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IX. A Igreja Ortodoxa. Hoje.

J. MEYENDORFF.

P. 153 até 183.

Doutrina e espiritualidade.

Mais acima, nós falamos a respeito da imensa herança espiritual deixada à Igreja ortodoxa
contemporánea pela Idade Média bizantina. Essa herança entende juntamente formas litúrgicas ,
estrutura canónica, tradição espiritual e um dado dogmático. Na medida, portanto, na qual a Igreja
ortodoxa afirma ser „A“ verdadeira Igreja de Cristo, a Igreja UNA e CATÓLICA, um teólogo ortodoxo
deve necessariamente distinguir o que, no passado da Igreja, constituia a Santa Tradição imutável e
obrigatória, e o que apenas é relíquia – freqüentemente respeitável , mas as vezes prejudicial – de
um passado revoluto. Todo modernismo de maú gosto, cuja a „Igreja Renovada „ da Rússia foi um
exemplo dos mais explicítos, e deve ser obrigatoriamente condenado, assim como o
conservadorismo estreito que tende , como no exemplo dos „velhos crentes russos“, em absolutizar
o passado em sua totalidade. As duas tendências existem em permanência na maioria das igrejas
ortodoxas locais e apenas uma sólida formação teólogica , um verdadeiro enraizamento na tradição
e um sincero desejo de sempre conformar – se e em tudo à Verdade revelada podem indicar a via a
seguir.

Seria impossível tentar aqui , nesse espírito, uma exposição „SISTEMÁTICA“ das doutrinas da Igreja(1)
; o próprio leitor certamente já encontrou nos capítulos precedentes os posicionamentos ortodoxos
fundamentais em vários pontos e outros aspectos doutrinais serão elucidados no capítulo seguinte.
O que gostariamos mostrar aqui simplesmente, é a atitude mesma de um ortodoxo frente aos
mistérios do cristianismo , o seu modo de se aproximar deles ou de os expressar, e finalmente a
maneira d‘ ele conceber a sua comunhão com Deus.

(1). O melhor relato sistemático desse tipo , em língua francesa é o de S. BOULGAKOFF, „L’ORTHODOXIE“, Paris, ALCAN ,
1932; 2° Edição 1959. Ver também a bibliografia do fim do volume.

Essa atitude manifesta – se ao mesmo tempo na espiritualidade e na doutrina, na vida dos Santos e
nos ensinamentos dos Doutores da Igreja: ela é ao mesmo tempo a „LEX ORANDI „ e ao mesmo
tempo a „LEX CREDENDI“ da Igreja. A Tradição oriental , escreve V. LOSSKY, jamais fez distinção entre
mística e teólogia, entre experiência pessoal dos mistérios divinos e o dogma firmado pela Igreja... O
dogma expressando uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, deve ser
vivido por nos num processo no decorrer do qual, em vez de assimilar esse mistério segundo o nosso
entendimento, teremos , ao contrário, que zelar por uma profunda mudança, transformação interior
de nosso espírito, para nós tornarmos aptos à experiência mística. Longe de opor – se , a teólogia e a
mística sustentam – se e se completam mutuamente. Uma é impossível sem a outra; se a
experiência mística é uma valorisação pessoal do conteúdo da fé comum, a teólogia é expressão ,
para utilidade de todos, do que pode ser experimentado por cada um.(2).

(2).“ ESSAI SUR LA THÉOLOGIE MYSTIQUE DE L ´ EGLISE D‘ ORIENT“, Paris , Aubier, 1944, p. 6-7.

