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A EUCARISTIA IV.

“Faça brilhar em nossos corações a luz imarcescível do conhecimento da


divindade, Senhor filantropo, e abre os olhos de nossa inteligência para
que nôs compreendêssemos as proclamações evangélicas. Faça também
penetrar em nos os teus preceitos de beatitude para que tendo esmagado
todas as paixões carnais, tenhamos até o fim uma conduta espiritual
(pneumatikèn politeian) em todos nossos os pensamentos e nossas ações
segundo o bom desejo que é o Teu...”. (Oração antes do Evangelho).

I.(Pg. 63.)

Segundo o testemunho unanime das antigas testemunhas, a leitura das


santas Escrituras constituía desde a origem uma parte inalienável da
“assembleia em Igreja” e especialmente da assembleia eucarística. Numa
das primeiras descrições que nos tenha alcançado, podemos ler isto; (S.
Justino)

“O dia que é chamado dia do sol, todos, nas cidades e nos


campos, reúnem – se num mesmo lugar; leiam – se as memórias
dos Apóstolos e os escritos dos profetas, tanto quanto o tempo o
permite”. “Quando o leitor tem acabado, aquele que preside (o
celebrante) faz um discurso para avisar e exortar à iniciação
desses belos ensinamentos. Logo depois, levantamos - nos e
rezamos juntos... E quando a oração estâ terminada traga – se
pão e vinho e a água“ (27). “Evidentemente é assim estabelecida
à ligação entre a leitura da Escritura e a predicação por uma
parte, e a oferenda dos dons eucarísticos, por outra parte.” O rito
atual também o atesta; a liturgia dos catecúmenos, consagrada
principalmente à palavra de Deus é inseparável da liturgia dos
fieis, que consiste em oferecer, abençoar e distribuir os oblatos .
Ora os manuais oficiais e as explicações teológicas ignoram de fato esse
testemunho unanime. Na vida e pratica da Igreja, a Eucaristia é composta
de duas partes indivisíveis. A teologia escolástica reduz - a apenas numa
parte; a segunda, ou seja, a que tem a ver com o vinho e o pão, deixando
entender alias que ela se basta a se - mesma e que, nem espiritualmente
nem teologicamente, ela seria ligada à primeira. Tal “redução“ explica – se
naturalmente pela influência das teorias ocidentais que desde muito
cortaram a Palavra do Sacramento para fazer deles dois objetos de
estudo independentes um do outro. Tal separação representa, porém um
dos principais defeitos dessa doutrina sacramentaria. Assimilada de fato,
pelos nossos sistemas escolares, ela conduz cedo ou tarde a considerar de
maneira parcial e falível (fautive. Cfr. Aurélio; que tem “falha”) a Palavra,
querendo dizer a Escritura, e seu lugar na vida da Igreja, tanto quanto o
Sacramento. Eu ouso afirmar que a “decomposição” gradual da
Escritura dissolvida por uma critica cada vez mais especializada e
negativa, é devida ao fato que ela foi destacada da Eucaristia; a
saber, na realidade, da Igreja mesma como experiência e realidade
espiritual. Por sua vez, isso priva o Sacramento de seu conteúdo
evangélico, para transformar ele em “um meio de santificação”
autônomo. A Escritura e a Igreja são assim reduzidas à categoria
de duas autoridades formais, ao que é chamado de “fontes da fé”.
Além disso, não é mais questão de saber qual é a autoridade superior,
quem “interpreta“ quem... De fato, essa atitude, por sua lógica interna,
traz uma nova “redução”. Ao declarar que é a Escritura que é a autoridade
suprema em matéria de fé, onde està o “critério” da Escritura? Cedo ou
tarde, vai ser a “ciência bíblica”, a saber; no final das contas a razão
pura. Se, ao contrario, decide – se que a Igreja é a autoridade superior
para interpretar a Escritura, por quem, onde e quando essa interpretação
efetua – se? Qualquer que seja a resposta a essa questão, tal autoridade
se torna “exterior”, é colocada acima da Escritura. No primeiro caso, o
sentido desta é diluído nas diversas “teorias cientificas” particulares e
então desprovidas de uma sanção eclesial. No segundo caso, a Escritura é
considerada como um tipo de matéria prima para definições e formulas
doutrinais, como “dados bíblicos” cuja exegese é tarefa da razão dos
teólogos.

