Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
da Amazônia: circulação,
tramas e sentidos
Organizadores
Direitos exclusivos para esta edição:
Editora da Universidade Federal do Acre (Edufac),
Campus Rio Branco, BR 364, Km 4,
Distrito Industrial – Rio Branco-AC, CEP 69920-900
E-mail: edufac.ufac@gmail.com / edufac@ufac.br
Feito Depósito Legal
Editora Afiliada:
Luciana Marino do Nascimento
Maria do Perpétuo Socorro Simões Galvão
Roberto Mibielli
Yurgel Pantoja Caldas
Organizadores
Conselho Editorial
Carromberth Carioca Fernandes, Délcio Dias Marques, Esperidião
Fecury Pinheiro de Lima, Humberto Sanches Chocair, José Porfiro da
Silva (Vice-Pres.), José Sávio da Costa Maia, Leandra Bordignon, Lucas
Araújo Carvalho, Manoel Limeira de Lima Júnior Almeida, Maria Aldecy
Rodrigues de Lima, Rafael Marques Gonçalves (Pres.), Rodrigo Medeiros
de Souza, Rozilaine Redi Lago, Selmo Azevedo Apontes, Sérgio Roberto
Gomes de Souza, Silvane da Cruz Chaves, Simone de Souza Lima
Coordenadora Comercial
Ormifran Pessoa Cavalcante
Revisão de Texto
Ormifran Pessoa Cavalcante
Esta obra foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(Chamada Universal MCTIC/CNPq n.º 28/2018), avaliada e aprovada por parecerista ad-hoc.
Vários autores.
ISBN: 978-65-990441-8-2
CDD: 869.93
Apresentação.........................................................................................7
ˍ Roberto Acízelo Quelha de Souza
1. PARTE 1
CULTURA, LITERATURA E IMAGINÁRIO.......................11
2. PARTE 2
LITERATURA, HISTÓRIA E IDENTIDADES NA
AMAZÔNIA...................................................................117
XI. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre
personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto............................... 223
ˍ Sheila Praxedes Pereira Campos
Sobre os Autores.................................................................................267
Apresentação
7
do viver regional. De novo, citemos só dois nomes desse período, como
representantes, respectivamente, do vigor crítico e da valorização do pito-
resco: Graciliano Ramos e Jorge Amado.
E acrescentemos que esse momento do regionalismo se prolonga
pelo menos até a década de 1960, embora a crítica – bem como escritores
publicamente reconhecidos por sua dedicação à figuração literária de pe-
culiaridades regionais – tenha passado a considerar depreciativa a qualifi-
cação de um autor como regionalista. Teria, assim, simplesmente desapa-
recido essa dimensão da nossa cultura literária, tanto que, para citar o caso
mais representativo, um Guimarães Rosa, não obstante a onipresença em
sua obra da palavra sertão, provavelmente a mais icônica encarnação entre
nós da ideia do infranacional, nada teria a ver com regionalismo, dado o
caráter universal de sua obra.
Não desapareceu, no entanto, o regionalismo, com o tabu linguístico
que baniu essa palavra do vocabulário da crítica. Obras evidentemente re-
gionalistas continuaram sendo produzidas – embora seus autores fujam do
rótulo de regionalistas como o diabo foge da cruz –, mas certamente elas
estão longe de configurar um movimento ou uma tendência. Em contra-
partida, no campo dos estudos literários, ainda que com a mesma reserva
quanto ao nome, o regionalismo vem ganhando impulso desde fins da dé-
cada de 1990 aos dias de hoje. De fato, nas universidades, na área de letras,
tanto nos cursos de graduação quanto nos programas de pós-graduação,
criaram-se disciplinas e linhas de pesquisa voltadas para produção literária
de feição regional, e isso sim parece configurar uma tendência.
Se a hipótese procede, estamos diante da quarta onda do regionalis-
mo no Brasil, agora, como uma das diretrizes do culturalismo identitário,
que tanto espaço ganhou ultimamente nas nossas instituições universitá-
rias. Acrescenta-se assim, à valorização acadêmica das identidades de etnia,
8
de gênero e de orientação sexual, a identidade regional, como tópico de
pesquisa em alta entre nós.
Este Literatura, cultura e identidade da Amazônia: circulação, tra-
mas e sentidos constitui substancial contribuição para os estudos regiona-
listas. Concebido e produzido em âmbito amplamente interinstitucional,
já que organizado por docentes de diversos centros universitários, situa-
dos na região Norte – Maria do Socorro Simões (UFPA), Roberto Mibielli
(UFRR), Yurgel Pantoja Caldas (Unifap) e Luciana Marino do Nascimento
(UFRJ/Ufac) –, a obra acolhe rica variedade de questões, mas todas em tor-
no do tópico do regionalismo, especificamente em sua modalidade amazô-
nica. Assim, nela encontramos desde estudos sobre escritores específicos
– Dalcídio Jurandir, por Ivone dos Santos Veloso (UFPA); Milton Hatoum,
por Marlí Tereza Furtado (UFPA); Yaguarê Yamã, por Delma Pacheco Sicsú
(UnB); Frank Kravigny, por Luciana Marino Nascimento (Ufac); Ferreira de
Castro, por Verônica Prudente Costa (UFRR) e Henrique Andrade Germa-
no (Seduc/AM) –, uma análise comparativista – Lobato/Flaubert/Milton
Hatoum, por Anna Paula Ferreira da Silva (UFRR) – e dois ensaios dedica-
dos à poesia – respectivamente por Sheila Praxedes Pereira Campos (UFRR)
e Roberto Mibielli (UFRR) –, até reflexões sobre questões teóricas voltadas
para a problematização de identidades – imaginário, por Maria do Socorro
Simões (UFPA); estrangeiridade, por Liozina Kauana de Carvalho Penalva
(IFPA) e Lorena de Carvalho Penalva (IFPA); diversidade, por João Carlos de
Sousa Ribeiro (Ufac); feminismo, por Jorlaíne Monteiro Girão de Almeida
(Ifap) e Yurgel Pantoja Caldas (Unifap).
Coletânea de ensaios ao mesmo tempo diversificada e dotada de uni-
dade temática, o livro vem assim integrar-se ao conjunto de publicações
em torno de problemas relativos às identidades regionais, desde logo tor-
9
nando-se subsídio importante para todos aqueles que se interessam por
aprofundar os conhecimentos sobre o Brasil, sua cultura e sua literatura.
10
Parte 1
CULTURA, LITERATURA
E IMAGINÁRIO
11
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Amazonas... Tinha dois pescadores, pescavam juntos. Quando foi um dia, acon-
teceu que um dos pescadores feriu o boto. Estavam pescando. Aí, passou uns dias,
... aconteceu que nesse dia, o outro não foi com ele pescar. Ele foi só. Aí, então, ele
estava muito longe, e aí veio aquela canoa cheia de soldado. Aí, encostou na ca-
noa junto dele e disse: – Mas por quê? O que eu fiz? – Não sei o quê, mas você está
preso, e vamos logo. Aí, ele embarcou na canoa e saiu, quando chegou no meio do
rio, aí, ele disse: – Agora feche os olhos. Aí, ele fechou o olho, e quando mandaram
ele abrir, diz que tinha um palácio. Aí, mas tudo era boto... 1
Esse trecho de uma das narrativas contadas sobre o boto é uma pequena
amostra do que corre pelo imaginário popular da Amazônia. A riqueza desse
universo composto por mitos, lendas e festas folclóricas faz parte da cultura
popular brasileira. A construção desse imaginário é consequência da miscige-
nação cultural que compõe a história do país, por meio de amostras da presen-
ça marcante de mitos greco-latinos, indígenas e africanos.
Foi por constatar as muitas influências dos mitos na cultura da Amazônia
paraense que um grupo de professores do Centro de Letras e Artes (CLA) da
Universidade Federal do Pará (UFPA), a partir de uma proposta pessoal, apre-
sentada à instituição, idealizou o projeto “O Imaginário nas Formas Narrativas
Orais Populares da Amazônia”. O ano era 1995 e o IFNopap nascia com o
1 Trecho de uma das narrativas coletadas no projeto IFNopap.
13
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
14
I. A voz do imaginário: o projeto IFNopap faz 25 anos
15
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
16
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
“enrascado”. E por falar em “enrascado”, quem ficou nessa situação foi o pescador,
do começo deste texto que se viu em um mundo de boto, sem saber o porquê.
...Só era boto, e chegou lá no quarto, estava o boto lá deitado. Estava doente
com ferimento, e disse: – Você está vendo esse boto, aí? É aquele que, naque-
le dia, que você andava pescando, você furou. Acertou ele. Ele está doente.
Você vai tratar dele. Se ele ficar bom, você volta, se ele não ficar bom, você
vai ficar aqui. Tinha uma velha, se deu com ele, aí, ensinava remédio pra ele.
Aí, tudo o que a velha ensinava ele fazia, né, e, aí, o boto foi se recuperan-
do... Quando ninguém mais lembrava, ele apareceu. Aí, contava a história.
– Olha, eu estava tratando daquele boto. Contava pra eles que nós estava
pescando, aí acertamos ele. E eu só voltei porque ele ficou bom, se ele não
17
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
trama. No livro, Propp afirma que as 31 funções não estão necessariamente presen-
tes em todos os contos.
Na sequência preparatória ou inicial de um conto, as funções são sete: afasta-
mento/ausência (quando um dos membros da família se afasta de casa); interdição/
proibição (ao herói impõe-se uma proibição ou regra); transgressão (a proibição
é transgredida); interrogação (o agressor tenta obter informações); informação (o
agressor recebe informações sobre sua vítima); engano (o agressor tenta enganar
sua vítima para se apoderar dela ou de seus bens); e cumplicidade involuntária (a
vítima deixa-se enganar e ajuda assim seu inimigo sem o saber).
A sequência de malfeitoria/falta à sua reparação é composta por mais 11 fun-
ções, que são as seguintes: malfeitoria e falta (o agressor faz mal a um dos membros
da família ou prejudica-o; falta qualquer coisa a um dos membros ou este deseja
possuir algo); envio em socorro (a notícia da malfeitoria ou da falta é divulgada,
dirige-se ao herói um pedido ou uma ordem; este é mandado em expedição ou dei-
xa-se que parta por sua própria vontade); empreendimento reparador (o herói acei-
ta ou decide agir contra o agressor); partida (o herói deixa a casa); prova imposta
pelo doador (o herói é testado, interrogado, colocado à prova e, como resultado
recebe um objeto ou um auxiliar mágico); reação do herói (o herói reage às ações
do futuro doador); posse do objeto mágico (o objeto mágico é posto à disposição do
herói); transferência (o herói é transportado, conduzido ou levado até perto do local
onde se encontra o objetivo da sua demanda); combate (o herói e o seu agressor
defrontam-se em combate); marca (o herói recebe uma marca); vitória (o agressor é
agredido); e reparação (a malfeitoria inicial ou falta são reparadas).
A sequência final inicia com o retorno do herói e, fecha com a recompensa,
dividida em 12 partes. São elas: volta (o herói volta); perseguição (o herói é perse-
guido); socorro (o herói é socorrido); chegada incógnita (o herói chega incógnito à
sua casa ou a outro país); pretensões falsas (o falso herói faz valer pretensões falsas);
tarefa difícil (propõe-se ao herói uma tarefa difícil); tarefa cumprida (a tarefa é
18
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
19
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
20
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
21
região amazônica, dentre os quais o de maior apoio foi o conhecido Catamarã
Pará. As expedições foram realizadas com a presença de pesquisadores e de-
mais interessados em conhecer e discutir in loco as manifestações culturais ofe-
recidas pelo imaginário caboclo da Amazônia paraense.
A escolha pelo uso de um navio foi por ser a melhor maneira de levar pesquisa-
dores aos lugares onde estão o maior repertório de histórias amazônidas. Considero
que o nosso acervo foi, em sua grande maioria, recolhido no interior, portanto, os
encontros acadêmicos promovidos pelo IFNopap tornaram-se muito mais legíti-
mos com visita às populações ribeirinhas, tanto do ponto de vista da paisagem,
quanto pela convivência com o homem dessas regiões.
Essa convivência foi facilitada pela organização de uma série de atividades
que atendiam à demanda vinda dos muitos pesquisadores já envolvidos, bem como
dos convidados e da população local, haja vista que na programação dos encon-
tros anuais do IFNopap havia espaço para palestras, seminários, mesas redondas e
conferências, enquanto função acadêmica, assim como gincanas, festas folclóricas
e exposições de artesanato, espécie de forma de resgate das manifestações culturais
locais.
O contato direto com a população ribeirinha veio com um processo que teve
início no momento em que os pesquisadores e alunos envolvidos originalmente no
projeto viram-se às voltas com determinados conceitos, não ligados especificamen-
te à área de Letras, e notaram que era hora de interagirem com outras áreas do
conhecimento, para ampliarem o enfoque das pesquisas desenvolvidas, a partir do
acervo do IFNopap.
Dessa forma, foram realizados dois encontros consecutivos no Centro de Letras
e Artes (CLA), campus da UFPA em Belém, com a participação de profissionais da
Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, da Linguística, da Teoria da Literatura
e de outras disciplinas afins, sob o tema: “Narrativa oral e imaginário amazônico”.
A partir de 1999, a coordenação do projeto considerou fundamental percorrer
os rios de Amazônia, visitando as populações ribeirinhas, onde estão estabelecidos
os campi avançados da Universidade, de modo a facilitar o convívio e o reconheci-
mento da riqueza da paisagem e do contador de histórias amazônicos.
Os navios para a condução dos embarcados foram escolhidos, com a capa-
cidade de acolher cerca de 140 pessoas durante 8 dias, percorrendo cada ano, um
dos rios que compõem a bacia fluvial da Amazônia. Alguns navios foram cedidos
ao projeto pelo Governo do Estado do Pará. A realização dos encontros aconteceu,
graças a uma parceria entre a UFPA, o Governo do Estado e a Eletronorte.
Aproveitamos esta obra, dedicada aos estudos de literatura e cultura de expres-
são amazônica, para fazer uma retrospectiva do projeto IFNopap, nesses 25 anos de
existência e, por questão de espaço, fizemos menção a alguns dos eventos realizados
no âmbito do projeto, sem, no entanto, tratar de todos eles.
A primeira expedição do Catamarã Pará percorreu o Médio Amazonas até o
rio Tapajós, em Santarém. No meio do caminho a expedição aportou em Monte
Alegre. No ano seguinte, a expedição rumou para Oriximiná, cidade que fica às
margens do rio Trombetas. O evento em Oriximiná foi particularmente especial,
pois lá, tivemos o privilégio de assistir ao chamado Círio Noturno Fluvial, uma festa
em homenagem a Santo Antônio, padroeiro da região. Trata-se de uma procissão,
realizada por populares todo segundo domingo do mês de agosto, quando mora-
dores da cidade confeccionam pequenas “barquinhas”, objetos feitos de pedaços de
tronco de miriti (uma palmeira da região que possui uma madeira que flutua), que
são colocadas sobre as águas do rio, tendo ao centro, uma vela acesa e, em torno
dela, papel de seda colorido para proteger a chama do vento. As barquinhas se-
guem à frente do cortejo, levadas pela brisa e assim, tornam-se as condutoras da
procissão.
Finalizando, voltamos a destacar que o projeto “Imaginário nas Formas
Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense”, inicialmente com a proposta
23
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
24
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
25
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas serve para per-
rado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que
2 Pensar no híbrido é evidenciar a alteridade. Em nossa análise, o conceito de hibridismo, baseado nos princípios
de Bhabha (2013), não pressupõe uma harmonia ou homogeneidade entre as culturas, mas funciona, na verdade,
como uma estratégia teórico-metodológica para lidar com os discursos sem negá-los.
26
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
Todas essas personagens são reelaboradas pela escrita ficcional para que
se evite o clichê e a imagem fácil e estereotipada. No centro dessa narrativa,
Hatoum demonstra que é também possível contemplar o jeito de ser e de viver
de outra parte do nosso povo – a de brasileiros que construíram um pedaço do
Oriente em território nacional. Este ‘certo oriente’ se faz presente em hábitos
alimentares: “A nora mandava de São Paulo caixas de presente para Halim.
Garrafas de arak, latas de tabaco para narguilé, sacos de pistache, figos secos,
amêndoas e tâmaras” (HATOUM, 2000, p. 127); no uso da língua árabe: “Ás
vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de in-
compreensão: É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo” (HATOUM,
2000, p. 51); e no exercício da religião muçulmana, praticada pelo patriarca da
narrativa – Halim.
E o que há de pertinente nesse intrincado jogo é que não há a preocupação
em distinguir uma cultura da outra, muito menos em estabelecer princípios
de hierarquização. Como resultado dessa interação, os processos de identi-
ficação são elaborados a partir da ideia de constante movimento, haja vista
que Oriente e Ocidente constroem um terceiro lugar de hibridação, em que as
práticas linguísticas, hábitos, sabores, sotaques e crenças estão intimamente
associados.
Interessa salientar que o Outro, o estranho, conforme assinala Kristeva,
também pode se delinear como uma parte obscura do próprio eu. O estran-
geiro não é apenas aquele que vem de um país distante e precisa aprender a
nossa língua e contar com a nossa hospitalidade, mas, é também a “face oculta”
de nós mesmos, de nossa identidade, “o estrangeiro começa quando surge a
consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos
estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades” (KRISTEVA, 1994, p. 9).
A personagem Yaqub, um dos gêmeos do romance Dois irmãos, contribui
para o alargamento do conceito de estrangeiro, no momento em que ele se
27
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
sente exilado e estranho em sua própria terra natal, Manaus, após passar cinco
anos no sul do Líbano. Com apenas treze anos de idade, após se envolver em
uma terrível briga com o Caçula (Omar), da qual lhe resulta uma cicatriz no
rosto, Yaqub é afastado do seio familiar por uma decisão de seu pai, o libanês
Halim, que acreditava que a distância apagaria o ódio e o ciúme entre os filhos.
A distância não eliminou certos trejeitos, gestos e atitudes que o asseme-
lhavam ao irmão, porém, Yaqub não era mais o mesmo, tornou-se outro. A
primeira coisa que incomodou a matriarca da família, Zana, foi o insistente si-
lêncio de Yaqub, pois ela logo notou que ele falava pouco, se utilizava apenas de
monossílabos ou frases curtas e cada vez mais denunciava o esquecimento de
algumas palavras da língua portuguesa: “‘O que aconteceu?’, perguntou Zana.
‘Arrancaram a tua língua?’. ‘La não, mama, disse ele, sem tirar os olhos da paisa-
gem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente’”
(HATOUM, 2000, p. 17).
Desta sensação abrupta de não reconhecimento entre mãe e filho surge
uma terceira língua: nem o árabe, língua dos pais imigrantes; nem a língua
materna. Essa outra língua, que se define ora pela familiaridade, ora pelo es-
tranhamento, instala-se em um espaço intersticial, no entre-lugar, e simboliza
a dificuldade do sujeito recém-chegado em recolocar-se no lar e no mundo. É
neste sentido que Bhabha afirma que estar estranho ao lar não significa estar
sem-casa, pois “o momento estranho move-se sobre nós furtivamente, como a
nossa própria sombra” (BHABHA, 2013, p. 31).
E é nesse ponto que, para Yaqub, o mundo primeiro se contrai para depois
se expandir enormemente. A sensação de estranhamento demarca fortemente
o seu retorno: “Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai!
Buxa vida!), e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham
como um rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado” (HATOUM, 2000, p. 30).
Contudo, ele desenvolveu um olhar mais apurado, se deleitava em revisitar
28
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu
Essa língua, mesclada por vozes simultâneas daqui e de lá, serve como
abrigo para as especificidades do sujeito e ressoa com ainda mais força em mo-
mentos de fortes emoções e afetividades, como a chegada da velhice e a hora
da morte. Sobre essas relações que se estabelecem a partir das experiências de
deslocamentos, a professora Maria Zilda ressalta:
29
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
uma dicção que necessariamente expressa o outro e o mesmo – seus/ nossos so-
nhos, sua/ nossa cultura, seu/ nosso Imaginário – erige-se como figura singular
Voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de
Eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. Era tentar compreender por
moléstia, essa que parecia invadir todo o chalé. Era encontrar Major Alberto
30
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
Salu e descobria para D. Amélia uma receita para fazer manteiga. Voltar para
casa era voltar às feridas, que apesar de saradas deixaram marcas nas pernas
e na nuca [...]. Sentia que aquelas feridas nunca lhe deixariam de doer o dese-
– Se come. E no espeto. Não sabe o que é bom. Pra que tenho meabaladêra?
Tu não gosta?
– Eu não.
– Tua boca é doce pra dizer isso... que sou um branco. Tu não vês a minha
cor? – Alfredo não queria ser moreno mas se ofendia quando o chamavam de
– Mas tu não é?
31
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
32
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
Foi já necessário acentuar que a diferença não é, não existe, não é um ente-
-presente (on), qualquer que ele seja; e seremos levados a acentuar o que ela
não é, isto é, tudo; e que, portanto, ela não tem nem existência nem essência.