A nova realidade , trazida pela Encarnação do VERBO e tornada efectiva na Igreja pela obra do
Espírito Santo, não é apenas um conjunto de conhecimentos , mas sim uma vida nova. Ela não se
impõe a nos como evidência externa, mas como uma transformação de nosso ser, uma
Transfiguração. Não acessamos nela por uma simples leitura da Palavra de Deus , nem pelo
conhecimento dos dogmas, mas MORRENDO e RESSUSCITANDO com o Cristo no batismo, recebendo
na Confirmação o selo do Espírito Santo, tornando – nos membros , na Eucarístia , do Corpo mesmo
de Cristo e progredindo em seguida, num conhecimento cada vez mais pleno, até a „estatura do
homem feito em JÉSUS CRISTO.“(Ef. IV, 13). Essa natureza sacramental da vida verdadeira na Igreja
supõe uma estrutura na Igreja que confere à hierarquia um posicionamento particular e carismo de
ensino , mas que supõe também que os „SANTOS“ sejam testemunhas autênticas da presença real
de Deus no meio de seu Povo. Por sua estrutura hierárquica e sacramental, a Igreja expressa a
„PERMANÊNCIA e a FIDELIDADE“ da união que realizou – se entre o humano e o divino; a ASCENçÃO
de JéSUS não é o fim de uma presença e sim a glorificação da natureza humana, deificada e
assentada à direita do Pai; ela supõe PENTECOSTES e o envio do Espírito Santo pelo Pai sobre a
Igreja. Este Espírito edifica na história o Corpo de Cristo, realiza os sacramentos, estabelece a Igreja
na verdade e garante a sua permanência e a sua infalibilidade. Ele expressa – se em diversos
carismas, cujo o do ensino e do pastorado que pertencem aos bispos, mas Ele nem se impõe
magicamente à liberdade íntima que constitui o fundamento mesmo da pessoa humana: cada um de
nos recebe , pelos sacramentos, uma semente de santidade, mas a cada um pertence fazer ela
frutificar. A Igreja- Instituição não se opõe então à Igreja – acontecimento, mas uma supõe a
outraassim como a graça supõe o nosso esforço pessoal para ser eficaz; a Igreja ortodoxa, desde o
tempo dos Santos Padres, sempre deu valor e apreço à doutrina da „SINERGIA“ ou seja a coaboração
entre a graça divina e o ato livre do homem na via para Deus . Todos , somos santos pela graça, mas a
questão é se tornar santos em nossos atos e em nossa vida inteira.

Deus , no Seu próprio ser , em Sua providência, em Sua Encarnação, na Sua presença na Igreja, e em
Sua última manifestação ao fim dos tempos, é o Objeto único que os santos conhecem e que os
teólogos procuram expressar nas suas fórmulas. Dois aspectos da concepção de Deus aparecem
como importantes particularmentepara compreender a teólogia ortodoxa em seu todo. Esses dois
aspectos - que remontam incontestávelmente aos Padres gregos – são a TRANSCENDÊNCIA absoluta
e o carácter TRINITÁRIO , ou seja pessoal do Ser divino.

A TRANSCENDÊNCIA de Deus é uma conseqüência necessária do relato bíblico sobre a criação „ex
nihilo“. Ali está uma das características ( a partir do nada) essenciais da religião bíblica que afirma
que o mundo é uma emanação do divino ou o reflexo de uma realidade pre - existente ou ainda, a
extensão do Ser divino, em virtude de uma necessidade natural; Deus , escreve S. PAOLO „chama o
que não existe como o que existe“(Rom. IV, 17) . O mundo não existia antés do „FIAT“ divino e ele
começou a existir , dando assim nascimento a uma ordem de grandeza que nós chamamos“TEMPO“.
Os Santos Padres falam , claro, das „IDEIAS“ que existiam dentro da inteligência divina antés da
criação, mas essas ideias apenas tinham um carácter dinamico e intencional; o aparecimento „ex
nihilo“ dos seres criados significa que esses seres pertencem a uma ordem de existência
essencialemente diferente de Deus , uma ordem que os Padres, a partir de São ATHANASE de
ALEXANDRIE , chamam de „ordem natural“, criada pela única vontade e existindo apenas por essa
única vontade. Entre Deus e a ordem criada, não ha interdependência; apenas ha uma dependência
total da criatura em relação ao seu Criador. Esse abismo entre o ABSOLUTO e o relativo, o INCRIADO
e as criaturas, aparece em todo lugar no Antigo Testamento e , nos espirituais e teólogos cristãos,
expressa – se nas doutrinas da „TRANSCENDÊNCIA“ e da „INCOGNOSCIBILIDADE“ da essência divina.
As criaturas podem se reconhecer entre elas, mas, quando elas se viram para Deus , elas sâo como
que esmagadas pela dependência total e , de fato, pela sua inexistência. O único recurso é de afirmar
o que DEUS NÃO é o que elas podem conhecer, que Ele não é assimilável a nenhuma criatura , que
nenhuma imagem , nem nenhuma palavra são aptas em expressar o Seu SER(3).

(3). É o que se chama de teólogia „negativa“ ou „apofática“ cujos grandes doutores no Oriente foram S. GRÉGOIRE de
NYSSE e o autor desconhecido do séc. IV que se esconde debaixo do apelido DENYS AEROPAGITE, discípulo de S. Paolo em
ATHÈNES.

