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2013v13n20p5 5
Resumo Abstract
Este trabalho apresenta como objeto de leitura e The object for reading and analysis in this study is
análise um conjunto de revistas de poesia que a set of poetry magazines that has poets as the
circularam ou ainda circulam no Brasil, na forma main editors and were or are still published in
impressa, a partir da última década do século XX, Brazil since the last decade of 20th century.
tendo poetas como seus editores. Prática coletiva Collective practice and/or magazines of a single
e/ou revistas de um homem só? Singulares e/ou man? Are they singular and/or plural? Existences
plurais? Existências encerradas em si mesmas e/ shut in themselves or participants in a shared
ou partícipes de uma rede compartilhada de chain of poetic experiences, objects and objec-
experiências, objetos e objetivos poéticos? A pro- tives? The purpose of this study is to analyze the
posta é analisar a hipótese de que as revistas hypothesis that the literary magazines may be
literárias podem ser consideradas como uma considered as a condition of possibility for the
condição de possibilidade para a política da lite- politics of literature (Rancière), or, in other words,
ratura (Rancière), ou, em outros termos, como as a potential space for conflicts of interests and
espaço potencial de litígio (campos de força) e, ao contentions (force fields) and, at the same time,
mesmo tempo, como constituição de formas espe- as constitution of specific forms of community that
cíficas de comunidade que se inserem de modo are particularly inserted in the contemporaneity.
peculiar na contemporaneidade. Trata-se, assim, Thus, it is about a non-identification community,
de uma comunidade da não-identificação, uma an inoperative community, without a work or a
comunidade inoperante, sem obra ou projeto de project for production of the single sense, however
produção do sentido único, mas ainda como still as form of exposition to the being-in-common
forma de exposição ao estar-em-comum e como and as opening of significance (Nancy).
abertura do significado (Nancy).
Maria Lucia de Barros Camargo é professora titular de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa
Catarina, coordenadora do Núcleo de Estudos Literários & Culturais e do Programa de Pós-Graduação em
Literatura.
*
Uma versão prévia deste texto foi apresentada na X Jornada Andina de Literatura Latinoa-
mericana, realizada em Cali, Colômbia, em 2012.
1
Esse conjunto, olhado a partir de uma pesquisa histórica, ainda precisa ser estudado.
Pouca coisa é necessária para o início de uma pequena revista. Serão suficientes,
como condições mínimas, uma máquina de escrever de segunda mão, certa
quantidade de papel, e o acesso a algum mimeógrafo. O novo editor poderá, ele
próprio, redigir e distribuir a revista a seus amigos. Pode-se, entretanto, dispen-
der dinheiro em publicações dessa espécie. Na história das pequenas revistas,
têm havido diversas aventuras mal sucedidas, realizadas em tonalidades várias,
2
In: TRILLING, Lionel. Literatura e sociedade. Trad. Rubem Rocha Filho. Rio de Janeiro: Lida-
dor, 1965, p. 113-123. Na edição original, o livro se intitula The liberal imagination (Nova
York: Viking, 1950). Na edição argentina, o título do artigo de Trilling é traduzido como “La
función de la revista literaria” (In: La imaginación liberal. Trad. Enrique Pezzoni. Buenos
Aires: Sudamericana, 1956).
3
WHITTEMORE, Reed. Pequenas revistas. Trad. Anna Maria Martins. São Paulo: Livraria Mar-
tins Editora, 1965. Nos Estados Unidos o livreto foi publicado em 1963, pela University of
Minnesota Pamphlets on American Writers, University of Minnesota Press.
Entramos dous no mesmo dia, 24 de abril de 1890, trazidos pelas mãos de Fer-
reira Araújo. Aquele que entrou comigo já não vive, como já não vive aquele que
nos pôs aqui dentro... Esse companheiro amado era Pardal Mallet: juntos fundá-
ramos A Rua, um jornal vermelho que morreu de “mal de sete... números”, e
6
logo depois viemos colaborar efetivamente na Gazeta.
4
ibidem, p. 9.
5
Não se incluem nesta série revistas institucionais, como é o caso de Poesia sempre, publicada
com regularidade pela Biblioteca Nacional desde inícios dos anos 90, em volumes alentados.