33
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
34
II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico
Referências
35
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
Introdução
Dalcídio Jurandir, escritor brasileiro, nascido no Marajó, ficou conhecido
por empreender um projeto literário de representação da Amazônia paraense,
a partir de um conjunto de dez romances, que constituiu o que ele mesmo
chamou de ciclo Extremo-Norte3. Tal projeto se alinha ao de outros grandes
escritores brasileiros que, no século XX, aliaram comprometimento com a de-
núncia das mazelas sociais e a reflexão crítica da realidade com o empenho de
uma criação ficcional extremamente cuidada. No caso dalcidiano, o Extremo-
Norte traz à cena aquelas figuras subalternas e marginalizadas da Amazônia para-
ense: mulheres, homens e crianças, negros e mestiços, trabalhadores braçais, dentre
outros, que revelam o comprometimento ético de Dalcídio Jurandir em dar voz e vez
a gente pobre e desvalida do Norte brasileiro.
A respeito de seus objetivos ao criar o ciclo Extremo-Norte, é emblemática a
entrevista publicada no jornal Folha do Norte, em 23 de outubro de 1960, conce-
dida à escritora e jornalista Eneida de Moraes. Durante o diálogo, o romancista
paraense é enfático ao afirmar:
maior parte, da gente mais comum, tão ninguém, que é a minha criaturada
grande de Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas. [...] A esse pessoal miúdo que
3 O ciclo Extremo-Norte se constitui de uma saga romanesca iniciada com Chove nos campos de Cachoeira (1941), e
seguida por Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963),
Primeira manhã (1967), Ponte do galo (1971) Os habitantes (1976), Chão dos lobos (1976) e Ribanceira (1978).
37
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Tentei captar o trivial, o não heroico, o dia-a-dia da vida marajoara, vida que
parece tão coisa nenhuma, e é, no entanto, tão de todo mundo. Não figu-
rei Marajó como um inferno nem tampouco como paraíso perdido. Criei
Não. Eu não sou um escritor de grande público. Os meus livros não têm
o principal encanto das grandes tiragens que é essa habilidade para fazer
fixo muito na linguagem, nos vagares da narrativa, no ritmo lento das cenas
(JURANDIR,1976, p. 03-05).
38
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
39
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
4 Sobre a inserção dessas narrativas, Furtado (2010) afirma ser a demonstração que o narrador dalcidiano “não se
utiliza de histórias populares, das lendas e mitos locais, apenas para ilustrar ‘a paisagem local’ mas como mate-
rial do real que ajuda na compleição do romanesco e tem função na economia do texto” (FURTADO, 2010, p. 110).
40
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
do mítico, ora do lendário, ora do irônico. Nesse sentido, a teoria dos modos de
Northrop Frye (1973) pode servir como chave de leitura para uma melhor compre-
ensão do terceiro romance dalcidiano.
No ensaio Crítica histórica: a teoria dos modos, Nortrop Frye (1973) distingue
as ficções entre trágicas e cômicas, entendendo-as como aspectos do enredo e não
simplesmente, como formas do gênero dramático. No seu argumento, tais formas,
por sua vez, se desdobram em cinco modos, que, historicamente, teriam sucedido:
o modo mítico, o modo romanesco, o modo imitativo elevado, o modo imitativo
baixo e o modo irônico. Marlí Tereza Furtado (2010) também notou essa possibili-
dade de leitura, avaliando que Alfredo se enquadra no modo imitativo baixo, haja
vista que “não sendo superior aos outros homens e ao seu meio, o herói é um de nós”
(FRYE, 1973, p. 40). Para a pesquisadora, outros personagens dalcidianos, como
Edmundo Menezes, por exemplo, enquadram-se no modo irônico de narrar, pois
apresentam-se “inferior[es] em poder ou inteligência a nós mesmos, de modo que
temos a sensação de olhar de cima uma cena de escravidão, malogro ou absurdez”
(FRYE, 1973, p. 40). Fica assinalado, portanto, que o ficcionista paraense se utiliza
de diversos modos de narrar, combinando motivos clássicos, populares e modernos
que funcionam como estratégias narrativas de composição e de denúncia social.
41
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
42
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
estrutura do romance Dona Silvana, que, embora seja de tradição ibérica, se incor-
porou ao imaginário brasileiro.
O pesquisador, assim, descreve esse procedimento da escrita dalcidiana: “[ele]
decompõe estruturalmente, como faria Wladmir Propp com os contos de fada po-
pular e integra-a depois, por partes, ao seu próprio romance, com os acréscimos
sugeridos pelo contexto local” (SALLES, 1992, p. 371-372). Nesses termos, sime-
tricamente tem-se: o rei tinha uma filha, Coronel Coutinho, “rei” no Marajó tinha
muitas filhas abastadas, dentre elas Orminda; O rei quer casar com a filha: Coronel
Coutinho desejava Orminda; O pai pune a filha: Orminda é punida pela própria
sociedade; Silvana presa na torre: o corpo de Orminda marcado na torre da igreja;
Silvana morta: Orminda morta.
Tal procedimento, entretanto, não parece ser algo isolado e específico do se-
gundo romance dalcidiano, e a técnica de desconstruir a narrativa popular atra-
vés de um processo de decomposição e reelaboração de motivos é mais frequente
do que se possa imaginar no interior do ciclo Extremo-Norte. Em Três casas e um
rio, (1958), por exemplo, essa mesma técnica é realizada a partir do conto da Bela
Adormecida, como mencionei mais acima, apropriando-se do imaginário popular
e infantil de maneira singular.
Conforme informa Marie-Louise Von Franz (2010), uma das primeiras versões
dessa história foi publicada na França, em 1696, por Charles Perrault, e só mais
tarde passa a integrar a sua antologia de contos folclóricos, intitulada de “Contes
de ma Mére l’Oye” (Contos de Mamãe Gansa). Vale esclarecer que até por volta do
século XVII, os contos de fada se destinavam aos adultos e não propriamente ao
público de crianças, muito embora lá se vão alguns séculos que essas histórias ali-
mentam a imaginação infantil.
Dentre as muitas variantes desse conto de fadas, tomo mormente a versão
dos irmãos Grimm, publicada em 1812, como referência para os motes que nos
43
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
parecem servir de base para a técnica utilizada por Dalcídio Jurandir para compor
a história de Mariinha:
1. Por ocasião do nascimento ou batismo a criança é abençoada por um certo
número de figuras maternais e amaldiçoada por uma delas. Essa situação inicial
do conto de fadas é também a primeira aproximação entre o relato popular e a
narrativa dalcidiana, mas por um processo de inversão, visto que quando a irmã
de Alfredo nasce, recai sobre ela o mau agouro de várias senhoras, enquanto que
ela é abençoada por uma única pessoa, a sua figura maternal, D. Amélia: “Quando
nasceu, parecia de sete meses. “Não se cria”, diziam todos. Ela afirmava que sim e a
criou” (JURANDIR, 1994, p. 195).
Essa relação entre fadas e velhas senhoras não é fortuita, uma vez que isto é
reportado por von Franz em O feminino nos contos de fada. A pesquisadora afir-
ma que, em diversas variantes desse conto, as fadas surgem como velhas mulheres
sábias e experientes, um pouco feiticeiras, curandeiras e parteiras. Essa relação é
reiterada também em Três casas e um rio (1958), quando Alfredo busca ajuda para
Mariinha que já agonizava na casa, o menino vê por entre sombras algumas velhas
que lhe parecem agourentas:
ao passar pela casa do extinto tabelião Viriato, parou, cansado, sem esperan-
ças. Viu através da janela alta que dava para a rua do Mercado umas velhas,
na sombra do quarto, espiando-o. Velhas. Eram, sem tirar nem pôr, umas
dissessem: não procure quem não está. Mande d. Doduca fazer o enxoval
44
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
banhas e óleos, fedendo a ervas, convulso. Nhá Porcina, mãe tapuia de ca-
ria para buscar nhá Bernarda, a fim de pegar a tempo a criança que ia nascer
45
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
– Foi, minha filha. Nos bons tempos eu fazia. Não faço mais. Bem que podia
– Hum, filhoca, não sei explicar bem. Pergunte a seu pai. Bom tempo é quan-
do eu fazia rede.
– Então faça uma rede pra mim me embalar, faz? (JURANDIR, 1994, p. 182).
Nessa cena em que a menina pede que ela lhe teça uma rede e D. Amélia
responde que vai arranjar um bom tempo para tecer o artefato para o seu des-
canso, o objeto a ser tecido guarda certa correspondência com o adormecer da
princesa no conto, visto que a rede, no contexto da narrativa, está no mesmo
campo semântico do sono e do descanso.
46
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
Por outro lado, o ato de tecer se relaciona ao mito grego das Moiras, fian-
deiras do destino de deuses e mortais. Na narrativa clássica, essas divindades
aparecem como três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cor-
tar aquilo que seria o fio da vida de todos os seres. Nessa ordem, elas seriam
responsáveis por presidir a gestação e o nascimento, o crescimento e desenvol-
vimento, e, para os seres humanos, o final da vida, a morte. No caso da obra
dalcidiana, D. Amélia parece agregar em si essas três figuras, pois em certo sen-
tido, ela tece todas essas etapas da vida de Mariinha, que morre em seus braços.
4. A princesa adormece. O tema do sono da princesa e a equivalência entre
sono e morte ampliam o quadro de simetrias entre a Bela adormecida e este epi-
sódio de Três casas e um rio (1958). Sua fada negra atenuou, contudo não pode
evitar que o mau agouro das velhas senhoras pudesse se realizar. Além disso, a con-
figuração do cenário, também aponta para a similaridade com o conto, haja vista
que quando Mariinha cai no sono da morte, a natureza que a cerca se manifesta,
tentando recolher a vida da menina:
47
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
própria vida da menina. Por outro lado, as negras iraúnas que acompanham o
enterro, trazem ao ritual funéreo da menina a “solene simpatia da natureza”, o
que conforme Northrop Frye, indica uma retomada do modo mítico de narrar:
“numa obra de ficção mais realística, indica que o autor está tentando dar a seu
herói algumas das implicações do modo mítico” (FRYE, 1973, p. 42).
A plasticidade com que o narrador apresenta a cena é outro aspecto no-
tável, fundindo ao tom mórbido do episódio, um tom festivo. O enterro de
Mariinha, assim, se investe de um faz-de-conta que retoma vários signos da
infância, evocando alegria e vida, em contraste com a tristeza e a morte dos
acontecimentos:
sobre as nuvens brancas que fugiam do sol. [...]As moças sorriam, rosadas,
com seus vestidos de festa ou mesmo pálidas, tinham fitas no cabelo, car-
1994, p. 204).
Como crescera! Tamanho da moça que deveria ser, segundo a medida de sua
mãe, o tamanho que ela não queria. De qualquer maneira, gostaria de se ver
menina, agora moça, porque os demais rostos dos que ali estavam, em torno
48
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
Que faltava para abrir os olhos, mexer os lábios como quando dormia e lhe
perguntar, espantada: que foi que aconteceu? E se ela, com seu beijo de ir-
mão na testa, agora tão gelada, acordasse, se levantasse e saísse de braço dado
1994, p. 207)
49
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
que evoca o imaginário de Alfredo, já que muitos desses elementos vêm a partir
da sua percepção. Dessa forma, nesse episódio, há uma dupla referência à in-
fância, a partir das personagens e da evocação do imaginário infantil, seja pela
consciência imaginativa de Alfredo, seja pela incorporação do conto de fadas.
Vale ressaltar, que a morte de Mariinha para a economia textual é extre-
mamente relevante para o processo de identificação pelo qual Alfredo passa no
desenrolar do romance. Na realidade, é uma espécie de ritual de passagem, na
qual a transposição da vida à morte da irmã leva-o a um caminho inverso, da
morte à vida: “e este [o futuro], no mínimo, estava intacto, herdando da irmã
morta a vida que ele teria de viver, as esperanças e os sonhos deixados por
Mariinha” (JURANDIR, 1994, p. 209). Isso trará ao protagonista do ciclo um
crescente sentimento de que ele carrega em si os sonhos de outras crianças. A
morte de Mariinha, em todo caso, representa a morte de tantas crianças pela
febre, ou mesmo por outras doenças, em um contexto de decadência financei-
ra. Crianças que sem assistência médica não conseguem sobreviver.
Considerações finais
Dalcídio Jurandir foi um romancista que produziu, sem dúvida nenhu-
ma, uma literatura empenhada, comprometida em denunciar a situação de
pobreza da Amazônia paraense, interpretando os dramas sociais e pessoais
da gente menos abastada da região, no início do século XX. Nesse projeto de
caráter ético, a infância e o imaginário infantil tornam-se aspectos de rele-
vo na ficção dalcidiana, constituindo-se como instrumentos de denúncia da
condição social das classes empobrecidas. O menino Alfredo, protagonista do
ciclo Extremo-Norte, vive dramas e conflitos tão complexos que conformam uma
densidade aos romances e um aprofundamento ao quadro de representação de uma
Amazônia esquecida pelo poder público.
Essas mesmas categorias, infância e imaginário infantil, são utilizadas como
estratégias narrativas muito bem cuidadas na elaboração da escrita dalcidiana,
50
Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)
Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro:
LCT, 2011.
FRYE, Northrop. Crítica histórica: teoria dos modos. In: FRYE, Northrop.
Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio
Jurandir. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010.
JURANDIR, Dalcídio. Eneida entrevista Dalcídio. Folha do Norte, 23 de outubro
de 1960. Entrevista concedida a Eneida de Moraes.
JURANDIR, Dalcídio. Marajó. Belém: Cejup, 1992
JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. 3. ed. Belém: Cejup, 1994.
JURANDIR, Dalcídio. Um escritor no purgatório. Revista Mensal de Literatura
Escrita, ano I, n. 6, 1976. Entrevista concedida a Antonio Torres, Haroldo
Maranhão e Pedro Galvão.
SALLES, Vicente. Chão de Dalcídio. In: JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3ª ed.
Belém: Cejup,1992, p. 360-381.
VON FRANZ, Marie-Louise. O feminino nos contos de fada. Petrópolis, RJ: Vozes,
2010.
51
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
- O senhor é mesmo uma influência negativa, Lord Henry? Tão negativa quanto
o diz Basil?
- Influências positivas não existem, Sr. Gray. Toda influência é imoral... imoral,
- Por quê?
- Porque influenciar uma pessoa é dar a ela a própria alma. Ela passa a não pen-
sar com seus pensamentos naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para
ela, reais. Os pecados que comete, se é que existem pecados, são todos tomados
por empréstimo. Ela se torna um eco da música de outrem, ator de um papel não
(Oscar Wilde)
Introdução
O fragmento acima foi extraído da obra O retrato de Dorian Gray (2018), de
Oscar Wilde. Nele podemos observar um diálogo entre o pintor Basil, o jovem
Dorian Gray (que estava sendo pintado) e o colega de ambos, Lord Henry.
Talvez não possamos partir do mesmo ponto de vista de Lord Henry, visto
que ele considera a influência como algo negativo. Tomemos então as justifi-
cativas dadas em resposta ao questionamento de Dorian Gray, o qual diz que
“[...] influenciar uma pessoa é dar a ela a sua própria alma. [...] Os pecados que
comete, se é que existem pecados, são tomados por empréstimo. Ela se torna
um eco da música de outrem, [...]” (WILDE, 2018, p. 24).
53
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
54
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
Rânia. A família ainda é composta por dois agregados: Domingas, uma índia
‘adotada’ pelo casal de libaneses, e seu filho Nael.
Em meio aos personagens que constituem este romance, voltaremos nos-
so olhar a Domingas, “Uma beleza de cunhatã (...). Que chegou com a cabe-
ça cheia de piolhos e rezas cristãs, lembrou Halim” (HATOUM, 2000, p. 64).
Domingas foi adotada quando pequena, e assim que chegou à casa do casal,
teve seu lugar reservado: um quartinho de madeira, disposto nos fundos da
casa da família. Assim, ela ficou responsável pelos afazeres domésticos. Com
o passar dos tempos ela começou a nutrir uma imensa vontade de ser livre,
mas, segundo o narrador Nael, “ela não tinha coragem, quer dizer, tinha e não
tinha; na dúvida, preferiu capitular, deixou de agir, foi tomada pela inação”, ou
seja, ao que parece, não teve forças para reagir e terminou seus dias servindo a
família libanesa.
Esta personagem chamou nossa atenção, pois, de forma simbólica (no
sentido de representar toda classe de ‘índios’ que ainda eram escravizados em
Manaus, no início do século XX), o narrador faz denúncias, no que se refere a
esta prática: “(...) não muito diferente das outras empregadas da vizinhança, al-
fabetizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas todas vivendo nos fun-
dos da casa, muito perto da cerca ou do muro, onde dormiam com seus sonhos
de liberdade.” (HATOUM, 2000, p. 67).
As passagens acima ilustram nitidamente o lugar marginalizado em que a
personagem Domingas se encontra, e, no decorrer da narrativa, a relação es-
tabelecida entre ela e seu lugar vão ganhando novos sentidos, e essa afinidade
entre ambos será desenvolvida no decorrer das comparações com as outras
obras em análise.
Nosso interesse em comparar essas três narrativas se desenvolveu a par-
tir de uma entrevista concedida por Milton Hatoum à revista Magma-USP, e
55
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Revista Magma-USP: Você considera sua prosa influenciada por quais auto-
vêm de toda parte, e às vezes a gente nem percebe quem nos inspirou, suge-
riu uma frase, uma passagem, uma ideia. Claro que há referências mais ou
menos explícitas. (...) E no Dois Irmãos, a dívida a dois grandes textos, o Esaú
56
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
57
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. (...) dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides
za, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta.
a Carl Orff, a Schonberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos ele-
mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós,
pois não aguento ser apenas mim, preciso de outros para me manter de pé
58
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
Drummond, em que diz que aquilo que Drummond pega dos outros é o que
59
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
2013, p. 157).
60
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
Foi uma dor tumultuada. Ela se atirou ao chão, deu gritos, clamou por Deus
depois de receber suas contas, embrulhou toda sua pequena bagagem num
61
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
62
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos” (LOBATO, 2009, p. 22). Negrinha pensou que dona Inácia
iria castigar as meninas como fazia com ela caso tentasse pular ou brincar, mas:
[...] abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar?
alegria dos anjos. Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou
a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos o som cruel de todos os dias: “já
Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas com-
dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a provi-
63
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma.
vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi – e essa cons-
Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de
64
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
Aubain que, seu marido tendo sido promovido a uma prefeitura, partiam
naquela noite; e lhe pedia que aceitasse aquela ave, como lembrança e si-
Victor, tanto que costumava perguntar ao negro por ele (FLAUBERT, 2015,
p. 33).
65
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
O papagaio fora dado à senhora Aubain, contudo, como ela não tinha
apreço a animais, deu-o para Felicité, que acabou adquirindo apego pela ave.
Chamou-o de Loulou. E, como indica a passagem acima, naquele dia, aquela
personagem que levara uma vida de sofrimentos, teve, com a chegada do papa-
gaio, uma grande alegria.
Com o passar do tempo, o papagaio, que era seu único companheiro, mor-
re. A senhora Aubain, vendo que a empregada estava muito triste, manda em-
palhar a ave. Assim que a ave chega, Felicité a coloca em um altar e reconhece
a ave como o Espírito Santo. Todos os dias ajoelhava-se em frente à ave para
fazer suas orações.
O conto encaminha-se para o fim e ganha aspectos de decadência. Com a
velhice a personagem também ganha características decadentes: “Em seguida
a um resfriado, teve uma angina; pouco depois, uma dor de ouvido. Três anos
mais tarde, ficou surda;” (FLAUBERT, 2015, p. 35).
Negrinha teve como ‘berço da vida’ e da ‘morte’ uma “esteirinha rota”.
Domingas, cresceu e morreu “[...] nos fundos da casa, onde havia dois quartos,
separados por árvores e palmeiras” (HATOUM, 2000, p. 64). Nael, seu filho,
narra o momento de sua morte, e assim descreve seu quarto:
[...] Vi os lábios dela ressequidos, o olho direito fechado, o outro coberto por
uma mecha grisalha. Afastei a mecha, vi outro olho fechado. Balancei a rede,
minha mãe não se mexeu. Ela não dormia. Vi o corpo que oscilava lenta-
mente, comecei a chorar. Sentei no chão ao lado dela e fiquei ali, aturdido,
barata. Agora outro cheiro, de madeira e resina de jatobá, era mais forte.
66
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
miniaturas que as mãos dela haviam forjado durante noites e noites à luz
num galho verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito
esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha
acima do jardim, uma claraboia dava para o pátio de entrada; uma mesa, ao
lado da cama de tiras de couro, servia de apoio a uma jarra d’água, dois pen-
tes e um cubo de sabão azul num prato de borda rachada. E nas paredes se
viam: terços, medalhas, várias imagens da Virgem, um vaso para água benta
altar, a caixa de conchas que Victor lhe dera de presente; e mais um regador
go junto ao espelho, preso por suas fitas, o gorro de pelúcia! Félicité levava
tão longe esse tipo de respeito que conservava uma das casacas de monsieur.
