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COMUNICADOS

Teologia e santidade

A aproximação destas duas palavras causa, de início, certa estranheza.


Porém, examinando mais de perto a questão, esta sensação se dissolve.
Pois, como veremos logo, há uma relação extremamente íntima entre teo-
logia e santidade: uma exige a outra.

Na grande tradição, teologia e santidade estavam ligadas


Se não, vejamos. A primeira grande teologia foi a Patrística. Ora, aí se
fala justamente dos “Santos” Padres. Além da antiguidade e ortodoxia,
era a santidade que os qualificava como Pais da Igreja: Pais porque educa-
ram a Igreja na fé dos Apóstolos e deram forma definida à sua doutrina
fundamental. Desses Santos Padres os mais conhecidos são aqueles que,
até o século XVI, eram tidos como os oito grandes “Doutores”: no Oci-
dente, Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e São Gregório
Magno; e no Oriente, Santo Atanásio, São Basílio, São Gregório Nazian-
zeno e São João Crisóstomo.
Pois bem, como é a teologia dos Santos Padres? Não é ciência espe-
culativa, mas é antes sabedoria de vida. É um saber todo feito da expe-
riência da fé. Era um discurso que fluía da oração e meditação da Pala-
vra de Deus e que era, em seguida, administrado ao Povo através de ho-
milias, cartas e comentários da doutrina cristã. Boa parte dessa teologia
se elaborou sob forma de apologética, isto é, de escritos em defesa da fé
contra suas más interpretações: as heresias. Mas mesmo nesse esforço,
que exigia reflexão rigorosa e crítica, a teologia se mantinha sempre per-
to de sua fonte: o Mistério de Deus salvador. Daí seu caráter sapiencial e
sua unção espiritual. Além disso, era uma teologia que visava o cresci-
mento da fé. Donde seu caráter evangelizador e pastoral.
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É por esses títulos de excelência que a Igreja faz seus ministros, ainda
hoje, lerem e meditarem cotidianamente, no Ofício divino, uma página
dos Santos Padres. Depois da Palavra de Deus, essa leitura é, mais que
qualquer outra, altamente formativa do espírito cristão, especialmente o
dos pastores. Infelizmente, muitos sacerdotes desconhecem a virtude
espiritual e pastoral que se encontra nessa leitura e, por isso, a descuram,
com prejuízo para sua fé pessoal e seu serviço pastoral.
Também a segunda grande teologia, que foi a Escolástica, mostra
grandes figuras de santos, como Santo Anselmo, Santo Alberto Magno,
São Tomás de Aquino, São Boaventura e o beato Duns Scotus. Esses
foram os maiores teólogos medievais e são todos santos. Por isso, no
século XVI, aos oito Santos Doutores que vimos, foram acrescenta-
dos Santo Tomás, chamado o “Doutor angélico”, e São Boaventura, o
“Doutor seráfico”.
Já a partir dos tempos modernos (desde o século XVI), começa a es-
cassear o número dos teólogos reconhecidos como santos. Da multidão
de teólogos da chamada Escolástica tardia, temos, como santo canoni-
zado, apenas São Roberto Belarmino (+1621). Desde então, até hoje,
sabemos somente de um teólogo canonizado: Santo Afonso de Ligório.
Este é o último grande teólogo que mereceu a honra dos altares, e isso
há mais de duzentos anos atrás. Da chamada Época moderna, deixo
fora Doutores como Santa Tereza de Ávila, São João da Cruz e São
Francisco de Sales, que, mais que propriamente teólogos, são autores
espirituais. No século XIX, não há nenhum teólogo canonizado, a não
ser a magnífica figura o beato John H. Newman.
No século XX, conhecemos os grandes nomes que inspiraram a re-
novação do Vaticano II, como Yves Congar, Karl Rahner, Henri de
Lubac, Joseph Ratzinger, Gerard Philips, Charles Moeller, Jean Danié-
lou, Dominique Chenu, Hans Urs von Balthasar, Hans Küng e tantos
outros. São, de fato, belas e dignas figuras de estudiosos da fé, mas qual
deles é candidato à honra dos altares? Assenta-lhes bem o título de
“homens de Igreja” (viri ecclesiastici), mas caber-lhes-ia o título de
“homens de Deus”? Se incluirmos os teólogos não católicos, pode-
mos, sem dúvida, individuar algumas grandes testemunhas da fé. En-
tre os Ortodoxos, sobressai Pavel Florensky, fuzilado num gulag pelos
comunistas no inverno de 1937. Entre os evangélicos, destaca-se Die-
trich Bonhöffer, enforcado pelos nazistas na primavera de 1945 com
apenas 39 anos de idade. Cabe aqui lembrar, entre as testemunhas da
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justiça, o teólogo jesuíta Ignacio Ellacuría, assassinado em 1989, em


