo dado na alma”.[136]
Duas observações são muito apropriadas aqui. A primeira é que
esse tipo de descrição da experiência espiritual de forma alguma se
limita aos mais distintos do puritanismo. Tais experiências, embora
descritas em diferente nomenclatura, são amplamente atestadas dentro
da tradição cristã.
Em segundo lugar, porém, tais experiências não são
autointerpretativas; geralmente são interpretadas e colocadas num
esquema mais amplo de exegese bíblica. Havendo passado por tais
experiências após a primeira vinda da fé viva, Sibbes e outros, como
Thomas Goodwin, as colocaram teologicamente à luz da tradição mais
antiga de tradução de Efésios 1.13: “em quem [ou, seja, Cristo] também,
depois que crestes [pisteusantes], fostes selados com o Santo Espírito da
promessa” (Ef 1.13, AV; cf. At 19.2).
Os tradutores dos dias de Tiago I (Tiago VI da Escócia) limitaram
a significação do particípio aoristo aqui (pisteusantes) ao pretérito. Mas
a ação denotada pelo particípio aoristo pode preceder, coincidir com, ou
seguir a ação do verbo principal. Aqui, em Efésios 1, o selo do Espírito
funciona como um “depósito a garantir nossa herança”. Ambos os fatos
– a presença do Espírito no próprio crente e a ideia de que as bençãos
delineadas em Efésios 1 pertencem a todos os que estão em Cristo –
apoiam o ponto de vista de que o selar e o crer são dois aspectos de um
e o mesmo evento de iniciação.
O uso que Paulo faz da metáfora do selo mais adiante em Efésios
4.30 confirma isso. Ele aconselha os cristãos em geral a não
entristecerem o Santo Espírito com quem foram selados para o dia da
redenção. A selagem do Espírito dificilmente poderá ser uma
experiência ou evento subsequente à conversão quando se pretende que
o mesmo pertence a todos os cristãos – ponto de vista ainda mais
seriamente sublinhado caso Efésios seja considerada uma carta
circular.
Todavia, seria igualmente errôneo imaginar o selo do Espírito
como uma presença permanente que não tinha correlativo na
consciência subjetiva do crente. Como já vimos em conexão com a
presença do Espírito como arrabōn e aparchē, se o Espírito é dado como
sphragis, anteciparíamos um efeito correspondente à consciência
daquele que recebe o selo. Portanto, Sibbes, entre outros, estava certo
em observar que o Espírito assegura a herança que está sendo guardada
para os cristãos e para a qual estão sendo guardados por Deus
mediante a fé (cf. 1Pe 1.4-9). Ainda assim os contemporâneos de
Sibbes, que hesitaram em seguir sua exegese de Efésios 1.13,
reconheceram a validade das experiências que ele descreveu, mas se
dispunham a considerá-las como sendo o fruto da habitação do
Espírito, em vez de uma obra adicional do Espírito.[137]
Espírito de Filiação
De todas as descrições dadas do Espírito no Novo Testamento,
provavelmente a mais rica seja “Espírito de filiação”. Embora seja usada
somente uma vez, é com alguma percepção que João Calvino alista isto
como sendo o primeiro título do Espírito,[138] correspondendo ao que
seria visto como o mais elevado dos privilégios da redenção, a saber: a
filiação.
O tema é explorado de forma eloquente por Paulo em Romanos
8.12-21:
“Assim, pois, irmãos, somos devedores, não à carne como se constrangidos a
viver segundo carne. Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte; mas, se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente
vivereis. Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de
Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez
atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos: Abba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que
somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros,
herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo: se com ele sofrermos, para que
também com ele sejamos glorificados. Porque para mim tenho por certo que os
sofrimentos do tempo presente não são para comparar com a glória por vir a
ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos
filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente,
mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação
será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos
de Deus.”
O Parácleto
Jesus prometeu enviar a seus discípulos outro parácleto (allos
paraklētos, Jo 14.16). Neste contexto, como temos visto, isso indica que o
Espírito é um parácleto da mesma espécie que o próprio Jesus. Ele é
“outro, semelhante a Cristo”.
Como Aquele que acompanhou Jesus ao longo de seu ministério, o
Espírito viria para os discípulos nessa prerrogativa específica. Ele
estivera “com” eles, em Cristo; agora estaria “neles” como o Espírito de
Cristo (Jo 14.17).
Aqui, a distinção em pauta não é entre sua presença com os
discípulos e sua habitação neles, como tal, mas entre o ministério do
Espírito em Cristo (ou, seja, “convosco” neste sentido) e seu subsequente
ministério como o Espírito de Cristo nos discípulos (“em vós”). Por meio
desse novo modo de habitação, o ministério de Cristo será contínuo e
progressivo. Como observa Raymond E. Brown: “Virtualmente, tudo o
que foi dito sobre o Parácleto foi dito sobre Jesus em outras partes dos
Evangelhos.”[142] Ambos entram no mundo; ambos são enviados pelo
Pai. Jesus é a Verdade, o Parácleto é o Espírito da verdade; Jesus é o
Santo de Deus, o Espírito é o Santo Espírito. Jesus é o Mestre, assim
como o é o Parácleto. Jesus dá testemunho, e o Parácleto é uma
testemunha. O mundo não reconhece Jesus, assim como não reconhece
o Parácleto.
De tudo o mais extraordinário é: Jesus vai para o Pai a fim de
preparar uma morada (monē, Jo 14.2) para os discípulos, enquanto que
o Parácleto vem do Pai a fim de preparar uma morada (monē, Jo 14.23)
para o Pai e o Filho. Que as únicas duas ocorrências de monē, no Novo
Testamento, seriam de uma justaposição tão estreita é um forte
indicador do paralelo que está sendo sublinhado aqui. Como Parácleto
(1Jo 2.1), Cristo cria um lar para seu povo na presença do Pai; como
Parácleto, o Espírito cria um lar para o Pai e o Filho no crente, que se
torna individual e eclesiasticamente “uma habitação na qual Deus vive
por meio de seu Espírito” (Ef 2.22). O Espírito é o divino “construtor de
lares”, desconhecido e não reconhecido pelo mundo (Jo 14.17b),
efetuando, porém, nova vida, desenvolvimento, nutrição e mudança
dentro do círculo doméstico.
O Mestre
Como o Parácleto, que é semelhante a Cristo, o Espírito cumpre a
função de mestre. Sem dúvida isso tem uma especial significação
histórico-redentiva para os discípulos, visto que o ministério docente do
Espírito para eles se relaciona com a doação da Escritura (Jo 14.26;
16.13). Mas há também uma dimensão mais ampla. Pois quando o
Espírito vem, também traz iluminação aos discípulos de Cristo. Por
meio do Espírito, lhes será ensinado interiormente sobre a natureza de
seu relacionamento com Cristo, bem como o relacionamento de Cristo
com o Pai: “Naquele dia vós compreendereis que eu estou em meu Pai e
vós em mim e eu em vós” (Jo 14.20).
“Aquele dia”, neste contexto, refere-se não só à ressurreição de
Cristo, mas também ao dom do Espírito no Pentecostes. Nisto repousa
forte encorajamento para os primeiros discípulos. Temiam que
conhecessem menos de Cristo, e que a costumeira intimidade chegasse
ao fim quando ele se apartasse deles. Agora os ensinava que de fato o
conheceriam melhor e discerniriam mais sobre ele e seu relacionamento
com ele. “Naquele dia” reconheceriam: “estou em meu Pai, e vós em
mim, e eu em vós.”
Nenhuma linguagem pode definir, muito menos exaurir, o
significado desses relacionamentos. O Espírito ajudaria os discípulos a
reter a intimidade da habitação do Filho pelo Pai e do Pai – o que os
teólogos antigos chamavam circumincessio ou perichoresis, a mútua
habitação em alguém pelas pessoas da Trindade, o “dançar em volta”
de alguém em quem a mútua harmonia e amor entre as pessoas da
Trindade encontra expressão. Assim, o Espírito cria a imaginação de
que o Filho habita no seio do Pai, e face a face com o Pai (Jo 1.1, 18). E,
igualmente, ele manifesta a glória do Filho.
Ainda mais do que isso é ensinado pelo Espírito. Dele os discípulos
aprenderam que estão “em” Cristo, e que Cristo também habita neles.
Em vez de “perdê-lo”, eles o “ganhariam” de uma forma muito mais
íntima. É preciso conservar isto: a união com Cristo se torna,
virtualmente, o tema central do restante do Novo Testamento.
Espírito de Intercessão
Como Parácleto, o Espírito é também o Espírito de intercessão. Ainda
que o Espírito seja dado em resposta à oração (especialmente na
teologia de Lucas; p. ex., Lc 11.13), seu ministério na oração é
mencionado sem muita frequência. Não obstante, é possível reunir um
breve quadro composto de sua obra em termos da teologia mais ampla
do Novo Testamento.
Oração é uma expressão de culto e adoração, bem como de
necessidade pessoal. Ninguém pode chamar Jesus de “Senhor” ou Deus
de “Pai” senão pelo Espírito (1Co 12.3; Gl 4.6). Assim como Jesus, é no
Espírito que os cristãos são capazes de alegrar-se nas obras de Deus (Lc
10.21).
