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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL,

UNIDADE SÃO PAULO, CAMPUS PIO XI

Ronei Costa Martins Silva

O LUGAR DA ASSEMBLEIA:
A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL

São Paulo
2020
CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL,
UNIDADE SÃO PAULO, CAMPUS PIO XI

Ronei Costa Martins Silva

O LUGAR DA ASSEMBLEIA:
A MORFOLOGIA DO LUGAR DA ASSEMBLEIA E SUA
CORRELAÇÃO COM O SENTIDO DE CRISTO TOTAL

Monografia apresentada como exigência parcial


para a obtenção do título de Especialista
em Espaço Litúrgico, Arquitetura e Arte Sacra, no
Curso de Pós-graduação lato sensu do Centro
Universitário Salesiano – Campus Pio XI, sob a
orientação da Profa. Dra. Maria Ângela Vilhena
M. F. de Almeida.

São Paulo
2020
Silva, Ronei Costa Martins
S583L O lugar da assembleia: a morfologia do lugar da assembleia e sua
correlação com o sentido de Cristo total / Ronei Costa Martins Silva. –
São Paulo: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, 2020.
118 f. ; 30 cm.

Monografia (Pós Graduação Latu Sensu em Espaço Litúrgico,


Arquitetura e Arte Sacra) - UNISAL – Unidade/Pio XI.
Orientadora: Maria Ângela Vilhena M. F. de Almeida
Inclui bibliografia

1. Espaço litúrgico. 2. Lugar da assembleia. 3. Arquitetura do lugar


da assembleia. I. Almeida, Maria Ângela Vilhena M. F. de. III. Título.
IV. Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard. V. Centro Universitário
Salesiano de São Paulo.
CDU 264
Ficha catalográfica elaborada Miriam Ambrosio Silva – Bibliotecária CRB 5760/8
UNISAL - Unidade São Paulo/Pio XI
À comunidade cristã católica paróquia de São Paulo apóstolo
a qual pertenço desde a mais tenra idade
e que me inspirou para este caminho.
AGRADECIMENTOS

Ao setor de Espaço Litúrgico da CNBB, na pessoa do Prof. Ms. Thiago


Aparecido Faccini Paro, que articulou e promoveu esta pós-graduação;
A UNISAL, Campus PIO XI, na pessoa da professora Ms. Elza Helena de
Abreu, que igualmente promoveu e coordenou este importante curso;
À querida orientadora, professora Dra. Maria Ângela Vilhena M. F. de Almeida,
pela frutuosa orientação;
Aos mestres que se doaram e iluminaram os caminhos pelos quais todos
trilhamos, fazendo com que hoje nos tornássemos um pouco de cada um deles;
Aos amigos que pudemos conhecer, encontrar e cultivar durante estes dias
intensos de estudos;
Aos colegas de turma, cuja terna lembrança estará viva para sempre no
coração;
E, por fim, mas não menos relevante, agradeço à minha amada esposa Juliana,
que suportou firmemente os meses de ausência e distância, logo na fase mais
importante de nossas vidas: o nascimento e primeiros meses de nosso filho, Benício.
Mas já que se há de escrever,
Que ao menos não se esmaguem
Com as palavras as entrelinhas
O melhor ainda não foi escrito
O melhor está nas entrelinhas.
(Clarice Lispector)1

1
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco. 1999. p. 19.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11

1 Capítulo primeiro: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ASSEMBLEIAS


LITÚRGICAS CRISTÃS ......................................................................................14
1.1 Das primeiras comunidades ao Concílio Vaticano II .......................................14
1.2 O Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II .............................................23

2 Capítulo segundo: QUESTÕES TEOLÓGICAS ................................................26


2.1 A contribuição da Teologia Paulina ................................................................26
2.2 Assembleia litúrgica e comunidade cristã .......................................................34

3 Capítulo terceiro: QUESTÕES SOCIOLÓGICAS ..............................................40


3.1 As tensões simbólicas no lugar litúrgico .........................................................40
3.2 Conceito de espaço e lugar ............................................................................48
3.3 A coexistência de diferenças não assimiladas ...............................................55

4 Capítulo quarto: A ASSEMBLEIA LITÚRGICA .................................................56


4.1 Assembleia litúrgica: sujeito integral da celebração .......................................56
4.2 O lugar da assembleia ....................................................................................64
4.3 O tamanho das casas da igreja ......................................................................72

5 Capítulo quinto: QUESTÕES PRÁTICAS .........................................................79


5.1 A morfologia do lugar da assembleia..............................................................79
5.2 A edificação do lugar da assembleia – a prática ...........................................98

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 110

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 115


ABREVIATURAS E SIGLAS

apud citado por


cf. confer (confira, confronte)
col. coleção
ed. edição
Ibid. ibidem (na mesma obra)
ID. Idem (= o mesmo autor)
n. número; números
Org./ Orgs. Organizador / organizadores
p. página / páginas
v. volume

At Atos dos Apóstolos

Cl Colossenses

1Cor 1º Carta aos Coríntios

2Cor 2º Carta aos Coríntios

Fl Carta aos Filipenses

Hb Carta aos Hebreus

CELAM Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

IGMR Introdução Geral do Missal Romano

RB Ritual de Bênçãos

RD Ritual de Dedicação de igreja e de altar.

SC Sacrosanctum Concilium. Constituição conciliar sobre a Sagrada


Liturgia
RESUMO

Este trabalho propõe um convite à reflexão acerca da coerência entre o sentido


de Corpo Total (Corpo Místico de Cristo) e o lugar que este Corpo, chamado Igreja,
utiliza para se encontrar. A partir de uma abordagem interdisciplinar, passando pela
história, pela teologia e pela sociologia, pretendemos direcionar os olhares para a
concepção morfológica do lugar do encontro e, olhando para ele, respondermos duas
perguntas: os atuais lugares da assembleia litúrgica são capazes de promover a
percepção do Corpo de Cristo, por parte de cada um de seus membros? Os atuais
lugares são capazes de estimular o encontro relacional, caminho mais eficiente para
se fortalecer os vínculos afetivos, como cimento que une as partes num todo
indivisível? Considerando a hipótese de, em nossa opinião, estes lugares, com raras
exceções, estarem aquém da necessária percepção de Corpo, por parte dos
membros, perseguiremos o desafio de propor a qualificação do lugar da assembleia,
tornando-o um ambiente afetivo, no qual as pessoas possam interagir umas com as
outras, diferentemente do que se observava nos templos medievais, e na maioria das
igrejas atuais, nas quais a interação é desestimulada e a impessoalidade e o
individualismo potencializados. Então, inspirados pela herança dos primeiros cristãos
e pela riqueza teológica deixada por Paulo de Tarso, partiremos da cristologia para a
eclesiologia e destas para a arquitetura, buscando compreender o sentido de
comunidade, para enfim propormos a conformação de um lugar que não iniba, mas
estimule e promova a vivencia em comunitária.

Palavras-chave: Cristologia. Eclesiologia. Assembleia. Arquitetura.


ABSTRACT

This piece of work proposes an invitation to reflect on the coherence between


the meaning of Total Body (Mystical Body of Christ) and the place that this Body, called
Church, uses to find itself. From an interdisciplinary approach, going through history,
theology and sociology, we intend to direct our eyes to the morphological conception
of the meeting place and, looking at it, we answer two questions: the current places of
the liturgical assembly are able to promote the perception of the Body of Christ by each
of its members? Are the current places able to stimulate the relational encounter, the
most efficient way to strengthen the affective bonds, as a cement that unites the parts
in an indivisible whole? Considering the hypothesis that, in our opinion, these places,
with rare exceptions, fall short of the necessary perception of the Body, by the
members, we will pursue the challenge of proposing the qualification of the place of
the assembly, making it an affective environment, in which people can interact with
each other, unlike what was observed in medieval temples, and in most of today's
churches, in which interaction is discouraged and impersonality and individualism
potentiated. Thus, inspired by the heritage of the first Christians and by the theological
wealth left by Paulo de Tarso, we will start from Christology to ecclesiology and from
these to architecture, seeking to understand the sense of community, in order to finally
propose the formation of a place that does not inhibit, but encourage and promote
community experience.

Keywords: Christology. Ecclesiology. Members. Architecture.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 01. Sala dos cavalheiros do Palácio de Rothenfels (1928). Quatro


possibilidades de utilização do espaço .......................................................... 67
Ilustração 02. Capela Palatina de Carlos Magno .................................................................69
Ilustração 03. Esquema de um encontro cristão. .................................................................81
Ilustração 04. Modelo síntese de assembleias que desestimulam a vivência e a
percepção do corpo místico ..........................................................................82
Ilustração 05. Esquema de uma celebração eucarística ......................................................83
Ilustração 06. Esquema de uma disposição imprópria para uma celebração .......................85
Ilustração 07. Esquema de uma disposição mais adequada para uma celebração ..............86
Ilustração 08. Axialidade escatológica. ................................................................................88
Ilustração 09. Esquema: centralidade e axialidade .............................................................. 91
Ilustração 10. Dimensões da cadeira utilizada. ....................................................................94
Ilustração 11. Tipo 01 – convergência de 0º ........................................................................94
Ilustração 12. Tipo 02 – convergência de 45º ......................................................................95
Ilustração 13. Tipo 03 – convergência de 90º ......................................................................95
Ilustração 14. Tipo 04 – convergência de 180º ....................................................................96
Ilustração 15. Tipo 05 – convergência de 270º ....................................................................97
Ilustração 16. Tipo 06 – convergência de 360º ....................................................................97
Ilustração 17. Croqui capela São José de Anchieta ............................................................. 99
Ilustração 18. Planta humanizada da capela São José de Anchieta ................................. 101
Ilustração 19. Maquete digital da capela São José de Anchieta ........................................ 102
Ilustração 20. Maquete digital da capela São José de Anchieta ....................................... 103
Ilustração 21. Planta da Casa da Igreja Santo Antônio ..................................................... 104
Ilustração 22. Maquete Digital Casa da Igreja Santo Antônio ............................................ 105
Ilustração 23. Planta da casa da Igreja Nossa Senhora das Graças. ................................ 106
Ilustração 24. Foto da igreja em dia de celebração. .......................................................... 106
Ilustração 25. Planta da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes ............................... 107
Ilustração 26. Foto da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes.................................. 108
Ilustração 27. Planta da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes ............................... 109
Ilustração 28. Maquete digital – Nossa Senhora de Lourdes ............................................ 109
Ilustração 29. Maquete digital – Nossa Senhora de Lourdes ............................................ 110
11

INTRODUÇÃO

(...) e se o senhor sente com temor que Deus também não existe
agora, neste momento em que falamos d’Ele -, então de que lhe vale
sentir falta d’Ele, que nunca existiu, como de algo passado, e procurá-
lo como se o tivesse perdido? Por que não pensar que Ele é aquele
que está por vir, aquele que se encontra diante da eternidade, o futuro,
o derradeiro fruto de uma árvore cujas folhas somos nós?
Reiner Maria Rilke2

As cartas escritas por Rilke e endereçadas a Franz Xavier Kappus, cuja reunião
resultou em seu livro mais conhecido, “Cartas a um jovem poeta”, revelam
questionamentos valorosos sobre a vida, a partir da vivência do autor. O trecho acima
foi extraído de uma carta que Rilke encaminha ao seu amigo por ocasião da
celebração do Natal. A carta, entretanto, desenvolve-se a partir de uma singela e
potente reflexão acerca da solidão. Entretanto, o que nos interessa aqui é o trecho
pescado e acima oferecido. Neste trecho específico, Rilke reflete com o amigo sobre
a sua crise de fé e da existência de Deus. Rilke, então, sugere uma analogia
interessante, propõe ele que Deus pode ser o derradeiro fruto de uma árvore cujas
folhas somos todos nós.

Vejamos o profundo sentido desta alegoria: as folhas são órgãos vegetais


indispensáveis para uma árvore. Será através das folhas que uma árvore consegue
absorver a luz solar e o gás carbônico para o processo de fotossíntese. Sem as folhas
não há árvore, muito menos fruto. Ao propor, em sua parábola, que Deus é o
derradeiro fruto de uma árvore cujas folhas somos nós, Rilke coloca em nossas mãos,
potencializadas pela graça, a responsabilidade pelo advento do Reino de Deus. Mais
ainda, de nada adianta uma árvore ter apenas uma única folha, ou algumas poucas
folhas. Para sua sustentação, serão necessárias milhares, centenas de milhares de
folhas. Assim, Rilke ainda nos ajuda a compreender que o advento do Reino não será
tarefa de alguns poucos, de um grupo seleto, mas de todos.

Entretanto é necessário lembrar que a folha, separada do tronco, perece, ou


seja, sua vocação é realizada somente se estiver conectada à árvore, numa

2
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta, 12. ed. Porto Alegre: Globo, 1984, p. 37.
12

retroalimentação vital, ou seja, somente a vida em comunidade pode proporcionar os


meios necessários para o advento do Reino.

Neste esteio, proporemos, ao longo deste estudo, reflexões sobre o lugar do


encontro, no qual haverá a união destas folhas que se pretendem, uma vez vinculadas
ao tronco, serem, juntas, o meio pelo qual acontecerá o advento do Reino de Deus.

Lembremos, inicialmente, que este lugar do encontro é testemunho da fé, lugar


simbólico maior da formação da identidade cristã 3. Enzo Bianchi, afirma que:

O espaço litúrgico cristão é, com efeito, também ele liturgia. Esta


verdade para nós irrenunciável atesta que a arquitetura litúrgica não o
é se não for fruto do encontro entre a “ars celebrandi” e a “ars
aedificandi”4

Fica evidente o papel fundamental da arquitetura do espaço litúrgico que,


combinada com a vivência da mistagogia cristã, compõem um dos fundamentos da
formação da cristandade, tal como diz Bianchi: “O edifício-igreja de ‘facto’ edifica a
Igreja. Como a ‘ecclesia mater’, também o espaço de uma igreja é uma autêntica
matriz espiritual na qual mulheres e homens cristãos são gerados para a fé.”5

Percebendo a potencialidade contida pelas paredes da casa da Igreja,


trataremos da questão apresentada no título desta monografia, porém, antes, será
preciso considerar a simbiose entre a resplandecência do Mistério Pascal e o
acolhimento ao povo de Deus. São estes os dois eixos em torno dos quais orbitam
todas as demais temáticas relativas ao espaço litúrgico e sua imagem teológica. Muito
embora, para efeito de análise considera-se dois eixos separados, a vivência pastoral
ensina que não há separação evidente entre os temas. Ambos se interconectam,
fundindo-se numa única massa por meio da qual se molda a experimentação da
mística cristã intraparedes, nos espaços de oração: os sinais visíveis, que apontam
para o invisível, contribuindo nesta busca pelo transcendente por meio do imanente e
o povo reunido que faz esta experiência mística.

3
BIANCHI, Enzo. Igrejas para as cidades de hoje. In Monastero di Bose. Secretariado Nacional da
Pastoral da Cultura, Lisboa. Disponível em:
https://www.snpcultura.org/igrejas_para_as_cidades_de_hoje.html. Acesso em: 29 jan. 2020.
4
Ibid.
5
Ibid.
13

Dos dois eixos aqui sugeridos, este ensaio dedicará atenção ao segundo, o
acolhimento ao Povo de Deus, que aqui será abordado a partir da espacialidade, da
arquitetura: o lugar da assembleia.

Na maioria das igrejas, o lugar da assembleia é, em regra geral, preterido.


Costuma-se pensar com zelo e esmero o presbitério, lugares devocionais e capelas,
deixando-se em segundo plano a nave. Percebe-se um triste paradoxo: a despeito de
que a presença de Cristo acontece primeiramente na comunidade reunida em oração,
conforme vemos nos Evangelhos, os costumes vivenciados na contemporaneidade
negam esta premissa. Nota-se uma espiritualidade ambígua: se vê Cristo em sinais
das artes sacras e litúrgicas, mas ignora-se sua presença primordial na assembleia
reunida.

O desprestígio do lugar da assembleia é, entretanto, fruto de um processo


histórico doloroso, que será oportunamente abordado nas páginas vindouras, em vista
de sua compreensão e desejada superação.

As reflexões acerca do lugar destinado à assembleia litúrgica, nos templos


cristãos católicos, é uma instigante forma de se pensar a Igreja. Para tanto,
fundamentaremos nossas análises numa abordagem interdisciplinar partindo da
teologia, com a contribuição de inúmeros prestigiados pensadores.

Em seguida ofereceremos um pequeno tratado sociológico sobre as tensões


simbólicas existentes no espaço litúrgico e a ideia conceitual de espaço e lugar para
que possamos compreender os fenômenos sociais pertencentes ao lugar da
assembleia.

Em seguida estudaremos a assembleia a partir de uma perspectiva


eclesiológica, qualificando-a como sujeito integral da celebração litúrgica, para então
ousarmos propor um estudo da forma arquitetônica que possa bem acolher a todos e,
mais ainda, promover a vivência dos valores comunitários/cristãos.

Por fim, será apresentado um apanhado de quatro projetos de arquitetura para


o espaço litúrgico, que foram concebidos à luz das teorias aqui desenvolvidas.

Esta pesquisa pretende, finalmente, propor caminhos que possam ajudar as


comunidades cristãs católicas a conceberem espaços litúrgicos que promovam a
percepção clara do sentido de Cristo Total, na e para a comunidade.
14

Capítulo primeiro
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ASSEMBLEIAS LITÚRGICAS CRISTÃS

As coisas mudam no devagar


depressa dos tempos.
(Guimarães Rosa).6

Neste capítulo, traçaremos uma linha evolutiva das assembleias cristãs.


Partindo das primeiras comunidades, veremos a expansão do cristianismo no século
III, a clericalizarão e o distanciamento da comunidade das celebrações que vigorou
em toda a Idade Média, até chegarmos ao resgate da herança das primeiras
comunidades, proposto pelo movimento litúrgico, com desfecho no Concílio Vaticano II.

1.1 Das primeiras comunidades ao Concílio Vaticano II

Não é possível se falar em arquitetura cristã na era do cristianismo primitivo,


nos três primeiros séculos. Isto se dá em razão de que os encontros neste período
ocorriam em residências cedidas por seguidores e suas famílias. Por conseguinte,
também não é possível encontrar elementos que contribuam para uma análise do
espaço litúrgico dentro da perspectiva deste estudo.

O que se pode auferir, baseado nas pesquisas existentes e nos registros


neotestamentários, é sobre a liturgia existente nestes encontros. E, a partir destas
referências, buscar compreender o espaço nos quais os cristãos se encontravam.

Considerando que os evangelhos foram redigidos entre os anos 70 e 100, a


partir de diversas fontes, como a fonte Q7, por exemplo, a partir de saberes
transmitidos pela tradição oral e considerando, ainda, que neste período as
comunidades já se reuniam costumeiramente para celebrar, é bastante plausível que
a concepção do conteúdo dos evangelhos e a vivência litúrgica das primeiras
comunidades tenham acontecido em simbiose: uma interdependente da outra. Xabier

6
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 35.
7
A fonte Q é uma hipotética fonte usada na redação do Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas.
E definida como um material de conteúdo comum encontrado em Mateus e Lucas.
15

Basurko defende que: “a Bíblia foi o primeiro livro litúrgico da comunidade a inspirar a
pregação e a prece” e complementa: “falta acrescentar que o culto comunitário teve
um notável papel na própria gestação do Novo Testamento.”8

Estando Xabier correto, pode-se apreciar as Sagradas Escrituras com um olhar


especial para a dinâmica das primeiras comunidades.

No livro do Atos dos Apóstolos se encontra a sugestão da dinâmica das


comunidades cristãs quando reunidas. A reunião das comunidades primitivas incluía
o ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna (koinonia), a fração do pão e as
orações (Atos dos Apóstolos 2,42).9

Pensemos sobre a koinonia. Segundo Xabier Basurko, este elemento


integrante da assembleia litúrgica possuía dois significados. O primeiro sentido refere-
se à refeição em grupo e, o segundo, à coleta de donativos para as pessoas em estado
de necessidade10.

Ambas as dimensões da koinonia revelam algo interessante: a vida


comunitária, tanto na refeição em grupo, quando comiam juntos ao redor de uma
mesa, ou várias, quanto na coleta de donativos, quando os cristãos se uniam para
socorrer alguém em estado de penúria. Duas dimensões profundamente significativas
e que mostram a radicalidade do sentido de vida em comum. Nada de sofismas. Ali,
naquelas comunidades, experimentava-se na prática uma vida cristã autêntica.
Obviamente que havia, entre elas, algumas comunidades que se recusavam a viver
segundo esses princípios. Quando tratarmos da contribuição da teologia Paulina,
veremos que a comunidade de Corinto, por exemplo, foi repreendida por Paulo por se
negar a viver a partilha.

A reunião dos cristãos nas casas, conforme se extrai do livro do Atos dos
Apóstolos, possuía sempre duas formas básicas de celebração: a Palavra e o
banquete comum11. Primeiro faziam memória dos feitos de Jesus. Aqueles que
presenciaram a trajetória do Nazareno ou que receberam, via tradição oral, os relatos
de seus feitos, compartilhavam com os membros da assembleia. Após esta partilha,

8
BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 41.
9
BÍBLIA: Tradução Ecumênica. TEB. São Paulo: Loyola, 2000.
10
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 51.
11
Cf. Ibid., p. 53.
16

daquilo que seria o embrião dos Evangelhos, eles se reuniam em torno de uma mesa
para banquetear. Esta herança persiste até os dias atuais, de forma simbólica, nas
liturgias da Palavra e da Eucaristia, que estruturam a celebração da missa.

Os ambientes nos quais os primeiros cristãos se encontravam eram,


provavelmente, casas - dommus ekklésia cedidas pelos seguidores do Nazareno.

Já no crepúsculo da era dos mártires, final do século III, houve uma inflexão
considerável devido ao Édito de Milão12 e ao Édito de Tessalônica13, tornando o
cristianismo, primeiramente, uma religião legal e, depois, oficial do império. Logo,
houve um aumento ostensivo na quantidade de adeptos, tornando, segundo Xabier, o
cristianismo a maior religião de todo o império14.

Este inchaço exigiu dos cristãos da época uma mudança no formato dos
encontros e, evidentemente, também exigiu mudanças nos espaços nos quais eles se
encontravam. Se antes, residências cedidas pelos fieis eram espaços ideais para os
encontros, a partir de então, estes espaços seriam inadequados, devido ao número
crescente de cristãos.

Assim, em meados do século III, os cristãos carecerão de espaços maiores


para suas reuniões. Em princípio, vários edifícios civis foram cedidos pelo império.
Exemplo disto são as basílicas, edifícios públicos que antes eram utilizados para as
audiências do imperador (basileo). Muito embora a basílica fosse utilizada para os
despachos do imperador, também servia como pavilhão do mercado, sessões do
tribunal e sala de recepções dos patrícios ricos15. Sua principal característica era a
longilinidade da nave central a qual se juntavam naves laterais. Este edifício civil foi
então transferido para a Igreja cristã.

Depois das basílicas cedidas pelo império, passa-se a construir recintos


próprios. Será, então, o alvorecer daquilo que se pode chamar de arquitetura
cristã16.O próprio império romano promoveu a construção de grandes edifícios

12
Cf. Édito de Milão, decretado por Constantino em 13 de junho de 313, pôs fim à perseguição do
império aos cristãos
13
Cf. Édito de Tessalônica, decretado por Teodósio em 27 de fevereiro de 380, tornou o cristianismo
religião oficial do império romano, abolindo todas as outras práticas religiosas.
14
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 57.
15
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas. O significado do espaço litúrgico
para uma comunidade viva. Coimbra: GC Gráfica de Coimbra, 1998, p. 55.
16
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 66.
17

destinados aos cultos em Roma, Constantinopla e Jerusalém. A partir do século IV,


as construções das igrejas assumem cada vez mais a forma Basilical.

Estes edifícios monumentais impuseram grande transformação no jeito de


celebrar das comunidades. A frontalidade do presidente em relação à assembleia,
devido à forma longilínea do edifício, impunha uma posição rígida da assembleia em
filas, umas detrás das outras. Esta forma da assembleia impedia a reciprocidade
costumeira entre os fiéis, restando para eles o papel de simples espectadores17.

Xabier Basurko defende que estas mudanças nas dimensões do lugar e na


quantidade de pessoas determinou uma mutação na qualidade das relações entre os
membros da comunidade cristã18. Se, antes, os encontros eram temperados com um
certo acolhimento, pessoalidade e aproximação, com o advento dos edifícios
monumentais, os encontros viriam a ser mais impessoais, com menor acolhimento e
aproximação entre os fiéis.

A partir do século VI, devido a uma série de mudanças na celebração dos


sacramentos, acontece um paulatino afastamento entre o povo e a ação litúrgica 19.
Neste período, surgem as missas privadas, celebrações sem o povo, apenas com o
sacerdote. Esta prática de “missa sine populo”, se ampliará no século VII e se
generalizará no século VIII20.