Não há de acreditar que tal atitude releva apenas do ocidente. Pode ser
observado o mesmo fenômeno, mais ou menos mesclado, na Ortodoxia.
De fato, se os teólogos ortodoxos estão apegados a um principio formal, a
saber; pertence à Igreja interpretar a Escritura e Ela o faz à luz da
Tradição, o conteúdo vivificante e a aplicação “prática” deste princípio são
bem longe de serem evidentes. Na vida da Igreja, a “compreensão das
Escrituras” permanece um pouco paralisada. Se é que ela existe, nossa
“Ciência bíblica” continua debaixo do império das premissas ocidentais e
ela repete temerosamente “a parte final” (seguindo as teorias
“moderadas”, ou seja, na realidade as penúltimas). Pelo que é da
predicação e da piedade, já faz muito tempo que elas não mais se
alimentam da Escritura como a sua verdadeira fonte...

Essa “RUPTURA” entre Palavra e sacramento não deixa de ter tido


consequências deploráveis (fâcheux; Cfr; Aurélio; desagradável,
deplorável, impertinente, enfadonho, importuna.) sobre a teologia
sacramentaria. O sacramento não é mais bíblico ali, nem evangélico, no
sentido mais profundo do termo. Não é certamente de modo fortuito que
a teologia ocidental concentrou o seu interesse não sobre a
essência e conteúdo dos sacramentos, mas sim sobre as
condições e “modos” de sua operação e de sua “eficácia”. Assim,
o seu exame da Eucaristia foi reduzido à questão de saber por
que meio e em que momento as oblações são convertidas em
Corpo e Sangue, enquanto quase não é questão ali do sentido
dessa conversão para a Igreja, para o mundo, para cada um de
nos. Por tão paradoxal que possa parecer, o interesse para a “presença
real” do Corpo e sangue de Cristo ultrapassa o interesse para o próprio
Cristo. A Comunhão é considerada como um “meio de obter a
graça”, como um ato de santificação pessoal; ela não é mais
percebida como nossa participação ao Cálice do Senhor; “Podeis –
vos beber o cálice que eu vou beber ou ser batizados no batismo com o
qual eu vou ser batizado?” (Mc. X, 38). Disjuntos da Palavra, que sempre é
relativa ao Cristo, (Observeis as Escrituras , elas testemunham de mim!
Joâo V, 39), os sacramentos são de alguma forma separados d’ Ele. Claro,
segundo a doutrina e a piedade, o Cristo continua sendo Aquele que
os “instituiu”, mas Ele não é mais o conteúdo deles,
essencialmente dom d’ Ele – mesmo, de Sua vida teantropica à Igreja e
aos fieis... E assim que o sacramento de “penitencia” é concebido e vivido
como o “poder“ de “remeter“ os pecados, e não mais como a
“reconciliação” e a “reunificação” com a Igreja em Jésus Cristo; que dentro
do sacramento de “casamento”, “esqueceu – se“ que ele é fundamentado
sobre “o grande mistério do Cristo e da Igreja”, etc...

Ora, segundo a tradição eclesial litúrgica e espiritual, é justamente a


ligação indivisível (Insécable; Cfr; Aurélio; que não pode ser dividido,
indivisível) da Palavra e do Sacramento que faz que o ser da Igreja realize
– se como encarnação do Verbo, como devir da Inhumanaçâo no tempo
e no espaço, de tal modo que é dito da Igreja mesmo no Livro dos Atos; “a
Palavra crescia... (XII, 24). Pela Eucaristia, nôs comungamos com
Aquele que vem e que permanece no meio de nos em Sua
Palavra; e a missão da Igreja consiste em anunciar ela. O Verbo
pousa o Sacramento como a sua realização , pois o Cristo –Verbo torna –
se a nossa vida pelo sacramento. O Verbo congrega a Igreja a fim de
encarnar – Se nela. Separado do Verbo, o Sacramento arisca ser
concebido como uma operação mágica; e, privada do
Sacramento, a Palavra arisca ser reduzida a uma “doutrina”.
Enfim, é pelo Sacramento que o Verbo interpreta – Se, pois a
interpretação da Palavra sempre é o testemunho do modo pelo
qual o Verbo torna – Se a nossa vida. “ E o Verbo foi carne e habitou
conosco, cheio de graça e de verdade”.(Joâo I, 14). O Sacramento é esse
testemunho. Por isso ele contém o principio e o fundamento da
interpretação e da compreensão da Palavra, a fonte e o critério da
teologia. Apenas é graça a essa indivisível união da Palavra com o
Sacramento que se pode captar o real porte da afirmação; apenas a Igreja
guarda o verdadeiro sentido da Escritura. Assim, a primeira parte da
Liturgia eucarística, inicio necessário da “ teurgia”( Théurgie; Cfr; Aurélio;
ciência do maravilhoso, arte de fazer milagres), é o Sacramento da
Palavra, que termina – se pela oblação, a santificação e a distribuição dos
santos Dons.
II. (Pg. 67.)

