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A VOCAÇÃO À SANTIDADE À LUZ DO

DOCUMENTO DE APARECIDA

Pelo Pe. José de Anchieta Lima Costa*


Belém, PA

Síntese: Palavras como “santidade”, “santo”, “sagrado”, parecem ter fi-


cado fora do horizonte das considerações sobre a vida cristã. No entanto, o
conteúdo que elas expressam está profundamente vinculado à experiência
fundamental que todo cristão faz quando assume o compromisso de “ir
atrás” de Jesus e de escutar o que Ele falou. Recuperar o processo da des-
coberta da santidade no interior da vida de seguimento de Jesus é o que nos
ajuda a fazer o Documento de Aparecida.
Abstract: Words such as “holiness”, “holy” and “sacred” seem to have
been left out of the horizon of considerations about Christian life. However,
what their content actually expresses is strongly linked to the fundamental
experience that every Christian has when s/he assumes the commitment of
“following” Jesus and of listening to what He said. The retracing of this
process of discovering sanctity within a life of following Jesus is what hel-
ped us to prepare the Aparecida Document.

O ainda recente e iniciante movimento de renovação pelo qual vem


passando a Igreja católica, sobretudo a partir da convocação feita pelo
Papa João Paulo II, em vista da preparação para a celebração do Terceiro
Milênio e do Grande Jubileu do Ano 2000, tem seu primeiro resultado,
em termos continentais, na realização da Assembléia do Episcopado da
América latina e do Caribe, acontecida na cidade de Aparecida do Nor-
te, São Paulo, em maio de 2007. A acolhida deste evento, assumido
como um verdadeiro sopro do Espírito, vem acompanhada do desafio de
tirar a “poeira” e remover as “teias de aranha” que estão dificultando a
mobilidade, a flexibilidade e a leveza das estruturas da Igreja, impedin-
do-as de cumprir sua verdadeira missão, ou seja, de estarem a serviço da
promoção da vida dos povos latino-americanos. Aparecida lançou as ba-
ses, com seus princípios teóricos e suas orientações práticas, para a atua-

* Pe José de Anchieta Lima Costa é jesuíta, Bacharel em Teologia pelo Centro de Estudos Superiores da
Companhia de Jesus (FAJE) e Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma; atualmente, Reitor da
Capela de Lourdes, em Belém do Pará, onde coordena um programa de formação humana integral.
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lização do agir pastoral da Igreja, que deseja cumprir sua missão de


evangelizar, dentro de uma determinada realidade sócio-cultural.
Este processo de avaliação e renovação pelo qual está passando a
Igreja católica é mais do que necessário e oportuno. Isso por duas ra-
zões. A primeira está ligada ao fato de que o último evento provocador
das transformações realizadas na Igreja católica, em nível mundial, o
Concílio Vaticano II (1963-1965), já se coloca a uma distância de tempo
bastante considerável para um mundo que vem colocando novas ques-
tões e fazendo pertinentes perguntas sobre a pessoa humana e o sentido
da própria vida no planeta. A segunda está no fato de que as rápidas e
profundas transformações ocorridas em nosso Continente, em todos os
níveis do conhecimento e da atuação humana, têm suscitado mudanças
de paradigmas pelas constantes aquisições e descobertas realizadas pe-
las ciências modernas, sobretudo as que dizem respeito à compreensão
da pessoa e de seu agir ético e moral. Há ainda quem diga que as forças
motrizes do Vaticano II não foram suficientemente assumidas nem atin-
giram seu verdadeiro alcance e, por isso, ainda não desencadearam as
devidas mudanças legitimamente esperadas após a realização do evento
conciliar. Mas, a experiência “do novo Pentecostes” vivida durante a
realização da Assembléia de Aparecida e “codificada” em forma de Do-
cumento está agora em nossas mãos, não só como ponto de referência,
mas também como ensinamento do Magistério Ordinário da Igreja Lati-
no-americana. Daqui surgem todas as exigências e toda a força vincu-
lante que tem o referido Documento, para todos nós, que somos mem-
bros, filhos e filhas da Igreja católica.
Visto numa perspectiva bem ampla e abrangente, o Documento de
Aparecida se apresenta como um texto que deixa refletir, tanto em suas
linhas quanto em suas entrelinhas, o pluralismo teológico e pastoral dos
participantes da Conferência Episcopal que lhe deu origem. Às vezes, o
Documento pode dar a impressão de ser uma grande colcha de retalhos,
onde se procurou salvaguardar várias tendências que estavam ali presen-
tes, atendendo aos gostos, ora de uns, ora de outros. Porém, uma análise
mais acurada do texto nos leva a perceber que há uma unidade de pers-
pectiva teológica e pastoral no Documento, quando se trata de manter a
continuidade do trabalho de evangelização que vem sendo desenvolvido
pela Igreja da América Latina, sobretudo a partir da segunda metade do
Século XX. Numa época em que os bispos começaram a se reunir e a
planejar conjuntamente a ação evangelizadora da Igreja através de Con-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 55

ferências em nível continental. Essa prática colegial do exercício do Ma-


gistério Ordinário da Igreja foi se fortalecendo cada vez mais pela aco-
lhida que se tem dado às intuições fundamentais de uma prática evange-
lizadora voltada para a promoção da pessoa humana, na sua integridade.
Esta fidelidade ao sopro do Espírito, que vem arejando as mentes e os
corações de nossos pastores, tem garantido e trazido consigo a preserva-
ção e a manutenção das intuições teológicas, agora redescobertas e re-ela-
boradas a partir da prática pastoral de muitos ministros e catequistas es-
palhados nas paróquias e comunidades eclesiais de base dos diversos
países de nosso Continente.
Toda esta prática pastoral desenvolvida na América latina, que per-
cebeu, resgatou e acolheu a força da religiosidade popular, redescobriu
de uma maneira nova e libertadora o significado do Jesus histórico na
vida das comunidades. Daí a promoção e o incentivo da leitura orante e
transformadora da Palavra de Deus na vida das pessoas, relacionando
sempre mais a fé com a vida. No dinamismo do entrelaçamento bíblico,
teológico e pastoral se encontram as bases das intuições e reflexões teo-
lógicas produzidas na América latina. O que a teologia latino-americana
tem feito nestes últimos decênios nada mais é do que pensar, refletir, sis-
tematizar e animar a prática dos agentes de pastoral, que estão preocupa-
dos e interessados em tornar relevante, para a realidade do Continente, o
evento de Cristo. Neste sentido, a teologia que se faz na América latina,
ou seja, todo trabalho analítico e reflexivo, de discernimento e de leitura
dos “sinais do tempo” que pode ser feito por qualquer cristão que pensa
e reflete sobre sua fé, seja ele profissional ou não do estudo sobre as rela-
ções da pessoa humana com Deus na história, está permeado e vem sen-
do nutrido pela animação da vida eclesial. A vida eclesial, por sua vez, é
também iluminada, confirmada e motivada, em sua prática, por este “fa-
zer-se” cotidiano da teologia, entendida como leitura de fé da vida de
toda pessoa situada em seu ambiente sócio-histórico-cultural e religio-
so. Esta “quase simbiose” entre fé e vida, entre teologia e vida eclesial
imprime uma característica única à vida cristã na América latina. Os
agentes de pastoral, contando com a presença animadora e revitalizado-
ra do Espírito em suas vidas, buscando a fundamentação e o sentido de
sua prática na Sagrada Escritura e na Tradição Viva dos seguidores de
Jesus, não se deixando abalar pelas perseguições, enfrentando as dificul-
dades e vencendo os desafios, procurando seguir os mesmos passos de
Jesus, o Mestre, não temem em arriscar a própria vida ao se colocarem
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na linha de frente da construção da história e da transformação da socie-


dade, atuando como verdadeiros promotores da vida e colaboradores,
junto a todo povo de Deus, da missão de Cristo de levar a Boa-Nova da
Salvação a todos os povos.
Estamos, assim, diante da realidade da vocação dos discípulos e mis-
sionários de Jesus Cristo. Procurando viver esta vocação, corresponden-
do a ela em todas as suas exigências e desafios, sabendo que é algo que
se constrói a cada dia na vida, entre erros e acertos, subidas e descidas...
É, portanto, no ritmo da própria vida que fazemos a experiência de ser-
mos santos. Da mesma forma (“mutatis mutandis”, isto é, mantendo as
devidas distâncias e diferenças), como acontecia com Jesus, que “cres-
cia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria e graça diante de Deus e
dos homens” (Lc 1,40), também nós somos chamados a desenvolver o
dom da santidade no dia-a-dia de nossa existência. A vivência da santi-
dade é a própria experiência da vida cotidiana guiada e iluminada pela fé
na presença do Espírito de Deus que “toma posse” da vida da pessoa. Pa-
rafraseando o Evangelho de João, “é a fé que se faz carne (“sarx” – assu-
me uma história) e “arma a sua tenda entre nós”, ou seja, atua no corpo
de uma história que se faz.

