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MÁRDdeANDRADE

aspectos da
literatura brasileira
5|a edição

An dra de , Már io de , 189 3-1 945


A56 8a Asp ect os da litera tura brasile ira. 5 .e d .
São Paulo, Martins; 1974.
X, 266 p.

1. Literatura brasileira — História e crí

tica I . II.
Brasil.
Título.

CC F/C BL /SP—72— 033 8 CDD : 869.909


CDU: 869.0(81)—95

NXL
Índices pa ra catál ogo sistemá tico (C D D ):
1. Literatura brasil eira : Crítica e história 869 .909
2. Literatura brasil eira : História e crítica 869 .909
LIVRARIA MARTINS EDITORA S.A.
SUMÁRIO

Ad ve rt en cia ................................................................................ 3
Tristão de Ataíde ..................................................................... 7
A poe sia em 1930 ..................................................................... 26
..........................
Luiz Aranha ou a Poesia preparatoriana 47
Machado de Assis ..................................................................... 89
Castro Alves ......................................................................... 109
Memórias de um Sargento de Milicias .............................. 125
A vo lt a do Con dor .............................................................. 141
O Ateneu ............................................... 173
A El eg ia de Ab ri l ..................................................................... 185
Am or e Mê do ........................................................................... 197
O Movimento Modernista ...................................................... 231
Segundo Momento Pernambucano ....................................... 259
AD VE R TÊ NCIA

R euni neste volume alguns dos e nsaios de crí tica li terári a,


escri tos mai s ou menos ao léu das cir cunstâncias e do meu
pr azer . E sper o qu e se r econheça nel es, não o pr opósi to de
distribuir jtistiça, que considero mesquinho na arte da crítica,
mas o esforço apai xonado de amar e compreender. Ê mesmo
certo qu e se por vezes sou um bocado áspero em minhas cen-
sur as aos ar ti stas i sso pr ovem de uma desi lusão. A desi lus ão
de não te r em eles me proporci onado, de arte, o quanto eu
si nto poder i am me dar .
Os estudos sobre Manuel Bandeira, Castro Alves e O
Ate neu for am pu bli cad os na Revista do Brasil, na atual fase
cari oca da revista. Os ensaios sobr e A Poesia em 1930, Luís
Ara nha e Tristão de Ataíde, for am pu bli cad os pela Revista
Nova, e A Elegia de Abril na recente revista Clima, ambas de
Sã o Pa ulo. O estu do sobr e As Memórias de um Sargento de
Milícias se publi cou com o i ntr oduçã o à edi ção de lu xo dess e
livr o, fei ta pela Li vrar ia Mar tins, de São Paulo . Quanto à s
notas sobre Machado de Assis e A Volta do Condor, for am
crônicas publicadas no Diário de Notícias do Rio de Janeiro,
mas de pr etensão mais vai dosa no tamanho , a que, na últi ma,
se aj un tou, como aber tur a, um ar ti go pu bli cad o na Revista
Ac ad êm ica do Rio.
MAR IO DE ANDRADE

A s modi fi ca ções não são substa nci ai s. As fei tas em tr aba-


lhos mais antigos derivam em especial de uma atitude e lin-
g ua g em de combat e qu e já não teem mai s r azão de ser. A s
modificações em escritos recentes derivam de jornais e re-
vistas ainda continuarem naquela subserviente covardia de,
agradar a magra dieta espiritual de seus leitores, corrigirem
os “err os” de gr amática dos arti stas. D eix o aqui o me u
pr otesto.
M . de A .
TRISTÂO DE ATAÍDE

(1931)
Bem definido pela religião que professa com uma firmeza
moral raríssima num país que apesar de suas cores tão vivas
só produz indivíduos de meias tintas, Tristão de Ataíde con
tinua na quarta série dos Es tu do s a obra sectária que o carac
teriza. Tristão de Ataíd e é talvez o e xemplo mais util que
se possa apresentar à mocidade brasileira, covarde e indecisa.
Não apenas aos católicos, mas a todos em geral, que, na ordem
das suas crenças e destinos desejados, teem a copiar dele o
desassombro, a cultura coordenada, a nobreza de intenção, o
incorruptível do caráter.
Está claro que sob o ponto-de-vista literário, toda crítica
dotada de doutrina religiosa ou política é falsa, ou pelo menos
imperfeita. Pragmaticamente exata mas tendenciosa. Há um
contraste insolúvel entre os detalhes duma religião ou sistema
político , e a criação artística. Os estetas católicos se esfor
çarão em fala r que não há. Há. Há desde início, por s er
impossível estabelecer a medida justa em que a criação passe a
pecado. A não ser que se acredite em critérios tais ver o da
quela censura fradesca, referida por Gonçalves Dias,, a qual
num sonet o mudou pra “ ósculo” a palavra “ beijo” , conside
rada imoral.

com Por essas, impossibilidade


Camõe de limite,
com Dante, Miguel Anajo Igreja condescende
ou Bernini. Só se
condena as obras decididamente contra, deixando as outras
pra essa espécie de intriga de comadres: campanhas de jornais,
surdina de confessionários, etc. É dolorosamente mesq uinho.
Quem quer tenha seguido a evolução de Tristão de Ataíde
através dos cinco volumes dos Es tud os, notará desde logo que,
de crítico literário, ele vai gradativamente passando a comen-
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tador de idéias gerais . Essa mudan ça lhe veio e m função do Por todos estes defeitos tradicionais, a crítica literária de
próp rio catolicismo qu e aceitou em meio caminho. E é tam Tristão de Ataíde já se ressentia duma tosquidão esboçadora
bém uma prova da contradição que existe entre a Arte e a muito grave, duma falta de subtileza de análise, que a entrada
crítica sect ária. Não estou longe de crer que dentro de Tristão no Catolicismo só veio aumentar. E com efeito, o pensador
de Ataíde se processou todo um drama penoso de remorso, católico se via em grande parte despojado daquele liberalismo
que o tornou cada vez mais desgostado da crítica literária, que inda faz pouco Thibaudet achava imprescindível a toda
cada vez mais conciente, não digo das injustiças, mas das crítica li terária. O que ganhava em comba tividade perdeu em
indecisões, das irregularidades que praticava como crítico de poder de c ontempla ção. A mudança de personal idade foi pra
arte. Da í a precisã o de se evad ir dessa crítica dos artis tas melhor, é minha opinião; mas a crítica já indecisa dos Estud os
prà crítica das idéias gerais, em que todo sectarismo, todo adquiria mais uma indecis ão nova. Sem pratic ar injustiças
pragmatismo pode se mostrar com mais lealdade e justiça. concientes, de que é incapaz, Tristão de Ataíde oscilava agora
Como crítico literário, Tristão de Ataíde sofria dos defei quanto ao ponto-de-vista em qu e devia encarar as obras. Daí
tos por assim dizer já tradicionais na crítica literária brasileira injustiças que, por involuntárias, não deixam de ser flagrantes.
desde Sílvio Romero. Nesta barafunda, que é o Brasil, os Tal é o caso, p. ex., das atitudes diversas tomadas ante O Gaú
nossos críticos são impelidos a ajuntar as personalidades e as cho de Paulo de Freitas (pág. 96), e A Ba ga ce ira , de José
obras, pela precisão ilusória de enxergar o que não existe ainda, Am éri co de Alm eid a (3.a série, vol. I, pág . 13 7) . A o prime iro,
a nação. Daí uma crítica prematuramente si ntética, s e con que romanceia sobre a vida particular de três pessoas, que
tentando de generalizações muitas vezes apressadas, outras podiam perfeitamente não ter espírito religioso, censura a
inteiramente falsas . Apre goa ndo o nosso individualismo, eles ausência do sobrenaturalismo; ao passo que nem toca no assun
socializam tudo. Quand o a atitude tinha de s er de análise to diante da Ba gac eir a, que romanceia uma região, uma psico
das personalidades e às vezes mesmo de cada obra em par logia coletiva, a que o problema religioso não apenas se prende
ticular, eles sintetizavam as correntes, imaginando que o conhe necessàri amente, mas é impre cindíve l como realidade. A in
cimento de Brasil viria da sínte se. Ora tal s íntese er a, espe jus tiç a é fla gra nte . Po dia cita r mais exe mplos.
cialmente em relação aos fenômenos culturais, impossíveis: Mas não apenas em casos particulares se especifica a per
porque, como sucede com todos os outros povos americanos, plexidade em que se via o pensador católico pra continuar
a nossa formação nacional não é natural, não é espontânea, como crítico l iterário. Uma nova anomalia grande surgia
não é, por assi m dizer, lógica. Daí a imundície de contras tes vingarenta:
que somos. Não é tempo ainda de compreender a alma-br asil
A pr ov a mais íntima de que talv ez form em os ho je uma
por sínt ese. Porq ue nest a ou a gente cai em afir mações pre
literatura nacional realmente expressiva da nossa entidade (no
cárias, e inda por cima confusionistas, como Tristão de Ataíde
que ela possa ser considerada como .entid ade .. . ) , não está em
quando declara que o senti mento religioso “ é a próp ria alma
se parolar Brasil é mais Brasil, em se fazer regionalismo, em
brasileira, o que temos de mais diferente ( si c ), o que temos de
mais nosso” (pág. 278) ; ou então naquela inefável compilação exaltar
ra ; nãoo está
ameríndio; nãofazer
na gente estáfolclore
na gente escrever
e ser a fala brasilei
dogmaticamente bra
do fichário de Medeiros e Albuquerque que censurava um
poeta naci onalista por cantar o amendoim “ frutinha estran sileiro : está, mas no instintivismo que a fase atual da literatura
geir a, talve z srcinária da Síria” . indígena m anifesta, e é ruim sintoma. Se é certo que ess e
instintivismo coincide em grande parte com o movimento uni
Outros defeitos da crítica literária de Tristão de Ataíde versal das artes (Tristão de Ataíde a horas tantas equipara e
são a quase dolorosa incompreensão poética.; a conversão sis confunde o noss o primari smo atual e o do universo. . . ) , essa
temática de todos os nossos valores individuais e movimentos coincidênc ia me parece meramente exterior. Num Proust,
a fenômenos de mera importação; e, o que é pior, a sujeição num Joyce, num Picasso, num Strawinsky (estes dois sintomà-
das opiniões artísticas dele à cour d’amour européia. ticamente perdulários e viracasacas.. .), em Carlito, no Surréa-
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lisme, em Mussolini (1), esse instintivismo universal representa A pr in cip al pr eoc up açã o que a gent e const ata nestes E s
ainda uma continuidade culta, reacionária (instintivismo por tudos novos é verificar afirmativamente a catolicidade da gen
assim dizer organizado...), da exasperação racionalista do Oi- te brasile ira. Inda numa crônica de 29 de março passad o,
tocentos. Entre nós o instintivismo é outro, é ignaro e contra d’0 Jor nal , Tristão de Ataíde voltava à afirmativa. Esse
ditório: não representa nenhuma cultura nem nenhuma incul- assunto s e desenvol ve especialmente no capítulo V e no impor
tura propriamente dita: é apenas uma coisa informe, hedionda, tante Capít uloXX I. A todo momen to no volume o pensador
dessociali zante, ignara, ignara. É o instintivismo bêbedo e católico volta à idéia utilitária que o preocupa. Se reconhece
contraditório dum povo que já se lembra só fracamente do “ o agnosticismo radical ( . . . ) de quase todas as nossas inteli
importante Diabo e inda poetiza popularmente sobre as sereias gências” (pág. 107 ) ; se verifica “ na mentalidade das novas
e Cupido; é o instintivismo que se deixa abater por 30 anos de gerações uma tal cegueira agnóstica” (pág. 37) ; se vê no bra
miséria política; cria de sopetão o entusiasmo revolucionário sile iro um “ povo de indiferen ças al arman tes ( . . . ) , sem reli gião
de 1930, sem razão objetiva pro povo; e depois dessa unanimi nos moços” (pág. 321) ; se pra ele a situação e m que nos
dade que se acreditara nacional, rompe num rush de cavação, encontramos é laicismo do Estado, barbarismo dos diletantes e
de novo empregadismo-público mamífero da espécie mais para santismo
dar força das cl asses mais
ao tremendo espiritualmente
indiferentismo abandonadas,
integral ( “ corrói
si c ) que para
sitaria, pedindo paga pessoal do sacrifício coletivo; e cria mais
essa macaqueação indecente do “ batismo de sangue” pela qual todas as nossas forças vitais, tanto econômicas como religiosas”
agora mandam os espadas-de-ouro, só porque mandaram a sol- (pág. 27 8) : por outro lado afirma que “ um dos fatores pr i
dad esca. . . ensanguentar-se nas avexadas It ararés. E isso mordiais da no ssa unidad e foi justamente a Fé” (pág. 248 ) ;
enquanto, como jamais, deslustra as conciências, não a necessi entende qu e “ foi ele (o f ator religioso) que nos deu uma al ma
dade econômica, não a realidade geográfica do separatismo, comum, uma tradição comum e a possibilidade de sempre (sic)
porém a queixa, o despeito, a irritação, o sentimento de separa fun dir os element os disparatados que nos forma ram ” (pág.
tismo. Tud o isso é que as nossas artes desmandibul adam ente 24 8) ; indica que “ o laicis mo absoluto da s camadas superiores
instintivistas de agora repres entam. Frutos azedos, embora ( . . . ) não con segui u ainda arranc ar as vir tudes e a Fé tradi
muitas vezes admiravelmente líricos, duma contradição nem cional das camadas inferiores, dessas que constituem propria
mesmo sistemática, duma desorganização nem mesmo bárbara. mente o corpo da nacionalidade” (pág. 249) ; fala na “ parti
cipação real, profunda, ardente da Fé que formou esse povo
Fruto s do nada que somos como entidade. Frutos do mais
(brasileiro), que abriu a sua alma, que alimentou o seu ideal e
amargo nada humano. Se compreende pois a anomalia que
até hoje o penetra em toda a sua vida, sob todas as formas
eu indicava entre a literatura nossa e a crítica sectária e incon-
(sic), das mais puras às mais degeneradas” (pág 250).
testavel mente pragmá tica de Tristão de Ataíde. É que quanto
mais as artes estão verdadeiras, mais o crítico tem que as cen Reconheço que há certa perversidade em ajuntar assim
surar, porque representativas daquilo que é a expressão mais textos jornalísticos que tantas vezes, embora refletidos, depen
nítida da realidade nacional! dem dum bom jantar ou dum quase desastre de automóvel
aguentado na esqu ina. Seria perversidade, s e tivesse da mi
Por tudo isso se compreenderá o drama interior do crítico,
nha parte & intenção d e provar que o crítico s e contradiz. Ora
drama quee omleva
literárias cadadavez
favor mais a abandonar
discussão o estudo
das idéias ger ais.das Perdemos
obras não vejo propriamente contradição nessas afirmativas apaixo
nadas, quero apenas provar o quantò o problema da nossa cato
um excelente crítico literário, apesar dos defeitos, excelente;
licidade per seg ue Tristão de Ataíde. Essa preocupação o leva
ganhamos um pensador católico. Que estamos de parabém é a
no entanto a algumas afirmações inválidas, e principalblente
minha opinião.
a um tal ou qual confusionismo entre religiosidade e báto-
licidade.
(1) Lembro Mussolini porque a tirania ditatorial é o processo mais
instintivo de governo, diretamente provindo dos primitivos reis-deuses, e Af irm aç ão inv álida me par ece, p. ex., aqu ela que alu din do
dos reis representantes de divindades. aos versos pra Nossa Senhora, dum poeta sem fé, Augusto Me-
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yer (e poderia ter lembrado com muito mais razão, Manuel Ban essa coisa que ele (contraditor) também sente mas não vê,
deira . . . ) comenta : “ como que a mos trar quanto u m senti men que prova a falta de c atolicidade da no ssa gente. Argum ento
to religioso espontâneo lutava contra o seu cepticismo precoce” , de mil gumes.
do poeta (pág . 272). Ora isso me parece um carinho exager a- O problema da catolicidade brasileira é dos mais delicados
damente se ctário . O problema religioso nã o apenas foi posto da entidade nacional e, por mim, jamais cheguei a uma verdade
em moda na literatura de depois da Guerra (e era pois aqui nítida. Confesso que não consigo verifica r bem na gente bra
um caso de Tristão de Ataíde reverter o fenômeno individualis sileira um catolicismo essencial, digno do nome de religião.
ta do poeta a uma importação européia, como costuma fa Principal mente como fenômeno so cial. Dig o isso com tristeza
zer . . . ) , como se to rnou moda toda espec ial do modernis mo porque me parece mais outra miséria nossa, porém o que tenho
brasileiro. Até pintores, como Tarsila do Amaral, e escultore s percebido em nós é uma tradição ou costume católico, vindo
como Brecheret (mas o caso deste não é nacionalista), não de fora pra dentro; na infinita maioria dos eruditos e semi-
escaparam dessa temática em voga. Preocup ados especialmen -eruditos, muito deturpado pelo carinho sentimental às memó
te em dar analiticamente as tendências que regiam com mais rias de infância e tradição. Nada ou quase nada ess encial.
efusão a alma brasileira, os nossos artistas modernos logo sa Por meioque
natural desse costumeemque
existisse nóstem quatro
uma séculos de raizes,
espontaneidade católica.era
lientaram, especificaram e desenvolveram a religiosidade na
cional. Porém não ape nas essa religiosidade quando orien Ela existe. Mas reage a infinita maioria da s vezes como fe
tada pela tradição cristã, como ainda pelo feiticismo africano nômeno individualista (2 ) : não funde mais a gent e em mo
e pela superstição, que tanto irritam o pensador católico. vimentos de ataque ou de defesa coletiva.
Se o jeito de expressar o assunto mudou pela maneira derra No entanto nós sabemos como são furiosos aqui os movi
mada e mais exteriormente brasileira com que atualmente so mentos criados pe lo “ santis mo” popular, pelos Antonio Con
mos artistas, nem por isso a Nos sa Sen ho ra de Augusto Meyer, selheiros, pelos João Antonio dos Santos, o criador da religião
aMac umb a •de Graça Aranha , a Santa Teresinha de Manuel (? ) da Pedra Bonita. E o nosso padrinho padre Cíc ero ...
Bandeira, a Cabra Cabriola de Ascenso Ferreira, a Cuca ou Mas a própria superstição católica persevera em nós com
o Coração de Jesus de Tarsila do Amaral, deixam de ser tão bastante precariedade. É precária em nosso povo a convers ão
temáticos como faunos e Pan pros parnasianos, Cupido e Ve- das crêndices confortadoras das indecisões quotidianas a uma
nus pros árcades. ordem católica de a busos. Essa conversão exis te pore m, abun
Outra vez em que a afirmação do crítico me parece inváli dante, na idolatria de santos inventados. Fico u célebre , não
da é quando afirma que a religi ão católica “ foi sempre, em apenas aqui no Estado, aquela briga de família que deu pra
nossa história, um princípio de ação e de reação” (pág. 275) Ar ara qu ar a um ap elid o triste . Não impor ta saber do caso
e, depois de enumerar algumas provas reais disso, insuficientes todo, basta aqui lembrar que os dois Britos sergipanos, sacri
pra justificar o “ sempre” entus iasmado , conclue: “ E se (os de- ficados à sêde dos seus inimigos mineiros, tiveram sepultura
turpadores da nossa História) não olham para o exterior, no novo cemitério regular da cidade, bem afastado, da cidade.
que fará com o que não está visível aos olhos do corp o! Com Ap esa r da lo nju ra e de tud o isso, fazem 34 anos, a sep ult ura
o que se sente mas não se vê. Com o que se sente mas não se dos Britos continua visitadíssima por todos, e na certa que
define (sic.). Com o que se sente e não se pode pro var p or por enorme maioria que nem conheceu os dois desinfelizes.
estatísticas, pois transcende a toda estatística, e é mais leve que Esse cemitério até o s de Araraquara conhecem por “ cemitério
todo peso, mais sutil que todo número, maior que toda medida” dos Brito s” . A religios idade tr abalhou. Se conta qu e os
(pág. 27 8). Ora não é possível o pensador católico encontrar dois corpos esfaqueados continuam intactos no cemitério.
maneira mais rápida de invalidar o que vinha provando, do (2) É engraçadíssimo a gente reparar como, nas proximidades da
que citar em abono próprio essa coisa que ele é que sente e Semana Santa, em principal depois dela passar, aumenta o número de pes
considera indefinível. E portanto não pode servir de prova. soas tirando c hapéu, diante das igrejas. Depois a cumprimentação vai di
Porque o contraditor dirá que é justamente esse indefinível. minuindo, diminuindo, fica reduzidíssima por novembro e dezembro.
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Outros falam que os oss os foram roubados. O certo é que e sólido equilíbrio, distante, por cérto, da indiferença e mais
vsitando o cemitério dos Britos, a gente encontra a sepultura distante ainda do fanatismo”.
deles sempre cheia de velas e um rio morto de cera no chão. O Diabo que é duma necessidade popular primordial, a
Mas não são ofertas a Deus pra que outorgue piedade às duas não ser na frase-feita das exclamações, tem vida pouca no
almas; são velas, crenças e ânsias ofertas aos Britos, sabei-me país. Nas Mac umbas o identificaram com Exú, em que e le
lá em que embrulhadas de jerarquias celestiais, pra se con perdeu finalidade e função. Porém mes mo essa identificaç ão
seguir, ou pagar, tal desejo, t al recuperação de saúde, etc. São parece tão falsa como a dos primeiros jesuítas e viajantes
promessas feitas aos Britos, que agem numa zona vasta como quando descobriam Jeová em Tupã e o Diabo nos daimônios
santos. Pra não dizer como deuses. Também contam que no da mitologia ameríndia. De Pernambuco, me interpretam
Paraná tem um túmulo que chora água curativa. E entre Ex ú como “ espírito e scravo dos outros” espíritos. Nos Ca
santos vivos do Brasil, alem da famosa Santa mineira de Co timbós nordestinos não achei o Diabo, pois não tem Mestre
queiros, tem mais dois em Pernambuco, um padre Serra e uma catimboseiro que se identifiqu e com ele. Também na s Page-
lanças da Amazônia, que após o hiato catimboseiro do Nordeste,
SantaseIsabel
Mas do Altodedosupertição
esse abuso Céu. E éa hereditariamente
estigmatizada de de
Campinas.
ordem renovam a tradição africana das Macumbas de Rio-Baía e
talvez do Vodú antilhano, não sei que tenha Mestre, espírito
católica, por outro lado é sintomático que as bruxas, supersti mau ou co isa que o valha, identificável com o Diabo. Por
ção católica, não tivessem vitalidade nenhuma na tradição na Norte e Nordeste porém, mais que do Centro pro Sul, perma
cional. Em Portugal, que nos deu a parte máxima do nosso fol nece a Oração da Cabra Preta, em que se percebe, se não o
clore, a tradição da bruxa permanece viva. Luiz Pina, em 1929, enxofre pelo meno s o pé do Pé-de-Cabra. E na tradição dos
inda publicava um livro lá sobre Br ux as e Med icina . No cantadores de. lá continua vivíssima a universal tradição da
último número da Re vi st a Lu sita na (v. XXVIII, pág. 252) luta musical com o Cão. Por todo o resto do país o Diabo
se prova a sobrevivência dos s abás em Portugal. No Brasil, se tornou, quanto a crendice quotidiana, uma abusão desne
onde se generalizaram as cruzes de estrada celebrando assas cessária, ao passo que muito menos étnica e tradicionalmente
sinados, não medraram nada as cruzes de encruzilhada que jus tif icá ve is, ind a viv em de vida sab oros a os sacis, os coru -
em Portugal “ encontra m-se por toda a parte ( . . . ) a santifi piras, os Negrinhos do pastoreio, os tutús, as cucas — estas
car o lugar que é ponto d e reunião das bruxas e do dem ônio” . últimas, res to pobre da bruxaria européia. Sem me dar ao
Al iá s o pr óp rio costu me de reza r nas cruze s de estrad a, se trabalho de pesquisa grande, embora reconhecendo que no
inda per siste no Nordeste, já vai fraco e irregular. Em certas Brasil também tem muito jeito de nomear o Diabo, muito
regiões de São Paulo quase não existe mais. provérbio em que ele entra, pegando num só artigo desse
mesmo vol. da Rev . Lus ita na, eis o que encontro em Portugal,
No extremo sul não é menos patente, ou talvez seja ainda só na regi ãozinh a de T urq uel: Disfarces vocabul ares do D iab o:
mais que no centro e no norte, essa religiosidade superficial. Diaço, Diago, Dialho, Diango, Di anh o (grifo o que sei perma
Saint-H ilaire afirm a serem os gaúchos “ mais ou me nos estra necer no Brasil), Diatras, Di og o, Nabo, o das unhas grandes.
nhos a sentimentos religiosos”, observação que João Pinto da Faisca-vel ha (mãe do Diab o). Exclamações: C’os diabos!;
Silva comen ta e confirma desta maneira: “ Não é lícito deix ar C ’os diabos de Cas tela!; Com 10 (30, um cento de, 30 0, 600,
de reconhecer, por exemplo, a exatidão do seu conceito (de 1.000, 1.000.000) de diabos! (e lembrar que nos Volcoens de
Saint-Hilaire) relativo à fragilidade do espírito religioso, entre Lam a o Robertò Rodrig ues jura “ com dez milheir os de dia
nós. Não há, pelo menos, na históri a rio-gran dense ato ou bos ! . . . ) ; Os diabo s se queimem!; Os diabos se perca m!;
episód io que autorize outra conclusão. Se não existem prova s Di ab os o le v em !; Cara do Di abo !; Cara de Barza bú!; o raio
de completa indiferença, não se encontram tão pouco, ardentes do Diabo!; o alma do Diabo!; Raça do Dia bo!; Vai para o
afirmações de fé , demonst rações enérgicas de crença. Em ma inferno!; Vai para o meio do infern o!; Vai para cs quintos
téria religiosa, o que sempre se observou, aqui, foi um belo do inferno!,- Vai para a casa do Di ab o!; Vai para o Diabo
16 MARIO D E AND RA DE ASPECTOS DA LITERAT URA BRASILEIRA 17

