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http://dx.doi.org/10.5007/1984-784X.

2013v13n20p5 5

POR QUE AINDA LEMOS REVISTAS DE POESIA?


APONTAMENTOS PARA O ESTUDO DA POESIA BRASILEIRA
EM SUAS REVISTAS

Maria Lucia de Barros Camargo


UFSC / CNPq

Resumo Abstract

Este trabalho apresenta como objeto de leitura e The object for reading and analysis in this study is
análise um conjunto de revistas de poesia que a set of poetry magazines that has poets as the
circularam ou ainda circulam no Brasil, na forma main editors and were or are still published in
impressa, a partir da última década do século XX, Brazil since the last decade of 20th century.
tendo poetas como seus editores. Prática coletiva Collective practice and/or magazines of a single
e/ou revistas de um homem só? Singulares e/ou man? Are they singular and/or plural? Existences
plurais? Existências encerradas em si mesmas e/ shut in themselves or participants in a shared
ou partícipes de uma rede compartilhada de chain of poetic experiences, objects and objec-
experiências, objetos e objetivos poéticos? A pro- tives? The purpose of this study is to analyze the
posta é analisar a hipótese de que as revistas hypothesis that the literary magazines may be
literárias podem ser consideradas como uma considered as a condition of possibility for the
condição de possibilidade para a política da lite- politics of literature (Rancière), or, in other words,
ratura (Rancière), ou, em outros termos, como as a potential space for conflicts of interests and
espaço potencial de litígio (campos de força) e, ao contentions (force fields) and, at the same time,
mesmo tempo, como constituição de formas espe- as constitution of specific forms of community that
cíficas de comunidade que se inserem de modo are particularly inserted in the contemporaneity.
peculiar na contemporaneidade. Trata-se, assim, Thus, it is about a non-identification community,
de uma comunidade da não-identificação, uma an inoperative community, without a work or a
comunidade inoperante, sem obra ou projeto de project for production of the single sense, however
produção do sentido único, mas ainda como still as form of exposition to the being-in-common
forma de exposição ao estar-em-comum e como and as opening of significance (Nancy).
abertura do significado (Nancy).

Palavras-chave: Revistas de poesia. Comunidade. Keywords: Poetry magazines. Community. Politics


Política da literatura. of literature.

Maria Lucia de Barros Camargo é professora titular de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa
Catarina, coordenadora do Núcleo de Estudos Literários & Culturais e do Programa de Pós-Graduação em
Literatura.

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POR QUE AINDA LEMOS REVISTAS DE POESIA?


APONTAMENTOS PARA O ESTUDO
*
DA POESIA BRASILEIRA EM SUAS REVISTAS

Maria Lucia de Barros Camargo

A pergunta exibida no título — um tanto retórica, porque talvez irrespon-


dível — contém, de fato, uma afirmação, ou um pressuposto, modalizado pela
temporalidade: revistas de poesia são lidas. São lidas ainda. A pergunta acerca
da causa — por que? — toma como assente que revistas de poesia são lidas,
ou melhor, continuam sendo lidas, isto é, já o foram no passado e continuam
sendo-o no presente: ainda. Afirmar que revistas de poesia foram e continuam
sendo lidas equivale também a dizer que revistas de poesia foram e continuam
sendo produzidas e publicadas no Brasil.
Essa última afirmação pode ser constatada empiricamente com razoável
facilidade, uma vez que as revistas, enquanto objeto palpável, coisa, matéria,
existem e podem ser lidas e relidas, computadas, manuseadas, colecionadas,
arquivadas. Desde a publicação das primeiras revistas simbolistas, na passa-
gem do século XIX para o século XX, até este ano de 2013, podemos elencar
um bom número de revistas dedicadas à poesia, mesmo que não exclusiva-
mente. E esta série, vista ao longo do tempo, dá mostras de uma certa conti-
nuidade e, por que não, do interesse na produção dessas revistas, e, portanto,
na produção e veiculação da própria poesia, apesar das alternâncias de ritmo,
com períodos mais férteis entre outros de maior aridez 1.
Lembremos também de um conjunto de “revistas de poetas”, isto é, de re-
vistas de poesia que circularam ou ainda circulam no Brasil, na forma impressa,
a partir da última década do século XX, tendo poetas como seus editores. Prá-
tica coletiva e/ou revistas de um homem só? Singulares e/ou plurais? Existên-
cias encerradas em si mesmas e/ou partícipes de uma rede compartilhada de

*
Uma versão prévia deste texto foi apresentada na X Jornada Andina de Literatura Latinoa-
mericana, realizada em Cali, Colômbia, em 2012.
1
Esse conjunto, olhado a partir de uma pesquisa histórica, ainda precisa ser estudado.

