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LITERATURA,

MEMÓRIA E
CULTURA
_______________________________________

LITERATURA,
MEMORIA Y
CULTURA
Org.:
Margareth Torres de A. Costa
Ana Cristina Menezes
Israel A. C. Noletto
Natanael de M. Carvalho

INSTITUTO
FEDERAL
Piauí
Literatura, memoria y cultura

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí

Reitor Paulo Henrique Gomes de Lima


Pró-Reitor de Administração Paulo Borges da Cunha
Pró-Reitora de Ensino Laura Maria Andrade de Sousa
Pró-reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação José Luís de Oliveira e Silva
Pró-Reitora de Extensão Divamélia de Oliveira Bezerra Gomes
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional Antônio de Pádua Alves Pinto

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Me. Dilson Cristiano da Costa Reis - Membro
Prof. Dr. José Carlos Raulino Lopes – Membro
Profa. Ma. Inara Erice de Souza Alves Raulino Lopes – Membro
Prof. Me. Israel Alves Correa Noletto – Membro
Bibliotecária Me. Sindya Santos Melo – Membro

Diagramação e Capa: Israel A. C. Noletto


Revisão de Texto: Natanael de M. Carvalho

Ficha catalográfica elaborada por: CRB

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www.ifpi.edu.br

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Literatura, memória e cultura

SUMÁRIO/CONTENIDOS

Lista de autores .............................................................................. - 16 -

1. INTRODUÇÃO ............................................................................. - 19 -

2. LITERATURA E CULTURA: A EXISTÊNCIA FRONTEIRIÇA D’A MENINA


DE LÁ, EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA ....... - 20 -

3. JOSÉ RAFAEL DÁVILA, PROTAGONISTA Y TESTIGO DE LA BELLE


ÉPOQUE BANANERA....................................................................... - 47 -

4. LENINE EN LAS BANANERAS”, UN CUENTO DE FRANCISCO GNECCO


MOZO ............................................................................................ - 64 -

5. NO HAY SILENCIO QUE NO TERMINE, DE INGRID BETANCOURT:


TESTIMONIO DE UNA DOBLE AVENTURA ........................................ - 83 -

6. A LITERATURA NO ENSINO DE HISTÓRIA: ‘TERRA SONÂMBULA’ DE


MIA COUTO E A GUERRA CIVIL MOÇAMBICANA (1977/1992) ....... - 131 -

7. A RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E DIREITO, A PARTIR DA OBRA DOM


CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS............................................ - 150 -

8. OS FIOS DA MEMÓRIA RESSIGNIFICANDO A INFÂNCIA NA RUA DOS


CATAVENTOS ............................................................................... - 179 -

9. SUSPIRO DE SOBREVIVÊNCIA: OS ESPAÇOS MARGINAIS DA CIDADE


NA OBRA “MEIA-VIDA”, DE OTON LUSTOSA ................................. - 198 -

10. A MINHA HISTÓRIA É TALVEZ IGUAL A TUA: MEMÓRIA, IDENTIDADE


E DIÁSPORA NAS CANÇÕES DE BELCHIOR ..................................... - 223 -

11. A MEMÓRIA E A GUERRA NO CONTO KUÍTO (TRÊS FACES) DE


ONDJAKI ...................................................................................... - 245 -

- 14 -
Literatura, memoria y cultura

12. MANIFESTAÇÕES DE RECORDAÇÕES INFANTIS EM QUE SE CHAMA


SOLIDÃO, DE LYGIA FAGUNDES TELLES..........................................- 270 -

13. MEMÓRIA E VOZ NARRATIVA NOS CONTOS HAPPINESS, DE


VIRGINIA WOOLF E FELICIDADE CLANDESTINA, DE CLARICE LISPECTOR . -
286 -

14. ANCESTRALIDADE E MATRILINEARIDADE AFRICANAS EM O ALEGRE


CANTO DA PERDIZ.........................................................................- 306 -

15. MEMÓRIA E ESPAÇO FICCIONAL: UMA LEITURA DE “VERMELHO


AMARGO”, DE BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS .........................- 319 -

16. A DESCENTRAÇÃO DO SUJEITO NA CANÇÃO “A REVOLTA DOS


DÂNDIS I”, DO ENGENHEIROS DO HAWAII ....................................- 335 -

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Literatura, memória e cultura

Lista de autores

Israel A. C. Noletto
Professor de língua e literatura inglesas no Instituto Federal do
Piauí (IFPI). Doutorando em Letras no Programa de Pós-Gra-
duação em Letras da Universidade Federal do Piauí (PPGEL-
UFPI). Mestre em Letras pela mesma IES. Autor de Glossopoese
– O Complexo e Desconhecido Mundo das Línguas Artificiais e
de vários volumes editados, bem como inúmeros artigos da área
de língua e literatura, com ênfase em ficção científica e glosso-
poese. Atua ainda como líder do grupo de pesquisa Anglolit, vin-
culado ao CNPq através do IFPI.

Clinton Ramirez C.
Narrador. Autor de las novelas Las Manchas del jaguar (1988,
2005 y 2007), ganadora del Premio Nacional de Novela Ciudad
de Montería, 1987; Vida segura (2005), Hic zeno (2008), Un
viejo alumno de Maquiavelo (2014) y Otra vez el paraíso (2018).
Es autor, además, de los libros de cuentos La mujer de la mece-
dora de mimbre (1992), Estación de paso (1995), Prohibido pasar
(2003), La paradoja de Jefferson (2007) y El chico del correo
(2019). La Colección Zenócrate publicó todos sus cuentos en el
volumen ¿Te acuerdas de Monín de Böll?, Bogotá, 2018. Figura
en las antologías Cuentos felinos 1, 2 y 3. Economista, master en
Literatura Hispanoamericana y del Caribe. Profesor de literatura.
Editor del Programa Editorial de la Universidad del Magdalena

Teobaldo A. Noriega
Nació en la costa Caribe de Colombia. Master en Lenguas Ro-
mances, y Ph.D. en Literaturas Hispánicas, su obra poética in-
cluye Rapsodia Tropical (2019), Humana impermanencia (2016),
Tarea de Sísifo (2015), Wayfarer. Poemas Selectos / Selected
Poems (traducido al inglés por Ana M. Correa, 2013), Las orillas
del canto (2012), Pasión articulada. Anlogía (2007), Doliente piel
de hombre (2005), Polvo enamorado (2001), Ars Amandi
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Literatura, memoria y cultura

(1998)), Duende de noche (1988), y Candela viva (1984). Entre


sus ensayos de crítica literaria se destacan Francisco Diaz de Ca-
tro: de la vida al poema (2010), Novela colombiana contemporá-
nea: incursnes en la postmodernidad (2001), y La novelística de
Carlos Drguett: aventura y compromiso (1983). Es Profesor Emé-
rito del Departamento de Lenguas y Literaturas Modernas, Trent
University (Canadá).

Annabell Manjarrés Freyle


Periodista, poeta y narradora con máster en Educación. Autora
del libro Vía alterna, 2+3 años de periodismo cultural (Editorial
Unimagdalena, 2018). Posee cuatro poemarios: Espejo Lunar
Blanco (2010), Óleo de una mujer acosada por el tiempo (2013),
Animales invertebrados (2017) y Una ciudad como Saturna
(2020). Poemas suyos han sido traducidos a varios idiomas y fi-
guran en diversas antologías nacionales e internacionales.
Su trabajo fue reconocido por la Gobernación del Magdalena en
el Concurso de Poesía y Cuento Joven 2013, en el que obtuvo el
primer lugar en poesía y segundo en cuento con el texto “La calle
de las guacamayas”. Es Premio Nacional de Cuento “Bueno y
Breve” (2015) de la revista El Túnel, de Montería, con el texto
“El hombre en su jaula”, y Premio Internacional de Poesía Voces
nuevas, de la Editorial Torremozas, en Madrid España (2018).

Anderson C.F. Brettas


Professor, Sociólogo e Historiador. Possui graduação em Ciên-
cias Sociais (UFMG), licenciatura em História (Simonsen), mes-
trado e doutorado em Educação (Universidade Federal de Uber-
lândia). Realizou estágios pós-doutorais na Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (História Latinoamericana), e na Uni-
versidad del Magdalena - em Santa Marta, Colômbia (História
Econômica). Professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro
(IFTM), Campus Uberaba, atua no Programa de Pós-Graduação
em Educação Tecnológica - Mestrado Profissional em Educação
– e nos cursos de formação de professores (Química e Ciências

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Literatura, memória e cultura

Biológicas). É líder do Grupo de Pesquisa Mnemosyne – Memó-


ria, Representações & Oralidades na Educação e no Ensino
(IFTM/CNPq).

Ryhã Henrique Caetano e Souza


Professor da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais
e Mestrando em Educação Tecnológica pelo Instituto Federal do
Triângulo Mineiro (IFTM). Membro do grupo de pesquisa Poli-
ticas, Educação e Cidadania (POLIS), sediado na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), e integrante do Grupo de Pesquisa
‘Mnemosyne – Memória, Representações & Oralidades na Edu-
cação e no Ensino’ (IFTM/CNPq).

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Literatura, memoria y cultura

1. INTRODUÇÃO
________________________

kkk
As

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Literatura, memória e cultura

2. LITERATURAE CULTURA: A EXISTÊN-


CIA FRONTEIRIÇA D’A MENINA DE LÁ, EM
PRIMEIRAS ESTÓRIAS, DE JOÃO GUIMA-
RÃES ROSA
______________________
Valéria Ribeiro de Oliveira Magalhães
Margareth Torres de Alencar Costa
Natanael de M. Carvalho

Introdução

As novas acepções acerca da literatura oriunda dos mo-


vimentos artísticos vanguardistas do século XX, resultantes tam-
bém das transformações sociais deste tempo, exigem que a arte
deva se fazer uma “arte no presente” propondo novos signos de
representação. Para que se possa evidenciar as “vidas na fron-
teira”, provenientes dos deslocamentos territoriais e existenciais,
as quais os sujeitos modernos estão imersos. Nesse sentido, faz-
se necessário que, através da fazer artístico literário, com seus
desvios de linguagem, construa-se uma ponte, na qual se colo-
quem em diálogo as diferentes culturas, fazendo circular os sabe-
res das múltiplas perspectivas de existência. Dessa forma, viabi-
lizar uma reelaboração dos discursos, uma redefinição do próprio
conceito de cultura, de sociedade, na qual, seja possível o vislum-
bre de uma vida/sociedade mais plural.
Estes novos signos representam novas possibilidades de
expressão e interpretação de mundo, fazendo emergir subjetivi-
dades, historicamente excluídas de uma tradição literária, na qual
se cristalizaram os mitos de origem e a visão dicotômica da exis-
tência. A literatura, nessa medida, ultrapassa e coloca em diálogo

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Literatura, memoria y cultura

o fazer literário tradicional e contemporâneo, constituindo-se na


perspectiva do além: fronteira que reclama uma presença.
Diante disso, o presente trabalho visa refletir acerca das
concepções atreladas aos termos literatura e cultura, e como estas
são associadas ao fazer poético contemporâneo, a partir da posi-
ção de fronteira vinculada à personagem infantil no conto “A me-
nina de lá”, em Primeiras Estórias, do escritor mineiro João Gui-
marães Rosa. Para dialogar com a proposta, conta-se com os
aportes teóricos de Bhabha (1998); Cevasco (2003); Souza
(1986); Lonrenz (1994); Arantes (1981). Na análise foi possível
perceber, através da personagem Nhinhinha que esta é a própria
configuração da posição fronteiriça da literatura, visto que encena
o diálogo do passado com o presente inaugurando novas formas
de nominar o mundo, evidenciados pelos jogos de linguagem que
empreende no conto.

Literatura e cultura

Delinear contornos precisos acerca do que seja literatura


tem se mostrado, ao longo da história da literatura, algo demasi-
ado complexo, visto que, o sentido que lhe tem sido atribuído é
histórico, portanto, movente, variável, oscilante nas ondas do
tempo. Segundo, Roberto Acízelo Sousa (1986) teorizar sobre o
que poderia definir o termo “Literatura” seria torná-la problemá-
tica, seria agregar a esta, um “estudo de caráter metódico e analí-
tico” (p. 8).
A esse respeito. o autor afirma, no capítulo “Pode-se teo-
rizar sobre a literatura?”, que a literatura, como produto cultural,
foi teorizada desde as narrativas mais longínquas que se tem co-
nhecimento no contexto ocidental, por exemplo em a Ilíada e a
Odisseia, nas quais já se suscitava que estas seriam textos

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Literatura, memória e cultura

possuidores de certos preceitos de ordem divina, sugerindo que o


fazer poético possuía demarcações que o diferenciavam de outras
formas escritas.
Nessa medida, Souza (1986, p. 8) explica que “a litera-
tura é um produto cultural que surge com a própria civilização
ocidental, tendo em vista de que textos literários figuram entre os
indícios mais remotos da existência histórica dessa civilização”.
Diante desta premissa, o autor explica que, a literatura teria, à
época clássica, os seguintes atributos: origem a partir de uma
inspiração oriunda dos deuses, seria portadora de uma forma nar-
rativa carregada de encanto e, além disso, sua função estaria atre-
lada à reprodução fiel dos fatos heroicos. Com estas prerrogati-
vas, o poeta desfrutava e era detentor de grande poder dentro da
sociedade. Desse modo, a teorização clássica, em textos homéri-
cos indicia que,

a origem da literatura é o ensinamento dos deuses; sua natu-


reza consiste em ser uma narrativa dotada de especial poder
de encantamento; sua função é reconstituir com fidelidade as
ações dos heróis, decorrendo dessa tríplice determinação a
elevada consideração de que o poeta desfruta na comunidade
(SOUZA, 1986, p. 10).

Entretanto, Souza (1986) esclarece que, apesar das consi-


derações acima mencionadas não proporem nenhuma postura
analítica, tampouco aponta métodos ou engendra uma postura
eminentemente teórica, é possível perceber que existem nuances
de fundo ideológico, mítico e poético e do poder representativo
que era atribuído à literatura em outros tempos. Contudo, se-
gundo o teórico, é com Platão e Aristóteles que a teorização da
literatura ganha relevo. A partir das sistematizações dos dois

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Literatura, memoria y cultura

filósofos, a literatura adquire uma extensa produção teórica,


mesmo, muitas vezes, divergentes.
Diante da desmedida teorização voltada à literatura,
Sousa (1986, p. 13) procura organizar o caos classificando os es-
tudos teóricos em dois grupos principais: o grupo de caráter nor-
mativo e outro descritivo. O primeiro aponta as normas que pre-
ceituam o bom escritor, voltada às regras que o orientam, limi-
tando a literatura às premissas de dogmas/verdades dotados de
valores orientadores que caracterizariam a escrita e a crítica lite-
rária. Enquanto a perspectiva descritivista, visava fazer especula-
ções, explicar, levantar hipóteses que, possivelmente, pudessem
sistematizar o fazer literário.
A perspectiva normativista, apesar de ter sido feita a par-
tir de uma releitura de a Poética, de Aristóteles, permanece con-
solidada até o século XVIII. Somente, a partir do século XIX,
quando do advento do romantismo, a teorização da literatura
adentra em novos rumos de orientação perseguindo os preceitos
de caráter mais especulativos/explicativos e menos normativos.
Quanto a isso, Souza (1986, p. 14) considera que, “os escritores
românticos não acatam os princípios estabelecidos pelos tratadis-
tas clássicos, partindo da premissa de que a obra literária é criação
singular de um indivíduo dotado de genialidade, razão porque não
podemos conformá-la a um receituário” (SOUZA, 1986, p. 14).
Com o alargar de horizonte teórico acerca das especula-
ções que poderiam cercear a literatura, todas convergiam, pelo
menos, em um ponto: “empenho em reconhecer os estudos de li-
teratura, e segundo orientação que explicitamente se opunha à do
século XIX” (ibid, p. 35). Nessa medida, as correntes teóricas se
irmanavam no sentido do reconhecimento de que as investiga-
ções deveriam ser instauradas tendo como base o texto literário
na sua imanência, desconsiderando os fatores extrínsecos à obra,
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Literatura, memória e cultura

tradicionalmente agregados a esta pelas correntes normativas da


literatura. Desse modo,

O que se pretende, então, é investigar não as causas exterio-


res supostamente determinantes do texto literário, mas o pró-
prio texto, entendido como um arranjo especial de linguagem
cujas articulações e organização podem ser descritas e expli-
cadas na sua imanência, isto é, segundo sua coerência interna
(e não segundo referentes situados fora do texto, na subjeti-
vidade do escritor ou na objetividade dos fatos e das relações
sociais) (SOUSA, 1986, p. 35).

Não é objetivo deste trabalho adentrar especificadamente


em cada corrente especulativa da literatura ao longo do século
XX, entretanto, outra principal perspectiva que as diferenciam
das teorias do século XIX, é o estabelecimento de metodologia
diferenciada que possa abarcar as especificidades que distinguem
a criação literária de outras produções linguísticas, ou seja, textos
que não são dotados do caráter do literário.
Entretanto, quais qualidades estariam atreladas a este fa-
zer particular denominado de fazer artístico? Se se considerar,
como supracitado, o texto literário portador de especificidades
que o diferenciam dos demais, chega-se, novamente, ao indefi-
nido, pois desde a era clássica grega até meados do século XX,
conforme os surgimentos e redirecionamento das novas perspec-
tivas teóricas, todo rigor, inicialmente, dado à teorização do lite-
rário, mostrou-se um tanto simplista para contemplar a perspec-
tiva artística que se mostrava complexa.
Nesse sentido, as especulações foram se expandido e ga-
nhando novas possibilidades interpretativas, distanciando-se do
sentido restrito que lhe era atribuído no século anterior, no qual
reduzia o fazer literário, considerando como tal, apenas os textos
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Literatura, memoria y cultura

em versos, Dessa maneira, “significando instrução, conheci-


mento das técnicas de escrever e ler” (ibid, p. 43), todavia, em
meados do século XVIII, o termo literatura se amplia para com-
por tantos textos em versos como em prosa “desde que em tais
manifestações se reconheçam propriedades ditas artísticas e fic-
cionais por oposição às demais obras escritas – científicas ou téc-
nicas – destituídas de tais propriedades”. (ibid, p. 43).
Por esta via, o objeto da teoria literária permanecia dema-
siado amplo, exigindo métodos mais rígidos de análise, visto que,
os contornos delineados ainda necessitavam ser mais bem expli-
cados, uma vez que, a definição dada ao objeto de análise literária

parte do conjunto da produção escrita e, eventualmente, cer-


tas modalidades de composições verbais de natureza oral
(não-escrita0, dotadas de propriedades específicas, que basi-
camente se resumem numa elaboração especial da linguagem
e na constituição de universos ficcionais de imaginação
(SOUZA, 1986, p. 44).

Diante dessas noções antagônicas, simplistas e vagas,


Souza (1986) corrobora que, frente à complexidade exigida pela
busca de um objeto mais definido, fez-se necessário, um método
também específico que defina quais as características que se mos-
tram singulares ao texto literário. Dessa maneira, delimitar o
campo de estudo, conforme o autor, torna-se ainda difícil, susci-
tando a ideia de que o processo investigativo requer um método
que abarque o detalhamento exigido,

“em outras palavras, num grau mais refinado e abstrado o


objeto da teoria da literatura não é o conjunto das obras con-
sideradas literárias scrictu sensu, mas ‘propriedades especí-
ficas’ de que tais obras são dotadas” (ibid, p. 45)

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Literatura, memória e cultura

Na tentativa de dirimir as tensões, o linguista russo Ro-


man Jakobson, do formalismo russo, procurou estabelecer que o
objeto de análise do fazer literário não é o conjunto de obras lite-
rárias, mas o que caracterizaria estas produções artísticas como
tal, denominando tais especificidades da literariedade. Nesta li-
nha de pensamento, a literariedade seria “a propriedade especí-
fica das obras integrantes da literatura stricto sensu” (ibid, p. 45).
Também denominada, segundo o estudioso, por desvio, esta seria
a caracterísitca que viabilizaria a distinção dos textos literários de
outras produções verbais. Nessa perspectiva,

levando-se em conta as exigências do método com que


opera, seu objeto é a literatura stricto sensu, ou seja, deter-
minadas composições verbais em que a linguagem se apre-
senta elaborada de maneira especial, e nas quais se dá a cons-
tituição de universos imaginários ou ficcionais (ibid, p. 47).

O “desvio” mencionado pelo autor como “elaboração es-


pecial da linguagem” (SOUZA, 1986, p. 47) corresponde aos pro-
cessos de deslocamentos que o escritor/a instaura nas construções
artísticas. Nesse sentido, o pesquisador correlaciona literariedade
e desvio como termos homônimos. Essas premissas norteadoras
servirão de base para a análise proposta neste trabalho. Vamos,
agora, partir para o outro eixo que também alicerça este estudo:
uma breve explanação dos sentidos atribuídos à palavra “cul-
tura”.
No livro Dez Lições Sobre Estudos Culturais (2003, p. 9),
de Maria Elisa Cevasco, no capítulo “O tema cultura e socie-
dade”, a autora explica as várias versões alocadas ao termo cul-
tura, o qual foi, primeiramente, associado, desde a acepção

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Literatura, memoria y cultura

inglesa à matriz proveniente do latim colere, significando habitar,


adorar, cultivar. Estas teriam sido as noções atribuídas à palavra
até o século XVI e, até o século XVIII, o sentido de cultivar foi
utilizado como metáfora para vincular o cultivo de alguma coisa
ao cultivo das mentes, bem como, foi neste contexto, que a pala-
vra “cultura” já se correlacionava ao vocábulo “civilização”,
transvestindo-se do sentido de “progresso intelectual e espiritual
tanto na esfera pessoal como na social” (CEVASCO, 2003, p. 9).
Segundo a autora, já no contexto do romantismo, princi-
palmente, inglês e alemão, o sentido da palavra ‘cultura’ é atra-
vessado por uma significativa mudança de perspectiva. A concei-
tuação do termo, passa se contrapor ao seu correlato civilização,
ganhando a camada semântica vinculada às manifestações cultu-
rais nacionais e do folclore. Atribuição feita na tentativa de so-
brepor os valores humanos, visto que o sentido dado à civilização
se direcionava à automatização do homem. Civilizar o indivíduo
era investi-lo de cultura. Movimento que fez parte do projeto de
colonização realizado pelos colonizadores ao impor sua cultura
aos povos do Novo mundo. Daí a explicação sobre “o fato de, em
especial ao longo do século XIX, a palavra ter adquirido uma co-
notação imperialista (‘civilizar os bárbaros’ era um mote que jus-
tificava a conquista e exploração dos outros povos) contribuiu
para a virada de sentido. (CEVASCO, 2003, p.10).
No século XX, há uma reação e uma crítica aos sentidos,
tradicionalmente associados à cultura voltados ao “treinamento
das faculdades mentais”, distanciando-se da prerrogativa supra-
citada, na perspectiva de se contrapor ao modelo de desenvolvi-
mento humano propagado no século anterior, e, em contrapartida,
propõe a ênfase nos valores humanos, premissas que foram es-
tendidas ao âmbito das artes. Dessa maneira, “a aplicação deste
sentido às artes, como as obras e práticas que representam e dão
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Literatura, memória e cultura

sustentação ao processo geral de desenvolvimento humano, é pre-


ponderante a partir do século XX” (CEVASCO, 2003, p. 10).
Nesta esteira, conforme a autora, o termo cultura, em me-
ados do século XX, acumulava além dos sentidos de cultivo de
plantas e trato de animais, a conotação mais recente, “o de desen-
volvimento intelectual, espiritual e estético; um modo de vida es-
pecífico; e o nome que descreve as obras e práticas de atividades
artísticas” (ibid, p. 11). Transformações semânticas, das quais,
depreende-se que os significados dados à cultura são históricos e
denunciam uma forma de pensamento que estava inserido dentro
do contexto social de cada época.
Desse modo, a autora ressalta outro sentido agregado à
cultura no contexto da Inglaterra, do pós-guerra. Nessa conjun-
tura social, cultura é entendida como fator de diferenciação so-
cial. Só quem fazia parte de um pequeno grupo privilegiado, po-
deria dispor de determinado prestígio social, além disso, ganhou
contornos oriundos da antropologia, os quais associava o termo
cultura ao modo de vida. (Ibid, p. 11).
Para se juntar a essas noções, traz-se também para dialo-
gar com Cesvaco (2003), as noções de Antonio Augusto Arantes,
no livro O que é a cultura popular? (1981), no qual, adverte o
leitor de que, não há, historicamente, consenso, quanto à defini-
ção do que seja, afinal, cultura, especialmente, a popular, objeto
de estudo do autor, tendo em vista, existir uma pluralidade de
conceitos de mundo advindos de contextos sociais diversos. To-
davia, reitera que,
ela remete, na verdade, a um amplo espectro de concepções
e pontos de vista que vão desde a negação (implícita ou ex-
plícita) de que os fatos por ela identificados contenham al-
guma forma de ‘saber’, até o extremo de atribuir-lhes o papel
de resistência contra a dominação de classe (ARANTES,
1981, p. 7).
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Literatura, memoria y cultura

Posteriormente, o autor traz o significado comum atribu-


ído à cultura do Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portu-
guesa, de Aurélio Buarque de Holanda, no qual aponta que indica
“ ‘saber, estudo, elegância, esmero; ela evoca os domínios da fi-
losofia, das ciências e das belas artes’” (ibid, p. 9). Para Arantes,
há uma contradição, haja vista, as instituições nas quais o sujeito
social está inserido, como a família, a escola, a igreja, etc, serem
instâncias que contribuem e consolidam as divisões entre o que
seria popular e culto, privilegiando o segundo. Mesmo sendo, pa-
radoxalmente, inegável que o sujeito vive imerso em muitos e
variados valores ditos como populares, tendo em vista que, “em-
bora nos ensinem a ter um modo de vida refinado, civilizado e
eficiente - numa palavra ‘culto’ – não conseguimos evitar que
muitos objetos e práticas que qualificamos de ‘populares’ ponti-
lhem nosso cotidiano” (ARANTES, 1981, p. 12).
Os conhecimentos provenientes da cultura tida como po-
pular fazem parte da vida de todos, mas que, muitas vezes, ao ser
teorizado, há um propósito de desqualificação, como se fosse
algo apartado e que se pretende manter distante, tendendo-se a
tornar menor, inferior, tudo aquilo que faz menção a povo. Se-
gundo Arantes (1981), esse preconceito é oriundo da divisão ca-
pitalista a qual é submetida as sociedades industriais, em que, há
uma separação e desvinculação dos saberes, uma vez que, acre-
dita-se ter mais prestígio social quem desenvolve atividades inte-
lectuais em detrimento de quem as faz manualmente.
A dissociação dos conhecimentos, sobrepondo-os de ma-
neira desigual e colocando-os como instâncias antagônicas, con-
tribui para explicar a supremacia de um poder sobre o outro e
manter a estratificação social das sociedades capitalistas. Nesse
sentido, o teórico explica que “essa dissociação entre ‘fazer’ e
- 29 -
Literatura, memória e cultura

‘saber’, embora a rigor falsa, é básica para a manutenção das clas-


ses sociais pois ela justifica que uns tenham poder sobre os ou-
tros” (ibid, p. 14).
Os estudos acerca da cultura popular convergem para o
entendimento de que esta pode ser concebida como o folclore.
Concepção arrolada pela maioria das pessoas comuns e aceita por
muitos estudiosos, haja vista, compreenderem a cultura popular
como “um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo
religiosas e estéticas) consideradas ‘tradicionais’ (ibid, p. 16).
Diante dessas perspectivas, o autor reitera que há muitos
equívocos e enganos nessas noções oriundas do senso comum
quanto de pesquisadores, haja vista, reiterarem que ‘o povo não
tem cultura’ ou ‘a cultura popular são as nossas tradições’ (ibid,
p. 21). Em virtude disso, há um desprestígio social vinculado à
expressão “cultura popular”, como também há o estabelecimento
da dicotomia elite/povo, culto/inculto sugerindo que, seguindo a
esteira do autor, a cultura seja algo estanque, imutável, alheia as
transformações sociais. Em oposição a essas ideias, Arantes
(1981) considera que “cultura é um processo dinâmico”, ademais
“não se consegue evitar a mudança de significado no momento
em que se altera o contexto [...]” (ibid, p. 22).
Portanto, o pesquisador esclarece que a cultura deve ser
concebida numa perspectiva múltipla, plural e associada ao solo
histórico do presente. Além disso, também esclarece que a cultura
carrega em si seus códigos, como objetos e comportamentos, os
quais só são reconhecíveis dentro de determinados contextos.
Dessa maneira, “a questão a ser enfrentada é que em um dado
meio cultural, eles possuem significação simbólica, ou seja, eles
carregam fragmentos de um código com o qual se constroem afir-
mações metafóricas a respeito das relações sociais vigentes”
(ibid, p. 28).
- 30 -
Literatura, memoria y cultura

Dentre as especulações feitas pelo autor, nas quais, pre-


tende-se buscar os sentidos historicamente, atrelados à concepção
de cultura e especificamente, de cultura popular, ele elenca, a par-
tir das trilhas que percorre, mais camadas de significação acerca
do termo cultura, as quais algumas serão mencionadas aqui:

1. A cultura se constitui de signos e símbolo, ela é convenci-


onal, arbitrária e estrutural; 2. Ela é constitutiva da ação so-
cial, sendo, portanto, indissociável dela. 3. O significado é
resultante da articulação, em contextos específicos, e, na
ação social, de conjuntos e símbolos que integram sistemas
(ibid, p. 50).

Após percorrer e exemplificar as perspectivas artísticas, nas


quais, a cultura é representada, o pesquisador considera que as
modalidades artísticas se caracterizam como uma construção
aglomerada e fragmentada capaz de tornar evidente as particula-
ridades identitárias de um povo. Nesta perspectiva, salienta que,

fazer teatro, música, poesia ou outra modalidade de arte é


construir, com cacos e fragmentos, um espelho que transpa-
rece, com as suas roupagens identificadoras particulares, e
concretas, o que é mais abstrado e geral num grupo humano,
ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua
participação na produção da sociedade
(ibid, p. 78)

Considerando as premissas apontadas, compreende-se


que o conto “A menina de lá” no livro Primeiras Estórias, de
João Guimarães Rosa, por estar inserido no contexto cultural na-
cional da segunda metade do século XX, pode ser considerado
um espelho da representação literária e cultural de um povo.
Veja-se, no tópico seguinte, como o referido conto pode
- 31 -
Literatura, memória e cultura

configurar o fazer poético como existência fronteiriça, na qual se


conjugam saberes culturais advindos do complexo das relações
dialógicas instauradas na narrativa.

A existência Fronteiriça: o entre-lugar

O entre-lugar é uma das noções que o teórico indiano Ho-


mmi K. Bhabha traz na sua obra O local da cultura (1998). Livro,
no qual analisa o encontro de culturas e qual o resultado após os
indivíduos encontrarem-se numa “existência fronteiriça”. Con-
forme a citação que introduz a apresentação desta obra, chamado
Locais da cultura, a fronteira não é o fim, o limite, mas sua pró-
pria existência, já sugere que algo se faz presente.
Pensamento que pode ser compreendido, na perspectiva
de que este “presente” é atravessado por uma condição instável
da existência, na qual o sujeito moderno não tem pontos seguros
para se sustentar. Noções que o autor explica ao reiterar que,
“neste fin de siècle, encontramo-nos em momento de trânsito em
que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas
de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior,
inclusão e exclusão” (BHABHA, 1998, p. 19).
Diante dessa compreensão acerca da impossibilidade de
haver uma segurança conceitual que defina os sujeitos na con-
temporaneidade, Bhabha (1998) considera que o mais importante
nestas constatações é a emergência de novas formas artísticas que
tornem latentes a hibridez do sujeito, que advém e se configura
do complexo das relações de fronteira, espaço de movimento, no
qual dialogam diferentes culturas. Nesse sentido, enfatiza que,

“o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a


necessidade de passar além das narrativas de subjetividades
originais e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou
- 32 -
Literatura, memoria y cultura

processos que são produzidos na articulação de diferentes


culturas” (ibid, p. 20).

A articulação dessas diferentes formas de existência que


orientam e caracterizam o presente é a proposta do autor quando
se considera o “Além”. Esta travessia ou passagem das formas de
representação que vinculava à leitura de uma obra à vida ou psi-
cologia do escritor ou a origem do sujeito, propõe o espaço do
trânsito, do “entre-lugar”, tendo em vista, que “ ‘esses entre-lu-
gares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de sub-
jetivação -singular ou coletiva – que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no
ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1998, p.
20).
De acordo como o estudioso, seria nesta condição de tran-
sitoriedade ou “interstícios” que as múltiplas experiências cultu-
rais podem ser colocadas em diálogo, quando se sabe que o en-
contro de valores culturais pode se dar de maneira dialógica, mas
também, de forma impositiva, como historicamente se fez, sobre-
pondo a cultura do colonizador sobre o colonizado.
Seja qual for o processo pelo qual se apresente, harmoni-
oso ou violento, o encontro de valores culturais, ressalta o indiano
que, a força da representação da diferença é ratificada pela lin-
guagem “Os termos do embate cultural, seja através de antago-
nismo ou afiliação, são produzidos performativamente”
(BHABHA, 1998, p. 20). Contudo, essa diferença (raça, cor, gê-
nero...) não pode mais ser interpretada com as lentes míopes da
tradição.
Além dessas questões, compreende-se que estes entre-lu-
gares viabilizam o aparecimento da voz das minorias, na qual a
potencialidade imaginativa do artista pode se encontrar, dando-

- 33 -
Literatura, memória e cultura

lhes possibilidade de expressão e de presença. Neste espaço in-


tersticial, fazer eco com uma tradição cultural que se faz presente,
problematizando-a, abalando estruturas fixas previamente arrola-
das por uma tradição, reelaborando a linguagem. Quanto a isso,
Bhabha (1998) ratifica que,

os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta


possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; po-
dem confundir nossas definições de tradição e modernidade,
realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado,
o alto e baixo, assim como desafiar as expectativas normati-
vas de desenvolvimento e progresso (ibid, p. 21).

Outra prerrogativa enfatizada pelo teórico em questão, re-


fere-se ao entendimento de que este “Além” que comumente as-
sociou-se ao prefixo “pós” dos tempos contemporâneos (pós-mo-
dernismo, pós-feminismo, pós-colonialismo) é problemático por-
que faz projeção a um futuro, a um progresso, algo afastado es-
pacial e temporalmente do presente. Contrapondo-se a esta con-
cepção, Bhabha (1998) esclarece que,

o presente não pode mais ser encarado simplesmente como


uma ruptura ou vínculo com o passado e o futuro, não mais
uma presença sincrônica [...] confrontamo-nos agora com o
que Walter Benjamin descreve como a explosão de um mo-
mento monádico desde o curso homogêneo da história, ‘es-
tabelecendo uma concepção do presente como o ‘tempo do
agora’. (ibid, p. 23).

Ademais, acrescenta o autor que este “Além” atrelado a


este “pós” (grifos do autor) só pode promover uma mudança de
perspectiva, se agregar a ele, uma força revisionária que

- 34 -
Literatura, memoria y cultura

desestabilize as verdades tradicionalmente instituídas, “se trans-


formarem o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de ex-
periência e aquisição do poder” (BHABHA, 1998, p. 23).
A partir destas noções de Bhabha (1998), acredita-se po-
der associá-las ao fazer literário empreendido pelo escritor mi-
neiro João Guimarães Rosa, no conto “A menina de lá”, haja
vista, a narrativa apresentar-se carregada de deslocamentos lin-
guísticos, nos quais é remexida a fixidez dos sentidos convenci-
onalmente vinculados, propondo ressignificações de um pas-
sado/tradição cultural no ondulante oceano do presente.

A existência fronteiriça em “A menina de lá”

Como já mencionado no início dessas reflexões, não se


pode estabelecer linhas precisas que subjazem o fazer literário,
entretanto, os estudos ao longo da história corroboram para o en-
tendimento de que a literatura é detentora de “propriedades espe-
cíficas, que basicamente se resumem numa elaboração especial
de linguagem e na constituição de universos ficcionais ou imagi-
nários”, conforme explica Souza (1986).
A narrativa apresenta, de antemão, sua primeira linha
toda em maiúscula, sugerindo um imperativo ou chamando aten-
ção do leitor para o que estar por vir. A afirmação introdutória
sugere se tratar de uma construção proveniente da memória do
narrador, pois “SUA CASA FICAVA POR TRÁS DA SERRA
DO MIM” (ROSA, 2005, p. 65), remetendo a um passado/tradi-
ção cultural existente e que se estende ao presente. Além disso, o
narrador nos informa que a personagem tem ‘sua casa’ localizada
no meio de um brejo chamado Temor-de-Deus:

SUA CASA FICAVA POR TRÁS DA SERRA DO MIM,


QUASE no meio de um bre jo com água limpa, lugar
- 35 -
Literatura, memória e cultura

chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava


com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da
mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descom-
postura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhi-
nhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com
olhos enormes (ROSA, 2005, p. 65).

Nesta esteira, a expressão “Temor-de Deus”, também


com iniciais maiúsculas, pode ser compreendida, como o narra-
dor em terceira pessoa associa, a um lugar de água limpa, onde
Deus pode fazer morada, apontando o atravessamento das perso-
nagens pela cultura religiosa a qual estão inseridas. A persona-
gem protagonista Maria, chamada Nhinhinha, é uma criança de
menos de quatro anos, a qual remete à pureza, à Nossa senhora,
mãe de Jesus. A menina morava com o Pai, a Mãe e Tiantônia, os
responsáveis pela proteção da menina. E é ela que, durante a es-
tória, com uma linguagem diferenciada irrompe com o dizer co-
mum, corriqueiro do mundo dos parentes adultos e se insurgi con-
figurada física e linguisticamente com novas formulações para
nomear o que a cerca, apontando outras e possíveis subjetivida-
des.
Segundo Souza (1986), a literariedade, “propriedade es-
pecífica das obras integrantes da literatura strictu sensu, seria a
capacidade que os escritores/as têm de promover um possível
‘desvio’ (grifo do autor) organizado na linguagem que o diferen-
cie do uso corriqueiro, comum. Enfim, “o modo especial de ela-
boração da linguagem inerente às composições literárias, carac-
terizado por um desvio em relação às ocorrências mais ordinárias
da linguagem” (ibid, p. 47).
Nessa medida, pode se associar às colocações feitas pelo
teórico à Nhinhinha, tendo em vista, que ela vivia a lançar um
olhar inaugural sobre as coisas do mundo ressignificando-as e é
- 36 -
Literatura, memoria y cultura

por isso mesmo, tornada estranha entre os seus, pela forma dife-
renciada de comportamento e de nominar o mundo que a cerca.
Para ilustrar, vejamos o enxerto:

-“Ninguém entende muita coisa que ela fala...” – dizia o Pai,


com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois
só em raro ela perguntava, por exemplo: - “ele xurugou?” –
e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esqui-
sito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: -
“Tatu não vê a lua...” – ela falasse (ROSA, 2005, p. 65).

Na perspectiva apontada, de que a literatura é possuidora


de literariedade e, esta entendida como os processos de desloca-
mentos promovidos pelos escritores, em que a linguagem ganha
modos especiais de dizer e que, a partir dessa inusitada constru-
ção linguística, acontece a formulação de um novo mundo, ficci-
onal, oriundo da imaginação do artista. Percepções que podem
ser vinculadas às falas de Nhinhinha quando atribui, enfeita o
sentido, a partir do olhar primevo da infância, às coisas do
mundo, por exemplo, quando olha as estrelas e as nomeia de “es-
trelinhas pia-pia”, ou ao apontar o dedinho para o céu e dizer:
“Jabuticaba de vem-me ver...”, e passar a chamar o sabiá de “Se-
nhora Vizinha” (grifos do autor).
Guimarães Rosa, como autor do século XX, foi influen-
ciado pelas correntes literárias modernas. Ademais, conhecedor
de muitas línguas pôde incrementar seu instrumental, a língua,
constituindo assim, um idioma que lhe é próprio, o que lhe garan-
tia mais capacidade expressiva, instituindo um uso especial na
linguagem promovendo uma abertura para a criação imaginativa,
ficcional. Dessa maneira, um idioma só não seria suficiente para
evidenciar o que Rosa chama de o “impossível”, o “infinito”.

- 37 -
Literatura, memória e cultura

Entendimento reiterado pelo escritor, em entrevista concedida a


Günter Lorenz em Diálogo com Guimarães Rosa (1994):

Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei,


estou buscando o impossível, o infinito [...]. Por isso, acres-
centei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, in-
clui em minha linguagem muitos outros elementos, para ter
ainda mais possibilidade de expressão (LONREZ, 1994, p.
45).

As peripécias linguísticas do escritor o fazem um alqui-


mista da palavra, tendo em vista, propor dá vida nova às palavras
e livrá-las do peso da temporalidade. Quanto a isso, Rosa escla-
rece, em entrevista a Günter Lorenz, que considera a língua como
seu elemento metafísico e confessa que acrescenta muitos ele-
mentos nessa construção “para ter ainda mais possibilidade de
expressão” (LORENZ, 1994, p. 46). O autor esclarece que,
quando escreve, está diante do infinito e acrescenta que, se vale,
para compor seu universo ficcional da existência das:

Ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas va-


riantes latino-americanas do português e do espanhol, nas
quais também existem fundamentalmente muitos processos
de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que
não se pode explicar com a razão pura. O elemento metafí-
sico...”(LORENZ, 1994, p. 45).
Conforme as exposições indicadas, compreende-se que
Nhinhinha configura-se como a própria personificação da litera-
tura, uma vez que se reveste de estranhez na aparência e na forma
de nominar o mundo, reinaugurando-o com a visão única, pura
de menina de menos de três anos, premissa que faz parte do pro-
jeto rosiano de perscrutar o novo, o não dito, a infância da

- 38 -
Literatura, memoria y cultura

palavra. Além disso, a criança também é considerada santa, como


já anuncia seu nome de batismo, Maria, portanto, fora de uma
lógica existencial orientada pela razão pura.
Dessa forma, Nhinhinha se apresenta, no conto, como mi-
lagreira, o que pedia em instantes era concedido, causando es-
panto e medo em todos que a rodeiavam. O que causava espanto
e estarrecida estranheza à família é que dos desejos de Nhinhinha
não podia tirar o “verdadeiro valor”, pois só desejava ninharias,
e despedia apenas o seu “Deixa, Deixa...” (Ibid, p. 67), indici-
ando que não podia atender às demandas da vida prática sugeri-
das pelo pai. Este não a compreendia, visto que, o peso da tem-
poralidade da razão que carrega o incapacita. Percepção que o
narrador do conto reitera dizendo:

“ E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhi-


nhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não
podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboreti-
nho se quebrava” (ROSA, 2005, p. 68).

Por sua vez, o nome da personagem Nhinhinha pode ser


associada ao sentido de ninharia, “coisas sem valor”, justamente
do que a literatura e arte em geral se alimentam, ou seja, de tudo
que se encontra fora da lógica da existencial vigente, tendo em
vista que o conto faz alusão e enfoca a natureza e os seres que a
compõem e que são enfeitados pelo olhar infantil da personagem.
Todavia,

O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria


muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o
que não põe nem quita. Assim quando a mãe adoeceu de
dôres, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com
que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando

- 39 -
Literatura, memória e cultura

seu “-Deixa...Deixa...” - não a podiam despersuadir. Mas


veio, vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou, quentinha. A mãe,
que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto.
Souberam que ela tinha outros modos, (ROSA, 2005, p. 67).

Nesta perspectiva, a mãe de Nhinhinha, que não largava


o terço, sarou por acreditar que a filha poderia curá-la e assim
acontece, como reitera o narrador: “a mãe, que a olhava com es-
tarrecida fé, sarou-se então, num minuto”. O trecho sugere que a
família de Nhinhinha é atravessada pela cultura, a qual estão
imersos. Esta, em boa medida, norteia e orienta a vida das pessoas
em todos os âmbitos, inclusive, na esfera religiosa. A menina vive
a apontar o céu, diz ter saudades de lá quando apontava e evocava
ir para o céu visitar os parentes já falecidos.
Segundo Arantes (1981), tudo que se instaura tradicional-
mente (advém de um passado) na vida de um grupo social pode
ser chamado de cultura. Afirmando que todas as ações dos indi-
víduos são regidas, orientadas, pelos códigos instituídos conven-
cionalmente, numa sociedade, que por sua vez, carregam em si
um significado. Aspectos dos quais, assinala que,

em se tratando de vida social, a cultura (significação) está em


toda a parte. Todas as nossas ações, seja na esfera do traba-
lho, das relações conjugais, da produção econômica e artís-
tica, do sexo, da religião, das formas de dominação e de so-
lidariedade, tudo nas sociedades humanas é constituído se-
gundo os códigos e as convenções simbólicas a que denomi-
namos ‘cultura’” (ARANTES, 1981, p. 34)

Até que, um dia, Nhinhinha quis o arco-íris, choveu e ela


que vivia paradinha no seu tamboretinho, saltou e “se alegrou,
fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação” (ROSA, 2005, p.

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Literatura, memoria y cultura

68). Nisso, os pais assustados perguntaram: “Adivinhou passari-


nho verde?” (ibid, p. 68). Percebe-se a alusão a elementos que
compõem a cultura expressos na linguagem empreendida na nar-
rativa, haja vista que, a expressão mencionada aponta um dito po-
pular, advindo da cultura popular, o qual remete a um estado de
extrema alegria.
A posição de estranhamento, a qual é submetida a menina
se potencializa quando acaba por morrer sem explicação prévia.
O que leva ao entendimento da menção dada ao título do conto,
que aponta que a menina é de lá, e por várias vezes, aponta o
dedinho para o céu e sofre advertência ferrenha de Tiantônia por-
que, no dia do arco-íris ter intuitivamente pressentido a morte. O
que sugere que a menina, análoga ao entendimento que se tem
dos santos, não pertence a este mundo, terreal, lógico, regido pe-
las leis da utilidade.
Este “lá” que compõe o título também pode aludir a um
ultrapassar de fronteiras, o “Além” sugerido por Bhabha (1998),
como possibilidade capaz de constituir a força revisionária que
abala as estruturas das verdades tradicionalmente instituídas,
atrelado à linguagem literária do escritor mineiro1. A menina de
lá, Nhinhinha, seria a própria configuração desta complexidade
cultural que se insurge no mundo e representado na arte literária.
Como novo signo, este “Além” ou ‘Lá” pode remeter a
um mundo, no qual, precisa-se ser experienciado, na tentativa de
que para vislumbre uma existência mais plural, no qual se conju-
gue os saberes do fazer poético tradicional, o qual estava atrelado
o entendimento de que a escrita poética clássica advinha de uma
inspiração divina, portanto, a lógica racional não abarca a

1 Para uma exposição sobre ideologia, cultura e linguagem, vide Noletto e


Lopes 2019, páginas 2-6.
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Literatura, memória e cultura

personagem, entretanto, a menina instaura o novo dentro da nar-


rativa, ao atribuir inusitadas possibilidades de expressão às coisas
que a rodeiam dentro da construção poética.
Assim, com a morte da filha, o Pai, que pode representar
as verdades oriundas da tradição literária, a razão, a forma dico-
tômica de ver o mundo, não queria atender ao último desejo da
filha. Ao contrário do Pai, a Mãe, em um estalar de pensamento,
compreendeu que o desejo da filha não necessitava ter uma ex-
plicação racional para ser atendido. O narrador, desde o início da
estória, apresenta que a Mãe vivia com o terço na mão, sugerindo
que ela sabia que a vida, o ser humano também está envolto de
mistérios que a razão pura não explica, como a fé e o saber ad-
vindos das práticas culturais religiosas.

A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no


mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – sus-
pensão num pensamento: que não era preciso encomendar,
nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-
rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo
milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha (ibid,
p. 69).

A esse respeito, Arantes (1981), afirma que cada grupo


social, dentro de um tempo e um espaço, interpreta o mundo de
forma distinta, logo, valores e sentidos são advindos de processos
sociais plurais, os quais os indivíduos estão imersos, instituindo
uma identidade cultural. Sendo assim, a cultura “constitui os di-
versos núcleos de identidade dos vários agrupamentos humanos,
ao mesmo tempo que os diferencia uns dos outros” (ibid, p. 26).
Em boa medida, pode-se compreender que há um choque
de culturas presentes na narrativa. Nhinhinha vive em outra ló-
gica existencial que diverge da própria construção cultural de
- 42 -
Literatura, memoria y cultura

família. O que se pode inferir que a menina, representando a


construção literária contemporânea, contrapõe-se, ou se coloca
fora dos preceitos previamente estabelecidos por uma tradição,
um entendimento de mundo representado no conto pelo Pai, Mãe
e Tiantônia, tendo em vista que, a criança era possuidora de po-
deres extraordinários, mas que, não atendia às demandas da vida
prática, considerados ninharias, inutilidades pelos parentes, tendo
em vista que dos seus milagres não se tirasse um “verdadeiro”
proveito, pois o que desejava se restringia às coisas inúteis, “o
que não põe nem quita” (ibid, p. 67).
Este posicionamento de Nhinhinha pode ser vinculado à
concepção trazida por Hommi K. Bhabha em O local da cultura
(1998, p. 24): a existência fronteiriça, “o lugar a partir do qual
algo começa a se fazer presente [...]”, a presença que reclama
uma possibilidade, a necessidade do surgimento de novos signos
de representação, visto que, a assimilação da cultura dos pais não
se dá de forma conciliatória, pois o modo inusitado de Nhinhinha
não encontrava lugar na família, no mundo terreal, pois está vin-
culado ao atendimento das necessidades cotidianas. A partir
desse conflito, a criança instaura novos signos que deslocam os
sentidos e, por isso,

Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas pre-
ferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem
havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, pare-
cia mais uma engraçada espécie de tolerância. E Nhinhinha
gostava de mim (ROSA, 2005, p. 66).

O entre-lugar estabelecido por Bhabha (1998, p. 20) con-


sidera que esta abertura instituída pela estranhez da menina “for-
nece o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação –
- 43 -
Literatura, memória e cultura

singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade


[...]”. Entendimento que pode ser associado à personagem Nhi-
nhinha que é água limpa, como pretende a poética de Guimarães
Rosa, da qual emergi novas possibilidades de sentidos, abalando
as estruturas da família, dos sentidos, do saber, do viver e o faz a
partir da linguagem literária contemporânea que se institui dentro
da narrativa.
Configuração que torna a criança desconhecida, ‘Outra’,
provocando a existência de uma estranha potência imaginativa
que a faz ser considerada santa. Todavia, “E vai, Nhinhinha ado-
eceu e morreu” (ROSA, 2005, p. 68), depois no dia do arco-íris.
Neste dia, Tiantônia tinha ralhado com a menina. Coisa que nem
os pais de Nhinhinha entenderam.

Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que naquele


dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha
falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O
que fora: que queria um caixãozinho cor-de rosa, com enfei-
tes verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se enco-
mendar o caixãozinho assim, sua vontade? (ROSA, 2005, p.
69),

A personagem Nhinhinha pode representar a existência


fronteiriça oriunda da relação literatura e cultura, na qual a cri-
ança conjuga saberes conflitantes, desautomatizando a linguagem
comum, propagadora das dicotomias e reclamando uma presença,
da qual possa emergir novas possibilidade de subjetivação e de
existência oriundas do trânsito dos saberes culturais. A lingua-
gem literária empreendida pela voz da personagem, historica-
mente silenciada, pois é uma criança, é livre para criar, a partir
do olhar inaugural que lhe é inerente diante do mundo emana seu
poder imaginativo, inaugurando outra possibilidade de leitura de
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Literatura, memoria y cultura

mundo, a partir da linguagem literária que se estabelece na narra-


tiva.
Nesse ínterim, a menina pode ser compreendida como a
própria personificação da poesia e do fazer literário na contem-
poraneidade, que se distanciando-se do entendimento comum,
move- se para o não-dito, o “Além”, o inusitado da experiência.

Considerações finais

Diante do exposto, percebeu-se que, a personagem Nhi-


nhinha, sugere a própria personificação da literatura na contem-
poraneidade, visto que, estabelece-se em um lugar de fronteira,
espaço no qual algo novo se faz presente. Entendimento caracte-
rístico do fazer literário contemporâneo, haja vista, a criança/lite-
ratura se apresentar sugerindo a emergência de novos signos, nos
quais se viabilizem romper com estruturas historicamente, res-
ponsáveis pelas visões antagônicas de mundo.
Assim sendo, propagadora de um “Além” promovido pe-
los desvios linguísticos encontrados na narrativa, espaço no qual,
se instala o poder da imaginação criadora/artística. Este aqui
agora advindo da posição fronteiriça da personagem quebra o
continuum da história, a automação do homem ao se fazer estran-
geira perante os seus, irrompendo da linguagem cotidiana, as di-
cotomias e provocando o surgimento de novas formas de repre-
sentação dos sujeitos proporcionadas pelo “perigo”, o poder de
deslocamento da literatura. Esta, compreendida como o espelho
da cultura, promove a partir de seu instrumental, a língua, a de-
sarticulação dos sentidos e, por conseguinte, possibilita uma re-
configuração de mundo e das identidades, através da linguagem
literária empreendida no conto, tornando possível a convivência
colaborativa de diferentes culturas.

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Literatura, memória e cultura

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Literatura, memoria y cultura

3. JOSÉ
RAFAEL DÁVILA, PROTAGONISTA
Y TESTIGO DE LA BELLE ÉPOQUE BANA-
NERA
_________________________

Annabell Manjarrés Freyle1

Introdução

En 1936, José Rafael Dávila y su familia de Santa Marta


fueron a visitar a sus tías en Bruselas, ciudad donde residían
desde hacía 14 años. Allí pasó ocho meses de vacaciones. Su es-
tancia coincidiría con los Juegos Olímpicos de Alemania. Era un
niño de 12 años cuando él y su familia, sentados a pocas sillas de
Hitler, quedaron impactados no solo con la cantidad de banderas
enarboladas con la cruz esvástica o con el dirigible Hindenburg
que sobrevolaba el Estadio Olímpico de Berlín, sino con el ca-
risma y fuerza del dictador alemán, quien aprovechó para vender
en su discurso de apertura una poderosa y aria Alemania Nazi.
“Ni siquiera Mussolini era tan espectacular”, recuerda en
el sofá de su apartamento de Santa Marta, 81 años más tarde. Des-
pués de su viaje a Berlín, visitaron Roma. Llegarían una mañana
de agosto a la Plaza Venezia, lugar donde Mussolini ofrecería su
discurso de bienvenida al ejército italiano, que había masacrado
en Abisinia a millones de etíopes.
Las fotografías de sus viajes a Europa se conservan en los
voluminosos álbumes familiares que José Rafael Dávila conoce
al dedillo. De cada foto posee una anécdota. A sus 94 años evoca
detalles de una noche de tormenta, en medio de la vastedad del

1 Poeta, periodista y escritora. Correo: annabellmanjarres8@gmail.com


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Literatura, memória e cultura

Atlántico, a bordo del Queen Mary, un transatlántico recién inau-


gurado y famoso por su lujoso decorado art déco. En la Segunda
Guerra Mundial, le recuerdo, el Queen Mary sería utilizado para
transportar tropas australianas a los frentes de guerra.
Su hija Mercedes suspende la charla que sostenemos en la
confortable sala de su apartamento, para ofrecernos algo de be-
ber. Hablar con José Rafael Dávila es transportarse en una nave
del tiempo sin posibilidad de regresar intactos del viaje. Merce-
des me pide ayuda para acomodar uno de los pesados álbumes de
fotografía que José Rafael sostiene en sus piernas. Con una mano
pasa las páginas y con la otra sostiene su bastón, algo desgastado
en el mango. ¿Cómo logra —me pregunto— recordar tantos he-
chos, opinar sobre los mismos y llamarme por mi nombre con
tanta familiaridad, como si nos hubiésemos conocido en el siglo
pasado?
“Háblale duro para que pueda escucharte”, me sugiere
Mercedes. Trato de hacerlo pero José Rafael, concentrado en sus
fotografías, me habla de la carta del menú del Queen Mary que
acaba de encontrar en el álbum. La carta tiene fecha del 17 de
octubre de 1936, momento en que el transatlántico regresa desde
Londres al puerto de Nueva York.
“Conocí también a Leopoldo III de Bélgica, y después tuve
la grata sorpresa de verlo aquí en Santa Marta. Deja que te cuente
eso: él se bajó en Gaira. Acompañé a los periodistas de El Tiempo
a cubrir la visita del rey. Eso fue por los años cincuenta, creo que
en el 52. Por cierto, el rey Leopoldo estuvo en Cincinnati, la finca
de la familia Flye en Minca, y también visitó la Quinta de San
Pedro Alejandrino. Allá debe estar su firma en el libro de visitan-
tes”, me explica sin que medie pregunta de mi parte.

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Literatura, memoria y cultura

Recordando A “Mamita Yunai”

Las historias vienen a su mente con tanta velocidad que


pasa de un siglo a otro sin darse cuenta, y tiene tanto que contar
que es necesaria la intervención de Mercedes para moderar la
conversación.
“No, papá: ella quiere que sigas contando sobre tu vida en
Europa”, le aclara.
“Ah, la belle époque”, empieza diciendo. “Era más fácil
viajar a Europa que viajar a Bogotá. Mussolini era muy teatral, lo
recuerdo. Gaitán, que estudió Derecho en Roma, le captó muchos
de sus trucos”. Me indica que el número de muertos en la plaza
de Ciénaga, en 1928, fue algo muy exagerado, que “Gaitán, apro-
vechando la coyuntura política, hizo un gran debate al Gobierno
de turno”.
Sin más, pasamos de la historia universal a uno de los epi-
sodios más violentos de nuestra historia nacional. “Cada quien
habla de la feria según cómo le fue en ella”, anota. Respecto de
los hechos de la Masacre de las Bananeras, dice: “También vino
María Cano, contagiando a los obreros con sus ideas marxistas.
Había algunos descontentos, pero quiero aclarar que a los obreros
de United eran los mejores pagados de la clase obrera en Colom-
bia. Todo fue manipulado por el comunismo”.
Dávila considera que el episodio de la Masacre de las Ba-
naneras requiere ser examinado con más objetividad. La mayoría
de estudiosos están influidos, según él, por los historiadores co-
munistas, seudo-comunistas o izquierdistas.
Las Noguera Ángulo, tías de José Rafael, habían heredado
fincas de banano. El comienzo del siglo XX fue una época de
muchas facilidades y privilegios para los de su clase social. La
United Fruit Company rentaba los predios de cultivos a los
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Literatura, memória e cultura

propietarios de las fincas a cambio de jugosas sumas en dólares.


La mayoría de estos propietarios pertenecían a tradicionales fa-
milias de Santa Marta. Algunos eran descendientes de españoles,
como los Dávila, herederos de familias dominantes pero con me-
nor poder que sus homólogos de la aristocracia cartagenera o que
los hijos de las nuevas fortunas acumuladas en Barranquilla gra-
cias al comercio internacional. Otros beneficiarios, explica, fue-
ron los militares liberales, que recibieron tierras como parte de
los acuerdos de paz, una vez se firmó el Tratado de Neerlandia
(1902), que buscó darle fin a la Guerra de los Mil días.
Dávila, al igual que muchos hombres y mujeres de su
época, sigue pensando que la intervención de la United Fruit
Company trajo prosperidad a la Zona Bananera. La compañía
bostoniana abrió canales de riego, construyó puentes, trajo las te-
lecomunicaciones tendiendo líneas telegráficas y estableció en la
Zona los famosos comisariatos, que eran súper tiendas donde
vendían los mejores y más sofisticados productos importados por
la Flota Blanca desde los Estados Unidos. En los comisariatos,
me dice, se vendían jamones, quesos, camisas Harrow, los famo-
sos muebles Thonet que aún decoran las casonas de Ciénaga y
Santa Marta, además de zapatos de finas marcas, cervezas, jugue-
tes electrónicos, bicicletas…
“Por eso te dije que cada quien habla de la feria según le
vaya en ella”, reitera. “En esa época se comía mejor aquí que en
Bogotá, porque la United traía la mejor comida que existía, y los
departamentos médicos eran de excelente calidad. El de Sevilla,
el de Riofrío eran muy grandes y con toda clase de servicios”,
puntualiza sin retirar los ojos de una fotografía en la que aparece
un grupo de enfermeras y doctores norteamericanos sentados en
el jardín del antiguo hospital de la United. Hoy funciona en la
edificación la Clínica Cardiovascular de Santa Marta.
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Literatura, memoria y cultura

Los comisariatos han sido bastante estudiados por la eco-


nomía y la historia. Está probado que los obreros, a quienes la
United pagaba los jornales con vales, solo podían adquirir con
ellos bienes de consumo básico.

Yo Viví La Bruselitis
Con sus tías conoció Bélgica, Francia, España, Alemania,
Italia, Suiza, Holanda, Luxemburgo, Inglaterra y Austria. El dólar
estaba a la par del peso. Quienes tenían negocios con la United
Fruit Company podían tomar un barco de la Flota Blanca con
rumbo al puerto de Bruselas o Ámsterdam. En Bruselas vivían las
adineradas familias samarias y cienagueras: los Riascos-Labar-
cés, los Pinto, los Dávila, los Noguera, los Henríquez, los Morán,
los Álvarez-Correa y mucha más gente a la que los negocios con
la “Mamá Yunai” le permita tales privilegios.
Era la época de la llamada “bruselitis”, una expresión deri-
vada de palabra brucelosis (enfermedad del ganado), acuñada
para bautizar la costumbre de la élite local de vivir en Bruselas,
Bélgica. Las rentas que la compañía bostoniana pagaba a estos
empresarios eran giradas en cheques en dólares a Bruselas, Nueva
York, París, Londres, Ámsterdam o a cualquier ciudad donde re-
sidieran estas familias. Gracias a estos dineros construyeron gran-
des mansiones de aspecto neoclásico a imitación de los barrios
victorianos de Londres de la segunda mitad del siglo XIX. En la
Avenida del Libertador de Santa Marta y en el Centro Histórico
de Ciénaga, aún se pueden apreciar espectaculares fachadas de
este tipo de arquitectura.
“Yo tuve la suerte de vivir la bruselitis”, dice José Rafael.
“Todo era dolce vita. Una época deliciosa. En fin, una cosa que
no volverá a suceder”, puntualiza.

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Literatura, memória e cultura

De la bruselitis recuerda a otras familias aristocráticas que


también disfrutaron de las bondades de Mamita Yunai: “Carlos
Olarte, un hijo de don Pacho Luis Olarte, hermano de María del
Carmen, se casó con una mujer bellísima llamada Susana, quien
llegó a ser Miss Belga. Recuerdo a Rafael Lafaurié, bacteriólogo;
a Armando L. Fuentes, abogado; a la familia Fuentes-Guardiola.
El abuelo de ellos vivió en Bélgica. Darío Hernández Díaz Gra-
nados, el famoso pianista que estudió en el Conservatorio Real de
Bruselas, fue un artista interesante, pero cometió el error de que-
darse a vivir en Santa Marta. El general Ramón Demetrio Morán
de Ciénaga, sí se quedó en Bruselas, murió allá. Ramón dejó des-
cendencia: entre ellos los Sumbatoff”.
Su memoria y su habla son incontenibles. Busco la mirada
de Mercedes en señal de ayuda. Es mucha información que me
cuesta asimilar y anotar en mi cuaderno de apuntes. Afortunada-
mente, pienso, mi grabadora tiene batería de sobra.
La dolce vita duró cerca de medio siglo. La Segunda Gue-
rra Mundial (1939-1945) supuso, con la interrupción del comer-
cio bananero, un duro golpe para la economía y la vida de place-
res de las élites locales. El golpe definitivo comenzó con el Mal
de Panamá, enfermedad que afectó el cultivo de banano Gros Mi-
chel, siendo uno de los motivos para que la United se trasladara
a la Zona de Urabá, donde, además de haber tecnificado el trans-
porte de frutas, sembraban una especie más resistente a las enfer-
medades y los vientos. Se volvió costoso sembrar en la Zona Ba-
nanera. “Las tierras —anota José Rafael— eran menos producti-
vas, tampoco había plata para tecnificar las fincas a la velocidad
que exijan los mercados e imponían los competidores de Urabá y
Ecuador”.
Los espejismos, a finales de la década de 1960, se desva-
necieron delante de los ojos melancólicos de los aristócratas
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Literatura, memoria y cultura

arruinados. La bruselitis pasó a ser un recuerdo increíble y tema


de las obras de escritores como Álvaro Cepeda Samudio (La casa
grande, 1962). El mismo Gabriel García Márquez fabuló el fenó-
meno en Cien años de soledad (1967), representándolo en Ama-
ranta Úrsula, la chica flapper inspirada, tal vez, en Úrsula Revo-
lledo: la joven más extrovertida y audaz de la Zona Bananera de
aquella época.
“Fue la debacle —se lamenta José Rafael—: se vivía muy
estrechamente. Al menos mis tías tenían El Alambique. Era una
finca que comprendía lo que hoy son los barrios Los Ángeles,
Bavaria y La Esperanza en Santa Marta. Colindaba con El Piñón,
propiedad de José Francisco ‘Chepe’ Riascos; aún existe con una
casa colonial allí”, aclara. De hecho, desde el balcón de su apar-
tamento en el edificio Torres del Mayor, logra verse la quebrada
Tamacá y la entrada de la hacienda El Piñón entre los urbanizados
predios que un día pertenecieron a la aristocracia criolla. En
efecto, esta hacienda, hoy casa de residencia de los Zúñiga-Rias-
cos, queda en el popular barrio Ciudadela 29 de Julio, en cuyas
calles crecí.
“Mis tías”, regresa la voz de José Rafael, “tenían en El
Alambique hortalizas y unas vacas. En la época en la que se dejó
de exportar banano, nos mantuvimos con una lechería”, precisa.
Fue una época crítica para la economía y la sociedad bana-
nera. La suspensión de la producción y el envío de banano a Eu-
ropa y Estados Unidos significaron un fuerte golpe para el empleo
y el consumo, como han insistido algunos estudiosos. Miles de
hectáreas (más de 15 mil) fueron presas de la maleza y las enfer-
medades, y miles de obreros de las fincas, el ferrocarril y el puerto
de Santa Marta quedaron cesantes. Esto explica que, durante el
gobierno de Eduardo Santos (1938-1942), se aprobara para el
Magdalena, siendo gobernador José Benito Vives (1939-1941),
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un plan de fomento para mitigar el desempleo de los obreros. Este


plan estuvo compuesto por una serie de obras como El Teatro
Santa Marta y el Hotel Tayrona en la capital del departamento, y
el Hospital San Cristóbal y el Hotel Tobiexe en Ciénaga, entre
otras.
Los hombres del banano, tanto en Santa Marta como en
Ciénaga, añoraban el regreso de la United, como escribió Cepeda
en su columna “Al margen de la ruta”, luego de una de sus visitas
a Ciénaga: “Este hombre arruinado que va a la playa a soñar con
el fin de la guerra y la vuelta a la holgura con el regreso de la
Compañía Frutera, ve surgir del seno de su mar, en vez de la re-
dada rica en peces que brillan al sol, el espejismo ilusorio de la
mata de guineo”.
Pero Dávila no solo tiene testimonios de los beneficios de
la bruselitis para su clase social. Los obreros, según él, también
tuvieron su bruselitis. “Vivían tan bien que algunos hasta tenían
dos mujeres de planta”, dice. Era corriente que después del pago
de quincena, los trabajadores, braceros y operarios del ferrocarril
salieran a las cantinas y bares de Santa Marta a beber, jugar cartas
y ruletas, además de requerir servicios sexuales.
Me hace ver que los más famosos prostíbulos, en los pri-
meros sesenta años del siglo XX, estuvieron ubicados en Santa
Marta en las calles 8 —calle de las Piedras— y 11 —calle Can-
grejal—.
“Las prostitutas eran muy deseadas por clientes de todas
las clases sociales”, recuerda. “Algunas eran muy llamativas y
vestían a imitación de sus homólogas francesas de los bares de
Montparnasse, pero eran colombianas a pesar de sus fingidos
acentos”, precisa.
Pero no todos los obreros y operarios participaban del es-
pejismo. Muchos apenas ganaban para comer guineo de rechazo
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Literatura, memoria y cultura

con pescado, sobre todo los que residían, en precarias viviendas,


en los límites del puerto y el desaparecido barrio El Ancón.