6
DIMAS, Antônio (Org.). Vossa insolência. Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996,
p. 58. É interessante constatar que o jornal é o substituto da revista – de qualquer modo,
Bilac continuava a publicar seus poemas em revistas ilustradas, como a Kosmos, que não faz
parte da série de revistas a que nos referimos aqui.
nem, muito menos, patrocínio empresarial (que interesse tem uma empresa
em anunciar produtos num veículo de baixíssima circulação? Nem mesmo
capital simbólico...). Em seminário sobre revistas literárias realizado em maio
de 2012 na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Jorge Viveiros de Castro
relatava as dificuldades para a vendagem da Inimigo Rumor, talvez a mais
prestigiosa revista de poesia das duas últimas décadas: publicar mais de 500
exemplares é (foi) encalhe certo.
Também não há, na cena cultural brasileira, nenhum periódico como, por
exemplo, o Diário de Poesia, publicado em Buenos Aires desde o final da
década de 80 do século passado, e vendido em bancas de jornal. No Brasil, as
revistas de poesia são vendidas em algumas poucas livrarias. Mas o que se
desconsidera é, talvez, a hipótese de que a efemeridade é própria dessa forma
de veiculação da poesia, é mesmo sua condição de sobrevivência: seu fracas-
so, a morte das revistas, bem como seu ressurgimento como outra, a mesma,
porém diferente, impede a constituição de um sentido coletivo unitário e
autoritário.
É preciso lembrar, porém, que esse movimento não é o observado na
revista Poetry – a magazine of verse, uma little magazine criada em 1912, em
Chicago, nos Estados Unidos, por Harriet Monroe, e que completou em 2012
seu primeiro centenário! E continua sendo publicada. Se tal longevidade des-
monta uma das principais características dessas revistas e, de um certo modo,
poderia retirar a Poetry dos dias de hoje do rol das “pequenas revistas”, essa
mesma longevidade pode ser pensada como a exceção que confirma a regra.
A importância de Poetry para a poesia de língua inglesa é incontestável e está
intimamente ligada a seu correspondente estrangeiro e principal colaborador,
Ezra Pound. Whittemore cita, por exemplo, uma declaração de Williams Car-
los Williams: “Sem essa revista, a poesia, verdadeira ‘avis rara’, seria entre nós
apenas uma reminiscência literária.” 7
Muito voltada desde o início de sua circulação, em 1912, à formação de um
público de poesia, até 1950 era possível ler a frase de Walt Whitman na sua
contracapa: “Para haver grandes poetas é preciso que haja também um gran-
de público” — mesmo que, diga-se, um público numericamente pequeno. De
algum modo, é possível concordar com a ideia de que esse público de poesia
se constitui a partir da existência das revistas de poesia, sejam elas efêmeras
7
WHITTEMORE, Reed. Pequenas revistas, op. cit., p. 15.
8
PERLOFF, Marjorie. Contra as rotinas. In: Sibila. Revista semestral de poesia e cultura. São
Paulo: Ateliê editorial, v. 1, n. 1, p. 14, out. 2001. Entrevista concedida a Régis Bonvicino.
9
O prefácio foi transformado em livro: La communauté affronté. Paris: Galilée, 2002; cito a
partir da tradução para o espanhol, La comunidad enfrentada. Trad. J. M. Garrido. Buenos
Aires: Ediciones La Cebra, 2007.
10
NANCY, Jean-Luc. La comunidad enfrentada, op. cit., p. 18. Tradução minha para o portu-
guês.
11
CRAGNOLINI, Mónica B. La comunidad de Nancy: entre la imposibilidad de representación
y el silencio. In: NANCY, Jean-Luc. La comunidad enfrentada, op. cit., p. 62.
12
ibidem, p. 63.
13
ibidem, p. 65.
como diferença.
Resistir, sobreviver, mesmo expostos à finitude. É isso que fazem as revis-
tas e seus leitores, se concordamos com Nancy em que é a escritura a exposi-
ção ao estar-em-comum, a abertura do significado. E isso talvez nos ajude a
entender porque ainda lemos revistas de poesia. Redes de revistas impressas,
sobrevivências, arquivos: incompletos por definição, desorganizados, que
requerem um trabalho de elaboração que os faça falar, que nos ajude a ler o
modo como se dá, aí, a partilha do sensível, a política da literatura. Abrir esses
arquivos anacrônicos do presente e colocá-los em confronto, no seu tempo e
com seu passado, para discutir as “políticas do contemporâneo na literatura”,
é um dos desafios a que devemos nos propor.