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experiências, objetos e objetivos poéticos?


Talvez o ponto em comum entre essas revistas seja, de um lado, sua di-
mensão, e, de outro, em parte consequência do primeiro, sua efemeridade.
Revistas de poesia podem ser chamadas de “pequenas revistas”, para usar a
tradução literal do termo consagrado na crítica norte-americana para designar
as revistas literárias — little magazine. A expressão “pequenas revistas” foi
usada no título da tradução brasileira do ensaio de Lionel Trilling sobre a Parti-
san Review, “A função da pequena revista” 2. Trata-se de um artigo publicado
originalmente em 1946, como introdução a uma antologia de textos da re-
vista — The Partisan Reader — dedicado à comemoração dos 10 anos de exis-
tência da Partisan Review (1933-1944): uma “notável realização,” diz Trilling,
a simples existência, por 10 anos, de uma revista dedicada à literatura, e que
teria conquistado nesse período um público de 6.000 leitores. Para Trilling, se
as revistas literárias — as pequenas revistas, the little magazines, essas “aven-
turas privadas e precárias” — enfrentam dificuldades para manter os caminhos
abertos e para manter vivos os novos talentos até que editores comerciais os
publiquem, são exitosas em seu papel de resistência ao conformismo, ao po-
pulismo, às soluções facilitadoras.
O termo “pequenas revistas” é também o título utilizado na tradução do li-
vreto de Reed Whittemore, originalmente intitulado Little magazines 3, e
publicado entre nós no mesmo ano que a tradução do livro de Lionel Trilling,
com o propósito declarado de abordar, no “panfleto”, os problemas cotidianos
enfrentados pelos editores de pequenas revistas, dentre os quais se inclui o
próprio Whittemore, que assim introduz seu assunto:

Pouca coisa é necessária para o início de uma pequena revista. Serão suficientes,
como condições mínimas, uma máquina de escrever de segunda mão, certa
quantidade de papel, e o acesso a algum mimeógrafo. O novo editor poderá, ele
próprio, redigir e distribuir a revista a seus amigos. Pode-se, entretanto, dispen-
der dinheiro em publicações dessa espécie. Na história das pequenas revistas,
têm havido diversas aventuras mal sucedidas, realizadas em tonalidades várias,

2
In: TRILLING, Lionel. Literatura e sociedade. Trad. Rubem Rocha Filho. Rio de Janeiro: Lida-
dor, 1965, p. 113-123. Na edição original, o livro se intitula The liberal imagination (Nova
York: Viking, 1950). Na edição argentina, o título do artigo de Trilling é traduzido como “La
función de la revista literaria” (In: La imaginación liberal. Trad. Enrique Pezzoni. Buenos
Aires: Sudamericana, 1956).
3
WHITTEMORE, Reed. Pequenas revistas. Trad. Anna Maria Martins. São Paulo: Livraria Mar-
tins Editora, 1965. Nos Estados Unidos o livreto foi publicado em 1963, pela University of
Minnesota Pamphlets on American Writers, University of Minnesota Press.

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por fundações e viúvas ricas. A deficiência não é determinada pelo dinheiro dis-
pendido, embora, de certa forma, o dinheiro tenha inevitavelmente pesado
4
nisso, sobretudo na última década.