Todas as velharias que a sra. Aubain não queria mais, levava para seu quar-
67
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
[...] Gervaise retorna a uma situação primitiva, que procura superar usando o
so alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que lhe nega
68
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
“Um pequeno milagre, desses que servem para a família e as gerações vindou-
ras, pensei. Domingas serviu; e só não serviu mais porque a vi morrer, quase
tão mirrada quanto no dia em que chegou à casa, e, quem sabe, ao mundo
(HATOUM, 2000, p. 65).
As três morreram em meio aos seus respectivos espaços; Negrinha e
Felicité, em meio a delírios; Domingas, cercada por seus bichinhos entalhados
na madeira.
Negrinha via bonecas em suas alucinações, e Felicité morreu com a ima-
gem do papagaio em seus pensamentos:
cando mais lentos um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma
fonte que se esgota, um eco que desaparece; e, quando ela exalou seu último
69
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
70
I V. E c o s d a m ú s i c a d e o u t r e m e m o b r a s , e s p a ç o / t e m p o e c o n t e x t o s d i v e r s o s
numa condição análoga à servidão, atitudes essas que já não deveriam existir
no início do século XX, quando a escravidão no país já não existia oficialmente.
Fechamos nossa análise, pontuando mais uma vez que uma obra não ne-
cessariamente precisa de outras para se manter de pé (parafraseando o narra-
dor da Hora da estrela), contudo não há nada mais instigante que encontrar
ecos da música de outrem em obras, tempos e contextos diversos.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In: Questões de estética e de
literatura. 3. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2015.
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro. Arquitetura da memória: ensaios sobre os
romances Dois irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte, de Milton
Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/Uninorte,
2007.
FLAUBERT, Gustave. Um coração simples. São Paulo: Grua Livros, 2015.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JOBIM, José Luís. Literatura e cultura: do nacional ao transnacional. Rio de
Janeiro: Edurrj, 2013.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
LOBATO, Monteiro. Negrinha. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2009.
NESTROVSKI, Arthur. Influência. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Porto Alegre: L&PM, 2018.
71
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
Introdução
Ao lançar, em 2008, seu quarto romance, Órfãos do Eldorado, o escritor
amazonense, Milton Hatoum (1952), já havia sido consagrado com três prê-
mios Jabuti de literatura por seus três primeiros romances: Relato de um certo
Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Junto com os prêmios,
o escritor havia sido lançado para além das fronteiras amazonenses e brasileiras.5
Nesses romances, Hatoum trabalha de maneira exemplar a técnica nar-
rativa, que faz emergir tempo e espaço, dando densidade aos dramas das per-
sonagens, mesmo aos daquelas que atuam pouco no enredo. Em Relato de um
certo Oriente, o leitor não só se envolve no relato e no drama de uma mulher
que retorna à casa de sua infância, após longa ausência, mas no de outras tan-
tas personagens, graças às diferentes vozes que se encaixam à voz da narradora
‘primeira’, cuja memória individual recupera a memória coletiva. Já em Dois ir-
mãos, além da progressão desse modo de narrar entre o relato pessoal e o teste-
munho, acentuam-se os dramas das relações familiares, que contribuem para
a tradução de seu espaço: a cidade de Manaus. Em Cinzas do Norte, o enfoque
nas relações familiares direciona-se para a relação pai e filho, sendo que a per-
sonagem do filho, por sua atuação como artista, distende o enredo para outros
centros urbanos, ampliando a temporalidade até os anos 70 do século passado.
5 Órfãos do Eldorado, esse também lhe rendeu o segundo lugar no prêmio Jabuti 2009, na categoria “Melhor romance”.
73
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
74
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
Como se observa, a vivência do autor lhe deu bagagem para figurar uma
Amazônia para além das amarras que a crítica literária costumou embrulhar, o
que é produzido além do centro urbano e econômico do país. Ele mostrou que
não é apenas em São Paulo que encontramos um mosaico multicultural, com
diferentes vozes distribuídas e também agregadas nos diferentes bairros cujos
nomes remetem a determinada comunidade.
E a Manaus periférica para uns é uma Manaus atrelada a outras fronteiras
do universo, seja nos emaranhados internos de rios e águas, seja nas lonjuras
transatlânticas do mapa mundi. Mesmo em cinzas do Norte, o Norte se dissipa e
transcende o local circunscrito no trajeto da personagem que vivencia outros luga-
res, além de Manaus, tanto no Brasil, quanto na Europa.
Essas obras colocam Milton Hatoum na linhagem de autores que quebraram
ou ressignificaram uma tradição na configuração da Amazônia, como seu conter-
râneo Márcio Sousa (1946), e o paraense Dalcídio Jurandir (1909/1979).
Este último, ao se lançar em 1941, com Chove nos campos de Cachoeira,
quebrou a tradição do retrato da Amazônia em sua vivência no chamado ciclo
econômico da borracha. Para tanto, distanciou-se do realismo naturalista, fugiu
do que considerava fotografia da região, ou seja, daquela objetividade fotográfica
que levaria ao pitoresco, a uma Amazônia cujos mistérios naturais conquistassem
mais o leitor do que a humanidade de seus habitantes. E assim continuou até 1978,
quando editou o décimo livro de um ciclo chamado Extremo Norte. Márcio Souza,
por sua vez, lançou, em 1975, Galvez Imperador do Acre, reelaborando uma tradi-
ção literária ao retratar a Amazônia no período gomífero com as tintas da paródia
e do pastiche.
Órfãos do Eldorado, no entanto, desalinha a trajetória do autor Milton
Hatoum na figuração amazônica, uma vez que cedeu a certo lugar comum
75
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
76
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
tem e passa a morar em uma tapera. Deixa Florita, quem o criou como mãe,
morrer paupérrima e deixa o leitor pensar que é considerado louco naquele
universo.
O tom social do livro direciona seu leitor real para considerar como órfãos
do Eldorado os habitantes daquelas ruínas de um lugar idealizado. No entanto,
dois outros planos se cruzam com o social: um plano psicanalítico e o mítico.
Mas é o plano do social que demonstra uma obra arquitetada em um diálogo
explícito com Euclides da Cunha. Fazendo um paralelo com uma das forma-
ções de Hatoum, a arquitetura, vejamos como o romance aparece arquitetado.
77
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
mulher, Angelina. Além disso, teria caçado trabalhadores fugitivos de sua fazenda,
como se caçasse animais, topos bastante presente nas obras do ciclo da borracha.
Ao observar a tessitura do romance-objeto deste trabalho, temos que con-
siderar sua pouca extensão. As 107 páginas da sexta reimpressão da primeira
edição da Companhia das Letras são distribuídas entre a dedicatória, a epígra-
fe, o texto, o posfácio e os agradecimentos. A narrativa inicia na página onze e
termina na 107, não preenchendo, portanto, cem páginas. Mas parece narrada
quase que de um fôlego só, pois não se divide em capítulos ou em partes e
não apresenta cortes na narração. Esse percurso, que toma forma próxima da
narração oral, se reforça em momentos com parágrafos de quase uma página
ou com mais de uma página. Milton Hatoum, no texto aludido no início deste
tópico, declarou:
narração oral. Essa forma de discurso era usada por exímios contadores
(HATOUM, 1993).
Cuiarana: árvore de flores lindas, pétalas espessas, sem palidez: amarelas, ró-
seas, quase vermelhas. O cheiro da flor é forte que nem perfume de rosa. E o
fruto, grande e pesado como cabeça de homem. Quando cai e fica esquecido
78
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
2008, p. 92).
79
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
lagos cercados por uma vegetação densa: poças enormes, formadas pela va-
zante, e ilhas que pareciam continente. Seria possível encontrar uma mulher
80
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
ainda, a solidão a que a região foi relegada, outro topos conhecido na literatura
que figura a Amazônia.
81
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
6 Cavalcânti Proença comenta a lenda para explicar sua recolha por Mário de Andrade, que a recria em Macunaíma, de 1928.
7 No texto a que tenho me referido, ele liga o narrador citado por Euclides da Cunha ao narrador benjaminiano,
do famoso estudo sobre a obra de Nikolai Leskov, e Hatoum vê ressonâncias desse narrador em pessoas de sua
família. Leia-se: Um resquício desses estilos de vida, aludido por Benjamin, existia no espaço que frequentei
82
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
quando criança. Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantes-via-
jantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente
de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial.
83
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Voltei para Vila Bela e fiquei escondido aqui, mas muito mais vivo. Ninguém
quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que moro sozinho, eu
pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar
esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apa-
ga a nossa dor? Quantas palavras eu tentei dizer para Dinaura, quanta coisa
ela não pode ouvir de mim. Espero o macucauá cantar no fim da tarde. Ouve
um mentiroso. O mesmo olhar dos outros. Pensas que passaste horas nesta
84
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
a sombra de um jatobá e uma água fresca para beber, tudo ideal para um descanso
do narratário.
A última frase do trecho retirado do livro, “pensas que passaste horas nesta
tapera ouvindo lendas?”, reitera o que afirmei acima, a distância do narrador pro-
tagonista daquele universo em que se insere. Ele o vê do alto, mesmo calcando a
história de Dinaura na lenda da cidade encantada. Nesse momento, ele reitera o
reporte que fez, no início da obra, às lendas como algo estranho, e também o que
diz após ter contratado barqueiros para encontrarem Dinaura: “Gastei dinheiro
com os barqueiros. E o que trouxeram para mim? Mitos e meninas violentadas”
(HATOUM, 2008, p. 65).
8 Nono conto do livro Inferno verde, de Alberto Rangel, publicado em 1908. Nele, a personagem feminina, Maiby,
depois de trocada como mercadoria, é assassinada pelo antigo companheiro. É encontrada amarrada a uma se-
ringueira, com o corpo cheio de profundos cortes e com tigelinhas encravados neles. O narrador do conto indica a
correlação simbólica entre o martírio de Maiby e a exploração da Amazônia. Indico a edição mais recente da obra:
RANGEL, Alberto. “Maibi”. In: Inferno verde. Manaus: Editora Valer, 2008, p. 121-132.
85
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Florita me disse que várias órfãs falavam a língua geral; estudavam o portu-
Rio Negro. Duas delas, de Nhamundá, haviam sido raptadas por regatões
Vila Bela, madre Joana Caminal era conhecida como a Juíza de Deus, porque
p.41-42).
Madre Joana Caminal atua pouco na obra, mas tem relevância simbólica
na resistência aos desmandos instaurados contra a mulher naquela sociedade,
entretanto, não deixemos de observar a também violência cometida contra a
cultura das indígenas, proibidas de falar em suas línguas-mãe, em nome da boa
educação que rebaixava as línguas locais, logo as identidades a elas ligadas, vi-
sando à homogeinização cultural e tendo como referência o universo cultural
do homem branco.
Por meio das órfãs do Carmo, temos alusão na obra à versão da lenda da
Cobra-Grande e a uma lenda em que se trabalha a menstruação feminina. Mais à
86
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
frente, para explicar o mal que Dinaura causava e causaria em Arminto, ela é com-
parada a uma sucuri e que deveria ter sido enfeitiçada por Jurupari, o deus do Mal.
Completa-se, assim, uma relação de mitos sempre apresentados na série romanesca
localizada na Amazônia.
A figuração da violência física contra a mulher é reforçada em um segmento
da narrativa em que Arminto Cordovil, na busca que empreende para reencontrar
Dinaura, contrata três barqueiros para irem ao encalço da moça. O primeiro a
voltar, o menos escrupoloso deles, Denísio Cão, trouxe uma menina que tinha com-
prado do pai “ por uns trocados” e de quem tinha abusado na viagem a Vila Bela.
Contestado pelo narrador que a manda de volta ao local de origem, Denísio Cão
sai, rindo da situação.
O segundo a voltar, Joaquim Roso, sem querer criar engodo ao narrador, trou-
xe uma menina, “sem nome”, órfã de mãe e que tinha sido deflorada pelo pai. A
menina foi encaminhada ao Colégio das Carmelitas e o narrador não deixa de re-
gistrar: “isso me perturbou: era o destino de muitas filhas pobres da Amazônia”
(HATOUM, 2008, p. 64).
Apesar de sua indignação, não percebe a violência que praticou contra Florita,
não a protegendo com uma casa em seu nome, a ponto de a miserável, quando
miserável, vendendo guloseimas em um tabuleiro com rodas de madeira, desabafar:
“O que eu sei é que todo mundo me enganou” (HATOUM, 2008, p. 90), demons-
trando que pertence, de certa forma, a todas aquelas crias de casa, brasileiras, tidas
para trabalhos domésticos, tratadas até certo ponto como se fosse da família, as
quais tardiamente descobrem o embuste em que caíram para não reivindicarem
direitos.
Dentre as poucas mulheres que atuam na narrativa, Dinaura é a principal e
encarna o mistério dos mitos, uma vez que sua imagem está amalgamada à cidade
encantada. Entretanto, o drama de Dinaura deixa muitas indagações para o leitor,
menos porque a ambiguidade da obra estaria plasmada para gerar tal efeito, o que
87
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
é próprio de obras bem articuladas, e mais por falta de certa articulação no enredo
que dê carisma a Dinaura e instigue o leitor sobre seu drama.
Ao final, a personagem do advogado Elistiano, amigo fiel de Amando, quase
um segundo pai de Arminto, revela parte do que seria um segredo de Dinaura: era
protegida de Amando que, ou teria sido seu amante, ou era seu pai. Teria vindo da
ilha (do Eldorado) e para lá tinha voltado, mas se teria a doença da lepra, ninguém
sabe.
A ambiguidade persiste no final da narração de Arminto, com alguns pon-
tos em sua linguagem que dão possibilidade ao leitor de pensar que ela, doente,
mora com ele: “Voltei para Vila Bela e fiquei escondido aqui, mas muito mais vivo.
Ninguém quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que moro sozinho,
eu e minha voz de doido” (HATOUM, 2008, p. 103). Este trecho pode ser ligado a
um momento em que Arminto convida Florita a morar com ele na tapera e ela lhe
responde que ele morava com uma visagem.
A despeito de Arminto Cordovil ter encontrado ou não a mulher que suposta-
mente se confunde com o mito da cidade encantada, a possível relação incestuosa
entre os dois não pode ser descartada pelo leitor, o que nos leva ao plano psicanalí-
tico da obra, com muitos lapsos para o leitor.
88
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
10 WWW.significado.origem.nom.br
89
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Conclusão
Meu objetivo não se voltou a destruir o romance de Miltom Hatoum a um
primeiro leitor dele, mas a apontar meu estranhamento ao verificar que, após
uma sucessão de livros em que o leitor apaixonado por literatura fica quase
sem fôlego de tão instigado em sua leitura (pelo menos foi assim que me senti
lendo principalmente nos dois primeiros romances), em Órfãos do Eldorado,
vê repetir-se tantos topos largamente repetidos e difundidos na literatura que
figura a região. E os topos, nas 107 páginas do livro, tiram lugar da densidade
do drama das personagens, não se mostrando importantes na economia da
obra. Voltemos ao momento em que ele descreve a cuieira e suas flores e nos
90
V. M i l t o n h a t o u m e a c o n c e s s ã o d o l u g a r c o m u m s o b r e a a m a z ô n i a e m Ó r f ã o s d o E l d o r a d o
Referências
ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte:
Editora Itatiaia, 1985.
FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio
Jurandir. Tese de Doutorado. São Paulo: Unicamp, 2002.
FURTADO, Marli Tereza. Faces do realismo no retrato da Amazônia brasileira.
In: O Eixo e a Roda (UFMG), v. 24, nº 2, p. 85-103, 2015.
GENETTE, Gerard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia,
São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
HANANIA, Aida Hamezá. Entrevista concedida em 05 nov. 1993. Disponível em.
http://www.hottopos.com/Collat6/milton1.htm#_ftn1. Acesso em: 10 abr. 2019.
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
HATOUM, Milton. Escrever à margem da História. In: HANANIA, Aida Hamezá.
Entrevista concedida em 05 nov. 1993. Disponível em: http://www.hottopos.
com/Collat6/milton1.htm#_ftn1. Acesso em: 10 abr. 2019.
LEÃO, Allison. Milton Hatoum: regionalismo revisitado ou renegado? Anais do
XII Congresso Internacional da Abralic, Curitiba, 2011.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978.
PELLEGRINI, Tânia. Milton Hatoum e o regionalismo revisitado. Luso-Brazilian
Review, Volume 41, Number 1, 2004, pp. 121-138.
91
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
92
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
93
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
94
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
sistemática dos sistemas de que foram formados. Isso vale portanto para os
95
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
conseguinte, este mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que
o mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas enten-
96
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
fantásticos e terrosos, uma vez que as aparições desses elementos são comuns
no imaginário do homem amazônico.
Destaca-se a questão da autoria, uma vez que a literatura indígena ama-
zonense registrada, hoje, no suporte livro, advém de uma literatura oral, cujas
histórias são contadas e repassadas ao longo das gerações.
Yaguarê Yamã, que assina como autor da obra Puratig, o remo sagrado, é
um escritor jovem, da etnia Maraguá, que cresceu ouvindo histórias do seu
povo e hoje destaca-se no mercado editorial brasileiro com obras que tem pu-
blicado e pelo teor do conteúdo impresso nesses textos. Assim, por mais que
Yamã produza uma literatura originária de histórias que foram contadas há
séculos pelos seus antepassados, ele não deixa de ser autor, uma vez que todo
enunciado não é original, pois estará pautado numa fala anterior. Por isso vale
aqui as indagações:
que implica traduzir ideias originais sem uma forma e um vocabulário acei-
11 A presente citação foi extraída de um artigo do Prof. Dr. João Vianney Cavalcanti Nuto, socializado por ele em uma de suas aulas da
97
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Ao manter características das narrativas orais em seu escrito e lançar mão de uma
combinação entre a língua Sateré-Mawé e a Língua Portuguesa, dando espaço para
palavras ou expressões indígenas, Yamã encaixa-se no terceiro critério. Pode-se afir-
mar que o quarto critério “informações que sejam coerentes com o tempo devido
a produção do autor” também está contemplado na produção literária de Yamã,
uma vez que ele produz seus textos a partir do que ouviu dos mais velhos; a partir da
realidade vivida por ele. Segundo Lajolo: “o mundo representado na literatura – por
mais simbólico que seja – nasce da experiência que o escritor tem de sua realidade
histórica e social” (LAJOLO, 2001, p. 47).
Ainda tratando acerca da questão da autoria, Bakhtin, na obra Estética da
criação verbal, levanta uma questão muito importante em torno de duas posições
do autor: o homem e o criador. Para Bakhtin,
autor é a única fonte de energia produtora das formas, a qual não é dada à
98
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
dos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles vendo e
99
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis: é precisamente esse
[...] desde quando eu era um indiozinho que vivia feliz na minha aldeia, sem-
pre queria ouvir as histórias antigas do meu povo, e apreciava muito ouvi-las.
cendentes esse conhecimento, do mesmo modo que meus pais e meus tios
passaram para mim e meus avós para eles.[...] tenho o prazer de contar a
vocês neste livro algumas histórias do meu povo, os mitos narrados pelos
homens mais velhos e pelo pajé Karumbé, que surgiram nos tempos mais
2001, p. 8).
100
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
ver e pensar o mundo. Mas não basta apenas repassar de geração para geração
toda a história de um povo por meio da oralidade; ela precisa ser preservada
em algo concreto, sagrado, salvaguardando assim a memória e a identidade da
comunidade.
Para os Sateré-Mawé e para os Maraguá, é no remo sagrado Puratig que
está preservada a memória mítica. Como afirma ainda Yamã, “é no remo sa-
grado Puratig que estão gravados todos os nossos mitos” (YAMÃ, 2001, p. 8).
Na contemporaneidade, os mitos Maraguás saem, simbolicamente, do su-
porte remo, o Puratig, e passam a ocupar outros suportes, o livro impresso, que
se apresenta mesclando a cultura não-indígena, para atender sim, às exigências
do mercado editorial, mas acima de tudo manter viva a história dos antepas-
sados indígenas.
Ao tratar sobre a heterogeneidade dos gêneros do discurso, Bakhtin nos
mostra que como a língua não é estanque, “cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denomina-
mos gêneros do discurso” (2016, p. 12).
Isso significa dizer que, em se tratando da literatura indígena amazonen-
se, objeto deste estudo, pode-se afirmar que ela sai de um tipo relativamente
estável, a narrativa oral, e hoje se apresenta na língua escrita, dividindo espaço
com outras linguagens como a ilustração. “A língua é deduzida da necessidade
do homem de autoexpressar-se, de objetivar-se. A essência da linguagem nessa
ou naquela forma, por esse ou aquele caminho, se reduz à criação espiritual do
indivíduo” (BAKHTIN, 2001, p. 23).
E é da necessidade de se expressar, de falar ao outro sobre seu povo que os
escritores indígenas amazonenses se aproximam e se apropriam da língua e da
cultura do homem branco.