Manuscritos antigos do Ordo chamam a “pequena entrada”; a entrada


com o Evangelho. Em sua forma atual, o acento porta de fato sobre o
Evangelho; o diácono, segurando o livro diante a sua face, o faz sair
solenemente do santuário pela porta norte da iconostase e, pelas Portas
Reais, ele deposita – o sobre o Altar. Levando em conta o que foi dito
a respeito do sentido inicial da pequena entrada (a do celebrante e
do povo no templo), é claro que a “entrada com o Evangelho” situa
– se como sendo uma forma “segunda” (secundária?). Outrora,
depois da entrada, os concelebrantes “subiam para os seus
lugares” para escutar a Escritura. Hoje, a pequena entrada não sendo
mais o inicio real da liturgia, é a “entrada do Evangelho” que retomou o
sentido dessa procissão. Para entender isso, temos que dizer algo a
respeito da “topografia” originaria do templo.

Na pratica moderna, o lugar “natural” e evidente do clero é no santuário.


Outrora era diferente. A “parada”, a celebração diante do altar intervinha
apenas na Liturgia dos Fieis, ou seja, no momento da Anáfora, da
Eucaristia propriamente dita. O celebrante acessava o altar apenas
no momento da oblação. O resto do tempo, assim como nos ofícios do
dia e do ciclo anual, os celebrantes permaneciam no “tablado”, a saber;
no meio do povo. E o que estâ sendo indicado pelo lugar do trono
do Bispo e isso não mudou. No meio da Igreja na Igreja russa; à direita
do ambão na Igreja grega. Ainda hoje, alias as partes mais
importantes dos ofícios são celebradas no meio da Igreja, como
por exemplo, o POLYELEOS das Matinas e não no santuário. O altar
representava exclusivamente a MESA da Ceia do Senhor, o altar
do sacrifício não sangrento. Havia como que dois polos na liturgia;
um na assembleia o outro frente ao altar. Assim a primeira parte, “a
assembleia em Igreja”, a escuta da Escritura e da homilia, acontecia não
no santuário e sim na nave a partir do “tablado”, reservado aos
celebrantes. Havia primeiramente a entrada no templo (sentido
primitivo da pequena entrada), logo depois a procissão do clero
“no seu lugar” para ali celebrar a liturgia da Palavra (segundo
sentido da “pequena entrada”); depois, os celebrantes iam até o
santuário, diante do altar, para a oblação e a santificação dos
dons (atual grande entrada). Essas três procissões expressavam o
simbolismo fundamental da assembleia eclesial; sua elevação até
o Reino de Deus...
Duas coisas romperam e modificaram essa ordem inicial; o
desaparecimento da primeira entrada, assim como já foi dito, e a
gradativa supressão dos “tablados” (bêma; Cfr. Aurélio. Pequenos
tablados comuns nas igrejas cristas primitivas) como lugar do clero em
todas as liturgias, menos na Eucaristia. O fato de guardar cada vez mais
frequentemente o Evangelhario sobre o altar contribuiu também a esse
estado de fato. Na época das perseguições, o Evangelhario não era
deixado no altar, já que uma das formas de perseguições era justamente
confiscar os livros sagrados. Assim o Evangelhario era trazido cada vez do
exterior. Tendo cessadas as persecguições, e tendo sido construídas
grandes basílicas, o lugar de guardar o Evangelhario tornou – se
naturalmente o próprio templo e no meio dele, o “santo dos santos”, o
altar. Este ultimo serviu desde então de centro para as duas partes da
liturgia, se bem que de modo diferenciado; na liturgia dos catecúmenos e
nos ofícios, o Evangelhario é levado para fora do santuário e ele é lido
ainda hoje no meio do templo, do ambão ou do trono, enquanto
a Eucaristia ainda é celebrada sempre diante do altar.
Esses detalhes técnicos apenas são uteis aqui para mostrar que a
“pequena entrada” combinou progressivamente três “dimensões“
essenciais; o inicio da Eucaristia como entrada na assembleia, o término
dessa primeira entrada como ascensão da Igreja até o santuário celeste
(oração e canto do TRISAGION, subida para o altar); enfim, a realização
deste inicio da Liturgia com o sacramento da Palavra.