que te leve!; Vai para o Diabo que te carregue!; Oh homem nação facílima. Este escrito não saiu no 2." número da R e
de Deus ou do Diab o! (falamos só “ oh homem de D e u s " ); vista Nova como devia, o que me permite lembrar ao leitor o
Vi ra m o Diab o em gu ed elha !; Vi ra m o Di ab o az ul; H ou ve estudo dos Drs. Leonídio Ribeiro e Murilo de Campos, lá pu
o Diabo a quatro!; Diz,,o que o Diabo não lembrou!; Deu blicado, sobre a violência com qué o Espiritismo grassa em
volta no inferno! Ditos sentenciosos: Abóbora e nabo nosso povo. Também o Dr. Osório Cesar, médico e escritor
enganou o Diab o; Quem com o Diab o cava a vinha, com o paulista, possue estudos a esse respeito. Numa viagem recente
Diabo a vindim a; Para um coxo, um calvo e para um ca lvo que fiz pelo interior paulista, apalpei o verdadeiro foco es-
o Dia bo; O Diabo nunca foge para a igre ja; O Diabo t em piritista de Matão, cidadinha próspera. Se falava então d e
uma manta e um chocalho; Mais tem De us par a da r que o horrores de moças convertidas em médiuns, urrando na escure-
Di ab o pa ra le va r; O Di ab o não é tã o fe io com o o pi nt am ; za das fazendas de-noit e. E o padre t em luta brava pra con
Po r que sabe o Diabo tanto ? porque é velh o; Quem o seu não seguir um bocado de cgtolismo na zona. Quanto ao Protes
vê, o Diabo lh o leva; Na vinh a do Diabo n ão fica rabisco; tantismo creio que não careço lembrar opinião de ninguém.
Melhor é um com Deus qu e dois com o Di ab o; Os demônios Mas lembro ainda um caso de viag em: Quando e stive em
são muitos e a águS-bent a é pouca. Está claro que podia Porto Velho pra conhecer a Madeira-Mamoré, notei na cida
compendiar também o que sei sobre o Diabo no Brasil, princi de importante e nova umas verdadeiras ruinas, paredões des
palmente os eufemismos pra nomeá-lo que são muitos, mas cobertos e imponentes. ’ Me falaram que era a única igreja
além de quase tudo nos vir de alem-mar, este exemplo duma católica da c idade. Não foi fossível acabar, est ava aban
só região pequena de Portugal pequenino aturde pelo número,
donada porque a religião local era a protestante. Só mais
mostrando uma preocupação do Diabo de que positivamente o
brasileiro e stá livre. Displicentemente pego nos Pr ov erb s and tarde a recomeçaram. Se a Fé católica ajudou muito os mo
Ma xim s, de Rayner, e conto sem cismar 59 provérbios sobre o vimentos da Colônia contra os calvinistas de Holanda e França,
Dia bo! Se vê como e stamos longe do Diabo por toda e sta são raríssimos dum século pra cá os, não digo movimentos, mas
documentação ajuntada... enquanto o Diabo esfrega um olho. apenas casos, casos pansudos de revolta contra os nova-seitas,
que nem o engraçado da cidade pernambucana de Palmares
Mas é ainda na própria aplicação supersticiosa dos santos, (3 ). Casos, aliás, sem a mínima, perseverança , sem a mínima
das datas religiosas e das lendas sagradas que a catolicidade essencialidade de fé,. facilmente explicáveis pelo prov érbio d o
brasileira se mostra precária. Os nossos santuários são valha- boi novo que posto em malhada velha até das vacas apanha.
coutos de desabusados e de abusos quando chega o tempo da Uma recordação de infância me conta que de-noite vários
festança. A simpática invocação de N. S. do Brasil não pegou, colegas do Ginásio de N. S. do Carmo nos reuníamos pra
que era de religiosidade bem nacionalizadora, era de cultura
fumar de escondido, beber cerveja e outros então crimes dos
própr ia e nenhuma importação. Pelo contrário, Santa Te-
14 anos. Entre estes primav a o de atirar pedra nas vidraças
resinha, importada em gr an de ' parte pelos padres estranhos
que vivem aqui, se tornou dum abuso sentimental excessiva dum colégio diz-que protestante que havia numa esquina do
mente urbano e as sanhado. O que prova a exterioridade da então inculto largo da República. H oje que posso me analisar
importação. Sem querer ferir o senti mento de ninguém, é melhor, sei que não era o zelo religioso de que nos imagináva
incontestável que importações sacras assim, ou como o São mos possuídos que nos levava a atirar pedra, e sim o zelo das
Cristovão dos automóveis, são enormemente similares às mas pedradas que nos tornava católicos e cruzados.
cotes importadas do bricabraque europeu. E é incontestável que o primeiro do ano e o tríduo carna
Nas classes incultas, em que não existe a vaidade, ou valesco teem significação brasileira pelo menos tão importante
o orgulho, ou se quiserem o preconceito das tradições cultas,
que faz a burgue sia se dizer c atólic a po r “ família e história” (3) No Nordeste chamam ao protestante de “ nova-seita”. O primeiro
nova-seita que apareceu em Palmares, foi um norte-americano chamado
o Protestantismo e o Espiritismo, apesar do combate dos pa Ande rlight . Realizo u com a famíli a um batismo púb lico no rio Una. A
dres, encontraram uma complacência extraordinária e dissemi- população tôda foi vêr, vaiou e jogou lama nos tais.
18 MARIO D E AND RA DE ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 19

pro povo como a Noite de Festa (Natal), ou a Semana Santa. No romanceiro nacional, especialmente no dessa zona prodi
Não é bom falar do São João em que, quando a festa não é giosa de lirismo literário-musical que do Nordeste litorâneo
exclusivamente profana, o santo aparece enormemente pagani- entra sertões a dentro pelo caminho do São Francisco, especial
zado à contaminação de mitos vegetais, como nos veio da mente no romanceiro nordestino, o padre é sistematicamente
Europ a. O Carnaval, como costumes, é uma das criações mais ridicularizado, embora freqüentes as manifestações de catoli
livres, mais nossas, mais srcinais do Brasil, apesar de im cidade (5). Nos Violeiros do Norte (pág. 151), Leonardo Mota
portado. Nele nasc eu e evolue a dansa nacional urbana por afirma que o povo é sinceramente religioso, que o padre é res
excelência. O espaço de Natal a Reis que inda tem uma verda peitado e que “ faria um rol reduzidíssimo quem s e propusesse
deira significação popular no Nordeste, se caracteriza pelos a catalogar as irreverências religiosas contidas na poesia do
espetáculos das dansas dramáticas, em que o naco de catoli pov o” . Outro observador do nosso nortista, José de Carvalho,
cidade, subsistente dos autos jesuíticos talvez, é pura super- em O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, afirma que as
íectaçã o antiquada, se m significaç ão nenhu ma. E quanto à s cantigas paraenses em louvo r de certos santos “ nada teem
rezas tradicionais de oratórios particulares ou improvisados, de de religiosas ou litúrgicas ” . E se maldar do padre, caçoar
famílias reunindo a redondeza com o chamariz do samba que dele, é irreverência religiosa, não posso concordar com Leonar
as termina: pelo chamariz se identificam com os mutirões, sem do Mota. O povo respeita no geral o padre, como re speita
ter a significação social nem mesmo ritual destes. qualq uer “ seu dot ô” , mas se desforra na poesia do respeito
E desleixadamente desabusado pra não dizer incrédulo, o místico que tem pelos que lidam com incenso, com papelada ou
nosso povo tradicionaliza coisas que jamais uma catolicidade drogas, que são formas de feitiçaria. Quem quer tenha fre
intrínseca não permitiria exist issem. No meu En sa io sob re qüentado o romanceiro nordestino de cordel, há-de concordar
Mú sica Bra sil eir a, registei uma roda infantil nossa, incrivel comigo.
pela falta de ingenuidade, rindo do padre e seus namoros (4). Mas essa caçoada ao padre também já é portuguesa. . .
Em Portugal como na Espanha, Leite de Vasconcelos (Ensaios
(4) Falo da roda do Padre Francisco, colhida em Cananéia. O texto
não passa duma deformação, sem a significação primitiva, adquirida outra
E tn og rá fic os , Lisboa, 1906, v. III, págs. 41 e 60) afirma qué
mais bandalha. daquele passo de certas versões do Conde Claros em que “ o bom senso ( sic), popular não é nada favorável à igreja” e
o conde, enganado em frade, vai confessar a infanta prestes a caminhar que “ sendo o nosso povo ( portug uês) nimiamente católico, fa
prà forca. nático por vezes até, satiriza sempre que pode, nas suas poe
No meio da confissão êle pede beijos e abraços, ao que a infanta se sias, o padre, o s santos e a igreja ” . Sinto um certo exagero
enqu^sila tôda e responde que boca beijada pelo conde Claros só por êle
será beijada. Então o cond e se dá a conhecer e salv a a moça. Numa
nisso. O padre, sim, esse é satirizad o 80 % das vezes. E é
versão ribatejana diz o frade-conde: curioso lembrar que Casemiro de Abreu nas estâncias a Faus-
— Venha cá, minha menina, tino Xav ier de Novais não deix a de citar os “ frades dos
Que a quero confessar; conventos” entre os “ bons tipos” que o satírico português
No primeiro Mandamento deverá zurzir. O verseja dor do Eva/ngélho das Selv as, poueo
Um beijinho me há-de-dar.
A srce m do nosso texto é essa. Pare ce ainda que teve contam inaçã o
menos que sacrista, só fala de padre e frade pra caçoar: A rq u é
tipo, Velha Canção, Iíamvondcórdio. Acha, descrevendo A
com outras
(Firmino fontes portuguesas,
Marques: Fol clo re do como
Consealhooração “ Meu
de Vinh ais, Padre
1928, S.
pág.Francisco”
65), em Cidade, que “ canta na catedral a hipocrisi a” . Mas a maneira
que se fala de confessar os pecados e “ dar graça” nesta vida, oração à depreciativa de tratar o padre brilha na “ história brasileira ” ,
que está ligada (1.° cap. cit.) a anedota sac ra duma moça velha (é o caso An to ni co e Cor á, nosso melhor conto libertino em verso. Só
da nossa roda ), que aos 30 anos vai se confessar pela primeira v êz. E
ainda com a significação de namoro padresco é imprecindível lembrar, como que eu não devia entrar na documentação dos intelectuais, cujo
justifi cativ a tradi ciona l da nossa roda, aquela peça , musicalm ente ame- icana, agnosticismo o próprio Tristão de Ataíde reconhece...
textualmente bem portuga, impressa por João do Rio nos Fados e Can çõe s de
Port ugal sob o título Frei Paul ino. A contaminação me parece provável.
Mas o significativo é a conversão dum romance puro português, e possivel (5) Note-se que no romanceiro paulistano o padre é completamente
mente de peças brejeiras para adultos, numa roda infantil nossa... ignorado.
20 MARIO DE AND RAD E ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 21

Bem curioso, aliás, o conceito que o povo tem do padre. católica, também c onservam o seu culto e ritos tapúios . Vivem
Este não é propriam ente o ministro de Deus. Perda a função com duas reli giões, o que não é pouca ambição. Ao mesmo
de intermediário, em vez, age diretamente sobre os poderes tempo que o padre os batiza e casa, também o Vaiangá, pagé
invisíveis benéficos ou malignos, por meio dos gestos, das pala deles, faz o me smo. Cultuam a Deus como a Mebapáme que
vras rituais e da prepàração mística anterior ào ofício de padre. é o sol. Isso é curioso de aproxim ar daquela observação de
É oi caraiba, o piaga, o pagé, o medicine-mam — é exatis sima- Am br ose tti (Supersticiones y Leyendas, Buenos Aires, 1917,
mente o feiticeiro das religiões chamadas “ naturais” . Inda pág. 145) que el elemento indio de la población dei valle Cal-
prova disso é a intriga do padre milagreiro, mais eficaz que os chaquí puede decirse que no tiene fé religiosa, en el sentidoi
seus êmulos, e ao qual o povo todo recorre. Não tem comu ni verda dero de la palabra. Es puntua l en la. observación de las
dade que não possua o seu frade, a sua freira especialista nessa fie sta s y ceri mo nia s reli gio sas , com o tam bié n lo- es cua ná o se
coisa tão fácil do povo interpretar como milagre, pela aplica trata de hacer ofrendas, de invocar a la Pacha Mama; de modo
ção do prin cípi o deter minista da magia. Porém não creio qu e que en el la religión cristiana no ha hecho más que aumentar
esta seja tendência específica nossa, pois que contra ela já
Dão Francisco Manuel punha em guarda o seu noivo, na Carta el
ya nú me rocuando
tenict de sus los
su peesp
rstano
ici ones, sin dim
les entra ro n inu
en irl
esae las muc. hasApro
reg ión que
de Guia' de Casados. Mas é bem especialmente nossa, po r ximo tais passos do meu assunto porque me parece quase esse
causa dos ritos brasis e africanos de feitiçaria mágica, perma o estado religioso atual do povo, disso que “ constitue propr ia
necidos com tanta vitalidade em nossos meios mais civilizados. mente o corpo da nacionalidade” pra me servir das próprias
Nos Fandangos, a cape lão de bordo do “ anau” Catari neta palavras de Tristão de Ataíde: uma superstição desbragada.
faz o mesmo papel cômico dos diabos e personagens ruins dos Schlich thorst( Rú) de Janeiro wie es ist, pág. 65), se referindo
Milagres, Farsas, e Di ab ler ies medievais. Ouvi num Bumba ao femeeiro amante da Marquesa de Santos, diz que era voz
meu Boi cantarem um bendito de esmolar, pedindo dinheiro geral que d ona Domitila tinha enf eitiçado o imperado r. E
aos assistentes pra dizer mis sa. Noutro Bum ba rural da zona que se uma.superstição destas podia parecer ridícula a europeu,
potiguar dos engenhos, o Mateus, macaqueando o padre, fez não o era aqui onde os processos sobrenaturais e simpatias
com aplauso e enorme riso de todos um sermão blasfemo que estavam universalmente espal hados. A enormid ade da nossa
levaria qualqu er fé tessenci al à revolta. Na Amazônia, pleno superstição, o uso e abuso quotidiano dos seus processos, a
mato, na d ansa dramática da “ Ciran da” , como eles chama violência incontestável da magia branca e negra de prove-
vam, vi macaquear confissão e comunhão, em que o padre fi niência ameríndia e africana, o uso das sibilas de todas as
gurado, entre muitas graças da mesma qualidade, falava vestimentas, provam a falta de catolicismo verdadeiro tanto na
fornecer por hóstia aos comungantes um pedaço de pirarucú. burguesia, como na m assa popula r. É cont rapor a is so as
Enfim, muito embora ache pueril tirar destes exemplos opiniões de Paul Foerster e Menendez y Pelayo sobre a Espa
extraídos dos nossos costumes sociais populares, qualquer afir nha eminentemente católica (Ver Ludwig Pfandl: Spanische
mação definitiva de falta de fé, mesmo católica, o que me K u lt u r und Si tte , Munique, 1924, pág. 101), ambos afirmando
parece é que o Catolicismo, se existe generalizado no país que o Catolicismo impediu na Espanha um desenvolvimento
como consolação individualista (não me atrevo a dizer como da superstição e da feitiçaria (mesmo de ordem cristã), tão
apoio de conciência. . . ) , não pare ce assu mir en tre n ós os valo grande como a de outras terras européias.
res sociais duma religião. Desde que o país se fez politicamente livre, jamais que o
Num trabalho recentemente publicado, de Carlos Estevão Catolicismo ligou os seres a ponto de constituir verdadeiramen
de Oliveira (Boletim do Museu, Nacional vol. IV, fase. 2), se te um movimento de opinião, igual pelo menos ao de Antônio
conta que os Apinagé do norte de Goiaz, apesar dé vivendo Conselheiro ou do padre Cícero. Ha ja vista o caso dos bispos.
há mais de cem anos sob a não sei se diga gestão religiosa Tristão de Ataíde, num artigo pro Jo rna l de 3 de maio passado,
22 MARIO D E AND RAD E ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 23