Una Adolescencia En El Balneario


La adolescencia de José Rafael estuvo marcada por la belle
époque del banano. Los atardeceres en el camellón de la bahía, la
pista de patinaje y la galantería están en la memoria de los de su
generación. Los jóvenes iban vestidos de lino y sombrero para
enamorar a las muchachas. Ellas, vestidas con trajecitos de mu-
selina y sombreros de ala ancha, sólo podían estar allí hasta las
seis de la tarde. El punto de encuentro solía ser el desaparecido
Club Balneario, ubicado en la carrera 1ª, sobre el malecón, en los
límites de las actuales instalaciones de la Sociedad Portuaria de
Santa Marta.
“Los bañitos eran de estilo cubano, muy bonitos. Tenían
una especie de camarotes para bañarse. Había restaurantes, hela-
derías y bares frente al mar”, anota con precisión.
En una ciudad de pocos atractivos turísticos, el Club Bal-
neario era lo in. De la imponente infraestructura solo quedan vie-
jas fotografías de archivo, y tuvo que ser demolido para ampliar
el puerto marítimo de Santa Marta. Este club fue construido en
1930 por la familia Dávila-Riascos. En 1949, siendo Mariano Os-
pina Pérez el presidente de Colombia, Jorge Leiva, ministro de
Industria y Comercio, supervisó personalmente la demolición de
este atractivo.
“Recuerdo que el ministro dijo: ‘Voy a Fundación en tren;
de regreso, este balneario debe estar tumbado’. A su regreso lo
habían demolido. Nos quedó solo la Estación del Ferrocarril, que
era el centro de la vida económica de la ciudad”, agregó.
José Rafael destaca de sus recuerdos en el Club Balneario
la existencia de una pista de patinaje. La recordada pista sería
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Literatura, memória e cultura

para los de su generación, un escenario en el que la música, la


moda y el boom de los patines marcaron la belleza de los soñados
años cincuenta, una vez la reanudación del negocio bananero
trajo un nuevo aire a la aristocracia samaria, en lo que sería la
última fase de la Bruselitis, sepultada, a principios de los setenta,
por la fiebre de las Rangers y los gatillos, instrumentos mortales
de la Bonanza Marimbera (1976-1985).
“Ombe, Santa Marta era mejor antes”, insiste José Rafael.
“La sociedad era muy pacata; sí, pero muy sana. Uno iba a charlar
con las amigas en el camellón. Ellas lucían sus mejores trajes.
Todo era muy diferente, nos tratábamos con mucho respeto. Los
hombres nos quitábamos el sombrero para saludarlas”.
Santa Marta era conocida como la ciudad de los pianos, los
muchachos se lucían en sus patines y las mujeres, tocando por las
tardes un piano de cola en sus casas.
“Pero eso ya no volverá más —agrega— acabaron con el
balneario y también con el barrio El Ancón y con Taganguilla,
que eran tan bonitos que la vez que fuimos a Capri, Italia, dijimos
que El Ancón era más hermoso”, remata algo fatigado, pero con
la mente y el cuerpo transportados a sus vacaciones europeas de
1936.

El Informante De Ramón Illán Bacca


Llegamos a un tema ineludible, la amistad con su primo
Ramón Illán Bacca, de cuya obra José Rafael es informante de
primera mano y personaje.
“Sí, mi primo Ramoncito es un hombre muy valioso. Un
escritor con un registro muy personal en la literatura colom-
biana”, me dice. “Como yo soy mayor que él, me ha tocado toda
la vida aclararle episodios de la vida familiar y la vida de la

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ciudad, que él ha sabido utilizar con mucha gracia en sus novelas,


cuentos y crónicas”.
Se queda pensando un momento, escarbando en sus recuer-
dos. Al fin expresa: “Él me ha hecho el favor de incluirme en uno
de esos cuentos”.
Ramón Bacca es primo de José Rafael y fue criado y edu-
cado por las mismas tías Noguera Angulo, “las tías victorianas”
a las que se refiere Ramón Bacca en “Notas para una improbable
autobiografía”. José Rafael y Ramón crecieron en la Calle del
Pozo (calle 18), entre 4ª y 5ª, del Centro Histórico de Santa Marta,
sector donde vivían los potentados bananeros en sus cómodas ca-
sas republicanas. Ramón es un escritor clave para entender las
intimidades de la bruselitis y de la vida de la élite en Santa Marta:
“Este mundo con películas de Shirley Temple y con un re-
trato de la reina Astrid de Bélgica en la sala, afortunadamente era
contrapesado por los dramones mejicanos que veía en el gallinero
del ‘Rex’ (teatro), al que llegaba por las noches escapándome por
el techo”, escribe Bacca.
Algunos cuentos en donde examina la vida de esplendor y
afugias de la élite samaria son: “Si no fuera por la Zona, ca-
ramba”, “El príncipe de la baraja” y “En la guerra no hay manza-
nas”.
En “Si no fuera por la Zona, caramba”, por ejemplo, Bacca
recrea con sorna el famoso baile que la sociedad samaria organizó
en honor a Cortés Vargas, en el Carnaval de 1929, meses después
de la masacre de las bananeras:
— ¿Esta gente está loca, no? ¿Cómo se les ocurre hacerle
un homenaje a un carnicero de éstos?
Pero su tío y dueño del único periódico de oposición, el Fiat
Lux, no le acompañó en la indignación, sino con voz tranquila le
respondió:
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Literatura, memória e cultura

—Te entiendo perfectamente, pero tenemos que ir.


(…)
— ¿Si vamos al homenaje cómo vamos a explicar el cam-
bio de posición a nuestros lectores? —le dijo.
—Cuando apoyamos la huelga era otro momento. A los co-
merciantes nos interesaba que desaparecieran los comisariatos.
Pero después de lo que pasó las cosas han cambiado.
Y añadió:
—Recuerda que lo que nos da de vivir es el almacén, no el
periódico”.
Ramón Bacca, como puede observarse en su texto, saca a
relucir las contradicciones de la élite samaria y se aparta del pen-
samiento dominante en su familia.
“Las tías nunca vieron bien que Ramón escribiera; ellas lo
educaron para que fuera abogado y un alto funcionario del Es-
tado”, me comenta en voz queda, como si fuese un secreto de
inteligencia. “El salió nadaísta y escritor”, remata de buen humor.
“Yo siempre lo apoyé. Repito, es un hombre valioso”.
Su respuesta alude a los años en que Ramón Bacca estu-
diaba Derecho en Medellín y entró en contacto con algunos
miembros del nadaísmo, entre ellos Gonzalo Arango, el líder es-
piritual de esta mediática secta literaria.

La Poesía Y Los Carranza


Desde su adolescencia, José Rafael leía toda la poesía mo-
derna que se le cruzaba en el camino. Charles Baudelaire, Paul
Verlaine, Arthur Rimbaud, Gustavo Adolfo Becker, José Asun-
ción Silva, Federico García Lorca, Pablo Neruda y el colombiano
Eduardo Carranza siguen siendo sus autores favoritos. La biblio-
teca de su habitación conserva obras de estos queridos nombres.

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Literatura, memoria y cultura

El poeta Carranza, profesor suyo de Literatura en el colegio


La Quinta de Mutis de Bogotá, fue uno de sus grandes amigos.
De él y su hija, María Mercedes, guarda muchas anécdotas.
“Ellos me apreciaron mucho. De qué no hablaba yo con
Eduardo Carranza. No soy escritor ni nada, pero viví la poesía
íntimamente por él. Al maestro Carranza lo inspiraban las cosas
sutiles”, me explica señalando una foto del poeta sentado en La
Sibara, finca de Minca, propiedad de José Rafael.
“Allá —observa— viendo el cielo y las montañas, fue
donde se inspiró para escribir su poema ‘Azul de ti’”. Apartando
la mirada de su álbum y cambiando el tono de su voz, recita de
memoria los primeros versos del poema: “Pensar en ti es azul,
como ir vagando / por un bosque dorado al mediodía: / nacen jar-
dines en el habla mía / y con mis nubes por tus sueños ando”.
En los recuerdos de José Rafael vaga el poeta Carranza ins-
pirándose en las heladas aguas del río Minca y en los atardeceres
de Taganga, donde el escritor tuvo una casa, exactamente en Pla-
yaca, una de las playas de este balneario. Entre las fotografías
más famosas de María Mercedes Carranza en su juventud, hay
una que le tomó el mismo José Rafael Dávila en Taganga. En ella,
María Mercedes luce un sombrero de flores de papel y lleva el
cabello sobre el rostro sonriente. Ya para entonces ella escribía
poemas, me confirma.
“Siempre he lamentado que a los Carranza nos les haya ido
bien en Taganga. A su casa le arrojaban piedras, intentaron des-
valijarla y por ese motivo tuvieron que mudarse”, confiesa.
A sus años, no lee mucha poesía, pero sí escucha poemas
en las voces de sus autores. Posee una larga colección. Me regala,
precisamente, un CD con poemas de su amigo Carranza.

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Literatura, memória e cultura

La Gestión Cultural
Al regresar de Bogotá, a finales de la década de los cua-
renta, José Rafael Dávila se convirtió en uno de los gestores cul-
turales más proactivos de la ciudad. Su amor por las actividades
de la cultura y el arte lo debe en parte a sus viajes a Europa, a su
amistad con importantes escritores colombianos, pero sobre todo
al impacto que produjo en él la conmemoración de la muerte del
Libertador Simón Bolívar en 1930, cuando solo era un niño de
escasos siete años. Para él no ha habido en Santa Marta un evento
similar.
Con la inauguración del Teatro Santa Marta en 1949, un
grupo de samarios se une para crear la Sociedad de Amigos del
Arte, la cual obtuvo interesantes logros para la escena cultural
local. José Rafael Dávila —vicepresidente de la sociedad—, el
médico Orlando Alarcón —presidente— y otros samarios de la
época trajeron de Europa importantes compañías de teatro, de ba-
llet y célebres músicos para amenizar el calendario del Teatro
Santa Marta. En la Sociedad de Amigos del Arte figuraron, ade-
más, Alberto Castañeda, Rosario Campo, Francisco Loeble, Rita
Armenta de Dávila y Hernando Pacific Robles. Sus actividades
se extendieron hasta mediados de los años setenta.
Gracias a este grupo de gestores culturales, en el Teatro
Santa Marta se presentaron recitales de La Orquesta de Praga, el
pianista Daniel Abrams; los violinistas Lewkowickz y Olav
Roots, quienes una década después de inaugurado el Teatro en-
galanaron esos últimos años de lujo y esplendor de la bruselitis.
José Rafael Dávila conserva en sus álbumes los carteles pu-
blicitarios que invitaban a los samarios a ver “las presentaciones
del Ballet de París de Miskovitch en 1959; la Orquesta de Arcos
de Milán, 1960; el concierto del pianista Alfred Brendel, 1961; el
concierto del pianista Harold Martina, 1974, y la presentación de
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Literatura, memoria y cultura

la Orquesta Sinfónica de Colombia, 1975”, como registra el ar-


quitecto Ospino Valiente, un estudioso de esta época, en su libro
El Teatro Santa Marta, ícono cultural de Santa Marta.
Además de promover la cultura en Santa Marta, la Socie-
dad de Amigos del Arte, con Rafael Dávila como vicepresidente,
crea el primer cine club de la ciudad, inaugurado con obras maes-
tras del surrealismo italiano. Recuerda con mucha picardía la pe-
lícula francesa Los tramposos, dirigida por Marcel Carné.

Aquella Parranda Vallenata en Aracataca


A José Rafael Dávila y al joven Gabriel García Márquez
los unía el pasado. Unos meses antes de que Gabo publicara Cien
años de soledad (1967), se reencontraron en Aracataca en el Fes-
tival “Aquella Parranda Vallenata”, de la cual quedan unas tiras
de fotos que José Rafael Dávila capturó.
“Yo conocí a Gabito en Bogotá, en el año 45. Inclusive, él
estudiaba en Zipaquirá, pero llegaba a visitar a sus amigos coste-
ños en la residencia donde yo vivía, ubicada en la calle 15 Nº. 10-
96, una casa vieja donde vivió Marco Fidel Suárez después de ser
presidente. Yo era el único samario. Gabito iba los domingos y
festivos a verse con sus paisanos que vivían allí”.
Los Dávila y la familia de García Márquez eran oriundos
de Barrancas, La Guajira. Un pasado del que José Rafael tiene
consciencia porque la misma Luisa Santiaga, madre de Gabo, le
dijo, la última vez que lo vio, que cada vez se parecía más al viejo
Rafa y que gracias a ella sus padres se enamoraron. “Yo era la
que le llevaba los papelitos a tu mamá cuando vivíamos en Santa
Marta”, le decía la madre del novelista siempre de buen humor.
En un viaje de regreso a Santa Marta, en el barco David
Arango, Gabo y Rafael se encontraron y hablaron de la familia y

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Literatura, memória e cultura

la amistad. Eso sería antes de volver a reencontrarse en Aracataca


en el año 1966.
“Yo fui a Aracataca, en compañía de Jaime y Luis Enrique
García Márquez, porque Gabito llegaba de Cartagena a su tierra
natal, invitado por su amigo José R. Durán Porto. Armado de mis
cámaras, fui a saludarlo y le hice varias fotos. Estaban con él Ra-
fael Escalona, Nicolás “Colacho” Mendoza y Álvaro Cepeda Sa-
mudio. Recuerdo perfectamente a este último: un hombre fabu-
loso, lleno de energía”, dice.
José Rafael Dávila fue el fotógrafo oficial de ese evento.
Esta parranda fue financiada por la cervecería Águila, del empre-
sario Julio Mario Santodomingo. Su hermano, Alberto Mario, es-
tuvo en representación de la empresa. Los Santodomingo eran
amigos de Cepeda Samudio, organizador del evento junto a Ra-
fael Escalona y Gabo. También asistieron a esta parranda los
acordeoneros Alfredo Gutiérrez, Alberto Pacheco, Julio de la
Ossa, Armando Zabaleta, Luís “Mello” Pérez y Andrés Landero,
mucho de los cuales fueron reyes vallenatos, recuerda José Rafael
con nostalgia y orgullo de haber vivido uno de los momentos más
interesantes en la historia de la música vallenata.
Allí, en esa famosa parranda —según carta de Jaime García
Márquez—, José Rafael y Gabito “garrapatearon la idea, por vez
primera, de crear el festival de música vallenata”, que tuvo su
origen dos años más tarde”, en 1968, durante la gobernación de
Alfonso López Michelsen.
“Al día siguiente”, me explica guardando la carta, “Gabo
vino a Santa Marta a visitar a su prima Aida Luz, esposa de Pedro
Segrera, y me dijo que quería conocer Taganga”. Ese paseo es el
origen de la foto que le hizo a Gabo acompañado de Alberto Ma-
rio Santodomingo y una amiga de este último. “Nunca la he dado
a publicar”, me aclara, “Hazlo tú”.
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Literatura, memoria y cultura

Ya casi son las cinco de la tarde y “Rafa”, como cariñosa-


mente le llaman, empieza a mostrar señales de fatiga. Haber he-
cho memoria constituye un gran esfuerzo para su avanzada edad.
Entiendo que necesita descansar y procedo a despedirme. Merce-
des le recuerda que es hora de su medicina. Extendiéndome la
mano, me agradece la visita. Me dice sonriente que vuelva
cuando guste, que sus álbumes y su memoria siempre estarán dis-
ponibles para mí, al igual que su preciada biblioteca.

Referencias bibliográficas

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torial Uandes.

OSPINO, V. Álvaro (2014). Teatro Santa Marta: ícono cultu-


ral de Santa Marta. Colección Dorada de Autores del Magda-
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MANJARRÉS, F. Annabell (2018). “La bruselitis y la dolce


vita de la élite bananera”, en Vía alterna, 2+3 años de perio-
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PAYARES, G. Carlos (2008). Memorias de una epopeya. Al-


caldía municipal de Ciénaga.

VILORIA, Joaquín (2015). Empresarios del Caribe colom-


biano: Historia económica y empresarial del Magdalena
Grande y del Bajo Magdalena, 1870-1930. Banco de la Repú-
blica Luis Ángel Arango.

- 63 -
Literatura, memória e cultura

4. LENINE
EN LAS BANANERAS”, UN CU-
ENTO DE FRANCISCO GNECCO MOZO

___________________

Clinton Ramírez C1

El Cuento y el autor

“Lenine en las bananeras”2 es un cuento del médico, perio-


dista y escritor samario Francisco Gnecco Mozo (Santa Marta,
1904 – Washington, 1973).
Como hombre de ficción dejó una obra corta, extraviada en
archivos y escritorios familiares. Alguna historia de la literatura
regional destaca sus cuentos “Un beso lo hizo todo” (1923) y “Le-
nine en las bananeras” (1928). Los mayores esfuerzos los consa-
gró, sin embargo, a la investigación médica y la docencia univer-
sitaria.
“Lenine en las bananeras”, cuento objeto del presente aná-
lisis, lo escribió en pleno furor de la huelga y masacre de las ba-
naneras (Ciénaga, 1928), episodio que cubrió como corresponsal
del diario barranquillero La Prensa. El texto, fresco aún el trágico
episodio (6 de diciembre), apareció una semana después en la re-
vista bogotana Cromos.

1 Editor del Programa Editorial de la Universidade del Magdalena (Santa


Marta, Colombia). Correo: clinal14@hotmail.com
2 Magazín del Caribe, 72, Bogotá, abril de 2019. Todas las citas corres-
ponden a esta edición, en homenaje al autor y su hermano José Gnecco
Mozo.

- 64 -
Literatura, memoria y cultura

Gnecco, de escasos 25 años, aborda un asunto álgido y co-


nocido de primera mano. Además de vivir en el entorno regional
del conflicto y conocer a los actores enfrentados, su hermano ma-
yor, el también escritor José Gnecco Mozo (Santa Marta, 1902-
Bogotá, 1999), formaba parte del gabinete del gobernador del
Magdalena, Núñez Rocca.
Conocer el negocio bananero, sus conflictos, los intereses
en disputa, habilitaban al joven Gnecco para afrontar el relato.
Escrito a tan temprana edad y sobre un fenómeno de la mayor
trascendencia, el relato constituye un hito en la historia de la na-
rrativa breve de esta fracción del país.

Los hechos centrales del cuento

El relato, en pocas páginas, cuenta la historia del mulato


Rafaé, cortador de frutas en una finca bananera de Sevilla. Forta-
chón, conforme con el destino de obrero mal remunerado, de-
seoso de formar un hogar con una negrita vivaracha, se ve, sin
más, involucrado en la huelga que miles de hombres como él de-
claran al serles negado el pliego en el que piden el mejoramiento
de sus condiciones laborales y de salud. Envalentonados, cono-
cedores del poder de la huelga, dirigidos al final por un líder ex-
perto y lector de libros rusos, el movimiento termina con la ma-
sacre de los obreros, entre ellos, Rafael, quien muere al recibir
una bala en el corazón. Los hechos, escuetamente presentados, a
ratos interferidos por cuenta de la visión ideológica del autor, es-
condido detrás del narrador de tercera persona, suceden en Sevi-
lla, de donde es oriundo el mulato: el pueblo de la zona donde el
sol brilla con más intensidad, según la voz narrativa.
Sevilla pertenecía en el momento de la masacre al munici-
pio de Ciénaga. En inmediaciones de la estación del ferrocarril,
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Literatura, memória e cultura

escenario de enfrentamientos entre huelguistas, policías, ejército


y empleados armados de la compañía en 1928, tenía la empresa
americana una de sus famosas ciudadelas enmalladas: los galli-
neros electrificados de los que hablará García Márquez en Cien
años de soledad, publicada cuarenta años después de los luctuo-
sos hechos.
Es natural, entonces, que el joven Gnecco, a la hora de
transformar en ficción la huelga y masacre, tomara Sevilla como
espacio nuclear de la narración, territorio localizado en el corazón
de la zona bananera y uno de los centros intelectuales de la re-
vuelta al lado de Guacamayal, pueblo al otro lado del río Sevilla.
Expuestos los hechos capitales, trazadas las coordenadas
espacio-temporales del relato, me concentraré en la figura del
protagonista, Rafaé, cuya evolución y desenlace constituye una
metáfora candorosa, trágica y desoladora del movimiento de
1928 en la zona bananera de Colombia.

Rafaé el mulato

∫ cortador de guineo, vive en un tambo, en un campamento


de casas de madera y techo de zinc, que la compañía construyó
como sitio de habitación de miles de trabajadores vinculados al
negocio a través de terceros. Allí vive en la compañía de obreros
generalmente procedentes de distintos lugares del país. Tiene 20
años, gana poco y, todavía en plenitud de fuerzas, está habituado
al trabajo duro bajo el tórrido sol bananero, en zonas inhóspitas,
entre cientos de hectáreas de selva transformadas en miles de lo-
tes de banano.
El acortamiento de su nombre ─Rafael─ es un hecho sig-
nificativo y natural para el autor y el narrador, su vocero en el
discurso ficticio. El Rafaé marca la procedencia étnica y
- 66 -
Literatura, memoria y cultura

geográfica del muchacho. Es, como muchos chicos contemporá-


neos suyos, hijo de la unión de una negra y de un blanco pobres,
atraídos ambos, una generación atrás, por la fiebre del banano y
los salarios relativamente mayores pagados en la denominada
zona bananera.
Muchos negros, contingente al que pertenece la madre in-
nominada del muchacho, vinieron de las sabanas de Bolívar en
los primeros años del siglo XX para enrolarse en las fincas, bien
como cortadores de fruta, aguadores, desmachadores, entre otros
oficios. Sucedió igual con miles de hombres blancos, campesinos
la mayoría de ellos, oriundos de Antioquia, Boyacá, Santander y
Tolima, incluso: deseosos de encontrar a última hora una oportu-
nidad y un lugar.
Rafaé es fuerte, vive contento con su vida dura de peón,
aunque viva en un tambo y gane pocas monedas en comparación
con los jóvenes que construyen vías para el ferrocarril, como
anota el narrador, muy enterado de los pensamientos y aspiracio-
nes del mulato. Tiene novia: Rosalía. Esta es “una negrita viva-
racha de dientes blancos como pulpa de coco” (p. 7). Quisiera
casarse con ella, aunque la paga apenas le alcance para sostener
sus veleidades de muchacho. Sevilla, su pueblo de origen, polvo-
riento y soleado, aparece ante sus secretas aspiraciones como una
suerte de prisión al aire libre en un paisaje voraz e impactante.
Allí nació, allí vive, allí se divierte los fines de semana cuando
hay paga, y allí, una vez la juventud decline, cederá al paludismo
de las fincas e irá a parar a un hospital de la empresa, cuyo soste-
nimiento él cancela con una fracción que le descuentan del sala-
rio, como sucede con miles de obreros más. El futuro se antoja
poco alentador para este Rafaé de 20 años. “Y entonces será uno
de los muchos que en un jergón descuidado”, tomarán “quinina
hasta el último escalofrío invencible” (p. 7), puntualiza el
- 67 -
Literatura, memória e cultura

narrador. Pero, a pesar del mal salario, de sobrevivir en condicio-


nes estrechas, de no poder casarse, de visionar una vejez poco
saludable en un hospital, Rafaé, nos dice el narrador, “vive en una
feliz conformidad” (p.7).
Al cuadro de quejas y peticiones en el que es recreado el
personaje, la historia del relato sumará dos ingredientes definiti-
vos. El primero: la empresa tiene la política de rechazar parte de
los racimos cortados por obreros como Rafaé. A él le botan con
frecuencia al pie de la carrilera, de los vagones de carga, mucha
de la fruta. El segundo, la empresa de los hombres rubios, señores
de la producción, el transporte y el comercio del guineo, acaparó
las tierras del país y priva de su usufructo y cultivo a hombres
como Rafaé1.
Esta última noticia el mulato la oye de labios de la vieja
Ramona, quien sin sacarse de la boca la calilla ancestral, cuenta
el asunto para oídos entendidos. Ramona, además de resultar de-
finitiva en la configuración del conflicto de la historia, es presen-
tada con una economía de rasgos admirable.

Rafaé oyó contar a la vieja Ramona, la del tabaco delgadito,


imprescindiblemente prendido a los labios, y la chancleta en
inverosímil equilibrio sobre los dedos del pie, que esos hom-
bres rubios que se llevaban el guineo eran los mismos que no

1 La United tuvo conflictos por la tierra con propietarios, el Estado y colo-


nos. El gobierno de Rafael Reyes le concedió 10.000 hectáreas, compró
tierra a familias de viejos apellidos y despojó a colonos de terrenos ejidales
civilizados. Recomiendo consultar, entre otros textos sobre el tema, el en-
sayo “Campesinos y asalariados en la Zona Bananera, 1900 -1935”, de la
investigadora canadiense Catherine Legrand. “La tensión más sobresa-
liente entre la Compañía y el campesinado giró en torno al control de la
tierra. La expansión de la economía bananera entre 1908 y 1929 precipitó
la privatización masiva de las tierras públicas y la consiguiente expropia-
ción de cientos, y tal vez miles de colono” (p, 238).
- 68 -
Literatura, memoria y cultura

hace mucho tiempo le quitaron un buen pedazo de tierra a


Colombia! (p.7).

El hecho de ser vieja y de fumar calilla parecieran confe-


rirle a la negra autoridad sobrenatural entre sus escuchas: algo
que aun sucede con este tipo de mujeres en comunidades rurales
o en pueblos como el Sevilla recreado en el cuento de Gnecco
Mozo. Voz de la experiencia, encarnación de pasado aún nítido,
sabe de qué habla. Muy posiblemente sea una desplazada o vivió
de cerca los efectos de la expansión y la explotación comercial de
un negocio pensado a gran escala: la apropiación de las tierras
antes incultas, baldías, comunales o sin propietarios probados.
La intervención de Ramona sirve, a la historia, para com-
pletar el cuadro de afrentas a los ojos y la mente del joven Rafaé.
La feliz conformidad será sacudida. A este cambio, brusco en la
historia y perceptible en el relato, le siguen dos hechos igual de
cruciales: las peticiones de mejoras de los obreros y el estallido
de la huelga al ser desatendido el pliego por empresa de los hom-
bres rubios.
Entre las peticiones de los obreros, la negación a escuchar-
los y la decisión de parar, de no cortar más frutas, Rafaé sufre un
cambio más brusco: toma conciencia de su condición de hombre
explotado.
Volverá a aparecer en el relato transformado en huelguista,
en el plan de muchos otros jóvenes que, votada la huelga, libera-
dos de la labor de cortar la fruta en los lotes húmedos y silencio-
sos, se visten de fiesta para desafiar en las calles polvorientas y
soleadas de Sevilla a los opresores: los hombres rubios.
Es claro que detrás de la actitud provocadora de los obreros
hay organizadores. Hombres encargados de dotar al movimiento

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Literatura, memória e cultura

de razones legales y de ofrecer a chicos como Rafaé consignas


efectistas, como el propio relato develará más adelante.
“Abajo loj americano”, gritará con todos sus pulmones y
más de una vez Rafaé al tropezar con algún patanote rubio en
alguna cantina (p.8).
En la ficción, como sucedió en la realidad, la huelga pasa a
ser orientada en algún momento por un experto venido de otras
latitudes. Rafaé oye decir que un hombre, “que leyó libros rusos”,
tomará en la noche “la dirección de nuestro movimiento” (p.8).
El narrador presenta al hombre como un individuo conoce-
dor, milagroso, alguien que deriva de la lectura de unos libros
rusos un poder capaz de situarlo por encima de la masa llamada
a seguir sus instrucciones. Es llamado, con sorna, el superhom-
bre, si bien es de físico esmirriado.
Rafaé, locuaz y dispuesto, acude a una población cercana
─tal vez Ciénaga─ a conocer y escuchar al superhombre.
Carentes de formación política, susceptibles a las voces de
los agitadores profesionales, Rafaé y los demás huelguistas serán
convencidos de formar parte de una ola revolucionaria encargada
de liberarse de los explotadores para asumir un nuevo destino
histórico, sin opresión, de igualdad. La lucha frontal, aunque sin
mayor preparación para afrontarla, será la vía propuesta, una vez
agotado el periodo legal de la huelga. El superhombre, desmi-
rriado de físico, según reitera el narrador, invocará en el discurso,
deliberadamente incoherente, los nombres de Lenine, Tolstoi, Ci-
cerón y Napoleón, atribuyendo citas equivocadas ─como bien ha
señalado Roberto Montes M─ a estos personajes históricos, es-
pecies de ángeles orientadores y vindicatorios del movimiento,
según la lengua incendiaria del agitador.

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Literatura, memoria y cultura

Intenciones ideológicas
Salta a la vista, en este tramo del relato, la intención de ri-
diculizar la figura del agitador, de señalarlo como un actor des-
bordado, incoherente, inconsecuente, que juega con la inocencia
y la bravuconería del oprimido, del pueblo sin malicia política.
Este agitador, profesional al servicio de intereses extranje-
ros, es visto en la ficción como una amenaza: un agente encar-
gado de sembrar el comunismo en el país.
Las intenciones del autor, puestas en la voz del narrador,
quedan manifiestas. Denunciar a los agitadores –el orador comu-
nista del relato- como responsables de una conspiración interna-
cional, de un huelga que deriva en masacre al lanzar contra las
balas del ejército nacional a una masa armada de machetes, de
consignas y de buenas intenciones. “El formidable montón de
gente sencilla que nunca había oído nombrar a Lenine, se aba-
lanzó amenazante contra el cuartel del ejército, mientras el super-
hombre se fue, hurtando a las balas el cuerpo desmirriado” (p. 8).
El movimiento evasivo del superhombre, del orador comu-
nista, pasa inadvertido: no es percibido ni sospechado por la masa
inflamada, entre ellos Rafaé, que sigue el camino del cuartel, al
lado de sus compañeros.

Rafaé, contagiado del entusiasmo loco de la muchedumbre,


iba adelante gritando: -¡Abajo loj americano!...
Los soldados colombianos, defendiéndose, descargaron sus
fusiles contra las masas de obreros ensoberbecidos, y Rafaé,
el más fornido mocetón de Sevilla, oyó el silbido de la bala
de acero que le partió el corazón...; y apretando con la mano
formidable la boca roja de la herida, en un murmullo que fue
casi un sollozo, se preguntaba:
-Pero...Y por qué me matan ?...

- 71 -
Literatura, memória e cultura

Al caer, sus ojos estupefactos se quedaron mirando la ban-


dera tricolor que tremolaba a la puerta del cuartel... El rojo
de la sangre manchó la camisa amarilla de los días de fiesta,
y el pantalón azul: Rafaé era, en el suelo, una bandera co-
lombiana caída (p. 8).

El desenlace resulta la parte más débil del relato, la más


patética. En este tramo la impericia narrativa del joven autor y la
reivindicación de una postura ideológica de clase se dan las ma-
nos.
Regresa la voz del narrador al expediente idealizador del
obrero agrícola, ensoberbecido, enloquecido, víctima del juego
político del superhombre. Este pareciera ser el responsable único
del trágico episodio. El autor desplaza el foco hacia la figura con-
denada del agitador, agente de una conspiración comunista que
urge atajar, aunque los muertos sean obreros. La empresa de hom-
bres rubios, señalados al principio de pagar mal, de usurpar tie-
rras nacionales, queda fuera del foco narrativo. El ejército actúa
en defensa propia.
Esta posición, la de bautizar la huelga de los obreros bana-
neros como una conspiración roja, la esgrimieron, en la realidad
histórica de 1928, los potentados del banano, la compañía bana-
nera y miembros del gobierno de Abadía Méndez al legitimar la
intervención sangrienta del ejército. El obrero, metáfora de una
Colombia rural idealizada, deriva en víctima de la fuerza demo-
niaca del comunismo ruso.
A este discurso sobre una amenaza externa, auspiciado para
reprimir las huelgas de los trabajadores portuarios y petroleros en
Barranca, en los años veinte, había echado el Gobierno para ade-
cuar la legislación y otorgar facultades plenas al ejército. En este
contexto de agitaciones sociales y de huelgas apoyadas por el

- 72 -
Literatura, memoria y cultura

recién creado Partido Socialista (1926), que igual estaba detrás


de la huelga bananera de 1928, el gobierno de Abadía Méndez
tramitó la Ley 69 de 1928, la denominada Ley Heroica. El pro-
pósito de la ley estaba claro: perseguir y destruir la movilización
obrera y social en el país, como advirtieron en el momento ca-
liente de su trámite y aprobación el Partido Liberal, El Partido
Socialista e incluso los conservadores republicanos1. Vigente en-
tonces la Ley Heroica, al gobierno de Abadía Méndez y partida-
rios le quedó fácil desbaratar la huelga de obreros de Ciénaga al
expedir, a través del Ministerio de Guerra, el decreto que le con-
fiere a Carlos Cortés Vargas poderes para desplazar a las autori-
dades civiles y sofocar el movimiento huelguístico al precio de la
sangre, la persecución y la condena.
La oposición entre “el montón de gente sencilla” y “el su-
perhombre, esmirriado, orador comunista”, agente de la conjura
se antoja demasiado esquemática, simplista. El agitador, señalado
como lector de libros rusos, orador comunista representa a un ex-
tranjero que, para cumplir con su mandato político desestabiliza-
dor, sacrifica al montón de gente sencilla, colombianos, mulatos
como Rafaé, que mueren sin saber por qué. El ejército, en esta
disyuntiva, está obligado a disparar. El equivalente entre bandera
colombiana caída y los colores de las ropas de Rafaé refuerza la
oposición, pero deja fuera del cuadro a los causantes del desastre:
a los rubios americanos, a quienes el ejército de la ficción pro-
tege, como sucedió de hecho en la realidad histórica de la estación
de Ciénaga en la madrugada del 6 de diciembre de 1928.
Gnecco Mozo, como otros intelectuales de Santa Marta,
Ciénaga y la región, responsabilizaron a los orientadores de la

1Los interesados pueden consultar “Ospina y Abadía: la política en el de-


cenio de los veinte”, de Germán Colmenares (pp. 243-268). En Nueva His-
toria de Colombia, T.1, Planeta, Bogotá.
- 73 -
Literatura, memória e cultura

huelga, entre ellos a Raúl Eduardo Mahecha ─posiblemente el


superhombre, el esmirriado lector de libros rusos─ del desenlace
fatal, en la estación de Ciénaga, la madrugada del 6 de diciembre.
Mahecha, curtido dirigente sindical y político, alineó ideológica-
mente con la Internacional Socialista en 1924, y el Partido Socia-
lista de Colombia, que ayudó a fundar, se comprometió a regirse
por las directrices y programas del líder ruso Vladimir U. Lenin,
de ahí el título del cuento –“Lenine en las bananeras”- y que el
narrador señale al superhombre como lector de libros rusos. Era,
sin duda, un ideólogo de izquierda varias veces encarcelado, líder
indiscutido de los movimientos sindicales portuarios de los años
veinte contra la TROCO (Tropical Oil Company), empresa ame-
ricana encargada de la explotación petrolera del país. Su conexión
con el comunismo casaba con la agenda de los interesados en avi-
var el fantasma de una conspiración internacional contra el país
para reprimir la huelga, desestimar las peticiones legales de los
obreros y sus representantes1, quienes, en la realidad histórica,
fueron desconocidos por la United Fruit Company y los terrate-
nientes bananeros, al alegar que no eran trabajadores suyos, que
los obreros tampoco eran sus obreros, ya que los subcontrataban
con terceros. Se entiende entonces por qué, en la huelga de “Le-
nine en las bananeras”, el ejército colombiano aparece al frente
del cuartel en Sevilla, presto a defender los intereses de los hom-
bres rubios. La represión, además de justificada, estaba amparada
legalmente.
Culpar de la masacre a los dirigentes sindicales, anarquis-
tas y militantes del naciente Partido Socialista involucrados en la

1 En la realidad real, los representantes de los trabajadores para negociar el


pliego petitorio de 9 puntos fueron: Erasmo Coronel, Nicanor Serrano y
Pedro del Río. La United Fruit Company los desconoció.
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Literatura, memoria y cultura

huelga prevaleció entre la clase de los terratenientes y bananeros


aliados de la United Fruit Company. Detrás de la huelga estaban
los enemigos de la propiedad privada, los conspiradores rojos, los
ateos, los agentes del comunismo ruso. Esa amenaza debía ser
destruida.
Los organizadores de la huelga, sobre todo los nacionales
(María Cano, Ignacio Torres Giraldo, Raúl Eduardo Mahecha,
Alberto Castrillón, etc.) y los extranjeros (G. Russo, Erasmo Co-
ronel), fueron responsabilizados del desenlace fatal, cuyo número
de muertos es motivo de batallas inconclusas. Gabo, en Cien años
de soledad (1967), fijó los muertos en 3000, encendiendo con la
hiperbólica cifra la mecha entre historiadores, académicos, polí-
ticos y sindicalistas, sobre un episodio condenado al cuarto de la
desmemoria. El centroamericano Erasmo Coronel murió en Se-
villa al tratar de tomarse la ciudadela de la United, cayó al lado
de 29 obreros más. Alberto Castrillón, por ejemplo, sería arres-
tado y condenado en uno de los consejos verbales realizados en
el palacio de gobierno de Ciénaga a partir de marzo de 1929.
Suerte idéntica corrió Ignacio Torres Giraldo, viejo amigo y
orientador de los agites de trabajadores y sindicalistas de la zona
bananera en la primera mitad de los años veinte.
La vida real pareciera darle la razón a quienes piensan to-
davía en una huelga manipulada y en unos obreros sacrificaos en
un tablero de disputa mucho más vasto. Mahecha, ciertamente,
huye de Ciénaga a tiempo, en las horas previas a la masacre.
Supo, emitido el decreto nombrando a Cortés Vargas Jefe Civil y
Militar, que el ejército iría tras ellos y dispararía contra los obre-
ros congregados con sus familias en la estación de ferrocarril de
Ciénaga. Huyó, sin poder salvar su legendaria imprenta portátil,
a través de ciénagas y pantanos hasta una orilla del río Magda-
lena, siguió luego a Cartagena y allí embarcó para Panamá, país
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Literatura, memória e cultura

en donde ofició de soldado en víspera de la separación del Istmo


de Colombia, como puede leer quien quiera en algunas de sus
biografías1. En La casa grande (1962), de Cepeda, uno de los
anónimos dirigentes de la huelga, huye en la víspera de los cruen-
tos hechos, sordo a la reprensión de su interlocutor:

─Usted no puede irse.


─Yo terminé ya: lo demás es cosa de ellos.
─Ellos ya no cuentan; ahora tenemos que proteger al pueblo.
Ellos dieron la plata porque querían acabar con los comisa-
riatos: usted lo sabe perfectamente.
─Sí, pero no es cosa mía.
─Claro que es cosa nuestra. Nosotros metimos al pueblo en
esto. A ellos solamente les interesa quitarse la competencia
de los comisariatos de encima.
─De todas maneras el pueblo va a salir ganando algo.
─¿Ganando qué: muertos?
─A mí me trajeron para organizar una huelga, no para prote-
ger a nadie. Como se lo digo: aquí va a haber bala y yo me
voy esta noche (2015, pp. 202, 203)2.

El ellos invocado en la conversación de los dos anónimos


dirigentes del conflicto en la novela de Cepeda son los comer-
ciantes de Ciénaga y la Zona, interesados en eliminar la compe-
tencia desleal de los comisariatos de la United, que vendía más
barato y amarraba a los obreros a los vales, un sistema de pago
por adelantado en especie. Eliminar los comisariatos y los vales

1 Enciclopedia del Banco de la República. Nació en El Guamo (Tolima)


en 1884. Murió en Bogotá en 1940. La figura más destacada del sindica-
lismo colombiano de los agitados años veinte.
2 Álvaro Cepeda Samudio. Obra crítica (2015). Edición crítica de Fabio
Rodríguez Amaya y Jacques Gilard (Coordinadores). Colección Archivo.
Alción, Editora. Córdoba, Argentina.
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Literatura, memoria y cultura

fueron dos puntos de los nueve del pliego petitorio. El agitador a


punto de huir deja claro el sentido específico de su misión: a él lo
trajeron para organizar una huelga, no para quedarse a esperar sus
consecuencias funestas.
Escrita más de tres década después, La casa de Cepeda re-
coge la figura del organizador que, cumplida su misión, huye de
las autoridades y las balas del desastre final.
El otro dirigente del diálogo cepediano es consciente de las
implicaciones de la huelga y de la responsabilidad que le cabe a
los organizadores de proteger a los huelguistas, al pueblo. Este
elemento de responsabilidad, que encaró buena parte de la diri-
gencia de la huelga ─algunos pagaron con la vida y otros sufrie-
ron persecución y cárcel─ está ausente en el texto pionero de
Gnecco Mozo.
En la ficción del joven Gnecco Mozo el ejército se defiende
de la masa enardecida que carga contra el cuartel. Los soldados
colombianos disparan en defensa propia. En la realidad real las
acciones fueron diferentes. En la postura de Gnecco, enardecer a
la masa, predisponerla para una batalla condenada, equivale lite-
ralmente a lanzarla contra las balas. La masa actuó “locamente”,
no es responsable de sus actos, ha sido manipulada por el agitador
profesional, el superhombre, quien la utiliza como piezas de un
ajedrez de intereses más amplios, menos visibles.
Esa visión simplificada de los hechos, aunque comprensi-
ble, será resignificada, en la década de los sesenta, por Álvaro
Cepeda Samudio y Gabriel García Márquez, cuando en La casa
grande (1962) y Cien años de soledad (1967) retomen el tema en
sus distintas aristas, en toda su complejidad, liberado de la inme-
diatez histórica en la que actuó el joven médico y periodista Fran-
cisco Gnecco Mozo.

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Literatura, memória e cultura

En Cepeda y García Márquez, igual de comprometidos


ideológicamente, situados en orillas distintas a las de Gnecco
Mozo, más camaleónicos a la hora de contar y elegir las perspec-
tivas, prevalecerán las concepciones narrativas, marcando una di-
ferencia sustancial de grado. Estaban prevenidos contra los desas-
tres literarios de una narrativa nacional a merced de los excesos
partidistas y las visiones restringidas de los conflictos. Habían
analizado las consecuencias de la literatura de la Violencia, adicta
a las escenas truculentas, a las tramas superficiales, a los ataques
políticos, juiciosa y sistemática en la condena del adversario, en
donde conflictos y personajes equivalían a meros pretextos. Se
propusieron, incluso, civilizarla. Lectores más preparados, al
tanto de los avances de la narrativa en otras latitudes, sobre todo
el operado en la literatura norteamericana, echarán mano, en
desarrollo de su programa, a un instrumental técnico ausente en
el joven Gnecco Mozo y parte de la literatura colombiana de los
años veinte y de las dos décadas siguientes, afecta al conservadu-
rismo político, a las fórmulas del costumbrismo sobreviviente y
a las imposiciones de un realismo social sin imaginación narra-
tiva.

Las limitaciones del precursor

A Gnecco Mozo, con este temprano relato sobre la huelga


de 1928, le cabe el mérito de haber descubierto un filón para las
letras colombianas. Conocía el tema y los intereses en juego, si-
guió los hechos de cerca y tomó partido según una visión de clase
atenta a idealizar al mulato Rafaé y en ridiculizar y condenar al
superhombre, al agitador profesional.
Esta apuesta suya tiene repercusiones en la estructura del
relato. La función de contar queda subordinada a las reflexiones,
- 78 -
Literatura, memoria y cultura

informaciones y explicaciones. Este sesgo juega en detrimento de


la tensión que el cuento exige, arrastra el efecto de opacar el ma-
terial narrativo estructurado en torno a la figura de Rafaé y de
apresurar los hechos en la pretensión de ajustarlos a los presu-
puestos ideológicos condenatorios del autor.
Estaba sujeto, sobre todo, a las limitaciones del espacio li-
terario colombiano de la época, al que nacía como intelectual y
escritor. La literatura el país, salvo excepciones incipientes, des-
conectada de las vanguardias y habituada a ofrecer las espaldas a
la renovación de la novela y el cuento, sobre todo la experimen-
tada en el ámbito norteamericano, era fácil presa de las encerro-
nas de cafetín de querer, al mismo tiempo, idealizar al oprimido
(Rafaé), en cuestionar a sus conductores (el superhombre), en de-
nunciar el poder opresor de la compañía extranjera (los hombres
rubios) y en limpiar de toda mancha a las instituciones estatales
(el ejército colombiano). Esta perspectiva, dominante y compar-
tida entre las élites cultas del interior, solo podía ser desafiada y
rota, vuelta añicos, por espíritus con una visión amplia e intensa
de la literatura y atentos a los retos de los géneros, cuya autono-
mía finalmente debía prevalecer más allá de las posturas éticas y
políticas innegables e inherentes a toda obra de creación.

Rescate y valoración

Roberto Montes, quien rescata y publica el cuento en la


edición citada de Magazín del Caribe, ofrece una valoración cui-
dadosa de “Lenine en las bananeras”:

Aunque con deficiencias estructurales, su valor es innegable,


revela ya el interés de nuestros autores por la problemática
social y la historia. Más de treinta años después el tema será

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Literatura, memória e cultura

recurrente en José Francisco Socarrás, Álvaro Cepeda Samu-


dio, Efraín Tovar Mozo, Gabriel García Márquez, Néstor
Madrid-Malo, Javier Auqué Lara y Ramón Illán Bacca
(2019, p. 5).
Gnecco Mozo abrió para la literatura una temática que
mantiene en constante desacuerdo a críticos, académicos e histo-
riadores de las más diversas tendencias y orientaciones, tal como
sucedió hace noventa años con los actores de un episodio que
marcó y marca la historia colombiana.
A noventa años de su escritura, a pesar de los peros seña-
lados, el relato es legible. Más allá de sus fallos estructurales, de
la visión esquemática de los hechos, de las encerronas ideológi-
cas presentes en el texto, a uno le queda difícil examinar sin una
dosis de simpatía al mulato Rafaé y a la negra Ramona, tan efí-
meros y entrañables. Ellos, el joven y la anciana, son las sombras
de una cifra histórica y social con la que aún podemos tropezar-
nos en algunos de los muchos pueblos del Caribe, en cuyas calles,
esquinas y plazas la historia, grande y pequeña, a veces persiste
en jugar a la vuelta a la manzana y a la candelita. En tanto expre-
siones de una historia y una literatura reclaman una atención más
fina.
Su interrogante final, en la agonía, ingenuo y manipulado
por la voz excesiva del narrador o el autor, constituye una adver-
tencia en la medida en que denota el esfuerzo del personaje por
recuperar su individualidad, por sustraerse de la corriente de in-
tereses en pugna entendidos a medias, más allá de las razones ob-
jetivas alegadas para sumarse a la protesta, a la ola suicida.
“¿Y… por qué me matan?”
El interrogante del Rafaé encierra distintos desafíos. Es una
notificación para los examinadores de la historia, los críticos lite-
rarios y los escritores mismos.

- 80 -
Literatura, memoria y cultura

En una etapa histórica en donde los sujetos empiezan a ser


las grandes empresas anónimas y las colectividades ─los mono-
polios, los sindicatos, los movimientos sociales─, el grito indivi-
dual, aun audible y rescatable a último momento, abre una grieta
en el tiempo de los hombres. Este grito de la individualidad pare-
ciera estar recordándole a la literatura su independencia de los
excesos de autonomía de los autores y las imposiciones sociales,
ideológicas y políticas de las épocas.
El grito de Rafaé cuenta, así sea la protesta de un peón en
un ajedrez extraviado o víctima de un ajedrez que lo ignora con
olímpica displicencia. Peón en los juegos de la historia, peón en
la recreación del autor, este Rafaé asume su dominio confusa y
agónicamente. Su grito ingenuo encierra una ironía. Su grito
quizá deba entenderse como: “¿Y por qué me tienen que matar?,
o más directo: ¿por qué me matas?”.
El sujeto encuentra los caminos a la hora de reclamar su
modo concreto de estar en el mundo.
El cuento de Gnecco Mozo es una forma artística vacilante,
escrito en una época de confusiones y en un país cuyas costuras
ceden al experimentar, en pueblos y ciudades, los efectos del en-
frentamiento entre el capitalismo imperialista y el comunismo in-
ternacional. El uso desproporcionado de la fuerza del ejército será
activado en nombre de la soberanía y la defensa de la propiedad
y el orden. Será una salida recurrente de conocidas y costosas
consecuencias en las siguientes décadas: la Violencia de media-
dos del siglo, la irrupción de las guerrillas en los sesenta, la vio-
lencia institucionalizada y la arremetida paramilitar de finales del
siglo, cuyos remanentes niegan las fórmulas de paz.

Bibliografía

- 81 -
Literatura, memória e cultura

Catherine, Legrand (1983). “Campesinos y asalariados en la


Zona Bananera, 1900 -1935”. En Anuario Colombiano de Histo-
ria Social de la Cultura, 11. Universidad Nacional de Colombia,
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Cepeda Samudio, Álvaro (2015). Obra crítica. Edición crítica de
Fabio Rodríguez Amaya y Jacques Gilard (Coordinadores). Co-
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zín del Caribe, 72. Bogotá, abril de 2019 (pp. 7-8).
Montes, Roberto. Lenine en las bananeras. En Magazín del Ca-
ribe, 72. Bogotá, abril de 2019 (pp. 5-7).

- 82 -
Literatura, memoria y cultura

5. NO
HAY SILENCIO QUE NO TERMINE, DE
INGRID BETANCOURT: TESTIMONIO DE
UNA DOBLE AVENTURA
_________________________

Teobaldo A. Noriega1

El Conflicto de fondo

La primera década del siglo XXI resultó particularmente


productiva para el negocio del secuestro en Colombia. En su en-
sayo Hostage Nation, Victoria Bruce y Karin Hayes –con la co-
laboración de Jorge Enrique Botero- señalan que entre 1998 y
2002 el número de secuestros en el país alcanzó la cifra aproxi-
mada de tres mil, de los cuales una tercera parte habría sido lle-
vada a cabo por las FARC-EP.2 Este grupo guerrillero que hasta

1 Profesor Emérito del Departamento de Lenguas y Literaturas Modernas,


Trent University (Canadá). Correo: teobaldo.noriega@gmail.com
2 Véase V. Bruce y K. Hayes, with Jorge E. Botero, Hostage Nation. Co-
lombia’s Guerrilla Army and the Failed War on Drugs (New York: Alfred
A. Knoff, 2010), especialmente el capítulo “The Exchangeables”, 93-103.
Para una información actualizada sobre el fenómeno del secuestro en Co-
lombia, véase el sitio de la Fundación País Libre: www.paislibre.org. Por
su parte el Ministerio de Defensa de la República de Colombia, en un bo-
letín informativo sobre el secuestro en el primer semestre del 2011 decía
que “Del 01 de Enero al 31 de Marzo de 2011en comparación con el año
2010 en igual periodo, el secuestro (Extorsivo y Simple) ha presentado un
incremento del 21%, de acuerdo a los reportes estadísticos que ha consoli-
dado la Dirección Operativa para la Defensa de la Libertad Personal en
conjunto con las Entidades que integran la lucha Antisecuestro y Antiex-
torsión”. Consultado en: www.antisecuestro.gov.co/web/. Considerando
que los informes oficiales del gobierno tienden generalmente a minimizar
las cifras correspondientes en estos casos, un incremento del 21% resultaba
alarmante. Sigue siendo tema de discusión la (i)responsabilidad ética del
grupo guerrillero al utilizar el secuestro como arma de guerra en el
- 83 -
Literatura, memória e cultura

entonces había acudido al plagio principalmente por el beneficio


económico que representaba, dio un giro importante en sus accio-
nes y empezó a ver allí posibilidades políticas. Más exactamente,
a los militares por ellos capturados, y considerados por lo tanto
prisioneros de guerra, vinieron a unirse “los políticos”; juntos
constituían material de intercambio que le permitía al autodeno-
minado “Ejército del Pueblo” negociar con el gobierno la libera-
ción de sus propios prisioneros en diferentes cárceles del país. El
23 de febrero del 2002, en medio de un obstinado intento por
acercarse a San Vicente del Caguán -epicentro de las actividades
de las FARC-, Ingrid Betancourt, candidata presidencial por el
Partido Verde Oxígeno, y su jefa de campaña, Clara Rojas, fueron
capturadas por los subversivos. Sin proponérselo, se convertían
así en protagonistas de una trágica experiencia que las mantuvo
en manos de la guerrilla durante más de seis años.
El número de intercambiables en poder de las FARC siguió
aumentando. Una vez más la posible solución al desastroso y
largo conflicto que Colombia vivía estaba representada en el
anunciado programa de un nuevo presidente, Álvaro Uribe, quien
al ganar las elecciones el 26 de mayo del 2002 prometió liberar
al país del mal que lo consumía. Su proyecto se veía impulsado
por una razón de índole personal -su propio padre había sido ase-
sinado por la guerrilla-, y el rotundo fracaso del presidente ante-
rior, Andrés Pastrana, cuya debilidad estratégica y prolongada in-
decisión habían fortalecido la capacidad de acción de los insur-
gentes. Uribe utilizó con más efectividad las posibilidades que

prolongado conflicto. Véase, por ejemplo, el artículo periodístico “¿Por


qué es histórica la imputación a las FARC por el secuestro?”, publicado por
Colombia en Transición, JEP, El Espectador (30 de enero 2021):
https://www.elespectador.com/colombia2020/justicia/jep/jep-por-que-es-
historica-la-imputacion-a-las-farc-por-secuestro/
- 84 -
Literatura, memoria y cultura

ponía en sus manos el Plan Colombia -previamente impulsado


desde Washington por la administración de Bill Clinton e imple-
mentado con la aprobación de Pastrana- con el propósito de poner
fin al multimillonario negocio de la droga del que formaban parte
diferentes grupos armados del país, entre ellos las FARC. Como
señalan Bruce y Hayes, uno de los principales obstáculos en-
contrados por el gobierno en su tarea fue la capacidad económica
de las FARC, que les permitía a estos maniobrar con relativa
facilidad en gran parte del territorio nacional.1 Era sin duda un
momento de claras ventajas para los subversivos (exitosos ata-
ques a instalaciones de las fuerzas armadas, captura de militares
sobrevivientes en los diferentes enfrentamientos, secuestro de
otros que se integrarían así al cada vez mayor número de piezas
intercambiables, explosión de bombas en diferentes ciudades del
país con lo que desestabilizaban aún más la vida ciudadana, etc.),
en un plan de acción que en 1998 obligó a Andrés Pastrana a
aceptar la idea de una zona desmilitarizada exigida por las FARC
como pre-requisito para los diálogos de paz.2 Las discusiones for-
malmente iniciadas en 1999 demostraron en los tres años siguien-
tes la complejidad del proceso; dejando en claro que, habiendo

1 En sus cálculos, hacia 1998 el dinero total percibido anualmente por el


grupo guerrillero se situaba en los cientos de millones de dólares, prove-
nientes principalmente de impuestos y participación en el tráfico de cocaína
y heroína. La otra parte de su rico presupuesto al finalizar la década de los
90 lo proporcionaban el secuestro y la extorsión. Véase V. Bruce y K.
Hayes, Hostage Nation, “The Elegant Guerrilla”, 20-33.
2 Conocida simplemente como “El Caguán”, por encontrarse situada en la
cuenca del río Caguán, al sur del país, la zona tenía una extensión aproxi-
mada de 42.139 kilómetros cuadrados, con municipalidades en los depar-
tamentos del Meta y Caquetá. Fue designada zona desmilitarizada o “zona
de distensión” por Andrés Pastrana poco después de haber iniciado su pe-
ríodo presidencial, y así se mantuvo entre 1999 y el 2002. Su centro de
operaciones estaba en San Vicente del Caguán (Meta).
- 85 -
Literatura, memória e cultura

ganado una clara posición ventajosa ante el gobierno, la guerrilla


no estaba interesada en pactar un alto el fuego como Pastrana es-
peraba. Convencido finalmente de que su plan no le daría al país
el resultado buscado, el 12 de enero del 2002 Pastrana le dio a las
FARC cuarenta y ocho horas para salir del Caguán. La guerrilla
por su parte respondió con un comunicado en el que acusaba al
gobierno del fracaso en los diálogos, y prometía seguir luchando
para lograr la reconstrucción del país. Era un claro despliegue re-
tórico. Semanas después del ultimátum, las FARC continuaban
instaladas en El Caguán, y el 20 de febrero –haciendo evidente su
capacidad de acción- secuestraron un avión donde viajaba el Se-
nador Jorge Géchem. La semana anterior Ingrid Betancourt había
participado con otros candidatos presidenciales en una reunión
con jefes de las FARC (Los Pozos) y había pedido a los guerri-
lleros terminar de inmediato sus actividades de secuestro. Lejos
estaba ella de pensar que, pocos días después, se convertiría en
una de sus víctimas.
El fracaso de Pastrana fue precisamente el punto de partida
para las decisiones tomadas por su sucesor. Cierto es que en el
momento de asumir Uribe el mando -7 de agosto del 2002- el
inventario parecía favorecer a los subversivos, pero muy pronto
las piezas sobre el tablero empezarían a moverse en otra direc-
ción.1 Si por una parte las acciones cada vez más eficaces de las

1 Recordemos, por ejemplo, la captura de Simón Trinidad en el 2003 y su


extradición a USA en el 2004; captura de Sonia en el 2004 y su extradición
a USA el mismo año; la muerte de Raúl Reyes y varios de sus hombres en
el ataque llevado a cabo por el ejército colombiano al campamento de aque-
llos en territorio ecuatoriano, en el 2008; la muerte de Iván Ríos el mismo
año, asesinado por su propio jefe de seguridad para cobrar la recompensa
ofrecida por el gobierno; la muerte por complicaciones cardíacas del mítico
jefe de las FARC, Manuel Marulanda, en el 2008; uno de los golpes más
contundentes del gobierno: la muerte del Mono Jojoy, jefe militar de las
- 86 -
Literatura, memoria y cultura

fuerzas armadas -económicamente sostenibles con el apoyo de


USA: Plan Colombia, Plan Patriota- se empeñaban en debilitar
una subversión acusada de ser, en lo esencial, un grupo integrado
por narcotraficantes y terroristas, por otra la opinión nacional e
internacional reaccionaba con firmeza ante la brutalidad de las
FARC contra el alto número de secuestrados que seguían en su
poder. Las debatidas pruebas de sobrevivencia proporcionadas
por la guerrilla tocaron un punto límite de la sensibilidad popular,
y el 4 de febrero del 2008 se organizaron manifestaciones en di-
ferentes ciudades de todo el mundo para expresar un público re-
chazo a los guerrilleros por su despiadada conducta. El 2 de julio
del mismo año, la exitosa Operación Jaque liberaba finalmente a
algunos de esos secuestrados, entre los que se encontraba Ingrid
Betancourt. Con la libertad, terminó el silencio de muchas de es-
tas víctimas cuyas voces pudieron finalmente ser escuchadas. Era
el testimonio de la sobrevivencia, el discurso de la memoria, el
impactante componente de un doloroso archivo. No hay silencio
que no termine (2010), de Betancourt, es uno de ellos; es también
una prueba irrefutable de que en la ya larga y muchas veces con-
flictiva relación experiencia-literatura, una vez más el ser hu-
mano acude a la escritura para liberarse de algunos de sus demo-
nios personales, desvelar otros de naturaleza histórica, y recono-
cerse finalmente como víctima de una crisis social cuya solución
continúa mostrándose inalcanzable.

FARC, en el 2010. Sin duda, pérdidas muy importantes para la organiza-


ción guerrillera.
- 87 -
Literatura, memória e cultura

Estrategias del discurso

Es una verdad incontestable -determinada por la condición


humana- que todo tipo de violencia deja sus señales. También lo
es que el recuerdo de esa violencia reclama por necesidad un pri-
mer espacio de reconstrucción, representado por el cuerpo mismo
de la víctima en un difícil ejercicio de autorreconocimiento. Son
las inevitables huellas del trauma1 sufrido por el sujeto, y su em-
pecinada búsqueda de sobrevivencia. Cuando este proceso se
lleva a cabo a través del lenguaje –el discurso como catarsis, el
texto como archivo-, la escritura se convierte en un espacio ma-
yor dentro del cual se insertan los componentes de una doble
aventura: la experiencia aludida, y su correspondiente codifica-
ción.
No es gratuito, por lo tanto, que el relato-testimonio de In-
grid Betancourt, No hay silencio que no termine (2010),2 se inicie

1 Veanse las interesantes reflexiones que hace Roger Luckurst en “Mixing


memory and desire: psychoanalysis, psychology, and trauma theory”, P.
Waugh, Ed., Literary Thory and Criticism (New York: Oxford University
Press, 2006), 497-507.
2 Ingrid Betancourt, No hay silencio que no termine (Madrid: Aguilar/San-
tillana Ediciones, 2010). Nacida en Colombia (Bogotá, 1961), y poseedora
también de la nacionalidad francesa, completó sus estudios de ciencias po-
líticas en el Institut d’Études Politiques de París. En 1989 regresó a Colom-
bia; posteriormente trabajó en el Ministerio de Hacienda y el Ministerio de
Comercio Exterior. Sus intereses políticos la llevaron en 1994 a la Cámara
de Representantes, donde se dio a conocer por sus fuertes críticas al go-
bierno de Ernesto Samper (1994-1998), acusado de haber recibido dinero
procedente del narcotráfico en su campaña presidencial; era la época del
controvertido Proceso 8000. Animada por el reconocimiento público del
que era objeto, en 1997 fundó el Partido Verde Oxígeno, y fue senadora
entre 1998- 2002. El 23 de febrero de este último año, en medio de la cam-
paña presidencial en la cual participaba, fue secuestrada por las FARC; per-
maneció en manos de la guerrilla hasta el 2 de julio del 2008 cuando con
- 88 -
Literatura, memoria y cultura

precisamente con un impactante fragmento titulado “La fuga de


la jaula”, que funciona como verdadera declaración del principio
poético que predomina a lo largo del texto. En estas páginas (15-
47) la protagonista cuenta los detalles correspondientes a un fa-
llido intento de fuga, después del cual sus opresores la someten a
un humillante castigo. Como animales ensañados con su presa,
los tres guerrilleros asignados para esta tarea se solazan en su sal-
vaje arremetida. Las anotaciones del discurso señalan enfática-
mente el carácter violento del escarnio sufrido, y las palabras mis-
mas de Yiseth –guerrillera integrante del grupo que la captura-
intentan preparar a la víctima para el trauma que le espera: “La
orden del comandante es maltratarla. Cuando lleguen, la van a
gritar, la van a insultar, la van a empujar. No vaya a responderles.
No diga nada. Quieren castigarla. Se la van a llevar… solo hom-
bres. Las mujeres tenemos orden de volver al campamento. ¿Me
copia?” (30). Animados por los gritos de sus cómplices, uno de
los atacantes golpea a la capturada en el cráneo con la cadena que
insiste en ponerle al cuello. Es un instante revelador para la víc-
tima, quien parece comprender finalmente la dimensión infernal
de lo que le está ocurriendo. Perdida su inocencia, la narradora se
debate impotentemente ante el ataque del que es objeto:

otros catorce prisioneros fue liberada gracias a una exitosa operación mili-
tar. Con su liberación llegaron diferentes distinciones, entre ellas Ordre Na-
tional de la Légion d’Honneur (Francia), Premio Príncipe de Asturias (Es-
paña), y un reconocimiento internacional que sigue viendo en ella una
cause célèbre ligada a la lucha por la dignidad humana en general, y de la
mujer en particular. Ha publicado también Sí sabía (1996), La rabia en el
corazón (2001), Until Death Do We Part: My Struggle to Reclaim Colom-
bia (2002), Lettres à maman par-delà l’enfer (2008), y The Blue Line: A
Novel (2016).
- 89 -
Literatura, memória e cultura

…Caí inerte en la oscuridad y perdí la noción del tiempo.


Sabía que mi cuerpo estaba siendo objeto de la violencia de
estos hombres… Me sentía víctima de un asalto, entre con-
vulsiones, como si estuviera metida en un tren a gran veloci-
dad… Sometida a todas las humillaciones, llevada de cabes-
tro como un animal, atravesando todo el campamento en me-
dio de los gritos de victoria del resto de la tropa, incitando
los más bajos instintos de abuso y dominación, acababa de
ser testigo y víctima de lo peor. (33-34)

La violencia ha dejado en el cuerpo y en la mente de la


secuestrada las señales de su paso; refugiada en su atormentada
interioridad, la víctima acude a la memoria y el lenguaje como
mecanismos de salvación:

Me obligué a pensar en los instantes agobiantes que aca-


baba de vivir en los pantanos. Hice un esfuerzo sobrehu-
mano para obligarme a abrir los ojos sobre el ensañamiento
bestial de esos hombres. Quise darme el permiso de poner
palabras sobre lo vivido, para cauterizar mis heridas y lim-
piarme. (36, énfasis mío)

Se trata claramente de una afirmación aplicable al registro


de toda la experiencia del secuestro sufrido por la protagonista.
Transformado en un ejercicio de escritura cuyo ambicioso entra-
mado supera los límites convencionales del discurso testimonial,
el relato no sólo entrega al lector detalles claves del doloroso tra-
bajo de la memoria; al hacerlo, lo somete a una experiencia que
le permite participar, a través del lenguaje, en la aventura que el
texto le entrega.
Reconsideremos el contenido de ese primer fragmento
(F1): apertura in medias res con el anuncio que hace la narradora
sobre su decisión de fugarse -era su cuarto intento-; rápida alusión
- 90 -
Literatura, memoria y cultura

a la “jaula” que en esos momentos le sirve de celda; estudio cui-


dadoso de los detalles pertinentes (condición de la “jaula”, aten-
ción al guerrillero-guarda, tamaño del hueco entre las tablas, ta-
maño del cuerpo de ella y su compañera); reconstrucción mental
de los posibles imprevistos que ofrece la huida (una anaconda o
un caimán en las aguas del río, en tierra puede ser un tigre); indi-
cación del gradual distanciamiento que ha venido ocurriendo en-
tre ella y Clara, su compañera. El día señalado llega, y es enton-
ces el inevitable miedo en la antesala de la fuga; cálculo meticu-
loso de todos los detalles; rápida evaluación de su propia vida
hasta ese momento -en lo personal y con relación a las FARC-; la
lluvia cómplice que llega; por fin, el salto. Pero Clara no aparece,
no está donde tenía que estar; un rápido regreso a la “jaula” para
verificar qué ha ocurrido le permite verla hablando con el coman-
dante. Decidida a no claudicar –sin un machete para abrirse ca-
mino en la espesura, con una linterna que no podía encender, con
el estruendoso aguacero de fondo-, la narradora penosamente lo-
gra esconderse en la maraña. Vienen luego las voces y los pasos
de sus perseguidores, la constatación de su propio miedo y el im-
pacto de la naturaleza:

Ahí estaba el río. Yo lo veía correr, encabritado, arras-


trando con furia árboles enteros que parecían pedir
ayuda. El agua bajando a borbotones me acobardó. Ha-
bía, no obstante, que lanzarse al agua y dejarse llevar. Ese
era el precio de la salvación. (27-28)

Aunque se trata, como es evidente, de un momento de ex-


tremada tensión, el discurso no hace concesiones: el cuadro inte-
rior de la narradora –su agotamiento físico, sus aprensiones ante
los evidentes peligros- se complementa con el cuadro natural que
ofrece la impetuosidad de esas aguas. Pero la protagonista no
- 91 -
Literatura, memória e cultura

entra en ellas, y -en un despliegue de transferencia simbolista- el


discurso amalgama rápidamente los dos niveles referenciales del
cuadro: “Aquellos troncos que giraban en el agua y desaparecían
para salir a flote más adelante, con sus ramas extendidas hacia el
cielo, eran yo misma. Me veía sumergida en ese mar de barro”
(28). A continuación, la aliteración y el paralelismo sintáctico
refuerzan la capacidad poética del discurso:

…Pero tenía miedo. Era un miedo hecho de una serie de


patéticos pequeños miedos lamentables. Miedo de volver
a estar empapada, ahora que había logrado calentarme
con la caminata. Miedo de perder el morral con las esca-
sas provisiones que contenía. Miedo de que la corriente
me arrastrara. Miedo de estar sola. Miedo de tener miedo.
Miedo de morir estúpidamente. (28, énfasis mío)

La aventura continúa: Yiseth la encuentra. Ingrid es inca-


paz de persuadirla a que se escape con ella y, temerosa, la guerri-
llera la entrega a sus compañeros; éstos -como hemos visto- le
infligen un denigrante castigo (30-34) cuyas huellas le acompa-
ñarán a partir de entonces.1 Poco después tiene lugar un rápido

1 El impacto de esta terrible experiencia se expresa muchas páginas des-


pués en el testimonio de Ingrid, cuando un nuevo y fracasado intento de
fuga –esta vez en compañía de Luis E. Pérez, en Julio 2005- la enfrenta al
inevitable castigo: “Retrocedí tratando de ganar tiempo para hacerlos entrar
en razón. Pronto quedé acorralada contra la malla y las púas. Los hombres
se abalanzaron sobre mí, torciéndome los brazos, mientras unas manos en-
ceguecidas me jalaban el pelo hacia atrás y me enrollaban la cadena metá-
lica alrededor del cuello. Luché salvajemente. Para nada, pues sabía de
antemano que había perdido. Pero yo no estaba allí, en aquel lugar, en aque-
lla hora. Estaba en otro tiempo, en otra parte, con otros hombres que me
habían lastimado y que se les parecían, y luchaba contra ellos por nada y
por todo. El tiempo había dejado de ser lineal; se había vuelto permeable,
- 92 -
Literatura, memoria y cultura

intercambio de palabras entre ella y Clara, al cual sigue su exa-


men interior de lo ocurrido, y la evaluación moral de sus captores.
Finalmente, una cita con el comandante Andrés quien, inconmo-
vible ante la queja expuesta por la secuestrada, justifica plena-
mente el castigo que ha recibido. Su verdadero rescate, sin em-
bargo, son las palabras, y éstas le permiten inscribirse como su-
jeto de una escalofriante historia.

