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A PIEDADE POPULAR E A LITURGIA A PARTIR DAS NOVAS DIRETRIZES

DA IGREJA NO BRASIL

Pe. Cristóvão Dworak, CSsR1

Introdução

Ao estudar as atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil


2015-2019 é possível perceber em muitas de suas afirmações aqueles aspectos que
podem ser também aplicadas à piedade popular, ou ainda àquelas que esta carrega
dentro do seu bojo. No Diretório sobre a Piedade Popular e Liturgia ela é entendida,
como o universo de “diversas manifestações cultuais de caráter privado ou comunitário
que, no âmbito da fé cristã, se expressam geralmente não com os módulos da sagrada
Liturgia, mas nas formas particulares derivadas do gênio de um povo ou de uma etnia e
da sua cultura”. 2
A expressão direta referente à piedade popular encontra-se expressa no número 88
do Capítulo IV, das atuais Diretrizes, que fala das perspectivas de ação, e onde se faz
referência à Igreja como casa da iniciação à vida cristã:

As muitas manifestações da piedade popular católica precisam ser valorizadas e


estimuladas e, onde for necessário, purificadas. Tais práticas têm grande
significado para a preservação e transmissão da fé e para a iniciação à vida
cristã, bem como para a promoção da cultura (cf. EG, n. 122-126). “As
expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe
ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção particularmente na
hora de pensar a nova evangelização” (EG, n. 126).

As luzes da Sacrosanctum concilium sobre a prática da piedade

Antes, porém, de falar mais diretamente das atuais Diretrizes, é preciso lembrar que
a reforma litúrgica promovida pelo Concilio Vaticano II (SC, n. 1), ao falar da natureza
e da importância da Liturgia na vida da Igreja, tratou também da piedade popular (SC,
n. 13). Isto porque, segundo o Concilio, a vida e a espiritualidade cristã não se resumem
unicamente na participação na sagrada liturgia (cf. SC, n. 12), mesmo que ela seja
considerada cume de sua ação e fonte de sua força (cf. SC, n. 10). A vida e a
espiritualidade cristã estendem-se, expressam-se e manifestam-se de diversas maneiras,
como atesta o Livro dos Atos dos Apóstolos: “Eles eram perseverantes em ouvir o

1
Este texto foi publicado no subsidio Liturgia na ação evangelizadora: Uma leitura litúrgica das
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (CNBB, Brasília: Edições CNBB, 2015),
da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB.
2
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 9.
ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações” (At
2, 42). Entre estas principais ações que marcam a vida dos cristãos, marcada pelo
seguimento de Cristo, coube um lugar peculiar às orações, também àquelas elevadas ao
Pai, individualmente, num lugar deserto (cf. Mc 1,14), numa montanha (Mc 6,46), no
Horto (Mc 14,35), no Santuário, em meio aos peregrinos (Lc 2,43) ou no silêncio de um
quarto (cf. Mt 6,6), ou ainda, no alto da Cruz (cf. Lc 23, 34.46).
Ao longo da história do cristianismo desenvolveram-se, influenciadas pelo tempo e
pelas culturas locais, diversas formas de oração e de piedade diferentes da liturgia
oficial. Elas passaram fazer parte das práticas religiosas do cristianismo, especialmente,
quando a liturgia ficou menos compreensível ao povo, e tornou-se cada vez mais
clericalizada e complicada. Desta maneira, durante muito tempo, a piedade popular
proporcionava o ambiente propício e privilegiado do encontro com o Senhor, não
obstante dos limites que apresentava, causados por uma catequese, por vezes, frágil e
superficial.

As Novas Diretrizes e a piedade popular

Como então entender o número 88 das atuais Diretrizes? O que a piedade popular
traz para o grande processo de ação evangelizadora no Brasil marcado pelas profundas
transformações e mudanças?
As Diretrizes sugerem que diante dos desafios e das urgências no campo da
evangelização:

 A piedade popular com suas múltiplas manifestações precisa ser valorizada e


estimulada, e onde for necessário, purificada. Deste modo, pode se afirmar, que não
somente os sacramentos, os sacramentais e outras celebrações litúrgicas da Igreja
são os lugares e momentos propícios do encontro com o Senhor e possuem um papel
fundamental na missão evangelizadora (cf. DGAE, n. 46). A piedade popular com
suas múltiplas manifestações constitui-se como um espaço e uma realidade na qual,
e através da qual, o povo de Deus vive e celebra o seu encontro com o Cristo
Senhor, muitas vezes carinhosamente chamado de Bom Jesus. Por isso, ela precisa
ser valorizada e estimulada. É preciso também superar, através de estudo, de
aproximação e de conhecimento mais aprofundado, aquelas visões reducionistas que
a apresentavam como “crendices” do povo sem grande valor e importância religiosa
e teológica. A sua valorização leva também às necessárias purificações em vista de
amadurecimento e consolidação da fé em Jesus Cristo “fonte de tudo o que a Igreja
é e de tudo o que ele crê” (DGAE, n. 4).

