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Literatura, cultura e identidade

da Amazônia: circulação,
tramas e sentidos

Luciana Marino do Nascimento


Maria do Perpétuo Socorro Simões Galvão
Roberto Mibielli
Yurgel Pantoja Caldas

Organizadores
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Campus Rio Branco, BR 364, Km 4,
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Luciana Marino do Nascimento
Maria do Perpétuo Socorro Simões Galvão
Roberto Mibielli
Yurgel Pantoja Caldas

Organizadores

Literatura, cultura e identidade


da Amazônia: circulação,
tramas e sentidos

Esta obra foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico


e Tecnológico (Chamada Universal MCTIC/CNPq n.º 28/2018),
LITERATURA, CULTURA E IDENTIDADE DA
AMAZÔNIA: CIRCULAÇÃO, TRAMAS E SENTIDOS
ISBN: 978-65-990441-8-2
Copyright © Edufac 2020
Luciana Marino do Nascimento; Maria do Perpétuo Socorro
Simões Galvão; Roberto Mibielli; Yurgel Pantoja Caldas (org.)
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Esta obra foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(Chamada Universal MCTIC/CNPq n.º 28/2018), avaliada e aprovada por parecerista ad-hoc.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Federal do Acre

L533l Literatura, cultura e identidade da Amazônia: circulação, tramas e


sentidos / Luciana Marino do Nascimento, Maria do Perpétuo
Socorro Simões Galvão, Roberto Mibielli, Yurgel Pantoja Caldas
(organizadores). – Rio Branco: Edufac, 2020.
211 p.

Vários autores.
ISBN: 978-65-990441-8-2

1. Regionalismo – Amazônia. 2. Cultura. 3. Identidade –


Amazônia. I. Nascimento, Luciana Marino do (org.). II. Galvão,
Maria do Perpétuo Socorro Simões (org.). III. Mibielli, Roberto
(org.). IV. Caldas, Yurgel Pantoja (org.). V. Título.

CDD: 869.93

Bibliotecária: Alanna Santos Figueiredo - CRB 11°/1003


Sumário

Apresentação.........................................................................................7
ˍ Roberto Acízelo Quelha de Souza

1. PARTE 1
CULTURA, LITERATURA E IMAGINÁRIO.......................11

I. A voz do imaginário: o projeto IFNopap faz 25 anos............................. 13


ˍ Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões

II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário


amazônico...........................................................................................25
ˍ Liozina Kauana de Carvalho Penalva
ˍ Lorena de Carvalho Penalva

III. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela


adormecida em Três casas e um rio (1958).............................................37
ˍ Ivone dos Santos Veloso

IV. Ecos da música de outrem em obras, espaço/tempo e contextos


diversos...............................................................................................53
ˍ Anna Paula Ferreira da Silva

V. Milton hatoum e a concessão do lugar comum sobre a amazônia em


Órfãos do Eldorado...............................................................................73
ˍ Marlí Tereza Furtado

VI. A aplicabilidade dos estudos bakhtinianos em narrativas do escritor


indígena Yaguarê Yamã.........................................................................93
ˍ Delma Pacheco Sicsú

2. PARTE 2
LITERATURA, HISTÓRIA E IDENTIDADES NA
AMAZÔNIA...................................................................117

VII. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O


Instinto Supremo de Ferreira de Castro.................................................119
ˍ Veronica Prudente Costa
ˍ Henrique Andrade Germano
VIII. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle
Route, de Frank Kravigny.....................................................................141
ˍ Luciana Marino do Nascimento

IX. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da


Amazônia........................................................................................... 157
ˍ João Carlos de Souza Ribeiro

X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla


Nobre................................................................................................ 195
ˍ Jorlaíne Monteiro Girão de Almeida
ˍ Yurgel Pantoja Caldas

XI. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre
personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto............................... 223
ˍ Sheila Praxedes Pereira Campos

XII. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade............................ 241


ˍ Roberto Mibielli

Sobre os Autores.................................................................................267
Apresentação

O regionalismo, na literatura brasileira, conheceu quatro ondas su-


cessivas, cada qual num certo período e com características específicas.
A primeira tem antecedentes na década de 1830, mas só se define
claramente a partir dos anos 1860, quando se apresenta como programa
estético consciente. Inscreve-se no campo do nacionalismo romântico, e
conheceu duas vertentes. Uma delas valoriza os elementos infranacionais
como evidência da grandeza do país, à medida que converge, não obstante
sua rica diversidade, na composição harmoniosa do grande painel da na-
cionalidade. A outra procura expor as tensões existentes entre o infrana-
cional e o nacional, reivindicando a preservação daquele contra as pressões
niveladoras deste, e, no limite, chega a desembocar em atitudes separatis-
tas. José de Alencar é o representante emblemático da primeira vertente
referida, ao passo que Franklin Távora o é da segunda.
A onda subsequente do regionalismo teve lugar na virada do século
XIX para o XX. Pretendeu ultrapassar as idealizações românticas das pai-
sagens e culturas das diversas regiões, em favor de um olhar mais crítico,
sob o influxo da estética do realismo-naturalismo, mas muitas vezes não
se libertou da representação estereotipada de figuras humanas e cenários
regionais. Por simetria com o parágrafo anterior, citemos só dois represen-
tantes desse momento: Afonso Arinos e Monteiro Lobato.
Por volta da década de 1930, a ficção regionalista conhece nova fase
de destaque nas letras do Brasil. Esquematicamente, pode-se dizer que
aprofunda as tendências críticas e realistas da fase anterior, mas, ao mesmo
tempo, em certos autores, não abandona o pendor para a amenização lírica

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do viver regional. De novo, citemos só dois nomes desse período, como
representantes, respectivamente, do vigor crítico e da valorização do pito-
resco: Graciliano Ramos e Jorge Amado.
E acrescentemos que esse momento do regionalismo se prolonga
pelo menos até a década de 1960, embora a crítica – bem como escritores
publicamente reconhecidos por sua dedicação à figuração literária de pe-
culiaridades regionais – tenha passado a considerar depreciativa a qualifi-
cação de um autor como regionalista. Teria, assim, simplesmente desapa-
recido essa dimensão da nossa cultura literária, tanto que, para citar o caso
mais representativo, um Guimarães Rosa, não obstante a onipresença em
sua obra da palavra sertão, provavelmente a mais icônica encarnação entre
nós da ideia do infranacional, nada teria a ver com regionalismo, dado o
caráter universal de sua obra.
Não desapareceu, no entanto, o regionalismo, com o tabu linguístico
que baniu essa palavra do vocabulário da crítica. Obras evidentemente re-
gionalistas continuaram sendo produzidas – embora seus autores fujam do
rótulo de regionalistas como o diabo foge da cruz –, mas certamente elas
estão longe de configurar um movimento ou uma tendência. Em contra-
partida, no campo dos estudos literários, ainda que com a mesma reserva
quanto ao nome, o regionalismo vem ganhando impulso desde fins da dé-
cada de 1990 aos dias de hoje. De fato, nas universidades, na área de letras,
tanto nos cursos de graduação quanto nos programas de pós-graduação,
criaram-se disciplinas e linhas de pesquisa voltadas para produção literária
de feição regional, e isso sim parece configurar uma tendência.
Se a hipótese procede, estamos diante da quarta onda do regionalis-
mo no Brasil, agora, como uma das diretrizes do culturalismo identitário,
que tanto espaço ganhou ultimamente nas nossas instituições universitá-
rias. Acrescenta-se assim, à valorização acadêmica das identidades de etnia,

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de gênero e de orientação sexual, a identidade regional, como tópico de
pesquisa em alta entre nós.
Este Literatura, cultura e identidade da Amazônia: circulação, tra-
mas e sentidos constitui substancial contribuição para os estudos regiona-
listas. Concebido e produzido em âmbito amplamente interinstitucional,
já que organizado por docentes de diversos centros universitários, situa-
dos na região Norte – Maria do Socorro Simões (UFPA), Roberto Mibielli
(UFRR), Yurgel Pantoja Caldas (Unifap) e Luciana Marino do Nascimento
(UFRJ/Ufac) –, a obra acolhe rica variedade de questões, mas todas em tor-
no do tópico do regionalismo, especificamente em sua modalidade amazô-
nica. Assim, nela encontramos desde estudos sobre escritores específicos
– Dalcídio Jurandir, por Ivone dos Santos Veloso (UFPA); Milton Hatoum,
por Marlí Tereza Furtado (UFPA); Yaguarê Yamã, por Delma Pacheco Sicsú
(UnB); Frank Kravigny, por Luciana Marino Nascimento (Ufac); Ferreira de
Castro, por Verônica Prudente Costa (UFRR) e Henrique Andrade Germa-
no (Seduc/AM) –, uma análise comparativista – Lobato/Flaubert/Milton
Hatoum, por Anna Paula Ferreira da Silva (UFRR) – e dois ensaios dedica-
dos à poesia – respectivamente por Sheila Praxedes Pereira Campos (UFRR)
e Roberto Mibielli (UFRR) –, até reflexões sobre questões teóricas voltadas
para a problematização de identidades – imaginário, por Maria do Socorro
Simões (UFPA); estrangeiridade, por Liozina Kauana de Carvalho Penalva
(IFPA) e Lorena de Carvalho Penalva (IFPA); diversidade, por João Carlos de
Sousa Ribeiro (Ufac); feminismo, por Jorlaíne Monteiro Girão de Almeida
(Ifap) e Yurgel Pantoja Caldas (Unifap).
Coletânea de ensaios ao mesmo tempo diversificada e dotada de uni-
dade temática, o livro vem assim integrar-se ao conjunto de publicações
em torno de problemas relativos às identidades regionais, desde logo tor-

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nando-se subsídio importante para todos aqueles que se interessam por
aprofundar os conhecimentos sobre o Brasil, sua cultura e sua literatura.

Roberto Acízelo Quelha de Souza

(Crítico Literário, Professor Titular de Literatura Brasileira – UERJ)

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Parte 1
CULTURA, LITERATURA
E IMAGINÁRIO

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I. A voz do imaginário: o projeto


IFNopap faz 25 anos
Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões

O início – inspiração para ir além

Aquele não era um doente comum... contavam os pescadores lá do alto

Amazonas... Tinha dois pescadores, pescavam juntos. Quando foi um dia, acon-

teceu que um dos pescadores feriu o boto. Estavam pescando. Aí, passou uns dias,

... aconteceu que nesse dia, o outro não foi com ele pescar. Ele foi só. Aí, então, ele

estava muito longe, e aí veio aquela canoa cheia de soldado. Aí, encostou na ca-

noa junto dele e disse: – Mas por quê? O que eu fiz? – Não sei o quê, mas você está

preso, e vamos logo. Aí, ele embarcou na canoa e saiu, quando chegou no meio do

rio, aí, ele disse: – Agora feche os olhos. Aí, ele fechou o olho, e quando mandaram

ele abrir, diz que tinha um palácio. Aí, mas tudo era boto... 1

Esse trecho de uma das narrativas contadas sobre o boto é uma pequena
amostra do que corre pelo imaginário popular da Amazônia. A riqueza desse
universo composto por mitos, lendas e festas folclóricas faz parte da cultura
popular brasileira. A construção desse imaginário é consequência da miscige-
nação cultural que compõe a história do país, por meio de amostras da presen-
ça marcante de mitos greco-latinos, indígenas e africanos.
Foi por constatar as muitas influências dos mitos na cultura da Amazônia
paraense que um grupo de professores do Centro de Letras e Artes (CLA) da
Universidade Federal do Pará (UFPA), a partir de uma proposta pessoal, apre-
sentada à instituição, idealizou o projeto “O Imaginário nas Formas Narrativas
Orais Populares da Amazônia”. O ano era 1995 e o IFNopap nascia com o
1 Trecho de uma das narrativas coletadas no projeto IFNopap.

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propósito inicial de reunir, em um banco de dados, o maior número possível de


histórias contadas na Amazônia paraense. Mas, na medida em que as narrati-
vas chegavam às nossas mãos, deslumbrávamos com as possibilidades de análi-
se em níveis e abrangência diferenciados, foi o que detectei como idealizadora
do projeto. Assim sendo, o que era para ser um mapeamento das histórias ama-
zônicas, transformou-se em uma rica fonte de pesquisa, não somente na área
de Letras, mas também na Antropologia, Sociologia, Psicologia, entre outras.
Ir a campo constituiu-se uma das iniciativas basilares da proposta.
O projeto previa, portanto, a necessidade do contato corpo a corpo com
a população, que em sendo amazônida ou estando na Amazônia, por algum
tempo, soubesse ou quisesse contar histórias que, preferencialmente, fizessem
parte do imaginário regional. Assim, foram produzidos documentos contendo
orientações básicas para os pesquisadores participantes com definições sobre
o método adotado para a coleta de dados.
Primeiramente, os pesquisadores foram orientados acerca de como iden-
tificar, abordar e fazer o registro de dados dos informantes dispostos a contar
histórias, nas diversas regiões do Estado. Para tanto, a UFPA contou com a
participação de professores e alunos que compõem os oito campi avançados
da Universidade, situados nos municípios de Abaetetuba, Altamira, Bragança,
Cametá, Castanhal, Marabá, Marajó e Santarém, além dos pesquisadores do
CLA, do campus-sede da Universidade, que fica em Belém.
Esse registro foi todo realizado por meio de gravações em fitas cassetes
e, em alguns casos, fitas de vídeo. Em um segundo momento foram defini-
dos também os critérios sobre a transcrição do material gravado. O principal
critério adotado foi o de manter todas as características da fala do informan-
te, respeitando o vocabulário, construção de frases, pontuação, entre outras
informações importantes sobre a linguagem oral do entrevistado. Segundo a
nossa orientação, as entrevistas com os informantes, deveriam ser movidas por

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I. A voz do imaginário: o projeto IFNopap faz 25 anos

uma única preocupação: solicitar que se contassem histórias. Sendo assim, o


pesquisador deveria respeitar a forma original.
De 1995 até 2013, o projeto reuniu cerca de 5.330 narrativas, contadas
por aproximadamente 2000 informantes, faltando ainda a finalização dos tra-
balhos de coleta em dois dos oito campus da Universidade: Cametá e Marajó.
Tendo como matéria-prima o banco de dados, criado pelo IFNopap, já foi
possível a publicação de nove livros, dois CDs-rom, quatro Curtas; foram pro-
duzidas 34 dissertações de mestrandos da UFPA e, também da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP), além
de 8 teses, desenvolvidas nas universidades federais de Pernambuco, de Minas
Gerais e na Unicamp. As histórias cadastradas deram subsídios a monografias
de cursos Lato Sensu, artigos e trabalhos de conclusão de cursos de Graduação.
Muitos desses trabalhos obtiveram financiamentos dos órgãos de fomento à
pesquisa, como Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior), CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico) e Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).
O IFNopap subsidia pesquisas, também, nas áreas de Antropologia,
Psicologia, Psicologia do Ensino e da Aprendizagem, Métodos e Técnicas de
Ensino, Linguística, Sociolinguística, Dialetologia, Letras, Literatura Brasileira
e Literatura Comparada.
Um desses projetos de pesquisa foi desenvolvido nas subáreas de Semiótica
e Narrativa e, fez interessantes descobertas acerca das diferenças nas formas de
se contar histórias na Amazônia paraense. “Análise Estrutural de Narrativas”
foi um trabalho, coordenado por mim e pelo Dr. Christophe Golder, que pre-
tendia encontrar, através da análise da tipologia de gênero das histórias amazô-
nicas, algo que as distinguissem da estrutura clássica da narrativa. Para tanto,
foram definidos objetivos específicos para o desenvolvimento do projeto, entre
os quais estavam o de organizar e descrever quais eram as formas narrativas

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presentes no universo abrangido pela pesquisa, composto pela população


moradora das seguintes cidades do interior do Estado: Bragança, Santarém
e Castanhal. Além disso, o trabalho pretendia determinar se essas narrativas
continham elementos que as levassem a pertencer a um conjunto organizado
de gêneros e, finalmente, deduzir das observações de campo e das variações
individuais dos textos, aspectos da arte pessoal dos informantes contadores.
Depois de quatro anos de trabalhos, que somaram análises morfológicas
(escrita formal das palavras), sintáticas (disposição das palavras na frase e das
frases no discurso) e lexicais (repertório de palavras) das histórias amazônidas,
a pesquisa não encontrou muitas variáveis nas maneiras de contar as histórias
em relação às antigas fórmulas do conto tradicional, definidas pelo linguista
russo Vladimir Propp, no livro A morfologia dos contos de fadas.
No entanto, algo nos chamou a atenção e da equipe de pesquisadores formada
por dois docentes e quatro bolsistas. Foi o que os semioticistas denominam como
sendo elementos periféricos de um texto, ou seja, tudo o que não faz parte efetiva-
mente da estrutura básica da narrativa, mas sim de uma variedade lexical parti-
cular entre as regiões. Acerca do que concluímos: essa diferença está intimamente
ligada às circunstâncias de espaço e tempo de sabor amazônico e revela a voz do
imaginário do nosso contador.
Isso, porque os contadores trazem consigo uma espécie de dialeto próprio,
resultado de um repertório composto a partir das influências dos colonizadores, do
contexto e paisagem em que vivem. Portanto, é comum nas histórias de príncipes e
princesas, por exemplo, os protagonistas dormirem em rede e os castelos se situarem
às margens dos rios que cortam a Amazônia.
Com muita frequência, encontram-se resquícios da fala do colonizador em
expressões, tantas vezes confundidas com a maneira de falar da população amazô-
nica, mas que, na verdade, nada mais são do que influências sobreviventes da colo-
nização portuguesa. Como é o caso das expressões “obra de”, “ilharga”, “carecer” e

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“enrascado”. E por falar em “enrascado”, quem ficou nessa situação foi o pescador,
do começo deste texto que se viu em um mundo de boto, sem saber o porquê.

...Só era boto, e chegou lá no quarto, estava o boto lá deitado. Estava doente

com ferimento, e disse: – Você está vendo esse boto, aí? É aquele que, naque-

le dia, que você andava pescando, você furou. Acertou ele. Ele está doente.

Você vai tratar dele. Se ele ficar bom, você volta, se ele não ficar bom, você

vai ficar aqui. Tinha uma velha, se deu com ele, aí, ensinava remédio pra ele.

Aí, tudo o que a velha ensinava ele fazia, né, e, aí, o boto foi se recuperan-

do... Quando ninguém mais lembrava, ele apareceu. Aí, contava a história.

– Olha, eu estava tratando daquele boto. Contava pra eles que nós estava

pescando, aí acertamos ele. E eu só voltei porque ele ficou bom, se ele não

tivesse ficado bom, eu tinha ficado lá.

A fórmula dos contos


Quem nunca ouviu um conto, uma lenda ou ainda uma estimulante his-
tória de príncipes e princesas? Improvável que haja alguém. Por isso é comum
notar nessas lendas e contos, a riqueza e a criatividade surgidas do imaginário
popular, às vezes de maneira imprecisa, outras vinculadas a mitos e lendas de
outras civilizações. Assim, estas narrativas constituem-se em um fértil material
para pesquisas em diversas áreas tais como Antropologia, Psicologia, Literatura
e Linguística. Nesta última, por exemplo, o linguista russo Vladimir Propp, a
partir da análise de contos infantis russos, criou uma fórmula estrutural para
as narrativas que descreveu no livro A morfologia dos contos maravilhosos, como
já foi referido.
Na concepção de Propp, os contos contêm três sequências: preparatória, mal-
feitoria/falta e final. Elas subdividem-se em 31 funções. Essas funções são as partes
constituintes dos contos e estão ligadas às ações dos personagens no desenrolar da

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trama. No livro, Propp afirma que as 31 funções não estão necessariamente presen-
tes em todos os contos.
Na sequência preparatória ou inicial de um conto, as funções são sete: afasta-
mento/ausência (quando um dos membros da família se afasta de casa); interdição/
proibição (ao herói impõe-se uma proibição ou regra); transgressão (a proibição
é transgredida); interrogação (o agressor tenta obter informações); informação (o
agressor recebe informações sobre sua vítima); engano (o agressor tenta enganar
sua vítima para se apoderar dela ou de seus bens); e cumplicidade involuntária (a
vítima deixa-se enganar e ajuda assim seu inimigo sem o saber).
A sequência de malfeitoria/falta à sua reparação é composta por mais 11 fun-
ções, que são as seguintes: malfeitoria e falta (o agressor faz mal a um dos membros
da família ou prejudica-o; falta qualquer coisa a um dos membros ou este deseja
possuir algo); envio em socorro (a notícia da malfeitoria ou da falta é divulgada,
dirige-se ao herói um pedido ou uma ordem; este é mandado em expedição ou dei-
xa-se que parta por sua própria vontade); empreendimento reparador (o herói acei-
ta ou decide agir contra o agressor); partida (o herói deixa a casa); prova imposta
pelo doador (o herói é testado, interrogado, colocado à prova e, como resultado
recebe um objeto ou um auxiliar mágico); reação do herói (o herói reage às ações
do futuro doador); posse do objeto mágico (o objeto mágico é posto à disposição do
herói); transferência (o herói é transportado, conduzido ou levado até perto do local
onde se encontra o objetivo da sua demanda); combate (o herói e o seu agressor
defrontam-se em combate); marca (o herói recebe uma marca); vitória (o agressor é
agredido); e reparação (a malfeitoria inicial ou falta são reparadas).
A sequência final inicia com o retorno do herói e, fecha com a recompensa,
dividida em 12 partes. São elas: volta (o herói volta); perseguição (o herói é perse-
guido); socorro (o herói é socorrido); chegada incógnita (o herói chega incógnito à
sua casa ou a outro país); pretensões falsas (o falso herói faz valer pretensões falsas);
tarefa difícil (propõe-se ao herói uma tarefa difícil); tarefa cumprida (a tarefa é

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cumprida); reconhecimento (o herói é reconhecido); descoberta (o falso herói ou o


agressor, o mau, é desmascarado); transfiguração (o herói recebe uma nova aparên-
cia); punição (o falso herói ou o agressor é punido); e casamento (o herói casa-se e
sobe ao trono).
Alguns pesquisadores acreditam que a adoção dessas invariantes estabelecidas
pelo linguista russo ajuda a compreender a estrutura das obras infantis, assim como
permitem entender as convergências e divergências entre os personagens infantis
dos contos para adultos e as personagens infantis das histórias para crianças. É o
caso da análise proposta pelos nossos pesquisadores, que encontraram nos contos e
lendas amazônidas, a estrutura proposta por Vladimir Propp.
Imaginário sensual
Lendas como Boto, Iara, Vitória Régia e As Amazonas percorrem os quatro
cantos do Brasil, envolvendo o imaginário popular de uma atmosfera de pura sen-
sualidade. Da descrição física dos personagens às situações narradas, as lendas de-
notam a beleza e a sensualidade como características irrefutáveis das narrativas.
No caso do Boto, por exemplo, a lenda sempre vem acompanhada de uma
descrição de um rapaz bonito, elegantemente vestido em linho branco, sempre de
chapéu à cabeça, que por ser altamente sedutor, conquista mulheres jovens e boni-
tas, casadas ou não, em festas que frequenta as margens dos rios. Dizem ainda que
muito da sedução do Boto está ligada ao olhar e, que, portanto, o olho do boto é
usado como amuleto na arte da conquista pelos populares da região amazônica.
Iara, a versão feminina do Boto, segundo alguns pesquisadores, é conhecida
também pelo encantamento que exerce sobre os homens através de seu olhar. Um
dos mitos mais respeitados da região amazônica, Iara é uma linda mulher morena,
de cabelos negros e olhos castanhos. Histórias sobre ela contam que os homens que
a veem nua a banhar-se nos rios, não conseguem dominar seus desejos e atiram-se
nas águas. Muitos não voltam e aqueles que retornam, o fazem assombrados, des-
crevendo castelos, séquitos e cortes encantados.