1. A Vocação à Santidade dos discípulos e


missionários de Jesus Cristo

O tema da vocação à santidade dos discípulos e missionários de Je-


sus Cristo vem tratado na segunda parte do Documento de Aparecida.
Esta segunda parte do Documento, intitulada, “A vida de Jesus Cristo
nos discípulos missionários”, é central, tanto pela sua formulação quan-
to pela sua apresentação no corpo do Documento. Não só em termos de
estruturação, como também em termos de conteúdo teológico e pastoral,
é de fundamental importância para a compreensão correta e atual do sig-
nificado e alcance da santidade na vida cristã. Situar a vida de Jesus
Cristo presente nos discípulos e missionários no contexto da compreen-
são da santidade nada mais é do que afirmar, sem sombra de dúvida, que
a vocação de discípulos e missionários nasce da escuta atenta e cuidado-
sa do chamado de Jesus e de sua íntima relação com ele. A santidade,
então, é compreendida como a expressão viva do seguimento de Jesus. É
a partir da relação com Jesus que vamos desenvolver o tema da santida-
de no Documento de Aparecida.
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 57

Os “pilares sustentadores” do Documento de Aparecida no contexto


da vocação à santidade
A segunda parte do Documento de Aparecida é composta por quatro
capítulos. Antes de tudo, é importante situarmos o Capítulo IV no con-
texto de toda esta segunda parte.
Analisando a estrutura do Documento, percebemos que o Capitulo IV
vem precedido de uma menção ao tema da alegria, desenvolvido no Capí-
tulo III. Trata-se da alegria de ser discípulo, missionário e anunciador do
Evangelho de Jesus Cristo. O Capítulo V vai falar da importância de in-
centivar a comunhão (e a participação) na Igreja, em todos os níveis e com
todas as pessoas – bispos, presbíteros, diáconos, com os leigos e com as
leigas, com os consagrados e as consagradas. Esta participação poderá ser
articulada e promovida em diferentes lugares – dioceses, paróquias, co-
munidades eclesiais de base, pequenas comunidades e nas conferências
episcopais. E o Capitulo VI indicará a necessidade de se promover um ca-
minho de formação a ser percorrido pelo discípulo missionário.
Estes três elementos – alegria, comunhão e formação – têm a finali-
dade, não só de caracterizar a vida prática e cotidiana do discípulo e mis-
sionário de Cristo, mas também de apresentá-la na dinâmica mais ampla
do chamado à santidade. Este chamado pode aqui ser entendido como o
desejo do discípulo e da discípula de promover a união entre seus irmãos
e irmãs de comunidade de fé, guiados por seus pastores e ministros, en-
gajados e comprometidos com o processo de formação da fé que se dá
pela educação da vida cristã. Pela catequese, o cristão tem a oportunida-
de de se preparar e se qualificar para, oportunamente, dar a razão de sua
alegria de ser missionário e discípulo de Jesus Cristo.
A alegria. A explicitação do sentimento ou do dom da alegria, citada
nada menos que trinta e nove vezes no Documento e apresentada como
uma das características dos discípulos de Jesus, é uma verdadeira novi-
dade que traz o texto de Aparecida como resposta ao contexto atual da
vivência da fé católica que tem se mostrado, nestes últimos tempos, pou-
co atraente e contagiante para dar sentido à vida das pessoas. Isso porque
a experiência da fé cristã, vivida pela maioria dos católicos, está despro-
vida daquela convicção que a torna capaz de ser testemunha da força
animadora e transformadora do Espírito que dá o verdadeiro sentido
para a existência de cada dia. Daí, então, a preocupação dos pastores em
exortar e querer ajudar os discípulos e as discípulas de Jesus para que re-
façam a experiência da redescoberta da verdadeira alegria de um dia te-
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rem ouvido e aceito o chamado de Deus para o seguimento de seu Filho


Jesus. A adesão à pessoa de Jesus, que se dá através dos atos e das atitu-
des que expressam a fé na Palavra de Deus, precisa ser assumida e mani-
festada, publicamente, pelos católicos, com todo o vigor e com toda a
paixão que é capaz de tornar vivo e eficaz o seguimento de Jesus. O tes-
temunho que entusiasma pela convicção adquirida despertará interesse,
atraindo a atenção e despertando a esperança de milhares de pessoas de
nossa sociedade que sofrem as conseqüências deste mundo injusto, cau-
sando-lhes a dor provocada por tanta violência sofrida, mergulhando-as
numa tristeza que parece não ter mais fim.
A alegria do discípulo e da discípula de Jesus não é, portanto, a ale-
gria dos louvores vazios e sem compromisso com a realidade circundan-
te. Não é, tampouco, aquele sentimento superficial e passageiro ou aquela
sensação de bem-estar psicológico e social, vivido egoisticamente no
conforto do aconchego das casas protegidas pelas cercas elétricas, cujos
moradores, isolados, não mais se preocupam com os que estão sofrendo
o abandono e o desamparo ao seu redor.
A alegria de sermos discípulos e missionários de Jesus Cristo vem da
certeza da fé que brota da confiança de que Deus sempre esteve, se faz
presente e caminha com seu Povo e nunca o abandona em suas necessi-
dades. É um tipo de alegria que serena o coração e capacita a pessoa para
anunciar que o Reino de Deus se aproximou na pessoa de Jesus, morto e
ressuscitado. A alegria que somos chamados a irradiar é aquela que sur-
ge do fato e da convicção de que fomos, antes de tudo, pessoalmente es-
colhidos, tocados e chamados por Deus, pelo próprio nome, para partici-
par da missão divina de Jesus de tornar visível o Reino de seu Pai. Reino
que se faz presente entre nós pela nossa participação no mistério pascal
da vida, morte e ressurreição de Jesus, mas que ainda não fora suficien-
temente acolhido e vivido em nossa realidade histórica, porque pecamos
– não vivemos a santidade – e agimos contrariamente à presença atuante
desse mesmo Reino no meio de nós. A alegria vem do entusiasmo, da
presença, em nós, do Espírito de Deus, que nos foi dado com nosso Ba-
tismo, e que nos impulsiona para a transformação do mundo, promoven-
do a dignidade da vida humana em todo o seu percurso, valorizando a fa-
mília, o trabalho, a ciência e a tecnologia, respeitando a biodiversidade
dos bens naturais. Conhecendo, valorizando e respeitando as diversas
formas de vida que se desenvolvem em nosso planeta, teremos condi-
ções de assegurar a vida de nosso Continente, marcado e movido pela
força da esperança e do amor. Sendo a fé portadora e anunciadora da es-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 59