Distinguindo as “pequenas revistas”, que também recebem no panfleto a


denominação “revistas sérias”, daquelas destinadas à grande circulação e pro-
duzidas pela indústria editorial, Whittemore destaca o fato de estas revistas
não constituírem, para seus editores, uma indústria, bem como o fato de, para
se compreender esse gênero de publicação, o melhor é analisar as próprias re-
vistas. Dentre as revistas comentadas, destaca-se Poetry, que mencionarei
mais adiante.
Não há dúvida de que o termo “little magazine” — seja ele traduzido como
pequena revista ou como revista literária — deve-se especialmente ao fato de
tais revistas serem caracterizadas pelas tiragens reduzidas, pela periodicidade
nem sempre mantida, e pela vida relativamente curta, o que se aplica às revis-
tas literárias brasileiras, especialmente aquelas dedicadas à poesia 5. De modo
geral, também não são volumosas em número de páginas. É muito conhecida
a frase atribuída a Olavo Bilac na qual o “príncipe dos poetas” se refere, não
sem ironia e com certo humor, à efemeridade como uma doença, um mal que
acomete as revistas de seu tempo. Está em uma de suas crônicas, relacionada
a seu ingresso como cronista do jornal Gazeta de Notícias:

Entramos dous no mesmo dia, 24 de abril de 1890, trazidos pelas mãos de Fer-
reira Araújo. Aquele que entrou comigo já não vive, como já não vive aquele que
nos pôs aqui dentro... Esse companheiro amado era Pardal Mallet: juntos fundá-
ramos A Rua, um jornal vermelho que morreu de “mal de sete... números”, e
6
logo depois viemos colaborar efetivamente na Gazeta.

Um discurso repetido, talvez já um lugar-comum, atribui a morte precoce


das revistas às dificuldades financeiras para sua manutenção, uma vez que não
há assinaturas suficientes para sustentá-las, nem subvenção duradoura (seja
pela fortuna pessoal dos envolvidos com a revista, seja por mecenato oficial),

4
ibidem, p. 9.
5
Não se incluem nesta série revistas institucionais, como é o caso de Poesia sempre, publicada
com regularidade pela Biblioteca Nacional desde inícios dos anos 90, em volumes alentados.
6
DIMAS, Antônio (Org.). Vossa insolência. Crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996,
p. 58. É interessante constatar que o jornal é o substituto da revista – de qualquer modo,
Bilac continuava a publicar seus poemas em revistas ilustradas, como a Kosmos, que não faz
parte da série de revistas a que nos referimos aqui.

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nem, muito menos, patrocínio empresarial (que interesse tem uma empresa
em anunciar produtos num veículo de baixíssima circulação? Nem mesmo
capital simbólico...). Em seminário sobre revistas literárias realizado em maio
de 2012 na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Jorge Viveiros de Castro
relatava as dificuldades para a vendagem da Inimigo Rumor, talvez a mais
prestigiosa revista de poesia das duas últimas décadas: publicar mais de 500
exemplares é (foi) encalhe certo.
Também não há, na cena cultural brasileira, nenhum periódico como, por
exemplo, o Diário de Poesia, publicado em Buenos Aires desde o final da
década de 80 do século passado, e vendido em bancas de jornal. No Brasil, as
revistas de poesia são vendidas em algumas poucas livrarias. Mas o que se
desconsidera é, talvez, a hipótese de que a efemeridade é própria dessa forma
de veiculação da poesia, é mesmo sua condição de sobrevivência: seu fracas-
so, a morte das revistas, bem como seu ressurgimento como outra, a mesma,
porém diferente, impede a constituição de um sentido coletivo unitário e
autoritário.
É preciso lembrar, porém, que esse movimento não é o observado na
revista Poetry – a magazine of verse, uma little magazine criada em 1912, em
Chicago, nos Estados Unidos, por Harriet Monroe, e que completou em 2012
seu primeiro centenário! E continua sendo publicada. Se tal longevidade des-
monta uma das principais características dessas revistas e, de um certo modo,
poderia retirar a Poetry dos dias de hoje do rol das “pequenas revistas”, essa
mesma longevidade pode ser pensada como a exceção que confirma a regra.
A importância de Poetry para a poesia de língua inglesa é incontestável e está
intimamente ligada a seu correspondente estrangeiro e principal colaborador,
Ezra Pound. Whittemore cita, por exemplo, uma declaração de Williams Car-
los Williams: “Sem essa revista, a poesia, verdadeira ‘avis rara’, seria entre nós
apenas uma reminiscência literária.” 7
Muito voltada desde o início de sua circulação, em 1912, à formação de um
público de poesia, até 1950 era possível ler a frase de Walt Whitman na sua
contracapa: “Para haver grandes poetas é preciso que haja também um gran-
de público” — mesmo que, diga-se, um público numericamente pequeno. De
algum modo, é possível concordar com a ideia de que esse público de poesia
se constitui a partir da existência das revistas de poesia, sejam elas efêmeras