Voltando agora para “a entrada do Evangelho”. Podemos dizer que ela


não é menos importante que a leitura da Escritura para compreender a
liturgia da Palavra e a sua relação com a Eucaristia. De fato temos ai um
paralelismo com essa ultima, onde a OBLACÂO precede a santificação das
espécies. Convém também fazer lembrar aqui que nesse aspecto, na
tradição da Ortodoxia, o Evangelho faz parte da Liturgia não apenas como
algo “lido”, mas sim ainda como “LIVRO”. Ele recebe a mesma veneração
que o ícone ou o altar; ele é beijado, incensado, com ele o povo de Deus
recebe a benção. Enfim, o Evangelhario intervém como livro e não como
tal ou outro texto, na sagração de um bispo, sacramento de penitência,
sacramento da unção aos enfermos, etc. E assim é, pois que para a Igreja,
o livro do Evangelho é o ícone verbal da manifestação e da permanência
do Cristo no meio de nos. Antes de tudo o mais, o Evangelhario é o ícone
de Sua Ressurreição. A entrada com o Evangelhario, por via de
consequência, não é uma “figuração”, teatralidade sagrada de um
acontecimento do passado; a saída do Cristo no mundo para ali pregar (se
tal fosse o caso, levar o Evangelhario teria que ter sido não obra do
diácono e sim do celebrante, como figura de Cristo na assembleia
eclesial). Essa entrada significa a manifestação do Senhor ressuscitado
conforma a Sua promessa; “Onde dois ou três encontram – se reunidos
em meu nome, eu estou no meio deles!”(Mt. XVIII, 20).

Assim como a santificação dos dons é precedida de seu aporte ao altar,


assim também a leitura e a proclamação da Palavra são precedidas de sua
manifestação. A “entrada com o Evangelho” é o nosso encontro,
encontro jubiloso, com o Cristo; esse livro de todos os livros procede
até nos, e sempre torna – se poder, vida, santificação...

III. (Pg. 70).


“Paz a todos!” anuncia o celebrante para a assembleia. Ela responde; “E
com o teu espírito!”. Já temos indicado que a PAZ era o nome de Cristo e
que Ele – mesmo é esta. A forma ocidental dessa saudação é alias
DOMINUS VOBISCUM! Precedendo cada nova parte da liturgia
eucarística; a leitura da palavra de Deus, o beijo da paz, a
distribuição das espécies, essa invocação lembra a cada vez que
o Cristo està no “meio de nos”, que Ele – mesmo preside nossa
Eucaristia, pois Ele é “Aquele que aporta e que é aportado, que recebe e
que é distribuído”. (Anáfora).
Em seguida proclama – se o PROKIMENON. Este termo que em grego
significa “o que se encontra adiante”, designa hoje dois ou TRÊS versículos
dos Salmos, que o chantre e o povo (ou o coro) executam sobre o modo
antifônico. Outrora, o prokimenon era composto de um salmo inteiro cujo
canto “precedia” a leitura da santa Escritura. Para compreender o papel
especial e sem duvida importante que ele continua prestando na liturgia
ortodoxa, tem de fazer lembrar o valor eminente dos Salmos na Igreja
primitiva. Pode – se dizer sem ter exagerado que eles representavam não
apenas um dos cumes da profecia e da oração no Antigo Testamento,
mas ainda um tipo de “revelação” especial no seio da Revelação.

Se a Escritura inteira profetisa o Cristo, a importância


excepcional dos Salmos consiste no que neles o Cristo manifesta
– Se como que do “interior”. Sâo as SUAS palavras, SUA oração;
“Ipse Dominus Jesus Cristus Locutus” (Agostino) (29). Por isso mesmo, os
Salmos são a oração e as palavras de Seu Corpo, da Igreja. Sâo exatamente
Jésus Cristo e sua Igreja que falam, oram e choram neste livro. Também
disse Agostino, “esses membros múltiplos são reunidos pelo laço do amor
e da paz debaixo de um sô chefe, nosso Salvador, e como bem sabem, eles
compõem um sô homem. Essa voz nos Salmos se faz ouvir no mais das
vezes como a voz de um único homem, mas que suplica para todos, pois
tudo està no único”. (29)