perança de vir a existir “um novo céu e de uma nova terra” (Ap 21,1),
vale a pena acolher a exortação do Apóstolo que diz: “Alegrai-vos no
Senhor o tempo todo; eu repito, alegrai-vos” (Fil 4,4).
A comunhão. O conceito bíblico e teológico de “comunhão” vem re-
tomado como um verdadeiro chamado à co-responsabilidade dentro da
Igreja. A auto-compreensão do Mistério da Igreja e de sua missão na
vida no mundo supõe a inclusão de todos os seus membros na responsa-
bilidade do anúncio de Jesus e seu Reino. A experiência de comunhão
vai encontrando seus canais de expressão na abertura da Igreja à partici-
pação dos leigos e das leigas em todas as instâncias de planejamento e de
tomada de decisão em relação ao trabalho de evangelização e de suas
atividades pastorais. As entidades e os organismos que estão ligados às
estruturas eclesiais têm a finalidade de favorecer e desenvolver as res-
ponsabilidades de todos os membros na condução do destino da vida da
Igreja na vida dos povos da América Latina. Esta experiência de comu-
nhão é fruto de uma espiritualidade que encontra sua raiz na participa-
ção, por graça, de toda a Igreja na comunhão de vida do Deus Uno e Tri-
no. Esta participação só é possível por causa da ação do Espírito que
provoca o encontro pessoal de cada membro da Igreja com a pessoa de
Jesus Cristo. Portanto, a comunhão na Igreja não é uma simples expe-
riência de participação democrática, mas, para além dela, é a própria
realidade da vida cristã que brota da relação de íntima comunhão do Pai
com o Filho, na unidade que fortalece e cria laços profundos, pois se dá
pelo amor do Espírito Santo “que foi derramado em nossos corações”
(cf. Rm 5,5). Cada cristão católico participa desta comunhão trinitária,
que, por sua vez, se desenvolve e cresce em consciência e ação dentro de
um processo formativo que tem como ponto de partida a preparação e a
vivência dos sacramentos da iniciação à vida cristã e atinge sua maturi-
dade pela catequese permanente que acontece em diversos lugares e es-
paços onde os discípulos missionários têm a oportunidade de freqüentar
e ter acesso às informações e aos cursos relacionados com a vida e a mis-
são da Igreja.
Aparecida recorda que as lideranças da Igreja estão a serviço da pro-
moção da comunhão e da animação dos demais membros, cada um exer-
cendo sua missão, segundo seu próprio carisma, sua própria identidade e
função: os Bispos promovem a comunhão, participando do múnus de
“Jesus Sumo Sacerdote”; os presbíteros, participando do múnus de “Je-
sus Bom Pastor”; os diáconos permanentes participando do múnus de
“Jesus Servidor”; os fiéis leigos e leigas, participando do múnus de “Je-
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sus Luz do Mundo”; e todos os consagrados e consagradas participando


do múnus de “Jesus Testemunha do Pai”. Embora os serviços sejam
apresentados de maneira hierárquica, não significa, porém, que uns se-
jam mais importantes, mais dignos ou, até mesmo, portadores de mais
responsabilidade que os outros. Na perspectiva da concepção eclesioló-
gica de que “toda a Igreja é ministerial”, não faz sentido estabelecer cri-
térios de valor e de dignidade entre os diversos ministérios e carismas
que são promovidos e desenvolvidos em toda a Igreja. Desta forma, to-
dos os membros da Igreja, participando desta união intrínseca com Je-
sus, na sua maneira “pluriministerial” de agir e de estar a serviço da hu-
manidade, apresentar-se-á ao mundo como verdadeira luz para os po-
vos, pois será “sacramento ou sinal e instrumento da intima união com
Deus e da unidade de todo gênero humano” (Lumen Gentium, 1).
A formação. A formação é outro elemento importante quando leva-
mos em consideração a realidade pluricultural e religiosa de nosso Con-
tinente. A realidade da globalização, vivida em seus mais diversos as-
pectos e matizes, tem afetado diretamente as convicções, os valores, as
atitudes e as práticas das pessoas. Inúmeros são os questionamentos que
se fazem à fé, às crenças, à moral e aos costumes católicos. Sem uma
preparação sólida ou sem a qualificação necessária para “dar a razão de
sua esperança” (1Pd 3,15), o católico comum será facilmente absorvido
e cooptado pelas ideologias e crenças que procuram preencher as lacu-
nas deixadas por uma evangelização e catequese que não atingiram a vi-
vência dos valores fundamentais da vida nem provocaram ou desperta-
ram a importância de ir mais além do que fora aprendido na infância, por
ocasião da preparação para a recepção dos sacramentos da iniciação cris-
tã. Mais do que nunca, a Igreja vem tomando consciência de que ela pre-
cisa investir “pesado” na formação de seus quadros, em todos os níveis
de sua presença na sociedade, não apenas no nível de preparação e for-
mação daqueles que irão exercer o ministério presbiteral. Hoje, mais do
antes, os católicos são desafiados a forjar sua própria identidade, deven-
do contar com o apoio efetivo de seus pastores e ministros, através de
uma formação séria e continuada, para que possam transitar com tran-
qüilidade num mundo plural que questiona os dados já conhecidos e
provoca as convicções e os valores adquiridos pela educação religiosa
ou familiar. E, para dar as razões de nossa fé, dizer o porquê de nossa
crença em Deus, em Jesus Cristo e em sua Igreja e saber expressar essas
razões para aqueles que não compartilham da mesma fé, é preciso estu-
dar e conhecer. E o conhecimento vem da aprendizagem das próprias vi-
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vências e experiências adquiridas ao longo da vida, como também dos


saberes que são compartilhados, de maneira sistemática, pelo conheci-
mento acumulado e transmitido por muitos.
Estamos inseridos numa cultura do conhecimento e do domínio da
informação em todos os níveis. Quem não está bem informado, quem
não sabe ou quem não conhece estará cada vez mais fora da realidade e
ficará excluído do processo de integração sócio-cultural. Encontramos
muita lacuna, muita falta de conhecimento dos rudimentos da fé cristã
não só por parte daqueles que foram privados da educação formal, mas
também por parte daqueles católicos que se encontram nos níveis médio
e superior da educação formal. Por isso, é mais do que necessário e opor-
tuno para o mundo de hoje que o Documento de Aparecida chame a
atenção ou até mesmo procure exortar e convocar todos os católicos
para que busquem se informar melhor sobre sua fé e procurem despertar
para um renovado desejo de conhecer a pessoa de Jesus mais “interna-
mente”, mais experienciadamente como companheiro e amigo, como o
sentido e a razão de ser da existência humana, como também conhecer
melhor sua Igreja, como comunidade do Corpo de Cristo atuante na his-
tória, como portadora da esperança e sinalizadora e indicadora de que o
mundo circundante está “prenhe” da bondade e da santidade do amor in-
condicional do Pai, que deseja que todos o conheçam e experimentem
seu amor em Jesus, seu Filho, nosso Salvador.
Uma Igreja alegre, bem formada, bem preparada, qualificada nos
seus quadros e nas suas lideranças, desinstala-se de seu comodismo e de
sua tibieza e converte-se num verdadeiro pólo de irradiação e de atração
da vida e esperança dos povos da América Latina, encontrando-se, as-
sim, “todas as razões e motivações que permitam converter cada cristão
em discípulo missionário” (362).
Tendo presente estes três modos de atração ou de referência para a
vivência da identidade cristã – a alegria, a comunhão e a formação –,
aprofundemos o que nos diz o Capítulo IV da segunda parte do Docu-
mento sobre “A vocação dos discípulos e missionários à santidade”.