Portanto, “orar no Espírito Santo” (Ef 6.18; Jd 20) não é estático no
sentido de algo ininteligível. Ao contrário, é a analogia, na vida de
oração, ao que é andar no Espírito em toda a vida cristã: conformidade
com a palavra que Deus falou. Orar no Espírito é a oração que se
conforma à vontade e propósito do Espírito. Isso é o que Tertuliano e
Calvino chamavam de oração legítima: continuar alguém firme nas
promessas de Deus até que elas se cumpram.[143]
Em outro nível, a oração é a expressão de fraqueza e de
necessidade. Oramos porque reconhecemos nossa impotência;
apresentamos a Deus nossos rogos porque não podemos satisfazer-nos
a nós mesmos. Paulo, porém, indica a necessidade do ministério do
Espírito numa fraqueza ainda mais profunda que isso: “Também o
Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não
sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós
sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os
corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de
Deus é que ele intercede pelos santos” (Rm 8.26-27).
Aqui o crente é retratado como sujeito a uma fraqueza tal que se
torna impossível qualquer petição coerente. A oração se converte em
gemido. Esse gemido, porém, é uma indicação da presença e ministério
do Espírito. Embora tomado por Crisóstomo como uma referência ao
falar em línguas, e mais recentemente por Ernst Käsemann como uma
referência a algum tipo de linguagem estática na congregação, o
elemento de profunda frustração e inexpressível emoção, segundo o que
Paulo diz, nos aponta outra direção: incoerência. Eis um perfil da
absoluta e total fraqueza do crente, uma fraqueza por demais frágil
para expressar coerentemente sua necessidade.
A graça do ministério do Espírito consiste em que, mesmo quando
os cristãos se sentem por demais fracos para formular uma oração, ele
efetua a determinação do Pai de reunir seus filhos em seus braços e
engajá-los em seus propósitos. Em tais ocasiões, os inexpressíveis
gemidos de intercessão se assemelham a grunhidos ou gemidos
daqueles cujas capacidades cerebrais foram prejudicadas, ainda que
sejam maravilhosamente interpretados por seus amados.
Um tema simples emerge quando recapitulamos o que a comunhão
com o Espírito significa: as bençãos que ele traz fornece graça para os
que enfrentam necessidade. É na fraqueza que Deus revela seu poder
através do Espírito (2Co 12.9; cf. 1Co 1.25, 27b). Nisto, supremamente,
o Espírito é outro Parácleto, à semelhança de Cristo.
[128] Geerhardus Vos, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1952), p. 165.
[129] Ibid.
[130] Ver C. Spicq, Theological Lexicon of the New Testament, tr. e ed. J. D. Ernest
(Peabody, MA: Hendrickson, 1994), vol. 1, p. 148; H. Balz e G. Schneider, Exegetical
Dictionary of the News Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990), vol. 1, p. 116.
[131] Cf. W. Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early
Christian Literature, tr. W. F. Arndt e F. W. Gingrech, rev. F. W. Gingrich e F. W. Danker
(Chicago, IL: University of Chicago, 1979), sub aparche.
[132] Jonathan Edwards, Charity and its Fruits (1852; repr. Londres: Banner of Truth,
1969), pp. 323ss.
[133] Cf. W. H. Lampe, The Seal of the Spirit (Londres: Longmans, 1951).
[134] Para uma rejeição da identificação do selo com o batismo ou confirmação, ver J. D.
G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit (Londres: SCM Press, 1970), pp. 132-134, 160.
[135] Ver The Works of Richard Sibbes, ed. A. B. Grosart (6 vols., 1862-64; repr.
Edingurgo: Banner of Truth, 1979-83), vol. 3, pp. 453ss.
[136] Ibid., p. 456.
[137] Discuti isto detalhadamente em John Owen and the Christian Life (Edinburgo:
Banner of Truth, 1987), pp. 117-121.
[138] Institutas, III.1.3.
[139] C. E. B. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the
Romans (Edinburgo: T. & T. Clark, 1975), vol. 1, p. 403.
[140] B. B. Warfield, Faith and Life (1916; repr. Edinburgo: Banner of Truth, 1974), p.
184.
[141] Charles Hodge, 1 and 2 Corinthians (1857, 1859; repr. num só volume, Edinburgo:
Banner of Truth, 1974), p. 689.
[142] Raymond E. Brown, Gospel according to John (Londres: Chapman, 1971), p. 1140.
[143] Ver a magistral exposição de Calvino nas Institutas, III.20 (tratado sobre a oração
em seu uso correto). Cf. Sinclair B. Ferguson, “Oração: Uma Obra Pactual”, Banner of
Truth Magazine 137 (1975), pp. 23ss.
9
O Corpo de Cristo
A primeira destas perguntas tem atraído uma pequena montanha de
discussão no empenho de traçar a origem do uso que Paulo faz da
analogia do corpo na esperança de esclarecer o significado que ele soma
ou une a ela. Até certo ponto, tal empenho pode muito bem ser visto
como correr atrás de uma pista falsa; o significado textual não pode
derivar-se meramente da origem de um termo ou da inspiração para o
mesmo. Na melhor das hipóteses, a análise das várias formas nas quais
o conceito de corpo poderia ter-se originado no mundo do pensamento
paulino nos proveria com uma série de possibilidades.
A literatura do império romano nos fornece os precursores do
conceito do corpo humano sendo usado como uma analogia para um
grupo de pessoas unido em importantes aspectos. A mais conhecida
destas é a fábula de Menenius Agrippa (c. 494 a.C.), a qual Livy registra
em sua History of Rome. Menenius Agrippa apela para a plebe com o
fim de refrear uma rebelião, valendo-se do uso de uma fábula na qual
as várias partes de um corpo, invejosas do estômago, recusam-se a
alimentá-lo – resultando no definhamento de todo o corpo.[144]
Outros têm apelado para a teologia sacramental de Paulo e para a
participação dos cristãos no pão partido que é simultaneamente o
emblema do corpo de Cristo e da união de seu povo. Mais recentemente,
tem-se feito apelo para um fenômeno coríntio local: escavações
arqueológicas do Asclepião coríntio têm desenterrado representações de
terracota de várias partes da anatomia humana, presumindo-se
representar partes do corpo curado pelo filho de Apolo, Asclepius, o
deus da cura do panteão grego.[145] Mas, em vista do uso que Paulo faz
da analogia em outras partes, esta conexão parece ser completamente
inverossímil.
A explicação mais simples, e talvez a melhor, da origem da
metáfora, consiste em que a ideia de uma comunidade como um “corpo”
estava “no ar”. Paulo a emprega de seu próprio modo distintivo, para
seus próprios propósitos. Em particular, o “corpo” que ele descreve é
singular, porque é o corpo de Cristo. Ele é sua cabeça e governante.
Assim como ele é a cabeça sobre o cosmos (Ef 1.22) e o dirige segundo
seus propósitos providenciais, assim ele é a cabeça sobre a igreja (Cl
1.18) e a dirige segundo os princípios de seu reino. Aqui, “cabeça”
(kephalē) contém uma conotação relacional, não anatômica. Cristo é o
Senhor e governante tanto do kosmos como da ekklēsia. Indivíduos são
introduzidos na igreja, a qual é o corpo de Cristo, que é a sociedade
daqueles que, em virtude de sua união com Cristo, pela graça e fé, são
inextricavelmente unidos num só feixe de vida; pertencem uns aos
outros porque pertencem a Cristo, seu Senhor e cabeça.[146]
O Batismo
A ministração da água batismal é um sinal de inauguração. Esse era o
caso do batismo de judeus prosélitos, embora tenha havido tanta
discussão se ele é ou não anterior aos Evangelhos.[147] Com certeza
procede dizer que o batismo de João marcou a inauguração do genuíno
arrependimento em resposta à vinda do reino. O batismo de Jesus pelas
mãos de João ato contínuo marcou sua entrada pública na era
messiânica e no ministério que atingiria seu ponto central no batismo
da cruz (cf. Lc 12.50).
O batismo com o Espírito nos introduz na vida de união com Cristo.
O batismo com água caracteriza isso externamente: “Arrependei-vos, e
cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão de
vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Aqui,
arrependimento, água batismal, o perdão dos pecados e o dom do
Espírito são vistos como aspectos correlativos da única realidade do
ingresso em Cristo, e assim em (a comunhão de) o nome do Pai, do Filho
e do Espírito Santo (Mt 28.19).
De tempos em tempos na história da igreja tem-se formulado a
seguinte pergunta: Em vista do caráter espiritual e interno do novo
pacto em Cristo, tais ritos externos são consistentes com sua novidade?
Isso não avilta a plenitude do ministério do Espírito? Por isso, em pleno
dilúvio do ensino da “luz interior” do século dezessete, Robert Barclay
comenta: “Este batismo é simplesmente uma coisa espiritual... do qual
o batismo de João era uma figura, o qual fora ordenado por certo tempo
e não continuou para sempre.”[148]
Todavia, em contraste, a igreja primitiva continuou com a prática
do batismo com água no espírito de Mateus 28.18-20, e fez cuidadosa
distinção entre batismo com água e batismo com o Espírito (At 10.47;
cf. 11.16). Aqui, Barclay e aqueles que partilharam de sua perspectiva
deixaram de reconhecer as estruturas teológicas que reforçavam o rito
externo e físico do batismo. Tanto o batismo como a Ceia do Senhor
funcionavam exatamente da mesma maneira que os sinais (palavras)
usados nas expressões verbais do evangelho; neles e através deles Cristo
se faz conhecido. Aliás, em vez de tornar-se obsoleto na era que é
dominada pelo Espírito de Cristo, o batismo e a Ceia do Senhor ilustram
ainda o modo no qual o evangelho se ajusta à nossa condição humana,
assim como se ajusta à nossa condição pecaminosa. Daí, a Grande
Comissão implica que o batismo deve ser ministrado à medida que os
discípulos de Cristo se preparam, e ele mesmo continua a estar presente
com a igreja (Mt 28.18-20).