Dinámica del discurso

Un componente importante en la estructura de este relato


es el desplazamiento cronotópico1 que exhibe a lo largo de sus
primeros fragmentos –ochenta y dos en total-, apartándose de la
linealidad que caracteriza a este tipo de discurso. Ya hemos visto
cómo el relato se inicia in medias res: el espacio es el campa-
mento de las FARC a cargo del comandante Andrés, y la fecha
indicada es diciembre del 2002.2 O sea, diez meses después del

con un sistema de vasos comunicantes. El pasado regresaba para ser revi-


vido como proyección de lo que podría volver a ocurrir” (558-559).
1 “Denominaremos cronotopo (literalmente, ‘tiempo espacio’) la intrínseca
conexión de relaciones temporales y espaciales expresadas artísticamente
en la literatura…El tiempo se hace más denso, toma carne, se convierte en
algo estéticamente visible; el espacio también se carga de/responde a los
movimientos del tiempo, el argumento, y la historia. Esta intersección axial
y fusión de indicadores caracteriza al cronotopo artístico”, M.M. Bakhtin,
The Dialogic Imagination, Edited by M. Holquist (Austin: University of
Texas Press, 1981), 84. Mi traducción.
2 Aclaración importante: tuve la oportunidad de leer primero este libro en
inglés (Even Silence Has an End. My Six Years of Captivity in the Colom-
bian Jungle. New York: The Penguin Press, 2010), y en este caso -como
en otros- esa edición señala explícitamente la fecha correspondiente, dato
que no siempre aparece en la edición española. F1 es un ejemplo. Poste-
riormente he podido constatar que en la edición francesa (Même le silence
a une fin. Paris: Gallimard, 2010) también faltan algunas fechas. Aunque
- 93 -
Literatura, memória e cultura

secuestro. Sin pretender ser exhaustivos, conviene trazar el dina-


mismo del discurso en algunos fragmentos claves.
F2 se abre con una fecha y una afirmación: “Febrero 23 de
2009. Hace exactamente siete años, día por día, fui secuestrada”
(48); se trata, como es evidente, de un cronotopo celebratorio:
está en su casa y en libertad. De inmediato el relato salta restros-
pectivamente a enero del 2002, cuando estaba en los Estados Uni-
dos buscando ayuda para su campaña presidencial. El paro car-
díaco que sufre su padre la obliga a regresar a Bogotá, interrum-
piendo momentáneamente las labores de su campaña presiden-
cial. Reanudada ésta, Ingrid considera obligatoria su presencia en
San Vicente del Caguán para asistir a las discusiones entre el go-
bierno y las FARC. Sigue un paréntesis informativo, de valor his-
tórico, sobre la lucha partidista vivida por los colombianos desde
la década de 1940, y el surgimiento de las FARC como posible
fuerza reivindicadora de los derechos que política y económica-
mente ha ido perdiendo el pueblo. La nota incluye una alusión al
presidente Andrés Pastrana, quien desde 1998 se enfrenta a un
crítico cuadro político y social. El paréntesis también informa so-
bre una previa reunión que tuvieron el presidente y las FARC el
14 de febrero del 2002 en San Vicente, en la cual la candidata
pudo reclamarle públicamente a la guerrilla su comportamiento
nada coherente con un supuesto deseo de pactar la paz. Una se-
mana después de esa reunión las FARC secuestraron el avión en
que viajaba el senador Jorge Eduardo Géchem, acción que obligó
a Pastrana a abandonar los diálogos con la guerrilla y retomar el
extenso territorio que previamente les había concedido. El anun-
cio oficial del gobierno afirmaba que el Caguán estaba

el presente estudio se ciñe al texto en español, para las fechas aludidas me


guío por la versión inglesa.
- 94 -
Literatura, memoria y cultura

recuperado. Finalmente, la narradora indica que la noche anterior


al viaje, Clara Rojas -vinculada a su campaña- le ofrece ir con
ella.1 El fragmento concluye con el recuerdo de la conversación
final que tuvieron la protagonista y su padre -todavía vivo- la vís-
pera del viaje.
F3 es una detallada reconstrucción de lo que sucedió el 23
de febrero del 2002, día en que, acompañada por otros miembros
de su equipo, la candidata se trasladó en avión de Bogotá a Flo-
rencia, Caquetá, con la intención de seguir hasta San Vicente.
Una serie de incidentes en el aeropuerto de Florencia, sin em-
bargo, pusieron en claro que el gobierno no aprobaba su presencia
allí. Convencida de que Pastrana actuaba en su contra como re-
presalia a una posición ideológica que formalmente la colocaba
en la oposición, la candidata se niega a abandonar su propósito.
Lo que sigue es un dramático recuento de cómo, convencidos de
que se movían dentro de una zona controlada entonces por las
fuerzas del gobierno, Ingrid y sus acompañantes decidieron con-
tinuar en carro, sólo para caer en manos de las FARC minutos
después. Lo peor acababa de ocurrir: habían sido secuestrados.
F4 y F5 confirman su nueva condición en manos de la gue-
rrilla; señalan también su reacción inicial durante la primera no-
che y el día siguiente al plagio. F6 sí implica un nuevo desplaza-
miento espaciotemporal; la fecha es 23 de marzo del 2009, y el
espacio es el de su recuperada libertad. Como lo indica el título
del fragmento, el discurso de la protagonista alude a la muerte de
su padre, ocurrida exactamente siete años antes, el 23 de marzo
del 2002, un mes después de haber sido secuestrada; suceso del

1 La versión de Clara Rojas al respecto es otra, y resulta significativa la


diferencia. Véase Clara Rojas, Cautiva. Testimonio de un secuestro
(Nueva York: Astria,, 2009), especialmente el capítulo “El día antes”, 5-
10.
- 95 -
Literatura, memória e cultura

cual no se enteró en aquel momento. F7, con fecha 3 de abril del


2002,1 complementa adecuadamente el dato al aclarar cómo ella
lee la noticia –varias semanas después- en una vieja página de El
Tiempo que saca de la basura. En ese momento ella y Clara están
encadenadas, como castigo después de un segundo intento de
fuga. Justamente, F8 informa los detalles relacionados con los
preparativos de esa fuga y los accidentes sufridos. Puesto que el
segmento anterior indica el resultado de tal acción, estamos de
nuevo ante un desplazamiento cronotópico; en este caso, un mo-
vimiento en retroceso donde el discurso muestra primero el con-
secuente y luego el antecedente. Entre F9 y F21 no hay indica-
ción explícita de la fecha correspondiente; todo apunta a hechos
ocurridos entre el 2002 y el 2003. Hay desde luego movimientos
espaciales dentro de la selva –marchas forzadas, nuevos campa-
mentos-, pero el discurso no sufre alteraciones importantes. F22
sí anota como fecha el 22 de agosto del 2003, con un doble salto
espacio-temporal propiciado por los recuerdos: el primero retro-
cede a una semana después de haber sido capturada Ingrid –
marzo del 2002-, cuando el Mocho César le muestra la vastedad
de la selva que le esperaba; el segundo -un recuerdo dentro de
otro recuerdo- va un poco más atrás en el tiempo (noviembre del
2001, en medio de su campaña presidencial) con el episodio de la
mujer que le revela las inquietantes visiones que ha tenido rela-
cionadas con ella, y le aconseja protegerse. F23 refuerza el

1 Para el lector de la versión española la fecha que anota el texto es “Abril


3 de 2003”, lo cual, como es evidente, crea un problema en la proyección
espacio-temporal que estamos considerando. La versión del testimonio en
inglés, sí indica “April 3, 2002”, fecha que considero acertada, y que se
ajusta a los cálculos pertinentes. Nuevamente se hace inevitable esta pre-
gunta: ¿Cómo se explica que la edición de este libro en español haya su-
frido tales cambios?
- 96 -
Literatura, memoria y cultura

regreso de la narración al 22 de agosto del 2003, día en que Ingrid


inesperadamente se encuentra con otro pequeño grupo de prisio-
neros del que forma parte Luis Eladio Pérez. F24 coloca el relato
a finales de agosto del 2003,1 cuando el Mono Jojoy visita el cam-
pamento de prisioneros a cargo del comandante Giovanni. En esta
oportunidad la narradora recuerda la premonitoria idea expresada
cuatro años antes por Jojoy, quien sugería la posibilidad de tomar
como rehenes a políticos para utilizarlos como mercancía de “in-
tercambio humanitario” (265). Marulanda y ella también estaban
en aquella reunión; rápidamente captado por el texto, el episodio
aparece ahora en forma de flashback.
Entre F25 y F35 los hechos registrados por el relato llegan
hasta finales de diciembre del 2003. Aunque entre F36 y F59 el
testimonio de Ingrid sintetiza lo ocurrido a lo largo del año 2004,
la linealidad espaciotemporal sufre dos interrupciones: la pri-
mera, en F44 con el adelanto narrativo (404-405) que informa al
lector sobre “Peluche”, guerrillera encargada de vigilar a Ingrid
en ese momento. La segunda interrupción se da en forma de mo-
vimiento zigzagueante entre lo que ocurre en F53, F54, y F55.2
A partir de aquí el relato testimonial mantiene linealidad espacio-
temporal. Entre F60 y F67 se registran los hechos correspondien-
tes al año 2005, entre los cuales sobresale el fracasado intento de
fuga llevado a cabo por la narradora y Lucho, con su correspon-
diente castigo. F68 y F69 resumen lo más importante ocurrido en
el 2006: el regreso de los tres americanos –Marc, Tom, Keith- al

1 Aunque la fecha aparece indicada en la versión del testimonio en inglés,


no ocurre así con su versión en español.
2 En efecto, F53 está fechado en noviembre del 2004; por su parte F54 se
refiere a algo que pasa el 28 de octubre del 2004, y F55 -fechado a comien-
zos de noviembre del 2004- reconecta en el plano de la narración con el
mes de noviembre, antes abandonado. Recuérdese que para estos cálculos
me atengo a la versión del relato en inglés, más fiable.
- 97 -
Literatura, memória e cultura

campamento; el infarto que sufre Lucho; el entusiasmo de la pro-


tagonista con la idea de intentar fugarse nuevamente, esta vez en
compañía de Lucho y Pinchao. Entre F70 y F78 el discurso se
refiere a hechos ocurridos en el 2007 y comienzos del 2008 (la
liberación de varios prisioneros, entre ellos Clara Rojas y Luis E.
Pérez). Finalmente, entre F79 y F82 se cierra el marco referencial
del testimonio, que concluye con la exitosa Operación Jaque: In-
grid y varios de sus compañeros son liberados.
Junto al desplazamiento cronotópico, la discursividad en
No hay silencio que no termine se ve también alterada por tres
mecanismos de tipo estructural: los recuerdos, las historias inser-
tadas, y el suspense. Estrictamente hablando, por supuesto, todo
testimonio es un ejercicio de reconstrucción que le permite al su-
jeto evocar determinadas experiencias.1 Pero se trata en este caso
de aquellos recuerdos que orgánicamente aparecen insertados en
el referente mayor –el hilo central del relato-, con los que se am-
plía ontológicamente la imagen de mundo que el texto proyecta.
En F5, por ejemplo, al preguntarse la protagonista cuál sería la

114 El testimonio, como género, ofrece diferentes posibilidades de acerca-


miento; es pertinente en nuestro caso la acertada observación de John Be-
verley: “La palabra testimonio en español connota un acto revelador de la
verdad en sentido religioso o jurídico; dar testimonio significa testificar,
convertirse en portador de una verdad. La autoridad ética y epistemológica
del testimonio proviene del hecho de que de nosotros se espera que presu-
mamos que el narrador/narradora es alguien que ha vivido directa o indi-
rectamente –a través de la experiencia de amigos, familiares, vecinos, u
otra persona cercana- los acontecimientos y experiencias que narra. Lo que
le confiere forma y significado a esos acontecimientos, lo que los convierte
en historia, es la relación entre la secuencia temporal de tales hechos y la
secuencia de la vida del narrador o narradores, articulada en la estructura
verbal del texto testimonial” (J. Beverley, Testimonio. On the Politics of
Truth (Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2004), 3-4. Mi
traducción.
- 98 -
Literatura, memoria y cultura

reacción de los colombianos –partidarios y contendores políticos-


al enterarse de su secuestro, evoca las imágenes de Manuel Ma-
rulanda y Piedad Córdoba,1 a quienes conoció en circunstancias
especiales:
…Yo había conocido a Manuel Marulanda, jefe de las
FARC, a través de ella…Vi cómo el viejo Marulanda tenía
el control absoluto de todos sus hombres. En un momento
dado, se quejó del barro que tenía debajo de los pies.

1Pedro Marín -alias Manuel Marulanda Vélez-, conocido también como


“Tirofijo”, es el legendario rebelde fundador de las FARC en 1964, cuando
con un grupo de campesinos combatientes que luchaban contra la opresión
del gobierno estableció su centro de operaciones en la zona de Marquetalia,
Tolima. Nacido alrededor de 1930 en el seno de una familia de campesinos
pobres (Génova, Quindío), se transformó en un joven políticamente radical,
admirador del marxismo, el comunismo internacional, y la revolución cu-
bana. Su relativo éxito como jefe de las FARC-EP lo convirtieron luego en
un guerrillero de excelente capacidad estratégica, admirado por su fidelidad
a los principios revolucionarios que lo llevaron inicialmente a la lucha. En
esa posición se mantuvo, al frente de una organización que en su momento
de mayor efectividad obligó al gobierno colombiano a utilizar toda una se-
rie de estrategias mayores para controlar el poder alcanzado por la subver-
sión. Sobrevivió al largo asedio del gobierno en su intención de acabar con
la guerrilla, y murió de un paro cardíaco en marzo del 2008. Su valioso
testimonio sobre tan larga experiencia en la lucha armada, Cuadernos de
campaña (nota introductoria de J. Modesto Campos), está disponible en
internet: http://resistencia-colombia.org/pdf/CuadernosdeCampana.pdf
Muy interesante también es el libro de Arturo Alape, Las vidas de Pedro
Antonio Marín Manuel Marulanda Vélez: Tirofijo (Bogotá: Editorial Pla-
neta, 1989). Un importante aporte al conocimiento de la organización gue-
rrillera es el trabajo de Juan G. Ferro Medina, y Graciela Uribe Ramón, El
orden de la Guerra: Las FARC-EP entre la organización y la política (Bo-
gotá: Centro Editorial Javeriano/Pontificia Universidad Javeriana, 2002).
Por su parte, Piedad Córdoba Ruiz fue Senadora de la República de Co-
lombia entre 1994-2010, y finalmente destituida por supuesta extralimita-
ción de funciones. Orientada políticamente en la dirección socialdemócrata
del Partido Liberal, la ex-congresista ha sido una activista incansable en la
búsqueda de acuerdos humanitarios que conduzcan a una solución política
del conflicto gobierno-subversión en su país.
- 99 -
Literatura, memória e cultura

Literalmente lo levantaron con todo y silla, como un empe-


rador, mientras que otros comandantes ponían tablas en el
suelo y le hacían un piso de madera improvisado. Piedad
Córdoba había sido secuestrada por los paramilitares seis
meses después de nuestra visita a las FARC. Castaño, el jefe
de los paramilitares, acusaba a Córdoba de estar aliada con
la guerrilla…Todos esos asuntos en los que se mezclaban
mis fantasías con la realidad me mantuvieron despierta la no-
che entera. (91)

Son referencias muy rápidas que añaden importante infor-


mación a la experiencia de fondo. El significante “fantasías”, en
la frase final de la cita anterior, no se refiere al recuerdo aludido
sino a la situación imaginada por ella previamente en el relato
(90), en la que piensa cómo sería su posible regreso a casa si lo-
grara huir. Algunas veces la evocación aparece como un salva-
vidas que le permite a la narradora fugarse momentáneamente a
otra dimensión espaciotemporal donde desaparece la dura reali-
dad del secuestro. Es lo que ocurre en F57, por ejemplo, cuando
invitados los prisioneros por el comandante a participar en las lla-
madas “horas culturales”, las actividades desarrolladas remiten
mentalmente a Ingrid a ciertos momentos de su infancia:

Me vi con mis primos preparando un espectáculo para


nuestros padres en la casa vieja de la abuela…Oía a mi
abuela, en la planta baja, quejarse de que le íbamos a tum-
bar la casa. En la mansarda había un baúl donde Mamá
guardaba sus vestidos de baile y las coronas que había
recibido en tiempos de su reinado, que todos usábamos
para disfrazarnos…Esta magdalena proustiana vino a re-
cordarme lo que había perdido. No podían pintarme
como hora cultural ese tiempo que me robaban lejos de
los míos. (495)

- 100 -
Literatura, memoria y cultura

Aunque los significantes “coronas” y “reinado” pueden su-


gerir el repentino salto a otro nivel de realidad donde prevalece
la fantasía, se trata de un recuerdo autobiográfico.1 Como en el
episodio ocurrido en Cartagena cuando tenía quince años, y luego
evocado por ella (328), la magdalena proustiana2 es aquí un me-
canismo discursivo que le sirve al sujeto para rescatar una recon-
fortante experiencia vivida.
Lo mismo puede decirse de las diferentes microhistorias
que orgánicamente se integran al discurso de la protagonista, y
que enriquecen el grado de conocimiento del lector sobre los per-
sonajes aludidos. Es el caso de Giovanni, comandante del cam-
pamento al que son llevadas Clara e Ingrid a finales de agosto del

1Su madre, Yolanda Pulecio, fue candidata por el departamento de Cundi-


namarca al título de Señorita Colombia -concurso de belleza- en 1955.
2 El estatus literario de este testimonio lo refuerza el discurso con alusiones
explícitas al mundo de la escritura. Proust, desde luego, es un referente
particularmente relevante en un registro verbal que se construye a partir de
la memoria. Recuérdese la pequeña biblioteca que los prisioneros militares
ponen a disposición de los civiles en el campamento de Sombra, donde –
como indica Ingid-: “Había de todo: novelas, clásicos, libros de psicología,
testimonios del Holocausto, ensayos filosóficos, libros espirituales, manua-
les de esoterismo, historias para niños” (366-367). De manera explícita la
narradora menciona Crimen y Castigo, de F. Dostoievski; La madre, de M.
Gorki; El rey de hierro, de M. Druon; La novia oscura, de L. Restrepo; El
alcaraván, de C. Caycedo; La fiesta del chivo, de Mario Vargas Llosa; sin
olvidar la serie de Harry Potter. En otra ocasión se menciona a Gabriel Gar-
cía Márquez. Como lo indica ella, el título mismo del libro es un claro ho-
menaje a Pablo Neruda, recordando en este caso un verso del poema “Para
todos”, cuya estrofa final dice: “Si no se saben mis palabras/no dudes que
soy el que fui./No hay silencio que no termine./Cuando llegue el momento,
espérame,/y que sepan todos que llego/a la calle, con mi violín”. Véase
Pablo Neruda, Plenos poderes (Buenos Aires: Editorial Losada, 1962).

- 101 -
Literatura, memória e cultura

2003; al contarle a sus prisioneras una experiencia de su vida pa-


sada –otra evocación-, el personaje se convierte en narrador de su
propia historia (262). El pasaje sirve también para ilustrar el sen-
tido de heroísmo y valor arraigado en la mentalidad del joven
guerrillero. Por su parte, la historia de Rosita (467-469) informa
al lector sobre la condición de sometimiento que viven las gue-
rrilleras en las FARC, obligadas a satisfacer los deseos sexuales
de sus compañeros como muestra irrefutable de un comporta-
miento revolucionario. Lo irónico de esta historia es que Rosita
había decidido ingresar en las FARC para evitar hacerse prosti-
tuta. El caso de Katerina (572-573) es todo lo contrario: primero
fue prostituta y luego guerrillera. Otro que llega a las FARC bus-
cando salvación es Guillermo (474), quien se hace guerrillero
para huir de una deuda contraída con la mafia. También lo hace
Sombra, “hombre de confianza de Marulanda” (476) –sus propias
palabras-, quien impresiona a Ingrid con su rica imaginación. Se
trata de rápidos trozos de información asimilados estructural-
mente por el macro-discurso, dispositivo con el cual el texto com-
bate una posible monotonía a nivel de su enunciado, y amplía el
campo semántico.
Pero no hay duda de que el suspense narrativo es el me-
canismo más eficaz que el texto tiene para involucrar al lector y
asegurar su interés en la historia que se le cuenta. En líneas ge-
nerales, esto ocurre en No hay silencio que no termine a partir de
la primera página y se mantiene hasta la página final, cuando la
protagonista -al constatar su libertad- experimenta cierta sensa-
ción de renacimiento, con lo que concluye la doble aventura co-
dificada por el relato. Como consecuencia del dramatismo aña-
dido por la escritura al registrar ciertas experiencias, hay episo-
dios particularmente impactantes. Es el caso, por ejemplo, de la
frustrada fuga realizada por Ingrid y Lucho en el 2005, materia
- 102 -
Literatura, memoria y cultura

del relato entre F60 y F64. F60 señala la decisión que en enero
toma la protagonista de fugarse con él –víctima en ese momento
de la leishmaniasis-, y añade algunos detalles iniciales: prepara-
ción de flotadores; un machete encontrado; ubicación aproxi-
mada del campamento donde están, gracias a las coordenadas ac-
cidentalmente leídas por Ingrid en un GPS; una esperada tor-
menta que no llega. F61 continúa con la etapa de preparación:1
clases de francés a compañeros secuestrados; de etiqueta a John
Pinchao; la estrepitosa caída de un gigantesco árbol; los recuer-
dos relacionados con su madre y con el expresidente López; su
invocación de ayuda espiritual a la virgen María; la decisión de
partir el día 17 de julio. Son los instantes iniciales de la huida,
presentados con un dramatismo que en todo momento retiene la
atención del lector. F62 es una verdadera reconstrucción de los
peligros de esa fuga, con una riqueza de información que añade
emotividad a la experiencia: la hipotermia; el temor a ser ataca-
dos por anacondas o por pirañas; el dato añadido sobre la mens-
truación de la protagonista; los rápidos cambios de la naturaleza
en un espacio sometido a los desplazamientos entre la sombra y
la luz; un avispero; la lluvia; las voces de los buscadores que se
acercan; un motor que se aleja; la imagen de un caimán en medio
de la noche; las dificultades que representa para los dos fugados
deslizarse por la corriente del río; el temor a la propia debilidad
física –hambre, frío, fatiga-; la improvisada pesca de pirañas para
sobrevivir; los gritos frustrados a una barca que se acerca cargada
de civiles; el constante temor de la protagonista a que su compa-
ñero sufra un ataque diabético; una nueva tormenta nocturna; la
salida obligada del río para seguir en medio de la noche por una

1 La edición en inglés anota la fecha “February 2005”, ausente en la edi-


ción española.
- 103 -
Literatura, memória e cultura

trocha; el inesperado ataque de “la manta blanca”; el regreso a las


aguas del río; un caimán a punto de atacar a Lucho; la fuerte co-
rriente que amenaza con ahogarlos. Todos los ingredientes de la
aventura están presentes allí. F63 capta la imagen de abatimiento
que sufren los fugados (agotados, sin comida, Lucho dando seña-
les de una inminente crisis diabética); finalmente el ruido de la
barca que se acerca, los gritos desesperados de los fugados espe-
rando los rescaten, las triunfantes caras de Ángel, Tigre y Oswald
al recogerlos. El sueño de recuperar la libertad ha sido breve. F64
da algunos otros detalles de la captura y el castigo que reciben.
Otro tipo de suspense ocurre cuando la voz de la narra-
dora controla los detalles de la experiencia que cuenta, prepa-
rando conscientemente una sorpresa para el lector. Un excelente
ejemplo está relacionado con la fuga y supuesta muerte de John
Pinchao. En F70 Ingrid relata los detalles que preceden a la fuga
de éste. Inicialmente interesado en huir con ella y Lucho, el sar-
gento de policía se decide a partir solo el 28 de abril del 2007,
después de recibir los valiosos consejos de la experimentada
compañera. F71 da cuenta de la tensión que se vive en el campa-
mento el día siguiente. Conmocionados por el inmediato rumor
de que los guerrilleros habían atrapado al fugado, todos empiezan
a imaginarse lo peor. El texto recrea adecuadamente la incerti-
dumbre del grupo mediante las conjeturas expresadas por ellos en
sus diálogos, y algunas señales que parecen confirmar la desgra-
cia presentida: guardias con palas, quizás encargados de hacer
huecos para enterrar el cuerpo de Pinchao; disparos que se escu-
chan a lo lejos -acompañados por una nube de pájaros negros-
posible indicación de que el prisionero ha sido ejecutado; anuncio
posterior de otro guerrillero quien asegura que al fugado se lo
comió una gigantesca anaconda. Probabilidades sumamente alar-
mantes, que no reciben confirmación. Vienen luego las
- 104 -
Literatura, memoria y cultura

referencias al muerto como nuevo motivo de discordia en el


grupo, y el minuto de silencio que -como homenaje final- Ingrid
solicita a los compañeros en memoria del difunto. Por último, el
anuncio en la radio, y las palabras de Pinchao –triunfalmente
vivo- agradeciéndole a la narradora la ayuda que le dio. Tanto el
suspense de la situación aludida, como su desenlace, han sido in-
teligentemente controlados por el relato.

Semántica del discurso

Los mecanismos de tipo estructural arriba señalados re-


claman para el relato de Ingrid Betancourt su estatus literario; le
confieren categoría de artefacto estético que va mucho más allá
de la simple recuperación verbal de una amarga experiencia vi-
vida por ella en manos de las FARC. Son también el necesario
soporte para la construcción de una imagen de realidad presen-
tada al lector en toda su crudeza, mediante un lenguaje que cum-
ple adecuadamente su tarea catártica sin sacrificar el diseño poé-
tico que sirve de base a la memoria. Las zonas semánticas que en
este caso el lenguaje codifica se refieren a dos amplios planos
referenciales. El primero –de carácter externo- está conformado
por la evaluación política y moral que la víctima hace de sus se-
cuestradores, e incluye también referencias al espacio selvático
como epicentro del relato. El segundo –mucho más personal-
guarda relación con el trauma que sufre la narradora, y el com-
plejo proceso de autorreconocimiento que le permite construirse
como personaje en la historia que narra.

Las FARC y el espacio del encierro

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Literatura, memória e cultura

El denigrante castigo que la protagonista recibe de sus cap-


tores, descrito en el fragmento de apertura (F1), le permite expre-
sar un juicio en el que se condensa su opinión sobre la guerrilla a
lo largo del relato: “Me parecían deplorables, con sus fusiles, sus
cadenas, su gran número de guardias, todo eso para hacerles
frente a dos mujeres indefensas. Eran cobardes en su violencia,
medrosos en una crueldad que se ejercía bajo el manto de la im-
punidad y sin testigos” (37-38). Más adelante, en una espontánea
conversación con un guerrillero llamado Lorenzo, Ingrid justifica
la caracterización que internacionalmente reciben los subversi-
vos, catalogados como terroristas.1 Pero quizá sea en respuesta a
las ideas políticas de Ferney –otro guerrillero, a quien la narra-
dora aprecia por su noble conducta- donde mejor se resume el
concepto que ella tiene sobre la ideología de las FARC: “[Ferney]
Reivindicaba la lucha armada diciendo que en Colombia había
demasiada gente en la miseria. Yo le respondía que las FARC no
hacían nada por combatir la pobreza y que, por el contrario, su
organización se había convertido en un engranaje importante del
sistema que pretendía combatir, pues era fuente de corrupción, de
tráfico de droga y de violencia” (220).
Más que una simple serie de acusaciones, emparentadas
de alguna manera con la visión que desde hace algún tiempo
existe sobre la guerrilla en gran parte de la opinión pública co-
lombiana, el testimonio de Ingrid resulta interesante por ciertas

1“-Si no son terroristas, no se comporten como terroristas. Ustedes secues-


tran, matan, hacen estallar cilindros de gas en las casas de la gente, siem-
bran el terror. ¿Cómo pretenden que los llamen?
-Eso son necesidades de la guerra.
-Tal vez, pero la manera como ustedes hacen la guerra es puro terro-
rismo. Enfrenten al ejército, pero no la emprendan contra los civiles si no
quieren que los llamen terroristas” (164-165).
- 106 -
Literatura, memoria y cultura

situaciones que describe y que permiten al lector una evaluación


más equilibrada del llamado “Ejército del Pueblo”. Hay referen-
cias, por supuesto, a la corrupción como modus operandi entre
algunos comandantes guerrilleros,1 o la fructífera relación que
mantienen las FARC con grupos narcotraficantes que operan en
la selva. Es el caso de César, comandante del frente primero: “Era
un hombre rico, sus negocios iban de maravilla. La producción
de cocaína llenaba sus arcas a reventar. ‘Hay que financiar la re-
volución’, había dicho entre risas” (487-488). Pero más impac-
tantes resultan socioculturalmente sus observaciones sobre la par-
ticipación de la mujer y de niños entre los subversivos; temas de
particular interés en el testimonio de la narradora.
Ya hemos visto cómo, en las historias insertadas de Rosita
y Katerina, el relato hace evidente el conflictivo papel de la mujer
en la guerrilla. Provenientes, en su mayoría, de condiciones eco-
nómicas y culturales bastante limitadas, ingresan en las FARC
con la ilusión de encontrar allí la reivindicación social que el dis-
curso político del movimiento les promete. La realidad que les
espera, sin embargo, es otra, y el relato de Ingrid hace énfasis en
el hecho de que casi todas se convierten en piezas de triple valor
dentro de la organización subversiva: soldados entrenados para
participar activamente en las operaciones bélicas, responsables

1 Está claro que la corrupción no es cualidad exclusiva de las FARC, pues


como le afirma en algún momento Martín Sombra a Ingrid, el mal es patri-
monio también de las fuerzas del gobierno: “Los chulos pueden gastar toda
la plata que quieran en aviones y en radares para buscarlos. ¡Pero mientras
haya oficiales corrompidos, nosotros seguiremos siendo más fuertes! Mire:
la zona donde estamos está bajo control militar. Todo lo que se consume
debe ser justificado, hay que decir para quién es, cuántas personas hay por
familia, los nombres, las edades, todo. Pero basta con que haya uno que
quiera cuadrarse una platica a fin de mes para que sus planes se les jodan,
-luego agregó con aire malicioso-: ¡Y no son solo los de bajo rango los que
lo hacen! ¡No son solo los de bajo rango!” (282).
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Literatura, memória e cultura

de oficios domésticos, y servidoras sexuales.1 El sometimiento de


las jóvenes guerrilleras en esta última tarea es requisito especial,
sobre todo si el necesitado es un superior:

…En las FARC, rechazar los requiebros de un superior era


muy mal visto. Era preciso demostrar camaradería y espíritu
revolucionario. Satisfacer los deseos sexuales de los compa-
ñeros de armas formaba parte de lo que se esperaba de las
guerrilleras. En la práctica había dos días de la semana en
que los guerrilleros podían pedir permiso para compartir la
caleta con alguien más: los miércoles y los domingos, los jó-
venes presentaban sus solicitudes al comandante. Las

1 Se trata, como es evidente, de una observación que hago como lector de


este testimonio, consciente de que es un juicio que puede resultar discuti-
ble. Para una evaluación diferente de la condición de las guerrilleras en las
FARC, véase por ejemplo, James J. Brittain, Revolutionary Social Change
in Colombia. The Origin and Direction of the FARC-EP (New York: Pluto
Press, 2010), quien entre otras cosas señala, sobre un gráfico estadístico
(165), que la participación femenina en las FARC, entre los años 60 y el
2006, aumentó de 5% a 50%; una cifra impresionante. El estudio de Brit-
tain es sin duda interesante, resultado de una rigurosa investigación que
incluye su directa incursión personal en territorio de la guerrilla. Aporta
también una valiosa bibliografía relacionada con el complejo problema de
la lucha armada en Colombia. Para la participación femenina en la guerri-
lla, puede consultarse también el trabajo de Arturo Alape, Women in the
FARC Guerrilla (Mexico City: International Commission, 2000). Digna de
mencionarse es la crónica de Jimmy Ávila Ramírez titulada “Un soldado
se infiltró en las FARC y rescató a su madre guerrillera” (El Tiempo, 4 de
agosto del 2011), en la que cuenta cómo “Carmenza”, mujer de 44 años y
guerrillera desde los 14, fue rescatada treinta años después por uno de los
tres hijos que tuvo y abandonó a la fuerza por imposición de la organización
subversiva. El drama se intensifica al aclararse que ese hijo-rescatador es
“Alexander”, soldado del Ejército colombiano, quien permaneció infiltrado
en el Frente 34 de las FARC durante dos meses para liberar a su madre.
Exitosa aventura, digna de la mejor literatura, que ilustra una vez más la
dura realidad que vivieron en las FARC muchas mujeres vinculadas al con-
flicto.
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Literatura, memoria y cultura

muchachas podían negarse una o dos veces pero no tres, a


riesgo de hacerse llamar al orden por falta de solidaridad re-
volucionaria. El único medio de escapar era declararse ofi-
cialmente en pareja con alguien más y conseguir la autoriza-
ción para vivir juntos bajo el mismo techo. Pero si el superior
le había echado el ojo a alguna muchacha, era poco probable
que otro guerrillero quisiera interponerse. (467-468)

Hay triángulos amorosos como el de Sombra con Shirley,


y la Boyaca, de quien se dice que era ranguera, “término peyora-
tivo que utilizaban los guerrilleros para designar a la mujer que
se acostaba con un comandante para disfrutar de las ventajas de
su rango” (360). Lo mismo se dice de Zamaidy, emparejada con
Mauricio, y de Lili, “socia” de Enrique. Otras parejas que el re-
lato identifica son las formadas por Jainer con Claudia, y César
con Adriana. La presencia femenina es desde luego importante
en los diferentes campamentos que la narradora conoce durante
su secuestro: Isabel, Sonia, Betty, Patricia, Alexandra, Jessica,
Katerina, Consolación. Impresionada por el evidente atractivo fí-
sico e inteligencia de algunas de estas jóvenes, Ingrid se pregunta
cómo pudieron caer en su total servilismo a las FARC. Es el caso
de Katerina, quien decide hacerse guerrillera, convencida de que
así será parte de una sociedad donde los hombres y las mujeres
son iguales:

Mientras la escuchaba, pensaba que no era tan cierto. Por el


contrario, lo cierto era que a las muchachas les tocaba traba-
jar como hombres. Conservaba la imagen de Katerina en ca-
miseta ajustada y pantalón camuflado, hacha en mano, en-
viando los brazos hacia atrás en una torsión espectacular de
la cintura para asestar un golpe preciso a la base de un árbol
que derribó sin problemas. La visión de esa Venus negra des-
plegando una destreza física que ponía en relieve cada
- 109 -
Literatura, memória e cultura

músculo de su cuerpo, había dejado sin aliento a mis compa-


ñeros. ¿Cómo una muchacha como ella podía permanecer en
semejante lugar? (573-574)

La referencia a Katerina, quien todavía no había salido de


la adolescencia, informa al mismo tiempo sobre la presencia de
niños en las filas de las FARC. El primer contacto que tiene con
ellos la narradora ocurre a principios de noviembre del 2004; con-
forman en ese momento un equipo bajo el mando de Jeiner. Ingrid
anota que los más pequeños escasamente tendrían diez años de
edad, y añade que “Cargaban sus fusiles como si estuvieran ju-
gando a la guerra” (481). Preocupada por la vulnerabilidad de
esta tropa infantil, carne de cañón en medio de la guerra, uno de
los militares secuestrados le hace una revelación impactante: “Es-
tos niños tienen más posibilidades de sobrevivir en la guerra que
los adultos. Son más intrépidos, más hábiles, y a veces más crue-
les. Solo han conocido las FARC. Para ellos no existen fronteras
entre los juegos y la realidad. Después viene el problema, cuando
se dan cuenta de que perdieron su libertad y quieren fugarse. Pero
entonces es demasiado tarde” (482). Como se lo indica el castigo
que Katerina recibe por parte de sus propias compañeras, y la
conducta nada inocente de Mono Liso, la afirmación del teniente
Bermeo no parece exagerada.1

1 La participación de niños-combatientes en diferentes grupos armados de


Colombia llamó la atención de Human Rights Watch que logró que se dis-
cutiera en el Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas en el 2005. José
M. Vivanco, Director para las Américas de esa organización dijo en esa
ocasión: “Las Naciones Unidas han reconocido que tanto la guerrilla como
los paramilitares violan los principios humanitarios fundamentales al utili-
zar a niños en la lucha armada…Estas prácticas horrorosas causan un daño
incalculable a los niños de Colombia, y a toda la sociedad colombiana”.
Interesante también es el informe documentado (2003) de Human Rights
- 110 -
Literatura, memoria y cultura

Todo lo anterior conduce en el discurso de la narradora a


una posición crítica que ve en la organización guerrillera un ana-
crónico sueño revolucionario –históricamente superado-, víctima
de la degradación política y moral en la que ha caído para sobre-
vivir: “vivían en un mundo donde el mal era el bien. Matar, men-
tir, traicionar, formaba parte de lo que se esperaba de ellos” (510-
511). A lo largo de su testimonio aparece una cruda y condenable
imagen del mundo deshumanizante de la guerrilla, su falta de
consideración hacia la dignidad de sus víctimas, la vulgaridad de
muchos de sus captores, su extremada violencia. Consternada
ante la constatación de que su pérdida de libertad constituye una
acción inmoral dentro del viciado tablero político del país, doble-
mente utilizable como trofeo de guerra y como moneda de cam-
bio, Ingrid se ampara en su rebeldía. Pero es un proceso de no-
sometimiento que dura varios años, al cabo de los cuales se salva
físicamente gracias a la exitosa operación militar que logra rom-
per el hermético encierro controlado por sus captores. Su recons-
trucción como ser humano, sin embargo, se realizará verdadera-
mente a través de la palabra como medio catártico: el lenguaje al
servicio de la memoria. No hay silencio que no termine constituye
el registro verbal de una versión de realidad donde caben lo gro-
tesco, lo simbolista, lo naturalista, la colorida estampa realista, el
desbordante lirismo, etc.; significantes que enriquecen semánti-
camente el mundo narrado, recordándonos el valor de este testi-
monio como ejercicio de escritura.1

Watch, “You’ll Learn Not to Cry: Child Combatants in Colombia”,


http://www.hrw.org/reports/2003/colombia0903/.
1 La riqueza del discurso permite un variado registro. El grupo de militares
cautivos que inesperadamente aparece ante la narradora en F30 es un ejem-
plo de realismo grotesco: “De los matorrales salieron unos cuarenta hom-
bres vestidos con harapos, con el pelo largo, la cara barbada. Una gran ca-
dena alrededor del cuello los amarraba a unos con otros. A su lado,
- 111 -
Literatura, memória e cultura

El espacio puede ser descrito como un elemento más que


se une a la opresión de la víctima. Esto sucede, por ejemplo,
cuando -después de un difícil recorrido en el que ha sido mania-
tada y le han vendado los ojos- la protagonista llega al campa-
mento comandado por Martín Sombra, percibido como un des-
censo mayor en el tormento del encierro: “La noche había caído.
El barrizal hervía con un calor subterráneo. Los gases de alimen-
tos en descomposición rompían en burbujas y salían a la superfi-
cie. El zumbido insalubre de millones de zancudos llenaba el es-
pacio y su vibración de ultrasonido me perforaba las sienes como
el doloroso anuncio de una crisis de locura. Hacía mucho calor.
Había llegado al infierno” (275). Otras veces es un registro

caminando en fila india, los vigilaban unos guerrilleros armados. Los pri-
sioneros llevaban a la espalda pesados morrales, además de enormes ollas
viejas, colchonetas rotas enrolladas sobre la nuca, gallinas amarradas por
las patas columpiándoseles de la cintura, pedazos de cartón, frascos de
aceite vacíos suspendidos de correas, y unos radios remendados por todas
partes que les colgaban del cuello como un yugo adicional. Parecían presi-
diarios llegando de Gorgona. Yo no podía dar crédito a mis ojos” (304).
Un ejemplo de colorida estampa realista aparece en F56, con la escena fol-
clórica formada por un grupo de combatientes, mientras se desplazan en un
bongo por el río con los secuestrados: “Al cabo de una hora, Camilo volteó
un balde metálico que estaba tirado en la cubierta, se lo encajó entre las
piernas y lo transformó en timbal. Su ritmo endiablado nos despertó el alma
y prendió la fiesta. Las canciones revolucionarias se mezclaron con las po-
pulares. Era simplemente imposible mantenerse al margen de la embria-
guez colectiva. Las chicas improvisaban cumbias contoneándose y girando
sobre sí mismas, como presas del vértigo de vivir. Las voces se desgañita-
ban y las palmas de las manos llevaban la cadencia con entusiasmo. Camilo
ahuyentó el frío y el tedio, también el miedo. Miré el cielo sin estrellas, el
río sinfín y aquel cargamento de hombres y mujeres sin futuro, y canté con
todas mis fuerzas, buscando en la apariencia de la alegría un dejo de felici-
dad” 490). En cuanto a la selva, ésta es percibida algunas veces en su con-
dición de peligro natural, siendo alabada en otras ocasiones por su miste-
riosa belleza.

- 112 -
Literatura, memoria y cultura

semántico que enmarca adecuadamente el estado de ánimo en que


el sujeto se encuentra; la descripción del mundo exterior responde
a la condición interior del hablante. Como ocurre con la estampa
nocturna que el discurso proyecta en un momento en que la na-
rradora y su amigo Marc están a punto de ser separados: “La no-
che cayó al instante y el bongo se sacudió como un monstruo des-
pertándose. El motor escupió al aire un humo azuloso y nausea-
bundo y el ronroneo de la máquina se impuso. Estábamos de
nuevo en la pista lisa de las aguas del gran río. Una luna inmensa
se elevaba en el cielo como el ojo de un cíclope” (644-645). El
dolor y aprensión que la protagonista siente en ese instante se
materializan en significantes externos contaminados por su an-
gustiada interioridad. No siempre, sin embargo, el espacio o la
naturaleza son percibidos con una tonalidad pesimista; respon-
diendo al mismo mecanismo poético, cierto estado de euforia in-
terior puede convertir el espacio exterior en excitante cuadro que
estimula los sentidos. Así ocurre, por ejemplo, cuando después
de varias semanas sin alimentarse adecuadamente, debido a pro-
blemas de salud, Ingrid disfruta el sabor de la cuajada fresca y las
arepas que los niños-guerrilleros de Jeiner le ofrecen. Su regocijo
interior se traslada de inmediato a la estampa natural que el dis-
curso proyecta:

Hacía buen tiempo y la selva se había ataviado magnífica-


mente. Atravesábamos un nuevo mundo. La luz perforaba el
follaje y se dispersaba en haces de colores, como si penetrá-
semos un arco iris. Un rosario de cascadas de agua cristalina
discurría brincando sobre los peldaños pulidos y relucientes.
Las caídas de agua liberaban, al pasar, pececillos que alzaban
el vuelo para caer coleando a nuestros pies. El agua serpen-
teaba abriéndose camino entre los árboles sobre lechos de
musgo verde esmeralda en los que nos hundíamos hasta las

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Literatura, memória e cultura

rodillas. Avanzábamos sin prisas, casi de paso. Acampamos


algunos días junto a una piscina natural de aguas azul tur-
quesa, con el fondo tapizado de fina arena dorada. Se había
formado bajo el salto de un torrente que luego huía zigza-
gueando para perderse misteriosamente en el bosque. Hu-
biera querido quedarme allí por siempre. (480-481)

Una vez más los significantes funcionan como piezas esen-


ciales en la imagen de mundo construida por el relato. Es evidente
que la narradora ha encontrado un impresionante remanso; sus
sentidos, alertas ante la realidad, despiertan de inmediato. La afir-
mación final debe entenderse, por supuesto, como expresión del
estado eufórico1 que conduce a la percepción del cuadro.

1 Tal euforia puede ocurrir incluso en condiciones de pánico. En F68, por


ejemplo, un repentino ataque aéreo de las fuerzas militares obliga a guerri-
lleros y prisioneros a abandonar el campamento. En tales circunstancias
Ingrid conserva la calma, refugiándose en un instintivo sentido de protec-
ción al reconocer que no le preocupa la posibilidad de la muerte. En medio
de la desbandada general, bajo el estropicio de las balas, y animada por la
posibilidad de que ese ataque del Ejército logre su liberación, la protago-
nista tiene tiempo para registrar verbalmente una estampa de exaltación na-
tural: “La selva se había vestido de rosa y malva. Ocurría dos veces al año,
cuando florecían las orquídeas. Vivían enredadas en el tronco de los árboles
y todas se despertaban al mismo tiempo, en una fiesta de colores que solo
duraba unos cuantos días” (581). Es un estado de excitación vital, como
corresponde al deseo manifestado en diferentes ocasiones por la prisionera
de que prefería morir en una operación de rescate militar. Más adelante la
narradora reafirmará su estado de exaltación ante la naturaleza: “Detrás de
un bosquecito, el agua gris azulada del río parecía inmóvil. Poco a poco, la
luz cambió. Se destacaron los árboles. Como dibujados con tinta negra so-
bre un fondo entre rosa y rojo. Un grito prehistórico cortó el espacio. Alcé
los ojos. Dos guacamayas incendiaron el cielo en una estela de colores fes-
tivos y polvo de oro. ‘Las dibujaré para Mela y Loli’. El cielo se apagó.
Cuando llegó el bongo, solo quedaban las estrellas” (583). Una imagen
donde predomina la plasticidad creada por los sentidos.

- 114 -
Literatura, memoria y cultura

Lo que sucede con el espacio físico puede también ocurrir


con el humano, donde no todo se describe como elemento orgá-
nicamente integrado a la degradación general que el secuestro im-
pone a los prisioneros. Esto se nota, por ejemplo, en el vitalismo
que exuda la sensualidad de algunas guerrilleras. El relato, en
efecto, resalta en diferentes ocasiones el impacto visual que tiene
la presencia de la sensualidad femenina. De Claudia dice que
“era la más admirada por todos. Era rubia, de ojos verdes, con
una piel de nácar que parecía luminiscente. Era, por cierto, de una
coquetería espontánea que se afirmaba cuando se sabía mirada”
(485). A Zamaidy la describe como “La más linda, una chica
voluptuosa de senos prominentes y camiseta escotada, largas
trenzas negras que le llegaban más abajo de la cintura, ojos al-
mendrados sombreados por unas pestañas gruesas e intermina-
bles… El top fosforescente que destacaba sus curvas era la envi-
dia de sus amigas” (488-489). En cuanto a Lili, anota que “Sin
duda era bien agradable. Su piel levemente cobriza hacía destacar
la dentadura perfecta con que sonreía. Era una morena de cabe-
llera lisa y sedosa que agitaba al viento con gracia. Coqueta y
pícara, le brillaban los ojos cuando hablaba con los soldados…”
(493-494). Son, como se ve, el contrapeso a la horrible realidad
cotidiana que el encierro le ofrece a sus víctimas. El lenguaje
funciona por lo tanto con una doble dimensión semántica: codi-
fica el sentimiento de opresión inherente al encierro, pero tam-
bién registra el vitalismo existencial con el cual la protagonista
intenta salvarse, convirtiéndose en su verdadero medio de fuga.

Experiencia y autoreconocimiento

El episodio que narra la protagonista al comenzar el relato


muestra claramente el grado de violencia utilizada por las FARC
- 115 -
Literatura, memória e cultura

para controlar a sus prisioneros. Ilustra también la particular vul-


nerabilidad de una mujer cuya condición, física y emocional,
tiene poco margen de protección en una realidad donde impera
impunemente la ley del más fuerte. Como bien señala la víctima:
“Ser prisionera ya era bastante. Pero ser una mujer prisionera en
manos de las FARC era todavía más delicado. Era algo que no
lograba poner en palabras” (101). A lo largo de su testimonio,
Ingrid cuenta cómo su índole femenina –así como la de las otras
mujeres que a lo largo de esos años formaron parte de su grupo-
añadió sufrimiento al cautiverio. Esto se manifiesta tanto en la
relación de sometimiento que los guerrilleros imponen a los se-
cuestrados, como en la relación interna de los mismos prisione-
ros, quienes gradualmente parecen contaminarse de la opresión
que los victimiza. La oposición hombre-mujer parece ganar te-
rreno en las actividades cotidianas, donde –como en el momento
de acercarse cada uno con su plato para recibir la comida- desa-
parece la cortesía y empieza a imponerse la fuerza:

… Las mujeres éramos un blanco fácil. Nuestras protestas,


expresadas desde la irritación y el dolor, eran fácilmente ri-
diculizadas. Si por descuido se nos salían las lágrimas, la
reacción era inmediata: “¡Quiere manipularnos!”.
Nunca antes había sido víctima de la guerra de sexos. Yo ha-
bía llegado a la arena política en un buen momento: era mal
visto discriminar a las mujeres y nuestra participación era
percibida como un aporte renovador en un mundo podrido
por la corrupción. Esta agresividad contra las mujeres no me
era familiar. (317)

Más que una “guerra de sexos”, como ella sugiere, se trata


de un desmantelamiento psíquico que altera la conducta social de
un variado grupo de individuos –hombres y mujeres- expuestos
- 116 -
Literatura, memoria y cultura

durante largo tiempo a un encierro cuyas consecuencias se hacen


más evidentes a medida que se prolonga. Ingrid da cuenta de toda
una serie de incidencias que van marcando la ruta de ese dete-
rioro: altercados propiciados por la utilización del radio, así como
por las diferentes tareas asignadas a cada uno en las necesarias
labores de limpieza; un sentimiento de desconfianza total que fa-
cilita la tarea de control practicada por la guerrilla; la desconcer-
tante idea de que entre los mismos secuestrados hay quienes se
venden como soplones a sus captores; la actitud de otros que, aco-
modándose desvergonzadamente a las circunstancias, caen en el
servilismo; etc. Situaciones todas en las que, con frecuencia, re-
salta el resentimiento de tipo social que marca las señas de iden-
tidad de cada uno de los componentes del grupo. Queda claro que
ésta no es una percepción exclusiva de la narradora, como lo in-
dica la referencia sartreana:

Lucho había llegado a la conclusión de que el infierno son


los otros,1 y había considerado la posibilidad de pedirle a
Sombra que lo aislara del grupo. Me contaba que había su-
frido mucho estando solo, y que había pasado dos años ha-
blándole, como un loco, a un perro, a los árboles, a los espí-
ritus. No obstante, decía que eso no era nada comparado con
el suplicio de esta coexistencia obligatoria. (349)

Por su parte, ella misma se siente impotente ante la falta de


comprensión y animadversión de muchos de sus compañeros,

1 La conclusión de Lucho, enunciada aquí por la narradora, crea un rápido


punto de intertextualidad entre este discurso y la constatación final de Gar-
cin (“l’enfer, c’est les Autres”) en el quinto acto del drama de J.P. Sartre,
Huis Clos (1944), quien se refiere así a la penosa condición del individuo
sometido al juicio de los otros. Véase J.P. Sartre, Huis Clos en Théâtre
Complet, M. Contat Edit. (Paris: Gallimard, 2005).
- 117 -
Literatura, memória e cultura

quienes –al igual que sus secuestradores-ven en ella una burguesa


privilegiada, dispuesta siempre a utilizar sus habilidades políticas
como herramienta de control, y desconfían incluso de su doble
identidad cultural franco-colombiana, celosos de la repercusión
internacional que su nombre alcanza en los medios –principal-
mente los europeos- donde se reclama su liberación.
La experiencia del encierro conlleva por lo tanto un dete-
rioro emocional, con inevitables consecuencias en el aspecto fí-
sico de cada individuo. Resulta deprimente, por lo mismo, la des-
cripción que Ingrid hace del cuadro humano que forman Jorge
Eduardo Géchem, Gloria Polanco, Consuelo González, y Or-
lando Beltrán, los cuatro compañeros que ella, Clara, y Lucho
encuentran esperándoles el 18 de octubre del 2003 en una nueva
cárcel:1

1 El senador Jorge E. Géchem había sido secuestrado el 22 de febrero del


2002; la política huilense Gloria Polanco de Lozada –con sus hijos Jaime
Felipe y Juan Sebastián-, el 26 de julio del 2001; la parlamentaria Consuelo
González de Perdomo, el 10 de septiembre del 2001; el congresista Orlando
Beltrán, el 28 de agosto del 2001. Por su parte Luis Eladio Pérez (“Lucho”),
político pastuso, fue secuestrado el 10 de junio del 2001. Con Clara Rojas
e Ingrid Betancourt eran excelentes piezas de intercambio en poder de las
FARC. Géchem fue liberado el 27 de febrero del 2008, y posteriormente
publicó el testimonio de su secuestro en Jorge Eduardo Géchem Turbay,
¡Desviaron el vuelo !-Viacrucis de mi secuestro (Bogotá: Edit. La Oveja
Negra/Quintero Editores, 2008). Pérez, liberado el mismo día, también pu-
blicó el suyo: Luis Eladio Pérez, 7 años secuestrado por las FARC. Testi-
monio dado a Darío Arizmendi (Doral, FL: Aguilar/Santillana, 2008). Con
Pérez y Géchem fueron liberados también Orlando Beltrán y Gloria Po-
lanco (sus dos hijos habían sido liberados en el 2004). Como indicamos
antes, Clara Rojas –liberada el 10 de enero del 2008- publicó su testimonio
en el 2009; con ella fue liberada Consuelo González.

- 118 -
Literatura, memoria y cultura

Todos estaban deteriorados físicamente, con las facciones fa-


tigadas, con cara de hambre, el pelo canoso, las arrugas pro-
fundas, los dientes amarillos…Era casi una indecencia mi-
rarlos, pues su humillación estaba al desnudo y no había ma-
nera de cubrirla. Eran seres desposeídos de sí mismos, a la
espera de la buena voluntad de los demás. Pensé en esos pe-
rros sarnosos, rechazados y perseguidos, que ya no esquivan
los golpes, con la esperanza de ser olvidados por sus verdu-
gos. (296)

Es evidente que el trato que reciben los secuestrados pro-


duce desastrosas consecuencias; entre ellas, la deshumanización
de las víctimas. En su caso particular, al tratamiento violento que
metódicamente le aplican las FARC para destruir su espíritu re-
belde (amenazas, ofensas, encadenamiento, humillaciones de
todo tipo, aislamiento, silencio forzado, etc.) se suman las enfer-
medades que contrae en el encierro (hepatitis, malaria), para las
cuales no recibe a tiempo la atención médica adecuada. Cons-
ciente de la metamorfosis que empieza a manifestarse en su espí-
ritu y su cuerpo, la narradora expresa su rechazo a la degradación
que le espera, pero la caída es inevitable:

Una mañana me alarmó la cara de horror de un compañero


que hacía la cola para presentar la olla. Me di la vuelta, es-
perando ver un monstruo detrás de mí. Pero era a mí a quien
miraba fijamente.
Solamente tenía un pedazo de espejo roto, que ya ni utilizaba.
Sólo podía verme a pedazos: un ojo, la nariz, un cuarto de
mejilla, el cuello. Estaba verde, con unas orejas moradas
como anteojos y la piel marchita…
Bebía poco y no comía nada. Me aliviaba continuamente de
un agua verde y babosa que me desgarraba el cuerpo, vomi-
taba sangre más por cansancio que por violencia y la piel se

- 119 -
Literatura, memória e cultura

me cubrió de pústulas que me arrancaba al rascarlas. (650-


651)

La imagen distorsionada que en este caso el espejo le mues-


tra, corresponde a la fragmentación que ha sufrido su identidad
humana; ese cuadro cubista sintetiza la destrucción causada por
el cautiverio en la protagonista, quien se ve ahora convertida en
un esperpento. De aquí a la degradación total hay un pequeño
salto que también da, al caer en la depresión y olvidarse de sí
misma. Al final, se recuperará gracias a la perfusión intravenosa
que le aplican de urgencia, los mensajes de cariño que su familia
sigue enviándole por la radio,1 y –muy especialmente- el reno-
vado sentido de paz interior que le ayuda a seguir.
Las dificultades para Ingrid en su prolongado encierro se
acentúan con la tensión personal que, desde los primeros días, se
desarrolla entre ella y Clara Rojas.2 Ingrid indica que en verdad
se conocían muy poco. Habían sido compañeras de trabajo en el
Ministerio de Comercio, y posteriormente Clara le había colabo-
rado en su primera incursión política. Años después -ocupada

1 Paliativo de valor especial al servicio de los secuestrados fueron dos pro-


gramas de radio creados especialmente para ellos por dos cadenas comer-
ciales, Las Voces del Secuestro (Caracol) y La Carrilera (RCN), por medio
de los cuales recibían mensajes de familiares y amigos. Aunque la línea de
comunicación funcionaba exclusivamente en una sola dirección, no hay
duda de que ese contacto ayudó a muchos de los prisioneros a sobrellevar
las difíciles condiciones del largo aislamiento. Como lo indica el testimonio
de Ingid, la audición de tales programas se convirtió gradualmente en parte
importante de la vida en el encierro.
2 Por su parte, Clara también ha dejado constancia de ello en su propia
versión de los acontecimientos. Véase, Clara Rojas, Cautiva. Testimonio
de un secuestro (Nueva York: Atria, 2009). Especialmente los capítulos 10,
11, y 12, titulados “La Amistad”, “La fuga”, y “El desencuentro” respecti-
vamente.
- 120 -
Literatura, memoria y cultura

Ingrid en la campaña presidencial que desarrollaba como candi-


data del Partido Verde- Clara se unió a su equipo de trabajo; fue
así como se ofreció para acompañarla a San Vicente del Caguán
el 23 de febrero del 2002, cuando cayeron en manos de las FARC.
Meses después, el distanciamiento entre las dos es un elemento
más que se añade al trauma del secuestro; poseedoras de un tem-
peramento muy diferente, los roces cotidianos de la intimidad for-
zada conducen al resentimiento y la incomunicación. A diferen-
cia de la situación anterior, el secuestro le ofrece a la narradora
un paliativo representado en su relación con otros dos compañe-
ros de encierro: Luis Eladio Pérez,1 con quien establece una en-
trañable amistad, y Marc Gonsalves2 –uno de los tres americanos
en poder de las FARC-, en quien encuentra una sensibilidad es-
pecial que contrasta con el crudo ambiente que le rodea. No fue
una convivencia libre de problemas, en un ambiente contaminado
por el trauma general del encierro, y por las diferencias sociocul-
turales que constantemente creaban conflictos en las relaciones
personales de los diferentes grupos. Ingrid, en efecto, compara
este espacio con un campo de concentración, y rechaza la con-
ducta falsamente revolucionaria de la guerrilla al someterlos a un
tratamiento deshumanizador.3

1 Véase el importante testimonio de Lucho al respecto en Luis E. Pérez, 7


años secuestrado por las FARC (Bogotá: Aguilar, 2008).
2 El interesante testimonio de ese cautiverio se puede leer en: Marc
Gonsalves, Keith Stansell, and Tom Howes, with Gary Brozek, Out of Cap-
tivity. Surviving 1,967 Days in the Colombian Jungle (New York: Harper-
Collins, 2009).
3 En estas circunstancias se da el episodio de su enérgica negativa a nume-
rarse -tal como se lo exigen los guardianes a los prisioneros en ese mo-
mento-, con lo que se enfatiza la dimensión ética del conflicto: “Yo no
podía aceptar que me trataran como una cosa, que me denigraran, no sola-
mente ante los ojos de los demás sino, sobre todo, ante mí misma. Para mí,
las palabras tenían un poder mágico, sobrenatural, y temía por nuestra salud
- 121 -
Literatura, memória e cultura

El verdadero rescate de Ingrid, sin embargo, resulta de un


largo y complejo proceso de autoexamen, a lo largo del cual se
enfrenta a sus propias limitaciones para alcanzar después un es-
tado de fortalecimiento ético y espiritual, síntesis de la lección
aprendida en la experiencia del secuestro:

La imagen que el cautiverio me devolvía de mí misma me


recordaba todos mis fracasos. Las inseguridades no resueltas
de mis años de adolescencia y las surgidas de mis incapaci-
dades de adulta volvieron a la superficie como hidras de las
que no me podía sustraer. Las combatí en un principio, por
ociosidad más que por disciplina, obligada como estaba a vi-
vir en un tiempo circular en el que la irritación de redescubrir
intactas mis pequeñeces, me empujaba a volver a intentar
una transformación inaccesible.
Aquella noche, bajo un cielo estrellado que me devolvía a los
lejanos años de una felicidad perdida, a la época en que con-
taba estrellas fugaces creyendo que me anunciaban la plé-
yade de bendiciones que colmarían mi vida, comprendí que
una de ellas acababa de llegarme en aquel instante para per-
mitirme reanudar con lo mejor de mí misma. (551-552)

mental, por nuestro equilibrio, por nuestro espíritu. Ya había oído a los
guerrilleros referirse a nosotros como ‘la carga’, ‘los paquetes’, y eso me
había aterrado. No era una expresión anodina. Por el contrario. Buscaba
deshumanizarnos. Es más fácil dispararle a un paquete que a un ser hu-
mano. Eso les permitía vivir sin culpabilidad el horror que nos hacían pa-
decer. Ya era bastante difícil ver que la guerrilla empleara esos términos
para referirse a nosotros. Pero que cayéramos en la trampa de utilizarlos
nosotros mismos me parecía espantoso. Yo veía en eso el comienzo de un
proceso de degradación que a ellos les convenía, y al que yo quería opo-
nerme. Si la palabra dignidad tenía algún sentido, era imposible que acep-
táramos numerarnos. (319, énfasis mío.)
- 122 -
Literatura, memoria y cultura

Tan importantes afirmaciones de la narradora confieren a


No hay silencio que no termine carácter de bildungsroman; dis-
curso de aprendizaje o desarrollo existencial, que conduce a ese
momento de revelación final con el cual se identifica la protago-
nista en un claro acto de autorreconocimiento: “Encadenada del
cuello a un árbol, desposeída de toda libertad, la de moverse, sen-
tarse o pararse, hablar o callar, la de comer o beber, y aún la más
elemental de todas, la de aliviarse del cuerpo…Entendí –pero me
tomó muchos años hacerlo- que uno guarda la más valiosa de las
libertades, la que nadie le puede arrebatar a uno: aquella de deci-
dir quién uno quiere ser” (659).
Puede decirse que el proceso de transformación personal
de Ingrid se inicia cuando constata la gradual descomposición in-
terior que ocurre en ella y sus compañeros como consecuencia
del cautiverio: “El regreso a la cárcel me obligaba a evaluarme a
mí misma. Me ponía frente al espejo de los demás y veía los de-
fectos de la humanidad: el odio, la envidia, la avaricia, el
egoísmo. Pero los observaba en mí misma. Me golpeó darme
cuenta de eso y no me gustaba ver en lo que me había convertido”
(368). Más que a la degradación física en sí, cuyas señales se ma-
nifiestan inevitablemente, la narradora le teme a la degeneración
moral que puede acarrear el trauma del secuestro. Posibilidad a
la que renuncia con vehemencia:

…No quería salir de la selva como una vieja mustia, carco-


mida por la amargura y el odio. Debía cambiar, no para adap-
tarme, pues eso me habría parecido una traición, sino para
ponerme por encima de ese lodo espeso de mezquindades y
bajezas en el que terminamos chapoteando. No sabía cómo
lograrlo. No tenía ningún manual que me enseñara a alcanzar
un nivel superior de humanidad y una mayor sabiduría. (327)

- 123 -
Literatura, memória e cultura

Refugiada en su soledad, Ingrid descubre el valor de la me-


ditación. Esta nueva disposición de ánimo y su acercamiento a
Dios, a través de la Biblia, son herramientas que le sirven de
ayuda en su deseo de conocer una verdadera liberación. La lec-
tura bíblica, en efecto, le abre el camino a una serie de reflexiones
que le permiten enjuiciar mejor su propia condición terrenal; se
trata casi siempre de un acercamiento que somete el texto original
a una perspectiva humanizadora, alejada de especulaciones adi-
cionales. Los Evangelios, por ejemplo, le interesan porque en
ellos encuentra una viva imagen de Jesús-hombre.1 En la trans-
formación del agua en vino que Jesús realiza en las bodas de
Caná, más que un milagro ella ve una clara manifestación del li-
bre albedrío practicado por el hijo de Dios. Su llamado período
de “hibernación” -etapa en la cual la narradora parece abandonar
su existencia física en busca de una más completa dimensión es-
piritual- es una respuesta al estimulante comentario que un pastor
hace a un pasaje de la Biblia (una Carta de San Pablo a los Co-
rintios), y que ella escucha por la radio. Su transformación fue
inmediata:

Entré en hibernación. Se acabaron para mí el día y la noche,


el sol y la lluvia. Los ruidos, los olores, los bichos, el hambre
y la sed: todo desapareció. Mi relación con Dios cambió. Ya
no necesitaba intermediarios, ni tener rituales, para llegar
hasta Él. Al leer su libro veía una mirada, una voz, un dedo
que mostraba e incomodaba. Me tomé el tiempo de reflexio-
nar en lo que me molestaba y vi en las miserias humanas el
espejo que devolvía mi propio reflejo.

1 “El Jesús de la Biblia se convertía en un individuo que cobraba vida ante


mis ojos, que se relacionaba con los hombres y las mujeres de su entorno,
y cuyo comportamiento me intrigaba, sobre todo por el hecho de que yo
jamás habría actuado de la misma manera” (196).
- 124 -
Literatura, memoria y cultura

Ese Dios me cayó bien. Hablaba. Escogía sus palabras. Te-


nía sentido del humor. Tal como el Principito al seducir a su
rosa, lo hacía con cuidado” (566).1

Sería exagerado, por supuesto, suponer que el testimonio


de Ingrid Betancourt obedece a un acto de revelación en un sen-
tido estrictamente teológico; pero no hay duda de que, a lo largo
de su encierro, hay un claro intento de su parte por acercarse a un
concepto de lo divino que gradualmente fortalece su precaria con-
dición humana. Poco a poco, la lectura muy personal de la Biblia
encausará sus reflexiones: “La Biblia se convertía, entonces, en
un mundo apasionante de códigos, insinuaciones, sobreentendi-
dos” (182). Por último, es importante constatar que esa visión ju-
deocristiana que la narradora expresa sobre la existencia humana,
comparable a un peregrinaje (“Comprendía, entonces, que la vida
nos da montones de provisiones para nuestra travesía por el de-
sierto”, 150), tiene su correspondiente referente al final de la
aventura, cuando da gracias a Dios por su liberación, mientras por
la ventanilla del helicóptero contempla el punto de llegada –San
José del Guaviare-, diciéndose a sí misma: “He aquí el oasis, la
tierra prometida” (703). La contextualización bíblica queda suge-
rida. La enseñanza adquirida representa el total de sus nuevas
“provisiones”: el saldo positivo de un arduo proceso de forma-
ción y autorreconocimiento.

Conclusión

1 Como se ve, la referencia al personaje de Antoine de Saint-Exupéry re-


salta la necesidad que tiene el sujeto de humanizar lo divino.

- 125 -
Literatura, memória e cultura

Existe una tendencia generalizada a considerar el testimo-


nio como un género aparte, donde el valor documental prevalece
sobre el estético; razón por la cual los acercamientos evaluativos
correspondientes casi siempre caen en el exclusivo terreno de los
enfoques sociales, mirados con cierto recelo por los estudios lite-
rarios. Una solución adecuada es considerar este tipo de textos
en su valor histórico-cultural, resultado de una hibridez discur-
siva que le permite al sujeto rescatar determinada imagen de reali-
dad enmarcada por las huellas de un trauma, y proyectarla en un
acto de lenguaje que recodifica ese pasado. Ejercicio que, por
supuesto, no excluye la dimensión estético-literaria del proyecto
asumido. Como acertadamente ha señalado René Jara:

Quizás con más intensidad que en otras formas discursivas,


el sujeto del testimonio es la realidad histórica; la materiali-
dad del mundo narrado no depende aquí de las frases mimé-
ticas del narrador; por el contrario éste es sobrepasado por
aquélla; el narrador es sólo una parte de la realidad; no es su
artífice, ni es mero relator. Esto refuerza el carácter del ima-
ginario testimonial: los operadores textuales son operadores
históricos, los contenidos semánticos descansan en su litera-
lidad, la cosa real es, aporéticamente, su imagen… La histo-
ria es una escritura de rastros, de huellas quemantes de una
realidad que el testigo (de) codifica en cuanto actor e intér-
prete, mientras la imagina, la revive y actualiza.1

1 R. Jara en “Testimonio y Literatura”, prólogo a René Jara and Hernán


Vidal, Editores, Testimonio y Literatura (Minneapolis, MN: Institute for
the Study of Ideologies and Literature, 1986), 2. El análisis del testimonio
sigue despertando el interés de los estudios culturales; además del valioso
ensayo de John Beverley, Testimonio. On the Politics of Truth (2004), ci-
tado antes en este trabajo, véanse también: Robert S.C. Gordon, Primo
Levi’s Ordinary Virtues. From Testimony to Ethics (New York: Oxford
University Press, 2001); Roberta S. Kremer, Edit., Memory and Mastery.
- 126 -
Literatura, memoria y cultura

Es justamente la imaginación lo que permite a Ingrid Be-


tancourt revivir una historia que se transforma en el aquí y ahora
de esa doble aventura que su relato nos entrega. No hay silencio
que no termine vale como archivo y como escritura: se inserta en
la construcción de una narrativa histórica y cultural que intenta
definir la realidad de un país sometido al descalabro ético de su
orden social, y confirma al mismo tiempo el incuestionable valor
de la palabra como catalizador de la experiencia humana. Es tam-
bién un esperanzador grito de optimismo, condensado en esa re-
veladora afirmación que hace la protagonista al identificar la po-
pular canción de Led Zeppelin, “Stairway to Heaven” (“Escalera
al cielo”), como su viejo himno de vida. Son los vasos comuni-
cantes de la escritura: nada en ella es gratuito.