101
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
102
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
relatividade dos valores, mas, pelo contrário, o fato de que o valor é sempre
valor para sujeitos, entre sujeitos numa dada situação (apud BRAIT, 2017,
p. 22).
Quando chega a noite, do mesmo modo que faziam seus antepassados, o ve-
lho caminha para uma das casas cobertas de palha e senta-se numa das redes.
103
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Todos fazem silêncio e esperam ansiosos o velho começar sua narrativa. Ele
104
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
falavam como gente e os nossos grandes heróis viviam suas aventuras aqui
105
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer.
– Vou lhes avisar. E que isso sirva de lição para vocês. As makukauas são bi-
chos visajentos e não podem ser mortas aos montes, por uma só pessoa. Se
mais do que o necessário. De hoje em diante, você só matará para o seu con-
sumo, caso contrário, eu voltarei e não lhe darei perdão. Quanto à senhora,
preste atenção na hora de pedir ajuda. Não fale bobagem, chamando quem
106
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
– Não falei que eu existo? Agora você vai ser um dos meus.
– Não! Você me desafiou, agora não tem perdão. Eu lhe dei uma última
107
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
108
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
morte por um lado, e por outro dão à luz e renovam; são ao mesmo tempo
109
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Há muito, muito tempo o mundo não existia. Nada ainda havia sido cria-
Tupana criou A’at, o Sol, e Yurupary criou Waly, a Lua. E eles passaram a
Por isso, Tupana e Yurupary tiveram a ideia de criar um ser que ficasse en-
tre A’at e Waty, entre o Sol e a Lua. Assim surgiu a Cobra-Grande Moi Wató
Magkaru Sése, uma grande serpente fêmea. A’at e Waty logo se apaixonaram
por ela. Mas a Cobra-Grande não se decidia. Quando chegava a noite, ela se
110
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
manhã, ela deixava a Lua dormindo e ia se deitar com o Sol.E nenhum dos
rém, a Cobra-Grande ficou grávida, e não sabia quem era o pai. Por isso ela
contou aos seus dois amantes que, ao saberem do fato, ficaram com tanta
2001, p. 10-11).
– Vocês me fizeram terra, está bem. Mas eu os chamarei sempre pra mim.
Esse será o preço que vocês pagarão por terem me transformado em mundo.
É por essa razão que todos os seres morrem, até mesmo os seres humanos: a
111
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
112
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
pedir para algumas crianças da aldeia fazer. Aceitei. Mas como elas não al-
artista plástica refazer alguns desenhos. Ela fez, mas não modificou tanto
para não ficar muito incompatível. Precisava de uma imagem de aldeia, en-
Pedi que a mamãe insistisse que elas fizessem um pouquinho com mais for-
ça os riscos e a pintura. Foi então que minha mãe de oitenta anos resolveu
ela mesma desenhar uma onça para que as crianças vissem. A editora gostou
da onça (rsrs). Mas o crédito a minha mãe não está no livro (YAMÃ, 2018,
setembro de 2018)12.
Como se sabe, um livro para ser publicado necessita passar pelas exigên-
cias do mercado editorial. Na fala de Yamã essa exigência é bem clara quando
a editora solicita que as crianças fizessem os desenhos. As ilustrações do livro
em questão ajudam a reforçar o conteúdo das narrativas, bem como acrescen-
tam mais informações. Para um leitor que não conhece o contexto amazônico
elas ajudam na compreensão. Importante também destacar a valorização dos
desenhos feitos pelas crianças, por Queila e pelo próprio escritor, pois elas têm
uma característica bem artesanal, diferente das ilustrações feitas por artistas
plásticos do Rio de Janeiro e São Paulo.
113
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Considerações Finais
A aplicabilidade dos estudos bakhtinianos na literatura indígena ama-
zonense é um grande desafio, uma vez que, por se tratar de uma literatura
que nasce no bojo da cultura oral, ela ainda é vista por muitos como literatura
menor.
Diferente, contudo, dessa visão estereotipada que ainda se tem acerca da
literatura indígena, seja ela do Amazonas ou de outro Estado do país, a litera-
tura indígena, objeto deste estudo, é rica, interessante e guardiã da memória
ancestral dos povos da Amazônia.
Por se tratar de uma literatura advinda da oralidade e hoje inscrita no su-
porte livro impresso, a literatura em questão, certamente se apresenta híbri-
da, tanto na materialidade do texto, quanto na língua em que é escrita, para
atender as necessidades do mercado editorial. Contudo, mesmo que os textos
em questão apresentem essa hibridização, eles continuam importantes para
a manutenção da identidade cultural do homem amazônico, pois mantém os
registros de lendas, mitos, saberes, modos de ver e pensar o mundo sob a ótica
de um escritor indígena.
É uma literatura tão rica que aspectos discutidos por Bakhtin na literatu-
ra de outros contextos culturais, puderam também ser aplicados nela, o que
prova que, diferente do que ainda se ouve por críticos e pesquisadores avessos
à literatura não canônica, a literatura indígena amazonense pede passagem
e busca sua legitimação no mercado editorial, nas escolas e, principalmente,
no espaço acadêmico. Por isso, a discussão aqui trazida é apenas uma dentre
tantas que se tem levado à academia, a eventos científicos culturais e a outros
espaços de discussão e divulgação científica.
Referências
BAKTHIN, Mikail. Os gêneros do discurso. Org. trad. Posfácio e notas de Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.
114
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
115
V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã
Parte 2
LITERATURA, HISTÓRIA
E IDENTIDADES NA
AMAZÔNIA
117
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
118
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
119
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
120
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
121
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
que a esse apoio forçado ficou devendo poder morrer abafadamente, como
cheia de rumores, poucos minutos decorriam sem que se ouvisse “Vai pau!”,
“Vai pau!” e sem que os quatro jactos de luz tornassem a aderir, no jeito de
122
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
triunfo, alternando com gritos de dor, tão agudos, tão desesperados, como
123
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
[...] mas que ia continuar no Serviço de Protecção aos Índios. Disseste que
era um dever civilizar eles, fazer deles homens iguais aos outros e que tinhas
seriam melhores no futuro. [...] Te parece, que esses selvagens, que só sabem
cortar as cabeças aos civilizados, merecem os sacrifícios que vais fazer por
124
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
“Estou em espírito com vocês e ninguém pode imaginar como lamento não
estar em corpo também. Conto com a vossa coragem. Os índios são nossos
125
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
irmãos, são mesmo os mais brasileiros dos brasileiros. O nosso sangue veio
pátria, que parece sem fim, tão grande é, pertencia aos índios, desde tempos
tão remotos que ainda hoje não lhes podemos atribuir uma data certa. [...]
as malocas, por essas clareiras afora, nos recessos das selvas, onde criavam
aos invasores, com suas flechas primitivas, gentes sem compreensão respon-
sentido humano do nosso povo. Devemos concluí-la sem sangue, antes com
126
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
Nesta reflexão observamos que a crítica feita por Oliveira comprova que
ainda não conseguimos chegar a um consenso entre as políticas econômicas,
socioambientais e humanitárias em relação aos indígenas em pleno século XXI.
Daí a importância da obra de Ferreira de Castro, que se baseia em fatos e do-
cumentos históricos, para nos fazer pensar sobre como, através da Literatura,
127
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
a certeza de serem ainda vigorosos para meter direito aos perigos, rompendo
128
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
129
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
ser dominado pela força de uma ideia, que será tanto mais poderosa quanto
E ainda, mais adiante, para além das dúvidas em relação às suas próprias
vidas, começam a duvidar dos benefícios da empreitada civilizatória para os
indígenas:
– E que vantagens podem trazer, afinal, toda esta nossa canseira e todos os
perigos que vamos correr? [...] Não digo vantagens para nós, digo para os
índios, é claro. Há quem pense que não vão ganhar nada com isso. Outros
julgam que eles são uma vergonha para a civilização. [...] Mas que benefícios
terão eles em ser civilizados agora? Talvez os índios não sejam mais felizes
do que nós, pode ser, mas infelizes também não são. Andam acostumados
nós, não trabalham. Acertar com a flecha num bicho não é trabalho, é uma
satisfação. Também não precisam de dinheiro para muitas coisas de que nós
precisamos, nem eles precisam dessas coisas. E mulheres não lhes faltam.
130
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
Imaginava ele que as terras ocupadas pelos indígenas deveriam ser desen-
131
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
rior do Brasil; g) poder acessar ou produzir bens econômicos nas terras dos
Dito isto, verificamos que estas ações estão presentes na obra ficcional
de acordo com os valores rondonianos e, ora em diante, prosseguimos a nossa
discussão, destacando a presença de outra importante personagem histórica
presente em O instinto supremo – Curt Nimuendajú. Historicamente, ele se dedi-
cou à causa indígena e morreu entre os índios em 1945. Nascido em 1883, como
Curt Unkel, o etnólogo alemão chegou ao Brasil aos 20 anos, e ganhou o novo
sobrenome dos Guarani, em 1905, que significa “aquele que constrói sua própria
morada”. De fato, Nimuendajú construiu a sua morada no Brasil, pois foi um pro-
tetor incansável dos indígenas e fez descobertas importantes no campo não apenas
da etnologia, mas da arqueologia e da linguística.
Considerado o precursor da linguística no Brasil, descreveu as línguas de di-
versos grupos indígenas, dominava bem o português, o guarani e o nheengatu e
deixou material que abriu caminhos para diversas novas pesquisas. Muito já foi
feito e ainda há por fazer e descobrir de seu legado. Além de muitos textos contendo
informações detalhadas sobre as etnias que observava, seus modos de vida e o olhar
sobre a natureza onde passava, ele deixou um grande acervo de imagens:
132
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
Infelizmente, a parte física deste material deixado por ele foi perdido no
incêndio ocorrido no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018.
Mas graças ao trabalho de pesquisadores, desde a década de 80, muitas des-
sas imagens foram microfilmadas e digitalizadas. Além do Museu Nacional
do Rio de Janeiro, há acervo de Nimuendajú em vários museus do mundo.
Conhecendo a vasta produção escrita que ele deixou, temos a oportunidade de
conhecer os olhos atentos que registraram detalhes da vida, costumes e cultu-
ras, bem como peculiaridades da forma como se identificavam. Destacamos as
anotações realizadas a respeito dos Parintintins:
ainda é seguido por um suffixo, uma posposição ou um adjetivo. Não tem este
nome a significação de “homens da matta”, como Martius explica (CM II.5), mas
é composto de kab, káwa = vespa + ahíb ( = ?), e designa uma pequena qualida-
significação desta palavra e a explicação dada por Martius (CM 1.707): pore
1924, p. 46-48)
133
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
e são, por esta razão, annualmente visitados pelos Parintintin, vizitas estas
bitantes dessas regiões. A terra firme é coberta de matta alta, mas não da
mais vigorosa, onde existem castanhaes e algum caucho. São estas riquezas
p. 6)
134
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
filiam-se a uma longa genealogia que tem origem nos contatos dos jesuítas
135
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
mesmo usá-las (em tiros para o alto), evidenciando o poder de que dispunha
(ERTHAL, 1992; RIBEIRO, 1962 apud OLIVEIRA & FREIRE, 2006, p. 117).
– Estamos aqui como vossos irmãos e trazemos muitos presentes para vocês
– gritou Nimuendajú com a maior força da sua voz. [...] aquela massa confu-
sa, meio escura, meio avermelhada, de linhas empastadas, tão mal definidas
136
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
que à primeira vista mais parecia assim na ponta de comprida vara, um brinco de carnaval do
A atitude de decapitar a cabeça e usar como troféu, era uma forma de mostrar que eles
cabeça espetada na vara representava a vitória sobre essa invasão. Diante desse ato cruel, N
mens que não reajam com violência, apesar da revolta de alguns. Nesse momento da narrativ
se renova para prosseguir com a missão e salvarem suas próprias vidas. Com o conhecimen
Nimuendajú ordena que sigam até o local onde deixaram os presentes para saber se os índio
devem deixar mais brindes no local, ao que Tito Boludo reage com rancor:
Dorival apoiou-o:
seco: – Os brindes são as únicas armas de que podemos dispor. Vocês dois não compreende
E esta manhã não deve haver perigo, creio eu. Os índios vão agora, provavelmente, a cami
A terra dos Parintintin tem, por conseguinte, uma densidade de população de 0,01 por kilo
mas possa produzir, quando muito, uns 50 homens de combate, chegamos ao resultado ve
137
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Considerações Finais
Assim, concluímos refletindo que o processo histórico na Amazônia foi
construído a partir de conquistas, enfrentamentos e muita violência cultural.
Apesar do discurso de pacificação pregado por Rondon, a tutela exercida sobre
os indígenas após o sucesso das empreitadas também foi danosa em termos de
afirmação das suas múltiplas identidades e culturas. No entanto, dentro dos
limites do pensamento social que prevaleceu em grande parte do século XX, a
obra O instinto supremo nos mostra uma floresta com aspectos humanizados,
que são evidenciados pela presença de indivíduos que sentem, sofrem e lutam
pela dignificação do homem e pela sobrevivência em terras onde muito mais
importavam as riquezas que dali pudessem ser extraídas.
Sua inspiração se deu na sua própria experiência quando adolescente, tra-
balhando no corte da seringa, pois seu maior medo eram “os índios decapita-
dores de cabeça”, como eram conhecidos os Parintintins. Em um discurso que
destaca o medo e o deslumbre do encontro com o Outro, Ferreira de Castro
reverbera o combate aos excessos, o legado de pacificação de Cândido Rondon
e a atuação de Curt Nimuendajú no relacionamento e trato com os indígenas.
O escritor atrai o leitor para refletir sobre os conceitos de pacificação e
violência ao relatar os acontecimentos históricos permeados pelas sutilezas
138
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro
Referências
BAZE, Abrahim. Ferreira de Castro – um imigrante português na Amazônia.
Manaus: Editora Valer, 2005.
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – formação social e cultural. / Samuel
Benchimol. 3 Ed. Manaus: Editora Valer, 2009.
CASTRO, Ferreira. O instinto supremo. Lisboa: Guimarães Editores, 1988.
MELO, Joaquim Rodrigues. A política indigenista no Amazonas e o Serviço de
Proteção aos Índios, 1910-1932. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
do Amazonas, 2007.
NIMUENDAJÚ, Curt. Os índios Parintintin do Rio Madeira. Separata do
“Journal de la Societé” des Américanistes, Paris, n.s. 16: 201-278, 1924.
Textos indigenistas: relatórios, monografias, cartas. São Paulo: Editora Loyola,
1982. Disponível em: www.etnolinguistica.org/source:26.
OLIVEIRA, João Pacheco de, & FREIRE, Carlos. A presença indígena na formação
do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade; Laced/Museu Nacional, 2006.
SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1. Série, Ensino Médio – 1
ed. Rio de Janeiro: Menvavmen, 2010.
SOUZA. Márcio. A expressão amazonense. Manaus: Valer, 2010.
VALADÃO, Virginia. Senhores desta terra: os povos indígenas no Brasil – da
Colônia aos nossos dias/ Virginia Marcos Valadão, Gilberto Azanha; coordenação
Maria Helena Simões Paes, Marly Rodrigues. São Paulo: Atual, 1991. (Histórias
em documento)
VEIGA, Patricia da. Museu recupera acervo do etnólogo pioneiro Curt
Nimuendajú. Disponível em: https://xn--conexo-7ta.ufrj.br/artigos/museu-
recupera-acervo-do-etnologo-pioneiro-curt-nimuendaju. Edição 15, nov. dez.
2018.
139
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
Introdução
A imagem da Amazônia como paraíso, inferno verde ou Eldorado foi mol-
dada, a partir dos textos de viajantes europeus, que por lá estiveram e pela
força da letra fixaram no imaginário as citadas imagens. Ao falarmos do campo
semântico Amazônia, nossas referências tendem a conferir um grau de identi-
dade à região no todo, o que se explica pelo longo processo histórico de estabe-
lecimento, de criação e de “invenção da Amazônia” como processo de percep-
ção e apropriações de imagens acerca dessa região.
No entanto, a Amazônia urbana, que é o que se quer aqui destacar, pouco
sobressai na maioria dos estudos acerca da cultura e da literatura amazôni-
cas. Nesse sentido, cabe-nos destacar que, assim como em todas as cidades do
mundo, as capitais da Amazônia possuem uma imagem, dentre tantas imagens
que as identificam, como por exemplo, em Rio Branco, o Palácio Rio Branco, o
sítio histórico do Primeiro Distrito; em Boa Vista, o monumento ao garimpei-
ro; o Centro Cívico; em Manaus, o Teatro Amazonas; a orla da Ponta Negra;
em Belém, o Teatro da Paz; o Mercado Ver-o-Peso; em Macapá, a orla do rio
Amazonas, o monumento Marco Zero do Equador; e em Porto Velho, sobressai
a imagem das Três Marias (Caixas d’água de ferro montadas inicialmente para
abastecer a construção da ferrovia) e o conjunto arquitetônico da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, ou seja, esses elementos na paisagem urbana funcionam como
se cada capital amazônica tivesse o seu Cristo Redentor ou sua Torre Eiffel como
ícone.
141
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
142
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
Figura 1. “Grupo de norte-americano, com dois engenheiros fiscais brasileiros e Frank W. Kravigny (com uma máquina
de escrever) – Museu do Patrimônio da USP.jpeg. Fonte: By Dana B. Merrill, Public Domain, https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=74578604
143
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
South America a railroad was being built under far great difficulties than those
encountered in the building of the Panama Canal, and under circumstances
that have had no parallel in engineering history.”13 (KRAVIGNY, 1940, p. 2).
Já o caso da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o início
de suas obras se deu em 1871 por iniciativa do governo boliviano a cargo da
Companhia PT&Collins, que iniciou a demarcação da linha ferroviária, con-
forme assinala Neville Craig (CRAIG, [1907], 1947), tendo seu percurso nova-
mente estudado em 1883, já sob os auspícios do Imperador D. Pedro II, pelo
brasileiro Carlos Alberto Morsing, a partir da Comissão Morsing.14 (BUENO,
2012, p. 82).
Posteriormente, a construção passou ao encargo da empresa May, Jekill
& Randolph, do estadunidense Percival Farqhar, em 1907, que iniciou os tra-
balhos não mais em Santo Antonio, mas em um ponto a 7 km distantes rio-
-abaixo, dando origem à cidade de Porto Velho. Essa fase da construção da
Madeira-Mamoré pela Companhia de Farqhar, Frank Kravigny, em The jungle
route, recria através de suas memórias. (BUENO, 2012, p. 83-84).
Kravigny foi um escriturário que trabalhou durante um ano na construção
da Madeira-Mamoré e, anos mais tarde, ao retornar aos Estados Unidos, publi-
ca a obra em tela. Frank Kravigny narra suas vivências durante um ano em que
esteve na Madeira-Mamoré, lutando contra a malária, a gestão e modus ope-
randi inadequados em um esforço para construir a Ferrovia dos rios Madeira
13 Todos os trechos da obra serão citados na língua original, pois não há edição em língua portuguesa. Nesse sen-
tido, utilizaremos as notas de rodapé para inserir a nossa tradução: “O grande ano da expansão da Ferrovia nas
florestas da América do Sul que estava sendo construída sob grandes dificuldades, as mesmas que encontramos
14 Neville B. Craig narra todos os detalhes dos antecedentes da construção da EFMM, em sua obra, Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré. História trágica de uma expedição, [1907]. Trad. Moacir N. Vasconcelos. Rio de Janeiro: Compa-
nhia Editora Nacional, 1947. Não constitui escopo desse trabalho reconstituir os antecedentes da construção da
EFMM, mas sim, estudar a narrativa de Frank Kravigny, que participou da última tentativa de construção dessa
Ferrovia, embora Kravigny tenha sido leitor de Neville Craig, conforme afirma na introdução de sua obra, The
jungle route.
144
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
17 Dana Merrill, a quem conheci neste tempo e a quem estou em débito por muitas das fotografias usadas neste
livro, era o fotógrafo oficial da ferrovia (KARVIGNY, 1940, p. 39). Tradução nossa.
145
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
nal fear oh haziness being almost entirely dispelled, and I am quite prepared
to affirm that is factuallly correct. If the reader can place himself in a mental
attitude of living these experiences with me, he will better understand this
Kravigny, ao afirmar que utilizou imagens vívidas, sinaliza para nós, lei-
tores, que embora ele lance mão de um relato, a ficção se expressa também na
“aventura” de adentrar a floresta amazônica, termo muito utilizado por ele.
Ainda que tenha vivido aquele episódio, ele nos contará de acordo com a sua
percepção e convida o leitor a reviver com ele as experiências, o que, de certa
18 Esta história escrita trinta anos depois não é somente uma preocupação com uma gloriosa aventura, mas tam-
bém algo que raramente é registrado dessa maneira – quais foram seus últimos resultados após esse período de
tempo.