Desconhecido em Sua essência, Deus porém revelou – se como PAI , FILHO e ESPÍRITO Santo: O Filho
tornou – Se homen e o Espírito desceu sobre a Igreja. O Deus cristão não é o „Deus desconhecido“
venerado pelos filósofos, mas sim um Deus vivo que Se revela e que AGE. Ali está o sentido da
doutrina ortodoxa sobre as „ENERGIAS“ ou ações divinas, distintas da essência incognocível, tal como
formulada por GRÉGOIRE PALAMAS no séc. XIV. (4).

(4). Ver a nossa „Introdução à l‘ étude de Grégoire Palamas“, Paris, Ed. SEUIL, 1959 e „Saint Grégoire Palamas et la
mystique orthodoxe“, Coll. „Maîtres spirituels“, Paris, Ed. SEUIL, 1959.

Já no Antigo Testamento existem relatos da ação divina contínua na história do povo eleito, mas a
revelação cristã nos leva ate uma plenitude ; O Filho de Deus, humiliou – Se a Se – mesmo tomando
a condição de escravo e tornando – Se semelhante aos homens. Tendo – Se comportado como
homem, humiliou – Se ainda mais obedecendo até a morte, e a morte sobre uma cruz! „( Fil. II, 7-8). A
partir dali , os atos divinos não atingem apenas o homem „como que do exterior“, mas a FONTE
deles mesmos está na natureza humana , deificada em Jésus Cristo. Não é mais questão agora de se
limitar em conhecer a Transcendência e omnipresença de Deus , é questão de aceitar também a
salvação que Ele nos concede, assimilar a vida divina que Ele nos deu; ali está o que os Santos Padres
chamam de „DEIFICAçÃO“; „Deus tornou – Se homem , para que nós nos tornemos Deus“ (5).

(5). Saint Athanase de Alexandrie, „De l‘ Incarnation du Verbe“, 54. Patrologie grecque , vol. XXV, col. 192B. Père TH.
CAMELOT, na coll. „Sources chrétiennes“, 18, Paris, 1946,p. 312.

Essa deificação realiza – se pela nossa agregação ao Corpo de Cristo, mas também pela unção que o
Espírito pousa em cada um de nos , como pessoa; a economia do Espírito Santo consiste justamente
em nos fazer comungar todos, ao longo de séculos de história que estendem – se da ASCENçÃO até
a PARUSIA, numa única e mesma humanidade deificada de Jésus Cristo(6).

(6). Ver as excelentes páginas de O. CLÉMENT sobre a economia do Espírito Santo no „Tranfigurer le temps“ – Notes sur le
temps à la Lumière de la Tradition orthodoxa. NEUCHÂTEL- PARIS, DELACHAUX e NIESTLÉ, 1959.

„ Deus enviou em nossos corações o Espírito de Seu Filho que clama; ABBA, PAI!“ ( Gal. IV, 6.)

Esse carácter personalista da teólogia e da espiritualidade ortodoxas são intimamente ligadas ao


sentido patrístico da transcendência de Deus do qual acabamos de falar; como Essência única, Deus
permanece incognocível, mas Ele revela – Se como Trindade. O Deus da Bíblia é conhecido na
medida em que Ele é o Deus vivo e operante, Aquele para Quem endereça – se a oração da Igreja,
Aquele que enviou o Seu Filho para a salvação do mundo. Esse aspecto do pensamento dos Padres
orientais distinguia – os - sem sempre os opor a eles – de seus irmãos latinos que preferiam
conceber Deus primeiramente como essência única e depois como Trindade ( 7).

(7). Cfr. Nesse assunto Th: de RÉGNON , „Étude de la Théologie positive sur la Sainte Trinité“I. 433; G. L. PRESTIGE, „GOD IN
PATRISTIC THOUGHT, p. 242sq.
Mais tarde, essas duas tendências divergentes chegaram a duas teólogias da Trindade; na teólogia
latina, as pessoas divinas foram consideradas como simples relações internas da única essência; foi
assim que , a própria existência do Espírito Santo sendo determinada por essas „oposições de
relacionamento„ como Pai e o Filho, a doutrina do Filioque – ou procedência do Espírito a partir do
Pai e do Filho – se tornou uma necessidade dogmática, pois que o Espírito não podia ser distinto do
Filho, se d‘ Ele não procedesse (8).

(8). Dois debates sobre o FILIOQUE entre teólogos católicos e ortodoxos foram recentemente publicados em „The EASTERN
CHURCHES QUATERLY“, vol.VII, 1948, Suplementary Issue e em „Russie et Chrétienté“, 1950, n°3-4 , 1950.