Neste período, a missa foi entendida menos como uma celebração da


assembleia e mais como instrumento de graça. Segundo Klemens Ritchers, “a liturgia
era um ofício exclusivo do clero”21. A comunidade já não era mais entendida como
sujeito da liturgia. Aimé Georges Martimort22 ainda aponta que:

La práctica cada vez más habitual em occidente de las misas


llamadas privadas. Así, se celebran misas em días que la
asamblea no estaba convocada y, además se celebraban varias
misas em altares de la misma iglesia, em lugar de la misa única
que reunía em otro tempo a todos los presbíteros alrededor de un

17
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 56
18
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 76.
19
Cf. Ibid., p. 90.
20
Cf. Ibid., p. 91.
21
RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 57.
22
Aimé Georges Martimort, padre francês, da cidade de Toulose, considerado grande teólogo sobre o
sentido da assembleia. Foi pioneiro nesta temática com a publicação L’assemblée liturgique, na
edição número 20 da La Maison Dieu, em 1949.
18

solo altar, em estas misas la participación del pueblo quedó


reducida a la simbólica presencia del ministro. 23

Ele afirma também que o advento destas missas privadas representou um


golpe fatal na assembleia.24 Aos poucos, os cristãos deixaram de entender que no
domingo deveriam reunir-se ao redor da Palavra e da Eucaristia e passaram a julgar
a missa como um ato individual: assistir à missa.25

Esta separação entre o povo e a ação litúrgica, que poderá ser entendida como
a separação entre o corpo clerical e o corpo laical, produziu uma ruptura simbólica
bastante prejudicial ao conjunto da comunidade. A partir de então, estabeleceu-se
uma hierarquização nociva que distanciou o povo da mesa da eucaristia.

Luis Maldonado defende que o surgimento de uma separação entre o


presbitério e a nave (gradis, balaustradas, degraus), ao longo da Idade Média, foi uma
das principais causas da crise litúrgica sofrida pela Igreja.26

Provavelmente, o surgimento desta separação seguiu uma orientação


eclesiástica. A ideia, o conceito, certamente foi anterior à separação física. O clima
induziu a construção dos gradis, degraus e balaustradas. Entretanto, esta separação
mencionada foi o sinal visível, e com acentuada carga simbólica, do que se pretendeu:
afastar o povo da mesa da eucaristia, oferecendo a ele apenas a possibilidade da
contemplação.

Em detrimento da participação da comunidade e do valor comunitário,


promoveu-se o exercício da piedade individual e a importância da pessoa privada, do
individualismo. Os cultos passam a ser destinados a conseguir a salvação do indivíduo
e a missa fora tida como caminho para tal.

23
GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica es un signo. Aportación teológica de Aimé G.
Martimort. Phase, Barcelona: CPL, v. 43, n. 255, p. 234, set./out. 2003, p. 234. A prática cada vez
mais comum de missas privadas no ocidente. Assim, as missas são celebradas nos dias em que a
assembleia não foi convocada e, além disso, várias missas foram celebradas em altares da mesma
igreja, em vez de uma única missa que reunia todos os sacerdotes em torno de um único altar.
Nestas missas a participação do povo foi reduzida à presença simbólica do ministro. (tradução nossa)
24
Cf. ID., La asamblea litúrgica es un signo, p. 234.
25
Cf. ibid., p. 234.
26
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: Fenomenologia e teologia da celebração. In:
BOROBIO, Dionísio (Org.). A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 178.
19

Nesse momento histórico, surgiram as missas penitenciais e as fundações de


missas, por meios das quais algum fiel doava um valor para que se rezassem as
missas em seu favor.27

Este movimento trouxe como consequência a multiplicação do número de


sacerdotes, padres altaristas, cuja principal função era rezar as missas
encomendadas pelos fiéis. Assim, o celebrante rezava sozinho e precisava dizer todas
as respostas e preces que eram então destinadas à assembleia. Ocorreu, então,
brutal ruptura entre a celebração eucarística e a comunidade.

No final do século XII, foi introduzida uma nova piedade com relação à
eucaristia, aumentando ainda mais a distância entre o fiel e o sacramento. A partir de
então o conjunto dos fiéis28 se contentavam em apenas admirar e contemplar a
eucaristia29. Será neste momento histórico que surge a necessidade de chamar a
atenção do fiel para a consagração, por meio de um sinal sonoro: o tilintar dos sinos.

Todos estes ritos se acentuam em meados do século XIII, quando se percebeu


normativas extremas que distanciaram ainda mais o povo da celebração da eucaristia.
A sentença final seria esta: a proibição absoluta ao toque das espécies sacramentais
por pessoas não consagradas30. Os fiéis tornaram-se, então, meros espectadores da
hóstia consagrada31, raramente podiam comer do alimento. Em geral não
participavam da mesa, apenas assistiam a um acontecimento.

Obviamente, neste período conhecido como a baixa Idade Média, os costumes


eclesiásticos influenciaram a forma de construir igrejas. O distanciamento entre o povo
e a eucaristia, que na linha do tempo foi se consolidando e se cristalizando, contribuiu
para moldar os templos nos quais aconteciam os cultos cristãos.

Xabier defende que estas situações de decadência tornam justificáveis as


reações de protesto dos reformadores liderados por Lutero 32, que propôs, em seus
primeiros escritos, medidas de considerável preocupação pastoral. Sugere a

27
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 92.
28
Cf. Não sei se é possível chamar aquele agrupamento de comunidade, uma vez que a mentalidade
individualista é ali predominante.
29
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 102.
30
Cf. Ibid., p. 103.
31
Cf. Ibid., p. 104.
32
Cf. Ibid., p. 108.
20

eliminação da missa privada, propõe sua celebração em língua vernacular e proíbe a


adoração ao Santíssimo Sacramento.33

Em meados do século XVII, já na época do Barroco, na arte da contrarreforma,


predominava um clima de triunfo e de espetáculo no espaço litúrgico. Xabier sugere
que as igrejas construídas nesta época têm um ar de um “elegante salão de
espetáculos”34, no qual se mostra a eucaristia para adoração.

Ora, se era para contemplar visualmente apenas, a forma das igrejas precisava
ser adequada ao citado propósito. Seus formatos predominantemente retangulares
forçavam o posicionamento das pessoas de frente para o altar, de modo a
direcionarem seus olhares para um ponto focal único: a Eucaristia. Nota-se, então, a
espetacularização da eucaristia.

Vale registrar que, nesse período, não havia o costume de se alocar bancos
nas igrejas. Os fieis ficavam em pé, posição que proporcionava maior dinamismo
durante as celebrações. As pessoas poderiam se direcionar para os locais dos
acontecimentos das celebrações, o momento do sermão, no púlpito, por exemplo,
noutro instante, o momento da consagração, já no altar.

Ocorreu também a multiplicação dos altares laterais, nos quais predominavam


as imagens dos santos, reforçando a ideia da piedade popular e devocional, meio para
alimentar a fé do povo, em compensação, talvez, pelo desestímulo da comensalidade
eucarística.

Com a condição de que a celebração acontecesse num idioma estranho (latim),


as celebrações foram ficando ainda mais distantes do povo, impedindo a participação
ativa da comunidade. Percebeu-se, neste período, que a liturgia se tornou uma
representação quase-teatral35.

Terminologia hoje evitada, o ato de assistir à missa, era, então, um emprego


linguístico correto, dada as características deitadas sobre este papel.

Diante do incômodo representado por Lutero, os clérigos, ao invés de refletir


acerca dos apontamentos dos reformadores, decidiram combatê-los, radicalizando

33
Cf. Ibid., p. 114.
34
Ibid., p. 118.
35
Cf. Ibid., p. 119.
21

suas posições. Considerando que os protestantes em suas teses negavam a ideia de


um sacerdócio especial, os católicos escolheram ir em direção oposta, reafirmando e
acentuando a distinção entre sacerdócio e povo, de tal modo que a contrarreforma
decidiu preterir a participação comunitária do povo na liturgia.

Klemens Ritchers afirma que certas igrejas, já no início do século XX,


edificaram presbitérios com até doze degraus, elevando o sacerdote
consideravelmente em relação ao nível da assembleia. Um distanciamento quase
abissal que acentuava e divinizava o corpo clerical enquanto relegava ao conjunto da
comunidade reunida uma condição, se não profana, ao menos de expectadora.

Esta decisão acentuou o distanciamento entre o corpo clerical (sacerdotes) e o


corpo laical (povo). Esta ruptura simbólica, que será abordada na sequência, neste
trabalho, a partir da contribuição de Pierre Bourdieu, no capítulo sobre as questões
sociológicas, comprometerá o sentido de comunidade experimentada pelos primeiros
cristãos e bem sistematizada nas cartas paulinas. Diante desta escalada, cada vez
mais agressiva, de medidas extremante prejudiciais à Igreja, há que se questionar se,
nesse período, seria justo qualificar o conjunto dos fieis por comunidade.

Felizmente, a inflexão nesta curva descendente já despontava no horizonte.


Em 1786, o Sínodo de Pistóia propôs uma alteração que incluía o incentivo à
participação dos fiéis na liturgia. Entretanto, esta sugestão foi ignorada, tendo que ser
retomada somente no concílio Vaticano II36. Compreensível. Havia um espírito de
época (zeitgeist), um clima histórico, composto por inúmeras variáveis que formam o
amálgama no meio do qual o sujeito histórico está e por meio do qual é
inevitavelmente influenciado em suas decisões. O espírito de época não era favorável
à medida que hoje é entendida como necessária, mas que, na época, não o fora.
Muitas medidas progressistas que se deseja hoje para a Igreja não são possíveis
devido, exatamente, ao zeitgeist contemporâneo. Enfim, sigamos nossa cronologia.

Muito embora o Sínodo do século XVIII tenha sido ignorado, a luz que dissipará
tal escuridão ensaiava, ali, seus primeiros raios. Lembremos Guimarães Rosa, em

36
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica, p. 120.
22

“Grande Sertão: veredas”: à certa altura da obra, Riobaldo, dirigindo-se a Diadorim,


afirma: “é só aos poucos é que o escuro fica claro”.37

1.2 O Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II

Após este período doloroso para a experiência cristã, começou a despontar


raios luminosos no horizonte. Na segunda metade do século XIX, surgiu o Movimento
Litúrgico que buscou oxigenar a liturgia. Dentre as muitas reflexões, cabe destacar,
para efeito de contributo aos estudos aqui dirigidos, a defesa da aproximação entre
os fiéis e a comunhão eucarística, buscando romper a separação de séculos entre os
fiéis e a santa eucaristia.

Patrick Pretot, em seu artigo para a publicação da comunidade de Bose,


intitulado “Spazio Liturgico e Orientamento”, reproduz uma observação de Haquin38.
Este afirma que após as reflexões de Martimort, e também da publicação da
enciclopédia de Joseph Gelineau39, ‘Dans Vos Assembleés’, houve uma mudança na
utilização dos pronomes pessoais, do singular para o plural, durante as celebrações 40.
Pretot afirma que esta passagem do singular para o plural é por demais significativa,
pois ela resgata a ideia da origem na qual na assembleia litúrgica abundava
pluralidade.41

O Movimento Litúrgico teve sua emergência no alvorecer do Vaticano II. O


Concílio foi um marco, um evento fundamental, que reanimou a Igreja de Cristo.

O Concílio pouco fala objetivamente sobre a edificação igreja, muito menos


sobre o lugar da assembleia. Apenas propôs que a edificação destinada ao culto
cristão deva ser apta para a participação dos fiéis, digna e convenientemente
edificada42. Entretanto, em suas entrelinhas, as temáticas da participação ativa e
frutuosa, com a instituição da celebração em idioma vernacular, a valorização da

37
ROSA, Joao Guimarães. Grande Sertão: veredas. 22. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019,
p.141.
38
André Haquin, professor da faculdade de teologia da UC Luvain, em Louvain-la-Neuve, Paris.
39
Joseph Gelineau, padre jesuíta francês, liturgista, especialista em música litúrgica cristã.
40
Cf. PRETOT, Patrick. Spazio Liturgico e Orientamento. Magnano: Edizione Qiqajon, 2006, p. 113.
41
Cf. Ibíd., p. 113.
42
Cf. GOENAGA, José Antônio. A constituição de liturgia do Vaticano II. In: BOROBIO, Dionísio (Org.)
A celebração da Igreja. São Paulo: Loyola, 1990, p. 146.
23

liturgia como fonte e cume da vida cristã, são elementos fundamentais que vão
influenciar a mudança de paradigma na arquitetura das igrejas e na valorização do
lugar da assembleia no corpo da edificação do templo.

Sobre a participação dos fiéis, a constituição do Vaticano II, Sacrosanctum


Concilium, explicita importante ensinamento em seus números 11,14, 21 e 27.

Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis


celebrem a Liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às
palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus para não a
receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas
velar para que, na acção litúrgica, não só se observem as leis de uma
válida e lícita celebração, mas também que os fiéis nela participem
consciente, activa e frutuosamente.43

É desejo ardente da Mãe Igreja que todos os fiéis cheguem à plena,


consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas, que a
própria natureza da Liturgia exige e que é, em virtude do seu Baptismo,
um direito e um dever do povo cristão, geração escolhida, sacerdócio
real, nação santa, povo resgatado.44

Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de


cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e
participação activa dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na
medida do possível, à celebração individual e como que privada. Isto
é válido sobretudo para a celebração da Missa, ressalvando sempre a
natureza pública e social de qualquer Missa e para a administração
dos Sacramentos.45

Não há dúvida. Dentre os muitos avanços trazidos pelo Vaticano II, encontra-
se o resgate do sentido de comunidade cristã, percebido nas primeiras comunidades,
descritas no livro do Atos dos Apóstolos, nas Cartas Paulinas, na Patrística e no
próprio Evangelho. Bebendo nestas fontes essenciais, os padres do Concílio deixaram
um legado essencial.

Em vários parágrafos, os padres conciliares referem-se à participação ativa e


frutuosa dos fiéis. E, para se promover e potencializar esta qualidade no seio da
assembleia, diversas condições são indispensáveis, como a reforma litúrgica, a

43
CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II.
1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 11.
44
Ibid., p. 14.
45
Ibid., p. 27.
24

adaptação das músicas e cânticos, para evitar o espetáculo e promover e incentivar o


coro da assembleia. Também era foco das reformas o espaço litúrgico, e por
conseguinte, o lugar da assembleia, objeto de estudo deste trabalho.

O número 41 da Sacrosanctum Concilium, reforça a ideia, afirmando que:

a principal manifestação da Igreja consiste em uma participação


perfeita e ‘activa’ de todo o povo santo de Deus na mesma celebração
litúrgica, especialmente na mesma Eucaristia, numa única oração, ao
redor do único altar a que preside o Bispo rodeado pelo presbitério e
pelos ministros.46

Aqui, a atenção deve ser direcionada para a terminologia “ao redor de um único
altar”. Sabe-se que há aqui duas intenções. A primeira é abolir os altares laterais das
igrejas. Um único altar, pois só há um único cordeiro imolado: Cristo. A segunda
intenção refere-se à ideia da ceia: ao redor da mesa. Quem é convidado para comer
não pode ficar distante. Os convidados em geral, de acordo com o costume de cada
cultura, são os primeiros a se aproximarem. Mas o sentido da palavra ainda é mais
radical. Ao redor da mesa não é o mesmo que de fronte para a mesa. Ao redor é no
seu entorno e não diante dela. A ideia implícita é que todos devem se aproximar, se
achegar, vir para perto, o mais perto que puderem, pois será dia de festa, de
comilança, de celebração. A fase da contemplação, apenas e tão somente, ficou com
a Idade Média. Pode-se contemplar, obviamente, mas comer junto, lado a lado com o
irmão será, a partir de então, o maior sinal da cristandade.

Dom Marcelo Molinero, monge beneditino argentino, afirma em sua obra que
“entre os pontos mais alcançados pelo Concílio, que ocupa um lugar eminente, está o
da revalorização da assembleia litúrgica”.47 E acrescentamos: a revalorização do
sentido de comunidade participativa.

Apesar de todas estas importantes reflexões, tanto do movimento litúrgico,


quando do Concílio, que deveriam impactar no modo com que as casas da Igreja eram
construídas, ainda por muito tempo as lideranças eclesiásticas resistiram (e ainda

46
CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, p. 41.
47
MOLINERO, Marcelo Antônio Audelino. O espaço celebrativo como ícone da eclesiologia. Para uma
teologia do espaço litúrgico. São Paulo: Paulus, 2019, p. 40.
25

resistem) a estes bons ventos impulsionadores, direcionando suas velas para o


quadrante medieval.

Klemens Richter apresentou um exemplo sintomático. Em seu livro, relata um


concurso de arquitetura para a construção de uma nova casa da Igreja que ignorou
solenemente as orientações recentes. Tratava-se do templo para a Igreja do Coração
de Jesus em Munique-Neuhausen48. O edital do concurso possuía um escopo
determinando o formato desejado pela arquidiocese. E este formato consistia numa
planta monoaxial com desenvolvimento longitudinal. Numa extremidade o presbitério,
elevado por diversos degraus e noutra a porta de entrada do templo. Os bancos
dispostos neste espaço de tal modo que as pessoas ficassem enfileiradas umas atrás
das outras e todas defronte para o altar. Um formato que mais revela o sentido de
plateia do que de Eucaristia: comensais ao redor de uma mesa.

E este exemplo citado por Richter se multiplicou aos milhares, mesmo após o
Vaticano II. Mais ainda: atualmente, mesmo após meio século das reflexões do
concílio, as autoridades eclesiásticas resistem em abrir as janelas e cortinas de suas
casas para a entrada da luz reformadora que dissipa o miasma que adoece a
comunidade.

Basta olhar para a imensa maioria das casas da Igreja espalhadas pelo Brasil
e pelo mundo. Insignificativa minoria possui uma forma que privilegia a participação
ativa da assembleia litúrgica e valoriza a comunidade.

48
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 63.
26

Capítulo segundo
QUESTÕES TEOLÓGICAS

Quem ama, faz sempre comunidade;


não fica nunca sozinho.
(Atribuído a Santa Tereza d’Ávila)49

Neste capítulo, trataremos da formulação da teologia do Corpo Místico de


Cristo (Cristo Total), proposta por Paulo de Tarso ao animar as comunidades da
diáspora, fundadas ou cuidadas pastoralmente por ele. Notaremos íntima ligação com
a primeira parte do capítulo anterior, por razões obvias: Paulo foi um dos principais
líderes das primeiras comunidades, das quais somos herdeiros.

Na sequência, abordaremos a relação entre assembleia litúrgica e comunidade


cristã, terminologias que, embora, nos primórdios, fossem consideradas sinônimos,
são, atualmente, conceitos distintos.

2.1 A contribuição da Teologia Paulina

Se fosse possível perguntar hoje ao apóstolo Paulo de Tarso onde está, para
ele, o Cristo, provavelmente ele responderia: Cristo está na comunidade reunida em
oração. Carlos Ortiz, nas primeiras páginas da obra “O Christo Total”, defende que o
cristianismo é uma vida, um Corpo, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja.50
Esta capacidade abstrativa é a base do principal eixo da Teologia Paulina e se
ancora na ideia teológica do Corpo Místico de Cristo. Paulo, entretanto, só foi capaz
de alcançar este nível de percepção acerca do Mistério Salvífico por razões muito
práticas, dentre as quais pode-se arriscar duas: o fato de ele não ter conhecido Jesus
pessoalmente e o desmoronamento de suas convicções pessoais, quando a caminho
de Damasco.

49
D’ÁVILA, Santa Teresa. Pensador. Disponível em:
<https://www.pensador.com/frase/MTQ5ODg4Nw/> Acesso em: fev de 2020.
50
Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total: Ensaio de uma syntese christã para militantes da Acção Católica,
São Paulo: Odeon, 1937, p. 11.
27

Paulo foi o mais prolixo escritor do Novo Testamento, responsável por 13 dos
27 livros, tendo ainda, no Atos dos Apóstolos, o registro sua trajetória e alguns
sermões. Segundo Reza Aslan, Lucas escreveu o livro do Atos dos Apóstolos em
homenagem a Paulo, 30 ou 40 anos após a sua morte. Segundo ele, na narrativa, os
apóstolos, que figuram somente no início do livro, servem apenas de ponte entre
Jesus e Paulo51.

E ainda é muito provável que Paulo influenciou a escrita dos evangelhos52.


Segundo Aslan, à exceção da fonte Q, as cartas paulinas eram os únicos escritos
sobre Jesus que existiam em meados do ano 70, momento em que os evangelhos
começam ser escritos. Estas cartas, que circulavam desde os anos 50, resistiram à
guerra judaica e à destruição de Jerusalém, pois estavam em poder das comunidades
da diáspora, fundadas e/ou mantidas por Paulo.53 Nosso autor afirma que:

Pode-se traçar a sombra teológica paulina em Marcos e Mateus. Mas


é no evangelho de Lucas, escrito por um dos discípulos fiéis de Paulo,
que se pode ver o domínio de seus pontos de vista, enquanto que o
evangelho de João é pouco mais que a teologia paulina em forma de
narrativa.54

Paulo era um cidadão cosmopolita, tendo sido influenciado por três culturas
distintas: a hebraica, a romana e a grega. Tal amalgama certamente contribuiu para a
formação de sua teologia. Dos muitos conceitos para a doutrina cristã que Paulo
esculpiu e cristalizou, este trabalho concentrará atenção num deles, talvez o principal,
que será fundamental para o desenvolver da tese aqui pretendida: a ideia de Corpo
Místico de Cristo.

Carlos Ortiz sugere que, para se compreender Paulo, antes é necessário


compreender a doutrina do Corpo Místico55. E, para se compreender a aludida
doutrina, é preciso, antes, mergulhar na experiência mística que desencadeou este
magnífico tratado de fé.

51
Cf. ASLAN, Reza. Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, Rio de Janeiro:Zahar, 2013, p. 202.
52
Cf. Ibid., p. 232.
53
Cf. Ibid., p. 232.
54
Ibid., p. 232.
55
Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total: Ensaio de uma syntese christã para militantes da Acção Católica,
p. 15.
28

Lembremos que entre os anos 34 ou 35 da era cristã, na Síria, vivia Paulo, que,
então, chamava-se Saulo. Ele possuía documentos do Sinédrio autorizando-o a
prender todos os adeptos do nazareno, homens, mulheres e crianças. Ele era uma
espécie de inquisidor mor, ardoroso defensor das tradições judaicas. Podia invadir
casas, impor buscas e devassas, utilizando-se de torturas e instrumentos de suplício.
Os poucos cristãos viviam às escondidas, temendo tais perseguições.

Após a execução do nazareno Estevão, Saulo intensifica seu furor. Sabia ele
que o foco principal do radicalismo pró-Nazareno era em Damasco. Decidiu, então,
rumar para tal cidade, a fim de aniquilar aquele movimento insurgente. Ocorre que,
como sabemos pela tradição, no caminho, Saulo jaz por terra, mediante uma luz
intensa que o cega56. E no meio de completa escuridão em dia límpido, ele escuta
como um trovão em céu azul, chamamentos pelo seu nome: “Saulo, Saulo!” Em
seguida, uma pergunta inquisidora: “Porque me persegues?”57 Ainda atordoado, ele
ousa perguntar: “quem és tu, Senhor”?58 A resposta é fatal, fazendo desmoronar todas
as convicções daquele doutor. Não poderia haver outra alegoria para indicar sua
afetação: Saulo caiu por terra. Ali, a voz categórica responde: “eu sou Jesus, a quem
você persegue!”59 Esta resposta atordoa Saulo, impondo-lhe uma tragédia pessoal e
aniquilando seus planos de defender a tradição judaica, apontando a espada aos que
dela discordassem. Naquele momento desmoronou o frondoso edifício da tradição
judaica para Paulo e sobre tais ruínas seriam edificadas o cristianismo paulino e sua
esplendorosa teologia acerca dos princípios cristãos.

Importa adjetivar o cristianismo que será proposto, pois segundo Reza Aslan,
havia dois grupos distintos de seguidores do Nazareno.60 Os cristãos hebreus, um
grupo nacionalista, ligado à tradição judaica, no qual estavam inseridos os apóstolos
Pedro e Thiago e os cristãos helenistas que tensionavam para que a mensagem de
Jesus se tornasse um chamado universal atraente aos que viviam no ambiente greco-
romano. Neste grupo de cristãos, notadamente estavam Estevão, o primeiro mártir, e

56
Cf. At 9,3.
57
At 9,4.
58
At 9,5.
59
At 9,5.
60
Cf. ASLAN, Reza. Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, p. 199.
29

Saulo/Paulo. A tensão entre estes grupos pode ser percebida no livro do Atos dos
Apóstolos, que descreve o primeiro concílio (Atos dos Apóstolos 15,1-20).