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- 130 -
Literatura, memoria y cultura

6. ALITERATURA NO ENSINO DE HISTÓ-


RIA: ‘TERRA SONÂMBULA’ DE MIA COUTO
E A GUERRA CIVIL MOÇAMBICANA
(1977/1992)
_________________________

Ryhã Henrique Caetano e Souza1


Anderson Claytom Ferreira Brettas2

Introdução

Indubitavelmente, a literatura é uma ferramenta que pos-


sibilita o empoderamento sociocultural, e esse artigo versa acerca
das possibilidades do uso de fontes literárias como instrumento
do ensino de história.
A professora e historiadora Maria Auxiliadora Schmidt
enfatiza que o uso escolar de diferentes documentos e fontes es-
timula a observação do aluno e contribui para sua reflexão, resul-
tando num processo de construção do senso crítico.

Uma nova concepção de documento histórico implica, ne-


cessariamente, repensar seu uso em sala de aula, já que sua
utilização hoje é indispensável como fundamento do método
de ensino, principalmente porque permite o diálogo do aluno
com realidades passadas e desenvolve o sentido da análise

1 Professor da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais e Mes-


trando em Educação Tecnológica pelo Instituto Federal do Triângulo Mi-
neiro (IFTM). Correio: ryhasouza@gmail.com
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Tecnológica do
Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM).
Correio: brettas.professor@gmail.com
.
- 131 -
Literatura, memória e cultura

histórica. O contato com as fontes históricas facilita a fami-


liarização do aluno com formas de representação das reali-
dades do passado e do presente, habituando-o a associar o
conceito histórico à análise que o origina e fortalecendo sua
capacidade de raciocinar baseado em uma situação dada
(SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 94)

A possibilidade do uso da literatura como instrumento de


ensino no campo da história têm suas raízes nas propostas empre-
endidas pela Escola dos Annales1, grupo de acadêmicos que al-
cançou a reconfiguração paradigmática do saber histórico, cons-
tituindo perspectivas intelectuais que seriam conhecidas como
Nova História - novos problemas, novos objetos e novas aborda-
gens.
No entanto, nem sempre a literatura -bem como outras
formas de expressões artísticas- foi compreendida como ‘possui-
doras de sentido histórico’; no entanto, por ser a expressão de
uma visão social e de mundo compartilhada pelos autores, as pro-
duções literárias podem nos oferecer informações acerca dos há-
bitos, costumes e valores compartilhados por determinado tecido
social, ou seja, a literatura fornece elementos à história que são,
em ampla maioria, negligenciados pela fonte tradicional.
O ensino de História caracteriza-se por mudanças mar-
cantes em sua trajetória ao longo do tempo, com diferentes obje-
tivos. Esse caráter multifacetado desse campo de estudos, com
distintos objetos, diferentes abordagens e diferentes problemas

1 Movimento historiográfico francês do século XX que se constituiu em


torno do periódico acadêmico francês Annales d'histoire économique et
sociale, tendo se destacado por incorporar métodos das Ciências Sociais à
História.
- 132 -
Literatura, memoria y cultura

nem sempre foi central na reflexão historiográfica. Nesse sentido,


podemos inferir três momentos dos estudos históricos:
Primeiramente, no século XIX a História enquanto disci-
plina era compreendida pelos Estados e pelos próprios historia-
dores como portadora de um sentido teleológico, onde a consti-
tuição das identidades nacionais era o objetivo da ciência histó-
rica, que deveria ser construída através de um distanciamento e
de uma pretensa neutralidade.
Nessa perspectiva epistemológica o paradigma do histo-
riador residia em compreender a história como um espírito, ou
seja, como inevitável, e maior do que os homens, assim credita-
vam-se à história um devir e um sentido em certa medida dogmá-
tico.
A historiografia e o historiógrafo deviam se preocupar
com os grandes homens, feitos, conflitos, guerras, reis, heróis, ou
seja, a História era a história das grandes civilizações, a história
Universal, a história dos vencedores. Nessa conjuntura o ensino
de história era compreendido como necessário para constituir e
explicar aos discentes a genealogia de formação de sua sociedade.
Dessa forma, o ensino de história possuía o dever de fornecer “o
sentido de progresso da humanidade” (FURET, 1986, p.135).
Em um segundo momento, o ensino de história e a histo-
riografia passaram a constituir o discurso que instrumentalizou a
formação, formatação e constituição das nacionalidades, refor-
çando e se investindo das concepções positivistas de caráter tam-
bém teleológico. A história era compreendida como mestra da
vida, como uma chave que ocultava os segredos do passado que,
quando apreendidos, desvelavam mistérios e forneciam vestígios.
Além disso, era percebida como uma grande locomotiva que de
etapa em etapa histórica tinha, como fim último, louvar e fazer
cânticos ao progresso industrial e cientifico do século XIX.
- 133 -
Literatura, memória e cultura

Contudo, a partir do século XX o ensino de história ganha


novas formatações sob o viés crítico à escola metódica e às per-
cepções positivistas que propunham a construção de uma identi-
dade para um povo e/ou nação e apreendiam a história como do-
tada de um sentido. Os críticos desse fazer histórico irão se ater
às novas possibilidades de se produzir o saber histórico, de es-
crevê-lo e de enunciá-lo. Assim, a historiografia detém-se aos ob-
jetos e aos métodos do fazer historiográfico.
Portanto, os novos objetos levaram a novos problemas e
a novas abordagens que resultaram em uma transformação, não
somente na forma de se fazer e escrever história, mas também na
modificação da maneira de transmiti-la. Assim, os ensaios, as
peças teatrais e os livros literários, entre outras expressões artís-
ticas passaram a ser vistas pelos historiógrafos também como ins-
trumentos de leitura do passado.

Perspectivas metodológicas do uso da literatura

A ensaísta e crítica literária Nelly Novaes Coelho (2000)


vislumbrou a possibilidade da literatura como um mecanismo que
possibilite a transversalidade1 e interdisciplinaridade, rompendo
com os paradigmas tradicionais de ensino e corroborando para a
construção de uma educação que assente sob outra ótica episte-
mológica. Assim essa autora se refere à literatura:

[...] a Literatura é um autêntico e complexo exercício de


vida, que se realiza com e na Linguagem – esta complexa

1 O conceito de transversalidade refere-se à metodologia que organiza e


promove conceitos e procedimentos. Nesse sentido, o construtivismo e o
sócio construtivismo têm contribuído como o suporte teórico-epistemoló-
gico mais adequado para essa finalidade.
- 134 -
Literatura, memoria y cultura

forma pela qual o pensar se exterioriza e entra em comunica-


ção com os outros pensares. Espaço de convergência do
mundo exterior e do mundo interior, a Literatura vem sendo
apontada como uma das disciplinas mais adequadas (a outra
é a História) para servir de eixo ou de “tema transversal” para
a interligação de diferentes unidades de ensino nos novos Pa-
râmetros Curriculares. (COELHO,2000. p.23).

Nesse sentido, as obras literárias são observadas como


meios auxiliadores do trabalho de ensino aprendizagem, estabe-
lecendo uma conexão interdisciplinar que possibilita ao discente
o desenvolvimento de diversas habilidade e competências em di-
ferentes campos do saber, atendendo assim aos PCNs1 (2008) e
ao BNCC 2(2019).
É inegável, portanto, o papel da literatura enquanto “fio
de Ariadne” - meio libertador carregado de significados e formas
pelas quais indivíduos e sociedades se recodificam e expressam
cultura. Dessa forma, o estreitamento entre história e literatura
pode erigir um novo caminho e fundar uma nova possibilidade de
interpretação de processos e eventos históricos.
Marques e Berutti (2009) nos lembram, também, que a
literatura pode auxiliar enquanto crônica histórica, pois mesmo
que o literato não tenha compromisso com a realidade dos fatos,
sua escrita pode fornecer possibilidades de questionamento, le-
vando o historiador a repensar o passado.

1 Parâmetros curriculares nacionais são diretrizes elaboradas pelo Go-


verno Federal que orientam a educação no Brasil. São separados por dis-
ciplina. Além da rede pública, a rede privada de ensino também adota os
parâmetros, porém sem caráter obrigatório.
2 A Base Nacional Comum Curricular é um documento normativo para as
redes de ensino e suas instituições públicas e privadas, referência obriga-
tória para elaboração dos currículos escolares e propostas pedagógicas
para o ensino infantil, ensino fundamental e ensino médio no Brasil.
- 135 -
Literatura, memória e cultura

A obra literária é carregada de minúcias referentes aos


códigos culturais de seu presente histórico, criando representa-
ções e ideias do momento histórico por ela abordado, logo, o
valor pedagógico e as possibilidades educacionais da literatura e
sua permanente inclusão na realidade escolar, como instrumento
de ensino do campo da história, é para nós plenamente possível.
Assim, a historiografia e o ensino de história ampliaram
seus métodos de abordagem - novas abordagens que foram bem
recebidas e são constantemente referenciadas no campo pedagó-
gico como um instrumento de ampliação dos horizontes episte-
mológicos tradicionais e da prática de ensino.

A Literatura é um mundo aberto ao mesmo tempo às múlti-


plas reflexões sobre a história do mundo, sobre as ciências
naturais, sobre as ciências sociológicas, sobre a antropologia
cultural, sobre os princípios éticos, sobre política, economia,
ecologia... Tudo depende de uma seleção inteligente das
obras. [...] O objetivo maior das discussões sobre os novos
caminhos da Educação não é a preparação dos programas de
ensino, mas a separação daquilo que é considerado como sa-
beres essenciais e evitar o empilhamento dos conhecimentos.
(MORIN, 1997.p.67)

Morin, nesse trecho resume e aponta elementos e possi-


bilidades do uso da literatura em diferentes campos do saber, com
diferentes objetivos. Além disso, nos alerta para uma questão que
é de extrema relevância, ou seja, admite que é necessário que
existam cortes para uma melhor execução da atividade pedagó-
gica.
A rigor, o ensino é portador de sentidos, e os profissionais
manifestam em sua prática as concepções culturais e ideológicas
implicantes do meio em que estão inseridos, conforme Freire
- 136 -
Literatura, memoria y cultura

(1979) pontuou: “Não existe imparcialidade. Todos são orienta-


dos por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é
inclusiva ou excludente?”.
Assim, o recorte ao qual Morin nos aponta é operado pelo
literato que se filia a uma concepção de mundo para manifestar e
expressar sua apreensão da realidade. Além disso, é também uma
das etapas de construção do saber histórico e uma das primeiras
necessidades do historiador ao abordar um tema, conforme sali-
entou o historiador inglês Eric Hobsbawm: “(...) todo estudo his-
tórico, portanto, implica uma seleção, uma seleção minúscula, de
algumas coisas da infinidade de atividades humanas do passado,
e daquilo que afetou essas atividades, mas não há nenhum critério
geral aceito para se fazer tal seleção” (1998, p. 71).
Dessa forma, o ensino de história, constituído pelos estu-
diosos, é historicamente e ideologicamente marcado e possuí, as-
sim como a obra literária, um recorte temporal que serve à ex-
pressão de uma percepção acerca do processo histórico.
Dessarte, nestes primeiros anos do século XXI seguimos
vivenciando um intenso debate travado no campo pedagógico e
historiográfico a respeito das muitas propostas de renovações me-
todológicas. Podemos dizer que as novas concepções se centram,
em grande medida, no maior engajamento do discente, bem como
na identificação do conhecimento escolar como algo menos des-
locado da realidade (BITTENCOURT, 2004; FONSECA, 2003).
Ademais, assevera-se que ensinar história é desenvolver
a literacia histórica, que consiste resumidamente como uma ma-
neira de se ler a história, ler o mundo e desenvolver a possibili-
dade de análise crítica do saber histórico.

A Educação Histórica se preocupa com a busca de respostas


referentes ao desenvolvimento do pensamento histórico e a

- 137 -
Literatura, memória e cultura

formação da consciência histórica de crianças e jovens. Essa


perspectiva parte do entendimento de que a História é uma
ciência particular, que não se limita a compreender a expli-
cação e a narrativa sobre o passado, mas possui uma natureza
multiperspectivada, ou seja, contempla as múltiplas tempo-
ralidades pautadas nas experiências históricas desses sujei-
tos. (SOBANSKI et al, 2010, p. 10-11).

Rüsen chama a atenção para três aspectos que o raciocí-


nio histórico requer: a competência interpretativa, que significa
conectar conceitos e sentidos com a realidade (RÜSEN, 2007, p.
111- 117), além de ver “o passado no presente”. Isso implica na
construção de valores e significações, por meio da interpretação,
e, por último, o raciocínio histórico requer a reconstrução de iden-
tidades e a alteridade.
No entanto, temos consciência de que o ensino histórico
se estabelece e se constrói através e por meio da relação professor
aluno e do diálogo1, ou seja, é necessário estabelecer uma relação
que possa responder aos anseios e aos questionamentos dos dis-
centes. A educação se faz em especial na escola, entretanto não é
somente nela que o aluno acessa informação, sendo necessário
instigar o aluno a produzir saberes:

A docência envolve uma proposta pedagógica e um modo de


conceber a produção do conhecimento histórico que estão in-
timamente ligados. A relação professor-aluno expressa sem-
pre uma concepção de história mesmo quando professores e
alunos não se dão conta disso (...). Embora o passado en-
quanto tal não se modifique, a construção do conhecimento

1 O conceito de diálogo aqui exposto é baseado naqueles realizados por


Sócrates e Platão e que diz respeito à construção do conhecimento por e
através da troca de saberes entre uma ou mais inteligências.
- 138 -
Literatura, memoria y cultura

se modifica de acordo com o modo pelo qual o historiador se


vê no presente, pensa o social e se insere nele, enquanto su-
jeito social e enquanto pesquisador (Vieira, et al. 2007, p. 65).

Nessa perspectiva, o docente em história pode incorporar


às suas atividades as inquietudes, instigações e percepções inter-
pretativas acerca de um processo histórico e dessa maneira trans-
miti-la aos seus educandos, levando-os, também, à construção de
um saber dialogado e crítico, desenvolvendo no estudante a ca-
pacidade de reflexão e análise. Nas palavras de Leandro Karnal
(2008), “quanto mais o aluno sentir a história como algo próximo
dele, mais terá vontade de interagir com ela, não como uma coisa
externa, distante, mas como uma prática que ele se sentirá quali-
ficado e inclinado a exercer”.

Mia Couto e o ensino de história da África


Desde a promulgação da Lei 10.639/031 que confere à
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)2 de 1996 a especi-
ficidade na abordagem histórica e cultural africana e dos

1 A lei nº 10639, de 09 de janeiro de 2003, altera a lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, e passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-
A e 79-B: "Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mé-
dio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o
caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos,
a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conte-
údos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Ar-
tística e de Literatura e História Brasileiras".. Art. 79-B calendário escolar
incluirá o dia 20 de novembro como 'Dia Nacional da Consciência Negra."
2 Conjunto de leis que estabelecem as diretrizes e bases da educação naci-
onal.
- 139 -
Literatura, memória e cultura

afrodescendentes nos currículos, a História da África passou a fi-


gurar como tema obrigatório no currículo básico escolar.
A promulgação dessa lei ocorreu após anos de reivindi-
cações de setores da sociedade civil, pelo reconhecimento tácito
do estado brasileiro de que o racismo estrutural reside no Brasil,
sendo uma das barreiras causadoras da desigualdade social. Se a
formulação da lei é motivo de celebração por parte das comuni-
dades, que durante anos foram relegadas ao ostracismo, em con-
trapartida é preciso que essa lei se consolide e que tais conteúdos
sejam de fato incorporados ao planejamento e a prática docente.
A obra de Mia Couto, em especial o livro: Terra Sonâm-
bula, publicado pela primeira vez em 1992, é o enfoque de nossa
proposta de ensino articulado entre a história e a literatura, e atra-
vés dessa obra procuramos apontar as possibilidades de aborda-
gem em temáticas como memória e identidade, bem como discu-
tir e avaliar o processo de colonização e descolonização da
África, com ênfase ao processo da independência moçambicana.
O livro é composto por duas narrativas, duas histórias,
uma oral e outra escrita. Primeiramente, na história que se trans-
mite -por meio do narrador onisciente- temos o velho Tuahir, que
está acompanhado do garoto Muidinga. Essa narrativa é descrita
pelo autor em onze capítulos, alternados com a segunda narrativa
- transmitida de forma oral por meio da leitura do caderno de Kin-
dzu. Essa história também se desenvolve em onze capítulos. Os
cadernos de Kindzu são encontrados por Muidinga no início de
sua jornada.
No começo da obra, as duas narrativas são contadas por
Couto de forma separada, porém ao final do livro ocorre a junção
das duas narrativas, com o entrecruzamento ocorrendo de forma
intensa que se estabelece, por parte do autor, a mescla entre as
duas linhas narrativas do romance. No final, Tuahir e o jovem
- 140 -
Literatura, memoria y cultura

Muidinga brincam de ser Kindzu e seu tio, fato que interliga ainda
mais as duas narrativas.
Tomando por base essas informações, nossa proposta é
abordar o conteúdo concernente a Guerra Civil moçambicana1 e
demonstrar de que forma esse tema é abordado nessa obra - apro-
vada para fins didáticos pelo programa nacional do livro didático
(PNLD) de 2018.
Mia Couto2 é um autor do período pós-colonial de Mo-
çambique e de diversas nações e povos africanos. Evidentemente,
parte de sua literatura se preocupa com o peso do neocolonia-
lismo europeu sobre a mentalidade e o imaginário desses sujeitos
colonizados.
Portanto, é inegável o papel da literatura de Mia Couto
enquanto mecanismo de resistência permeado de significados e
meio pelos quais indivíduos e sociedades se recodificam e ex-
pressam cultura, buscando resgatar valores e hábitos comuns por
vezes suprimidos ao longo do período colonial. Assim, encontra-
mos na obra de Mia a utilização de palavras tradicionais e nativas.

1 A Guerra Civil Moçambicana iniciou em 1977, dois anos após o fim


da Guerra de Independência de Moçambique. As motivações do conflito
não são claras e contêm desde rusgas raciais, ideológicas e étnicas, até a
questão geopolítica global - a Guerra Fria e a disputa pelas zonas de in-
fluência. As forças que promoveram essa guerra foram o partido situacio-
nista Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que possuía como
opositor as próprias forças armadas moçambicanas, que, por sua vez, eram
violentamente atacadas pelos partidários da Resistência Nacional Moçam-
bicana (RENAMO). Durante o conflito, cerca de um milhão de pessoas
morreram em combates e, também, por conta de crises de fome. Esses fa-
tores desencadearam um êxodo migratório intenso.
2 Mia couto é um escritor Moçambicano. Dentre suas várias premiações,
destaca-se o ‘Prêmio Camões de 2013’ e o ‘Prêmio Literário Internacional
Neustadt’ - reconhecimento concedido a romancistas, poetas e dramaturgos
pelo conjunto de sua obra (organizado a cada dois anos, foi entregue a Mia
Couto em 2014).
- 141 -
Literatura, memória e cultura

A literatura de Mia Couto é também uma ferramenta que


possibilita o empoderamento sociocultural. Realiza um tipo de
inventário das lutas, das perdas e das crises surgidas, especifica-
mente, durante a guerra civil moçambicana. Como afirmou Rita
Chaves, em Angola e Moçambique:

(...) a consciência da ruptura aberta pelo colonialismo é clara


e ilumina a inevitabilidade da situação que mesmo a inde-
pendência não pôde solucionar. Diante do panorama que se
abre, não há regresso, e a sugestão do poeta é só uma: dina-
mizar o legado, apropriar-se daquilo que outrora foi instru-
mento de dominação e fonte de angústia (2005, p. 51).

A primeira narrativa descreve a busca realizada pelo ve-


lho Tuahir e o jovem Muidinga, que têm por objetivo a busca dos
pais do rapaz. Entretanto, ao mesmo tempo em que essa busca se
desenrola ambos procuram refúgio da Guerra e, nessa procura,
encontram um ônibus abandonado, corpos carbonizados e, junto
deles, uma maleta com folhas avulsas em seu interior e os cader-
nos de Kindzu.

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos cami-


nhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e
poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas,
em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas
que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de
levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E
os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendi-
zagem da morte. (COUTO, 2007, p.9).
O narrador nos revela que Muidinga perdeu sua memória,
e que o velho o acompanha desde sua saída do campo de refugi-
ados. Dessa informação, o docente/historiador pode demonstrar
como cadernos, ou seja, fontes escritas pessoais podem contribuir
- 142 -
Literatura, memoria y cultura

também para a elaboração do conhecimento histórico. Esse tre-


cho da obra também permite trabalhar a questão de identidade e
da memória.
Pedro Puro Sasse da Silva, em seu artigo intitulado Mia
Couto e a ideologia moçambicana: realidade e fantasia em terra
sonâmbula descreveu como a guerra aparece na obra: o conflito
não é explicitado de forma evidente, contudo é sempre trazido
pelo autor através dos sentimentos dos personagens, ocupando
gradativamente o papel de personagem principal.
Logo, observamos também outra possibilidade de abor-
dagem que diz respeito à subjetividade da guerra: por mais claro
e evidente que seja o conflito no plano objetivo, o mesmo só tem
significado e sentido quando verbalizada pelos sujeitos nele en-
volvidos. Por mais escamoteada, ela aparece em pequenos deta-
lhes, como os corpos carbonizados encontrados por Tuahir e Mui-
dinga e pelas perdas de Kindzu, trazendo também elementos –
que devem ser abordados no estudo em sala de aula- como, por
exemplo, o desaparecimento de opositores (o irmão de Kindzu).
Além disso, outra perda de Kindzu é a de seu amigo Su-
rendra, que é obrigado a ir embora juntamente com sua esposa
por não compartilhar da mesma religião com o grupo vencedor
da guerra. O autor deixa aqui entrever a presença da cultura por-
tuguesa e da cultura árabe em choque com as tradições religiosas
moçambicanas, demonstrando existir nesse conflito o elemento
da intolerância religiosa.
Nessa perspectiva, apontamos duas questões: primeira-
mente, a presença da cultura portuguesa como cultura coloniza-
dora que deseja sobrepor-se e afirmar-se sobre outras culturas,
especificamente à árabe e às crenças tradicionais moçambicanas;
e também para a possível convivência harmoniosa entre essas
culturas, representada na amizade de Kindzu (religião
- 143 -
Literatura, memória e cultura

tradicional) e do Surendra (árabe). Algo que é, inclusive, motivo


de estranheza e questionamento por parte de um dos colegas de
Kindzu.
No decorrer da narrativa o leitor percebe que o combate
vai se acirrando e que mais e mais corpos vão surgindo ao longo
do caminho dos personagens. Além disso, cidades vão submer-
gindo e seus moradores desaparecendo, ficando vazias. “Pelo ca-
minho agora, se via casas abandonadas com paredes cheias de
balas. Nas ruas, os arbustos e capins cresciam e tomavam as ja-
nelas das casas”.
O cenário muda constantemente em Terra sonâmbula,
entretanto o que se mantêm é o fato de que a guerra se torna, no
desenvolvimento do enredo, um personagem que vai sempre à
frente e que se torna mais visível e presente nas duas narrativas.
As cidades vazias, os corpos deixados, as casas metralhadas e os
vestígios do conflito são pontos que podem ser destacados pelo
docente como fontes históricas.
A única marca que permanece constante na obra é a pre-
sença da cultura africana, dos dialetos, das palavras e dos hábitos,
costumes e mitologia de seus povos. No desenvolvimento do li-
vro há sempre um ancião que é o responsável por contar a histó-
ria, como nas sociedades tradicionais de cultura oral recorrentes
na África.
Ana Mafalda Leite, em Literaturas Africanas e formula-
ções pós-colonias, salientou:

Em Terra Sonâmbula observamos a tentativa de conciliação


dos sistemas oral e escrito, através dos dois principais narra-
dores: Muindinga que lê os cadernos em voz alta ao velho
Tuahir, e Kindzu que conta a sua história, escrevendo-a, nos
caderninhos. (...) Cada um dos narradores dá voz a outros
narradores secundários; todos querem contar estórias,
- 144 -
Literatura, memoria y cultura

Taímo, Tuhair, Farinda, Quintino, Virgínia, Euzinha, o pas-


tor, Nhamataca. Siqueleto. (Leite, 2003, p. 51).

Mia Couto demonstra-nos a importância dos antepassa-


dos, a maneira de compreensão, apreensão e sentimento de como
o mundo é visto pelos mais velhos. O autor valoriza as narrativas
orais e a cultura dos antepassados, bem como suas palavras, ritos
e crenças.
Essa valorização pode ser percebida nos sentidos dados
ao mar pelo autor. O Mar é fonte de vida e também local onde as
cerimonias fúnebres acontecem - como a morte dos pais dos per-
sonagens principais. Além disso, é em um navio que Farinda
ainda alimenta a esperança em um futuro distante da guerra. O
mar é vislumbrado aqui, algo que ocorre em muitas culturas e
religiões, como o símbolo de renovação. Portanto, na escrita de
Couto ele carrega a dualidade da vida e da morte.

No lugar onde antes praiava o azul, ficou uma planície co-


berta de palmeiras. Cada uma se barrigava de frutos gordos,
apetitosos, luzilhantes. Nem eram frutos, parecia eram caba-
ças de ouro, cada uma pesando mil riquezas os homens se
lançaram nesse vale, correndo de catanas na mão, no ante-
gozo daquela dádiva. Então se escutou uma voz que se mul-
tiabriu em ecos, parecia que cada palmeira se servia de infi-
nitas bocas. Os homens ainda pararam, por brevidades.
Aquela voz seria em sonho que figurava? Para mim não ha-
via dúvida: era a voz de meu pai. Ele pedia que os homens
ponderassem: aqueles eram frutos muito sagrados. Sua voz
se ajoelhava clamando para que se poupassem as árvores: o
destino do nosso mundo se sustentava em delicados fios.
Bastava que um desses fios fosse cortado para que tudo en-
trasse em desordens e desgraças se sucedessem em desfile.
O primeiro homem, 21 então, perguntou à árvore: por que és

- 145 -
Literatura, memória e cultura

tão desumana? Só respondeu o silêncio. Nem mais se escu-


tou nenhuma voz. De novo, a multidão se derramou sobre as
palmeiras. Mas quando o primeiro fruto foi cortado, do golpe
espirrou a imensa água e, em cataratas, o mar se encheu de
novo, afundando tudo e todos. (COUTO, 2007, p. 182).

Mia Couto procura dar sentido em sua obra ao conceito


de memória, estabelecendo uma relação entre a cultura oral e a
cultura escrita, demonstrando ao longo do livro como se constrói
e se difunde uma identidade, e de que forma eventos históricos
são coletivamente perceptos, apropriados, e como contribuem
para a re/desconstrução da memória.
O título da obra é significativo nesse sentido, afinal faz
referência ao fato de que sujeito e a terra se confundem, e assim
como os sujeitos que estão sempre sobressaltados, com medo e
dificuldades para dormir, ou seja, em constante estado de sonam-
bulismo, assim como a terra - agredida e agitada pela guerra.
A confluência entre a inquietude da terra e a inquietude
dos personagens é uma questão comum e perpassa pelo livro do
início ao fim. As duas narrativas são os meios encontrados pelo
autor para denunciar o descaso em que se encontra seu país, cha-
mando a atenção, ao mesmo tempo, para os únicos e verdadeiros
resultados das guerras: as mortes, a destruição, a desolação e a
solidão.

Considerações finais

Conforme exposto, por ser marcada por seu tempo, a lite-


ratura pode contribuir -tais quais como os documentos de arqui-
vos e fontes tradicionais- para as percepções de hábitos, costumes
e valores pertinentes a um período histórico, ou seja, a literatura
- 146 -
Literatura, memoria y cultura

como método de ensino permite ao educando transmitir caracte-


rísticas e minucias que são –muitas vezes propositalmente- rele-
gadas pelas demais fontes. A literatura permite constituir e com-
preender sentidos, criando e ressignificando representações.
O ensino de História da África tem numerosos desafios
para a sua plena implementação, sendo um deles a superação da
centralização europeia dos estudos históricos e, em certa medida,
da manutenção de preconceitos étnico-culturais. Logo, esse ar-
tigo busca e estimula um estreitamento do historiógrafo com o
professor e a valorização do ensino de História da África e da
literatura africana.
A rigor, a obra Terra Sonâmbula de Mia Couto permite
uma compreensão do imaginário, das representações e das con-
cepções de uma parcela significativa da sociedade moçambicana
da Guerra, desvelando aspectos da história e da realidade que pas-
sam ao largo das fontes tradicionais.
Importante salientar, a leitura de uma obra implica em
amparar o aluno a ser autor de sua própria interpretação. Assim,
é necessário que primeiramente se exponha as características ge-
rais às quais a obra esteja vinculada, bem como descrever as ca-
racterísticas socias, políticas e econômicas pertencentes ao pro-
cesso e evento histórico abordado na peça literária. Porém, con-
sideramos ser necessário que o aluno não seja mero receptor de
uma interpretação, sendo agente efetivo na construção e consoli-
dação de uma interpretação literária e histórica.
Destarte, o uso de peças literárias como mecanismos de
dinamização do processo de ensino aprendizagem são muito re-
levantes, e o romance Terra Sonâmbula de Mia Couto é, indubi-
tavelmente, uma ferramenta que possibilita o empoderamento so-
ciocultural, possibilitando a elaboração de uma espécie de

- 147 -
Literatura, memória e cultura

inventário das lutas, das perdas e das crises surgidas, nesse caso
específico, durante a guerra civil moçambicana.

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Literatura, memoria y cultura

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- 149 -
Literatura, memória e cultura

7. A
RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E DI-
REITO, A PARTIR DA OBRA DOM CAS-
MURRO, DE MACHADO DE ASSIS

_________________________

Ederson Dias de Carvalho1

Introdução

Bastante avançada nos Estados Unidos desde a década de


setenta sob o título de law & literature, a discussão travada pela
disciplina Direito e Literatura passa a atrair adeptos em países da
Europa, notadamente França, Espanha e Portugal, sendo que, nas
Américas, esse debate é bem desenvolvido no México.
No nascedouro do interesse em se demonstrar as interfaces
entre essas duas áreas do saber, faz-se necessário citar os estudos
sobre William Shakespeare, ainda no século XVII, na Inglaterra.
Esta pesquisa trata especificamente da relação entre Lite-
ratura e Direito e, para travar tal discussão, recorre-se aqui ao ro-
mance Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Essa obra machadiana não foi selecionada ao acaso para se
trabalhar tal temática. Como já foi dito, para se estabelecer as re-
lações existentes entre Literatura e Direito na língua vernácula,
Machado é um dos escritores mais completos nessa seara.
A contribuição que o romance Dom Casmurro apresenta
para a Literatura é de notório saber, mas infelizmente nem sempre

1 Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Profes-


sor/tutor do Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Fe-
deral do Piauí - CEAD/UFPI. E-mail: edersonstar@hotmail.com
- 150 -
Literatura, memoria y cultura

se percebe que ele é muito pertinente também para o Direito, ofe-


recendo uma gama de elementos que podem ser tranquilamente
debatidos na esfera jurídica, possibilitando o surgimento de gran-
des discussões como, por exemplo: se o leitor se investir de um
caráter feminista que visualiza a personagem Capitu como vítima
do machismo patriarcal? Nesse caso, esse leitor poderá inferir que
a postura do narrador infringe algumas normas jurídicas e, então,
o Direito deverá ser acionado para esclarecer tal fato. Com isso,
percebe-se que o liame entre Literatura e Direito é bem mais es-
treito do que se possa imaginar.
Desse modo, tratar de temas sociais polêmicos numa teia
linguística fundamentada é um dos grandes atributos da obra ma-
chadiana. O autor deixa a trama suspensa: Capitu, culpada ou ino-
cente? Essa conclusão dependerá de uma longa reflexão interpre-
tativo-literário-jurídico.
Ademais, no atual panorama, é evidente a importância da
interdisciplinaridade para uma boa interpretação da obra literá-
ria. É inegável que, no romance em análise, o Bruxo do Cosme
Velho (Machado de Assis) imprime uma linguagem jurídica
muito latente e essa linguagem deverá ser analisada, levada em
consideração, para que se possa desvendar as nuances que tal
narrativa insiste em mostrar aos seus leitores, apontando que
essa obra está longe de ser esgotada.
O enredo de Dom Casmurro apresenta conflitos sociais
que devem ser colocados em destaque não somente pela Teoria
Literária, pois seria muito egoísmo dela não oferecer a outras
áreas do conhecimento esse conteúdo de tamanha complexidade,
gerador de múltiplas discussões. Dessa maneira, interessa ao
profissional do Direito interpretar os fatos e a lei dentro de um
determinado contexto histórico (inclusive ao se deparar com
obras literárias), o que exigirá desse profissional maiores
- 151 -
Literatura, memória e cultura

conhecimentos dos conflitos sociais, a fim de auxiliá-lo na apli-


cação cada vez mais justa do Direito.
Percebe-se também que a Literatura e o Direito bebem em
uma fonte comum que é a História. Ela (a História) ajuda o es-
tudioso a entender o contexto histórico em que determinada obra
está inserida e, assim, esse entendimento facilitará a compreen-
são de tal produção literária.
Além disso, é mister apontar que, quando a literatura é en-
gajada, ela se aproxima ainda mais do mundo jurídico, tradu-
zindo-se numa espécie de denúncia, exigindo dos profissionais
do Direito uma resposta para as querelas ali elencadas.
No entanto, mesmo quando a literatura é engajada, ou seja,
acentuadamente envolvida com as causas sociais, numa luta para
desnudar toda a sujeira que está debaixo do tapete em uma deter-
minada região, em um determinado país, etc., não se pode perder
de vista que ela (a arte literária) não tem o mesmo compromisso
com a verdade que o Direito possui.
Destarte, a Literatura goza da verossimilhança, assim, os
relatos ali apresentados podem se parecer com a realidade, mas
não são a realidade nua e crua. Nesse sentido, há muito latente no
texto ficcional algo criado, que é fruto da imaginação do autor e
isso se traduz numa dificuldade para o Direito, pois este tem de
se pautar na verdade dos fatos e julgar com base em provas.
Outro ponto crítico da relação entre essas duas áreas aqui
mencionadas é que, ao longo do tempo, mesmo os estudiosos pro-
vando a relação existente entre elas, o que se vê, na prática, é um
certo grau de distanciamento da Literatura em relação ao Direito
e vice-versa e essa postura não é saudável para nenhuma das duas
áreas em análise, pois, como já foi dito até aqui, esses dois cam-
pos do saber possuem uma ligação profícua, restando aos profis-
sionais dessas esferas do conhecimento apenas perceberem essa
- 152 -
Literatura, memoria y cultura

ligação e absorverem a riqueza que emana do liame posto aqui


em discussão.
Assim, o objetivo desta pesquisa é apontar as interfaces
existentes entre Literatura e Direito, tomando-se por base a obra
Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou seja, sabendo que há
uma ligação entre esses dois campos do saber, pretende-se nesta
pesquisa evidenciar como se processa essa relação, apontando
prós e contras à luz da trilha romanesca machadiana que se traduz
num grande sertão, mas que possui algumas veredas e, para tri-
lhá-las, é preciso, antes de mais nada, conhecê-las, para, conse-
quentemente, percorrê-las com segurança.
A Literatura retrata fatos e contextos sociais significativos
para a esfera jurídica e que serão também aqui objeto deste es-
tudo.
Como embasamento teórico desta pesquisa, foram realiza-
das consultas bibliográficas e, dentre os autores que serviram de
base para o presente estudo, tem-se os professores Isaac Krayyem
Arbex e Lízia Medina que produziram um material significativo
com base em estudos jurídicos baseados em obras literárias da
segunda metade do século XIX, sendo que os estudiosos Mikhail
Bakhtin e George Lukács forneceram um arcabouço teórico con-
sistente no que se refere aos estudos sobre a teoria do romance.
Vale salientar que a presente pesquisa é de caráter analí-
tico-qualitativa, sendo que o método utilizado neste trabalho é o
dedutivo e, a partir dele, à luz da temática abordada, foram for-
muladas hipóteses que geraram discussões e questionamentos ao
longo deste estudo. Assim, tem-se aqui dados bibliográficos, em-
basamentos teóricos e doutrinários de autores tanto da área do
Direito como da área de Literatura, com análises de seus conteú-
dos.

- 153 -
Literatura, memória e cultura

No item intitulado Interfaces entre Direito e Literatura fo-


ram abordados aspectos gerais acerca dessas duas áreas do saber.
Nele se discute sobre onde surgiram os primeiros estudos acerca
desses dois campos do conhecimento, quais os autores oferece-
ram contribuições para o desenvolvimento de pesquisas voltadas
para essas áreas, a importância de se debater aspectos relaciona-
dos à temática em análise, etc.
Já no item intitulado Dom Casmurro: Uma tessitura entre
Literatura e Direito foram estabelecidas ligações importantes que
intrinsecamente há entre a referida narrativa literária machadiana
e o Direito. Nesse item foram apresentadas citações da própria
obra em estudo e, por meio delas, várias análises surgiram, várias
constatações foram desnudadas, vários rostos foram revelados e,
dentre essas revelações, encontra-se o rosto do Direito que sem-
pre esteve pairando em muitas das intrigas trazidas pelo campo
vasto, complexo e plurissignificativo da Literatura.

Interfaces entre Direito e Literatura

Estudos sobre a relação entre Literatura e Direito são, de


certa forma, bem recentes, datando do início do século XX, sendo
que apenas na década de 30 é que surgiram as primeiras publica-
ções sobre a temática. Esses estudos não nasceram no Brasil, mas
nos Estados Unidos e na Europa, tendo como grandes expoentes,
considerados pais fundadores dessa discussão: John Henry Wig-
more, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller, sendo que cada
um deles possui uma abordagem específica acerca dessa mesma
temática, conforme afirma Arbex (2013), recorrendo às ideias de
Godoy (2011):

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Literatura, memoria y cultura

Wigmore (1982-1943), especialista em provas judiciais


(‘evidence’), abordou com profundidade o formato do Di-
reito na Literatura, tendo entendido este caminho como pe-
dagógico para o Direito. Cardozo (1870-1938), com uma his-
tória familiar conturbada, dessacralizou o magistrado. Para
este autor, o Direito é Literatura, essencialmente, e seu es-
tudo busca a Literatura no Direito. Por fim, Fuller (1902-
1978), bastante conhecido pelos estudantes de direito brasi-
leiros, é autor de ‘O Caso de Exploradores de Cavernas’,
obra que demonstra sua grande capacidade de utilizar a lite-
ratura como forma de pensar o Direito. Para este autor, a li-
teratura deve ser usada no ensino jurídico, e sua tese é muito
bem-sucedida em termos práticos (ARBEX, 2013, p. 230).

No entanto, mesmo com todos os benefícios que essa reu-


nião entre Literatura versus Direito pode proporcionar aos envol-
vidos, no Brasil ainda são tímidos os estudos que envolvem esses
dois campos do conhecimento. Sabe-se que as discussões sobre
essa temática ainda são bem recentes, mas isso não deve sempre
ser alegado para justificar o não aprofundamento da presente dis-
cussão.
Nesse sentido, é importante que as universidades, tanto os
cursos de Direito como os cursos de Letras, promovam trocas de
experiências com estudantes das duas áreas referidas, pois essa
prática certamente irá enriquecer todos os envolvidos, assim, to-
dos sairão ganhando.
Ademais, o pesquisador Arbex, com base nos estudos de
Botero Bernal, cita formas possíveis e didáticas de se examinar
tal temática, dentre elas, ele considera três: “direito como litera-
tura”, “direito da literatura” e “direito na literatura”. O “direito
como literatura” tem suas bases firmadas na Hermenêutica Jurí-
dica; a esfera interpretativa é bem trabalhada nessa linha de es-
tudo, sendo que a Teoria Literária é chamada para a discussão. O
- 155 -
Literatura, memória e cultura

“direito da literatura” está mais voltado para o campo dos direitos


autorais e dos direitos de expressão que cada autor possui ao pro-
duzir as suas obras literárias. Já o “direito na literatura” busca
desvendar o que as obras literárias trazem em seu bojo e que di-
zem respeito ao campo do direito, ou seja, quais as temáticas e
demais aspectos que essas obras abordam e que apontam para
possíveis discussões na esfera jurídica.
Assim, embora o debate envolvendo a intersecção entre es-
sas duas áreas seja ainda relativamente recente, pode-se perceber
que já foram estabelecidas produtivas linhas propulsoras, gerado-
ras de vastas e bem-sucedidas pesquisas: direito como literatura,
direito da literatura e direito na literatura, cabendo agora aos pro-
fissionais e estudantes, tanto das Letras como do Direito, explorá-
las, aceitando o combate proposto por Carlos Drummond de An-
drade no poema intitulado O Lutador:

Lutar com palavras é a luta mais vã, entretanto lutamos, mal


rompe a manhã [...]. Palavra, palavra, (digo exasperado), se
me desafias, aceito o combate [...] (ANDRADE, 2012, p. 14
-15).

Embora seja relativamente recente o interesse em pesquisar


Literatura e Direito, já há promissores estudos nessa seara nas es-
colas jurídicas europeias e norte-americanas. Todavia, na Amé-
rica Latina a pesquisa sobre a temática em análise ainda é mo-
desta, restringindo-se quase que exclusivamente aos ambientes
acadêmicos, especificamente às universidades, necessitando
ainda ganhar fôlego e, consequentemente, o apoio de grande parte
dos professores que, até o momento, pouco mergulharam e, por-
tanto, pouco se arriscaram nesse imenso oceano de grandes pos-
sibilidades, mas como já dizia Fernando Pessoa no poema Mar
Português “[...] quem quer passar além do Bojador, tem que
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Literatura, memoria y cultura

passar além da dor” (PESSOA, 2005, p. 48), ou seja, é preciso


disposição, coragem e dedicação para descobrir o quanto esses
dois campos do conhecimento podem ganhar nessa relação intrín-
seca, nessa troca de saberes.
No Brasil poucos estudiosos se deram ao trabalho de se
voltar para as preocupações quanto à relação existente entre Li-
teratura e Direito, porém não se pode deixar de mencionar aqui
as contribuições de Germano Schwartz (2011) que trata conside-
ravelmente dessa temática, conforme assevera Arbex:

No Brasil, alguns estudiosos vêm levantando a questão da


relação Direito e Literatura. Um deles, Schwartz, aborda a
conexão existente entre o sistema jurídico e a arte. Citando o
movimento Law and Literature, dos anos de 70, nos Estados
Unidos, e se aprofundando sobre as obras de autores de re-
nome, como Martha Nussbaum (Universidade de Chigago,
EUA), García Amado (Universidade de León, Espanha), Ri-
chard Weisberg (Escola Cardozo de Direito, Nova Yorque,
EUA) e Thomas Morawetz (Universidade de Connecticut,
EUA) (ARBEX, 2013, p. 229-230).

Ademais, atualmente a interdisciplinaridade se constitui


numa tendência atual nas escolas e nas academias. Acredita-se
que, justamente por isso, os estudos entre a Literatura e o Direito
tendem a crescer e a se aperfeiçoar. Desse modo, espera-se que
haja um interesse maior em se abordar tal temática em linhas de
pesquisa por parte dos universitários, por exemplo, em projetos
de iniciação científica e que os professores descubram a riqueza
que podem encontrar: o tesouro no fundo do oceano de grandes
possibilidades que são os estudos que envolvem essas duas áreas
do saber. Se vai valer a pena? Fernando Pessoa no poema Mar
Português já dizia: “[...] Valeu a pena? Tudo vale a pena se a
alma não é pequena” (PESSOA, 2005, p. 48). Acerca desse
- 157 -
Literatura, memória e cultura

caráter interdisciplinar que permeia os campos do saber aqui dis-


cutidos, discorre Arbex:

As relações entre Direito e Literatura são múltiplas, dentro


do contexto da análise interdisciplinar do conhecimento. O
estudo destas relações vem se desenvolvendo com rapidez e
profundidade, à medida em que se compreende que este tipo
de análise pode se tornar uma eficiente maneira de se levan-
tar dados antes não percebidos na literatura, para o debate
jusfilosófico (ARBEX, 2013, p. 228).

Além disso, a variedade de temas que o profissional do di-


reito tem que lidar para resolver as lides que lhe são impostas
(civil, penal, constitucional, trabalhista, tributária, administrativa,
comercial, internacional, etc.) é muito grande e esse profissional
deve estar atento ao arcabouço temático oferecido pelas Letras,
pois esse conjunto de temas apresentado pela Literatura já vem
contextualizado e inserido em casos verossímeis, principalmente
quando se fala da literatura engajada e, assim, não se pode des-
prezar o que ao Direito está sendo oferecido, conforme assevera
Medina:

As obras literárias encontram-se inundadas de episódios que


envolvem questões jurídicas, contendo em seu bojo múlti-
plos temas relativos à vida, à morte, ao crime, à religião, à
guerra, às famílias, entre outros. Endossando as reflexões
acerca dessa interdisciplinaridade, [julgo] que a Literatura
tornou-se objeto de estudo de diversas disciplinas jurídicas
(MEDINA, 2013, p.169).

Com isso, é preciso mostrar para os estudiosos da Litera-


tura e do Direito que existem outros caminhos a serem percorri-
dos além das trilhas já sacralizadas. É preciso oferecer aos

- 158 -
Literatura, memoria y cultura

estudantes, principalmente aos alunos da academia, outras possi-


bilidades de estudos envolvendo essas duas áreas, pois tais estu-
dos poderão alcançar excelentes resultados. Dessa maneira, o Po-
sitivismo, com as suas leis secas e frias e que tendem a desuma-
nizar os que ali se inserem para obterem respostas às suas quere-
las, irá perder força e a Literatura, com o seu caráter crítico e hu-
manista, inclinar-se-á ainda mais aos embates da população, apre-
sentando casos bem mais próximos da realidade. Acerca disso,
afirma Medina:

O estudo interdisciplinar constitui uma alternativa às clássi-


cas ideias do positivismo jurídico, ‘reduzindo-se as diferen-
ças temporais que existem entre o Direito, consolidado na
forma da lei, e a Sociedade, em permanente evolução’. O his-
toriador do direito Antônio M. Hespanha adverte que não se
pode privilegiar a lei na análise histórica do Direito, tendo
em vista que ‘no mais das vezes (e isto fica mais real quanto
mais se distancie da modernidade) existe uma distância sen-
sível entre o direito legislado e o direito praticado’ (ME-
DINA, 2013, p. 170).

Destarte, um fato interessante merece atenção: grandes no-


mes da literatura brasileira e portuguesa são graduados em Di-
reito e, não, em Letras, assim, consequentemente, eles imprimem
nas suas páginas insumos de grande valia para produção de pes-
quisas jurídicas. O problema é que esses insumos são, até o mo-
mento, pouco aproveitados nas universidades, por exemplo, em
virtude da carente formação acadêmica de grande parte dos pro-
fessores.
Ademais, muitos textos literários trazem em seu bojo ex-
pressões e temáticas que são objetos de discussão no mundo ju-
rídico. Essa abordagem literário-criativa, mais espontânea,
torna-se evidente ao se verificar o entrelaçamento do texto
- 159 -
Literatura, memória e cultura

literário em relação às normas e à linguagem técnica, trazendo


maior interesse aos leitores dessas duas esferas do conhecimento.
Nesse sentido, Machado de Assis aborda questões jurídicas
com precisão, provocando admiração por parte daqueles que se
lançam a conhecer suas obras. Sobre isso, já dizia Azevedo
(2000) na obra Aplicação Direito e contexto social:

Ninguém se apropria do idioma sem ler os grandes escrito-


res, a começar, entre nós, por Machado de Assis, sobretudo
sua trilogia – Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias
Póstumas de Braz Cubas. Em Machado de Assis não se
aprende só a língua, despojada, transparente e gramatical-
mente correta. Nele sente-se a mensagem de sua época, ao
mesmo tempo em que sua prosa transmite significados que a
transcendem de muito por dizerem respeito aos homens de
todos os tempos (AZEVEDO, 2000, p. 80).

Arbex (2013), recorrendo a Dworkin (2000), aponta clara-


mente para a importância dos estudos interdisciplinares entre es-
ses campos do saber que aqui estão sendo tratados. Aquele en-
xerga um ganho muito grande quando se envolve Direito e outras
áreas, principalmente no que se diz respeito à Hermenêutica:

Dworkin defende a comparação do Direito com outros cam-


pos do conhecimento, em especial a Literatura. Ele defende
o supracitado modelo estético, através do qual a interpreta-
ção de uma obra seria similar à interpretação de uma lei, de-
vendo ser analisada por quem a lê, como quem leria a lei e a
aplicaria – uma teoria aplicada (ARBEX, 2013, p. 231).

Outrossim, até mesmo quando se trata de algumas querelas


a serem superadas pela Literatura e pelo Direito, essas duas áreas
tendem a se aproximar. Uma dessas querelas vem a ser as ques-
tões que a realidade impõe independentemente de serem novas
- 160 -
Literatura, memoria y cultura

ou não, discutidas ou não, conforme prescreve o princípio jurí-


dico da Inafastabilidade do Poder Jurisdicional, princípio do Po-
der Judiciário que aponta que este poder não poderá deixar de
apreciar lesão ou ameaça a direito, mesmo que tal lesão ou ame-
aça ainda não tenha regramento/lei que trate especificamente do
que ali está sendo posto em discussão.
Desse modo, assim como no Direito, a literatura não pode
deixar de colocar em pauta assuntos que ainda não possuem em-
basamento teórico consolidado. Ela (a Literatura), por meio do
gênero romance, por exemplo, gênero em constante mutação e
construção, não se esquiva de discutir questões da realidade ina-
cabada, assim como assevera Bakhtin (1981):

O romance está ligado aos elementos do presente inacabado


que não o deixam se enrijecer. O romancista gravita em torno
de tudo que não está ainda acabado. Ele pode aparecer no
campo da representação em qualquer atitude, pode represen-
tar os momentos reais de sua vida ou fazer uma alusão, pode
se intrometer na conversa dos personagens, pode polemizar
com seus inimigos literatos, etc. (BAKHTIN, 1981, p. 417).

Assim, é preciso que se tenha uma visão holística para se


compreender o produtivo liame existente entre Literatura e Di-
reito.

Dom Casmurro: Uma tessitura entre Literatura e Direito

A obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, a partir do


seu enredo, está permeada de questões não somente literárias,
mas também de marcas jurídicas apresentadas pelo narrador per-
sonagem Bentinho. Sobre esses aspectos intertextuais, Jauss
(2002, p. 883) já dizia “Cada texto é um tecido de textos, aquele

- 161 -
Literatura, memória e cultura

jogo aberto de uma intertextualidade flutuante na ‘luta entre ho-


mens e símbolos’”.
A seguir, serão apresentadas questões que discorrem sobre
a ligação entre Literatura e Direito. Lembrando que o objetivo
aqui não será esgotar o assunto, mas apenas apontar horizon-
tes/perspectivas para posteriores trabalhos nessa linha.
A princípio, não pode deixar de ressaltar que Machado de
Assis foi um escritor que analisava a sociedade em que estava
inserido com muita perspicácia, atento às questões de seu tempo.
Na verdade, pode-se dizer que ele desnudou a sociedade carioca
e o resultado dessa análise foi publicado em variadas obras. O
Bruxo do Cosme Velho analisava e construía críticas contunden-
tes sobre temas políticos, sociais, jurídicos e etc.
Dentre os gêneros trabalhados por Machado, o romance foi
um dos que mais atendeu ao desejo do referido autor de retratar a
realidade em constante mutação, ou seja, “o romance é o único
gênero em evolução, por isso reflete mais profundamente, mais
substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evo-
lução da própria realidade” (BAKHTIN, 1981, p. 400).
Essa construção dos romances machadianos, principal-
mente os da fase realista, vem atrelada à sua marca registrada: a
ironia, elemento de suma relevância para a esfera romanesca,
conforme assevera Lukács:

A composição do romance é uma fusão paradoxal de com-


ponentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade
constantemente revogada. As relações que mantêm a coesão
dos componentes abstratos são, pureza abstrata, formais: eis
por que o princípio unificador último tem de ser a ética da
subjetividade criadora que se torna nítida no conteúdo. Mas
como esta tem de superar-se a si própria, a fim de que se
realize a objetividade normativa do criador épico, e como

- 162 -
Literatura, memoria y cultura

nunca ela é capaz de penetrar inteiramente os objetos de sua


configuração, nem portanto de despojar-se completamente
de sua subjetividade e aparecer como o sentido imanente do
mundo objetivo, ela própria necessita de uma nova autocor-
reção ética, mais uma vez determinada pelo conteúdo, a fim
de alcançar o tato criador de equilíbrio. Essa interação entre
dois complexos éticos, a sua dualidade no formar e a sua uni-
dade de figuração, é o conteúdo da ironia (LUKÁCS, 2009,
p. 85).

Não se pode negar que sua experiência como funcionário


público fez com que O Bruxo do Cosme Velho se lançasse com
grande virtude por temas políticos e jurídicos. Tomando por base
os mais de 180 contos que Machado produziu, pode-se observar
que ele recorre muitas vezes ao Direito para construir, por exem-
plo, suas personagens. Nos caso específico dos contos, as perso-
nagens ligadas ao Direito sempre são colocadas em ação nas suas
narrativas: ou é uma personagem singular (principal ou secundá-
ria) ou é exclusivamente um narrador, ou é um narrador-persona-
gem, todos eles investidos nos papéis de estudantes de direito,
escrivães, bacharéis, oficiais de fóruns e cartórios, juízes, etc.
Machado de Assis iniciou sua carreira escrevendo textos
literários enquadrados pelos críticos na estética do Romantismo,
mas é na sua fase realista que se conhece o ponto alto do seu tra-
balho como escritor, tendo sido, inclusive, considerado o intro-
dutor do Realismo no Brasil, em 1881, com a narrativa Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
Nessa fase realista, o fundador da Academia Brasileira de
Letras não se calou perante as desigualdades sociais que feriam
fortemente os direitos da população naquela época. A elite brasi-
leira, as teorias filosóficas e científicas de caráter preconceituoso

- 163 -
Literatura, memória e cultura

e a hierarquia patriarcal e racial foram alvos certeiros desse escri-


tor em várias de suas obras, conforme aponta Arbex:

A partir destas teorias de Spencer, a miscigenação seria uma


conduta desviante, e as desigualdades sociais, uma conse-
quência natural da menosvalia e da evolução humana. Desta
forma, não era inesperado que Machado de Assis se colo-
casse de maneira tão claramente cética em relação à elite bra-
sileira, como o fez em Memórias Póstumas de Brás Cubas e
em Dom Casmurro, e, de modo mais incisivo em ‘O alie-
nista’, em relação aos homens de ciência do Brasil da época
narrada. A hierarquia patriarcal e racial da sociedade brasi-
leira eram alvos preferidos de seus textos. Nas palavras de
Miskolci, Machado faria sua análise desta scientia barsilien-
sis para questionar as desigualdades sociais vividas naquele
momento histórico (ARBEX, 2013, p. 238-239).

Dessa maneira, infere-se que há um liame evidente entre


Literatura e Direito, sendo a Literatura uma trilha para um enten-
dimento do Direito e vice-versa, com a abertura de um conjunto
de observações interdisciplinares. De modo genérico, pode-se di-
zer que o Direito nada mais é que um sistema social e a Literatura,
em muitos momentos, reflexo dos fenômenos sociais de onde ela
está inserida.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a Literatura, na maioria
das vezes, não está desconectada, apartada do seu tempo. Por
meio da sua linguagem, do seu enredo, das suas personagens, etc.,
podem-se estabelecer conexões com a realidade, ou seja, mesmo
sabendo que aquelas determinadas personagens são fictícias den-
tro de um enredo literário, não se pode fechar os olhos é dizer que
aquilo que está sendo tratado está totalmente fora de cogitação
dentro do contexto histórico.

- 164 -
Literatura, memoria y cultura

Além disso, é necessário lembrar que o tema central de


Dom Casmurro é o adultério, considerado crime na época, e Ma-
chado de Assis, como um exímio leitor de literatura estrangeira
que era, tendo, inclusive, traduzido para a Língua Portuguesa vá-
rias obras, deixou-se influenciar por escritores realistas da sua
época que também escreveram sobre essa temática, tais como:
Eça de Queiroz em O Primo Basílio, Tolstói em Anna Kariênina,
Flaubert em Madame Bovari, Dostoiévski em O Eterno Marido,
dentre outros.
Acerca das personagens do romance Dom Casmurro, vale
ressaltar a relação que a grande maioria delas tem com o Direito:
Tio Cosme que passou a morar na casa de Bentinho com a D.
Glória, mãe de Bento, era advogado. José Dias, sempre acompa-
nhava o Tio Cosme no exercício da advocacia, inclusive a esse
agregado era confiada a guarda das peças jurídicas produzidas ou
em produção desse tio advogado de Bentinho. Assim, não é de se
espantar que Bento, de alguma forma, foi influenciado pelo exer-
cício profissional do seu tio. Na passagem seguinte da obra em
análise, José Dias, homem encantado pelas leis e ajudante do ad-
vogado Cosme, incentiva o jovem rapaz Bentinho para o caminho
do Direito:

– Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto


para tudo; se ela quiser (D. Glória) que eu estude leis, vou
para São Paulo...
Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo
de uma ideia – uma ideia que o alegrou extraordinariamente.
Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara
os seus para o lado da barra. Como insistisse:
É tarde – disse ele –; mas, para lhe provar que não há falta
de vontade, irei falar com a sua mãe. Não prometo vencer,
mas lutar; trabalharei com a alma. Deveras, não quer ser pa-
dre? As leis são belas, meu querido... Há boas universidades
- 165 -
Literatura, memória e cultura

por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação.


Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo; fale também
a seu tio (ASSIS, 2015, p. 51).

Diante de toda essa discussão, vale salientar que uma habi-


lidade que tanto o profissional das Letras como o profissional do
Direito deve preservar é o bom trato com as palavras, não so-
mente na linguagem escrita, mas também na linguagem oral, pois,
em geral, os advogados são submetidos a defesas orais em que
devem expor cuidadosamente os fatos e seus argumentos de
forma a convencer o julgador da veracidade do que se está fa-
lando e o profissional das Letras sempre é convocado para solu-
cionar, por exemplo, as querelas que envolvem assuntos relacio-
nados à língua.
Ao se deparar com Bento, o leitor poderá notar que, antes
de se formar em Direito, o jovem Bentinho já mantinha um cui-
dado com os vocábulos em determinadas situações que exigiam
maior atenção, como, por exemplo, quando ele desejava conven-
cer José Dias a pedir para sua mãe, D. Glória, a desistir da ideia
de enviá-lo ao seminário:

Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, po-
rém, que não pensasse nos termos em que falaria ao agre-
gado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras
que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara,
antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta,
para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomenda-
ções de Capitu: ‘Preciso falar-lhe, sem falta, amanhã; esco-
lha o lugar e diga-me’. Proferi-as lentamente, e mais lenta-
mente ainda as palavras ‘sem falta’, como para sublinhá-las.
Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspi-
das e, francamente, impróprias de um criançola para um ho-
mem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. Afinal,

- 166 -
Literatura, memoria y cultura

disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-


las em tom que não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as
novamente, saíram-me quase súplices. Bastava não carregar
tanto, nem adoçar muito, um meio-termo (ASSIS, 2015, p.
41-42).

No que se refere à capacidade de Machado de Assis na em-


preitada de tentar convencer os seus leitores no tocante às ideias
defendidas, assim como fazem os profissionais do direito na
construção das suas peças jurídicas, nota-se no Bruxo do Cosmo
Velho, no caso específico do seu narrador-personagem Bentinho,
uma busca constante em dialogar com o destinatário da narrativa,
reportando-se a esse destinatário muitas vezes dentro da própria
obra Dom Casmurro, como se pode observar no fragmento a se-
guir do romance em análise:

Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro,


começava a estar tão alvoroçado, que não pude
ter toda a consciência dos meus atos; mas con-
cluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as
mãos minhas; depois, talvez por não poder re-
cuar mais, colocou um dos pés adiante e o ou-
tro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto
que me obrigou a reter-lhe as mãos com força.
O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça
não quis ceder também, e, caída para trás, inu-
tilizava todos os meus esforços, porque eu já
fazia esforços, leitor amigo (ASSIS, 2015, p.
71).

Sobre essa ânsia do narrador-personagem em persuadir o


leitor acerca do seu ponto de vista, Iser já apontava essa ligação
existente entre autor e leitor:

- 167 -
Literatura, memória e cultura

Pois o sinal de ficção no texto assinalado é antes de tudo re-


conhecido através das convenções determinadas, historica-
mente variadas, de que o autor e o público compartilham e
que se manifestam nos sinais correspondentes. Assim, o sinal
de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o ‘con-
trato’ entre autor e leitor, cuja regulamentação o texto com-
prova não como discurso, mas sim como ‘discurso encenado’
(ISER, 2002, p. 970).

Ainda no tocante a essa aproximação entre autor e leitor,


assinala Todorov, referindo-se aos aspectos e aos modos da nar-
rativa:

É preciso dar-se conta de início que existe duas interpreta-


ções morais, de caráter realmente diferente: uma é interior ao
livro e outra que os leitores dão em se preocupar com a lógica
da obra, essa pode variar sensivelmente segundo as épocas e
a personalidade do leitor (TODOROV, 2011, p. 256).

Vale destacar que, assim como os romancistas, os advoga-


dos também constroem narrativas, ou seja, na elaboração de suas
peças jurídicas com vistas a serem apreciadas pelos juízes, os ad-
vogados da esfera penal, por exemplo, constroem narrativas es-
pecialmente no item denominado “Dos fatos” da peça jurídica de-
nominada “Petição Inicial”, informando ao juiz, ao desembarga-
dor ou ao ministro os fatos que levaram tal cliente a requerer uma
apreciação judicial sobre um determinado caso ou lide.
Todavia, nos textos da área do Direito, principalmente nas
peças jurídicas, há uma predominância do descrever sobre o nar-
rar, diferentemente dos textos literários de Machado de Assis, por
exemplo. Mesmo sendo um escritor realista, o escritor de Dom
Casmurro privilegia o narrar em detrimento do descrever. Gran-
des escritores como Tolstói são mestres na arte de narrar e,
- 168 -
Literatura, memoria y cultura

quando desejam descrever algo ou alguém, conseguem fazer isso


dentro da própria narrativa de forma sutil, sem os exageros des-
critivos cometidos por alguns realistas. Apontando as vantagens
do narrar em detrimento do descrever nas narrativas literárias,
discorre Lukács:

Na verdadeira arte narrativa, a série temporal dos aconteci-


mentos é recriada artisticamente e tornada sensível por meios
bastante complexos. É o próprio escritor que, na sua narra-
ção, necessita mover-se com a maior desenvoltura entre pas-
sado e presente, como condição para que o leitor possa ter
uma percepção clara do autêntico encadeamento dos aconte-
cimentos épicos, do modo pelo qual estes acontecimentos de-
rivam uns dos outros. Somente pela intuição deste encadea-
mento e desta derivação é que o leitor pode reviver a verda-
deira sucessão temporal, a sua dinâmica histórica (LUKÁCS,
2010, p. 171).

Além disso, outro aspecto salutar que se pode considerar é


o domínio do Latim. O conhecimento da língua latina é um trunfo
salutar tanto para o advogado como para o profissional das Le-
tras, pois sabe-se que, em várias situações, tais profissionais de-
vem conhecer essa língua para se inteirar sobre o que versa a
vasta literatura de suas áreas.
Nesse sentido, as universidades deveriam incluir nas suas
grades curriculares do curso de Direito a disciplina Língua Latina
como crédito obrigatório, devido à sua significância e a presença
constante de expressões latinas tanto na literatura da área das Le-
tras como na literatura da área jurídica. Bentinho possuía noções
do Latim, pois já estudava essa língua desde a juventude:

– Mas tu gostavas tanto de ser padre – disse ela -; não te lem-


bras que até pedias para ir ver sair os seminaristas de S. José,

- 169 -
Literatura, memória e cultura

com as suas batinas? Em casa, quando José Dias te chamava


Reverendíssimo, tu rias com tanto gosto! Como é que
agora?...Não creio, não, Bentinho. E depois... Vocação? Mas
a vocação vem com o costume – continuou repetindo as re-
flexões que ouvira ao meu professor de latim (ASSIS, 2015,
p. 78).

Machado de Assis também emprega na narrativa em aná-


lise uma linguagem forense. Nesse sentido, sabe-se que jargões
são aqueles termos técnicos específicos e empregados por profis-
sionais de uma determinada área do conhecimento. Para exem-
plificar, as expressões “jurisdição”, “autos”, “embargos de ter-
ceiro” são consideradas expressões típicas da área do Direito e,
portanto, jargões.
Ademais, Machado faz uso de tais expressões também na
área da Literatura, ou seja, não é suficiente para ele dar a algumas
de suas personagens profissões voltadas para o campo do Direito,
mas o escritor também oferece aos seus leitores expressões típi-
cas do mundo jurídico juntamente com tais personagens.
Constata-se isso por meio dos títulos de certos capítulos da
obra Dom Casmurro: o capítulo III é intitulado “A denúncia”; o
capítulo XLI é denominado “A audiência secreta”; o capítulo
LVIII é chamado de “O tratado”; o capítulo CXIII é intitulado
“Embargos de terceiro” e o capítulo CXX é denominado “Os au-
tos”. No capítulo LXIV, chamado de “Uma ideia de um escrú-
pulo”, o narrador-personagem Bentinho utiliza a expressão “ju-
risdição” bem típica da área jurídica, como se pode perceber a
seguir:

Antes de concluir este capítulo, fui à janela indagar da noite


por que razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se
esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não

- 170 -
Literatura, memoria y cultura

continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava de-


liciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço
morria de silêncio. Como eu insistisse, declarou-me que os
sonhos já não pertencem à sua jurisdição. Quando eles mo-
ravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela tinha seu palá-
cio, e donde os fazia sair com suas caras de vária feição, dar-
me-ia explicações possíveis. (ASSIS, 2015, p. 113-114).

Nota-se na obra machadiana Dom Casmurro que o narra-


dor-personagem lê bastante, demonstrando que, para ser um bom
profissional na área do Direito, é preciso se debruçar em um ar-
cabouço de leituras. Bentinho reiteradamente recorre a citações
de autores da Literatura, como se pode ver no fragmento a seguir,
em que ele cita autores, tais como: José de Alencar e Álvares de
Azevedo, escritores do Romantismo brasileiro. Não obstante, a
primeira fase de Machado de Assis está enquadrada pelos teóri-
cos na referida escola literária e, somente mais tarde, é que o
Bruxo do Cosmo Velho começa a produzir obras de cunho rea-
lista:

Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Ca-


pitu e a passagem de um cavaleiro, um dândi, como então
dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, ré-
dea na mão esquerda, a direita à cinta, botas de verniz, figura
e postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. Tinham
passado outros, e ainda outros viriam atrás; todos iam às suas
namoradas. Era uso do tempo namorar a cavalo. Relê Alen-
car: ‘Porque um estudante (dizia um dos seus personagens
de teatro de 1858) não pode estar sem estas duas coisas, um
cavalo e uma namorada’. Relê Álvares de Azevedo. Uma das
suas poesias é destinada a contar (1851) que residiria em Ca-
tumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um cavalo
por três mil-réis... Três mil-réis! Tudo se perde na noite dos
tempos! (ASSIS, 2015, p. 127).

- 171 -
Literatura, memória e cultura

Além disso, faz-se salutar lembrar que a Literatura muitas


vezes funciona como o espelho da sociedade, ou seja, reflete os
dilemas que essa sociedade vive. Isso pode ser exemplificado
quando havia suspeitas quanto à paternidade de um filho. Na
época em que essa narrativa machadiana foi publicada não havia
exames de DNA para provar cientificamente que uma criança era,
de fato, filha de X e não de Y. Havia outros métodos mais obso-
letos para se tentar esclarecer situações como essa. Por exemplo,
o fato de uma criança muito se parecer fisicamente com X e não
com Y era um fator que pesava bastante ao se tentar elucidar tais
casos, mesmo sabendo que isso não é suficiente e apresenta uma
margem de erro considerável. Daí, a importância da medicina
moderna que hoje em dia elucidaria com muita facilidade casos
como o de Bentinho.
No tocante a esse aspecto, observa-se como essa dúvida
acerca da paternidade do Ezequiel atormentava o narrador-perso-
nagem no fragmento a seguir em que Bento oferece uma xícara
de café com veneno para o menino, mas, arrependendo-se, não
concretiza e ação e afirma desesperadamente que não é o pai da
criança:

– Já, papai; vou à missa com mamãe.