Quanto aos Orientais, eles permaneceram fiéis ao antigo personalismo dos Santos Padres; a doutrina
do Filioque lhes pareceu , segundo a expressão de PHOTIUS, como um „semi – sabelianismo“.(9).

(9). MYSTAGOGIE, 9, Patrologia grega, Vol CII, col. 289 A B ; o sabelianismo é uma heresia datando do séc. II e atribuida a
um certo Sabellius que ensinava que as pessoas divinas eram apenas „modos ou aspectos „ do Deus único.

Consubstancial ao Pai e ao Filho, pois que procedendo do Pai – única fonte da Divindade – o Espírito
possui uma existência e uma função pessoais na vida interna de Deus e dentro da economia da
salvação: Ele realiza a unidade do gênero humano no Corpo de Cristo, mas Ele também oferece a
essa unidade um carácter pessoal, então diversificado. É pour uma oração ao Espírito Santo que
iniciam – se todos os ofícios litúrgicos da Igreja ortodoxa e é por sua invocação que se realiza o
mistério eucarístico.

Absolutamente transcendente e incognocível, Deus revelou – Se em Jésus Cristo „ em Quem habita


corporalmente toda a Plenitude da Divindade“. ( Col, II, 9). Assim , a vida verdadeira, a que provém de
Deus, foi comunicada ao homem que , até então, e desde o pecado de ADÃO, estava submetido à
morte, a um tipo de corrupção hereditária e cósmica, conseqüência de sua revolta contra Deus.

O drama do pecado descrito nos primeiros capítulos de Gênesis e interpretado por S. PAOLO e pelos
Santos Padres da Igreja, oferece uma solução ao enigma do sofrimento e da morte, tal como ele
apresenta – se ao homem , ontém como hoje. ADÃO e EVA pecaram e esse pecado introduziu a sua
morte, assim como a morte de todos os seus descendentes. Essa doutrina do „Pecado Original“ que ,
desde a época de Santo Agostinho, ocupa um papel central na história da teólogia ocidental, supõe
então que as conseqüências do pecado de ADÃO atingiram gerações inteiras de seres humanos que,
aparentemente, não são responsáveis dessa falta original. Os teólogos ocidentais, interessados em
conciliar esse fato com certa ideia da „JUSTIçA „divina, sempre insistiram sobre a Responsabilidade
de todos os homens no pecado de ADÃO; a morte, sendo um castigo do pecado, apenas pôde atingir
a humanidade inteira pois, todos os homenspecaram „ em ADÃO“ e assim mereceram a cólera
divina. Essa interpretação encontrava confirmação - talvez até a origem estava ali mesmo – na
tradução latina da única passagem bíblica falando expressamene da „TRANSMISSÃO „ do pecado
adámico (Rom. V, 12; in quo omnes peccaverunt). De fato, a versão latina estava defeituosa nesse ponto
(10).

(10). O texto latino , traduzindo por „in quo“ a expressão grega (........) implica que „todos pecaram em ADÃO“. O que
constitue uma impossibilidade gramatical . As duas traduções gramaticalmente possíveis são as seguintes; „A morte
passou em todos os homens , pelo fato de todos terem pecado“ ( Bíblia de Jerusalém ) ou senão „A morte , por causa da
qual todos pecaram, passou em todos os homens“. Essa última tradução encontraria – se confirmada pela exegese de
vários Padres gregos. No 1° caso, S.PAOLO falaria de pecados pessoais, cometidos por todos os homens sob a própria
responsabilidade e merecendo um castigo semelhante a que ADÃO sofreu; no 2° caso, a mortalidade,transmitida a toda a
raçaa adâmica seria a origem dos seus pecados pessoais.

Os Padres do Oriente , que liam São PAOLO no original grego, jamais tentaram provar a
responsabilidade dos descendentes de ADÃO para o pecado de seus ancestrais; eles apenas
constatavam que todos os homens herdavam , por legado, a corrupção e a morte e que todos eles
cometiam o pecado. Eles interpetavam esse estado de fato, herdado de ADÃO, como uma escravidão
ao Demônio que, desde a falta do Ancestral, exerce sobre a humanidade uma tirania usurpada,
injusta e mortiféra. Deus , ao contrário, no decorrer da história de ISRAEL, procura dirigir os homens
para a salvação preparando eles progressivamente para receber livre e conscientemente o MESSIAS
LIBERTADOR. A quando da „plenitude dos tempos“, esse MESSIAS, o VERBO mesmo de DEUS,
encarna – Se na Virgem MARIA e do ESPÍRITO SANTO – FORA da herança corrompida de ADÃO –
então, e vence o Demõnio na Cruz, ressuscita no 3° dia e dá de volta ao ser humano o acesso à Vida.