O processo de formação da teologia paulina se deu a partir dos métodos


filosóficos conhecidos por aquele estudioso. Não aceitando as respostas imediatas,
quis ele indagar. Saulo então se pergunta como seria possível ele perseguir a Cristo
se Ele já estava morto, há tempos, talvez anos. Ele obviamente perseguia os
discípulos do nazareno e não o próprio. Mas Jesus afirma que Saulo persegue a Ele
em pessoa. Como seria possível? A tradição diz que três dias de cegueira foram
necessários, nos quais ele não comeu nem bebeu absolutamente nada. Dias de
deserto, de uma experiência ruminante na qual aquela frase ecoaria, a fim de produzir
bela teologia cristã. Saulo então percebeu que só haveria um caminho possível para
compreender o que ele escutara. Jesus e seus amigos são um e o mesmo. De tal
modo que quando se persegue um discípulo do Nazareno se persegue Ele próprio.
Quando se mata um cristão, se mata o próprio Cristo. Então, Cristo é nada menos que
os seus discípulos missionários. Eis a fagulha que desencadeou todo o magnífico
ardor de sua teologia. Imediatamente, Saulo encontrou Ananias, um discípulo de
Jesus, que o batizou, dando-lhe o nome de Paulo. Então, de perseguidor dos cristãos
ele tornou-se um deles. Um arauto de importância única para a consolidação do
cristianismo tal como o conhecemos hoje. Um cristianismo predominantemente
influenciado pelas ideias helenistas dos cristãos do primeiro século.

Paulo viajava, formava comunidades cristãs nas mais longínquas terras e


escrevia, buscando, com as cartas, animar as comunidades. E, enquanto escrevia,
ele aprimorava sua teologia, de tal modo que, o que temos hoje é um interessante
tratado acerca do cristianismo.

O apóstolo dos gentios ofereceu inúmeras passagens nas quais faz alusão a
assembleias litúrgicas nas casas dos neocristãos. A mais significativa encontra-se na
primeira Carta aos Coríntios. Martin Mcnamara sugere que as informações mais
completas sobre as assembleias cristãs do primeiro século vêm de Corinto, por conta
de haver ali muito o que remediar.61 Em Corinto, a Eucaristia era celebrada numa
refeição tomada por todos (1Cor 11,17-27). Entretanto, havia se formado grupos e

61
Cf. MCNAMARA, Martin. As assembléias litúrgicas e o culto religioso dos cristãos primitivos.
Concilium, Petrópolis, n.002, jun-dez 1969, p. 19.
30

castas segundo a condição econômica dos membros. Durante as refeições, estes


grupos comiam os seus alimentos sem se preocuparem com os outros, sem esperar
que todos tivessem chegado, sem se preocupar com os mais pobres. Uns tinham uma
refeição farta, enquanto outros não comiam o suficiente. Diante disso, Paulo alerta a
comunidade, afirmando de forma contundente que esta prática quebra a unidade da
assembleia e por conseguinte destrói o Corpo de Cristo. Paulo, então, deixa claro que
a assembleia não é uma reunião qualquer, é o Corpo de Cristo, o Corpo Total, e todo
atentado contra a assembleia é atentado contra o Corpo do Senhor.

Com relação à comunidade dos Hebreus, cujos membros eram negligentes em


participar das assembleias e costumavam abandoná-las antes do término, Paulo
corrige com severidade e ensina que a comunhão na fé com os outros crentes é
condição de salvação. Ou seja, ele é categórico: não existe cristianismo do eu-
sozinho. A condição de salvação é o eu-nós. Para Paulo, de nada serve uma
experiência mistagógica fundada no individualismo, podendo até haver, mas não
poderá ser chamada de cristianismo. Em Cristo só há um caminho: integrar-se ao
Corpo Místico, viver esta experiência na e com a comunidade.

Para os Gálatas, Paulo enfatiza que não é ele mais quem vive, mas Cristo vive
nele (Gl 2-19), fazendo clara alusão ao sentido de ressureição: Cristo vive nele e nos
demais membros da comunidade que professam seus princípios.

Para os Colossenses pretende contribuir para que cada ser humano seja
perfeito em Cristo (Col 1-28), ou seja, que estando membro do Corpo Místico de
Cristo, alcance a perfeição, tal como um membro não pode crescer e se desenvolver
fora do corpo, Paulo avisa que só é possível tornar-se perfeito estando N’Ele.

Mas de todas as mensagens a mais extraordinária foi destinada à comunidade


de Corinto. Temendo perseguições, os primeiros cristãos não se encontravam em
locais públicos. Seus ambientes de encontro eram, primeiramente, as catacumbas,
cujos símbolo é poderoso: discípulos de um Deus que passou pela morte. Depois se
reuniam em residências da época. Em Corinto, a comunidade cristã se reunião na
casa de Estéfanas (1Cor 16,15 e 1Cor1,16).

Para aquela comunidade, Paulo então encaminha uma carta contendo a


explicação da teologia do corpo místico. Entretanto, e considerando que, segundo
McNamara, aquela comunidade exigia mais atenção, provavelmente devido à
31

dificuldade de Corinto em compreender os ensinamentos propostos, o apóstolo


elabora uma analogia simples, impossível de não ser compreendida. De forma
didática ele compara a comunidade de Corinto ao corpo humano para, na sequência,
concluir que a comunidade reunida é o Corpo de Cristo, o Corpo Místico de Cristo.
(1Cor 12,12-17). Se um membro sofre, todo o corpo padece junto. Se um membro se
alegra, todos os membros se animam, os membros que parecem mais frágeis são os
mais importantes. Da mesma forma que não existe corpo formado somente por pés,
ou somente por orelhas, mas sim pela diversidade qualitativa dos membros, assim
será com a comunidade.

A doutrina de Paulo apóstolo é cristalina: não somos pessoas isoladas, mas


membros de um grande corpo, o Corpo Místico de Cristo, a Igreja. E tal como
membros de um corpo, não é possível crescer e se desenvolver separadamente do
corpo, pois somente beberemos da seiva vital se conectados ao corpo. Separados,
não há vida, apenas morte!

E de onde Paulo, o apóstolo do Corpo Místico, extraiu esta ideia? Sabe-se que
sua revelação no caminho de Damasco é a centelha inicial, mas o que mais poderia
ancorar belíssima teologia? Carlos Ortiz enxerga uma conexão entre a Teologia
Paulina e o Evangelho.62 Provavelmente, Paulo tenha recebido, por meio da tradição
oral, o relato da parábola da videira, ensinada por Jesus. (Jo15-1 ss). Nesta parábola,
Jesus afirma ser a verdadeira videira, todo aquele que estiver conectado a ele dará
frutos.

Santo Agostinho faz clara ligação entre esta parábola e a doutrina do Corpo
Místico. Diz ele que “este lugar do evangelho, irmãos, onde o Senhor se diz a videira
e os seus discípulos os ramos, Ele o diz enquanto é a cabeça da Igreja e nós os seus
membros.”.63 Desse modo, diz Carlos Ortiz:

Como só vivem os ramos enxertados na videira; como só vivem os


membros articulados organicamente no corpo; assim só vive o cristão
enxertado no tronco que é Cristo, articulado no Corpo Místico de
Cristo, a Igreja. A vida dos ramos da videira é a seiva. A vida dos
membros do corpo é o sangue. A vida do cristão, enxertado e
incorporado a Cristo é a graça santificante do seu batismo.64

62
Cf. ORTIZ, Carlos. O Christo Total, p. 18.
63
Ibid., p. 18.
64
Ibid., p. 18.
32

A analogia é perfeita. Só se é possível viver como cristão vinculados,


enxertados na comunidade, não há caminho fora destas duas alegorias, tanto a ideia
da videira, quando a ideia do Corpo Místico de Cristo, indicam um inevitável caminho:
a vida em comunidade. Santo Agostinho propõe uma sentença radical e muito
didática:

Façam-se Corpo de Cristo aqueles que querem viver do Espírito de


Cristo. Só vive do Espírito de Cristo, o Corpo de Cristo. Por ventura o
meu corpo vive do teu espírito? Meu corpo vive do meu espírito e o
teu do teu espírito.65

Assim, para se experimentar o Espirito Santo é necessário estar vinculado ao


corpo, ao Corpo Místico, à igreja. Faz-se necessário neste momento lembrar o
Pentecostes: o sopro e as línguas de fogo, sinais do Espírito Santo, enchem toda a
casa onde se encontravam reunidos os apóstolos, ou seja, a Igreja (Atos dos
Apóstolos 2,1). Não houve uma experiência individual, cada qual em seu momento
íntimo, mas sim um encontro que só pode acontecer por meio da Igreja, por meio do
Corpo Místico, da união dos membros.

Mais tarde os Padres da Igreja66 também contribuíram para o aperfeiçoando da


doutrina do Corpo Místico. São Cyrillo de Alexandria propõe a seguinte analogia:
“assim como a cera se mistura com a cera, o fermento com o pão, assim nós com o
Corpo de Cristo”67. Já Cyrillo de Jesuralém afirma que “na sagrada comunhão não só
nos fazemos cristíferos, mas corpóreos e consanguíneos de Cristo”.68

Desde a era apostólica e conforme as prescrições do Novo Testamento, a


Didaké69 ensina que se devem reunir os cristãos para partir o pão e dar graças. Ignácio

65
Ibid., p. 25.
66
Os Padres de Igreja, ao longo dos sete primeiros séculos, elaboraram uma filosofia cristã denominada
Patrística. Foram os primeiros teóricos que formularam um conjunto doutrinal que está na base da
tradição católica.
67
ORTIZ, Carlos. O Christo Total, p. 56.
68
Ibid., p. 59.
69
Didaké é a Instrução dos Doze Apóstolos, um escrito do século I que trata do catecismo cristão. É
constituído de dezesseis capítulos, e, apesar de ser uma obra pequena, é de grande
valor histórico e teológico.
33

de Antioquia frequentemente lembra desta obrigação e pede que se reúnam com mais
frequência para dar ações de graças e louvores a Deus.

A assembleia é então o sacramento da unidade. A Didascália Siríaca70 orienta


a ensinar:

o povo, através de preceitos e exortações, a frequentar a assembleia


e a jamais faltar a ela, que todos se encontrem sempre presentes, que
não diminuam a igreja pela sua ausência, e que não privem o Corpo
de Cristo de nenhum dos seus membros.71

Um dos princípios teológicos que alicerçam a celebração pascal, contidas nas


reflexões do Concílio Vaticano II, refere-se ao Cristo Total como sujeito “da ação
litúrgica”. Assim, o sujeito da ação litúrgica é a assembleia reunida como Povo de
Deus. Cristo Total, aqui mencionado, é sinônimo de Corpo Místico de Cristo.
Já, em 1918, Romano Guardini, filósofo e teólogo dizia “a liturgia apoia-se não
no indivíduo, mas na comunidade dos fiéis”.72 Bebendo ainda na fonte da doutrina
paulina, o Papa Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei, reforça o ensinamento contido
na Sacrosanctum Concilium. Diz ele que, sobre os modos de presença do Senhor na
sua Igreja, ocupa o primeiro lugar a assembleia em oração, sobretudo na celebração
eucarística.73

Jean Corbon, teólogo da Igreja primitiva, autor da parte sobre liturgia do


catecismo da Igreja Católica, diz que “o Espírito Santo nos doa a vida de Deus,
constituindo-nos Corpo de Cristo”.74 Marko Ivan Rupnik, por ocasião do 11º Encontro
Nacional de Arquitetura e Arte Sacra, ocorrido em 2017, na cidade de Curitiba-PR,
afirmou que:

Perguntem aos católicos: como vocês imaginam que Deus lhe dá a


vida? E vocês vão ver que a maioria imagina um tanque de gasolina:
esvazia e enche. Não é assim, pois a vida divina não é individual, é a
vida de um eu filial, de comunhão. Então, eu recebo a vida de Deus

70
Didascália siríaca: Conjunto de orientações e ensinamentos do catecismo na Síria.
71
Concilium, Revista Internacional de Teologia, A Assembleia Litúrgica, p. 17.
72
Apud 53º Assembleia Geral da CNBB, artigo Liturgia e Vida, p. 4.
73
Cf. MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto. Á imagem da Igreja. São Paulo: Loyola,
2009, p. 52.
74
RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica. Brasília: Edições CNBB, 2019, p. 205.
34

quando descubro que sou tecido em um tecido junto aos outros, e


onde este tecido se acha perfeito: em Cristo!75

Santo Agostinho defende que, quando nos aproximamos da comunhão e o


padre nos diz “o corpo de Cristo”, pode-se responder ”sim, isto sou eu”, depois,
“amém” e então comungar.76 Rupnik diz, ainda, que o cristão é realmente o corpo de
Cristo e deve viver segundo esta manifestação.77
Percebe-se, portanto, a grandiosa e importante contribuição dada pelo apóstolo
Paulo para a consolidação do cristianismo tanto em suas viagens apostólicas, nas
quais se difundiu os princípios ensinados por Cristo, mas, sobretudo e de modo
principal, com o legado teológico do qual somos herdeiros. Para Paulo, a comunidade
reunida é o Corpo de Cristo. Para Paulo, todos os membros, inclusive os
aparentemente mais frágeis, são os mais importantes. Para ele, a alegria de um deve
ser partilhada por todos, da mesma forma com a tristeza.

O desafio, então, é conceber um espaço que promova e não iniba a vivência


destes princípios.

2.2 Assembleia litúrgica e comunidade cristã

Neste item, buscaremos compreender o sentido consolidado destes dois


conceitos e a simbiose percebida entre ambos.
Segundo o sociólogo Jean Remy, “a comunidade supõe normalmente um
território no interior do qual o indivíduo encontra condições para atender às suas
necessidades diversas e aspirações pessoais”.78 Várias realidades sociais são
modelos disto, dentre as quais podemos perceber as comunidades cristãs. Nelas,
acontece, ou pelo menos deveria acontecer, as seguintes práticas: o cuidado com o
outro, a ajuda mútua, a partilha das alegrias e sofrimentos, enfim, o exercício da
compaixão. Bauman afirma que:

75
Ibid., p. 206.
76
Cf. Ibid., p. 212.
77
Cf. Ibid., p. 212.
78
Apud GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia. Ensaio sobre a evolução das assembleias litúrgicas.
São Paulo: Paulinas, 1977, p. 60.
35

Nenhum agregado de seres humanos é sentido como comunidade, a


menos que seja bem tecido de biografias compartilhadas ao longo de
uma história duradoura e uma expectativa ainda mais longa de
interação frequente e intensa79

Já a assembleia litúrgica, segundo a definição de Joseph Gelineau, liturgista


francês, é constituída por indivíduos que se reúnem num determinado lugar para
realizar uma tarefa específica: celebrar o Mistério Pascal de Cristo, na expectativa da
realização da nossa própria páscoa. A assembleia litúrgica nunca reúne todos os
membros da comunidade, mas está aberta a todos, mesmo para os que não
pertencem àquela comunidade. A assembleia é situada num território, mas não é
territorial. Diferentemente da comunidade cristã, a assembleia atua de modo episódico
e passageiro80.

Mas, em uma relação de simbiose, assembleia e comunidade se interpenetram,


retroalimentando afetações. Na medida em que é necessária a presença de uma
comunidade consolidada para o apoio aos serviços da assembleia litúrgica, a própria
assembleia deve estimular o desenvolvimento entre os cristãos de relações
comunitárias. Sob a forma do agir simbólico da liturgia, propõe-se provocações que
orientam a vida concreta da comunidade. A ação simbólica da partilha do pão na
liturgia denuncia as práticas não comunitárias vividas no cotidiano. Joseph Gelineau
vai dizer que “é uma contradição comungar na assembleia litúrgica sem colocar nada
em comum”.81

É evidente que a imensa maioria dos cristãos escolhem apenas a participação


nas assembleias litúrgicas em detrimento da vida em comunidade. A única centelha
de vida eclesial habitual para a grande maioria é a assembleia orante. Por esta razão,
o encontro pascal semanal desempenha papel decisivo para a experiência cristã, mas
este não pode ser um fim em si mesmo, devendo impelir o cristão a alcançar o nível

79
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar 2003, p. 48.
80
Cf. GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 61.
81
Ibid., p. 63.
36

de vivência em comunidade. Para alcançar este intento, Gelineau vai sugerir que “as
assembleias devam ampliar suas funções e modificar sua fisionomia”.82

Pretendendo aprofundar as provocações do liturgista francês, este ensaio


buscará concentrar os esforços para mostrar que a morfologia do espaço litúrgico é
determinante para esta pretensão. O desenho do lugar do encontro pascal poderá
afastar as pessoas da experiência de vivência em comunidade ou aproximá-las desta
dimensão inevitável para quem se pretende cristão.

Como se depreende da própria catequese, a revelação divina se dá por meio


de uma comunidade, a trindade santa. Deus escolhe se revelar ao povo via
comunidade. Ora, se o próprio Deus não é individual, mas sim comunidade, não é
razoável pensar numa experiência mistagógica cristã que descarte a vivência em
comunidade, centrando a mística em costumes e práticas individualistas. Em síntese,
o que se pretende dizer é que não é possível haver prática cristã dissociada da
vivência em comunidade.

Gelineau ainda critica o fato de, em sua opinião, as assembleias litúrgicas


atuais serem exclusivamente cultuais. Lembra-nos das vivências dos cristãos do
primeiro século, que se reuniam predominantemente em assembleias, mas estas
tinham um sentido mais abrangente, para além da experiência apenas cultual.

Como já visto no início desta monografia, quando abordamos a evolução


histórica, os primeiros cristãos se reuniam com frequência, para a didascália, o
ensinamento dos apóstolos, o que, para nós, hoje, seria a escuta do Evangelho; para
a koinonia, o que pode ser entendido por caridade fraterna (entre eles não havia
necessitado algum, pois viviam a partilha dos bens), o que ficou mais tarde sintetizado
na Eucaristia e, por fim, a oração. As assembleias primitivas, então, garantiam tudo o
que era necessário para a vida em comunidade, sobretudo o cuidado para que entre
eles não houvesse necessitados. Não era possível perceber assembleias puramente
cultuais. Nota-se, então, neste lapso temporal, conhecido como período da igreja dos
mártires, que provavelmente vigorou até o século IV, que o conceito de assembleia
litúrgica e comunidade cristã possuíam o mesmo significado, não havendo distinção
entre ambos.

82
GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 64.
37

Foi após a paz constantiniana e a consequente imposição do cristianismo como


religião oficial do império, pelo imperador Teodósio I, que esta configuração começou
a mudar. Devido ao aumento exponencial do número de cristãos, as características
originais das assembleias foram sendo abandonadas, dando lugar ao encontro cultual,
sem a dimensão prática da caridade e fraternidade, que consolidava o sentido de
comunidade.

A partir de então, o povo deixou de ser o sujeito principal da celebração, dando


lugar a uma clericalizarão capitaneada pelos monges cenobitas que realizavam os
ofícios cotidianos e os serviços ministeriais.83 Vejamos o que diz Joseph Gelineau ao
abordar o período da Idade Média:

Durante toda a Idade Média – pelo menos no Ocidente, já que a


evolução das Igrejas do Oriente foi diferente – a piedade do povo não
parece alimentar-se da liturgia. Comungava-se cada vez menos. Os
clérigos e os cantores absorvem as cerimônias, enquanto que o povo
fica fora do presbitério separado pela tribuna que corta a Igreja em
duas zonas.84

Antes da paz constantiniana, o corpo clerical e o corpo laical viviam em maior


harmonia, entretanto, após os Éditos de Milão e de Tessalônica, aconteceu, como já
descrito, a separação entre clérigos e leigos, como relatado por Gelineau.

O que se percebe então é que a oficialização do cristianismo como religião do


império impôs aos cristãos uma mudança de paradigma. Se antes as assembleias
litúrgicas eram a expressão ideal da comunidade cristã, depois dos Éditos, as
assembleias se tornaram meramente cultuais, perdendo sua característica essencial:
a caridade, a piedade e a catequese.

Como agravante, notou-se a separação da assembleia entre povo e clero, que


se organizaram em campos simbólicos distintos. E esta separação impôs uma
correlação de forças simbólicas entre ambos os campos, desproporcional e prejudicial
ao conjunto dos leigos, como poderá ser melhor debatido quando da abordagem
sociológica, mais adiante. O fato é que, justamente, o ente principal da vida eclesial
ficou relegado à importância secundária.

83
Cf. GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 26.
84
Ibid., p. 26.
38

A era dos rubricistas85, após o Concílio de Trento, acentuou esta separação.


Os ritos sagrados e as demais atividades cristãs de caridade, ensino e piedade
estavam dissociados, o que reforçou a ideia de assembleias litúrgicas apenas cultuais,
negando-se sua característica comunitária.

Somente com o Concílio Vaticano II, como já vimos, a Igreja buscou iniciar um
processo paulatino de reequilíbrio, busca que, atualmente, ainda se encontra aquém
do necessário para a retomada do sentido original dado às assembleias litúrgicas dos
primeiros séculos.

Aimé G. Martimort86 persegue a ideia de simbiose entre assembleia litúrgica e


comunidade cristã verificada no cristianismo primitivo. Ele aponta a fundamental
diferença entre uma reunião qualquer de pessoas e a verdadeira comunidade. Para
que um conjunto de pessoas seja, de fato, uma comunidade cristã, é preciso estarem
unidos pela fé e pela caridade.87 E ele adianta que isto se promove na medida em que
“el pueblo reunido en asamblea tome conciencia de su comunidade”.88 Por isso,
segundo ele, é muito importante que a celebrações promovam esta realidade através
da visão, da audição, dos gestos, dos cantos, das aclamações89 e, aqui, tomamos a
liberdade para acrescentar a importância do espaço litúrgico para que as pessoas se
percebam membros ativos da comunidade eclesial que se reúne para o Banquete. O
lugar da assembleia e sua tipologia pode promover ou comprometer a vivência dos
valores que caracterizam uma comunidade cristã.

Certamente, nunca se conseguirá retomar aquela característica original das


primeiras assembleias orantes, nem deverá ser esta a pretensão, mas tê-las como
meta pode ser um propósito interessante, a fim de se alcançar a aproximação do

85
A Era dos Rubricistas iniciou-se com a Sagrada Congregação dos Ritos, criada pelo papa Sisto V,
que tinha a missão de vigiar o cumprimento das prescrições contidas nos livros litúrgicos e demais
documentos advindos das reflexões posteriores ao Concílio de Trento. Neste período a prática da
liturgia se reduziu ao rubricismo (legalismo), ao esteticismo e ao devocionismo, fruto de um abandono
da teologia que tornou a liturgia pomposa e vazia e acentuando o distanciamento entre o clero e o
povo.
86
Aimé Georges Martimort, padre francês, da cidade de Toulose, considerado grande teólogo sobre o
sentido da assembleia. Foi pioneiro nesta temática, com a publicação L’assemblée liturgique, na
edição número 20 da La Maison Dieu, em 1949.
87
Cf. GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica es un signo, p. 240.
88
Ibid., p. 240.
89
Cf. Ibid., p. 241.
39

sentido da assembleia-comunidade, reequilibrando suas funções de “viver juntos


como Igreja”.90

A arquitetura do espaço litúrgico, sem sombra de dúvida, tem papel importante


nesta busca. Pode-se edificar uma igreja que promova o encontro ou uma igreja que
estimule as orações individuais, desconectadas da vivência comunitária e, por
conseguinte, desconectadas dos princípios do cristianismo.

90
GELINEAU, Joseph. O amanhã da liturgia, p. 73.
40

Capítulo terceiro
QUESTÕES SOCIOLÓGICAS

Somos una especie en viaje


No tenemos pertenencias, sino equipaje
Vamos con el polen en el viento
Estamos vivos porque estamos en movimiento
(Jorge Drexler, canção Movimiento)91

Neste capítulo, trataremos das tensões existentes no lugar litúrgico entre corpo
clerical e corpo laical, bastante evidente durante a Idade Média, quando clero e
assembleia eram separados até por barreiras físicas, como vimos no capítulo primeiro.
Veremos, também, que estas tensões ainda produzem consequências na atualidade.
Em seguida, trataremos da conceituação das terminologias “espaço” e “lugar”, visando
qualificar, do ponto de vista fenomenológico, o lugar da assembleia. A partir destes
conceitos, poder-se-á verificar a tipologia dos ambientes existentes nos templos
cristãos ao longo da história e na atualidade.

No fecho deste capítulo, trataremos da coexistência de diferenças não


assimiladas, uma qualidade sociológica fundamental para o crescimento e
fortalecimento de uma comunidade.

3.1 As tensões simbólicas no lugar litúrgico

Segundo Pierre Bordieu, sociólogo francês, em “A economia das trocas


simbólicas” (obra que reúne parte da produção teórica de Bourdieu sobre o tema,
organizada pelo sociólogo brasileiro Sérgio Miceli), a sociedade é como um campo
onde os atores sociais se encontram, harmonizam-se e se chocam, baseados em
signos, significações e simbolizações, dos quais se originam as relações de força.
Bourdieu propõe uma ruptura com o marxismo no que se refere à definição da luta de
classes e os conflitos a ela inerentes. Para substituir esta teoria, ele propõe o conceito
de lutas simbólicas.92

91
DREXLER, Jorge. Letras. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/jorge-drexler/movimiento/>
Acesso em: 10 fev. 2020.
92
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 33.
41

Sugere, através deste conceito, a compreensão de como uma autoridade


política e/ou religiosa se perpetua no poder sem recorrer a mecanismos de violência
clássica, chamando a isto de violência simbólica93, a partir do carisma ou encanto
daquele que detém o poder. Por estas razões, a autoridade é legitimada, defende o
sociólogo.