2. O conceito de santidade e sua re-significação prática

Em primeiro lugar, penso que seja oportuno fazer algumas conside-


rações sobre o termo santidade. Isso, porque a noção de “santidade” po-
derá vir, espontaneamente, associada a uma determinada prática de pie-
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dade ou de devoção que, sem uma prévia observação e atenção, poderá


reforçar a compreensão superficial ou equivocada do termo.
Antes de tudo, é preciso libertar a palavra “santidade” de sua forte
carga cultural e religiosa, solidamente construída e desenvolvida ao lon-
go destes séculos da “primeira” evangelização pela qual passou o povo
brasileiro. A noção ainda freqüente e marcante de santidade traz consigo
uma compreensão do sagrado como algo reservado ao mundo restrita e
estritamente divino. Isso, por causa da força da experiência de uma fé vi-
vida no contexto de uma religiosidade popular pouco esclarecida ou de-
sassistida de um acompanhamento mais teologicamente qualificado, fa-
vorecendo o desenvolvimento de uma espiritualidade cristã desvincula-
da de uma sã teologia. Para muitas pessoas católicas, o “sagrado” é algo
que está simplesmente separado da vida cotidiana ou, então, é alguma
coisa que aparece “dissolvida” nas ações ou nos ritos dos cultos que se
prestam à divindade e que são celebrados no interior de um recinto reli-
gioso. Este, também é concebido como um lugar separado e distinto de
todas as outras coisas da vida cotidiana.
Por muitos séculos, a prática do cristianismo católico, profundamen-
te devocional e marcado pelo culto e pela devoção aos santos, ressaltan-
do suas virtudes morais e seu poder taumaturgo, ajudou a formar e a re-
gistrar no inconsciente religioso e coletivo do povo cristão e católico
este forte e denso significado da santidade em termos de “sacralidade”.
Atribuiu-se ao termo uma forte conotação de “espaço” reservado a al-
guns privilegiados que, por concessão e por graça especial, poderiam ter
acesso ao mundo do divino e do transcendente. O termo, então, ficou re-
duzido a essa compreensão totalmente distante da vida do comum dos
mortais. Esta concepção não só condicionou, mas também determinou a
vivência e a compreensão do significado da palavra “santidade” e do seu
correlativo adjetivo substantivado: “santo”. Desta forma, “santas” são
consideradas apenas aquelas pessoas que foram colocadas nos altares
das igrejas por possuírem determinados dons e realizarem prodígios em
favor dos simples mortais e pecadores que suplicam por sua intercessão.
A santidade está, assim, reservada àquele santo ou àquela santa que vem
em socorro, por prodígios e milagres, às necessidades de seus devotos.
Neste sentido, a santidade pertence aos que foram declarados oficial-
mente santos pela Igreja e que hoje são cultuados de maneira pública pe-
los fiéis devotos. “Santidade” e “santo” são aspectos da realidade huma-
na vividos de maneira, se não isolada, ao menos, distante do cotidiano
das relações sociais que determinam a qualidade de vida da coletivida-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 63

de, pois os santos apenas cuidam das pessoas em sua individualidade


com suas necessidades pessoais. Se os santos e as santas possuem dons
especiais e extraordinários, estes são concedidos pela benevolência di-
vina para ajudar ao devoto a resolver seus problemas particulares. A
“santidade” seria, então, uma espécie de experiência relacional do hu-
mano com o divino que se dá de maneira separada da vida da coletivida-
de, entendida como um todo orgânico e, conseqüentemente, indepen-
dente da realidade social e histórica que é construída pelas forças sociais
que constituem e determinam a vida de toda sociedade. O histórico, o
contingente, o ordinário e o cotidiano da vida, enquanto aspectos mobi-
lizadores do devir sócio-político de um país ou de uma determinada re-
gião ou cidade são relegados a um segundo plano, quando se trata de
considerar ou de atribuir a santidade a alguma pessoa. O santo não se en-
volve na tarefa de transformar o mundo, especialmente com a política,
com a economia, com a vida cultural da sociedade. Ele não tem participa-
ção ativa e responsável no trabalho de promoção e de transformação das
relações que podem ser criadas ou determinadas pela sociedade e que po-
dem estabelecer o sentido da justiça e da fraternidade no cotidiano da vida
das pessoas. Aliás, segundo esta visão, todas estas coisas da vida humana
são tidas e consideradas como realidades por demais “mundanas” e “pro-
fanas” e, enquanto tais estão e devem estar fora do âmbito do sagrado, do
religioso, do que é tido como santo, não podendo, assim, ser colocadas
em relação com uma pessoa que é considerada santa.

A perspectiva bíblico-teológica da santidade


Este conceito de santidade acima apresentado já foi superado há mui-
to tempo. A concepção de santidade como algo externo que nos atinge
de “cima para baixo” ou como algum tipo de experiência que pode ser
vivida fora da vida concreta é alheia à originalidade das experiências bí-
blica e cristã, que sempre procuraram manter unidas – porque nunca es-
tiveram separadas – as diversas dimensões da pessoa humana. Biblica-
mente falando, a experiência de Deus, do divino e do transcendente sem-
pre se deu em meio às realidades humanas e, às vezes, com elas se con-
fundindo. Embora o homem, o ser humano, “Adam”, mantendo sua re-
lação própria e finita com a “Adamah” – a terra cultivável de onde ele é
modelado –, recebe de seu Criador, Javé – Aquele que é e que dá o ser e o
existir a todas as coisas –, o sopro da vida, a vitalidade capaz de estabele-
cer o vinculo indissolúvel com Ele, que sopra. A partir daí, desta união
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inseparável entre o divino e o humano que atingiu a sua plenitude na


“união hipostática” da pessoa do Verbo de Deus em Jesus de Nazaré,
“não mais se separará o que Deus uniu”: vida divina e vida humana, o
sagrado e o humano, conferindo ao humano toda dignidade.
A Sagrada Escritura sempre procurou apresentar a revelação de Deus
como a de alguém que se aproxima, que se torna próximo e amigo do ser
humano, participando da vida, da história, das lutas e labutas de toda
pessoa de boa vontade que se abre ao seu desígnio salvífico. Daí encon-
trarmos fortes antropomorfismos sobre Deus na linguagem bíblica, so-
bretudo a veterotestamentária, e sobre suas relações com o ser humano.
Basta ler os primeiros capítulos do Livro do Gênesis para se ter a idéia
de um Deus familiar, que passeia pelos jardins da terra, que se preocupa
com o bem-estar da humanidade, colocando tudo o que fora criado à dis-
posição do ser humano. Ele não é apenas um Deus que cria, mas é um
Deus que ama, que está atento às necessidades humanas, que sabe ajudar
as pessoas diante das ameaças da vida, mesmo que tenham sido infiéis
ao projeto de construir a si mesmas e à sua história no exercício da pró-
pria liberdade. O Deus Bom não deixa a pessoa humana entregue à sua
própria sorte. Por isso, delicadamente cobre com as “vestes” da ternura e
da compaixão a pessoa humana diante de sua própria fragilidade (Gn
3,21) e protege sua integridade física diante de possíveis atentados con-
tra sua vida, mesmo que tenha cometido o grave delito da violência con-
tra a vida de um irmão (Gn 4,15b). O Deus Bom ensina que a violência
não se justifica pela prática da violência. A vida humana é sagrada, é
santa, é o dom dos dons que Ele nos dá. Por ser bom o Bom Deus é que
Ele permanece amigo e solidário com a pessoa humana, mesmo que esta
lhe tenha sido infiel no compromisso de ser guardiã da vida. Ele veio e
vem, pessoalmente, pelo envio do Filho que tanto ama e pela doação do
Espírito que restaura a vida caída, em busca da “ovelha perdida da casa
de Israel”. E, com os mais sofridos e abandonados, compartilha sua vida
e seu destino. Senta-se à mesa com eles, torna-se um deles e, como um
deles, morre na cruz. E, restaurando e elevando a humanidade, definiti-
vamente, à condição divina, ressuscita e está no meio de nós como Aque-
le que é para sempre.
Poderíamos dizer que a noção de santidade, em termos bíblicos, ad-
quire sua síntese e sua condensação máxima nas expressões: “Sejam
perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”, do evangelista Mateus
(5,48), e “Sejam misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”, do
evangelista Lucas (6,36). A expressão de Mateus aparece no contexto de
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 65