– Toma outra xícara, meia xícara só.
– E papai?
– Eu mando vir mais; anda, bebe!
Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que
quase a entornei, mas disposto a fazê-lo cair pela goela
abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, por-
que o café estava frio... Mas não sei que me senti que me fez
recuar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar
doidamente a cabeça do menino.
– Papai! Papai! – exclamava Ezequiel!
– Não, não, eu não sou teu pai! (ASSIS, 2015, p. 209-210).
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Literatura, memoria y cultura

Contudo, em virtude de dois fatores a serem listados a se-


guir, não se pode dizer que tudo o que se afirma aqui acerca da
narrativa machadiana em análise é verdade: primeiro, na esteira
da literatura há a presença da verossimilhança e, como dizia Car-
los Drummond de Andrade em um de seus poemas, há sempre
algo no caminho “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha
uma pedra no meio do caminho [...]” (ANDRADE, 2013, p. 36)
e, segundo, porque todo o romance Dom Casmurro é narrado em
primeira pessoa pelo narrador-personagem Bentinho, portanto, só
se tem a versão dos fatos na ótica dessa personagem e não se dá
a Capitu, em momento algum, a oportunidade de ela se defender
das acusações do advogado Bento. A todo momento o leitor é
levado a crer que Capitu traiu Bentinho, como se pode observar
no fragmento a seguir:

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma


grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a en-
trada repentina de Ezequiel, gritando: ‘Mamãe! mamãe! é
hora da missa!’, restituiu-me à consciência da realidade. Ca-
pitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de
Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela
fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força al-
guma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pe-
queno Ezequiel! De boca, porém, não confessou nada; repe-
tiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa
(ASSIS, 2015, p. 212).

Tem-se aqui uma obra machadiana para se trabalhar não


apenas no curso de Letras, mas também nos demais cursos, como
por exemplo, na área do Direito em que se pode debater, por
exemplo, a relevância do Princípio do Contraditório, pois quando
se cerceia o direito de uma das partes apresentar o contradito dos
fatos, pode-se levar ao cometimento de julgamentos com
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Literatura, memória e cultura

resultados injustos, como o julgamento que Bentinho fez da sua


esposa e célebre personagem da literatura brasileira e latino-ame-
ricana: Capitu.
Portanto, em Dom Casmurro, Direito e Literatura se fun-
dem, constituindo-se, assim, em um texto literário de destaque
principalmente para aqueles que desejam desenvolver um traba-
lho de cunho interdisciplinar.

Considerações finais

Ao longo de toda essa discussão, constatou-se, dentre ou-


tros pontos também importantes, que a Literatura não está apar-
tada da realidade da sua época e que, mesmo havendo alguns ele-
mentos fictícios inseridos dentro do trabalho artístico literário,
não se pode negar que, na maioria das vezes, ela (a Literatura)
traz em seu bojo elementos que remetem à realidade social e esse
é um dos argumentos que justificam os estudos jurídicos com
base em obras literárias, pois é imprescindível que os profissio-
nais do Direito interpretem fatos e leis com base no contexto his-
tórico da época de sua vigência.
A presente pesquisa reforça que a literatura apresenta aos
leitores, em sua grande parte, conflitos sociais, políticos, cultu-
rais, econômicos e etc. que ajudam qualquer operador do Direito
a refletir sobre tais conflitos, na tentativa de resolvê-los, de forma
fundamentada e justa, todas as lides trazidas pelas partes envol-
vidas.
Não raro a Literatura aborda questões jurídicas relevantes
para os cidadãos e se traduz num campo privilegiado para se ana-
lisar tais questões, pois essas indagações jurídicas trazidas nos
textos ficcionais já estão inseridas dentro de contextos sociais,

- 174 -
Literatura, memoria y cultura

evitando, assim, que o professor de Direito, por exemplo, recorra


a casos meramente hipotéticos e descontextualizados.
Evidencia-se também aqui a grande relevância da interdis-
ciplinaridade como agregadora de valares, pois quando duas ou
mais áreas do conhecimento se reúnem para construir o saber, to-
das elas saem ganhando.
Não obstante, é fato que a História é um insumo muito im-
portante para a elaboração e o entendimento do conhecimento li-
terário e jurídico. É notório que a Literatura também apresenta
pontos importantes para a compreensão de casos das ciências ju-
rídicas e vice-versa. Assim, não há dúvida de que a arte literária
ressignifica, em diversas situações, contextos e conflitos históri-
cos.
Sendo a história o laboratório do jurista, a Literatura, por
meio da verossimilhança, muitas vezes se aproxima da realidade
e revela grandes contribuições para o mundo jurídico, apresen-
tando contextos históricos e conflitos sociais inerentes a esse
mundo.
Desse modo, a Literatura conserva um manancial cheio de
dados e relatos históricos de um determinado tempo, identifi-
cando fatos passados que, muitas vezes, auxiliam o presente
e podem contribuir na construção do futuro.
Ademas, a questão básica da Literatura é ser um espaço
propício à criação, capaz de propor críticas e criar um cenário
adequado para levar maior compreensão e acessibilidade a temas
e a conteúdos de diversas áreas do saber.
Porém, deve-se tomar um certo cuidado nesse aspecto,
pois a arte literária, por mais que se aproxime da realidade, ela
não é a realidade e continuará sendo um produto de criação ar-
tística, não podendo, portanto, ser considerada uma prova

- 175 -
Literatura, memória e cultura

jurídica, mas apenas um laboratório de pesquisa para que o ju-


rista possa se enriquecer na construção de sua teia cognitiva.
A Literatura, principalmente a vertente engajada, dará a
esse profissional uma visão de mundo abrangente, aguçando cada
vez mais o seu senso crítico e alargando o seu poder de resolução
de conflitos.
A sociedade exige tanto do profissional da área das Letras
como do operador do Direito um olhar crítico para a realidade,
assim, estudos hermenêuticos aliados ao conhecimento oferecido
pela literatura darão a esses profissionais um embasamento para
bem interpretar o mundo que os cerca, pois a arte literária possi-
bilita aos seus leitores uma visão apurada sobre os elementos so-
ciais.
No tocante à intersecção entre as duas áreas aqui em dis-
cussão, é visível o envolvimento que elas possuem com a seara
social: O Direito, como regulador da sociedade, deve acompa-
nhar as mudanças sociais para adequar os seus dispositivos legais,
a fim de regular tais mudanças e a Literatura, atenta às transfor-
mações advindas do meio social, trabalha como que em metamor-
fose, renovando-se, tratando de casos e questões de maneira ino-
vadora, tentando também acompanhar a “roda viva” da vida,
como dizia Chico Buarque de Holanda.
Diante do exposto, em síntese, os resultados desta pesquisa
apontam, dentre outros aspectos, para a necessidade de se traba-
lhar Literatura versus Direito de forma interdisciplinar.

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- 178 -
Literatura, memoria y cultura

8. OS
FIOS DA MEMÓRIA RESSIGNIFI-
CANDO A INFÂNCIA NA RUA DOS CATA-
VENTOS
_________________________

Layane Rodrigues dos Santos


Margareth Torres de Alencar Costa
Israel Alves Correa Noletto

Introdução

Este estudo pretende, por intermédio de uma análise


textual e temática, averiguar as marcas da memória, principal-
mente da infância, desenhadas por Quintana em sua obra pri-
meira, visto que as recordações da infância configuram-se numa
temática recorrente em diversos autores de nossa literatura.
Mario1 Quintana, por meio de elementos que remetem à
infância, ressignifica, no leitor, essas recordações pueris. Perten-
cente a segunda geração modernista, o poeta gaúcho, é um im-
portante escritor no cenário cultural brasileiro, voltada para o co-
tidiano, a poesia quintaneana enternece pela simplicidade com
que o eu - lírico representa o mundo natural. Segundo Zilberman
(1992) “a preferência por seres despidos de objetivos e valores
imediatistas, de que se forma a sociedade humana, leva-o a per-
sistir no individualismo e no isolamento”. Por isso, Quintana
aprecia o mundo infantil em que predomina a inocência e o so-
nho.

1
O nome do poeta é grafado sem o acento gráfico, assim como no regis-
tro de nascimento do mesmo, conforme Fischer (2006).
- 179 -
Literatura, memória e cultura

Em A Rua dos cataventos, obra composta por 35 sone-


tos, forma literária escolhida, provocativamente, pelo poeta para
sua estreia na literatura, Quintana resgata no leitor, por meio de
seus sonetos recheados de temas e motivos que remetem à infân-
cia, as memórias de fatos ligados ao universo pueril.
Para a concretização do objetivo supracitado adotamos
como metodologia a investigação bibliográfica, que teve como
principais norteadores Bosi (2004), Fischer (2006), Halbwachs
(1989), Sant’Anna (1980), Smolka (2000), Yokozawa (2006),
Yates (2016) e Zilberman (1992).
Desta forma o presente trabalho rastreia as marcas da
memória infantil presentes em alguns dos sonetos da obra inau-
gural de Quintana, marcando o percurso literário do poeta gaú-
cho.

Memória: um reencontro com o tempo adormecido

A memória é uma temática recorrente em diversos au-


tores de nossa literatura, seja ela, velhas lembranças da infância,
dos amigos, dos amores ou da família, pois todos os fatos, mesmo
os menores acontecimentos ficam registrados em nosso espírito e
são aflorados pelos temas e motivos que encontramos no presente
e que nos fazem rememorar determinados incidentes do passado.
Mas esse passado só pode ser rememorado porque temos a capa-
cidade de recordar, de relembrar através da memória. O que se-
ria, então, a memória se não a sobrevivência do passado, como
diz Bergson (apud Bosi, 2004).
Mnemosyne, a memória deusa que detém o poder tanto
da revelação (alethéa) quanto do esquecimento (léthe), inspira-
dora das poesias, ínsita o dom da oratória, especialmente nos po-
etas, que buscam resgatar o acontecido no esquecimento e
- 180 -
Literatura, memoria y cultura

transformar o passado em presente. De acordo com Smolka


(2000) no período mitológico, como não existia a escrita, a tradi-
ção popular era transmitida oralmente permanecendo viva apenas
na memória de seu povo, através da palavra (en) cantada, a arte
da poesia.
Simônides (apud Smolka, 2000) fala-nos da memória
como um exercício para aprender, prática para aprender à retórica
e não somente memória como uma deusa, mas como arte, a Arte
da Memória, ou Mnemotécnica. Segundo ele a recordação requer
a lembrança e a criação de imagens além da organização delas
em locais da memória, porque esta necessita da visualização in-
tensa para manter-se latente.
Para tanto, Yates (2016), comenta a arte de rememorar,
dando-nos a conhecer dois princípios e métodos que a compõem:
existem dois tipos de memória, a natural, que é gravada em nos-
sas mentes e surge simultaneamente ao pensamento e a memória
artificial, que está mais ligada à técnica, de Simônides, pois é for-
talecida ou confirmada através do treino. Yates (2016) acredita
que a boa memória natural, assim como a fraca, pode ser melho-
rada pela arte (thecné), ou seja, pela técnica.
Platão (apud Smolka, 2000) refere-se à memória como
única e intransferível, diferente para cada ser e, de acordo com
ele, não são as técnicas que a fazem melhor ou pior, mas o ser
que a retém por excelência. Para Platão, o surgimento da escrita
traz a morte da memória viva, visto que com ela o povo deixará
de lado a oratória (memória viva), recorrendo à escrita sempre
que não recordar algo. Ele acredita na memória não somente
como recordação, mas como conhecimento e a escrita traz ao
povo o esquecimento da realidade, tornando-o assim prisioneiro
da mesmice. Para o filósofo a escrita destrói a memória viva,
visto que nem sempre o que está escrito é verdade, portanto a
- 181 -
Literatura, memória e cultura

escrita é fingimento e encanto. Assim, é diferente recordar na es-


sência e lembrar pela escrita.
Confrontando este pensamento, Aristóteles (apud
Smolka 2000) acredita que sem as impressões sensoriais não po-
demos obter conhecimento, pois é através destas impressões que
buscamos as reminiscências, invocando voluntariamente o pas-
sado. Assim, a memória, na concepção aristotélica, está direta-
mente ligada ao tempo, à imaginação e às sensações ou afeto.

[...] Toda memória, então, implica a passagem do tempo.


Portanto só as criaturas vivas que são conscientes do tempo
podem lembrar [...] É óbvio, então, que a memória pertence
àquela parte da alma à qual a imaginação também pertence.
[...] porque é óbvio que se deve considerar o afeto que é pro-
duzido na alma pela sensação, e naquela parte do corpo que
contém a alma (o afeto, o estado duradouro o qual chamamos
memória) como um tipo de figura/retrato; porque o estimulo
produzido imprime uma espécie de semelhança do per-
cepto.[...] (ARISTÓTELES apud SMOLKA 2000, p. 7-8.
Grifo do autor).

Corroborando o pensamento Aristotélico, Sant’Anna


(1980) afirma que é por meio dos sentidos que despertamos no
corpo-memória os muitos “eus” vividos e, assim, re-experimen-
tamos, através de cheiros, sabores, cores e sons, as experiências
vivenciadas no passado. Assim, o escritor supracitado define a
memória como a criadora, sinônimo de consciência, por meio da
qual o ser se desenvolve ao encontro de sua própria imagem. Por
outro lado, ele conceitua a memória como sendo aquela que rea-
tiva as imagens passadas, tornando possível ao indivíduo (re) sen-
tir antigas percepções, ou seja, a memória é a capacidade humana
de repetir, mas uma repetição

- 182 -
Literatura, memoria y cultura

ao nível da criatividade. Repetir segundo a etimologia do


verbo latino: petere – procurar, ir buscar de novo, procurar
uma vez mais, esforçar-se por alcançar de novo. Por isto se
define também memória como reconstrução e uma repetição
que acrescenta. (SANTÁNNA, 1980, p.206)

Essa repetição seria, para Bergson (apud Bosi, 2004) a


memória-hábito, que para ele é aquela apreendida pelo esforço da
atenção, pela repetição de gestos e/ou palavras, é aquela que se
transforma em costume por meio da propagação. Outra concep-
ção de memória estabelecida pelo teórico é a imagem-lembrança
que para ele é a recordação singular, que a consciência traz à tona
num momento único. Neste sentido a memória deixa de ser algo
mecânico e o seu aparecimento, através da memória, passa a ter
um caráter evocativo.
Para tanto, Bosi (2004) diz que a memória-hábito, refe-
rida por Bergson, está incorporada nas práticas cotidianas o que
a torna um só todo na percepção do presente. Enquanto a ima-
gem-lembrança é algo individual marcada cronologicamente e re-
fere-se a uma situação definida, o que não as torna indissociáveis,
visto que as recordações surgem através de uma rede de evoca-
ções espontâneas e distantes, interligadas automaticamente.
Já para Halbwachs (2006), a memória é estruturada por
diferentes pontos de referência que a inserem na memória da co-
letividade a qual pertencemos. Conforme ele, para que um fato
seja revivido em nossa lembrança podemos apoiar-nos apenas em
nossas recordações ou sobre as reminiscências de outros.
Nessa perspectiva, quando nos apoiamos também nas
reminiscências dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa
lembrança será maior, como se uma experiência já vivenciada
fosse recomeçada, agora não somente pela mesma pessoa, porém,
por várias. Entretanto, nem sempre a lembrança do outro condiz
- 183 -
Literatura, memória e cultura

com que nossa memória recorda, para tanto Halbwachs afirma


que

[...] Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não
basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário
ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas me-
mória e que haja baste pontos de contato entre uma e as ou-
tras para que a lembrança que nos recordam possa ser recons-
tituída sobre uma fundamento comum. (2006, p.34).

A memória individual existe sempre a partir de uma me-


mória coletiva, haja vista que a origem de várias idéias, reflexões,
sentimentos, paixões que atribuímos a nossa memória são, na ver-
dade, inspiradas pelo grupo. Para Halbwachs (2006, p. 26)

[...] nossas lembranças permanecem coletivas e elas nos são


lembradas pelos outros, mesmos que se trate de aconteci-
mentos dos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos
que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos
sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se
distinguam materialmente de nós: porque temos sempre co-
nosco e em nós uma quantidade de pessoas que se confun-
dem.

Desse modo, para Halbwachs, a memória, aparente-


mente, individual remete a um grupo, visto que o indivíduo car-
rega em si a recordação, mas está sempre interagindo com a so-
ciedade, seus grupos e instituições. É no contexto destas relações
que construímos nossas lembranças, pois a reminiscência indivi-
dual é construída na tessitura das memórias dos vários grupos
com que nos relacionamos.
Ela é influenciada pelas memórias daqueles que nos cer-
cam, de tal forma que, mesmo não estejamos em sua presença, o

- 184 -
Literatura, memoria y cultura

nosso lembrar e as formas como observamos aquilo que nos ro-


deia, constituem, a partir dessa mistura de experiências, dessa fu-
são, uma unidade que parece ser só nossa. Ou seja, a memória
coletiva surge quando nossas lembranças, mesmo sendo vividas
somente por nós, são vistas também pelos olhos de outrem, pois
outros homens compartilham conosco as mesmas lembranças.

A memória ressignificando a infância nA rua dos cataventos4

No ano de 1940, inspirado e incentivado por Érico Ve-


ríssimo e Augusto Meyer, dentre tantos outros amigos e escrito-
res que se tornaram seus leitores, Mario Quintana fez sua estreia
na literatura com uma surpreendente reunião de sonetos, chamada
A rua dos cataventos. De acordo com Yokozawa (2006), o livro
de estreia do poeta de Alegrete teria, pelo menos, dois motivos
para estar na contramão das correntes críticas e poéticas da época:
o primeiro, por tratar-se de uma obra composta por sonetos rima-
dos e mais ou menos metrificados; o segundo, por abordar temá-
ticas que confrontavam o pensamento da lírica modernista. O
poeta inicia a obra destacando as metáforas sugeridas pela reali-
dade externa, contemplada por ele da “janela aberta”

Escrevo diante da janela aberta.


Minha caneta é cor das venezianas:
Verde... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas


Mistura os tons...acerta...desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,

4
Todos os poemas analisados neste capítulo foram transcritos da edição
2008 da obra.
- 185 -
Literatura, memória e cultura

Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!


Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...


E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando! (p.19)

Este poema, conforme Fischer (2006), configura-se


como um reflexo do poeta em plena atividade, uma auto-referên-
cia meio irônica, que apresenta um poeta amalgamado à natureza,
substituindo as palavras pelos desenhos que o sol faz sobre a fo-
lha de papel: “Jogos da luz dançando na folhagem!” / “Do que eu
ia escrever até me esqueço...”/ “Pra que pensar? Também sou da
paisagem...”.
Todavia, após a alusão aos “jogos de luz dançando na
folhagem”, com que inicia o primeiro terceto, o eu lírico introjeta
as sensações, tornando o eu o verdadeiro pretexto da criação: “Pra
que pensar? Também sou da paisagem...” / ”Vago, solúvel no ar,
fico sonhando...” / “E me transmuto... irriso-me... estremeço...” /
“Nos leves dedos que me vão pintando!” (p.19).
Outro aspecto bastante recorrente na fortuna crítica dos
sonetos inaugurais diz respeito ao desconserto dos poemas com
as questões de cunho social. Aos críticos, incomodados com a
ausência da temática social em seus versos, bandeira do movi-
mento modernista, Quintana responde

Eu nada entendo da questão social


Eu faço parte dela simplesmente...
Eu sei apenas do meu próprio mal
Que não é bem o mal de toda gente.
- 186 -
Literatura, memoria y cultura

Nem é deste Planeta... Por sinal


Que mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,


Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,


É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperança... (p.23)

Nestes versos, o eu lírico canta apenas o próprio mal,


que também é o mal daqueles que se encontram afastados da vida
social: “os Loucos, os Mortos e as Crianças”. Para Yokozawa
(2006), este não entender da questão social anuncia a postura poé-
tica-política aderida por Quintana e a qual ele se manteve fiel até
as últimas publicações. NA rua dos cataventos, o poeta de Ale-
grete, percorre ruazinhas sossegadas, recorda a infância, pensa a
poesia, a morte, enfim, produz uma lírica de cunho marcadamente
individual e, inspirado pelas pequenas coisas, transforma em po-
esia, dentro dessa obra: a florzinha miosótis, esmagada pelo po-
eta, uma moedinha perdida no fundo do poço, a formiguinha que
atravessa a página em branco e, a cidadezinha que ficou para trás
com o avanço da modernidade, conforme os versos do soneto
XXII

Cidadezinha cheia de graça...


Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça...
Sua igrejinha de uma torre só!

- 187 -
Literatura, memória e cultura

Nuvens que venham, nuvens e asas


Não param nunca nem um segundo...
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!...

Eu que de longe venho perdido,


Sem pouso fixo ( a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!


Cidadezinha... Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar... (p.41)

Tocado profundamente pela música da simplicidade, o


poeta recorre, nos sonetos, às cantigas da infância. São elas que
o remetem à época de criança, tempo que o poeta não pôde vi-
venciar em plenitude. Impressionado pelas sensações mais ele-
mentares, o eu lírico universaliza, nas páginas de A rua dos cata-
ventos, a surpresa diante da vida e o medo da morte, como vemos
no soneto XIX

Minha morte nasceu quando eu nasci.


Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi.

Já não tem mais aquele jeito antigo


De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és a minha doce Prometida,


Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

- 188 -
Literatura, memoria y cultura

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...


Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes. (p. 37)

Por estes e outros motivos, os críticos da literatura bra-


sileira declaram ser este um dos melhores livros de todos os tem-
pos, pois, encontramos nele composições absolutamente univer-
sais, transmutadas em belíssimos poemas. O poeta contempla, na
obra inaugural, todos os elementos que compõem o universo hu-
mano, proporcionando, ao apreciador da literatura, uma fantás-
tica viagem ao mundo poético de Quintana. Neste mundo o so-
nho, a imaginação e as fantasias, adultas e infantis, encontram-se
envolvidas num jogo de imagens e ritmos que possibilitam a com-
preensão das reminiscências que povoam os versos.
Quintana demonstra, desde o título, que os sonetos tra-
tam da “sua rua”, aquela que ele observa da “janela aberta”, a
ruazinha dos pregões, dos ruídos, da multidão. Esta rua é a mesma
que traz a saudade dos amigos, da família e, especialmente, da
infância, como podemos ver no soneto VIII

Recordo ainda... E nada mais importa


Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança


Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada fora após segui... Mas, aí,


Embora idade e senso eu aparente,

- 189 -
Literatura, memória e cultura

Não vos iluda o velho que aqui vai:

Eu quero meus brinquedos novamente!


Sou um pobre menino acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...(p.26)

A infância, neste poema, é metaforizada pelo eu lírico


como dias de uma “luz tão mansa” e simbolizada ainda nos “brin-
quedos deixados à porta”, na época do natal. A passagem inevi-
tável do tempo é figurada pelo eu poético, neste mesmo soneto,
pelo “vento da Desesperança”, que o faz pendurar os brinquedos
na “galharia torta”, ou seja, a velhice.
Mas, inconformado com o transcurso do tempo e a
perda da infância, o eu poético declara querer os brinquedos de
volta. Isto elucida o que percebeu Yokozawa (2006), o artista não
está desafinado apenas com os valores burgueses que regem o
momento atual, mas com a contemporaneidade, pois, marcado
pela desesperança, o substitui pelo tempo saudoso e alegre da in-
fância. No mesmo soneto, o eu lírico, num desejo de regresso à
condição pueril, recorda os “brinquedos de criança”. Esta remi-
niscência seria o que Bérgson (apud BOSI, 2004) chama de ima-
gem-lembrança, recordação singular que a consciência traz à tona
num momento único.
Podemos, ainda, constatar a vontade de regredir à época
da infância no final do soneto, “Não vos iluda o velho que aqui
vai:/ Eu quero meus brinquedos novamente!/ Sou um pobre me-
nino... acreditai.../ Que envelheceu um dia de repente...” (p.26).
Nestes versos, o eu poético declara que sua aparência atual é ilu-
sória, o real é a criança que o habita e que nunca envelhecerá.
No soneto IX, o eu poético recorda a rua sossegada,
onde vivera a infância, lembrando-se de que este sossego somente

- 190 -
Literatura, memoria y cultura

era quebrado pelo barulho provocado pelas “cantigas de roda, as


canções de outrora e os pregões da madrugada”, que passavam
“cantando” pela rua a fora

É mesma ruazinha sossegada,


Com as velhas rondas e as canções de outrora...
E os meus lindos pregões da madrugada
Passam cantando ruazinha em fora!

Mas parece que a luz está cansada...


E, não sei como, tudo tem, agora,
Essa tonalidade amarelada
Dos cartazes que o tempo descolora...

Sim, desses cartazes ante os quais


Nós às vezes paramos, indecisos...
Mas para quê?... Se não adiantam mais!...

Pobres cartazes por aí a fora


Que inda anunciam: - ALEGRIA - RISOS
Depois do Circo já ter ido embora!...(p.27)

No soneto acima, o sujeito lírico depara-se com “a mesma


ruazinha sossegada”, aquela trazida da infância, porém, o espaço
da rua não traz consigo o reencontro com a felicidade perdida.
Isto fica claro quando o eu lírico simboliza, nos “cartazes amare-
lados” pelo transcurso do tempo, a saudade dos velhos dias, pois
demonstra tristeza por ter se tornado adulto, o que metaforiza no
verso: “Mas parece que a luz está cansada...”. Porém, rever os
cartazes o faz rememorar, ainda, a “ALEGRIA – RISO” experi-
mentados por ele, quando, durante a infância, visitava o circo.
Esta recordação, aflorada no eu lírico pelo espaço da rua,
pode ser definida como a memória coletiva de Halbwachs (2006),

- 191 -
Literatura, memória e cultura

pois, a rua é um lugar que carrega as reminiscências do grupo,


haja vista que mesmo sozinho o sujeito relembra os acontecimen-
tos vivenciados pelo grupo com quem interagia: “as velhas ron-
das e canções de outrora...”/“meus lindos pregões da madru-
gada”/“passam cantando ruazinha em fora!”.
Nos versos do soneto XI encontramos as recordações de
uma infância tristonha e isolada: “Eu era o Triste, o Doído, o Po-
brezinho”. Neste soneto o sujeito poético recorda os momentos
de solidão que passou acompanhado do livro “Só”, de Antonio
Nobre, a quem ele dedica o poema

Contigo fiz, ainda em menininho,


Todo o meu Curso d’Alma... E desde cedo
Aprendi a sofrer devagarinho,
A guardar meu amor como um segredo...

Nas minhas chagas vinhas pôr o dedo


E eu era o Triste, o Doido, o Pobrezinho!
Amava, à noite, as Luas de bruxedo,
Chamava o Pôr-do-Sol de Meu Padrinho...

Anto querido, esse teu livro “Só”


Encheu de luar minha infância triste!
E ninguém mais há de ficar tão só:

Sofrestes a nossa dor, como Jesus...


E nesta Costa d’África sugiste
Para ajudar-nos a levar a Cruz!... (p.29)

Nos versos do soneto supracitado, o sujeito poético sim-


boliza o crescimento como sendo um “Curso d’Alma”, decla-
rando o gosto pela leitura desde a infância. Neste soneto, o eu

- 192 -
Literatura, memoria y cultura

lírico diz que, a tristeza que sentia na época de criança era ame-
nizada pela leitura, especialmente das obras de Antonio Nobre, a
quem ele chama carinhosamente de: “Anto querido, esse teu livro
“Só”/“Encheu de luar a minha infância triste!”. Neste momento,
o sujeito poético rememora um fato particular, mas que surge, a
partir de um elemento coletivo: o livro, que o protegeu da solidão:
“E ninguém mais há de ficar só:”. Isto ocorre porque, conforme
Halbwachs (2006), a memória individual existe sempre a partir
de uma memória coletiva.
Ainda no mesmo soneto, o eu lírico confunde-se, senti-
mentalmente, com o sujeito do livro que lê: “Nas minhas chagas
vinhas pôr o dedo”. Neste verso percebemos a presença da me-
mória coletiva, pois, mesmo que se trate de um acontecimento
particular, a leitura de um livro, no qual apenas o eu poético está
envolvido, carrega consigo, conforme Halbwachs (2006, p.26),
“uma quantidade de pessoas que se confundem”.
Na Rua, o eu poético recorda ainda as canções de ninar
que acalentavam o “choro aflito” da criança colocando-a para
dormir. Estas recordações aparecem nítidas no soneto XII, no
qual o sujeito lírico deseja ter o coração, enegrecido pela passa-
gem do tempo, purificado por esta melodia de ninar

Tudo tão vago... Sei que havia um rio...


Um choro aflito... Alguém cantou, no entanto...
E o monótono embalo do acalanto
Pouco a pouco se extinguiu...

O Menino dormia... Mas o canto


Natural como as águas prosseguiu...
E ia purificando como um rio
Meu coração que enegrecera tanto...

- 193 -
Literatura, memória e cultura

E era a voz que eu ouvi em pequenino...


E era Maria, junto à correnteza,
Lavando as roupas de Jesus Menino...

Eras tu... que ao me ver neste abandono,


Daí do Céu cantavas com certeza
Para embalar inda uma vez meu sono!... (p.30)

Neste soneto, a canção de ninar traz de volta a recorda-


ção da infância, canção esta que prossegue mesmo depois do su-
jeito poético ter se tornado adulto: “O Menino dormira... Mas o
canto”/“Natural como as águas prosseguiu...”, purifica-lhe o co-
ração enegrecido, pelo passar do tempo, consolando-o do aban-
dono presente: “E ia purificando como um rio”/“Meu coração que
enegrecera tanto”/“Eras tu... que ao me ver neste abandono”.
Nestes versos, o eu lírico (re)experimenta, por meio da canção de
ninar, um fato vivido na infância, o que, para Sant’Anna (1980),
configura-se como memória possibilitadora de (re) sentir antigas
percepções humanas.
A partir do que discorremos, pudemos perceber que, nos
sonetos dA rua dos cataventos, a temática da lembrança da infân-
cia é uma constante, a partir da utilização, pelo eu lírico, de ele-
mentos que remetem o leitor a este universo. As recordações da
infância são evidenciadas, não de maneira explícita pelo sujeito
poético, mas por intermédio de temas e motivos que trazem,
àqueles que têm o privilegio de navegar pelas prazerosas páginas
da obra inaugural de Quintana, as mais singelas reminiscências
da época de criança. Que venha outros a sonhar em suas páginas.

- 194 -
Literatura, memoria y cultura

Considerações finais

A poesia legada por Quintana ao público brasileiro é


fruto das influências modernistas e do desejo de trazer, para a li-
teratura, uma linguagem compreensível. Assim, no intuito de al-
cançar esta simplicidade, Quintana promove, por intermédio de
temáticas e motivos, o resgate, no leitor, das recordações do mo-
mento mais ingênuo da vida humana: a infância. Voltados para o
cotidiano, os quintanares enternecem-nos pela naturalidade com
que o eu lírico nos mostra o mundo, particularmente, o infantil.
Neste sentido, o caminho percorrido por este estudo teve como
principal objetivo rastrear as memórias da infância, presentes nas
temáticas e motivos projetadas, pelo poeta gaúcho, nos sonetos
dA rua dos cataventos.
O estudo dos sonetos inaugurais de Quintana proporci-
onou-nos conhecer um pouco mais do encantador universo poé-
tico do menino de Alegrete, pois, diante de suas poesias, nós, lei-
tores, deparamo-nos não somente com a forma comum aos poe-
mas, mas, ainda, com as temáticas e motivos que se consagram
dentro dos versos quintanianos.
Apesar de inserido cronologicamente no Modernismo,
movimento que buscava retratar as angústias da sociedade brasi-
leira, Quintana preferiu transformar, em versos, o mundo por
meio de suas contemplações, cantando, em suas obras, o amor, a
vida, a criança, o passado, o presente, enfim, procurou eternizar,
com simplicidade, por meio da poesia, temas tão sublimes.
Assim, podemos dizer, com base nas análises dos versos
da Rua, que sendo possuidor de uma mágica simplicidade, Quin-
tana não deixou de apreciar, em seus versos, a natureza pueril,
fértil de harmonia e ingenuidade, pois, emprega nos sonetos ele-
mentos que fazem o leitor recordar o tempo da infância.
- 195 -
Literatura, memória e cultura

Desse modo, constatamos, nas apreciações dos versos


dA rua dos cataventos, que Quintana busca não somente reencon-
trar a infância perdida, mas mantê-la viva, por meio das reminis-
cências que traz desta fase da vida, vivaz, para sempre, no cora-
ção do sujeito poético, eternizada nos sonetos da obra inaugural
do poeta de Alegrete.
Enfim às páginas dA rua dos cataventos proporciona-
ram-nos uma fabulosa viagem pelas maravilhosas inspirações
poéticas quintanianas, revelando-nos o que há de mais encantador
na poesia. Mostrando ao longo desta viagem que não é o leitor
que descobre o poeta, mas o poeta que descobre o leitor e revela-
o a si mesmo.

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1986.
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Aberto, 1992. p. 61-74.

- 197 -
Literatura, memória e cultura

9. SUSPIRO
DE SOBREVIVÊNCIA: OS ESPA-
ÇOS MARGINAIS DA CIDADE NA OBRA
“MEIA-VIDA”, DE OTON LUSTOSA
____________________________
Ana Cristina Meneses de Sousa1

Introdução

A presente análise da obra Meia-Vida (1999), escrita pelo


piauiense Oton Lustosa, propõe destacar as representações lite-
rárias da cidade de Teresina, abordando algumas problemáticas
sociais que assolaram a cidade nas últimas décadas do século
XX, tais como drogas, violência, prostituição, migração, su-
bemprego, luta por participação política, aspectos sociais con-
servadores e outros, a obra traça um painel compreensivo dos
espaços marginais da capital. Meia-Vida é o romance de estreia
do literato Oton Lustosa, cujo foco aponta espaços e persona-
gens “marginais” teresinenses.
O termo marginal aqui empregado se refere a todos aque-
les ou a tudo aquilo que é colocado à margem da sociedade
pelo discurso disciplinador da cidade. Referindo-se às relações
entre História e Literatura, Nicolau Sevcenko destaca que,
compreender e analisar as referências literárias, possibilita
“pensar uma história dos desejos não consumados, dos possí-
veis não realizados, das idéias não consumidas” (2003, p. 30).

1
Professora Adjunto da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Mestre
em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Dou-
tora em História, na linha de pesquisa de Cultura e Memória pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco- UFPE. Tem interesse na área de História,
Cultura, Literatura e Memória.
- 198 -
Literatura, memoria y cultura

Além dessa consideração, acrescenta, ainda, outro fator estra-


nhamente perturbador, que seria a vinculação dos marginali-
zados na literatura, pois “eles formaram o fundo humano de
cujo abandono e prostração se alimentou a literatura” (2003,
p. 31). Essas discussões se realizam nas linhas de reflexão so-
bre História e Literatura, principalmente aquelas que contri-
buem para o debate sobre cidade e memória.
No primeiro tópico desta reflexão, será realizada uma
cartografia literária da obra, analisando nuances discursivas
possibilitadas pela leitura da mesma. Em seguida, destacare-
mos alguns painéis de Teresina presentes na obra de Oton Lus-
tosa, pois a cidade “é um objeto de múltiplos discursos e olha-
res, que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem
ou se contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros
ou importantes que os outros” (PESAVENTO, 2004, p. 9).

Lugares “marginais”: uma cartografia literaria

A obra “Meia-Vida”, escrita pelo jurista Oton Lustosa,1 es-


colhida para esta análise e discussão, serve, a princípio, como
fonte de informação sobre as múltiplas facetas de alguns espaços
marginais de Teresina, plasmados pelo olhar do literato ao dar-
lhe forma, conteúdo e pluralidade de sentidos. Dessa forma, esta-
belece com o leitor uma comunicação pela linguagem, que se de-
forma diante das múltiplas possibilidades de “leituras”, produ-
zindo uma imagem, uma representação do cotidiano teresinense
e de suas práticas. Essas são as nervuras que pretendemos captar,

1
Oton Mário José Lustosa Torres (Parnaguá-PI, 1957). É magistrado e
membro da Academia Piauiense de Letras (APL), além de outras entida-
des culturais.

- 199 -
Literatura, memória e cultura

mesmo sabendo das dificuldades existentes em limitar as inter-


pretações, extrapolá-las ou negligenciar fatos que seriam capitais
para o entendimento da obra.
É importante esclarecer que a obra literária em questão,
buscando não ser encarada apenas enquanto visualização do
“real”, reconstrução de “verdades”, cumpre uma função muito
mais simples e prazerosa ao permitir o contato com uma possível
perspectiva da cidade. Tal faceta representa as sensibilidades e
sociabilidades que apontam para sentidos, justapõem ideias, pos-
sibilitam metáforas e acessam tempos e práticas que só existem
enquanto reminiscência e projeção do autor diante da arte de nar-
rar e registrar. Segundo Pesavento:

os relatos literários nos colocam diante das cenas urbanas


que reconstituem uma possibilidade de existência do social,
expressando as forças em luta, os projetos realizados e as
propostas vencidas, aquilo que se concretizou e aquilo que
poderia ter sido, mas não ultrapassou o nível do projeto, do
sonho e do ‘desiderato’ (2002, p. 14).

Sendo assim, é possível entender a literatura como uma


possibilidade que se abre para o entendimento das múltiplas
ações dos sujeitos, que não podem ser pensados de forma singu-
lar, inflexível, mas como construtores de significações ao impri-
mir imagens e discursos diversos, realizados por diferentes olha-
res e lentes. Tais lentes nos permitem conhecer um dado aspecto
da realidade, garimpar elementos visíveis ou não, formular pro-
blematizações, conhecer nesgas do passado, interligando-as ao
presente em um tensionamento que se abre para rupturas e per-
manências. No ponto em que um “leitor comum” vê tramas e en-
redos, o historiador busca acessar os códigos que traduzem um
contexto circunstancial de determinada época; onde a busca pode
- 200 -
Literatura, memoria y cultura

recair na densidade ficcional de personagens, o historiador está


interessado nas ações, nas variações de identidades e emoções
que recuperam os tipos de certa sociedade ou época; onde a ên-
fase transita pela percepção de uma trajetória temporal, o histori-
ador mantém seu interesse na multiplicidade temporal, na percep-
ção de como os sujeitos interpretam e dão sentido ao tempo. E,
igualmente relevante, onde o interesse aponta para novidades,
modas, alterações de valores e conceitos, o historiador está inte-
ressado nas rupturas e permanências de uma época: os atos, ges-
tos e linguagens demonstram para o historiador as riquezas cul-
turais de um dado momento.
A obra “Meia-Vida” tem como eixo central as vivências
subterrâneas e áridas de uma variedade de tipos, inclusive os
anti-heróis, conforme observou o crítico literário Cunha e Silva
Filho em artigo no jornal Meio Norte (datado de 09 de julho de
2000), explicando que tal nomeação diz respeito àqueles que
vivem a esmo pela narrativa, em busca de sonhos, sempre a
“meio caminho” de darem certo, impedidos pelas limitações de
um cotidiano amorfo, sem perspectivas, dificultados pelas con-
dições miseráveis que lhes foram oferecidas.
Oton Lustosa constrói uma trama aos moldes dos roman-
ces regionalistas da década de 1930, onde sujeito e natureza se
comprimem em uma busca visceral por existência, imprimindo,
muitas vezes, um tom agressivo, naturalista e de poucas esca-
patórias diante de um sistema social e político castrador. No
entanto, ao invés de comungar com esse olhar, buscaremos per-
ceber os discursos que posicionam Teresina e sua população di-
ante desse quadro nostálgico e estarrecedor, mostrando as pos-
síveis fissuras existentes na narrativa lustosiana. Não buscamos
aqui plasmar uma ideia, mas permitir a extrapolação da lingua-
gem, já que esta, como nos aponta Italo Tronca (2002), é
- 201 -
Literatura, memória e cultura

delirante, no sentido que se abre para infinitos vieses de com-


preensão, deslocando para outros múltiplos sentidos.
Nesse contexto problemático, tentaremos analisar como
a cidade, através do ângulo do escritor, é pensada, imaginada e
posicionada nos idos da década de 1980, cumprindo diferentes
funções, que variam de acordo com a carga emocional de cada
personagem. Apesar do espaço urbano registrado pelo autor ser
o centro histórico e seu entorno, além dos ambientes marginais
situados nas proximidades dos cabarés da Rua Paissandu e do
Morro do Querosene, é importante que possamos observar tam-
bém os lugares imaginários, a cidade subterrânea e as resistên-
cias que perpassam uma ficção de contorno neo-realista1. Em-
bora o perfil dramático da obra apresente um quadro já estig-
matizado da sociedade nordestina, visamos perceber de que
modo o olhar de Oton Lustosa se debruça e cria uma face, uma
impressão, uma imagem, sobre os territórios escondidos e
amorfos, subtraídos na construção da cidade-conceito.
Diante dos cenários escolhidos pelo autor, o comércio do
Troca-Troca é, possivelmente, aquele de onde fluem as princi-
pais tramas da narração. Surgido aleatoriamente com o objetivo
de realizar vendas e trocas de objetos usados dos mais diferen-
tes tipos, o espaço de comércio foi transferido para Avenida
Maranhão, onde passou a funcionar embaixo de figueiras, sem
nenhum tipo de cobertura mais apropriada. Resistiu à tal situa-
ção até fevereiro de 1985, onde, durante o exercício do Prefeito

1
O Neo-realismo é uma corrente artística surgida no Ocidente nos
anos 1930. O programa neo- realista encontra-se ligado aos princípios
do Realismo, sujeito a uma perspectiva marxista. Na literatura, o neo-
realismo afirmou-se no início dos anos 1940, com uma abordagem
voltada à temática dos desfavorecidos e humildes.

- 202 -
Literatura, memoria y cultura

Freitas Neto, ocorreu a inauguração de uma estrutura de oito


abóbadas suspensas por um sistema de nove colunas, possibili-
tando uma paisagem mais moderna e prática para aquela forma
de comércio. Essa projeção arquitetônica tem garantido àquele
espaço um modo de repercussão na memória social, justamente
por ter sido amplamente utilizado em imagens poéticas, foto-
gráficas e publicitárias que lhe conferem significados.
Além desses significados, o comércio do Troca-Troca
atua como uma metáfora de vidas rarefeitas pela condição de
sobrevivência e poucos recursos. Espaço reservado, na narra-
tiva lustosiana, para os personagens moldados mais fidedigna-
mente em relação ao perfil psicológico e dramático. Como
exemplo, temos D. Mundica, mãe de Santino, protagonista cen-
tral, e outros personagens: o drogado Beição, a prostituta Eli-
zete, o vendedor Zezão e o vagabundo Belim.
O personagem Zezão encarna de forma apoteótica o su-
jeito que assimilou o discurso da moral e do trabalho. Dessa
forma, ele procurou definir suas estratégias frente às inúmeras
elaborações que o qualificam como marginal; rotulação que
existe diante de um imaginário tendente a localizar as funções
desempenhadas por “bons” e “maus”. Esse personagem serve
para mapear e denunciar casos que foram significativos na tra-
jetória do comércio informal em Teresina, mais precisamente
no mercado do Troca-Troca. Ressalta-se que a linha dividindo
ficção e realidade pode ser bem tênue, como podemos constatar
no trecho de uma entrevista de José Sales, ex- relojoeiro do
Troca-Troca, ao jornal “O Dia”:
[...] disse que trabalhava no Troca-Troca há mais de 5 anos,
trocava e vendia relógios e dava para ir sustentando a família.
Infelizmente, de vez em quando, a polícia chegava lá e dizia
que eles tinham um relógio roubado, mas isso faz parte dos

- 203 -
Literatura, memória e cultura

riscos dos negócios. Eles não compravam sabendo que era


roubado. Ninguém era burro para se meter num problema,
mas a polícia não acreditava e pensava que eles também eram
ladrões (O DIA, 16/06/83, p. 9).

Tais constatações não constituem novidade. A importância


em considerá-las refere-se à possibilidade de entendermos as re-
presentações que perpassam a cidade, como elas são elaboradas
e sentidas e, acima de tudo, como os mais diferentes sujeitos se
utilizam delas para elaborar outros códigos, resistindo e pas-
sando a “jogar” com as disciplinas, os valores, transformando e
desenhando outras realidades. Essa possibilidade existe sob os
contornos da cidade. Aparentemente, é uma forma astuciosa,
tendo em vista que demonstra as práticas cotidianas inventivas.
Desse modo, interessa-nos observar as “espertezas sutis e as tá-
ticas de resistência, através das quais o homem ordinário se
apropria do espaço, inverte objetos e códigos, usando-os à sua
maneira” (CERTEAU, 1997, p.273).
Uma outra imagem que perpassa o comércio do Troca-
Troca, atribuindo-lhe certa feição, diz respeito às narrações con-
cernentes aos pratos alimentares feitos e servidos por D. Mun-
dica, personagem que simboliza os aspectos maternais e a luta
para criar os filhos, sobrevivendo das vendas de caldos e quitu-
tes naquele espaço:
D. Mundica cuida em acender o fogareiro para requentar o
caldo que prepara em casa, à base de carne moída, corante,
urucum, cebola picada, tomate e pimenta-do-reino. Um
caldo reforçado pela manhã sobe a moral. Entre os feirantes
muitos são fregueses cativos da cozinheira. Adoram a iguaria
fervente: ovos quebrados dentro, pimentinha da boa, mala-
gueta assanhada...Uma golada de água fria por cima para

- 204 -
Literatura, memoria y cultura

refrescar. Pronto! Que café da manhã! (LUSTOSA,1999, p.


11).

Além dos saborosos caldos, faz parte da culinária da fei-


rante a feitura da panelada, prato regional vendido principal-
mente aos domingos, quando há maior movimentação:
Cinco quilos de bucho e tripas ali estão dentro de uma bacia
de alumínio. Logo ao cair da noite receberão tempero e muito
fogo. Pela manhã, no caldeirão já friinho, debaixo de uma
nata de gordura coalhada, serão panelada apetitosa, a ser ven-
dida em pratos de cinco mil para os feirantes e freqüentado-
res do Troca-troca. No balaio, além das vísceras, leva cebo-
las, tomates, pimentas-de-cheiro (LUSTOSA, 1999, p. 16).

Além dos caldos e da panelada, outras iguarias também são


apontadas na narrativa: pata de vaca, chambaril e carne-na-rola.
Toda essa dieta alimentar, além de demonstrar parte da culinária
servida no Troca-Troca, atribui-lhe significações ao definir uma
experiência degustativa e olfativa. Nesse caso, os relatos nos
permitem ir além do objeto do comércio, fazendo com que o
ambiente ganhe vida através dos pratos servidos por D. Mun-
dica. As vísceras e partes “menos nobres” do gado servidas na
alimentação dos comerciantes do Troca-Troca ilustram relações
culturais, tendo em vista que são possibilidades frente a uma di-
eta alimentar restritiva, devido às variações no preço dos alimen-
tos, circunstância que fez com que grande parte da população
utilizasse sobras e restos em uma conjugação lendária. Escolher,
combinar e preparar fazem parte de uma ação criadora, bus-
cando resistir frente às inúmeras restrições. Segundo Luce Giard
(1996), toda escolha da prática alimentar.

- 205 -
Literatura, memória e cultura

Em percurso realizado por Santino, personagem central da


ficção romanesca, que se inicia com sua saída do comércio do
Troca-Troca, passando pelo Parque da Bandeira, o adro da
Igreja de Nossa Senhora do Amparo e a praça Rio Branco, se-
guindo para o Liceu Piauiense, onde participaria de uma eleição
para o grêmio escolar, é possível realizar, através de imagens
subjetivadas por um mapa sentimental, uma espécie de “flâne-
rie”. Tudo isso juntando os fragmentos de narração com possí-
veis veias de explicação, posto que o olhar fisionomista do per-
sonagem-narrador propõe-nos uma perambulação imaginária.
Dessa forma, daremos início a nossa caminhada:

Dez horas... Santino tem de ir-se. Haverá de passar na


banca Oásis e de lá com Zé Chiquinho irão ao Liceu.[...]
Atravessa a praça Deodoro...Estudantes da rede pública,
fardados, aos casais, folgam na grama fresca. Namoram.
Gazeiam aula (LUSTOSA, 1999, p. 43).

O grupo de namorados visualizado por Santino demonstra


as rebeldias de uma geração a meio caminho entre as lutas políti-
cas e a efervescência dos mitos da música, do corpo bulímico e
anoréxico, anunciados nas revistas de moda, de cosméticos, entre
outros. Essa busca narcisista, ampliada pelo discurso da beleza e
do corpo perfeito, levou à reprodução de estereótipos tão comuns
no boom da “geração corpo saudável”, estimulada pela década de
1980 e reformulada no corpo cibernético e global da década de
1990.
Na sequência de imagens depuradas por Santino, pode-
mos perceber outras representações sociais:
Nas calçadas da igreja de Nossa Senhora do Amparo pros-
tra-se uma legião de pedintes: mulher de faces chupadas,
- 206 -
Literatura, memoria y cultura

extremamente pálidas, cabelos desgrenhados, nódoas de


sujeira pelo rosto, tem ao colo uma criança magérrima, pa-
rece desfalecer. A mão estendida: - Uma esmolinha, pelo
amor de Deus... É para a criança (LUSTOSA, 1999, p. 43).

Através do enfoque no personagem/narrador, o autor quer


registrar detidamente os aspectos “depreciativos” da figura do
pedinte. Trata-se de um recurso estilístico que busca utilizar a
linguagem para cristalizar uma cena, concedendo-lhe um caráter
de “realidade”. Nesse fragmento, as imagens se distanciam da-
quelas dos namorados deitados na grama. Agora o que está em
jogo é a elucidação de um fato tornado significativo em Tere-
sina, com o aumento considerável de pessoas que se dirigiam
para a capital piauiense em busca da conquista dos signos que
passaram a identificá-las: possibilidade de emprego, melhores
condições médicas e, acima de tudo, a oportunidade de conse-
guir uma casa própria. O desejo de residência é evidenciado pelo
aumento significativo de moradias populares construídas, vi-
sando a diminuição das “aberrações” sociais ou mesmo a proxi-
midade com o corpo sujo, fedido e inapto para o trabalho.
Ainda seguindo os “passos” de Santino pela cidade, e pro-
curando, em uma dimensão analítica, fazer uma flânerie1, vamos
ao encontro de outras imagens:
No centro da praça [Rio Branco] o cenário enche os olhos:
um camelô vende meizinhas milagrosas, entre elas uma po-
mada que cura reumatismos, artrite, erisipela, gangrena, pi-
cada de cobra venenosa e tira qualquer tipo de dor [...] Fala

1
O flâneur é um alegorista da cidade, que a percorre no sentido de deter
suas significações espaciais e temporais. Sabe farejar rastros, descobrir
correspondências, identificar criminosos através dos indícios mais invisí-
veis, pois é o detetive da cidade.

- 207 -
Literatura, memória e cultura

sem parar... Frases de efeito. De repente abre um caixote e


dali retira uma cobra, o réptil parece enfezado e enrola-se
como fumo. O mercador ralha-lhe; o bicho compreende, vai
estirando-se ...[...] Causa pavor nos curiosos. Recolhida a co-
bra ao caixote, encerrada a encenação macabra, o homem
passa a vender os seus produtos: recolhe dinheiro, passa tro-
cos, entrega os vidrinhos sem embrulho algum com a banha
milagrosa. (LUSTOSA, 1999, p. 43-44).

Essa situação de evidente fragilização econômica que as-


solou o Brasil e provocou uma onda fracionária significativa
na economia piauiense resultou em surtos de crises de abaste-
cimento alimentar, desemprego, falta de moradia, infraestru-
tura, mostrando-se painéis de uma dicotomia ampliada na dé-
cada de 1980.
[...] o Brasil já era um país de economia diversificada
e moderna, porém com instituições e tradições polí-
ticas e jurídicas antigas, o que fez com que apresen-
tasse não apenas uma das piores distribuições de
renda no mundo como também grandes desigualda-
des no acesso à Justiça e na justiça distributiva. Estas
últimas se revelam quando pessoas são sistematica-
mente excluídas dos serviços, benesses, garantias,
pensados em geral como direitos sociais de cidada-
nia, oferecidos ou assegurados pelo Estado, ou ainda
quando não conseguem exercer direitos civis ou hu-
manos, os chamados direitos formais das Constitui-
ções nacionais e demais leis escritas ou das declara-
ções dos direitos universais do homem (ZA-
LUAR;2000, p.275).

- 208 -
Literatura, memoria y cultura

O vendedor de “meizinhas milagrosas” subverte os códigos


de uma indústria farmacêutica e oferece, para aqueles que não
têm acesso a essa indústria, meios de curar seus males. Registro
de homem ordinário somente existe nas dobras de um discurso
que privilegia o progresso científico e sua produtividade, equa-
cionando timidamente uma dupla realidade, o contexto da dimi-
nuição e marginalização daqueles que vendiam remédios casei-
ros e a sua relação com o crescimento vertiginoso de uma indús-
tria farmacêutica, pois “os remédios com base nos produtos na-
turais, de origem vegetal ou animal – por exemplo, os xaropes,
os reguladores femininos, os fortificantes –, foram sendo subs-
tituídos pelos farmacoquímicos” (MELLO; NOVAIS, 1998, p.
572). Esse cenário levou a uma elevação da indústria de labora-
tórios estrangeiros no Brasil, pois o país abrigava a combinação
de duas realidades distintas:
[...] de um lado, as doenças do ‘progresso’, as cardiovascu-
lares, a hipertensão, o câncer, e outras doenças crônico-de-
generativas, as úlceras de estômago e as gastrites, o stress,
etc, de outro persistiram as ‘doenças do atraso’, antes de tudo
as infecciosas, decorrentes, em boa medida, da má alimenta-
ção, como por exemplo, a diarreia (Ibid., 1998, p. 573).

O itinerário realizado por Santino recupera também outra


imagem da cidade; imagem esta que se refere ao corpo-memó-
ria: “ao redor da banca Oásis, velhotes aposentados e outros ve-
zeiros da praça [Rio Branco] lêem manchetes dos jornais”
(LUSTOSA,1999, p. 44). Esse fragmento do autor chega a ser
apenas uma pincelada do olhar, mas traduz de forma enfática a
função sociabilizadora que essa praça desempenha para uma
gama de idosos, que para lá se dirigem com o intuito de tecer
longas conversas, discordando, xingando, defendendo e

- 209 -
Literatura, memória e cultura

apoiando políticos e iniciativas, fazendo circular comentários


sobre a economia, ações e problemas partidários e outros assun-
tos de caráter local ou não. Tais sujeitos são alvo das manchetes
pelas constantes desigualdades que os apontam, justamente por
estarem excluídos dos principais direitos indicativos de cidada-
nia.
Nesse sentido, a praça cria territórios ao tornar-se espaço
onde “minam” com o discurso de inativos, analisando politi-
camente os fatos cotidianos, fazendo grupos, discutindo as no-
tícias que, de embate com suas experiências, “explodem” em
fios, liberando sinais, linguagens, fazendo com que uma “po-
pulação analfabeta”, que vive e subsiste nesse microcosmo,
como sapateiros, mendigos, camelôs, também se aproprie des-
ses relatos, elaborando e reelaborando dizeres, pensamentos e
práticas. Dessa forma, “o vínculo com outra época, a consci-
ência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o
ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. Sua
vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, res-
sonância” (BOSI, 1994, p. 82).
O final do percurso de Santino é o colégio Liceu. Ele ca-
minha com destino às eleições do grêmio escolar, onde é can-
didato a presidente em uma das chapas:

Três lideranças despontam. A atual diretoria, encabeçada


pela presidenta Carlousa, candidata à reeleição, trabalha com
afinco. Cazuza, tipo grandão, marmanjo, há cinco anos cur-
sando o segundo grau, quer arrumar-se na política estudantil
[...] Santino é a terceira alternativa [...]. Em verdade, ainda
não havia saído em busca dos votos. Era preciso fazê-lo, ur-
gente (LUSTOSA, 1999, p. 44-45).

- 210 -
Literatura, memoria y cultura

Em um trajeto marcado por denúncias sociais, podemos


afirmar que a participação política estudantil, com grande efer-
vescência na década de 1980, foi uma das possíveis formas de
equilibrar e oportunizar meios mais democráticos e resistentes
de combate às situações injustas e desestabilizadoras, registra-
das pela lente sensível do personagem Santino. Apontamos que
a vitória de Santino, eleito para o cargo de presidente do Centro
Colegial dos Estudantes do Colégio do Liceu, resume de forma
apoteótica não só o percurso aos espaços, mas também a ideia
de uma cidade simbólica, que não está inscrita nos meandros de
um mapa oficial, mas encontra-se ritualizada e modificada pelos
passos e pela experiência do cotidiano. A cidade material, fabri-
cada pela perícia estética dos urbanistas e planejadores, cede,
frente às dobras, os becos, as ruas inférteis ancoradas nas ima-
gens que partem da descrição de Santino. Dessa forma:

a cidade, estrutura física que suporta referências e fornece


elementos para os símbolos e memórias coletivas, convive
em nosso imaginário com a cidade labiríntica e moldável das
vidas pessoais, onde recordações compõem memórias sem
lugar que fundam a cidade simbólica, diversa e semelhante
na forma como se vê nomeada (BRESCIANI, 1997, p. 13).

Os espaços marginais, como os antigos prostíbulos em de-


cadência na Rua Paissandu, também foram significados pelo
discurso literário lustosiano, bem como a descrição de seus usu-
ários e de suas dimensões também decadentes. No trecho a se-
guir, o autor descreve a sina que teve Elizete – irmã mais nova
de Santino, filha da feirante Mundica:
As filhas viraram raparigas. Descuidada, manchas pelo
corpo, cicatriz de caco de vidro no rosto, uma delas, a mais
- 211 -
Literatura, memória e cultura

nova, já é farrapo de mulher. Sobrevive da profissão de puta


nos cabarés da rua Paissandu, no centro da cidade. Prostíbu-
los em decadência, as lojas invadindo a área, até banco abriu
agências ali. Fregueses quase não há. Beberrões sem di-
nheiro, mendigos boêmios, é o que ainda resta (LUSTOSA,
1999, p. 132).

Pela narração do autor, podemos inferir que espaços e su-


jeitos sofrem múltiplas mutilações. Historicamente, a Rua Pais-
sandu simbolizou toda uma época áurea de lazer; era o principal
“point” das noites febris, “o prolongamento dos fins de pro-
grama, a continuação das farras iniciadas no Clube dos Diários,
no Jockey [...], o refúgio dos inibidos, introvertidos. A satisfação
das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da va-
riação, do diferente” (GARCIA, 1987, p.53).
No final do século XX, a antiga zona boêmia de Teresina
apresentava sinais de enfraquecimento, sufocada pelo cresci-
mento comercial que necessitava de uma outra vizinhança e não
aquela que existia, estigmatizada e em estado de decadência, li-
mitada pelo aparecimento de outras formas de lazer que a cidade
passava a proporcionar. Essa foi constantemente

invadida por estabelecimentos em uma clara justificativa e


legitimação do crescimento e progresso da cidade. Erguem-
se prédios de arquitetura arrojada, outros mais simples, com-
pondo um panorama arquitetônico ambíguo, onde o velho e
o novo opõem-se nas imagens que fixam a memória coletiva.
O espaço da prostituição [...] é submetido a uma nova ordem
com outra função social, ali caracterizada pela homogenei-
zação do comercio em expansão e, por seguinte, espaço de
valor imobiliário (SÁ FILHO, 1997, p. 7-8).

- 212 -
Literatura, memoria y cultura

É notório salientar que esses registros feitos pelo autor


pressupõem esquemas de representação de um “real”, e demons-
tram que as imagens dos “condenados sociais” são ancoradas de
maneira a justificarem a sua existência. Portanto, espaços e sujei-
tos vão sendo significados e ajudam na confecção de um imagi-
nário excludente. Na trama fictícia, outros enredos também são
desdobrados no sentido de anunciar a relação entre corpo e ci-
dade: eles denotam a relação entre viciado e espaços marginais,
possibilitando-nos entender alguns dilemas que sobrevieram dos
graves efeitos da violência na sociedade teresinense, nos idos da
década de 1980. Assinale-se que o personagem-chave que desem-
boca toda essa condição é Beição, filho de D. Mundica e irmão
de Santino e Elizete.

Painéis de Teresina na obra de Oton Lustosa

A imagem traçada pelo literato expõe uma questão peculiar


sobre a cidade legal e ilegal, pois esses contornos são invisíveis,
porém, palpáveis pelo discurso repressivo do aparato governa-
mental. Embora a coerção localize e puna aqueles que estão ins-
critos às margens da ilegalidade, não produz o cidadão; ao con-
trário, extirpa-o do “verdadeiro” viver na cidade, relegando-o à
criação de formas sub-reptícias de viver, como a formação de
grupos – as conhecidas “galeras” – ou mesmo de espaços parti-
culares e alternativos, onde os “pactos” silenciosos tornam-se
enigmas e formas de parceria contra o outro – os “otários”:

Beto Beição é levado à cela. Dividirá o espaço com mais dois


foras-da-lei: um é usuário de drogas, fora apanhado em fla-
grante soltando baforadas proibidas em plena praça Pedro II.
- 213 -
Literatura, memória e cultura

Resiste em apontar os cúmplices da traficância; o outro é um


larápio esperto, prefere agir na malandragem, aplicando con-
tos nos otários que são muitos por aí afora (LUSTOSA, 1999,
p. 32).

Torna-se visível nas considerações do autor a existência de


um equívoco que iguala o viciado ao traficante, como se um
fosse condição para outro, revelando ainda um preconceito ao
responsabilizamos o usuário pela expansão da droga. Salvo essa
confusão, o autor procura desenhar outro personagem que não
parte somente das classes populares, e cria em contraste uma fi-
gura viciada em drogas e bebidas alcoólicas: o jovem Julião
Amorim, filho do vereador Cassiano Amorim. Lustosa traça a
personalidade de Julião tendo como base as reminiscências do
pai durante uma plenária na Câmara dos Vereadores:

Loucura! Julião, do alto dos seus dezoito anos, já aprontou


bastante. Sequer o curso colegial conseguiu concluir. Fre-
qüenta a escola por freqüentar. Faz do local de estudo o palco
de suas investidas sedutoras [...] Homenzarrão barbeado, sa-
úde explodindo nos lábios vermelhos. Altivo, o jeito político
do seu pai. Aparências... As aparências enganam! (LUS-
TOSA, 1999, p. 105).

Podemos observar a representação de Beição e Julião como


“produtos” narrativos que demonstram a explosão do mercado
de consumo de drogas e o aumento da violência. Esses persona-
gens entregaram-se à revelia de qualquer “ordem” estabelecida
e operaram como fantasmagorias em meio aos seus objetos de
fetiche, pois a violência ronda a cidade-consumo, estabelecendo
com ela uma série de elos “macabros”, robotizando pessoas e
- 214 -
Literatura, memoria y cultura

injetando-lhes modismos, que, por sua vez, multiplicam-se. To-


davia, nem todos conseguem acompanhar o poder aquisitivo
para possuir tais modismos.
Os padrões de comportamento, apesar de serem vistos
como possibilidades de generalizações, de formação de uma so-
ciedade global, terminaram por desencadear a transformação
dos sujeitos em indivíduos egoístas, que vivem ao sabor dos “pe-
rigos” da cidade, através da invenção de múltiplas defesas. Um
exemplo disso é o uso de aparências em uma sociedade exigente
com relação ao consumo de uma série de novidades, que, em
pouco tempo, são modificadas por outras. Georg Simmel
(1971), referindo-se às relações entre cidade e modernidade,
propõe que a vida na urbe provoca o que denominou de atitude
blasé, resultado da experiência moderna que imprime à consci-
ência uma constante indiferença às distinções. Assim, um ver-
dadeiro sentido de mesmice invade o citadino, onde antes, sen-
sivelmente, havia fascínio e envolvimento por coisas e pessoas,
pois “estimula o sistema nervoso do indivíduo até seu mais alto
ponto de realização, de modo que atinge seu ápice” (Ibid., p.17).
Todavia, não eram somente as atitudes que se modifica-
vam: as formas de sociabilidade também eram alteradas, con-
forme as declarações do personagem Cassiano Amorim:
Saudades daqueles tempos em que acompanhava noivados a
esta capital! Casimira ringindo nas pernas e nos peitos, gra-
vata a desfraldar, lunetas marrom-escuras em riba do nariz!
[...] Apresentava os noivos ao juiz, pagava as despesas do
tabelião, assinava de testemunha e dizia duas palavras de ani-
mação: Viva os noivos! Regresso festivo, regado a conhaque
de alcatrão (LUSTOSA, 1999, p. 105).

Historicamente, a cidade-capital foi entendida como es-


paço de rebeldia, de possibilidades, de vivências que
- 215 -
Literatura, memória e cultura

alcançavam um ponto além daquelas estabelecidas pelo meio ru-


ral. Dessa forma, o urbano criou armadilhas que pressupunham
conhecimentos e audácias, tendo em vista que a variedade de
seus feitiços autorizava dispositivos simbólicos, criando esco-
lhas. Escolhas estas entre manter-se no recanto do conhecido ou
permitir-se outro. Porém, não um outro diferente, mas camu-
flado, perdido entre o conhecido e o dado a conhecer, apropri-
ando-se festivamente de novos lugares e possibilidades.
A ampliação dos cursos universitários, presente na descri-
ção do autor, é uma dessas “possibilidades” que passam a ser
visíveis enquanto investimento a ser realizado. Recurso ofere-
cido em um período de redemocratização das estruturas básicas
da sociedade, no sentido de ofertar oportunidades para o com-
bate do atraso econômico e social, consequências dos períodos
de delírio do “milagre econômico” e ditatorial.
A narrativa lustosiana traça a busca por capacitação, por
parte do delegado Padilha, como uma condição para ascender
aos cargos de chefe dos delegados e, finalmente, chegar a exer-
cer a função de juiz – demonstrando, acima de tudo, que as opor-
tunidades passavam a depender de uma maior baliza e refina-
mento em estudos de graduação e pós-graduação. No caso do
delegado Padilha, a necessidade de formação em um curso de
graduação em Direito devia-se às novas sensibilidades com re-
lação à violência e às formas de combatê-las:
Muitos anos de carreira policial. Vontade de trabalhar nunca
lhe faltou; enfrentando dificuldades, é verdade. Mas ven-
cendo-as, a cada dia. Responsabilidade enorme pesando so-
bre os ombros. Incontáveis crimes apurados, milhares de pri-
sões efetuadas. Injustiças, cometeu-as. De propósito, sim;
por ignorância dos fatos e da lei, também. [...] Certa vez sur-
rou um homem. Dói-lhe por dentro relembrar tão lastimável

- 216 -
Literatura, memoria y cultura

fato. Surrou com as próprias mãos. Relho, umbigo de boi. O


homem prostrado, de joelhos, mãos postas (LUSTOSA,
1999, p. 138).

A imagem desse fragmento literário aponta com muita sen-


sibilidade as torturas efetuadas no período da ditadura contra
aqueles que, de alguma forma, se colocaram contra o regime;
assim como a resistência que teimava em sobreviver camuflada
em uma militarização, que pranteava atos abusivos e violentos
contra a sociedade, principalmente contra aqueles marcados so-
cialmente em nome de uma disciplinarização:
Tinha de surrá-lo, era ladrão; escondia o produto dos vários
furtos e silenciava quanto aos receptadores. Lap! Embru-
lhado o homem, vermelhou, incontinenti, o calombo na costa
nua. Acovardado, ao rés-do-chão, tinha as calças encharca-
das de urina. Mais uma lapada: Lap! (LUSTOSA, 1999, p.
139).

O enunciado aprendido pelo delegado Padilha em seu


curso universitário – “confissão sob tortura é nula” - (LUS-
TOSA,1999, p.139) fez com que ele revisse sua postura pro-
fissional em nome dos “novos tempos” e da oportunidade de
ser aprovado no concurso para juiz de Direito. Porém, o per-
sonagem deixa transparecer que a mudança ainda está longe
de acontecer de forma efetiva, pois o longo tempo de militari-
zação e policiamento da sociedade brasileira causou irrefutá-
veis anomalias.
No capítulo denominado “Formatura”, há uma preocupa-
ção em traçar os aspectos subjetivos dos personagens, o que
torna esse texto literário rico e incomparavelmente mais pró-
ximo de um "real", fazendo com que o leitor, aos poucos, vá se
identificando com os personagens e sua carga emocional:
- 217 -
Literatura, memória e cultura

Pronto, é anunciado o seu nome. Levanta-se. Francisco Pe-


reira, o pai carroceiro, marcha ao encontro da filha. Forma-
se novamente o par. Este o grande momento. O coração do
velho carroceiro bate mais forte. Não se sabe se vai suportar
tamanha emoção. Era tudo o que queria na vida (LUS-
TOSA,1999, p. 112).