7
WHITTEMORE, Reed. Pequenas revistas, op. cit., p. 15.

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ou duradouras — como é o caso da própria Poetry em circulação até os dias


atuais. Fato que ainda dá razão à recente afirmação de Marjorie Perloff sobre a
formação dos leitores de poesia e que pode, também, ser aplicada ao Brasil:
“Então, eu diria que o ‘leitor’ de jornais sabe muito pouco sobre poesia e
crítica. No entanto, há leitores de poesia espalhados pelos EUA, formados, por
assim dizer, pela cultura das pequenas revistas.” 8
Tais constatações nos conduzem de volta à pergunta inicial, de outro ân-
gulo: sim, há no Brasil leitores para revistas de poesia, porém poucos. Neles se
incluem os próprios poetas e fazedores de revistas. E mesmo considerando
apenas o período dos últimos 20 anos, em que houve uma profusão de revis-
tas de poesia em circulação, ainda assim, o que poderíamos chamar de uma
comunidade de leitores de revistas de poesia, ou até de leitores de poesia, é
bastante pequena quando pensamos na dimensão populacional do Brasil.
Uma comunidade de leitores de poesia; uma comunidade de poetas: o
termo comunidade pressupõe a existência de elementos comuns, de laços, de
cumplicidades; mas também, em outros termos, é preciso falar da comuni-
dade dos que não têm comunidade (Bataille, Blanchot, Nancy), e de “políticas
de amizade” que não pressupõem igualdade de pensamento (Derrida) em
torno de um sentido.
Em outubro de 2001, sob o impacto da queda das torres gêmeas, Jean-Luc
Nancy escreveu um prefácio para a tradução italiana de A comunidade incon-
fessável, de Blanchot, livro que respondia a um artigo do mesmo Nancy, publi-
cado em 1983 e que deu origem ao livro La communauté désœuvrée (1986). 9
Neste prefácio, que é também um diálogo com Blanchot, Nancy traça um his-
tórico dos textos filosóficos publicados na Europa a partir dos anos 80 sobre o
tema da “comunidade”. É interessante observar que o ponto de partida de
Nancy — para tratar do tema no prefácio e em sua própria obra — foi uma
proposta de Jean-Christophe Bailly, em 1983, de fazer um número especial da
revista Aléa sobre “a comunidade”, mote para o artigo acima citado. Não vou,
neste espaço, apresentar ou comentar a questão filosófica de que trata Nancy
acerca do tema. Mas é importante destacar aqui uma observação marginal de
Nancy, uma nota de rodapé:

8
PERLOFF, Marjorie. Contra as rotinas. In: Sibila. Revista semestral de poesia e cultura. São
Paulo: Ateliê editorial, v. 1, n. 1, p. 14, out. 2001. Entrevista concedida a Régis Bonvicino.
9
O prefácio foi transformado em livro: La communauté affronté. Paris: Galilée, 2002; cito a
partir da tradução para o espanhol, La comunidad enfrentada. Trad. J. M. Garrido. Buenos
Aires: Ediciones La Cebra, 2007.

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Interrompeu [Bailly] esta publicação poucos anos depois, e buscaria então
fundar outra revista, mais importante, com alguns outros, entre os quais me
encontro [...]. Não houve editor com quem tratar esse projeto essencialmente
complexo e diverso, porque nos negávamos a definir-nos por uma “linha” ou por
um manifesto. A época das revistas fundadas por uma “ideologia” nos parecia
encerrada (com Tel Quel e algumas outras). Quer dizer, também a época das
revistas que formavam “comunidade”, sem que a palavra, em todo caso, fosse
empregada. Nosso grupo, muito variado, não formava comunidade. A história
das revistas na França depois de 1950 certamente esclareceria vários aspectos
do desaparecimento progressivo dos grupos, coletividades ou comunidades de
“ideias”, e, com isso, de uma mudança da representação de uma comunidade em
geral. A revista fundada por Bataille, Critique, possuía um pressuposto comple-
tamente distinto, distanciado por princípio de toda identidade teórica. Não dei-
xava, isto sim, de produzir nos anos 60 e 70 um efeito de “rede”: era um lugar
10
comum para aqueles que se distanciavam de toda comunidade.