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Tanta sensualidade presente nas lendas e mitos da Amazônia é considerada


pelos pesquisadores do IFNopap como sendo algo natural, por se tratar de histó-
rias criadas em uma região tropical. Considera-se que o clima do país, cheio de
sol e umidade, somado à presença de corpos morenos e ao encanto da paisagem,
propiciam muita sensualidade e magia. Além disso, é difícil dissociar esses fatores
da herança deixada por um colonizador romântico, apaixonado e movido por uma
sexualidade extremada.
Frutos do imaginário caboclo
O projeto “Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da
Amazônia”, que inicialmente tinha a proposta de mapear e registrar as histó-
rias, lendas e mitos que fazem parte do cotidiano da população da Amazônia
paraense, com o passar do tempo tornou-se apenas um meio para o desenvol-
vimento de trabalhos e projetos.
Entre os inúmeros frutos do IFNopap, estão as três coletâneas da série
“O Pará conta...”, onde é possível conhecer as histórias e lendas da Amazônia
paraense reunidas, através das seguintes coletâneas: “Abaetetuba conta...”;
“Santarém conta...” e “Belém conta...”.
Afora essas publicações, o projeto gerou encontros acadêmicos, que re-
sultaram em livros nos quais são relatados os estudos apresentados durante os
eventos. Os títulos trazem em si os temas discutidos nos encontros, realizados
durante as expedições a bordo do navio Catamarã Pará e de outras embarca-
ções. Os títulos dos livros publicados, que privilegiam as discussões empreen-
didas nos eventos, são: Narrativa e imaginário amazônicos; A Amazônia em suas
multivozes; Memória e comunidade: entre o rio e a floresta; Cultura e biodiversi-
dade: entre o rio e a floresta e O Marajó: um arquipélago sob a ótica da cultura.
Somados a eles está o livro Criaturas fantásticas da Amazônia, resultado de um
curso proposto pelo IFNopap.
Como não poderia deixar de ser, o imaginário caboclo também entrou na Era
Digital. Criou-se um Portal da Amazônia, onde os visitantes puderam encontrar

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um grande número de informações sobre a região, através da sistematização do


conteúdo acadêmico, até então produzido pelo projeto, bem como devido à exposi-
ção das belezas e tradições amazônicas online.
Na minha concepção, o Portal tornou-se um laboratório em si mesmo. O pro-
grama de inserção de conteúdo online foi viabilizado por um grupo de técnicos,
professores e bolsistas que se dedicaram a criar ferramentas adequadas às necessi-
dades dos materiais a serem disponibilizados. A finalidade era facilitar a relação do
usuário com o conteúdo disponibilizado tanto para consulta, quanto para downlo-
ad ou mesmo para inserção de conteúdo.
Além de disponibilizar um rico material para pesquisas em diversas áreas, o
IFNopap desenvolveu também trabalhos de extensão. Nesse campo, através de pes-
quisadores do campus-sede da UFPA, ou por meio daqueles vinculados aos cam-
pi distribuídos pelo interior do Estado, o projeto levou para alunos dos Ensinos
Fundamental e Médio exposições, oficinas, palestras, conferências, mesas redondas,
enfocando sempre as manifestações culturais da Amazônia paraense. Essas ativi-
dades foram realizadas durante os encontros anuais do projeto, promovidos nos
municípios-alvo das expedições realizadas anualmente.
Mas, não foram somente os alunos que se tornaram alvo de ações de resgate
do imaginário caboclo amazônico. Também os professores da rede pública parti-
ciparam do chamado Laboratório de Apoio Pedagógico em Letras (Lapel). A pro-
posta foi contribuir para a qualificação de 3.000 professores nas áreas de Línguas
e Códigos, Língua Estrangeira Moderna, Arte e Educação, por meio de ações, tais
como: palestras, cursos de especialização e aperfeiçoamento. O Lapel foi um projeto
fruto de uma parceria entre a UFPA e a Secretaria de Educação do Estado do Pará
(Seduc).
A volta das expedições
Como nos tempos da colonização, o IFNopap trouxe de volta ao Brasil as
grandes expedições. A diferença entre os mais de 500 anos que separam as duas
épocas é que as expedições atuais foram realizadas a bordo de um navio da

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região amazônica, dentre os quais o de maior apoio foi o conhecido Catamarã
Pará. As expedições foram realizadas com a presença de pesquisadores e de-
mais interessados em conhecer e discutir in loco as manifestações culturais ofe-
recidas pelo imaginário caboclo da Amazônia paraense.
A escolha pelo uso de um navio foi por ser a melhor maneira de levar pesquisa-
dores aos lugares onde estão o maior repertório de histórias amazônidas. Considero
que o nosso acervo foi, em sua grande maioria, recolhido no interior, portanto, os
encontros acadêmicos promovidos pelo IFNopap tornaram-se muito mais legíti-
mos com visita às populações ribeirinhas, tanto do ponto de vista da paisagem,
quanto pela convivência com o homem dessas regiões.
Essa convivência foi facilitada pela organização de uma série de atividades
que atendiam à demanda vinda dos muitos pesquisadores já envolvidos, bem como
dos convidados e da população local, haja vista que na programação dos encon-
tros anuais do IFNopap havia espaço para palestras, seminários, mesas redondas e
conferências, enquanto função acadêmica, assim como gincanas, festas folclóricas
e exposições de artesanato, espécie de forma de resgate das manifestações culturais
locais.
O contato direto com a população ribeirinha veio com um processo que teve
início no momento em que os pesquisadores e alunos envolvidos originalmente no
projeto viram-se às voltas com determinados conceitos, não ligados especificamen-
te à área de Letras, e notaram que era hora de interagirem com outras áreas do
conhecimento, para ampliarem o enfoque das pesquisas desenvolvidas, a partir do
acervo do IFNopap.
Dessa forma, foram realizados dois encontros consecutivos no Centro de Letras
e Artes (CLA), campus da UFPA em Belém, com a participação de profissionais da
Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, da Linguística, da Teoria da Literatura
e de outras disciplinas afins, sob o tema: “Narrativa oral e imaginário amazônico”.
A partir de 1999, a coordenação do projeto considerou fundamental percorrer
os rios de Amazônia, visitando as populações ribeirinhas, onde estão estabelecidos
os campi avançados da Universidade, de modo a facilitar o convívio e o reconheci-
mento da riqueza da paisagem e do contador de histórias amazônicos.
Os navios para a condução dos embarcados foram escolhidos, com a capa-
cidade de acolher cerca de 140 pessoas durante 8 dias, percorrendo cada ano, um
dos rios que compõem a bacia fluvial da Amazônia. Alguns navios foram cedidos
ao projeto pelo Governo do Estado do Pará. A realização dos encontros aconteceu,
graças a uma parceria entre a UFPA, o Governo do Estado e a Eletronorte.
Aproveitamos esta obra, dedicada aos estudos de literatura e cultura de expres-
são amazônica, para fazer uma retrospectiva do projeto IFNopap, nesses 25 anos de
existência e, por questão de espaço, fizemos menção a alguns dos eventos realizados
no âmbito do projeto, sem, no entanto, tratar de todos eles.
A primeira expedição do Catamarã Pará percorreu o Médio Amazonas até o
rio Tapajós, em Santarém. No meio do caminho a expedição aportou em Monte
Alegre. No ano seguinte, a expedição rumou para Oriximiná, cidade que fica às
margens do rio Trombetas. O evento em Oriximiná foi particularmente especial,
pois lá, tivemos o privilégio de assistir ao chamado Círio Noturno Fluvial, uma festa
em homenagem a Santo Antônio, padroeiro da região. Trata-se de uma procissão,
realizada por populares todo segundo domingo do mês de agosto, quando mora-
dores da cidade confeccionam pequenas “barquinhas”, objetos feitos de pedaços de
tronco de miriti (uma palmeira da região que possui uma madeira que flutua), que
são colocadas sobre as águas do rio, tendo ao centro, uma vela acesa e, em torno
dela, papel de seda colorido para proteger a chama do vento. As barquinhas se-
guem à frente do cortejo, levadas pela brisa e assim, tornam-se as condutoras da
procissão.
Finalizando, voltamos a destacar que o projeto “Imaginário nas Formas
Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense”, inicialmente com a proposta

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de mapear e registrar as histórias, lendas e mitos que fazem parte do cotidiano da


população da Amazônia paraense, com o passar do tempo, se tornou um meio para
o desenvolvimento de outras iniciativas, eventos e produção acadêmica de vulto.
No presente momento, a coordenação do IFNopap está realizando o projeto
de criação de um Portal, a fim de disponibilizar um rico material recolhido e uma
notável produção, em diversas áreas do conhecimento, no decorrer destes 25 anos.
Sem dúvida, realizar uma retrospectiva dessa trajetória do projeto IFNopap é rea-
firmar a importância das narrativas orais como significativos elementos de manu-
tenção da memória coletiva.

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

II. Nós, eu e o outro: incompletude e


estrangeiridade no texto literário amazônico
Liozina Kauana de Carvalho Penalva

Lorena de Carvalho Penalva

A literatura sempre registrou, em uma possibilidade teoricamente infinita


de interpretações, as grandes questões, lutas e tensões travadas pelo encontro
do Eu com o Outro, em diferentes momentos históricos. Ao colocar em xeque
a complexidade da dimensão humana, a literatura aponta para a necessidade
de se refletir sobre aquilo que, por se constituir enquanto tradição ou hábito
ou por fazer parte do nosso cotidiano, envolvendo os “modos de ver e fazer”,
é essencialmente naturalizado e apresenta-se como um apanhado de certezas
inabaláveis.
Consciente de que os discursos da tradição encenam sobre realidades e
formas parciais de identificação, Bhabha (2013) aponta para a necessidade de
ir além dessas narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de concentrar
em momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças
culturais, uma vez que esse movimento de “reencenação do passado” intro-
duz outras temporalidades culturais na “invenção da tradição” e afasta “qual-
quer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição ‘recebida’”
(BHABHA, 2013, p. 21).
Colocar em cena a diferença significa problematizar as divisões binárias
no nível da representação cultural, promover zonas de instabilidade e sugerir,
ainda, críticas aos valores estéticos e políticos que atribuem unidade e harmo-
nia às culturas, principalmente, às que sofreram com processos de dominação
e reconhecimento falseado, como é o caso dos processos culturais que se esta-
beleceram na Amazônia brasileira. Para Bhabha, a diferença cultural ocupa-se
em:

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(...) rearticular a soma do conhecimento a partir da perspectiva da posição

de significação da minoria, que resiste à totalização — a repetição que não

retornará como o mesmo, o menos-na-origem que resulta em estratégias

políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas serve para per-

turbar o cálculo de poder e saber, produzindo outros espaços de significação

subalterna (BHABHA, 2013, p. 261).

Desse modo, a diferença cultural não pretende explorar a simples oposi-


ção entre tradições antagônicas de valor cultural para então adicionar harmo-
niosamente conteúdos e contextos à lógica ocidental. Em vez disso, ela reivin-
dica a possibilidade de contestação cultural e a introdução de novas formas de
sentido e de estratégias de identificação. O sujeito do discurso da diferença é
sempre incompleto, constituído não a partir de concepções de pureza e estabi-
lidade, mas especialmente a partir de processos de alteridade, de diálogo com
o Outro.
Nas narrativas aqui analisadas, notabiliza-se um jogo de alteridades, em
que os parâmetros tradicionais da cultura e da nação são sempre perturbados e
redesenhados a partir da interação com o Outro. Em Dois irmãos, por exemplo,
o restaurante Biblos demarca esse encontro com o híbrido2:

Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes li-

baneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora

dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português mistu-

rado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que

se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco

de tudo (HATOUM, 2000, p. 48).

2 Pensar no híbrido é evidenciar a alteridade. Em nossa análise, o conceito de hibridismo, baseado nos princípios

de Bhabha (2013), não pressupõe uma harmonia ou homogeneidade entre as culturas, mas funciona, na verdade,

como uma estratégia teórico-metodológica para lidar com os discursos sem negá-los.

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

Todas essas personagens são reelaboradas pela escrita ficcional para que
se evite o clichê e a imagem fácil e estereotipada. No centro dessa narrativa,
Hatoum demonstra que é também possível contemplar o jeito de ser e de viver
de outra parte do nosso povo – a de brasileiros que construíram um pedaço do
Oriente em território nacional. Este ‘certo oriente’ se faz presente em hábitos
alimentares: “A nora mandava de São Paulo caixas de presente para Halim.
Garrafas de arak, latas de tabaco para narguilé, sacos de pistache, figos secos,
amêndoas e tâmaras” (HATOUM, 2000, p. 127); no uso da língua árabe: “Ás
vezes ele se distraía e falava em árabe. Eu sorria, fazendo-lhe um gesto de in-
compreensão: É bonito, mas não sei o que o senhor está dizendo” (HATOUM,
2000, p. 51); e no exercício da religião muçulmana, praticada pelo patriarca da
narrativa – Halim.
E o que há de pertinente nesse intrincado jogo é que não há a preocupação
em distinguir uma cultura da outra, muito menos em estabelecer princípios
de hierarquização. Como resultado dessa interação, os processos de identi-
ficação são elaborados a partir da ideia de constante movimento, haja vista
que Oriente e Ocidente constroem um terceiro lugar de hibridação, em que as
práticas linguísticas, hábitos, sabores, sotaques e crenças estão intimamente
associados.
Interessa salientar que o Outro, o estranho, conforme assinala Kristeva,
também pode se delinear como uma parte obscura do próprio eu. O estran-
geiro não é apenas aquele que vem de um país distante e precisa aprender a
nossa língua e contar com a nossa hospitalidade, mas, é também a “face oculta”
de nós mesmos, de nossa identidade, “o estrangeiro começa quando surge a
consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos
estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades” (KRISTEVA, 1994, p. 9).
A personagem Yaqub, um dos gêmeos do romance Dois irmãos, contribui
para o alargamento do conceito de estrangeiro, no momento em que ele se

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sente exilado e estranho em sua própria terra natal, Manaus, após passar cinco
anos no sul do Líbano. Com apenas treze anos de idade, após se envolver em
uma terrível briga com o Caçula (Omar), da qual lhe resulta uma cicatriz no
rosto, Yaqub é afastado do seio familiar por uma decisão de seu pai, o libanês
Halim, que acreditava que a distância apagaria o ódio e o ciúme entre os filhos.
A distância não eliminou certos trejeitos, gestos e atitudes que o asseme-
lhavam ao irmão, porém, Yaqub não era mais o mesmo, tornou-se outro. A
primeira coisa que incomodou a matriarca da família, Zana, foi o insistente si-
lêncio de Yaqub, pois ela logo notou que ele falava pouco, se utilizava apenas de
monossílabos ou frases curtas e cada vez mais denunciava o esquecimento de
algumas palavras da língua portuguesa: “‘O que aconteceu?’, perguntou Zana.
‘Arrancaram a tua língua?’. ‘La não, mama, disse ele, sem tirar os olhos da paisa-
gem da infância, de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente’”
(HATOUM, 2000, p. 17).
Desta sensação abrupta de não reconhecimento entre mãe e filho surge
uma terceira língua: nem o árabe, língua dos pais imigrantes; nem a língua
materna. Essa outra língua, que se define ora pela familiaridade, ora pelo es-
tranhamento, instala-se em um espaço intersticial, no entre-lugar, e simboliza
a dificuldade do sujeito recém-chegado em recolocar-se no lar e no mundo. É
neste sentido que Bhabha afirma que estar estranho ao lar não significa estar
sem-casa, pois “o momento estranho move-se sobre nós furtivamente, como a
nossa própria sombra” (BHABHA, 2013, p. 31).
E é nesse ponto que, para Yaqub, o mundo primeiro se contrai para depois
se expandir enormemente. A sensação de estranhamento demarca fortemente
o seu retorno: “Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai!
Buxa vida!), e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham
como um rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado” (HATOUM, 2000, p. 30).
Contudo, ele desenvolveu um olhar mais apurado, se deleitava em revisitar

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

lugares, pessoas, tornou-se mais atento, curioso e não disfarçava a felicidade


em compreender as palavras, as frases e as estórias contadas pela mãe, pelo
pai ou pela irmã Rânia: “Yaqub entendia. As palavras, a sintaxe, a melodia da
língua, tudo parecia ressurgir. Ele bebia, comia e escutava, atento; entregava-se
à reconciliação com a família, mas certas palavras em português lhe faltavam”
(HATOUM, 2000, p. 23).
Esse imbricamento linguístico perpassa toda a obra e pode ser apreciado
também na fala do patriarca Halim, em momentos em que ele se distraía e
soltava frases inteiras em árabe e quando percebia que não estava sendo com-
preendido, cochichava: “É a velhice, a gente não escolhe a língua na velhice”
(HATOUM, 2000, p. 51); bem como na fala de Zana, quando, em seu leito de
morte, despede-se em árabe, em um tom quase confidencial:

Ela me reconheceu, ficou me olhando. Então soprou nomes e palavras em

árabe que eu conhecia: a vida, Halim, meus filhos, Omar. Notei no seu

rosto o esforço, a força para murmurar uma frase em português, como se

a partir daquele momento apenas a língua materna fosse sobreviver. Mas

quando Zana procurou minhas mãos, conseguiu balbuciar: Nael... querido...”

(HATOUM, 2000. p. 254).

Essa língua, mesclada por vozes simultâneas daqui e de lá, serve como
abrigo para as especificidades do sujeito e ressoa com ainda mais força em mo-
mentos de fortes emoções e afetividades, como a chegada da velhice e a hora
da morte. Sobre essas relações que se estabelecem a partir das experiências de
deslocamentos, a professora Maria Zilda ressalta:

Neste começo de século, encontramo-nos num momento de trânsito em que

figuras complexas de diferença e alteridade se formam a partir do entrecru-

zamento tempo/espaço. O imigrante e sua língua madrasta, de empréstimo,

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uma dicção que necessariamente expressa o outro e o mesmo – seus/ nossos so-

nhos, sua/ nossa cultura, seu/ nosso Imaginário – erige-se como figura singular

para conceitualmente captar estes espaços/ tempos contemporâneos e o compó-

sito mestiço da nação (CURY, 2003, p. 12).

Neste excerto, a professora Cury dialoga diretamente com o pensamento


de Kristeva, no que se refere à percepção de o estrangeiro ser, inesperadamente,
uma parte de nós mesmos, “o espaço que arruína a nossa morada” (KRISTEVA,
1994, p. 9). Essa concepção insere o “nós” em um campo bastante problemáti-
co, pois instaura uma subjetivação das fronteiras rígidas estabelecidas entre o
Eu e o Outro. A língua, então, tem função importante na constituição desses
sujeitos, uma vez que se estabelece como um forte traço cultural e acolhe esses
processos híbridos de identificação.
Em Chove nos campos de Cachoeira, Alfredo é uma personagem que também
se sente um estranho em seu próprio lar, uma espécie de hóspede de passagem. Esse
sentimento é expresso logo na primeira página do livro, quando o narrador comen-
ta que “Cachoeira lhe dá um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como
quem está feliz por esperar a morte” (JURANDIR, 2019, p. 23), ou que ao retornar
para o chalé “os desejos de Alfredo caíram pelo campo como borboletas mortas”
(JURANDIR, 2019, p. 23). Em vez de representar acolhimento e bem-estar, a casa
é um espaço opressor, que desperta em Alfredo experiências de angústia, aprisiona-
mento e repetitividade:

Voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de

Eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. Era tentar compreender por

que motivo D. Amélia não lhe explicava a doença de Eutanázio, misteriosa

moléstia, essa que parecia invadir todo o chalé. Era encontrar Major Alberto

folheando os catálogos como se folheasse os próprios sonhos e recuperasse

todos os projetos perdidos depois que imprimia os rótulos de cachaça do

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

Salu e descobria para D. Amélia uma receita para fazer manteiga. Voltar para

casa era voltar às feridas, que apesar de saradas deixaram marcas nas pernas

e na nuca [...]. Sentia que aquelas feridas nunca lhe deixariam de doer o dese-

jo muito seu de partir daqueles campos, de parecer um menino diferente do

que era (JURANDIR, 2019, p. 24).