Esta compreensão, esta experiência dos Salmos fundamentam a sua


utilização litúrgica. Impossível, por exemplo, compreender o valor
eminente do Salmo CXVIII/CXIX, lido nas Matinas do Grande Sábado, se
não se é consciente do que essa longa confissão de amor para a “JUSTICA
DE DEUS”, para a Sua vontade, para o Seu designo quanto ao mundo e ao
homem, a Igreja entende como a própria voz do Senhor que està no
tumulo e que nos revela o sentido da morte vivificante. Assim os
Salmos não são apenas exegese inspirada da Escritura e dos
acontecimentos da historia santa, mas eles também expressam e
encarnam, comunicando – a para-nos, a realidade espiritual que nos
permite apanhar o sentido verdadeiro dos textos tanto quanto o dos ritos.
O Prokimenon, “salmo que precede”, nos introduz ao sacramento da
Palavra. Esta, de fato, não endereça – se apenas a razão, mas sim ao
homem integral, ao que ele tem de mais profundo, ao seu coração como
dizem os santos Padres, órgão do conhecimento religioso, em
oposição ao conhecimento incompleto, discursivo e racional deste
“mundo”. A “abertura da inteligência” precede a escuta e a compreensão
da Palavra; “Então Ele lhes abriu a inteligência para compreender as
Escrituras” (Lucas XXIV, 45). Pode – se dizer que a proclamação alegre e
repetida do prokimenon, sua comunicação à assembleia e sua recepção
por ela correspondem ao momento da abertura da inteligência e encontro
com o coração para que possamos entender as palavras da Escritura como
as do Senhor.

Depois do Prokimenon, leia – se o APÔSTOLO (a Epistola), uma lição da


segunda parte, “apostólica”, do Novo Testamento. Temos todas as
razoes de pensar que outrora a leitura da santa Escritura
continha uma lição veterotestamentaria. O estudo detalhado do
“LECIONARIO”, ou seja, os princípios que governam a disposição
e leitura litúrgicas dos textos escrituarios, faz parte da teologia
que eu chamaria de “liturgia do tempo”. (30); por isso não
trataremos aqui dessa questão. Basta dizer que a evolução deste
LECIONARIO foi longa e complexa. Uma das tarefas urgentes de nossa
época consiste em rever ele no quadro de nossa “situação” litúrgica atual.
Para tomarmos consciência da seriedade do problema, basta lembrar aqui
que o LECIONARIO moderno exclui a maior parte do Antigo Testamento;
quanto ao Novo, sendo uma celebração diária da liturgia eucarística,
apenas fragmentos também chegam ao ouvido e a consciência dos fieis.
Daí uma surpreendente falha no conhecimento da Escritura na
maioria dos Ortodoxos e, em consequência, uma falta de
interesse para com Ela. Eles desabituarem – se perceber ali a
principal e autentica salvifica fonte da fé e da vida. Na nossa
Igreja, o Acatista é infinitamente mais popular que a Santa
Escritura. Ora, toda a nossa liturgia é essencialmente composta
no tom bíblico; resulta disso no final das contas que não se
entende mais não a liturgia e que a piedade encontra – se
destacada do verdadeiro sentido da LEX Orandi...

Depois da Epistola, leia – se o Evangelho. A lição é precedida do


canto de Aleluia e de uma incensação. Hoje, esse canto gasta
apenas dois minutos, que permitem ao diácono receber o
Evangelho das mãos do celebrante e de ir até o ambâo. Tanto
que a insensação não é mais feita como convém, durante o canto
de Aleluia, mas durante a leitura da Epistola. Enfim, a oração do
celebrante antes da leitura do Evangelho, pela qual a Igreja pede
a Deus de “abrir – lhe os olhos para compreender as predicações
evangélicas” tornou – se uma “secreta” e ela não chega aos
ouvidos dos fieis. Tudo isso ocultou o sentido original do rito da
liturgia da Palavra. Este é importante, porém para compreender a
relação que existe entre essa liturgia e o Sacramento.