afirmava que no dizer dum dos nossos historiadores a questão tão de Ataíde fala na “ religio sidade vagamen te teosófica” que
D. Vital fora a causa principal da dissolução da monarquia irmana brasileiros e indianos (pág. 189), coincidência que
(cito de memória). Há um exagero tamanho ni sso que dese também preocupava a Jackson d e Figueiredo. E é ainda im
ja va sabe r se Tristã o de At aíde pe rfi lh a esse “ dize r dum dos portante notar que essa religiosidade nos vem não apenas da
nossos historiadores” . E se é certo que o caso tomou grande fonte luso-católica, como talvez até mais dos sangues negro
vulto, antes: fez grande bulha, não é menos certo que não pro e ameríndio. Pelo menos parecem prov ar isso certos ritos
vocou “ no corpo da nacionalidade” nenhuma r eação fo rte. festivos permanecidos espantosamente até agora, sem justifi
Aliá s pr a fal ar du m assu nto que toc a dire tamente a ps ico cativa quase que se pode dizer nem de raça, como p. ex. as
logia popular, pr efir o menos a História que as histórias . Es dansas dos Cabocolinhos nordestinos, impressionantemente con
tas, quando refletidoras de qualquer movimento coletivo, são servando as coreografias rituais de caça e guerra dos brasis,
mais expressivas. Principalm ente porque a s datas de História faz tanto inexistentes na região; os Maracatús que pelo Car
se fabricam por meio de representantes do povo que entre nós naval vão ainda dansar na frente das igrejas; os Congados
o que me nos teem sido é representativos da gent e. A não ser
na desorganização moral. O própri o Tristão d e Ataíde con da zona
tas caipira,
católic as. Equeosinda conservam
movim contacto vivo
entos numerosos das com as fes das
religiões,
cordará com iss o, pois reconhece (pá g. 249) que “ cada dia é caraimonhagas e dos santões rurais.
maior a cisão entre as classes governantes e as classe go
vernadas”. Mesmo sem aceitar a excessiva generalização de Freud e
seus discípulos, todos estes fenômenos expressivos ao mesmo
Assim o trá gico é que a nossa cat oli cid ad e n ã o. . . de tur pa tempo da religiosidade e da sensualidade brasileiras, fenômenos
em nada a maneira de ser do brasile iro. Não diminue em nada quando não diretamente provindos, sempre parentes dos tão
o egotismo, não coibe a descaracterização moral, não socializa,
eróticos ritos religiosos criados pela mentalidade primitiva:
não nacionaliza, não funde , não cria uma unanimidade. Tris
todos estes fenômenos da nossa religiosidade são eminentemen
tão de Ataíd e não se kesquec e de salientar aquela verificação te contraditórios não só da elevação filosófica católica como
feita por Alcântara Machado, de que os bandeirantes paulistas
do Catolicismo tout court. Nos ritos criados pelos sa ntões,
eram intimamente católicos. Mas a gente não perc ebe no que
essa catolicidade de boca lhes conformasse de alguma forma especialmente no caso medonho da Pedra Bonita; nos horrores
o caráter e os gestos. E os fracassos da s tentativas de form a denunciados pelos profetões, como o do caso mineiro de Cubas;
ção de partidos políticos católicos é outra prova inda mais nas defesas expiatórias como a dos guerreiros de Canudos; e
forte do que afirmo. E não se pode esquecer aquele reparo ainda nas superstições mais ou menos escatológicas como a do
fino de Lima Barreto nos Bru zun da nga s (pág. 147) de ser boiato zebú do padre Cícero ou da estuprada menina Julieta,
admirável que um país dito católico não produza seus'padres hoje adorada por santa e martir nas vizinhanças de Sorocaba,
e tenha nos seus conventos quase exclusivamente freires e é impossível não discernir um erotis mo exasperado. Erotismo
freiras da estr anja. Atualm ente é quase heróico o esforço dos tão típico e mais característico que o dos negros que vão nas
bispos pra desenvolver entre nós a vocação sacerdotal... festas religiosas de agôsto, em Pirapora, munidos de capotes
O indivídu o brasileiro é cató lico ?. .. Ainda isso me enormes dentro dos quais abotoam também as negras com que
parece duvidoso. E lembro agora o confusionismo em q ue sambam. Aqueles fenômenos s ão a religiosidade criadora do
paira Tristão de Ataíde que, pra afirmar essa catolicidade, pavor, da angústia, do sofrimento, em que, mesmo desprezado
tanto fala em Catolicismo, como mais genericamente em reli o elemento importantíssimo de derivativo sexual das cantorias
gião. Que como generalidade marcante se reconheça na psico e especialmente das coreografias solistas de ginástica exaustiva,
logia do brasileiro a tendência religiosa, estou perfeitamente subsiste nítido o desejo de auto-punição, que tenho por uma
de acordo. É ainda e^se um lado em que, como psicologi a, das observaçõ es mais finas da psicanálise. Nosso c lima, noss a
coincidimos com os russos e com os indianos. O próprio Tris- alimentação, nossa preguiça, nosso sistema de vida e trabalho
24 MARIO D E AN DRA DE ASPECTOS DA LITER ATURA BRASILEIRA 25

rural, nossas dificuldades de comunicação, predispõem a uma de fobias, ou nos momentos de grande atrapalhação. Tristão
atividade sexual evidentemente em contradição com o depau de Ataíde lembra liricamente a horas tantas as capelinhas que
peramento físico do nosso homem; corroido de doenças, des consagr am a Nossa Senhora a morraria do B ra sil ... É ver
provido de higiene, defraudado por uma alimentação engana dade. Melancòlicamente, é possível respond er a essa poesia
dora. Essa atividade, de que são prov a as escadinhas d e com outra poesia, e falar que as capelinhas estão nos morros
“ famílias” de cada par rural , provocava naturalm ente uma pra que fiquem bem visíveis, porque ninguém não iria buscá-las
nevrose e exigia um derivativo. A nossa religiosidade macum- se escondidas nas noruegas do vale. A nossa catolicidade me pa
beira, catimboseira, os santÕes e seus ritos, os profetões e seus rece exterior, inatingível, inativa e absurda, sem nenhuma ou
clamores, certas dansas dramáticas como os Cabocolinhos, os quase nenhuma relação mais com a nossa vida terrestre, sem
Maracatús, os Pastoris; as coreografias propriamente ditas que
nenhuma influência em nossa atitude individual e social dian
nem a dansa de São Gonçalo e os Congados afrocaipiras eram
te da vida. Catolicidad e duma gente de que Jackson de Fi
iss o: excitantes uns, derivativos outros. E principalm ente
gueiredo denunciava o conformismo, a tendência pros compro
manifestações ciliciais, o masoquismo disfarçado das autopu-
nições. E, por grosseiros, mai s acessíve is ao nosso povo tão missos faceis, o individualismo vagamente espiritualista; cato
prim ário que a elevadíssima religião católica. A religiosidade licidade dum povo que tem por sexo a paciência; catolicidade
se desenvolveu. A catolicida de se corroeu por dentro, fico u dum povo de que Tristão de Ataíde indigita o primarismo
apenas uma casquinha epidé rmica. E nf im : é fácil perceber (pág. 3 0), o instinti vismo (pág. 44 ), e uma mocidade “ que se
na grande religiosidade do povo brasileiro, mesmo quando ela deixa levar pela vida ” (pág. 43). O nosso católico é idêntico
se manifesta pelo credo e ritual católico, os processos, os carac aquele néscio de que fala Gregório de Matos:
teres, as leis psicológicas e sociais que formam as religiões
naturais. Porem, leis , proces sos, caracteres não tendo, como Que não elege o bom, nem mau. reprova
o Cristianismo, “ recebido de Deus a orientação e finalida de Po r tudo passa deslu mbra do e ince rto
que por si, eles seriam incapazes de atingir”, pra me expressar
conforme a concepção católica (Habert, em La Be lig io n des E o nosso catolicismo é um Catolicismo balão de oxigênio
Pe up le s no n civ ilis és do padre A. Bros, p. XI, ed. Lethielleux). e covarde, pra uso da bora da morte, como aquele que tanto
Deismo e sexualismo serão talvez as fontes matrizes da reli
temia Jean Barois. Some are atheists only in fair weather já
giosidade brasileira. Aliás Wetherell também, nas Stray
obser va povo in gl ês.. . Se so mos uma terra che ia de c atóli cos,
No te s f ro m Bah ia, do meio do século passado, verificando várias
será dif ícil afirma r que somos uma nação católica. Ind a não
vezes a exterioridade do catolicismo nosso (v. pág. 18 e pág.
24) concluia (pág. 99) que os baianos eram apenas deistas... teremos de-certo atingido nem mesmo êsse gráu primário de ci
vilização em que os clãs se organizam por meio da religião!...
Todos êstes fenômenos e provas indicam religiosidade
muita em nosso povo, mas também a superficialidade em que OsEs tu do s de Tristão de Ataíde são um drama enorme.
nele permanece a Fé católica. Seja por má or ientação dos Apnão
aix representam
ona nte s, irriporventura
tan tes, sectá
o rios,
mais cult íssim os, nob
característico dailíssimos,
persona se
padres; seja pelos nossos acidentes climáticos, fisiológicos, étni
cos; seja ainda pelo nosso hinduismo místico que nos seus êxta lidade do grande pensador católico, representam melhormente
ses deliciosos nos seqüestra das preocupações e necessidades o seu martírio. E se é certo que já agora êle é das mais fortes
socias da terra: o mais visível é que a catolicidade brasileira se figuras de críticos que o país produziu, desconfio que os futuros
conserva em nós que nem um dêsses abrigos que o urbanismo não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o
ergue no meio das ruas de cir culação vasta. Não faz parte da espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar
rua nem da vida. Só presta episodicamente pra quem sofre o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão.
A P O E S IA EM 1930

(1931)

sileiraO pelo
ano de 1930 fica certamente
aparecimento de quatroassinalado
livros: na poesia
Al gu ma bra
Poe sia ,
de Carlos Drummond de Andrade; Li be rti na gem , de Manuel
Bandeira; Pás sar o Ce go , de Augusto Frederico Schmidt e
Poe ma s, de Murilo Mendes . Todos são poetas fei tos, e embora
dois del-es só apareçam agora com seus primeiros volumes, desde
muito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram escapar
dos desas tres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram
e fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque
são poetas.
Essa me parece uma das lições literárias do an o. Quatro
livros de poetas na força do h omem. Acabara m as inconve
niências da aurora. A poesia brasileir a muito qu e tem sofrid o
destas inconveniências, principalmente a contemporânea, em
que a licença de não metrificar botou muita gente imaginando
que ninguém carece de ter ritmo mais e basta ajuntar frases
fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso-livre. Os moços
se aproveitaram dessa facilidade aparente, que de fato erá uma
dificuldade a mais, pois, desprovido o poema dos encantos
exteriores de metro e rima, ficava apenas. . . o talento. E
jádeespa nta,deum
livros bo cacoisa
moços, do dolo rosarostos
inutil, men te,mais
esseoumo ntu rincorados,
menos ho sap eca
excessiva promessa, resumindo: bambochata que não resiste à
primeira varredura do tempo.
Devia ser proibido por lei indivíduo menor de idade, quero
dizer, sem pelo meno s 25 anos, publicar livro de versos . A
poesia é um grande mal humano . Ela só t em direito de existir
como fatalidade que é, mas esta fatalidade apenas se prova a
28 MARIO D E AND RA DE ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 29

si mesma depois de passadas as inconveniências da aurora. cendo fisicamente um com o outro . Assim a rítmica dêle aca
Os moços teem muitos caminhos por onde tornar eficazes as bou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Raro uma
suas falsas atividades: conversém com o povo e o relatem, doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo,
descrevam festas de região bem detalhadamente, ou se inun em versos espetados, entradas bruscas, sentimento em lascas,
dem de artigos de louv or aos poetas adorados. Poesia não. gestos quebrados, nenhuma ondulação. A fam osa cadência
Escrevam se quiser em, mas não se envolumem. O resultado oratória da frase dasapareceu. Nesse entido, Manuel Ban
deira é o poeta mais civilizado do Brasil: não só pelo aban
dessa envolumação precipitada das inconveniências da aurora,
dono total do e nfeit e gosto so, com o por ser o ma is.. . tipo
refletindo bem, foi desastrosa no movimento contemporâneo
gráf ico de quantos, bons, possuímos . Quero d izer: se a
da nossa poesia. Uma desritmação boba, uma falta pavorosa gente contar na Poesia a maneira dela se realizar, desde o
de contribuição pessoal, e sobretudo a conversão contumaz a grito inicial à poesia cantada, à manuscrita que se decora, à
pó de traque, da temática que os mais idosos estavam traba recitada com acompanhamento, à declamada, à poesia, enfim
lhando com fadiga, hesitações e muitos erros. concebid a exclusivamente pra leitura d e olhos mu dos : Manuel
Falei na desrit mação do s versos do s m oço s... O que logo Bandeira é dentre os poetas vivos nossos o que precinde mais
salta aos olhos, nestes poetas de 1930, é a questão do ritmo do som. A poesia del e, na infini ta maioria atual, é poesia pra
livre. Verso liv re' é justamente aquisição de ritmos pes soais. leitura. Se observe a aspereza rítima dum dos poemas mais
suaves do livro, como os versos sã o “ intratav eis” , incapazes de
Está claro que se saimos da impersonalização das métricas
se encaixar uns nos outros pra criar a entrosagem dum qual
tradicionais, não é pra substituir um encanto socializador por
quer embalanço:
um vácuo individual. O verso livre é uma vitór ia do indivi
dualismo. .. Beneficiem os ao menos dessa vitória. E é nisso
Quando eu tinha seis anos
que sobressaem as contribuições de Manuel Bandeira e Augusto Ganhei um porquinho da Índia
Frederico Schmidt. Que dor de coração eu tinha
Po rq ue o bichi nho só que ria estar deb aix o do fogã o.
Li be rti na ge m é um livro de cristalização. Não da poesia ( )
de Manuel Bandeira, pois que este livro confirma a grandeza O meu porquinho da Índia foi a minha primeira namorada
dum dos nos sos maiores poet as, mas da psicologia dele. É o
livro mais indivíduo Manuel Bandeira de quantos o poeta já A inu tilid ade do som org ani zad o em mo vim ent o é ev ide nte .
public ou. Aliás também nunca êle atingi u com tanta nitidez E citei o verso longo final pra mostrar toda a áspera rítmica
os seus ideiais estéticos, como na confissão (Poética, pág. 23) do poeta. Aspereza tanto mais característica que, s e estudar
de agora: mos esse verso pelas suas pausas cadenciais, a gente se acha
diante dos versos mais suaves da língua: a redondilha e o
Esto u far to de liris mo come dido
decassílabo:
Do liris mo bem co m po rta do .. .
( ) O meu porquinho da Índia (7 sílabas)
Nã o que ro mais sabe r do lirism o que não ê libe rtaç ão. Fo i a minha prim eira namorada (10 sílabas)

Ente nda mo-n os: libertação pessoal. Numa poesia emocionante pela simplicidade de expressão,
Essa cristalização de Manuel Bandeira se nota muito acolhendo mil símbolos fiéis, O Cacto, o último verso diz bem
particularmente pela rítmica e escolha dos detalhes ocasiona- ritmo atual de Manuel Bandeira: E ra bel o, ásp ero , int ra tav el.
dores do e stado lírico. Manuel Bandeira lembra ess es amantes Al iá s se dá mesmo uma lut a per ma nen te entre essa essên
bem casados que, depois de tanta convivência, acabam se pare cia “ intratavel” do indivídu o Manuel Bandeira e o lírico que
30 MARIO D E AND RA DE ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 31

tem nele. Vem disso o dualismo curioso que a gente percebe sia, é duma unanimidade brasileira muito grande. Nos poe tas
nas obras dele, passando de jogos com valor absolutamente românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é freqüente.
pessoal, duma detalhação por vezes pueril (no sentido etimoló- Com o neo-romantismo dos nossos parnasianos, o tema das bar
gico da palavra), difícil de compreender ou de sentir com in cas, das velas que partem e “ não voltam mais” foi substituindo
tensidade pra quem não privou com o homem, a concepções a ave que voltava o u queria voltar ao ninho anti go. N o .. .
profun das, dum a beleza extre mada e interess e geral. Interesse néo-néo-romantismo dos contemporâenos, o desprendimento vo
em que não entra mais o conhecimento pessoal do poeta, ou luptuosamente machucador, a libertação da vida presente, que
coincid ência psicológica com ê le. As melhores obras do poeta, se resume na noção de partir, agarrou freqüentando com insis
An do rin ha , O A njo da Guar da, A V irg em Mari a, Ev oc aç ão tência significat iva a poesia nova. Isso se nota não tanto na s
do Recife, Teresa, Noturno da Rua da Lapa, pra citar apenas poesias de viagem, comuníssimas em q ualquer dos noss os versoli-
oLi be rti na gem , são as poesias em que por mais pessoais que vristas, co mo pela declinação clara do desejo de partir. Em
sejam assuntos e detalhes, mais o poeta se despersonaliza, mais Au gu sto Fre de ric o Sc hm id t êsse desejo de pa rt ir (ou an te s: o
é tôda
pria a aç
Ev oc gente
ão do e menos
R ec if eé caracteristicamente
que atinge o recessoritmado.
da família Acha
p ró de
Ora,abandonar
em Manuel aquilo em queo sefenômeno
Bandeira, está) é uma obsessão constante.
se partieulariza mais
mada nominalmente (Totônio Rodrigues, dona Aninha Vie- pelo emprêgo da própria frase “ vou-me embora”. Se pelo me
gas), é bem a maneira por que tôda a gente ama o lugarinho nos em mais dois poetas contemporâneos, de que me lembro no
natal. Em duas poesias, que agora ci to : Po em a de Fin ad os momento, a frase foi empregada com sistematização consciente
e You-me embora pra Pasárgada, o poeta se generaliza tanto, e não como valor episó dico, o “ vou-me em bora” é ainda uma obs-
que volta aos ritmos menos individualistas da metrificação, sessão da quadra popular nacional. Me retrucarão que será mais
como já fizera nas cantigas dos Sinos e doBe rim ba u, noR itm o certo dizer da quadra portuguesa. Posso aceitar q ue, como
Di sso lu to. (1 ) lugar-comum poético, a frase nos tenha vindo de Portugal.
Muito curioso de observar é o Vc<u-me embora pra Pasár Ap ar ece , aliás, em to do o fol clo re de origem ibér ica. Por ém
gad a, com que Manuel Bandeira deu afinal a obra-prima poéti o “ vou-me embora” freqüenta muito mais a quadra bras ileir a
ca dum estado-de-espírito bastante comum nos poetas brasilei que a portuguesa, onde, como pretendo demonstrar num estudo
ros de hoje. Já o início dêss e título -refrã o que percorre a poe- futuro, o tema da partida, às mais das vezes, é traduzido
por “ adeus” — o que parece indicar que a noç ão de partir é
(1) Ésse poder socializante do ritmo medid o tem uma prova crítica bem muito mais saudosista em Portugal, onde mais frequentemente
evidente dêle e de Manuel Bandeira, quando êste na Evoc açSo do Re cif e, se converte num sentimento de despedida, ao passo que entre
ao constatar, caçoista, a nossa escravização ao português gramaticado em nós será mais egoística e desamorosa ( o que concorda com o
Lisboa, principia dançando de repente e organiza, no meio dos versos livres, já tão rec on hec id o in dividu alism o no sso) , con ver tid a no sen ti
um verdadeiro refrão coreográfico e coral:
mento de abandonar aquilo em que se está. Se servindo pois
dessa constância nacional, Manuel Bandeira fez ela coincidir
.. .Porque êle é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós com um estado-de-espírito bem dos nossos poetas contempo
râneos, incontestàvelmente menos filosofantes que os das duas
O que fazemos
É macaq uear
gerações espirituais anteriores (Bilac, Raimundo Corrêia,
A sint axe lusíada Am ad eu Am ara l, Ros alina Coelh o Lisboa , Ro na ld de Car valho,
A vida com uma po rçã o de coisa s que eu não enten dia b em .. . (etc.). Hermes Fontes), porem mais em contacto com a vida quoti
diana e mais desejosos de resolvê-la numa prática de felici
Sôbr.e a fôrçá socializadora da métrica, ainda se notará a preferência dade. Incapazes de achar a solução, surgiu ne les essa vontade
pelos ritmos ímpares de marcha, em Augusto Frederico Schmidt, que é um amarga de dar de ombros, de não se amolar, de pa rt ir pra uma
católico de feição francamente proselitista. farra de libertações morais e físicas de toda espécie . Vonta de
32 MARIO D E AND RA DE ASPECTOS DA LITER ATURA BRASILEIRA 33

transitória, episódica, não tem dúvida, mas importante, por do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma
que esse não me-amolismo meio gozado deu alguns momentos tendência pra socializar-se, como em Augusto Frederico Sch-
significativos da poesia ou da evolução espiritual de certos midt, ou pra se generalizar mais, como em Manuel Bandeira.
poetas contemporâneos brasileiros. Em última análi se, o tema Salvo, talvez, o caso da Cantiga do Viúvo, o emprêgo da me
do “ vou-me embora pra Pasá rgada ” , é o mesmo que está can trificação provem, nele, de uma vontade íntima de se aniquilar,
tado nas Da nça s, de Mario de Andrade, e em especial é o que de se esconder, de reagir por meio de movimentos ostensiva
dita o diapassão básico dos Po ema s de B il ú , de Augusto Meyer.
mente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre
Se percebe o eco dele em alguns poemas de Sergio Milliet e de
Carlos Drumniond de Andrade, pra enfim se transformar de ain da o “ vou -me e mbor a pra Pasárg ada” . . .) cont ra a s ua
estado-de-espírito em constância psicológica, já independente inenarrável incapacid ade pra viver. É o que êle mesmo resu
da conciência, em toda a obra de Mur ilo Mendes . Fiz esta me aliás naquele dar de ombros com que termina a Toada
digressão pra mostrar quanto Manuel Bandeira perdeu de si do Amor:
mesmo, pra dar a um tema useiro dos nossos poetas de agora
a sua cristalização mais perfeita. Será, talvez , a ironia da Mari quita , dá cá o pi to ,
sorte contra esse grande lírico tão intratavelmente individua No teu. pito está o infi nito (pág. 24).
lista, isso dele ser tanto maior poeta quanto menos Manuel
Bandeira... A análise de Al gu m a Po esi a dá bem a medida psicológica
Carlos Drummónd de Andrade, dum individualismo tam do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drum-
bém exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo mond de Andrade pra melhor achar jpelo livro o tímido que
excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dêle , êle é. Pr a êle se acom odar, ca recia que não tivesse nem a
inaferrav el, disfarçadora. Daí uma riqueza de ritmos muito sensibilidade ne m a inteligência que poss ue. Então dava um
grande, mas, psicologicamente, quase des norteante, porém. É desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem
o mais rico em ritmos de stes quatro po etas. As suas subtilezas saber o que são, cuja mediocridade absoluta acaba fazendo-os
atingem às vêzes a arte filigranada de Guilherme de Almeida. felizes! Mas Car los Drum mónd de Andr ade, timidíssimo, é
Ass im po r exe mp lo na que le caso cur ioso de Fu ga em que, alem ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilís simo. Coisas
da primeira quadra da pág. 94 parecer toda em versos de nove que se contrariam com ferocidad e. E dêsse combate tôda a
sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, se m desfiar e
seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:
concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda
construída sob a gestão da inteligência. Poesia feita de explo
E todo mundo anda — como eu — de luto. sões sucessivas. Den tro de cada poem a as estrofes, às vezes os
versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inte
Ve rso hab ilíssimo, que ape sar das suas dez sílab as e po s
sível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um ligência, as quedas de timidez se enterseccionam aos pinchos.
octo ssíla bo, pois que o parê ntese reflexivo “ como eu” fu nciona Reparem o final do Po em a das Se te F a c es :
também como um, por assim dizer , parêntese rítmico —- pre
servando a unidade métrica da quadra. Me u Deus , por qu e me aband onast e
Se sabias que eu não era Deus
Tem mesmo em Carlos Drummónd de Andrade um com
Se sabias que eu era fraco.
promisso claro entre o verso-livre e a metrificaç ão. Os seus
versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos Mund o, mundo, vasto mundo,
medidos, contendo noções geralmente completas e acentuações Se eu me chamasse Raimundo
tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização Seria uma rima, não seria uma solução.
34 MARIO DE AND RA DE ASPECTOS DA LITER ATUR A BRASILEIRA 35