As marcas das lesões no corpo de Alfredo parecem expor a existência de


feridas ainda mais profundas em seu íntimo, denunciadas pela frequente busca
de autoconhecimento e o ímpeto de gritar e chorar alto sempre que, ainda sem
forma e tradução, vem à tona o desejo de partir. Esse desejo talvez tenha se
originado diante da sensação de ser diferente dos demais garotos da vila e da
dificuldade em se aceitar como mestiço, filho de um pai branco e de uma mãe
negra, o que pode ser constatado em um diálogo entre Alfredo e outro garoto,
de “cara amarela e empapada”, chamado Henrique, após este ter acertado um
passarinho de baladeira:

– Vou te comê de espeto.

– Se come então um passarinho desse?

– Se come. E no espeto. Não sabe o que é bom. Pra que tenho meabaladêra?

Tu não gosta?

– Eu não.

– O que tu perde. És um branco...

– Tua boca é doce pra dizer isso... que sou um branco. Tu não vês a minha

cor? – Alfredo não queria ser moreno mas se ofendia quando o chamavam de

branco. Achava uma caçoada de moleque.

– Mas tu não é?

– Tu és moleque... (JURANDIR, 2019, p. 27).

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Este diálogo deixa evidente a posição ambígua que Alfredo ocupa: de um


lado sente-se superior aos demais, pois, diante de toda a miséria que cerca a
vila de Cachoeira, tem o privilégio de ir todos os dias comprar o seu “quilinho”
de carne e não precisar comer passarinho no espeto, pode ainda caçoar dos
garotos sujos e famintos que iam sempre pedir um pouco de farinha, leite ou
restos de comida para sua bondosa mãe; de outro, Alfredo se vê numa situa-
ção de inferioridade, pois não compreende a sua situação enquanto mestiço.
A figura do mestiço, segundo Figueiredo (2010), sempre foi percebida de ma-
neira bastante problemática e pejorativa, pois ele frequentemente foi encarado
como fruto de uma relação ilícita ou ilegítima.
Importa sublinhar que o sentimento de estranhamento de Alfredo e a ne-
gação de sua própria diferença efetivam-se sempre em confronto com o Outro,
seja no diálogo com os garotos da vila, nos comentários que ouve ou na cons-
tatação do olhar de chacota que os moradores da vila lançam sempre que sua
mãe e seu pai decidiam sair juntos. Sobre essa questão, Landowski acrescenta:

O que dá forma à minha própria identidade não é só a maneira pela qual,

reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relação à imagem que

outrem me envia de mim mesmo; é também a maneira pela qual, transiti-

vamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à

diferença que me separa dele (LANDOWSKI, 2002, p. 4).

Assim, fica evidente que, seja na literatura ou nas sociedades, os conceitos


de alteridade e identidade estão intrinsecamente interligados e decorrem sem-
pre de uma construção. Desse modo, no atual contexto pós-moderno, torna-se
imperativo refletir sobre o Outro, visto que a linha divisória que separa “nós”
e “eles” está cada vez mais difusa. Esse modo de pensar tem nos tornado mais
sensíveis às diferenças, às representações das vozes subalternas e apresenta

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

como maior benefício a redefinição e inclusão da alteridade, ou seja, o Eu pre-


cisa necessariamente do Outro para se constituir.
Essas relações forjadas pelo estranhamento a todo o momento colocam
em evidência o conceito de diferença cultural, pois se cria, literariamente, um
espaço da movência, da “différance”. Este é um conceito desenvolvido pelo filósofo
Jacques Derrida utilizado para desconstruir ou colocar em crise a noção de origem,
totalidade e presença, elementos básicos do pensamento hegemônico ocidental.
Segundo esse filósofo, definir a différance é uma tentativa aporética. Não se pode
nunca expor aquilo que não se pode tornar-se presente – a différance jamais se
oferece ao presente. Ela está sempre em reserva, não se expõe, é um ente misterioso:

Foi já necessário acentuar que a diferença não é, não existe, não é um ente-

-presente (on), qualquer que ele seja; e seremos levados a acentuar o que ela

não é, isto é, tudo; e que, portanto, ela não tem nem existência nem essência.

Não depende de nenhuma categoria do ente, seja ela presente ou ausente

(DERRIDA, 1991, p. 37).

Nesse sentido, tentar defini-la é, como denomina Derrida (1991, p. 38),


uma tática cega, um errância empírica. O traçado da différance não segue a linha
do discurso filosófico-lógico, pois anuncia a necessidade de um cálculo “sem fim”,
de um jogo que desafia ou foge a qualquer lógica de verdade e dicotomia.
Para dar consistência a essa discussão sobre a différance, Derrida questiona o
próprio conceito de signo de Saussure. Este concebe o signo como diferencial e arbi-
trário, colocando em evidência o jogo de presenças e ausências contidas no processo
de significação. E é essa reflexão que Derrida coloca à tona, pois o signo ocupa o
lugar da coisa mesma, porque quando não podemos atingir a “coisa” presente (en-
te-presente) servimo-nos dos signos. Assim sendo, o signo representa “o presente na
sua ausência”, o presente diferido.

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Nessa acepção, o sistema da língua é organizado a partir das diferenças. O


conceito de significado, para Derrida, nunca é presente em si mesmo, não é pre-
sente, nem autossuficiente, ele sempre remete para algo exterior. Por conseguinte,
pode-se inferir que a condição da significação não é algo pleno, independente, mas
algo que só funciona a partir da relação com outros elementos. Nas palavras de
Derrida (1991, p. 42) “a diferença não é mais, portanto, um conceito, mas a possi-
bilidade da conceitualidade, do processo e dos sistemas conceituais em geral”. Desse
modo, a différance faz com que o movimento da significação não esteja baseado
apenas em presenças, mas sempre em relação com a coisa ausente, com outra coisa
“que não ele mesmo”.
É esse entendimento que leva Derrida a afirmar que, se os discursos são produ-
zidos dentro de um contexto de luta e o saber é o produto de um discurso específico
que o formulou, sem nenhuma validade fora disso, os saberes científicos, relatos e
projeções produzidos pela Europa civilizada, que se encarregaram de inferiorizar
as outridades, precisam, então, passar por um processo de desconstrução, para que
se percebam os construtos de seus projetos fundadores, criando, assim, formas de
pensamento alternativas, capazes de rasurar o modelo eurocêntrico. Procura-se,
desse modo, desmascarar aqueles sentidos que foram forjados pela tradição e pela
metafísica e servem para “encobrir o ser”.
Em suma, tanto Derrida quanto Bhabha elaboram severas críticas ao logocen-
trismo da cultura ocidental, que coloca o essencialismo como base de elaboração
do projeto ideológico colonizador. Pensar os processos de cultura e de identificação
a partir de princípios essencializadores é uma ação bastante perversa, uma vez que
sustenta a identidade enquanto raiz única, fixa e estável, impedindo o aparecimen-
to e a fluidez de uma identidade “rizomática”, ou seja, de uma raiz que vai ao en-
contro de outras raízes, aberta em várias direções. Na contramão da identidade cul-
tural exótica que nos foi conferida pela cultura europeia, os escritores que compõem
o corpus de nossa pesquisa também contestam essas concepções centralizadoras

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II. Nós, eu e o outro: incompletude e estrangeiridade no texto literário amazônico

sobre o espaço amazônico, e criam, literariamente, o espaço da movência, da diffe-


rance, que gira em torno de histórias de imigrantes e nativos que estão sempre em
conflito com o espaço e, também, com seus próprios medos, angústias e ambições.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana


Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2 ed. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2013.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Fronteiras da memória na ficção de Milton


Hatoum. Língua e Literatura: Limites e Fronteiras. Revista do Programa de Pós-
graduação em Letras, Santa Maria, v. 26, p. 11-19, 2003.
DERRIDA, Jacques. A diferença. In: DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia.
Trad. Joaquim Costa, Antônio M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991, p.
33-62.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. 4ª ed. Belém: Cejup,
1995.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho
Gomes Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. Trad.
Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

III. O ético e o estético em Dalcídio


Jurandir: a reelaboração do conto Bela
adormecida em Três casas e um rio (1958)
Ivone dos Santos Veloso

Introdução
Dalcídio Jurandir, escritor brasileiro, nascido no Marajó, ficou conhecido
por empreender um projeto literário de representação da Amazônia paraense,
a partir de um conjunto de dez romances, que constituiu o que ele mesmo
chamou de ciclo Extremo-Norte3. Tal projeto se alinha ao de outros grandes
escritores brasileiros que, no século XX, aliaram comprometimento com a de-
núncia das mazelas sociais e a reflexão crítica da realidade com o empenho de
uma criação ficcional extremamente cuidada. No caso dalcidiano, o Extremo-
Norte traz à cena aquelas figuras subalternas e marginalizadas da Amazônia para-
ense: mulheres, homens e crianças, negros e mestiços, trabalhadores braçais, dentre
outros, que revelam o comprometimento ético de Dalcídio Jurandir em dar voz e vez
a gente pobre e desvalida do Norte brasileiro.
A respeito de seus objetivos ao criar o ciclo Extremo-Norte, é emblemática a
entrevista publicada no jornal Folha do Norte, em 23 de outubro de 1960, conce-
dida à escritora e jornalista Eneida de Moraes. Durante o diálogo, o romancista
paraense é enfático ao afirmar:

Todo o meu romance, distribuído provavelmente em dez volumes é feito na

maior parte, da gente mais comum, tão ninguém, que é a minha criaturada

grande de Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas. [...] A esse pessoal miúdo que

3 O ciclo Extremo-Norte se constitui de uma saga romanesca iniciada com Chove nos campos de Cachoeira (1941), e

seguida por Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963),

Primeira manhã (1967), Ponte do galo (1971) Os habitantes (1976), Chão dos lobos (1976) e Ribanceira (1978).

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tento representar nos meus romances chamo de aristocracia de pé no chão.

Modéstia à parte, se me coube um pouco o dom de escrever [...] o pequenino

dom eu recebo como um privilégio, uma responsabilidade assumida, para

servir os meus irmãos de igapó e de barranca. As poucas letras que me ca-

bem, faço tudo para merecê-las (JURANDIR, 1960).

Fica evidente, nesse depoimento, a “responsabilidade assumida” por


Dalcídio Jurandir em dar voz e vez a estes sujeitos que, em geral, não estavam
descritos nas relações sociais estratificadas, tais como os vaqueiros, os pesca-
dores, as benzedeiras, os curandeiros, as prostitutas, os vendedores de açaí, as
crianças, e tantos outros desvalidos que são transformados em personagens ao
longo de todo o ciclo romanesco.
Não obstante, esse comprometimento social se entrelaça à consciência
do fazer literário e ao empenho de Dalcídio Jurandir em criar narrativas extre-
mamente elaboradas. Sobre seus procedimentos e métodos na composição fic-
cional, o paraense assim se manifesta em entrevista a Antonio Torres, Haroldo
Maranhão e Pedro Galvão, em 1976:

Tentei captar o trivial, o não heroico, o dia-a-dia da vida marajoara, vida que

parece tão coisa nenhuma, e é, no entanto, tão de todo mundo. Não figu-

rei Marajó como um inferno nem tampouco como paraíso perdido. Criei

nela o meu universo, a terra encantada [...] acumulei experiências, pesqui-

sei a linguagem, o falar paraense, memórias, imaginação, indagações. [...]

Não. Eu não sou um escritor de grande público. Os meus livros não têm

o principal encanto das grandes tiragens que é essa habilidade para fazer

o leitor ser atraído pelo enredo, pelo desenvolvimento da urdidura. Eu me

fixo muito na linguagem, nos vagares da narrativa, no ritmo lento das cenas

(JURANDIR,1976, p. 03-05).

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

Ciente, portanto, das estratégias narrativas que elegeu para a composi-


ção dos seus romances, a relevância do seu projeto literário não está apenas
na representação que faz das figuras desvalidas de uma Amazônia empobre-
cida, mas, principalmente, porque encontrou um modo esteticamente válido
para representá-las, utilizando técnicas narrativas modernas, cuja linguagem
alcança, em diversos momentos, complexidade e uma beleza ímpar. Ao mesmo
tempo, a linguagem poética e a experimentação de diversas técnicas de incor-
poração do erudito e do popular são exemplos do comprometimento estético
do projeto dalcidiano. Sua produção literária, portanto, alia responsabilidade
social, sem prescindir de uma elaboração estética cuidada.
Tais aspectos podem ser vislumbrados, por exemplo, a partir da figuração
da infância desvalida e do imaginário infantil no ciclo Extremo-Norte, catego-
rias que são utilizadas pelo escritor paraense como componente ético e estético no
interior de seu projeto literário. Seus romances frequentemente trazem à tona per-
sonagens, imagens, histórias e símbolos que envolvem o universo da puerícia: são
personagens infantis; são personagens que rememoram a infância; é a perspectiva
do protagonista Alfredo que, em pelo menos quatro romances, é uma criança
envolvida em seus dramas e sonhos pessoais; é o imaginário da criança não
apenas aludido, mas também reelaborado e incorporado na própria tessitura
da estrutura narrativa; aspecto, em particular, que pretendo analisar, a seguir,
partindo de alguns episódios do terceiro romance dalcidiano, Três casas e um
rio (1958).
Distribuído em quatorze capítulos, este romance volta a ser ambientado na
vila de Cachoeira, na ilha do Marajó, e a ser protagonizado pelo menino Alfredo.
As três casas referidas no título remetem às residências de Major Alberto, de Lucíola
Saraiva e à velha fazenda de Marinatambalo. Essa retomada traz consigo o elenco
de personagens que já apareceram em seu primeiro livro, publicado em 1941, Chove
nos campos de Cachoeira. Entretanto, neste terceiro romance os pais, Major Alberto

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e Amélia, e a irmã, Mariinha, ganham maior destaque e há um adensamento das


questões em torno do cotidiano familiar, nas quais se observa a relação entre adul-
tos e crianças, bem como as relações entre as próprias crianças, especialmente o
relacionamento de Alfredo com a irmã Mariinha, “a menina do camisão branco”, e
com a amiga Andreza, a de “olhos de areia gulosa”. Assim, essas três crianças con-
formam o principal núcleo de personagens infantis da narrativa.
Outra personagem que também estava presente no romance-embrião e que
ganha ascendência é Lucíola Saraiva, vizinha de D. Amélia, solteirona, que proje-
ta em Alfredo seus anseios maternais, enchendo-o de mimos e desejando tomá-lo
para si, chegando, inclusive, a aceitar o pedido de casamento de Edmundo Menezes,
imaginando que ele poderia ajudar Alfredo de alguma maneira.
Edmundo Menezes é herdeiro da falida fazenda de Marinatambalo, também
chamada de Reino de Marinatambalo. Sobre a fazenda e seus moradores, um ca-
ráter lendário, maravilhoso e fantástico se impõe, seja porque em áureos tempos o
lugar era símbolo da riqueza e extravagância dos poderosos, seja porque no presente
da narrativa é um ambiente de ruína e decadência, assombrado pelos fantasmas
daqueles que foram maltratados pelos Menezes.
Na construção narrativa de Três casas e um rio (1958) se destacam ainda ele-
mentos da cultura popular, de que é exemplo a apresentação do Boi Caprichoso e
do Boi Garantido na noite de São Marçal; assim como, a inserção de narradores
populares e de narrativas orais, tais como a do Bicho Socuba, da Formiga Taoca,
do pé de Maniva, da lenda do bezerro mole, da princesa do lago4; e, como preten-
do demonstrar mais à frente, a incorporação do conto da Bela Adormecida na
estrutura narrativa do romance.
Dada essa diversidade de aspectos presentes no enredo, o escritor marajoa-
ra parece se apropriar de várias formas e modos de narrar, aproximando-se ora

4 Sobre a inserção dessas narrativas, Furtado (2010) afirma ser a demonstração que o narrador dalcidiano “não se

utiliza de histórias populares, das lendas e mitos locais, apenas para ilustrar ‘a paisagem local’ mas como mate-

rial do real que ajuda na compleição do romanesco e tem função na economia do texto” (FURTADO, 2010, p. 110).

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

do mítico, ora do lendário, ora do irônico. Nesse sentido, a teoria dos modos de
Northrop Frye (1973) pode servir como chave de leitura para uma melhor compre-
ensão do terceiro romance dalcidiano.
No ensaio Crítica histórica: a teoria dos modos, Nortrop Frye (1973) distingue
as ficções entre trágicas e cômicas, entendendo-as como aspectos do enredo e não
simplesmente, como formas do gênero dramático. No seu argumento, tais formas,
por sua vez, se desdobram em cinco modos, que, historicamente, teriam sucedido:
o modo mítico, o modo romanesco, o modo imitativo elevado, o modo imitativo
baixo e o modo irônico. Marlí Tereza Furtado (2010) também notou essa possibili-
dade de leitura, avaliando que Alfredo se enquadra no modo imitativo baixo, haja
vista que “não sendo superior aos outros homens e ao seu meio, o herói é um de nós”
(FRYE, 1973, p. 40). Para a pesquisadora, outros personagens dalcidianos, como
Edmundo Menezes, por exemplo, enquadram-se no modo irônico de narrar, pois
apresentam-se “inferior[es] em poder ou inteligência a nós mesmos, de modo que
temos a sensação de olhar de cima uma cena de escravidão, malogro ou absurdez”
(FRYE, 1973, p. 40). Fica assinalado, portanto, que o ficcionista paraense se utiliza
de diversos modos de narrar, combinando motivos clássicos, populares e modernos
que funcionam como estratégias narrativas de composição e de denúncia social.

“A menina do camisão branco”: a reelaboração estética em


Três casas e um rio, de Dalcídio Jurandir
Irmã mais nova de Alfredo e também filha de Major Alberto e D. Amélia,
Mariinha já havia aparecido em Chove nos campos de Cachoeira (1941). Desde o
romance-embrião, a menina encarna o estereótipo da infância frágil, está sempre
adoentada, febril e sobre ela pesa a ameaça de que pode não sobreviver. Atinente a
esta possibilidade, é interessante perceber que ela, invariavelmente, veste um cami-
são branco, que bem poderia se confundir com uma mortalha, ou a roupa de um
anjo.

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A despeito disso, constantemente é retratada em cenas domésticas, entre re-


vistas, comendo mel, conversando com os passarinhos ou cercada de borbole-
tas. Verdade é, que a menina está continuamente próxima dos animais, às vezes
até se confundindo com estes: “Mariinha gritava como uma marreca selvagem”
(JURANDIR, 1994, p. 75).
Mariinha é, desse modo, um retrato clássico da puerícia, se aproximando de
diversas iconografias que desde o século XII traçavam o cotidiano das crianças,
representando o que Phillipe Ariés denominou de “idade dos brinquedos”, na qual
“as crianças brincam com um cavalo de pau, uma boneca, um pequeno moinho ou
pássaros amarrados” (ARIÉS, 2011, p. 39). Igualmente, encontramos a filha de D.
Amélia envolvida em brincadeiras e jogos de imaginação típicos da infância, que
trazem à cena artefatos, os quais, pela força da tradição, foram se tornando emble-
mas dessa idade, como o cavalo de pau, objeto que materialmente está ausente na
narrativa, mas se concretiza na imagem do próprio pai: “Mariinha que queria, por-
que queria, montar nas costas do pai e galopar pela varanda” (JURANDIR, 1994,
p. 154).
Para além da composição de Mariinha como personagem simbólica, repre-
sentando antes uma natureza especifica da infância do que expressando traços in-
dividuais, há outra maneira de vislumbrar o universo infantil nesse romance dalci-
diano: através de um conto de fadas que se incorpora na estrutura narrativa. Nessa
lógica, podemos dizer que Dalcídio Jurandir apoia a história da menina do camisão
branco em um conto de tradição popular que há muito permeia o imaginário das
crianças: a Bela Adormecida.
Dessa maneira, o escritor paraense repete um procedimento identificado por
Vicente Salles na escrita do romance Marajó (947). Tal artifício, nas palavras do
crítico, é algo “extremamente valioso na técnica da ficção brasileira”. Nesse caso,
Salles se refere ao fato de que na composição romanesca de Marajó (1947) subjaz a

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

estrutura do romance Dona Silvana, que, embora seja de tradição ibérica, se incor-
porou ao imaginário brasileiro.
O pesquisador, assim, descreve esse procedimento da escrita dalcidiana: “[ele]
decompõe estruturalmente, como faria Wladmir Propp com os contos de fada po-
pular e integra-a depois, por partes, ao seu próprio romance, com os acréscimos
sugeridos pelo contexto local” (SALLES, 1992, p. 371-372). Nesses termos, sime-
tricamente tem-se: o rei tinha uma filha, Coronel Coutinho, “rei” no Marajó tinha
muitas filhas abastadas, dentre elas Orminda; O rei quer casar com a filha: Coronel
Coutinho desejava Orminda; O pai pune a filha: Orminda é punida pela própria
sociedade; Silvana presa na torre: o corpo de Orminda marcado na torre da igreja;
Silvana morta: Orminda morta.
Tal procedimento, entretanto, não parece ser algo isolado e específico do se-
gundo romance dalcidiano, e a técnica de desconstruir a narrativa popular atra-
vés de um processo de decomposição e reelaboração de motivos é mais frequente
do que se possa imaginar no interior do ciclo Extremo-Norte. Em Três casas e um
rio, (1958), por exemplo, essa mesma técnica é realizada a partir do conto da Bela
Adormecida, como mencionei mais acima, apropriando-se do imaginário popular
e infantil de maneira singular.
Conforme informa Marie-Louise Von Franz (2010), uma das primeiras versões
dessa história foi publicada na França, em 1696, por Charles Perrault, e só mais
tarde passa a integrar a sua antologia de contos folclóricos, intitulada de “Contes
de ma Mére l’Oye” (Contos de Mamãe Gansa). Vale esclarecer que até por volta do
século XVII, os contos de fada se destinavam aos adultos e não propriamente ao
público de crianças, muito embora lá se vão alguns séculos que essas histórias ali-
mentam a imaginação infantil.
Dentre as muitas variantes desse conto de fadas, tomo mormente a versão
dos irmãos Grimm, publicada em 1812, como referência para os motes que nos

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parecem servir de base para a técnica utilizada por Dalcídio Jurandir para compor
a história de Mariinha:
1. Por ocasião do nascimento ou batismo a criança é abençoada por um certo
número de figuras maternais e amaldiçoada por uma delas. Essa situação inicial
do conto de fadas é também a primeira aproximação entre o relato popular e a
narrativa dalcidiana, mas por um processo de inversão, visto que quando a irmã
de Alfredo nasce, recai sobre ela o mau agouro de várias senhoras, enquanto que
ela é abençoada por uma única pessoa, a sua figura maternal, D. Amélia: “Quando
nasceu, parecia de sete meses. “Não se cria”, diziam todos. Ela afirmava que sim e a
criou” (JURANDIR, 1994, p. 195).
Essa relação entre fadas e velhas senhoras não é fortuita, uma vez que isto é
reportado por von Franz em O feminino nos contos de fada. A pesquisadora afir-
ma que, em diversas variantes desse conto, as fadas surgem como velhas mulheres
sábias e experientes, um pouco feiticeiras, curandeiras e parteiras. Essa relação é
reiterada também em Três casas e um rio (1958), quando Alfredo busca ajuda para
Mariinha que já agonizava na casa, o menino vê por entre sombras algumas velhas
que lhe parecem agourentas:

ao passar pela casa do extinto tabelião Viriato, parou, cansado, sem esperan-

ças. Viu através da janela alta que dava para a rua do Mercado umas velhas,

na sombra do quarto, espiando-o. Velhas. Eram, sem tirar nem pôr, umas

bruxas de pano. Tão imóveis e velhas na sombra, espiando-o como se lhe

dissessem: não procure quem não está. Mande d. Doduca fazer o enxoval

do anjo para a sua irmã, é que é. Alfredo estremeceu, entre o pressenti-

mento e o medo. As velhas olhavam-no. Houve um momento em que elas

pareciam suspensas do teto, bruxas, bruxas, mudas bruxas de mau agouro”

(JURANDIR, 1994, p. 199).