O construtivismo estruturalista de Bourdieu apresenta estruturas socialmente


construídas, que impõem alguma coerção sobre a ação dos indivíduos em uma
relação dialética, na qual os atores sociais a legitimam e a reproduzem. Estas
estruturas são, para o estudioso, separadas em três conceitos: o Campo, o Habitus e
o Capital.

O Campo é o espaço simbólico, caracterizado por abrigar interesses, disputas


e convergências. O Habitus é a capacidade do indivíduo para incorporar a estrutura
social destes Campos. O Capital é o conjunto de forças que o indivíduo acumula
enquanto incorpora a estrutura e atua no Campo.

Bourdieu, então, substitui a ideia de sociedade pelo conceito de campos


sociais, que possuem princípios de funcionamento. Diz ele que os conhecimentos
adquiridos em um campo específico servem para interpretar outros campos, a isto
chamou de teoria dos campos.

Sua obra apresenta uma tese sobre a organização interna do campo simbólico,
como estrutura de um sistema de dominação. Para ele a definição de classe social,
defendida por Marx, é insuficiente para interpretar a sociedade. Enquanto a tese
marxista separa a sociedade em classes sociais, a partir da posse dos meios de
produção, ou seja, estratifica a sociedade, a partir de um pressuposto econômico, uma
materialidade objetiva, para Bourdieu, a compreensão da sociedade extrapola essa
determinação, devendo ser abordada a partir da leitura das ações e relações
simbólicas, nos chamados campos simbólicos.

Para Bordieu, o habitus contribui, paulatinamente, na formação do indivíduo,


oferecendo-lhe, através do meio que o envolve, um conjunto de elementos que vão
moldar sua forma de perceber e interpretar tudo o que o rodeia. Diz Sérgio de Miceli,
na introdução de “A Economia das Trocas Simbólicas”:

93
Ibid., p. 33.
42

Assim como o habitus adquirido através da inculturação familiar é


condição primordial para a estruturação das experiências
escolares, o habitus transformado pela ação escolar constitui o
princípio de estruturação de todas as experiências ulteriores,
incluindo desde a percepção das mensagens produzidas pela
indústria cultural, até as experiências profissionais.94

Aplicado ao espaço eclesiástico, estes conceitos podem contribuir para a


melhor compreensão de sua fenomenologia. Poderíamos dizer que o habitus
incorporado pelo fiel a partir da vivência no lugar de celebração também poderá se
constituir como princípio estruturante das experiências vindouras.

O campo é o lugar da ekklésia, lugar do corpo clerical e do corpo laical, cujos


interesses, disputas e convergências permeiam tanto um quanto outro, bem como
interesses, disputas e convergências no interior de cada campo específico.

Neste conceito, esculpido por Bourdieu, reside precioso elemento de análise


para o trabalho que ora se desenvolve. Considerando que autor define o campo como
lugar do exercício de disputas e convergências, não é exagero supor que o exercício
destes encontros, ora conflitivos, ora harmônicos, é condicionado, em certa medida,
pela tipologia do espaço, ou seja, pela sua arquitetura.

Desse modo, pode-se deduzir que o campo é formado por duas variáveis
fenomenológicas que se interpenetram: as tensões geradas pelo encontro entre os
atores sociais e o espaço nos quais estas tensões acontecem. Este trabalho pretende
focar nesta segunda variável do campo: o loccus, o local.

O habitus refere-se à capacidade de incorporar nas práticas cotidianas do


indivíduo as experiências sentidas no espaço eclesial (campo). Desse modo, o habitus
versa sobre o quanto o indivíduo é afetado, positiva ou negativamente, pelas
ocorrências do campo. Poder-se-á deduzir, então, que o campo e, por conseguinte,
sua variável, o espaço, influenciam na capacidade de o ator social incorporar as
práticas percebidas neste mesmo espaço.

Já o capital refere-se às forças simbólicas que cada ator da Ekklésia é capaz


de acumular. Pensando na dicotomia e hierarquia existente entre corpo clerical e
corpo laical, percebe-se, nitidamente, a brutal diferença entre ambos os corpos no que

94
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 17.
43

se refere ao capital simbólico acumulado. E esta diferença, obviamente, interfere


tanto no habitus quanto no campo, afetando o equilíbrio daquilo que Bourdieu batizou
de estrutural social.

No caso da Igreja, a partir da percepção de Bourdieu, a estrutura social


hierarquizante, por sua vez, interfere na morfologia dos espaços eclesiásticos. Estes
serão, então, o reforço desta dominante: lugares em que se realça a hierarquia,
acentua-se a autoridade e se desestimula a vivência coletiva e comunitária.

Segundo Paul Radin, o monoteísmo, que consistia em uma prática rara nas
sociedades primitivas, consolida-se em função da aparição de um corpo de
sacerdotes solidamente organizados.95 Esta organização e disciplina vai,
paulatinamente, desequilibrando a correlação de forças existentes entre as demais
expressões religiosas e o monoteísmo, favorecendo este, em detrimento daquelas.

Ao que se percebe, esta condição, determinante para a consolidação da


religião monoteísta, impôs a estratificação entre o corpo clerical e os leigos, no campo
simbólico (religioso). De um lado, aqueles que detém o Capital simbólico (religioso)
acumulado, de outro, aqueles que são desprovidos deste capital.

E como se pôde perceber quando passamos pela abordagem histórica, durante


toda a Idade Média, as próprias lideranças da Igreja estimularam esta estratificação
entre leigos e clérigos, atribuindo a estes uma condição privilegiada e àqueles, um
desprestígio.

Bourdieu, no capítulo Gênese e Estrutura do Campo Religioso, vai dizer:

Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de


salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente
reconhecidos como os detentores exclusivos da competência
específica necessária à produção ou à reprodução de um corpus
deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto
raros), a constituição de um campo religioso acompanha a
desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se
transformam, por esta razão, em leigos (ou profanos, no duplo sentido
do termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico
acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo
simples fato de que a desconhecem enquanto tal.96

95
Cf. Apud BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 37.
96
Ibid., p. 39.
44

A dicotomia entre o corpo clerical e o conjunto dos leigos ainda se aprofunda,


a partir da vinculação de outros conceitos tais como profano, magia e feitiçaria, ligados
ao corpo dos leigos, e o conceito de sagrado e religião, ligados ao corpo clerical. Esta
vinculação vai acentuar o abismo entre ambos os corpos no que se refere ao acúmulo
do Capital simbólico/religioso. Acerca disto, vejamos o que explicita Bourdieu:

A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e


os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de
ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de
administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição
entre o sagrado e o profano e, paralelamente, entre a manipulação
legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou
feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (ou
seja, a magia ou a feitiçaria como religião dominada), quer se trate da
profanação intencional (a magia como antirreligião, ou religião
invertida).97

Assim se consolida, ao que parece, o afastamento do conjunto dos leigos das


experiências religiosas, sem que, para tanto, tenham a mediação de um ou mais
clérigos. Obviamente que esta abordagem sociológica deve ser encaixada na sua
contextualização histórica, como anteriormente abordado.
Entretanto, em se tratando de perceber a relação entre profano e sagrado,
religião e magia/feitiçaria, e, observando-se as heranças ainda persistentes na
atualidade, nota-se que há certa permeabilidade entre ambos os conceitos, que, se
opondo, também se tocam.

Basta trazer à tona que as práticas de magia/feitiçaria visam objetivos


concretos, específicos, parciais e imediatos, enquanto as práticas religiosas visam
objetivos mais abstratos, genéricos e coletivos. Enquanto as práticas mágicas visam
a coerção ou a manipulação dos poderes sobrenaturais, as práticas da religião visam
a contemplação e a oração. Enquanto as práticas de magia baseiam-se no “toma lá,
dá cá”, as práticas da religião visam a gratidão e o cuidado com a Casa Comum.98

Lendo estes conceitos, não é difícil lembrar de muitas práticas que estão
circunscritas no campo da magia, mas que são recorrentemente evocadas na religião,
sobretudo quando se fala em religiosidade popular. Exemplo disto: o tradicional bolo
de Santo Antônio, realizado com a anuência do corpo clerical, ou mesmo o costume

97
Ibid., p. 43.
98
Cf. Ibid., p. 45.
45

de se impor certo castigo à imagem do santo, até que ele atenda o pedido da
candidata nubente, costume da religiosidade popular, sem, aparentemente, o
patrocínio clerical.

A despeito destes conceitos se tocarem em certo momento, segundo Bourdieu,


eles reforçam a tese da separação entre corpo clerical e corpo laical, acentuando o
abismo hierárquico existente entre ambos.

Esta estratificação da prática religiosa (corpo clerical x corpo laical) consiste no


reforço simbólico das características sociais e políticas percebidas no conjunto da
sociedade, como se a prática das vivências com o sagrado consagrasse e santificasse
o que se verifica tal e qual na sociedade. Como se esta violência simbólica
sedimentasse o modus de ser sociedade, sobre o qual nada se pode fazer, pois se é
tal como o sagrado, assim deverá permanecer. Sobre isto, Bourdieu vai dizer:

Em uma sociedade dividida em classes, a estrutura do sistema de


representação e práticas religiosas próprias aos diferentes grupos ou
classes, contribui para a perpetuação e para a reprodução da ordem
social (no sentido de estrutura das relações estabelecidas entre os
grupos e as classes) ao contribuir para consagrá-la, ou seja, sancioná-
la e santificá-la. Tal sucede porque no momento mesmo em que ela
se apresenta oficialmente como uma e divisa, esta estrutura se
organiza em relação a duas posições polares, a saber: 1) os sistemas
de práticas e de representações (religiosidade dominante) tendentes
a justificar a hegemonia das classes dominantes; 2) os sistemas de
práticas e representações (religiosidade dominada) tendentes a impor
aos dominados um reconhecimento da legitimidade da dominação
fundada no desconhecimento do arbítrio da dominação e dos modos
de expressão simbólicos da dominação (por exemplo, o estilo de vida,
bem como a religiosidade das classes dominantes), contribuindo,
desta maneira, para o reforço simbólico da representação dominada
do mundo político e do ethos da resignação e da renúncia diretamente
inculcada pelas condições de existência.99.

Desse modo, na perspectiva da teoria de Bourdieu, pode-se auferir que a


estrutura social numa comunidade religiosa pode ser eivada de disputas, conflitos e
convergências no campo simbólico e que a hegemonia em regra geral favorece
àqueles que residem no campo clerical em detrimento do campo laical. E esta tensão
da experiência religiosa se materializa na prática nas relações entre os atores sociais,

99
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, p. 53.
46

mas também, e sobremaneira, no desenho do espaço litúrgico, ou seja, na forma como


o espaço eclesial tende a realçar ou inibir este mecanismo.
Muito embora esta análise de Bourdieu seja importante, necessário se faz
dialogar com a sua tese, haja vista as experiências vividas na contemporaneidade.
Desde o Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II e, aqui na América Latina,
desde os documentos das Conferências Episcopais Latino Americanas (Medellin, em
1968; Puebla, em 1979; Santo Domingo, em 1992 e Aparecida, em 2007), o corpo de
leigos tem alcançado nova importância dentro da igreja, como “verdadeiro sujeito
eclesial”.100

Os próprios documentos produzidos pelo corpo clerical reconhecem que “os


leigos cumprirão mais cabalmente a sua missão de fazer com que a Igreja aconteça
no mundo, na tarefa humana e na história”.101 Já o documento de Santo Domingo
chama os Leigos de “protagonistas da transformação da sociedade”.102

Mas o destaque maior é para o documento de Aparecida, que pede “maior


abertura de mentalidade para que entendam e acolham o ‘ser’ e o ‘fazer’ do leigo na
Igreja, que por seu Batismo e Confirmação é discípulo e missionário de Jesus
Cristo”.103

Percebe-se, desse modo, ao menos nos documentos da Igreja aqui citados,


cuja produção teórica é advinda do corpo clerical, uma inversão que aparenta colocar
em xeque a tese bourdiana da estratificação entre o corpo clerical e o corpo laical. Ao
menos nos documentos, o laicato tem ganhado certo protagonismo dentro da
estrutura eclesiástica.

Entretanto, o que se observa, na realidade, é a existência de filtros que


obstaculizam o acesso a estes documentos por parte do povo das comunidades104.
Estes filtros, conforme descreveu a professora Maria Angela Vilhena, são constituídos

100
CELAM. Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano e do Caribe. 5. ed. Brasília-São Paulo: Edições CNBB-Paulinas-Paulus 2008, p. 497.
101
CELAM. Movimento de Leigos. In: II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano.
Conclusões de Medellin. Petrópolis: Vozes, 1970, 10.
102
CELAM. IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Conclusões de Santo Domingo.
São Paulo: Loyola, 1992, 98.
103
CELAM. Documento de Aparecida, p. 213.
104
Cf. VILHENA, Maria Angela. A religiosidade Popular à luz do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus,
2015, p. 103.
47

exatamente por membros do campo clerical (cardeais, bispos e padres), de tal modo
que o acesso aos documentos fica comprometido.

Na prática, então, percebe-se que a realidade é mais compatível com a tese


bourdiana do que com os documentos oficiais da Igreja. E isto se deve a inúmeros
fatores, um dos quais, citado acima, e outro, perseguido por este trabalho: a questão
morfológica, espacial, o lugar de encontro dos cristãos. A arquitetura do espaço
litúrgico pode estimular ou inibir o protagonismo do leigo na igreja.

Percebe-se que a maioria dos templos religiosos são edificados para reforçar
esta tese de dominação, a partir de uma luta simbólica que impõe uma definição
conforme determinados interesses. O trabalho em tela ousará dialogar com este
conceito sedimentado no campo religioso, propondo uma nova percepção, que poderá
orientar a edificação de espaços litúrgicos cristãos na perspectiva da valorização da
assembleia litúrgica cristã.

3.2 Conceito de espaço e lugar

Seria possível trabalhar o conceito de espaço/lugar sob diferentes perspectivas:


físico, geográfico, virtual/cibernético, enfim, os saberes acumulados oferecem uma
gama interessante de perspectivas para se abordar o sentido de espaço/lugar. Aqui
escolheremos algumas abordagens que poderão ser úteis ao desenvolvimento da
ideia de lugar da assembleia:
Segundo Milton Santos, o espaço é o resultado da interação do ser humano
com objetos que compõe determinado ambiente. Em seu livro, “Metamorfoses do
Espaço Habitado”, ele sintetiza:

O espaço seria um conjunto de objetos e de relações que se realizam


sobre estes objetos; não entre estes especificamente, mas para as
quais eles servem de intermediários. Os objetos ajudam a concretizar
uma série de relações. O espaço é resultado da ação dos homens
sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos, naturais e
artificiais. 105

105
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da
geografia. Hucitec, São Paulo, 1988, p. 25.
48

Milton Santos ainda busca dissociar o conceito de espaço e paisagem.


Enquanto este seria uma espécie de fotografia da sociedade, um instante fixo,
congelado, aquele é o resultado do dinamismo da sociedade associada à paisagem.
Em suas palavras:

A paisagem é diferente do espaço. A primeira é a materialização de


um instante da sociedade. Seria, numa comparação ousada, a
realidade de homens fixos, parados como numa fotografia. O espaço
resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O espaço
contém o movimento. Por isso, paisagem e espaço são um par
dialético. Complementam-se e se opõem.106

Se, para Milton Santos, paisagem e espaço são elementos diversos, ao menos
na obra “Metamorfoses do Espaço Habitado”, os conceitos de espaço e lugar
aparecem na condição de sinônimos. Vejamos o que ele diz sobre o sentido de lugar:
“O que define o lugar é exatamente uma teia de objetos e ações com causa e efeito,
que forma um contexto e atinge todas as variáveis já existentes, internas; e as novas,
que se vão internalizar.”.107

Ou seja, para Santos, tanto espaço, quando lugar possuem variáveis muito
parecidas. Ambos se definem como a relação entre os objetos pertencentes a
determinado meio e cuja relação produzirá novas resultantes.

O teólogo Eder Belling, na obra “Arquitetura e Liturgia”, para conceituar espaço


e lugar, apoia-se na produção teórica de Tuan108 e Bollnow109, que apresentam a ideia
de espaço vivencial/experiencial.110

A percepção consiste em concentrar os olhares para aquilo que pode ser


experimentado e vivenciado pelo ser humano por meio de uma relação com os
espaços e lugares. Bollnow afirma que não é possível analisar o espaço/lugar como

106
Ibid., p. 25.
107
Ibid., p. 97.
108
Yi-Fu Tuan é geógrafo sino-americano, autor de “Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência”
(São Paulo: Difel, 1983).
109
Otto Friedrich Bollnow arquiteto, pedagogo e filósofo alemão, autor de “O homem e o espaço”
(Curitiba: UFPR, 2008).
110
Cf. Apud BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto. Porto Alegre:
Livraria Fi, 2019, p. 45.
49

se ele fosse destacado do sujeito.111 Para ele, ambos só existem mediante a interação
com o ser humano e a sociedade.

Bollnow defende que “a espacialidade da vida humana corresponde ao espaço


vivenciado pelo homem (ser humano) e vice-versa, resultando numa forte ralação”,112
uma relação fenomenológica, na qual ambos são interpenetrados e influenciados
pelas contingências de cada ator, seja o espaço, seja o indivíduo.

Já para Tuan, nota-se um elemento qualificador para o conceito de lugar, em


relação ao espaço. Ele afirma que o lugar é um espaço privilegiado no qual o ser
humano se envolve de forma diferente. O que se percebeu como espaço, torna-se
lugar, à medida em que o conhecemos melhor e o dotamos de valor113.

E, obviamente, esta dotação de valor está condicionada à medida como os


indivíduos se relacionam com os espaços, para torná-los lugar. Logo, o tipo de
interação vai depender das idiossincrasias que ali se encontram, bem como da
comunidade, afinal, cada pessoa e porção da sociedade interagem com o lugar a partir
de suas próprias condições históricas e experiências.

Pensemos uma residência hipotética, sob a contribuição de Yi-Fu Tuan. A


edificação continuará sendo um espaço até que uma família escolha nela residir. A
partir de então, e considerando as relações ali experimentadas, a residência tornar-
se-á um lar, elemento qualificador da residência, que a fará deixar de ser um mero
espaço para tornar-se um lugar. Ou seja: para Tuan, “residência” está para o conceito
de “espaço”, assim como “lar” está para o conceito de “lugar”.

Entretanto, para qualificar a residência (espaço) como lar (lugar), não bastará
residir na edificação. Será preciso acontecer uma interação afetiva, na qual surjam
vínculos. Esta é condição indispensável para qualificar o espaço. Nesse processo, a
residência tornar-se-á muito mais do que paredes, pisos, telhado, janelas e portas,
arquitetonicamente ordenados. Ela transcenderá sua materialidade, revelando valores
imateriais. O lar será, então, a extensão de quem nele habita, ou seja, o corpo da
família dilatado, exibindo nas paredes aquilo que seus habitantes são.

111
Cf. Ibid., p. 46.
112
Ibid., p. 47.
113
Cf. Ibid., p. 51.
50

O lar é onde se evita a hostilidade do mundo (espaço) e, por isso mesmo, o


lugar do despir-se, do desvelar-se, onde o homem, a mulher e a criança encontrarão
refúgio pra revelarem-se frágeis, dóceis e amorosos. Será o primeiro lugar, onde a
criança se reconhece, se estabelece e se relaciona com os outros e com o mundo a
partir dos lugares habitados.

Basta recuperar memórias de infância e veremos algo surpreendente: a


importância da morada. Foi o lar, este lugar seguro e acolhedor, que abrigou as
primeiras experiências vividas, que nos fizeram ser o que somos hoje. Sem ele,
certamente, seríamos indivíduos diferentes do que somos.

Kelly Rodrigues, em seu trabalho apresentado no XI Encontro Nacional da


ANPENGE – Associação Nacional de Pós Graduação em Geografia, em 2015, reflete
sobre o ensinamento do geógrafo canadense Edward Relph, que conceitua o lugar
como sendo fonte existencial de autoconhecimento e responsabilidade social, como
microcosmo, onde os indivíduos se relacionam com o mundo e onde o mundo se
relaciona com o indivíduo.114

Em seu trabalho, ela também traz à tona a obra de Eric Dardel que, já em 1952,
foi reconhecida como a primeira obra geográfica inspirada pela fenomenologia. Dardel
definia o lugar como “suporte do ser”. Vejamos:

Em nossa relação primordial com o mundo, ao nos abandonarmos às


virtudes protetoras do lugar, firmamos nosso pacto secreto com a
terra, expressamos por meio de nossa própria conduta, que nossa
subjetividade de sujeito se encolha sobre a terra firme, se assente, ou
melhor, repouse. É desse lugar, base de nossa existência, que,
despertando, tomamos consciência do mundo e saímos ao seu
encontro, audaciosos ou circunspectos, para trabalhá-lo.115

Para Dardel, o lugar é a crisálida. Será na crisálida que a lagarta se entregará


às virtudes protetoras do casulo, para depois, feita borboleta sair ao encontro do
mundo.

114
Cf. RODRIGUES, Kelly. O conceito de Lugar: a aproximação da geografia com o indivíduo. In: Anais
XI Encontro Nacional da ANPEGE (Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia).
Presidente Prudente-SP, 2015
115
Cf. Ibid., p. 04.
51

Eduardo Marandola Jr., geógrafo, doutor e professor da UNICAMP, em sua


obra, “Qual o Espaço do Lugar”, nos brinda com uma reflexão de Berdoulay116 e
Entrikin117. Vejamos o que dizem esses pensadores:

Assim, o lugar repousa sobre a ideia de um sujeito ativo que deve, sem
cessar, tecer ligações complexas que lhe dão sua identidade, ao
mesmo tempo em que definem suas relações com seu ambiente. O
relato fornece o meio de operacionalizar o espaço conceitual assim
aberto. O lugar, como o sujeito, se institui e se exprime sobre o modo
privilegiado da narrativa.118

Falamos novamente em simbiose. Ao mesmo tempo em que a interação do


indivíduo com o lugar molda a sua identidade, esta interação define as relações com
o meio. E estas relações poderão influir de tal modo a modificar o meio, num ciclo
retroafetativo.
Ana Fani, autora do livro “O Lugar no/do Mundo”, define o lugar como:

Produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por


relações sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a
construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos
pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade, posto que
é aí que o homem se reconhece porque é o lugar da vida..119

Temos, então, para Fani, que o lugar é o resultado de uma interação entre ser
humano e a natureza, resultado este que, necessariamente, impactará a identidade
dos indivíduos.

O poeta francês Noël Arnaut diz que “Sou o espaço onde estou”120. Ora, sendo
esta sentença verdade, pode-se inferir que o espaço em que se está influencia
diretamente o ser. Por conseguinte, influencia a vivência em comunidade, pois a
comunidade é formada por indivíduos/membros, conforme nos ensina Paulo, apóstolo

116
Vicent Berdoulay, geógrafo, doutor pela universidade da Califórnia, coautor da obra “Lugar e
Sujeito”.
117
John Nicholas Entrikin, geógrafo, professor da universidade de Notre Damme, coautor da obra
“Lugar e Sujeito”.
118
Apud RODRIGUES, Kelly. O conceito de Lugar, p. 09.
119
Apud MARANDOLA JR, Eduardo et al. Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia,
fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 307.
120
Apud BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 146.
52

para a comunidade dos primeiros cristãos em Corinto (Cor 12,12-31), já abordado,


aqui, anteriormente.

Justus Dahinden, simpático à definição de espaço cunhada por Milton Santos,


afirma que as características do espaço provocam efeitos no ser humano que se
expõe a este espaço.121 Desse modo, vê-se que o ambiente construído para um
encontro qualquer, mas sobretudo para a reunião litúrgica, é determinante para o bom
andamento dos propósitos da celebração.

Jules Michelet, filósofo e historiador francês, ao falar da arquitetura dos


pássaros e da sua habilidade em construir o ninho, afirma que “a casa é a própria
pessoa, sua forma e seu esforço imediato; eu diria, seu sofrimento.” 122

Se transplantarmos a ideia do filósofo para a casa da Igreja, veremos que ela


é o ninho da comunidade reunida, o aconchego para os membros do Corpo Místico
de Cristo e é, exatamente, tal e qual, a somatória dos esforços dos seus membros e
até de seus sofrimentos.