O Espírito de Deus age como o vínculo interior de todos os
relacionamentos pactuais de Deus com seu povo. Cada pacto feito com
eles foi confirmado por um sinal específico, selando a promessa
entesourada na palavra pactual. O arco-íris, no caso do pacto noéico, e
a circuncisão, no caso do pacto abraâmico, são ilustrações claras (Gn
9.8-17; 17.1-4). Estes simbolizam a promessa pactual e funcionam
como sinais físicos que a confirmam para a fé. Embora a linguagem de
“sinal e selo” seja usada exclusivamente para a circuncisão (Rm 4.11),
ela descreve bem o modus operandi de todos os sinais pactuais. Assim,
por exemplo, Noé pôde vislumbrar o sinal pactual depois de uma
tempestade e assegurar-se de que Deus estava recordando sua
promessa pactual (Gn 9.12-17). Além da promessa propriamente dita, o
sinal funcionou como uma confirmação (selo) física e visível dela.
Segundo o próprio testemunho de João, a função central de seu
batismo, em distinção de sua significação existencial e pessoal para os
que o recebiam, era prover o contexto histórico no qual o Messias se
revelaria: “Eu mesmo não o conhecia, mas a fim de que ele fosse
manifestado a Israel, vim, por isso, batizando com água” (Jo 1.31). Esta
afirmação muitíssimo negligenciada, tomada com o testemunho dado
sobre Jesus em seu batismo (Mc 1.11) e sua própria visão da cruz como
o cumprimento de tudo o que seu batismo significava (Lc 12.50; Mc
10.38-39), sublinha que, mesmo no caso de Jesus, a água batismal
serviu para indicar seu significado (sinal) interior e confirmar-lhe, com
isso, como ele o recebeu (o selo). Seu batismo foi assistido pela palavra
do Pai que explica sua significação, e pelo Espírito do Pai que veio
equipá-lo para levar o que era significado à plena realização em seu
verdadeiro e final batismo na cruz, como o forjamento de um novo pacto
em seu sangue, em cujo coração ficava o dom do Espírito (Ez 36.26-27).
Os dois eventos no Antigo Testamento que são considerados como
“batismos” pelo Novo Testamento, ou, pelo menos, como análogos ao
batismo, ambos têm a forma de testes com água através dos quais o
eleito de Deus desfrutava de livramento, enquanto que outros se
enquadravam numa maldição. Esse foi o caso de Noé e de sua família
(1Pe 3.18-21), e de Moisés e os israelitas (1 Co 10.2).[149]
O verdadeiro batismo de Jesus na cruz também tem o caráter de um
teste com água. O Salmo 69 é justamente uma descrição desse teste com
água:
Salva-me, ó Deus,
porque as águas me sobem até a alma.
Estou atolado em profundo lamaçal,
que não dá pé;
estou nas profundezas das águas,
e a corrente me submerge. (Sl 69.1-2)
A Ceia do Senhor
O batismo e a Ceia do Senhor têm importantes aspectos em comum:
ambos são sinais e selos pactuais; ambos nos apontam Jesus Cristo e
sua graça salvífica. Não obstante, cada um serve a sua própria função
específica e tem um enfoque distintivo. O batismo é inaugural e é
recebido apenas uma vez como sinal da união com Cristo. A Ceia do
Senhor, em contrapartida, é um sinal de comunhão contínua com Cristo
e deve ser recebida com frequência.
Qual a razão especial do testemunho que o Espírito dá na Ceia do
Senhor?
O cerne da Ceia é o pão quebrado e o vinho derramado, que servem
como símbolos do corpo quebrado e o sangue derramado de Cristo. A
recepção deles é um meio de comunhão com Cristo como Aquele cujo
corpo foi quebrado e cujo sangue foi derramado por nós: “Porventura o
cálice da benção que abençoamos não é a comunhão [koinōnia] do
sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de
Cristo?” (1Co 10.16).
Isso também, como o simbolismo do batismo, deve ser entendido
em termos pactuais. Comer o cordeiro pascal (do qual a Ceia é o
cumprimento, 1Co 5.7-8) implicava comunhão com a benção na morte
do cordeiro, como proteção contra a maldição oriunda do juízo divino
expresso na obra do anjo da morte (cf. Êx 12). Significava unir-se ao
povo de Deus pactualmente redimido e abençoado.
O mesmo é válido no tocante à Ceia. Ela sela o novo pacto no
sangue de Cristo. Como o cordeiro pascal, Cristo assumiu, na morte, a
maldição divina em forma de juízo, a fim de compartilhar conosco as
bençãos da presença de Deus.
No cenáculo, Jesus deu a seus discípulos o cálice do novo pacto de
comunhão com Deus. No horto do Getsemani ele recebeu das mãos do
Pai o cálice de juízo e maldição pactuais. Seu apelo, “Se possível, passe
de mim este cálice”(Mt 26.39), alude ao cálice do juízo divino do qual os
profetas veterotestamentários falaram (Sl 75.8; Is 51.17, 22; Jr 25.15,
17; Ez 23.31-33; Hc 2.16 – passagens destinadas a leitura penitencial).
Ao beber o cálice, Jesus submeteu-se à maldição do pacto divinamente
designada, morrendo em trevas (Mt 27.45; cf. Gn 15.12), em fome,
nudez, pobreza e sede (cf. Dt 28.45-48). Ele foi esmagado pela
experiência de ser o maldito pendurado em madeiro (Gl 3.13). Ele
sentiu-se abandonado por Deus, ferido e oprimido por ele (Is 53.4-6,
10; Mt 27.46).
Mais tarde, após sua ressurreição, ele exibiu a seus discípulos suas
mãos e seus pés (Lc 24.37). É com o Cristo crucificado e agora
ressurreto que eles tinham comunhão. Ele foi reconhecido no partir do
pão.
Portanto, a dinâmica fundamental do pacto divino é operativa:
Deus leva o maldito juízo a seu próprio coração; os que creem recebem,
por sua vez, a benção pactual através da fé, que é, em essência,
comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e exaltado.
Deve ficar claro agora por que o papel do Espírito é tão vital na
Ceia. Somente entendendo sua obra é que podemos deixar de cair nos
equívocos que levaram tanto católicos (ex opere operato) como
evangélicos (memorialistas) a entenderem mal a Ceia. Não é pela
administração da igreja, ou meramente pela atividade de nossas
memórias, mas pela operação do Espírito que desfrutamos da
comunhão com o Cristo crucificado, ressurreto e agora exaltado.
Porquanto Cristo não está localizado no pão e no vinho (ponto de vista
católico), nem está ausente da Ceia como se nossa suprema atividade
fosse lembrar-nos dele (ponto de vista memorialista). Ao contrário, ele é
conhecido através dos elementos, por intermédio do Espírito. Há na
Ceia uma genuína comunhão com Cristo. Assim como na pregação da
Palavra ele se faz presente, não na Bíblia (localmente), nem pelo crer,
mas pelo ministério do Espírito, assim ele também se faz presente na
Ceia, não no pão e no vinho, mas pelo poder do Espírito. O corpo e o
sangue de Cristo não se acham encerrados nos elementos, já que ele
está à destra do Pai (At 3.21); mas, pelo poder do Espírito, somos
introduzidos à sua presença e ele se põe entre nós.
Neste contexto, é difícil resistir à ideia de que é para o ministério
do Espírito na Ceia que João aponta quando registra as palavras de
Jesus à igreja de Laodiceia: “Eis que estou à porta, e bato; se alguém
ouvir minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com ele
e ele comigo” (Ap 3.20). Porventura isso não aponta para o fato de que
João cria que a igreja poderia desfrutar com ele, quando estava “no
Espírito no dia do Senhor” (Ap 1.10)?
Ao longo da história, os teólogos da igreja têm-se esforçado por
sustentar esta perspectiva. Isidoro de Seville (560-636), por exemplo,
parece ter enfatizado que o Espírito Santo faz o corpo de Cristo presente
aos crentes, assim se prendendo ao corpo de Cristo para que ele possa
mediar o virtus ou o poder da Ceia aos que a recebem com fé. Ratramus
de Corbie (morto em 868), em sua célebre controvérsia sobre a presença
de Cristo na Ceia do Senhor, com Paschasius Radbertus (morto em 865,
às vezes considerado o teólogo da transubstanciação), semelhantemente
procurava preservar o entendimento da real presença de Cristo como
sua presença por intermédio do Espírito.