É correto dizer que esse mistérios fundamentais da fé pertencem à própria essência de toda
verdadeira doutrina e toda verdadeira espiritualidade cristãs. Toda diferência doutrinal nesse
dominio leva necessariamente a certa variação de espiritualidade. Assim, o Oriente cristão
permaneceu estrangeiro às concepções jurídicas da salvação que predominaram no Ocidente na
Idade – Média ( doutrina dos „méritos“ de Jésus Cristo , e indulgências) e que lesaram
profundamente a espiritualidade ocidental. A doutrina do pecado original , tal como os Santos
Padres gregos a expressaram, exclui , por outra parte, o dogma da „IMACULADA CONCEPçÃO“ de
MARIA, na forma que o proclamou PIO IX em 1854. (11).

(11). „Nós declaramos... que a doutrina segundo a qual a bem – aventurada Virgem Maria , desde o primeiro instante de
sua concepção , por uma graça e privilégio particular de Deus todo – poderoso, pelos méritos de Jésus Cristo, Salvador do
gênero humano, foi preservada de toda mancha provindo da falta original, é uma doutrina revelada por Deus ...“ (Texto
latino em DENZINGER, „Enchiridion Symbolorum“, 2° Ed. , 1952, n°1641, p. 459.)

Esse dogma supõe que o pecado original consiste em uma „FALTA“ cometida „EM ADÃO“ e
merecendo castigo, e que a Virgem MARIA não pode ter participado dela , já que , desde sua
concepção, ela era escolhida e purificada em vista da maternidade divina.

A escolha da qual ela foi o objeto é , de fato,inconciliável com a cólera divina ligada ao pecado. Esse
raciocínio não se defende mais se se adota uma concepção diferente do pecado original; escravidão
ao Demônio, mortalidade e corruptibilidade transmitidas por via hereditária natural , tais foram, a
partir da tradição ortodoxa , as conseqüências da falta de ADÃO. A Virgem Maria com certeza foi
santa e pura desde sua concepção , mas ela nasceu de JOAQUIM e ANA como todos os homens e,
como todos os homens, ela era mortal; o legado adâmico apenas foi ultrapassado em Seu Filho,
nascido do Espírito Santo. A litúrgia bizantina não cessa de elogiar a „MÃE de DEUS“, reconhece o seu
papel excepcional no caso da salvação – pelo seu FIAT ao Arcanjo, MARIA , Nova EVA, está na origem
de uma nova raça de homens, comungando à vida de Deus – ela canta também a glorificação
corporal cuja THÉOTOKOS foi o objeto na hora de sua morte, ela enxergue nela o objectivo e a
realização de toda a criação , enfim pronta para receber o Salvador. Mas é em Jésus Cristo e não em
Maria que a Igreja adora como príncipe da Vida, Salvador e Redentor e é apenas Ele que se beneficia
com uma imaculada concepção no seio de Maria. Quanto à Maria, Ela é a „Mãe de Deus“; Ela é
Aquela que , em nome de toda a nossa raça, acolheu o Deus Libertador.
Assim , apesar da oposição dos ortodoxos ao dogma romano da Imaculada Concepção e as suas
reservas concernindo o novo dogma da „ASSUNCÃO de Maria“ – na medida em que este poderia
supor que Maria não morreu em virtude de sua Imaculada Concepção- apesar das diferências que
concernem no fundo não a MARIA em se, mas as doutrinas do pecado original e daRedenção(12), o
Oriente e o Ocidente comungam dentro de igual fervor para com Aquela „ que todas as gerações
chamam de Bem – aventurada!“

(12).O ponto de vista ortodoxo nesse assunto está bem exresso nos artigos de G. FLOROVSKY e de V. LOSSKY no livreto“The
Mother of God“, LONDRES, editado por E. L.MASCALL, Dacre Press, 1949. Cfr também a doutrina do teólogo bizantino na
nossa „Introdução à l‘ étude de Grégoire Palamas“, Paris, 1959, p. 317- 322.