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

Aqui, as velhas senhoras se vinculam à ideia de bruxa, personagem recor-


rente no repertório dos contos, que vivem a amedrontar as crianças.
2. A maldição é atenuada por uma fada benfazeja. D. Amélia contrariando
o fado predestinado, cuida da menina. Sua condição de fada é manifestada pelo
menos por duas vezes, quando Mariinha numa espécie de delírio, começa a falar
em passeio, boi, fada e Alfredo. É, inclusive, pela perspectiva do menino que se ob-
serva melhor a aproximação entre a figura da mãe e esse ser imaginário: “Viu-a só,
com um negror pálido, majestosa, à cabeceira daquele caixão branco, como uma
fada negra que, com um gesto, poderia levantar daquele berço de rosas e violetas, a
adormecida menina” (JURANDIR, 1994, p. 201)
Isto posto, D. Amélia surge como uma fada negra, cujo negror pálido con-
trasta com a brancura do caixão. Nessa perspectiva, retoma-se, também, o mito
de Deméter, conhecida como a Deusa-mãe ou ainda, como a Negra, uma vez que
esta ficou de luto pela morte da filha. Outro aspecto de similitude diz respeito ao
fato de que Deméter também é considerada a Deusa da Fecundidade, que assiste às
mulheres nos trabalhos de parto, aos que eram pobres, estropiados e infelizes, situ-
ação análoga a de D. Amélia, chamada muitas vezes por Major Alberto de “Noela”,
“Pronto Socorro” da rua de baixo, “a Santa Casa de Miséricordia”, pois sempre esta-
va a ajudar os mais necessitados, dando-lhes comida, roupas, remédios e acudindo
nas horas do parto e da morte:

Ia acudir um menino de olho pedrado, um bichinho amarelo, regado a

banhas e óleos, fedendo a ervas, convulso. Nhá Porcina, mãe tapuia de ca-

boclinhos pescadores, muito prenha, via naquela senhora preta e limpa a

salvação do curumim. [...] Quando chegaram à barraca, d. Amélia pisando o

jirau, já com o defuntinho no braço, sob a chuva, mandou de volta a monta-

ria para buscar nhá Bernarda, a fim de pegar a tempo a criança que ia nascer

(JURANDIR, 1994, p. 30-31).

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Os trechos acima reforçam a bondade de Amélia e reafirmam a simetria


entre essa personagem dalcidiana e Deméter, divindade mitológica que, como
mencionei, conjuga em si vida e morte. Por outro lado, independente do cará-
ter mítico que Amélia possa se revestir, com essa personagem Dalcídio Jurandir
amplia o olhar sobre a miséria do lugar.
3. A princesa encontra a mulher do fuso. Definida a simetria entre Mariinha e
a princesa, entre a fada benfazeja e D. Amélia, é notável, ainda, que a mãe da me-
nina também se assemelha à “velha mulher sentada com o fuso na mão, ocupada
em fiar o linho” (GRIMM apud VON FRANZ, 2010, p. 27), afinal, Amélia possui
um tear e é retratada como fiandeira de redes. O diálogo entre Marinha e Amélia
corrobora ainda mais as relações com o conto de fadas, da mesma forma como
assinala a aproximação com o mito clássico das fiandeiras:

– Que é, minha filha? Os ratos?

– A senhora me disse que um dia ia fazer uma rede pra mim.

– Foi, minha filha. Nos bons tempos eu fazia. Não faço mais. Bem que podia

sustentar meu filho no colégio, fazendo redes.

– Que é bom tempo, mamãe?

– Hum, filhoca, não sei explicar bem. Pergunte a seu pai. Bom tempo é quan-

do eu fazia rede.

– Por que não nasci no bom tempo, hein, mamãe?

– Deixe estar que vou lhe arranjar um bom tempo.

– Então faça uma rede pra mim me embalar, faz? (JURANDIR, 1994, p. 182).

Nessa cena em que a menina pede que ela lhe teça uma rede e D. Amélia
responde que vai arranjar um bom tempo para tecer o artefato para o seu des-
canso, o objeto a ser tecido guarda certa correspondência com o adormecer da
princesa no conto, visto que a rede, no contexto da narrativa, está no mesmo
campo semântico do sono e do descanso.

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

Por outro lado, o ato de tecer se relaciona ao mito grego das Moiras, fian-
deiras do destino de deuses e mortais. Na narrativa clássica, essas divindades
aparecem como três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cor-
tar aquilo que seria o fio da vida de todos os seres. Nessa ordem, elas seriam
responsáveis por presidir a gestação e o nascimento, o crescimento e desenvol-
vimento, e, para os seres humanos, o final da vida, a morte. No caso da obra
dalcidiana, D. Amélia parece agregar em si essas três figuras, pois em certo sen-
tido, ela tece todas essas etapas da vida de Mariinha, que morre em seus braços.
4. A princesa adormece. O tema do sono da princesa e a equivalência entre
sono e morte ampliam o quadro de simetrias entre a Bela adormecida e este epi-
sódio de Três casas e um rio (1958). Sua fada negra atenuou, contudo não pode
evitar que o mau agouro das velhas senhoras pudesse se realizar. Além disso, a con-
figuração do cenário, também aponta para a similaridade com o conto, haja vista
que quando Mariinha cai no sono da morte, a natureza que a cerca se manifesta,
tentando recolher a vida da menina:

Os sinos espalhavam os risos, as palavras e a vida de Mariinha pelo campo,

despencando as flores do algodoal brabo, entre as negras e luzidias iraúnas

que em bandos acompanhavam o enterro. Os cálices murchos tentavam

recolher aquela vida dispersa, as abelhas do pequeno bosque próximo procu-

ravam apanhar também aquele pólen que os sinos espalhavam alegremente”

(JURANDIR, 1994, p. 205).

Destaque-se, nesse fragmento, o lirismo impresso por uma linguagem so-


nora e rítmica que deixa a referencialidade de lado, dando contornos de prosa
poética. A repetição de som consonantal /s/, “os sinos espalhavam os risos, as
palavras [...] despencando as flores [...] as negras e luzidias iraúnas [...] Os cá-
lices murchos” cria o efeito sugestivo da ambiência sonora, que se alia às alu-
sões sonoras da construção imagética: sinos que espalham risos, palavras e a

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própria vida da menina. Por outro lado, as negras iraúnas que acompanham o
enterro, trazem ao ritual funéreo da menina a “solene simpatia da natureza”, o
que conforme Northrop Frye, indica uma retomada do modo mítico de narrar:
“numa obra de ficção mais realística, indica que o autor está tentando dar a seu
herói algumas das implicações do modo mítico” (FRYE, 1973, p. 42).
A plasticidade com que o narrador apresenta a cena é outro aspecto no-
tável, fundindo ao tom mórbido do episódio, um tom festivo. O enterro de
Mariinha, assim, se investe de um faz-de-conta que retoma vários signos da
infância, evocando alegria e vida, em contraste com a tristeza e a morte dos
acontecimentos:

As meninas pulavam as poças como se pulassem corda ou quisessem saltar

sobre as nuvens brancas que fugiam do sol. [...]As moças sorriam, rosadas,

com seus vestidos de festa ou mesmo pálidas, tinham fitas no cabelo, car-

regando o féretro como se ganhassem uma caixa de boneca” (JURANDIR,

1994, p. 204).

É válido lembrar que o crescimento da menina, após a sua morte, asseme-


lha-a, ainda mais, à princesa que adormeceu dos contos de fada. É quando esta
cresce, chegando à idade prenunciada pelas fadas/bruxas, que a Bela adorme-
ce, assim como todas as pessoas ao seu redor, que nas cenas do enterro em Três
casas e um rio (1958) parecem envelhecidas:

Como crescera! Tamanho da moça que deveria ser, segundo a medida de sua

mãe, o tamanho que ela não queria. De qualquer maneira, gostaria de se ver

assim tão crescida. E com toda a gordura, de onde desabrochavam aquelas

flores que enchiam o esquife. Toda a juventude se recolhera naquele rosto de

menina, agora moça, porque os demais rostos dos que ali estavam, em torno

dela, haviam envelhecido (JURANDIR, 1994, p. 207).

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

5. O beijo do príncipe. Na reelaboração arquitetada por Dalcídio Jurandir,


Alfredo, protagonista da obra e personagem de várias peripécias, é investido aqui
da figura do príncipe que nas narrativas maravilhosas, em geral, é quem salva a
princesa. Aliás, a solução do beijo, presente no conto de fadas, é cogitada no enredo
dalcidiano por Alfredo, ainda que imaginariamente:

Que faltava para abrir os olhos, mexer os lábios como quando dormia e lhe

perguntar, espantada: que foi que aconteceu? E se ela, com seu beijo de ir-

mão na testa, agora tão gelada, acordasse, se levantasse e saísse de braço dado

com ele, correndo, espalhando as flores do caixão pelo campo? (JURANDIR,

1994, p. 207)

Entretanto, a solução mágica não é possível, “o príncipe” dalcidiano reco-


nhece que não pode realizar um desfecho feliz, e nem mesmo o seu carocinho
de tucumã, que, tantas vezes o menino acreditou ser mágico, pode ressuscitar
sua irmã, afinal, “Morte é morte e a perda de Mariinha era para sempre, por
isso seria demais para o faz de conta. Faz de conta sim, enquanto se vive, se tem
esperança, há futuro” (JURANDIR, 1994, p. 208-209).
Avaliando a incorporação e reelaboração dos temas do conto na arquitetu-
ra do romance, cujo contexto ficcional é uma cidade do interior da Amazônia
do período pós Belle-Époque, penso que a inexistência de um final feliz revela
mais uma vez o aspecto simbólico da personagem Mariinha, que representa,
como dito anteriormente, uma coletividade. Portanto, o desfecho do episódio
dá conta do desmascaramento da realidade social dessas crianças que tem uma
vivência sofrida e que sem as condições necessárias, tais como educação e saú-
de, não há soluções mágicas que lhes possam retirar do desvalimento em que
sobrevivem.
Assim, a presença desse conto de fadas se revela, ao cabo, como um anti-
-conto de fadas dissolvido na estrutura da própria narrativa, ao mesmo tempo

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que evoca o imaginário de Alfredo, já que muitos desses elementos vêm a partir
da sua percepção. Dessa forma, nesse episódio, há uma dupla referência à in-
fância, a partir das personagens e da evocação do imaginário infantil, seja pela
consciência imaginativa de Alfredo, seja pela incorporação do conto de fadas.
Vale ressaltar, que a morte de Mariinha para a economia textual é extre-
mamente relevante para o processo de identificação pelo qual Alfredo passa no
desenrolar do romance. Na realidade, é uma espécie de ritual de passagem, na
qual a transposição da vida à morte da irmã leva-o a um caminho inverso, da
morte à vida: “e este [o futuro], no mínimo, estava intacto, herdando da irmã
morta a vida que ele teria de viver, as esperanças e os sonhos deixados por
Mariinha” (JURANDIR, 1994, p. 209). Isso trará ao protagonista do ciclo um
crescente sentimento de que ele carrega em si os sonhos de outras crianças. A
morte de Mariinha, em todo caso, representa a morte de tantas crianças pela
febre, ou mesmo por outras doenças, em um contexto de decadência financei-
ra. Crianças que sem assistência médica não conseguem sobreviver.

Considerações finais
Dalcídio Jurandir foi um romancista que produziu, sem dúvida nenhu-
ma, uma literatura empenhada, comprometida em denunciar a situação de
pobreza da Amazônia paraense, interpretando os dramas sociais e pessoais
da gente menos abastada da região, no início do século XX. Nesse projeto de
caráter ético, a infância e o imaginário infantil tornam-se aspectos de rele-
vo na ficção dalcidiana, constituindo-se como instrumentos de denúncia da
condição social das classes empobrecidas. O menino Alfredo, protagonista do
ciclo Extremo-Norte, vive dramas e conflitos tão complexos que conformam uma
densidade aos romances e um aprofundamento ao quadro de representação de uma
Amazônia esquecida pelo poder público.
Essas mesmas categorias, infância e imaginário infantil, são utilizadas como
estratégias narrativas muito bem cuidadas na elaboração da escrita dalcidiana,

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Iii. O ético e o estético em Dalcídio Jurandir: a reelaboração do conto Bela adormecida em Três casas e um rio (1958)

tornando-se elementos estéticos muito significativos, como são, por exemplo, os


procedimentos que vimos no romance Três casas e um rio (1958). A construção dos
personagens de Alfredo e Mariinha são fundamentais para a elaboração do painel
social que ilustra a vida interiorana sem educação e saúde de qualidade.
Todavia, é no processo de decomposição/recriação/incorporação de motivos
da Bela adormecida que a consciência estética do autor se manifesta e amplia a denún-
cia das mazelas sociais. Esse conto de fadas, de origem popular e que há séculos está
presente no imaginário infantil, se decompõe e se torna uma espécie de anti-conto de
fadas, justamente, porque a realidade se impõe e não há espaço para a ilusão, ou para
a solução mágica dos contos maravilhosos. A morte de uma criança não poderia ser
romantizada, por isso Dalcídio Jurandir rearticula aqueles motes, o que demonstra que
o seu comprometimento ético e empenhado não oblitera o estético, pelo contrário, é o
seu tratamento estético que potencializa o valor social de sua escrita.

Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro:
LCT, 2011.
FRYE, Northrop. Crítica histórica: teoria dos modos. In: FRYE, Northrop.
Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
FURTADO, Marli Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio
Jurandir. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010.
JURANDIR, Dalcídio. Eneida entrevista Dalcídio. Folha do Norte, 23 de outubro
de 1960. Entrevista concedida a Eneida de Moraes.
JURANDIR, Dalcídio. Marajó. Belém: Cejup, 1992
JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. 3. ed. Belém: Cejup, 1994.
JURANDIR, Dalcídio. Um escritor no purgatório. Revista Mensal de Literatura
Escrita, ano I, n. 6, 1976. Entrevista concedida a Antonio Torres, Haroldo
Maranhão e Pedro Galvão.
SALLES, Vicente. Chão de Dalcídio. In: JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3ª ed.
Belém: Cejup,1992, p. 360-381.
VON FRANZ, Marie-Louise. O feminino nos contos de fada. Petrópolis, RJ: Vozes,
2010.

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IV. Ecos da música de outrem em obras,


espaço/tempo e contextos diversos
Anna Paula Ferreira da Silva

- O senhor é mesmo uma influência negativa, Lord Henry? Tão negativa quanto

o diz Basil?

- Influências positivas não existem, Sr. Gray. Toda influência é imoral... imoral,

do ponto de vista científico.

- Por quê?

- Porque influenciar uma pessoa é dar a ela a própria alma. Ela passa a não pen-

sar com seus pensamentos naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para

ela, reais. Os pecados que comete, se é que existem pecados, são todos tomados

por empréstimo. Ela se torna um eco da música de outrem, ator de um papel não

escrito para ela.

(Oscar Wilde)

Introdução
O fragmento acima foi extraído da obra O retrato de Dorian Gray (2018), de
Oscar Wilde. Nele podemos observar um diálogo entre o pintor Basil, o jovem
Dorian Gray (que estava sendo pintado) e o colega de ambos, Lord Henry.
Talvez não possamos partir do mesmo ponto de vista de Lord Henry, visto
que ele considera a influência como algo negativo. Tomemos então as justifi-
cativas dadas em resposta ao questionamento de Dorian Gray, o qual diz que
“[...] influenciar uma pessoa é dar a ela a sua própria alma. [...] Os pecados que
comete, se é que existem pecados, são tomados por empréstimo. Ela se torna
um eco da música de outrem, [...]” (WILDE, 2018, p. 24).

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Ao trazermos a questão para o campo dos estudos literários, a influência


poderá ser compreendida positivamente. Isso porque entendemos que uma
obra que dialoga com uma narrativa clássica, se bem elaborada, dificilmente
cometerá grandes erros, porque haverá nela a ‘alma’ da obra que serviu de re-
ferência, tornando-se um ‘eco’ da obra prima, podendo ser atualizada por meio
da espacialidade, do contexto e das ideias que intenta transmitir.
Assim, embalados por essa concepção, no que tange à influência, tece-
remos neste estudo, uma breve análise comparativa entre três obras: o conto
Negrinha (2009), o conto Um coração simples (2015) e o romance Dois irmãos
(2000), com enfoque na relação estabelecida entre o espaço/tempo e as perso-
nagens das obras, tecendo uma análise comparativa entre ambas.
Para fazermos a análise comparativa da espacialidade das obras recorrere-
mos ao conceito bakhtiniano, o qual, em Questões de literatura e estética, discu-
te sobre o caráter indissociável entre tempo e espaço, denominado por ele de
cronotopo. O cronotopo artístico proposto em seus estudos, consiste na fusão
do tempo e do espaço. Para ele, “Os índices do tempo transparecem no espaço,
e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo” (BAKHTIN, 1998,
p. 211). Esta acepção nos leva a acreditar que para construirmos uma análise
que dê conta de refletir sobre parte das relações estabelecidas entre o espaço e
a personagem de cada obra, assim, para apontarmos as diferenças entre ambas,
torna-se necessário considerar o contexto histórico no qual cada narrativa foi
produzida, bem como as ideias que cada narrador intenta transmitir.
Assim, delimitaremos a análise da espacialidade e as relações estabelecidas
no âmbito da narrativa, trabalhando com o contexto crítico no qual cada autor
está inserido, bem como o contexto histórico do qual as obras fazem parte.
O romance Dois irmãos (2000) conta a história dos gêmeos Omar e Yaqub.
Eles são filhos dos libaneses Zana e Halim e têm uma irmã mais nova, chamada

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Rânia. A família ainda é composta por dois agregados: Domingas, uma índia
‘adotada’ pelo casal de libaneses, e seu filho Nael.
Em meio aos personagens que constituem este romance, voltaremos nos-
so olhar a Domingas, “Uma beleza de cunhatã (...). Que chegou com a cabe-
ça cheia de piolhos e rezas cristãs, lembrou Halim” (HATOUM, 2000, p. 64).
Domingas foi adotada quando pequena, e assim que chegou à casa do casal,
teve seu lugar reservado: um quartinho de madeira, disposto nos fundos da
casa da família. Assim, ela ficou responsável pelos afazeres domésticos. Com
o passar dos tempos ela começou a nutrir uma imensa vontade de ser livre,
mas, segundo o narrador Nael, “ela não tinha coragem, quer dizer, tinha e não
tinha; na dúvida, preferiu capitular, deixou de agir, foi tomada pela inação”, ou
seja, ao que parece, não teve forças para reagir e terminou seus dias servindo a
família libanesa.
Esta personagem chamou nossa atenção, pois, de forma simbólica (no
sentido de representar toda classe de ‘índios’ que ainda eram escravizados em
Manaus, no início do século XX), o narrador faz denúncias, no que se refere a
esta prática: “(...) não muito diferente das outras empregadas da vizinhança, al-
fabetizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas todas vivendo nos fun-
dos da casa, muito perto da cerca ou do muro, onde dormiam com seus sonhos
de liberdade.” (HATOUM, 2000, p. 67).
As passagens acima ilustram nitidamente o lugar marginalizado em que a
personagem Domingas se encontra, e, no decorrer da narrativa, a relação es-
tabelecida entre ela e seu lugar vão ganhando novos sentidos, e essa afinidade
entre ambos será desenvolvida no decorrer das comparações com as outras
obras em análise.
Nosso interesse em comparar essas três narrativas se desenvolveu a par-
tir de uma entrevista concedida por Milton Hatoum à revista Magma-USP, e

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disposta no livro de ensaios intitulado Arquitetura e memória (2007). O questio-


namento e a resposta foram os seguintes:

Revista Magma-USP: Você considera sua prosa influenciada por quais auto-

res? Seria viável, em razão do traçado memorialístico, localizarmos em suas

narrativas um parentesco com Proust?