 A piedade popular tem grande significado para a preservação e transmissão da fé,


e para a iniciação. Para entender esta afirmação das Diretrizes basta lembrar a
importância das orações, das festas dos padroeiros com suas novenas repletas de
ladainhas, de rezas fortes, de jaculatórias e de benditos acompanhados de rica
ritualidade para o surgimento e amadurecimento da fé. Pensamos ainda nas
caminhadas e romarias aos lugares santos, especialmente aos santuários e nas
histórias sagradas com eles ligadas. Reflitamos sobre os textos e formulas de
orações que são expressão de confiança em Deus que acode os fieis em todos os
momentos de vida e de morte. Ponderemos sobre as imagens sagradas, que contém
em si as expressões dos salvificos acontecimentos da fé cristã, como, por exemplo: o
Presépio, o Cristo Sofredor, a Via-sacra, a Cruz, o Senhor dos Passos, a sepultura do
Senhor Morto, entre outras. Pensamos nas histórias dos santos e santas, verdadeiros
heróis na fé e no seguimento dos passos de Jesus. Reflitamos sobre os Ofícios,
terços, ladainhas, oratórios, bênçãos e rezas repletas de referências aos textos
bíblicos e à história sagrada do povo de Deus. Todos estes elementos tornaram-se
um verdadeiro processo iniciático para muitas gerações dos cristãos no passado e
ainda hoje.

 A piedade popular é um espaço privilegiado para a promoção da cultura. A vida


religiosa está ligada e acontece numa sociedade marcada por uma cultura ou uma
diversidade de culturas. Por isso, a fé cristã, e de modo especial, a piedade popular,
com sua rica ritualidade repleta de símbolos e sinais sagrados, tende a concretizar-se
“em cada tempo e lugar, de acordo com o jeito de ser de cada povo, de cada cultura”
(DGAE, n. 9), e manifestar-se através de expressões linguísticas e de arte próprias
aos povos que acolheram a Boa Nova de Jesus. Deste modo, ela contribui
significativamente não só com a preservação de múltiplos elementos culturais de
determinados povos, mas também as enriquece com novos valores e assegura a sua
existência.

 A piedade popular é um lugar teológico. Deste modo as Diretrizes reconhecem nela


um ambiente de reflexão sobre a fé e a partir da fé sempre comprometido com os
problemas concretos. Também aqui pode ser averiguado o principio que rege a
liturgia oficial: lex orandi, lex credendi, isto é, reza-se no que se crê, e acredita-se
no que se reza (cf. DGAE, n. 46). A teologia que ela apresenta não é uma teologia
fechada e sistematicamente já desenvolvida, mas antes celebrativa, expressa nos
símbolos, sinais, cantos, formas poéticas, linguagens próprias que proporcionam
sempre novas aproximações de Deus e asseguram o acesso aos próprios mistérios
divinos.

 A piedade popular precisa ser levada em consideração no processo da nova


evangelização. A nova evangelização não anulada a importância dos métodos que
acompanharam os caminhos de evangelização do continente Latino-Americano, mas
sim, lança sobre eles um olhar crítico, a fim de poder responder melhor aos desafios
da hora atual. No processo de evangelização, a piedade popular foi uma dos meios
de grande importância na inculturação do evangelho no Brasil. Por isso, diante dos
desafios que encontramos no atual mundo pluricultural e secularizado, a piedade
popular, também hoje, demonstra uma grande capacidade de inculturação, isto,
porque, como afirma o Papa Francisco, na Evangelii gaudium, nela subjaz a força
ativamente evangelizadora que não pode ser subestimada (cf. EG, n. 126).

Conclusão

Na Igreja “em saída”, que vive em estado de tensão permanente de missão (cf. DGAE,
n. 13), a piedade popular tem seu lugar preciso. Ela não pode mais ser vista hoje como
um fenômeno marginal ou pouco significativo liturgicamente e teologicamente. Ao
contrário, nas principais ações da Igreja, isto é, na ação evangelizadora, celebrativa e
caritativa deve ser dada a ela uma atenção maior. Isto, porque através de sua expressão
sócio religiosa e cultural, alimentada pela oração e ritualidade, sopro do Espírito, ela
contribui com a construção de um mundo para que todos tenham vida, enquanto rumam
ao Reino definitivo.

Bibliografia consultada

CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferância Geral do


Episcopado Latino- Americano r do Caribe. São Paulo/Brasilia: Edições CNBB/Paulus/
Paulinas, 2007.

CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019.


Documentos da CNBB 102. São Paulo: Paulinas, 2015.

CONCÍLIO VATICANI II. Constituição Sacrosanctum concilium sobre a Sagrada


Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2002.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS


SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e
orientações. São Paulo: Paulinas, 2003.

GERHARDS, Albert; KRANEMANN, Benedikt. Introdução à Liturgia. São Paulo:


Loyola, 2012.

PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium – A alegria do


Evangelho sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2013.

TERRIN, A.N.; CASTELLANO, J. Religiosidade popular e liturgia. In: SARTORE,


Domenico; TRIACCA, Achille M. (org.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, 2ª ed., p. 1006-1021.

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