A Redenção que Deus concedeu no Cristo Jésus nos é acessível na Igreja e pela Igreja: a vida inteira
da comunidade e a vida pessoal de cada cristão encontram assim determindas pelo fato histórico da
morte e da Ressurreição de Cristo. É a essa ressurreição que nós comungamos no Batismo e a que
„comemoramos „na Eucaristia. Enfim, é ela que define a ossa regra de oração.

Mas acima temos sublinhado o papel capital que tem a litúrgia na vida da Igreja ortodoxa, uma
liturgia sempre viva, dramática, que serviu de refúgio único à toda a teólogia e a toda vida
eclesiástica durante os séculos de decadência e que se mostrou apta em preservar o essencial do
recado cristão. Seja qual for a época ou as condições de sua vida, o cristão ortodoxo tera consciência,
entrando no templo, de encontrar ali o céu descido na terra, o Reino de Deus já presente, sabera
que o Cristo está ali na comunhão sacramental ao seu Corpo e ao seu Sangue, no Evangelho lido pelo
sacerdote, na oração da Igreja.

Essa concepção sacramental da vida cristã está presente em todo canto na história da espiritualidade
ortodoxa. As tendências de piedade das mais individualistas encontraram – se assim integradas num
conjunto coerente onde a oração pessoal não se opõe à liturgia comunitária. Particularmente é o
caso do „HESICASMO“, essa escola mística que data do tempo dos Santos Padres do deserto e que
teve um papel de grande importância na tradição espiritual do Oriente cristão; de fato, foi na
oportunidade de discussões teólogicas suscitadas pelo hesicasmo no séc.XIV, que a Igreja ortodoxa
definiu a sua doutrina da graça e sua concepção das relações entre Deus e o homem. Esse aspecto
doutrinal do hesicasmo constitui o elemento permanente e normatif de uma tradição espiritual
cujos métodos e aspectos práticos apenas têm um valor relativo.

Foi no séc. IV , como já o vimos , nos desertos da SYRIE, PALESTINE, EGYPTE, que nós encontramos os
primeiros „hesicastos“( em grego HÉSYCHIA significa SERENIDADE ou CONTEMPLAçÃO), os 1°
doutores da oração continua. Sozinhos com Deus nesse isolamento, os eremitas cristãos
encontraram no madamento de S.PAOLO „ Orais sem cessar“ ( I Tes. V, 17.), o meio mais directo de
permanecer em contacto com a graça da Redenção. Alguns dentre eles praticavam uma salmodia
continua, introduzindo assim nas nossas litúrgias a LECTIO CONTINUA do Salteiro.

Outros mergulharam na oração monológica ou oraçâo „pura“que consiste na repetição constante de


uma curta oração na qual o lugar principal está ocupado pelo nome de Deus ; O Antigo Testamento
já não dava a esse Nome um significado bem maior que „nominal“? A Bíblia não ensina em
„glorificar o Nome do Senhor“? E o Cristo não enviava os seus discípulos para batizar „ em Nome do
Pai, e do Filho e do Espírito santo“ ? A constante invocação do Nome era, para os monges, o meio
por excelência de comungar com o Divino. A própria forma da oração „monológica“ podia variar _
sendo freqüentemente um simples „........“ , „Senhor , tem piedade“- mas a invocação tinha de ser
permanente.

As vezes, os 1° doutores do hesicasmo, e particularmente EVAGRE Le PONTIQUE ( até 400), um


grande asceta de formação neoplatoniciana e origenista, tiveram tendência em conceber a oração
como um meio de se desmaterializar e juntar – se com o mundo intelectual, como „a mais alta
intelecção da inteligência“, como uma ascenção do „ imaterial dentro do IMATERIAL“. Em parte, era
uma simples questão de vocabulário, os Santos Padres gostavam de expressar as grandes verdades
cristãs numa línguagem do tempo deles e essa língua era a do helenismo. Mas às vezes também o
espírito grego dominava a doutrina bíblica em se – mesma, particularmente na antropologia. Jamais
a Bíblia ensinou como o fez PLATON, que o homem é um espírito preso dentro da matéria; O Verbo
„Se fez carne“ para assim salvar o homem todo e a espiritualidade cristã há de tencionar em realizar
essa salvação na sua totalidade. A oração cristã que EVAGRE concebia como uma desmaterialização
e que ele descrevia sem nenhuma referência em Cristo, Deus encarnado, deve então
necessariamente colocar o “homem inteiro“ face à Face com Deus. Progressivamente, a tradição
eclesiástica deve ter corrigido o desvio origênico e evadriano. Ela o conseguiu graças a um autor
desconhecido que, no séc. V, escondia – se debaixo do apelido „MACAIRE D‘ EGYPTE“, e graças a
uma multidão de outros doutores espirituais.