Milton Hatoum: Parentesco com Proust? Nem de brincadeira! Influências

vêm de toda parte, e às vezes a gente nem percebe quem nos inspirou, suge-

riu uma frase, uma passagem, uma ideia. Claro que há referências mais ou

menos explícitas. (...) E no Dois Irmãos, a dívida a dois grandes textos, o Esaú

e Jacó, do Machado e um conto extraordinário de Flaubert: “Um Coração

Simples” (CRISTO, 2007, p. 29).

Antes de tecermos comentários sobre a obra na qual delinearemos a


comparação, é imprescindível discorrer sobre a primeira parte da resposta de
Hatoum, na qual salienta que “influências vêm de toda parte”. A resposta em
destaque corrobora o pensamento da crítica literária atual. José Luís Jobim, em
Literatura e cultura: do nacional ao transnacional (2013), discorre no subtítulo,
intitulado Revendo o passado: modos de apropriação de Marinetti e Karl Vosseler,
sobre as várias abordagens adotadas por Marinetti, no âmbito teórico, nas
quais apontam as controvérsias referentes aos modos de apropriação. Jobim
retoma historicamente/cronologicamente os dois teóricos dispostos acima, a
fim de esclarecer os caminhos trilhados e as possíveis maneiras de se compre-
ender os modos de apropriação atualmente:

Se fossemos generalizar, poderíamos talvez dizer que a obra literária é sem-

pre um efeito do passado da cultura e da língua em que ela se inscreve, porém

a sua escrita pode ser não apenas a confirmação de um arquivo da tradição,

a reiteração de uma proposta do mesmo, a confirmação de uma identidade

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previamente anunciada, mas também uma experiência de alteridade: uma

experiência em que o passado ressoa em um presente que o reconhece como

um ancestral, mas na qual o presente não se reconhece como o mesmo an-

terior (JOBIM, 2013, p. 46).

As passagens acima, de certa maneira, já foram discutidas anteriormente


em Palavras da crítica (1992). Neste livro constam vários artigos organizados
por José Luis Jobim, dentre eles há o intitulado Influência, escrito por Arthur
Nestrovski.
Nestrovski (1992) rememora os textos que também discutem sobre o ter-
mo e as abordagens sugeridas em cada um. Entre os escritos retomados por
ele estão a crítica de T.S. Eliot, Jorge Luis Borges e Harold Bloom. Nestrovski
(1992) discute o termo desde a etimologia, passando pelas questões levantadas
em cada um dos autores citados.
Segundo consta em seu artigo, para Eliot, “a influência é o fator que orga-
niza a tradição; e a tradição, ou melhor, a consciência que o poeta faz da tradi-
ção é precisamente o que pode (ou não) fazer dele um poeta.” (NESTROVSKI,
1992, p. 216). Eliot parte do pensamento que a tradição traz para os escritos
subsequentes embasamento, deixando-o mais fundamentado.
Apesar de o raciocínio de Eliot, que converge com os demais escritos dis-
cutidos no texto de Nestrovski (1992), ter certa antiguidade, não pode ser refu-
tado, visto que na atualidade os críticos literários ainda levam em consideração
a necessidade de reportar-se à tradição – o que torna negativo o pensamento,
quanto à influência, de Lord Henry – e que Mario de Andrade também discute,
segundo o texto de Jobim (2013): “toda tentativa de modernização implica a
passadistização da coisa que a gente quer modernizar. Assim nos sujeitos indi-
víduos que tentam é natural, quase imprescindível a psicologia do revoltado”
(JOBIM, 2013, p. 47).

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Jorge Luis Borges compreende que a identificação da tradição/do pas-


sado, referente às influências, se dá por meio da leitura, na visão de Borges,
segundo Nestrovski “(...) é a leitura, portanto, que coordena a tradição.”
(NESTROVSKI,1992, p. 217).
Harold Bloom é compreendido como um crítico linear, que está preocu-
pado em demonstrar as relações passivas da intertextualidade, apresentan-
do o escritor que absorve outro escritor anterior, formando um cânone de
precedências.
Além das críticas expostas nos parágrafos anteriores, muitos outros críti-
cos, como romancistas, contistas e demais escritores, deixaram transparecer
suas influências. Guimarães Rosa citou: “Eu sou donde nasci. Sou de outros
lugares.”
Na obra A hora da estrela (1998), de Clarice Lispector, o narrador também
elucidou suas ‘influências’ na ‘Dedicatória do Autor’:

Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são

hoje ossos, ai de nós. (...) dedico-me sobretudo aos gnomos, anões, sílfides

e ninfas que habitam a vida. Dedico-me à saudade de minha antiga pobre-

za, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta.

Dedico-me à tempestade de Beethoven. (...) Sobretudo dedico-me as véspera

de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev,

a Carl Orff, a Schonberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos ele-

trônicos – a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente

inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a

mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós,

pois não aguento ser apenas mim, preciso de outros para me manter de pé

(...)” (LISPECTOR, 1998, p. 9).

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Entendemos que entre os três textos, Negrinha (2009), Um coração simples


(2015) e Dois irmãos (2000), há relação no que tange às influências temáticas e
consequentemente, características muito próximas, referentes à composição
do perfil das personagens e da constituição do espaço.
Clarice Lispector, assim como Mario de Andrade e Guimarães Rosa, fa-
zem parte do ranking dos consagrados escritores brasileiros. Não somente pelo
reconhecimento de suas obras, mas, sobretudo pelo posicionamento crítico,
ilustrado nos textos supracitados e em seus demais escritos. A crítica em for-
ma de narrativa, construída por Clarice na dedicatória em que ela dá voz ao
narrador, e, por conseguinte aos seus ideais, em que diz “[...] preciso de outros
para me manter de pé [...]”, vem ilustrar e confirmar o conceito de influência
discutido por nós.
Em suma, o que todos os textos dispostos anteriormente têm em comum,
no que tange à influência, é a intertextualidade, e, de certa forma, a impossi-
bilidade de escrever sem ser influenciado. Destarte, nossa análise, que precisa
“de outros para manter-se de pé”, trabalhou a partir dos textos elencados aci-
ma, tendo em vista que a nossa intenção consistiu em tentar mostrar as manei-
ras com que as personagens e suas interações com a espacialidade da narrativa
fizeram ressoar o passado (as obras com as quais faremos a comparação), no
que concerne a obra literária, sem deixar de ser própria/original.
Aqui trabalhamos a partir do entendimento de que a influência se dá a
partir do outro, e também levamos em consideração a concepção extraída
do capítulo O original e o próprio, o derivado e o impróprio, disposto no livro,
Literatura e cultura: do nacional ao transnacional, no qual Jobim mostra parte
das discussões dispostas nas cartas trocadas entre Mário de Andrade e Carlos
Drummond de Andrade:

Como vimos, Mário vai utilizar também este raciocínio na carta de

Drummond, em que diz que aquilo que Drummond pega dos outros é o que

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já é dele (Drummond). Trata-se de um modo de ver que está conforme a

ideia de que as “importações” literárias e culturais guardam relação direta

com os interesses e o contexto de quem faz a importação – e não necessa-

riamente com o contexto de onde se retiraram estas importações (Jobim,

2013, p. 157).

Mario de Andrade, ao discutir sobre as ‘importações’ literárias, traz a lume


a concepção de que a partir do momento que um escritor faz uma importação
literária, ou seja, discorre sobre um mesmo tema, traz em seu texto enredos
e personagens com características muito próximas de uma obra antecedente,
não cópia. Isto porque, segundo ele, estas importações estão em concordância
com o contexto de quem as escreve e não mais com o contexto de quem as
inspirou.
Dessa forma, analisaremos os aspectos semelhantes entre as obras de
Hatoum, Flaubert e Monteiro Lobato, no que diz respeito à relação entre as
personagens e os espaços, sem deixar de levar em consideração os indícios do
“poeta forte”, o qual é caracterizado por Bloom, segundo Nestrovski, como
aquele que é “capaz de sobreviver ao conflito edipiano com a tradição, criando
para si um lugar ao sol e escapando da sombra do precursor” (NESTROVSKI,
1992, p. 222).
Na resposta dada à entrevista disposta na parte inicial desta análise, Milton
Hatoum afirmou que Dois irmãos (2000) tem uma dívida com “[...] dois grandes
textos, o Esaú e Jacó, do Machado e um conto extraordinário de Flaubert: “Um
Coração Simples” (CRISTO, 2007, p. 29).
Ao entrarmos em contato com a tradução do conto de Flaubert, feita e
organizada por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., em um livro que comporta
três contos do autor francês, confirmamos o que Hatoum havia dito na entre-
vista e mais um pouco. Percebemos haver semelhanças entre as personagens

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Felicité, Domingas e Negrinha (personagem principal do conto de Monteiro


Lobato).
Assim, levando em consideração a semelhança entre ambos, começaremos
nossa análise apresentando o conto Um coração simples (2015), trazendo à baila,
sempre que conveniente, as passagens das outras narrativas – Negrinha (2009)
e Dois irmãos (2000) – que dialogam com o conto de Flaubert. Posteriormente,
quando se fizer necessária, incluiremos a apresentação do conto de Monteiro
Lobato.
O conto do escritor francês Gustave Flaubert (2015) narra a história de
Felicité, órfã de pai e mãe, que, ainda muito pequena, precisou trabalhar na
casa de estranhos, cuidando de animais, para poder sobreviver. Era maltratada,
e acabou sendo expulsa da fazenda onde trabalhava, acusada de um roubo que
não havia cometido, assim, precisou sair à procura de outro emprego.
Quando Felicité completou dezoito anos, apaixonou-se e entregou-se a
Théodore, que foi seu primeiro e único amor, segundo a narrativa explicita.
Seu namorado não cumpriu a promessa de casamento, pois trocou Felicité por
uma senhora rica.
Assim, o narrador descreve o sofrimento de Felicité diante da decepção
amorosa:

Foi uma dor tumultuada. Ela se atirou ao chão, deu gritos, clamou por Deus

e ficou gemendo sozinha em pleno campo até o amanhecer. Em seguida,

voltou para a fazenda, declarou sua intenção de deixá-la; e, ao final do mês,

depois de receber suas contas, embrulhou toda sua pequena bagagem num

lenço e viajou para Pont-l’Évêque (FLAUBERT, 2015, p. 16).

Como podemos observar, a personagem sofreu sozinha com o fim do na-


moro, e por esse motivo decidiu ir embora. Negrinha, personagem de Monteiro
Lobato, também, sofreu por conta de uma desilusão. Este conto tem o foco

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narrativo em terceira pessoa e se situa no Brasil pós-libertação dos escravos,


aproximadamente no ano de 1900. Negrinha “nascera na senzala, de mãe es-
crava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre
velha esteira e trapos imundos” (LOBATO, 2009, p. 19). A criança contava sete
anos de idade e até então nunca desfrutara dos prazeres a que toda criança tem
direito. Ela nunca brincava, e sua única diversão consistia em ficar olhando o
pássaro que saía do cuco que contava as horas na casa de dona Inácia.
Como vimos na descrição que caracteriza Negrinha, para criar um espa-
ço de contraste entre Negrinha e dona Inácia, o narrador descreve o local em
que a criança vivia: “sobre velha esteira e trapos imundos” (LOBATO, 2009, p.
19). Dona Inácia, a patroa, maltratava muito Negrinha. Ela alcunhava a crian-
ça com muitos nomes pejorativos: “pestinha, diabo, coruja, barata descascada,
bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorri-
nha, coisa ruim, lixo [...]” (LOBATO, 2009, p. 20). Segundo o narrador, a patroa
“conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente deri-
vativo.” (LOBATO, 2009, p. 21): “O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague,
mas não lhe tirou da alma a gana” (LOBATO, 2009, p. 21). Percebemos que a
narrativa denuncia os maus tratos à Negrinha, praticados pela dona Inácia.
Neste sentido, as personagens de Monteiro Lobato parecem ser alegóricas, no
sentido de representarem tanto os escravos que ainda sofriam com o fim da
escravidão, quanto os senhores de escravos que, muitos, naquele momento,
ainda não haviam deixado de maltratar os negros.
Negrinha, assim como Felicité, foi iludida. Não por um namorado, mas
por uma autorização para brincar. Como dissemos nos parágrafos anteriores,
ela não brincava e, portanto, não sentia nenhum prazer. Era uma pequena pri-
sioneira, assim como Domingas o era da casa da Família Libanesa.
Acontece que certo dia, duas sobrinhas de dona Inácia foram, de férias,
passar uns dias na casa da tia. Ao chegarem “Negrinha viu-as irromperem pela

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casa como dois anjos do céu – alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos” (LOBATO, 2009, p. 22). Negrinha pensou que dona Inácia
iria castigar as meninas como fazia com ela caso tentasse pular ou brincar, mas:

[...] abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar?

Estaria tudo mudado - e findo inferno - e aberto o céu? No enlevo da do-

ce ilusão, Negrinha Levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela

alegria dos anjos. Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou

a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos o som cruel de todos os dias: “já

para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?” (LOBATO, 2009, p. 23).

Negrinha voltou para seu lugar e ficou, de longe, observando as meninas.


Quando viu a boneca “Era de êxtase o seu olhar” (LOBATO, 2009, p. 23). Sem
se dar conta começa a brincar com as sobrinhas de dona Inácia. A patroa, ao
perceber que as sobrinhas estavam contentes, autoriza negrinha para brincar:

Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas com-

preendeu que era uma criança artificial. – é feita?... – Perguntou extasiada. E,

dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a provi-

denciar a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente,

tudo, e aproximou-se da criaturinha de louça. Olhou-a com assombro encanto,

sem jeito, sem ânimo de pegá-la (LOBATO, 2009, p. 23).

Em seguida, as meninas perceberam que Negrinha nunca havia visto uma


boneca e ofereceram o brinquedo para que ela o pegasse.
A menina não hesitou, pegou a boneca e começou a brincar com as meni-
nas. Sem perceber, dona Inácia adentrou a sala e, ao ver que as sobrinhas esta-
vam contentes, liberou Negrinha para brincar: “– Vão todas brincar no jardim,
e vá você brincar também, mas veja lá, hein?” (LOBATO, 2009, p. 24).

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“Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma – na princesi-


nha e na mendiga.” (LOBATO, 2009, p. 24). É com essa reflexão que a narrativa
aponta a essência de toda a criança e tece, com simplicidade, uma crítica pro-
fundamente tocante no que tange à desigualdade social.
O narrador aponta como Negrinha, a partir da ‘autorização para brincar’,
obteve consciência de que era um ser humano:

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma.

Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desa-

brochava, afinal, como fulgurante flor de Luz. Sentiu-se elevada à altura de

ente humano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia impossível viver

vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi – e essa cons-

ciência a matou (LOBATO, 2009, p. 25).

Finda as férias, as sobrinhas de dona Inácia foram embora, e com em elas


a boneca que dera consciência à Negrinha.
A rotina da menina voltou à normalidade de antes, contudo ela entrou em
uma tristeza profunda e essa tristeza acarretou sua morte:

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.

Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a

de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos.... e bonecas e anjos re-

moinhavam lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por

aquelas mãozinhas de louça – abraçada, rodopiada. Veio a tontura; uma né-

voa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco.

Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de

boca aberta (LOBATO, 2009, p. 25).

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Assim morreu Negrinha, em meio a delírios com o símbolo que despertou


sua consciência, no que tange à liberdade de ser humano. Negrinha teve um
fim muito semelhante ao de Felicité e ao de Domingas.
Felicité, após a desilusão amorosa, conhece a senhora Aubain, se instala
em sua casa para servi-la até a morte.
Esta personagem também é constituída de inocência. Assim como
Negrinha e Domingas, não tem consciência dos seus direitos. Ela, com um co-
ração simples que tem, cuidou dos filhos da patroa e se apegou a eles, contudo,
a senhora Aubain não permitia que ela se aproximasse muito dos filhos, re-
pressão que a fazia sofrer.
Assim como Negrinha encantou-se pela boneca, Felicité maravilhou-se
por um papagaio que a sua senhora ganhou de uma vizinha. Na passagem a
seguir podemos observar tanto o encantamento da personagem, quanto indí-
cios do tempo histórico. O conto de Flaubert é ambientado na efervescência
das grandes navegações, e o papagaio representa, no conto do escritor francês,
a válvula de escape para aquela personagem que vive confinada na casa da pa-
troa. O papagaio a fazia relembrar de seu sobrinho Victor, que era grumete e
morreu na América:

Nesse dia, sucedeu-lhe uma grande felicidade: na hora do jantar, o negro da

sra. de Larsonnière chegou à casa, trazendo o papagaio em sua gaiola, com

o poleiro, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à sra.

Aubain que, seu marido tendo sido promovido a uma prefeitura, partiam

naquela noite; e lhe pedia que aceitasse aquela ave, como lembrança e si-

nal de sua consideração. Fazia muito que o papagaio ocupava a imaginação

de Félicité, pois vinha da América; e esta palavra lhe trazia a lembrança de

Victor, tanto que costumava perguntar ao negro por ele (FLAUBERT, 2015,

p. 33).

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O papagaio fora dado à senhora Aubain, contudo, como ela não tinha
apreço a animais, deu-o para Felicité, que acabou adquirindo apego pela ave.
Chamou-o de Loulou. E, como indica a passagem acima, naquele dia, aquela
personagem que levara uma vida de sofrimentos, teve, com a chegada do papa-
gaio, uma grande alegria.
Com o passar do tempo, o papagaio, que era seu único companheiro, mor-
re. A senhora Aubain, vendo que a empregada estava muito triste, manda em-
palhar a ave. Assim que a ave chega, Felicité a coloca em um altar e reconhece
a ave como o Espírito Santo. Todos os dias ajoelhava-se em frente à ave para
fazer suas orações.
O conto encaminha-se para o fim e ganha aspectos de decadência. Com a
velhice a personagem também ganha características decadentes: “Em seguida
a um resfriado, teve uma angina; pouco depois, uma dor de ouvido. Três anos
mais tarde, ficou surda;” (FLAUBERT, 2015, p. 35).
Negrinha teve como ‘berço da vida’ e da ‘morte’ uma “esteirinha rota”.
Domingas, cresceu e morreu “[...] nos fundos da casa, onde havia dois quartos,
separados por árvores e palmeiras” (HATOUM, 2000, p. 64). Nael, seu filho,
narra o momento de sua morte, e assim descreve seu quarto:

Eu a encontrei enrolada na rede de Omar, que ela armara em seu quartinho.

[...] Vi os lábios dela ressequidos, o olho direito fechado, o outro coberto por

uma mecha grisalha. Afastei a mecha, vi outro olho fechado. Balancei a rede,

minha mãe não se mexeu. Ela não dormia. Vi o corpo que oscilava lenta-

mente, comecei a chorar. Sentei no chão ao lado dela e fiquei ali, aturdido,

sufocado. Durante o tempo que a contemplei, no vaivém da rede, reme-

morei as noites que dormimos abraçados no mesmo quartinho que fedia a

barata. Agora outro cheiro, de madeira e resina de jatobá, era mais forte.

Os bichinhos esculpidos em muirapiranga estavam arrumados na prateleira.

Lustrados, luziam ali os pássaros e as serpentes. O bestiário de minha mãe:

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miniaturas que as mãos dela haviam forjado durante noites e noites à luz

de um Aladim. As asas finas de um saracuá, pássaro mais belo, empoleirado

num galho verdade, enterrado numa bacia de latão. Asas bem abertas, peito

esguio, bico para o alto, ave que deseja voar. Toda a fibra e o ímpeto da minha

mãe tinham servido os outros (HATOUM, 2000, p. 244).

Domingas, também passou a vida servindo a família libanesa, e teve como


‘berço da morte’ seu quartinho nos fundos casa. Nael narra a morte da mãe,
descrevendo o cuidado, o zelo e apreço que Domingas tinha para com seus
pássaros esculpidos em madeira.
Felicité, por sua vez, guarda em seu quarto objetos que a fazem lembrar
pessoas e momentos felizes:

Um grande armário estorvava a abertura da porta. Do outro lado da janela

acima do jardim, uma claraboia dava para o pátio de entrada; uma mesa, ao

lado da cama de tiras de couro, servia de apoio a uma jarra d’água, dois pen-

tes e um cubo de sabão azul num prato de borda rachada. E nas paredes se

viam: terços, medalhas, várias imagens da Virgem, um vaso para água benta

feito de um coco; em cima da cômoda, coberta com uma toalha, como um

altar, a caixa de conchas que Victor lhe dera de presente; e mais um regador

e uma bola, cadernos, a geografia em estampas, um par de botinas; e no pre-

go junto ao espelho, preso por suas fitas, o gorro de pelúcia! Félicité levava

tão longe esse tipo de respeito que conservava uma das casacas de monsieur.