A ALELUIA é aqui CAPITAL. Ele outrora constituía uma parte importante de


toda liturgia cristâ. Herdada da oração judaica, ela releva do tipo de
cantos “melismáticos”. Se diferenciando da salmodia, a melodia aqui
ganha sobre a letra. Pode – se pensar que antes da aparição de uma
hinologia mais elaborada (Tropario, Kondakion, Estiquerio) onde texto e
melismo determinam – se mutuamente, a Igreja apenas conhecia dois
tipos de canto, segundo duas concepções essenciais da liturgia cristâ. A
salmodia ou execução sobre um ritmo musical de um texto escriturário ou
de uma oração expressava o caráter verbal da liturgia; a palavra é a
primeira ali, que fosse a da Escritura, testemunho apostólico ou tradição
da fé. O canto melismático, por sua vez, veiculava a experiência
litúrgica como contato real com o TRANSCENDENTE, como entrada
na realidade supramundial do Reino. Sabias obras foram consagradas as
suas origens. Não há nenhuma duvida, no caso, que ele ocupava um lugar
importante na liturgia cristâ primitiva e que a ALELUIA era uma expressão
privilegiada.
O termo mesmo não é uma simples palavra, mas sim um tipo de
proclamação melódica. Certamente pode ser traduzido por “DEUS SEJA
LOUVADO!”, mas esse conteúdo semântico não esgota - o nem expressa -
o completamente, pois ele é por se – mesmo um impulso de alegria e de
louvor, suscitado pela manifestação do Senhor; ele é uma “reação“ à Sua
chegada... O historiador das religiões Van Der Leeuw anota que, apanhado
pela presença de Deus, o homem libera uma exclamação; “ele eleva a
voz!” (31). E para um canto de louvor. A ALELUIA é efetivamente uma
saudação no sentido mais profundo do termo. Ora uma saudação,
anota de novo van der Leeuw, sempre é a “confirmação de um fato”.
Ela supõe uma MANIFESTACÂO, a qual ela REAGE. O canto da ALELUIA
precede a leitura do Evangelho, pois que (como já o colocamos aqui), a
manifestação do Senhor à “ASSEMBLEIA ECLESIAL”, da qual Ele “abre a
inteligência”, vem antes da audição da Palavra. Nôs conservamos
melodias antigas da ALELUIA; pelo som, pelo melismo, elas expressam a
alegria, o louvor, e a experiência da PRESENCA; elas são mais realistas que
o seriam explicações verbais.

Durante a ALELUIA, e não apenas durante a leitura da Epistola, como é de


regra hoje, o Evangelho e a Assembleia são incensadas. Esse rito
muito antigo, comum em muitas religiões, não foi recebido tão logo pela
Igreja, justamente por causa de seu laço com cultos pagãos. Na época das
perseguições, exigia – se dos cristãos queimar incensos diante da estatua
do imperador e de dar – lhe assim a latria divina. A incensação acabou,
apesar disso, por ser integrada à liturgia, precisamente como o rito
religioso mais “natural”; carvões ardentes, incensos transformados em
perfumes e fumaças que elevam – se para o céu, tudo isso “expressando
a adoração dada pela criatura ao Criador e a Sua Santidade” ,
presentes no meio dos homens.

O celebrante lê a Oração antes do Evangelho, pela qual ele pede a Deus


enviar “a luz incorruptível de Sua inteligência divina e abrir nossos olhos
espirituais para a compreensão das predicações evangélicas”. Lida hoje
em voz baixa, como já o fizemos lembrar, essa oração “ocupa no
sacramento da Palavra o mesmo lugar que a EPICLESE na
Anáfora, a oração para que o Pai envie o Seu Santo Espírito”.

Assim como a santificação dos Dons, a compreensão e a recepção da


Palavra não dependem apenas de nosso desejo; a condição
essencial reside em que “nossos olhos espirituais” sejam misteriosamente
transformados, que o Espírito Santo chegue – se sobre nos. E isso
que é testemunhado pela benção dada ao diácono para ler a Palavra;
“Anunciar ela com grande poder para a realização do Evangelho”...

V. Pg.76.

A PREDICACÂO testemunha do que a Palavra de Deus é ouvida,


entendida e recebida. A Homilia é organicamente ligada à leitura da
Escritura. Na Igreja primitiva, ela fazia parte integrante do “SINAXARIO”,
ato litúrgico essencial na Igreja, testemunho permanente do Espírito Santo
que vive na Igreja e que a faz aceder à verdade inteira (JOÂO XVI, 13).
Graças ao Espírito da Verdade, “que o mundo é incapaz de acolher, pois
que ele não enxerga – O e não conhece – O” (... mas “vôs O conheceis,
pois que Ele permanece junto de vos e será em vos”) (Joâo XIV, 17), a
Igreja ouviu e reconheceu nesses textos a Palavra de Deus; e Ela continua
reconhecendo ela, entendendo ela e anunciando ela. Que ela anuncia
verdadeiramente o Cristo para “este mundo”, que ela testemunha d’
Ele, e não apenas “expondo a Sua doutrina”, isso apenas é possível
por ela estar sempre entendendo a Palavra de Deus, vivendo d’ ela, de tal
modo que sua própria vida é o crescimento da Palavra; “A Palavra de
Deus crescia e o numero dos discípulos aumentava muito” (Atos VI, 7. );
“Tal era a força com a qual a palavra do Senhor crescia e ganhava em
poder”. (XIX, 20).