Mun do, mundo, vasto mundo Bandeira também caiu, às vezes, nessa precariedade) são a úni
Mai s vasto é meu cora ção. ca restrição de valor permanente que se possa fazer a Al gu m a
Po esia . Culpa integral da inteligê ncia. De inteligê ncia inca
Eu não te devia dizer
Mas essa lua paz e fatigada (“ vou- me embo ra pra Pa sár ga da !...” ). Não
Mas êss e conh aqu e e mais humour. Não é ainda a sátira. Não creio que esses poe
P õe a gen te com ovi do com o o diabo. mas possam adiantar qualquer coisa ao poeta. E por eles será
aplaudido nas rodas dos semi-literarizados das academias e
Toda a timidez do poeta ressumbra do primeiro terceto. cafés. O que positivamente é uma desgraça.
Ve m dep ois a exp losã o da sen sib ilid ade na qui nti lha segu inte
com uma fadiga provocando assonâncias, associações de ima Ass im inc ap az e fr ag il dia nte da vi da (V . o adm irá vel
gens, e o verso sublime (m as intele ctualme nte tolo) “ seria uma No me io do Ca mi nh o) , era natural que a poesia de Carlos
rima, não s eria uma solução” . E o d iabo da inteligênc ia explode Drummond de Andrade se alargasse em maior detalhação in
na quadra final: o poeta pretende disfarçar o estado de sensi dividual. De fato: a caracterização psicológica de Al gu m a P oe
bilidade em que está, faz uma gracinha bancando a corajosa, sia não assume apenas verdades totais do indivíduo, como a
bem de tímido mesmo, e observa com verdade (pura inteligên deLi be rti na ge m senão que desce a particularizações interessan
cia, po is), as reaçõe s do ser ante o mun do exterior. Essa poe tíssimas. Dois sequestro s tem no livro, pelo menos do is, que
sia de arranco, que não se deverá confundir com a superposi me parecem muito cu rios os: o sexual e o que chamarei “ da vi
ção de dados objetivos que de Whitman nos veio, é sistemática da besta” . Ao seqüestro da vida bes ta, Carlos Drum mond de
em todo o livro. An dr ad e con seg uiu sublimar melhor. Ao sexual n ão ; não o
tranformou liricamente: preferiu romper adestro contra a preo
Seria preferível, talvez, que Carlos Drummond de An
cupaç ão e lutas interiores, mentindo e se escondendo. O suave
drade não fôsse tão inteligente. .. A reação intele ctual con
tra a timidez já está mais que observado: provoca amargor, cantor do R ei de Siãa, o anjo de Pu ri fic aç ão , o humorista de
provoca humour, provoca o fazer graça sem franqueza, nem tantas ironias, o paciente de sua própria casa, do recesso fa
alegri a, ne m saúde. Em Carlos Drummond de Andrade p ro miliar, da vida besta, virou grosseiro, um ostensivo debochado.
vocou tudo isso. A amargura não fez mal e foi um valor a mais. O livro está rico de notações sensuais, ora sutis como a da pele
Nem o humour, pois que poesias como Fu ga , Toa da de A m or , picada por mosquitos, ou do dente de ouro' da bailarina, ora
Quadrilha, Família, são da melhor poesia de humour. E a to maledu cados como o das tetas. Mas onde o seqüestro explo
do instante se topa com notações humorísticas excelentes, como de com abundância provante é no livro estar cheio de coxas e
o final do São João D ’El Rei: especialmente de pernas (págs. 10, 36, 62, 141, 144, 136, 117,
113, 110).
E todo me envol ve Ai nd a não enc ont rei referê nci a, entr e as civ ilizaç ões an ti
Uma sensação fina e grossa (pág. 42) ; gas e primárias, a êsse desvio do olhar masculino, universal
na Civilização Cristã, com que os homens julgam das quali
ou quase
tações todas
sobre o as estrofes
Diabo que de
me Fa nta sia , principalmente
lembraram Schelley. Masas onde
no dades
ção do boas du m
uso das a... me
saias peça, olhando-
parece lhe as perna
insuficiente. s. haver
Deve A explica
ness e
a inteligência prejudicou o poeta e o deformou enormemente, costume um acondicionamento do ser sexual com as proibições
foi em fazer ele aderir aos poemas curtos feitos prà gente dar dos Mandamentos, uma espécie de bluff: o cristão blefa a lei,
risada, o poema-cocteil, o “ poema -piada ” , na expressão feliz com uma inoc ência de licio sa. Carlo s Drummond de Andrade
de Sergio Milliet. O poema-piada é um dos maiores defeitos também foi vítima desse desvio do olhar cristão, mas, porém,
a que levaram a poesia brasileira contemporânea. Antes de com uma deformaçã o subconciente curiosa. Não creio que êle
mais nada, isso é facílimo: há centenas de criadores de anedo seja na vida êsse grosseiro, que tantas pernas evocadas indi
tas por aí tudo. Ach o mesmo que os poemas-piadas (Man uel cam. O que êle quis foi violentar a delicadeza inata, maltratar
36 MARIO D E AND RA DE 37
ASPECTOS DA LITER ATURA BRASILEIRA

tudo o que tinha de mais susceptível na sensibilidade dele, dar passa das, ao passo que na contemporânea, desenhou a coisa
largas às tendências sexuais, inebriar-se nelas, clangorar per fácil, liquidada pronto, como desejava pra si. Um documento
nas e mais pernas, pra se vencer interiormente. Ser grosseiro , precioso de psicologia.
ser realista, já que não achava (por causa da própria timidez),
saida delicada ou humorística pro caso . B isso culmina, pág. Au gu st o Fr ed er ic o Sch midt, nos da nd o em 1930 o Pá ssa ro
110 ( “ pernas” 3 vezes!), na grosseri a bem c omovente c om que Cego, levou dois anos pra publicar o mesmo número de obras
o que estava bancando o violento sensual, não conseguiu ven que Manuel Bandeira e m 13. Isso determina o poeta. É terra
de pau-dalho: numeroso, abastoso e voluptuariamente disper-
cer as delicadezas íntimas, e em vez de falar que a mulher não
diçado. E assim a rítmica dele. O poeta, qu e vem de judeus
passa dum sexo (que é o que êle queria gritar malvadamente),
e soube tirar dessa srcem temas e caracterizações de poesia,
exclama: “ Todas são pernas!” .
é mais propriamen te um asiático. Ag ind o dentro das quen-
O seqüestro da vida besta é mais artisticamente valioso. turas mais sensuais, tudo nêle reveste as delícias dessa magni
Ele representa a luta entre o poeta, que é um ser de ação ficên cia orientalizante. Na frase dek, coisas, às vêzes, pos
pouca,
paz, enfimmuitoo “empregado
boce jo de público,
felicidadcom
e” , família,
como elecaipirismo
mesmo o edes sivelmente irritantes, de
plicações pernósticas quesintaxe,
nem o aabuso das repetições,
religiosidade as com
sem discreção,
creveu, e as exigências da vida social contemporânea que já o feitio não apenas oratório, mas declamatório, o senso exíguo
vai atingindo o Brasil das capitais, o ser socializado, de ação de eontemporaneidade, tudo, enfim, que parece feito pra des
muita, eficaz prà sociedade, mais público que íntimo, com valorizar, antes o valoriza. Assume um dom de necessidade
maior raio de ação que o cumprimento do dever na família que infund e respeit o. Na verdade os 32 caco etes qu e fazem
e no empreguinho. O poeta adqu iriu uma conciência penos a o material da poesia dêle, muito embora ostensivos e dispostos
da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana sem a mínima delicadeza de coração (2 ), ajuntam um grau
da “ vida besta” . Mas a tragédia era me nos in dividuali sta.. tamanho de caráter à obra do poeta, que deixam de ser cacoetes
O poeta poude não atribuir a ela a importância pessoal que pra se tornarem caracteres dela.
dava pro caso sexual, e conseguiu poetificar melhor, fazer disso Sob o ponto-de-vista técnico, Augusto Frederico Schmidt
mais lirismo e mais poesia. Criou poemas d e pura sensibili soube com habilidade rara e desde o primeiro livro, escolher
dade, saudosa (Infância), complacente (Sweet Home), irônica na lição histórica da poesia brasileira o quanto havia de cons-
( Gidadezinha Qualquer), ou humourísticos ( Fa mí lia , e Se sta ) tâncias capazes de lhe darem fisionomia própria e tradicional.
A in da o Chopin e a eterna Cantiga do Viúvo se enquadram Isso vale bem a gente observar porque incide no orientalismo
bem no ciclo. Outro poema, est e curiosís simo, também do do poeta. Outros também foram buscar através do Brasil
ciclo, é o Sinal de Apito, duma pureza impressionante, em que constâncias que os tradicionalizassem. Mas o que o s outros
a “ vida besta” aparece convertida e m valor social mas vingati iam buscar na lição do povo popular, Augusto Frederico
vamente reduzida, enfim a um simples maquinismo material Schmidt ia buscar na poesia burguesa, o que o demonstra bem
de gesto s e sinais. E finalmen te, como climax do seqüestro,
vem a Ba lad a do A m or atr av és das Ida des . Ago ra o caso é
admiràvelm ente expressivo. O poeta se vinga da vida bes ta, (2) proselitistas
Os poetas Prova da
têemtendência
para lhes proselitista de excesso
desculpar êsse Augustode Frede rico Schmidt.
indiscreção,
botando miríficos suicídios e martírios estrondosos em casos de a franqueza dadivosa que os anima, a lealdade com que jogam tôda a rique
amor de diferentes épocas pas sadas. Menos na contemp orâ za numa cartada só. Tod os êles, no geral, demonstram, com clareza i mediata,
os “ processos” que fazem a técni ca e a ideologia dêl es. Se obse rve, por
nea, em que faz o amor dar em casamento, em burguesi,ee, em
exemplo, Marinetti, Verhaeren, Bilac, Maiakowsky, Sandburg, poetas sociais,
. . . vida be sta : é êle. O poeta não faz mais do que se retratar proselitistas incontestáveis, cujas “ maneiras” são fàcilmente pefceptíveis , em
“ atravé s das idades” . As dificuldades co m que teve que lutar oposição a um Rimbaud, a um Lautreamont, a um Manuel Bandeira, a
(não sou indiscreto, pois que como as dele, pequenas, todos mesmo uma Francisca Júlia, não-meamolistas de marca maior, inaferráveis,
teem), êle exagerou liricamente e transportou pra épocas já impossíveis de repet ir. Entre Castro Alves e Alvares de Azevedo, mesma
coisa.
38 MAEIO D E AN DE ADE ASPECTOS DA LITER ATUR A BRASILEIRA 39

pachá, bem mandarim . Aliás, é um católico de aç ão e neces metr ificado . Está claro que isso era necessário pra um poeta
sariamente havia de demonstrar e xasperação monárquica. Mas de alma messiânica (sem intenção pejorativa nenhuma), cató
eu, que a um tempo lhe censurei certos cacoetes, já não os lico po r natureza e fé. Se a muitos parecerá que o poeta
censuro mais . Fazem parte essencia l dessa torrente majestosa, foi buscar nos ritmos ímpares do Romantismo (Tristão de
e apesar de majestosa sempre su ave, da poesia d ele. Largas A ta íd e) , na escolh a de dic ções românt ica s, de sinta xes ar reve
monotonias, coxas odalisquíssimas, danças rituais pesadas, zadas, de palavras velhas, um romantismo novo, a mim me
doces com muito açúcar, sêdas que são paredes de grossas... parece que todas essas normas usadas por êle, proveem de
E sempre Deus. Um Deus desamavel, mas bem jesuítico, tendências mais lógicas. Na realidade, ê le não foi buscar nada
bonito, volumoso e duma violência sincera. Por tudo isso em ninguém, não, nem se fez sob o signo de Casimiro de Abreu
Au gu sto Fr ed eri co Sch mi dt é den tre os nossos poet as contem (3), antes: as suas tendências o levaram a utilizações velhuscas
porâneos, o que melhor sabe cadenciar. Se obser ve este final (muitas são até parnasianas: o entroncamento, a evocação da
da admirável P r o fe ci a : Sublime Porta, página 169), por aquela parte fatal e unani-
mizadora das religiões, em que eles se agarram ao passado com
Se não obedeceres à escolha do Senhor, será melhor o inamovível da Lei e do Rito. Não me emparelho com isto aos
Que os animais ferozes dividam teu. corpo em pedaços. que consideram paralisadoras as religiões. Mas é inegável que
Que o mar te atire de encontro aos rudes rochedos Deus não requer n em progresso nem evolução. O inamovível
E desa bem sôb re tua cab eça tôdas as desditas. da Lei e do Rito não é mais que a projeção mimética de Deus
For tif ica bem o teu esp írit o atorm entado ,
Tira da tua fraqueza o teu grande heroismo. dentro da vida terrest re, um contraste danado. Essas renova
Aba ndo na tôda a poe sia do mundo que é inúti l ções, esses fantasmas antigos, que adornam a poesia de Augus
Po is a bele za distra i os homens e os dimin ue. to Frederico Schmidt, teem uma verdadeira função litúrgica
De ixa o teu corp o fec ha do para todas as volúpi as. dentro dela.
Que a noite abandone teu corpo cansado,
Po rq ue teu pap el é maior que tu mesm o — e o preci sas cum pri r! A in da asp ecto essen cial do poe ta é o emp rêg o das mo no
(pág. 34) tonias da obcessão ( Ab ra m as P or tas , Me nin a M or ta ), repetindo
idéias, palavras, fr ases com uma pachorra asiática. Poemas
Cadenciado assim, sutil na tendência pro verso longamente há em que as estrofes tiram valor emotivo de serem variantes
voluptuoso em que a própria exhaustão do respiro dificulta a mínimas de uma idéi a únic a. Augusto Frederico Schmidt
lepidez da idéia (sempre lenta no poeta) ; tão sutil a ponto de valoriza esse processo do Tema com variações, às vêzes, muito
ser lento até em muitos versos curtos, pela disposição sintática: bem. Inda ma is: a condescendência na repetição de certos
assuntos como o romântico, da morte, o religioso, da profecia,
Avi stou a cida de distant e, o modernista, da brasilidade ( Canto do Brasileiro, Novo Canto
Ilumina da, ardia, com o em ch am as ... (pág. 15), do Brasileiro) — coisas que noutro podiam demonstrar ins a-

pela intercalação de quebras na célula rítmica:


(3) Não têm dúvida que o Romantismo se tornou uma revolta conciente
em Augusto Frederico Schmidt, dêsde o momento em que, fatigado da te
Um dia passa, outro dia mática em voga do Modernismo (foi êle, creio, quem primeiro ecoou no
E os dias todos pass ando vück Brasil a noção do An timod emo , de Maritain , e foi êle pela sua asiática
A minha moci dade há-de passar em brev e falta de agilidade, quem criou com o Canto do Brasileiro, uma reprodu
Só terei cinzas no coração (pág. 123), çã o .. . séria do “Vou-me embora prà Pas árgada” ), êle quis, e quis bem,
abrir ca minho novo . Ser modern íssimo, pois. .. Mas êsse romanti smo, con
ciente, e aliás episódico, deu ao poeta o que, me parece, menos o lustrará
e ainda pelo uso do entroncamento, e das palavras arcaicas nos tempos: além do vocabulário sediço que êle não conseguiu renovar
que interceptam a correnteza da naturalidade, temos que re nem impôr, certas poesias de tôda ou muita imitação (A Deus, Lira), pas-
conhecer : Augu sto Frederico Schm idt vai tendendo pro versp tichos visíveis, cujo valor me escaDa inteiramente.
ASPECTOS DA LITERAT URA BRASILEIRA 41
40 MA RI O DE AN DR AD E

tisfação pela realiz ação anterior — em Augusto Frederico No meio das grandes correntes que estão movendo o século,
Schmidt são -bem valores equatoriais, são mesmo condescendên a poesia brasileira se conserva como espectadora. Só mesmo
o nacionalismo que nos toca essencialmente pra conseguirmos
cia, complacência, conformismo com as suas próprias desco
bertas. O favor que concede à tristura, sem um grito mais viver em paz com a nossa terra, conseguiu tirar um bocado
certas poetas da sua janelinha de ouro e prata. Foi o único
lancinante, sem um sarcasmo, sem uma irregularidade psico
instante e m que alguns desce ram prà rua. Um mérito excep
lógica mais rubra (estamos nos antípodas de Manuel Bandei
cional de Augusto Frederico Schmidt foi esse de tomar posição
ra ), prova no poeta um á ureo e sonor oso confo rmismo. As
na rua. É um cat ólic o; e cantando os seus ondulantes ver sos,
suas próprias insatisfações e remorsos religiosos, coados atra
criou um convite à procissão, qu e a gente poderá acei tar. Do
vés dessa maneira geral de ser, tomam irrefragavelmente um
lado oposto, o poeta político inda não apareceu.
ar de Art e Pura, que os imobiliza bem . No fim de um lamento
que podia vin car, a gente es tá mais é gozando. E é pois Porque, vamos e venhamos, a Poesia não pode permanecer
curioso de constatar que embora a poesia dele clame quedas de neste compromisso de facilidades sentimentaisinhas e didáticas
em que quase exclusiv amente se conf ina entre nós. É preciso
consciência, temores
fação do presente: na do Infinito,
verdade fantasmas
é uma reachados,
poesia de arte, cominsatis
muito acabar de vez com essa bobagem de distinguir Poesia e Prosa
conformismo e sem a mínima inquietação. por meio do aspect o tipog ráfico — bobagem permanecida mes
mo entre os versoliv ristas. O que as distingue é mesmo o
E se a todo instante na obra deste artista, se topa com fu nd o: A Prosa t ransporta tudo pr a um plano único, intelec
imperfeições e desleixos de fatura numerosos, isso não invalida tual, por isso mesmo que desenvolvendo noções, é exclusiva
em absoluto o caráter de art e dela. Essas imperfeições fazem
mente conciente . A Poesia, pelo contrário, transfunde as no
parte mesmo da qualidade estética de Augusto Frederico
ções mais concientes pra um plano vago, mais geral, mais
Schmidt, que é de um barroco decid ido. Como nos templos
complexamente humano. Nesse ponto é a principal contri
carregados de enfeites, de Java, da índia, do Barroco, do
buição do Surréalisme, que conseguiu como jamais, especificar
próprio Gótico, é da natureza da obra dele a avaliação do
a essência da Poesia. Ou que a Poesia se traia inteira mente e
conjunto. Pouco importa num portal góti co, num al to-r elevo
vire cantadora pragmática dos interesses sociais, ou vire, no
jav anê s, num a cap ela -mo r ba rro ca, a im per fei ção , o ma l aca máximo orgulho, inexoravelmente senhoril e livre da inteligên
bado duma estátua ou duma voluta. Não é da natureza d esses
cia. O meio-ter mo está se tornand o cada vez mais inaceit ável.
estilos aquela perfeição itinerante, completa por si a cada Noventa por cento da pseudo-poesia humana é falsificaçã o. É
pormenor. O fulgor generos o do conjunto (desprezada m es
preciso atingir o lirismo absoluto, em que todas as leis técnicas
mo a unidade de concepção desse conjunto) é que vale exclusi
e intelectuais só apareçam pelas próprias razões da libertação,
vamente e ignora essas imperfeições. Tanto fulgor e tanta ge e nunca co mo normas preestabe lecidas. Ou então trair desa
nerosidade que, no geral, as obras dessa estética ficam sempre vergonhadamente : pregar. Ou ser Juiz duma vez, ou ser
inacabadas, mesmo porque o acrescentamento, nelas, é sempre
“ louco ” duma vez. Verseja r cantando a Terra, a Mãi Preta,
possível. Na literatura há também figu ras que por mais
descrever o Carnaval, gemer de amor batido ou vitorioso, em
mortas já,Goethe,
badas. mais doporpassado, dãopra
exemplo, sempre
subir a dum
impressão de inaca
pulo às supremas Poesia, tudo isso é dum carrancismo didático medonho. Não
é Poesia, é festinha e scolar . E é Prosa da r uim, porque defi
grandezas. A o passo que em naturezas sem nenhuma genero ciente, incompleta como aná lise, deformada como essê ncia. E
sidade, um Anatole France, um Machado de Assis, um Piran- a Poesia cada vez tem de ser mais lírica, no polo oposto à
dello, cada obra é total por si mesma, e mesmo quando ainda associação de idéias. Mas são admissíveis ainda e sempre a
vivos, esses autores não implicam espera, são acabados (é bem metrificação, a rima Jo ão Pess oa, o soneto, o verso-de-ouro e a
o caso de Pirandello) : outros há que, por generosos, jamais, estupidez, desque bem raciocinados e falsificadores, porem can
nem com a morte, dão a impressão de ter findado a obra, tando reivindicações, martírios, grandezas do homem social.
Dostoiewski, Proust...
42 MARIO D E AND RAD E ASPECTOS DA LITERATU RA BRASILEIRA 43