O personagem Francisco Carroceiro e sua filha Maria Ce-


leste subvertem a ordem dos outros personagens, como um oásis
em meio a um intricado enredo de vidas medianas. Revelam, de
forma extraordinária, através de uma forte carga emocional, as
resistências e microliberações, pois deixam visível o que os ou-
tros personagens esconderam: um mundo onde é possível a rea-
lização dos sonhos, mesmo vivendo-se em um cotidiano de sa-
crifícios:
Sobrevem-lhe a lembrança: a filha estudando, à noite, na
sala; ele no quarto da frente. Cismara, numa vigília massa-
crante. Apesar do corpo alquebrado, um dia inteiro de traba-
lho pesado, carregando e descarregando a carroça, o sono só
lhe chegara depois que Celeste apagava a luz e se ia deitar.
Pensando na filha: professora...vai ensinar em colégio do go-
verno...! [...] A meninada o respeitaria, onde quer que pas-
sasse com a sua carroça (LUSTOSA, 1999, p. 112).

Essas transformações são possíveis porque a cidade, para


além de sua materialidade exposta através do ferro e da arga-
massa, pulsa por meio dos sonhos, dos objetivos traçados, re-
alizados ou não; incita vivências, mesmo que essas sejam con-
traditórias e ambíguas. Mas, principalmente, enfatiza a inven-
tividade cultural, tendo em vista que a urbe é um caldeirão de
articulações culturais, fragmentada, plural, entendida como
uma projeção de pensamentos e discursos que se vão
- 218 -
Literatura, memoria y cultura

constituindo, significando e criando um imaginário urbano


que abrange a produção e circulação de imagens, sejam essas
visuais, mentais ou verbais. Essa noção de imaginário mantém
interfaces com a noção de representação; esta, aliás, esclare-
cida por Roger Chartier, o qual nos adverte que a História Cul-
tural tem "por principal objeto identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade so-
cial é construída, pensada, dada a ler" (1990, p.16-17).
A perspectiva literária lustosiana, além de valorizar e aju-
dar na construção de estereótipos, possibilita o entendimento
de vários signos que permitiram a leitura de uma das imagens
de Teresina, já que os enredos entrançados nesse romance
também apontam para uma forma de desenraizamento, posto
que se apresentam como uma forma de luta contra o tempo e
uma tentativa de ultrapassar o dualismo da interioridade e da
exterioridade. Na concepção de Walter Benjamin (1994), “so-
mente no romance ocorre uma reminiscência criadora, que
atinge seu objeto e o transforma [...], pois consegue separar o
sentido e a vida e, portanto, o essencial e o temporal” (p. 212).
Dessa forma, pontuamos que a obra “Meia-Vida” tam-
bém é um lugar, tanto por conter as territorialidades inventa-
das pelo autor como também por possibilitar leituras. Esse lu-
gar ficcioso existe como tensão, pois, ao tempo em que permite
excessos, imaginações, fugas, também funda uma cidade invi-
sível, articulada com a própria experiência de urbanita do au-
tor que, assim como os cronistas, percebe as modificações efe-
tuadas ao seu redor, buscando conter, paralisar o tempo e es-
paço em uma tentativa de captar um período e suas peculiari-
dades mais marginais, escondidas e amorfas. Isso se não fosse
por sua decisão em mostrá-las, enviesadas por uma narrativa
que contém doses da experiência do autor ou de outros, pois a
- 219 -
Literatura, memória e cultura

escrita de um romance significa “[...] levar o incomensurável


a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição
dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de
quem vive (BENJAMIN, 1994, p. 201).

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- 222 -
Literatura, memoria y cultura

10. A
MINHA HISTÓRIA É TALVEZ IGUAL A
TUA: MEMÓRIA, IDENTIDADE E DIÁSPORA
NAS CANÇÕES DE BELCHIOR
_________________________

Margareth Torres de Alencar Costa1


Lourenço Rodrigues Matos Junior2

Introdução

A arte, estando mergulhada no campo social e cultural das


produções humanas, possui um vasto conjunto de finalidades a
ela atribuídas, das quais se pode destacar desde a noção de ca-
tarse, como proposto por Aristóteles, até às relações de engaja-
mento social e de construção/representação de memórias e iden-
tidades. A Pintura, a escultura, a arquitetura, a literatura etc, ex-
põem, com suas construções, além as abstrações de seus criado-
res, que são capazes de impactar o público receptor, uma capaci-
dade particular que pode ser compreendida como chave para in-
terpretação de vivências pessoais e coletivas dos indivíduos.
Quando nos deparamos com uma tela pintada por Aldemir
Martins (1922-2006), uma imagem esculpida por Mestre Dezi-
nho (1916 – 2000), uma música composta por Moraes Moreira
(1947-2020), uma poesia escrita Patativa do Assaré (1909-2002)
ou um romance escrito por Ariano Suassuna (1927-2014), por
exemplo, experienciamos um conjunto de sensações que a nós
podem ser transmitidas a partir das obras e de seus significados

1
Universidade Estadual do Piauí (Uespi). E-mail: margazi-
nha2004@yahoo.com.br.
2
Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: l_juniorjf@hotmail.com.
- 223 -
Literatura, memória e cultura

e, ao mesmo tempo, partilhamos com a coletividade a constitui-


ção cultural e sociológica que gerou tal criação.
Uma imagem do santeiro Mestre Dezinho não é apenas a
materialização representação de uma forma humana através da
escultura, mas uma constituição social que, estando concretizada
na imagem esculpida pode representar um amplo conjunto de im-
pressões para cara indivíduo que entrar em contato com este. As-
sim, emergem dessa experiência não apenas o contato, mas as li-
gações religiosas, ideológicas e de produção indenitária e memo-
rialística, entre outras questões.
A música, por exemplo, como expressão artística dotada da
capacidade de anunciar por melodia e letra, revela em sua cons-
trução características que precisam ser levadas em consideração
em seus mais amplos aspectos e, por conseguinte, precisam ser
analisados dentro de contextos teóricos e metodológicos adequa-
dos. Tendo a letra como foco de nossa análise, observa-se a pos-
sibilidade de se encontrar o resplandecer do espírito artístico que
se manifesta através do que é anunciado, mas também se pode
encontrar um conjunto de possibilidades de interpretações/inqui-
etações pessoais e sociais que se expressam por meio da arte.
Nesse ponto faz-se importante ressaltar a polifonia possi-
bilitada pela construção artística. Os múltiplos significados pos-
síveis para a interpretação das artes, inclusive da arte literária ex-
posta através da poesia musicada. As sensações, os sentidos, os
significados podem ser distintos para os diversos sujeitos e em
diversas situações.
Para a investigação de tais questões, várias correntes lite-
rárias se estabeleceram com o passar dos anos, construindo inú-
meros conceitos sobre essa relação e apontando possibilidades de
pesquisa, no intuito de compreender de forma mais ampla ma-
neira como a literatura se estabelece no meio social, bem como
- 224 -
Literatura, memoria y cultura

esta se relaciona com as outras formas de arte. Sobre tais questões


Zappone e Zapponewicki (in BONNICCI e ZOLIN, 2005, p. 28)
apontam que

[...] parece senso comum que o texto literário seja plurissig-


nificativo, possibilitando várias leituras. Prova disso é o
grande número de correntes críticas contemporâneas, procu-
rando iluminar aspectos diferentes de um mesmo texto. É
claro que, novamente, essa proliferação de sentidos não equi-
vale a nenhum sentido. Cada leitura que se quer válida re-
corre à elementos dentro do texto e fora dele para comprovar
Seu ponto de vista, e as diversas correntes críticas, bem como
a teoria literária, provêem esses elementos. Outra forma de
percebermos as diversas possibilidades de leituras de um
texto literário é a forte relação entre a literatura e as outras
artes, como a pintura e o cinema, além da televisão e da mú-
sica.

Desta forma, tomemos as composições “Fotografia 3x4” e


“Apenas um rapaz latino-americano” do compositor e cantor
Antônio Carlos Gomes Moreira Belchior Fontenelle Fernandes
(1946-2017), ambas lançadas no ano de 1976, no álbum Alucina-
ção, como objetos de estudo para a compreensão de como a mú-
sica pode ser um instrumento para a compreensão das noções de
memória, identidade e diáspora, dentro de um contexto vivenci-
ado não apenar pelo poeta, como por parte de seus conterrâneos.
É preciso ressaltar que o estudo não gira em torno no as-
pecto da musicalidade, obviamente, e tampouco presente utilizar-
se da literatura como instrumento documental histórico, simples-
mente, afinal, a capacidade de “romper o verbo” que é algo pró-
prio da criação artística literária é o que amplia a sua beleza e a
marca como arma de múltiplas experiências. Ramos (2011, p. 97)
aponta que
- 225 -
Literatura, memória e cultura

Conceber a literatura como um lugar de memória, isto é,


como potência criadora de imagens capazes de modular de-
terminados aspectos da identidade coletiva, não significa re-
duzi-la à condição de mero documento histórico portador
desta memória, tampouco aderir à criação de um micro-
cosmo ficcional a leitura mecanicista de recortes da reali-
dade.

Destarte o presente texto tem como objetivo analisar as le-


tras destas canções verificando como se dão as construções e re-
flexões sobre como o fato de ser nordestino que buscou lançar-se
à própria sorte no contexto das zonas mais desenvolvidas do Bra-
sil, sem recursos para se sustentar de forma digna e vivenciando
as agruras dos preconceitos nessa região de exilio.

Alucinação: a voz do povo em um álbum

Já conhecido nos circuitos musicais do nordeste, Belchior


tornou-se figura nacional quando, em 1971,vanceu o IV Festival
Universitário de MPB, no Rio de Janeiro. Fato ocorrido pouco
tempo após a sua migração do estado do Ceará, onde estudou fi-
losofia, latim, italiano e canto, além de ter vivenciado um experi-
ência religiosa e estudado medicina em Fortaleza, capital do es-
tado. (CAVIOLA, 2019).
Nascido em Sobral em 26 de Outubro de 1946, filho de um
respeitado juiz e delegado da região e de uma devota dona de
casa, o cantor, compositor, músico, artista plástico e professor
marcou, através de suas obras, as vivências de todo o país, fa-
zendo parte do grupo conhecido como “Povo do Ceará”, onde,
junto com Fagner, Amelinha, Ednardo e outros artistas modifica-
ram o cenário musical do Brasil e seguem até os dias atuais sendo
- 226 -
Literatura, memoria y cultura

reconhecidas figuras que modificaram a produção musical no


Brasil.
No ano de 1976, morando na conhecida Cidade Maravi-
lhosa, o autor lançou o disco alucinação, o mais famoso álbum
de sua trajetória artística e, ao mesmo tempo, o que mais apre-
senta reflexos da vivência tida pelo cantor até então. Foram 10
músicas gravadas e vendidas em disco de vinil onde no Lado A
pode-se escutar: “Apenas um Rapaz Latino-Americano", “Velha
Roupa Colorida", “Como Nossos Pais”, “Sujeito de Sorte” e
“Como o Diabo Gosta”, e do Labo B do disco se podem encontrar
“Alucinação”, “Não Leve Flores”, “Não Leve Flores”, “Fotogra-
fia 3x4” e “Antes do Fim”.
Certamente esta não é uma obra que canta a satisfação com
a situação nacional ou com os múltiplos aspectos da vida de Bel-
chior. O eu poético que se expressa nas canções retrata, na ver-
dade as inconformidades sobre a vida, sobre as frustrações de um
artista que precisou trabalhar como ajudante de pedreiro e que se
via de mãos atadas com a falta de mudanças políticas no país e
como a dependência religiosa das pessoas na tomada de decisões
simples. (ROSSETTI; CRISTINA, 2017).
Ao lançar um olhar atento ás músicas de Belchior percebe-
se um retrato de suas vivências dentro de um contexto conturbado
e repleto de cerceamentos, sobretudo para sujeitos marcados por
estereótipos negativos, como foi a realidade do autor ao chegar
ao sudeste, onde enfrentou uma série de dificuldades por sua con-
dição de pobre e migrante. Aspectos que podem ser vistos com
facilidade na sua produção.
Em Alucinação, a música que dá nome ao álbum, por
exemplo, o autor escreve:
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais

- 227 -
Literatura, memória e cultura

Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro


Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo an-
dar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego

Nota-se nesse trecho a síntese da inquietude do espírito do


autor frente e todas as vivências experimentadas e percebe-se ai
mesmo tempo que há uma transmutação para a poesia da própria
experiência do autor na cidade grande. Vivências que o assom-
braram de forma muito complexa. Enquanto muitos outros artis-
tas preferiam cantar as belezas das cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo, Belchior canta sobre

São Paulo violento, corre o rio que me engana...


Copacabana, zona norte
e os cabarés da Lapa onde eu morei.

O olhar menos idealizado da realidade é uma marca da


composição do artista que, caracterizando as pessoas que preci-
savam ir pra os grandes centros do Brasil, reflete sobre os impac-
tos dessa mudança através da arte. E, no contexto de contratação
de Belchior pela gravadora PolyGran e da escolha das músicas
para compor o álbum, a figura do nordestino e do ser inconfor-
mado foram levados em consideração para a produção do disco.
Foram também colocados em questão a singularidade da voz e da
forma de cantar do artista, este surgiu como uma grande aposta
que, apesar de toda a possibilidade de não ter êxito, conseguiu
atingir o grande público:
Selecionamos um repertório bastante forte musicalmente.
Contratei alguns músicos de primeira linha e ensaiamos

- 228 -
Literatura, memoria y cultura

exaustivamente tardes a fio. Quando tudo estava perfeito, fo-


mos para o estúdio e gravamos o disco, que se chamava Alu-
cinação, tendo como carro-chefe a música Apenas um Rapaz
Latino Americano e A Palo Seco. Em poucos dias, uma voz
estranha, rouca e anasalada, para qual muitos torceram o na-
riz, tornava-se a marca do artista do momento. O refrão so-
ava nas rádios e eu me sentia super orgulhoso de escutar Bel-
chior cantar, como se fosse uma resposta a quem não acredi-
tava em seu êxito (MAZZOLA, 2007, p.89, apud ROS-
SETTI; CRISTINA, 2017 p. 2).

E o próprio autor posicionou-se no sentido de afirmar a


sua música como pertencente a uma corrente buscava demonstrar
a insatisfação com os acontecimentos e a realidade social e polí-
tica do Brasil nos anos que sucederam o Golpe Militar de 1964.
Para ele, assim como para um conjunto importante de artistas
desse período, a atividade artística precisava ser engajada no sen-
tido de ir contra o sistema e demonstrar a realidade social como
ela realmente se encontrava, não entrando em um sistema de con-
formação ou silenciamento assim como o governo desejava que
ocorresse.
Em entrevista à revista Pasquim seis anos após o lança-
mento de Alucinação, o artista explicou como se dava a produção
no período tratado:

A minha geração toda ficou ocupada e preocupada com a


questão do sonho. Mudar as coisas, mudar o mundo. Os re-
médios eventuais na questão da mudança do mundo são sem-
pre amargos. Não é que minha música tenha essa qualidade
explicita de música de protesto. Minha música era mais de
processo. (...) Eu sempre pensei em fazer música sobre a
questão do desconcerto do mundo, não era exatamente uma
música contra, pura e simplesmente, as coisas que via. E no

- 229 -
Literatura, memória e cultura

meio disso, em uma expressão legitima de cidadão comum


de não poder estar conformado com o mundo que vê. (VO-
ZES DO NORDESTE, 2007 apud ROSSETTI; CRISTINA,
2017 p. 2)

A fala de Belchior nos encaminha para uma série de refle-


xões sobre o seu processo produtivo, sobre a sua visão de mundo,
sobre a sua percepção da função da arte musical e sobre as me-
mórias e identidades criadas no período em que viveu. O primeiro
dela é o fato de que a ação de pensar na realidade e na necessidade
de mudar o mundo não era uma preocupação exclusiva dele.
Como próprio coloca, muitos de sua geração carregavam consigo
a preocupação com a mudança do que estava acontecendo.
O segundo ponto está na visão insatisfeita que o autor traz.
O amargor dos “remédios” a serem ministrados para a mudança
social forjam-se na metáfora do descontentamento apresentado
nas suas composições. As músicas do álbum não apresentam um
protesto explícito, como o próprio autor afirma, mas, ao mesmo
tempo, elas são tão engajadas em mostrar a crueldade das socia-
bilidades e a dureza das instituições para com os cidadão que aca-
bam entrando na dinâmica de uma protesto camuflado, que era
necessário para o período, tendo em vista o rigor da censura às
quais eram submetidas as músicas no período do Regime Militar.
O terceiro ponto é o fato de Belchior defender a ideia de
que cada cidadão comum pode expressar o descontentamento
com o mundo no qual está inserido, seja por meio da arte ou por
meio da ação comum. O descontentamento aparece na fala do au-
tor como uma ação constante, comum e um direito de todas as
pessoas.
No sentido de contextualizar tal visão, podemos contextu-
alizar esse posicionamento do autor notando que mesmo hoje,

- 230 -
Literatura, memoria y cultura

enfrentando uma pandemia pelo Covid-19, mudanças bruscas de


todo lado e em todos os aspecos da vida privada e socio-política
do país, os brasileiros, sofridos, carregando o país nas costas e
voltando para casa no final do dia, se reinventando como entre-
gador, motorista de aplicativo e vendedor de qualquer coisa a fim
de apenas manter-se vivo, as possibilidades de enfrentamento
ainda se dá por meio da arte em todos os seus aspectos mais co-
muns como o grafite, as músicas, os memes entre as formas mais
comuns de negativa do silenciamento.
Nesse sentido ele alinha o seu pensamento a uma das prin-
cipais questões tratadas nesse texto que é o fato de que a escrita
do Belchior se encontrar no contexto da externalização de memó-
rias e identidades dele próprio e de todo um conjunto social que
se sentiu atingido por vivências semelhantes à dele.
Recordamos, nesse ponto, que alguns anos antes do lança-
mento do álbum aqui analisado, o cearense viajou para o sudeste
pela necessidade de crescimento. Nesse contexto da escrita de
Belchior, são indissociáveis as noções de identidade e memória
dentro das agruras do contexto de diáspora. O jovem artista deci-
diu lançar-se à busca de seu próprio caminho longe do convívio
de seus próximos, indo para a região sudeste do Brasil, sem re-
cursos e tendo que enfrentar uma série de pressões em nível social
e até mesmo institucional.
Vivência essa que não é algo singular, tendo em vista que,
por conta das questões econômicas e sociais, a migração de indi-
víduos das regiões Norte e Nordeste do Brasil para outras regiões,
vem sendo uma questão presente até os dias atuais. Desta forma,
consideramos a migração do autor, assim como dos demais sujei-
tos que precisaram se afastar de sua cultura autóctone para viver
em outra região, como uma ação constituinte de um movimento
diaspórico, haja vista que está se dá efetivamente de maneira
- 231 -
Literatura, memória e cultura

forçada, pela impossibilidade de uma vida mais digna na terra em


que nasceram.
A voz do “rapaz latino-americano”, desta maneira, se pre-
senta exatamente como prediz no conteúdo da música que carrega
o nome que marca a sua identidade: a voz de muitas pessoas que
mão acreditam que tudo é perfeito, tendo a dureza daquilo que
vivem. O autor usa da ação literária para dar voz a um grupo si-
lenciado em suas reivindicações em um contexto social de unifi-
cação do discurso, no qual se considerava tão somente o que as
elites produziam e desconsiderando a voz da subalternidade.
(SPIVAK, 2010).

Belchior: memória e identidade de um povo descontente

Belchior estabeleceu a reverberação de um sentimento co-


mum da população brasileira, de forma especial dos migrantes do
Norte que partiam para o Sul levando, ao mesmo tempo, a espe-
rança em um recomeço e a angústia do impacto da mudança for-
çada para uma terra que nem sempre lhes é acolhedora.
O fluxo migratório entre as regiões brasileiras sempre foi
algo muito intenso. Porém, por conta de uma série de questões
políticas e sociais (principalmente pela desigualdade extrema
existente entre as regiões do país), o século XX presenciou um
aumento significativo nesse movimento de êxodo inter-regional,
tendo o ápice desse processo nas décadas de 1970, 1980 e 1990,
para aquele século, tendência que seguiu para o século XIX.
Ojima e Fusco (2015) demonstram como o fluxo de pessoas do
norte e nordeste se destacam durante as últimas década do perí-
odo.

- 232 -
Literatura, memoria y cultura

(FONTE: in OJIMA; FUSCO, 2015, p. 15).


É fácil compreender o quanto é complexa a realidade das
pessoas exiladas em seu próprio país, afastadas de seus costumes
e tradições, vivendo sob condições políticas e geográficas dife-
rentes das de seu lugar de nascimento e distante da presença de
familiares e amigos. Essa realidade também se torna presente na
letra das músicas do autor. Observemos, a exemplo, os versos ini-
ciais das músicas Apenas um rapaz latino-americano e Fotogra-
fia 3x4, respectivamente, para percebermos como se estabelece
essa relação explicita de identidade do exilado na arte do mesmo:

Eu sou apenas um rapaz latino-americano


Sem dinheiro no banco sem parentes importantes
E vindo do interior
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana... nana

Faz-se importante ressaltar que, no contexto das músicas


de Belchior, e da própria vivência do conjunto social que ele re-
presenta por meio destas, o exílio descrito não está no contexto

- 233 -
Literatura, memória e cultura

da saída do país por perseguições políticas, como se costuma as-


sociar a esse conceito quando se trata do período de exceção que
foi a Ditadura. O conceito de exílio que traçamos aqui é o da saída
forçada da sua região pela necessidade de conseguir conquistar
uma vida melhor ou mesmo para não morrer de fome. Como ex-
plica Cavalcanti (2002), o movimento de migrar, e outros movi-
mentos derivados deste, como o de “ir e vir” para o Nordeste se
apresenta como uma arma para fugir da pobreza e que vem sendo
usada há décadas pelos indivíduos dessa e de outras regiões.
A figura do jovem sem recursos e sem parentes que o aju-
dem na nova realidade e que desembarca na cidade grande que
fica perplexo com a diferença das sociabilidades entre a terra em
que ele cresceu, surge como início de uma experiência repleta de
esperança e insegurança ao mesmo tempo, ou seja, a figura do
migrante exilado em uma região desconhecida, do nortista per-
dido no sul, é o centro da reflexão poética.
Desta forma, o eu poético que nos fala por meio da poesia
de Belchior apresenta-se como uma voz que exprime as experi-
ências coletivas através de sua própria experiência, em uma dinâ-
mica de publicação da memória coletiva, marcada pela memória
individual com as possibilidades lacunares e de diferenciação que
esta segunda pode ter (HALBWHACHS, 1990). As músicas aqui
examinadas, além de outras tantas, são, sobretudo, uma exposi-
ção desse conjunto memorialístico, e o escritor cearense buscou
deixar bem claro em sua proposição poética essa relação. O com-
positor, durante o processo criativo, já exprime a ideia da cons-
trução de uma narrativa de uma memória que não é apenas sua:

A minha história é... Talvez


É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte
Que no sul viveu na rua

- 234 -
Literatura, memoria y cultura

E que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo


E que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
E que ficou apaixonado e violento como, como você
Eu sou como você. Eu sou como você. Eu sou como você
Que me ouve agora. Eu sou como você. Como você.

Ao expressar a aproximação da sua própria vivência com


as de todos os jovens que saíram exilados do norte para viver em
situação precária no sul, ele traça um discurso coletividade, de
representação de um status comum, o que agrega para ecoem as
ideias de identidade e diferença por ele apresentadas.
Belchior, enquanto músico e poeta exerce em seu labor ar-
tístico função semelhante à atribuição mais antiga relegada aos
poetas que é o de ser guardião da Mnemosine, deusa antiga da
memória. Assim o poeta se posiciona como alguém capaz de usar
de sua arte para seguir disseminando e mantendo verdades sobre
as vivências (LE GOFF, 1997). Mas, diferentemente da ideia
grega, o autor não se apresenta como alguém como o desejo de
narrar as glórias dos grandes heróis, o que o cearense apresente
se aproxima mais da dor e desencanto dos cidadãos comuns.
Observemos outro conjunto de versos do autor nas músicas
aqui analisadas e que apresentam a ralação direta entre a identi-
dade e a memória das experiências dos indivíduos que vivencia-
ram o exílio em moldes semelhantes a Belchior:

Em cada esquina que eu passava


Um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois
Sorria, examinando o três-por-quatro da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.
Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade,
Disso Newton já sabia! Cai no sul grande cidade

- 235 -
Literatura, memória e cultura

Nesse trecho há pelo menos duas questões importantes para


serem abordadas, no contexto da análise à qual nos dedicamos
aqui. A primeira questão está na descrição do contato do sujeito
exilado com as instituições oficiais. Tendo em vista o contexto da
modernidade, se espera, pelo menos em nível teórico, que os
agentes representantes do estado sejam asseguradores de isono-
mia no tratamento dos cidadãos, ao mesmo passo em que se sabe
que, na concretização desse direito, outras realidades acabam se
efetivando, tendo em vista que os preconceitos perpassam inclu-
sive as ações oficiais, assim como na imagem proposta pelo eu
poético. E os exilados passam por isso, tendo em vista que esses
representam, de alguma forma, uma ameaça à ordem social esta-
belecida.
Essas relações de segregação acabam gerando traumas, que
são expressos pelo segundo ponto que pode ser observado nesse
trecho que é a estranheza, o medo ou até aversão à vida nessa
nova realidade. Nasce assim um discurso de saudades da terra
natal. Seligmann-Silva (2008) defende que os traumas vivencia-
dos pelos sujeitos encontram na imaginação a possibilidade de
tornar-se narrável tendo em vista a própria dureza da experiência
vivida. E, compreendendo a constituição poética que espaço para
a expressão de trauma do exílio, Belchior conseguiu transmitir
isso de maneira concreta.

A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia


E pela dor eu descobri o poder da alegria
E a certeza de que tenho coisas novas
Coisas novas pra dizer.

O autor expressa por meio da arte que esta é uma espécie


de válvula de escape para que se possam falar coisas que o

- 236 -
Literatura, memoria y cultura

angustiam, mesmo tendo a certeza de que, tais não são suficientes


para falar que tudo que carrega, ou de tudo que viveu:

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve


Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém

Mas não se preocupe meu amigo


Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior

Fez-se ainda importante lembrar que o período e lugar para


onde se deu a mudança de Belchior: 1972, para a cidade de São
Paulo. Era o auge do regime militar brasileiro. Período em que
havia uma forte corrente de modelação dos costumes e compor-
tamento, onde qualquer figura que apresentasse possível desvio
de comportamento era visto como um perigo em potencial para a
sociedade.
Os sujeitos que se opunham de alguma maneira ao sistema,
os subversivos, eram um medo para o governo, sobretudo os que
estavam ligados ao meio artístico, já que esses tinha a possibili-
dade de influenciar a sociedade a não pensar e agir de acordo com
o desejo do governo. Estando nessa realidade, Belchior apresenta
a provocação ao sistema ao cantar: “mas sei que tudo é permitido,
aliás, eu queria dizer que tudo é permitido”. O perigo não era
apenas latente, mas uma realidade que poderia levar à duras reta-
liações, tais como censura, prisão, torturas e expulsão do país,
como ocorreu com outros artista. O cearense sabia do perigo, e
- 237 -
Literatura, memória e cultura

em outros trechos da música Rapaz Latino Americano que marca


a memória dessa perseguição e a identidade de resistência, ele
exprime:
Mas, se depois de cantar, você ainda quiser me atirar
Mate-me logo, à tarde, às três
Que à noite eu tenho um compromisso e não posso faltar
Por causa de vocês.

Sobre a identidade de resistência aqui apresentada como


presente na escrita de Belchior, Castells (1999, p. 24) afirma que
esta é
criada por atores que se encontram em posições/condições
desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da domina-
ção, construindo, assim trincheiras de resistência e sobrevi-
vência com base em princípios diferentes dos que permitem
as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últi-
mos [...]

Nessa dinâmica de resistência o autor ainda estabelece um


diálogo crítico com as composições de outro grande autor da
MPB brasileira: Caetano Veloso. A referência feita na música Ra-
paz latino Americano, uma de forma indireta: “Mas trago de ca-
beça uma canção do rádio / Em que um antigo compositor baiano
/ me dizia ‘Tudo é divino, tudo é maravilhoso.” Esta situação re-
mete á intertextualidade porque o texto é o lugar de encontro en-
tre enunciador e leitor/ouvinte onde ambos cooperam para a cons-
trução dos sentidos. Tais textos compõem a memória discursiva
dos leitores, com a capacidade de produção de novos e múltiplos
significados. (AGUIAR E SILVA, 1982). Posteriormente, a no-
ção de intertextualidade foi consolidada por Genette (1982),
como sendo a presença efetiva de textos em outros textos.

- 238 -
Literatura, memoria y cultura

Trecho que é contestado por Belchior que replica em dois


momentos na mesma música:

Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas


Caminhado meu caminho, papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que 'inda acredite nisso, não
Mas sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso, não.

Os trechos fazem referência à música Divino, Maravilho,


música que fez parte do disco Tropicália ou Panis et Circencis
(1968), composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil e que se
apresentou como principal manifesto do Tropicalismo. Na mú-
sica Fotografia 3x4 a referência ao baiano é mais explícita e tece
uma crítica direta ao discurso de cidade região acolhedora que
este fazia em suas músicas, quando tratava do sudeste: “Veloso o
sol não é tão bonito / pra quem vem / Do norte e vai viver na rua”.
Na visão de Costa (2001, p. 118) a intensão de Belchior ao
realizar a construção poética seria a quebra da ironia dos autores
tropicalistas que usaram os termos “divino, maravilhoso” como
tópico de resistência ao momento político em que estavam inse-
ridos.

A citação dessas palavras opera uma descontextualização de


uma construção irônica dos autores tropicalistas, que chama-
vam a atenção para os perigos daqueles momentos de cen-
sura e perseguição política, clamando ainda pela resistência
e pela coragem. Dessa forma, Belchior não apenas desestru-
tura a expressão dos tropicalistas, desdobrando-a em duas
orações, mas também a "desironiza", retirando-a do contexto
- 239 -
Literatura, memória e cultura

em que adquire a voz dissonante que neutraliza interpretação


"normal", qual seja, a de que, segundo os autores, tudo seria
ou estaria divino e maravilhoso naquele momento.

Mas a presente análise verifica que, além das questões re-


lacionadas à “desironização” da poesia tropicalista, a quem Bel-
chior criticou, o posicionamento do integrante do Povo do Ceará
operacionaliza a firmação da identidade do povo ao qual repre-
senta, de modo que, ao citar obra e autor, as canções apresentam
a realidade e a memória de quem esteve diante das dificuldades
dessa situação, e fora dos holofotes da mídia, de tal forma que a
música por ela analisada não é a única que trata da visão aparen-
temente romantizada que os tropicalista, ou mais especificamente
Caetano Veloso fizera do sul, como apresentado.
Assim a escrita do cearense aponta para a reflexão sobre a
memória que se cria entorno da experiência desses sujeitos, bem
como da identidade firmada sobre estes. É necessário lembrar que
as relações de identidade estão diretamente ligadas às caracterís-
ticas culturais e sociais de um povo, e que os sujeitos pertencentes
e essa cultura se veem (ou são vistos) interligados por esses atri-
butos.

No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade


o processo de construção de significado com base em um
atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais
inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras
fontes de significado. (CASTELLS, 1999, p. 22).

Até o fim de sua vida, Belchior seguiu com as marcas da


identidade de resistência e em suas letras e em seus discursos em
geral. Em uma posição de distanciamento das pessoas e das

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Literatura, memoria y cultura

sensações comumente compartilhadas, para que deste lugar de


distanciamento teórico e físico pudesse analisar de maneira mais
concreta a realidade que, sob a óptica do mesmo se apresenta
como dura e desumana como os menos afortunados.

Considerações finais

Belchior é, certamente, uma das maiores mentes da arte


brasileira no século XX. Através do seu pensamento o cearense
conseguiu traçar reflexões muito relevantes para o entendimento
das sociabilidades nos diferentes espaços geográficos da nação,
apresentando um esforço crítico de muita relevância, polidez e
sensatez.
O álbum Alucinação apresenta um conjunto de composi-
ções que exprimem a insatisfação do autor através de uma dinâ-
mica poética tão bem estabelecida que consegue abranger a todos
os seguimentos sociais tantos para os dias em que fui publicado
quanto para os dias atuais. Nele, cada temática apresentada evi-
dencia o sofrimento, a solidão, a angústia, a monotonia e o des-
caso em que vivem os cidadãos comuns que, perpassados pela
cultura do autoritarismo, se veem de mãos atadas diante as situa-
ções cotidianas.
As músicas Rapaz latino americano e Fotografia 3x4 são
exemplos das representações comuns que Belchior faz, onde o
mesmo estabelece um discurso que torna público as vivências e,
por conseguinte, as memórias da coletividade de um povo que
exilado em seu próprio país. Pessoas que precisaram sair de suas
regiões de origem para tentar sobreviver em uma região diferente
da sua.
No processo de estabelecimento das memórias dos povos
do norte que sofrem com as realidades da sobrevivência no sul,
- 241 -
Literatura, memória e cultura

tendo que enfrentar questões sociais, políticas e culturais, o com-


positor também estabelece traços da identidade de resistência que
tais povos acabam forjando para que consigam ter o mínimo de
dignidade na dura realidade à qual são expostos do a migração,
que muitas vezes não é planejada.
A escrita de Belchior é um acervo importantíssimo para
análises de cunho filosófico, literário e histórico, tendo em vista
que possibilitam reflexões em âmbitos distintos da realidade hu-
mana.

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- 244 -
Literatura, memoria y cultura

11. A
MEMÓRIA E A GUERRA NO CONTO
KUÍTO (TRÊS FACES) DE ONDJAKI
_________________________

Cleanne Nayara Galiza Colaço1

Introdução

O entrelace entre História e Literatura se torna necessário


quando o ponto de partida é a linha de conhecimento entre a vida
social e o texto literário. Nesse sentido, o conto “Kuíto (três fa-
ces) ” que compõe a obra Momentos de Aqui (2015), do autor
angolano Ondjaki, se torna o corpus desse estudo que objetiva
descortinar elementos de fatores externos e internos evidenciados
no texto literário em questão, visto que neste temos uma repre-
sentação dos conflitos armados que marcaram a região de Kuíto.
Para este trabalho foram analisados aspectos da literatura ango-
lana, confrontando-as com a história deste país que é permeada
de conflitos ideológicos e armados, tendo em vista a compreen-
são do conto que possui representações sobre esses conflitos de
guerrilhas que marcaram a cidade de Kuíto em Angola. Com base
nas relações entre Literatura, Memória e História, buscou-se
compreender o texto literário como um suporte da memória, do-
tando a narrativa ficcional como evocação desta. Ao trazer reme-
morações e aspectos ficcionalizantes, o conto delineia e pontua
representações das consequências da guerra de Kuíto por meio da
voz do narrador. Os pressupostos teóricos do trabalho estão fun-
damentados em Maurice Halbwachs (1990), Michel Pollak

1
Universidade Estadual do Piauí (UESPI) - cle.anne.galiza@gmail.com
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Literatura, memória e cultura

(1989), Walter Benjamin (1994), Jeanne Gagnebin (2009), Ans-


gar Nunning (2016) e dentre outros teóricos que emergem as con-
cepções a partir da teoria da memória nas narrativas literárias.

Face introdutória

A memória dentro dos estudos das ciências humanas, não


parte de reflexões reducionistas de que o processo de lembrar é
somente um resgaste do passado. Afirmativas e reflexões como
essas, ao longo do tempo ficaram desgastadas e com ausências de
sentidos, posto que existem diversos outros questionamentos que
atravessam a memória, como, o que seria o passado e suas refle-
xões sem os meandros do presente? Nesse sentido, a memória
apresenta na sua centralidade a composição de aspectos do pre-
sente.
É necessário a compreensão que “trazer o passado” não é
possível em sua totalidade, até porque não existe essa possibili-
dade, em virtude da ampliação dos estudos entre as relações da
Literatura, História e a Memória, entende-se que a questão não é
de retorno ao passado, mas de ressignificações, busca de traços
que reconfiguram o presente. Então, a partir da concepção dessa
negação da totalidade dos eventos, os estudos em relação a me-
mória foram se expandindo e a constituição disso, legitimada pe-
los críticos de que há os elementos do presente, na medida em
que a memória proporciona a organização dos eventos históricos,
sejam no âmbito coletivo ou particular, no qual são realizados por
meio das linguagens. Estudos já considerados como clássicos
tanto pela crítica literária, quanto pela historiografia mostram a
configuração da memória atravessada desses aspectos. De acordo
com Maurice Halbwachs (1990)
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Literatura, memoria y cultura

A lembrança é uma larga medida, uma reconstrução do pas-


sado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além
disso preparada por outras reconstruções feitas em épocas
anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já
bem alterada. Certamente, que se através da memória éramos
colocadas em contato diretamente com alguma de nossas an-
tigas impressões, a lembrança se distinguiria, por definição,
dessas ideias mais ou menos precisas que nossa reflexão, aju-
dada pelos relatos, os depoimentos e as confidências dos ou-
tros, permite-nos fazer uma ideia do que foi o nosso passado.
(1990, p. 71)

Nesse sentido, a memória contribui para a organização


das imagens, das lembranças produzidas, que são desencadeadas
a partir da relação das subjetividades como também de um con-
texto mais amplo, que envolve o coletivo, tendo em vista o que
Halbwachs intitulou como memória coletiva.
A reconstituição de uma lembrança adquire aspectos do
presente, e nesses deslocamentos existe a memória. Outro teórico
engajado nos estudos da memória, como também pertencente ao
cânone com embasamento no conceito de memória coletiva é Mi-
chel Pollak (1989). Ele afirma com base em Halbwachs, a memó-
ria coletiva como importante para sociedade, uma vez que ela não
ocorre de forma imposta e sim há intervenções ao coletivo. Se-
gundo Pollak “também Halbwachs, longe de ver nessa memória
coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou
violência simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas
pela memória comum” (1989, p. 03). Contudo, Pollak alerta que
existem as especificidades de uma memória nacional que possui
sua origem em uma busca de uma memória coletiva homogênea
e comum a todos, sendo que essa não é isenta de interesses,

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Literatura, memória e cultura

ideologias, sendo assim se torna heterogênea. Para uma análise


da memória é necessário confrontar como ponto de partida, o dis-
curso, e de onde se exterioriza a memória de uma nação. Michel
Pollak (1989) aponta que

Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter


destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva
nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que
prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de ma-
neira quase imperceptível afloram em momentos de crise em
sobressaltos bruscos e exacerbação. A memória entra em dis-
puta. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência
onde existe conflito e competição entre memórias concorren-
tes. (1989, p. 04- 05)

Nesse sentido é relevante introduzir em torno das refle-


xões da memória aquelas que representam as minorias, os grupos
considerados à margem que ao longo dos estudos tanto da histo-
riografia (SHARPE, 1992) quanto da crítica literária, foram si-
lenciados e colocados em processos de apagamentos. Partindo
dessas trajetórias e de como a memória se tornou categoria rei-
vindicatória, foi possível desenvolver a necessidade de enuncia-
ção do conto Kuíto (três faces) do autor angolano Ondjaki como
narrativa literária que aponta como panorama, a guerra na cidade
de Kuíto, em Angola.
Sendo assim a memória como recurso analítico visto os
seus atravessamentos, no qual foi possível identificar nessa nar-
rativa literária, os elementos analíticos que se formam a partir da
memória e da história e que direciona para reflexão das aproxi-
mações dessas categorias teóricas e os referenciais literários, e
como estão correlacionados. Logo quando se fala de história, me-
mória e literatura sabemos que são campos de estudos
- 248 -
Literatura, memoria y cultura

imbricados, no entanto, não ficam diluídos ao ponto de não se


saber as suas diferenças e sim, apresentam-se com suas autono-
mias críticas.
A memória não é história, mesmo assim, a historiografia
e o trabalho do historiador necessitam dela, bem como o trabalho
do crítico literário possui dependências da memória. Ela é intrín-
seca ao ser humano e em suas atividades, como também nas aná-
lises e pesquisas existentes formando assim um importante le-
gado para esse campo teórico. Visto o que já foi realizado até aqui
por estudiosos que pertencem ao cânone crítico, como por exem-
plo os que já foram aqui expostos em poucas linhas, como tam-
bém outros nomes clássicos que tratam sobre a teoria da memó-
ria: Pierre Nora, Jacques Le Goff, e nomes contemporâneos do
eixo brasileiro que possuem destaque na área, como as pesquisa-
doras Jeanne Gagnebin e Ecléa Bosi, dentre outros nomes. Assim
como evidenciado, existe uma amplitude de paradigmas teóricos
em torno dos estudos da memória, no entanto, dentro dessa ne-
cessidade, o paradigma do alargamento de horizontes de teoria, a
busca por narrativas fora dos eixos já legitimados e mais acessa-
dos, sobretudo no âmbito acadêmico, se torna urgente.
Nesse contexto, as literaturas africanas representam com-
bustíveis essenciais para essas ampliações, e não são recentes as
buscas e lutas travadas dos eixos históricos e literários africanos
por protagonismos. E quando nos reportamos ao campo literário
do continente africano, características como o hibridismo, a tra-
dição oral, pluralidades, são alguns dos aspectos fundamentais
dos sistemas literários africanos. Desse modo, o recorte do texto
literário utilizado neste estudo é a escrita africana em língua por-
tuguesa do país Angola que possui a Língua portuguesa como
idioma oficial.

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Literatura, memória e cultura

A historiografia revela sobre os processos de colonialis-


mos nos territórios africanos, sobretudo as colonizações portu-
guesas, e nisso uma das consequências desses processos, além
das violações implementadas aos colonizados, sendo a língua
portuguesa também resultado do colonialismo em alguns países
africanos. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), é constituída por nove países, que compõem o quadro
dos territórios que possuem como idioma oficial a língua portu-
guesa; são eles: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial1 e
Timor-Leste. Na África os países que falam a língua portuguesa
são referidos pela sigla PALOP (Países Africanos de Língua Ofi-
cial Portuguesa), que configura um total de seis países pertencen-
tes a essa organização. Segundo o cientista político angolano Jo-
veta José (2015)

O objetivo da CPLP é constituir em canal institucionalizado


de participação de organizações não governamentais nas ati-
vidades comunitárias, particularmente no que diz respeito à
sua participação em iniciativas de desenvolvimento econô-
mico, social e cultural nos Estados–membros. (2015, p.
193).

Assim sendo, a literatura angolana detém a língua portu-


guesa como idioma oficial, embora disponha de suas línguas au-
tóctones, como exemplos, o Umbundo e o Kimbundo que repre-
sentam em Angola algumas das línguas faladas. A literatura an-
golana, ao longo de sua trajetória, esteve e ainda possui entrelaces
ao contexto sócio-histórico advindo das lutas pela

1
Em 2012 o país Guiné-Equatorial obteve o aceite para pertencer a CPLP.
Disponível em: https://www.cplp.org/ acesso 08/12/2019
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Literatura, memoria y cultura

descolonização, a busca por uma consolidação identitária em


meio as suas culturas híbridas, tanto vindas das colonizações por-
tuguesas quanto de suas culturas originárias. De acordo com o
ensaísta e crítico literário português Eugénio Ferreira

Entretanto, a partir de 60, num ambiente ambíguo, de hosti-


lidade e ódio, extremado o fosso entre a sociedade global,
manietada pela sanha policial e o grupo minoritário, mas
ainda dominante da burguesia colonial, foram despontando
novas gerações, desapegadas de uma tradição livre e actu-
ante, sem o suporte unívoco de um radicado pensamento na-
cional e desgarradas dos liames fecundos de uma própria e
legítima história literária. Essa carência, quase absoluta, dos
elementos fecundantes das gerações literárias não impediu,
contudo, que os jovens escritores angolanos se lançassem,
ousadamente, no torvelinho da luta pela construção de um
mundo novo. (FERREIRA, 1982, p. 40).

Nesse contexto, a representação da realidade social, as


questões sócio-históricas, cotidianos, são âmbitos recorrentes
nessa produção literária. Contudo, na busca de renovação e am-
pliação dos horizontes literários de Angola, existe um aprimora-
mento dessa produção, embora não deixando à margem as in-
fluências, os hibridismos ao qual a literatura angolana está inse-
rida e como se representa. Sendo assim, o escritor angolano
Ondjaki, seu nome de certidão é Ndalu de Almeida, nascido em
Luanda, atual capital de Angola, no ano de 1977, atualmente per-
tence e representa a contemporaneidade da escrita angolana,
como também o comprometimento com os aprimoramentos da
literatura e manifestações artísticas em Angola, visto que sua am-
pla produção literária, que engloba não somente a escrita, mas as

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Literatura, memória e cultura

artes no campo visual, com produções cinematográficas, bem


como produções para o teatro.
Em meio a sua diversificada produção, na obra Momentos
de Aqui formada por contos publicados pela editora Caminho de
Portugal, em 2001 e ainda não possui publicação no Brasil, foi
possível identificar caminhos literários entrelaçados com a rela-
ção história e memória nas suas narrativas. A obra está dividida
em dois tópicos, o primeiro intitulado “Os momentos”, e o se-
gundo “As noites de aqui”. Na obra, a partir de seus contos, se
revela as representações de contextos de Angola, que foram mar-
cados por diferentes conflitos internos e externos, ou seja, confli-
tos tanto de suas comunidades quanto dos reflexos do processo
de colonização portuguesa no país.
Com a ampliação dos horizontes das narrativas, que pos-
suiram mais força para a valorização da tríade autor, obra e leitor,
visto que por meio do texto, as impressões das construções reali-
zadas nas narrativas passaram a ter autonomia, no âmbito que o
próprio texto e as interpretações do leitor foram construindo no-
vos horizontes de leitura. Com isso, categorizações foram possí-
veis de buscar para que se legitimasse dentro das narrativas.
Nesse contexto a memória reverbera como uma categoria que
está inserida nessa ampliação e com a busca das pluralidades, le-
gitimar esse encontro que representa os estudos da História e Li-
teratura. Como afirma Roger Chartier

Donde novas perspectivas abertas para pensar outros modos


de articulação entre as obras ou as práticas e o mundo social,
sensíveis ao mesmo tempo às pluralidades das clivagens que
atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de
materiais ou de códigos partilhados. (1991, p. 177).

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Literatura, memoria y cultura

Nas reflexões em torno das construções das narrativas, a


memória é intrínseca, e a partir do momento da produção de um
texto ou qualquer outro tipo de narrativa, o processo de seleção,
análise das motivações e reconfigurações estão presentes. Costa
Lima (1989), mostrou que desde os estudos de Raymond Aron já
era revelado que para construção das narrativas eram necessários
esses processos. “Seleção, recriação, análise dos motivos supõem
em comum a derrogação da autonomia do documento.” (LIMA,
1989, p.27). Assim, na narrativa estão presentes os processos de
memória, porque ela é um dos instrumentos dessas construções,
uma vez que para as seleções e análises, a memória é um suporte
utilizado e a narrativa sendo o resultado dessa “organização”. Em
conformidade com Paul Ricoeur

Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiá-


vel, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para
significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos
lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à
imaginação, na medida em que esta tem como paradigma o
irreal, o fictício, o possível e outros traços que podemos cha-
mar de não posicionais. (2007, p. 40)

Essas premissas, apontam que diante das reflexões em


torno da memória, logo pensamos que ela está relacionada ao pas-
sado, ao que está distante ou que de alguma forma ela tem uma
maior legitimidade em relação a ficcionalidade. Contudo, a me-
mória é construída a partir do presente, do contexto ao qual o in-
divíduo está inserido, onde estão imbricadas as suas condições
históricas, sociais e psicológicas e a sua materialização que se dar
por meio da produção narrativa, que podem ser textos escritos,
pinturas, fotografias, ilustrações, ou seja, diferentes narrativas
que se perpassam pela ficção.
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Literatura, memória e cultura

Segundo formulações de conceitos em relação à memória


e sendo ela presentificada, ou seja, inserida no presente para sua
construção. Ecléa Bosi (2003), revela que a substância social da
memória estar localizada na política, no trabalho, na escola, na
família, dentre outros lugares e discursos. Portanto, essa presença
é indissociável a identidade, que contempla nossa formação como
indivíduo social. A memória é instrumento que fundamenta
nossa identidade.

Primeira face: Os sobreviventes

Sendo assim, a escrita Ondjaki no conto Kuíto (três faces)


evidencia nuances da memória como artifício de construção de
sua narrativa. De início o título do texto revela essa aproximação
com o contexto histórico atrelado à sua nacionalidade, Kuíto que
é uma cidade da província (Estado) do Bié, em Angola, no qual
em 1925 foi elevada à categoria de cidade e ao longo do tempo,
a historiografia revela que a região localizada na parte central de
Angola foi território de divergentes conflitos armados, visto que
Angola antes de 1975 ainda era colônia de Portugal e, desde a
década de sessenta, o povo angolano ansiava pela independência,
desencadeando assim diversos conflitos, tanto em aspectos exter-
nos, as lutas dos colonizadores, o reino português e dos coloniza-
dos, no qual também existiram os conflitos fratricidas entre o
povo angolano.
Diante do fim do domínio de Portugal em 1975, os movi-
mentos políticos internos eclodiram e assim anunciaram as dis-
putas de poder pelo controle político-ideológico de Angola. Se-
gundo Luzia Milagre (2018) representados por divergentes ideo-
logias e interesses, os partidos políticos intitulados, Frente Naci-
onal de Libertação de Angola (FNLA), o Movimento Popular de
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Literatura, memoria y cultura

Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Inde-


pendência Total de Angola (UNITA) foi assinado o acordo de
Alvor juntamente com Portugal. Este acordo delimitou que essas
frentes partidárias que ficariam responsáveis pelo domínio de An-
gola a partir daquele momento. No entanto, seguindo os antago-
nismos que os partidos políticos estavam inseridos, esses movi-
mentos de libertação de Angola, mergulhados em suas ideologias,
sobretudo moldados por interesses políticos, econômicos e domi-
nações sociais, entraram em diversos conflitos em busca de do-
mínios pelo território angolano, assim demarcando verdadeiras
guerrilhas. “O acordo de Alvor, ao invés de unir os movimentos
de libertação, serviu, pelo contrário, para aumentar as já existen-
tes contradições étnicas, ideológicas e políticas.” (MILAGRE,
2018, s/p)
Com esses oposicionismos, os conflitos em Angola no
período pós-colonial aumentaram e desencadearam consequên-
cias para a sociedade angolana e, com base nessas relações sócio-
históricas, foi possível identificar na obra Momentos de aqui es-
ses posicionamentos verossimilhantes refletidos na escrita de
Ondjaki. O conto Kuíto (três faces), localizado na segunda parte
da obra, descortina as marcas dos conflitos da guerra deixados em
Kuíto, uma das muitas cidades de Angola que sofreram as conse-
quências da colonização e colonialidades. Em conformidade com
Stuart Hall

Em afirmar que o pós-colonial não sinaliza uma simples su-


cessão cronológica do tipo antes/depois. O movimento que
vai da colonização aos tempos pós-coloniais não implica que
os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos
por uma época livre de conflitos. Ao contrário, o pós-colo-
nial marca a passagem de uma configuração ou conjuntura
histórica de poder para outra. Problemas de dependência,
- 255 -
Literatura, memória e cultura

subdesenvolvimento, marginalização, típicos do alto período


colonial, persistem no pós-colonial. Contudo, essas relações
estão resumidas em uma nova configuração. (2003, p. 56).

Os movimentos de passagem que são marcas desses con-


textos de colonização ou descolonização, no entanto, não repre-
sentam resoluções de problemas da sociedade ao qual estão inse-
ridos os movimentos, visto que podem até mesmo desvelar mai-
ores consequências. Angola representa um desses territórios de
transições de representação de poder e novas configurações soci-
ais, sobretudo marcados por conflitos políticos, econômicos e
ideológicos.
Na narrativa, que possui a divisão em três tópicos: “os
sobreviventes”, “Os mortos” e o “Avô Bacate e o último ban-
quete” evidencia a metáfora advinda a partir do subtítulo – três
faces. O narrador observador ao longo do enredo vai revelando
um caminho de começo, meio e fim da guerra que, por meio de
suas lembranças, se transfigura em rastros narrados ao longo da
história. É possível as percepções por meio do fragmento a seguir,
na primeira face do conto

As pessoas tinham, por toda a parte, sido substituídas pelos


cães e pelas suas tristes sombras. A guerra tinha multiplicado
desde o início os corpos fedorentos que descansavam ao ar
livre sem ninguém para os enterrar. Esses corpos, outrora
sempre acompanhados de uma arma, de uma pistola e, certa-
mente, de uma incrível violência foram durante todo aquele
tempo o pão deles de cada dia, dos cães (ONDJAKI, 2015,
p. 109).

Essa concepção de rastros é uma categorização recorrente


quando se trata de memória e reconfigurações do passado. A

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Literatura, memoria y cultura

narrativa literária possui como função a organização desses “ras-


tros” e trazer à tona a memória a partir da dualidade existente
nessa relação entre lembrança e esquecimento. Na primeira parte
do conto “Os sobreviventes” é revelado que

As árvores vestiram para sempre um ar triste e desconsolado


que nem as chuvas puderam despir. Desde aquele dia para
todo o sempre, apesar das reconstruções, das tentativas de
embelezamento, das modernidades passageiras, as árvores
do Kuíto, as verdadeiras árvores do Kuíto, denunciariam a
quem as visse o horror e a brutalidade da guerra a que tinham
assistido. De tudo o que tinham ouvido e visto. De tudo o que
tinham sido obrigadas a presenciar e memorizar. Aquelas ár-
vores, para sempre cinzentas, eram o símbolo das marcas que
uma guerra deixa, de todas as profundas feridas que uma
guerra vai deixando. Marcas, feridas, às vezes cicatrizes, que
não estando visíveis, não deixam mais de estar conosco
(ONDJAKI, 2015, p. 113-114).

Essa revelação das paisagens de Kuíto por meio do texto


literário, dialoga com as marcas deixadas pela guerra e a partir da
memória, como recurso, se realiza a construção da narrativa ba-
seada nas perspectivas da importância da memória como meca-
nismo que preserva as experiências vividas, nesse contexto evi-
denciado pelo narrador, visto que gera uma constituição da me-
mória social que advém dos rastros. Jeanne Gagnebin alerta que

Porque a reflexão sobre a memória utiliza tão frequente-


mente a imagem – o conceito – de rastro? Porque a memória
vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do
presente que se lembra do passado desaparecido, mas tam-
bém presença do passado desaparecido que faz sua irrupção
em um presente evanescente. Riqueza da memória,

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Literatura, memória e cultura

certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro.


(2009, p. 44).

Essa fragilidade da memória, se configura na relação de


busca da rememoração de um passado, contudo não é possível
uma reconfiguração do passado tal qual existiu. As narrativas que
possuem a memória como recurso de construção, não estão au-
sentes de problemáticas, visto que existem as brechas, falhas. Se-
gundo Beatriz Sarlo

É inevitável a marca do presente no ato de narrar o passado,


justamente porque no discurso, o presente tem uma hegemo-
nia reconhecida como inevitável e os tempos verbais do pas-
sado não ficam livres de uma “experiência fenomenológica”
do tempo presente da enunciação. (SARLO, 2007, p. 49,
grifo da autora)

No conto em estudo, essa relação com a memória não re-


presenta reconstruir a guerra em Kuíto tal qual aconteceu e sim
através das dualidades da memória e esquecimento. No qual se
torna pungente a medida em que na narrativa, as revelações das
consequências da guerra sejam imbricadas com as esperanças.
“Aos poucos, as pessoas iam-se novamente habituando a viver”
(ONDJAKI, 2015, p. 111). Os problemas estruturais da cidade,
como ausência de atendimentos básicos da comunidade, como
atendimentos médicos, fornecimento de água, energia e sobre-
tudo a fome, são marcas que podemos chamar de vitais conse-
quências dos conflitos de guerra. Em conformidade com o frag-
mento da narrativa

Muita gente sabia que, se a guerra durasse mais uns dias, por
poucos que fossem, haveria de assistir ao curioso espetáculo

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Literatura, memoria y cultura

de estar normalmente sob tiros e bombardeamentos, pois que


a fome, dali a dias não permitiria os cuidados normais que o
instinto consegue preservar. Mas que seria o instinto da se-
gurança ao pé da fome? Que seria o medo, o horror, o susto,
e tudo o que está inerente a uma guerra, comparando com um
estômago oco? (ONDJAKI, 2015, p. 110 – 111).

Com base na narrativa, a fome como marca da guerra, e


nessa relação com a memória, é revelado o que foi vivenciado de
acordo com a voz do narrador. “Falar de sobreviventes é falar das
pessoas, dos cães e de alguns pássaros. Cobras, se ainda restavam,
já tinham ido para longe. Bichos, insetos e pequenos animais não
os havia ali.” (ONDJAKI, p. 112).
Levando em conta a evocação da memória, que a função
da narrativa ficcional, assim como é colocado como função do
historiador, revelar os interstícios que por vezes podem ser silen-
ciados ou apagados, a narrativa transporta o leitor para a identifi-
cação dos males decorrentes de uma guerra, em seus diferentes
âmbitos. Segundo Gagnebin “é necessário lutar contra o esqueci-
mento e a denegação, lutar, em suma, contra a mentira, mas sem
cair em uma definição dogmática de verdade” (GAGNEBIN,
2009, P. 44). Alimentar a memória para que não haja esqueci-
mento, como também o dialogismo da necessidade do esqueci-
mento para se manter viva a memória. Para o discurso literário é
essencial essa tarefa de construção que engloba o social, o polí-
tico, o cognitivo do indivíduo à sociedade que, como resultado,
podem ser produzidas alteridades. A partir do recorte da narra-
tiva, é revelado que

aos poucos, as pessoas iam-se novamente habituando a viver.


Esta era, por enquanto uma nova forma de vida, é claro, sem
comida, sem esperança, sem condições para obter uma ou

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Literatura, memória e cultura

outra destas coisas. Mas era sempre bom poderem voltar a


andar, a respirar um ar que estivesse livre, e não aquele de
todos os dias, abafado, pesado, incómodo, a que estavam pre-
sos nos seus esconderijos. Não estar escondido também era
muito bom. (ONDJAKI, 2015, p.111).

No fragmento apresentado somos atravessados pelos co-


rolários da guerra, tanto em aspectos que se configuram na reali-
dade quanto no imaginário, visto que mesmo diante da fome, das
ausências de qualquer condição digna de existência para esses
“sobreviventes” encontram esperanças nos dias, em ao menos an-
dar ou até mesmo respirar fora dos esconderijos em que se loca-
lizavam nas tentativas de proteção da guerra.

Segunda face: Os mortos

Na segunda face do conto, como uma metáfora já identi-


ficada a partir do subtítulo “Os mortos”, o narrador continua a
apresentar os rastros, as marcas deixadas pela guerra. Diante
dessa face, as representações da morte se tornam alegorias para
apresentar as destruições, a fome, as memórias produzidas a par-
tir dessa experiência que fragiliza a sociedade, contudo ela ainda
une os indivíduos devido aos sofrimentos como ilustra o seguinte
trecho

Nessa época a cidade estava mesmo a acordar do sono vio-


lento da guerra, e ainda não havia sido inventada a ideia de
mentir que se ia velar um morto para poder roubar. Portanto
era algo perfeitamente normal. [...] Mas isso foi muito mais
tarde. No início, quando despertaram da guerra, não lhe tinha
restado maldade nenhuma nos corações. As coisas faziam-se
realmente porque tinham de ser feitas, sem más intenções.

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Literatura, memoria y cultura

Predominava a necessidade sobre a maldade. A fome, negra,


como se costuma dizer, tinha então engolido qualquer capa-
cidade para o oportunismo. (ONDJAKI, 2015 p.115 – 116).

Mesmo em tentativas de superação da sociedade, no qual


é possível compreender essa necessidade de reorganização do co-
tidiano pós-guerra, as condições se tornam limitantes e, ao
mesmo tempo, fragilizadas tanto em aspectos físicos, estruturais
como até espirituais. Sendo assim é afirmado na narrativa que
“eram tempos de recuperação: recuperação da estabilidade a ní-
vel anatómico, e talvez depois, se fosse possível, a nível espiri-
tual.” (ONDJAKI, 2015, p. 116).
Segundo as reflexões de Walter Benjamin (1994) em
torno da primeira guerra mundial (1914-1918), evidencia que
além dos corolários estruturais da guerra, manifestações de sen-
timentos de angústias, desencadeamentos de problemas psicoló-
gicos advindos desse contexto de guerra demarcaram a sociedade
no eixo da Alemanha, da França e em diversos outros territórios
da Europa. Benjamim afirma “porque nunca houve experiências
mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação,
a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos go-
vernantes.” (BENJAMIN, 1994, p. 115). Todas essas consequên-
cias fomentaram uma debilidade da sociedade, que buscou uma
supressão desse vazio e isso se configura um dos traços do que
chamamos de mundo moderno ou modernidade.
E nessa temporalidade de mundo moderno, é factível re-
alizar os deslocamentos para as guerras que existiram e são exis-
tentes no continente africano. Nesse recorte, com base na narra-
tiva, em Angola, a guerra de Kuíto reverbera esses elementos no
seu contexto social. O narrador-observador, ao contar os

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Literatura, memória e cultura

infortúnios da guerra que assolou Kuíto, é movido por especifici-


dades ao narrar as suas memórias. É nesse sentido que a partir do
excerto, vale evidenciar o que pensou Ansgar Nunning (2016),
em que este afirma que as narrativas se fundamentam em “con-
cepções do próprio ser e de identidade constituídas socialmente e
fictícias” (NUNNING, 2016, p. 223). Dessa maneira, ainda, con-
forme o autor supracitado, as memórias são construtos gerados a
partir de “um eu que recorda” e de suas identidades, que, por-
tanto, elas não podem se estabelecer como imagens de um pas-
sado que pode ser reconstruído em sua totalidade, apesar de essa
memórias possuírem como subsídios de fomento o contexto só-
cio-histórico que nesse caso a guerra e suas memórias que são
atravessadas de recordações, esquecimentos, silenciamentos ou
até apagamentos em buscas de novos sentidos de existência para
o indivíduo ou uma nação.

Terceira face: Avô Bacate e o seu último banquete

A partir dos estudos de Hayden White e Paul Ricoeur,


leva identificar as relações dos discursos históricos e literários e
suas aproximações, bem como o fazer da história que também
representa a construção de narrativas, consequentemente a ficci-
onalização e artifícios para essas construções, no qual a memória
aparece como mecanismo importante. Nesse sentido, a materiali-
zação dessa memória é por meio da escrita, como também da ora-
lidade. Segundo Jeanne Gagnebin

O pensamento de Ricoeur também nos lembra que a história


é sempre simultaneamente, narrativa (as histórias inumerá-
veis que a compõem; Erzählung, em alemão) e processo real
(sequência das ações humanas em particular; Geschichte),

- 262 -
Literatura, memoria y cultura

que a história como disciplina remete sempre às dimensões


humanas da ação e da linguagem e, sobretudo, da narração.
(GAGNEBIN, 2009, p. 43).

Com base em Paul Ricoeur, existem as diferenças entre a


narrativa histórica e a literária, embora sejam discursos aproxi-
mados, não devem ser confundidos devido suas distinções e tam-
bém não se deve cair na necessidade de preenchimento de uma
lacuna de busca pela “verdade”, na busca de uma pureza, de uma
cientificidade objetivista que não é alcançável. Em conformidade
ao conto, percebemos que mesmo diante das condições sociais
complexas e de contextos limitantes advindos de conflitos arma-
dos, o texto literário vai produzindo outras dimensões, associadas
as experiencias de leitura. Essas características que são próprias
do discurso literário, resultante da ficção, que propõe vivacidade
ao texto e produz diferentes temporalidades.
Na transição da narrativa para a terceira face, o autor
Ondjaki, também apresenta na sua escrita como um meio de ma-
terialização da memória, porque este se constitui de memórias in-
dividuais e coletivas cujo entendimento não pode ser dissociado
de um contexto cultural, no trecho abaixo, Ondjaki ao dar a voz
ao narrador, traz à baila a transmissão de saberes orais avultados
pelos feiticeiros:

Feiticeiros contam à noite que certos mortos estavam mesmo


satisfeitos por partir, pois achavam que alguns daqueles vi-
vos que os choravam nos quintais de todos os dias estavam
mais mortos que eles. Não eram vivos e sim sobreviventes.
«Ó seja>>», dizia o feiticeiro, «são mortos que parece estão
vivos, devido da guerra que continua dentro deles....»
(ONDJAKI, 2015, p. 118).

- 263 -
Literatura, memória e cultura

Como se sabe, os Griots são um dos principais símbolos


da tradição africana, pois, através da oralidade, eles perpetuam
saberes comuns aos seus contextos culturais. Ao falar dos impac-
tos da guerra que parecem não cessar, o feiticeiro, como um griot,
assume um duplo posicionamento, ao passo que, pela oralidade,
dissemina saberes, reivindica uma justiça social ao falar dos trau-
mas dos acontecimentos violentos ocorridos em Kuíto.
A representação da terceira face do conto intitulado o
“Avô Bacate e o seu último banquete”, a memória do narrador
observador continua a apresentar os infortúnios advindos da
guerra, nesse ponto do texto, o leitor é levado às reflexões, sobre-
tudo em relação a solidão e as marcas que a guerra deixou naquela
sociedade como também a partir das teorias da memória social.
Com base no conto é afirmado que “todos os prazeres se dissipa-
ram: os normais, os pequenos, os últimos até. Na insónia de tanta
solidão, no meio do tanto nada que havia para fazer...”
(ONDJAKI, 2015, p. 119).
Com o decorrer do texto, nessa terceira face a voz do nar-
rador apresenta as angústias vivenciadas pelo personagem Avô
Bacate que em uma das explosões, ou como é escrito no conto
“rebentamentos” de bombas que ainda ficaram no solo da cidade
de Kuíto explodiu e ele ficou em uma “cave”, em um espaço que
ninguém o encontrou ou poderia ouvir sua voz em meio aos con-
flitos e tantos gritos de morte que ecoavam na parte externa de
sua “cava”. Segundo a narrativa

Uma vez enfiado na cave, ele e mais os seus mantimentos


obesos, nunca mais de lá saiu. Uma bomba castigadora, pe-
sada, provocou o desabar do prédio, perpetuando a estada do
velho naquela sua cave última. A princípio, poupou comida
e sentiu-se protegido pela impermeabilidade do seu esconde-
rijo, isento de outras bocas, das balas rápidas e das bombas
- 264 -
Literatura, memoria y cultura

pesadas que ele ouvia ao longe e até mesmo ao perto, sem,


no entanto, conseguirem perfurar a fundura do seu abrigo.
(ONDJAKI, 2015, p.119).

Nessa parte do conto é revelado uma outra face da guerra,


por meio desse personagem, o Avô Bacate, um idoso que mesmo
em meio ao que vivenciava se mantinha egoísta e solitário. O nar-
rador apresenta que diante da fome que passavam, ele conseguiu
roubar alguns mantimentos, encontrou um abrigo, um esconde-
rijo subterrâneo e lá permaneceu durante os conflitos. Contudo
com o passar do tempo, esses benefícios que obtinha diante de
tanto caos, voltou-se contra ele porque quem foi ao seu encontro
foi a solidão. Em conformidade com o corpus literário

Era mesmo a tristeza a sua companheira dos todos seus últi-


mos dias. E no meio do barulho violento da guerra de lá de
fora, metido nos escombros causados pela própria guerra,
agonizava sozinho e de estômago satisfeito uma dor que não
era física, mas que fisicamente lhe apertava o peito. A soli-
dão. Ou seria o desgosto? Remorso? Não sabia ao certo. E
sem chorar, chorava. (ONDJAKI, 2015, p.118).

Com essa fundamentação, a narrativa desloca o leitor pe-


los diversos elementos aqui constatados como os hibridismos, a
tradição oral presentes na literatura angolana. Nessa terceira face
do conto, se apresenta outras imagens que são formadas em um
contexto de guerra e que, por meio desse personagem, um idoso
em meio a guerra, com seus erros e ao se deparar sozinho naquele
contexto, que mesmo com “a fuga” da guerra no seu esconderijo,
ninguém o encontrou, ele sabia que a possibilidade de saída de
sua “cava” não existia. Sendo assim, contemplou a morte em
meio a vida e seu fim através das memórias.