Grupo, coletividade, comunidade de ideias, rede: termos que aludem a dife-


rentes formas de estar-juntos, e a diferentes organizações para as revistas. De
fato, também neste espaço restrito em que se situam as revistas de poesia,
pode-se dizer que a época das revistas que “formavam comunidade”, isto é,
que reuniam colaboradores e leitores em torno de manifestos de vanguarda,
de chamamentos à participação na política — a poesia como arma — ou ainda
em torno de palavras-de-ordem — está decretado o fim do verso — que con-
vocavam à adesão (onipotência e onipresença, diz Nancy), a época dessas
revistas não mais existe. Relembro aqui o “slogan” da capa do primeiro
número da revista Sibila (2001) — o fim das vanguardas como elas eram —
para reescrevê-lo: lidamos com o fim das revistas como elas eram.
Se, por um lado, as revistas eram resultantes de um grupo, por outro, tam-
bém podiam resultar na constituição de um grupo que pode ser pensado
como formação (Raymond Williams) ou até como constituinte de comuni-
dade, no sentido sociológico do termo, em que algo em comum identifica o
pertencimento de seus membros e, até, o fechamento dessas comunidades
sobre si mesmas, com o componente de violência e ressentimento que elas
comportam ao se confrontarem. Procedimentos ou arranjos em torno de um
sentido único, coletivo, e que se tornam visíveis não apenas nos enfrentamen-
tos pelas polêmicas, mas também nos critérios de eleição e exclusão que pau-
tam qualquer revista em qualquer dos modos.

10
NANCY, Jean-Luc. La comunidad enfrentada, op. cit., p. 18. Tradução minha para o portu-
guês.

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Ao comentar a “comunidade de Nancy” em posfácio à edição argentina de


La comunidad enfrentada, Mónica Cragnolini destaca que a comunidade a que
se referem Nancy e Blanchot (e toda a série que se deslancha a seguir), se
diferencia da comunidade da sociologia por ser a “comunidade da não-identifi-
cação, da des-apropriação, da abertura à exposição ao outro.” 11 Se a comuni-
dade sociológica se assenta na subjetividade moderna — “o homem como
indivíduo (entidade fechada sobre si) em relações de reciprocidade, simetria e
intercâmbio com outros indivíduos” 12 — esta ideia não mais se sustenta (a
queda das torres em Nova York o comprovam, diz Nancy), uma vez que “o
outro”, o Outro de si, faz implodir a ficção identitária. A comunidade, para
Nancy, é, nas palavras de Cragnolini, “espaço de exposição, em que o ‘ser-em-
comum’ (‘estar-em-comum’) é o inapropriável. [O] espaço é o ‘estar fora’ da
comunidade.” 13
Talvez possamos nos apropriar provisoriamente do inapropriável, para
pensar que esse espaço do estar fora da comunidade, ou a comunidade inope-
rante, sem obra, sem projeto de produção do sentido único, em que é preciso
resistir no limite, reconhecendo a estranheza do estranho, seja o espaço que
permite as sobrevivências das revistas de poesia, não como elas eram. Talvez
a poesia como resistência — o termo também é de Nancy — não a um go-
verno ou Estado, ou ao modo de atuação dos governantes, dos partidos, dos
detentores do poder, mas poesia como resistência tanto aos sentidos monolí-
ticos quanto ao vazio, possa sustentar a sobrevivência das revistas sem grupos
e sem comunidades de ideias. Mas ainda assim, comunidades. O que nos ajuda
a entender a expressão — revista de um homem só — ouvida em algum lugar.
Se pensarmos nas recentes revistas feitas/dirigidas por poetas — em que
não há nem grupos, nem comunidades identitárias claramente reconhecíveis
(mesmo que nossa nostalgia queira sempre encontrá-las) — é o regime de afi-
nidades eletivas que pode dar uma “cara” à revista, e esta é geralmente a da
diversidade, mesmo que construída a partir de um poeta/editor solitário, cujas
escolhas podem dar visibilidade a uma tensão subjacente: o desejo de consti-
tuir comunidades identitárias e a exposição das diferenças pela constituição
de uma comunidade inoperante, um estar-junto nas páginas de um mesmo