Pode ser observada uma decadência inegável, ver uma crise da predicação
na vida eclesial em nossos dias. Não é por uma incapacidade oratória, uma
perda de “estilo”, uma falta de preparo nos predicadores; é questão de
algo bem mais profundo. Esqueceu – se do que representa a predicação
na assembleia eclesial. Uma homilia pode ainda ser interessante,
inteligente, instrutiva, consoladora, e frequentemente o é; não é esse
conjunto de qualidades, permitindo discernir os “bons” predicadores dos
“maus” que constitui aqui o essencial; é a relação viva com o
Evangelho lido na assembleia. Uma verdadeira homilia não consiste
em uma explicação do texto por uma pessoa competente, em uma
comunicação para um auditório de conhecimentos teológicos do orador,
nem uma reflexão “sobre o assunto” da lição. E questão em geral de
pregar não a respeito do Evangelho, sobre um tema evangélico, mas
o próprio Evangelho. A crise da predicação hoje tem a ver antes de
tudo com o fato dela ter se tornado como que um negocio privado do
predicador, do qual então podemos dizer se ele tem ou não o dom da
eloquência. O verdadeiro dom da palavra, o do anuncio do
Evangelho, não é um talento “imanente” do orador, mas sim um
carisma do Espírito Santo dado numa Igreja e a Igreja. Não há
verdadeira proclamação evangélica sem a fé no que “a assembleia em
Igreja“ seja autenticamente uma assembleia no Espírito Santo, onde o
mesmo único Espírito abre os lábios para proclamar e as
inteligências para receber a predicação.
Assim a condição primaria dessa é que o predicador despoje – se
inteiramente, que ele renuncie ao que apenas é dele até e incluindo o seu
talento pessoal. O mistério do anuncio evangélico na Igreja, a diferencia
da eloquência puramente humana, realiza – se, segundo Sâo Paolo, “não
com o prestigio da palavra ou da sabedoria... pois eu decidi de não saber
de nada no meio de vos, senão Jésus Cristo, e , alias, crucificado... E minha
palavra ou minha predicação não consistam em discursos persuasivos da
sabedoria humana, mas na manifestação do Espírito e na força... afim de
que vossa fé não seja fundamentada sobre a sabedoria dos homens, mas
sim sobre o poder de Deus”(I Cor. II, 1-5). “Testemunhar de Jésus
Cristo pelo Espírito Santo; tal é o conteúdo da Palavra de Deus e
é isso a única substancia da predicação; E é o Espírito que dà
testemunho, pois o Espírito é a Verdade” (I JOÂO. V, 6 ).

O ambâo da igreja é o lugar onde o sacramento da Palavra


realiza – se. Assim ele nunca deveria tornar – se tribuna onde seriam
proclamadas verdades talvez muito positivas e sublimas, mas apenas
humanas, não revelando nada mais que sabedoria dos homens. “Nôs
pregamos no meio dos perfeitos, mas uma sabedoria que não é deste
mundo nem das autoridades que têm poder nesse século... Nôs pregamos
a sabedoria de Deus, misteriosa e escondida, que desde antes dos séculos
Deus tinha predestinada à nossa gloria” (I Cor. II, 6-7 ).

Eis porque toda a Tradição e a teologia eclesial nasceram


precisamente da “Assembleia em Igreja”, desse sacramento que é o
anuncio do Evangelho. Eis porque esta nos permite apreender o sentido
profundo, vivo, e não abstrato, da afirmação clássica ortodoxa; a guarda
da Escritura e de sua interpretação apenas é confiada a Igreja . De
fato, a Tradição não é nenhuma outra fonte da fé, que viria
“completar” a Escritura; ela é essa mesma fonte; a viva Palavra de Deus,
ouvida e recebida pela Igreja. A tradição consiste em interpretar a
Escritura como fonte da própria Vida e não em comentar tal
pericopio segundo uma tese dada, levando a tal “conclusão”. Quando
Santo Atanásio o Grande dizia que “as Escrituras santas e inspiradas eram
suficientes para expor a verdade (31), ele não negava a Tradição; e ainda
menos preconizava ele um especifico método, “bíblico”, para a teologia,
segundo uma fidelidade formal e terminológica do “texto” escriturário;
sabe – se que para expor a fé da Igreja, ele próprio ousou introduzir um
termo não bíblico (HOMOOUSIOS).