Nós chamaremos isso magoadamente Poesia, pra enganar o B, como está se vendo, mais um que foi-se embora pra
Burro humano, res peitabilíssimo e desinfeliz. B que ninguém Pasá rga da. . . E este definitivamente, e m toda a sua maneira
perceba a nossa mágoa. Ninguém perceba dentro de ninguém mais natural de poetar.
os estragos que faça o sacrifício. Seria difícil neste resumo, já tão enorme, dar uma idéia
E agora ressalto o valor dos Poe ma s, de Murilo Mendes. pormenorizada da contribuição que Murilo Mendes traz para
a nossa poesia, vou para r. O que me entusiasma sobretudo
Historicamente é o mais importante dos livros do an o. Murilo
nele, alem dessa essencialização poética a que escapa só o satí
Mendes não é um surréaliste no sentido de escola, porem me
rico da primeira parte do livro (Jogador de Diabolô), é a
parece difícil da gente imaginar um aproveitamento mais se integração da vulgaridade da vida na maior exasperação so
dutor e convincente da lição s obrerreali sta. Negação da inte nhadora ou alucinada.
ligência superintendente, negação da inteligência seccionada
em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas,
Das cinco reg iõe s ond e navios angulos os
intercâmbio de todos os planos, que não exemplifico porque são Sangram nos portos da loucura
todo o livro. O abstrato e o concreto s e mistur am constante Vieram meninas morenas,
Pan cadõ es, com seio s empina dos grit ando Ma mãe eu quer o um
mente, formando imagens objetivas:
noivo! (pág. 45)

Arc anj os viol ento s surg em do fundo dos minuto s (pág. 51) Os anjos maus...
São fortes e grandes, não é sopa não,
Têem dentes de pérolas, lábios de coral
Os cemitérios do ar esquentam Os aviadores partem prà combatê-los e morrem.
Com o fogo saido do sonho da vizinha (pág. 45.) As viúvas dos aviado res não rec ebe m mon tep io (pág. 34).
O manequim vermelho do espaço
Os homens largam a ação na paisagem elementar (pág. 81) ( )

Esto u aqui, nú, para lelo à tua vonta de (pág. 52), De tanto as costu reira s do atel iê de dona Maro tas
Se esfregarem nêle de-tarde
Já que r sair das camadas primitiv as
etc. numa complexidade de valores, de belezas, de defeitos, de Daq ui a mil anos será uma grande dançarina
irregularidades, tanto mais curiosos e eficazes que aparecem Dança rá sôb re o meu túmulo diante do cartaz dos astros
dotados duma igualdade insolúvel: as belezas valem tanto como Quando eu mesmo dançar minha vida realizada
No terra ço dos astro s (pág. 62).
os defeitos, as irregularidades tanto como os valores, numa
inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com
do ser humano. que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação
e os confund e. Essa naturalidade, essa coragem ignorante de
Murilo Mendes diz que é si, de
E nofato,
Brasil, só seria
Murilo mesmo
Mendes, admissível
embora mineironodegavroche
nascença,carioca.
é dono
A luta entr e um hom em acaba do de todas as carioquices. E aqui lembro a contribuição nacio
E um outro hom em que está andando no ar (pág. 48) nal admirável de le. Impenetrável, visceral, inconfun dível, há
brasileirismo tão constante no livro dele, como em nenhum
pra completar a verdade noutro poema, avisando que outro poeta do Brasil. Realmente e ste é o único livro bra si
leiro da poesia contemporânea que sinto impossível a um
... n ã o é culpad o nem inocente. estrangeiro inventar. Todos os out ros, com maior ou menor
44 MARIO DE AN DRA DE
ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 45

erudição, maior ou menor experiência pessoal, qualquer homem


do mundo teria feito. O que nos outros é fru to duma vontade, Mas o castigo de tôda essa riqueza que lhes dá 0

difamarem a Arte e estraçalharem com ela, é que matam a pró


em Murilo Mendes, é apenas um fenômeno por assim dizer
pria finalid ade objetiva dela, a obra-de-arte. Em Murilo
de reação nervosa. Mendes, como em Cícero Dias, desaparece fortemente a possi
Como caroiquismo, como elasticidade na confusão do rea] bilidade da obra-prima, da obra completa em si e inesquecível
com o sonho, como nacionalidade independente, como tanta como objeto. Não são apenas todos os planos que s e confun
complexidade lírica de realização, só é comparável a Murilo dem nas obras deles, mas estas próprias obras, que se tor
Mendes, e no desen ho, o pernambucano Cícero Dias. Me pa nam enormemente parecidas umas com as outras, ou pelo menos
rece que formam ambos o que tem de mais rico e de mais novo indiferença veis na memória da gente. Se o Tanto gentile, se
0 Alma minha, se As Pombas se distinguirão sempre entre
na arte brasileira de agora: uma parelha esplêndida que difa
ma os cânones e conceitos da Arte, que mata a Arte no que milhares de sonetos, e são logo inconfundíveis; se em Gonçalves
Dias 0 Y-Juca-Pirama é uma obra-prima e tal outro poema é
ela tem de mais pernicioso e inerente: o indivíduo mentindo,
medíocre, não possue 0 “ golpe de gênio” ; nesta nova ordem
a diferenciação
famoso, das obras,
verdadeiro a singularização
e estupidíssimo “ golpedosdevalores,
gênio” e. oEsse de criação, utilizada por Murilo Mendes e Cícero Dias, essa
possibilidade de distinção desapare ce estranhament e. Um ou
bobo golpe de gênio que afinal das contas não há quem não outro verso, tal ou qual momento do quadro saltam por mais
tenha, quando não 11a arte, pelo menos na vida. A vida q uo belos, mais comoventes, mais profundos, porem as obras se
tidi ana está cheia de golpes de gênio. Dia nte das obras desses enlaçam umas nas outras, vazam umas pràs outras, pairam
dois, não mais artistas, mas líricos admiráveis, tudo isso desa numa indiferença iluminada em que não é preciso mais dis
parece. São homens que não mentem mais, libertos da conciência tingu ir a grande invenção da invenção menos forte. Os outros
e de qualquer jerarquia psíquica, capazes de todas as fés e três poetas, mais submissos qual ao plano sensitivo, qual ao da
credos ao mesmo tempo. Só uma coisa eles não tra em : a im- reflexão, e todos sob 0 domínio da organização intelectual, são
pulsão macunaimática do indivíduo (estou me referindo à arte mais de siguais. Exce tuan do os poemas satíricos de Mu rilo
deles) : seres nem culpados nem inocentes, nem alegres nem Mendes, criados francamente sob a gestão do conciente, e onde
as obras se distinguem também (como 0 já celebrado Quinze
tristes mais, dotados daquela soberba indiferença que Platiío
de Novembro), 0 mais se confunde numa grande massa dadi-
ligava à sabedoria. E 0 resultado importantíssimo desse ape
vosa. E se 0 trato quotidiano do livro permite ao s poucos a
nas aparente individualismo, que na realidade é antes um gente ir afeiçoando mais tal poema e distinguindo este outro,
excesso do indivíduo no que êle tem de mais complexo, de mais a gente não possue mais razão pra separar a obra-prima e a
precário e desierarquizado: é que em vez de pormenorização ju sti fica r. Será um mal nov o ? . . . Nã o me par ece que. Nem
pessoal , a obra del es é profunda mente humana e gené rica. Do tive intenção propriamente de distinguir milhorias ou deca-
mesmo jeito com que em Cícero Dias as formas assumem valo dências impossíve is. Estive apenas procur ando do meu jeito,
res de universal, em sínteses tão asbtratas que nele um cachor a ordem de criação em que a poesia destes quatro grandes
ro se confunde com um burro, é 0 Quadrúpede, a pomba se poetas se situa.
confundindo com 0 urubú, é a Ave; do mesmo jeito com que
nem particularização individualista, os seus assuntos são pri
mários e genéricos, a sexualidade (se confundindo com o amor),
o assunto da morte, 0 do prazer, 0 do Alem : também em Murilo
Mendes os assuntos são genéricos e esses mesmos, os ritmos se
tornam impessoais, versos longos mas respeitosos do respiro,
sem entroncamentos, desprovidos de luxo e imponência.
A E L E G IA DE A B R IL
(1941)

Poucas vezes me vi tão indeciso como neste momento, em


que uma revista de moços me pede iniciar nela a colaboração
dos veteranos. Seria mais hábil lh e ceder um desses estudos
especializados, que salvasse em sua máscara os meus louros
possíveis de escritor. Mas ainda conservo d as minhas aventu
ras literárias, aquela audácia de poder errar, com que aceitei
de um dos moços que me convidaram a este artigo a sugestão
de falar sob re a inteligência nova dó me u país. E confessarei
desde logo que não a sinto muito superior à de minha geração.
Nós ainda tínhamos muito presentes, e praticadas mesmo
em nossos anos de rapazes, as tradiç ões da cabeleira. Ain da
ouvíramos, e usáramos um bocado, a boêmia dos cafés e a cor
nevosa do absint o. Mas de um acorde de Debussy, de u ma
opinião de Wilde ou de Gide, da corte de Guilherme II, para
um ritmo batido de Strawinski, um assunto de Rivera e os
companheiros de Hitler, vai tal antagonismo, que as melhoras
da inteligência brasileira não me parecem satisfazer às exi
gências do tempo e da nacionalidade.
É certo que sob o ponto-de-vista cultural progredimos bas
tante. Se em algumas escolas tradi ciona is há muit o atraso,
ju nt o aos núc leos de cert as fa cul da des nov as de fil oso fia , ciê n
cias e letras, de medicina, de economia e política, já vão se
formando gerações bem mais técnicas e bem mais humanísticas.
Há um realismo novo, um maior interêsse pela inteligência
lógica, que se observa muito bem nisso de serem agora mais
numerosos os escritores que iniciam carreira escrevendo prosa
e interessados só por ela, quebrando a tradição do livrinho de
versos inaugural.
18 6 M A R T-O DE A N D R A D E ASrECTOS DA LITERATU RA BRASILEIRA 18 7

Esta melhoria sensível de inteligência técnica se manifesta cientes e nem ainda abstencionistas. E tempo houve, até o
principalmente nas escolas que tiveram o bom-senso de buscar momento em que o Estado se preocupou de exigir do intelectual
professores estrangeiros, ou mesmo brasileiros educados nou a sua integTação no eorpo do regime, tempo houve em que, ao
tras terras, os quais trouxeram de seus costumes culturais e lado de movimentos mais sérios e honestos, o intelectual viveu
progresso pedagógico uma mentalidade mais sadia que desistiu de namorar com as no^as ideol ogias do telégrafo. Foi a fase
do brilho e da adivinhação. A modos que sempr e fui um serenatista dos simpatizantes.
subalterno Cherubini, desconfiado dos geniais e dos meninos-
Desse período curto mas suficientemente longo pára afetar
-p ro dí gi os .. . Sempre é certo que as poucas veze s em que fui
qualquer noção moral de inteligência, é que estamos sofrendo
chamado a servir publicamente, só o preparo das coletividades
os efeitos. Favore cida pela ignorância e pelo despoliciamento
em mais alto nivelamento me preocupou. Assim agí quando
foi da reforma do Instituto Nacional de Música. Assim agí cultural, a verdadeira tradição nova que a fase dos simpati
no programa de expansão cultural do Departamento de Cul zantes nos deixou, fo i essa .maldição que poderá se chamar dè
tura e por isso tanto me detestaram os geniosos do a solo “ imperat ivo ec onômico da in teligência” ! Estare i por ac aso
resplendente. E ainda faz pouco, tendo o Sr. Ministro da muito escuro e desconhecedor das realidades, afirmando ver a
Educação me pedido um anteprojeto para uma escola de gorda maioria
econômico por dos-intelectuais de agora
sua norma de conduta tomarlei?
e única esse imperativo
belas-artes, se já, mais pacificado em minhas experiências,
cedi um jardinzinho de exceção aos gênios em promessa, o O Estado proibira as serenatas com que o simpatizante
pressuposto que determinou meus conselhos e formas, foi o de acordava a sua vizinhança e lhe deixava na insônia o retrato
um alto nivelamento artesanal . Sou sim pelo nivelamento das das Rosinas adventíc ias. Mas a intelectualidade se ajeitoü
coletividades. Não pelo nivelamento por baixo, que se perce fácil. Tirou das terminologias em moda sua nova fantasia
be a cada close-up do nosso ramerrão educativo, mas por um arlequinal de conformismo: esta dolorosa sujeição da inte
elevado nivelamento cultural da nossa inteligência brasileira, ligência a toda espécie de imperativos ec onômicos. A incon-
que evite a falsa altura, tão comum entre nós, dos arranha- ciência de minha geração, se não a abso lve, a fatali za — homem
céus. .. em taipa de mão. E por isso não me desagrada a mo de um fim-de-século em que, meu Deus! no Brasil não re
desta conciência técnica com que a escola de São Paulo se percutia nad a! Mas para o intelect ual de agora não é possí
afirma em sua macia lentidão, na pintura como nas ciências vel mais invocar o estado-de-graça da fatalidade. Pois então
sociais, ajuntando pedra sobre pedra, amiga das afirmações rebatizaram à maluca, lhe deram sexo mais dominador: são os
bem baseadas, mais amorosa de pesquisar que de concluir. Impera tivos Econômicos que passam! E chuviscam agora
Mas esta primeira diferença grande me parece pouco. oses comodos voluntários dos abstencionismos e da compla
Da minha geração, de espírito formado antes de 1914, cência. Ia acrescentando “ e da pouca vergonh a” , mas me
para as gerações mais novas, vai outra diferença, esta profunda refreei a tempo . Na verdade os homens de pouca vergonha
mas pérfid a, que es tá dando péss imo resultado. Nós éramo s aparecem em qualquer época, muito embora as condições so
abstencionistas , na infinita maioria. Nem poderei dizer “ abs- ciais do intelectual contemporâneo e o adubo dos imperativos
tencionistas” , o que implica uma atitude conciente do espír ito : econômicos estejam se demonstrando muito favoráveis à proli
feração de semelhantes cogumelos.
nós éramos uns
praticávamos cominconcientes.
um pouco maior Nem mesmoque
largueza o nacion alism o que
os regionalis Com ef eit o: alguns, e serão por acaso os melhor es ?. . .
tas nossos antecessores, conseguira definir em nós qualquer desgostados da vida, malferidos em seu sentimento humano
conciência da condição do intelectual, seus deveres para com a pelas guerras, se retiram para o seu rincão de ciência, pagam
arte e a humanidade, suas relações com a sociedade e o estado. como é dever o imposto sobre a renda, apenas mui gratos se
A pre ssão dos nov os con ven cion ali smo s po lít ico s post erio res ao alguem lhes concede publicar algum documento precioso ou
tratado de Versalhes, mesmo no edênico Brasil se manifestou. desco brir uma nova estrelinha do céu. Outros, menos absten-
Os novos que vieram em seguida já não eram mais uns incon- eionistas e bem mais complacentes, gostam de pagar a quetn
188 MARIO DE ANDR ADE
ASPECTOS DA LITERATU RA BRASILEIRA 18 9

lhes paga, trocando primogenitura e muitos elogios falados e


escritos, pelos tomates de alguma situação vitaminoea. Não âe Notícias. Não deixei d e ser compreendido, o fui até muito
são bois alçados, como os primeiros, se preferem pingos ensi bem pelos culposos, embora eles não pudessem atingir toda a
nados. extensão do meu pens amento. Muito poucos perceberam à
lógica de quem, tendo combatido, não pela ausência, mas pela
Os terceiros, não existe vivente que se lhes compare no liberdade da técnica num tempo de estreito formalismo, agora
reino animal. Mudam de ideais a qualquer notícia, não resis combatia pela aquisição de uma conciência técnica no artista,
tem ao sopro de qualquer brisa. Mas que podem fazer s e care ou simplismente de uma conciência profissional, num período
cem de pão, se precisam pagar o médico da famí lia? Pão e de liberalismo artístico, que nada mais está se tornando que
doença, filho gripado e mulher grávida, são hoje para a inteli cobertura da vadiagem e do apriorismo dos instintos.
gência os mais fáceis avatares do cinismo mo ral. E um forte
número desses pretensos intelectuais são verdadeiros vácuos de Outro forte caso a lembrar seria o do surgimento de nu
ignorâ ncia. Mas como se cultivar se lutam pela v id a !.. . A merosa poesia católica que outra coisa não faz senão se com-
luta pela vida não é mais, como no dicionário oitocentista, um prazer do pecado, mas isto já me parece mais um efeito que
causa, A causa é mais grave e mais tradicional tam bém :
propósito de trabalho e deAvitória
ção da incompetência. tanto do maiso forte:
chega predomé aínio
glorifica
das pala esta absurda e permanente ausência de pensamento filosófico,
vras sobr e os homens. . . E se vê intel ectuais, sem o menor de uma atitude filosófica da inteligência, entre os nossos inte-
respeito pelas glórias conquistadas, mudarem de diretrizes, lectuais. Os cientistas se refugiam no laboratório ou na expo
da meia-noite para o meio-dia, servindo aos interesses mais sição sedentária das dou trina s alheias. Os artistas não teem
torvos. No sentido da sua dignidade moral, a inteligência bra onde se refugiar, mas se disfarçam com ingenuidade no padrão
sileira se transformou muito, passando da inconciência social, da arte social. Se acaso pretendem os saber o que os nossos
para a’conciên cia da sua condição. Mas não creio tenha havido intelectuais pensam dos problemas essenciais do ser, se fica
melhoras. Se do meu tempo o mais que se possa dizer é que atônito: não há o que respigar nas obras de quase todos e muito
foi amoral, hoje grassa na inteligência nova uma freqüente menos em suas ataranta das atitudes vitais. Não existe uma
imoralidade. obra, em toda a ficção nacional, em que possamos seguir uma
linha de pensamento, nem muito menos a evolução de um corpo
Se contemplamos a paisagem artística o que salta abun orgâ nic o de idéias. E por isso causou enorme malestar e logo
dantemente ao s olhos é a imperfeição do preparo técnico. O travou-se em torno dele a conspiração do silêncio, mesmo dos
experimentalismo dos “ modernistas” de minha geraç ão já por que o deviam atacar, o aparecimento, a verdadeira aparição
vária parte se confundia com a ignorância e foi defesa de fantasmal de um Otávio de Faria que, certo ou errado, se
muitos. Mas ainda a maioria dos meus co ntemporâneos vinha apresentava romanceando sôbre um núcleo de idéias organiza
de costumes mais enérgicos em que não se passava pof decreto. das em sistema. E é por esta falha várias vezes secular de
E todos os que resistiram ou padecem resistir à filtragem dos espírito .filosófico que são tão raro s os “ casos” na inteligência
anos, foram técnicos honestos de suas artes. do Brasil, e ela se manifesta com vasta fraqueza de poder dra
Mas a esse experimentalismo artístico veio logo se a junt an mático e au sência quase total de concepção satír ica. Ninguém
do um perigo ainda mais confusionista e sentimentalmente castiga. Ninguém previne. Ninguém sofre.
glorioloso, a tese da “ arte social” . Amontad os nesta minerva Isto é, sofre sim ! Me esqu ecia do sofrimento humano
(minerva ou m ercúri o ? . . . ) da fase dos simpa tizante s, não criado, ou pelo menos largamente desenvolvido na ficção con
houve mais ignorância nem diletantismo que não se desculpasse temporânea do Brasil, esse herói novo, esse protagonista sinto-,
de sua miséria, como se a arte, por ser social, deixasse de ser mático de muitos dos nossos melhores novelistas atuais: o fra
simplesmente arte. cassado. De uns dez anos pra cá, sem a menor inten ção de
Foi bem fatigante a experiência que tive, fazendo da téc escola, de moda literária ou imitação, numerosos escritores
nica o meu cavalo de batalha nas críticas literárias do Diá rio nacion ais se puseram c antando (é bem o ter m o! ...) o tipo
do fracassado.
19 0 MARIO DE ANDR ADE ASPECTOS DA LITERATU RA BRASILEIRA 19 1