19 “Estou particularmente impressionado com a vivacidade dessas lembranças, meu medo original da nebulosi-
dade sendo quase inteiramente dissipado, e estou bastante preparado para afirmar que essa obra é factualmente
correta. Se o leitor puder se colocar em uma atitude mental de viver essas experiências comigo, ele entenderá
melhor esta versão, escrita primeiro, como o foi, para os sobreviventes da Ferrovia Madeira-Mamoré.” (KRA-
146
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
In the Spring of 1909, New York was a city of many changes. The “Gay White
Way” was a new phrase on the tongues of New Yorkers, coined to describe the
147
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Street. An important topic of the day was the eight-cent Gas Law Case and
kidnapping of Willi Whitla. The Robert Fulton was once again to steam up
the Hudson River to celebrate the One Hundredth Anniversary of steam na-
vigation and a man named Peary was to announce on April 6th of this year
that he had discovered the North Pole. A new President of the United States
had just moved into the White House. Ex-President “Teddy” Roosevelt had
gone to Africa and was even the contemplating the trip of exploration in the
Amazon jungles that he later made his son Kermit, in 1913. […]
The great year of railroad expansion in the United States was 1909; but
4000 miles away in the jungles of South America a railroad was being built
under far greater difficulties than those encountered in the building of the
Panama Canal, and under circumstances that have had no parallel in engine-
ering history. The building of this road had been attempted once before and
had been abandoned. Now in 1909, it was forging ahead, under direction of
Percival Farquhar who two years before had awarded the contract for survey
of those men and that far off railroad in a land where ants are over and inch
long, spiders look like crabs, and beetles are as large as a man´s hand, but
until March, 1909, it never occurred to me that I, too, might enter into this
One day during the last week in March, while on a search for a better job […],
20 Na primavera de 1909, Nova Iorque era uma cidade com muitas mudanças. “Gay White Way” era a frase que mais
se ouvia da boca dos nova-iorquinos, criada para descrever a região teatral que havia se mudado para a Broa-
dway, o distrito teatral, situado na 23th Street. Nota: Gay White Way se referia à iluminação elétrica da Brodway
e era o título de um musical de sucesso na época. Um importante tópico do dia era o caso da Lei do Gás de 80 cen-
tavos e o sequestro de Willie Whitla [médico e político irlandês]. Nota: O caso da Lei do Gás de 80 centavos ficou
assim conhecido pela proibição da Corte Americana para que essa taxa entrasse em vigor. Mais uma vez, Robert
Fulton navegou pelo rio Hudson para celebrar o centésimo aniversário da navegação a vapor e um homem cha-
mado Peary tinha anunciado em 6 de abril deste ano que havia descoberto o Polo Norte. Um novo presidente dos
148
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
[...] After hurried preparations, I boarded the S.S. Sergipe of the Lloyd
ment for a year´s stay in the jungle was unusual, to say the least. [...]
Estados Unidos acabara de se mudar para a Casa Branca. O ex-presidente “Teddy” Roosevelt foi para a África e
havia contemplado a viagem de exploração nas selvas amazônicas que mais tarde fez seu filho Kermit, em 1913.
O grande ano de expansão da ferrovia nos Estados Unidos foi em 1909; mas a 4000 milhas de distância, nas
selvas da América do Sul, uma ferrovia estava sendo construída sob dificuldades muito maiores do que
as encontradas na construção do Canal do Panamá e em circunstâncias que não tiveram paralelo na his-
tória da engenharia. A construção desta estrada havia sido tentada uma vez antes e havia sido abandona-
da. Agora, em 1909, avançava, sob a direção de Percival Farquhar, que dois anos antes havia cedido o con-
trato de pesquisa e construção a uma empresa americana. [...] Eu poderia ter aprendido algo sobre aqueles
homens e sobre aquela estrada de ferro, em uma terra onde formigas têm mais de um centímetro de com-
primento, aranhas parecem caranguejos, e besouros são tão grandes quanto as mãos de um homem, mas
até março de 1909, nunca me ocorreu que eu também pudesse entrar nessa grande aventura ferroviária.
[...] Um dia, durante a última semana de março, enquanto eu procurava um emprego melhor [...], entrei no de-
21 Café da manhã.
149
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
The first of the many changes of diet to which I was to become accustomed
in the next twelve months came on the first morning after my departure,
Accostumed to ham and eggs and the usual Brooklyn accessories, I ate the
six animal crackers and drank the cup of black, Brazilian coffee, then waited
for the rest of my breakfast to arrive. It did – four hours later, or to be exact,
when I went into the dining room for what the officers called breakfast, a
brought tea and more animal crackers, which tided us over until seven,
when another meal of several courses was served. The animal crackers stood
ro, com destino ao Pará via Barbados. Eu praticamente ignorava a natureza do meu desti-
no, e meu equipamento pessoal para estar na selva por um ano era pouco usual, para dizer o mínimo.
[...] A primeira das muitas mudanças na dieta com as quais eu me acostumei nos doze meses que se seguiram,
ocorreu na primeira manhã após a minha partida, quando meu café da manhã foi trazido para a cabine pelo gar-
çom brasileiro. Acostumado a presunto, ovos e os acessórios habituais do Brooklyn, comi as seis bolachas para
animais [biscoito de cachorro] e bebi a xícara de café preto brasileiro, depois esperei o resto do meu café da ma-
nhã chegar. Foi o que aconteceu – quatro horas depois, ou para ser exato, quando entrei na sala de jantar para o
que os funcionários chamavam de café da manhã, havia uma refeição correspondente a um jantar completo. Às
quatro horas da tarde, trouxeram chá e mais bolachas para animais, que nos serviram até as sete, quando outra
refeição de vários pratos foi servida. Os biscoitos para animais ganharam maior importância quando chegamos
150
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
There was a large theatre in para, the Theatro da Paz (Peace Theatre), a sort
in a public park. The evening I attended the theatre, the main attraction was
a moving picture of our wild west type of thriller. (KRAVIGNY, 1940, p. 21)24
Day in this far clime where the hearts of these American pioneers beat all the
faster in the realization of the distance from their homeland, here in the im-
penetrable jungles. On this July 4th, 1909, we inaugurated and published for
the first time in printed form, the Porto Velho Times, which was now entered
in the Post Office as first class matter. […] My gravitation to the publishing
field came about when the editor of The Times was taken ill. […] I started the
Porto Velho Courier, fully realizing that there was not a large enough field for
a competitive venture here, but not wishing to prevent the future publica-
ding staged at Porto Velho.[…] I was assigned to a room in the “ Mad House”
24 Enquanto esperávamos no Pará por uma conexão no vapor que nos levasse até ao Amazonas, para Manaos,
passamos uma semana agradável em um hotel comercial, onde desfrutamos de boa comida e acomodações. […]
Havia um grande teatro no Pará, o Theatro da Paz, uma espécie de Casa de ópera de propriedade governamen-
tal, de construção em pedra e localizado centralmente em um parque público. Na noite em que assisti ao teatro,
a principal atração era uma imagem em movimento de nossos filmes do tipo de suspense do oeste selvagem.
151
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Annex, which despite its name was a very pleasant two-story frame building,
The view up the river from Porto Velho around a gentle sweep of the Madeira
was of slight difference from the others hundreds of miles that I had already
traversed.[….]
San Antonio houses were made of colored stucco, the largest building in the
were the virtual dictators of the rubber gathering industry in this section of
By 1909 the supply of common labor for the railroad was rapiddly being
getting less than a shilling a day, a top of twenty cents, to be accurate, – here
25 De particular interesse em Porto Velho foi a celebração do Dia da Independência, neste clima distante, onde os
corações desses pioneiros americanos batiam mais rápido, quando se davam conta da distância de sua terra natal,
estavam aqui nas selvas impenetráveis. Em 4 de julho de 1909, inauguramos e publicamos pela primeira vez, em
formato impresso, o Porto Velho Times, que passou a ser registrado nos Correios como matéria de primeira clas-
se. [...] Minha circulação no campo editorial surgiu quando o editor do The Times [The Porto Velho Times] ficou do-
ente. [...] Iniciei o Porto Velho Courier, percebendo plenamente que não havia um campo suficientemente grande
para um empreendimento competitivo aqui, mas não desejava impedir a publicação futura do antigo jornal. [...]
do em Porto Velho. […] Fui designado para uma sala no anexo “Mad House”, que apesar do seu no-
me era uma estrutura de dois andares muito agradável, contendo cerca de doze quartos em cada andar. [...]
A vista do rio Madeira a partir de Porto Velho tinha em torno uma suave varredu-
ra que era ligeiramente diferente das outras centenas de quilômetros que eu já havia percorrido. [...]
As casas em Santo Antonio eram feitas de estuque colorido, o maior edifício da cidade estava sendo ocupado co-
mo armazém e escritório por uma empresa de irmãos que eram os ditadores virtuais da indústria de coleta de
152
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
per day, at the time equal to two dollars forty cents gold. […]
Laborers from Spain and the West Indies were being recruited in large num-
bers at this time, for the Panama Canal, and besides extensives. […]
The cavalcade traveled all day, passing through Camp Number 11, which
had some time ago been the scene of very unusual gathering in this jungle, a
26 Em 1909, o suprimento de mão-de-obra para trabalho comum para a ferrovia estava rapidamente esgotado,
por doença, morte e abandono do trabalho. Enquanto os negros em Barbados recebiam menos de um xelim por
dia, no máximo vinte centavos, para ser mais preciso, – aqui os trabalhadores tiveram a oportunidade de ga-
nhar até 8$000 (oito mil réis) por dia, na época igual a dois dólares quarenta centavos do padrão-ouro. [...]
Nota: Padrão-ouro era um sistema monetário internacional que adotava uma banda cambial atrelada ao ouro.
[...] Trabalhadores da Espanha e das Índias Ocidentais (Caribe) estavam sendo recruta-
dos em grande número naquele momento, para o Canal do Panamá, além dos arredores. [...]
O grupo montado a cavalo viajou o dia todo, passando pelo acampamento número 11, que há algum tempo fo-
ra palco de reuniões muito incomuns nessa selva, uma reunião de maçons livres (KRAVIGNY, 1940, p. 45 e 84).
28 As impressões recebidas nesta idade de formação da minha vida tiveram uma influência marcante no molde do
153
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Considerações finais
Na narrativa The jungle route, Frank Kravigny, ao narrar o vivido no inte-
rior da floresta amazônica “escovou a história a contrapelo”. Como bem afir-
mou Benjamin (1986), tomamos conhecimento não apenas daquilo que ocor-
reu, mas o que poderia ter ocorrido, ao narrar o vivido e reviver trinta anos
depois aquilo que foi vivido na juventude. Embora a experiência na Amazônia
tenha marcado profundamente o narrador, ele saúda a civilização e afirma que
tal vivência fez com que ele apreciasse ainda mais the blessings of civilization, e
fecha a sua narrativa com uma citação de Darwin que aponta para uma con-
cordância íntima de que há uma impossibilidade de “domar” a floresta amazô-
nica, pois são como espécies de templos divinos.29
Mas, o último capítulo da história da ferrovia Madeira-Mamoré, de acordo
com o narrador, ainda não foi escrito, e a imagem da bancarrota e da decadên-
cia são as que ficaram marcadas no fechamento de suas memórias: após tantas
lutas, doenças e mortes, a ferrovia minguou. Kravigny agrega um artigo do ano
de 1939 da Revista Engineering News Record para ilustrar a sua nota de decep-
ção com a fabulosa obra, alimentada pelo discurso do progresso e da moder-
nidade, o que nos mostra que a “inserção compulsória do Brasil na moderni-
dade”30, parafraseando Nicolau Sevcenko (1989), se deu por uma modernidade
pelo alto, que mascarou as péssimas condições de trabalho, sem considerar as
peculiaridades locais e culturais.
29 “Charles Darwin aptly said, “No man can stand in the tropic forests without feeling that they are temples filled with the various produc-
tions of the God of Nature and that there is more in man than the breath in his body.” (KRAVIGNY, 1940, p. 186.).
30 A expressão de Sevcenko é: “Inserção compulsória do Brasil na Belle Époque.” (SEVCENKO, 1989, p. 35).
154
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny
Referências
BARTHES, Roland. O efeito de real. In: O rumor da língua. Trad. Antonio
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987, pp.131-136.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 2. ed. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BUENO, Ricardo. Borracha na Amazônia: as cicatrizes de um ciclo fugaz e o
início da industrialização. Porto Alegre: Quattro Projetos, 2012.
FONSECA, Dante Ribeiro da. A Madeira-Mamoré e o imperialismo na
Amazônia. In: Anais. IV Congresso Brasileiro de História Econômica e 5ª
Conferência internacional de História de Empresas, São Paulo/2001(FEA-
USP), 2001. p.1-19. Disponível em: http://www.abphe.org.br/arquivos/
dante-ribeiro-da-fonseca.pdf. Acesso em: 26 mar. 2020.
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um
autor? Trad. José A. Bragança de Miranda e António Fernando Cascais.
Lisboa: Passagens. 1992. pp. 129-160.
155
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
156
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
que no fundo de um rio ou lago existe uma cidade rica, esplêndida, exemplo
Elas são seduzidas e levada para o fundo do rio por seres das águas ou da
Eldorado, p. 105/106).
157
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
158
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
159
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
foram reféns do próprio tempo e das condições existentes assim como a arte li-
terária, reconhecidamente de expressão nacional e que se moldou, segundo os
princípios que nortearam aqueles que não pouparam esforços para levantar os
andaimes necessários, a fim de acender o aclamado letreiro, que representaria,
de fato e de direito, uma literatura considerada emergente.
Desse modo, espelhamos nossa reflexão nas pontuações de Manuel
Antônio de Castro:
160
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
31 Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz foram os primeiros nomes da terra brasilis conferidos pelos portugueses, na época do descobri-
161
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
1994, p. 35)
162
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
ram a ser lidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico e saudosista
163
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
p. 13)
164
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
no dia 17, também foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “fu-
assim se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a
1986, p. 18)
165
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
166
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
estilos ficcionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfim
167
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
168
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
para que, especialmente, o grupo de São Paulo, liderado por Mário de Andrade e
Oswald de Andrade arregimentassem todas as vozes possíveis e insatisfeitas contra
o status quo, à época, para, num arroubo brutal, como um golpe de mestre ilegíti-
mo, tomassem a frente dos escritores nordestinos, organizassem, como realizaram,
com alguma retumbância e sucesso, a Semana de Arte Moderna em 1922, e anun-
ciassem o início do Modernismo nas artes brasileiras. A ideia de uma revolução,
nas artes e letras nacionais, de fato, pertencia, originariamente, aos intelectuais do
longínquo Nordeste, mas implementada, astutamente, pelas vitrines culturais do
país: São Paulo e Rio de Janeiro. Coincidência ideológica ou plágio histórico?
Insta acrescentar, ainda, que o grupo do Nordeste, embasado pelas teses de
uma historiografia brasileira emergente, manteve a sua fidelidade ligada a um
projeto de refundação nacional calcado na coerência e, sobretudo, na consciência
acerca da evolução da própria história do país, apartando-se, substantivamente,
das influências d’além mar. Quanto ao grupo de São Paulo, a configuração passava
por dois pontos distintos e que depuseram contra os fundadores do Modernismo.
A saber: escritores advindos de uma burguesia ascendente, que se renderam aos
encantos das novidades e dos discursos que pregavam a transformação, em todos
os segmentos, em terras europeias; e o contato direto com o fluxo de informações,
que ditavam as mudanças no Velho Mundo, em todas as áreas do saber e, neste
caso, a Literatura, antes da abertura oficial do movimento modernista nas letras
nacionais.
A assertividade do criticismo em tela é confirmada pelo olhar de Sérgio Paulo
Rouanet, ao afirmar que:
mos, mas não eram nacionalistas primários. Afinal, seus autores de cabeceira
169
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
por toda a região, da Bahia ao Ceará e mais ao. A fórmula era buscar no am-
170
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
A história, em seu movimento natural e com seus vetores ativos, atrai para
o centro o que, momentaneamente, articulado por forças artificiais e opera-
das pelo discurso oficial, foi arremessado para as bordas, para as periferias.
Destarte, a reflexão crítica, que ora apresentamos, é clara o bastante para as-
segurar que o princípio da qualitas da diversidade triunfou sobre o quantum das
finanças; isto é, a literatura nordestina, aplacando a tradição literária vigente, com
o vigor e o traço diferencial de sua estrutura, que delineava, contundentemente, a
dura realidade de um país e apresentava ao grande público, ao próprio Brasil e ao
mundo os caminhos de uma nação às avessas, retirou o pó que embaçava o espelho
e revelou a outra face da nação. A brasilidade, enfim, ressurgia não como desejaram
muitas vozes altissonantes, não como idealizavam, sob os gritos opressores de uma
crítica planejada, quase um embuste; mas como era, em sua essência.
Os olhos volvidos para o umbigo fariam um arco ascendente, considerando,
sobretudo, o que havia e o que viria, primeiro e historicamente, na literatura dos
escritores nordestinos, tanto na prosa quanto na poesia, como estão arrolados nas
diversas obras, compondo o painel identitário da Literatura Brasileira, seus autores
e suas produções exemplares; classificadas nos períodos e nas escolas estético-lite-
rárias, como estão, até hoje, e cristalizadas nos compêndios e nos escritos oficiais
sobre a literatura nacional; e, posteriormente, no contraponto da cultura, secu-
larmente estabelecida, e que, por essa razão, excluiu a região Norte como espaço
representativo, formado, substancialmente, por linguagens próprias e singulares, à
guisa, ainda, de estudos valorativos, densos e verticais, e com contribuições relevan-
tes para a história da literatura em sua organicidade periodológica.
171
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
172
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
tempo. O Brasil já não era conhecido apenas por um polo econômico, político, so-
cial, cultural, pujante, que se confundia com a própria história do país. O Brasil, em
sua forma geopolítica, estava demarcado nas cinco regiões que dividem o território
nacional. Assim, havia um espaço geográfico, cuja importância para a formação
identitária da nação fora excluída, pelas obviedades já explanadas neste ensaio,
dos grandes debates, no circuito da crítica, da historiografia literária e da própria
literatura: a região Norte.
O fato de a confusão ainda predominar nos dias atuais, quando o tema é a
Amazônia, pois, retornando ao ponto apresentado anteriormente, nestas linhas crí-
ticas, grande parte dos brasileiros se confunde, ao tentar compreender o espaço no
qual está situada a maior biodiversidade do planeta, estende esse desvio, fundindo
o nome Amazônia com o nome do estado do Amazonas, agravando o erro, e mis-
turam todas as peças de um jogo complexo, findando por manter esse equívoco sem
chances para reparos. Não bastasse esse desvio cometido por brasileiros, os olhares
estrangeiros também o fazem, não estabelecendo, portanto, os marcos divisórios
desse espaço físico.
Cumpre-nos acrescentar, ainda, que, dada a complexidade no que diz respeito
à constituição étnica de suas gentes, o desconhecimento pleno da região Norte e,
principalmente, da própria Amazônia concorreu, sobremaneira, para que os discur-
sos oficiais, capitaneados pelos intelectuais do eixo Rio – São Paulo, os detentores
e os normatizadores da crítica literária nacional, perdurassem e mantivessem uma
cortina de fumaça, que parecia eterna, emparedando o gigantismo da Amazônia, a
última fronteira a ser descoberta pelos historiadores, estudiosos, em geral, e, sobre-
tudo, pelos escritores.
Destarte, entrelaçamos a nossa exposição com o criticismo de Luciana Marino
do Nascimento e Sandra Teresa Cadiolli Basílio, ao empreenderem a seguinte
abordagem:
173
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
gem da imensa floresta tropical, com seus rios, fauna e flora, detentora do
nos relatos de inúmeros viajantes ao longo dos séculos XVII, XVVIII, XIX,
O verde não era somente verde, como se imaginava ou como fora pinta-
do, há mais de meio milênio, nas páginas tortuosas da história, mas um poli-
cromatismo, que rompeu os rabiscos e as rasuras ditatoriais da historiografia
literária, surgia, de forma descomunal, no horizonte promissor para preencher
as lacunas do projeto de identidade nacional, pensado e levado a cabo pela in-
telligentsia brasileira representada por todas as gerações, que idealizaram um país
integrado por sua completude ontológica, cujas raízes mais viscerais não tinham
sido germinadas na tradição canônica. Ou havia óbices naturais, que retardaram
a compreensão sobre a importância da Amazônia e sua decisiva contribuição para
a formação identitária da cultura e literatura nacionais, respectivamente, ou exis-
tia uma rede de constructos artificiais baseados numa cadeia de pseudoverdades
ventiladas e repetidas pelas vozes oficiais, visando, em última análise, a separação
do resto do país do santuário quase intocável, cujas fronteiras avançam topogra-
ficamente para as nações andinas. A par disso, pautamos a seguinte reflexão: um
inferno verde32 ou um paraíso flamejante?