Todas as velharias que a sra. Aubain não queria mais, levava para seu quar-

to. Assim, havia flores artificiais à beira da cômoda, e o retrato do conde de

Artois num nicho da parede (FLAUBERT, 2015, p. 37).

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Negrinha, Felicité e Domingas: três personagens órfãs, que moram de fa-


vor e que servem à casa em que habitam até a morte. A constituição dessas
personagens também se revela no espaço destinados a elas.
É nesse espaço que a posição moral e social delas são simbolicamente
constituídas. Os quartinhos de Domingas e Felicité, bem como o tapete no
chão da cozinha úmida em que Negrinha dormia, geram efeito de contraste
com os demais espaços da casa em que habitam. O quarto é a única alternativa
de refúgio, e a boneca, o papagaio e os bichinhos talhados na madeira, a espe-
rança de liberdade, o ponto de apoio encontrado para que as personagens pos-
sam fugir da realidade cruel, gerando na narrativa um efeito simbólico de con-
tradição entre o espaço do marginalizado em detrimento dos demais espaços.
Antonio Candido, em O discurso e a cidade (2015), no subtítulo O espa-
ço degradado, ao comparar a espacialidade de L’Asommoir (1877), de Zola,
com O cortiço (2004), de Aluísio de Azevedo, mostra a degradação do espaço
e os efeitos que ela produz na obra, como a maneira com que a personagem
Gervaise é ‘cuspida’ do universo da técnica e do objeto manufaturado, e volta
a se prostituir:

[...] Gervaise retorna a uma situação primitiva, que procura superar usando o

próprio corpo como um objeto negociável. Ou seja: indo ao cabo do proces-

so alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que lhe nega

condições para se humanizar. É uma recuperação monstruosas da natureza,

pela impossibilidade de participar da cultura industrial. Depois disso pode

morrer (CANDIDO, 2015, p. 82).

As três personagens estudadas por nós foram privadas, assim como


Gervaise, de sentirem e viverem suas próprias vidas, dando prioridade aos seus
gostos e desejos, ou até mesmo constituindo seus próprios lares. Elas passaram
a vida dentro de um lar alheio, em espaços subalternos, servindo suas senhoras:

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“Um pequeno milagre, desses que servem para a família e as gerações vindou-
ras, pensei. Domingas serviu; e só não serviu mais porque a vi morrer, quase
tão mirrada quanto no dia em que chegou à casa, e, quem sabe, ao mundo
(HATOUM, 2000, p. 65).
As três morreram em meio aos seus respectivos espaços; Negrinha e
Felicité, em meio a delírios; Domingas, cercada por seus bichinhos entalhados
na madeira.
Negrinha via bonecas em suas alucinações, e Felicité morreu com a ima-
gem do papagaio em seus pensamentos:

Um vapor azulado subiu até o quarto de Félicité. Ela avançou as narinas,

inspirando aquele fumo com uma sensualidade mística; em seguida fechou

as pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração foram fi-

cando mais lentos um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma

fonte que se esgota, um eco que desaparece; e, quando ela exalou seu último

alento, julgou ver, nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando

acima de sua cabeça (FLAUBERT, 2015, p. 43).

Domingas, Felicité e Negrinha. Três órfãs. Três nomes. Três significados.


Uma só vida. Um só destino.
Domingas significa “pertencente ao Senhor”, e faz referência ao domingo
que, conforme a Bíblia é o dia do descanso. Ironicamente (ou não), a persona-
gem de Hatoum não tinha um só dia de descanso. Trabalhava de domingo a
domingo. Felicité é um nome francês e significa felicidade. Ironicamente (ou
não), o oposto da vida da personagem do conto. Negrinha soa, no contexto do
conto, como um termo pejorativo: uma sem-nome, visto que Negrinha remete
à pele, a toda uma raça. É ao mesmo tempo símbolo e nada.
Antonio Candido (2015), ao concluir o subtítulo De cortiço a cortiço, apon-
tou o diálogo entre o texto de Aluísio de Azevedo e de Zola, mostrando que

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as semelhanças “servem para mostrar a derivação [...] Mas ao mesmo tempo


interpretar a realidade que o cercava e sob este aspecto elaborou um texto pri-
meiro. Texto primeiro na medida em que filtra o meio, com lentes tomadas
de empréstimos[...]” (CANDIDO, 2015, p. 108). Assim, temos três personagens
simbólicas, representadas de maneira semelhante, mas cada uma em seus res-
pectivos contextos.
Antonio Candido conclui o subtítulo, salientando que: “A consciência das
condições próprias do meio brasileiro interferiu na influência literária, tornan-
do o exemplo francês uma fórmula capaz de funcionar com liberdade e força
criadora em circunstâncias diferentes.” (CANDIDO, 2015, p. 111)
Dessa forma, terminamos nossa análise comparativa, na qual mostra-
mos os diálogos e/ou influências que um texto ecoou em outro, salientando
que, apesar das semelhanças, Negrinha foi escrito em um contexto histórico
brasileiro em que as pessoas ainda não haviam se libertado totalmente da es-
cravidão, portanto, a obra de Monteiro Lobato, ainda no tom abolicionista de
Castro Alves, veio denunciar os maus tratos sofridos pelos negros no período
pós libertação. Um coração simples (2015), de Flaubert, foi escrito em pleno re-
alismo e neste sentido, sua obra é revestida de denúncias à sociedade francesa
do fim do século XIX. Desta forma, por meio do seu sentido crítico, ele deixa
transparecer em Felicité sua indignação quanto às mulheres, que inocente-
mente trabalhavam de maneira subserviente.
Domingas é uma índia que, órfã de pai e mãe, vai morar em um convento
em Manaus e posteriormente, quando Zana vai adotá-la e entrega um envelo-
pe de dinheiro à madre, fica a impressão de que ela é comprada. A narrativa de
Hatoum também dialoga com os outros dois textos em comparação, contudo,
a crítica que atualiza a obra se dá, também, pelas denúncias perceptíveis por
meio do trato recebido por Domingas. Ela era empregada não remunerada,

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numa condição análoga à servidão, atitudes essas que já não deveriam existir
no início do século XX, quando a escravidão no país já não existia oficialmente.
Fechamos nossa análise, pontuando mais uma vez que uma obra não ne-
cessariamente precisa de outras para se manter de pé (parafraseando o narra-
dor da Hora da estrela), contudo não há nada mais instigante que encontrar
ecos da música de outrem em obras, tempos e contextos diversos.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In: Questões de estética e de
literatura. 3. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2015.
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro. Arquitetura da memória: ensaios sobre os
romances Dois irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte, de Milton
Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/Uninorte,
2007.
FLAUBERT, Gustave. Um coração simples. São Paulo: Grua Livros, 2015.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JOBIM, José Luís. Literatura e cultura: do nacional ao transnacional. Rio de
Janeiro: Edurrj, 2013.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
LOBATO, Monteiro. Negrinha. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2009.
NESTROVSKI, Arthur. Influência. In: JOBIM, José Luís. Palavras da crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992.
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Porto Alegre: L&PM, 2018.

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V. Milton hatoum e a concessão do lugar


comum sobre a amazônia em Órfãos do Eldorado
Marlí Tereza Furtado

Deve-se fazer um esforço para quebrar a correspondência que se estabelece entre

Literatura e a imagem que se faz de um país (HATOUM, M., 2019).

Introdução
Ao lançar, em 2008, seu quarto romance, Órfãos do Eldorado, o escritor
amazonense, Milton Hatoum (1952), já havia sido consagrado com três prê-
mios Jabuti de literatura por seus três primeiros romances: Relato de um certo
Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Junto com os prêmios,
o escritor havia sido lançado para além das fronteiras amazonenses e brasileiras.5
Nesses romances, Hatoum trabalha de maneira exemplar a técnica nar-
rativa, que faz emergir tempo e espaço, dando densidade aos dramas das per-
sonagens, mesmo aos daquelas que atuam pouco no enredo. Em Relato de um
certo Oriente, o leitor não só se envolve no relato e no drama de uma mulher
que retorna à casa de sua infância, após longa ausência, mas no de outras tan-
tas personagens, graças às diferentes vozes que se encaixam à voz da narradora
‘primeira’, cuja memória individual recupera a memória coletiva. Já em Dois ir-
mãos, além da progressão desse modo de narrar entre o relato pessoal e o teste-
munho, acentuam-se os dramas das relações familiares, que contribuem para
a tradução de seu espaço: a cidade de Manaus. Em Cinzas do Norte, o enfoque
nas relações familiares direciona-se para a relação pai e filho, sendo que a per-
sonagem do filho, por sua atuação como artista, distende o enredo para outros
centros urbanos, ampliando a temporalidade até os anos 70 do século passado.
5 Órfãos do Eldorado, esse também lhe rendeu o segundo lugar no prêmio Jabuti 2009, na categoria “Melhor romance”.

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Em Órfãos do Eldorado, Hatoum verticaliza o enfoque na relação pai e


filho, mas então, localizando a narrativa entre os dois períodos da economia
da borracha na Amazônia, revelando, de forma especular, pela decadência, o
fausto daquele período.

Os três primeiros romances: para além da polêmica do regionalismo


Se observarmos os títulos dos romances de Milton Hatoum, percebemos
que os dois últimos fazem referência ao local de origem do autor: o Norte, no
terceiro livro, e a região amazônica, condensada no Eldorado, do quarto livro.
Entretanto, não considero profícua a discussão sobre a inserção ou não do au-
tor em uma perspectiva regionalista, apesar de que a crítica já se ocupou desse
aspecto. Veja-se o ensaio de Tânia Pellegrini Milton Hatoum e o regionalismo
revisitado (2004), e a réplica de Allison Leão Milton Hatoum: regionalismo revi-
sitado ou renegado? (2011).
Quero apenas considerar que Relato de um certo Oriente quebra o horizon-
te de expectativas do leitor que olha a Amazônia como um referente do distan-
te, do isolado e do exótico atrelado à floresta. Ao localizar a narrativa em uma
Manaus ligada a um certo Oriente, o autor redimensiona esse possível exótico
para esse leitor. Ele inscreve o estranho dentro do estranho. Dois irmãos, por
outro lado, reescreve o arquétipo bíblico de Esaú e Jacó na mesma Manaus
multicultural do Relato. E a palavra multicultural é trazida pelo próprio autor
em entrevista sobre sua obra e a perspectiva que nela traçou:

A presença e a passagem de estrangeiros na casa da infância contribuíram

para ampliar um horizonte multicultural. Minha língua materna é o por-

tuguês, mas o convívio com árabes do Oriente Médio e judeus do norte da

África me permitiu assimilar um pouco de sua cultura e religião. De forma

semelhante, a cultura indígena se impunha com a presença de nativos que

moravam na minha casa e frequentavam o bairro de imigrantes orientais

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da capital do Amazonas. Esse aprendizado foi lento, como sempre acontece

quando assimilamos uma outra cultura (HATOUM, 2019).

Como se observa, a vivência do autor lhe deu bagagem para figurar uma
Amazônia para além das amarras que a crítica literária costumou embrulhar, o
que é produzido além do centro urbano e econômico do país. Ele mostrou que
não é apenas em São Paulo que encontramos um mosaico multicultural, com
diferentes vozes distribuídas e também agregadas nos diferentes bairros cujos
nomes remetem a determinada comunidade.
E a Manaus periférica para uns é uma Manaus atrelada a outras fronteiras
do universo, seja nos emaranhados internos de rios e águas, seja nas lonjuras
transatlânticas do mapa mundi. Mesmo em cinzas do Norte, o Norte se dissipa e
transcende o local circunscrito no trajeto da personagem que vivencia outros luga-
res, além de Manaus, tanto no Brasil, quanto na Europa.
Essas obras colocam Milton Hatoum na linhagem de autores que quebraram
ou ressignificaram uma tradição na configuração da Amazônia, como seu conter-
râneo Márcio Sousa (1946), e o paraense Dalcídio Jurandir (1909/1979).
Este último, ao se lançar em 1941, com Chove nos campos de Cachoeira,
quebrou a tradição do retrato da Amazônia em sua vivência no chamado ciclo
econômico da borracha. Para tanto, distanciou-se do realismo naturalista, fugiu
do que considerava fotografia da região, ou seja, daquela objetividade fotográfica
que levaria ao pitoresco, a uma Amazônia cujos mistérios naturais conquistassem
mais o leitor do que a humanidade de seus habitantes. E assim continuou até 1978,
quando editou o décimo livro de um ciclo chamado Extremo Norte. Márcio Souza,
por sua vez, lançou, em 1975, Galvez Imperador do Acre, reelaborando uma tradi-
ção literária ao retratar a Amazônia no período gomífero com as tintas da paródia
e do pastiche.
Órfãos do Eldorado, no entanto, desalinha a trajetória do autor Milton
Hatoum na figuração amazônica, uma vez que cedeu a certo lugar comum

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sobre a Amazônia, ou, se quisermos mais especificidade, o autor, no decorrer


da narrativa, se apega a um número de topos que formataram uma série de
obras e as alinharam numa tradição.

Órfãos do Eldorado: o sumário da decadência


Ao iniciar uma análise sobre a obra, cabe a indagação: quem são os órfãos
do Eldorado a que o título alude? Seguindo a perspectiva do narrador prota-
gonista, podemos dizer que o romance conta a história de Arminto Cordovil,
que narra sobre sua vida, reconstruindo a história da linhagem Cordovil: seu
pai, Amando Cordovil, e seu avô, Edílio Cordovil, ambos muito ambiciosos e
astutos empreendedores, que construíram fortuna em Vila Bela, localidade às
margens do Amazonas, não muito longe de Manaus, também próxima do rio
Uaicurapá.
De Edílio, o narrador diz pouco, mas Amando preenche muito do narrado,
uma vez que Arminto persegue a memória do pai, num trabalho quase parado-
xal de construí-la para desconstruí-la. Assim, ao homem caridoso, Amando, se
sobrepõe um possível inescrupuloso homem sagaz que encobre os caminhos
recônditos de sua ascensão financeira, com caridades para a coletividade e para
pessoas em particular.
Arminto, no entanto, constrói sua história, desmascarando os Cordovil,
mas desmascarando a si mesmo, a quem parece que a vida só teve sentido à
medida que contrariava o pai. Autodenominando-se preguiçoso, dissoluto,
egoísta, covarde, perde-se na dissolução do que os antecessores construíram,
direcionando seu objetivo ao amor. Atrás do amor, corporificado em Dinaura,
uma órfã protegida pelas carmelitas, ele se perde de vez, posto que a reticente e
obscura Dinaura um dia desaparece e dizem que foi morar no reino encantado,
topos que abre a narrativa e recorrente em histórias localizadas na Amazônia.
Em função disso, Arminto, depois de procurá-la, de forma quase épica,
único momento em que empreende uma tarefa com afinco, acaba tudo o que

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tem e passa a morar em uma tapera. Deixa Florita, quem o criou como mãe,
morrer paupérrima e deixa o leitor pensar que é considerado louco naquele
universo.
O tom social do livro direciona seu leitor real para considerar como órfãos
do Eldorado os habitantes daquelas ruínas de um lugar idealizado. No entanto,
dois outros planos se cruzam com o social: um plano psicanalítico e o mítico.
Mas é o plano do social que demonstra uma obra arquitetada em um diálogo
explícito com Euclides da Cunha. Fazendo um paralelo com uma das forma-
ções de Hatoum, a arquitetura, vejamos como o romance aparece arquitetado.

Arquitetura narrativa: sob a sombra de Euclides da Cunha


Em 1993, para o seminário de escritores brasileiros e alemães, realizado no
Instituto Goethe, em São Paulo, Hatoum escreveu um texto chamado Escrever
à margem da história, evidente alusão ao À margem da História de Euclides da
Cunha, publicado em 1909, do qual aproveita alguns conceitos.
Em Órfãos do Eldorado, embora o leitmotiv do enredo seja a cidade encan-
tada, a ponto de o narrador, didaticamente explicar que “os colonizadores con-
fundiam Manaus ou Manoa com o Eldorado. Buscavam o ouro do Novo Mundo
numa cidade submersa chamada Manoa. Essa era a verdadeira cidade encantada”
(HATOUM, 2008, p. 99), os signos do Eldorado são associados ao seu oposto infer-
nal, ressoando mais uma vez Euclides da Cunha, sobretudo na denúncia que este
faz da espoliação humana.
Nessa linha, há o retrato eficaz da violência da colonização e da ascensão de
algumas fortunas, como o massacre que o avô, Edílio Cordovil, para apossar-se de
grande extensão de terra, havia comandando, em 1839, contra índios e caboclos
desarmados, revestindo a história de caráter heroico, como se ele e seis soldados
tivessem derrotado mais de trezentos revoltosos na batalha de Uaicurapá. Também
o lado de Amando, repetindo atos dos coronéis da borracha de obras anteriores,
aparece na história de que ele teria enforcado um homem que se interessara por sua

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mulher, Angelina. Além disso, teria caçado trabalhadores fugitivos de sua fazenda,
como se caçasse animais, topos bastante presente nas obras do ciclo da borracha.
Ao observar a tessitura do romance-objeto deste trabalho, temos que con-
siderar sua pouca extensão. As 107 páginas da sexta reimpressão da primeira
edição da Companhia das Letras são distribuídas entre a dedicatória, a epígra-
fe, o texto, o posfácio e os agradecimentos. A narrativa inicia na página onze e
termina na 107, não preenchendo, portanto, cem páginas. Mas parece narrada
quase que de um fôlego só, pois não se divide em capítulos ou em partes e
não apresenta cortes na narração. Esse percurso, que toma forma próxima da
narração oral, se reforça em momentos com parágrafos de quase uma página
ou com mais de uma página. Milton Hatoum, no texto aludido no início deste
tópico, declarou:

Além da religião, da língua e dos costumes, a cultura do Outro estava de-

lineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da

narração oral. Essa forma de discurso era usada por exímios contadores

de histórias que frequentavam a Pensão Fenícia, lugar da minha infância

(HATOUM, 1993).

E Hatoum segue o caminho referido, ao colocar a voz narradora, de


Arminto Cordovil, da abertura até o fim da diegese, com uma enunciação
bastante marcada por dêiticos como aqui e agora, esta ou por perguntas e expli-
cações a um suposto interlocutor, ou narratário, ora considerando esse narratário
como alguém próximo de sua realidade, ora como alguém distante, a quem dá ex-
plicações, como esta:

Cuiarana: árvore de flores lindas, pétalas espessas, sem palidez: amarelas, ró-

seas, quase vermelhas. O cheiro da flor é forte que nem perfume de rosa. E o

fruto, grande e pesado como cabeça de homem. Quando cai e fica esquecido

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no chão, cheira a coisa podre, estragada. Nem os porcos comem (HATOUM,

2008, p. 92).

Embora a enunciação de sua história se localize num período histórico pós


Segunda Guerra, quando Arminto Cordovil habita uma tapera em Vila Bela,
único resquício dos bens herdados, e declara que é tido como um velho doido,
ele percorre um tempo histórico com referências ao fim da guerra dos Cabanos
(1840), quando fala do avô, passa pelo auge da borracha, por sua queda e pela
tentativa de restauro dessa economia na Segunda Guerra, detendo-se mais no
período entre guerras, auge de sua juventude e do período em que viveu mais
intensamente seu caso de amor com e por Dinaura.
Nas dificuldades advindas da queda da borracha, Arminto traça o cami-
nho da dissolução de uma fortuna deixada pelo pai, mas ele se deu o direito de
vagabundear, morando bem, vivendo bem amparado por mesadas que a heran-
ça lhe proporcionava. Acabou miserável por opção. Seu entorno, entrementes,
ressoa à miséria desvalida.
Ainda na trilha euclidiana de denúncia social da miséria desvalida, interes-
sa lembrar do relato irônico de que houve a tentativa do restauro da economia
da borracha, quando o Amazonas foi visitado pelo então presidente Vargas e
a leva de nordestinos que se prestou ao trabalho ficou conhecida como “sol-
dados da borracha”, denominação ditada pelo contexto da Segunda Guerra.
A ironia repousa no desvão entre a importância dada ao início do fato e as
consequências advindas dele: a leva de homens cegos pela defumação da bor-
racha vindos do interior em um barco chamado Paraíso. Por extensão, o bairro
em que foram alojados às pressas por conta do governo ficou conhecido como
“cegos do paraíso”. Desse modo, cumpre-se mais uma vez na obra a referência
ao paradoxo euclidiano paraíso igual a inferno, criado a partir da leitura que
fez dos viajantes e do livro Inferno verde, de Alberto Rangel, que ele prefaciou.

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O signo Eldorado reiteradamente aparece no enredo da obra e cresce em


proporção simbólica. Ele figura, primeiramente, nas lembranças de Arminto
como um cargueiro alemão comprado por seu pai, em cuja proa trazia pintado
em letras brancas o nome de batismo. Depois da morte de Amando, já nos aus-
pícios da queda da borracha, o cargueiro naufraga, no Pará, afundando a com-
panhia de seu herdeiro, que vende os demais batelões para quitar a dívida junto
aos bancos. Nesse momento, o cargueiro já se reveste de simbologia, posto que
naufraga, como naufragou a economia gomífera; e o fato de estar descoberto
pelo seguro simboliza a falta de precaução dos seringalistas brasileiros diante
de tantos avisos sobre o crescimento da produção da borracha na Malásia.
No final da narrativa, Eldorado aparece como sinônimo de Manaus, a ci-
dade submersa e símbolo de riqueza, mas também como uma ilha, perto de
Manaus, onde há um leprosário, possível local em que se encontra Dinaura. O
narrador, em seu desespero por encontrar a amada desaparecida há anos, de
posse de seus possíveis segredos, empreende viagem a este Eldorado.
Na empreitada, temos um topos que recupera uma leva de obras, muitas
delas esquecidas, que figuraram a Amazônia e, na altura de 2008, quando do
lançamento do romance, soa a um clichê barato. Na página 101, é registrado:

E a paisagem da infância reacendeu minha memória, tanto tempo depois.