Observo mais uma vez não estar esquecido de que pra se \existente e foge, criar o seu imaginário mundo num sertão
dar entrecho, há sempre um qualquer fracasso a descrever, um tora do mundo.
amor, uma ter ra, uma luta social, um ser que faliu. Um Dom Não é possível aceitar esta frequência de um tipo moral,
Quixote fracassa, como fracassam Otelo e Madame Bovary. em nossa ficção viva, s em lhe reconhecer uma cau sa. E f ui
Mas estes, como quase todos os heróis da arte, são seres dotados grosseiro no enumerar apenas os retratos mais francos do pro
de ideais, de ambições enormes, de forças morais, intelectuais, tótipo. Com alguma sut ileza, e ra ainda possível rec ensear
físicas, repres entam tendências generos as ou perversivas. São mais delicadas modalidades dele nas obras de outros impor
enfim seres capazes de se impor, conquistar suas pretensões, tantes e scritores nacionais. Os que indiquei me bastam para
vencer na vida, mas que no embate contra forças maiores são afirmar que existe em nossa intelectualidade contemporânea a
dominados e fracassam. Mas em nossa literatura de ficção, preconciência, a intuição insuspeita de algum crime, de alguma
romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não falha enorme, pois que tanto assim ela se agrada de um herói
é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição que só tem como elemento de atração, a. total fragilidade, e
do ser pra
tente semviver,
força enenhuma,
que não doconsegue
indivíduoopor
desfibrado,
elementoincompe
pessoal frou xo conformismo.
emocionantemente fraco,E sese oo Cristiano,
Carlos, dedeLins do Rêgo,é
Osvaldo Alves,o omais
nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como ne mais irrespiràvelmente irresoluto: eu creio que o Faial, como
nhum ideal, contra a vida ambiente. Antes, se entrega à su a Gilberto Amado o propôs nas análises que fez da sua criatura,
conform ista insolubilidade, Quando, ao denunciar e ste fenô é o que mais convida a pensar, forte, belo, dominador, com
meno, me servi quase destas mesmas palavras, julguei lhe des todas as probabilidades de vitória, mas que se anula numa
cobrir algumas raízes tradicionais. H oje estou convenc ido de conform ista desistê ncia e vai-se e mbora. Vai-se embora pra
que me enganei. O fenômen o não tem raízes que não sejam Pasár gada ?.. .
contemporâneas e não prolonga qualquer espécie de tradição. Porqu e os poetas, por isso mesmo que mais escravos da sen
Talvez esteja no Carlos do Ciclo da Cana de Açu&ar a sibilidade e libertos do raciocínio, ainda são mais adivinhões
primeira amostra bem típica deste fracassado nacional. Nos que os prosistas. Já em 1930, a respei to do Vou-me embora
lembremos ainda do triste personagem de A n g ú st ia .. . Já pr a Pas árg ada de Manuel Bandeira, pretendi mostrar que esse
mima crônica a respeito, pude enumerar mais um herói de mesmo tema da desistência estava freqüentan do numerosamente
Cordeiro de Andrade, nada menos que seis outros num roman a poesia moderna do Brasil. Se o complexo de inferiorida de
ce de Cecílio Carneiro; e além destes fracassados cultos, outro, sempre foi uma das grandes falhas da inteligência naeional, não
caipira, do escritor Leão Machado, e um nordestino do povo, sei se as angústias dos tempos de agora e suas ferozes mudanças
figura central do Mu ndo Pe rd ido de Fran Martins. Poucos vieram segredar aos ouvidos passivos dessa mania de inferio
tempos depois topava outra vez com o homem nos Fra gm entos ridade o eonvite à desistêneia e a noção do fracasso total. E
de um Caderno de Memórias, do contista mineiro Francisco não é difícil imaginar a que desastrosíseima incapacidade do
Inácio Peixoto. Logo após vinha o Edua rdo, de Menotti dei ser pod erá nos levar tal estado-de -conciência. Toda esta lite
Picchia, e alguns dos personagens de Saga. Em seguida era ratura dissolvente será por acaso um sintoma de que o homem
o fazendeiro, de Luís Martins. E com os últimos meses, posso brasileiro está às portas de desistir de si mesmo?
acrescentar mais três retratos ilustres a esta galeria pestilenta: Eu sei que há diferenças e melhoras na inteligência nova
um, impressionantemente exato, descrito por Osvaldo Alves na do meu país, mas não consigo percebê-la mais enérgica nem
maior estréia de 1940, Um Homem fora do Mundo-, e os dois muito menos dotada de maior virtude. Nós, os moder nistas
principais “ inocente s” de Gilberto Amado, num livro bem irre de minha geração, sacrificávamos concientemente, pelo menos
gular mas de grave importância: o Emílio e essa estranha cria alguns, a possível beleza das nossas artes, em proveito de in
ção, figura realmente apaixonante em seu mistério, Faial, o teresses utilit ários. A arte se empob recia de realidad es esté
moço que dotado de todas as forças a tudo renuncia da vida ticas, dissolvida em pesquisas. Experimentações rítmicas,
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auscultações do subeonciente, adaptações nacionais de lingua perceb e em nossa geraçã o atual. Antes, por muitas partes, ela
gem, de música, de cores e formas plásticas, de crítica — continua a devassidão genérica do meu tempo. Nós, enfim,
eram interesses que deformavam a isenção e o equilíbrio de éramos bem dignos da nossa época. Ao passo que vai nos
qualquer mens agem. Então fom os descobrir, mais nas revis substituindo uma geração bem inferior ao momento que ela está
tas de combate que nos livros de filosofia, a palavra salvadora vivendo.
(sempre o perigo das l ustro sas palavras. . . ) que ac almava a s Ta lve z' seja necessário que as inteligências moças mais
nossas ambições estéticas maltra tadas: pragmatismo. Aqui lo, capazes se esqueçam por completo das elásticas verdades tran
gente, eram pragmatismos tamb ém! Eram as n ecessid ades da sitórias e revalorizem o ideal da verdade absoluta. Não será
hora, as verdades utilitárias por que nos sacrificávamos, tão este o mais pa triót ico. . . pragmatismo nacional ? É possível
mártires como os que se iam cristianizando chineses. acreditar sem fé. Acred itar é muit as vezes um ato de carida
O mal não era assim tamanho pois que a nossa conciência de. E se o homem não pode viver sem se us mitos, imag ino
permanecia eminentemente estética, mas a desgraça é que a que seria sublime os mais capazes, mesmo sem fé, se porem na
palavra deslumbrou. E deslumbrou demais numa t errá e religião da uma- só verdade. Fazerem da verdade absoluta o
coletividade pouco afeita a estudos concienciosos e que, se seu mito e o seu estágio de purificaçã o. Ou de superação.
libertando aos poucos de suas tradições religiosas, não se Não convém à inteligência brasileira se satisfazer tão cedo de
preocupava de preencher o vazio ficado com uma qualquer suas conquistas. A satisfação, como a felicidade , é um empo
outra conceituação moral da inteligência. Só é verdade o q ue brecimento. E a palavra de Goethe não deverá j amais ser
é util, e toca o zabumba e nsurdecedor dos pr agmatismos. Pra g esquecida: superar-se.
matismo ou displicência nova? E o intelectual se passa d e Imagino que uma verdadeira conciência técnica profissio
galho em galho, de árvore em árvore, na estilização mais na nal poderá fazer com que nos condicionemos ao nosso tempo
cionalista possível da dança do t angará. Isso •uma intelectua e os superemos, o desbastando de suas fugaces aparências, em
lidade coreográfica, inspirada na quadrilha dos “ imperati vos vez de a elas nosi escravizarmos. Nem penso numa qualquer tec-
econômicos” , onde só se executa, com desilusória monotonia, o nocracia, antes, confio é na potência moralizadora da técnica.
passo do changez de places e o tour au vi-à-vis. E salvadora . .. Essa mesma técnica que s e salvou Sócrates e
A minh a pí fia ger açã o era afi na l das conta s o qui nto ato Rikiú pela morte, salvou Fídias, salvou o Baeh da Miss a em
conclusivo de um mundo, e representava bastante bem a sua Si Menor, salvou os medievais, os egípcios e tantos outros, den
época dissolvida nas garoas de um impressionismo que alagava tro da mes ma vida. O intelectual não pode mais s er um abs-
as morais como as políticas. Uma geração de degeneração tencionista; e não é o abstencionismo que proclamo, nem mes
aristocrática, amoral, gozada, e, apesar-da revolução moder mo quando aspir o ao revi goramento novo do “ mito” da ver
nista, não muito distante das geraçõe s de que ela era o “ sor dade absoluta. Mas se o intelectual for um verdadeiro técnico
riso” f inal. E tève sempre o mérito de proclam ar a chegada de da sua inteligência, ele não será jamais um conformista. Sim
um mundo novo, fazendo o modernismo e em grande parte plesmente porque então a sua verdade pessoal será irreprimí
1930. Ao passo que a s geraçõe s seguintes, já dç. um outro e vel, Ele não te rá nem mesmo esse conformism o “ de partid o” ,
mais blindado realismo, nada teem de gozadas, são alevantadas tão propagad o em nossos dias. E se o aceita, deixa imediata
mesmo, e já buscam, o seu prazer no estudo e na discussão dos mente de ser um intelectual, para se transformar num político
problemas humano s e nã o. . . no prazer. Mas não parecem de ação. Ora, como atividade, o intelectual, por definição, não
aguentar o tranco da sua diferença. A severidade dós costu é um ser político. Ele é mesmo, por excelência, o out-law, e
mes, a rusticidade dos amores e tendências, o número pequeno tira talvez a sua maior força fecundante justo dessa imposição
de preceitos-tabus, próprios das civilizações em ccimeço, e de irremed iável da “ sua” verda de.
que são exemplos próximos, o início da civilização norteameri- Será preciso ter sempre em conta que não entendo por
cana, e em nossos dias a Rússia e a Alemanha, nada disto se técnica do intelectual simploriamente o artesanato de colocar
194 MART O DE AN DR AD E ASPECTOS DA LITERAT URA BRASILEIRA 19 5

bem as palavras em juizos perfeitos. Part icipa da téenie a, porânea. e mesmo de alguns aspectos e problemas dela não
tal como eu a entendo, dilatando agora para o intelectual o tratei por não pode r fazê-lo. Lembrei apenas alguns motivos
que disse noutro lugar exclusivamente para o artista, não so de pensamento e análise que talvez a possam levar a maior dig
mente o artesanato e as técnicas tradicionais adquiridas pelo nidade. Há vinte anos atr ás, se me perguntassem o que valia
estudo, mas ainda a técnica pessoal, o processo de realização mais, se o autor, se a idéia, eu responderia sem hesitar que o
do indivíduo, a verdade do ser, nascida sempre da sua morali autor. Agor a já não sei mais, vivo incerto. O homem é coisa
dade- profis siona l. Não tant o o seu assunto, mas a maneira sublime, porém se as idéias prevalecessem sobre os homens, já
de realizar o seu assunto. Que os assuntos são gerais e eternos, de muito que a paz teria pousado sobre a terra. E ando sau
e .entre eles está o deus como o herói e os feitos. Mas a supe doso da paz.
ração que pertence à técnica pessoal do artista como do intelec
tual, é o seu pensamento inconformável aos imperativos exte
riores. Esta a sua verdade absolut a.
E junto desta técnica intelectual, talvez devêssemos obe
decer mais à sensibil idade.. . Uma circ unstânei a incont es
tável da vida é que, premidos por ela, nós exercitamos quoti
dianamente a nossa inteligência, não pra elevarmos a vida às
■suas altur as fil osófi cas, a uma qua lquer inter preta ção dela,
mas pra justificarm os os nossos própr ios atos. A difere nça
quotidiana entre o exercício da inteligência e o da sensibili
dade, é que esta se quotidianiza, vira costume, se esquece de
si, se esquece do amor, dos sentimentos, ao passo que a inteli
gência jamais esquece de se exercer, na justificação malaba-
rística dos nossos quot idian os descaminhos. O sentimento, em
nós, vira “ costume” , e é por causa des te enfraquecimento da
sensibilidade que se criou o dia ritual do aniversário, em que
nos relembramos, no ar de festa, que o amor existe e o senti
mento existe. E então nesse dia, não é só o te-deum e a seda
que o homem oferece aos seus amores divinos e profanos, mas
uma aproximação mais grave e mais sentida. Imag ino que
será de muito benefício para o intelectual brasileiro, especial
mente nos momentos decisórios de suas atitudes vitais, ele
auscultar mais ve zes a sua sensibilidade. Desde que, enten
da-se bem, não continuem esse conselho da sensibilidade, con
siderações justificadeiras da inteligência quotidiana e seus im
perativos. Neste sentido* é possível afirmar que, pelo menos
em períodos tão precários de integridade humana eomo o que
atravessamos, a sensibilidade é que é insensível, metàlieamente
ditatorial em seus mandos, ao passo que a inteligência é a mais
encegueeedora das paixões. Porque mais pervertida e ma is
fáeil de se perverter a si mesma,
Não tive a menor pretensão de dar, nestas linhas, nm
remédio às angústias novas da inteligência brasileira eontem-
0 MOVIMENTO MODERNISTA

Manifestado especialmente pela arte, mas manchando


também com violência os costumes sociais e políticos, o movi
mento modernista foi o prenunciador, o preparador e por mui
tas partes o criado r de um estado de espírito naci onal. A
transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos
grandes impérios, com a prática européia de novos ideais po
líticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas
internacionais, bem como o desenvolvimento da coneiência
americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da
educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam
a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional.
Isto foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte
Moderna ficou se ndo o brado colet ivo princi pal. Há um mé
rito inegável nisto, embora aqueles primeiros modernistas...
das cavernas, que nos reunimos em torno da pintora Anita
Malfatti e do escultor Vitor Brecheret, tenhamos como que
apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacio
nal muito mais complex a que nós. For ça fatal, que viria
mesmo. Já um crítico de se nso-comum afirmou que tudo
quanto fez o movimento modernista, far-se-ia da mesma forma
sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa.
Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o movimento moder
nist a, seri a pura e simplesmente.. . o movimento mode rnist a.
Fazem vinte anos que realizou-se, no Teatro Municipal
de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. É todo um pass ado
agradável, que não ficou nada feio, mas que me assombra um
pouco também. Como tive coragem para participa r daquela
bat alha ! É certo que com minhas experiências artísticas muito
que venho escandalizando a intelectualidade do meu país, po
rém, expostas em livros e artigos, como que essas experiências
não se realizam in anima nóbile. Não estou de corpo presente ,
e isto abranda o choque da es tupidez. Mas como tive coragem
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pra dizer versos diante duma vaia tão bulhenta que eu não perada e estilizaç ões decorat ivas do “ gênio” . Porque Vitor
escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira Brecheret, para n ós, era no mínimo um gênio. Este o mín i
fila da s poltronas? .. . Com o'pude fazer uma con ferênc ia mo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que
sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anô ele nos sacudia. E Brech eret ia ser em breve o gatilho que
nimos que me caçoavam e ofendiam a valer ?. .. faria “ Pauli céia Desvairad a” estourar...
O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encora Eu passara, esse ano de 1920 sem faze r poesia mais. Tin ha
jad o, fu i enc egu eeid o pe lo entu siasmo dos outr os. Ap esa r da. cadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas timida
confiança absolutamente firme que eu tinha na estética reno mente simbolist as, mas tudo acabara po r me desagradar. Na
vadora, mais que confiança, fé verdadeira, eu não teria forças minha leitura desarvorada, já conhecia até alguns futuristas
nem físicas nem morais para arrostar aquela tempestade de de última hora, m as só então descobrira Verhaeren. E fô ra
achincalhes. E si aguentei o tranco, foi porque es tava deli o deslumbramento. Levado em prin cipa l pelas “ Villes Tenta-
rando . O entusiasm o dos outros me embebeda va, não o meu. culaire s” , concebi imediatamente fazer um livro de poesias
Por mim, teria cedido. Dig o que teria cedido, mas apenas “ modern as” , em verso-livre, sobr e a minha cidade. Tentei,
nessa apresentação espetacular que foi a Semana de Arte Mo não veio nada que me interessasse. Tente i mais, e nada. Os
derna. Com ou sem ela, minha vida intelectual seria o qu e meses passavam numa angústia, numa insuficiên cia feroz. Se
tem sido. rá que a poesia tinha s e acabado em mim ?. . . E eu me acor
A Sem ana ma rca um a data, isso é ineg áve l. Mas o cert o dava insofrido.
é que a pre-conciência primeiro, e em seguida a convicção de A isso se ajun ta va m dif icu ld ad es mo rais e vit ais de vá ria
uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos espécie , foi ano de sofrimento muito. Já ganhava pra vive r
viera s e definindo no . .. sent iment o de um gr upinho de inte folgado, mas na fúria de saber as coisas que me tomara, o
lectuais paulistas. De primeiro foi um fenomeno estrit amente ganho fugia em livros e eu me estrepava em cambalaxos finan
sentimental, uma intuição divinatória, um . .. estado de poesia. ceiros terríveis. Em fam ília, o clima era torvo. Si Mãe e
Com efeito: educados na plásti ca “ histórica”, saben do quando irmãos não s e amolavam com as minhas “ loucura s” , o resto da
muito da existência dos impressionistas principais, ignorando família me re talhava s em piedade. E com certo prazer a té :
Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à expo esse doce prazer familiar de ter num sobrinho ou num primo,
sição de Anita Malfatti, que em plena guerra vinha nos mos nm “ perdid o” que nos valoriz a virtuo samente . Eu tinha
trar qu adros expressionistas e cubistas ? Parece absurdo, mas discussões brutais, em que os desaforos mútuos não raro che
aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na e nchente d e gavam àquele ponto de arrebentação que... porque será que a
escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos arte os prov oca ! A brig a era braba, e s i não me abatia nada,
de êxtase diante de quadros que se chamavam o “ Homem A ma me deixava em ódio, mesmo ódio.
relo” , a “ Estudanta Russa”, a “ Mulher de Ca belos Verdes” . Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um
E a esse mesmo “ Homem Am arelo” de formas tão inéditas
gesso dele que e u gostava, uma “ Cabeça de Cristo ” , mas com
então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima...
que ro up a! eu devia os olhos da car a! And ava às vêzes a-pé
Eramos assim. por não ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que
Pouco depois Menotti dei Picchia e Osvaldo de Andrade gastara seiscentos mil réis em liv ros . . . E seisc entos mil réis
descobriam o escultor Vitor Brecheret, que modorrava em São era dinheiro então. Não hesitei: fiz mais conchavos finan
Paulo numa espécie de exílio, um quarto que lhe tinham dado ceiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a mi
gratis, no Palácio das Indústrias, pra guardar os seus calun nha “ Cabeça de Cristo” , sensuali ssimamente feliz. Isso a no
gas. Brecheret não prov inha da Alemanha, como Anita Ma l tícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado,
fatti, vinha de Roma. Mas também importava escurezas me invad iu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berr avam.
nos latinas, pois fora aluno do c élebre Maestrovic. E faz ía Aq ui lo era até pec ad o mort al ! estr ila va a senhor a min ha tia
mos verdadeiras rêveries a galope em frente da simbólica exas veiha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de tra ncin ha !
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era feio ! medonho! Maria Lu isa, vosso filho é um “ perd ido” certos, leituras de livros e conferências explicativas. Foi o
mesmo. próprio Graç a Aranha? foi Di Ca va lcan ti!... Pore m o q ue
Fiquei alucinado, palavra d e honra. Minha vontade era importa era poder realizar essa idéia, além de audaciosa, dis-
bater. Jantei por dentro, num estado inimag inável de estraça pendiosíssima. E o fau tor verdadeiro da Semana de Arte
lho. Depo is subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção Moder na foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como e le
de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bom e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo, pode
ba no centro do mund o. Me lembro que cheguei à sacada, riam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.
olhando sem ver o meu largo. Ruidos, luzes, falas abertas su Ilouve tempo em que se cuidou de transplantar para o
bindo dos chofêres de aluguel. Eu estava aparentemente cal Rio as raizes do movimento, devido às manifestações impres
mo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fu i até sionistas e principalmente post-simbolistas que existiam então
a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais na capital da República. Existiam, é inegável, prin cipa l
pensar a, “ Paulicéia Desvairada” . O estouro chegara afinal, mente nos que mais tarde, sempre mais cuidadosos de equilí
depois de qu ase ano de angúst ias, interrogativa s. Entre des brio e espírito construtivo, formaram o grupo da revista
gostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais'de “ Festa” . Em São Paulo, es se ambiente estético só fermen
uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas tava em Guilherme de Almeida e. num Di Cavalcanti pastelis-
vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num ta, “ menestre l dos tons velados” como o apelidei numa dedi
livro (1). catória esdrúxula. Mas eu creio ser um engano ess e evolucio-
Quem teve a idéia da Sem ana de Art e Moderna ? Por nismo a todo transe, que lembra nomes de um Nestor Yitor ou
mim não sei quem foi, nunca sube, só posao garantir que não Ad elin o Mag alhãe s, com o elos pre cursos. En tão seria mais
fui eu. O movimento, se alastrando aos poucos, já se tornara lógico evocar Manuel B andeira, com o s eu “ Carnaval” . Mas
uma espócie de escândalo público permanente. Já tínhamos si soubéramos deste por um acaso de livraria e o admirávamos,
lido nossos versos no Rio de Janeiro; e numa leitura principal, dos outros, nós, na província, ignorávamos até os nomes, por
em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro que os interesses imperialistas da Côrte não eram nos mandar
Couto e Rena to Almeida, numa atmosfera de si mpatia, “ Pauli “ humilhados ou luminosos” , mas a grande camelote acadêmica,
céia Desvairada” obtinha o consentimento de Manuel Bandeira, sorriso da sociedade, útil de provinciano gostar.
que em 191 9 ensaiara os s eus primeiros versos-livres, no “ Car Não. O modernismo, no Brasi l, foi uma ruptura, foi um
nav al” . E eis que Graça Aranha, c élebre, trazendo da Eu ro abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma re
pa a sua “ Estétic a da Vid a” , vai a Sã o Paulo, e procura nos volta contra o qu e era a Inteligência nacional. É muito mai s
conhecer e agru par em torno da s ua filosofi a. Nós nos ríamos exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse pre
um bocado da “ Estética da Vid a” que ainda at acava ce rtos parado em nós um espírito de guerra, eminentemente destrui
modernos europeus da nossa admiração, mas aderimos franca dor. E as modas que revestiram e ste espírito foram, de início,
mente ao mestre . E alguem lançou a idéia de s e fazer uma diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éra
semana de arte moderna, com exposição de artes plásticas, con- mos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicio-
nalistas europeizados , creio ser falta de subtileza crítica. É
(1) Depois eu sist ematizaria êste process o de separação nítida entre esqueeer todo o movimento regionalista aberto justamente em
o estado de poesia e o estado de arte, mesmo na composição dos meus São Paulo e imediatamente an tes, pela “ Revista do Brasil” ; é
poemas ma is “ dirigidos” . As lendas naciona is, por exemplo, o abr asileira-
mento l ingüístico de combat e. Escolhido um t ema, por meio da s excitações esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato; é
psíquicas e fisiológicas sabidas, preparar e esperar a chegada do estado de esquecer a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neo-
poesia. Si êste chega (quantas vezes nunca ch eg ou ... ), escrever s em colonial, nascidos e m São Paulo. Desta ética e stávamos im
coação de espécie alguma tud o o que me chega até a mão — a “ sinceridade” pregnados . Menott i dei Picchia nos dera o “Juca Mu lato” ,
do indivíduo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevía
arte —• a “ sinceridad e” da obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais
importante que o indivíduo. mos; e canta regionalmente a cidade materna o primeiro livro
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(lo movimento. Mas o espírito modernista e as suas modas da aristocracia improvisada do Império, mas da outra mais
foram diretamente importados da Europa. antiga, justificada no trabalho secular da terra e oriunda de
Ora São Paulo estava maito mais “ ao par” que o Rio de qualquer salteador europeu, que o critério monárquico do
Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia me s Deus-Rei já amancebara com a genealogia. E foi por tudo
mo ser importado por São Paulo e arrebentar na província. isto que Paulo Prado poude medir bem o que havia de aven
Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre tureiro e de exercício do perigo, no movimento, e arriscar a
Rio e São Paulo. O Rio er a muito mais internacional, como sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.
norma de vida exterior. Está cla ro : porto de mar e capital Uma coisa dessas seria impossível no Rio, onde não existe
do país, o Rio possue um internacionalismo ingcnito. São aristocracia tradicional, mas apenas alta burguesia riquíssima.
Paulo era espiritualmente muito mais moderna porem, fruto E esta não podia encampar um movimento que lhe destruia o
necessário da economia do café e do industrialismo conseqüen espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube
te. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito perder, e isso é que a perde. Si Paulo Pr ado, com a sua
provinciano servil, bem denunciado pela sua política, São autoridade intelectual e tradicional, tomou a peito a realização
Paulo
c sua estava ao mesmoemtempo,
industrialiação, contatopela suaespiritual
mais atualidade comercial
e mais téc da Semana, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de
si os seus pares aristocratas e mais alguns que a sua figura do
nico com a atualidade do mundo. minava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia d e
É mesmo de assombrar como o Rio mantem, dentro da sua classe como a do espírito. E foi nó meio da mais tremenda
malícia vibratil de cidade internacional, uma espécie de rura- assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna
lismo, um carácter parado tradicional muito maiores que São abriu a segunda fase do movimento modernista, o período
Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece in realmente destruidor.
dissolúvel o “ exotismo” na cional (o que aliás é prova de vita Porque na verdade, o período.:, heróico, fôra esse ante
lidade do seu caráter), mas a interpenetração do rural com o rior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti e
urba no. Coisa já impossível de s e perce ber em São Paulo. termin ado na “ festa” da Seman a de Arte Mode rna. Durante
Como Belem, o Recife, a Cidade do Salvador: o Rio ainda é essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desin
uma cidade folclórica. Em São Paulo o exotismo folcló rico teressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das
não freqüenta a rua Quinze, que nem os sambas que nascem mais sublime s. Isolados do mundo ambiente , caçoado s, evita
nas caixas de fósforo do Bar Nacional. dos, achincalhados, malditos, ninguém não pode imaginar o
Ora no Rio malicioso, uma exposição como a de Anita delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que
Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se dei reagimos. O estado de exaltação em qu e vivíamos era incon-
xava levar. Na São Paulo se m malícia, criou uma religião. trolável. Qualquer página de qualquer um de nós jogav a os
Com seus Nero s tam bém ... O antigo “ contra” do pintor outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial!
Monteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiu E eram aquelas fugas desabaladas.dentro da noite, na
uma população, modificou uma vida. eadillac verde de Osvaldo de Andrade, a meu ver a figura
Junto disso, o movimento modernista era nitidamente aris mais característica e dinâmica do movimento, para ir ler as
tocrático. Pelo seu carácter de jogo a rriscado, pelo seu espí nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das
rito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo moder Palm as. . . E os encontros à tardinha, em que ficávamos e m
nista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade exposição diante de algum raríssimo admirador, na redação
antípopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristo de “ Papel e Tinta” . .. E a falange engro ssando com Sergio
cracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e a pequena Milliet e Rubens Borba de Morais, chegados sabidíssimos
burguesia o tem essem. Paul o Prado, ao mesm o tempo que da E u ro p a ... E nós tocávamos com repeito religi oso, esses
um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma peregrinos confortáveis que tinham visto Picasso e conver
das figur as principais da nossa aristocracia tradicional. Não sado com Romain Rolland... E a adesão, no Rio de um
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Al va ro Mo rey ra, de um Ko na ld de Ca rv al ho . . . E o des cob ri Havia a reunião das terças, à noite, na rua Lopes Chaves.
mento assombrado de que existiam em São Paulo muitos qua Primeira em data, essa reunião semanal continha exclusiva
dros de Lasar Segall, já muito admirado através das revistas mente artistas e precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna.
alemãs.. . Tudo gênio s, tudo obras- primas geniais. .. Ap e Sob 0 ponto-de-vista intelectual foi 0 mais util dos salões, si