seu primeiro grande discurso, o assim chamado “Sermão da Montanha”,


onde Jesus apresenta o programa de santidade de todo discípulo. A ex-
pressão de Lucas aparece no contexto mais amplo do ministério de Je-
sus, na Galiléia, “lugar teológico” da manifestação do amor misericor-
dioso de Deus pelos mais pobres e desvalidos que ele vai encontrando
no caminho rumo a Jerusalém, “lugar teológico” do amor salvífico de
Deus. Embora recebam matizes diferentes pela perspectiva teológica
que cada um dos autores tem, tanto Mateus quanto Lucas apresentam o
ideal da vida cristã como seguimento de Jesus a partir da acolhida e da
vivência destas duas categorias que se complementam mutuamente: a
categoria da perfeição e a da misericórdia.
A experiência de “perfeição”, proposta pelo evangelista Mateus, pre-
cisa ser bem entendida e, quem sabe, depurada de muitas distorções ou
de muitos equívocos de compreensão. Esta noção bíblica sofreu uma de-
terminada influência, ao longo do tempo, por causa de um tipo de espiri-
tualidade e de ascese cristãs profundamente condicionadas pela mentali-
dade de uma época que marcou profundamente a Igreja no que diz respei-
to à sua visão de pessoa humana. Embora não seja aqui nosso intuito dis-
correr sobre a questão da evolução do conceito de perfeição na história
da Igreja, podemos dizer que o conceito de perfeição humana, aplicado
à vivência da santidade, se constituiu num grande desafio a ser ardua-
mente enfrentado pelos discípulos e discípulas de Cristo. Um desafio muito
maior ainda para as pessoas que abraçavam a vida religiosa como o cami-
nho mais perfeito de atingir a santidade no seguimento de Cristo. É incon-
testável o fato de que toda a vida religiosa tenha sido marcada pelo dina-
mismo da “perfeição”, caracterizado pela vivência dos conselhos evan-
gélicos professados pelos votos de pobreza, castidade e obediência.
Em poucas palavras, podemos dizer que a “perfeição”, no Evange-
lho de Mateus, consiste em procurar realizar, “com todo ânimo e toda li-
beralidade”, diria Santo Inácio, a Justiça do Reino de Deus que é a dis-
posição livre e deliberada da pessoa de acolher a vontade de Deus em
sua vida e realizá-la, como Jesus, em sua existência concreta. A perfei-
ção do Pai, que é a perfeição da bondade e do amor que não colocam
condições para amar, acolher e aceitar, é o ideal da vida que se deixa
conduzir pelo Espírito de Deus. Portanto, o ideal de toda espiritualidade.
Neste sentido, somos dinamizados e “pro-vocados” a dar sempre o que
há de melhor em nós, o que há de mais nobre e mais sublime dentro de
nós em termos de sentimentos, de ideais, de abertura e de vivência dos
valores evangélicos. É por isso que “nossa justiça”, nossa santidade, é
66 J. de A. Lima Costa

chamada a superar a “justiça dos escribas e dos fariseus”, descentrali-


zando-a das aparências e das ostentações para centrá-la no “único e ne-
cessário”, que é a permissão livre e libertadora do “domínio” de Deus
em nossa vida.
Lucas define o ideal da vida de seguimento de Jesus – ou o exercício
da santidade, aqui para nós – a partir de uma categoria que lhe é muita
cara em todo seu evangelho: a misericórdia. A misericórdia é o senti-
mento profundo que move as “entranhas” de Jesus em sua relação com
os necessitados de todos os níveis e de todas as condições sociais e reli-
giosas. O Jesus de Lucas é todo misericórdia e cheio de compaixão por
seus conterrâneos e contemporâneos que se encontram à margem da
vida. Livre de toda posição sectarista e preconceituosa, Jesus é capaz de
criar as condições necessárias para tirar a pessoa da situação desfavorá-
vel e desumana em que se encontra, devolvendo-lhe a dignidade e o res-
peito (cf. Lc 7,36-50 – o episódio da mulher perdoada pelo Amor e por-
que tanto amou; e 8,26-38 – o episódio do homem liberto das forças do
mal que o lançava fora do convívio social, para citar apenas dois exem-
plos). Por isso, Jesus será definido pelo mesmo Lucas nos Atos dos Após-
tolos como “Aquele que passou a vida fazendo o bem” (10,38), princi-
palmente aos mais pobres e desvalidos da sociedade de seu tempo.
Portanto, em termos de linguagem e expressão literária, não há, na
Bíblia, separação, mas influência, intercâmbio e confluência entre o di-
vino e o humano. Deus e Homem são duas realidades que, embora dis-
tintas e não se confundindo uma com a outra, estão intimamente ligadas
e – por que não? – condicionadas, uma vez que, em se tratando de rela-
ções interpessoais, um se deixa afetar pela outro, sem, contudo, perder a
identidade própria que os distingue. Deus sempre esteve presente na
vida humana e dela vem participando desde as suas origens. Para sermos
ainda mais precisos, Deus é a origem de tudo e tudo converge e conver-
girá para Ele, através de Jesus (cf. Ef 1,3-14). Deus é a origem e o desti-
no de todas as coisas. Ele quis assim: que o mundo fosse dele e Ele esti-
vesse sempre presente no mundo para que este mundo pudesse atingir
sua plenitude e sua salvação. O mundo sem Deus não pode atingir sua
perfeição, sua completude, sua finalidade, sua evolução propriamente
dita, pois está impregnado da força atrativa do seu Criador. O mundo,
porém, não é Deus – panteísmo – como também Deus não é o mundo.
Nem Deus pode ser reduzido ao conhecimento humano que o mundo
tem de Deus. A razão humana, quando entregue ás próprias forças, ou
fechada ao à sua prepotência e egoísmo, não pode ter acesso ao Deus
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 67

verdadeiro. Na linguagem inaciana, fazendo os Exercícios Espirituais,


aprendemos a acolher e a aceitar livre e algremente, que somos criaturas
que se relacionam com seu Criador e Senhor e que, somente com sua gra-
ça, somos capazes de encontrar e realizar sua vontade a nosso respeito.
Assim, se nós somos capazes de ter acesso a Deus é porque Ele mes-
mo nos oferece condições para isso: “O mandamento que hoje te dou
não está acima de tuas forças, nem fora de teu alcance. Pois a Palavra
está perto de ti, na tua boca e no teu coração: e tu a podes cumprir” (Dt
30,11-14). É este mesmo Deus Criador e Senhor que nos capacita (homo
capax Dei) para com Ele fazermos a experiência de comunhão, de ami-
zade e de interação, sem deixarmos, os humanos, de ser criaturas, tam-
pouco Deus deixar de ser Criador. A santidade hoje é compreendida
como um chamado que Deus faz a toda pessoa que queira dispor de sua
vida para colocá-la no caminho do seguimento de Jesus, o Santo por ex-
celência, por expressar, plenamente, em toda e com toda sua vida, o es-
plendor de Deus.
Dentro desta visão e compreensão da profunda e real interação e co-
munhão de Deus com o ser humano e deste com Deus, é que compreen-
demos o significado e o alcance da santidade. A possibilidade da expe-
riência de uma vida santa, portanto, não está, em primeiro lugar, em sua
capacidade de estar separada da vida cotidiana, ordinária, efêmera, que
todos nós vivemos e enfrentamos no desenrolar do dia-a-dia de nossa
existência. Pelo contrário, a vida santa assume a própria realidade terres-
tre como meio e instrumento da relação com Deus. Assim sendo, a santi-
dade é um estado ou uma condição habitual de vida humana em que a pró-
pria pessoa, animada e sempre guiada pelo Espírito de Deus que nela ha-
bita, conduz todas as suas intenções e ações para a construção do Reino de
Deus onde ela mesma se encontra, desenvolvendo suas atividades e assu-
mindo suas tarefas e responsabilidades. Toda e qualquer pessoa tem vo-
cação à santidade, porque esta nada mais é do que a busca sincera da co-
munhão com Deus, fonte de toda vida, e da comunhão com os irmãos e
as irmãs, fonte de toda vida que queira ser vivida com sentido.