El Salvador, com seus companheiros jesuítas. Mas quantos mais?
Seja como for, à parte todos os nomes respeitáveis que citamos aci-
ma, é um fato que falar hoje em teólogo significa falar num especialis-
ta da religião cristã, independentemente de sua vida pessoal. Poder-se-ia
dizer que teólogo é uma pessoa que vive não em “odor de santidade”, mas,
sim, em “odor de intelectualidade”. Para muitos, causa estranheza, senão
surpresa ver um teólogo celebrar ou simplesmente orar. Falar em “teólogo
piedoso” ou “devoto” parece uma contradição, quando não é um gracejo.

Percurso histórico rumo à separação entre teologia e santidade


Tudo isso mostra que a teologia precisa recuperar sua nasciva dimen-
são espiritual, reatando os antigos vínculos com o ideal de santidade. Essa
proposta nada tem de artificial, mas é uma exigência interior da própria
teologia. Com efeito, que é a teologia se não a ciência que nasce da fé e
que leva para a fé: ex fide in fidem (cf. Rm 1,17)? A fé é seu princípio, sua ar-
ché, e é, ao mesmo tempo, seu fim, seu télos. Seja como ciência que arranca
da fé, seja como discurso que desemboca na fé, a teologia pede santidade.

A teologia pede santidade porque nasce da experiência de fé


Sim, se a teologia pede santidade é, primeiro, porque se define como
“ciência da fé”. Como pode o teólogo saber do Deus da revelação senão
por contacto direto, por comunhão íntima com Ele? Esse é o verdadeiro
sentido de “ver a Deus”, de contemplar a Deus: é se imergir nele, se identi-
ficar com ele, enfim, se divinizar. Como ensinava Empédocles, só o se-
melhante conhece o semelhante. Portanto, só tornando-se semelhante a
Deus pode o ser humano conhecê-Lo bem. Só um olho puro pode ver o
Puro, como se depreende da bem-aventurança de Jesus: “Felizes os puros
de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Ora, o que é essa assimilação a Deus senão a própria santidade? Quem
é o santo senão aquele que está próximo de Deus, que está unido a Ele no
amor, de tal modo que ele e Deus formam, por assim dizer, uma só coisa?!
Agora, falar de Deus sem tê-Lo encontrado pessoalmente é o mesmo que
falar de uma pessoa só por ouvir dizer. Isso é conhecimento de segunda ou
terceira mão. Só depois de falar com Deus pode-se falar legitimamente de
Deus, não antes.
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Na raiz da teologia há, pois, o evento do encontro, chamado fé. Aqui