32 Referimo-nos, de forma proposital e cabível, à obra emblemática de Alberto Rangel, intitulada Inferno verde, que aborda o tema da
174
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
A visão para alguns e/ou a revisão para tantos outros da Amazônia e sua re-
levância para os estudos literários nacionais, e, sobretudo, para a crítica canônica,
problematizaria/problematizariam os estatutos erguidos e cimentados da literatu-
ra brasileira que, pela primeira vez, teriam suas bases rachadas e, por conseguinte,
condenadas. Nessa diretriz, cumpre-nos alargar o horizonte em questão para, iro-
nicamente, incluir não somente o Modernismo, mas todas as escolas estético-literá-
rias, que delinearam a escrita artística nacional pari passu à figura em construção
do ser brasileiro: o Homo brasiliensis. Iniciava-se, portanto, a repaginação da pró-
pria literatura brasileira, escrita por brasileiros, dedicada para os brasileiros e tendo,
substantivamente, como objeto axial o brasileiro, em sua constituição primária,
fundante, exegética; instância medular a refletir as multitonalidades de uma poé-
tica emergente próxima à linha equatorial, que inflama o Norte do Brasil, com sua
floresta hegemônica, arcaica, úmida; impondo-se, com o calor de suas gentes e com
o fogo abrasador de suas estórias, lendas, mitos e, principalmente, de sua literatura,
velada pelos discursos oficiais.
Objeto de nosso interesse, no turno do poeticismo sobre a literatura na/da
Amazônia, e privilegiando, portanto, a questão em torno da (con)figuração do
Homo brasiliensis, pontuamos:
que sentenciava o ser complexo, que habita o maior país latino, abaixo da linha
175
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
igual modo, a literatura, não mais uma sombra espectral do português e francês,
176
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
pelos ideais e pelo sonho, tal qual os cativos do Egito, o desejo colossal de fazer
do próprio país, com suas gentes, sua língua e seus valores, a terra a ser con-
quistada, sem nunca dela evadir; alcançando o Realismo, que, retratou, com
ironia e sarcasmo, a hipocrisia de uma pseudosociedade burguesa, que no país
jamais existira, ao lado da miséria, que iniciava sua escalada na cidade que, um
dia, almejou ser a Paris dos trópicos – o Rio de Janeiro; emparelhando com o
Naturalismo, em franca ascensão, e que também tinha como matéria-prima
a pobreza, o nascimento dos bolsões de miséria, num perímetro que procla-
mava o processo urbanizatório, que levara séculos para sair do papel, entre as
ruelas e os morros, nascedouros das favelas; percorrendo o Parnasianismo, um
movimento controverso e não tão consensual entre os estudiosos, que seria,
desse modo, a reação realista na poesia; experienciando o Simbolismo, com
suas sinestesias, sugestões e reflexões universais; ao deságue no Modernismo
de 1922, intentando a reinvenção da história da literatura brasileira, o que se
infere, de modo incontestável, é a busca eloquente, porém erigida em falsos pi-
lares, de um projeto de identidade nacional, que passou ao largo das correntes
estético-literárias arroladas pela crítica e pela história da literatura.
A não inserção, que operamos intencionalmente, entre o Realismo e o
Modernismo, nesta explanação apositiva do fato em si, do breve momento
na literatura brasileira classificado como Pré-Modernismo, é justificada, por
nossa visão crítica, de uma forma estritamente líquida e objetiva: a corrente
literária em questão (se é plausível considerar o Pré-Modernismo como tal)
representa, sem sombra de dúvidas, a vacância de uma escrita ou de uma ma-
nifestação substancial, que pudesse significá-la, efetiva e crivelmente, na orde-
nação periodológica da literatura brasileira.
No entanto, um paradoxo surge das incoerências, dos desacertos e de-
sencontros notórios e historicizados pelo pensamento crítico da literatura
nacional, sem, é claro, emitir qualquer juízo de valor, e diz respeito, de forma
177
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
simples capítulo de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter
escrito com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza pedagó-
completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se – junto com ela – num todo dra-
e na coragem de resistir e clamar por ela. Resistir quando todos desistem. Resistir
sempre. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides mais do
que a paisagem, que transborda dos limites do livro científico d’Os Sertões, tor-
178
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
179
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
180
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
181
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
182
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
2012, p. 11-50)
183
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
184
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
e Fraternidade.
185
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
por isso, utilizados pelo povo no seu dia-a-dia, uma vez inseridos na lín-
34 Segundo a teoria freudiana que trata do psiquismo, os desejos recalcados constituem a substância oculta premi-
da pelas forças endógenas que, por sua vez, são representadas pelo Superego (as leis externas estabelecidas pelos
grupos sociais que restringem a ação efetiva e libertária do Ego). Assim, de acordo com o fundador da Psicanálise,
Sigmund Freud, os atos falhos são provas concretas do recalcamento, da castração do desejo de cada indivíduo
186
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
187
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
o que fez dessa obra um dos saltos quânticos da literatura brasileira; do outro lado,
o entenebrecimento do sentido alegórico da figura singular, que é a personagem
nuclear da obra, Macunaíma, advém do fato inegável de o escritor paulista eleger
o mito amazônico para destravar a pauta que impedia um novo olhar sobre o po-
lêmico projeto de identidade nacional. Nesse sentido, franqueamos mais uma refle-
xão: porventura, os modernistas, no afã de investirem no desterro dos românticos,
e navegando no imaginário de uma tradição, com considerável substantividade,
desejaram ser os autores legítimos das proposituras acerca da brasilidade, no alvo-
recer da nova corrente estético-literária?
Se não esqueceram ou não atentaram para este fato, acima postulado, os
modernistas não ousaram, sequer, tangenciar a imponente tese machadiana, já
consolidada e, portanto, reconhecida como marco inconteste no pensamento
histórico nacional denominado Instinto de nacionalidade (ASSIS, 1994), que so-
bressaiu, sem confrontos, face ao pensamento engendrado por José de Alencar, nos
idos do Romantismo, e que serviu de ponte luminar para os modernistas em 1922.
Assim, ao reler e/ou revisar a história recente, a que especificamente incide sobre o
Modernismo e suas propostas, e a que recai sobre o projeto de busca por uma iden-
tidade nacional, pedra angular idealizada por Alencar e sustentada pelos escritores
de sua geração, o que se constata, inconfundivelmente, é que o silêncio em torno de
uma cultura e uma história singular vertendo em solo amazônico não foi compre-
endido e tampouco interpretado, como deveria, tendo como consequência prejuízos
incalculáveis para o estabelecimento verossímil de uma cultura literária nacional.
A partir dessa configuração, Machado de Assis, com sua virtuosidade ímpar,
elabora as linhas diretivas dos caminhos da literatura brasileira e a questão da na-
cionalidade nas seguintes palavras:
188
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga,
cional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de
Ipiranga; não se fará um dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura;
não será obra de uma geração nem duas: muitas trabalharão para ela até per-
Influenciados, e não poderia ser diferente, pelos ventos que deram mus-
culatura às teses do nacionalismo epocal, uma das bases de fundação do
Romantismo na Europa e, posteriormente, no Brasil, os românticos persegui-
ram, com maestria e legitimidade, um mito fundador, um símbolo que repre-
sentasse, fielmente, a verdadeira face do ser brasileiro em seus traços arque-
típicos. Não sobreviveram, é claro, para darem cabo ao possível tratado sobre
o tema; e o índio, neste sentido, encarnando o espírito de um possível herói
nacional, consolidou-se, a despeito dos exageros da corrente literária, próprios
de seu tempo, como índice portentoso, sobretudo originário dessa terra ain-
da inexplorada, desconhecida. Entretanto, há que se registrar, também, que
a Amazônia não era e não fora o único lugar onde havia índios; os silvícolas,
como estão arrolados na história oficial a partir do descobrimento oficial do
Brasil.
É nesse caldeirão de cores e símbolos que o projeto identitário se encon-
tra, pois a grande dívida do Brasil é com o próprio Brasil, cristalizado nas cul-
turas amazônicas e no ser brasileiro genuíno, o amazônida: aquele que não
fora incluso nem nas letras românticas, de caráter crítico, nem tampouco pelas
189
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
190
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
próxima do que era/é o Brasil, rompendo, de forma original, os laços que manti-
nham a nação e sua cultura submissas aos colonizadores.
Os modernistas, a despeito do conhecimento que detinham, de forma privile-
giada, uma vez que pertenciam à elite dominante nas letras nacionais, (um legado
de um país com mais de quatro séculos de cultura acumulados) por preconceito,
desleixo e arrogância, excluíram a Amazônia do projeto identitário nacional, e os
românticos não conseguiram incluí-la porque sucumbiram, naturalmente, ao tem-
po, e grande parte de seu ideário não fora, portanto, concluído.
Quanto ao princípio da inclusão, estão salvos pela historiografia literária e,
também, pela Crítica, os românticos, os modernistas, as personagens que, ao longo
da história da literatura brasileira – e ressaltamos, com o devido louvor e reconhe-
cimento – os inconfidentes, no Arcadismo brasileiro, e o próprio Euclides de Cunha,
que se tornou magistral, ao empenhar-se, vigorosamente, in loco, para desvelar a
vastidão e a importância da Amazônia para o Brasil, no vácuo do Pré-Modernismo,
talvez pecando, somente, ao intitular o seu magnífico texto com o nome Os Sertões,
sem conceder-lhe um aposto mais luminoso, mais esclarecedor para o leitor, à pri-
meira vista, pois o ser que ali sempre viveu e resiste aos conceitos e definições, que
estão mais para os calabouços do que para os faróis, não é, não foi e jamais será um
sertanejo, apenas; é, antes de qualquer denominação, um amazônida constituído
por sua amazonidade: a última peça a ser encaixada no complexo mosaico que
dará a forma e a substância à ementa elucidativa do projeto de identidade nacio-
nal. Nesse sentido, em tempos de inclusão, é hora de redescrever e/ou quem sabe re-
descobrir o Brasil, iniciando o seu trajeto não pelo litoral, atlanticamente azul, mas
pela Amazônia, que é verde, azul, amarela, branca; multicolorida e multirracial;
gigantesca e parte essencial do ser brasileiro em sua pluridimensionalidade étnica,
religiosa, filosófica e literária.
Entre as velas das naus românticas e os motores dos automóveis modernis-
tas, a irrefreável bala de prata continua a sua trajetória vívida e lancinante a
191
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
ricochetear frenética por todos os lados, com um alvo ímpar: o cerne da questão
incompleta sobre o projeto identitário nacional. O elo perdido, que deverá unir o
passado e o presente, (re)construindo o talismã mítico, sagrado, está para além do
verde que constitui a Amazônia; está, radicalmente, nos limites imponderáveis de
uma brasilidade, que é amazônida, por excelência, e poética, por ser eminentemente
universal.
Referências
ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade.
Domínio público. [S.I.] 2008. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/
obra-completa - lista / item / 109 - noticia - da – atual – literatura – brasileira
- instinto-de-nacionalidade Acesso em: 28 nov. 2019.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo:
Cultrix, 2006.
CARNEIRO, Marcelo dos Santos. José de Alencar e a brasilidade: uma leitura
historiográfica. Cadernos de Pós-Graduação em Letras, São Paulo, v. 17, n. 1, p.
30-42, jan./jun. 2017.
CASTRO, Antônio Manuel de, et al. Origens da literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979, p. 21.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. IV. Era realista/Era de transição.
3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1996.
COUTINHO, Afrânio. Conceito de literatura brasileira. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
2014.
COUTINHO, Afrânio. Vol. V. Era modernista. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1996.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
NASCIMENTO, Luciana Marino do; SIMÕES, Maria do Socorro Galvão. (Org).
Traços e laços da Amazônia. 1. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.
PENALVA, Gilson; SCHNEIDER, Liane. Identidade e hibridismo na Amazônia
brasileira: um estudo comparativo de Dois irmãos e Cinzas do Norte, de Milton
Hatoum, Revista Brasileira de Literatura Comparada, Paraíba, v. 14, n. 21, p.11-
50, 2012.
192
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia
193
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
Introdução
O livro Exageros e delicadezas (2013), da autora amapaense Carla Nobre, re-
úne mais de 50 poemas que retratam a realidade da mulher e reformulam o estere-
ótipo utilizado no título de “delicada” e “exagerada”, formado socialmente ao longo
do tempo, conforme constata-se em Marx (apud BEAUVOIR, 2009, p. 133): “Assim
é que as qualidades inerentes à mulher são deturpadas em seu próprio detrimento,
e todos os elementos morais e delicados de sua natureza se transformam em meios
de escravizá-la e fazê-la sofrer”.
Os poemas que serão analisados retratam a realidade feminina em várias es-
feras, como a vida profissional, as várias jornadas de trabalho, as dificuldades em
criar os filhos sozinhas (quando as mulheres se tornam mães solteiras ou viúvas), a
recriminação da sua sexualidade, a criação do mito da beleza para uma espécie de
coerção social, o preconceito no uso de palavras e comportamentos considerados
vulgares, a luta por seu espaço profissional e por equiparação salarial e contra a
violência sexual (WOLF, 2008).
Dentre as criações literárias amapaenses, a obra de Carla Nobre é a primeira
a representar a luta das mulheres de forma clara e objetiva. Outras autoras, como
Maria Helena Amoras, em sua obra Macapá: um rastro de pirilampos (1997), traz
alguns aspectos de defesa da pauta das mulheres, mas negam o feminismo de forma
contundente, devido à resistência que existe em torno do termo.
Este artigo mostrará a perspectiva feminista da literatura e sua importância
para a formação social, de forma que as representações de gênero e as convenções
195
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Carla Nobre
Carla Nobre é uma autora da literatura amapaense que traz a representati-
vidade feminista em suas obras. Suas poesias apresentam a realidade da mulher
da atualidade, com todos os seus desafios inerentes ao gênero, numa sociedade
extremamente marcada pelo machismo. A autora é macapaense, professora de
Literatura e Língua Portuguesa, mãe de dois filhos e coordenadora do grupo
Abeporá das Palavras. Ela nasceu no dia 1º de julho de 1975 e publicou as obras
Ao vento – crônicas e poemas (2005) e Servindo haicais (2005), em edições
artesanais (computador); Sobre o adeus e o encelado de Saturno (pela Editora
Scortecci, 2007).
Carla já ganhou as seguintes premiações nacionais: Menção Honrosa
pelo poema “Anel de formatura”, no concurso da Biblioteca Prof. Gerson Alfio
de Marco, em Descalvado-SP. Menção Honrosa pelo poema “Escolha”, no
1º Concurso Nacional de Poesia Audifax Amorim, em Colatina-ES. Menção
Honrosa pelo poema “Um beijo longo” e pela crônica “Sou de significados”,
no 9º Concurso Literário Prêmio Missões, promovido pela Igaçaba Produções,
em Roque Gonzáles-RS. Terceiro lugar com o poema “O homem, os garis e
uma casca de laranja”, no 1º Concurso de Poesia Falada da Fundação Cultural
Casimiro de Abreu, no município do mesmo nome, no Rio de Janeiro. Menção
honrosa pelo poema “Presente de férias”, no 1º Concurso Apem de Literatura,
em Marília-SP. Participação na Tribuna da OFFFLIP/RJ/2006 – evento paralelo
à Festa Literária de Paraty – para leitura dos poemas “Vento da partida” e “Anel
de formatura”. Terceiro lugar com o conto “Os enterros”, no 8º Concurso de
Literatura – 2006 da Fundação Cultural de Canoas-RS.
196
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
197
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
198
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
sentir prazer, o que poderia tirar o foco de sua tarefa primordial de procriar e cuidar
dos filhos e da casa.
No Egito e em vários países da África, a clitoridectomia é um ritual de pas-
sagem realizado há mais de dois mil anos com o objetivo de impedir que a mulher
obtenha prazer sexual. O ritual pode acontecer na primeira semana de vida da
mulher ou até na adolescência, onde pode ser retirada uma parte do clitóris e até os
pequenos lábios da vagina. A dor é intensa, devido à precariedade do procedimen-
to, causando, em muitos casos, infecções e esterilidade. Esse ritual é utilizado até
os dias atuais, mostrando que a luta pela liberdade sexual está longe de terminar
(MCCANNER, 2019).
SONETO ÍNTIMO
199
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Há pelo menos dois pontos a serem destacados acerca dos modos de orga-
tro lado, uma linguagem política que passa pela performance e pelo uso do
200
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
201
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
202
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
de acabamento; ou seja, ela precisa ser aperfeiçoada. Seu corpo é cheio de im-
purezas e imperfeições (tanto por conta do fator criação, quanto pelo pecado
original). Segundo Wolf (2018), essa visão fez a mulher seguir os ritos da beleza
que se propõem a queimar o corpo feminino no forno da beleza, e a eliminar
suas impurezas, dando-lhe o acabamento necessário e definitivo de outro cor-
po, moldado pelo desejo masculino.
No verso “Ela era linda e comandava até as marés” (NOBRE, 2013, p. 36),
observa-se que o apego à beleza acontece mesmo após a superação da mística
feminina da domesticidade, onde o mito da beleza foi redirecionado, amar-
rando as mulheres na indústria da beleza compulsória, ainda que sejam es-
petacularmente independentes e profissionais, como fica claro no comando
das marés do eu lírico, pois a beleza é um fator de controle social da mulher
(WOLF, 2018).
Os versos “Não ficou adormecida esperando o príncipe chegar/ Não tinha
medo do escuro, nem do lobo” (NOBRE, 2013, p. 36) trazem a libertação do
padrão de “princesa”, ensinado às meninas quando crianças. Essas meninas são
instruídas a falar baixo, sentar-se adequadamente, andar de salto e com lindos
vestidos, e o pior de tudo é a submissão vinculada à figura do príncipe, que
aparece para salvá-la de seu cruel destino. O eu lírico liberta a si mesma e a ou-
tras com suas palavras, ressaltando a importância da independência feminina
para que elas tenham voz e não fiquem presas a relacionamentos abusivos, em
razão, por exemplo, de dependência financeira (MCCANNER, 2019).
A libertação apresentada pelo eu lírico também é evidente nos versos “Era
uma vez uma mulher de cabelos curtos/ Que não gostava definitivamente de
sapatinhos de cristal” (NOBRE, 2013, p. 36). Aqui também é desconstruída a
beleza da mulher que normalmente é vinculada aos cabelos longos e ao uso de
sapatos brilhantes. Os versos “Era uma vez uma mulher normal/ Gostava de
gengibirra, muita folia e suor/ E que ninguém queira apagar o seu belo e doce
203
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
facho!” (NOBRE, 2013, p. 36) também reforçam essa quebra de padrão, trazen-
do uma mulher que se diverte, que sua e que tem seus desejos sexuais libertos.
204
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
205
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
O estupro marital não existia na lei até o século XX. Um retrato dessa visão do-
minadora do homem aconteceu no século XVII, quando o juiz inglês, Sir Matthew
Hale, determinou que o estupro conjugal não poderia existir judicialmente. Ele de-
fendia que o casamento dava plenos poderes ao homem sobre o corpo da mulher,
e que ela ao se casar consentia o sexo pelo resto da vida com o marido. O estupro
matrimonial só se tornou crime no século XX, quando foi estabelecido pela ONU,
como uma violação de direitos humanos, em 1993. No entanto, apenas 52 dos 193
países integrantes da ONU o consideram crime, e grande parte desses países que
não acataram essa visão baseiam-se em discursos religiosos que são conduzidos por
homens, fazendo com que o direito da mulher seja extirpado (MCCANNER, 2019).
A partir de 2010, com a amplitude da quarta onda feminista, as manifesta-
ções públicas aumentaram em todo o mundo, lutando contra a visão condenatória
social sobre a vítima de estupro. Um dos movimentos mais importantes ocorreu em
2011, em Toronto, Canadá, com a Marcha das Vadias. O termo faz referência à
mulher que, quando violentada, era condenada por estar utilizando trajes de “va-
dia”, fazendo com que o “instinto sexual” masculino agisse. O movimento já chegou
à sétima edição e luta cada vez com mais veemência contra essa visão machista,
deixando clara a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo (MCCANNER,
2019).
No Brasil, atualmente, a militância feminista jovem luta pela causa através
das redes sociais. Djamila Ribeiro é uma dessas ativistas que lutam pela causa, atra-
vés de suas publicações em livros e por meio da Internet. A violência sexual, o assé-
dio no transporte público e as agressões psicológicas têm ganhado visibilidade na
sociedade, através das hashtags de denúncias e mobilizações. Esses movimentos que
se iniciam nas redes sociais, perpassam para manifestações de rua e ações judiciais,
incentivando as mulheres a lutarem por direitos básicos, como liberdade e respeito
(RIBEIRO, 2018).
206
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
MINHA LINHAGEM
Sou daquelas
Que mete o nariz
Onde não é chamada
Sou mulher para ser amada
Sou daquelas para quem
É tudo ou nada
Não aguento gente
Que é só fachada
Abrigo os sonhos
Em enseadas felizes
Faço revoadas
Com minhas cicatrizes
Sou de uma linhagem
Que não nega a jornada
E toda a minha linguagem
É de mulher mal comportada
(NOBRE, 2013, p. 52)
207
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as trabalhadoras ga-
nham, em média, 20,5% menos que os homens no país. Esse dado ratifica a im-
portância da temática utilizada por Carla Nobre, pela luta por seu espaço e por
igualdade social.