Provavelmente, nenhum teólogo se esforçou mais para expressar
este mistério do que João Calvino. E, no entanto, mesmo em suas
expressões mais fortes do significado da Ceia, permanece a admissão de
mistério:
E ainda que pareça incrível que a carne de Cristo, tão afastada de nós pela
distância, chegue até nós, fazendo-se nosso alimento, pensemos até que ponto
a oculta virtude do Espírito excede e supera nosso entendimento, e quão vã e
louca coisa é querer medir sua imensidão com a nossa medida. Assim, pois, o
que nosso entendimento não pode compreender, a fé o recebe: que o Espírito
verdadeiramente junta as coisas que permanecem afastadas, e Jesus Cristo
assegura e sela na Ceia esta participação de sua carne e de seu sangue, pela
qual faz fluir e transfere para nós sua vida, nem mais nem menos como se
entrasse em nossos ossos e em nossa medula. E não nos oferece um sinal vazio
e sem valor, senão que nos mostra nele a eficácia de seu Espírito, cumprindo o
que promete. E, verdadeiramente, oferece e dá a todos os que tomam parte
neste banquete espiritual, a realidade nele significada, ainda que somente os
fiéis a recebam com proveito, posto que recebem tão imensa liberalidade do
Senhor com verdadeira fé e profunda gratidão.[150]
O Cristo que subiu aos céus continua a expressar seu amor para com o
seu povo por meio dos sacramentos. Eles marcam o ingresso e
permanência do eleito na comunhão de um só corpo do qual Cristo é a
cabeça. Os sacramentos, que são dons de Deus, expressam a unidade
que existe na diversidade do povo de Deus (1Co 10.17; Ef 4.1-7).
Não obstante, o Novo Testamento também enfatiza que o Cristo
que subiu fortalece a unidade dos diversos membros de seu corpo
através de dons de outro gênero, os quais são também dados através do
Espírito.
A correlação entre a ascensão de Cristo e a descida do Espírito
assinala que o dom e os dons do Espírito servem como a manifestação
externa do triunfo e entronização de Cristo. Paulo sublinha esta verdade
com a citação do Salmo 68.18, em Efésios 4.7-8: “Quando ele subiu às
alturas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos homens.” O
derramamento desses dons do Espírito marca a ruína dos inimigos de
Cristo e o início da igreja (Mt 16.18). Assim como no caso da construção
do tabernáculo (Êx 31.3), também no caso da construção do novo
templo de Deus, dons do Espírito são dados para equipar o povo de
Deus e capacitá-lo a pôr em evidência a glória de Deus, a plenitude de
Cristo, no templo de Deus (Ef 4.12, 16). Cristo assim adorna sua
esposa, seu corpo.
Em nossos próprios dias, esses “dons ativos” (dons espirituais)
têm-se convertido de tal forma em arena de debates e discordância
como os “dons sinais” (os sacramentos) o foram na história da Igreja
Primitiva.
Aqui se podem dizer duas coisas como comentário preliminar sobre
essa exaustiva área de discussão.
(1) O ministério da Palavra dado ao povo de Deus é ponto central
no exercício de qualquer dom do Espírito. Não há lista exaustiva dos
dons do Espírito em qualquer uma das passagens neotestamentárias.
Mas, nas listas bíblicas existentes (Rm 12.3-8; 1Co 12.7-11, 28-30; Ef
4.11; 1Pe 4.10-11), fica claro e evidente (ver o gráfico abaixo) que o
ministério da Palavra revelatória de Deus é central e básico para o uso
de todos os demais dons. É a Palavra que os estabiliza e os nutre; eles,
por sua vez, dão expressão a essa Palavra de várias maneiras:
palavra de sabedoria
palavra de conhecimento
fé
dons de cura
1 Coríntios 12.8-11 operação de milagres
profecia
discernimento de espírito
falar em línguas
interpretação de línguas
apóstolos
profetas
mestres
operadores de milagres
1 Coríntios 12.28
cura
socorros
administração
línguas
profecia
serviço
ensino
Romanos 12.6-8 exortação
contribuição
liderança
ministério de misericórdia
apóstolos
profetas
Efésios 4.11 evangelistas
pastores/
mestres
1 Pedro 4.11 falar
servir
As Línguas
Falar em línguas como um efeito da vinda do Espírito é explicitamente
mencionado em quatro contextos neotestamentários: no Dia de
Pentecostes (At 2.4, 11), na casa de Cornélio (At 10.46), pelos
“discípulos” de Éfeso que haviam recebido somente o batismo de João
(At 19.6) e no contexto da igreja em Corinto (1Co 12, 14 passim).
Tem-se discutido com muita frequência a natureza do falar em
línguas, e aqui não é possível ser explorada exaustivamente.[156] De
forma fascinante, e até mesmo perplexiva, perguntas vêm à tona nesta
conexão. Por que, diferentemente de outros dons, este se encontra
exclusivamente no Novo Testamento, e não no Antigo (diferentemente
de profecia, milagres, curas e outros dons)? Por que somente em uma
carta do Novo Testamento há clara referência ao fenômeno? O
fenômeno é idêntico em cada caso em que aparece?
Esta última pergunta é de certa importância. Tem-se argumentado
que o milagre real no Pentecostes estava na audição (At 2.6, 8, 11) e
que as “línguas” eram de fato uma forma de elocução estática, e não
um idioma identificável. Essa, porém, é uma redação inusitada de Atos
2.1-13, a qual registra a elocução em outras línguas, bem como a
audição na “língua nativa” e nas “línguas” dos que estavam presentes
no Dia de Pentecostes.
É difícil resistir à conclusão de que as línguas faladas na casa de
Cornélio e pelos “discípulos” de Éfeso eram idênticas em caráter
àquelas do Pentecostes. Mas, o que dizer das línguas a que Paulo alude
em 1 Coríntios? Aqui os exegetas não chegam a um acordo. Com certeza
glōssa (cf. At 2.4; 1Co 12–14), ordinariamente, tem a ver com um
idioma real; e, além do mais, Paulo reconhece que falar em línguas
requer interpretação ou tradução, já que ele comunica uma mensagem
coerente. Categoricamente, os diferentes dons do Espírito não parecem
estar em pauta.
A diferença entre o Pentecostes e Corinto está no fato de que os que
ouviram línguas em Jerusalém já possuíam a chave para sua
interpretação: entenderam as línguas faladas porque elas eram suas
línguas nativas (At 2.11); não se requeria nenhuma tradução. Em
contraste, lá em Corinto, para falar, fazia-se necessário um intérprete.
Mas não há motivo algum para se concluir que houvesse alguma
diferença essencial entre a natureza das línguas faladas nos dois
contextos.
Essas línguas, porém, eram idiomas humanos identificáveis?
Também aqui encontramos diversidade de opinião. Tem-se alegado que
“línguas” indicam o idioma dos anjos, em virtude da intrigante
referência que Paulo faz a “línguas dos homens e dos anjos” (1Co 13.1).
Menciona-se idioma angélico no livro apócrifo, O Testamento de Jó, em
48.3, onde Hemera, uma das filhas de Jó, fala num dialeto angelical.
Não obstante, é possível que “línguas dos anjos” (como uma série de
expressões em 1 Coríntios) expresse uma pretensão dos coríntios, e não
um conceito apostólico. Isso se adequaria bem aos elementos do falso
ensino corrente em Corinto (a defeituosa escatologia que levou alguns a
afirmarem que a ressurreição já havia se realizado, e que, portanto, os
crentes já se assemelhavam a anjos celestiais). Mas a ideia de que as
línguas representam o idioma dos anjos não é consistente com o uso que
Paulo faz de Isaías 28.11-12 em 1 Coríntios 14.21. Aqui ele explica que
parte da significação interior das línguas não interpretadas é a forma
como podem funcionar como “um sinal, não para os crentes, mas para
os incrédulos” (1Co 14.22). Para Paulo, as línguas servem parcialmente
como o sinal do juízo de Deus sobre seu povo pactual. O que caracteriza
o reverso de Babel e indica a universalidade do novo pacto também
indica juízo sobre o povo pactual pela rejeição de Cristo. Babilônia
revertida é, noutro sentido, Jerusalém julgada (“sua perda significa
riquezas para os gentios”, Rm 11.12). O uso de línguas além da língua
pactual comum é um sinal de hostilidade divina. A linguagem angelical
dificilmente seria apropriada como um sinal de rejeição! Portanto,
fazendo Paulo a aplicação de Isaías, é mais consistente ver as línguas
em Corinto como idiomas estrangeiros exigindo tradução e
interpretação. Como no Pentecostes, quando interpretado, o falar em
línguas era equivalente a profecia (At 2.17-18; 1Co 14.5).[157] Os
fenômenos, se não realmente idênticos, são com certeza funcionalmente
equivalentes na igreja.
A Profecia
No Antigo Testamento, o profeta (nāḇî’) era a boca de Deus e o
instrumento de revelação divina. Naturalmente, essa revelação vinha
em várias formas e era pronunciada numa variedade de maneiras (Hb
1.1; At 2.17). Entretanto, comum a todos os modos era a noção de que
as palavras do Senhor se tornavam as palavras dos profetas: sua
palavra em suas bocas e em seus lábios (Dt 18.18-19; cf. Jr 1.9).
Portanto, prefixar as afirmações de alguém com a sacra reivindicação:
“Isso é o que diz o Soberano Senhor” era professar ser um veículo da
revelação divina.
No Novo Testamento, a profecia tem sido entendida de maneira
semelhante. Mas, com a convicção muito difusa que despertou no seio
da igreja a ideia de que as Escrituras constituíam um único e completo
repositório da revelação divina, tornou-se comum interpretar as muitas
referências neotestamentárias à “profecia” como equivalente a
pregação, permitindo assim que tais passagens tivessem uma
significação direta para a vida ordeira da igreja contemporânea. Assim
a obra de William Perkins, do final do século dezesseis, The Art of
Prophesying, tornou-se um manual para jovens estudantes e ministros
a ensinar-lhes a arte da pregação expositiva. Estudos mais recentes têm
explorado a possibilidade de que a profecia seja entendida como uma
percepção imediata e sem premeditação do significado da Escritura.