O que ele afirmava, era justamente a relação viva, e não formal, entre a
Tradição e a Escritura; a Tradição como leitura e a escuta da Escritura pelo
Espírito Santo. Se apenas a Igreja conhece e guarda o sentido da Escritura,
é unicamente porque, no sacramento da Palavra, realizado na assembleia
eclesial, o Santo Espírito não cessa de tornar viva a “carne” da Escritura
para transformar ela em “espírito e vida”. A autêntica e eclesial teologia
estâ enraizada neste sacramento, nesta assembleia, onde o Espírito de
Deus instrui a Igreja mesmo, e não tais ou outros membros individuais, em
toda verdade. Assim cada leitura “pessoal” da Escritura deve ser
fundamentada sobre a da Igreja. Fora da inteligência da Igreja e de sua
vida teantropica, não se pode ouvir e nem compreender a leitura da
Escritura. Pelo ato duplo da leitura e do anuncio, o sacramento da Palavra
em assembleia é a fonte do crescimento de cada um e de todos juntos até
a plenitude do conhecimento da Verdade.

Enfim, o sacramento da Palavra manifesta a colaboração da hierarquia


com os leigos para guardar a Verdade, missão que é a do corpo inteiro da
Igreja, ou seja, do próprio povo. (Carta dos Patriarcas orientais. 1948 ) (32-
33). Por parte, a predicação realiza o dom de ensinamento, que é
conferido ao celebrante como o seu ministério didático na
assembleia eclesial. Por outra parte, é justamente porque a predicação
não é um “talento” pessoal, mas sim um carisma dado à Igreja e posto as
obras na sua assembleia, que o ministério do ensino da hierarquia é
inseparável da assembleia, que é a sua fonte da graça. O Espírito
Santo repousa sobre a Igreja inteira. O oficio principal do
celebrante é de pregar e ensinar. O do povo de Deus é de receber,
acolher, o ensinamento. Mas esses dois ministérios procedem do Espírito
Santo, os dois realizados por Ele e Nele. Não teria como anunciar e
receber a Verdade sem o dom do Espírito. E esse dom é
conferido a toda a assembleia. Pois é a Igreja inteira e não tal ou outra
parte dela que recebe o espírito deste mundo, mas sim o Espírito de Deus,
para que conheçamos os dons de Deus... “Ninguém conhece o que estâ
em Deus senão o Espírito de Deus.” Assim aquele que ensina fala “não a
linguagem que ensina a sabedoria humana, mas dentro daquilo que
ensina o Espírito, adaptando o que é espiritual aos espirituais” e aquele
que recebe o ensinamento o faz pelo Espírito Santo. “Pois o homem
psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus, pois ele considera – o
como folia e não quer compreender esta”. (I Cor. II, 11-14).

O Bispo e o sacerdote recebem o dom de ensinamento na Igreja, mas ele


lhes é conferido por eles serem testemunhos da fé da Igreja e porque o
ensinamento não o deles, mas sim o da Igreja, de sua unidade de Fé e de
amor. Toda a Igreja inteira, manifestada e realizada pela
assembleia litúrgica tem unicamente a inteligência de Cristo .
Apenas é na assembleia que todos os dons, todos os ministérios atualizam
– se com a sua unidade indivisível como manifestações do único Espírito
que preenche todo o Corpo. E eis porque, enfim, pertence a cada um dos
membros da Igreja, qualquer seja o seu “lugar”, de dar testemunhos,
diante da face deste mundo, de toda a sua plenitude de Igreja e não
apenas de sua própria atitude.

Outrora, a assembleia respondia pelo AMEN à predicação atestando assim


que a Palavra era recebida e que a assembleia estava unanime com o
predicador no Espírito. E nesse AMEN do povo de Deus que estâ o
principio da “RECEPCÂO” da doutrina pela consciência eclesial, recepção
da qual falam frequentemente os teólogos ortodoxos opondo ela a divisão
romana da Igreja como “docente” e “aluna”, assim como ao
individualismo protestante. Se for muito difícil explicar em que consiste e
de que modo estâ sendo realizada, talvez é porque nossa própria
consciência perdeu a memória do fato que esse ato estâ enraizado na
assembleia eclesial e no sacramento da Palavra que ali era realizado.

Fim pg. 80.

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