Costelas de areia branca e estirões de prata em contraste com a água escura;

lagos cercados por uma vegetação densa: poças enormes, formadas pela va-

zante, e ilhas que pareciam continente. Seria possível encontrar uma mulher

naquela natureza tão grandiosa? (HATOUM, 2008, p. 101, grifo meu).

Enfim, desbravando essa natureza grandiosa, o narrador protagonista


chega até a ilha do Eldorado e ao lago do Eldorado, em meio à floresta intrin-
cada da ilha e, nesse momento, o lago (Eldorado) e a floresta simbolizam a
imensidão da natureza amazônica e a solidão que a natureza instaura, ou,

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ainda, a solidão a que a região foi relegada, outro topos conhecido na literatura
que figura a Amazônia.

A figuração mítica: topos de um narrador crítico


Se voltarmos nossa atenção para as narrativas que centraram sua ação na
Amazônia, entre o último quartel do século XIX e o primeiro do vinte, cons-
tataremos sempre a presença do lendário local, geralmente enfeixado em ca-
pítulo específico, quando o narrador imita o etnógrafo na recolha do material;
muitos desses textos têm como referências anteriores as enumerações dos via-
jantes, produto de sua recolha na pesquisa de campo que empreendiam. Esse
topos ultrapassou a década de trinta do século vinte, mas, em narrativas mais
instigantes, muitas vezes apareceu na economia da obra atrelado aos dramas
das personagens, ultrapassando o exotismo que se estabelecia naquela exposi-
ção de uma suposta pesquisa, apresentada justamente para exaltar a singula-
ridade local.
Em Órfãos do Eldorado, Hatoum cede ao topos da recolha de um len-
dário local disposto primeiro em enumeração no início da narrativa e, depois,
dispersando-o ao longo do enredo, atrelando uma ou outra lenda à trama.
Amarrados à trama estão o mito do Eldorado e da cidade encantada. Como
vimos, o Eldorado se ressente de dimensão mítica ao figurar apenas como um car-
gueiro, mas a recupera ao simbolizar fausto e queda de um lugar ideal.
O outro mito recorrente, o da cidade encantada, se confunde também com
Manoa e Eldorado, mas se reveste de envergadura própria à medida em que põe
uma personagem apaixonada por um ser encantado que precisa de um xamã (pajé)
para quebrar seu encantamento.
Na abertura do romance, o narrador instaura a narrativa como testemunha
em uma cena em que “uma índia, das tapuias da cidade, falava e apontava o rio”
(HATOUM, 2008, p. 11). Em seguida, pula nele e desaparece em seu leito, dizendo
ir em busca do ser pelo qual se encantara e viveria num mundo melhor, sem tanto

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sofrimento e desgraça. Sofrimento e desgraça são a chave antecipatória do tom


social da obra, de que já falamos. Na sequência, o narrador diz: “Florita traduzia
as histórias que eu ouvia quando brincava com os indiozinhos da Aldeia, lá no fim
da cidade. Lendas estranhas” (HATOUM, 2008, p. 12, grifo meu). Entre as lendas
estranhas, clara alusão de que o narrador funciona como alguém inserido naquele
contexto, mas exógeno a traços de seu complexo cultural, temos a de um homem da
“piroca grande”, a da mulher seduzida por uma anta-macho e a da cabeça cortada,
ou a mulher dividida.
Dessas lendas, a segunda é recorrente na literatura, à medida que o imaginário
amazônico está repleto de histórias de acasalamento de seres humanos com bichos.
Mas na obra, essa lenda, junto com a primeira, a do homem da “piroca grande”
funciona apenas como curiosidade, enquanto a da cabeça cortada, que ressoa, de
longe, à lenda da lua dos caxianuás, coletada por M. Cavalcânti Proença (1987, p.
146)6, acaba fazendo parte, de certa forma da tessitura narrativa, uma vez que o
narrador declara: “uma das cabeças me arruinou. A outra feriu meu coração e mi-
nha alma, me deixou sozinho na beira desse rio, sofrendo, à espera de um milagre”
(HATOUM, 2008, p. 13).
O homem sozinho na beira do rio, narrador protagonista da narrativa, repe-
te o topos da solidão do amazônida e não deixa de encarnar um dos narradores,
lembrado por Hatoum em seu texto Escrever à margem da história (2019): “Hoje,
passados trinta anos, a imagem que faço desses narradores tem alguma seme-
lhança com ‘o observador errante que percorre a bacia amazônica’ e o ‘homem
sedentário’, postado na margem do rio, citados por Euclides da Cunha”.
Hatoum concretizou nesse texto o resultado de suas leituras sobre o nar-
rador7, a ponto de, ao final da diegese protagonizada por Arminto Cordovil,

6 Cavalcânti Proença comenta a lenda para explicar sua recolha por Mário de Andrade, que a recria em Macunaíma, de 1928.

7 No texto a que tenho me referido, ele liga o narrador citado por Euclides da Cunha ao narrador benjaminiano,

do famoso estudo sobre a obra de Nikolai Leskov, e Hatoum vê ressonâncias desse narrador em pessoas de sua

família. Leia-se: Um resquício desses estilos de vida, aludido por Benjamin, existia no espaço que frequentei

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em posfácio, colocar um outro narrador, como o possível autor real da obra


para explicar como chegou ao relato de Arminto Cordovil. O avô desse suposto
“autor real” lhe teria contado uma das histórias que ouviu, em 1958, numa de
suas viagens ao interior do Amazonas. E o suposto autor real diz: “Era uma
história de amor, com um viés dramático, como ocorre quase sempre na lite-
ratura e, às vezes, na vida. Essa história evocava também um mito amazônico:
o da Cidade Encantada” (HATOUM, 2008, p. 105). Mais à frente, justifica sua
escolha: “Porque os mitos, assim como as culturas, viajam e estão entrelaçados.
Pertencem à História e à memória coletiva” (HATOUM, 2008, p. 106).
Ora, o posfácio, um dos elementos paratextuais da obra, especificamente
peritextual, segundo Gerard Genette (2009) complementa a enunciação narra-
tiva do romance e ratifica o primeiro narrador autodiegético, que narra sobre
sua história, muito emaranhada aos diferentes traços culturais de seu espaço,
mas considerando o imaginário desse espaço de modo cru, como lenda, no que
ela tem apenas de fantasioso e irreal. O narrador, autodiegético no posfácio,
mas homodiegético no enredo da obra, repete o topos do coletor de histó-
rias, que vê o Outro como um ser exótico, a quem ele concede espaço em sua
narrativa.
O último narrador, o arquitetador da história, assim como o primeiro,
Arminto Cordovil, é ilustrado e deixa pistas dessa ilustração, principalmen-
te na epígrafe da obra, citando um texto de A cidade (1910), de Konstantinos
Kaváfis. Gostaria de me ater no final do relato de Arminto Cordovil para cha-
mar ainda a atenção sobre a reiteração de topos sobre a Amazônia. Segue o
último parágrafo de sua narrativa:

quando criança. Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantes-via-

jantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente

de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial.

Nas pausas do comércio ambulante, exercitavam a arte narrativa (HATOUM, 2019).

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Voltei para Vila Bela e fiquei escondido aqui, mas muito mais vivo. Ninguém

quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que moro sozinho, eu

e minha voz de doido. Aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá,

pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar

esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apa-

ga a nossa dor? Quantas palavras eu tentei dizer para Dinaura, quanta coisa

ela não pode ouvir de mim. Espero o macucauá cantar no fim da tarde. Ouve

só esse canto. Aí a nossa noite começa. Estás me olhando como se eu fosse

um mentiroso. O mesmo olhar dos outros. Pensas que passaste horas nesta

tapera ouvindo lendas? (HATOUM, 2008, p. 103).

Destaco alguns pontos dessa narração. O primeiro deles é a possível me-


lancolia desse narrador, topos do homem solitário amazônico cantado desde
Inglês de Souza, reiterado por Mário de Andrade em Macunaíma, embora con-
testado, depois, por Dalcídio Jurandir. Outro dado: no epílogo de Macunaíma, o
narrador se identifica como um cantor dos feitos do herói, mas ouviu suas histórias
de um papagaio, revelando-se um narrador de segundo grau, posto que distante do
narrado. O narrador protagonista de Órfãos do Eldorado se refere ao ato de con-
tar ou de cantar, e espera o canto de um pássaro para sentir a noite, como se o
pássaro fosse um cúmplice de seu canto/narração. Por outro lado, o narrador
arquiteto da narrativa, o revelado no posfácio do livro, é um cantor em terceiro
grau dessa narrativa, uma vez que ouviu a história de seu avô que a ouviu do
suposto primeiro narrador, que recusou repeti-la para ele, quando procurado
por este em suas viagens. Fica um dado interessante. O narrador arquiteto da
história confirmou que o narrador personagem dela existia. Jogo da ficção.
Retiro do texto o trecho “aí tu entraste para descansar na sombra do jato-
bá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho” (HATOUM, 2008, p.
103), para destacar talvez um dos topos mais antigos da literatura brasileira: o
locus amoenus. Lembremos que a paisagem enfoca uma beira de rio, uma tapera,

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a sombra de um jatobá e uma água fresca para beber, tudo ideal para um descanso
do narratário.
A última frase do trecho retirado do livro, “pensas que passaste horas nesta
tapera ouvindo lendas?”, reitera o que afirmei acima, a distância do narrador pro-
tagonista daquele universo em que se insere. Ele o vê do alto, mesmo calcando a
história de Dinaura na lenda da cidade encantada. Nesse momento, ele reitera o
reporte que fez, no início da obra, às lendas como algo estranho, e também o que
diz após ter contratado barqueiros para encontrarem Dinaura: “Gastei dinheiro
com os barqueiros. E o que trouxeram para mim? Mitos e meninas violentadas”
(HATOUM, 2008, p. 65).

Uma leva de Maiby’s8: mulheres condenadas à violência


A narrativa de Órfãos do Eldorado se dá enfocando, em sua primeira cena,
a história de uma mulher: a índia que foi ao encalço da cidade encantada. Real
e lendário se cruzando para o real do enredo. Próximo do final do enredo,
no entanto, quando as duas testemunhas mais importantes dessa história,
Arminto Cordovil e Florita, já estão muito pobres, vivendo no período em que
o narrador alude como “tempo de penúria” (HATOUM, 2008, p. 83), também
se referindo ao tempo histórico logo após a queda da borracha, Florita, a tra-
dutora da história da índia, diz que mentiu, “traduziu torto”, pois a índia suici-
dou-se porque o marido e os filhos tinham morrido de febres e ela não queria
mais sofrer na cidade. Tal revelação destitui o caráter lendário dessa pequena
narrativa e instaura a dura realidade social daquele momento, naquele espaço,
reforçando o plano social da obra toda.

8 Nono conto do livro Inferno verde, de Alberto Rangel, publicado em 1908. Nele, a personagem feminina, Maiby,

depois de trocada como mercadoria, é assassinada pelo antigo companheiro. É encontrada amarrada a uma se-

ringueira, com o corpo cheio de profundos cortes e com tigelinhas encravados neles. O narrador do conto indica a

correlação simbólica entre o martírio de Maiby e a exploração da Amazônia. Indico a edição mais recente da obra:

RANGEL, Alberto. “Maibi”. In: Inferno verde. Manaus: Editora Valer, 2008, p. 121-132.

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Nessa linha, a narrativa reforça a denúncia da violência cometida sobre-


tudo contra a mulher naquele contexto em que especialmente a mulher pobre
era, muitas vezes, abusada, encurralada socialmente e destituída de essência
humana, trocada ou comercializada como mercadoria. Todavia, desde o início
do romance o Colégio das Carmelitas e seu orfanato aparecem como um muro
a barrar tanta violência e a proteger umas tantas dessas mulheres. O narrador,
por meio de Florita, registra:

Florita me disse que várias órfãs falavam a língua geral; estudavam o portu-

guês e eram proibidas de conversar em língua indígena. Vinham de aldeias

e povoados dos rios Andirá e Mamuru, do Paraná do Ramos, e de outros

lugares de Médio Amazonas. Só uma tinha vindo de muito longe, lá do Alto

Rio Negro. Duas delas, de Nhamundá, haviam sido raptadas por regatões

e depois vendidas a comerciantes de Manaus e gente graúda do governo.

Foram conduzidas ao orfanato por ordem de u juiz, amigo da diretora. Em

Vila Bela, madre Joana Caminal era conhecida como a Juíza de Deus, porque

proibia o escambo de crianças e mulheres por mercadorias, e denunciava

os homens que espancavam a esposa e as empregadas (HATOUM, 2008,

p.41-42).

Madre Joana Caminal atua pouco na obra, mas tem relevância simbólica
na resistência aos desmandos instaurados contra a mulher naquela sociedade,
entretanto, não deixemos de observar a também violência cometida contra a
cultura das indígenas, proibidas de falar em suas línguas-mãe, em nome da boa
educação que rebaixava as línguas locais, logo as identidades a elas ligadas, vi-
sando à homogeinização cultural e tendo como referência o universo cultural
do homem branco.
Por meio das órfãs do Carmo, temos alusão na obra à versão da lenda da
Cobra-Grande e a uma lenda em que se trabalha a menstruação feminina. Mais à

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frente, para explicar o mal que Dinaura causava e causaria em Arminto, ela é com-
parada a uma sucuri e que deveria ter sido enfeitiçada por Jurupari, o deus do Mal.
Completa-se, assim, uma relação de mitos sempre apresentados na série romanesca
localizada na Amazônia.
A figuração da violência física contra a mulher é reforçada em um segmento
da narrativa em que Arminto Cordovil, na busca que empreende para reencontrar
Dinaura, contrata três barqueiros para irem ao encalço da moça. O primeiro a
voltar, o menos escrupoloso deles, Denísio Cão, trouxe uma menina que tinha com-
prado do pai “ por uns trocados” e de quem tinha abusado na viagem a Vila Bela.
Contestado pelo narrador que a manda de volta ao local de origem, Denísio Cão
sai, rindo da situação.
O segundo a voltar, Joaquim Roso, sem querer criar engodo ao narrador, trou-
xe uma menina, “sem nome”, órfã de mãe e que tinha sido deflorada pelo pai. A
menina foi encaminhada ao Colégio das Carmelitas e o narrador não deixa de re-
gistrar: “isso me perturbou: era o destino de muitas filhas pobres da Amazônia”
(HATOUM, 2008, p. 64).
Apesar de sua indignação, não percebe a violência que praticou contra Florita,
não a protegendo com uma casa em seu nome, a ponto de a miserável, quando
miserável, vendendo guloseimas em um tabuleiro com rodas de madeira, desabafar:
“O que eu sei é que todo mundo me enganou” (HATOUM, 2008, p. 90), demons-
trando que pertence, de certa forma, a todas aquelas crias de casa, brasileiras, tidas
para trabalhos domésticos, tratadas até certo ponto como se fosse da família, as
quais tardiamente descobrem o embuste em que caíram para não reivindicarem
direitos.
Dentre as poucas mulheres que atuam na narrativa, Dinaura é a principal e
encarna o mistério dos mitos, uma vez que sua imagem está amalgamada à cidade
encantada. Entretanto, o drama de Dinaura deixa muitas indagações para o leitor,
menos porque a ambiguidade da obra estaria plasmada para gerar tal efeito, o que

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é próprio de obras bem articuladas, e mais por falta de certa articulação no enredo
que dê carisma a Dinaura e instigue o leitor sobre seu drama.
Ao final, a personagem do advogado Elistiano, amigo fiel de Amando, quase
um segundo pai de Arminto, revela parte do que seria um segredo de Dinaura: era
protegida de Amando que, ou teria sido seu amante, ou era seu pai. Teria vindo da
ilha (do Eldorado) e para lá tinha voltado, mas se teria a doença da lepra, ninguém
sabe.
A ambiguidade persiste no final da narração de Arminto, com alguns pon-
tos em sua linguagem que dão possibilidade ao leitor de pensar que ela, doente,
mora com ele: “Voltei para Vila Bela e fiquei escondido aqui, mas muito mais vivo.
Ninguém quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que moro sozinho,
eu e minha voz de doido” (HATOUM, 2008, p. 103). Este trecho pode ser ligado a
um momento em que Arminto convida Florita a morar com ele na tapera e ela lhe
responde que ele morava com uma visagem.
A despeito de Arminto Cordovil ter encontrado ou não a mulher que suposta-
mente se confunde com o mito da cidade encantada, a possível relação incestuosa
entre os dois não pode ser descartada pelo leitor, o que nos leva ao plano psicanalí-
tico da obra, com muitos lapsos para o leitor.

Arminto Cordovil: um herói sem causa, apenas dissoluto?


Não podemos fechar o livro Órfãos do Eldorado sem refletir princi-
palmente sobre o estado de penúria em que acabou o terceiro da linhagem
Cordovil. O primeiro deles, Edílio, o laborioso9, tem o nome ligado ao labor, e
nos pequenos flashes analépticos em que o narrador a ele se refere, sua vivacidade
em prol de um projeto de vida, em que o trabalho se liga à construção de riqueza
material, se faz presente, junto com a ambição desmedida, a ponto de criar uma
ética quase própria. Como produto desse labor, ainda que não associado à ética,
deixa ao filho, Amando, a fazenda Boa Vida.
9 WWW.significado.origem.nom.br

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Amando, o segundo da linhagem, tão ambicioso quanto o pai, direciona seu


trabalho para a compra de barcos, tendo, ao morrer, cumprido o papel de armador,
na medida em que deixou dois batelões e um cargueiro alemão, o Eldorado, mais
equipado e mais possante.
Entretanto, Amando não nos permite jogar com seu nome fazendo aproxima-
ções semióticas entre Amando/armador, apenas com o significado de seu nome:
“digno de ser amado”10. E este traço marca a atuação dele no enredo, a despeito
da tentativa constante de Arminto de destruí-la. Ele, que temia o pai, rígido
com ele e distante, admira-se ao perceber, no velório, o quanto o pai era queri-
do na cidade que aparece com força na prosopopeia: “em pouco tempo a cidade
despertou” (HATOUM, 2008, p. 27).
Na viagem que faz à fazenda Boa Vida, Arminto traz à tona o lado perverso
do pai na construção de sua fortuna, narrando a caça aos trabalhadores fugidos
e o enforcamento do homem que se interessara por sua mulher. Em um encon-
tro posterior com Estiliano, revela que o pai foi contrabandista e sonegador de
impostos, daí devolver um tanto de seu lucro para a prefeitura e para a popu-
lação da cidade, dando generosas esmolas e construindo benfeitorias públicas.
Nada abala o advogado que defende o amigo defunto e, de certa forma, parece
que esse jogo de forças do filho para borrar a imagem do pai fica fadada ao
insucesso, posto que Arminto, na sua vadiagem e no propósito de gastar di-
nheiro na vida boa (ele era herdeiro da fazenda com este nome), a estas alturas
já cansou o leitor. Seu amor por Dinaura, que poderia enobrecê-lo, como o pai
é enobrecido ao revelar a veneração pela mulher tanto em vida, quanto depois
de morta, não acontece, uma vez que, em Belém, dissolveu praticamente todo
o dinheiro de seus últimos bens, a ponto de reconhecer: “por vingança e por
prazer pueril eu tinha jogado fora uma fortuna” (HATOUM, 2008, p. 101).

10 WWW.significado.origem.nom.br

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Resta ao leitor, pensar se nas camadas recônditas do drama dessa perso-


nagem, seu complexo de Édipo o direcionaria à destruição da imagem do pai
para exaltar a da mãe, tanto que dormiu com Florita, uma segunda figura ma-
ternal sua. A simbologia incestuosa dessa relação não o atormenta, assim como
a continuação de sua relação incestuosa com Dinaura, principalmente se ela
for sua irmã. Se for sua mãe, redimensiona-se sua relação com o pai e podemos
pensar que o aparente ódio dele encobre sua paixão por ele, uma vez que se
sente culpado pela morte da mãe. Daí a destruição, a vingança, como ambas
também podem ser impelidas pela culpa cristã, afinal o pai é comparado a uma
anta em um momento, arquétipo de ancestralidade.
Ao leitor, ficam as dúvidas por perguntas não respondidas, mas não apenas
por falta de preenchimento na narrativa, como por falta de um trabalho que
condense mais a ambiguidade das personagens. Afinal, parece que Hatoum
desperdiçou seu talento ao se apossar de tantos topos sobre a região, não se
esquecendo daquele que retrata o rio Amazonas em sua força destruidora,
responsável pelo fenômeno de terra caída, tantas e muitas vezes repetido: “O
Amazonas arrastava tudo: restos de palafitas, canoas e barcos de bubuia, ma-
rombas com bois amarrados, berrando de pavor” (HATOUM, 2008, p. 52-53).

Conclusão
Meu objetivo não se voltou a destruir o romance de Miltom Hatoum a um
primeiro leitor dele, mas a apontar meu estranhamento ao verificar que, após
uma sucessão de livros em que o leitor apaixonado por literatura fica quase
sem fôlego de tão instigado em sua leitura (pelo menos foi assim que me senti
lendo principalmente nos dois primeiros romances), em Órfãos do Eldorado,
vê repetir-se tantos topos largamente repetidos e difundidos na literatura que
figura a região. E os topos, nas 107 páginas do livro, tiram lugar da densidade
do drama das personagens, não se mostrando importantes na economia da
obra. Voltemos ao momento em que ele descreve a cuieira e suas flores e nos

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perguntemos em quê aquela descrição, como um verbete, enriqueceu a obra.