3. A santidade no Documento de Aparecida

Antes de nos adentrarmos no conceito ou na noção de santidade que


deixa transparecer o Documento de Aparecida, gostaria de fazer alusão
a um outro documento que tem marcado a história da Igreja e, por isso
68 J. de A. Lima Costa

mesmo, tem se tornado de fundamental importância para o resgate da


verdadeira compreensão da santidade e de sua manifestação e vivência
na vida humana de todos os cristãos católicos. Este documento da Igreja
tem sido fonte de inspiração e tem trazido um renovado vigor apostólico
para todas as pessoas que se dedicaram e que ainda se dedicam e se em-
penham na missão de evangelizar com sua vida e com seu testemunho
de seguimento de Jesus. Trata-se do texto da Lumen Gentium, do Concílio
Vaticano II.
É na perspectiva do chamado à santidade que Deus faz a todos os
fiéis católicos que se situa tanto o texto da Constituição Dogmática Lu-
men Gentium (LG), do Vaticano II, quanto o Capítulo IV do Documento
de Aparecida. Por ser um documento que trata da vida e da compreensão
da realidade intrínseca da Igreja católica, a LG quer ressaltar que a pos-
sibilidade de se fazer a experiência da santidade é um dom de Deus aber-
to a todos e um bem destinado a todas as pessoas de boa vontade que,
acolhendo a graça de Deus, entendem e colocam suas vidas, não em fun-
ção de si mesmas, mas em função do que toda vida santa é chamada a ser
e a realizar: transformar o mundo para que este conheça, acolha e ame a
razão de ser da existência, que é Deus. “Estes fiéis, pelo batismo, foram
incorporados a Cristo, constituídos membros do povo de Deus e, a seu
modo, tornaram-se partícipes do múnus sacerdotal, profético e régio de
Cristo, pelo que exercem sua parte na missão de todo o povo cristão na
Igreja e no mundo” (LG 31). Mais categoricamente diz o referido docu-
mento: “... todos, no entanto, são chamados à santidade e receberam a
mesma fé pela justiça de Deus” (LG 80). Assim, de maneira quase insis-
tente, a LG, aqui e em outras passagens, afirma a santidade como projeto
de vida para todos os cristãos católicos (cf. 100, 101, 102, 114).
Nesta mesma linha segue o Documento de Aparecida, dando ênfase
e desenvolvendo um pouco mais o aspecto cristológico da compreensão
da vida humana como lugar de expressão da vida santa que busca e faz
emergir de dentro de si mesma sua santidade. E aqui, o Documento pare-
ce querer resgatar o conceito de “imitação”, ao propor que os discípulos
sejam parecidos com o mestre. Á primeira vista esta expressão, “pareci-
dos com o mestre”, associada ou relacionada ao conceito de “imitação”,
poderá parecer ultrapassada ou que foi simplesmente utilizada como ten-
tativa de se promover uma volta ao passado, a uma espiritualidade medie-
val, fortemente desenvolvida pela assim chamada Devotio Moderna (Mo-
vimento de renovação religiosa e de reação crítica ao estado de decadên-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 69

cia espiritual em que se encontrava a Europa da segunda metade do sé-


culo XIV). A Devotio Moderna via no incentivo, entre os cristãos co-
muns, dos exercícios das virtudes e da prática das obras de misericórdia
a possibilidade de se chegar à comunhão com Cristo, através de sua
“imitação”. Para atingir esse objetivo, era de fundamental importância a
prática da ascese, cuja finalidade era ordenar e regular a vida interior,
procurando vencer a si mesmo e a seus afetos desordenados, pela con-
templação e imitação de Cristo, sobretudo do mistério de sua paixão e de
seu sofrimento, como força e inspiração para viver os sofrimentos e as
dores da vida de cada dia, presentes na vida do cristão. Pela simplicida-
de, praticidade e pelo alcance de sua proposta, a espiritualidade da imi-
tação de Cristo foi se expandindo e adquirindo sua “cidadania” entre os
católicos, através da publicação da obra Imitação de Cristo, atribuída ao
alemão Tomas Kempis (1380-1471). Passando por várias edições, essa
obra tornou-se um grande sucesso editorial. Trata-se, na realidade, de
uma espécie de manual de vida espiritual, propondo a seus leitores a
contemplação dos mistérios da vida de Cristo, em vista de sua imitação.
O caráter intimista da Imitação de Cristo é superado pela justa com-
preensão que tem o Documento de Aparecida sobre a santidade, ao si-
tuá-la no contexto bíblico da História da Salvação. Assim, a origem últi-
ma da santidade está no “êxodo” de Deus Pai que, ao sair de si mesmo,
nos faz participar de sua vida e de sua glória em Cristo Jesus. Este “êxo-
do de Deus” se compagina com o êxodo vivido pelo povo nas suas mais
diversas manifestações: desde a libertação dos opressores do Egito até a
experiência de libertação dos ídolos da morte, pela revelação e ação de
Jesus, que manifesta e diz que Deus, Seu Pai, “não é um Deus dos mor-
tos, mas dos vivos” (Mc 12,27).
A santidade, portanto, tem sua fonte no próprio Deus, que é O Santo
por excelência. A santidade de Deus é seu amor, sua bondade. Jesus en-
sina que “só Deus é bom” (Mc 10,18). Isso também nós proclamamos
em nossa liturgia quando rezamos “Na verdade, ó Pai, vós sois santo e
fonte de toda santidade” (Oração Eucarística II). Por ter sua origem em
Deus Pai, a santidade é um dom que nos é concedido por nossa partici-
pação na Filiação Divina de Jesus que nos é gratuitamente concedida
pela força e ação do Espírito Santo em nós: “Ó Deus, desde a criação do
mundo fazeis o bem a cada um de nós para sermos santos como vós sois
santo” (Oração Eucarística VII). É a partir desta perspectiva teológica
que o Documento de Aparecida nos ajudará a compreender em que con-
70 J. de A. Lima Costa

siste a experiência de santidade dos discípulos e missionários de Jesus


Cristo, tanto na sua origem quanto nas suas peculiaridades e característi-
cas fundamentais.

3.1 A origem da santidade


Pelo mistério da encarnação do Filho de Deus, a participação da vida
humana na vida divina – a santidade – se dá única e exclusivamente atra-
vés da relação que se mantém com a pessoa de Jesus Cristo pela ação de
seu Espírito em nós. O Documento de Aparecida situa a origem da santi-
dade no vínculo que estabelecemos com Jesus, através de um encontro
pessoal com Ele. A experiência do encontro pessoal, evocada no Docu-
mento de Aparecida (131), é de fundamental importância para a com-
preensão do que seja a santidade do discípulo e da discípula de Jesus. O
emprego da categoria do “encontro” ajuda a evitar que se entenda a san-
tidade como algo mágico e “autônomo”, como se o fato de “ser santo”
dependesse do esforço ou de uma ascese pessoal. É por isso que não bas-
ta simplesmente ser batizado para poder considerar a vida da pessoa
como uma vida santa ou marcada pela graça da presença divina. Do pon-
to de vista da Graça de Deus, sim, pois Ele permanece sempre fiel na do-
ação de si mesmo e na relação de entrega pessoal à sua criatura. Mas do
ponto de vista da resposta da pessoa humana é necessário que sua liber-
dade entre em ação, para que a pessoa possa manifestar, em plenitude,
sua condição humana e dentro dela a santidade. E é justamente aqui que
entra o risco de não correspondermos à santidade de vida a que fomos
chamados. E, se não correspondemos, não só realizamos o plano de Deus,
mas também nos frustramos em nossa humanidade. Sendo livres, pode-
mos dizer “não” a Deus, não nos conformando à vivência do mistério
pascal de Cristo em nós. Nosso Batismo, portanto, não garante por si só
a santidade de nossa vida. A novidade trazida pelo Batismo está no fato
de que ele cria o vinculo sacramental da relação da pessoa humana com
Deus, em Jesus Cristo, pela ação do Espírito, mas não age de tal forma
na pessoa, muito menos numa criança, que “determine” seus atos e atitu-
des independentes do exercício de sua liberdade. O Batismo, quando li-
vremente assumido, dá, por assim dizer, a possibilidade de viver de “for-
ma visível e corporal” a vida de santidade no Seguimento de Jesus, por-
que insere ou enxerta a pessoa, pela ação do Espírito Santo, no Corpo
Visível de Cristo, sua Igreja. Por isso, o encontro pessoal com Jesus é in-
dispensável para a vida de santidade do discípulo. Mas esta nova criatu-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 71