não se trata de “pensar” Deus, mas simplesmente de “ver” Deus. É o intel-
lectus fidei: a intuição, a percepção, a contemplação amorosa do Mistério di-
vino. Segundo Santo Tomás, pelo dom da inteligência espiritual, “captamos
as coisas da fé como em sua verdade nua” (quase nuda veritate: Sent. II, dist. 34,
a. 1, q. 2), de tal modo que “pelo dom da inteligência, pode-se, de certa forma
ver a Deus já nesta vida” (ST I-II, q. 69, a. 2, ad 3). Mas para esta iluminação,
o preço é a conversão, como atesta claramente o Apóstolo: “É somente pela
conversão ao Senhor que o véu cai” (2Cor 3,16). E a razão é a que já aduzi-
mos: só a conaturalização com Deus permite seu conhecimento autêntico.
Ora, é do intellectus da fé que jorra uma ratio teológica viva e fecunda.
Em teologia, o discurso irrompe da visão. Como ocorre com o profeta, o
teólogo fala do que viu. É também o que diz o Doutor Seráfico: “A melhor
maneira de conhecer a Deus é experimentar a doçura do seu amor. Esse
modo de conhecimento é muito mais excelente, nobre e deleitável que a in-
vestigação por via do raciocínio” (Sent. III, dist. 35, a. 1, q. 2).
Por certo, o discurso teológico é ciência e tem suas regras e seu rigor.
Daí também pertencer de direito à universitas dos saberes no seio da Acade-
mia. Contudo, mesmo como ciência, a teologia há de guardar sempre as
marcas de sua origem. Seu discurso precisa manter o sabor da experiência
originária. Não poderá, portanto, decair em discurso puramente abstrato,
ressequido, cerebrino, mas conservará o frescor de sua fonte, a vitalidade
de suas raízes, a flagrância de seu cerne. Pois, como ensina o Apóstolo,
“das coisas espirituais, fala-se espiritualmente” (1Cor 2,13) e não humana-
mente ou carnalmente. É essa unção espiritual que se sente perpassar por
todo o discurso teológico de Santo Agostinho. Mesmo em relação ao rigo-
roso Santo Tomás, é perfeitamente possível ouvir, sob seu “discurso sem-
pre formal” (como diz Cajetano), o coração pulsante do Mistério.
Foi, porém, a tradição franciscana que buscou, com mais determina-
ção, uma teologia toda envolvida na unctio (unção) e a se fazer por inteiro
no elemento da devotio. É o que se vê na carta-bilhete que São Francisco
mandou ao primeiro teólogo da Ordem, Santo Antônio, e onde se lê a se-
guinte recomendação: “Gostaria muito que ensinasses aos irmãos a sagra-
da teologia (e aí vem o que poderíamos chamar “a cláusula da piedade”),
contanto que nesse estudo eles (os irmãos) não percam o espírito da santa
oração e da devoção”. Eis o que significa uma teologia unida à santidade.
Vê-se por aí que o Poverello não era contra a teologia como tal, mas con-
tra uma teologia que, como ele diz, não passa de “vã ciência que ensoberbe-
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ce”. Afirmava abertamente que tal teologia não seria de nenhuma valia na
hora da tribulação e da agonia, devendo então seus livros serem “atirados
pelas janelas” (Espelho da Perfeição, cap. 69). O que ele queria era uma teolo-
gia toda impregnada – como dizia – da “santa humildade, da simplicidade e
da santa oração” (Ibid., cap. 72).
Vendo alguns frades preferirem a culta Paris à modesta Assis, um discí-
pulo de Francisco, o singelo Frei Egídio clamava: “Ó Paris, ó Paris, tu des-
tróis Assis!” Pois, se fosse para escolher entre uma teologia arrogante e
uma fé ignorante, o Poverello não teria hesitado um segundo: teria escolhido
mil vezes a fé ignorante. Mas esta não é apenas a escolha de um “iletrado e
idiota”, como Francisco gostava de se chamar, mas é, em absoluto, a esco-
lha mais sábia, como declara também um dos grandes teólogos da Patrísti-
ca, Santo Irineu. Eis o que diz a propósito: “Seria melhor e mais útil ser ig-
norante e pouco douto, mas estar perto de Deus por meio do amor, do que
crer-se douto e inteligente, mas aparecer como blasfemo diante do próprio
Senhor. (...) Seria melhor não conhecer absolutamente nada, mas crer em
Deus e permanecer no seu amor, do que, tornados soberbos por tal ciência,
decair do amor que vivifica o ser humano” (Adv. Haer. II, 26, I).

A teologia se vincula à santidade porque leva ao compromisso da fé


Vimos que a teologia está ligada à santidade por sua origem: porque pro-
vém da fé, princípio de santificação. Mas é também por sua destinação que a
teologia requer santidade. Ou seja, é porque é uma ciência que se exerce in fi-
dem. Efetivamente, o que visa finalmente o saber teológico? Visa tornar nossa
fé mais lúcida e forte, aproximar-nos de Deus, portanto, a nos fazer mais san-
tos. Nas palavras de São Boaventura, a ordem do procedimento teológico é
este: “começar da estabilidade da fé, avançar pela serenidade da razão e che-
gar à suavidade da contemplação” (ap. Paulo VI, Carta pelo 7º aniversário da
morte de São Boaventura).
A partir desta visão, pode-se perguntar que teologia é esta que, em vez de
levar à contemplação amorosa de Deus afasta dela? Que, antes de fortalecer a
fé, a enfraquece em suas bases? Que, em lugar de purificar as convicções reli-
giosas, as abala e as dissolve? Que, em vez de infundir humildade e amor, torna
o espírito mais arrogante e enfatuado? Em suma, que, em lugar de melhorar
as pessoas, as torna piores? Esta só pode ser uma “teologia dos demônios”.
Com efeito, ensina São Tiago que “ter no coração ciúme amargo e gos-
to pelas brigas” é abrigar “uma sabedoria terrena, humana, diabólica”. Ao
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contrário, “a sabedoria que vem do alto, é, antes de tudo, pura, pacífica,