Então, se o lugar é um espaço vivencial e experiencial, qualificado pelas


relações humanas, dotado de valor, onde o indivíduo se relaciona com a sociedade e
vice-versa, atualmente, pode-se falar da existência de um não-lugar. Este seria,
segundo o etnólogo e antropólogo francês Marc Augé, um espaço incapaz de dar
forma a qualquer tipo de identidade, desprovidos de significados, sem um caráter
relacional ou histórico, nos quais imperam a solidão e o transitório.123

Em geral, os não-lugares seriam espaços de transição (portos, aeroportos,


rodoviárias, autoestradas), mas também espaços públicos que não possuem valor
antropológico, nos quais, na maioria das vezes só coloca o indivíduo em contato
consigo mesmo.124 Baseado nestas percepções, Augé afirma que o espaço do
viajante seria, então, o arquétipo do não-lugar.125

121
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 27.
122
Apud BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço, p. 113.
123
Cf. MARTINS, Raquel Monteiro. A Ideia de Lugar, um olhar atento às obras de Siza. Coimbra:
FCTUC, 2009.
124
Cf. BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto, p. 93.
125
Cf. Ibid., p. 94.
53

Exemplo da tensão entre lugar e não-lugar se dá quando nos permitimos uma


viagem longa. O retorno será sempre marcado pelo desejo do reencontro com o lugar
que lhe confere identidade: sua cidade, bairro, lar. Estando na estrada, dirigindo, basta
avistar, mesmo que de longe, os primeiros sinais da cidade na qual se reside, para
que o indivíduo se tranquilize e relaxe. Enfim, a ânsia por chegar em casa, após a
viagem de férias, por exemplo, desvela duas necessidades interessantes: primeiro,
por mais prazeroso que seja uma viagem, o impacto dos não-lugares incomoda; em
seguida nota-se a necessidade dos lugares para que se possa distensionar.

Entretanto, Augé afirma que a linha tênue que separa o lugar do não-lugar não
existe como antes.126 Para ele, estes espaços estão misturados, sobrepostos e
interpenetrados.127

Vejamos os grandes centros de compras, como, por exemplo, os shoppings.


Nestes não-lugares, a regra será desestimular a interação qualificadora do lugar
para estimular a ação individual, acentuando a vontade de consumir das pessoas.
Zigmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, em sua obra “Modernidade Líquida”,
afirma que:

Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão


individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem,
para eles. Não acrescentaria nada aos prazeres de comprar e
desviaria corpo e mente da tarefa.128

Ali é o ambiente para se consumir, não interagir, não para socializar. Qualquer
situação que não seja o ato de consumir deverá ser, então, desestimulada. Inevitável
não trazer à tona o fenômeno social ocorrido em vários shoppings de São Paulo em
2014. Muitos jovens, centenas deles, a esmagadora maioria sem poder de consumo,
decidiram passear pelas alamedas ladeadas por ricas vitrines no interior dos
shoppings129. Estas atividades ficaram conhecidas como “rolezinhos”. Entretanto,
além de não consumirem, aqueles jovens atrapalhavam os que queriam consumir.

126
Cf. Ibid., p. 95.
127
Cf. Ibid., p. 95.
128
BAUMAN, Zigmunt, Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 114.
129
Cf. PINTO, Tales dos Santos. Rolezinhos e discriminação social. Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/historiab/rolezinhos-discriminacao-social.htm>. Acesso em: 10 fev.
2020.
54

Desse modo, os únicos indivíduos que estavam qualificando o espaço, transformando-


o em um lugar, por meio de suas relações e interações, foram violentamente expulsos
daquele ambiente. Sinal de que a vocação daquele espaço é ser um não-lugar.
Enfim, considerando as abordagens dos pensadores elencados e a despeito
da abordagem do geógrafo Milton Santos, que considera espaço e lugar como
sinônimos, esta pesquisa considerará a distinção entre espaço e lugar proposto
inicialmente por Yi-Fu Tuan.

Desse modo, para efeito de leitura e interpretação deste trabalho, lugar será
entendido como um espaço antropológico, dotado de valor, no qual o indivíduo e a
comunidade interagem, visando qualificá-lo, tornando-o um ambiente afetivo. O
opostos disto será considerado não-lugar, ambiente no qual a interação deve ser
desestimulada e a impessoalidade e o individualismo potencializados.

Mais adiante discorreremos, então, acerca do lugar da assembleia litúrgica,


porém, antes desenvolveremos a ideia das diferenças que coabitam os lugares.

3.3 A coexistência de diferenças não assimiladas

O ambiente antropológico, denominado lugar, no qual as pessoas interagem e


que traz consigo tensões simbólicas, como já abordado no início deste capítulo a partir
da contribuição de Bourdieu, é, obviamente, constituído por atores sociais bastante
diferentes uns dos outros. E esta diferença, seja de qual categoria for (social,
econômica, de gênero, geracional, racial), é o elemento catalizador que potencializa
o aprimoramento do sentido de comunidade.

A antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, na obra “Cidade de Muros, Crime,


Segregação e Cidadania em São Paulo”, cunhou um termo bastante interessante que
contribuirá para o desenvolvimento destes estudos. Faz uma crítica ao desenho
urbano contemporâneo que estimula a segregação socioespacial, e propõe um
contrapondo ao defender a necessidade de lugares que acolham a coexistência de
diferenças não assimiladas130.

130
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo.
São Paulo: Edusp, 2000. p. 308.
55

Em síntese nossa autora diz que os espaços devem promover a coexistência


de diferenças que jamais serão assimiladas pelos indivíduos, mas que, se tais sujeitos
diversos forem estimulados a coabitarem os mesmos ambientes, tais diferenças
moldarão estes mesmos sujeitos, promovendo neles a alteridade e tornando-os mais
sensíveis uns aos outros. Ou seja, na medida em que as pessoas se dispõem a
conviver com outras pessoas bastante diferentes de si, ambas serão lapidadas umas
pelas outras, a partir daquilo que elas não possuem em si, ou seja, as diferenças não
assimiladas.

Numa linguagem mais apropriada para o ambiente confessional cristão, poder-


se-ia dizer que a coexistência de diferenças não assimiladas contribui para tornar as
pessoas mais semelhantes a Cristo. Senão vejamos, os relatos dos Evangelhos são
categóricos ao nos revelar como Jesus tratava as pessoas diferentes: sem exceção,
a regra era o acolhimento. Além disso, o próprio apóstolo Paulo, ao sistematizar a
teologia do Corpo Místico de Cristo (a Igreja), faz analogia bastante pedagógica
comparando a Igreja ao corpo humano. E nesta comparação ele ousa desaviar nossa
capacidade de ver o óbvio, lançando perguntas retóricas: o corpo é composto um só
membro? Todos os membros são iguais? E assim ensina que é a diversidade dos
membros que dá ao corpo importante valor (ICOr 12,12-27).

Para a comunidade cristã, a coexistência de diferenças não assimiladas é fator


indispensável, pois ela contribui para conduzir o peregrino para o caminho da
santidade, para torná-lo imagem e semelhança de Deus. A convivência é fator
indispensável para se combater o preconceito, para se compreender as razões
alheias, para se exercitar a empatia. Na medida em que alguém é estimulado a
conviver num lugar com outra pessoa bastante diferente de si, o atrito inicial que
porventura surgirá será o elemento lapidador, que aparará as arestas de um e de
outro, fazendo ambos sujeitos melhores. Para tanto, é preciso que a comunidade
estimule a coexistência de diferenças não assimiladas, convidando as pessoas para
viver esta experiência transformadora. O lugar da assembleia é, por excelência, o
loccus que deve acolher este fenômeno.
56

Capítulo quarto
A ASSEMBLEIA LITÚRGICA

Onde, afinal, é o melhor lugar do mundo?


Meu palpite: dentre de um abraço.
(Martha Medeiros)131

Neste capítulo, abordaremos a condição da assembleia como protagonista da


celebração, para em seguida avaliar a espacialidade, o lugar a ela reservado, na
intenção primeira de se identificar alguma coerência entre o sentido da assembleia,
como Corpo Místico de Cristo, e o ambiente no qual ela vivencia sua condição
cristológica.

4.1 Assembleia litúrgica: sujeito integral da celebração

O termo assembleia costuma significar um grupo qualquer de pessoas reunidas


em torno de algum objetivo que lhes seja comum. Já, para a igreja, o termo ganha um
adjetivo que o qualifica: assembleia litúrgica, mais ainda, assembleia litúrgica cristã.
Neste caso, a reunião se refere a um grupo de fiéis reunidos em nome de Cristo e que
escolheram se inserir na dinâmica da vida cristã.132

Acerca do verbete em análise, Armando Cuva explicita: “a assembleia litúrgica


cristã não é simples símbolo da igreja: é, sobretudo, sua manifestação mais
expressiva e acessível, é a sua verdadeira epifania”.133

As pessoas se encontram dispersas nos seus afazeres cotidianos, mas se


sentem vinculadas umas às outras por uma profissão de fé. Estas, periodicamente,
encontram-se. E este encontro deve ser festivo, motivado pela alegria do reencontro,
de estarem juntas, da conversa amiga e da partilha dos acontecimentos outrora

.131 MEDEIROS, Marta. Pensador. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/ODA5Njcy/>


Acesso em: 10 fev. 2020.
132
Cf. CUVA, Armando. Assembleia. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (Orgs.), Dicionário
de liturgia, São Paulo: Paulinas, 1992, p. 95.
133
Ibid., p. 97.
57

vividos. Esta troca, esta partilha das dores e alegrias são incentivos que impelem as
pessoas a se encontrarem.

Marko Rupnik ensina que a missa se inicia quando os católicos deixam suas
casas em direção à Casa da Igreja.134 Armando Cuva, no Dicionário de Liturgia,
quando escreve o verbete “Assembleia”, afirma que:

Durante a celebração litúrgica, o exercício das várias funções e tarefas


não deve ser expressão de individualismo ou causa de desunião, mas
deve obter a unidade profunda e orgânica da assembleia, que sirva de
sinal claro da unidade de todo o povo de Deus.135

Com a licença para parafrasear a citação acima, empurrando a brasa


fumegante para a sardinha desta monografia, pode-se dizer que o espaço litúrgico e
o lugar da assembleia não devem estimular o “individualismo” ou favorecer a
“desunião”, mas devem promover a “unidade profunda e orgânica da assembleia” e
que “sirvam de sinais claros da unidade de todo o povo de Deus”.

O evangelho de João fixa que era preciso que Jesus morresse para reunir na
unidade os filhos de Deus que estão dispersos (Jo 11,52). Os encontros dos cristãos,
então, são motivados por esta mística Cristã: celebrar o Mistério Pascal (encarnação,
vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo) e sua resplandescência, em vista da
antecipação do Reino de Deus. E viver o Reino em vista de sua antecipação é
necessariamente viver em comunidade, tal como faziam as primeiras comunidades
cristãs, como já vimos.

Para expressar esta realidade peculiar, surgiu uma linguagem própria. Luis
Maldonado afirma que para expressar este encontro de fiéis utilizavam-se os termos
syneleusis, synagogé, coetus, convocatio, congregátio, collecta, processio, synaxism
synerjomai, azroitzomai, coire, convenire, congregari136. Mas a despeito de toda esta
nomenclatura, o termo que se consolidará será ekklesia, vocábulo latinizado a partir
do grego e que significará não só uma comunidade, mas a sua reunião periódica num
local determinado e a partir de um chamado, de uma convocação 137. Daí deriva o

134
Cf. RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica, p. 206.
135
CUVA, Armando. Assembleia,103.
136
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração, p. 163.
137
Cf. Ibid., p. 164.
58

termo conhecido “Igreja”, que é facilmente confundido com a edificação, mas que seu
real sentido é povo reunido em assembleia, mediante uma convocação. Os primeiros
cristãos chamavam o local onde se reuniam de domus Ekklesia, ou seja, casa da
Igreja.

Atualmente, para facilitar a comunicação entre o povo cristão, convencionou-


se chamar o templo de igreja com “i” minúsculo, enquanto que a assembleia litúrgica
cristã é nominada por Igreja com “I” maiúsculo. Esta terminologia, entretanto, soa
inadequada, sobretudo para a comunicação verbal, na qual não se percebe a grafia,
mas também porque a similaridade entre ambos pode suscitar confusões. Por esta
razão e considerando a grande diferença entre Edifício/Templo e Assembleia Orante,
e em homenagem às primeiras comunidades cristãs, este estudo utiliza a terminologia
Casa da Igreja para mencionar o templo.

Se Jesus morreu e ressuscitou para reunir os filhos de Deus dispersos pelo


mundo e se a reunião é um encontro festivo, o que se percebe, então, é que não é
possível uma celebração litúrgico-cristã acontecer com algumas poucas pessoas,
numa celebração “missa sine populo” (apenas com sacerdotes e ministros). Também
não é possível existir aqueles que celebram e aqueles que assistem. A liturgia será
obra de todos e consiste numa ação global, totalizante.138 Ela é uma ação da Ekklesia,
sendo necessário que todos os membros estejam comprometidos com o seu
acontecimento.

Antes do Concílio Vaticano II, o missal referia-se ao padre como “o celebrante”,


já o novo missal o considera “sacerdos celebrans”, o sacerdote celebrante, indicando
que há outros celebrantes além do padre.139

Klemens Richter defende que “do ponto de vista teológico a liturgia já não é
entendida como uma tarefa do pároco ou de outros funcionários profissionais, mas é
uma tarefa de toda a comunidade”.140

138
Cf. Ibid., p. 165.
139
Cf. Ibid., p. 165.
140
RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 73.
59

Lutero afirmou que todas as pessoas cristãs que se encontram no templo, no


momento de sua dedicação deveriam pegar os materiais litúrgicos e ajudar na
dedicação.141

Entretanto, a despeito dos ensinamentos dos documentos da igreja, da


Patrística e do próprio Evangelho, permanece um desprestígio do lugar da
assembleia. Vivemos uma sacralidade ambígua, excessivamente ligada a objetos e
às coisas e desconectada das pessoas. Ajoelhamos diante do tabernáculo vazio, logo
após a comunhão e, na sequência, negamos Cristo no irmão. Esta condição
potencializada, ampliada, oferece pistas para explicar o costume equivocado em não
se privilegiar o lugar da assembleia no espaço celebrativo.

Costumeiramente, vemos espaços de celebração que desprestigiam a


assembleia, seja pela posição e formato do presbitério, seja pela disposição da
assembleia que não revela o sentido de corpo, Corpo Místico de Cristo.

A assembleia litúrgica é o povo sacerdotal que, convocado pela Palavra, que é


Cristo, se reúne para celebrar o Mistério Pascal. Sujeito da celebração, ela expressa
e manifesta a Igreja como Corpo de Cristo, reunido pela ação do Espírito Santo: “Pois
onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles”
(Mt18).

Martimort afirma claramente que: “la misa y los sacramentos exigen la


asamblea, y piden imperiosamente la reunión efectiva, real, del Pueblo cristiano.”.142

Ele ainda se propõe uma questão retórica para reforçar sua tese. Ele se
pergunta acerca da eficácia do sentido da assembleia, como Corpo de Cristo, se
temos a presença real d’Ele na Eucaristia. E, então, sai em defesa da essencialidade
da assembleia reunida para que a eucaristia aconteça. Em suas palavras: “En primero
lugar porque la eucaristía supone la asamblea, como algo previo, y porque sin el

141
Cf. Apud BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto, p. 59.
142
Ibid., p. 176. A missa e os sacramentos exigem a assembleia e pedem, urgentemente, a reunião
efetiva e real do povo cristão (tradução nossa).
60

estudio de la asamblea no seríamos tan sensibles al aspecto comunitario de la


eucaristía”.143

Continuando em defesa do sentido da assembleia, como corpo místico de


cristo, ele radicaliza:

Pero independientemente de la eucaristía y de los demás


sacramentos, Cristo estás presente en la asamblea litúrgica, como
leemos: “Donde dos o tres se hallen congregados em mi nombre, allí
me hallo yo em medio de ellos” (Mt18,20) 144

Martimort não tem dúvida alguma de que a assembleia litúrgica carrega em si


a presença de Cristo, ligada ao fato da reunião, do encontro daqueles que comungam
dos mesmos princípios.

Algo bastante interessante que Martimort nos traz refere-se à variante da


tradição de Edesa e Seleucia-Tesi, sobre o mandamento de Jesus na última ceia:
“Heced esto em memoria mía cuando os reunáis en asamblea.”145

Já Bergamo e Petre afirma que a assembleia, convocada como Corpo de Cristo


é o primeiro sacramento. Dizem eles “La chiesa, l’ecclesia, l’assembrea convocata
come corpo di Cristo e quindi gerarchicamente ordinata, è il primo sacramento dela
liturgia dela mesa”.146

Congar147 fala acerca da expressão Assembleia Litúrgica, evidenciando a força


do adjetivo que qualifica o sujeito, mostrando que o elemento essencial que constitui
a assembleia litúrgica é o chamado, que, uma vez aceito, faz o indivíduo ser enxertado
no corpo comunhonal de Cristo. Suas palavras:

143
Apud GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica en la obra de A.G. Martimort. Barcelona:
Centro de Pastoral Litúrgica; 1. ed, 2004, p. 190. Em primeiro lugar, porque a Eucaristia supõe a
assembleia como algo anterior e porque, sem a reunião da assembleia, não seríamos tão sensíveis
ao aspecto comunitário da Eucaristia (tradução nossa).
144
Mas, independentemente da Eucaristia e dos outros sacramentos, Cristo está presente na
assembleia litúrgica, conforme lemos: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estou
no meio deles” (tradução nossa).
145
Apud GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica en la obra de A.G. Martimort, p. 204.
Façam isto em memória de mim quando reunidos em assembleia (tradução nossa).
146
Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, Bolonha:
Dehoniane, 2003, p. 208. A igreja, a ecclesia, a assembleia é chamada como o corpo de Cristo e,
portanto, hierarquicamente ordenada, é o primeiro sacramento da liturgia da mesa da eucaristia
(tradução nossa).
147
Yves Marie Joseph Congar, eclesiólogo, teólogo dominicano e cardeal francês.
61

Si parla di assemblea litúrgica. È chiaro che l’aggettivo qui è decisivo;


nel senso forte del termine, esso specifica. Non ogni raggruppamento
di persone è um’assembrea: bisogna essere stati invitati, aver risposto
a uma convocazione. C’è inogni assemblea um elemento che la
costituisce, um qualcosa che viene proposto di fare insieme. Nel caso
specifico è il culto da rendere a Dio come corpo comunionale di Cristo,
trovando in questo da rendere a Dio come corpo comunionale di Cristo,
trovando in questo um beneficio personale di vita santa. Questo culto
non è lasciato ala mostra iniziativa pura e símplice, ma viene da Cristo,
viene dal suo corpo, è l’atto di Cristo e del suo corpo, noi siamo invitati
a entravi dentro, a uniri a questo. Proprio perché è di Cristo e del suo
corpo è litúrgico.148

Luis Maldonado, no livro “A Celebração da Igreja”, cita o exemplo de várias


comunidades monásticas que, para celebrar a santa Eucaristia, dividem-se em dois
grupos de fiéis, um grupo de frente para o outro, de tal modo que, enquanto celebram,
entreolham-se e se contemplam, vislumbrando no rosto do irmão, que canta e ora, o
sinal do rosto do próprio Cristo149.

Klemens Richter também lembra que as igrejas conventuais colocavam os


clérigos e os monges em cadeiras frente a frente. Nas celebrações nos monastérios,
estes dois grupos, defronte um para o outro, cantavam de forma alternada 150.

Tal morfologia da assembleia monástica, citada por Maldonado e Richter,


contribui para se encontrar uma forma de disposição da assembleia que possa ajudar
os fiéis a meditar a mística cristã e favorecer o encontro de irmãos. A percepção visual
do conjunto dos membros contribui para a percepção do corpo da assembleia, o Corpo
Místico. Além disso, esta forma de disposição da assembleia, segundo ainda
Maldonado,151 evita um clima letárgico e de passividade, que predomina em muitas
igrejas, favorecendo, por outro lado, o encontro festivo de irmãos.

148
PRETOT, Patrick. Spazio Liturgico e Orientamento, p. 111. Fala-se em assembleia litúrgica. É claro
que o adjetivo aqui é decisivo; no forte sentido do termo, ele especifica o sujeito. Nem todo grupo
de pessoas é uma assembleia: você deve ter sido convidado, deve ter respondido a um chamado.
Em toda assembleia existe um elemento que a constitui, algo que se propõe a ser feito em conjunto.
No caso específico, é o culto a ser dado a Deus como o corpo comunhonal de Cristo, encontrando
neste um benefício pessoal da vida santa. Este culto não é deixado para mostrar iniciativa pura e
simples, mas vem de Cristo, vem de seu corpo, é o ato de Cristo e seu corpo, somos convidados a
entrar nele, a se juntar a ele. Precisamente porque pertence a Cristo e ao seu corpo é litúrgico.
(tradução nossa)
149
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração, p. 166
150
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 68.
151
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração, p. 166.
62

Maldonado ainda defende que a assembleia deve ser aberta, plural,


diversificada e heterogênea, como sinal inequívoco da universalidade do amor do
Pai152. Ideal é que se congregue pessoas de diferentes idades, gerações, gênero, e
culturas, mesmo que entre elas haja motivos de divisão na vida civil153, tal como a
utopia cristã do pentecostes escatológico154, onde, apesar de falarem idiomas
distintos, respeitando-se a diferença e a diversidade, todos se entendem. A
assembleia cristã é, então, o novo pentecostes, como contrarréplica da torre de
Babel155.

Vimos, no capítulo dedicado às questões sociológicas, a importante


contribuição da antropóloga Tereza Caldeira, que trouxe a ideia fundamental da
coexistência de diferenças não assimiladas.156 O A. Cuva, quando desenvolve o
verbete sobre a Assembleia litúrgica, afirma que:

...a assembleia, portanto, não reúne apenas santos e perfeitos, não é


reserva de uma elite espiritual. Acolhe todos, santos, imperfeitos,
pecadores, para que em todos se manifestem os prodígios da
misericórdia e da graça de Deus e, assim, a igreja toda ‘vá purificando-
se e renovando-se dia após dia, até que Cristo a faça comparecer
resplandecente, sem mancha, nem ruga, diante dele.157

Sobre a saudável diversidade encontrada na assembleia, Martimort afirma que:

La primera ley consiste em que la asamblea litúrgica, como la Iglesia,


reúne lo que estaba disperso. Es uma reunión em la igualdad entre
hombres y mujeres de toda tribu, lengua nación, condición social. De
toda esta diversidade Cristo há hecho um solo Pueblo, um solo
cuerpo.158

152
Cf. Ibid., p. 167.
153
Cf. Ibid., p. 167.
154
Cf. Ibid., p. 167.
155
Cf. Ibid., p. 168.
156
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo.
São Paulo: Edusp, 2000, p. 308.
157
CUVA, Armando. Assembleia, p. 101.
158
Apud GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica en la obra de A.G. Martimort, p. 179. A
primeira lei é que a assembleia litúrgica, como a Igreja, reúne o que foi disperso. É um encontro de
igualdade entre homens e mulheres de todas as tribos, idiomas e status social. De toda essa
diversidade, Cristo criou um único povo, um único corpo (tradução nossa).
63

E ainda continua: “la asamblea litúrgica no es, pues, la reunión de una elite de
exquisita formación, una sociedad de perfectos. Sólo dos condiciones se piden para
entra em ella: la fe profesada y el bautismo”.159

Para fundamentar sua defesa em favor da diversidade que se deve encontrar


nas assembleias litúrgicas, Martimort recorre aos evangelhos. Lembra do grupo de
cochos, cegos e aleijados que foram “obrigados” a adentrar ao banquete do rei
(Lc14,23) e ainda do grupo de trabalhadores que, apesar de trabalhar menos,
recebem o mesmo salário daqueles que trabalharam o dia todo (Mt 20,1-16).160

Ambas as citações, além de serem sinais claros do acolhimento da diversidade


que enriquece a comunidade cristã, é sobretudo uma postura radical em favor dos
menos favorecidos. Tanto os deficientes, quanto os desempregados precisam ter sua
dignidade garantida e a dignidade não é uma grandeza abstrata.

Por esta razão, é inconcebível assembleia litúrgico-cristã de iguais.


Parafraseando Paulo, o apóstolo do Corpo Místico, seria como se um corpo fosse
composto apenas por pés, ou mãos, ou narizes. Impossível!

Para são João Crisóstomo, a Igreja “foi feita, não para separar aqueles a quem
reúne, mas para unir e juntar os que se acham separados. É isso que significa
assembleia.”.161

Então, se a assembleia é para unir os que se acham separados, o lugar no qual


ela, assembleia, encontra-se deve ser facilitador deste encontro, nunca obstáculo.
Entretanto, o que se percebe na maioria das Casas da Igreja é que os ambientes, ao
invés de promover esta união, vão por caminho oposto: afastam.

159
Apud GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica en la obra de A.G. Martimort, p. 180. A
assembleia litúrgica não é, portanto, o encontro de uma elite de requintada formação, uma
sociedade perfeita. Apenas duas condições são solicitadas para entrar nela: a fé professada e o
batismo (tradução nossa).
160
Cf. GONZÁLEZ PADRÓS, Jaume. La asamblea litúrgica es un signo, p. 238.
161
Apud MARTINS, Nabeto Carlos. A Igreja de Cristo: citações patrísticas. 4. ed. São Paulo: Clube de
Autores, 2012, p. 114.
64

4.2 O lugar da assembleia

A assembleia é sujeito da celebração, mas é também o espaço humano onde


ela acontece162. Não é possível viver a experiência cristã no isolamento, na solidão.