Com S. DIADOQUE de PHOTICÉ (Séc.V), e S. JOÃO CLIMAQUE (Até 650), a oração „intelectual“
transforma – se em „Oração de Jésus“. Jésus Se torna o Nome divino que os ascetas invocarão sem
cessar e é em Cristo, o Deus que Se tornou homem, que eles vão exergar o único mediador entre o
criado e o Divino. A própria oração deles não será uma fuga fora da matéria , mas sim uma
comunhão ao Deus do espírito e do corpo; a graça divina procurada iluminará o conjunto espírito e
carne, enxertadas na vida nova e iluminadas por uma divina Luz incriada.

„O Hésicasto , escreve S. João CLIMAQUE em seu livro „L‘ échelle du Paradis“, é aquele que aspira em
circunscrever o Incorporal numa morada de carne... Que a memôria de Jésus faça apenas um com o
vosso sopro; então entendereis a utilidade da solidão (13). „

(13).“Echelle du Paradis“, degrau 27, trad. J. GOUILLARD na „Petite PHILOCALIE“, Paris, 1968, p. 88 – 89.

E S. MAXIME Le CONFESSEUR (até 662) descreve assim a deificação que todo cristão e, em particular,
todo hésicasto procuraria :“ O Homem se torna Deus pela deificação, ele goza plenamente do
abandono de todo o que lhe pertence por natureza...,pois que a graça do Espírito triunfa nele e
porque apenas Deus, manifetamente, age nele: assim Deus e aqueles que são dignos de Deus
apenas têm em todas coisas uma só e mesma actividade“ (14).

(14). „AMBIGUA“, Patrologia grega, vol XCL, col 1076, B.C.

A visão divina cujos místicos beneficiam na deificaçâo foi identificada por S. GRÉGOIRE de NYSSE (séc.
IV) e S. MAXIME com a visão de MOISÉS no SINAÏ e com a luz divina que os Apóstolos viram no
Monte Thabor a quando da TRANSIGURACÃO de Cristo. Essa doutrina dos Santos Padres gregos
sobre a „deificação „ não implica portanto a absorbção do humano pelo divino; para S. MAXIME,
particularmente, o homem deificado é precisamente o homem natural , tal como Deus quiz que ele
seja. Participar de Deus é o que faz o homem plenamente homem, e é em Jésus que a humanidade
encontra – se realizada de modo total verdadeiramente, pois que unida a Deus.
Os autores espirituais posteriores sublinharam ainda mais o laço que existe entre a „oração de
Jésus„ , a mística da deificação e a vida sacramental da comunidade cristã. S. SYMÉON Le NOUVEAU
THÉOLOGIEN, grande místico bizantino do séc. XI, tirou o essêncial de sua experiência do divino na
Eucaristia; os seus hinos e orações, antés e depois da Comunhão , são os mais realistas contidos hoje
no EUCHOLOGE de rito bizantino.Nos séc. XIII e XIV, a renovação do hesicasmo coincidiu em
BYZANCE com um fervor novo para vida sacramental. O exemplo mais conhecido dessa tendência é
o NICOLAS CABASILAS que concebeu a sua „Vida em Cristo“ – síntese da vida espiritual – como um
comentário sobre batismo, Crisma ( Nome bizantino para Confirmação) e a Eucaristia. Os hesicastos
ortodoxos dessa época concebiam assim a „oração de Jésus“, não como meio subjectivo e emocional
de comungar com o Cristo, mas como um método para tornar eficazes em - se os dons recebidos nos
sacramentos. Também foi nessa época que um método particular de praticar mentalmente a
„oração de Jésus“ recebeu uma ampla difusão; consistia em religar entre elas as palavras dessa
oração; „ Senhor Jésus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim!“com o ritmo da respiração e
concentrando a atenção DA INTELIGÊNCIA dentro do coração, esse orgão sendo considerado como
centro de todo o orgânico psico – fisiólogico do homem.