nas Sergio Milliet punha um certo malestar no incêndio, com a é que se pod ia chamar salão àquil o. Às vêzes doze, até quinze
sua sereni dade equilibrada. .. E o filósofo dá malta, Couto artistas, se reuniam no estúdio acanhado onde se comia doces
de Barros, pingando ilhas de conciência em nós, quando no tradicionais brasileiros e se bebia um alcolzinho econômico. A
meio da discussão, em geral limitada a batebocas de afirmações arte moderna era assunto obrigatório e 0 intelectualismo tão

peremptória s, pergun tava mansin ho: Mas qual é o critério intransigente e deshumano que chegou mesmo a ser proibido
que você t em da palavra “ esse ncial” ? ou: Mas qual é o con fala r mal da vida alheia! As discussõ es alcançavam transes
ceito que você tem do “ belo horrível ” ? ... agudos, 0 calor era tamanho que um ou outro sentava nas ja
nelas (não havia assento pra todos) e assim mais elevado domi
Éramos uns puros. Mesmo cercados de repulsa quotidia nava pela altura, já' que não dominava pela voz nem 0 argu

na, a saúde
cultivo mental
da dor. de quase
Nisso talvez todos nós, nos
as teorias impediativessem
futuristas qualqueruma mento. E aquele raro retardatário da alvorada parava de
fronte, na esperança de alguma briga por gosar.
influ ência única e benéfic a sobre nós. Ninguém pensava em
sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se ima Havia 0 salão da avenida Higienópolis que era 0 mais se

lecionado. Tinha por pretexto 0 almoço dominical, maravilha


ginava precursor nem martír: éramos uma arrancada de he
de comida lusobrasile ira. Aind a aí a conversa era estritamen
róis convencidos. E muito saudáveis.
te intele ctual, mas variav a mais e se alargava. Paulo Prad o
A Sema nà de Ar te Mo der na , ao mesmo temp o que cor oa- com o seu pessimismo fecundo e 0 seu realismo, convertia sem

mento lógico dessa arrancada gloriosamente vivida (desculpem, pre 0 assunto das livres elocubrações artísticas aos problemas
mas, éramos gloriosos de antemão...), a Semana de Arte Mo da realidade brasileira. Foi 0 salão que durou mais tempo e se
derna d ava um prime iro gol pe na pur eza do nosso -aristocra- dissolveu de maneira bem males tarenta. O seu chefe, tornan
cismo espi ritual. Consagrado o movimento pela aristocracia do-se, por sucessão, 0 patriarca da família Prado, a casa foi
paulista, si ainda sofreriamos algum tempo ataques por vezes invadida, mesmo aos domingos, por um público da alta que
crueis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissol não podia compartilha r do rojão dos no ssos assuntos. E a
via nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pen conversa se manchava de pôquer, casos de sociedade, corridas
sado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de cavalo, dinheiro. Os intelectuais, vencidos, foram se ar re-
de decadência. Numa fase e m que ela não tinha mais nenhu tirando.
ma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural E houve o salão da rua Duque de Caxias, que foi 0 maior,

paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Prin ci 0 mais verdadeiramente salão. As reuniões semanais eram à tar

piou-»* o movimento dos s alões. E vivem os uns o ito anos, at é de, também às têrças- feiras. E isso foi a causa das reuniões
perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história artís noturnas do mesmo dia irem esmorecendo na rua Lopes Chaves.
tica do país registra. A socieda de da rua Du qu e de Cax ias era mais nume rosa e
Mas 11a intriga burguesa escaudalizadíssima, a nossa variegada. Só em certas festas especiais, no salão moderno,
“ orgia” não e ra apenas intelectu al... O que não disseram, 0 construído nos jardins do solar e decorado por Lasar Segall,
que não se .contou das nossas festas. Cham panha com eter, o grupo se tornava mais coeso. Também aí 0 culto da tradi
vícios inventadíssimos, as almofadas viraram “ coxin s” , criaram ção era firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de
toda u ma semânt ica do mald izer... No ent anto , quando n ão cunho afrobrasileiro, aparecia em almoços e jantares perfeitís
foram bailes públicos (que foram 0 que são bailes desenvoltos
simos de composição. E conto entre a s minhas maio res ventu
de alta sociedade), as nossas festas dos salões modernistas eram ras admirar essa mulher excepcional que foi Dona Olívia Gue
as mais. inocentes brincadeiras de artistas que se pode imaginar. des Penteado. A sua discreção, 0 tato e a autoridade prodigiosos
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com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão hetero tendiam construir, formavam núcleos respeitáveis, não tem
gênea que se chegava a <ela, atra ída p elo seu prestígio, a rtistas, dúvida, mas de existência limitada e sem verdadeiramente ue-
políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparável. 0 seu sal ão, nhum sentido temporâneo. Assim Plini o Salgado q ue, vivendo
que também durou vários anos, teve como elemento principal em São Paulo, era posto de parte e nunca pisou os salões.
de dissolução a efervecên cia que estava preparan do 1930. A Graça Aranha também, que sonhava construir, se atrapalhava
fundação do Partido Democrático, o ânimo político eruptivo muito entre nós; e nos assombrava a incompreensão ingênua
que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-os para os com que a “ gente séria” do grupo de “ Festa” , tomava a sé rio
extremismos de direita ou esquerda, baixara um malestar sobre as nossas blagues e arremetia contra nós. Não. O nosso sen
as reuniões . Os democráticos foram se afastando. Por outro tido era especificamente destruidor. A aristocracia tradi
lado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre as cional nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa ge-
pessoas da roda: e ainda estava muito sem vício, muito- desin minação de destino — também ela já então autofagicamente
teressado, pra aceitar acomodações. Sem nenhuma publicidade, destruidora, por não ter mais uma significação legitimável.
mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminar Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio
aos poucos o seu salão modernista. e sempre nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de
O último em data desses salões paulistas foi o da alameda ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu.
Barão de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila. Os italianos, alemães, os israelitas se faziam de mais guardado
Não tinha dia fixo, mas as festas eram quase semanais. Du res do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais...
rou pouco. E não teve jamais o encanto das reuniões que fa- Mas nós estávamos longe, arrebatados pelos ventos da des
ziamos antes, quatro ou cinco artistas, no antigo ateliê da adrni- truição. E fazíamos ou preparávamos especialmente pela fes
ravel pintora. Isto foi pouco depois d a Sema na, quan do fixa ta, de que a Semana de Arte Moderna fôra a primeira. Todo
da na compreensão da burguesia, a existência de uma onda esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós
revolucionária, ela principiou nos castigando com a perda de tempo de festa, de cultivo imoderado do prazer. E si tamanha
alguns emprêgos. Algu ns estávamos quase literalmente se m festança diminuiu por certo nossa capacidade de produção e
trabalho. Então iamos para o ateliê da pintora, brincar de serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos diver
arte, dias inteiros. Mas dos três s alões aris tocráticos, Tarsila timos. Salões, festiva is, bailes célebres, semanas passadas em
conseguiu dar ao dela uma significação de maior independên grupo nas fazendas opulentas, sêmanas-santas pelas cidades
cia, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, che
liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de rique gadas à Baía, passeios constantes ao passado paulista, Soro
za e tradição no ambiente, que não era possível nunca evitar caba, Parnaíba, It ú . . . Era ainda o caso do baile so bre os
um tal ou qual constrangimento. No de Tarsila jamais senti vulc ões. . . Dout riná rios, na ebriez de mil e uma teorias, sal
mos isso. O mais gostoso dos nossos salões aristocráticos. vando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consu
E foi da proteção desses salões que se alastrou pelo Brasil míamos, e a nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do
o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu prazer.

sentido
inúmerosverdadeiramente
processos e idéiasespecífico. Porque, modernista
novas, o movimento embora lançando
foi O movimento
fase verd adeiramentdee Inteligência
“ modernist que representámos,
a” , não na sua
foi o fator das mu
essencial mente destruidor. Até dest ruidor de nós mesm os, danças político-sociais posteriores a ele no Brasil. Foi essen
porque o pragmatismo das pesquisas sempre enfraqueceu a li cialmente um pre par ado r; o> criador de um estado-de espírito
berdade da criação. Essa a verdade verdadeira. Enqua nto revolucionário e de um sentime nto de arrebentação. E si nu
nós, os modernistas de São Paulo, tínhamos incontestàvelmen- merosos dos intelectuais do movimento se dissolveram na po
te uma repercussão nacional, éramos os bodes espiatórios dos lítica, si vários de nós participamos das reuniões iniciais do
passadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do Bonfim dos Partido Democrático, carece não esquecer que tanto este como
novos do país todo, os outros modernos de então, que já pre 1930 eram ainda destruição. Os movimentos espirit uais prece
24 2 MAR.ro DE ANDEA DE ASPECTOS DA LITERAT URA BRASILEIRA 24 3

dem sempre as mudanças de or dem soci al. 0 movimento soc ial Carlos Gomes, e até mesmo de um Almeida Junior, eram epi
de destruição é que prin cipiou com o P. D. e 19 30. E no en sódicos como realidade do espírito. E em qualquer ca so, sem
tanto, é justo por esta data de 1930, que principia para a Inte pre um individualismo'.
ligência brasileira uma fase mais calma, mais modesta e quoti Quanto ao direito de pesquisa estética e atualização uni
diana, mai s proletária, p or assim dizer, de co nstrução. À versal da criação artística, é incontestável que todos os movi
espera que um dia as outras formas sociais a imitem. mentos históricos das nossas artes (menos o Romantismo que
E fo i a vez do salão de Tarsila se acabar. Mil novecentos comenta rei adia nte) semp re se basearam no academismo. Com
e trin ta. . . Tudo estourava, políticas, famílias, casais de alguma excepção individual rara, e sem a menor repercussão
artista s, estéticas, amizades profund as. O sentido destrutivo coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente
e festeiro do movimento modernista já não tinha mais razão- no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas jã consagradas, s e
-de-ser, cumprid o o seu destino le gítimo. Na rua, o povo amo eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de
tinado grita va: — Getúlio! Getú lio!. .. Na sombra, Plinio atualidade. E foi dentro desse ac ademismo inelutável que se
Sa lga do . pintava de verde a sua megalomania de Esperado. realizaram nossos maiores, um Aleijadinho, um Costa Ataíde,
No norte, atingindo de salto as nuvens mais desesperadas, outro Cláulio Manuel, Gonçalves Dias, Gonzaga, José Maurício, Ne-
avião abria asa s do terreno incerto da bagaceira. Outros pomuceno, Aluísio. E até mesmo um Alvares de Azevedo,
abriam mas eram as veias pra manchar de encarnado as suas até mesmo um Alphonsus de Guimaraens.
quatro paredes de segredo, Mas nesse vulcão, agora ativo e Ora o nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no
de tantas esperanças, já vinham se fortificando as belas figu mais desprezível dos lemas mode rnistas, “ Não há escolas !” , e
ras mais nítidas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do
Frederico Schmidt, os Otávio de Faria e os Portinari e os Ca movimento. E si não prejudic ou a sua ação espiritual sobre o
margo Guarnieri. Que a vida terá que imitar qualquer dia. país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como
Não cabe neste discurso de carácter polêmico, o processo das próprias id éia s.. . Já é tempo d e observar, não o que um
analítico do movimento modernista. Emb ora se integrassem Au gu sto Mey er, um Tasso da Sil veira e um Car los Dr um mo nd
nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito mo de Andrade têm de diferente, mas o que têm de igual. E o
dernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da que nos igualava, por cima dos nossos dispautérios individua
Inteligên cia nacional desse período, foi destruidor. Mas esta listas, era justamente a organicidade de um espírito atualizado,
destruição, não apenas continha todos os germes da atualidade, que pesquisava já irrestritamente radicado à sua entidade co
como era uma convulsão profundíssima da realidade brasilei letiva nacional. Não apenas acomodado à terr a, mas gostosa
ra. O que caracteriza esta realidade que o movimento moder mente radicad o em sua realidade. O que não se deu sem algu
nista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamen ma patriotice e muita falsificação...
tais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização Nisto as orelhas burguesas se alardearam refartas por
da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma debaixo da aris tocrát ica pel e do leão qu e nos vestira.. . Por
conciência criadora nacional. que, com efeito, o que se observa, o que caracteriza essa radica-
Nada disto representa exatamente uma inovação e de tudo ção na terra, num grupo numeroso de gente modernista de uma
encontramos exemplos na histó ria artística do país. A noVida- assustadora adaptabilidade política, palradores de definições
de fundamental, imposta pelo movimento, foi a conjugação nacionais, sociólogos otimis tas, o que os caracteriza é um co nfo r
dessas três normas num todo orgânico da conciência coletiva, mismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado nos melhores, mas
E si, dantes, nós distiguimos a estabilização assombrosa de na verdade cheio de uma cínica satisfação . A radicação na
uma conciência nacional num Gregório de Matos, ou, mais na terra, gritada em doutrinas e manifestos, não passava de um
tural e eficiente, num Castro Alves: é certo que a nacionalida conformismo acomodatício. Menos que radicação, uma canto
de deste, como a nacionalistiquice do outro, e o nacionalismo de ria ensurdecedora, bastante acadêmica, que não raro torn ou se
244 MA RI O DE AN DR AD E ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 24 5

um porque-me-ufan ismo larvar. A verdadeira conciência da malidade de língua culta e escrita, estamos em situação inferior
terra levava fatalmente ao não-eonformismo e ao protesto, à de cem anos atrás. A ignorância pessoal de vários fez com
como Paulo Prado com o “ Retrato do Bras il” , e os vasqueiros que se anunciassem em suas primeiras obras, como padrões
“ anjo s” do Partid o Democrá tico e do Integralismo. E 1930 excelentes de brasilei rismo estilístico. Era aind a o mesmo
vai s"r t ambém n m protesto! Mas par a um número vasto de caso dos românticos: não se tratava duma superação da lei
modernistas, o Brasil se tornou uma dádiva do céu. Um céu portuga, mas duma ignorância dela. Mas assim que alguns
bastante gov erna me nta l... Graça Aranha, sempre desacomo- desses prosadores se firmaram pelo valor pessoal admirável
dado em nosso meio que êle não podia sentir bem, tornou-se o que possuiam (me refiro à geração de 30), principiaram as
exegeta desse nacionalismo conformista, com aquela frase de veleidades de escrever certinho. E é cômico observar que, ho
testável de não sermos “ a câmar a mortuária de Portu gal ” . je, em alg uns dos nosso s mais fort es estilistas surg em a cada
Quem pensava nisso! Pelo con trá rio: o que ficou dito foi que passo, dentro duma expressão já intensamente brasileira,
não nos incomodava nada “ coincidir” com Portugal, poi s o im lusitanismos sintáxicos ridículos. Tão ridículos que se tornam
portante era a desistência do confronto e das liberdades falsas. verdadeiros erros de gramá tica! Noutros, e sse reapor tuguesa-
Então nos xingaram de “ primitivistas”. mento expressional ainda é mais precário: querem ser lidos
O estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi alem-mar, e surgiu o problema econômico de serem comprados'
a pesquisa da “ língua brasileira” . Mas foi talvez boato fals o. em Portugal. Enquan to isso, a melhor intelectualidade lus a,
Na verdade, apesar das aparências e da bulha que fazem agora numa liberdade esplêndida, aceitava abertamente os mais exa
certas santidades de última hora, nós estamos ainda atualmente gerados de nós, compreensiva, sadia, mão na mão.
tão escravos da gramática lusa como qualquer port uguês. Não Teve também os que, desaconselhados pela preguiça, re
liá dúvida nenhuma que nós hoje sentimos e pensamos o solveram se despreocupar do pro ble m a.. . São os que empre
quantwm satis brasileiramente. Dig o isto até com certa malirt gam anglieismos e galicismos dos mais abusivos, mas repudiam
conia, amigo Ma cunaím a, meu irmão. Mas isso não é o bas qualquer “ me parece” por a rtificial! Outros ; mais cômico s
tante para identificar a nossa expressão verbal, muito embora ainda, dividiram o problema em dois: nos seus textos escrevem
a realidade brasileira, mesmo psicológica, seja agora mais forte gramaticalmente, mas permitem que seus personagens, falan
e insolúvel que nos tempos de José de Alencar ou de Machado do, “ errem” o portuguê s. Assim, a . .. culpa n ão é do escritor,
de Assis . E como negar que est es também pensavam brasi
é dos personagens! Ora não h á solução mais incongruente em
leiramente? Como negar que no estilo de Machado de As sis,
sua aparência conciliatória. Não só põe em foco o problema
luso pelo ideal, intervem um quid familiar que os diferença
do erro de português, como estabelece um divórcio inapelável
verticalmente de um Garret e um Ortigão? Mas si nos român
entre a língua falad a e a língua escrita — bobagem bêbada
ticos, em Alvares de Azevedo, Varela, Alencar, Macedo, Castro
pra quem s ouber um naco de filologia. E tem ainda as garças
Alv es, há unia ide ntida de bra silei ra que nos par ece bem ma ior
brancas do individualismo que, embora reconhecendo a legiti
que a de Brás Cubas ou Bilac, é porque nos românticos che
gou-se a um “ esquecimento” da gramática portuguesa, que midade da língua nacional, se recusam a colocar brasileiramen
permitiu muito maior colaboração entre o ser psicológico e sua te um pronome, pra não ficarem parecendo com Fula no ! Estes
expressão verbal. ensimesmados
tado esquecem
por muitos, que o problema
muitos ficavam é coletivo
se parecendo com oeBrasil!
que, si ado
O espírito modernista reconheceu que si vivíamos já de
nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento A tud o isto se aju nta va quase deci sóri o, o interêsse e c o -'
de trabalho para que nos expressássemos com identidade. nômico de revistas, jornais e editores que intimidados com algu
Inventou-se do dia prà noite a fabulosí ssima “ língua brasilei ma carta rara de leitor gramatiquento ameaçando não comprar,
ra” . Mas ainda era ce do ; e a força dos ele mentos contrários, se opõem à pesquisa lingüística e chegam ao desplante de corri
principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, re gir artigos as sinados. Mas, morto o metropolitano Pedro I I,
duziu tudo a manifestações individuais. E hoje, c omo nor quem nunca respeitou a inteligência neste país!
24 6 M A R T0 DE A N DR A D E ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 24 7