Os padres capadócios Basílio163 e Gregório Nazianenzo164 defendem que o


modo segundo o qual existe o nosso Deus é o relacional165. O modo segundo o qual
Deus existe é comunhonal. Deus é comunhão, uno e trino. Uma comunidade perfeita.
Ora, se o próprio Deus escolheu se revelar à humanidade na condição de
comunidade, em três pessoas, e não de forma individual, isto é o sinal claro de como
se pode encontrá-lo: somente em comunhão, somente na comunidade.

Por esta razão, o encontro da assembleia é anterior ao espaço físico-


arquitetônico, como ensina Paulo, quando escreve aos Efésios: “a Igreja enquanto
comunidade de crentes reunidos em torno do Cristo é o templo santo” (Ef2,19-22).
Portanto a comunidade reunida precede o edifício no qual o encontro acontece.

Entretanto, Luis Maldonado vai dizer que é necessário evitar que o templo seja
considerado um espaço meramente funcional, se assemelhando com uma simples
sala de conferências, de reuniões ou congressos166, pois o templo deve expressar seu
significado cristão-eclesial.

O concílio de Niceno II, ocorrido em 787, na cidade de Niceia, atual Iznik,


Turquia, diz que: “quando os cristãos se dispersam pelo mundo, trabalhando durante
a semana, se alguém entra na igreja, mesmo se não houver celebração litúrgica, o
altar, o ambão, a arquitetura, as paredes, já revelam por si só o que é a Igreja.”167

O templo, em sua finalidade simbólica deve estar a serviço da potencialização


do que ali se celebra na liturgia: o encontro para celebrar o Mistério Pascal. E, mesmo
quando não houver celebrações, ele deve testemunhar a verdade que ali se professa.

162
Cf. MALDONADO, Luis. Onde e quando se celebra. Espaços e tempos de celebração. In: In:
BOROBIO, Dionísio (Org.). A celebração da Igreja, p. 176.
163
São Basílio Magno, teólogo, Bispo de Cesareia (Capadócia) e Doutor da Igreja.
164
São Gregório de Nazianenzo, teólogo, Bispo e Doutor da Igreja.
165
Cf. RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica, p.106.
166
Cf. MALDONADO, Luis. Onde e quando se celebra. Espaços e tempos de celebração, p. 176
167
RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica, p. 86.
65

Entretanto, foi o movimento litúrgico que promoveu, a partir dos anos 20 do


século XX, uma nova concepção de espaço litúrgico168. A passagem de uma piedade
privada e individual para uma vivência em comunidade e centrada na comunhão
eucarística exigiu a reconfiguração dos espaços de celebração. Alguns arquitetos
alemães, afirma Klemens Richters, assumiram o desafio de transferir as intenções do
movimento litúrgico para o espaço edificado das casas da Igreja169. Entendia-se que
o edifício podia promover a participação ativa dos fiéis ou, em sentido oposto,
prejudicá-la.

Bergamo e Petre ousam afirmar que a disposição arquitetônica da assembleia


litúrgica impõe situações de incapacidade de sair da inércia e, portanto, de uma liturgia
pré-conciliar, tipo clerical. Suas palavras: “Infatti è la disposizione che caratterizza le
situazioni di incapacita a uscire dall’inerzia di uma liturgia preconciliare, di tipo
clerical.”170

Igrejas de plantas longitudinais, com o espaço axialmente orientado para o


altar, foram modificadas buscando alternativas que favorecessem a disposição de
lugares de reunião ao entorno do altar171, manifestando a nova compreensão de que
toda a comunidade é o sujeito da ação litúrgica.

O palácio de Rothenfels consagrou-se como um exemplo interessante extraído


do livro de Klemens. Em 1928, Rudolf Schawrtz, arquiteto que tentou materializar no
espaço as ideias de Romano Guardini172, interveio na capela do palácio, propondo
readequações litúrgicas que expressassem a novidade do Movimento Litúrgico. O
ambiente foi limpo, retirou-se os elementos da arquitetura gótica e ornamentos
barrocos, e nele foram alocadas as cadeiras, cujas disposição buscou revelar o
sentido de comunidade e de Corpo Místico de Cristo. Eis o desenho esquemático dos
ensaios de Schawrtz:

168
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 24.
169
Cf. Ibid., p. 24.
170
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 193. De
fato, é a disposição que caracteriza situações de incapacidade de sair da inércia de uma liturgia
pré-conciliar, de tipo clerical (tradução nossa).
171
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 25.
172
Romano Guardini (1885-1968) foi um influente teólogo do século XX. Contribuiu decisivamente para
preparar o caminho para o Concílio Vaticano II.
66

Ilustração 01. Sala dos cavalheiros do Palácio de Rothenfels (1928).


Quatro possibilidades de utilização do espaço

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de Klemens RICHTER,


Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas.

A reforma litúrgica recuperou a concepção cristã de celebração. Em vez de uma


liturgia do clero, predominante na Idade Média, a celebração litúrgica passou a ser
responsabilidade de toda a assembleia, na qual cada um deve fazer aquilo que lhe
compete. São João Crisóstomo disse que se eu digo “o Senhor esteja convosco” e eu
não escuto a resposta, não posso continuar a celebração173. Em vez de uma
celebração estática, na qual o povo apenas contempla, surge uma celebração
participativa, dinâmica, na qual o foco é o encontro com Cristo, presente na
comunidade reunida.

173
Cf. Apud RUPNIK, Marko Ivan. A arte como expressão da vida litúrgica, p. 106.
67

E esta nova perspectiva para a assembleia litúrgico/cristã exige um novo


espaço. Um lugar no qual todos estejam ao redor do Altar174, que promova o encontro,
a experiência da alteridade, a coexistência de diferenças não assimiladas, um lugar
que minimize as tensões simbólicas que afastam o corpo clerical do corpo laical,
impondo divisão ao Corpo Místico. Enfim, um ambiente dotado de valor afetivo, que
favoreça e aprimore a experiência cristã de viver em comunidade.

O liturgista italiano, Armando Cuva, quando aborda o tema da assembleia


afirma que: “a própria disposição geral do lugar sagrado deve ser tal que sirva como
verdadeira expressão da assembleia nele reunida e que favoreça a comunicação
entre os vários participantes175. Esta descrição induz a imaginar tipologias de plantas
nas quais se possam perceber a expressão da assembleia (corpo místico) e se possa,
também, favorecer a comunicação entre os participantes.

Klemens mostra que em oposição ao modelo basilical costumeiro, na igreja do


oriente, havia espaços centralizados, hexagonais, octogonais ou em forma de cruz
grega, formando o ideal de círculo com o ponto central no altar176. Nestes modelos,
diferentemente da forma basilical dominante, os fiéis podem se acomodar de forma
circundante, voltados para um centro comum. Ele afirma que estas tipologias são
raras nas igrejas do ocidente, apesar do registro de um exemplar interessante: a
capela palatina octogonal de Carlos Magno177.

174
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 33.
175
CUVA, Armando. Assembleia, p. 102.
176
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 59.
177
Ibid., p. 59.
68

Ilustração 02. Capela Palatina de Carlos Magno

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Capela_palatina#/media/Ficheiro:AachenChapelDB.svg

Segundo o liturgista alemão Philipp Harnoncourt, “a divisão do espaço em


presbitério e nave, em zona da liturgia (palco) e espaço de espectadores (plateia), não
é desejada”.178

Obviamente, pretende-se com esta afirmação dizer que a forma do espaço


litúrgico deve manifestar a unidade íntima e coerente do Corpo Místico de Cristo.
Entretanto, em alguns casos, muito em função das dimensões das igrejas, será
necessário que o presbitério seja elevado em dois ou três degraus, para promover a
adequada participação de todos. Contudo deve-se evitar a ideia de palco, que possa
impor alguma barreira física e simbólica entre os que celebram, noutras palavras:
sendo necessários degraus, recursos arquitetônicos devem ser utilizados para
minimizar a ideia de separação entre clero e assembleia, afim de se promover a
unidade do Corpo.

178
Apud RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 34.
69

Quando da necessidade da execução de degraus, é de fundamental


importância a construção de rampas de acesso para pessoas com alguma deficiência
de mobilidade, seja permanente ou temporária. Esta condição é exigência das normas
nacionais e internacionais, entretanto, mesmo que tal conjunto normativo não
existisse, a acessibilidade deveria ser considerada mandamento cristão. Simples:
aproximar-se do altar da ceia é dádiva para todos, independentemente de sua
condição de mobilidade. Qualquer obstáculo que impeça um cadeirante de se
aproximar do altar é contratestemunho cristão. Mesmo que numa comunidade nunca
haja um cadeirante, a rampa cumprirá um papel simbólico. A sua existência será sinal,
para todos, de que aquele lugar é acolhedor.
Já sobre as igrejas longilíneas (igrejas corredor), Schwarz diz:

Falta a perspectiva dos olhos nos olhos, aqui ninguém vê o outro à sua
frente, todos olham para a frente. Aqui falta o intercâmbio quente das
mãos, a entrega do homem ao homem, a circulação de uma ligação
cordial, já que aqui cada um está solitário no contexto. A forma
longitudinal deixa cada um sozinho no todo, o coração permanece em
solidão. As pessoas não podem sentir-se cordialmente próximas, já
que este esquema não tem um coração.179

Klemens sugere que as pessoas vêm para a celebração com o desejo de maior
proximidade, de serem aceitas e amadas, mas, ao mesmo tempo, retraem-se perante
o encontro com alguém desconhecido180. Nota-se, segundo o autor, uma tensão entre
o desejo da experiência da proximidade e a situação real de acanhamento e
distanciamento para com o outro desconhecido no encontro litúrgico.
Soma-se a isto o fato de que se houver pequenos conflitos entre as pessoas já
conhecidas, estes poderão ser motivos de afastamento, de fuga das contendas,
procurando evitar a troca de olhares, frente-a-frente, entre os atores. Tal fenômeno
social, já tratado neste ensaio a partir do conceito de Coexistência de Diferenças Não
Assimiladas181, é algo que enriquece e fortalece a comunidade, entretanto, sabe-se
ser mais cômodo e confortável fugir deste exercício.

E, por óbvio, uma igreja corredor (longitudinal), na qual as pessoas no máximo


verão as nucas umas das outras, será modelo confortável, tanto para aqueles que

179
RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 65.
180
Cf. Ibid., p. 66.
181
Ver abordagem sobre a coexistência de diferenças não assimiladas na página 51.
70

desejam distância dos desconhecidos, quando para aqueles que desejam evitar os
possíveis conflitos.

Talvez, por esta razão, as propostas de igrejas com uma morfologia mais
adequada à comunidade comensal eucarística 182 ainda hoje não sejam acolhidas por
muitas comunidades, dando preferência às igrejas longitudinais (igrejas corredor).

Entretanto, a intenção da reforma litúrgica é insistir nesta força sanadora, que


é o encontro eucarístico, mesmo que em algumas ocasiões ela seja dolorosa.183
Corroborando com esta ideia, Herbert Muck afirma que “o conceito espacial do estar
juntos na presença do Senhor é mal interpretado por uma forma arquitetônica que
conduza apenas a olhar para a frente”184. Para ele, estar junto pressupõe encontro,
pressupõe troca, pressupõe interação e não somente uma presença física inerte.

A Instrução geral do Missal Romano, em seu número 311 é taxativa:


“Disponham-se os lugares dos fieis com todo o cuidado, de sorte que possam
participar devidamente das ações sagradas com os olhos e com o espírito (...)”.185

Nas palavras do bispo Paul Josef Cordes “o encontro deve ser recíproco, cada
qual voltado para o outro. Todos têm no altar o centro espiritual da sua assembleia e
à comunidade é concedida uma proximidade espacial com o centro.” 186 Desde tempos
antigos, nas celebrações, os participantes eram designados de circunstantes 187,
aqueles que estão ao redor. Ao redor do altar.

Bergamo e Petre também apontam a necessidade do espaço litúrgico e,


sobremaneira, do lugar da assembleia preverem a possibilidade de movimento, pois
as celebrações litúrgicas são dinâmicas e os fiéis devem ser os protagonistas da ação
litúrgica. Vejamos o que dizem:

Infine bisogna tener presente la possibilità di movimento all’interno


dell’assembrea perchè, come vedremo, le celebrazioni liturgiche sono
um fato dinâmico, non solo da parte dei presbiteri o di chi serve

182
Cf. RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 64.
183
Cf. Ibid., p. 66.
184
Ibid., p. 73.
185
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução
Geral do Missal Romano e Introdução ao Lecionário. Brasília: Edições CNBB, 2008, 331.
186
Apud RICHTER, Klemens. Espaços de Igrejas e imagens de Igrejas, p. 74.
187
Cf. Ibid., p. 74.
71

diretamente la liturgia, ma degli stessi fedeli: non si trata di ‘assistere


come mute specttatori’ a uma rappresentazione svolta da altri su uma
specie di palcoscenico, ma di ‘participare’ cioè agire da protagonisti.188

Vê-se, portanto e diante do exposto, que o formato das casas da Igreja e,


principalmente, do lugar da assembleia cumprem papel determinante para a
realização de sua vocação primeira, qual seja, facilitar o encontro de irmãos para
juntos, e como membros de um único Corpo Eclesial, celebrarem o Mistério Pascal de
Cristo na esperança da antecipação do Reino de Deus.

4.3 O tamanho das casas da igreja

Este item será dedicado à reflexão acerca do tamanho das casas da Igreja. Não
se pretenderá, entretanto, apontar uma dimensão ideal, uma vez que cada
comunidade e realidade local devem ser consideradas quando da edificação ou
reforma de um templo. As ideias aqui externadas servirão, apenas, para ensejar
reflexões, novas pesquisas e estudos que aperfeiçoem os espaços litúrgicos na
perspectiva da resplandescência do Mistério Pascal de Cristo.

As assembleias litúrgicas cristãs dos primeiros séculos, na fase conhecida


como Igreja dos mártires, eram compostas por apenas algumas dezenas de pessoas.
Como já vimos, após a fase dos encontros nas catacumbas, reuniam-se nas Domus
Ekklésia, residências da época nas quais eram acolhidos os cristãos. Normalmente
eram casas oferecidas pelos fiéis. O livro do Atos dos Apóstolos (12:12) nos mostra
uma delas, a casa de Maria, mão de João Marcos. Martin Mcnamara defende que esta
provavelmente foi a casa na qual Jesus tomou a última ceia 189. Outras são
conhecidas. A casa de Simão, em Jope (Atos dos Apóstolos 9:43), a de Ananias, em
Damasco (Atos dos Apóstolos 9:10), A casa de Lídia, em Filipos (Atos dos Apóstolos

188
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 195. Por
fim, é necessário ter em mente a possibilidade de movimento dentro da assembleia, porque, como
veremos, as celebrações litúrgicas são dinâmicas, não apenas pelos padres ou por aqueles que
servem diretamente à liturgia, mas pelos próprios fiéis: não se trata de “ajudar como espectadores
mudos” em uma representação realizada por outros em um tipo de palco, mas em “participar”, ou
seja, atuar como protagonistas (tradução nossa).
189
Cf. MCNAMARA, Martin. As assembleias litúrgicas e o culto religioso dos cristãos primitivos. Revista
Conciliun. Petrópolis, n.002, jun-dez 1969, p. 24.
72

16,15-40), na qual, provavelmente, Paulo apóstolo se reunia com os cristãos; a casa


de Filémon, em Colossos (Filemon, 2).

Com os Éditos de Milão e de Tessalônica, aos poucos, o cristianismo tornou-


se uma religião de massas. E isto, como vimos, provocou a necessária busca por
lugares mais amplos para o encontro dos cristãos.

Segundo Gelineau, com a evangelização das regiões camponesas, chegaram


a ser construídos templos menores, com capacidade para até 100 pessoas. Durante
vários séculos vigorou a combinação entre pequenas igrejas rurais e suburbanas e as
grandes basílicas. Aquelas eram espaços de vivência comunitária, enquanto estas
constituíam-se em lugares de peregrinação em ocasiões especiais e festivas.

Mas, no alvorecer da urbanização contemporânea, iniciou-se o processo de


construção de igrejas cada vez maiores, segundo nosso autor, Gelineau, “um certo
triunfalismo” se apoderou das paróquias, desencadeando o processo de edificação de
templos gigantescos, de estilos romano, gótico e bizantino.

Algo mais delicado se refere à morfologia destes gigantescos templos. A


maioria deles foram divididos em compartimentos, inúmeras naves separadas por
uma sequência de pilares, coros, capelas laterais, transeptos, tribunas, etc. E esta
espacialidade, característica dos edifícios eclesiais daquela época, resultava,
obviamente, numa percepção da experiência cristã equivocada, qual seja, a de que a
separação e a segregação, tal como se percebia no espaço, seria natural para a
experiência mistagógica. Percebe-se, então, que estes espaços segregacionistas
acentuaram a relação não-convergente, mas de disputa, entre o campo clerical e o
campo laical e mais ainda, criando-se castas também segregantes entre os próprios
leigos. Enfim, ambientes pouco cristãos, se se levar em conta a ideia de comum-
unidade.

É muito provável que as comunidades cristãs contemporâneas sejam herdeiras


destas práticas que influenciam as liturgias atualmente. É provável que a edificação
de novos templos religiosos e a reforma de tantos outros sejam norteadas por estes
princípios, já sedimentados nos inconscientes, tanto dos arquitetos, artistas e clérigos,
quanto da própria comunidade.

A provocação que se faz, a partir das ideias acima, é acerca do tamanho das
casas da Igreja. É perceptível que a dimensão monumental da assembleia litúrgica,
73

pode tornar a liturgia enfadonha, se comparada à celebração litúrgica numa pequena


igreja.

É óbvio que os santuários não podem ser incluídos nesta reflexão, pois são
lugares de peregrinação, nos quais pouco se observa a existência de pastorais
orgânicas e vivência comunitária. São lugares em que a dimensão monumental é
necessária para o acolhimento do volume grande de fieis peregrinos. A despeito
destes, o tamanho das assembleias é fator determinante para a adequada experiência
cristã, em vista do exercício da vivência comunitária, à luz dos ensinamentos de Cristo.

Exemplos não faltam nos quais se percebe melhor acolhida e melhores


condições, para se celebrar o Mistério Pascal, numa igreja menor e mais
aconchegante, se comparada a templos monumentais. Vejamos o que diz Gelineau,
nosso liturgista francês, acerca de duas experiências diametrais:

Entro num domingo em uma igreja da cidade de estilo neogótico, para


a missa das 11 horas. Várias centenas de pessoas já estão lá.
Primeiro vejo-lhes as costas. A nave central parece-me cheia.
Hesito colocar-me na parte mais baixa, porque gosto de ver. Encontro
um lugar no último terço da nave. Estou sempre vendo as costas. Lá
no fundo, distingo um altar-mor de aspecto simples. Depois, percebo
o busto de ministros com alva, voltados para a assembleia, mas muito
longe de mim. Que estão eles fazendo? Ouço que se canta. Chega-
me uma voz pelos alto-falantes. Sem dúvida deve ser a de um
dirigente que distingo por trás do microfone. Será que na minha frente
a multidão está cantando? Provavelmente. Mas eu não escuto. Em
todo caso em torno de mim estão calados. Eu gostaria de cantar, mas
tenho a impressão de que faria um solo e daria um espetáculo. Agora
são as leituras, depois a homilia. Ouço-as corretamente graças aos
aparelhos de som. Entretanto estou distraído. Faço esforço para
escutar o sermão. O que é dito parece inteligente, mas esta voz
anônima não me atinge. Mas afinal, que faço eu ali? Se tivesse ficando
diante da televisão certamente aproveitaria mais o sermão. Por certo,
mas eu tenho também de comungar. “E nós vos suplicamos que,
participando do corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo
Espirito Santo num só corpo”, disse justamente o padre. Comungar
com Deus e com meus irmãos. Olho à minha volta. De fato, é preciso
que eu creia nisto! “Saudai-vos uns aos outros em Cristo”. Meu vizinho
não se abala. Nem eu, pois não quero incomodá-lo. Com o rebanho
ajuizado, eu vou também comungar. No entanto, depois de tudo, saio
da igreja sentindo um certo mal-estar.190 (grifos nossos)

190
GELINEAU, Joseph. O amanhã da Liturgia: Ensaio sobre a evolução das assembleias cristãs, p. 36.
74

Diversos são os fatores que provocam na comunidade a triste experiência


percebida pelo autor. Um deles, sem sombra de dúvida, é o espaço de celebração.
Sua dimensão, forma, arquitetura (conforto acústico/térmico/luminotécnico e sonoro),
disposição da assembleia, dos monumentos pascais, presbitério e iconografia afetam
diretamente o comportamento da assembleia. Ele ainda descreve uma segunda
experiência que faz um bonito contraponto:

No domingo seguinte, experimento outra igreja, num quarteirão de


subúrbio, de que tive boas informações. Entro numa ampla sala
quadrada, com forro de madeira. A luz do dia entra por janelas
invisíveis. O chão é em declive e os bancos arrumados em
semicírculo. Uma centena de pessoas se acham ali reunidas.
Descubro um lugar livre. A senhora do lado me sorri, como que
dizendo que eu posso sentar-me perto dela. Eu lhe sorrio também e
sento-me. O senhor da esquerda me dá bom dia e eu lhe respondo o
cumprimento. Levanto os olhos. Com um só olhar vejo todo o mundo.
Jovens casais, crianças, pessoas mais idosas. Ensaia-se um canto. O
animador está no centro do semicírculo em baixo, a alguns metros
distante de mim. Ele canta: “a ti, meu Deus, cantem os homens louvor”,
“Senhor a tua Igreja somos nós, uma só voz”. Sem sentir comecei a
cantar com todo o mundo. Fui assimilado ao uníssono. Cantam-se
também as estrofes. Minha vizinha me mostra o livro e a página,
quando o canto para, ouço: “Bom dia irmãos. Que a paz e a alegria de
Deus estejam convosco!” O celebrante estende os braços e sorri. Ele
tem um ar simpático. Sua voz e agradável. Reparem: Não há
necessidade de microfone! Como isto é repousante! “Hoje um
sacerdote africano está entre nós. Rezemos pela Igreja da África. E,
dentre vós eu saúdo especialmente os estrangeiros e as pessoas de
passagem. Será que todos já arranjaram lugar? O evangelho de
hoje...” Depois do evangelho, o padre começa perguntando a uns e
outros, tanto às crianças como aos adultos, o que compreenderam e
o que não compreenderam. No momento das intenções da oração,
muitos da assembleia apresentam as suas. Há umas lindas. Depois,
homens e mulheres, deixando seus lugares, levam o pão e o vinho ao
celebrante. Eles permanecem em torno do altar. Agora ajudam a dar
a comunhão. Á saída, sinto vontade de entrar em contato com aquelas
pessoas. A isto elas se prestam de bom grado, Todo o mundo
conversa em frente à porta. Há uma espécie de pátio, com uma
máquina de servir café. Alguns ainda discutem o propósito do
evangelho e do que disse uma jovem mãe. Acho que voltarei um outro
domingo.191 (grifos nossos)

191
Ibid., p. 38.
75

Obviamente, as razões para esta comunidade viver uma experiência de fé bem


diferente do primeiro caso são inúmeras, dentre as quais, destaca-se a importância
do espaço litúrgico. O ambiente de celebração, seu tamanho, forma, disposição, neste
caso, favoreceu o encontro de irmãos e a troca fraterna de olhares, acenos, saberes,
orações.

Ainda é importante mencionar que a ação litúrgica é performática. Tanto a


palavra, quando os gestos realizados pelo ministro, por exemplo, durante a
consagração, são indispensáveis. Numa igreja muito grande, a voz poderá até ser
amplificada por meio de equipamentos de sonorização, facilitando a escuta por parte
da assembleia, mas os gestos se perderão. Numa igreja muito grande, a visibilidade
é impossível de se resolver, comprometendo a leitura da complexa dimensão
simbólica que se encontra na liturgia.

Outro aspecto negativo acerca das igrejas monumentais refere-se à


estratificação do povo celebrante. Numa igreja grandiosa, faz-se necessário edificar
um presbitério elevado, por meio de muitos degraus, para que se veja o celebrante, a
mesa da palavra e a mesa da eucaristia. E esta condição impõe um espaço distinto,
separado, no qual se movimentam o clero e seus auxiliares, acentuando a percepção
errônea de que a liturgia é feita apenas pelo clero. Como explicar, diante desta
espacialidade consolidada, que a celebração da páscoa de Cristo é ação de todos e
que a assembleia orante é protagonista?

De nada serve ensinarmos na catequese que Cristo está presente na


assembleia, ou mesmo rememorarmos as palavras do papa Paulo VI, quando diz que
“dos modos de presença do Senhor na sua Igreja, ocupa o primeiro lugar a assembleia
em oração, sobretudo na celebração eucarística”192, se o espaço testemunha o
contrário.

Já em igrejas menores a disposição arquitetônica não exigirá presbitérios


elevados, sendo até possível fazê-lo no mesmo nível da nave, apenas com distinção
no tipo de piso, para acentuar o lugar santo. E esta condição, contribui sobremaneira
para a percepção do corpo eclesial, expressão de Cristo, Corpo Místico de Cristo,
conforme ensina a teologia paulina.