Recentemente, um grupo de escritores tem sugerido que
encontramos no Novo Testamento dois níveis de ministério profético:
(1) aquele associado com os apóstolos e caracterizado por uma
reivindicação implícita por infalibilidade; e (2) um segundo nível de
profecia que reivindica a percepção do que foi divinamente dado, mas
não necessariamente pela infalibilidade da expressão verbal. Este ponto
de vista, especialmente, mas não exclusivamente, tem sido defendido
por Wayne Grudem em diversas publicações.[158]
Grudem observa que, no mundo helenista, a variação semântica do
termo “profeta” era de fato muito ampla; ele argumenta que devemos
reconhecer uma variação semelhante no Novo Testamento. Embora na
religião helenista se faça certa distinção entre os diferentes “níveis” de
profecia envolvida na inspiração e interpretação,[159] observe-se, no
entanto, que o antecedente controlador do pensamento do Novo
Testamento não é a profecia helenista, e sim a profecia hebraica, com
sua reivindicação implícita, e às vezes explícita, de inspiração divina,
inclusive quando refletida nos eventos futuros.
Grudem sustenta que na era do novo pacto o papel dos profetas
inspirados tem segmento na obra dos apóstolos, e que esse último título
é usado para evitar confusão entre os “profetas” da cultura religiosa
contemporânea. Assim, em Efésios 2.20, os “apóstolos e profetas”,
sobre quem a igreja é edificada, constitui uma hendiadis para “os
profetas apostólicos”. Isso, porém, dificilmente seria um raciocínio
convincente e persuasivo. Embora seja procedente o fato de que há
importantes analogias entre as funções dos profetas
veterotestamentários e os apóstolos neotestamentários, se tivesse
havido a possibilidade de a igreja entender mal o termo “profeta”, não
faria sentido algum ter ela usado o termo e, certamente, nem mesmo os
apóstolos o usariam.
Em sua primeira obra, Grudem mencionou dois diferentes gêneros
de profecia; na obra mais recente, ele esclarece sua intenção falando de
dois diferentes níveis de autoridade. Então ele procura demonstrar que
o primeiro desses casos envolve uma alegação de infalibilidade; o
segundo, não. Portanto, o primeiro não é contínuo; o segundo pode
continuar.
(1) Grudem destaca diversas indicações nos Atos dos Apóstolos
que, para ele, apoiam sua tese. Em minha opinião, seus argumentos
mais importantes são os seguintes:
Na profecia de Ágabo sobre a vinda de fome (At 11.28), a
linguagem de Lucas (“pelo Espírito”) expressa uma relação muito
espontânea entre o Espírito Santo e o profeta, uma vez que ela dá lugar
a um imenso grau de influência pessoal vinda da própria pessoa
humana. Aqui, Grudem argumenta com base na analogia de Romanos
8.37 e 1 Timóteo 1.14.[160]
Não obstante, este é um argumento supérfluo. A própria doutrina
da Escritura, defendida por Grudem, requer que o ministério do Espírito
que efetua a inerrância das Escrituras proféticas também,
ordinariamente, dê lugar à plena expressão das características e
atividades pessoais do autor humano. Mas, como ele mesmo reconhece,
isso não reduz sua autoridade a um nível mais baixo nem enfraquece
seu caráter infalível.
A profecia neotestamentária registrada inevitavelmente tem a
mesma forma essencial, como as palavras de Ágabo esclarecem: “Isto
diz o Espírito Santo” (At 21.11). A inadequação da tese de Grudem
neste ponto se percebe pelo fato de que ela o põe na situação paradoxal
de insinuar que, quando Ágabo falou sob a influência geral do Espírito
(“pelo Espírito”, At 11.28), ele profetizou mais acuradamente o futuro
do que quando falou (menos acuradamente, no conceito de Grudem)
sobre o destino de Paulo como sendo o que “o Espírito Santo diz” (At
21.11)!
O caso de Ágabo poderia nem ser essencial a esta tese,[161] mas
esta, de fato, exerce um papel mais relevante na demonstração de
Grudem, visto que tal caso é reivindicado como uma ilustração explícita
de profecia falível, que não é profecia falsa. O problema com a tese
consiste em que, se este é o caso, a linha entre o falível e o falso se torna
perigosamente tênue. Podemos legitimamente perguntar: Como o falível
é falso? Porque, se seguirmos a hipótese da profecia em dois níveis,
neste caso particular, Ágabo laborou em erro duplo: (a) Sua profecia
erra em detalhes – e, segundo o conceito de Grudem, em detalhes que se
acham no cerne da profecia; (b) Além disso, Ágabo parece não estar
cônscio da própria distinção que Grudem considera como um período
muito difundido no Novo Testamento – a distinção entre profecia de
primeiro e de segundo nível. Do contrário, em vez de dizer “Isto diz o
Espírito Santo” (At 21.11), ele teria dito algo mais ou menos assim:
“Para mim é como se o Espírito estivesse, quem sabe, indicando que
algo como isto pode muito bem acontecer a Paulo, se ele for a
Jerusalém; mas eu poderia estar equivocado, especialmente nos
detalhes.” Com certeza, o registro de Lucas não dá respaldo à tese de
Grudem de que se trata de um exemplo de suposição progressiva, ou de
Ágabo ou de Paulo.
(2) Grudem afirma que seu ponto de vista é estabelecido pelo
profetizar dos “discípulos” de Éfeso. “Por certo que sua profecia é
diferente do discurso divinamente oficial de Paulo e dos demais
apóstolos.”[162] Mas isso confunde significação com inspiração. O que
esses crentes efésios “profetizaram” teria sido, no conceito de Grudem,
relativamente incidental, em comparação, com as convincentes
afirmações dos apóstolos. Genuínas, porém irrelevantes. Pois o
relativamente incidental e insignificante não é, por definição, menos
acurado ou menos divinamente inspirado do que o mais grave e
significativo. Sem dúvida, as declarações: “Pois todos pecaram e
carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus
propôs, em seu sangue, como propiciação, mediante a fé para
manifestar sua justiça, por ter Deus, em sua tolerância, deixado
impunes os pecados anteriormente cometidos” (Rm 3.23-25) são de
importância quase infinitamente maior do que a mensagem: “Saudai a
meu parente Herodião” (Rm 16.11). Mas o próprio Grudem com isso
não afirmaria que o primeiro caso possua uma inspiração ou
autoridade que é “certamente diferente” do segundo caso.
Presumivelmente, nem Paulo foi mais ativo em formular a redação do
segundo caso do que do primeiro.
(3) Segundo esta hipótese, Atos registra profecias que Paulo
desobedece. Ele não teria feito isso se as considerasse como que
contendo autoridade divina infalível. Implicitamente, pois, Paulo
reconhecia diferentes “níveis” de discurso profético. Em Atos 21.4,
Lucas alude aos discípulos de Tiro que, “movidos pelo Espírito,
recomendavam a Paulo que não fosse a Jerusalém”. Enquanto aqui não
se menciona explicitamente profecia, é evidente o paralelo com Atos
11.28 (“e apresentando-se um deles, chamado Ágabo, dava a entender,
pelo Espírito, que estava para vir grande fome por todo o mundo, a qual
sobreveio nos dias de Cláudio”). A menos que desejemos acusar Paulo
de rejeitar a clara orientação de Deus, devemos atribuir um status
secundário a essa profecia.
Entretanto, o próprio Grudem interpreta este evento de uma
maneira que parece malograr sua própria defesa de uma autoridade de
nível secundário em tal profecia:
“Suponha-se que alguns dos cristãos de Tiro tivessem algum tipo de
‘revelação’ ou indicação vinda de Deus acerca do sofrimento que Paulo
enfrentaria em Jerusalém. Então lhes teria sido muito natural acoplar sua
profecia subsequente (sua notícia sobre esta revelação) com sua própria
interpretação (errônea), e com isso aconselhar Paulo a não ir. Em suma, esta
passagem indica um tipo de profecia que não era reconhecida como que
possuindo autoridade divina absoluta em suas palavras reais: os profetas de
Tiro não estavam falando ‘palavras do Senhor’.”[163] (Itálico meu.)
Uma Explicação?
Como, pois, podemos explicar os fenômenos sobre os quais tantos
testificam? A pergunta é legítima, mas de modo algum é fácil. Ela traz
certas dificuldades tanto para os continuístas quanto para os
cessacionistas. A dificuldade para o ponto de vista continuísta é
explicar a diferença existente entre o século vinte [e um] e todos os
séculos anteriores da história da igreja. Em contrapartida, como
podemos explicar a experiência de trezentos e cinquenta milhões de
pessoas, a maioria das quais afirma falar em línguas, muitas das quais
afirmam profetizar, enquanto outras afirmam curar?