ra, surgida do “mergulho nas águas”, precisará encontrar espaço para se


desenvolver como discípula e missionária de Cristo ao longo de todo um
processo formativo que deverá acontecer no interior da própria família,
contando com o apoio indispensável da comunidade eclesial, através de
suas estruturas, cada vez mais criativas e voltadas para a formação e a
evangelização do mundo atual.
É importante perceber como também fazer notar que o vinculo que
se estabelece ou que cria uma profunda união – santidade – entre vida di-
vina e vida humana ou entre Jesus e seus discípulos não é descrito no
Documento em termos de realidade abstrata ou metafísica, mas como
diálogo, relação, convivência, ligação. O diálogo é motivado pelo con-
vite que Jesus faz para que toda pessoa possa se encontrar verdadeira-
mente com Ele. A experiência do encontro é algo fundante, envolvente e
determinante para a vida do discípulo e missionário de Jesus, porque é a
partir deste encontro pessoal que se cria o vínculo indissolúvel pela es-
colha livre que Ele faz, dá-se a convivência fraterna provocada pela pro-
ximidade, que, conseqüentemente, fará surgir a comunidade, o compa-
nheirismo e a amizade em torno Dele e por causa Dele. “O discípulo ex-
perimenta que a vinculação íntima com Jesus no grupo dos seus é parti-
cipação da Vida saída das entranhas do Pai...” (131).
Todas as expressões vitais necessárias para a manutenção da vida
humana integrada, harmonizada e realizada, ou seja, da vida que se de-
seja santa, são apresentadas pelo Documento de Aparecida de maneira
bastante viva, plástica, dando um outro rosto e apresentado uma nova vi-
talidade ao chamado à santidade. A experiência da santidade é assim
apresentada: ser de Jesus, fazer parte da comunidade “dos seus”, não
sendo servos, mas amigos, irmãos, filhos do mesmo Pai celestial de quem
partilhamos, em Jesus e por Jesus, a mesma vida. Jesus participa da san-
tidade de Deus por natureza e nós por participação na sua filiação divina
pela força do Espírito. Formamos assim a sua família e assumimos, de
modo solidário, o grito do irmão na cruz de ontem e de hoje, entrando as-
sim na dinâmica do serviço prestado pelo Bom Samaritano que se torna
próximo, como Deus se torna próximo da pessoa humana, dos mais po-
bres, dos que mais sofrem as conseqüências da falta do exercício da san-
tidade no mundo, redimindo seus males e alcançando o perdão de seus
pecados (132-135).
A origem de toda santidade está, portanto, nesta Fonte de Vida que
jorra de Deus Pai. Está na proximidade de Deus que vê o sofrimento de
seu povo, ouve seus gritos, conhece toda sua dor e, por isso, solidaria-
72 J. de A. Lima Costa

mente desce para libertá-lo (Ex 3,7-8). Sua realidade mais profunda fin-
ca raízes na prática e na participação da vida e missão do Filho deste
Deus Amoroso que assumiu toda a pessoa e a pessoa toda, para que esta
não mais se “esqueça” de sua condição divina, porque surgida das mãos
do Divino Criador. Sua força vem da presença contínua do Espírito na
vida humana, transformando e conduzindo todas as coisas para Deus,
para que Ele seja tudo em todas as coisas.

3.2 Características da santidade


Quando identificada com o discipulado de Cristo, podemos detectar
no Capitulo IV do Documento de Aparecida as seguintes características
da santidade:
a) A santidade é cristocêntrica, pois, entendida como seguimento de
Jesus, é, fundamentalmente, a experiência do chamado de Deus à confi-
guração a Cristo (136-142). Por isso, a vocação dos discípulos à santida-
de vem logo relacionada com o fato do discípulo se “parecer com o Mes-
tre”. Não se trata, evidentemente, da semelhança dos traços físicos, mas
da radicalidade ou da raiz profunda que liga o “sim” do discípulo ao cha-
mado do Mestre, que livremente o chama e se coloca em sua vida como
o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6). Embora seja definitivo o “sim”
dado livremente pelo discípulo como resposta ao amor incondicional e
gratuito de Deus, Aquele que o amou por primeiro, isso não significa
que o discípulo não irá passar por um processo de amadurecimento de
sua entrega e de sua adesão à pessoa de Jesus, que o chamou e o deseja
perto de si para ser enviado em missão (Mc 3,13-14).
As três realidades da vida de Jesus – Caminho, Verdade e Vida –,
apresentadas por João, colocam em evidência o significado vital de sua
pessoa para aqueles que procuram segui-lo. Ser caminho na vida de al-
guém é traçar com ele todos os seus projetos, todas as suas metas, con-
quistas e todos os seus objetivos. Ser verdade é constituir-se como res-
posta para todos os anseios e todas as buscas que se manifestam na vida.
Ser vida é tornar-se razão de ser e de existir, é encontrar a força necessá-
ria para continuar caminhando na vida, com sentido. Apresentando-se
como “caminho, verdade e vida”, Jesus quer ser o “lugar” ou o “espaço”
humano-divino de todas as buscas e realizações. Os seguidores de Jesus,
enquanto parecidos com o Mestre, podem, como João Batista, “apontar
para Jesus” (cf. Jo 1,36) como Aquele que é capaz de dar sentido à histó-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 73

ria humana, porque a faz resplandecer em sua beleza ao “tirar o pecado


do mundo”, como “cordeiro pascal”.
O discípulo aponta para o Mestre e sabe reconhecer sua verdadeira
condição de discípulo e “de ser um eterno aprendiz”, como diz o poeta
Gonzaguinha. Por isso, jamais terá a ousadia ou a pretensão de querer
ocupar o lugar único e definitivo que pertence a Jesus na vida e na histó-
ria de cada pessoa humana. Jesus Cristo é único e Filho único de Deus
Pai. Como também é o único Salvador da Humanidade. “Ninguém vai
ao Pai senão por mim” (Jo 14,6), ou seja, ninguém poderá realizar o an-
seio de comunhão com Deus – por quem fomos criados, para quem so-
mos destinados e em quem poderemos encontrar a plenitude de nossa
realização –, senão através de Jesus, por Jesus e em Jesus, conduzidos
por Seu Espírito.
Assim sendo, os seguidores de Jesus, atraídos por Ele, ficam verda-
deiramente parecidos com seu Mestre, quando assumem “a centralidade
do Mandamento do amor” que é o “diferencial de cada cristão”, “carac-
terística de toda a Igreja” e forma mais adequada de dar testemunho e de
ser reconhecido como discípulo de Jesus (138). Desta maneira, Apareci-
da está colocando em evidência o fundamental do cristão, que é a prática
do amor a Deus, de onde brota a prática do amor ao próximo, próximo,
que, em Lucas, é sempre aquele que se encontra em estado de necessida-
de. Em Aparecida, a constatação da pobreza em que está mergulhada a
maioria dos nossos povos não é uma grandeza abstrata que serve para
medir os dados estatísticos do índice de desenvolvimento humano de
um país. A pobreza tem uma feição humana e, em nossos dias, está se
expressando em “novos rostos” (402) e vem assumindo novos contor-
nos sociais e culturais. Amor a Deus, ao Pai, vivido e praticado plena-
mente por Jesus “de todo coração, de toda a alma, com toda a força e
com todo o entendimento, e ao próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27), é
a referência prática fundamental dos discípulos que buscam ser “pareci-
dos com o seu Mestre”.
Quando identificada com o seguimento de Jesus, a santidade de vida
do discípulo passa pela prática das Bem-aventuranças do Reino, pela
“compaixão entranhável” pelos sofredores, pela “proximidade aos po-
bres e pequenos”, pela “fidelidade à missão” e ao “amor que leva à doa-
ção da vida” (139). A vivência de tudo isso levará à identificação do dis-
cípulo com o Mestre e seu destino será como o de seu Senhor: a perse-
guição e a morte de cruz (140). E, de forma inusitada, Aparecida reco-
74 J. de A. Lima Costa