Além da diferença salarial, as mulheres também estão vulneráveis ao julga-
mento masculino no ambiente de trabalho. Um dos grandes problemas relaciona-
dos ao mercado é o chefe que qualifica o trabalho de acordo com a idade, a beleza
e a ausência de filhos. O número de casos de assédio sexual e moral no trabalho é
alarmante. As mulheres precisaram ter muito jogo de cintura para se manterem nos
empregos por conta de chefes assediadores, onde o “não” da mulher pode significar
sua demissão. Elas apresentam um alto nível de tensão dentro e fora do ambiente
de trabalho, em virtude da forma como se vestem, onde muitas ainda se sentem
culpadas por acreditar que incitam o assédio contra si (MCCANNER, 2019).
O julgamento social voltado para a beleza e a forma com que elas se vestem
ainda é muito presente na contemporaneidade. Os homens continuam a dissemi-
nar o poder feminino de sedução e o quanto as mulheres o utilizam para conseguir
cargos e vantagens no trabalho (WOLF, 2018). Enquanto uma pesquisa de 2017 do
Datafolha, divulgada no jornal virtual A tarde, demonstra que os casos de assédio
sexual no Brasil ainda são uma preocupação para as mulheres, 42% das brasileiras
afirmaram já terem sofrido assédio no ambiente de trabalho.
O poema “Fêmea” (NOBRE, 2013, p. 54) traz a visão social da mulher que
teve vários casamentos quando se utiliza do termo “mulher usada”, descre-
vendo a discriminação da sociedade que ainda remete aos séculos passados,
em que a mulher divorciada era subjugada como má esposa e/ou má mãe. No
entanto, a realidade é outra, pois grande parte das mulheres do século pas-
sado assumiu o papel de “mulher perfeita”, aceitando todas as condições de
208
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
FÊMEA
209
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
210
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
De acordo com Wolf (2018, p. 31), “o mito da beleza não tem absoluta-
mente nada a ver com as mulheres, ele gira em torno das instituições masculi-
nas e do poder institucional dos homens”. Diante de tal afirmação, a conclusão
que se tem é de que as mulheres continuam seguindo os padrões estabelecidos
pela sociedade patriarcal e tentam ao máximo encaixar-se nele, mesmo diante
da evolução do movimento feminista. Esse padrão inalcançável, estabelecido
por eles, acaba trazendo vários transtornos à vida da mulher, que, por sua vez,
acaba recorrendo a cirurgias plásticas e a dietas doentias. O Brasil está em se-
gundo lugar no ranking dos países que registram o maior número de cirurgias
plásticas no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. O número de ci-
rurgias cresce a cada ano, mesmo diante de crises econômicas atuais. Naomi Wolf
(2018, p. 26) ratifica essa realidade quando diz que seguimos numa condição pior
que a das mulheres das décadas anteriores, quando se fala em padrão de beleza:
podemos realmente estar em pior posição do que nossas avós não libera-
entre a maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e
equilibradas, existe uma “subvida” secreta que envenena nossa liberdade: im-
211
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
212
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
E eu gosto
Meu jogo é aberto
E eu posso
Minha vontade
Bole no mundo
Não sou de esconder as estrias
Não tenho medo da celulite
Eu sou Fada
Dama da noite
Afrodite
Não me venha com papo furado
De tia ou madrinha
Minha bunda é caída,
Sim, senhor!
E não é por isso que eu vou
Tapar o sol com a peneira
O que eu não tolero
É asneira
Eu sou uma mulher inteira
Plena de desejo
Não tenho medo de olhar,
De arranhar, de gritar...
Só não me venha
com modelos
Que eu não sou de apelar
Eu ando no mundo
Com o salto
que eu quiser
Eu me jogo do trampolim
me atiro sem para quedas
fumo
tomo gim
Se for preciso
mando até a merda
Cansei de ser sereia
Viúva negra
Bela adormecida
Chapeuzinho vermelho
Com medo do lobo
Eu? Medo?
Eu quero é comer o lobo!!!!
Principalmente se ele for mau
213
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Lindo
E beijar devagar
E gostoso...
Eu quero é ser
Aranha caranguejeira
Quero ser de ostentar
Quero ser Mulher
Pronta para arrasar
(NOBRE, 2013, p. 56-59)
Os versos “Só não me venha/ com modelos” (NOBRE, 2013, p. 56-59) re-
forçam o padrão estético da atualidade, em que as mulheres fazem loucuras
para emagrecer e alcançar a “beleza” das modelos magérrimas das capas de re-
vistas. Wolf (2018, p. 28) afirma que “o peso das modelos despencou para 23%
abaixo do peso das mulheres normais, a incidência de transtornos alimentares
aumentou exponencialmente e foi promovida uma neurose em massa”. Tal
neurose é uma das formas de controle da mulher, o que antes era feito através
do casamento, controle de natalidade e situação financeira.
Nos versos “Cansei de ser sereia/ Viúva negra/ Bela adormecida/
Chapeuzinho vermelho/ Com medo do lobo” (NOBRE, 2013, p. 56-59), aten-
ta-se ao padrão feminino criado pelos contos de fadas. Nesse contexto, Wolf
(2018, p. 94) afirma que a “cultura estereotipa as mulheres para que se ade-
quem ao mito, nivelando o que é feminino em beleza-sem inteligência ou in-
teligência sem beleza”. Ou seja, as mulheres devem escolher entre uma mente
ou um corpo desenvolvido, os dois não. Segundo a cultura masculina, uma
mulher que demonstre personalidade não é desejável, pois o padrão masculino
e seu horizonte de expectativa requerem a presença de mulheres ingênuas. A
mulher passa a ser, assim, um objeto estético para contemplação. Estés (2018)
ratifica a visão de Wolf quando afirma que nos esforçamos demais para conter
os impulsos e as contrações da criatura selvagem e para nos adequarmos ao
padrão de damas educadas, recatadas, contidas e reprimidas.
214
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
215
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
216
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
217
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
218
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
A crítica social em relação à mãe que cria seu filho sozinha é severa. Por
isso, muitos movimentos vêm tentando mudar a nomenclatura de “mãe soltei-
ra” para “mãe solo” com o objetivo de mudar a forma como são vistas pela so-
ciedade. As mulheres reivindicam respeito, mostrando a cada dia seu profissio-
nalismo, seu cuidado com os filhos, sua capacidade na criação dos mesmos e a
manutenção dos lares, sozinhas. Apesar de elas suprirem todas as necessidades
de sua casa, desdobrando-se em várias jornadas, o sentimento de culpa é uma
realidade, pois ainda há quem encontre defeitos nessa conduta, considerando
que isso não é suficiente, ou que falta tempo para várias das tarefas e compor-
tamentos sociais “padrões” que são disseminados por julgamentos alheios. Elas
219
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
220
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
Referências
BARRETTO, Yasmim. Assédio sexual no trabalho vitima cerca de 42% das
mulheres. Jornal A Tarde, 01 de nov. de 2018. Disponível em: https://atarde.uol.
com.br/brasil/noticias/2008848-assedio-sexual-no-trabalho-vitima-cerca-de-
42-das-mulheres. Acesso em: 13 jan. 2020.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2009.
BÍBLIA, A. T. Gênesis. In BÍBLIA. Português. Sagrada Bíblia Católica: Antigo e
Novo Testamentos. Tradução de José Simão. São Paulo: Sociedade Bíblica de
Aparecida, 2008, p. 18.
COSTA, Gilberto. Estupro bate recorde e maioria das vítimas é de meninas
até 13 anos. Jornal Agência Brasil, Brasília, 10 de set. de 2019. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/estupro-bate-recorde-e-
maioria-das-vitimas-sao-meninas-de-ate-13-anos. Acesso em: 11 jan. 2020.
EFRAIM, Anita. Chefiando 39% dos lares, mães solo ainda sofrem preconceito.
Jornal O Estadão, São Paulo, 08 mar 2017. Disponível em: https://emais.
estadao.com.br/noticias/comportamento,chefiando-39-dos-lares-maes-solo-
ainda-sofrem-preconceito,70001690374. Acesso em: 13 dez. 2019.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher. Trad. Waldea Barcellos. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Explosão feminista: arte, cultura,
política e universidade. 2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Informativo digital.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_
informativo.pdf. Acesso em: 15 dez. 2019.
MCCANNER, Hannah [et al]. O livro do feminismo. trad. Ana Rodrigues. 1 ed.
Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
NOBRE, Carla. Exageros e delicadezas. Belém: Cromos, 2013.
OLIVEIRA, Nielmar de. Pesquisa do IBGE mostra que mulher ganha menos
em todas as ocupações. Jornal Agência Brasil, Rio de Janeiro, 08 de mar. de
2019. Disponível: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-03/
pesquisa-do-ibge-mostra-que-mulher-ganha-menos-em-todas-ocupacoes.
Acesso em: 10 jan. 2020.
221
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. Entre o ser e o estar: o feminino no
discurso literário. Guairacá - Guarapuava, Paraná, n. 25 p. 81-102. 2009.
Disponível em: https://revistas.unicentro.br/index.php/guaiaraca/article/
view/1125/1082. Acesso em: 26 ago. 2019.
VIDEIRA, Piedade Lino. Marabaixo, dança afrodescedente: significando a
identidade étnica do negro amapaense. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra
as mulheres. Trad. Waldéa Barcellos. 3 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
222
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
223
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
224
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
nece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’
225
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas repre-
uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais
O autor assegura ainda que “não há identidade em si, nem mesmo uni-
camente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja,
identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética. A iden-
tificação acompanha a diferenciação” (2002, p. 183). Entende-se, assim, que
afirmar a identidade e marcar a diferença envolvem operações de exclusão e
inclusão, exigindo, para tanto, complexas relações interacionais, seja entre
pessoas ou entre personagens.
Esse fator relacional faz referência ao próprio caráter adaptativo da cul-
tura e da natureza humana, numa espécie de “processo de automoldagem”, no
dizer de Eagleton, que defende a ideia de que, “Se somos culturais, também
somos parte da natureza que trabalhamos. Com efeito, faz parte do que carac-
teriza a palavra ‘natureza’ o lembrar-nos da continuidade entre nós mesmos e
226
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
nosso ambiente, assim como a palavra ‘cultura’ serve para realçar a diferença”
(2005, p. 15).
Em outras palavras, a identidade é mediada pelo contexto, a partir dos
grupos aos quais o sujeito pertence. Assim, ao mesmo tempo em que ele tran-
sita por uma coletividade que lhe é externa, constitui-se como sujeito ao se tor-
nar parte dessa coletividade. É importante destacar que, embora esse processo
de construção social da subjetividade não envolva possibilidades de escolha,
isso não significa o engessamento do indivíduo ao seu meio. Ao contrário, é
nesse contexto de interdependência com os demais que surge a diferença.
Dessa forma, os moradores do Beiral agem sobre o local onde vivem, ade-
quando-o às suas necessidades, ao mesmo tempo em que o local exige certa
passividade desses habitantes ao moldá-los “à força”, como bem descrito por
Simeão e pelos outros personagens, como veremos a seguir.
227
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
como uma marca de pertença, uma vez que é nessas periferias que o tecido
rar-se membro de uma dada tradição, o autor periférico não apenas atestaria
228
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
229
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada por várias gera-
ções de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram, e que
ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é constituído por redes públicas
sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que
230
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
não cabe à narrativa poética reproduzir o que existe, mas compor as suas
do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade só podem ser conse-
231
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
de cada um com o lugar. Esse lugar é repleto de material capaz de ser trans-
formado em ficção pelo poeta, embora este revele a intenção de construir um
retrato que se pretende fiel, e aqui vale lembrar Costa Lima, para quem “uma
teoria da ficção não pode ser empreendida sem se levar em conta as relações
do produto ficcional com a realidade que transforma” (LIMA, 1989, p. 130).
Realidade transformada em produto ficcional e vice-versa, é assim que o
poeta elabora cada um dos seus personagens, como veremos a seguir.
GENÉSIO
CHICO RIBEIRO
Rio branco
sem ponte concreto
e faróis
travessia com balsa
balseiro
232
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
travessando esperanças
ilusões, mercadorias
homem da navegação
nossa ponte
nosso bálsamo
(PRETO, 1987, p. 23)
XIKINHA
Por sua vez, Xikinha é a macuxi ribeirinha, cuja saúde “vigora como fosse
uma fonte de vida”. O poema aponta para a nítida descrição feita pelo eu lírico dos
traços caracterizadores dessa mulher “pescadora sensível da beira do rio”, de beleza
233
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
pura, pernas firmes, falar claro, com energia e garra, cujo “perfil macuxi transmite a
essência / da pureza de uma bela e forte mulher”. O poeta suspeita que a fonte disso
seja “as brisas do rio branco” ou o “vento forte”. Seja como for, ele tem a certeza que
mesmo na velhice (“tua bengala”), ela ainda será capaz de subir o barranco.
MARIA
SIMEÃO
Cortei a mata
e a fiz campo
234
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
plantei e colhí
o meu sustento
gados brotaram
de meu suor
lutei com onças
cobras e jabotis
amarelo fiquei malária
da febre amarela escapei
fugi do verde hepatite
e vivi no meio
do verde esperança
dominei a natureza hostil
e a transformei em paraíso
e nele quero o meu sepultamento
sem que ele morra jamais
(PRETO, 1987, p. 53)
235
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
paraíso a ser preservado, oriundo dos relatos de viajantes e dos interesses que sem-
pre envolveram a região.
Genésio, Chico Ribeiro, Xikinha, Simeão e Maria: cinco personagens cujas
identidades refletem o Beiral, ao mesmo tempo em que também são refletidas por
ele. Para Anatol Rosenfeld, “a personagem do poema lírico não se define claramen-
te” (2009, p. 23). Contudo, o poema intitulado Beiral caracteriza e dá vida a esse
lugar de forma tão viva e sensorial, que sua definição como personagem maior da
obra é operada muito claramente. Há, nos versos, um eu lírico atento à descrição
da paisagem que envolve essa região, comparando-a a cada momento do dia – ma-
nhã, tarde e noite (relacionam-se com a “divisão” interna do poema).
BEIRAL
Manhã
vento sol banzeiros
escova água e sabão
batida de roupa escovada
na tábua da beira do rio
espumas que descem ligeiras na correnteza
bolhas que explodem
sonhos ilusões
tarde
brisa sombra remanso
anzol linha e minhoca
fisgadas erradas
espertos mandis
noite
batom perfume e som
unhas pintadas
corpo gracioso
paixão amorosa
delírios
feminina
mulher
(PRETO, 1987, p. 74)
236
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
Referências
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
BRAIT, Beth. A personagem. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002.
237
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
CALVINO, Ítalo. Exatidão. In: CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo
milênio. 3. ed. Trad. Ivo Barros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EdUSC, 2002.
EAGLETON, Terry. Versões de cultura. In: EAGLETON, Terry. A idéia de
cultura. Trad. Sandra Castelo Branco. São Paulo: EdUnesp, 2005. p. 09-50.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática,
2002. Série Princípios, 207.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Minimizar identidades. In: JOBIM, José Luís
(Org.). Literatura e identidades. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 115-124.
HALL, STUART. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
JOBIM, José Luís. ABRALIC: Sentidos do seu lugar. Rev. Brasileira de Literatura
Comparada, Rio de Janeiro, 8, 2006, p. 95-112.
JOBIM, José Luís. Metapoética e estética ou meta-análise e exotismo,
questões da Amazônia ou de todas as periferias? Revista Brasileira de Literatura
Comparada, v. 19, n. 31, 2017, p. 86-95.
JOBIM, José Luís. O lugar na história da literatura. Desenredo: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v.
1, n. 1, p. 41-52, jan.-jul. 2005.
JOBIM, José Luís. Trocas e transferências literárias e culturais: do nacional
aos blocos transnacionais. In: JOBIM, José Luís (org.). Trocas e transferências
culturais: escritores e intelectuais nas Américas. Niterói: EdUFF; Rio de
Janeiro: De Letra, 2008.
LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginação nos Tempos
Modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
MIBIELLI, Roberto. Camadas de identidade: do Roraimeira e as estratégias
de construção e legitimação de uma identidade poética para Roraima aos
poetas da geração 90/00. In: NASCIMENTO, L. M. do; MIBIELLI, R.; e
FIOROTTI, D. A. Nós da Amazônia: literatura, cultura e identidade na/da
Amazônia (orgs.) Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014, p. 153-176.
OLIVEIRA, Rafael da Silva; WANKLER, Cátia Monteiro; SOUZA, Carla
Monteiro de. Identidade e poesia musicada: panorama do movimento
roraimeira a partir da cidade de Boa Vista como uma das fontes de inspiração.
Revista Acta Geográfica, Boa Vista-RR, ano III, nº 6, p. 27-37, jul./dez. de 2009.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PRETO, Zeca. Beiral. Boa Vista-RR: Roraimeira Produções Artísticas, 1987.
238
Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto
239
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
A Amazônia literária, em que pese sua condição periférica (na maior parte
do tempo), conviveu e convive com uma diversidade de temas, histórias literá-
rias e com volumes de produção de publicações diversos, de acordo com o lo-
cal da região do qual se fala. Historicamente, para os locais mais urbanizados,
beneficiados pelo ciclo caucheiro, que teve como consequência a Belle Èpoque
Tropical, tais como Manaus e Belém, há todo um período de pujança e de im-
portação (para o bem ou para o mal) e circulação de ideias e produtos culturais
que os diferencia dos demais lugares/lugarejos da região. No entanto, mesmo
em se tratando das capitais que mais se desenvolveram nesse período, as his-
tórias se diferenciam, bem como a circulação de bens da cultura: Manaus e
Belém, também não são semelhantes.
Os contrastes entre os pequenos povoados ribeirinhos isolados da
Amazônia e suas cidades pequenas já são grandes, imagine se comparados às
cidades médias ou mesmo às grandes da região. As carências e as disparidades
ocorrem de tal modo a ensejar, por exemplo, a crença de que em boa parte
desses locais não há cultura. Também, pudera: sem cinemas, sem livrarias, sem
bibliotecas (quando muito as escolares, que, dependendo da sensibilidade dos
gestores, funcionam como bibliotecas comunitárias, ou não), sem galerias de
arte, sem exposições, museus, conservatórios, orquestras e com uma série de
outras carências, em relação aos grandes centros urbanos, a população, no seu
senso comum, se entendia por não haver cultura efetivamente nesses locais.
A quantidade de comunidades indígenas transculturadas, no seu todo ou
em partes, deixadas à margem pelo poder público, em alguns casos em situação
de mendicância, também contribuíram para que essa crença se difundisse. Em
241
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
242
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
243
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
244
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
35 É necessário abrir um parêntesis para explicar a gênese deste texto e nesse ato, assumir a primeira pessoa do
singular, retomando, depois a primeira do plural, nossa predileta. Em 2014, organizamos e publicamos, Lucia-
na Marino do Nascimento, Roberto Mibielli, e Devair Fiorotti, o volume intitulado Nós da Amazônia (2014), pela
editora Letra Capital, no qual publiquei, sob o título Camadas de Identidade: do Roraimeira e as estratégias de cons-
trução e legitimação de uma identidade poética para Roraima aos poetas da geração 90/00, a primeira parte desse
texto, agora continuado. Naquela ocasião, foram analisados seis poetas diferentes dos de agora: Eliakin Rufino,
Edgar Borges, Devair Fiorotti, Cora Rufino, Avery Veríssimo e Francisco Alves. Em texto publicado no mesmo ano
(2014) pela coleção do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRR, Estudos de Linguagem e Cultura Regional:
Regionalismo e interdisciplinaridades. Col. Linguagem e Cultura Regional Vol. 3, incluí, numa versão deste mesmo
texto, sob o título Babel que Boa Vista comeu: poesia e estratégia identitária na gênese do Roraimeira e nos poetas da
atualidade, uma análise de um poema de Sony Ferseck. Em função do número de poetas e da limitação de laudas
para os capítulos do livro, optei por fazer e publicar essas leituras em etapas, das quais esta é a segunda.
245
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Tomara
36 Alguns dos textos escolhidos para a coletânea são ainda inéditos, razão pela qual não podemos oferecer outra referência que não “acervo
246
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
É de notar, também, que existe uma relação em espiral entre dois uni-
versos nessa letra, de um lado o mundo externo ao poeta/compositor, supos-
tamente pertencente à aldeia de quem o lê, para o qual ele deseja coisas boas,
que acredita não existirem em qualquer realidade. De outro lado, o universo
interno do poeta, sua composição, para a qual ele se volta, um pouco meta-
poeticamente, se referindo ao “encalhe” da “poesia” da “aldeia” (externa) no
“refrão dessa canção”, que canta e que compõe. É como se o poema/letra ideal
aspirasse para si esse universo real da aldeia e só pudesse existir através dele. A
inversão entre interno e externo continua, de modo a permitir que ao abrir “a
porta do quintal, podes entrar”, esse indivíduo da aldeia possa penetrar no rei-
no híbrido do poeta (entre real e ideal) – o Pará – e tome “logo esse açaí, mata
a vontade”, se transportando para essa Amazônia. A devoração dos “olhos do
Pará”, mais do que uma imagem antropofágica, é um convite para que o leitor,
dessa aldeia para a qual se vaticina a poesia, visite a alma do compositor, e dela
se alimente, em função de seu próprio desejo de açaí e do desejo do poeta pelo
seu Pará natal. É de se convir que o açaí é iguaria majoritariamente paraense,
daí entender-se ser uma reminiscência essa leitura híbrida desse local imagi-
nário, fruto do desejo.