Distintos de outras diferenças teológicas (a saber, sobre a relação
entre o corpo de Cristo e o pão da Ceia do Senhor), esses fenômenos são
observáveis e medíveis. Os fatos parecem falar por si sós. Contudo, esse
é precisamente o cerne do problema: o fenômeno é de fato
experienciado, porém não é uma realidade autointerpretativa. Isso se
aplica igualmente às línguas e à profecia, palavras de sabedoria e
conhecimento, bem como à operação de milagres e cura por mãos
humanas. Um importante elemento de interpretação, apesar de
largamente desconsiderado, é envolvido no continuinismo.
Já observamos isso anteriormente com respeito às línguas. No caso
da profecia, seria mais consistente com sua natureza revelatória (e,
portanto, sua função existencialmente canônica) para os continuístas
reconhecerem que suas percepções da palavra de Deus e seu senso do
propósito dele não são real e absolutamente profecia, e sim iluminação,
percepção falível e aplicação contemporânea da verdade bíblica.
Além do mais, o que dizer da recorrência do dom neotestamentário
de cura? Este, seguramente, é um “fato brutal”. Aqui se faz necessário
agir com muito cuidado. Deus continua a responder às orações de seu
povo por cura (Tg 5.14, 15). A convicção de que certos dons exercidos
por indivíduos, no Novo Testamento, não se destinavam a ter
continuidade na igreja de maneira permanente não deve ser tomado no
sentido de que Deus não mais opera de forma gloriosa e sobrenatural
em favor de seu povo. Mesmo que a alguém fosse assegurado o que às
vezes é tão prontamente feito, ou seja, que a cura é muito mais
frequente entre os continuístas do que entre os cessacionistas, a razão
pode não estar no grau interpretativo adotado, e sim na fé que busca (e
que pode até mesmo antecipar) a intervenção de Deus.
A única ajuda que nos é dada no Novo Testamento para analisar
os “dons de cura” (1Co 12.9, 30) retrata este dom em termos dos quais
as reivindicações contemporâneas guardam pouca lembrança. Um
número maciço de curas é efetuado; defeitos congênitos são curados;
coxos de nascença são imediatamente capazes de andar; não há
qualquer registro de fracasso, seja em parte ou total, nenhuma sugestão
de reincidência e, presumivelmente, nenhuma vem à nossa imaginação.
Essa é uma ordem de fatos reais, diferente da realidade contemporânea.
Deus é ainda Javé que cura (Gn 15.26); mas ele não tem nenhuma nova
revelação a dar que seja atestada e dada a indivíduos por meio de “dons
de cura”. A única nova revelação que devemos antever é o aparecimento
final de Jesus Cristo. Aí, então, a cura sem precedente e final ocorrerá
na maior de todas as escalas.
O mesmo princípio acontece bem mais amplamente com respeito à
“experiência” do batismo com o Espírito Santo. “Experiência” que, às
vezes, tem estado estreitamente ligada ao continuinismo. Não é
necessário negar a experiência com o divino; somente a interpretação
dela. O que tem sido um equívoco em relação ao batismo pós-conversão
com o Espírito poderia não passar de uma nova emoção provinda do
Espírito, uma nova plenitude de certeza e alegria, uma nova ousadia em
dar vazão à fé em Cristo. Isso não se prova experimentalmente uma vez
por todas na primeira sensação proveniente do Espírito que ocorre na
regeneração, na conversão e no batismo com o Espírito.
Se esse é o caso, então tudo indica que houve uma má
interpretação em grande escala no século vinte. Até onde isso procede,
uma reinterpretação que fixe a experiência em um maior número de
categorias bíblicas, não só produzirá uma harmonia teologicamente
mais ampla na doutrina do Espírito Santo; também unirá a experiência
à verdade de uma forma tal que maior estabilidade e mais rico fruto do
Espírito serão gerados na vida e no caráter da igreja de Jesus Cristo.
Este, além de tudo, é o alvo ao qual se direciona todos os dons do
Espírito (cf. Ef 4.7-16).
O Espírito e a Pregação
Nas listas que o Novo Testamento apresenta, é dado um lugar central
aos dons para o ensino e a pregação da Palavra de Deus. Isso já era
verdadeiro nos dias apostólicos, como deixa transparecer claramente o
ministério dos apóstolos.
O ministério de Paulo em Éfeso exibe este enfoque com grande
clareza. Ele chegou a ser caracterizado pelos sinais confirmativos do
ministério apostólico até mesmo além do normal: “Deus fazia milagres
extraordinários...” (At 19.11). Todavia, a peça central da obra de Paulo
foi a preleção na escola de Tirano, onde por dois anos ele ensinou
diariamente aos discípulos. Seu comentário pessoal sobre aquele
período de sua vida é iluminador: ensinou aos efésios, pregou o reino e
proclamou todo o conselho de Deus (At 20.20; 25; 27). De fato, uma
tradição textual sugere que ele fez isso até durante o período da sesta
(descanso) diária, por várias horas, talvez por cinco horas a fio, a cada
dia.
À luz disto, as instruções de Paulo a Timóteo, que ultimamente
estava ministrando em Éfeso, adquire uma significação especial. O foco
de sua atenção é posto no papel central do ensino e pregação bíblicos
no período pós-apostólico. Timóteo devia dar atenção não só à leitura
(1Tm 4.13), mas devotar-se ao manejo da Palavra de Deus com eficácia
(2Tm 2.15). Deveria pregar de tal maneira que ficasse bem claro como a
Escritura é “útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça”. Enquanto assim pregasse a palavra, ele
deveria “corrigir, repreender e encorajar – com grande paciência e
criteriosa instrução” (3.16–4.2; a divisão normal de capítulo não é
muito feliz aqui).
Nesta conexão, Paulo considera a palavra de Deus como “a espada
do Espírito” (Ef 6.17), com isso tendo em mente não só que ela foi
forjada pelo Espírito (inspiração), mas também que ela é empregada
pelo Espírito com poderoso efeito (cf. Hb 4.12-13). Através dela, o
Espírito honra a Cristo e produz convicção de pecado (Jo 16.8-11), como
ele fez através da pregação de Pedro no Dia de Pentecostes. Embora a
proclamação feita pelas línguas tenha impressionado alguns dos que a
ouviram, foi a pregação que Pedro fez com base nas Escrituras que
efetuou a conversão de três mil pessoas.
Em outra parte, Paulo indica o que está no cerne de comunhão tão
eficaz. Ela não provém de nenhuma retórica, sabedoria ou oratória
humanas, mas do poder — a marca registrada do Espírito (cf. At 1.8).
Sua pregação aos coríntios foi “não com sabedoria e palavras
persuasivas, mas com a demonstração do poder do Espírito” (1Co 2.4).
Sua pregação aos tessalonicenses foi de um caráter semelhante: “nosso
evangelho veio a vós não simplesmente com palavras, mas também com
poder, com o Espírito Santo e com profunda convicção... recebestes a
mensagem com alegria produzida pelo Espírito Santo” (1Ts 1.5, 6).
Várias coisas caracterizavam tal pregação. A primeira era o
evidente enfoque de Paulo centrado na pessoa e obra de Cristo (1Co
1.23; 2.2) e, particularmente, no Cristo crucificado como o poder e
sabedoria de Deus. A segunda era a maneira como ela se adequava na
grade da função das Escrituras dadas pelo Espírito (ensino, repreensão,
correção e cura, e treinamento na justiça, cf. 2Tm 3.16–4.2). A terceira
era o contexto no qual ela era posta na vida do pregador. Aqui se torna
relevante nossa discussão anterior sobre a união com Cristo, pois a
poderosa pregação de Paulo parece ter sido com frequência um
correlato de sua experiência de provações e angústias. Ele vivia em
Corinto “em fraqueza e temor, e... muito tremor” (1Co 2.3). Foi na
incitação do sofrimento e insulto em Filipos que ele pregou em
Tessalônica de forma muito frutífera (1Ts 2.2). Em Cristo ele era fraco,
ainda que vivesse com Cristo para servir em seu ministério (2Co 13.5).
A marca registrada da pregação que o Espírito efetua é a “ousadia”
(parrhēsia=pan+rhēsis, At 4.13, 29, 31; Fp 1.20; cf. 2Co 7.2). Como no
Antigo Testamento, quando o Espírito enche o servo de Deus, ele “se
veste” com essa pessoa, e os aspectos da autoridade do Espírito são
ilustrados na corajosa declaração da palavra de Deus. Essa ousadia
parece envolver exatamente o que ela denota: há liberdade de
expressão. Obtemos vislumbres ocasionais disto em Atos dos Apóstolos.
O que foi dito do antigo pregador da Nova Inglaterra, Thomas Hooker,
se torna uma visível realidade: quando ele pregava, os que o ouviam
sentiam como se ele tivesse tomado um rei e posto em seu bolso! Há um
senso de harmonia entre a mensagem que está sendo proclamada e o
modo como o Espírito se veste com o mensageiro. Aqui as cortantes
palavras de Gordon Fee certamente acertam o alvo:
A oratória polida às vezes ouvida dos púlpitos, onde o próprio sermão parece
ser o alvo do que se diz, causa admiração se o texto for ouvido. O próprio
ponto de Paulo requer uma nova audição. O perigo está sempre em deixar a
forma e o conteúdo substituir aquilo que deve ser a única preocupação: o
evangelho proclamado através da fragilidade humana, mas acompanhado
pela poderosa obra do Espírito, de tal sorte que as vidas são transformadas
pelo encontro do divino-humano. Isso é difícil de se ensinar num curso de
homilética, mas ainda permanece como a verdadeira necessidade na pregação
genuinamente cristã.[188]
[154] Wayne Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today
(Westchester, IL: Crossway, 1988), pp. 45-63.