- 265 -
Literatura, memória e cultura

Quando o momento se aproximou, nas rugas idênticas às da


mãe, as lágrimas apareceram devagar, lentas, curiosas, fa-
zendo nascer pequenos rios na sua cara anciã. Despira-se de
timidezes e foram caindo muitas mais. Ainda ouvindo os ba-
rulhos da guerra, quem sabe?, numa esperança última de que
ela acabasse naquele instante para que alguém entrasse por
ali dentro e, acima de tudo, lhe desse um abraço, ainda ou-
vindo os gritos inconstante das crianças pecadoramente ba-
leadas, murmurou com uma voz pequena «Ai mãe, sou tão
infeliz...» Esgueirou-se contra uma das paredes, encostou-se
muito a ela, desceu- a, trepou- a mesmo no sentido inverso e
quando atingiu o solo pôs as mãos juntas, sobre o peito.
Adormeceu. Sentiu longinquamente que certas recordações
atrasadas somente agora se apresentavam. Entre elas, distin-
guiu novamente num tom castanho o rosto e as rugas da sua
mãe. (...) Tardias. Eram recordações nebulosamente tardias.
(ONDJAKI, 2015, p.122 - 123).

Com isso, a compreensão de que as marcas resultantes da


guerra se transfiguram além dos prejuízos estruturais, individuais
e coletivos daqueles a vivenciam, bem como existem as conse-
quências psicológicas, as dores que levam o indivíduo a morte,
morte física, morte psíquica que deixa a guerra.

Considerações finais

A narrativa possibilita a enunciação sobre a importância


da ampliação do imaginário, dos deslocamentos conflitantes en-
frentados no conto, Kuíto (três faces), visto que é transbordado
os limites do que é “real” e “ficcional”, no qual a memória como
ferramenta analítica modula os atravessamentos da representação
de uma guerra de diferentes facetas e perspectivas de olhares.

- 266 -
Literatura, memoria y cultura

Assim, por meio do texto literário, é possível pensar as


ampliações das memórias culturais, que se dão numa relação in-
dividual e coletiva, visto que a memória não é uma simples re-
produção da realidade. Os estudos revelam que a memória, sendo
presentificada, compõe-se de traços do passado, mas não en-
quanto reconstrução, tendo em vista que o passado não se recons-
trói tal qual. Dessa forma, as narrativas apenas podem apresentar,
a partir de interpretações pautadas no presente e juntamente com
as rememorações, torna a memória dentro de um complexo de
ficcionalização.
No conto, o autor Ondjaki apresenta descrições de um
contexto de guerra, nesse recorte, a guerra de Kuíto e seu fim, que
possui distintas consequências. Com evocação da memória, visto
o contexto sócio histórico ao qual o autor estar inserido, contudo
não com objetivos factuais e sim com a construção de uma narra-
tiva ficcionalizante, seu comprometimento literário e não histori-
cista. Portanto, é possível identificar a fragilidade de delimitar
conceitos definitivos em torno dos estudos da memória. Nesse
sentido, as perspectivas de análises a partir da literatura possibi-
litam a aplicação das teorias já existentes, como também a proje-
ção de outros posicionamentos em torno da memória.
No que se refere a narrativa, aos personagens, as tramas
e imagens, direcionam evidencias de memórias impressas, reve-
lar contextos, histórias que ficam nas entrelinhas ficcionais. É im-
portante o entendimento, ainda, que mesmo a produção literária
sendo suscetível a ampliar variadas possibilidades, é necessário a
compreensão que a narrativa literária pode ser construída a partir
de memórias que se resvalam na sua produção e, são, de certa
forma, direcionamentos ou condicionamentos para os caminhos
que a narrativa literária percorre.

- 267 -
Literatura, memória e cultura

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- 269 -
Literatura, memória e cultura

12. MANIFESTAÇÕES DE RECORDAÇÕES


INFANTIS EM QUE SE CHAMA SOLIDÃO,
DE LYGIA FAGUNDES TELLES
_________________________

Ana Raquel de Sousa Lima1


Jéssica Lima e Silva2

Introdução

O ato de recordar acontecimentos de uma fase em que o


lúdico e a imaginação fazem-se presentes, nas experiências de
crianças, perpassa pela compreensão de que essas reminiscências
trazem à tona a possibilidade de significações de momentos vivi-
dos em meio a sentimentos como alegria, angústia, solidão entre
outros. Diante dessas percepções, este artigo tem por objetivo re-
alizar uma análise do conto, Que se chama solidão (2018), da
autora Lygia Fagundes Telles, voltando-se para às questões das
manifestações das recordações infantis. Quanto ao texto literá-
rio, ele faz parte de uma compilação de contos intitulada Os Con-
tos, que traz em sua estrutura obras como; Antes do Baile Verde;
Seminário dos Ratos; A estrutura da Bolha de Sabão; A Noite
Escura e Mais Eu; Invenção e Memória, Um Coração Ardente e
Contos Esparsos.
Em Que se Chama Solidão, está contemplado em Invenção
e Memória, que apresenta relatos de uma personagem em sua fase
infantil. Por conta disso, a perspectiva interpretativa se volta para
a percepção das manifestações das memórias da protagonista

1
IFPI – Instituto Federal do Piauí. Email anaraquel@ifpi.edu.br
2
UFPI – Universidade Federal do Piauí. Email: jessicals@ufpi.edu.br
- 270 -
Literatura, memoria y cultura

uma vez que a narradora expressa diversos acontecimentos vivi-


dos pela criança em seu grupo familiar.
Neste cenário, o que chama a atenção no tecido narrativo é
a relação afetiva da criança com suas pajens. Tendo na primeira,
Juana, uma relação de confiança e decepção que a fez sofrer e na
segunda, Leocádia, uma experiência de tristeza e dor por se apro-
ximar dos mistérios da morte. Essas e outras cenas são relatadas
pela narradora sugerindo ao leitor a presença das primeiras expe-
riências que trazem os sentimentos de angústia e solidão na vida
da infante em seu primeiro quadro social.
Diante destas possibilidades interpretativas tem-se como
suporte teórico as reflexões de Halbwachs (2003, p. 45) sob a
ótica da memória coletiva voltada para o grupo familiar. Para o
Sociólogo, é neste grupo que a criança, nessa época de sua vida,
participa de maneira mais íntima dos acontecimentos. Somando-
se a este ponto de vista, tem-se a contribuição de Assmann
(2011), quando a pensadora argumenta sobre a constituição das
memórias habitadas observando a necessidade de um portador
que pode ser o grupo ou mesmo o indivíduo. Quanto às visões do
passado, Sarlo (2007, p.12) pontua que “são construções, justa-
mente porque o tempo do passado não pode ser eliminado” e Ba-
chelard (1988) fazendo referência às significações dos espaços
interiores.
Sobre a escritora, Lygia Fagundes Telles, é importante
pontuar que é uma das maiores escritoras da literatura brasileira
contemporânea. Conforme Vanessa Rodrigues (2014) em seu tra-
balho intitulado, As Marcas da Memória na Escrita de As Meni-
nas de Lygia Fagundes Telles, o universo literário da escritora se
apresenta com diversidades de palavras que juntas passam a criar
mundos os quais se apresentam no limiar entre o vivido e o ima-
ginário.
- 271 -
Literatura, memória e cultura

Para Sandra Arantes (2016) em seu trabalho intitulado: Nos


Labirintos do Tempo: um estudo da escrita de Lygia Fagundes
Telles, as escritas da autora apresentam “uma tendência subjetiva
para a ficção que rebusca os mistérios humanos e explora um di-
álogo do eu com o social. Mostra ao leitor, muitas vezes, o que
este não vê por si só” (ARANTES, 2016, p. 16). A estudiosa men-
ciona ainda que sentimentos como tristezas antigas, eternas pai-
xões, lembranças coadunadas às imaginações conduzem o leitor
a se perceber refletido nas diversas obras tecidas por ela. Sobre o
conto Que se Chama Solidão, Arantes (2016), observa que:

a narrativa é uma lembrança. Nela ziguezagueia a memória


em pedacinhos de infância, pulando como amarelinha em
quadrinhos recortados de seus primeiros anos, o chão da in-
fância. Esse é um chão movediço, instável, porém seguro
onde a memória se encarregou de guardar o máximo que pu-
desse suportar, pois mescla um vai e volta à procura do pas-
sado, trazendo as histórias que ouvia, às vezes, na hora do
banho, depois do jantar, nas noites nas escadas (ARANTES,
2016, p.20).

Em outro momento de sua investigação Arantes (2016)


pela ótica dos mecanismos da memória pontua que, Em Invenção
e memória (2009, p.89), a autora “revive lembranças da infância,
memórias voluntárias e involuntárias, articuladas à imaginação
que a fazem lembrar imagens” [...] que reproduzem uma mistura
de sonhos, cheiros, sons.
Sobre as lembranças voluntárias e involuntárias a pesqui-
sadora a partir da clássica cena da sensação de comer o biscoito
conhecido como Madeleine, em No Caminho de Swann, de
Proust, pontua que;

- 272 -
Literatura, memoria y cultura

a memória voluntária é apresentada quando descreve a ten-


tativa de lembrar-se intencionalmente o passado. A memória
involuntária, ligada aos órgãos do sentido da natureza hu-
mana, ocorre desinteressadamente, fora dos domínios e al-
cance da consciência, dependendo de um encontro ao acaso
com uma sensação despertada por alguma coisa da qual se-
quer se suspeitava ainda existir na lembrança. (ARANTES,
2016, p. 85).

Tais Observações de Arantes (2016) são relevantes visto


que no conto Que Se Chama Solidão verificam-se lembranças
que expressam sensações por meio da audição. Diante destas per-
cepções é que este artigo busca analisar o texto de Lygia Fagun-
des Telles na perspectiva da memória infantil, observando a rela-
ção da protagonista criança e sua aproximação amistosa com as
pajens e as sensações e ficcionalizações presentes nesta relação
que traz à luz as ações das pajens de contar histórias e cantar mú-
sicas infantis, atos de extrema significância no imaginário infan-
til. Ações essas que sinalizam marcas significativas perpetuadas
ao longo das experiências da personagem em seu quadro social
inicial, a família. Assim, é a partir dessas percepções que esta
análise é desenvolvida.

Rememorações Infantis em Que se Chama Solidão

O conto, Que se Chama Solidão, de Lygia Fagundes Telles,


apresenta-se com uma narradora em primeira pessoa que reme-
mora momentos de sua infância ainda em sua fase pueril. A nar-
radora ao iniciar suas recordações cita a expressão, “chão de in-
fância”, que se complementa com a de “lembranças movedi-
ças”, apresentando já neste primeiro momento um entrelaçar di-
cotômico entre o que está substancializado e o instável.
- 273 -
Literatura, memória e cultura

Sinalizando, portanto, a essência do recordar que pode ser conce-


bido como um ato de evocar algo do passado que se faz presente
por diversos mecanismos sejam eles físicos ou psíquicos.
Dessa forma, merece destaque na teia narrativa, o jogo en-
tre passado - presente observado no relato da protagonista como
em, “vejo a tia Laura, a viúva eterna que suspirava e dizia que
meu pai era um homem muito instável. Eu não sabia o que queria
dizer instável” (TELLES, 2018, s.p). Em um outro momento ela
relata, “naquela tarde quando voltei da escola encontrei todo
mundo assim de olhos arregalados” (TELLES, 2018, s.p). Ob-
serva-se nestas passagens a tônica voltada para as palavras, ins-
tável e olhos arregalados, sinalizando com a primeira as instabi-
lidades das recordações tendo no personagem pai uma alusão a
essas situações prováveis diante de rememorações. O outro ponto
destacado é a maneira como os familiares se entreolham na cena
angustiante da morte da segunda pajem. Assim, tais menções e
expressões remetem às rememorações em que algo não tem sig-
nificado no dado momento ou se apresente lacunar e que somente
a posteriore, tornam-se significativos.
Ainda nos fragmentos acima se observa a relação temporal
marcada pelo entrelaçar de ações identificadas pelos verbos -
vejo, no presente e voltei e encontrei – no passado algo que su-
gere ao leitor uma mescla temporal que perpassa entre idas e vol-
tas nas manifestações das recordações. Tal perspectiva potencia-
liza a argumentação de Sarlo (2017) no que tange às reconstru-
ções do passado, pois segundo ela, “fala-se do passado sem sus-
pender o presente e, muitas vezes, implicando também o futuro”.
(SARLO, 2007, p. 12). Neste caso, é um passado presente que se
estabiliza entre idas e vindas ao pensamento da protagonista.
Para além destas percepções, observa-se também no conto
de Telles (2018) a presença de vozes femininas identificadas
- 274 -
Literatura, memoria y cultura

inicialmente pela narradora-personagem ainda criança, em conti-


nuação a mãe da personagem, a tia Laura, as pajens Juana e Leo-
cádia e Maria. Sobre esta perspectiva de Lygia Fagundes Telles,
Rodrigues (2014), menciona que:

Em entrevista cedida na revista Vitrine, da TV Cultura, ao


jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, em 17 de
abril de 2013, em comemoração aos seus 90 anos, Lygia tece
profundas reflexões sobre várias de suas obras, fala do prazer
de relembrar momentos marcantes enumera algumas de suas
personagens com grande paixão, e diz manter uma postura
de busca da compreensão do universo feminino em uma so-
ciedade opressora. (RODRIGUES, 2014, p. 20)

Diante desta menção, o olhar volta-se para as pajens que


fazem companhia a protagonista do conto e que são figuras ful-
crais na narrativa visto que o enredo se declina para os aconteci-
mentos entre a narradora infantil e sua relação com essas perso-
nagens companheiras de brincadeiras, histórias de terror e canto-
rias como observado no enredo, quando Juana conta histórias de
terror na escada e Leocádia canta a música “se essa rua, se essa
rua fosse minha...”.
Assim, ao longo da narrativa observa-se que a personagem
é uma criança que demonstra se sentir sozinha, ainda que mo-
rando em uma casa com sua mãe, seu pai, sua tia e suas pajens
Juana, a primeira e Leocádia a segunda. Percebe-se que os fami-
liares não a complementam sentimentalmente, tal observação é
identificada no início da narrativa quando a narradora faz refe-
rência à figura materna: “vejo essa mãe mexendo enérgica no ta-
cho de goiabada ou tocando ao piano aquelas valsas tristes”
(TELLES, 2018, s.p). Diante desta expressão na narrativa, veri-
fica-se por meio do pronome demonstrativo - essa - certo
- 275 -
Literatura, memória e cultura

distanciamento entre as duas. É como se a narradora tentasse de-


monstrar ao leitor por meio dos jogos de palavras o sentimento
de solidão que perpassa na casa mesmo sendo povoada, isto é,
todos tinham seus trabalhos e a menina ficava de lateral no que
concerne às emoções e as relações familiares.
A partir desta cena, é possível um diálogo com o pensa-
mento de Halbwachs (2003) no sentido de que o grupo familiar,
que é o primeiro experienciado pela criança, é o que mais con-
serva memórias. Porém, neste contexto o grupo que fixa as lem-
branças afetivas é o da criança com as pajens visto que é com elas
que a protagonista passa a maior parte do seu tempo e, é com elas
que suas imaginações e alegrias da infância são compartilhadas.
Assim, com a primeira pajem, Juana, a protagonista men-
ciona que “ela me dava banho, me penteava o cabelo e contava
histórias nesse tempo em que eu ainda não frequentava a escola”
(TELLES, 2018, s.p). Tais menções reforçam a possibilidade de
a menina ter uma afeição maior à pajem que aos membros de sua
família. Essas manifestações coadunam-se com as argumentadas
por Assmann (2018) quando ela pontua os estabilizadores da me-
mória e dentre eles tem-se o afeto. Sobre esse estabilizador a pes-
quisadora menciona que ele pode se fazer presente em momentos
em que algo incomum ou mesmo inacreditável fixaram-se como
força memorativa. Nesse sentido, para Assman (2018), recorda-
ções e afetos fundem-se em um complexo indissolúvel especial-
mente quando se refere às recordações biográficas individuais.
Ainda sobre o grupo família, Halbwachs (2003, p.45), ob-
serva que “a família é o grupo do qual a criança participa mais
intimamente nessa época de sua vida e está sempre à sua volta”.
Contudo, neste contexto, as lembranças da personagem com re-
lação à família se estendem às pajens visto que os momentos com
os pais são escassos de sentimento e as lembranças que
- 276 -
Literatura, memoria y cultura

permanecem possivelmente se estabilizem como recordações não


significativas em um futuro, permanecendo às lembranças afeti-
vas entre a personagem narradora e as pajens.
Por se tratar de um enredo que traz o espaço da casa como
um dos locais de maior ação dos personagens vislumbrado atra-
vés de passagens como; “naquela tarde [...] ela começou a dese-
nhar com carvão no muro do quintal”; “por essa época apareceu
em casa a filó, uma gata loucona”; “Antes do jantar tinha a lição
de catecismo e das primeiras letras”, substancializando os cotidi-
anos de uma casa familiar. Nesse ínterim, percebe-se a referência
ao ambiente e rotinas em uma casa. Diante disso, é importante
pontuar que é neste espaço que acontecem as brincadeiras relata-
das pela menina com suas pajens Juana e Leocádia. Sobre esse
local o diálogo se aproxima às contribuições de Bachelard (1988,
P. 112), quando ele pontua que “a casa é o nosso canto do mundo.
Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo”.
Para o estudioso, “a casa é um dos maiores poderes de integração
para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”
(BACHERLARD, 1988, p. 113).
Com isso, é possível perceber a casa como o lugar do acon-
chego, da afetividade, da conservação de acontecimentos que
proporciona sonhos e imaginações, isto é, um lugar que se apre-
senta como armazenador de memórias afetivas junto aos familia-
res ou pessoas afetivamente próximas. Entretanto, é importante
pontuar que é também neste ambiente que surgem momentos de
solidão, angústia e tristezas advindas de acontecimentos inespe-
rados para uma percepção infantil de maneira que “tudo se ativa
quando as contradições se acumulam” afirma Bacherlard (1988,
p.135).
Tais contradições podem ser compreendidas pela ótica de
Bachelard (1988) a partir da análise de Baudelaire em Curiosités
- 277 -
Literatura, memória e cultura

Esthétiques1 sobre uma tela que traz a percepção de “uma chou-


pana perdida nos confins de um bosque” no inverno; “a estação
triste” com a contradição de que em algumas passagens o mesmo
inverno mencionado proporcione no leitor efeitos de extratos da
felicidade. Para Bacherlard (1988, p. 135) “o inverno evocado é
um reforço da felicidade que existe em habitar. No reino único da
imaginação, o inverno evocado aumenta o valor da habitação da
casa”.
Neste contexto, tem-se nas palavras casa e inverno contra-
dições com relação à significação quanto ao momento em que se
recorda algo. Há significações que se aproximam a um inverno
com aspecto de tristeza e há momentos em que o inverno traz um
conforto no mesmo ambiente que é a casa, sinalizando com isso,
o aspecto contraditório relevante quando se volta para análise do
espaço casa e suas significações internas e externas.
Trazendo tal perspectiva de Baudelaire pontuada por Ba-
chelard, das lembranças significativas e contraditórias, às lem-
branças da narradora tem-se em um primeiro momento com Ju-
ana, uma órfã, negra e analfabeta, caracterizada assim, pelo pa-
dre, na narrativa. Uma personagem que gostava de contar histó-
rias de assombração às crianças na escada da casa, embora não
soubesse ler usava de sua imaginação para deixar as crianças com
a sensação de medo. Sobre essas histórias a narradora menciona
que:

eu fechava olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de to-


dos era aquele quando os ossos da alma penada começavam
a cair do teto diante do viajante que se abrigou no castelo

1
Obra mencionada em O Novo Espírito Científico: a poética do espaço.
P. 135. Na passagem é mencionada uma análise de Baudelaire sobre uma
tela de Lavieille.
- 278 -
Literatura, memoria y cultura

abandonado. Noite de tempestade, o vento uivando,


uuuuuuh!... E a alma penada ameaçando cair, Eu caio! gemia
a Juana com a mesma voz fanhosa das caveiras. [...] (TEL-
LES, 2018, s.p)

Embora gostasse de inventar as histórias e tivesse uma re-


lação amistosa com a protagonista, isso não foi suficiente para
que Juana permanecesse na casa, naquela vida, indo embora da
residência sem se despedir da criança que aguardava todas as noi-
tes as histórias de terror e mistérios, ausência esta que fez a in-
fante chorar desesperadamente:

Quando ela fugiu com o moço do circo que estava indo para
outra cidade eu chorei tanto que minha mãe ficou aflita, Me-
nina ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que
gente queixou-se ao meu pai enquanto ia tirando os carrapi-
chos enroscados no Volpi que era peludo e já chegava ge-
mendo porque sofria a dor com antecedência. (TELLES,
2018, s.p).

Nos fragmentos acima se pode observar as contradições


pontuadas por Bachelard no que se refere à presença da pajem no
ambiente familiar a qual traz ao ambiente o sentimento de felici-
dade, pois ela era que proporcionava às imaginações infantis den-
tro da casa no contar das histórias, porém o mesmo espaço se tor-
nou vazio, sem sentimento no momento em que a pajem se tornou
ausente, reforçando as análises de Baudelaire pontuadas por Ba-
chelard quanto ao valor contraditório que podem trazer as evoca-
ções das memórias diante das diversas circunstâncias dentro de
uma casa.
Contudo, há outra questão que também merece atenção,
por se tratar do primeiro momento afetivo de afastamento brusco
que a narradora personagem sente ao ser deixada por alguém de
- 279 -
Literatura, memória e cultura

quem ela gostava – a pajem - e que preenchia o espaço sentimen-


tal ofuscado pela ausência dos pais. Fato que condiciona a um
possível choque emocional por conta da relação amistosa e do
acontecimento inesperado para a narradora criança. Diante desses
acontecimentos, observa-se a sensação de solidão se manifes-
tando na trajetória da vida da infante.
Após este momento de separação entre pajem e criança,
surge na vida da narradora personagem, outro ser que se chama
Leocádia, esta não traz a habilidade da contação de história, mas
outra que se materializa pelo sentido sonoro observado quando a
tia Laura fala sobre Leocádia “menina afinada, tem voz de so-
prano! [...] a tia disse que sua voz é de soprano”. Apontando sig-
nificações por meio da sonoridade. De forma que a habilidade da
pajem em cantar traz à luz a percepção de outra circunstância de
felicidade que se materializou na vida da criança. A música pode
conotar a metáfora da alegria, da satisfação, do prazer.
Na narrativa, notou-se que o leitor encontra acontecimen-
tos que remetem a fixação da memória por meio dos sentidos. O
escutar da música que a pajem cantava e dançava é uma maneira
de estabilização das lembranças que reforçam o pensamento de
Arantes (2016) sobre as reminiscências involuntárias que retor-
nam pelos sentidos. Tais rememorações vêm à tona quando se
nota o prazer de escutar a pajem Leocádia cantar: “nesta rua,
nesta rua tem um bosque, que se chama que se chama solidão,
dentro dele dentro dele mora um anjo, que roubou que roubou
meu coração”. (TELLES, 2018, s.p).
Além disso, é possível observar que a canção de roda dei-
xou marcas no imaginário infantil da criança e serviu como um
presságio para sentimentos futuros que se aproximavam da vida
da criança. Vê-se nas palavras da canção, anjo e coração, metá-
foras que servem para simbolizar o doloroso rompimento da
- 280 -
Literatura, memoria y cultura

infante com a outra pajem, Leocádia, fato que trouxe um maior


afeto à personagem, pois surge o conceito de morte em sua vida.
Para Assmann (2011), o afeto desempenha um papel central para
as lembranças e “quando vemos algo extraordinariamente baixo,
abominável, incomum, grande, inacreditável ou ridículo, tais coi-
sas ficam gravadas em nossa memória por longo tempo” (ASS-
MANN, 2011, p. 269).
Sobre o afeto sentido pela criança é possível percebê-lo
quando ela menciona:

naquela tarde, quando voltei da escola encontrei todo mundo


assim de olho arregalado. no quintal, a cachorrada se engal-
finhando. e Leocádia? perguntei e tia Laura foi saindo assim
meio de lado [...] corri para escutar detrás da porta. Agora
era minha mãe que falava chorando, não Laura, não ela está
morrendo!...A pobrezinha está morrendo, imagina grávida
de três meses![...] que tragédia! meu Deus, que tragédia!
(TELLES, 2018, s.p)

Esta passagem traz à luz o momento em que a protagonista


soube da morte de Leocádia por conta de um aborto. Tais escutas
atrás da porta, mencionadas pela narradora, para descobrir a
causa do sumiço de sua pajem e o descobrimento de forma ab-
rupta remetem às possibilidades de as reconstruções das lembran-
ças das crianças estarem afetadas conforme pontuado por Ass-
mann (2018), pois se trata para aquele universo infantil de algo
inacreditável e incomum para as percepções da infante.
A partir desta cena a narrativa toma outra direção e o leitor
se vê diante de acontecimentos insólitos, mas que ao mesmo
tempo podem ser compreendidos sob a perspectiva do entrelaça-
mento de recordações substancializadas através das experiências
de contações de histórias de terror na escada executadas pela
- 281 -
Literatura, memória e cultura

pajem Juana e as cantigas de rodas realizadas por Leocádia. Este


entrecruzar de lembranças afetivas é inferido quando a narradora
personagem pressente a presença da pajem morta entre as flores:

já estava escurecendo quando passei pelo jasmineiro e parei


de repente, o que era aquilo, mas tinha alguém ali dentro?
Cheguei perto e vi no meio dos galhos a cara transparente de
Leocádia, o riso úmido. Comecei a tremer, A quermesse, Le-
ocádia, vamos? convidei e a resposta veio num sopro, Não
posso ir, eu estou morta… [...] Quando voltei para o jasmi-
neiro, só as florinhas brancas no feitio das estrelas.” (TEL-
LES, 2018, s.p)

Este momento deixa o leitor ambíguo com relação ao fato,


pois em outros momentos a protagonista vivenciou efabulações
com Juana e, no momento presente, vivenciou um choque afetivo
causado pelo já mencionado sentimento da morte. Nesse sentido,
é provável que tais percepções da criança estejam relacionadas às
histórias de terror escutadas à noite na escada da casa.
Nota-se o insólito marcado na escrita pelas palavras; trans-
parentes, riso úmido, florinhas brancas, marcas linguísticas que
remetem à figura morta e por estar morta não ter a possibilidade
de falar. Entretanto, essa ação é executada pois a criança compre-
ende a resposta da pajem pela menção: “Leocádia, vamos? Con-
videi e a resposta veio num sopro” (TELLES, 2018, s.p). Este
fragmento dialoga com a afirmação da tia Laura, anteriormente
citada, ao se referir à forma do cantar da Pajem. Porém, são situ-
ações distintas que perpassam entre a vida e a morte. Corrobo-
rando assim com a perspectiva insólita na obra.
Deste modo, é a teia narrativa de Telles, uma construção
que evoca as recordações infantis, os afetos e os sentimentos que
aos poucos vão surgindo na vida ficcional da personagem e que
- 282 -
Literatura, memoria y cultura

se aproxima à vida real do ser humano. Pontuando circunstâncias


que atravessam a vida, seja ela real ou ficcional, como as possi-
bilidades do choque e do insólito. Diante disso, ler Que se Chama
Solidão induz ao leitor a um caminhar por um bosque de senti-
mentos diversos e ao mesmo tempo refletir sobre eles os quais se
assentam em ambiguidades diante de fatos que se entrelaçam no
limiar entre a vida e seus prazeres, angústias, a morte e seus mis-
térios.

Considerações Finais

A narrativa de Lygia Fagundes Telles, Que se Chama So-


lidão, traz à tona a perspectiva das recordações da protagonista
que se apresenta ainda na infância e recorda momentos prazero-
sos e angustiantes diante de acontecimentos que se faziam dis-
tante do seu mundo infantil.
Ao longo do texto literário observou-se não só a evocação
de lembranças, que é um ponto essencial no enredo, mas também
a presença de sentimentos que se fazem necessários nas relações
familiares com a sensibilidade ao mundo lúdico e imaginativo da
criança, a importância do afeto e relação entre os pais e os filhos.
Notou-se que a presença das pajens, na casa, e, no mundo
da protagonista era algo que preenchia afetivamente a vida dela e
foi com elas que a menina conheceu os dois lados da vida, o pra-
zer de ouvir histórias misteriosas que provocavam nela a imagi-
nação e o medo, os momentos lúdicos das cantigas de rodas que
traziam a ela o bem-estar por meio da sonoridade, da voz da pa-
jem Leocádia. Entretanto, os sentimentos de solidão, angústia,
medo e insegurança também foram sentidos pela protagonista a
partir das ações das mesmas pajens que antes lhe proporcionaram
os melhores afetos e mais duradouras lembranças desta fase da
- 283 -
Literatura, memória e cultura

vida que não se vislumbra sofrimento, mas sim brincadeiras e ilu-


sões. Sobre este espaço, da casa, é importante pontuar o diálogo
com o pensamento de Bacherlard (1988, p.135), no sentido de
que “tudo se ativa quando as contradições se acumulam”, isto é,
ainda que a casa seja um lugar acolhedor é nela que também ve-
rificou-se como o local de sentimentos contraditórios. E neste ce-
nário, foi vislumbrando um espaço em que a alegria e a tristeza
têm efeitos na sensibilidade da narradora-personagem por meio
do prazer de brincar e cantar com as pajens, mas também a tris-
teza de perdê-las de forma repentina e por vezes brusca.
Ao final da narrativa, a autora explora também a perspec-
tiva fantástica a partir da morte e do reaparecimento de Leocádia
entre as flores. É neste momento, que o leitor se vê diante de uma
experiência insólita visto que já era certo que a pajem não resis-
tira ao aborto. Esta passagem deixa no leitor uma incógnita no
sentido de que, a menina por gostar tanto de Leocádia e ter des-
coberto sua morte de maneira brusca, tenha resgatado as histórias
inventadas e misteriosas de Juana e ter unido tais afetos como
uma forma de não se sentir só e ter a presença da pajem represen-
tada nas flores brancas do jardim de sua casa.
Enfim, observa-se na narrativa de Lygia Fagundes Telles
um resgate de memórias afetivas e dolorosas e uma ênfase às re-
lações familiares no sentido de que a criança busca em outra pes-
soa o afeto que deveria vir inicialmente dos pais, e quando isto
acontece o ser aprende desde os primeiros momentos de vivência
o sentido da vida que é estar sempre no limiar entre a vida e a
morte, a alegria e a tristeza, a presença e a solidão.

Bibliografía

- 284 -
Literatura, memoria y cultura

ARANTES,S. Nos labirintos do tempo: um estudo da escrita de


Lygia Fagundes
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ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transfor-
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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 5. ed. São Paulo:


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vel em: <https://ler.amazon.com.br/?asin=B07JBNWMNL> .
Acessado em: 26 jan. 2021;
TELLES, L. Que se Chama Solidão. In: Os Contos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.

- 285 -
Literatura, memória e cultura

13. MEMÓRIAE VOZ NARRATIVA NOS CON-


TOS HAPPINESS, DE VIRGINIA WOOLF E
FELICIDADE CLANDESTINA, DE CLARICE
LISPECTOR
_________________________

Laiane Lima Freitas1

Introdução

A compreensão do texto literário nos estudos comparados


conduz à análise dos procedimentos que caracterizam as relações
entre os textos. Esse caráter crítico exige, todavia, não uma mera
identificação simples de relações entre obras, mas também uma
análise mais detalhada de como e por que essa interação se mani-
festa. Sendo assim, analisar uma obra literária a partir do estudo
comparativo exige não somente o estabelecimento de uma cone-
xão entre textos, mas a compreensão dessa conexão e os parâme-
tros usados para tecer o estudo. Na medida em que “o compara-
tista estabelece relações, focalizando mudanças, trocas, e reflete
principalmente sobre diálogos entre literaturas e cultura”. (PA-
GEAUX, 2011, p.13).
Essa questão do diálogo de culturas e memória torna-se
pertinente para estudar a voz narrativa nos contos de duas autoras
da Literatura, Clarice Lispector e Virginia Woolf, que, embora
sejam de culturas diferentes, abordaram a temática da felicidade.
O objetivo desta pesquisa é discutir as estratégias empregadas pe-
las autoras para colocar em ação, no texto ficcional, o trabalho de

1
Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. E-mail: lai-
ane.lfreitas.santos@gmail.com.
- 286 -
Literatura, memoria y cultura

condensação e deslocamento, provocado pela movimentação da


memória inconsciente, que permite a manifestação de questões
relativas ao tema da felicidade entre os contos Felicidade Clan-
destina (1998), de Clarice Lispector, e Happiness (2005), de Vir-
ginia Woolf. A memória é representada, em seu discurso ficcio-
nal, sobretudo a partir do trabalho com a voz narrativa que se faz
presente e expõe o processo de constituição da própria subjetivi-
dade.
Para que pudéssemos abrir caminho nesse estudo, discuti-
mos brevemente algumas características da escritura de ambas as
autoras: primeiramente da brasileira Clarice Lispector e, em se-
guida, da inglesa Virginia Woolf. Para isso, utilizamos como re-
ferência os trabalhos de Sá (2000), Silva (2008), e Humprey
(1976). Como referencial teórico, utilizamos Carvalhal (2006),
Pageaux (2011) e Guillén (1985); na parte da análise adicionamos
considerações de Piglia (2004) e retomamos Sá (2000), Assman
(2011), Chiappini (1991), juntamente com trechos dos contos em
Lispector (1998) e Woolf (2005).

1 Características da escritura das autoras

Clarice Lispector, da época modernista, aparece com su-


cesso na nação brasileira, enquanto Virginia Woolf aparece numa
época mais romântica, na Inglaterra. Mas o que tem aproximado
as autoras nos estudos comparativos pelo mundo é a semelhança
de estilo na escrita, na construção de seus personagens, na cons-
trução dos sentidos. O estudo temático da felicidade presente em
Happiness (2005) e em Felicidade Clandestina (1998) é percep-
tível. Com isso, na presente seção, abrimos um breve parêntese
sobre a escrita de Clarice Lispector e de Virginia Woolf, partes
do objeto de estudo desta pesquisa.
- 287 -
Literatura, memória e cultura

A escritura de Clarice Lispector quando posta em análise


apresenta, como uma de suas principais características, o uso da
metalinguagem; em um jogo das dificuldades do dizer, o papel
das palavras e o não-dito do silêncio que delas irradia. Ao captar
a essência das coisas ao redor, a consciência tenta “apreender a
essência de si mesma. Como se o mundo fosse o espelho do eu, e
como se apreender a imagem refletida equivalesse à apreensão do
eu verdadeiro”. (MOISÉS, 1989, p.155).
De acordo com Sá (2000), a escritura de Lispector aparece
por vezes marcada pela presença não só desse jogo metalinguís-
tico e personagens conectados com o meio os quais estão inseri-
dos, como também pela presença do tom poético e a sutileza psi-
cológica, procedimento o qual faz com que as palavras no seu
texto não venham a ter o primeiro valor (sentido) as quais pos-
suem, mas sendo atribuído a elas um novo valor (àquilo que pa-
rece sem sentido).
Para Silva (2008), a escrita da autora também trabalha con-
tra a ideia de uma linearidade. Não há um tempo específico para
os acontecimentos de cada personagem em cada trama. Sua obra
parece transferir ao leitor que não há encadeamento lógico, e,
dessa maneira, a autora acaba criando:

um universo no qual o sentido estaria ancorado em uma arti-


culação na qual predomina a causalidade, a explicação, o ex-
plícito. Antes, as suas narrativas fazem-nos desconfiar se-
quer da possibilidade de articulação de sentidos de modo in-
teligível. Somos lançados em um espaço em que a literatura
flerta com a loucura, com o sem-sentido. (SILVA, 2008, p.
29).

De todas as características que a obra da autora apresenta,


e talvez a que mais lhe deu a fama de se assemelhar com a escrita
- 288 -
Literatura, memoria y cultura

da inglesa Virginia Woolf, foi o seu tom existencialista. Para Be-


nedito Nunes (1969), Lispector “em vez de escrever, ela descre-
vesse, conseguindo um efeito mágico de refluxo da linguagem,
que deixa à mostra o “aquilo”, o inexpressado”. (NUNES, 1969,
p.138). Ao se esforçar para dizer o indizível, a escrita Clariceana
prova que há algo ausente, o não dito. Sousa (2012) ressalta o fato
de a autora apresentar, no primeiro plano, a escrita em seu pro-
cesso de formação, o que nos remete à ideia de memória enquanto
escritura e a imagem da narradora-protagonista passando para o
papel em branco as palavras que formam o próprio relato.
Na escritura de Virginia Woolf, por sua vez, observamos
que o seu desejo de renovar o romance fez com que a autora ex-
perimentasse diversas técnicas narrativas, como as reflexões da
narrativa interligadas com as falas, o pensamento e as ações dos
personagens. Alguns recursos empregados na escrita pela escri-
tora são o fluxo de consciência, o modo de representação, linea-
ridade temporal, a fragmentação do sujeito, e que tornam sua obra
subjetiva e existencialista.
As sensações, os gestos casuais, os estados de consciência,
auxiliam na compreensão para uma real representação da experi-
ência humana. Uma das técnicas utilizadas pela escritora é co-
nhecida como fluxo de consciência. Para melhor entendermos a
definição desta técnica, observemos o comentário de Robert
Humphrey:

O romance do fluxo da consciência pode ser mais rapida-


mente identificado por seu conteúdo, que o distingue muito
mais do que suas técnicas, suas finalidades ou seus temas.
Por isso os romances a que se atribui em alto grau o uso da
técnica do fluxo da consciência provam, quando analisados,
serem romances cujo assunto principal é a consciência de um
ou mais personagens; isto é, a consciência retratada serve
- 289 -
Literatura, memória e cultura

como uma tela sobre a qual se projeta o material desses ro-


mances. (HUMPHREY, 1976, p. 2).

Humphrey (1976) explica que precisamos compreender


que o que se manifesta através das técnicas de fluxo da consciên-
cia é maior do que a fala pode expressar, neste sentido, deixando
a superficialidade de lado para atingir uma profundidade na his-
tória. A ficção do fluxo da consciência explora os níveis de cons-
ciência que antecedem a fala, com a finalidade de evidenciar o
estado psicológico dos personagens. Por exemplo, no início do
conto Happiness (2005), aparece o desencadeamento de sensa-
ções por parte do personagem principal chamado de Stuart Elton,
associando a sua atitude de remover um fio da calça com um “pe-
teleco” à queda de uma pétala de rosa, os sentimentos desencade-
ados fazem com que o personagem tenha um fluxo da consciência
que antecede a sua fala.
Quanto a escritura de Clarice Lispector e Virginia Woolf,
é notório que são os motivos casuais que desencadeiam diversas
correntes de pensamentos em seus personagens na narrativa,
neste caso, sobre o conceito do sentimento de felicidade. Ou seja,
os acontecimentos exteriores acabam servindo para lançar e ex-
por as reflexões através da definição do que seria felicidade.

2 Parâmetros do estudo comparativo

Conforme Guillén (1985), entendemos que fazer um estudo


comparativo, envolve a compreensão da luta e do diálogo entre a
unidade da imaginação poética e a diversidade de suas diferentes
manifestações; entre o todo e o indivíduo. O ponto de partida de
todo estudante de Literatura Comparada deve ser a análise da di-
alética entre certas estruturas recorrentes ou fundamentais que
- 290 -
Literatura, memoria y cultura

ocorrem nas diferentes literaturas e culturas. Para entender me-


lhor, abrimos nessa seção um parêntese para o que é literatura
comparada, brevemente, e na seguinte, abrimos um espaço para
falar dos parâmetros utilizados no estudo comparativo: temática
e interculturalidade.

2.1 O que é literatura comparada

Literatura comparada, no olhar da pesquisadora Tânia Car-


valhal (2006, p. 6), “designa uma forma de investigação literária
que confronta duas ou mais literaturas”. Nesse sentido, esse
campo de estudos literários busca a aproximação entre as litera-
turas, bem como a relação entre a literatura produzida em dife-
rentes nações. Em outras palavras, é um estudo que confronta di-
ferentes manifestações literárias, como também a comparação da
literatura com outras esferas artísticas. Já na visão de Pageaux
(1984), a leitura lateral:

Pressupõe que, por meio de uma série de deslizes controla-


dos e de similitudes identificadas e exploradas, um texto
possa iluminar outro texto. A leitura assim concebida é uma
escuta dos textos, a mais detalhada e mais ampla ao mesmo
tempo. Ela identifica-se com um jogo de espelhos no qual se
desenham alternadamente os princípios organizadores, os es-
quemas fundadores, as lógicas e as derivas da imaginação
criadora, os deslocamentos e sobreimpressões de elementos,
os motivos secundários. Leituras ao mesmo tempo oscilantes
e cruzadas, na qual o especialista em determinada literatura
pode não reconhecer “seu” texto, seu autor. Mas há um sen-
tido, um texto? Uma leitura crítica bem conduzida é sempre
nova. (PAGEAUX, 1984, p.7).

- 291 -
Literatura, memória e cultura

A Literatura Comparada, dessa maneira, volta sua investi-


gação para as relações que se estabelecem entre textos literários
pertencentes ou não a mesma esfera cultural, histórica, espacial.
Embora as diversas manifestações literárias estejam distantes na
cultura, na história e no espaço, devemos notar a observação de
Carvalhal (2006) quando, aludindo a Roland Barthes, menciona
a importância da noção de comunidade textual para os estudos
literários comparatistas. Segundo ela:

A crença de que há nos textos literários elementos comuns


que identificam sua natureza, sem que isso os uniformize, é
que ampara a atuação não só da teoria literária como da lite-
ratura comparada [...]. Assumem, no caso, como finalidade
última, a aproximação global da literatura, na qual cabe dar
conta da complexidade de relações interliterárias [...] (CAR-
VALHAL, 2006, p. 125).

Nesse sentido, podemos entender que os textos literários,


embora distantes historicamente e culturalmente, guardam rela-
ções entre si num diálogo em que são perceptíveis os elementos
comuns que os identificam, mas que, longe de uniformizá-los, os
aproximam, colocando-os numa teia complexa de relações. É so-
bre essa teia complexa que se debruça tanto a teoria literária como
os estudos comparatistas. Carvalhal (2006) destaca as três pre-
missas baseadas na teoria do texto: “a primeira, ‘que a linguagem
poética é a única infinitude do código’, depois, que o texto literá-
rio é duplo: ‘escrita/leitura’ e, finalmente, que o texto literário é
‘um feixe de conexões”. (CARVALHAL, 2006, p. 127). Nesse
sentido, há um grande diálogo entre os textos literários, “o diá-
logo entre várias escrituras”, “as relações passam a ser estabele-
cidas no conjunto dos textos”. E esse diálogo tem se mostrado
uma via dos estudos comparatistas.
- 292 -
Literatura, memoria y cultura

A compreensão do texto literário na perspectiva compara-


tista conduz à análise dos procedimentos que caracterizam as re-
lações entre os textos. A atitude crítica reivindica “não a simples
identificação de relações entre os textos, mas uma análise pro-
funda de como e por que essa relação se manifesta”. (CARVA-
LHAL, 2006, p. 51). Analisar uma obra literária a partir dos es-
tudos comparatistas exige não somente o estabelecimento de uma
conexão entre textos, mas a compreensão dessa conexão. Além
disso, como lembra Pageaux (2011), a intertextualidade deve ser
entendida como toda a compreensão de um texto dentro de outro
texto, mas para isso, como ressalta o autor, é necessário estabele-
cer relações, permutas, a reflexão sobre os diálogos entre litera-
turas e entre culturas, apontando as semelhanças e também as
dessemelhanças. Ao apontar essas questões, Pageaux (2011) traz
para os estudos comparativos os parâmetros da interculturalidade
e a temática.

2.1.1 Temática e interculturalidade

Quando nos propomos dialogar com dois textos entre si, a


intertextualidade entra em ação. Mas quando duas obras estão em
lados opostos do oceano, presentes em culturas distintas, todavia
com temáticas semelhantes, conforme os estudos em Pageaux
(2011), tomamos em consideração a interculturalidade. Ao falar
de interculturalidade, o teórico aponta como primeira constatação
importante para o estudo comparativo que “todo problema de in-
tertextualidade se transforma, para o comparatista em questão de
interculturalidade”. (PAGEUX, 2011, p. 186).
Em um estudo comparativo, conforme aborda o teórico,
quando vamos dar conta de um texto estrangeiro em outra obra,
a própria questão da intertextualidade obriga ao comparatista a
- 293 -
Literatura, memória e cultura

pôr em paralelos dialógicos ferramentas que relacionem os textos


entre si; nas trocas, encontros, relações entre culturas e literaturas
abarcando uma história cultural. Deve-se, portanto, observar as
temáticas presentes nas obras.
Pageaux (2011, p.187) relata que “o tema é um elemento
intratextual, espécie de matéria indivisa na qual nos parece que a
imaginação tem poder de escolha”. Ou seja, para o autor, a temá-
tica acontece no interior das obras literárias, e são inseparáveis
quando optam pelo mesmo tema, mesmo podendo se distanciar
em outras formas e gêneros.
Segundo Pageaux (2011), quando uma temática é fre-
quente nas obras literárias de diversas literaturas, em um mesmo
período, fala-se em temática de época. E quando esse tema não é
de uma mesma época? Entendemos, nesse sentido, uma temática
atemporal, para além das épocas, como o tema presente nos con-
tos estudados, a felicidade. Entender o tema em seu sentido am-
plo, para Pageux (2011), entra como terceiro elemento na discus-
são entre forma e gênero. São nos critérios temáticos e formais
(linguísticos, estilísticos, modos de enunciação etc.), que, con-
forme o teórico, tornam possível os estudos comparados.

3 Memória e voz narrativa nos contos

A discussão centra-se no tema da felicidade associada à


memória e às vozes narrativas existentes nos contos Felicidade
Clandestina (1998), de Clarice Lispector, e Happiness (2005), de
Virginia Woolf. Antes de nos adentrarmos na análise mais deta-
lhada dos contos, acrescentamos o comentário de Piglia (2004)
sobre o gênero conto. Segundo o teórico, o conto é construído
para evidenciar artificialmente algo que está oculto, “a trama de
um relato esconde sempre a esperança de uma epifania. Espera-

- 294 -
Literatura, memoria y cultura

se algo inesperado, e isso vale também para quem escreve a his-


tória”. (PIGLIA, 2004, p.105). Desse modo, através dos conflitos
interiores dos personagens, o conto estimula no leitor uma refle-
xão sobre as verdades universais. E Felicidade Clandestina e Ha-
ppiness, têm a capacidade de suscitar no leitor tais reflexões a
partir da temática.
A temática abordada começa pelo título em comum de es-
colha das autoras: felicidade. No conto de Lispector, são apresen-
tadas duas protagonistas: uma menina, filha do dono de uma li-
vraria, e a sua colega, que era uma ávida leitora. Esta, narradora-
personagem, vivia pedindo emprestado para aquela os livros que
ela não lia, mas a garota recusava-se veementemente a emprestar,
em um ato quase cruel. A situação se repetia todos os dias até
atingir o ápice da crueldade, quando a narradora descobriu que a
filha do livreiro tinha o tão desejado exemplar de As reinações de
Narizinho, de Monteiro Lobato. A menina ruiva promete empres-
tar o livro, mas todas as vezes que a narradora ia a sua casa ouvia
que o exemplar estava emprestado para outra pessoa. Até que a
mãe da menina ruiva descobre o que se passa e decide emprestar
o livro para a jovem leitora e dá-lhe o poder de devolver quando
ela quiser. Em posse do livro, a personagem é toda felicidade.
O título do conto Felicidade Clandestina alude a um para-
doxo, pois, se considerarmos que a felicidade é um sentimento
que se expressa de maneira espontânea e que, por outro lado, a
clandestinidade busca encobrir algo, no sentido de fugir às nor-
mas da sociedade, da junção desses dois vocábulos o que pode-
mos captar é o paradoxo da clandestinidade dessa felicidade. A
felicidade é construída aqui parcialmente subjetiva e parcial-
mente explícita.
No epílogo do conto é ressaltado o caráter sádico da anta-
gonista, que, mesmo sendo filha do dono de uma livraria,
- 295 -
Literatura, memória e cultura

aproveitava pouco o ato de ler, aspecto contrário a protagonista,


que tinha o prazer da leitura, e que por não ter condições finan-
ceiras pedia insistentemente livros emprestados, estes sendo ob-
jeto de desejo por parte da narradora.

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente


crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto
nós todas éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia
os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas
possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gos-
taria de ter: um pai dono de livraria. (LISPECTOR, 1998,
p.9).

A representação da memória é feita por meio de uma voz


que simula ser a criança do passado e narra os fatos conforme os
vivencia. O sadismo encontra-se no fato de a narradora persona-
gem ir diariamente à casa da colega, em busca do empréstimo do
livro As Reinações de Narizinho, que é sempre adiado. Embora a
narradora não se importasse com a humilhação que sofria. “Na
minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me
submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que
ela não lia” (LISPECTOR,1998, p.9), as atitudes da antagonista
ressaltadas na narrativa é o que fará com o sentimento da felici-
dade tenha todo esse peso para a personagem principal no desfe-
cho.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vin-
gança, chupando balas com barulho. Como essa menina de-
vias nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente boniti-
nhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu
com calma ferocidade o seu sadismo. (LISPECTOR, 1998,
p.10).

- 296 -
Literatura, memoria y cultura

A prática do mal é previamente calculada pela filha do


dono da livraria, que, de forma vingativa, impede que as outras
meninas, superiores a ela em termo de beleza física, adentrem do
mundo da leitura. Segundo Sá (2000), Clarice “explora com ad-
mirável sabedoria o seu incidente e cria, com ele, desde o princí-
pio, um clima de mistério, de inexorabilidade”. (SÁ, 2000, p. 28).
O terror, a angústia, o medo, a felicidade e outros mais sentimen-
tos existencialistas também são perceptíveis.
Lígia Chiappini em O foco narrativo (1991), se refere ao
pensamento de Wayne Booth em seu livro A retórica da ficção,
para explanar a presença do autor implícito em uma narrativa:

O autor não desaparece, mas se mascara constantemente,


atrás de uma personagem ou de uma voz narrativa que repre-
senta. A ele devemos à categoria de autor implícito, extre-
mamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do
jogo de máscaras que se trava em vários níveis de narração.
(CHIAPPINI, 1991, p.18).

Percebemos no conto que existem momentos em que o nar-


rador se aproxima, do mesmo modo que outras vezes também se
distancia do acontecimento narrado, através do uso do discurso
indireto, como no trecho: “Olhando bem para meus olhos, disse-
me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse
no dia seguinte para buscá-lo” (LISPECTOR, 1998, p.10) e em
outras passagens, reconhecemos o autor implícito, como por
exemplo, “ Como contar o que se seguiu”. (LISPECTOR, 1998,
p.11).
De todos esses sentimentos existentes, em Felicidade
Clandestina a autora explora a “felicidade” de forma presente e
não pertencente. A personagem principal da trama, por fim, não
- 297 -
Literatura, memória e cultura

podendo tomar como propriamente seu o fato de possuir por com-


pleto o livro que tanto desejava, no entanto, que pertencia a sua
“inimiga” comparava a presente sensação de o ter, depois de tanta
angústia provocada pela rival, como uma clandestinidade.
Na obra de Virginia Woolf, o conto inicia-se a partir de um
diálogo entre dois amigos. Stuart Elton e senhora Sutton. Aparen-
temente conversando sobre coisas banais, o personagem Stuart
Elton é indagado pela senhora amiga sobre sua solteirice, pois,
apesar de ele ser “só”, aparenta ser muito feliz. E ela, que era
casada e tinha filhos, sentia inveja do amigo. “Ele parecia ter
tudo, ela nada”, afirmava a personagem. Mas o rumo de detalhes
na narrativa, que é tomado no diálogo, são as sensações e percep-
ções de cada personagem ao seu redor. Stuart Elton parece ser,
aos olhos de senhora Sutton, aquele que mesmo sendo mais velho
do que ela e “só”, e ter todas as características julgadas pela so-
ciedade como “triste” (solteiro e sem filhos), na verdade era o que
parecia ser feliz.
Como em Felicidade Clandestina, em Happiness entende-
mos que Woolf busca refletir sobre o conceito de felicidade,
ainda que não explicitamente, por meio das atitudes como vistas
na obra de Clarice, mas de maneira as vezes subjetiva e descrita
através das sensações e sentidos dos personagens. Logo no início
do texto é abordado o ponto de vista do narrador-personagem:

Quando Stuart Elton se dobrou para tirar de sua calça, com


um peteleco, um fio branco, o gesto banal, seguido como foi
por um deslizamento e avalanche de sensação, assemelhou-
se a uma pétala de rosa caindo, e Stuart Elton, ao se endireitar
para retomar a conversa com senhora Sutton, sentiu-se cons-
tituído de pétalas, muitas, firme e compactamente sobrepos-
tas umas às outras, e todas avermelhadas, todas de lado a lado
aquecidas, todas colorizadas por esse inexplicável brilho.
- 298 -
Literatura, memoria y cultura

Caiu, pois, uma pétala, assim que ele se dobrou. Nunca havia
sentido isso – não – quando era jovem, e agora, aos quarenta
e cinco anos, bastou ele se dobrar para tirar um fio da calça
para que impetuosamente isso descesse a vara-lo, essa bela e
ordeira percepção de vida, esse deslizamento, essa avalanche
de sensação, estar em sintonia com o todo, quando voltou a
se aprumar recomposto – mas o que era que ela estava di-
zendo? (WOOLF, 2005, p.251).

No trecho acima são descritos os acontecimentos e o de-


sencadeamento de sensações na atitude do personagem Stuart El-
ton em remover um fio de calça “com um peteleco”. Observamos
que a percepção da felicidade acontece de maneira subjetiva e
sensorial; está presente nos detalhes físicos descritos pela autora
em cada momento dos personagens; a comparação existente do
sentimento à queda de uma pétala de rosa, de forma delicada, que
resultou em sensação de encanto e prazer. Notamos que o perso-
nagem é surpreendido, pois, mesmo que o acontecimento tenha
sido ocasional, foi intenso, visto a utilização do advérbio “impe-
tuosamente” e do verbo “varar”, que relata algo que vai além da
superficialidade, se tornando profundo em seus sentimentos.
Hapiness também apresenta a presença do monólogo inte-
rior relacionado ao fluxo de consciência do personagem. No pri-
meiro momento, quando se utiliza o advérbio de negação “não”,
o personagem Stuart intervém, apontando a sua própria negação
diante de seus sentimentos. Outro momento é na parte final do
trecho, “Mas o que era que ela estava dizendo?”, que apresenta
um corte na narrativa e faz com que Stuart retorne sua conversa
com senhora Sutton, deste modo, voltando a realidade. Para Ass-
man (2011), identidade nacional e identidade individual possuem
“significado de uma recordação reconstrutivamente remodela-
dora, que sempre inclui o esquecimento como parte necessária do
- 299 -
Literatura, memória e cultura

processo”. (ASSMAN, 2011, p.23). Em seguida, através do diá-


logo entre os personagens, é possível traçar semelhanças e con-
trastes em suas ambições de vida. Observemos um trecho:

Ele parecia ter tudo; ela, nada. Ambos contaram – cada qual
tinha dinheiro bastante; ela, um marido e filhos; ele, sua sol-
teirice; ela estava com trinta e cinco anos; ele, com quarenta
e cinco; ela nunca adoecera na vida e ele, como disse, era
efetivamente mártir de alguma complicação interna – so-
nhava o dia todo em comer lagosta, mas não podia nem tocar
em lagosta. Ora essa! ela exclamou, como se enfiasse os de-
dos nalguma. Para ele, até sua própria doença era motivo de
riso. Seria isso contrabalançar as coisas, ela perguntou? seria
senso de proporção, seria? Seria o quê, perguntou ele, sa-
bendo muito bem o que ela queria dizer, mas acautelando-se
diante dessa mulher insensata e destrutiva com seus modos
estouvados, seu vigor e seus dissabores, que gostava de um
rolo e tratava escaramuças, que era capaz de abater e desfazer
essa própria fruição tão valiosa, essa percepção do existir.
(WOOLF, 2005, p. 252).

Notamos a contraposição de senhora Sutton ao caráter pas-


sivo de Stuart, principalmente por não se incomodar com sua do-
ença e abdicar do seu sonho de comer lagosta. Tal fato faz com
que a personagem questione se a não realização dos desejos “seria
isso contrabalançar as coisas?”, deste modo, ela o convidaria para
refletir sobre a noção de felicidade. Ambos os personagens ti-
nham visões diferentes sobre a felicidade, visto que senhora Sut-
ton não entende como alguém poderia ser feliz sozinho. Para o
personagem Stuart a felicidade é algo desconhecido, da qual não
se tem vivência, então para definir o sentimento usa fatos cotidi-
anos como o impulso que faz com que homens virem padres. O
importante “é ser livre da dependência de qualquer um e de
- 300 -
Literatura, memoria y cultura

qualquer coisa”. (WOOLF, 2005, p.254). Deste modo, como no


conto Felicidade Clandestina é descrita a inveja da filha do dono
de livros com relação ao porte físico da “colega”, do mesmo
modo que em Happiness, senhora Sutton não esconde a vontade
de retirar a passividade de Stuart.
O que é pertinente apontar é a maneira detalhada e subje-
tiva como Woolf descreve o sentimento da felicidade avaliada
pelos olhos de um personagem sobre outro. Assim descreve o
Stuart Elton:

Na felicidade há sempre essa exaltação espantosa. Não é ani-


mação; nem arroubo; nem louvor, celebridade ou saúde (ele
não conseguia andar três quilômetros sem se sentir estafado),
é um estado místico, um transe, um êxtase que, embora ele
fosse ateu, cético, não batizado e tudo mais, tinha, suspei-
tava, certa afinidade com o êxtase que transformava homens
em padres, que levava mulheres no vigor da mocidade a se
arrastar pelas ruas com rufos engomados que mais pareciam
ciclames rodeando seus rostos e lhes empedrava os olhos e
os lábios; mas com uma diferença; àqueles, isso aprisionava;
a ele punha em liberdade. Deixava-o livre de toda dependên-
cia de qualquer um e qualquer coisa. (WOOLF, 2005, p.
254).

Na descrição feita pela narradora, Stuart Elton parece ser a


personificação da felicidade na obra: “livre de toda dependência
de qualquer um e qualquer coisa”. Em Happiness, após algumas
indagações a respeito do conceito de felicidade, o personagem
Stuart, que tinha a visão que não se aproximava à da senhora Sut-
ton, percebe que seu ponto de vista havia mudado, assim, concor-
dando com sua colega, que por mais que ele se considerasse livre,
a solidão não deixaria que ele sentisse a felicidade em sua

- 301 -
Literatura, memória e cultura

plenitude, precisando de companhia, mesmo que fosse de um cor-


tador de papel. Segundo Halbwachs (2006):

Para que nossa memória se aproveite da memória dos outros,


não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: tam-
bém é preciso que ela não tenha deixado de concordar com
as memórias deles e que existam muitos pontos de contato
entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem re-
cordar e ser reconstruída sobre uma base comum. (HAL-
BWACHS, 2006, p.39).

Neste sentido, também podemos associar ao conto Felici-


dade Clandestina, no qual a protagonista sente a felicidade,
mesmo que clandestina, através de seu objeto de desejo, o livro,
o qual a faria companhia por tempo indeterminado, sendo estes
momentos a epifania, ou seja, de reflexão sobre um fato do coti-
diano que instiga e se faz voltar para o eu interior.

Considerações finais

As narrativas dos contos analisados possuem a fragmenta-


ção e a elaboração da voz narrativa como técnicas para represen-
tar a condução da memória. Enquanto a autora inglesa Virginia
Woolf utiliza marcadores temporais para a manifestação da voz,
Clarice Lispector aborda a mulher adulta que reconstitui o pas-
sado por meio de comentários inquietos.
A voz narrativa é composta por uma consciência que reme-
mora e organiza as camadas passadas relacionadas entre si, visto
que essas lembranças são liberadas de uma sequência temporal
externa. Os relatos comprovam que não é possível extrair o pas-
sado na íntegra, mas por meio de fragmentos associados à lingua-
gem. Dessa forma, temos uma identidade que se instala no
- 302 -
Literatura, memoria y cultura

contato com o outro, o passado e o cultural. A memória estabe-


lece uma relação entre presente e passado, sendo capaz de conge-
lar momentos, possibilitando que esses instantes sejam revividos.
As autoras estudadas se inclinam para os momentos efême-
ros e determinantes do ser, traçando panoramas existenciais em
que ficção literária dialoga com a realidade em uma atividade que
emprega a retomada do passado. Incluindo a articulação da me-
mória, do discurso fragmentado e da duplicação temporal, os nar-
radores-protagonistas recordam o passado, demonstrando a cons-
trução dos personagens através das próprias reminiscências.

Bibliografia

ASSMAN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transforma-


ções da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2011.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São


Paulo: Ática, 2006.

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CHIAPPINI, Lígia Leite M. O foco narrativo. São Paulo: Ática,


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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed.


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Literatura, memória e cultura

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina: contos. Rio Ja-


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NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva,
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PAGEAUX, Daniel-Henri. Musas na encruzilhada: ensaios de


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PAGEAUX, Daniel-Henri. Imagens de Portugal na cultura fran-


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PIGLIA, Ricardo. “Teses sobre o conto” e “Novas teses sobre o


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SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. 3 ed. Petrópolis:


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SOUSA, C. M. Clarice Lispector: figuras da escrita. São Paulo:


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- 304 -
Literatura, memoria y cultura

WOOLF, Virginia. Contos Completos. Trad. Leonardo Fróes.


São Paulo: Cosac Naify, 2005.

- 305 -
Literatura, memória e cultura

14. ANCESTRALIDADE
E MATRILINEARI-
DADE AFRICANAS EM O ALEGRE CANTO
DA PERDIZ
_________________________

Jurema Oliveira1
Otávio Klug de Almeida2

Introdução

O presente trabalho procura investigar questões e marcas


da ancestralidade africana como estratégia de memorizalização
dessas concepções em desequilíbrio pelo colonialismo na cons-
trução narratológica em ficção moçambicana a fim de inscrever
uma perspectiva crítica e endógena sobre os problemas trazidos
pela colonização e o fomento de uma consciência cultural para
buscar esses valores locais. A análise vai focalizar a narrativa fic-
cional intitulada O Alegre Canto da Perdiz, da autora moçambi-
cana Paulina Chiziane, tendo como pilar de investigação aspectos
da representação ficcional que a autora desenvolve baseada na
matrilinearidade da antiga sociedade moçambicana e o conflito
gerado pela inserção do patriarcado aonde não havia esse formato
social, mas foi inserido com a colonização, instaurando a desor-
dem social pelo contato cultural dissidente. Partindo de aportes
teóricos sugeridos no projeto de pesquisa intitulado “Ancestrali-
dade, Pan-africanismo, Afro-brasilidade” idealizado e coorde-
nado pela Profª. Drª Jurema Oliveira (2018), aprovado no edital

1
Universidade Federal do Espírito Santo-Ufes, juremajoliveira@hot-
mail.com
2
Universidade Federal do Espírito Santo-Ufes, otavioklug@hotmail.com
- 306 -
Literatura, memoria y cultura

Universal promovido pela Fundação de apoio à pesquisa e inova-


ção do Espírito Santo-Fapes. O aporte teórico do estudo conta
com obras de Fabio Leite (2008); de Cheikh Anta Diop (1989) e
de Oyèrónké Oyěyùmí (2004), que estabelecem parâmetros teó-
ricos acerca da temática desenvolvida na pesquisa.