Regional, em quase tudo, esse poema acrescenta elementos composicio-
nais muito mais complexos que a mera alusão regionalista. Ao trançar exter-
no e interno do universo do poeta e do universo poético, o poema se refugia
numa perspectiva que procura embaralhar o desejo de pertença, tão comum
nas composições apenas regionais, extrapolando os limites dessa regionalida-
de e tornando-se um convite para a reflexão: Mas, afinal de contas, seu lugar
tem isso? Assim, o poeta veicula ideais que vão além do local, propondo ao seu
leitor que busque essas “rosas vivas na tua cabeça”. Pode-se dizer, ainda, que ele
propõe que se veja a Amazônia com outros olhos, que não apenas o do vazio
247
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
demográfico e da necessidade de integração, uma vez que seu povo pode ter
“verso em cada esquina” em que “mora”.
Este trajeto parece ser o contrário do experimentado pelo DJ internacio-
nal que fixou residência em Estocolmo na Suécia, onde segue com intensa
produção poética (versosdameianoite.blogspot.com ) e que além disso, é per-
former, jornalista e poeta, com três livros publicados Fúria, pólvora e escracho
– poemas subterrâneos (2001), no qual decreta ser (nesse primeiro momento de
sua poesia) “tatuagem no peito da rebeldia” (p.3), Um Macuxi na Escandinávia
(2005), do qual extraímos o poema abaixo Caboclo punk, e Quando a mente cala
o coração fala (2016), no qual, mudando profundamente os rumos e temas de
sua poesia, passa da crítica social, predominante em seus dois livros anteriores,
para uma jornada poética pela Índia iogue, além de diversos textos de teatro
encenados. Gean Queirós, todavia, difere, nesse poema, de Zeca Preto, por ado-
tar um tom mais combativo, menos utópico e ainda mais híbrido (agora em
relação à temática).
Ativista intenso da poesia durante 10 anos, no Rio de Janeiro, com seu
evento cultural “Versos da meia-noite”, participou de diferentes antologias e
foi integrante do grupo “Voluntários da pátri””, viajando pelo Brasil com músi-
ca e poesia (ao lado de Tico Santa Cruz, Tavinho Paes e outros artistas), Gean
Queirós, que também atende pelo nome artístico de Jokassoul Queiróz, quan-
do promove suas festas do movimento Favela Viking, na Suécia (onde vive atu-
almente), e que em Roraima, é atualmente conhecido pelo apelido Macuxiva,
nos dá aqui uma versão ainda mais carregada, talvez pelo olhar distanciado, do
macuxi37 diante do mundo, de uma poesia que chegou a participar da segun-
da geração Roraimeira, para depois, distanciando-se desta, adquirir um outro
matiz.
37 “Macuxi”, além de designar a principal etnia presente na região de Boa Vista (capital do Estado) e cercanias,
248
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
Caboclo punk
249
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
250
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
251
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Cuba. Faz parte do coletivo arte-literatura caimbé (como uma de suas funda-
doras), atua no projeto Caminhadas Literárias, que procura difundir o hábito
da leitura nas comunidades indígenas e não indígenas de Roraima, trabalhou
com teatro, dança, e é compositora (premiada em Festivais de música locais e
executada por artistas da terra, faz parte da iniciativa – coletivo – “máfia do
verso” e publica poesia regularmente em seu blog (re)poetizando, disponível
em http://www.repoetizando.blogspot.com.br/. Dona de um trabalho marcan-
te, essa bela poeta disputou espaço nos mesmos festivais em que os membros
do Roraimeira foram seus rivais/ concorrentes. Atuando como agitadora cul-
tural, manteve e mantém intenso convívio com todos os membros do grupo.
No entanto, apesar de pertencer ao mesmo ambiente, apesar de todo o
convívio, sua poesia não parece apontar na mesma direção da dos colegas, uma
vez que sua temática procura aproximar-se da natureza, do natural, a modos
da temática dos heiku, sem, contudo, entrar muito no mérito da cor local, sem
apontar uma necessidade premente de criação de um modelo identitário para
Roraima. O poema Folhas, por exemplo, chama a atenção nesse sentido:
Folhas
Eram leves
Como as pétalas de rosas
Sutilmente flutuando sobre o rio
Como folhas
Que se perdem pelas águas
Como impávido teor de calafrio
Eram claras
Como as faces de outras virgens
Que se entregam
Aos caminhos dos amantes
Como rosas
Soltas num vento tão frio
Eram passos
Sobre o trilho dos errantes
252
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
Nas canções
Que soam dias tão tristonhos
Bebe a palidez
Da face hoje descrente
Misturadas
No temor de anjos risonhos
Devoradas
Por mortais de olhar temente.
(ADAIRALBA, 2016, p. 15)
253
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
38 Grifamos o primeiro verso que funcionará como título em poemas sem título. Esse poema pertence ao acervo do
255
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
uma realidade além das fronteiras locais, afastando, ainda que precariamente,
as personagens que parecem protagonizar a cena poética da possibilidade de
um nativismo evidente. Até porque não há “balas de alcaçuz”, hoje em dia, à dis-
posição para consumo em Roraima, muito menos em comunidades indígenas.
A cena, antes de mais nada, parece descrever um conjunto de catástrofes
“naturais”, que em tudo contribuem para a construção de um quadro apocalíp-
tico. Elementos como a inexorabilidade da “correnteza” (que “nos levará”), que
pode muito bem fazer referência às constantes cheias dos rios amazônidas, e a
“ventania” que independentemente da vontade humana “nos trouxe até aqui”,
tornam o quadro ainda mais autenticável, do ponto de vista da cor local.
Mas, se as referências podem, de algum modo, ser identificadas com essa
região, também podem ser imputadas a muitas outras regiões do planeta, onde
correntezas e ventanias são comuns. Esse descompromisso, esse aproximar-se
utilizando elementos que tanto cabem na realidade do lugar, quanto em outra,
é parte da atmosfera que se evidencia e se constrói em torno da temática do
poema. É com o verso “esqueça as profecias e os compromissos”, bem como
com sua corruptora sequência “que eu compro pra você balas de alcaçuz”, que
o eu poético (aqui construído em primeira pessoa) procura convencer seu(-
sua) interlocutor(a) a esquecer os momentos ruins e a “lembrar dos dias azuis”,
como se as “balas” prometidas pudessem substituir a ciência enquanto consci-
ência. Equivale dizer, como se se pudesse comprar o apagamento da memória
com distrações, como “balas de alcaçuz”, que de algum modo abrandassem o
sentimento de culpa ou o de impotência diante da inexorabilidade do destino.
O estranho da construção em si é que pouco leva a crer que se esteja fa-
lando do local Amazônia. Na verdade, não fossem as anáforas “aqui” e “isso” e a
ideia de proximidade com a realidade local, subsumiria ao restante do texto e
à problematização da culpa que este (re)apresenta.
256
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
257
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
soa monológico) diz ser certo de que a “corrente” (aqui representando talvez
o tempo, talvez a própria torrente dos fatos incontroláveis) levará a ambos,
enunciante e provável interlocutor, inexoravelmente adiante (fato que parece
corroborar a tese de que a “corrente” represente alegoricamente o tempo, úni-
ca força a qual não é possível resistir e de que não há resistência a opor, sen-
do, portanto, inútil a resistência), evocando a tradição (aqui representada pela
“ventania” que os trouxe até ali) e dando a entender que a ideologia impede a
visão clara dos fatos (“tá na cara que a claridade entre as sombras/nos mostra
as sobras dos escombros que nos cercam”), aproximando o poema do mito da
caverna de Platão, no qual só se podia ver a realidade através das sombras pro-
jetadas no fundo da caverna. Só que neste caso, as imagens projetadas entre as
sombras demonstram apenas a catástrofe, os “escombros”, as “ruínas”. E estas
são opressivas, embora não possam ser vistas ordinariamente, sendo visuali-
zadas apenas através das sombras. A desesperança é a resposta a esse mundo
cruel. E esquecer (embora o poema propugne que antes devamos lembrar de
como a ventania nos levou ali) dos compromissos, do que foi vaticinado, da
utopia, trocando-os por balas de alcaçuz é também uma forma de não se de-
cepcionar, de estar pronto para mais escombros e derrotas.
No entanto, é na própria enunciação que o poema, em seu enredo, parece
guardar o maior de seus trunfos: a denúncia de como agimos em nosso tempo,
de como nos tornamos indiferentes ante o caos que adquirimos diariamente,
do quanto é sem esperanças a nossa crença hodierna, e de quão azuis foram os
dias em que podíamos acreditar, do quanto o vendaval da pós-modernidade, do
agora, da indiferença nos afastou deste passado e nos fez aceitar a falta de es-
peranças, nos fazendo pensar que, embora façamos parte disso (desde sempre)
é melhor acreditarmos que “não temos nada com isso”. De que não devemos
nos comprometer e que é “isso” que ensinamos quando viramos o rosto para
a realidade e substituímos seu amargo gosto pela doçura-amargor do alcaçuz.
258
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
Embora George Farias seja um músico que tenha chegado a Roraima al-
guns anos depois do surgimento do Roraimeira, logo se sentiu em casa e es-
tabeleceu parcerias e diálogos com todos os principais membros desse grupo.
Algumas de suas composições, francamente regionais, no tom e na proposta,
figuram entre as mais belas letras de música de Roraima. Autor de dois livros
de poemas: Vocais dos mitos (2003), livro no qual, segundo Cátia Wankler, na
apresentação, “George Farias (...) trata passados, memórias, origens” (p. 3); e
Dança dos sinos (2011), no qual George procura mesclar questões de identidade
local com temas universais, razão pela qual se considera membro da segunda
geração do Roraimeira.
Ainda assim, sua poesia não se tornou refém de uma única temática, tri-
lhando caminhos diferentes em busca de questões metafísicas, filosóficas, líri-
cas e sensuais, fato que pode ser observado no inédito poema a seguir:
Sem vida
Já não existe medo
Nem desejos
Muito menos sonhos
Que se realizem
Que renovem as forças
No corpo sem alma
Nem há calma
Nem delírios pelas noites
De abandono
Já não terá mais sono
Que as madrugadas verão
No corpo sem alma
Só um motivo permeia
Somente o acalanto passeia
Acalmando o coração da dor
É o acalanto poético
Que determinará o profético
39 Grifamos o primeiro verso que funcionará como título em poemas sem título. Acervo do autor/cedido para coletânea.
259
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Em que pese o fato de sua poesia ter um ritmo próprio, muito atento à
musicalidade das palavras, neste poema a relação entre temática e ritmo, em-
bora pareça apontar para o lirismo exacerbado dos poetas do ultra-romantis-
mo ultramarino, não abre mão da impessoalidade em terceira pessoa, fato que
faz com que nos afastemos do rótulo lírico e possamos aproximá-lo dos poetas
que compõem o volume da coletânea (Avery Veríssimo e Edgar Borges) cujo
métier de jornalistas os leva à flutuação, observação meio dândi da realidade
humana.
É o outro e não o eu poético-lírico quem sofre as dores e o vazio da alma,
sendo assim, o poema se torna uma realização voyeurística do sofrimento
alheio, um olhar que percebe, numa espécie de feedback, a morte de um ser que
sofre por amor “No corpo sem alma/Sem vida/Já não existe medo/Nem dese-
jos/Muito menos sonhos”, é que na verdade, o poema inicia com o fim; com
um corpo inerte onde não há mais “alma”, “vida”, “medo” e “desejo”. O que faz
pensar em suicídio por amor, em uma tragédia algo sheakespariana.
No entanto, a sequência do poema não deixa claro se a morte é real ou
uma metáfora para um corpo prostrado pela dor de amor, uma vez que se fala
em “abandono”, mas não se define se este “abandono” corresponde ao do pró-
prio corpo à deriva, ao “abandono” do corpo pela alma (o que corresponderia
à morte) ou de um ser por outro, deixado, assim, à própria sorte. E essa ‘sor-
te’ poderia corresponder ao rompimento brusco e inesperado de uma relação
amorosa.
Mas o poema de George Farias causa estranheza mais pela utilização de
um termo – “motivo”, do que pelo efeito de feedback que realiza. Para elucidar
a interpretação polissêmica do termo motivo, procuramos pelos seus significa-
dos dicionarizados: “adj. masculino/singular: 1) Que pode fazer mover; Motor;
260
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
2) Que determina ou causa alguma coisa. 3) Causa; razão; 4) Fim, com que se
faz alguma coisa; 5) Intuito, escopo; 6) Frase predominante em qualquer com-
posição musical.”
De fato, o poema segue seu trajeto de trás para a frente, aparentando um
feedback que não se concretiza, pois o morto, embora apareça na sequência
permeado por “um motivo” (“algo que o move ou pode fazer com que se mova”,
no sentido etimológico do adjetivo “motivo”), ou seja, como ser que se move,
que tem vida, ou seja, um ser animado (o que faz pensar na brincadeira entre
“motivo” e animado, como numa relação secundária de sentidos entre mo-
vente e ânima-alma), já teve sua morte anunciada desde o princípio do poe-
ma. Anunciada, a modos de Gabriel Garcia Marques em Crônica de uma morte
anunciada, texto no qual, desde o início, o ganhador do Nobel de Literatura
nos brinda com o episódio do assassínio de seu personagem principal, deslo-
cando o leitor em feedback para momentos antes dessa morte, ocasião em que
começamos a torcer, cada vez mais fervorosamente para que ela não ocorra.
Estratagema, aliás, fecunda e forte, mas incapaz de superar a dualidade desse
“motivo”. O termo, como vimos acima, indica em sua sexta acepção de sig-
nificado, motivo como tema musical central de uma composição. É aí que a
palavra se torna de todo intrigante, porque fugindo das acepções mais comuns,
“razão de algo” e “movimento”, ela assume a profissão do compositor, do autor
do texto, incluindo-o (talvez) na trama.
O poeta, parece querer afirmar, tal e qual Zeca Preto em seus versos aqui
lidos, que, sem a música, sem a poesia, não há alma, não há vida, ao mesmo
tempo em que aproxima os sentidos de vida, alma (ânima), a movimento, amor
e música/poesia, colocando-os todos no mesmo campo semântico.
A expressão “escopo do amor” faz atentar para o fato de que tudo, até a dor
faz parte do universo amoroso, inclusive a morte. Aliás, não é incomum na li-
teratura e na poesia a temática que relaciona Eros e Thanatos e/ou Perséphone
261
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
e Hades, sendo ainda mais comum a percepção de que essa relação é comple-
mentar e, embora dolorosa e triste, bela. São os contrários que se complemen-
tam, assim como a poesia/amor e a vida/morte e sem isso, nos quedamos sem
alma, sem isso não há “Sentimento de alma viva/no escopo do amor”.
Nossa última poeta desse ensaio, Eli Macuxi, é na verdade, de nascimento,
Elisângela Martins, paulistana que adotou Roraima como terra-mãe e que des-
de cedo procurou deixar clara sua filiação, incorporando o pseudônimo de Eli
Macuxi, no qual incorpora o gentílico dos filhos de Roraima. Professora uni-
versitária do curso de Artes Visuais da UFRR, essa poeta adota como tema cen-
tral em seu livro, editado pela Máfia do Verso, volume nº 3, Poemas para quem
odeia (2013), do qual extraímos o poema abaixo, a temática do amor como
forma de resistência. A ótica geral de seus textos, aliás, é essa: feminina, aman-
te, cotidiana e fervorosamente ativista. É o caso, por exemplo de seu poema,
escolhido para essa leitura:
Árvore genealógica
Geralda
uma mulher branca
fugiu com um índio
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre
Benvinda
uma mulher branca
fugiu com um negro
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre
Wanda e Lucas
filhos de brancas fugidas
fugiram juntos
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre
262
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
eu filha
eu fruto
admito:
acredito na fugaz
felicidade das fugas
e nas fugas
como felizes finais.
(2013, p.16/17)
263
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
para frente, invertendo a leitura, diferenciando a ideia de final feliz dos contos
de fada e antecipando-o para o ato em si, que busca o fim da opressão e o final
feliz. É como previu Benjamim, nas suas famosas Teses sobre o conceito de histó-
ria (1940), “é preciso escovar a história a contrapelo”, coisa que a historiadora e
poeta Eli, bem faz, distinguindo entre a ideia de final feliz, do fim da fuga em si,
da própria fuga da opressão como felicidade final. É a libertação através da fuga
quem prevalece sobre o sonho de princesa. É o empoderamento a posteriori de
gerações que foram condenadas pela moral e pelos bons costumes.
E daí, se o final feliz que todos esperam é a trivial história de amor com
data de validade? O importante é dar-se o direito de não ser feliz para sempre,
nos moldes da imposição social, mas ser feliz no ato de revolta em si, na capaci-
dade de mudar o mundo, no domínio do próprio corpo, da geração da própria
prole (com quem se deseja, e não com quem o pátrio poder determina) e da
própria vontade. É preciso abolir essa aparência virginal punitiva: “É Preciso
ser, essa metamorfose ambulante”, como queria Raul Seixas, ainda que esse
reconhecimento demore algumas gerações para vir e perceber que a felicidade
esteve ali.
E ali esteve exatamente onde a sociedade acreditava haver a tristeza da
fuga do lar, com todas as agruras que isso pode acarretar: a falta de um casa-
mento de revista, o afastamento da família, a falta de dinheiro, de estrutura,
etc. A felicidade, como se viu, esteve em libertar-se, em adonar-se de si.
Os seis poetas que lemos e discutimos nesse texto, obviamente não estão
limitados a esses poemas e temas, muito menos, sua poesia se limita a tentar
descrever ou propor uma identidade para Roraima ou não, antes pelo contrá-
rio, sua produção, vária e de qualidade, os colocou na condição em que hoje
estão. Se alguns são ou foram estigmatizados pelas posições que defendem ou
defenderam majoritariamente ao longo de suas trajetórias, cabe uma leitura
mais poética, menos arrivista, de sua obra. Mesmo que alguns, como Eliakin
264
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade
Universal
Referências
ADAIRALBA, Zanny. Movimentos inexatos. Belém: Cromos, 2016.
ADAIRALBA, Zanny. Palavras em preto e branco. Belém: Cromos, 2011.
ADAIRALBA, Zanny. Pétala de despedidas: sementes líricas de Zanny
Adairalba. 2ª ed. Vol. 30 Col. Sementes Líricas. Marabá: Literacidade, 2016.
ADAIRALBA, Zanny. Repoetizando. Belém: Cromos, 2012.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 222-232. (Obras
escolhidas, v. I)
BRASIL, Jaime. Não. Jaraguá do Sul, SC: Editora da Casa, 2014.
BRÍGLIA, Tiago Chaves; LAVOR, Claudio Chaves (roteiro). Roraimeira
Expressão Amazônica. Direção: Tiago Bríglia. Documentário DocTV.
Convênio MinC/SE/FNC/ Nº 261/2007. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=p3o3137NoB8. Acesso em: 27 fev. 2020.
265
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
266
Sobre os Autores
Sobre os Autores
267
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
268
Sobre os Autores
269
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
270
Sobre os Autores
271
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Roberto Mibielli
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990),
possui mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2000),
doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2007) e pós-
-doutorado também pela UFF (2016). Atualmente é professor Associado da
Universidade Federal de Roraima. Atua na área de Letras, trabalhando prin-
cipalmente os seguintes temas: ensino de literatura, teoria e ensino, litera-
tura brasileira e literatura da/na Amazônia. Coordena o Programa de Pós-
graduação em Letras da UFRR. Criou e coordena o Grupo de Estudos Literários
Comparados, Cultura e Ensino de Literatura (DGP/CNPq), assim como atua
nos grupos de pesquisa: Permanência e atualização das fontes textuais ame-
ríndias nas literaturas americanas – o caso Circum-Roraima, coordenado pelo
Professor Fábio Almeida de Carvalho (PPGL/UFRR) e As trocas e transferência
literárias e culturais e a circulação literária e cultural em perspectiva histórica,
coordenado pelo Professor José Luís Jobim (PPGLit/UFF). É poeta, escritor e
fundador do coletivo Máfia do Verso. Coordena, desde 2018, o projeto de ex-
tensão Literatura em Roraima: Diálogos e Leituras.
272
Sobre os Autores
273
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S
Federal do Amapá, do qual foi coordenador entre 2009 e 2011. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente
nos seguintes temas: Amazônia, cinema, civilização, poesia, narrativa, fronteiras,
desenvolvimento, contemporaneidade e violência.
274