192
Apud MORAES, Francisco Figueiredo de. Espaço do Culto, p. 52.
76

Gelineau, liturgista experiente, afirma categoricamente que “o que é possível


numa assembleia de 100 a 150 pessoas já não o é quando se trata de numerosas
centenas”.193

Sobre o tamanho das assembleias, resgatando a ideia de Gelineau, na obra


“Nelle vostre Assemblee”, Bergamo e Petre afirmam se deve evitar um ambiente
disperso e anônimo, sugerindo um número máximo de até 200 participantes. Suas
palavras: “e bisogna evitare um ambiente dispersivo e anomino, ma soprattutto perché
se un’assemblea deve essere tale non può superare um certo numero di partecipanti:
100, al massimo 200 persone riescono a realuzzare.”194

Eles ainda comentam acerca das celebrações com até 50 pessoas, nas quais,
segundo eles, acontece um real envolvimento:

Ottimali sono le celebrazioni com piccoli gruppi (30-50 pesona) in cui


si realiza um vero co-involgimento e um’efficace calibrature dela
celebrazione rispectto a quella cominità. Le grandi celebrazioni di 500,
1000 persona (ma perché allora non di più) sono realizzabili solo in
casi eccezionali. 195

Seguindo estas premissas, encontramos defesas semelhantes em outra seara


cristã. Muito embora não sejam católicos, Eder Beling, doutor em teologia e pastor
luterano, na obra “Liturgia e Arquitetura, Espaço, Arte e Fé no Lugar do Culto”, e
Nelson Kirst, também doutor em teologia, também luterano, na obra “Culto e Cultura
em Vale da Pitanga”, fazem apontamentos que reforçam as ideias aqui expostas. Diz
Beling:

Na comunidade todos participam igualitariamente do corpo de Cristo,


ela é a família de Deus unida para render louvores a Deus pela sua
graça e misericórdia atreves de Jesus Cristo, por isso os critérios de
aconchego e comunhão devem ser levados em consideração. O
cuidado na construção ou reforma de um espaço deve levar em conta

193
GELINEAU, Joseph. O amanhã da Liturgia: Ensaio sobre a evolução das assembleias cristãs, p. 37.
194
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 193. É
necessário evitar um ambiente disperso e anômalo, mas, acima de tudo, porque uma assembleia
deve ser assim, não pode exceder um certo número de participantes: 100, no máximo 200 pessoas
(tradução nossa).
195
ID., p. 193. Ótimas são as celebrações com pequenos grupos (30 a 50 pessoas), nas quais um real
coenvolvimento e uma participação eficaz da celebração acontecem desde o início. As grandes
celebrações de 500 a 1000 pessoas (mas porque agora não mais) só são possíveis em casos
excepcionais (tradução nossa).
77

a atmosfera que se quer criar, para que não nos sintamos como
espectadores solitários na plateia.196

Já Nelson Kirst é mais incisivo ao tratar do tamanho das casas da Igreja ao


dizer que:

As dimensões arquitetônicas de uma igreja têm muito a ver com o


critério do aconchego e da comunhão. Proporções gigantescas
impactam, extasiam, mas muitas vezes esmagam a comunidade que
abrigam. Dificilmente proporcionam um aconchego e comunhão. 197

Entretanto, e a despeito da qualidade dos argumentos apresentados acerca do


tamanho ideal para as assembleias litúrgicas, que visa promover e qualificar a
participação da comunidade, é preciso, também, considerar aspectos práticos que
impõem alguns obstáculos à promoção desta valorosa ideia. Referimo-nos a três
entraves, em princípio, sem a pretensão de serem os únicos e de, muito menos,
esgotá-los aqui.

Primeiramente, há a questão cultural. O costume consolidado na sociedade e


nas comunidades ainda está muito vinculado à monumentalidade, ao esplêndido,
como sinal da presença de Deus, questão que precisa, certamente, ser superada, e
que, portanto, não se configura num obstáculo intransponível.

Em seguida, verifica-se a questão urbana. As cidades brasileiras possuem


características distintas da maioria das cidades europeias. Aqui, os aglomerados
urbanos são caracterizados por grande concentração de pessoas, se comparados à
maioria das cidades europeias. Soma-se a isto uma maior adesão à vivência cristã
católica, que amplia o conjunto daqueles que buscam uma assembleia litúrgica para
participar.

Por fim, o baixo contingente de padres. O desinteresse em seguir a vida


sacerdotal ministerial, sintoma de uma série de problemas internos e externos à Igreja,
configura-se em outro impedimento para a ideia de casas da Igreja menores.

196
BELING, Eder. Arquitetura e Liturgia: espaço, arte e fé no lugar de culto, p. 175.
197
Ibid., p. 175.
78

É evidente que celebrar a eucaristia numa capela para até 100 pessoas é uma
experiência muito boa. Entretanto, diante da realidade que se apresenta, é necessário
encontrar um equilíbrio entre a proposta ideal e a demanda da realidade local.

Muito embora seja demasiado ousado a indicação do tamanho ou capacidade,


os apontamentos deitados sobre este papel deixam claro que é preciso cuidado,
atenção e zelo quando se edifica uma casa de oração para que o espaço edificado
não se transforme no contratestemunho do que se pretende viver na comunidade, a
partir dos princípios do evangelho. Se uma igreja paroquial monumental for causa de
segregação da comunidade, afetando o sentido de corpo místico de Cristo, convém
aprofundar os estudos a fim de se encontrar uma solução que acolha a todos os
paroquianos dignamente.
79

Capítulo quinto
QUESTÕES PRÁTICAS

...cada um filho de suas obras.


(Sancho, em o engenhoso fidalgo
(Dom Quixote de La Mancha)198

Neste capítulo, estudaremos a forma do lugar da assembleia a fim de encontrar


uma tipologia geométrica que possa ser a expressão dos conceitos anteriormente
refletidos. Em seguida, será apresentado um conjunto de projetos concebidos em
sintonia com os conceitos aqui expressos.

5.1 A morfologia do lugar da assembleia

A partir de todo o referencial teórico aqui reunido, e ainda fundamentado em


pesquisa bibliográfica, a seguir citada, estudaremos as formas do lugar da assembleia
que, segundo alguns especialistas, melhor expressam o sentido defendido nas
páginas anteriores. Ousaremos buscar a consolidação dos princípios teóricos
refletidos na espacialidade, no lugar da assembleia, na pretensão de alcançar uma
forma que possa contribuir e promover uma verdadeira assembleia participante.

Inicialmente, Bergamo e Petre, na obra “Spazi celebrativi. L’architettura


dell’ecclesia”, apontam como premissa básica a ideia da centralidade199: “Infatti la
struttura della liturgia è una struttura centrípeta.”200

A ideia da centralidade é bastante simbólica, sem deixar de ser funcional,


prática e reveladora. Permite a percepção do sentido do Corpo Místico, na medida em
que as pessoas da assembleia se postam, ombro a ombro, à mesma distância do
centro, como um encontro de irmãos, de fato. Para que a assembleia aconteça,

198
CERVANTES, Saavedra, Miguel de. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Primeiro
Livro, edição bilíngue. 7. ed. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 678.
199
Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 198.
200
Ibid., p. 198. De fato, a estrutura da liturgia é uma estrutura centrípeta (tradução nossa).
80

convém que o lugar permita e promova interações mútuas entre os membros, tal como
representado conceitualmente na ilustração 03.

Ilustração 03. Esquema de um encontro cristão.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e


DEL PETRE. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia.

Entretanto, e apesar de todos os esforços do Movimento Litúrgico e do Vaticano


II, nossos autores mostram que ainda prevalece nos espaços litúrgicos cristãos
formatos de assembleias incompatíveis com a necessária vivência em comunidade
(ilustração 04):
81

Ilustração 04. Modelo síntese de assembleias que desestimulam a vivência e a percepção


do corpo místico.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e


DEL PETRE. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia.

A forma de disposição da assembleia, acima ilustrada, é absolutamente


coerente com o período medieval, no qual houve o sufocamento da participação da
assembleia, negando a herança dos primeiros cristãos, e que foi sabiamente
recuperada pelos já citados Concílio e Movimento Litúrgico, mas que ainda precisam
contagiar o seio da maioria das comunidades cristãs.

No entendimento de Bergamo e Del Petre, não se pode prescindir da ideia da


centralidade, que pode ser geométrica/geográfica, ou apenas visual/simbólica, a
depender do que se apresenta de desafio ao se edificar a casa de oração. Em seu
livro, os autores esquematizam um conceito de encontro para a celebração eucarística
(ilustração 05):
82

Ilustração 05. Esquema de uma celebração eucarística.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e


DEL PETRE. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia.

Na ilustração acima vemos todos em torno do altar, clérigos, acólitos, leitores,


cantores, assembleia. Aqui se percebe um Corpo, uma comunhão, uma vivência
relacional, que é sinal profético da Parusia.

Adiantamos, entretanto, que não se trata de defender a construção de igrejas


redondas, circulares. Nada disto. O que se defende aqui é a ideia conceitual do círculo
ou semicírculo e da centralidade, conceito que poderá ser aplicado nas mais variadas
formas geométricas, como poderá ser visto mais adiante nos projetos desenvolvidos
por este autor e que serão expostos nesta monografia.

Em seguida, baseados em ensaios, estudos e pesquisas, Bergamo e Petre


evoluem para a ideia do semicírculo. Defendem que nesta formato todos os
83

participantes podem se ver uns aos outros, reconhecer, falar e ouvir. Em suas
palavras:

In primo luogo la disposizione che oggi consente di realizzare questo


non può essere che uma figura a emiciclo chiso, nella quale ogni
participante possa vedere in facia gli altri, ci si possa riconoscere,
parlare e ascoltare reciprocamente. Tutti protagoniste. L’immagine può
anche essere presa dai cori monastici.201

Ainda fazem referência aos coros das igrejas dos monastérios, nos quais, como
já visto aqui, a assembleia é dividida em duas partes, uma de frente para a outra, de
tal modo que todos se entreolham, escutam-se e se relacionam, como corpo eclesial.

Albert Gerhards202, no artigo “Il dibattito sull’orientamento: riflessioni


teologiche”, traz importante contribuição deixada pelo arquiteto Rudolf Schwarz. Em
sua publicação, ele reproduz desenhos esquemáticos do arquiteto, que serão aqui
também reproduzidos:

201
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 192. Em
primeiro lugar, a disposição que hoje permite que isso seja realizado pode ser apenas uma figura
de semicírculo, na qual cada participante pode ver outros cara a cara, reconhecer, falar e ouvir um
ao outro. Todos protagonistas. A imagem também pode ser inspirada nos coros monásticos
(tradução nossa).
202
Albert Gerhards, teólogo e cientista litúrgico alemão.
84

Ilustração 06. Esquema de uma disposição imprópria para uma celebração.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de Rudolf Schwarz203

A ilustração 06 mostra uma assembleia reunida diante do altar. As linhas verdes


são caminhos imaginários que supõem a direção visual dos fiéis. Percebe-se, neste
esquema gráfico, diversos obstáculos à boa participação na ação litúrgica: a distância
das últimas cadeiras, o obstáculo visual que os primeiros impõem aos últimos, a
negação do olho no olho do irmão, que neste formato se reduz a ver a nuca dos que
compartilham do mesmo Pão. Mas, além disso, e talvez o maior obstáculo, há a inércia
que este formato impõe. Neste esquema de disposição para o lugar da assembleia,
não há espaço para o protagonismo da assembleia, mas sim para uma passividade
medieval. Para este lugar, não seria exagero afirmar que a terminologia já
ultrapassada “assistir à missa” seria bastante coerente. Tal como uma sala de cinema
ou algo correlato, os convidados sentar-se-iam, assistiriam e, ao final, retirar-se-iam.

203
GERHARDS, Albert. Spazio Liturgico e Orientamento, p. 172.
85

Algo que, para uma sala de espetáculos é perfeitamente aceitável, jamais para um
espaço litúrgico cristão.

Mas, na mesma obra, Albert Gerhards mostra o contraponto didaticamente


exposto por Schwarz:

Ilustração 07. Esquema de uma disposição mais adequada para uma celebração.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de Rudolf Schwarz204

Ao contrário da ilustração 06, na qual a assembleia estava reunida diante do


altar, nesta ilustração (07), o povo está reunido no entorno do altar. E tal disposição
soluciona vários problemas encontradas na primeira suposição. Aqui supõe-se maior
interação e participação. Além das pessoas estarem mais próximas do altar, elas
podem se reconhecer, olhar-se e se perceber membros do Corpo Místico. E
diferentemente do primeiro esquema de disposição, neste, a inércia diminui, pois

204
Ibid., p. 172.
86

todos estarão ao redor do altar, participando de fato do banquete e não apenas


assistindo.

Enquanto naquele esquema (ilustração 06), valoriza-se a ideia de plateia, na


qual todos ficam de frente para o “espetáculo”, neste (ilustração 07), valoriza-se a ideia
da centralidade, na qual todos ficam no entorno do Altar, no qual acontece a
celebração do Mistério Pascal de Cristo, do qual todos são herdeiros.

Entretanto, segundo Bergamo e Petre, não se poderá basear a formação de


um espaço litúrgico para a assembleia apenas na ideia de centralidade205. Nossos
autores afirmam que o espaço carece de outro elemento simbólico que remeta à
dimensão escatológica206. Segundo suas convicções, esta característica poderá ser
representada no ambiente litúrgico pela axialidade207, ou seja, por um eixo
longitudinal, que simbolize a trajetória do peregrino rumo à Pátria Definitiva, a
Jerusalém Celeste. Vejamos o que dizem a este respeito:

Questa disposizione trova riscontro anche nell’assialitá simbólica che


fa riferimento sai all’ingresso processionale nella chiesa, sai a quello
rituale di innesto nel corpo del’assemblea segnato dai sacramenti
dell’iniziazione Cristiana, di cui è fondamentale rimanga costante
memoria nella vita litúrgica dei cristiani.208

Na axialidade encontra-se o corredor central, a via lux, que é sinal da


caminhada do povo peregrino rumo ao encontro com o ressuscitado. Por esta razão
que as casas da Igreja dos primeiros séculos possuíam a fonte batismal na porta de
entrada da igreja e na outra extremidade, na abside, encontrávamos o ressuscitado,
ou o bom pastor, ou mesmo o Cristo rei do universo (pantocrator). Numa extremidade,
somos enxertados no corpo da assembleia via Iniciação Cristã, e na outra, há o
ingresso na Pátria Definitiva (ilustração 08).

Na tradição, esta tensão escatológica expressa, principalmente, pelo eixo


longitudinal onde se encontrava o corredor central, obedecia à orientação da trajetória

205
Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 200.
206
Cf. Escatologia é uma disciplina da teologia que aborda o destino final do ser humano.
207
Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 200.
208
Ibid., p. 200. Essa disposição também se reflete na axialidade simbólica, que se refere a você
conhecer a entrada processional na igreja, o ritual de enxertia no corpo da assembleia, marcado
pelos sacramentos da iniciação cristã, dos quais é fundamental manter a memória constante na
vida litúrgica da igreja cristã (tradução nossa).
87

aparente do sol. A porta de entrada a oeste e a abside a leste. Isto para reforçar a
ideia-símbolo de Cristo como sol da justiça. Assim nossos autores afirmam: “Nel
simbolismo della tradizione la tencione escatologica era expressa prevalentemente
dall’asse longitudinale-orizzontale ‘ocidente-porta-abside-oriente’, basato sul símbolo
del sole nascente como Cristo ‘Sol Justitiae’ che deve venire della gloria”.209

Ilustração 08. Axialidade escatológica.

Fonte: Desenho do autor.

Esta condição de posicionar a edificação no eixo de trajetória aparente do sol,


entretanto, também encontra obstáculos. O maior deles diz respeito ao formato e
dimensões do sítio onde a casa da Igreja será edificada. Nem sempre será possível
posicionar a edificação voltada com a sua abside, ou outro elemento da arquitetura
que seja correspondente, para o sol nascente. Entretanto, sendo possível, é sempre
aconselhável.

209
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201. No
simbolismo da tradição, a tensão escatológica foi expressa principalmente pelo eixo longitudinal-
horizontal "porta oeste-abside-leste", baseado no símbolo do sol nascente como Cristo "Sol
Justitiae", que deve vir em sua glória (tradução nossa).
88

Ainda sobre esta tensão escatológica, Bergamo e Petre sugerem que a Igreja
é um corpo de pessoas presentes na terra, mas que tem a cabeça no céu 210, tal como
se percebe nas pinturas do período Bizantino, nas quais os santos e as pessoas
retratadas nas obras sacras eram disformes, evidenciando uma certa longilinidade
simbólica, na qual se poderia interpretar que aquela pessoa possuía os pés na terra,
mas a cabeça estava no mundo celeste, um sinal de primorosa espiritualidade.

Imagens bíblicas desta axialidade pretendida, que liga céu e terra, podem ser
percebidas nas alegorias da árvore da vida do Éden, o arco íris de Noé, a escada de
Jacó e a mais significativa, a cruz de Cristo.211

Ainda em defesa da ideia de axialidade, Armando Cuva tem contribuição


interessante:

A assembleia litúrgica e cada um de seus participantes tomam plena


consciência do vínculo profundo existente entre a liturgia terrena e a
liturgia celeste, tornando-se testemunhas e intérpretes da espera
escatológica da Igreja inteira, que anseia pela sua realização plena e
definitiva na Jerusalém celeste.212

Para eles, então, é indispensável conceber uma forma arquitetônica para o


lugar da assembleia que combine a “centralidade” com a “axialidade”. Uma
convergência para o centro do Mistério Pascal, combinada com a tensão escatológica
representada pela axialidade longitudinal/horizontal do corredor central, que é sinal da
axialidade vertical céu-terra. Dizem assim, nossos autores:

È necessário quindi coniugare l’assealitá longitudinale com questa


convergenza verso il centro, al fine di porre in tencione l’assemblea e
di aprirla nella dimensione del mistero che celebra. Bem si presta a
questo um assialitá verticale ‘cielo-terra’.213

210
Cf. Ibid., p. 201.
211
Cf. Ibid., p. 202.
212
CUVA, Armando. Assembleia, p. 97.
213
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201.
Portanto é necessário combinar a axialidade longitudinal com essa convergência em direção ao
centro, a fim de colocar a assembleia em tensão e abri-la na dimensão do mistério que ela celebra.
Bem presta-se a essa axialidade vertical 'céu-terra’ (tradução nossa).
89

Eles propõem, então, um binômio que fará a síntese destas importantes


reflexões: Corpo–Assembleia: centralidade; Tensão escatológica–axis mundi:
axialidade.214

Bergamo e Petre afirmam que, somente na combinação equilibrada destas


duas dimensões em um círculo orientado, a casa da Igreja poderá ser construída em
consonância com aquilo que foi desejado pelo Concílio Vaticano II215. A Ilustração 09,
extraída de sua obra e relida por este autor, poderá melhor representar esta ideia:

Ilustração 09. Esquema: centralidade e axialidade.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e


DEL PETRE. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia.

214
Cf. BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 201.
215
Cf. Ibid., p. 202.
90

Na imagem acima, estão representadas, de forma conceitual, a ideia da


combinação entre centralidade e axialidade. No centro, a mesa da eucaristia, sinal
primeiro do espaço litúrgico. Polissêmico, a mesa da eucaristia é pedra do sacrifício,
mesa do banquete e é o próprio Cristo. É, portanto, sinal de remissão da humanidade,
para o qual todos devemos estar voltados, além de estarmos próximos. A axialidade
escatológica é representada pelas linhas tracejadas. Na extremidade inferior,
encontra-se a fonte batismal e a entrada da Casa da Igreja. Na outra extremidade,
encontra-se a parede côncava que acolhe quem chega. Nesta parede, é aconselhável
que esteja o ícone do Cristo Ressuscitado, que aguarda o fiel na conclusão de sua
caminhada peregrina. Eis o que os nossos autores chamam de tensão escatológica.

Finalmente, baseados nas teorias do binômio centralidade-axialidade,


Bergamo e Petre fizeram inúmeros ensaios e pesquisas, retratados em sua obra e,
aqui, nesta monografia, parcialmente refletidas, questionadas e ampliadas.

Os estudos e pesquisas acerca da forma dos lugares da assembleia seguiram


critérios principais tais como a participação da assembleia, a dinâmica hierárquica e a
figura do corpo da assembleia. Ainda foram considerados outros critérios secundários,
sendo eles: o compartilhamento de objetivos e conhecimento do rito e seu desenrolar;
distância entre as pessoas; convergência e articulação hierárquica; obstrução (após a
quarta fila, a visão se perde e, portanto, igualmente se perde relação com o que
acontece no centro); dimensão do grupo (tamanho da assembleia), fala-se em, no
máximo, 200 pessoas; e semântica do signo: simbolismo, iconografia.216

Eles ensaiaram tipologias para o lugar da assembleia, para cinco capacidades,


50, 100, 200, 400 e 800 pessoas. Entretanto, e considerando o já refletido neste
trabalho com relação ao tamanho das casas da Igreja, esta monografia descartará o
ensaio para a menor capacidade, priorizando as quatro maiores capacidades.

Muito embora, na pesquisa de Bergamo e Petre, não se perceba informações


com relação às dimensões de corredores e outras interdistâncias, para esta releitura,
considerou-se, para o corredor principal (via-lux), a largura de 3,00 metros e, para os
corredores secundários, a largura de 1,20 metros. A distância entre as fileiras de

216
Cf. Ibid., p. 208.
91

cadeiras ficou com 1,20m, de tal modo resultando em um espaço livre de 0,60 metros,
favorecendo a circulação.

Apesar de ser essencial e indispensável a reserva de lugares para acolher


deficientes físicos, pessoas obesas e outras pessoas com características especiais,
esta previsão não será objeto deste ensaio, por uma razão simples: aqui serão
realizados ensaios hipotéticos em vista do debate conceitual. Tal previsão projetual
deve acontecer na fase dos projetos arquitetônicos executivos específicos para cada
caso.

Os estudos se basearam na ideia da centralidade e da axialidade. Para tanto,


no espaço foi posicionado apenas o altar, de modo a permitir a leitura da centralidade
em relação a este monumento pascal específico.

Em consideração à orientação da Instrução Geral do Missal Romano – IGMR,


que apela para a garantia de uma conveniente comodidade dos fiéis217, é necessário
aqui registrar que é de fundamental importância o cuidado com a dimensão do
conforto ambiental do espaço litúrgico. A preocupação tanto com as questões de
conforto acústico, quanto com o conforto térmico são imprescindíveis. Este trabalho,
entretanto, não entrará nesta seara. As análises aqui expostas cuidarão apenas da
disposição do lugar da assembleia visando dar sentido à percepção de comunidade
como Corpo Místico.

Também é salutar registrar que os ensaios supõem cadeiras, ao invés de


bancos. É costume, entretanto, a utilização de bancos nas igrejas. Sabe-se que este
mobiliário impõe certo imobilismo à assembleia, comprometendo a participação ativa,
desejada pelo Vaticano II, entretanto e a despeito desta orientação, percebe-se
grande resistência à utilização de alternativas aos bancos. Respeitando-se a
originalidade da pesquisa, este autor manteve a utilização de cadeiras para a
acomodação dos fiéis no lugar da assembleia. Contudo, na releitura espacial/gráfica
feita pelo autor desta monografia, foram consideradas dimensões das cadeiras (70cm
x 50cm, ilustração 10), que fossem semelhantes às dimensões e capacidades dos
tradicionais bancos, inclusive com previsão para genuflexórios, de tal modo a não

217
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução
Geral do Missal Romano e Introdução ao Lecionário, 293.
92

comprometer a leitura e interpretação das informações aqui expostas,


independentemente do mobiliário a ser utilizado.

Ilustração 10. Dimensões da cadeira utilizada.

Fonte: Desenho do autor.

Feitas estas considerações, sigamos adiante, analisando os estudos de


Bergamo e Petre, com relação ao lugar da assembleia:

A primeira tipologia do lugar da assembleia refere-se a um templo retangular


(igreja corredor), forma bastante conhecida e difundida. Já, a segunda tipologia, é
bastante semelhante à primeira, apesar de ter uma forma angular aguda, em 45º.
93

Ilustração 11. Tipo 01 – convergência de 0º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia. 218

Ilustração 12. Tipo 02 – convergência de 45º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia. 219

Nestas duas tipologias verificam-se todos os problemas já elencados ao longo


deste trabalho, dos quais os maiores são o impedimento à efetiva participação e o
bloqueio que se impõe ao reconhecimento do fiel como membro do Corpo Místico,
formatos, portanto, incoerentes com a renovação conciliar.

A terceira tipologia sugere uma conformação em ângulo reto, 90 graus


(ilustração 13).

218
BERGAMO, Maurizio; DEL PETRE, Mattia. Spazi celebrativi. L’architettura dell’ecclesia, p. 209.
219
Ibid., p. 209.
94

Ilustração 13. Tipo 03 – convergência de 90º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia..220

Neste formato, segundo nossos autores, os problemas persistem e são


potencializados. Para eles, este formato em leque aumenta a quantidade de lugares
mais distantes do altar.