Segundo tópico

O colonialismo deixou suas marcas nas sociedades coloni-


zadas. O sistema colonial se processa dicotomicamente na rela-
ção entre dominador e dominado e a historiografia desses povos
subalternizados vem sendo escrita de diversas formas. Na con-
temporaneidade, em que ainda observamos os resquícios desse
processo violento, podemos detectar o empreendimento de ações
que vão a contrapelo a esses ideais nas mais diversas instâncias
sociais, sendo a forma mais utilizada e efetiva aquela que se dá
no âmbito artístico, abrangendo a pintura, o cinema, a literatura,
entre outros campos da arte. Sobre a produção literária africana
de língua portuguesa, Oliveira (2010) faz a seguinte afirmação:

A produção literária nos países africanos divide-se em duas


fases: a da literatura colonial e a das literaturas africanas. A
primeira exalta o homem europeu como herói mítico, des-
bravador das terras inóspitas, portador de uma cultura supe-
rior. A segunda constitui-se inversamente, pois nela o mundo
africano passa a ser narrado por outra ótica. O negro é privi-
legiado com solidariedade no espaço material e linguístico
do texto, embora não sejam excluídas as personagens euro-
peias (de características negativas ou positivas). É o africano,
enquanto personagem ficcional ou poético, o sujeito do
enunciado. (2010, p.13-14)

- 307 -
Literatura, memória e cultura

É nessa perspectiva que o livro O alegre canto da perdiz


(2008), que constituiu o corpus da presente análise, se inscreve.
A narrativa, que se ambienta em Moçambique, expõe as dissidên-
cias remanescentes do colonialismo e os seus efeitos nos perso-
nagens da obra. Identifica-se a questão no excerto em que Chizi-
ane escreve: “os marinheiros [colonizadores] civilizavam o povo
arrancando-lhes os olhos da cara. Cristianizavam fornicando as
mulheres nas matas. Construiu o novo mundo com espadas, ca-
nhões e chicote. Pacificaram a terra arrancando a língua da boca”
(2008, p. 74). Com destaque para os verbos presentes neste trecho
– “civilizavam”, “cristianizavam”, “construíram”, “pacificaram”
–, a autora mostra a hipocrisia dos objetivos ao confrontá-los com
a maneira utilizada para atingi-los. Além dos conflitos mostrados,
Chiziane empreende um resgate de saberes e valores tradicionais
para compor a sua escrita, tendo a ancestralidade como um con-
ceito recorrente. De acordo com Leite (2008),

[...] configurado o fim da vida no espaço terrestre, a socie-


dade, vendo-se diante da morte, organiza-se rapidamente
para dar continuidade à existência do homem, desta feita vi-
vida no país dos ancestrais. De onde se explica a notável im-
portância das cerimonias funerárias, veículos que permitem
à sociedade efetivar essa mutação crucial do ser humano.
(p.104)

O cientificismo ocidental pode classificar os rituais de pas-


sagem como algo de caráter estritamente simbólico e religioso,
quando na verdade eles se mostram essencialmente conectados
com a estruturação da lógica cultural da comunidade, garantindo
a continuidade e a sobrevivência da própria sociedade como um
todo. Desse modo, a morte:

- 308 -
Literatura, memoria y cultura

[...] é considerada quase sempre um fator mágico e exterior


ao homem. Essa proposição concilia-se com a explicação das
origens divinas do homem e do equilíbrio estabelecido entre
os elementos vitais dele constituintes, sendo a morte a sua
antítese. Mas embora a sociedade atribua às instâncias mági-
cas o papel principal no desencadeamento dos processos que
levam à morte, estabelece, entretanto, regras precisas para
definir, segundo padrões institucionais. (LEITE, 2008, p. 95)

Os ancestrais são o elo central de comunicação entre as


pessoas e o sagrado, isto é, o acesso a esse princípio estruturante
de suas comunidades, o que evidencia a sua importância. O pro-
cesso de sua configuração envolve a separação dos elementos do
plano material e a sua preparação de ingresso em uma existência
não visível. Essa questão é crucial, na medida em que delimita:

[...] dois universos – o da existência terrestre e o dos ances-


trais – dentro, porém de uma dimensão eminentemente so-
cial. Essa proposição é observável na forte coesão, que no
mesmo momento se manifesta no interior da sociedade. Tal
coesão não significa apenas a rejeição simbólica da morte
nem somente um mecanismo acionado para vencê-la – a
mais periférica das constatações –, mas também a afirmação
de que a sociedade realmente concebe a existência de dois
aspectos do universo da vida, onde se estabelecem relações
prioritárias no momento diferencial proposto por esse tipo de
evento. (LEITE, 2008, p. 112)

A questão ancestral atravessa toda a narrativa de O Alegre


Canto da Perdiz (2008). Isso é demonstrado em um diálogo entre
o personagem José dos Montes, pai de Maria das Dores, e um
conhecido que trabalhava para os portugueses. O segundo conso-
lava o primeiro, pois ambos compartilharam a experiência da trai-
ção pelos seus cônjuges com homens brancos que ofereciam
- 309 -
Literatura, memória e cultura

prestígio social a partir da relação extraconjugal. No diálogo, José


dos Montes se queixa da situação, cogitando a morte como solu-
ção para a desonra, até que seu interlocutor o adverte:

Não faça asneiras, José dos Montes. Sei que é difícil cami-
nhar no mundo quando o corpo vive neste e a alma anda va-
gueando no outro. Resistir é mesmo isso. É muito difícil a
existência humana. Dentro de nós, há algo que nos faz resis-
tir. Uma outra vida, talvez. Um outro corpo. Uma outra alma.
(CHIZIANE, 2008, p. 222)

Este excerto descrito anteriormente é a expressão literária


do ciclo de ancestralidade, que se caracteriza no elo entre o plano
material e o plano espiritual, estabelecendo uma relação de inter-
dependência entre ambos. O Alegre Canto da Perdiz (2008) traz
para a cena literária uma situação conflituosa, já que uma mulher
nua vista nas margens do rio Licungo, um trecho exclusivo aos
homens, gera discórdia. Surpreendentemente ou não, a tentativa
de resolver a situação parte de um grupo de mulheres. A perso-
nagem nua, Maria das Dores, é interpelada por diversas perguntas
sobre seu nome e sua identidade, mas as respostas surgem textu-
almente na forma de um monólogo interior. A condição de mu-
lher negra subalternizada e colonizada se mostra no nome rece-
bido provavelmente com o batismo católico, Maria das Dores.
Este dado destoa dos princípios norteadores dos valores matrici-
ais moçambicanos. O nome carrega uma carga simbólica impor-
tante, já que é um:

[...] atributo revelador de suas características mais significa-


tivas, que permitem a identificação profunda da essência na-
tural e social do indivíduo. [...] O nome propõe a consciência
- 310 -
Literatura, memoria y cultura

do desenvolvimento qualitativo da existência natural e da


progressão histórica da personalidade. Visto sob esse ângulo
abrangente, proposto pela sociedade, o nome pode ser consi-
derado, ele mesmo, também como um elemento vital consti-
tutivo do homem [o ser humano], sendo sua natureza, no en-
tanto, de ordem histórica. (LEITE, 2008, p. 69)

Maria das Dores encarna ficcionalmente a dor coletiva que


as estruturas de dominação infligem à mulher negra, atestada pelo
seu relato: “Das palavras conheço as injúrias, e dos gestos, as
agressões. Tenho o coração quebrado. O silêncio e a solidão me
habitam. Eu sou Maria das Dores, aquela que ninguém vê” (CHI-
ZIANE, 2008, p. 17). Com o desenvolvimento da narrativa, des-
cobrimos que a protagonista sofre com uma insanidade psicoló-
gica, acarretando a fragmentação de sua memória e deixando la-
cunas que poderiam oferecer uma explicação sobre a sua situa-
ção. Esse esquecimento não é arbitrário, mas duplamente orques-
trado: pelo indivíduo que sofre, tentando fugir do enfrentamento
de suas feridas emocionais; e pela dominação colonial, no esforço
de apagar os vestígios históricos do seu legado de miséria.
O grupo de mulheres que assediou moralmente Maria das
Dores busca a opinião do régulo da aldeia, o detentor do saber
ancestral institucional. Devido a sua ausência, quem o substitui é
a sua esposa:

As mulheres abandonam o rio e correm velozes à casa do


régulo para buscar a solução do enigma. Vão à casa do ré-
gulo, mas ele não está, foi à taberna tomar o trago vespertino
na assembleia dos homens. A sua velha esposa abandonou os
seus afazeres para acudir à multidão assustada. Os olhos de
terror convergindo sobre ela. Olhos anémicos, incrédulos. E
as vozes falavam todas ao mesmo tempo. Deliravam. A velha
senhora não conseguia sequer ouvir o que diziam. O que

- 311 -
Literatura, memória e cultura

queriam. Sabia apenas que tinham fome no espírito. Teve


que bater as palmas e soltar um grito para impor o silêncio.
(CHIZIANE, 2008, p. 17)

Esse ponto da narrativa expressa uma das peculiaridades de


Chiziane como escritora. Não é sem motivo que a autora se posi-
ciona politicamente ao se desassociar do título de romancista,
uma configuração europeia daquele que desempenha a arte das
letras. Chiziane faz questão de se colocar como contadora de es-
tórias, devotando a excelência de sua capacidade aos contos ao
redor da fogueira, considerando-os como a sua primeira escola de
arte. Dessa forma, no interior da obra, a autora insere pequenas
narrativas que carregam um significado latente do contador. A
esposa do régulo, para auxiliar na interpretação das causas e efei-
tos da presença de Maria das Dores, conta uma estória sobre a
apropriação da autonomia feminina:

[...] Os homens invadiram o nosso mundo – dizia ela –, rou-


baram-nos o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de
submissão. Enganaram-nos com aquela linguagem de amor
e de paixão, mas usurparam o poder que era nosso. Uma mu-
lher nua do lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino
antigo para resgatar o nosso poder usurpado. Trazia de novo
o sonho da liberdade. (CHIZIANE, 2008, p. 21-22)

A narrativa de Chiziane expõe através da narração princí-


pios matrilineares. Essa inscrição colabora em desmentir a uni-
versalização e a progressão evolutiva do sistema patriarcal, indi-
cando que a desigualdade de gênero em África não é um conflito
autóctone, mas um sistema transplantado pela colonização. A
partir disso, podemos observar que, se a ancestralidade sustenta
a construção imagética na obra de Chiziane, o matriarcado tam-
bém tem sua função de sustentabilidade. Para pensar esta
- 312 -
Literatura, memoria y cultura

perspectiva convoca-se Diop, que se propõe a discutir as forma-


ções sociais de regimes patriarcais e matriarcais de forma com-
parativa entre diversos povos dos hemisférios sul e norte, des-
construindo o discurso falacioso do cientificismo eurocêntrico
lançado sobre grupos sociais autóctones marginalizados pelo im-
perialismo. Diop afirma que:

É improvável que berços tão distintos geograficamente como


as estepes eurasiáticas – propícias à vida nómada – e as regi-
ões meridionais do globo, em particular a África – propícias
à agricultura e à vida sedentária – tenham engendrado os
mesmos tipos de organização social. Esta crítica adquire todo
o seu valor se admitirmos a influência do meio sobre as for-
mas sociais e políticas. (DIOP, 2010, p. 27)

A linha de raciocínio dessa afirmação se baseia nas circuns-


tâncias que propiciariam o surgimento de organização sócio-po-
lítica nas diversas regiões do planeta. A vida nômade do berço
nórdico tinha na força bruta a qualidade mais prestigiada, o que
favoreceu os homens, relegando à mulher ao seu papel de procri-
adora; enquanto que a vida sedentária do berço meridional, tendo
a agricultura como um dos pilares da subsistência, possibilitou
uma divisão mais igualitária dos encargos. A conclusão de Diop
é de que a maioria dos povos localizados no berço meridional (o
continente africano, principalmente) tenderia a uma organização
matriarcal, a valorização do coletivismo social, a emancipação da
mulher na vida essencialmente doméstica, etc; em contraposição
aos povos do berço nórdico (sobretudo, a atual Europa) que ten-
deriam à organização patriarcal, individualista, etc. A importân-
cia dessa inferência, reconhecendo as prováveis limitações espa-
ciais e humanas, serve para desmistificar a falsa universalidade
do regime patriarcal, contribuindo, assim, para a profunda

- 313 -
Literatura, memória e cultura

compreensão das diferentes configurações sociais pelo recorte de


gênero.
Na mesma esteira de pensamento é que se encontra a inte-
lectual nigeriana Oyèronké Oyěwùmí, que, em seu livro The In-
vention of Women: Making an African Sense of Western Gender
Discourses (1997), busca compreender as relações de gênero em
África a partir da subversão das tentativas dos movimentos femi-
nistas contemporâneos em intervir socialmente no continente
com o objetivo de promover a igualdade de gênero. A perspectiva
de Chiziane vai de encontro com o que Oyěwùmí teoriza, estabe-
lecendo uma epistemologia com o intuito de refletir sobre a con-
dição da mulher na África e problematizando os efeitos do patri-
arcado no continente. Há forte contundência nos questionamen-
tos de Oyěwùmí em relação às ações do movimento feminista
euro-americano na África, ocorrendo em função dos idealizado-
res ignorar e passar por cima de diversas questões culturais locais.
Chiziane não compartilha dessa visão teórica e já manifestou pu-
blicamente não ser feminista1. De acordo com a autora, existem
outras possibilidades de resistências no continente africano con-
tra a estrutura patriarcal, tendo em vista que a condição da mulher
não é universal, ou seja, a situação da mulher em Moçambique,
por exemplo, não é a mesma do sistema social euro-americano.
Apesar de se expressar de forma radical ao regime patriarcal, bus-
cando estratégias que alcancem a efetiva emancipação feminina,
o movimento feminista falha ao universalizar essa estrutura de
dominação. A semelhança com as expedições colonizadoras que

1
FAGUNDEZ, Ingrid. Primeira romancista de Moçambique diz não ter
liberdade para escrever como um homem: ‘Somos prisioneiras‘. BBC,
São Paulo, 30 out. 2016. Internacional. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37734763. Acesso em: 13
set. 2020.
- 314 -
Literatura, memoria y cultura

objetivavam propagar uma noção etnocêntrica de civilidade é evi-


dente e Oyěwùmí registra essa percepção:

From a cross-cultural perspective, the more interesting point


is the degree to which feminism, despite its radical local
stance, exhibits the same ethnocentric and imperialistic char-
acteristics of the Western discourses it sought to subvert.
[…] The assumption and deployment of patriarchy and
“women” as universals in many feminist writing are ethno-
centric and demonstrate the hegemony of the West over other
cultural groupings. (OYĚWÙMÍ, 1997, p. 12; 15)1

Outra discussão que a autora aborda no livro e que con-


corre com as questões anteriormente citadas é a questão da ma-
ternidade, sendo ela também uma instituição ancestral de extremo
valor social. Oyěwùmí trata desse assunto no livro What Gender
is Motherhood? (2016), no qual a socióloga pretende analisar as
limitações dos aparatos teóricos ocidentais, as relações dos estu-
dos de gênero em África e o seu vínculo com a instituição ma-
terna. A autora, retomando a valorização da senioridade em cul-
turas africanas, escreve que:

At the core of the seniority-based system is Ìyá, who sym-


bolizes what I describe as the matripotent principle. Matrip-
otency describes the powers, spiritual and material, deriving
from Ìyá’s procreative role. […] The bonds between Ìyá and
a particular offspring are seen to be strong and of a different

1
“De uma perspectiva transcultural, o ponto mais interessante é o grau em
que o feminismo, apesar de sua postura local radical, exibe as mesmas ca-
racterísticas etnocêntricas e imperialistas dos discursos ocidentais que pro-
curava subverter. [...] A suposição e o desenvolvimento do patriarcado e
‘mulheres’ como universais em muitos escritos feministas são etnocêntri-
cos e demonstram a hegemonia do Ocidente sobre outros agrupamentos
culturais.” (OYĚWÙMÍ, 1997, p. 12 -15 tradução nossa)
- 315 -
Literatura, memória e cultura

order that any other kind of ties. The Ìyá-child dyad is per-
ceived as predating the earthly appearance of the child and
therefore predates marriage and all other familial relations.
(OYĚWÙMÍ, 2016, p. 58 - 60)1

Apesar de Oyěwùmí descrever a realidade cultural dos Io-


rubá na Nigéria, é possível fazer uma aproximação com o que é
observado na relação que a personagem Maria das Dores tem com
sua mãe na infância, na qual a protagonista não questiona suas
imposições (como por exemplo, ter a sua virgindade comerciali-
zada para um feiticeiro), por mais violentas que elas sejam: “Su-
portava em silêncio a cólera que a mãe derramava sobre ela. Era
injusto, ela sabia, mas não queria reivindicar. Do ventre daquela
mãe ela tinha nascido e não a queria desafiar, porque desafiar
uma mãe é desafiar o destino.” (CHIZIANE, 2008, p. 274, grifo
nosso). Dessa forma, o valor social da maternidade para essa
perspectiva cultural é corrompido pelas desavenças promovidas
pelo processo colonial.
Em um âmbito mais geral, a apreciação crítica da obra pode
oferecer também a possibilidade de um posicionamento político
por parte da escritora. Considerando a historiografia recente de
Moçambique, como foi descrita por Visentini (2012), um dos
acontecimentos mais importantes foi a Guerra Civil. Deve-se ter
em mente que Chiziane se filiou durante parte da sua vida à

1
“No cerne do sistema baseado na senioridade está Ìyá [mãe, em uma tra-
dução aproximada], que simboliza o que descrevo como o princípio matri-
potente. Matripotência descreve os poderes, espirituais e materiais, decor-
rentes do papel procriador de Ìyá. [...] Os laços entre Ìyá e uma prole em
particular são vistos como fortes e de uma ordem diferente de qualquer ou-
tro tipo de laço. A díade Ìyá-prole é percebida como anterior à aparência
terrena da criança e, portanto, anterior ao casamento e todas as outras rela-
ções familiares.” (OYĚWÙMÍ, 2016, p. 58; 60, tradução nossa)
- 316 -
Literatura, memoria y cultura

FRELIMO (Centro-Esquerda), partido adversário da RENAMO


(Direita-conservadora). O emblema oficial da RENAMO é uma
perdiz, metaforicamente representado no título da obra literária
estudada aqui. Na escolha do símbolo é possível entrever uma
carga irônica como crítica política à atuação do partido no país.
Isso se acentua no décimo nono capítulo do livro, quando o nar-
rador afirma que: “o canto da perdiz numa noite sem lua era mau
agouro” (CHIZIANE, 2008, p. 244).
A escritora arquiteta uma estória ficcional ambientada em
Moçambique, mas intencionalmente combina o poder represen-
tativo que a literatura carrega com a essência cultural da ances-
tralidade e da matrilinearidade de seu povo, a partir de uma per-
cepção crítica acerca da construção política local. Ao construir
essa amálgama, sua literariedade não só desvela as atrocidades
remanescentes do processo colonial que o imperialismo contem-
porâneo ainda visa eufemizar, como também produz uma pers-
pectiva literária autêntica e própria da história de seu povo, já que
“a multiplicidade de aspectos concretos assumidos pela ancestra-
lidade negro-africana parece indicar, de maneira expressiva, que
as ações históricas e os domínios sociais por ela abarcados são os
elementos mais decisivos de sua explicação.” (LEITE, 2008, p.
380)

Bibliografía

CHIZIANE, Paulina. O Alegre Canto da Perdiz. Lisboa: Ca-


minho, 2008.

DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural da África negra: es-


feras do patriarcado e do matriarcado na Antiguidade Clássica.
Lisboa: Edições Pedago, 2010.
- 317 -
Literatura, memória e cultura

LEITE, Fabio Rubens da Rocha. A questão ancestral: África


negra. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2008.
__________________________. Valores civilizatórios em soci-
edades negro-africanas. África: Revista do Centro de Estudos
Africanos. n. 18-19, p. 103-118, 9 dez. 1997. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/africa/article/view/74962/78528.
Acesso em: 18 ago. 2020.

OLIVEIRA, Jurema. Literatura portuguesa: moderna e contem-


porânea. Curitiba: IESDE Brasil S. A., 2010.

OYÈWÚMI, Oyèronké. The Invention of Women: Making an


African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1997.

___________________. What Gender is Motherhood? New


York: Palgrave Macmillan, 2016.

- 318 -
Literatura, memoria y cultura

15. MEMÓRIAE ESPAÇO FICCIONAL: UMA


LEITURA DE “VERMELHO AMARGO”, DE
BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS1
_________________________

Alody Costa Cassemiro (UESPI)2


Maria Fátima Paula dos Santos (UESPI)3

1 Introdução

“Vermelho Amargo” (2017), consiste em ser a última nar-


rativa escrita por Bartolomeu Campos Queirós, publicada pelo
autor ainda em vida. Juntamente com “Ciganos” (1982), “Indez”
(1989), “Ler, escrever e fazer conta de cabeça” (1999), “Por parte
de pai” (1995, e “O olho de vidro do meu avô” (2004), a obra em
estudo, é considerada pelos críticos como sendo de carácter auto-
biográfico.
Bartolomeu tece “Vermelho Amargo” por meio de metáfo-
ras que traduzem as memórias afetivas de um narrador-persona-
gem, cuja infância foi marcada pela perda da mãe, que posterior-
mente, passou a conviver com a figura da madrasta, do pai, que
vivia alcoolizado, e de seus irmãos.
Na infância, cada membro familiar deixa marcas profundas
na memória do narrador-personagem. Marcas que ao longo da
narrativa se tornam presentes, porque são lembranças doloridas.
Essas imagens, segundo Halbwachs (2006), formam um conjunto

1
Trabalho apresentado no I Encontro Nacional de Estudos literários e Lin-
guísticos ENELL e XII Semana de Letras: Literatura e Linguagem.
2
Graduada em Letras Português (UESPI), mestra em Letras Português pela
UESPI. E-mail: alodycosta@yahoo.com.br.
3
Graduada em Letras Português (UESPI), mestra em Letras Português pela
UESPI. E-mail: fafabrasil1@yahoo.com.br.
- 319 -
Literatura, memória e cultura

e uma espécie de quadro que são expressadas pelos pensamentos


ou sentimentos.
Nesse sentido, o intuito deste trabalho é apresentar como o
autor se utiliza do fio condutor da memória para construir a nar-
rativa, cujo processo de rememoração é um elemento significa-
tivo para que o narrador-personagem possa arquitetar a sua histó-
ria, demonstrando também como os espaços de convivência se
configuram em espaços de memória para o protagonista.

2 Representações da Memória Ficcional em “Vermelho


Amargo”

A memória consiste no acúmulo de informações obtidas


através de experiências vivenciadas, perceptíveis e ouvidas, e que
possibilita testemunhar sobre um passado, a partir de aconteci-
mentos no presente. Os fatos testemunhados são demarcados por
lembranças que não seguem uma linearidade. Sendo a reconstru-
ção do conjunto de lembranças importantes para o processo de
rememoração.
Nesse caso, as lembranças fluem a partir de pensamentos
individuais, sendo também proveniente de grupos, o que as ca-
racterizam como memória coletiva. Assim, elas são fluidas a par-
tir das vivências de grupos, sendo demarcados por quadro de ima-
gens (HALBWACHS, 2006). Em “Vermelho Amargo” é possí-
vel observar as representações da memória ficcional vivenciada
pelo protagonista através das suas percepções.

Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro. Principia nas unhas,
passa pelos cabelos, contagia os ossos, penaliza a memória e
se estende pela altura da pele. Nada fica sem dor. Também
os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora, doem.

- 320 -
Literatura, memoria y cultura

A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos, incon-


veniente lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo ama-
nhã. Só se salga a carne morta. Só se salga a carne morta
(QUEIRÓS, 2017, p.7-8).

O narrador-personagem sofre ao relembrar de sua infância,


e nem mesmo o tempo o fizera esquecer o modo como era tratado
pela sua madrasta. A sensação de dor, apesar de longas distân-
cias, ainda, se faz presente. Dessa forma, os traços de dor são
perceptíveis ao passo em que as lembranças trazem quadros de
imagens dolorosas. De acordo com Bosi (2003, p.54), “a comu-
nidade familiar ou grupal exerce uma função de apoio de teste-
munho e intérprete daquelas experimentais”. Logo, os conjuntos
de lembranças são partes da convivência de um grupo, sendo as
lembranças redimensionadas a partir da convivência, o que per-
mite ao narrador-personagem rememorar a história de sua infân-
cia. O processo de rememoração parte de inferências de fatos vi-
vidos, revisitados em uma outra temporalidade.

Sem o colo da mãe eu me fartava em falta de amor. O medo


de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto do
enredo. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos
caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de
adivinhar os desejos de todos que me cercavam. Engolia o
tomate imaginando ser ambrósia ou claras em neve batidas
com açúcar e nadando num mar de leite, como praticava mi-
nha mãe – ilha flutuante – com as mãos de amor (QUEIRÓS,
2017, p.10-11).

As lembranças da infância do narrador-personagem em


“Vermelho Amargo” surgem a partir de quadros de imagens mar-
cados pela perda da mãe, levando-o a solidão profunda. A convi-
vência com os irmãos, com o pai e com a madrasta não lhe dava
- 321 -
Literatura, memória e cultura

conforto, a presença dela jamais representaria ou substituiria a da


sua mãe. Esses fatos vivenciados mostram momentos de angus-
tia, assim como o de repúdio, principalmente, na ocasião em que
o protagonista presencia a madrasta fatiando o tomate, diferente
de sua mãe, que o fatiava com cortes em cruz. Demonstrando
através de seus atos a delicadeza materna.
Com a perda da mãe, tudo, passara a ser diferente, por exem-
plo, o modo como a madrasta fatiava o tomate, era diferente da
delicadeza de sua mãe, assim, o tomate passara a ter um novo
sentido. Antes transmitia ternura e amor materno, posteriormente
passou a significar amargura e desafeto. A metáfora do tomate se
apresenta mediante um paradoxo colocando o narrador-persona-
gem em conflito consigo mesmo.

Um dia me peguei amando meu irmão e vivendo as muitas


mãos de amor. Sua compaixão roçou-me a emoção por in-
teiro. Admirando meu pânico diante do tomate – supus – ele
devorou por mi a minha fatia. O tomate pousou em meu prato
e me foi roubado pela colher de seu escondido carinho. Eu
não disse palavra. O essencial manifestou-se como fraterno
ao silêncio. Guardei-me em gratidão (QUEIRÓS, 2017, p.
34).

Nesse sentido, as lembranças são fluídas a partir de um


grupo familiar, em que os fatos reaparecem através de lembran-
ças individuais. Isso “porque o acontecimento que eles reprodu-
zem foi percebido por nós num momento em que estávamos so-
zinhos” (HALBWACHS, 2006, p. 42). O fato de ser produzida
de forma individual não impede que seja, também, coletiva. As-
sim, tanto a memória individual como a memória coletiva estão
intercruzadas. As lembranças se consolidam a partir de um grupo
mediante um determinado tempo e espaço. Tendo em vista que
- 322 -
Literatura, memoria y cultura

os fatos acontecidos são situados a partir da conivência de uma


comunidade.

A memória opera com grande liberdade escolhendo aconte-


cimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas
porque se relacionam através de índices comuns. São confi-
gurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de
um significado coletivo (BOSI, 2003, p. 31).

Trazendo essa premissa para “Vermelho Amargo”, per-


cebe-se que o processo de rememoração acontece individual-
mente, mas os fatos vividos fazem parte de um grupo, assim, a
memória passa a ter significado coletivo. Visto que, todas as ma-
nifestações de imagem são subtraídas de um espaço, ou seja, de
lugares demarcados por vários membros do grupo. Para Hal-
bwachs (2006), as imagens não reproduzem fielmente o passado,
a lembrança de antes acontece de forma subjetiva, e são transfor-
madas em lembranças fictícias.
Em “Vermelho Amargo”, as lembranças da infância para o
narrador-personagem são tão fortes que ao rememorar soam
como traços de solidão. Isso se observa através de elementos an-
corados na presença do pai e dos irmãos que mesmo sendo mem-
bros da família, não são capazes de sanar esse sentimento, pois o
seio familiar não transmitia a ideia de um ambiente fraternal,
tendo em vista a postura da madrasta que não trazia harmonia
para aquele lar.

O pai viajava por distantes estradas. Partia nas madrugadas


– secas ou frias – deixando um barulho de poeira seca por
onde rodava. A lembrança de seu olhar nos ameaçava pelos
gestos da esposa. A certeza de que fôramos lembrados por
ele – mesmo por remorso – exalava das fatias de mortadela

- 323 -
Literatura, memória e cultura

que incensavam os cômodos da casa, em seu retorno. Seu


carrinho, eu suspeitava, aparecia pontuado de pimenta de um
reino quase só imaginado (QUEIRÓS, 2017, p. 36).

Nessa perspectiva, o espaço familiar, a casa, é o lugar de


intimidade em que traços de lembranças da infância do narrador-
personagem mostram solidão, desafetos e desarmonias entre os
membros desse grupo familiar. Essas percepções são demostra-
das pelos sentidos, como cheiro da mortadela que marca a volta
do pai de viagem; o gesto da madrasta sem nenhum afeto. As
lembranças são frutos de imagens guardadas no nosso inconsci-
ente. ”O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são
imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem especializadas”
(BACHELARD, 1993, p. 29).
Dessa forma, as lembranças fluem a partir de nosso incons-
ciente, assim, são rememoradas com base em fatos, e acontecem
em um determinado espaço mediante a convivência de um
grupo. O que favorece a ressignificação de narrativas memori-
alísticas, a partir de estudos fenomenológicos manifestados no
tempo e no espaço.
Assim, as lembranças se manifestam no decorrer do tempo
e do espaço, e se fixam no inconsciente do ser através de fluídos
de imagens. Nesse caso, as lembranças não seguem uma sequên-
cia linear dos fatos, por isso, é denominada de memória subjetiva.
É a inconsciência da ordem dos acontecimentos que é realizada
pelo processo da anacronia. ” Para confirmar ou recordar uma
lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da
palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e
sensível” (HALBWACHS, 2006, p. 31). Assim, a rememoração
não necessariamente precisa de uma testemunha material para

- 324 -
Literatura, memoria y cultura

reafirmar as lembranças, pois as mesmas se efetivam a partir de


relatos que partem da convivência em um grupo.

A mulher da sombrinha vermelha tinha na carne uma educa-


ção exemplar. Aprendera na cartilha das abelhas, e de um
tudo só retirava o mel, eu pensava. Sua boca só existia para
o açúcar. O margo, não soube em que lugar guardava. Duvi-
dava de uma vida inteiramente doce. Ela não sabia ler cartas,
mas decifrava outros enigmas: um rosto triste, uma mão va-
zia, uma sombra no olhar. Fazia a saia dialogar com a blusa,
a jarra conversar com as flores. Compreendia a solidão que
o macarrão exigia. De tudo dispensava o supérfluo. Fazia do
tomate rosas para decorar o arroz, em dia de festa (QUEI-
RÓS, 2017, p. 46).

Para o narrador-personagem, a mulher de sobrinha verme-


lha inspirava ternura, doçura e harmonia, principalmente, ao ma-
nusear o tomate. Muito diferente da sua madrasta, que transmitia
ausência de simpatia e certo ar de amargura. Ao trazer essa com-
paração em blocos de imagens, percebe-se que o menino não sim-
patizava com a madrasta, tendo em vista que ele sempre preferia
manter distância em relação a ela.
Observa-se que as lembranças do narrador-personagem são
reflexos da convivência de um grupo familiar, que contribui no
processo de rememoração dos fatos acontecidos no decorrer de
sua infância. Isso é possível, por meio da capacidade de se retor-
nar ao inconsciente e trazer as lembranças do passado para serem
recontadas no presente. Dessa forma, as imagens extraídas da me-
mória são postas em uma sequência de fatos que são rememora-
dos numa perspectiva memorialística de forma subjetiva e poé-
tica.

- 325 -
Literatura, memória e cultura

3 Espaços de Memória: registros de vivências e experiências


acumuladas

Os seres humanos ao ocupar diferentes espaços (sociais e


geográficos), passam a se relacionar e a criar vínculos com eles.
Um dos fatores que influencia nessa relação é a percepção. Pois
é por meio da capacidade que o sujeito possui de perceber as mar-
cas existentes nos espaços e, sobretudo, a partir das relações que
ele passa a adquiri nele, é que facilitam o registro das imagens,
dos cheiros (ou odores) etc, aliado as experiências que são cons-
truídas nesses locais. Dessa forma, “o espaço seria, em primeiro
lugar, aquilo que podemos perceber através de nosso corpo. O
espaço que ocupo seria, especialmente, aquele que vejo” (SAN-
TOS; OLIVEIRA, 2001, p. 68). Nesse caso, as imagens dos es-
paços ao serem percebidas costumam ficarem registradas na me-
mória, sobretudo quando se tratam de espaços cuja relação do su-
jeito com ele se deu de maneira íntima.
Desse modo, observa-se que há uma relação entre memória
e espaço, sendo essa relação gerada através da referencialidade,
pois a memória se fixa às referências espaciais, permitindo que
os locais adquiram funcionalidades diversas, podendo ser suporte
de existências sociais, tornando-se espaços de memórias, ressig-
nificados à medida que o indivíduo se esforça para recordar algo1.
Ao tratar desse assunto, Pierre Nora (1993), afirma que os lugares
nascem dos sentimentos, isto é, as memórias são organizadas em
formas de arquivos e as referências que possuímos de

1
Quando se afirma que as memórias podem ser ressignificadas à medida
que o indivíduo se esforça para recordar algo, não se anula o fato de que
ela também pode ocorrer de maneira espontânea.
- 326 -
Literatura, memoria y cultura

determinados locais estão associadas as experiências de afetivi-


dade que se adquire ao longo da vida. Porquanto,

os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que


não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que
é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pro-
nunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas opera-
ções não são naturais (NORA, 1993, p. 13).

Dessa forma, os lugares de memória são significados e res-


significados pelo valor afetivo que lhe é atribuído, sobretudo pe-
los momentos vividos nestes recintos. Logo, os espaços memori-
alísticos seriam aqueles que se caracterizam por serem “material,
simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diver-
sos” (NORA, 1993, p. 21), e em “Vermelho Amargo” as memó-
rias do narrador-personagem estão relacionadas aos espaços de
convivências que se encontram diretamente conectadas aos arqui-
vos das experiências adquiridas por ele ao longo de sua infância.
Dentre os espaços de maior destaque na vida do protagonista está
a casa de sua família onde viveu parte de sua vida.

Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar provisório. Uma esta-


ção com indecifrável plataforma, onde espreitávamos um
cargueiro para ignorado destino. Não se desata com delica-
deza o nó que nos amarra a mãe. [...]Os cômodos sombrios
da casa – antes bem aventurança primavera – abrigavam pas-
sageiros sem linha no horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje
ventilava obstinado exílio (QUEIRÓS, 2017, p. 9).

Através das lembranças do protagonista observa-se que as


imagens que ele possui da casa onde viveu durante a infância,
trata-se de um espaço cuja materialidade é ressignificada ao
longo do processo de recordação, permitindo que se observe nele
- 327 -
Literatura, memória e cultura

sentimentos que tornam a casa um espaço de memória, uma es-


trutura material ressignificada por meio de simbologias acionadas
pelo imaginário do protagonista. Além de possuir um caráter fun-
cional que transcende a concepção de que se tem de moradia.
As lembranças que o narrador-personagem possui da casa
estão dotadas de simbologias que lhes são atribuídas a partir do
seu próprio imaginário que as metaforiza, e permite que esse es-
paço deixe de ser concebido como um lar que acolhe para ser
compreendido como uma estação, cuja plataforma não assegura
aos seus passageiros um destino certo, como também não inte-
ressa para eles, onde o trem da vida os levará, mas sim, se irá
encaminhá-los para outras estações que os venham tirar do estado
sombrio que o cercava. Isso faz da casa um lugar de memória, um
constante “aberto sobre a extensão de suas significações”
(NORA, 1993, p. 27) que se estendem e que adquirem funciona-
lidades hibridas que servem de suporte de vivências.
Bachelar em “A Poética do espaço” (1993), ao estudar os
efeitos que as imagens dos espaços despertam nos sujeitos, de-
senvolveu o estudo analítico ao qual ele denominou de topofilia,
aquilo que “visa determinar o valor humano dos espaços de
posse, dos espaços defendidos contra forças adversas dos espaços
amados” (BACHELARD, 1993, p.19). A topofilia parte do prin-
cípio de que a percepção é capaz de recriar imagens mentais do-
tadas de valores, e que os espaços amados acompanham o indiví-
duo ao longo de sua vida, sendo capaz de despertar lembranças
de cunho agradável. Sendo a casa, na visão do teórico, um tipo de
espaço amado que tende a concentrar certo grau de imagens que
atraem.
Bachelar (1993) afirma, ainda, que os espaços podem ser tó-
picos ou atópicos, nesse caso, os tópicos seriam aqueles que des-
pertam no sujeito a sensação de acolhimento, de aconchego,
- 328 -
Literatura, memoria y cultura

enquanto que os atópicos despertariam sintomas contrários, tendo


a capacidade de repelir. No caso de “Vermelho Amargo”, a casa
apresenta essas duas características. Através dos relatos das lem-
branças do narrador-personagem é possível observar que antes da
morte da mãe a casa era dotada de uma vitalidade, manifestando
um carácter de acolhimento. No entanto, após a sua morte o
mesmo local transmuta-se:

Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar provisório. [...] Os


cômodos sombrios da casa – antes bem aventurança prima-
vera – abrigavam passageiros sem linha no horizonte. Se fora
o lugar da mãe, hoje ventilava obstinado exílio (QUEIRÓS,
2017, p. 9).

A relação do protagonista com o espaço é mediada pela fi-


gura materna. Nesse sentido, a casa passou a ser sentida como um
ambiente sombrio e que induzia a curta permanência do sujeito
nele, sendo reconhecido pelo próprio narrador-personagem como
um local provisório. Logo, os espaços percebidos pelo narrador-
personagem estão diretamente relacionados com seu estado de
espírito, sendo este, um dos fatores que contribui para o modo
com o qual ele os detalha. O que pode ser observado quando o
protagonista diz que “se fora o lugar da mãe, hoje ventilava obs-
tinado exílio”.
O estudo da topoanálise, nesse caso, seria aquele que per-
mite a análise dos locais da vida do sujeito, que traduz a sua inti-
midade. Na perspectiva topoanalítica, mesmo como afastamento
de um determinado espaço, o mesmo tende a continuar permane-
cendo nos sujeitos, mantendo as suas marcas, as cargas simbóli-
cas que eles despertam, acompanhando-os e ressignificando-os, à
medida que são recordados, sobretudo, aqueles relacionados ao
estado de solidão. Conforme afirma Bachelard:
- 329 -
Literatura, memória e cultura

É todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços


em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos
a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós.
E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por
instinto que esses espaços de sua solidão são constitutivos.
Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente,
doravante estranhos a todas as promessas de futuro, mesmo
quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a
mansarda, ficará para sempre o fato de que se amou um só-
tão, de que se viveu numa mansarda (BACHELAR, 1993, p.
29).

De acordo com Bachelar, os espaços em que se desfruta a


própria solidão é um dos locais que permanece enraizado no su-
jeito, mesmo aqueles não mais frequentados. No caso de “Ver-
melho Amargo”, é possível observar a existência de espaços de
memória, sobretudo aqueles em que o protagonista costumava fi-
car isolado dos demais, optando pela solidão. Após a morte da
mãe, alguns espaços da casa passaram a ser o seu refúgio, sendo
o porão o local de acolhida:

Acordei-me em saudade. Não sei o itinerário do sonho na-


quela noite. Nada mais me incomodava: o tomate, o bife, o
álcool. Só me embalava o porão do sobrado da casa, onde
nos amávamos, sobre o chão de terra e sob o céu de tábuas
corridas. Talvez tenha sonhado com girassóis, sem conhecê-
los. Sabia apenas que eram flores exageradas, cresciam sem
medo. Não exageradas como o sono do morto (QUEIRÓS,
2017, p. 25).

O espaço do porão passa a ser o recinto de acolhida, prote-


gendo e permitindo que o menino naqueles instantes dentro

- 330 -
Literatura, memoria y cultura

daquela mansarda1, tomado pela imaginação, o ressignificasse. O


porão passou a se assemelhar ao útero materno. Por instantes, áti-
mos de vivência, na acomodação do porão se podia sonhar. Ba-
chelard afirma que “a lembrança das solidões estreitas, simples,
comprimidas, são para nós experiências de um espaço reconfor-
tante, de um espaço que não deseja estender-se, mas gostaria de
ser possuído mais uma vez” (1993, p. 29). As lembranças desse
espaço, não só o configura como sendo um espaço de memória,
mais também confirma o que Bachelard (1993), diz sobre a casa
natal: um espaço para além de uma simples morada.
As lembranças que o narrador-personagem carrega da mãe
revelam que mesmo na ausência física, a mesma se fazia presente
em todos os cantos da casa. Tudo invocava a sua imagem:

O tempo – capaz de trocar a roupa do mundo – não consumia


sua lembrança. Quando se ama, em cada dia o morto nasce
mais. Em tudo, sua ausência estava presente. Sobre a fruteira
da mesa da sala de jantar, na janela em que se debruçava nas
tardes, na gota de água que pingava da torneira, no anil que
clareava os lençóis, ela se anunciava. No silêncio obrigatório
para bem escutar os pássaros, ela se emanava (QUEIRÓS,
2017, p. 19-20).

Mesmo com o passar dos anos, as lembranças da mãe e de


tudo que imprimia a sua imagem fortalecia a sua presença na vida
do protagonista, a fazendo renascer a cada dia. Sua ausência física
pela casa provocava a sua presença simbólica que se manifestava
em cada cômodo e objeto que compunha casa. Tudo demonstrava
que sua imagem não desocupava o espaço físico, pois era cons-
tantemente resgatada e significada através do imaginário do

1
Expressão utilizada por Bachelar para se referir a espaços humildes, mas
transmissores de bem-estar.
- 331 -
Literatura, memória e cultura

garoto. Halbwachs, ao explicar esses efeitos que os espaços e os


objetos geram nos sujeitos, esclarece que isso ocorre porque

nosso ambiente traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos


outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são ar-
rumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos lem-
bram nossa família e os amigos que vemos com frequência
nesse contexto (HALBWACHS, 2006, p. 156).

Nesse caso, as experiências que são compartilhadas, sobre-


tudo as vivenciadas no grupo tendem a serem lembradas até
mesmo quando se está só, logo, as memórias do narrador-perso-
nagem de “Vermelho Amargo” carregam as suas percepções e as
daqueles com quem ele compartilhou espaços, pensamentos e os
diferentes tipos de vivências.

4 Considerações Finais

A leitura de “Vermelho Amargo”, de Bartolomeu Campos


Queirós nos traz reflexões sobre a memória e o espaço ficcional
na perspectiva da rememoração. A infância do narrador-perso-
nagem é retomada a partir de fluidos de imagens, as lembranças
da vivência desse sujeito. Dessa forma, essa obra retrata a memó-
ria da infância de um garoto que após a morte da mãe passara a
conviver com a madrasta.
Nesse sentido, as lembranças do convívio familiar, principal-
mente, as que estavam ligadas a figura da mãe e da presença da
madrasta, são ressignificadas de maneira muito dolorosa, pois a
madrasta não expressava nenhum sentimento pelo garoto. Dife-
rente da mãe que lhe transmitia doçura. Assim, a casa deixou de
ser um espaço de contemplação, tudo se tornou amargo. Logo, a

- 332 -
Literatura, memoria y cultura

lembrança da casa, espaço de convivência desse sujeito, é trazida


para o presente de forma dolorosa.
Portanto, a narrativa de “Vermelho Amargo” é constituída
por metáforas, traz no espaço do lar do protagonista, a imagem
do tomate, símbolo da desarmonia, pois o modo como a madrasta
o fatiava traduzia a ausência de ternura, que o colocava na condi-
ção de solidão e abandono. Diferente da mãe, que o fatiava em
cruz adivinhando os gomos de cada um, simbolizando delicadeza
e ternura. As imagens espaciais da casa e o fantasma da mãe de-
sempenham papel importante na rememoração do narrador-per-
sonagem, sendo demarcados em um tempo e espaço que remetem
à infância. Nesse caso, os espaços de referência individual exer-
cem forte influência no ato de rememoração do narrador-perso-
nagem.

Bibliografía

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins


Fontes, 1993.

BOSE, Éclea. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia


social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Cen-


tauro, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lu-


gares. São Paulo, 1993.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Vermelho Amargo. 2. ed.


São Paulo: Global, 2017.
- 333 -
Literatura, memória e cultura

SANTOS, Luís Alberto Brandão. OLIVEIRA, Silvana Pêssoa.


Sujeito, tempo e espaço ficcionais: Introdução à Teoria da Lite-
ratura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

- 334 -
Literatura, memoria y cultura

16. A
DESCENTRAÇÃO DO SUJEITO NA
CANÇÃO “A REVOLTA DOS DÂNDIS I”, DO
ENGENHEIROS DO HAWAII
_______________________

Francisco Láryos Lima Tôrres1

Introdução

O estudo da canção tem sido uma atividade cada vez mais


frequente no plano das pesquisas acadêmicas. A literatura com-
parada, a semiótica e os estudos culturais são bons exemplos de
vertentes que exploram este fenômeno. Por dentro dos estudos
sobre a linguagem musical, o semioticista Luiz Tatit (2002) com-
preende o termo canção, em sua essência, por a composição de
duas unidades que se combinam de modo a formar um todo coe-
rente. Tais elementos, que formam esse encontro íntimo, são a
letra e a melodia – uma espécie de núcleo identitário. Contudo,
sabemos que outros componentes trabalham em prol dessa cria-
ção artística, a saber: arranjos, instrumentação e execução (TOR-
RES, 2014). Estes elementos que contornam a letra e melodia
também podem alongar as possibilidades de significações presen-
tes numa composição musical.
Neste panorama, o caminho para contemplar o objetivo
desta pesquisa percorrerá pela leitura da canção “A revolta dos
dândis”, uma composição da banda Engenheiros do Hawaii divi-
dida em duas partes (I e II). A canção, escrita e cantada por Hum-
berto Gessinger, foi lançada em 1987 e faz parte de um álbum de
mesmo nome: A Revolta dos Dândis, uma referência a um

1
UESPI – Universidade Estadual do Piauí; laryosmichael@gmail.com
- 335 -
Literatura, memória e cultura

capítulo do ensaio O homem revoltado, de Albert Camus, publi-


cado em 1951.
O álbum A Revolta dos Dândis é representado por uma sin-
gularidade sonora que reforça os sentidos propostos nas letras de
Humberto Gessinger, líder e vocalista do Engenheiros do Hawaii
por longos anos de carreira, estradas e trabalhos lançados. O teor
de suas letras é permeado por saltos semânticos, antíteses, para-
lelismos, ironias, trocadilhos, reiterações sonoras e autocitações
que acrescentam possibilidades dimensionais em seu discurso.
Atualmente em carreira solo, Gessinger continua na ativa com
canções inéditas e velhos hits que marcaram sua trajetória musi-
cal. No mês de outubro de 2019, lançou um trabalho solo inédito
intitulado Não vejo a hora.
Em muitos casos, no meio de diversas temáticas, os sujei-
tos inferidos nas vozes de suas canções se engajam em marcas da
pós-modernidade, dentre elas destacam-se a condição de estar
num ambiente farto de informações (onde o real e o irreal coexis-
tem); o ecletismo e pluralismo cultural, o estranhamento; a ideia
de que tudo é passageiro; a diversidade e a fragmentação das
identidades dos sujeitos (muitas vezes contraditórias); o hedo-
nismo; a descrença às estruturas absolutas e a reverência à recri-
ação e reciclagem na arte. É especificamente sob este cenário que
operaremos nossa leitura analítica, posto que a faixa que escolhe-
mos, “A revolta dos dândis I”, participa desse projeto temático.
A leitura da canção dar-se-á mediante a um recorte biblio-
gráfico sobre concepções que debatem essa era da pós-moderni-
dade, condição que entendemos estar presente na dicção do can-
cionista, ou seja, o “malabarista” que tem como principal ofício
buscar um equilíbrio entre letra e melodia no engendramento de
suas canções (TATIT, 2002).

- 336 -
Literatura, memoria y cultura

Ademais, estudar a inter-relação entre formas de lingua-


gens distintas nos proporciona conhecer mais sobre o caminho
que cada estrutura segue no processo de geração de sentido. Tam-
bém entendemos que um debate sobre a canção, seja pela pers-
pectiva da semiótica ou por outras vias não findam suas possibi-
lidades interpretativas. Portanto, esta é uma contribuição que a
pesquisa tem a oferecer, mas que abre um leque de novas possi-
bilidades para estudos de um maior fôlego que transitam pela aná-
lise de composições da música popular.

O mundo pós-moderno

O movimento pós-moderno é comumente datado a partir


dos anos 60, tendo surgido após a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Em linhas gerais, a pós-modernidade pode ser defi-
nida como uma fusão de várias tendências marcadas pelo ecle-
tismo, espontaneidade e liberdade de expressão que vigoram até
hoje no nosso âmbito social, abraçando as artes, a ciência, filoso-
fia, política, economia, religião etc.
Em caráter de ruptura, a pós-modernidade traz consigo
uma condição dentro da história que por muitas vezes confronta
e marca o fim de um período precedente – a modernidade. En-
quanto no modernismo havia um culto à racionalização, aos va-
lores da burguesia bem como da ciência, na pós-modernidade a
vida é dominada pela efemeridade e profusão, dentro de um pa-
norama em que os consensos universais baseados em sistemas fi-
losóficos perdem suas forças. É nesta perspectiva que o estudioso
sobre a condição pós-moderna Jean-François Lyotard caracteriza
esta fase sob duas principais marcas – “a deslegitimação do saber
e o fim das metanarrativas ou metarrelatos” (LYOTARD, 2009).

- 337 -
Literatura, memória e cultura

No âmbito social, em meio ao bombardeio de informações


pelo qual passa o homem, condição que o torna confuso, perdura
sua busca pelo prazer supremo, uma busca pelo gozo, isto é, o
hedonismo. Em confronto com a sociedade moderna, esta que era
centrada na produção e na industrialização, a pós-moderna, por
sua vez, é centrada no consumismo e na cultura como diversão,
reduzida ao econômico, tendo como exemplo a existência dos
shoppings centers e da Disneylândia (JAMESON, 1996).
Para Linda Hutcheon (1991), o termo pós-modernismo,
confrontante, sobredefinido e subdefinido, aberto a caminhos va-
riados de leitura e interpretação, costumeiramente carrega con-
sigo uma carga de negatividade, discrepância e contestação. A
autora ressalta a abrangência e o impacto do movimento pós-mo-
derno em longa escala global e aponta que

[...] o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa


e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que
desafia – seja na arquitetura, na literatura, na pintura, na es-
cultura, no cinema, no vídeo, na dança, na televisão, na mú-
sica, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na linguís-
tica ou na historiografia. (HUTCHEON, 1991, p. 19).

Sérgio Paulo Rouanet, na obra As razões do iluminismo,


alarga esse debate e nos alerta que não existe apenas um viés ex-
plicativo para definir a pós-modernidade, isto é, há quem diga
que o termo pós-moderno se resume apenas às produções artísti-
cas, em contrapartida, outros a enxergam numa condição que en-
volve toda a esfera cultural que, para muitos, sempre esteve pre-
sente em toda a história da humanidade. Para Rouanet (1987,
p.231), “cada época vive sempre, em cada momento, seu próprio
pós-moderno”. O autor ressalta-nos adiante o caráter de ruptura
- 338 -
Literatura, memoria y cultura

dessa era, uma vez que, para interpretarmos a pós-modernidade


não podemos dissipá-la da modernidade, já que no seu pensa-
mento o pós-modernismo é compreendido “em sua acepção mais
geral, por um questionamento da modernidade, no todo ou em
parte”.
A condição de ruptura nesse período perpassa também pela
arte, uma vez que a expressão artística carrega a responsabilidade
de ter recebido pela primeira vez a alcunha de pós-moderno. Se-
gundo Rouanet, no viés estético, a arte busca um distanciamento
do modernismo. Na música, especificamente no rock, bandas de
renome “do período anterior” como Rolling Stones e The Beatles,
citadas por Fredric Jameson como o “grande momento moder-
nista” do rock, agora dividem espaço com a chegada do rock punk
ou new wave representadas pelos grupos The Clash, The Cure,
Gang of Four, Joy Division, dentre outros (ROUANET, 1987,
p.248). Nesse prisma, o rock é atingido pela eclosão de elemen-
tos que aos poucos vão se incorporando às suas marcas e valores
clássicos.
Para Steven Connor (1989, p.150), na pós-modernidade,
assim como ocorre na indústria da moda, no rock há o surgimento
de “releituras”, “retomadas” e “versões cover”, fatores que relem-
bram a natureza do pastiche1. Contudo, a rapidez com que se pro-
pagavam notícias e se produziam os objetos frente a um reconhe-
cido desenvolvimento tecnológico trouxe efeitos colaterais ao
que se produzia, sem que houvesse um maior cuidado e controle
de qualidade perante algumas obras. Na produção de áudio, estes

1
Para Fredric Jameson, o pastiche é uma marca das obras pós-modernas.
Trata-se de uma releitura neutra sem o teor satírico da paródia, por exem-
plo. É a imitação de um estilo singular de algum artista sob “a utilização de
uma máscara estilística” (JAMESON, 1985, p. 18).

- 339 -
Literatura, memória e cultura

fatores transcorriam em conjunto ao aparecimento de novidades


nas gravações dos produtos fonográficos. Houve então o surgi-
mento do sampling, ferramenta tecnológica que manipula o som
possibilitando a reprodução e sintetização de vários instrumentos
musicais. O uso dos samplers, sem dúvida, é um marcador no
conceito da música popular na pós-modernidade e “oferece o
mais claro exemplo da estética pós-moderna do fragmento”
(CONNOR, 1992, p.150).
O rock deve ter um reconhecimento de uma das formas cul-
turais pós-modernas mais representativas. Segundo Connor
(1992, p.151), o estilo “(...) personifica à perfeição o paradoxo
central das culturas de massas contemporâneas: o seu alcance e
influência globais unificadoras (...)”. Desde muito cedo, o rock já
surgiu com autopoder influenciador da juventude sendo reprodu-
zido culturalmente nas ruas, nos estilos e na moda. Grupos de
rock como The Who, Genesis e Talking Heads são exemplos de
artistas que já realizavam tal influência (CONNOR, 1992, p.151).
Neste universo da canção popular, o caos também se instaurou
sobre os modelos tradicionais de se compor música, no entanto a
música atravessou por esse processo de reestruturação artística e
obrigou-se a entrar no jogo de fazer uma paródia de si mesma.

O sujeito pós-moderno: descentramento e fragmentação da


identidade

Em meio às concepções de tantos teóricos sobre a questão


da pós-modernidade, discorreremos agora sobre a escrita de Stu-
art Hall no obra Identidade cultural na pós-modernidade, atribu-
indo um olhar especial ao sujeito que está inserido nesse contexto
histórico. O debate do sociólogo tem como foco as identidades

- 340 -
Literatura, memoria y cultura

culturais dos sujeitos e suas digressões em meio à globalização.


Percebemos nas palavras de Hall que a instabilidade toma conta
de tudo aquilo que o sujeito entendia como inalterável e cons-
tante. Para o autor jamaicano, o sujeito sob a alcunha de pós-mo-
derno vive diante de muita subjetividade, sem a presença de uma
identidade fixa em essência e já se distancia do sujeito do ilumi-
nismo, um indivíduo centrado e unificado, e do sujeito socioló-
gico, a segunda concepção da tríplice criada por Hall, a qual re-
vela um ser que muda os hábitos e o jeito de viver conforme entra
em interação social com o mundo cultural afora.
Estar perdido no lugar onde habita, descentrado e desorde-
nado é uma marca forte do sujeito na pós-modernidade, nosso
principal destaque nesta pesquisa. David Harvey, também estudi-
oso dessa condição, concorda com Hall ao nos elucidar que “as
personagens pós-modernas parecem confusas acerca do mundo
em que estão” (HARVEY, 2003, p. 46). É neste panorama em
que se instaura uma possível crise de identidade a qual Stuart Hall
investiga na sua obra - condição que espelhamos ao contexto de
nosso objeto de estudo. O autor convenciona que as identidades
modernas estão descentradas, ou seja, “deslocadas ou fragmenta-
das” (HALL, 2006, p. 8). Partindo dessa premissa, procuramos
entender alguns dos fatores causadores deste desarranjo. A ques-
tão da globalização é elencada por Hall como responsável pela
fragmentação da identidade nacional, por exemplo. Em longa es-
cala, a noção de espaço é reduzida pelo advento das tecnologias
digitais. A globalização seria, nesse contexto, a resposta para o
fato de as identidades se aproximarem e consumirem os mesmos
produtos, imagens e mensagens. Isto configura uma fragmenta-
ção dos códigos culturais.
Não podemos conceber que a ideia do fragmento atrela-se
apenas a um ou dois segmentos da vida do sujeito. Para
- 341 -
Literatura, memória e cultura

desconstruir tal pensamento e entender o colapso que atinge a


questão da identidade, recorremos à asseveração de Hall:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando


as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fra-
gmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexuali-
dade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos ti-
nham fornecido sólidas localizações como indivíduos soci-
ais. Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós pró-
prios como sujeitos integrados. (HALL, 2006, p. 9).

Tudo isso contribui para a culminância de uma condição de


sujeito descentrado e deslocado. Diante dessa duplicidade que ora
atinge a esfera social e cultural do homem, ora atinge sua exis-
tência, compreendemos então a instauração de uma crise de iden-
tidade. Nesse escopo, contabilizamos que o entendimento das
discussões culturais que nos deram posições estáveis enquanto
indivíduos sociais também sofrem desse desmembramento.
Diante da profusão, da abundância de estilos, do plura-
lismo cultural, da ênfase ao efêmero, além do consumismo global
espalhado nas nações, por intermédio da globalização que se-
grega estes códigos culturais, deparamo-nos com a ideia de múl-
tiplas identidades, identidades compartilhadas e/ou contraditó-
rias, que se deslocam mutuamente (HALL, 2006). Uma vez que
as culturas tidas como nacionais e intactas se tornam mais expos-
tas frente às culturas externas, as identidades culturais sofrem a
infiltração e influência de outras manifestações deixando de ser
totalmente acondicionadas. A própria sociedade também é mutá-
vel, argumenta Hall, e “está constantemente sendo descentrada
ou deslocada por forças fora de si mesma” (HALL, 2006, p. 17).

- 342 -
Literatura, memoria y cultura

É nessa ambiência que se delineia o sujeito pós-moderno.


Já que o modo de ser é algo inconstante em acordo ao período em
que cada um vive, na pós-modernidade não é diferente. Diante
deste pensamento, o teórico francês Michel Maffesoli completa
que “já não é no desenvolvimento histórico que se molda o etos
pós-moderno, mas na natureza reapropriada, no espaço compar-
tilhado” (MAFFESOLI, 2004, p.76). As interações sociais a todo
vapor pelo encabeçamento da globalização o fazem habitar em
aglomerações mesmo que estas ligações sejam forçadas.
Temos de compreender o indivíduo da sociedade pós-mo-
derna como alguém desprendido de uma identidade única, um su-
jeito que não se sente estável nem mesmo no próprio habitat em
detrimento de sua multiplicidade de identidades, além de ser mar-
cado pelo caos de um bombardeio de informações em escala glo-
bal e de outras mutações sofridas pela modernidade – um locus
agora onde predominam mudanças bruscas e constantes no seu
modo de viver. Desse modo, as identidades se tornam desvincu-
ladas - de tempos, histórias e tradições específicas - ao passo em
que a vida social, cheia de antagonismos, vai se mediando através
deste mercado global de imagens, lugares e estilos.

Na estação: “A revolta dos dândis I”

À luz da teoria de Stuart Hall, bem como de outras premis-


sas concernentes ao debate que envolve toda a questão da pós-
modernidade, elaboraremos uma leitura analítica da canção “A
revolta dos dândis I”, composta por Humberto Gessinger, que foi
durante muitos anos o líder, vocalista e multi-instrumentista da
banda gaúcha de rock Engenheiros do Hawaii.
“A revolta dos dândis I” é a canção de abertura do trabalho
e carrega o mesmo nome do disco, lançado em outubro de 1987.
- 343 -
Literatura, memória e cultura

No âmbito musical, a paisagem sonora é de um rock clássico em


que vão se incorporando outros elementos que incrementam a so-
noridade das canções do álbum. É clara também a influência de
estilos como o country rock1, por exemplo. Da mesma forma que
em outras manifestações artísticas, “o ecletismo e o pluralismo”
fazem-se presentes na música popular na pós-modernidade
(KRAMER, 1995).
Os primeiros segundos da canção apontam para detalhes
que fortalecem ideias engendradas na letra. A condução acelerada
e contínua remete a uma viagem de trem, temática insinuada na
canção. O som vibrante da gaita, que ressoa e passeia durante
quase toda a música, lembra a buzina do transporte ferroviário.
Pode-se imaginar uma viagem – a primeira viagem que
Gessinger sugeriu na voz da canção e que propõe noutras letras
do álbum. Cada música seria como uma estação, uma parada por
que passam os indivíduos ali presentes no contexto de cada faixa
musical. Decerto, duas estações são vizinhas, estas são “A revolta
dos dândis I” e “A revolta dos dândis II”. O sujeito inferido em
ambas as canções transmite a condição de passageiro da viagem
a nós, leitores/ouvintes. Por falar em passageiro, não há como de-
satar a influência e referência aos personagens de Albert Camus
nestas viagens, isto é, nestas canções. A vida de Meursault2,

1
O country rock é uma vertente da música popular resultante da fusão do
rock à música country. Algumas características são o uso de instrumentos
acústicos como o violão e a proximidade sonora de estilos como blues. O
gênero é muito disseminado nos Estados Unidos, tendo a sua origem atre-
lada ao país e geralmente é datado a partir dos anos 1960 e 1970. Bob
Dylan, Woody Guthrie, The Byrds e Eagles são exemplos de artistas e ban-
das que passam por esse estilo.
2
Sobre a influência e as alusões a Camus no álbum, destaca-se a ligação
do sujeito representado nas canções de Gessinger ao protagonista Meur-
sault, narrador-personagem. Meursault enxerga e exala a indiferença do
- 344 -
Literatura, memoria y cultura

narrador personagem da obra de Camus – O Estrangeiro, é pro-


ferida em muitas das palavras e sensações do eu-lírico criado por
Gessinger. Vale lembrar que o próprio título da canção e do ál-
bum são homônimos a um capítulo de um aclamado ensaio do
escritor franco-argelino, O Homem Revoltado. Numa ambiência
pós-modernista onde o indivíduo parece sempre estar confuso so-
bre o universo em que se encontra, diante de tantos estímulos,
informações, mudança de valores que descentram sua identidade,
está ali o sujeito da canção, estigmatizado pela fragmentação,
pela efemeridade e pelo caos que invadem o seu espaço e seus
dias.
Ao início dessa viagem, o deslocamento que assola a sua
identidade, bem como a ligação com a personalidade de Meur-
sault é presumida nos primeiros versos:

entre o rosto e um retrato


o real e o abstrato
entre a loucura e a lucidez
entre o uniforme e a nudez

O eu-lírico não demonstra possuir consciência de seus atos


e de si mesmo e se coloca à margem. A preposição entre repre-
senta esse descentramento do indivíduo confuso sobre si mesmo,
bem como um ar de indiferença às coisas, outro elo com o perso-
nagem camuseano. Nos versos iniciais da canção, corrobora a in-
decisão e inutilidade das ações desse sujeito que flutua sem tomar

mundo em sua trajetória marcada por assassinatos banais, rispidez e frieza


de emoções. Acima de tudo, ilustra um tipo de ser humano sem preocupa-
ção com destino, sem projetos, vago no mundo sem sentido para viver.

- 345 -
Literatura, memória e cultura

decisões, vivendo sob uma sensação de estar constantemente “em


cima do muro”. O uso dessa expressão aponta para a existência
de um entre-lugar, um meio termo, uma prisão nos paradoxos,
questões externadas por um sujeito irresoluto. A harmonia1 cí-
clica, elaborada sob poucos acordes, compatibiliza a ideia de
“vaivém” da melodia que insiste em não sair do lugar, também
cíclica na intenção de transmitir a indecisão propagada pela voz
do cancionista. Como na trilha de um trem, o caminho melódico
permanece em via sem curvas acentuadas. A cama de acordes
destes fragmentos pouco apresenta tensões pelo fato de sempre
retornarem ao acorde fundamental – recurso que infere uma sen-
sação de conclusão, descanso e estabilidade para a audição.
Sua identidade não é mais a mesma, intacta e constante. O
absurdo da vida e a prisão dentro dos paradoxos perseguem o su-
jeito da canção, deleitado na metáfora da viagem e nas discussões
existenciais. Por conseguinte, o desamparo do sujeito no mundo
e a desvalorização à vida, ou seja, o niilismo, mais brando na pós-
modernidade do que na modernidade, segue penetrando os ver-
sos:

entra ano e sai ano


sempre os mesmos planos
entre a minha boca e a tua
há tanto tempo, há tantos planos
mas eu nunca sei pra onde vamos

Nesse escopo, o eu-lírico se enquadra no que poderia ser


chamado “sujeito absurdo” – aquele que trava batalhas contra o

1
A harmonia representa o universo de combinação dos acordes, unidades
que também conduzem a música.
- 346 -
Literatura, memoria y cultura

seu próprio meio, ininterruptamente, num constante juízo da vida


(CAMUS, 1982). Tal asseveração dialoga com a condição de não
se encontrar em nenhuma identidade fixa. O estar confuso enca-
minha-nos rumo a um quadro de crise de identidade desse indiví-
duo.
Seguindo nessa toada rodeado de saltos semânticos que ora
se realizam em aliterações, ora em assonâncias e antíteses, o eu-
lírico perambula entre ideias infundadas, desafixado, preso no
meio termo, confuso e indiferente:

entre um copo e outro


da mesma bebida
entre tantos corpos
com a mesma ferida

Dentro desse viés ideológico, Jaqueline Franz (2007, p.


62), sob a mesma constatação, completa que “esse sentimento de
estranheza, de passageiro que não encontrou o seu lugar é cons-
truído através do paralelismo estruturado no início de cada verso:
entre um... e um...”.
O sentimento de revolta, sugerido logo no título da canção,
pode ser relacionado à ideia de estar numa vida sem itinerário
dada também às influências externas que desestabilizam a fixa-
ção de sua identidade. A representação da vida, nessa conjuntura,
está metaforicamente manifestada na viagem de trem. O eu-lírico
exprime a dificuldade de desassociar o mundo real do virtual, fato
exposto no segundo verso da canção - entre o real e o abstrato.
A referência nessa passagem é sobre os ideais do teórico Jean
Baudrillard (2011), o qual dissertou que, entre tantas característi-
cas do sujeito na pós-modernidade, está a condição de viver nessa
mistura do mundo virtual e real que se dá mediante a crescente
- 347 -
Literatura, memória e cultura

força da tecnologia, do simulacro, da explosão de informações,


resultantes também da expansão dos meios de comunicação
como a televisão e rádio. Dessa forma, condicionamos que a glo-
balização está intimamente relacionada ao descentramento e à
quebra de identidade intacta e permanente do sujeito pós-mo-
derno.
Para Baudrillard (2011), o real e o virtual coexistem. Essa
amálgama dá margem para o nascimento do “hiper-real”, um uni-
verso que transcende e causa extravasamento à realidade. O su-
jeito da canção mergulha nesse contexto de hiper-realidade, o
qual Baudrillard atrela a sociedade pós-moderna. No refrão, de-
tectamos essa sensação:

eu me sinto um estrangeiro
passageiro de algum trem
que não passa por aqui
que não passa de ilusão

O cenário traz novamente à tona um personagem desorde-


nado que não intercede a nada em detrimento da mutação de sua
identidade. Para ele, não há um rigor na divisão entre os aspectos
que são postos em oposição no decorrer da canção - entre o rosto
e o retrato, entre o fim do mundo e o fim do mês, entre a loucura
e a lucidez, a mentira e a verdade – em nenhum momento o eu-
lírico aparenta-nos estar ciente e disposto a tomar partido para
estar de um lado ou de outro, optando por permanecer à margem,
por ser um estrangeiro qualquer, passageiro de algum trem. É as-
sim o dândi para Camus – um sujeito que não simboliza apenas
aquele ser de bom gosto que vive cultuando a estética pessoal e
que, nesse prisma, cria sua peculiaridade. Contudo, a concepção
de revolta também abraça a personalidade do dândi. Camus
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Literatura, memoria y cultura

(2011, p. 60 - 61) assegura que “o dândi, por sua função, é sempre


um opositor”, isto é, a recusa ajuda-o a mascarar a sua singulari-
dade. Além do mais, é “disperso” e está “sempre em ruptura,
sempre à margem das coisas” e, para proclamar sua existência,
necessita do outro – “os outros são o seu espelho”. Assim, o dândi
pactua com o sujeito pós-moderno configurado por Hall.
É cabível ressaltar, ainda no estribilho, a existência de uma
variação de sentido na palavra passar. Notamos que, semantica-
mente, no primeiro uso: passa por aqui – o “passar” é físico. Em
seguida: passa de ilusão – por sua vez, remete a um “passar” abs-
trato. Os vocábulos aqui e ilusão conferem ao verbo passar essa
dualidade de sentido, o que faz reconhecer mais um traço da es-
crita gessingeriana – o jogo semântico.
Em consonância com a esfera pós-modernista, a canção “A
revolta dos dândis I” preconiza mais uma característica da arte
pós-moderna: a recriação de ideais estéticos estabelecidos em
obras anteriores, isto é, uma nova conotação e uma releitura dos
personagens de Camus que dão uma condição de reciclagem à
essa obra do Engenheiros do Hawaii. O tom representativo do
pastiche estende-se aos traços sonoros da canção gessigeriana. A
escolha dos timbres instrumentais, a cadência direta (sob uma
união de poucos acordes que fortalecem a transmissão da mensa-
gem da letra), externam a influência do rock clássico vigente na
época à composição.
A dinâmica da viagem pela qual está percorrendo o eu-
lírico é restabelecida no fim da canção e impresso nos vocais de
Humberto Gessinger, quando o cancionista, gradativamente, vai
desacelerando ao repetir os versos: eu me sinto um estrangeiro -

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Literatura, memória e cultura

passageiro de algum trem. O leve rallentando1 executado no


plano sonoro representa a parada numa estação. Todavia, a metá-
fora da viagem de trem ainda sob a abordagem da identidade do
indivíduo fragmentada e desmembrada será retomada no segundo
momento da canção, ou seja, na próxima estação – “A revolta dos
dândis II”.

Algumas considerações

No engendramento da presente pesquisa atravessamos por


um estudo sobre questões que envolvem a estética pós-moder-
nista com ênfase na presença do sujeito e sua identidade fragmen-
tada, deslocada e descentrada, teoria basilar de Stuart Hall. Diante
da leitura e da diversidade de concepções, alguns outros aspectos
encontrados como estigmas da vida pós-moderna foram – a rapi-
dez e a vasta quantidade de informações que causam estranha-
mento e desordem aos indivíduos; a ausência de valores absolu-
tos; a efemeridade; a predominância do ecletismo; a dissemina-
ção sem freio do capitalismo gerando um consumismo exacer-
bado; e, sem dúvidas, a globalização como causadora da mutação
das identidades nessa era, dada a velocidade com que se misturam
todas as culturas.
Para contemplar a problemática geral, foi necessário que
percorrêssemos por um afunilamento teórico que culminaria na
leitura analítica da canção “A revolta dos dândis I”. Neste per-
curso, além do certame sobre as indagações da pós-modernidade,
transitamos pelo conceito e características do gênero canção

1
Recurso de expressão musical no tocante ao andamento. Após esse sinal,
o trecho musical vai se tornando gradativamente mais lento.
- 350 -
Literatura, memoria y cultura

reconhecendo sua figuração no rol dos estudos acadêmicos - uma


estação obrigatória para corporificar a análise.
Reconhecemos a relação estreita entre a música e a litera-
tura, artes irmãs que sem dúvidas enquanto fenômenos íntimos
apresentam uma simbiose. Nesse âmbito, uma vez que no cons-
truto literário detectamos o uso de técnicas advindas da música, a
linguagem musical é penetrada também por elementos da lingua-
gem literária. Gessinger, por sua vez, constantemente apodera-se
desse jogo para formatar os sentidos propostos em suas composi-
ções.
Sabemos que as composições musicais perambulam por
nossa vida corriqueira. Considerando a inerência e urgência dessa
temática ao cotidiano, esta pesquisa deve acrescer, academica-
mente, nos debates e estudos que se direcionam a fenômenos
como a canção e/ou sua relação com outras linguagens, outros
sistemas semióticos, operando pelas análises das mesmas. A dis-
cussão sobre a temática controversa que é a pós-modernidade
também é um propósito que procuramos evidenciar de forma a
especular como essa estética pode ser representada na voz de uma
composição musical. Concordamos também que, por conta da
grande dimensão de significações que uma só canção pode gerar,
procuramos descortinar os sentidos ali construídos por distintas
correntes de estudo, compreendendo que uma área específica
apenas não é capaz de findar toda essa profundidade interpreta-
tiva.
Por outro lado, ao cursar pelos aspectos que envolvem a
produção artística do Engenheiros do Hawaii, observamos que,
durante toda essa viagem musical e literária, nos deparamos com
referências a autores relevantes no cânone literário como Albert
Camus, marcante desde a escolha do título do álbum ao teor das
letras da banda.
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Literatura, memória e cultura

Sonoramente, o álbum A Revolta dos dândis passeia pelo


pop, rock progressivo e rock clássico dos anos 60 e 70 com pita-
das de country rock. A canção que analisamos ratifica pratica-
mente todas estas impressões. No plano das composições, nos
atemos também à compatibilização entre melodia e letra, ou seja,
o núcleo de representação do fenômeno da canção. Humberto
Gessinger utiliza com constância recursos que estreitam a relação
som e palavra, aspecto que poderia, sem dúvidas, abrir um novo
caminho para pesquisas posteriores em meio aos estudos sobre
suas canções.

Referências

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Literatura, memoria y cultura

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Bibliografia

Francisco Láryos Lima Tôrres - Graduado em Letras Português e


Mestrando em Letras pela UESPI – Universidade Estadual do Pi-
auí; Músico profissional e Professor de Música na rede particular.

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Literatura, memoria y cultura

ÍNDICE REMISSIVO

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