[155] O ponto de vista de que Efésios 2.20 deva ser considerado como um fato controlador
nesta discussão tem sido criticado por Grudem e seu colega, D. A. Carson. A crítica que
Carson faz a este ponto de vista como apresentado por Richard B. Gaffin, Jr., é
particularmente severa, para não dizer acerba. Ele argumenta: “É tão ilegítimo para
Gaffin usar este versículo como o fator controlador em seu entendimento do dom
neotestamentário de profecia como seria concluir à luz de Tito 1.12 (“Foi mesmo dentre
eles, um seu profeta que disse: Cretenses, sempre mentirosos, feras terríveis, ventres
preguiçosos”) que os profetas neotestamentários eram poetas pagãos de Creta” (D. A.
Carson, Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12.–14 [Grand
Rapids, MI: Baker Book House, 1987], p. 97). Essa é uma crítica infeliz. Considerar Tito
1.12 como uma afirmação controladora seria prima facie [diretamente] burlesca. Mas se
Efésios 2.20, como muitos comentaristas sustentam, se refere a dois ofícios, ele
inevitável e necessariamente, exerce uma função controladora, porque explicitamente
afirma que esses ofícios são fundamentais. Considerar isso como “um uso anômalo de
‘profetas’ no Novo Testamento”, como Carson faz, é seguramente um mal-entendido, em
vista da precedência consistente dada à profecia no ministério fundamental, porém não
necessário, de pastores e mestres (cf. Rm 12.6-8; 1Co 12.28; Ef 4.11), tanto quanto os
evangelistas.
[156] Como amostra representativa de estudos, ver Gordon Fee, The First Epistle to the
Corinthians (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1987), pp. 652-698; A. Bittlinger, Gifts and
Graces: A Commentary on 1 Corinthians 12–14 (Londres: Hodder & Stoughton, 1967);
Gunther Bornkamm, Early Christian Experience, tr. Paul L. Hammer (Londres: SCM Press,
1969); A. A. Hoekema, What About Tongues-Speaking? (Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1967); Carson, op. cit.; O. P. Robertson, A Palavra Final (São Paulo: Editora os Puritanos,
1999, tradução de Valter Graciano Martins); W. J. Samarin, Tongues of Men and Angels:
The Religious Language of Pentecostalism (Nova York: Macmillan, 1972).
[157] Ver Richard B. Gaffin, Jr., Perspectives on Pentecost (Phillipsburg, NJ: Presbyterian
& Reformed, 1979), p. 75.
[158] Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Lanham, MD: University of
America Press, 1982); idem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today
(Wstchester, IL: Crossway e Eastbourne: Kingsway, 1988); idem, Systematic Theology
(Grand Rapids: Zondervan e Leicester: Inter-Varsity Press, 1994). Para uma breve
discussão, ver Roy Clements, Word and Spirit: The Bible and the Gift of Prophecy Today
(Leicester: UCCF, 1986). Graham Houston, Prophecy Now (Leicester: Inter-Varsity Press,
1989); US ed. Prophecy: A Gift for Today [Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1989], é
uma bem-vinda contribuição do método como a profecia contemporânea pode manifestar-
se.
[159] Ver Platão, Timaeus, 71b; Phaedrus, 244a – d.
[160] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 90.
[161] Ver também o apelo a Ágabo em D. Hill, “Christian Prophets as Teachers or
Instructors in the Church”, em J. Panagopoulos (ed.), Prophetic Vocation in the New
Testament and Today (Novum Testamentum Supplement 45; Leiden: Brill, 1977), p. 124.
[162] Gridem, op. cit., p. 93.
[163] Ibidem, p. 94.
[164] Ibidem, p. 96.
[165] Grudem, Systematic Theology, p. 1052. Ele apela para a Epístola aos Filipenses de
Inácio, 7.1-2, e a Epístola de Barnabé, 6.8; 9.2, 5.
[166] As passagens para as quais Grudem apela refletem o teste da Escritura; não é
possível, com base em leitura natural delas, alinhá-las com a ideia de autoridade de
segundo nível ou apenas exatidão relativa.
[167] Grudem, Systematic Theology, p. 1052.
[168] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 96.
[169] John Murray, “The Guidance of the Holy Spirit”, em Collected Writings of John
Murray (Edinburgo: Banner of Truth, 1976), vol. 1, p. 188.
[170] J. H. Newman, Two Essays on Biblical and Ecclesiastical Miracles (Londres: 1873),
pp. 261-270.
[171] Esta é a acusação de Jon Ruthven contra o Counterfeit Miracles de B. B. Warfield
(Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1918; Londres: Banner of Truth, 1972). Seu
cessacionismo, argumenta Ruthven, se baseia num racionalismo radicado no ponto de
vista iluminista de milagre posto dentro do contexto do senso comum do realismo
escocês. Ver Jon Ruthven, On the Cessation of the Charismata: The Protestant Polemic
on Postbiblical Miracles (Journal of Pentecostal Theology Supplement Series 3; Sheffiel:
Sheffield Academic Press, 1993), especialmente pp. 41-111. Warfield de forma alguma
escreveu a última palavra sobre este tópico. Mas, totalmente à parte de outros críticos
dos argumentos de Ruthven, ele certamente não quis sugerir que seja racionalismo
iluminista não adulterado examinar, por exemplo, os relatos dos dons miraculosos de
Gregório Taumaturgo. Em tais contextos, não se deve dizer nada em prol do senso comum
escocês?
[172] Em sua crítica contra Warfield, Ruthven apela, por extenso, para 1 Coríntios 4.1-8;
Efésios 4.7-13 e para várias outras passagens nesta conexão. Op. cit., pp. 123-187.
[173] Para a qualidade imperfeita de espelhos antigos, ver C. Spicq, Theological Lexicon
of the New Testament (Peabody, MA: Hendrickson, 1994), vol. 2, pp. 73-76.
[174] Carson, op. cit., p. 70.
[175] Gaffin, op. cit., pp. 109-110.
[176] Institutas, Prefácio Dirigido ao Rei Francisco I de França.
[177] Cf. E. Earle Ellis, “Prophecy in the New Testament Church and Today”, em
Panagopolous (ed.), op. cit., p. 53.
[178] Max M. B. Turner contesta que falar em termos de “a perigosa possibilidade de uma
nova revelação oficial” é realmente “uma tentativa de desviar o assunto” (“Spiritual Gifts
Then and Now”, Vox Evangelica, 1985, p. 55). Isso, porém, ignora o fato de que toda
revelação divina é de caráter oficial.
[179] Grudem, Systematic Theology, p. 127; cf. The Gift of Prophecy in the News
Testament and Today, p. 299.
[180] Algumas vozes dentro de Roma têm argumentado, seguindo a J. R. Geiselmann, que
as formulações do Concílio de Trento podem ser lidas de uma maneira que se harmonize
com sola Scriptura, afirmando que os pais tridentinos ensinaram que a tradição não traz
tanto acréscimo à Escritura, mas que contém o iluminado discernimento da igreja do
conteúdo da Escritura. Cf. J. R. Geiselmann, “Scripture, Tradition, and the Church: An
Ecumenical Problem”, em D. J. Callahan, H. A. Oberman e D. J. O’Hanlong (eds.),
Christianity Divided (Londres: Sheed & Ward, 1962), pp. 39-72. Ver, porém, a réplica de
J. Ratzinger, Cardeal Prefeito da Sacra Congregação da Doutrina da Fé: “como um teólogo
católico [Geiselmann], tem de defender os dogmas católicos como tais, mas nenhum
deles de ser tido como sola scriptura ...” (K. Rahner e J. Ratzinger, Revelation and
Tradition, tr. W. J. O’Hora [Nova York: Herder & Herder, e Londres: Searche Press, 1966],
p. 33).
[181] Confissão de Fé de Westminster, I.vi.
[182] Grudem, The Gift of Prophecy in the New Testament and Today, p. 113.
[183] John Owen, A Discurso of Spiritual Gifts, em The Works of John Owen, ed. W. H.
Goold Edinburgo: Johnstone & Hunter, 1850-53), vol. 4, p. 475; cf. p. 454.
[184] Gordon D. Fee, God’s Empowering Presence (Peabody, MA: Hendrickson, e Caarlisle:
Paternoster, 1994), p. 890.
[185] Cf. a discussão de J. I. Packer em Keep in Step with the Spirit (Old Tappan, NJ:
Revell e Leicester: Inter-Varsity Press, 1984), pp. 202-213, especialmente p. 211.
[186] Ver Confissão de Fé de Westminster, V.iii.
[187] Owen, op. cit., p. 475.
[188] Fee, op. cit., pp. 96-97.
11
O ESPÍRITO CÓSMICO
Universalismo
O universalismo de vários tipos é característico de tal teologia. Embora
não confinado ao protestantismo liberal, ele é característico dessa
perspectiva de ver o Espírito de Deus em ação de uma forma unificadora
em todos os povos e religiões. O cristianismo pode ser o ápice, mas não
está antiteticamente relacionado com outras religiões; o mesmo Espírito
pode ser delineado em todas as maiores “crenças” e ainda em nenhuma.