condescendente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, im-
parcial e sem fingimento” (Tg 3,13-15.17). Também para São Francisco, os
demônios sabem mais teologia que o maior teólogo, como se pode deduzir
de suas palavras, nas “Admoestações”: “Um só demônio conhece mais das
coisas celestiais... que todos os homens juntos” (nº 5,6).
A função ou termo da teologia não é o saber como tal, mas o despertar
e o desenvolvimento da fé, com todas as suas implicações, inclusive só-
cio-políticas. É o que reza a célebre definição que Santo Agostinho deu da
ciência teológica e que Santo Tomás recolhe na prima quaestio da Suma, art.
2. Note-se que a definição agostiniana de teologia se faz pela sua finalidade.
Ei-la: Huic scientia attribuitur tantummodo quo fides salubérrima gignitur, nutritur,
defenditur et roboratur (A esta ciência atribui-se tão-somente aquilo pelo qual a
fé muito salutar é gerada, é nutrida, é defendida e é robustecida: De Trinitate,
XIV, 1). É o mesmo que dizer: a teologia existe em função da fé, no senti-
do de suscitá-la e promovê-la, defendê-la e fortalecê-la.

O laço da teologia com a santidade não dispensa a teologia de ser ciência


Mas então – poder-se-ia objetar – por ser sabedoria espiritual, deixa a te-
ologia de ser uma ciência? Deveria então a cátedra universitária transfor-
mar-se em púlpito, a sala de aula em campo de evangelização e a biblioteca
em capela? Em absoluto. Mesmo sendo essencialmente sabedoria, a teologia
não deixa de ser também ciência. É sabedoria na forma da ciência. É experiên-
cia de Deus passada nos moldes do conceito.
Mesmo assim, deve ficar claro que a teologia como ciência é apenas um
momento da sabedoria da fé e esta, por sua vez, é um momento da vida cristã
total. A ciência é uma dimensão necessária, mas de modo nenhum suficiente,
do caminho da fé. E porque a teologia científica tem na experiência de fé sua
raiz, ela há de vir toda impregnada da substância viva desta experiência. Ela
deve ter o gosto da fé salutar, como a água do mar tem o gosto do sal. Teolo-
gia é, sim, saber, mas saber saboroso. Ela deve ter sabor de espiritualidade,
ou seja, sabor de amor, daquele amor que é Deus mesmo.

Consequências práticas da retomada do laço entre teologia e santidade


Que consequências práticas tirar da relação íntima entre teologia e
santidade?
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Primeiro, que não basta ser inteligente e aplicado para ser bom teólogo.
Isso é absolutamente necessário e é para isso que existe uma faculdade
acadêmica chamada “teologia”. Mas isso não é suficiente.
Depois, que não basta estar ligado à Igreja e à pastoral para ser um bom
teólogo. Também isso é indispensável, mas é ainda pouco.
Enfim, que não basta estar comprometido com a justiça e com a liber-
tação dos pobres para ser bom teólogo. Isso é grande e importante, mas é
preciso ousar dizê-lo: tudo isso ainda é pouco para o que se exige de um
verdadeiro teólogo.
Então, o que é preciso mais? É preciso estar ligado ao Mistério de Deus. É
nesta fonte que se encontra tanto a origem quanto a originalidade do teólogo.
É aí que está o que é nele originário e original. Tudo o mais é derivado e co-
mum: estudo, pastoral, ética e participação social. Uma teologia destituída desse
sabor fontal e elementar não passa de “teologia de estuque”. Por mais retórica,
florida e elegante que se queira, ela mal consegue disfarçar seu caráter compos-
to, artificial e finalmente afetado.
Na raiz de toda verdadeira teologia está, pois, o encontro com o Misté-
rio do Deus santo e santificador. É daí que ela tira sua substância e sua seiva
vital. E é daí que provém toda a sua vitalidade: folhas, flores e frutos.
Que quer dizer isso em concreto? Quer dizer que a teologia tem que ter
a espiritualidade por fonte e por objetivo. E não é a espiritualidade o gran-
de clamor da cultura atual?
Para ser mais concreto ainda: a teologia necessita de oração. O teólogo,
hoje mais do que nunca, precisa ser uma figura orante. A teologia primeira
é a “teologia genuflexa”. Assim, em relação à teologia, há que dizer: no
princípio era a oração e a oração se fez reflexão.
Então, sim, aureolada pela luz do Três-vezes-santo e fecundada pela
força do Alto, a teologia poderá dar os frutos do Espírito, especialmente
os mais belos e saborosos, que, para São Paulo, são efetivamente: o Amor,
a Alegria e a Paz (Gl 5,22). E que assim seja. Amém.
Clodovis Boff
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