nhece “os mártires de ontem e de hoje”, numa clara alusão aos mártires
de nossas cidades e comunidades que foram perseguidos, torturados e
assassinados por causa do Reino e sua Justiça.
b) A santidade é mariológica, pois tem Maria como imagem e mode-
lo de santidade. Um Continente marcadamente mariano não poderia dei-
xar de buscar em Maria um ponto de referência para viver a santidade no
seguimento de Jesus. Através de Maria, a “beleza do ser humano” (141)
é destacada pelo vínculo de amor que se estabelece com a Trindade e
pela capacidade de toda pessoa de responder positivamente a seus ape-
los. Os dogmas marianos da Imaculada Conceição e da Assunção são re-
cordados dentro do contexto da beleza da pessoa humana, “obra prima”
da Beleza por excelência que é Deus no seu agir bondoso que “olha para
a humildade de sua serva” (Lc 1,48).
c) A santidade é bíblica e sacramental, pois se alimenta da Palavra
de Deus e dos Sacramentos (142). A Bíblia e a prática dos Sacramentos
são as duas referências fundamentais de toda pessoa que procura seguir
Jesus e, por seu seguimento, manifesta a realidade de sua vida santa. A
escuta da Palavra de Deus remete o discípulo à experiência de abrir seu
coração na intimidade do encontro dialogal com o Pai e, com Jesus, pela
atuação do Espírito, fala de suas experiências, preocupações, temores,
elevando seus braços e apresentado a Ele os clamores do seu povo sofri-
do. Foi assim que fizeram Jesus e Maria, buscando discernir a vontade
do Pai em todas as situações de suas vidas.
Mas, o discípulo também se alimenta do Pão da Vida que a Igreja,
solidária em sua caminhada de santidade, distribui como “alimento salu-
tar”, fortalecendo e ajudando a fazer e a refazer a trajetória da vida hu-
mana. A Eucaristia é fonte de vida e de esperança; é experiência de ante-
cipação, na contingência da história, do Reino do Pai e de sua comunhão
com Ele que, pelo Filho e no Espírito Santo, já acontece entre nós. A reu-
nião eucarística ajuda a visualizar e antecipar na história o reinado de
Deus, pois é Ele que constrói a fraternidade entre nós pelo perdão de to-
das as nossas dívidas, celebrado na reconciliação oferecida pela Igreja
através de seus sacramentos. O discípulo, embora seguindo a Jesus, ain-
da não atingiu aquela maturidade do discipulado que um dia o levará a
dizer e a vivenciar plenamente “que nem a morte nem a vida... nem o
presente nem o futuro, nem os poderes... nem nenhuma outra criatura
poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso
Senhor” (Rm 8,38). A fraqueza, o desânimo, as contradições, as infideli-
Vocação à santidade no Doc. de Aparecida 75

dades são realidades freqüentes na vida do discípulo. Em seu peregrinar,


existem falha, erro e equívocos que levam a ferir a santidade própria e a
da Igreja, Corpo de Cristo. O discípulo necessita, portanto, da compai-
xão do próprio Cristo, que sempre lhe oferece a possibilidade de restau-
rar e refazer sua vida no amor e na oblação de si, através do Sacramento
da Reconciliação.
d) A santidade é martiriológica, pois vive impulsionada pela dinâ-
mica do mistério pascal de Cristo. Paixão, dor, morte e ressurreição são
realidades que fazem parte de toda vida humana. Mas, quando estas vi-
vências humanas são frutos do compromisso de fidelidade ao Pai, pelo
seguimento da pessoa de Jesus, e do anúncio de sua mensagem, elas as-
sumem um caráter martiriológico, por vincular o testemunho do discí-
pulo ao testemunho de Cristo. O martírio de muitos seguidores de Cristo
que atuam na América latina, hoje reconhecido oficialmente pela Igreja
de nosso Continente, tem sido, como sempre, não só semente de novos
cristãos, mas também motivo de renovação do ardor missionário de mui-
tos que passam a desejar engrossar as fileiras do seguimento de Jesus em
muitas regiões marcadas por sofrimentos e conflitos de todos os gêne-
ros. O martírio é a expressão máxima do seguimento de Jesus quando se
dá a identificação do discípulo com o Mestre em termos de conseqüên-
cia e destino de vida.
e) A santidade é missionária, pois nasce da intima união com Cristo,
o Enviado por excelência do Pai, que é anunciado e compartilhado por
todos que o seguem. O anúncio, alegre e contagiante, fruto do encontro
pessoal com Cristo, levará e despertará em cada pessoa, a quem o discí-
pulo se dirigirá com sua palavra e com o seu testemunho, o desejo de ter
o insubstituível encontro pessoal com Aquele que é a razão de ser de toda
existência. De fato, “quando o discípulo está apaixonado por Cristo, não
pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele nos salva (At 4,12)” (146).
Com toda ênfase, Aparecida reafirma o compromisso do caráter missio-
nário de quem fez e faz a experiência do encontro pessoal e transforma-
dor de sua vida com Jesus: “Cumprir essa missão não é tarefa opcional,
mas parte integrante da identidade cristã” (144).
f) A santidade é pneumatológica, pois ela é animada pela presença e
atuação do Espírito Santo na vida da pessoa. Este Espírito, que sempre es-
teve presente e atuante na vida de Jesus, desde o “seio” Paterno, em sua
geração no seio materno de Maria, em seu batismo, no exercício de seu
ministério entre o povo, nos encontros de oração com o Pai, nos momen-
tos de agonia e de dor, continua presente na vida de seus discípulos e dis-
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cípulas missionários. Este mesmo Espírito gera a Igreja e distribui seus


dons (1Cor 12,4-11), para que ela possa manter-se firme e fiel no cumpri-
mento de sua missão no mundo. A missão da Igreja é um dom do Espírito
para o mundo. A Igreja existe em função do mundo e para o mundo; e a
presença do Espírito na Igreja é para que o mundo creia na Palavra Viva
de Deus, que continua atuante pelo Cristo Ressuscitado, que salva e liber-
ta o mundo de toda opressão e escravidão pela força e pelo testemunho de
vida solidária e compassiva de seus discípulos e discípulas.
O Documento de Aparecida encerra o Capítulo IV da segunda parte
sobre a expereiência da “vocação dos discípulos missionários à santida-
de” (153), tirando todas as conseqüências do que fora anteriormente dito
e explicitado a partir da realidade pneumatológica e sacramental da Igre-
ja. Esta relação entre pneumatologia e sacramentos constitui a dinâmica
e a razão de ser de todo discipulado, pois é pelo fato do Espírito Santo
atuar na Igreja e em seus Sacramentos que podemos ser conduzidos à
comunhão trinitária, razão de ser de toda vida santa.
Endereço do Autor:
Capela de Lourdes
Av. Governador José Malcher, 1169
Nazaré
66055-260 Belém – PA/BRASIL
E-mail: josedabahia@diocesano.g12.br

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