11
CRAGNOLINI, Mónica B. La comunidad de Nancy: entre la imposibilidad de representación
y el silencio. In: NANCY, Jean-Luc. La comunidad enfrentada, op. cit., p. 62.
12
ibidem, p. 63.
13
ibidem, p. 65.

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volume. É nessa tensão que as revistas se juntam, se separam, formam redes.


Em outros textos, tratando do mesmo conjunto de revistas, julguei ser pos-
sível divisar dois grandes blocos de revistas a partir de alguns aspectos. O pri-
meiro deles considerava, além da publicação de poemas, a presença de textos
críticos em umas e a total ausência deles noutras; de modo geral, as revistas
que incluem crítica tendem a ser graficamente mais sisudas, sem ilustrações
ou material visual; as outras, tendem a incluir entrevistas com os poetas publi-
cados e muito material visual. Neste grupo, encontram-se revistas que pare-
cem reivindicar seu caráter artístico através do desenho, da fotografia, de
uma certa estetização da visualidade das páginas, tirando partido das novas
possibilidades técnicas de edição, do que através da escritura poética.
Outro aspecto, um pouco mais complexo, diz respeito ao regime de esco-
lhas: mesmo que nenhuma dessas revistas adote dicções ou apostas estéticas
fechadas (nada que lembre, por exemplo, o fechamento concretista), há cer-
tas nuances instigantes que passam pela reivindicação do passado — en-
quanto num grupo de revistas predominam os poetas já reconhecidos critica-
mente no escopo do modernismo e da experimentação de linguagem, mais
afinados com o que se costuma identificar como rigor estético, outro grupo
busca dar voz tanto a poetas pouco lembrados pela crítica (especialmente
poetas que nos anos 60 não participavam dos grupos — comunidades? — pre-
dominantes, isto é, os que se inseriam na comunidade da experimentação de
linguagem, concretista, e os que aderiram à arte popular revolucionária dos
CPCs), quanto a outras opções poéticas, como a etnopoesia. Em comum, as
revistas publicam novos poetas ao lado de poetas experimentados e até canô-
nicos e reivindicam a defesa do valor, da qualidade literária, poética, mesmo
que não se diga qual é, mesmo que se saiba da impossibilidade de dizê-lo.
Mas se estes agrupamentos poderiam levar à restauração da ideia de comu-
nidades fechadas em si mesmas a partir de elementos de identificação entre
seus membros, de pertencimento a uma seita, os contatos e as migrações de
um grupo a outro nos aproxima da ideia de rede, talvez mesmo de rede rizo-
mática, com agrupamentos, dispersões e reagrupamentos que afastam a ideia
de fechamento ou de sentido único. Não configuram movimentos, comunida-
des, apenas diferenças, muitas vezes indistintas na massa de textos dissemi-
nada pelas páginas. Caberia, é verdade, nos ocuparmos mais detidamente do
que ocorre com algumas revistas, poucas, que parecem não participar desta
rede, não possuírem pontos de contato. Mas, de qualquer modo, existem

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como diferença.
Resistir, sobreviver, mesmo expostos à finitude. É isso que fazem as revis-
tas e seus leitores, se concordamos com Nancy em que é a escritura a exposi-
ção ao estar-em-comum, a abertura do significado. E isso talvez nos ajude a
entender porque ainda lemos revistas de poesia. Redes de revistas impressas,
sobrevivências, arquivos: incompletos por definição, desorganizados, que
requerem um trabalho de elaboração que os faça falar, que nos ajude a ler o
modo como se dá, aí, a partilha do sensível, a política da literatura. Abrir esses
arquivos anacrônicos do presente e colocá-los em confronto, no seu tempo e
com seu passado, para discutir as “políticas do contemporâneo na literatura”,
é um dos desafios a que devemos nos propor.

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