Tudo isto, no entanto, era sempre estar com o problema cas patrioteiras, o trabalho honesto de fornecer aos artistas
na mesa. A desistênc ia grande foi criarem o mito do “ escrever uma codificação das tendências e constâncias da expressão
naturalmen te” , não te m dúvida, o mais feiticeiro dos mitos. lingüística nacional. Mas êles recuam diante do trabalho util ,
No fundo, embora não conciente e deshonrosa, era uma desho- é tão mais fácil ler os clássi cos! Preferem a ciencinha de ex
nestidade como qualquer outr a. E a maioria, so b o pretexto plicar um êrro de copisía, imaginando uma palavra inexistente
de escrever naturalmente (incongruência, pois a língua escrita, no latim vulgar. Os mais avançados vão at é aceitar timida
embora lógica e derivada, é sempre artificial) se chafurdou na mente que iniciar a frase com pronome obliquo não é “ mais”
mais anti lógic a e antin atura l das escritas. São uma lástima. êrro no Brasil. Mas confessam não escre ve r.. . isso, pois não
Nenhum deles deixará de f alar “ naturalmente” um “ Está se seriam “ sinceros” com o que beberam no leite materno. Be-
vendo” ou “M e deixe”. Mas pra escreve r.. . com naturalida beram des-horm ônios! Bolas para os fi lól og os!
de, até inventam os socorros angustiados das conjunções, pra Caberia aqui também ç > repúdio dos que pesquisaram so
se sairem com um “ E se está ven do” que salva a pátria da bre a língua es crit a na cion al... Preocupados pr agmàtica-
retoriquice. E é umà delícia c onstatar q ue si afirmam escre mente em ostentar o problema, praticaram tais exagêros de
ver
não brasileiro,
assinasse não
com tem uma só efrase
integridad na ciodeles
na l...quelusa.
qualquer luso tifi
Se iden tornar pra sempre'odiosa a língua brasi leir a, Eu sei: talve z
neste caso ninguém vença o escritor dest as linhas. Em p ri
cam àquele deputado mandando fazer uma lei que chamava' meiro laga r, o escritor destas linhas, com alguma -faring ite,
de “ língua brasi leira” à l íngua naci onal. Pront o: esta va re vai passando be m, muito obrigado. Mas é certo que jamais
solvido o problema! Mas como inco ntestàvelmente s entem e exigiu lhe segui ssem os brasilei rismos violentos. Si os prati-
pensam com nacionalidade, isto é, numa entidade ameríndio- ticou (um tempo) foi na intenção de por em angústia aguda
-afro-luso-latino-americano-anglo-franco-etc., o resultado é essa uma pesquisa que julga va fundamental. Mas o problema pr i
linguagem ersa tz em que se desampar am — triste moxinifad a meiro não é acintosament e vocabular, é sintáxico. E afirmo
moluscoide sem vigor nem caracter. que o Brasil hoje possue, não apenas regionais, mas generali
Não me refiro a ninguém não, me refir o a centenas. Me zadas no país, numerosas tend ências e constâncias sintáxica s
refiro justamente aos honestos, aos que sabem escrever e pos que lhe dão nat ureza característica à linguagem. Mas isso
suem técnica. São eles que provam a inexistência duma “ lin- decerto fieará para outro futuro movimento modernista, amigo
gua bra sileira” , e que a colocação do mito no campo das pes José de Alencar, meu irmão.
quisas modernistas foi quase tão prematura como no tempo de Mas como radicação da nossa cultura artística à entidade
José de Alencar. E si os chamei de inconcientemente desho -
brasileira, as compensações são muito numerosas pra que a
nestos é porque a arte, como a ciência, como o proletariado não atual he sitação lingüística se torne falha grave. Como expres
trata apenas de adquirir o bom instrumento de trabalho, mas são nacional, é quase incrível o avanço enorme dado pela mú
impõe a sua constante reverificação. 0 operário não compra sica e mesmo pela pintura, bem como o processo do Ho mo
a foice apenas, t em de afia-la dia por dia. 0 m édico não fica
brasileiro realizado pelos nossos romancistas e ensaístas atuais.
110 diploma, o renova dia por dia no e studo. Será que a arte
Espiritualmente o progresso mais curioso e fecundo é o esque
nos exime dêste diarismo profissional? Não bast a criar o des
cimento do amadorismo naeionalista e do segmentarismo re
pudor
bra do da “ naturalidade”
deus novo. Saber , escrever
da “ sinceridade” e rebem;
está muito ssonar
não àé som
mé gional. A atitude do espírito se transform ou radicalmente e
talvez nem os moços de agora possam compreender essa mudan
rito, é dever primário. Mas o problema verdadeiro do artista ça. Tomados ao acas o, romances como os d e Emil Farhat,
não é êsse: é escrever milhor. Toda a história do profissiona-' Fran Martins ou Teimo Vergara, ha vinte anos atrás seriam
llsmo humano o prova. Fica r no aprendid o não é ser na tur al: classificados como literatura regionalista, com todo o exotismo
é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo. e o insolúvel do “ caracte rístico” . Ho je quem sente mais isso?
A pesq uisa era ing ent e po r demais. Cab ia aos fil ólo go s A atitud e espi ritu al com que lemos êsses livr os não é ma is a da
brasileiros, já criminosos de tão vexatórias reformas ortográfi- contemplação curiosa, mas a de uma participação sem teoria
24 8 M A R r O DE A N D R A D E
ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 249

nacionalista, uma participação pura e simples, não dirigida, Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa
.expontânea. estétiea, creio não ser possível qualquer contradição: é a vitó
ria grande do movimento no camp o da arte. E o mais cara c
É que realizamos essa conquista magnífica da descentra
lização intelectual, hoje cm contraste aberrante com outras ma terístico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da
nifestações s ociais do paíp. Hoje a Côrte, o fulg or das du as Semana de Arte Moderna, se fixou exatamente naquela lei
cidades brasileiras de mais de um milhão, não tem nenhum estético-técnica do “ fazer milh or” , a que aludi, e não como um
sentido intelectual que não sej a meramente e statísti co. Pelo abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi
menos quanto à literatura, única das artes que já alcançou o do movimento moder nista. Talvez seja o atual, realmente, o
estabilidade normal no país. As outras são demasiado dispen primeiro movimento de independência da Inteligência brasi
diosas pra se normalizarem numa terra de tão interrogativa leira, que a gente po ssa ter como legítimo e indiscutível. Já
riqueza pública como a nossa. O movimento moder nista, pon agora com todas as probab ilidades de per manência. Até o
do em relevo e sistematizando u ma “ cultu ra” nacional, exigiu Parnasianismo, até o Simbolismo, até o Impressionismo inicial
da Inteligência estar ao par do que se passava nas numerosas de um Vil a Lobos, o Brasil jamais pesquisou (como conciência
Cataguazes . B si as cidades de primeir a grandeza fornecem coletiva, entenda-se), nos campos da criação est ética. Não
facilitações publicitárias sempre especialmente estatísticas, é só importávamos técnicas e estéticas, como só as importávamos
impossível ao brasileiro nacionalmente culto, ignorar um Erico depois de certa estabilização na Europa, e a maioria das vezes
Veríssim o, um Cir o dos An jos , um Cam arg o Gua rnieri, na cio já acad emiza das. Er a ain da um com ple to fen ômeno de col ô
nalmente gloriosos do canto da s suas províncias. Basta com nia, imposto pela nossa escravização econômico-social. Pior
parar tais criadoreb com fenômenos já históricos mas idênticos, que isso: êsse espírito acadêmico não tendia para nenhuma li
um Alphonsus de Guimaraens, um Amadeu Amaral e os re bertação e para uma express ão própria. E si um Bilac da
gionalistas imediatamente anteriores a nós, para ve rif ica r' a “ Via Lactea” é maior que to do o Lecomt e, a. . . culpa não é
convulsão fundamental do pro blema. Conhecer um Alcides de Bilac. Pois o que êle almejava era mesmo ser parnasiano,
Maia, um Carvalho Ramos, um Teles Junior era, nos brasilei senhora Serena Forma.
ros de ha vinte anos, um fato individualista de maior ou me
nor “ civilização” . Conhec er um Gulhermin o Cesar, um Viana Essa normalização do espírito de pesquisa estética, anti-
Moog ou Olívio Montenegr o, hoje é uma exigênci a de “ cultu acadêmica, porém não mais revoltada e dsstruidora, a meu ver,
ra ” . Dantes, e sta exigência esta va rel eg ad a.. . aos histo é a maior manifestação de independência e de estabilidade na
riadores. cional que já conquistou a Inteligência brasileira. E como os
A prá tic a pr in cipa l desta descent rali zaç ão da In tel ig ênc ia movimentos do espírito precedem as manifestações das outras
se fixo u no movimento nacional da s editoras provincianas. E formas da sociedade, é fácil de perceber a mesma tendência de
si ainda vemos o caso de uma grande editora, como a Livraria liberdade e conquista de expressão própria, tanto na imposição
José Olímpio, obedecer à atração da mariposa pela chama, indo do verso-livre antes de 30, como na “ marcha para o Oeste”
se apadrinhar com o prestígio da Côrte, por isto mesmo êle se posterior a 30; tanto na “ Bagaceira” , no “ Estrangeiro” , na
torna mais comprova tório. Porque o fato da Livraria José “ Negra Fu lô” anteriores a 30, como no c aso da Itabira e a
Olímpio ter cultamente publieado escritores de todo o país, nacionalização das indústrias pesadas, posteriores a 30.
não a caracter iza. Nisto ela apenas se iguala às outras editoras
Eu sei que ainda existem espíritos coloniais (é tão fácil a
também cultas de província, uma Globo, uma Nacional, a
erudição!) só preocupados em demonstrar, que sabem mundo à
Martins, a Guaíra. O que exatamente caracteriza a editora da
rua do Ouvidor — U mbigo do Bras il, como diria Paulo Prado fundo, que nas paredes de Portinari só enxergam os murais de-
— é ter se tornado, por assim dizer, o órgão oficia l das oscila Rivera, no atonalismo de Francisco Mignone só percebem
ções ideológicas do país, publicando tanto a dialética integra Schoemberg, ou no “ Ciclo da Cana de Açúcar*’ , o romamfleuve
lista como a política do sr. Francisco Campos. dos franceses...
25 0 MABI O D E ANDR ADE ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 25 1

O problema não é complexo mas seria longo discuti-lo aqui. influ iu na invenção e na temática cubist a. Assim como o
Me limitarei a propor o dado principal. Nós tivemos no Bra cultíssimo roman-fleuve e os ciclos com que um Otávio de Paria
sil um movimento espiritual (não falo apenas escola de arte) processa a decrepitude da burguesia, ainda, são instintos e for
que fo i absolutamente “ necessário” , o Romantismo. Insis to: mas funcionalmente populares, que encontramos nas mitolo
não me refiro apenas ao romantismo literário, tão acadêmico gias cíclicas, nas sagas e nos Kalevalas e Nibelungos de todos
como a importação inicial do modernismo artístico, e que se os povos. Ja um autor esc reveu, como conclusão condenat ória,
poderá comodamente datar de Domingos José Gonçalves de que “ a estética do Modernis mo ficou indefinivel” . .. Pois essa
Magalhães, como o nosso do expressionismo de Anita Malfatti. é a milhor razão-de-se r do Modernism o! Ele não era uma
Me refiro ao “ espírito” românti co, ao espírit o revolucionári o estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito
romântico, que está na Inconfidência, no Basilio da Gama do revoltado e revolucionário que, si a nós nos atualizou, sistema
“ Uraguai” nas liras de Gonz aga como na s “ Cart as Chilena s” tizando como constância da Inteligência nacional o direito
de quem os senhore s quiser em. Este espírito preparou o esta antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolu
do revolucionário de que resultou a independência política, e cionário das outras manifestações sociais do país, também fez
teve como padrão
brasileira. bem briguento
O espírito a primeira
revolucioná tentativa detãolíngua
rio modernista, necessá isto
que mesmo_ no restonova
uma civilização do nascerá.
mundó, profetizando estas guerras de
rio como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30
E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade
em diante, e também teve como padrão barulhento a segunda social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma indepen
tentativa de nacionalização da linguagem. A similaridade é
dência, um direito às suas inquietações e pesquisas que não
muito forte. tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana,
Esta necessidade espiritual, que ultrapassa a literatura ele nem pode imaginar que conquista enorme representa.
estética, é que diferença fundamentalmente Romantismo e Mo Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo
dernismo, das o utras esc olas de arte bras ileiras. Estas foram de um Lourenço Fernandes, contra a arquitetura do Ministério
todas essencialmente acadêmicas, obediências culturalistas que da Educação, contra os versos “ incompreensíveis” de um Mu
denunciavam muito bem o colonialismo da Inteligncia nacional. rilo Mend es, contr a o perso nalis mo de um Gu ign ard ?... Tu
Nada mais absurdamente imitativo (pois si nem era imitação, do isto são hoje manifestações normais, discutíveis sempre,
era escravidão!) que a cópia, no Brasil, de movimentos estéti mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrá
cos particulares, que de forma alguma* eram universais, como o rio, são os próprios elementos governamentais que aceitam a
culteranismo ítalo-ibérico setecentista, como o Parnasianismo, realidade de um Lins do Rego, de um Vila Lobos, de um Almir
como o Simbolismo, como o Impressionismo, ou como o Wagne de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo das predestina
rismo d e um Leopoldo Miguez. São superfectações cultura ções. Mas um Fla vio de Carvalho, mesmo com as suas exp e
listas, impostas de cima pra baixo, de proprietário a proprie riências numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas
dade, sem o menor fundamento nas fôrças populares. D ’aí um Camargo Guarnieri mesmo em luta com a incompreensão
uma base deshumana, prepotente e, meu Deus! arianizante que, que o persegue, um Otávio de Faria com a aspereza dos casos
si prova o imperialismo dos que com ela dominavam, prova a que expõe, um Santa Rosa, jamais não poderão suspeitar o a
sujeição dos que com e la eram dominados. Ora aquela base que nos sujeitamos, pra que êles pudessem viver hoje aberta-
humana e popu lar das pesquisas ■'estéticas é fací lim o en cont rar tamente o drama que os dig nifi ca. A váia acêsa, o insulto
no Romantismo, que chegou mesmo a retornar coletivamente público, a carta anônima, a perseguição fin an cei ra ... Mas
às fontes do povo e, a bem dizer, criou a ciência do folclore. E recordar é quase exigir simpatia e estou a mil léguas disto.
mesmo sem lembrar folclore, no verso-livre, no cubismo, no E me cabe finalmente falar sobre o que chame i de “ atuali
atonalismo, no prèdomínio do ritmo, no superrealismo miticò, zação da inteligência artística brasileira” . Com efe ito : não se
no expressionismo, iremos encontrar essas mesmas bases popu deve confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois
lares e humanas. E até primitivas, como a ar te negra que esta lida com formas, com a técnica e as representações da be
252 MARIO DE ANDEADE ASPECTOS DA LITEEA TUBA BEASILEIEA 25 3

leza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que sinão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos se fa
isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão zendo, não me levaria a esta confissão bastante cruel, de per
e uma fôrça interessada da vida. ceber em quase toda a minha obra a insuficiência do absten-
A pr ov a mais evi den te desta distin ção é o fam oso pro ble ma cionismo. Fran cos, dirig idos , muitos de nós demos às nossas
do assunto em arte, no qual tantos escritores e filósofos se obras uma caducidade de combate. Estava certo, em pri ncí
emaranham. Ora não há dúv ida nenhuma que o assunto não pio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis super
tem a menor importância para a inteligência es tética. Chega ficiais dp fantasmas. Deveríamos ter inundado a caduci
mesmo a não existir para ela. Mas a inteli gência estética se dade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo,
manifesta por intermédio de uma expressão interessada da so de maior revol ta contra a vida como está . Em v ez : fomos
ciedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutu
imediatista e maior que a criação hedonística da beleza . E car os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura.
dentro dessa funcionalidade humana da arte é que o assunto E si agora percorro a minha obra já numerosa e que representa
adquire um valor primordial é representa uma mensagem im uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a más
prescindível. Ora, como atualizaç ão da inteligência artística cara
lhe fizdo tde
empo e esbofetea-la
longe c omo ela
umas caretas. Masmerece.
isto, a Quando
mim, não muito
me
é que o movimento modernista representou papel contraditório
e muitas vezes gravemente precário. satisfaz.
At ua is, atual íssimos, univers ais, origin ais mesmo po r Não me imagino polí tico de ação. Mas nós estamos
vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do vivendo uma idade política do homem, e a isso eu tinha que
período milhorme nte chamado “ modernista”, fomos, co m algu servir. Mas em síntese, eu só me percebo, feito um Ama dor
mas excepções nada eonvincentes, vítimas do nosso prazer da Bueno qualquer, faland o “ não quero” e me isentando da atua
vida e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudá lidade por detrás das portas contemplativas de um convento.
Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, bri
vamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude
gando a pau por ideologias e ganhando os louros faceis de um
interess ada diante da vida contemporânea. E isto era o prin
xilind ró. Tudo iss o não sou eu nem é pra mim. Mas estou
cipa l! Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente
convencido de que devíamos ter nos transformado de especula
confissional, que terminarei êste discurso falando mais direta
mente de mim. Que se reconheçam no que e u vou dizer o s que tivos e m especuladores. Há sempre jeito de escorregar num
ângulo de visão, numa escolha de valores, no embaçado duma
o puderem.
lágrima que avolumem ainda mais o insuportável das condi
Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha ções atuais do mundo. Não. Virâmos abtencionistas abstê
obra representa uma dedicação feliz a problemas do meu tem mios e transcendentes (1 ). Mas por iss o mesmo que fui sin
po e minha terra. Aju de i coisas, maquinei coisas , fiz coi sas, ceríssimo, que desejei ser fecundo e joguei lealmente com todas
smuita cois a! E no entanto me sobra agora a s entença de que as minhas cartas à vista, alcanço agora esta conciência de que
fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram duma fomos bast ante inat uais. Vaidade, tudo vaid ad e...
ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo,
Tudo o que fizemos. .. Tudo o que eu fiz foi espec ial
sadiamente banhado
de de
queamor
humano, chego noem declínio
vida à convicção faltou hum anidade mim. daMeu mente uma cilada da minha felicidade pessoal e da festa em
que vivemos. É aliás o qu e, com decepção açucarada, no s
aristocracismo me puniu- Minhas intençõe s me enganaram.
explica historicamente. Nós éra mos os filhos finais de uma
Vítim a d o meu ind ivi dua lismo, pr oc nr o em v ão nas minh as civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do
obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais prazer individual represa as fôrças dos homens sempre que
temporânea, uma dôr. mais vi ri l da vida. Não tem. Tem mais uma idade morre. E já mostrei que o movimento modernista
é uma antiquada ausência de realidade e m muitos de nós. Es
tou repisando o que já disse a um moço . . . E outra po isa (1) “ Uns verdadei ros inconci entes” , como já fa lei uma vez.
25 4 MAB IO D E ANDR ADE ASPECTOS DA LITERA TURA BRASILEIRA 25 5

foi destruido r. Muitos porém ultr apassámos essa fase destrui- Ho mo Im be cil is acabará entregando os pontos à grandeza do
dora, não nos deixámo s fica r no seu espírito e igualámos nosso seu destino.
passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna
novas. Mas apes ar das sinceras inte nções boas que dirigiram não devemos servir de exe mplo a ninguém. Mas podemos ser
a minha obra e a deformaram muito, na verdade, será que não vir de lição. O homem at ravessa uma fase integralmente po
terei passeado apenas, me iludind o de existir ? . . . É certo que lítica da humanidade. Nunca jamais êle foi tão “ momentâ
eu me sentia responsabilizado pelas fraquezas e as desgraças neo” como agora. Os abstencioni smos e os valores eternos
dos homens. É certo que pretendi regar minha obra de orva podem ficar pra depois (1 ). E apesar da nossa atualidade, da
lhos mais generosos, suja-la nas impurezas da dôr, sair do nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não
limbo “ne trista ne lieta” da minha felicidad e pessoal. Mas ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participámos: o
pelo próprio exercício da felicidade, mas pela própria altivez amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência
sensualíssima do individualismo, não me era mais possível re- mesma da nossa idade.
nega-los como um êrro, embora eu chegue um pouco tarde à Si de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfa
convicção da sua mesquinhez. ção que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira
A ún ica obser vaçã o que po de tra zer alg uma com pla cên cia do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem
para o que eu fui, é que eu estava enganado. Julgav a since a fazer arte, c iências , ofícios. Mas não fiquem apenas nisto,
ramente cuida r mais da vida que de mim. Deforme i, ninguém espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a
não imagina quanto, a minha obra — o que não quer dizer que multidão passa r. Marchem com a s multidões.
si não fize sse isso, ela fos se milh or.. . Aband onei, traição Ao s espiões nun ca fo i necessária essa “ lib erd ad e” pel a
conciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo que fun qual tanto se grita. Nos períodos de maior escravização do
damentalmente não sou. Mas é que eu decidira impreg nar indivíduo, Grécia, Egito, artes e ciências não deixaram de
tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de florescer. Será que a liberdade é uma bobagem ? . . . Será
vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer que o dire ito é uma boba ge m !... A vida humana é que é
estético, a beleza divina. algu ma coisa a mais que ciências, artes e profiss ões. E é nessa
vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos homens.
Mas eis que chego a êste paradoxo irres pirá vel: Tendo A lib erd ad e não é um prê mio, é uma sançã o. Que ha-d e vir .
deformado toda a minha obra por um anti-individualismo diri
gido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um
hiperindividu alismo implacá vel! E é melancólico chegar as (1) Sei que é impossível ao homem, nem êle deve abandonar os valo
res eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que
sim no crepúsculo, sem contar com a solidariedade de si mesmo. numa idade humana como a que vivemos, cuidar dêsses valores apenas e se
Eu nã o posso estar satisfe ito de mim. O meu passado não é refugiar neles em livros de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo
mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado . desonesto e desonroso como qualquer outro . Uma covardia como qualquer
outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também.
Mu dar? Acrescen tar? Mas como esquecer que estou na
rampa dos
todos... cincoenta
memórias anos e que os meusExgestos
musculares?... agora bonis
são
omnibus
quae já
homini tribu
it natura, nullum melius ...
sseetempestiva mort
e
O terrível é que talvez ainda nos seja mais acertada a discre-
ção, a virarmos por aí cacoeteiros d e atualidade, macaqueando
as atuais aparências do mundo. Aparência s que levarão o ho
mem por certo a maior perfeição de sua vida. Me recuso a
imaginar na inutilidade das tragédias contemporâneas. O

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