Atacada por BARLAAM le CALABRAIS, filósofo ao mesmo tempo céptico e platonizante, o método
hesicasto de oração foi defendido no séc. XIV por um grande teólogo , monge do ATHOS, que se
tornou em seguida arcebispo de THESSALONIQUE, S. GRÉGOIRE PALAMAS. O mérito dele foi de ter
visto claramente as relações internas que existiam entre a doutrina ortodoxa de Deus, a deificação ,
cujos místicos procuravam a experiência , o método hesicaste de oração e a vida sacramental da
Igreja. Sem procurar construir uma SOMA doutrinal, ele assignou para cada um desses elementos o
lugar que deve ser seu. O Deus essencialmente impraticável e transcendente também é um Deus
vivo que se comunica voluntáriamente em Seus atos; ele se torna assim não apenas acessível ao
conhecimento, mas sim participável, graças à união hipostática da Divindade e da humanidade em
Jésus Cristo. Mesmo então, portanto, Ele permanece em Sua transcendência , pois ela é a Sua
natureza; a participação ao Seu ser ou deificação apenas é possível na medida de Sua vontade e de
Sua „energia“ ; em Jésus Cristo, essa participação é total, pois que a Pessoa do Verbo encarnado é
fonte de todos os atos divinos. Na distinção assim estabelecida entre a essência transcendente e as
energias, existe certamente uma antinomiafilosófica,mas será que Deus é submetido aos axiomas de
nosso intelecto?Essa „deificação em Jésus Cristo“ nos é acessível pela Igreja pelo batismo e a
eucaristia; o Verbo encarnado nos comunica a vida divina e transforma pelo interior nosso ser por
inteiro. Desde então, „o Reino de Deus está DENTRO de nos“. Esse „DENTRO de NOS“, não significa
obrigatoriamente „EM NOSSO ESPÍRITO“ ou „EM NOSSA ALMA“, pois o ser humano é indivisível e
participa por inteiro de Deus. Nosso corpo pode então , com o espírito e a alma, participar do jejum,
da oração e das diversas actividades que constituem as reponsabilidades do cristão que procura o
Reino e pode também receber desde agora as premissas da gl’oria; a Igreja não venera as relíquias
corporais dos santos depois de sua morte, e os santos, durante a própria vida, não realizam prodígios
que testemunham de uma transfiguração já atingida? (15).

(15). Nós demos um exame detalhado da doutrina de PALAMAS na nossa „Introduction à l‘ étude de Grégoire Palamas“
Paris, 1959, e um esboço rápido da tradição hesicasta antés e depois do séc. XIV em „Saint Grégoire Palamas et la mystique
ortohodoxe“ Coll. „Maîtres spirituels“, 20, Paris, 1959. A obra principal de Palamas - Triades pour la défense des saints
hésycastes“ foi publicado por nos , com tradução integral, no „SPICILEGIUM SACRUM LOVANIENSE, n° 30 – 31, LOUVAIN,
Bélgica, 1959, 2vol.
Finalmente o próprio recado da espiritualidade do Oriente ortodoxo consiste justamente em
anunciar não apenaso Reino de Deus na história, anuncia ele não apenasem palavras, mas sim por
testemunhos vivos de seu poserreal. Deus agorapresente em Igreja não somente por causa
depalavras escritas mas na realidade dos sacramentos e na eficácia dos dons do Espírito Santo dos
quais os santos dão testemunho e que sãoacessíveis para todos os cristões, quando eles aceitam
realmente viver conformemente às promessas do seu batismo. Os Santos da Igreja – desde de S.
Paolo que „foi elevado ao 3°Céu“ até o Serafim de SAROV, cujo o rosot irradiava de luz divina – são
os testemunhos dessa vida nova concedida aos homens e que transfigura a própria matéria.
Apóstolos, bispos, mártires, missionários , monges ou simples leigos , esses santos , no lugar onde
Deus os situou, são verdadeiros agentes do Reino de Deus no mundo.

Na história da Igreja ortodoxa, a mística hésicasta foi a expressão das mais tradicionais dessa
comunhão com Deus que constitui o essêncial da vida cristã. Graças à sua simplicidade e seu
carácter despojado, a prática da“oração de Jésus“ se torna uma forma de espiritualidade muito
popular e amplamente recomendada não apenas aos monges, mas também aos leigos. A precisão
teólogica com a qual os seus maiores doutores a definiram, nem permitiu que ela se transformasse
em uma piedade puramente individualista. É na Igreja, na comunhão dos Santos, na vida
sacramental da comunidade que toda mística individual adquire, de fato, um sentido realmente
cristão ; Ali também encontra – se o critério último de toda espiritualidade. Quanto a Ela, a Igreja
não canonisa nenhuma forma em particular, nem nenhum metódo, mas sanciona apenas a
santidade daqueles que souberam , pelas suas vidas e palavras, expressar a realidade do Reino de
Deus.

Fim do cap.

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