O reconhecimento da presença e atividade cósmicas do Espírito tornou
assim obsoleta a antiga e radical substituição da teoria missionária (de
que Cristo deve substituir todas as demais divindades rivais). Tal
exclusivismo é contrário ao Espírito, é equivocado, intolerante,
colonialista e protetor. Reivindicando a capacitação do Espírito, a igreja
desvirtua a significação do Espírito. No rastro dessa teologia, os Boards
de Missão Mundial têm-se convertido em Boards de Missão Mundial e
Unidade. Somos um em Cristo e há um só Espírito que transcende a
resposta humana à revelação.
Stanley J. Samartha dá expressão a esta abordagem (que veio a
caracterizar em grande medida a obra do Concílio Mundial de Igrejas)
quando escreve: “Por onde quer que os frutos do Espírito são
encontrados... quer na vida dos cristãos ou amigos de outras crenças,
acaso o próprio Espírito de Deus não está presente?”[189]
Isso é amplamente interpretado não só como um reconhecimento
da benevolência geral de Deus e sua sustentação da ordem cósmica,
guardando a criação de sua tendência rumo ao caos, mas também de
sua graça redentora. Particularmente entre os teólogos católico-
romanos, isso chegou a ser expresso em termos da doutrina dos assim
chamados “cristãos anônimos”. Por essa doutrina, busca-se uma forma
de manter o antigo princípio católico extra Ecclesiam nulla salus est[190]
(“fora da Igreja não há salvação”), embora se admita a salvação no
sentido corrente (se não necessária e totalmente universal, no sentido
origenista de apokatastasis).
Karl Rahner, que se associa com frequência à ideia do cristão
anônimo, dá expressão a uma maior força propulsora por detrás desta
abordagem quando sugere que o cristão não pode aceitar que “a
esmagadora massa de seus irmãos... seja inquestionavelmente e em
princípio excluída... e condenada à miséria eterna”.[191]
Ele apela para os princípios teológicos do pacto noético, o qual, diz
ele, é selado em Cristo em prol de todos, e a convicção paulina de que
Deus é o Salvador de todos, especialmente dos que creem (1Tm 2.4). Ele
assim baseia a convicção de que, em Cristo, a salvação deve
fundamentar-se no que acontece no coração, pelo Espírito, não na
compreensão cognitiva de proposições teológicas sobre Cristo. No
pensamento de Rahner, a existência humana é em si mesma “ordenada
pelo insuperavelmente Absoluto”. O homem, pois, aceita a revelação até
onde ele realmente se aceita; ao agir assim, ele aceita Cristo, que é a
revelação de Deus.
Inevitavelmente, Rahner tem sido criticado no seio do catolicismo
romano, de ambos os lados: por Hans Urs von Balthasar ao tornar
relativa a unicidade da revelação real de Cristo no evangelho; e, em
contrapartida, por Hans Küng ao denegrir as religiões não-cristãs, por
sua ênfase sobre o Cristo-revelação! Mas o princípio católico ao qual
Rahner dá expressão tem-se provado muitíssimo atraente a muitos,
como deixou em evidência o Segundo Concílio Vaticano, em seu Decree
on Ecumenism em The Constitution of the Church. Expressões disto
variam, mas no seio do agostinianismo católico-romano, com sua
ênfase sobre a ideia do amor, tem-se tornado comum afirmar que, uma
vez que o fruto do Espírito é o amor, onde quer que o amor se manifeste,
ali o Espírito de Deus está em ação.[192] De uma forma inesperada, aqui
parece emergir, curiosamente, a religião de “o homem na rua” e a
sofisticada pneumatologia dos teólogos modernos.
Quando consideramos esta ênfase sobre o ministério cósmico e
universal do Espírito à luz das afirmações explícitas do Novo
Testamento, imediatamente encontramos um dado surpreendente. O
Novo Testamento coloca o Espírito e o mundo num relacionamento
antitético, não conciliatório. O mundo não pode ver nem conhecer o
Espírito (Jo 14.17); o Espírito convence o mundo (Jo 16.8-11); o espírito
do mundo e o Espírito de Deus são um contra o outro (1Co 2.12-14; 1Jo
4.3).
Este princípio, característico da mais antiga teologia conservadora,
foi declarado com grande vigor por W. H. Griffith Thomas em seu Stone
Lectures, em Princeton, em 1913:
“Embora a maioria dos escritores modernos, no que diz respeito a este tema
do Espírito Santo, fale do Espírito como que relacionado com o mundo da
humanidade, nada é mais notável do que o simples fato de que não se pode
descobrir no Novo Testamento nem uma única passagem que se refira à ação
direta do Espírito no mundo... mesmo os que favorecem o ponto de vista da
ação do Espírito Santo sobre o mundo, fracassam quando tentam apresentar
em seu favor uma evidência neotestamentária definida.”[193]
[189] Stanley J. Samartha em Emílio de Castro (ed.), To the Wind of God’s Spirit
(Genebra: WCC Publications, 1990), pp. 60-61.
[190] Este princípio, expresso variadamente, deriva-se de Cipriano, Epistles 73.21.
[191] Karl Rahner, Theological Investigations, tr. K.-H. e B. Kruger (Londres: Darton,
Longman & Todd, 1969), vol. 6, p. 391.
[192] Para uma exposição moderna disto, ver Bryan Gaybba, The Spirit of Love (Londres:
Chapman, 1987).
[193] W. H. Griffith Thomas, The Holy Spirit of God (1913; Londres: Church Book Room
Press, 1972), pp. 185-186.
[194] Ibidem, p. 187.
[195] Gordon D. Fee, God’s Empowering Presence (Peabody, MA: Hendrikson e Carlisle:
Paternoster, 1994).
[196] Hendrikus Berkhof, The Doctrine of the Holy Spirit (Londres: Epworth, 1965), p.
102.
[197] Citado na revista de Nicholes Shakespeare, Daily Telegraph, 9 de dezembro de 1995,
Arts and Books Section, p. 7.
[198] Institutas, II.2.16. Cf. seus comentários em II.11,12; e em seus comentários em
Gênesis 4.20; Êx 20.4; 34.17.
[199] Ver Fee, op. cit., pp. 80ss.
[200] Geerhardus Vos, The Pauline Eschatology (1930; repr. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1952), p. 162.
[201] Idem, p. 163.
[202] Ibidem, p. 165.
PARA LEITURAS ADICIONAIS
1. O Espírito e Sua História
Para estudos sobre o Espírito de Deus no Antigo Testamento, além das
obras teológicas e teologias do Antigo Testamento, ver L. Wood, The
Holy Spirit in the Old Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1976);
L. Neve, The Spirit of God in the Old Testament (Tokyo: Seibunsha,
1972); M. A. Inch, Saga of the Spirit (Grand Rapis, MI: Baker Book
House, 1985), pp. 1-68; G. Smeaton, The Doctrine of the Holy Spirit
(Edinburgo: T. & T. Clark, 1843), pp. 9-43; B. B. Warfield, “The Spirit
of God in the Old Testament” (1895), reimpresso em Biblical Doctrines
(Nova York: Oxford University Press, 1929; Edingurgo: Banner of Truth,
1988), pp. 101-129.
2. O Espírito de Cristo
O relacionamento entre o Espírito e o Cristo encarnado é um tema
muitíssimo negligenciado na teologia sistemática. Um belo sumário do
ensino do Novo Testamento que temos, embora por demais breve, é tão
antigo que remonta aos dias de Basílio o Grande, em seu pequeno
estudo Sobre o Espírito Santo. O desenvolvimento mais completo se
acha em John Owen, Works, ed. W. H. Goold (Edinburgo: Jhonstone &
Hunter, 1850-53; reimpressão em Londres: Banner of Truth, 1965), vol.
3, pp. 152-188. Matérias podem ser encontradas, por exemplo, em H. B.
Swete, The Holy Spirit in the New Testament (Londres: Macmillan,
1909); C. K. Barrett, The Holy Spirit and the Gospel Tradition (Londres:
SPCK, 1947); F. X. Durrwell, Holy Spirit of God (Londres: Chapman,
1986), cap. 5. T. A. Smail, Reflected Glory (Londres: Hodder &
Stoughton, 1975) fornece um interessante estudo sobre o tema de “O
Espírito em Cristo e nos Cristãos”, a partir da perspectiva carismática
moldado por uma teologia influenciada tanto pelo evangelicalismo
quanto por Karl Barth. O único livro valioso e extenso de estudo é de G.
F. Hawthorne, The Presence and the Power (Dallas, TX: Word, 1991).
Parte Um de J. D. G. Dunn, Jesus and the Spirit (Londres: SCM, 1975), é
um estudo de “A Experiência Religiosa de Jesus”. Dunn vê a experiência
que Jesus teve do Espírito como o elo essencial entre fazer “cristologia
de baixo” (o que ele favorece) e uma “cristologia de cima”.
A significativa escatologia distintiva do ministério do Espírito é
exposta no marcante ensaio de G. Vos, “The Eschatological Aspects of
the Pauline Concept of the Spirit” (1912), reimpresso em R. B. Gaffin, Jr.
(ed.), Redemptive History and Biblical Interpretation (Phillipsburg, NJ:
Presbyterian & Reformed, 1980), pp. 91-125. Ver também N. Q.
Hamilton, The Holy Spirit and Eschatology in Paul (Edinburgo: Scottish
Journal of Theology Occasional Papers no. 6, 1957).
• A Confissão de Fé Belga
• O Catecismo de Heidelberg
• Os Cânones de Dort
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