Entretanto, chama a atenção o fato de que a acomodação para 100 pessoas


se dá com três fileiras de cadeiras/bancos, tendo, apenas em um trecho, uma quarta
fileira. Se compararmos com a primeira tipologia, veremos dez fileiras. Se olharmos
para a capacidade máxima, a situação se repete. A primeira tipologia precisa de 25
fileiras para acomodar 800 pessoas, enquanto que esta tipologia (03), precisa de
apenas 16 fileiras.

Sobre as distâncias entre os lugares da assembleia e o altar, reclamadas por


Bergamo e Petre, verificou-se, com relação à maior capacidade (800 pessoas), que,
para a terceira tipologia (legue de 90º), o lugar mais distante estará a 26,80 metros do
altar, enquanto que, para a primeira tipologia (igreja corredor), o lugar mais distante
estará a 33,29m, (6,49 metros mais distante).

Tais constatações percebidas na mensuração dos desenhos em escala nos


permitem, de modo pontual e sem perder de vista a imensa contribuição dos nossos
autores, dialogar com suas análises, apresentando uma outra percepção técnica.

Se comparadas as três primeiras tipologias, evidentemente, a terceira é mais


adequada para a promoção dos valores eclesiais inerentes à assembleia litúrgico-
cristã. Entretanto, outras tipologias muito mais interessantes ainda serão analisadas.

220
Ibid., p. 209.
95

A quarta tipologia se dará, enfim, num semicírculo, com convergência de 180º


(ilustração 14), enquanto que a quinta tipologia estenderá a ideia do semicírculo para
um ângulo de convergência de 270º (ilustração 15).

Ilustração 14. Tipo 04 – convergência de 180º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia.221

Ilustração 15. Tipo 05 – convergência de 270º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia.222

Pode-se perceber nestas duas tipologias a maior valorização da assembleia


comunitária, em consonância com o espírito conciliar223. Além dos participantes
estarem mais próximos do altar, eles poderão se olhar, se relacionar (lembremos que
somos discípulos de um Deus relacional, um Deus que escolheu se revelar à
humanidade na condição de comunidade-três pessoas), e se relacionando,

221
Ibid., p. 209.
222
Ibid., p. 209.
223
Cf. Ibid., p. 210.
96

percebendo-se membros do mesmo Corpo, fortalecer os vínculos de fraternidade,


cimento que une os membros uns aos outros.

Por fim, nossos autores trazem a sexta e última tipologia, finalizando o conjunto
estudado com a circunferência completa - 360º.

Ilustração 16. Tipo 06 – convergência de 360º.

Fonte: Desenho do autor, livremente inspirado na obra de BERGAMO e DEL PETRE. Spazi celebrativi.
L’architettura dell’ecclesia.224

Analisando esta tipologia de círculo fechado, Bergamo e Petre apresentam a


dificuldade de se dispor a estrutura hierárquica do Corpo225, razão pela qual, desde o
início, os pesquisadores buscaram defender a tipologia em semicírculo, em detrimento
das demais.

As considerações dos autores com relação à tipologia de círculo fechado serão


colocadas à prova, nesta monografia, quando, oportunamente, apresentarmos
projetos já realizados, com especial destaque para o projeto da capela de São José
de Anchieta, em Itanhaém. Nele, a ideia do círculo fechado foi uma escolha, sem, no
entanto, comprometer a ideia de hierarquia do corpo eclesial.

Diríamos, entretanto, após análise destas seis tipologias, e considerando a


necessária combinação entre centralidade, axialidade e manutenção da hierarquia do
Corpo Místico de Cristo, a Igreja, que as formas mais adequadas são as tipologias
quatro e seis, cujas convergências se dão a 180º e 270º.

Reforçamos, entretanto, que estes desenhos são conceituais. A ideia principal


é a busca pela disposição da assembleia ao entorno do altar, de modo a permitir que
todos se aproximem e se sintam participantes do que ali se realiza. E esta condição

224
Ibid., p. 209.
225
Cf. Ibid., p. 210.
97

poderá ser alcançada em diversos formatos geométricos de disposição da


assembleia, não sendo necessariamente o círculo ou semicírculo, do ponto de vista
literal, mas seu conceito, seu sentido, qual seja, de promover a centralidade do altar,
de aproximar o máximo possível as pessoas do centro e de colocá-las lado a lado,
ombro a ombro e face a face para que se percebam membros de um Todo maior.

Desse modo, a pesquisa, aqui parcialmente reproduzida, oferece enorme


contribuição para o desenvolvimento desta monografia, mas, sobretudo, para aqueles
que pretendem construir, reformar ou readequar a casa da Igreja a partir das
premissas do Concílio, valorizando a presença de Cristo na comunidade reunida em
oração.

5.2 A edificação do lugar da assembleia – a prática

A meditação dos conceitos externados ao longo desta monografia impactou


decisivamente na produção arquitetônica do espaço litúrgico desenvolvida pelo nosso
atelier, de tal modo que, saindo do campo teórico, mas sobretudo a partir dele, serão
aqui apresentadas quatro obras realizadas que acolheram os princípios refletidos ao
longo destas páginas.

O exercício prático da produção arquitetônica também foi fator determinante


para a assimilação e aprimoramento dos conteúdos aqui expostos. A associação entre
os estudos teóricos e a prática da arquitetura, num ciclo de retroalimentação, permitiu
o fechamento do círculo hermenêutico: a teoria uma vez aplicada, resultando num
produto. Este, por sua vez, permitindo o aprimoramento dos conceitos teóricos, que
aprimorados, aperfeiçoarão ainda mais o produto. Tratamos então de uma espiral, na
qual, apesar de circular, nunca se retorna ao mesmo ponto, mas sim num estágio
superior. Esta foi a experiência absorvida com relação à aplicação dos conceitos
teóricos ao exercício da produção arquitetônica do lugar da assembleia.

Inevitável não convidar Paulo Freire. Em a Pedagogia da Autonomia, obra de


1.996, nosso patrono afirma “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência
98

da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática,


ativismo.”226

Além disso é necessário registrar que todos os projetos desenvolvidos pelo


nosso atelier, inclusive estes aqui elencados, são acompanhados de uma oficina de
formação litúrgico/catequético para a comunidade. Nesta oficina são oferecidos às
comunidades os conceitos elencados nesta monografia, bem como outros que aqui
não puderam ser acolhidos, em razão da objetividade do nosso tema. O interessante
é que a experiência nestas atividades nos revela que após um simples momento de
formação as pessoas compreendem e passam a defender a necessidade de se
readequar o lugar da assembleia.

Tal constatação é sinal inequívoco de que é possível virar as nossas velas na


direção dos ventos do Concílio Vaticano II, insuflando-as para que elas nos conduzam
para uma experiência de comunidade relacional e comunhonal, da qual somos todos
herdeiros.

Como já dito anteriormente, a ideia de círculo e semicírculo, sugerida neste


trabalho para a organização do lugar da assembleia não se refere ao sentido literal
das figuras geométricas, mas sim de sua condição de centralidade, de tal modo que
se poderá perceber tal centralidade em outras variadas formas geométricas. Assim,
nenhum dos projetos que aqui serão expostos apresentam a forma pura de círculo ou
semicírculo, entretanto todos eles trazem em si o sentido da centralidade e da
axialidade, necessários ao espaço litúrgico pós-conciliar.

Sem delongas, comecemos pela casa da Igreja de São José de Anchieta. Uma
capela particular, com capacidade para 130 pessoas, desejada pelo bispo diocesano
que será edificada na cidade de Itanhaém.

A ideia inicial foi colocar a assembleia ao entorno do altar e os demais


monumentos pascais permeando a assembleia, de modo a estimular a vivência
dinâmica da liturgia que se ancora nos aludidos monumentos (ilustração 17).

226
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra (Coleção Leitura), 1996, p. 11.
99

Ilustração 17. Croqui capela São José de Anchieta

Fonte: Desenho do autor.


100

Ilustração 18. Planta humanizada da capela São José de Anchieta

Fonte: Desenho do autor.

A planta da capela privilegia o encontro. Todos à vista de todos. A comunidade


se vê, e ao se ver toma consciência de sua condição de Corpo Místico de Cristo: a
Igreja. A axialidade escatológica também foi garantida, muito embora a fonte batismal
esteja numa das laterais da capela, a porta de entrada dá o sentido ao início da
caminhada, enquanto que, na outra extremidade, está o Cristo Bom Pastor. No meio
do caminho, o Altar e, sobre ele, na mesma prumada, a cruz, ambos como sinal de
que a morte não tem a última palavra, mas sim a ressurreição será o destino final (ver
ilustrações 19 e 20).

Como se trata de uma capela para até 130 pessoas, não foi necessário colocar
degraus para o presbitério. Os locais das duas mesas (Eucaristia e Palavra) apenas
foram marcados com uma diferenciação no piso, para evidenciar o lugar Santo. Isto
também favorecerá a percepção da noção de Corpo da comunidade.
101

Se considerarmos as seis tipologias apresentadas por Bergamo e Petre, o lugar


da assembleia da capela São José de Anchieta está vinculado à tipologia seis,
convergência 360º, círculo fechado.

Muito embora, nas análises das tipologias, os autores condenem esta tipologia,
alegando que tal disposição impede a consolidação da noção de hierarquia no corpo
eclesiástico, neste projeto, o que se percebe é a harmonia entre a ideia do círculo
fechado com a assembleia ao entorno do altar e a manutenção do sentido hierárquico.
E isto foi possível mediante a posição da sédia, que se encontra sob o ícone do Bom
Pastor, bem como seu distinto desenho que dialoga com os demais monumentos
pascais (altar, ambão e fonte).

Ilustração 19. Maquete digital da capela São José de Anchieta

Fonte: Desenho do autor.


102

Ilustração 20. Maquete digital da capela São José de Anchieta

Fonte: Desenho do autor.

Será apresentado, a seguir, o projeto de construção da casa da Igreja da


comunidade de Santo Antônio, em Limeira SP. Este projeto foi desenvolvido seguindo
os mesmos princípios de valorização da assembleia orante, garantia do sentido
escatológico, na axialidade e manutenção da ideia de hierarquia no corpo eclesial. O
templo acolherá 300 pessoas.
103

Ilustração 21. Planta da casa da igreja Santo Antônio.

Fonte: Desenho do autor.

Neste caso, considerando as tipologias analisadas por Bergamo e Petre,


poderíamos afirmar que esta planta se encaixa na tipologia 04, convergência em 180º,
como um semicírculo. Modelo ideal defendido pelos autores e que de fato, contribui
sobremaneira para o fortalecimento do sentido de comunidade. Garantindo a ideia da
tensão escatológica, em uma extremidade temos a porta de entrada, no meio, a cruz
processional e o altar e, na outra extremidade, o ícone do Cristo Ressuscitado, de
braços abertos a acolher o peregrino caminhante.
104

Ilustração 22. Maquete digital da casa da igreja Santo Antônio.

Fonte: Desenho do autor.

A seguir, veremos o projeto para a Casa da Igreja da comunidade de Nossa


Senhora das Graças, em Limeira. Com planta bastante semelhante à anterior, o
projeto se enquadra da tipologia 04, de semicírculo, cujas vantagens já são bastante
conhecidas. A casa de oração acolhe, atualmente, cerca de 280 pessoas.
105

Ilustração 23. Planta da casa da Igreja Nossa Senhora das Graças.

Fonte: Desenho do Autor

Ilustração 24. Foto da igreja Nossa Senhora das Graças em dia de celebração.

Fonte: Bruno da Vinha, Pascom, Comunidade Nossa Senhora das Graças.


106

Por fim, apresentaremos uma readequação litúrgica. Trata-se da casa da Igreja


da comunidade de Nossa Senhora de Lourdes, em Campinas SP. Uma edificação
existente, construída há mais de 40 anos que, apesar de ter sido edificada após o
Concílio Vaticano II, seus responsáveis ignoraram solenemente os bons ventos
reformadores, tal como se vê na maioria das comunidades, quase como regra.

A situação atual é idêntica à tipologia 01, estudada por Bergamo e Petre. Uma
igreja corredor, modelo prejudicial à vivência comunitária e à participação ativa na
liturgia, conforme poderá ser visto nas ilustrações 25 e 26.

Ilustração 25. Planta da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes.

Fonte: Desenho do autor.


107

Ilustração 26. Foto da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes.

Fonte: Arquivo do autor.

Após reuniões com a comunidade e estudos técnicos acerca da espacialidade


do templo, foi sugerida a mudança que alterou significativamente o sentido do espaço.
A ideia suporte, que sustentou todo o conjunto da intervenção, veio da regra primeira:
a centralidade. Na situação atual a assembleia estava defronte para o altar e, pior,
distante dele. Não se podia notar a centralidade do Mistério Pascal, em que orbitamos
todos nós. Como o templo já estava construído e não se cogitava qualquer tipo de
alteração nos limites da construção, a única alternativa encontrada para se promover
a centralidade foi a mudança de local da mesa da eucaristia. A retiramos da frente e
a colocamos no meio da assembleia. Como o altar e o templo não foram dedicados,
esta proposta foi possível e bem acolhida pela comunidade que, após uma tarde de
catequese, entendeu a necessidade da readequação.

Nas ilustrações 27 e 28, poderão ser vistas as alterações propostas.


108

Ilustração 27. Planta da situação atual – Nossa Senhora de Lourdes.

Fonte: Desenho do autor.

Ilustração 28. Maquete digital – Nossa Senhora de Lourdes.

Fonte: Desenho do autor.


109

Ilustração 29. Maquete digital – Nossa Senhora de Lourdes.

Fonte: Desenho do autor.

Diversos outros trabalhos semelhantes a estes foram desenvolvidos,


entretanto, após rigorosa triagem, escolhemos estes quatro projetos/obras de
arquitetura sacra para representar as possibilidades de construção e readequação do
espaço litúrgico, privilegiando o lugar da assembleia, razão e foco do nosso estudo.

A exposição dos trabalhos visou reforçar o debate sobre a valorização do lugar


da assembleia a partir de exemplos práticos.
110

CONCLUSÃO

O rio não quer chegar,


mas ficar largo e profundo.
(Guimarães Rosa)227

Iniciando o fecho deste trabalho, proponho a leveza da poesia de Victor Hugo.


No livro “Notre-Dame de Paris”, o autor descreve a relação entre a catedral e o
adorável Quasímodo, eternizado pela alcunha de corcunda. Diz nosso poeta:

Para Quasímodo, a catedral fora sucessivamente o ovo, o ninho, a


casa, a pátria, o universo. Quase se poderia dizer que ele havia
tomado a forma dela, como o caracol toma a forma da concha. Era sua
morada, sua toca, seu invólucro. Estava, por assim dizer, colado a ela
como a tartaruga ao casco. A rugosa catedral era sua carapaça.228

Com esta analogia poderosa, Victor Hugo nos conduz para vislumbrarmos o
poder que os lugares exercem sobre todos e cada um. Se não com esta intensidade,
ao menos em certa medida, mesmo que reduzida, somos todos, uns mais outros
menos, “Quasímodos” de alguma “catedral”.

O poder desta poesia traduz de forma inequívoca a pretensão da arquitetura,


sobretudo da arquitetura do espaço litúrgico, mais ainda a pretensão daqueles que
ousam pensar o lugar para o Corpo Místico de Cristo, a comunidade reunida. Da
mesma maneira que no romance de Victor Hugo, Quasímodo tornou-se o que é graças
à contribuição da relação fenomenológica dele com o espaço habitado, as nossas
comunidades também tornar-se-ão organismos relacionais na medida em que o
espaço litúrgico oferecer condições para tal. O lugar edificado para a reunião dos
cristãos poderá, então, facilitar ou inibir a vivência relacional.

Francisco Figueiredo de Moraes, arquiteto com ampla experiência na


edificação de espaços de oração, afirma que:

227
ROSA, Guimarães. Pensador. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/Mjk5MzUz/>
Acesso em: fev. 2020.
228
HUGO, Victor. O Corcunda de Notre Dame, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013, p. 223.
111

Uma obra de arquitetura não é apenas um espaço cujo significado se


esgota no fato de abrigar as pessoas com suas atividades específicas.
Não importa se com ou sem projeto ou com que intencionalidade
alguém a produz, ela se torna algo autônomo, refletindo os que a
construíram, os que a habitam ou a utilizam. Mas, também ao
contrário, ela pode conformar, solidificar ou modificar hábitos e
mundivivências. Se isto não puder ser válido para toda obra, o será
obrigatoriamente par uma construção muito especifica: o edifício de
culto.229

Moraes vai na mesma toada, discorrendo sobre o poder dos espaços edificados
na construção das identidades culturais, tanto do indivíduo, quanto de uma
comunidade.

É certo que a prática cotidiana molda valores e não o inverso. Os lugares e


espaços podem promover ou inibir os exercícios cotidianos que, paulatinamente, vão
dando forma às crenças e valores. Por isso a arquitetura é tão importante. Esta ciência
nos permite conceber lugares que favoreçam a vivência de práticas que moldarão
valores na comunidade e na sociedade.

Os arquitetos devem, com delicadeza, adentrar no cotidiano dos destinatários


dos projetos, no caso específico, da comunidade. Conhecê-la, tal como um bom
alfaiate que toma todas as medidas do “corpo” para coser a “roupa ideal”. O corpo
vem antes da roupa. O corpo é essencial e a roupa, necessária. O arquiteto/alfaiate
deve, então, conhecer, sentir e mensurar o corpo para que consiga conceber a roupa
que será o abrigo para o Corpo Místico de Cristo: a Igreja.

Além disso, ainda de carona nesta analogia, pensemos que a roupa, além de
ser de utilidade prática, protegendo do frio e do calor, traz consigo uma considerável
carga simbólica, tanto é verdade que é possível apreender informações sobre as
pessoas apenas olhando as escolhas que fazem para suas vestimentas. Ora,
evidentemente esta condição é hiperpotencializada quando se fala “roupa” da Igreja,
a casa de oração, na qual os símbolos são elementos fundamentais para a vivência
da comunidade.

Entretanto, os arquitetos, artistas e pensadores das artes sacras correm o risco


de se sentirem presunçosos e detentores dos saberes divinos com os quais
edificariam a casa de oração ideal. Erro grande. A manifestação divina não está ao

229
MORAES, Francisco Filgueira de. O espaço de culto à imagem da Igreja, p. 25.
112

alcance de mãos humanas. Por isso é necessária uma postura humilde diante do
Mistério. Por maior que seja o gênio humano, a grandeza de Deus não cabe nele.

Então, sem a pretensão de portarmos as respostas ideais para as questões


aqui levantadas, este trabalho, a partir da pesquisa realizada, sugere caminhos
possíveis para que possamos exercitar um tipo de produção do lugar litúrgico que seja
mais adequado às teorias defendidas pelo Movimento Litúrgico e pelo Concílio
Vaticano II.

Ao revisitamos a evolução histórica das assembleias cristãs, percebemos que


a fonte da qual devemos haurir está nas primeiras comunidades, nos três primeiros
séculos da nossa era. Após este período, os vários acontecimentos políticos no
império romano, notadamente os dois Éditos já mencionados, que tornaram o
cristianismo primeiro uma religião legal, depois uma religião oficial, provocaram um
crescimento do número de cristãos para o qual as comunidades não estavam
preparadas. Somando-se a isto, a utilização de edifícios públicos, oferecidos pelo
império para acolher as comunidades cada vez mais inchadas, os lugares de encontro
dos cristãos passaram a ser cada vez mais impessoais e menos acolhedores.

Estes acontecimentos foram alterando as práticas dos encontros cristãos. Se


antes, todos se reuniam em torno de uma ou várias mesas, faziam memória dos feitos
de Jesus e depois partilhavam a comida que traziam, após esta inflexão histórica,
estes encontros passaram a ser mais formais e menos amistosos.

Ao longo de toda a Idade Média, até meados do século XIX, esta situação só
se agravara, distanciando cada vez mais o povo da Mesa do Banquete. A oxigenação
necessária somente surge com o advento do Movimento Litúrgico e seu desfecho no
Concílio Vaticano II, que buscou o resgate dos princípios cristãos até então
abandonados.

Se, hoje, há uma diferença entre o “católico de missa” e o “membro da


comunidade cristã”, sendo que um só é encontrado nas celebrações enquanto o outro
se dedica para o bom andamento da comunidade, as primeiras comunidades cristãs,
como pudemos ver, possuíam princípios de partilha e de vivência em comum e não
havia diferença entre comunidade cristã e assembleia litúrgica. Ambas eram
sinônimos. Se transportarmos este conceito para a atualidade, seria como se
113

pudéssemos afirmar que não é possível ser “católico de missa”, a única via possível
para a vivência cristã é a vivência em comunidade.

A respeito disto é bastante claro o apóstolo Paulo. Na maioria de suas cartas,


apela para que todos vivam em comunidade, sem a qual não haverá salvação. Mais
ainda, afirma que o sofrimento de um membro da comunidade deve ser sentido por
todos, bem como a alegria de um membro será a alegria de todos, tal como acontece
com um corpo físico, assim deverá acontecer com a comunidade, o Corpo Místico de
Cristo.

Mas a vivência em comunidade também possui tensões, que são refletidas na


concepção do lugar. Uma delas se refere à relação entre o corpo clerical e o corpo
laical. Clero e leigos foram separados como entes distintos, não pertencentes ao
mesmo corpo, sendo que a estes era destinada a contemplação e o gesto passivo de
apenas assistir à missa, enquanto que para aqueles cabia a exclusividade dos
serviços sagrados. Estas tensões, percebidas ao longo da história e bem registradas
por Pierre Bourdieu, obviamente estiveram no bojo das concepções arquitetônicas das
casas da Igreja por um longo período, e, certamente, ainda influenciam as construções
contemporâneas, apesar dos bons ventos do Concílio.

Bons ventos que recuperaram o sentido da assembleia litúrgica como sujeito


integral da celebração, em uma eficiente tentativa em se recuperar o sentido de Corpo,
minimizando as tensões simbólicas, aproximando e relacionando, em pé de igualdade
fraterna, o clero e o corpo laical. A partir de então, nada de passividade. A assembleia
passa a ser considerada ente primeiro do acontecimento Pascal. Se antes se
considerava apenas um celebrante, o padre, após a reanimação do Concílio, todos
somos celebrantes. A liturgia passa a ser, então, tarefa de toda a comunidade.

Para tanto, para que este conceito recuperado dos primórdios seja bem vivido,
será necessário ambientes coerentes. Não se pode mais concordar com lugares para
a assembleia que apenas permitam ao povo “assistir” à missa, pois esta passividade
deverá ser definitivamente eliminada. Casas da Igreja que mais se assemelham a
salas de espetáculos, cinemas ou salas de conferências e palestras não devem mais
servir aos intuitos da liturgia, pois não deve haver mais quem assiste àquele que faz.
Todos fazem, todos são protagonistas. Este sentido de participação, somente será
possível se o lugar da assembleia passar por uma radical transformação, eliminando
todos os vestígios da Idade Média e recuperando a herança da cristandade primitiva.
114

O desafio então será qualificar o lugar da assembleia, tornando-o um ambiente


afetivo, dotado de valor antropológico, no qual as pessoas possam interagir umas com
as outras, diferentemente do que se observava nos templos medievais, e na maioria
das igrejas atuais, nas quais a interação é desestimulada e a impessoalidade e o
individualismo potencializados.

Os estudos desta monografia, baseados nas pesquisas bibliográficas, apontam


para um caminho possível. A combinação entre a axialidade do corredor central, que
simboliza a tensão escatológica do espaço litúrgico e a centralidade do Mistério
Pascal, sinalizado pelo altar, ao redor do qual devamos estar todos nós.

Este caminho possível encontrará diversas vertentes e intepretações, podendo


ser fonte de inspiração para projetos vindouros e também marco a partir do qual estas
teorias possam ser aperfeiçoadas, sempre em busca de um lugar para a assembleia
que possa ser sinal do Corpo Místico de Cristo, a Igreja.

Enfim, o que se buscou aqui neste estudo foi um convite à reflexão acerca da
coerência entre o sentido de Corpo Total (Corpo Místico de Cristo) e o lugar que este
corpo, chamado igreja, utiliza para se encontrar. Quisemos direcionar os olhares para
a concepção morfológica do aludido lugar do encontro e desafiarmo-nos a considerar
as seguintes perguntas retóricas: os atuais lugares da assembleia litúrgica são
capazes de promover a percepção de Corpo por parte de cada um de seus membros?
Os atuais lugares são capazes de estimular o encontro relacional, caminho mais
eficiente para se fortalecer os vínculos afetivos, como cimento que une as partes num
todo indivisível?

Em nossa opinião, os lugares da assembleia, com raras exceções, estão


aquém destes anseios desejados, sendo necessário trilharmos um caminho de
formação, reflexão e produção do lugar litúrgico que possa atender aos princípios sob
os quais as comunidades cristãs estão fundamentadas.

Este é o desafio.
115

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