E se considerarmos os agradecimentos como um paratexto, mesmo que mais
para epitexto do que peritexto, veremos que Hatoum informa as leituras que
fez para o trabalho com as narrativas da região, parecendo que fez obra enco-
mendada para fazer parte de uma coleção chamada Mitos. Isso explica o propó-
sito do escritor, mas não compensa o leitor, desapontado pela obra.

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PROENÇA, M. Cavalcânti. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização


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WWW.significado.origem.nom.br. Acesso em: 10 fev. 2020.

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V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã

VI. A aplicabilidade dos estudos


bakhtinianos em narrativas do
escritor indígena Yaguarê Yamã
Delma Pacheco Sicsú

Como uma literatura incipiente e ainda sob a perspectiva de uma “lite-


ratura menor” para muitos, a literatura indígena amazonense tem ganhado o
mercado editorial brasileiro trazendo à baila vozes silenciadas, talentos escon-
didos por muito tempo. Isso significa dizer que, além das “simples” narrativas
de mitos, lendas e causos amazônicos, há um teor ideológico, responsivo, plu-
ral e plurilíngue nessa literatura, o que a tira do seu lugar de literatura menor
para uma literatura que busca seu espaço ao lado de obras canônicas. No que
diz respeito a todos esses elementos elencados, entre outros, na literatura in-
dígena amazonense, os estudos de Bakhtin, para o presente estudo, serão a
pedra angular na busca de compreensão de um sistema literário indígena ama-
zonense que vem sendo construído desde 2001. Não se pretende aqui afirmar
que esse sistema literário esteja pronto e acabado, mas sim provocar uma com-
preensão e reflexão em torno da literatura indígena amazonense, fazendo um
recorte para algumas narrativas do escritor indígena Yaguarê Yamã.
Assim, tomando por objeto de estudo as obras em questão, pretende-se
aqui aplicar a possibilidade dos estudos de Bakhtin em torno do dialogismo,
do grotesco, da relação de alteridade, bem como da autoria e outros aspectos.
Não se pretende fechar a discussão, nem tampouco reduzi-la, mas fazer
um recorte para dois textos da literatura indígena amazonense tomando de
empréstimo alguns conceitos trazidos por Mikhail Bakhtin, tais como enun-
ciação, dialogismo, narrador, autoria, como elementos articuladores do dis-
curso, do ato responsivo e das ideologias presentes em narrativas do escritor
indígena Yaguarê Yamã.

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O lugar de fala na literatura indígena amazonense: quem escreve?


Por que escreve? Para quem escreve?
As duas obras da literatura indígena amazonense tomadas como objeto de
estudo são provenientes da literatura oral maraguá, hoje traduzida para o livro
impresso em que a linguagem verbal se mistura com a ilustração. Pensar na
questão da autoria desses textos é o primeiro passo para se adentrar em outras
questões levantadas por Mikail Bakhtin.
Ao se falar sobre essas publicações raras, lembra-se aqui do livro As bonitas
histórias Sateré-Mawé (1993), publicada pelo Padre Henrique Uggé, com o objetivo
de resguardar para a posteridade a memória do povo Sateré-Mawé, registrando em
seu livro a história, a geografia, as lendas e mitos dessa etnia.
A tiragem, na época, do livro em questão, foi uma tentativa de deixar registra-
da para a posteridade a memória dos Sateré-Mawé e alertar aos governantes para
que tivessem compromisso com esse povo indígena. A partir do século XXI, surge no
Amazonas um grupo de escritores indígenas, chamando para si a produção de uma
literatura incipiente, no que diz respeito à literatura escrita, mas antiga.
Percebe-se que quem escreve mantém sua identidade indígena, mas apropria-
-se da cultura letrada a fim de registrar suas histórias por meio de palavras escritas
e ilustrações. Ao se questionar, portanto, quem escreve, coloca-se aqui um primeiro
conceito bakhtiniano que diz respeito ao autor.
Em se tratando de autoria de literatura indígena, foco deste estudo, não há
como deixar de pensar e compreender a relação autor-pessoa e autor-criador na
atividade estética de Yaguarê Yamã, autor da obra Contos da Floresta e de outras
narrativas, objeto de pesquisa deste estudo.
Wolfgang Iser (2001), ao tratar sobre o texto literário, explica que a literatura
é fruto de uma combinação entre a realidade, o imaginário e o fictício. Para Iser,
na produção da obra literária, três elementos devem ser levados em consideração: a
seleção, a combinação e a autoindicação.

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A seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos do

real acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação semântica ou

sistemática dos sistemas de que foram formados. Isso vale portanto para os

sistemas contextuais quanto para os textos literários a que os novos se refe-

renciam. (ISER, 2001, p. 35)

A seleção é, pois, um ato de fingir, pois trata-se de escolher, a partir da


realidade, elementos que serão usados na construção de uma outra realidade:
a ficcional. Daí que, saber selecionar esses elementos e organizá-los na ficção
é um dos pontos fundamentais para conferir o caráter de verossimilhança ao
texto. Em se tratando de literatura indígena e, especificamente da obra Puratig,
o remo sagrado, a título de exemplificação e análise, a seleção se faz presente na
escolha da figura do narrador que é na realidade, o índio mais velho, o detentor e
ícone da sabedoria na aldeia; aquele que carrega uma larga experiência e por isso,
tem uma importância fundamental na manutenção da memória de seu povo.
A combinação, por sua vez, vem a ser o ato de fingir que se inscreve no texto
literário, advindo do real e do imaginário o que demarca os limites da realidade
para a ficção.
É importante ressaltar que a combinação só se efetiva quando ela correspon-
de estratextualmente com a seleção. Isso significa dizer que essa correspondência
“abrange tanto a combinabilidade do significado verbal, o mundo introduzido no
texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas
ações” (ISER, 2001, p. 37).
Por se tratar de literatura indígena, compreender como os elementos textuais
e os elementos da narrativa são construídos nesses textos, é de extrema relevância,
uma vez que essas narrativas são oriundas da literatura oral, contudo, hoje se ma-
terializam em palavras escritas no suporte livro. E ao serem materializadas no livro,
as narrativas indígenas combinam elementos da cultura letrada com elementos da
cultura oral numa seleção que registra, em Língua Portuguesa, elementos textuais

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da língua do indígena em consonância com a segunda língua que é a L.P, como


também organiza a história a partir de duas categorias fundamentais da narrativa:
o personagem e a ação.
Nessa organização é que entra o escritor e sua maestria para compor o texto
ficcional a partir de sua experiência literária e de vida. Nesse ponto, chegamos as-
sim ao terceiro elemento da produção literária: a autoindicação.
A autoindicação diz respeito à identificação do texto ficcional com a realidade
dada. Por isso há autoindicação da realidade experenciada pelo escritor, mesmo
que a obra encene um tempo não vivido por ele, como no romance Memorial do
Convento, de José Saramago, e A sul o sombreiro, de Pepetela.

[...] o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade

que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural quanto

da literatura prévia ao texto. Assim, retoma ao texto ficcional uma realidade

de todo reconhecível, posta entretanto agora sob o signo do fingimento. Por

conseguinte, este mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que

o mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas enten-

dido como se fosse (ISER, 2001, p. 43).

Assim, a autoindicação, somada à seleção e à combinação, darão ao texto


literário o aspecto da verossimilhança que fará com que a realidade encenada
na ficção seja compreendida pelo receptor/leitor do texto. Essa compreensão
se efetiva, pois o leitor, pode se reconhecer no texto ou associá-lo à realidade
dada e perceber no enredo e nas ações das personagens uma semelhança com
a realidade vivida.
E isso é passível de acontecer até mesmo com as histórias insólitas, em
que o fantástico e o maravilhoso são os principais ingredientes, como é o caso
de narrativas indígenas em que o humano convive com entes sobrenaturais,

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fantásticos e terrosos, uma vez que as aparições desses elementos são comuns
no imaginário do homem amazônico.
Destaca-se a questão da autoria, uma vez que a literatura indígena ama-
zonense registrada, hoje, no suporte livro, advém de uma literatura oral, cujas
histórias são contadas e repassadas ao longo das gerações.
Yaguarê Yamã, que assina como autor da obra Puratig, o remo sagrado, é
um escritor jovem, da etnia Maraguá, que cresceu ouvindo histórias do seu
povo e hoje destaca-se no mercado editorial brasileiro com obras que tem pu-
blicado e pelo teor do conteúdo impresso nesses textos. Assim, por mais que
Yamã produza uma literatura originária de histórias que foram contadas há
séculos pelos seus antepassados, ele não deixa de ser autor, uma vez que todo
enunciado não é original, pois estará pautado numa fala anterior. Por isso vale
aqui as indagações:

Será que a autoria importa em preparar um manuscrito para a edição? Será

que implica traduzir ideias originais sem uma forma e um vocabulário acei-

táveis para uma publicação? Ou significa prover as ideias originais com o

vocabulário altamente idiossincrático no qual estão formuladas? (CLARK,

HOLQUIST apud NUTO, s/d)11.

No que diz respeito à literatura indígena amazonense e ao autor Yaguarê


Yamã, os três critérios acima cabem perfeitamente. Ao preparar suas narrativas
numa segunda, língua que não é a sua, Yamã atende ao primeiro critério como
autor. Ao retomar questões originais, como o mito, revisitar e desconstruir mi-
tos originais, como o das Icamiabas, criado pelo Frei Gaspar de Carvajal, e des-
construir ideias, como violência, brutalidade e outros exageros atribuídos aos indí-
genas, Yamã, na obra Pequenas guerreiras, contempla também o segundo critério.

11 A presente citação foi extraída de um artigo do Prof. Dr. João Vianney Cavalcanti Nuto, socializado por ele em uma de suas aulas da

disciplina Literatura e Cultura, ocorrida entre os dias 23 de julho e 03 de agosto de 2018.

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Ao manter características das narrativas orais em seu escrito e lançar mão de uma
combinação entre a língua Sateré-Mawé e a Língua Portuguesa, dando espaço para
palavras ou expressões indígenas, Yamã encaixa-se no terceiro critério. Pode-se afir-
mar que o quarto critério “informações que sejam coerentes com o tempo devido
a produção do autor” também está contemplado na produção literária de Yamã,
uma vez que ele produz seus textos a partir do que ouviu dos mais velhos; a partir da
realidade vivida por ele. Segundo Lajolo: “o mundo representado na literatura – por
mais simbólico que seja – nasce da experiência que o escritor tem de sua realidade
histórica e social” (LAJOLO, 2001, p. 47).
Ainda tratando acerca da questão da autoria, Bakhtin, na obra Estética da
criação verbal, levanta uma questão muito importante em torno de duas posições
do autor: o homem e o criador. Para Bakhtin,

um autor não é o depositário de uma vivência anterior, e sua reação global

não decorre de um sentimento passivo ou de uma percepção receptiva; o

autor é a única fonte de energia produtora das formas, a qual não é dada à

consciência psicologizada, mas se estabiliza em um produto cultural signifi-

cante; a reação ativa do herói percebido como um todo, na estrutura de sua

imagem, no ritmo de sua revolução, na estrutura de entonação e na escolha

das unidades significantes da obra (1997, p. 28).

Ao nos reportarmos aqui à figura do autor de literatura indígena, destaca-


mos mais uma vez Yaguarê Yamã, que tem se projetado não apenas no mercado
editorial, mas também no espaço acadêmico. A literatura produzida por Yamã
é um produto cultural fruto de sua experiência como homem e autor-criador,
que impregna nos seus textos a identidade cultural herdada de seus antepassa-
dos, mas também uma maneira crítica e reflexiva de enxergar o mundo e suas
problemáticas na contemporaneidade.

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Na obra Um curumim, uma canoa, Yamã narra a viagem imaginária de um


menino pelo mundo dos mitos, das lendas e da cidade. E nessa viagem imaginária,
o menino depara-se com a Iara e outros seres encantados do rio, bem como se vê
diante de um mundo em que a natureza é sufocada e agredida pela ação do ho-
mem. “No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (isolados) de sua
eventicidade, são organizados de um modo novo, subordinados a uma nova uni-
dade, condensados numa imagem autocontida e acabada” (FARACO apud BRAIT
2017, p. 38).
O autor-criador é quem cria o objeto estético e para contemplar a verossimi-
lhança, apropria-se de aspectos da vida, organizando-os, selecionando-os e dando
forma ao produto: a obra literária. O objeto artístico do escritor indígena que escre-
ve sua literatura a partir de elementos específicos do contexto amazônico, extrapola
o espaço amazônico quando trata questões relativas à morte, à ambição, à traição,
à violência, à natureza, às relações humanas, entre outros aspectos da vida, con-
templando assim a universalidade da obra, pois há em seus textos questões relativas
à condição humana. Os heróis de suas narrativas, em grande parte são homens
guerreiros que lutam com bravura contra tudo aquilo que venha trazer o desequi-
líbrio no seu meio, tem uma posição crítica e reflexiva diante de seu tempo ou são
guardiões do saber de seus antepassados. Por vezes, o herói das narrativas de Yamã
são seres sobrenaturais, espíritos em forma de animais ou de monstros, cuja missão
é manter o equilíbrio na natureza, protegendo-a das ações maléficas do homem,
como se pode ver nas narrativas “O Mapinguari”, “As Makukauas” e “Histórias de
Kawerá”, que estão no livro Contos da floresta.
Essas diferentes espécies de heróis encontradas na obra de Yamã, nos remete à
discussão trazida por Bakhtin ao tratar sobre as diversas abordagens e avaliações
acerca do herói.

O autor não só vê e sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e to-

dos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles vendo e

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sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis: é precisamente esse

excedente, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o

saber (BAKHTIN, 1997, p. 32).

Yaguarê Yamã enquadra-se, portanto, perfeitamente na descrição sobre


autor de acordo com Bakhtin. O escritor em questão parte de sua realidade
para construir suas narrativas e dali tirar seus heróis, tem um conhecimento
vasto e profundo do espaço em que circula suas personagens e, por conhe-
cer bastante esse espaço, levanta problemas do seu tempo histórico enquanto
sujeito, mas numa relação constante com o passado. O contador de história
presente em seus textos tem característica da literatura oral e se apresenta em
diferentes interfaces nas obras de Yaguarê. Ora ele se apresenta na voz e na pele
do próprio escritor, ora na figura do pajé.
Nas palavras de Yamã no prefácio do livro, essa multiplicação do narrador
é perceptível quando o escritor diz que:

[...] desde quando eu era um indiozinho que vivia feliz na minha aldeia, sem-

pre queria ouvir as histórias antigas do meu povo, e apreciava muito ouvi-las.

Procurava compreendê-las direitinho para depois passar para os meus des-

cendentes esse conhecimento, do mesmo modo que meus pais e meus tios

passaram para mim e meus avós para eles.[...] tenho o prazer de contar a

vocês neste livro algumas histórias do meu povo, os mitos narrados pelos

homens mais velhos e pelo pajé Karumbé, que surgiram nos tempos mais

antigos e foram preservados de geração a geração até os dias atuais (YAMÃ,

2001, p. 8).

O contador de história é elemento muito importante na manutenção da


identidade cultural dos povos indígenas, pois a ele cabe a função de repassar o
saber, os mitos, as lendas, o poder da cura pelas ervas medicinais, o modo de

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ver e pensar o mundo. Mas não basta apenas repassar de geração para geração
toda a história de um povo por meio da oralidade; ela precisa ser preservada
em algo concreto, sagrado, salvaguardando assim a memória e a identidade da
comunidade.
Para os Sateré-Mawé e para os Maraguá, é no remo sagrado Puratig que
está preservada a memória mítica. Como afirma ainda Yamã, “é no remo sa-
grado Puratig que estão gravados todos os nossos mitos” (YAMÃ, 2001, p. 8).
Na contemporaneidade, os mitos Maraguás saem, simbolicamente, do su-
porte remo, o Puratig, e passam a ocupar outros suportes, o livro impresso, que
se apresenta mesclando a cultura não-indígena, para atender sim, às exigências
do mercado editorial, mas acima de tudo manter viva a história dos antepas-
sados indígenas.
Ao tratar sobre a heterogeneidade dos gêneros do discurso, Bakhtin nos
mostra que como a língua não é estanque, “cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denomina-
mos gêneros do discurso” (2016, p. 12).
Isso significa dizer que, em se tratando da literatura indígena amazonen-
se, objeto deste estudo, pode-se afirmar que ela sai de um tipo relativamente
estável, a narrativa oral, e hoje se apresenta na língua escrita, dividindo espaço
com outras linguagens como a ilustração. “A língua é deduzida da necessidade
do homem de autoexpressar-se, de objetivar-se. A essência da linguagem nessa
ou naquela forma, por esse ou aquele caminho, se reduz à criação espiritual do
indivíduo” (BAKHTIN, 2001, p. 23).
E é da necessidade de se expressar, de falar ao outro sobre seu povo que os
escritores indígenas amazonenses se aproximam e se apropriam da língua e da
cultura do homem branco.

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David Kopenawa, da etnia Yanomami, em seu livro A queda do céu (2015),


em coautoria com Hebert Bruce, fala da necessidade dessa aproximação como me-
canismo de defesa e preservação de seu povo, de sua cultura.
Ao ser questionado em uma breve entrevista no livro Contos da floresta, de sua
autoria, sobre o que mais gosta e o que menos gosta na cultura do homem branco,
Yaguarê Yamã responde: “Gosto das novas tecnologias que facilitam tanto a nossa
vida. Do que menos gosto é do apego às coisas materiais e à ideia de que tudo tem
um dono, diferente do pensamento do meu povo, de que a terra é de todos (YAMÃ,
2012, p. 63).
Certamente, as histórias escritas por Yamã são formas híbridas, tanto no que
diz respeito à transposição da oralidade para a escrita, quanto na composição
do texto verbal que, em meio à língua portuguesa, insere palavras ou expressões
da língua Sateré-Mawé, ou nos apresenta uma narrativa bilíngue, como na obra
Guanaby-Murugawá: a origem do beija-flor, bem como outro tipo de linguagem,
a ilustração. Essas escolhas, certamente, têm um objetivo: a compreensão do tex-
to. Por isso, falar de dialogismo na literatura indígena é fundamental, até mesmo
porque, como bem esclarece Bakhtin, “toda compreensão é prenhe de resposta, e
nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (2016,
p. 25).
Assim, a partir do momento que a literatura de autoria indígena chega ao
mercado editorial, supõe-se que esses textos serão lidos, ouvidos por alguém. Esse
alguém certamente lançará um sentido ao que leu, dando portanto, uma resposta
ao eu/autor que escreveu a história, mesmo que ouvinte (leitor) e falante (escritor)
pertençam a culturas e mundos diferentes, pois como afirma Sobral,

o sentido nasce da diferença, mas não num sistema fechado de oposições.

Assim, a experiência no mundo humano e sempre mediada pelo agir situa-

do e avaliativo do sujeito que lhe confere sentido a partir do mundo dado,

o mundo com materialidade concreta. [...] não se trata, porém de propor a

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relatividade dos valores, mas, pelo contrário, o fato de que o valor é sempre

valor para sujeitos, entre sujeitos numa dada situação (apud BRAIT, 2017,

p. 22).

Assim, ao escrever seus textos, Yaguarê certamente dá-lhes sentido a par-


tir de um mundo que lhe é familiar e lhe possibilita falar a alguém, nesse caso
o leitor, a fim de não apenas circular suas produções literárias, mas também
provocar no receptor de seus textos uma tomada de posição, uma atribuição de
sentido responsivo. Essa postura responsiva de quem escreve e de quem recebe
a obra literária é o que possibilita inúmeras possibilidades de sentido que se
multiplicam e se diversificam a cada dialogismo entre o autor e o leitor, estabe-
lecendo assim uma relação de alteridade entre ambos, a partir da obra de arte.
Pode-se dizer que a literatura indígena amazonense a partir do momento
que circula no mercado editorial e se estende para outros cenários, estabelece
uma troca de saberes entre sujeitos opostos no campo cultural, concretizando
assim a existência do eu a cada novo encontro com o outro, num processo de
não acabamento.
Na obra Puratig, o remo sagrado, o dialogismo presente no texto dá-se do
encontro de diferentes eus. A começar pelo eu/autor que, na elaboração de sua obra
de arte, se depara com outros eus, como o narrador, os personagens humanos e não
humanas que por sua vez dialogarão com os próprios eus.
Cada eu dentro da obra tem uma função e um caráter diferenciado, os quais se
fundirão em outros eus, produzindo uma série de sentidos construídos a partir da
visão de mundo de cada eu no seu encontro com o outro. O eu, contador de história,
da obra em questão é uma personagem muito importante, pois é ele quem estabele-
ce na obra o primeiro contato com outros eus (os ouvintes).

Quando chega a noite, do mesmo modo que faziam seus antepassados, o ve-

lho caminha para uma das casas cobertas de palha e senta-se numa das redes.

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Então, o pessoal da aldeia e as crianças se aproximam e sentam aos seus pés,

sob as lamparinas acesas, para ouvir as histórias e aventuras do povo. [...]

Todos fazem silêncio e esperam ansiosos o velho começar sua narrativa. Ele

baixa a cabeça, respira fundo e começa a contar... (YAMÃ, 2001, p. 9).

O narrador é, na obra ficcional, um ser de papel criado pelo autor que,


como personagem, na relação com os eus/leitores, provoca uma atitude res-
ponsiva que não se fechará num único sentido, pois a cada encontro do eu
com o outro, há uma nova forma de ver e pensar o mundo, de refletir acerca
de si mesmo. “Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro,
sempre regressamos a nós mesmos; e o acontecimento último, a que parece-
-nos resumir o todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa própria vida”
(BAKTHIN, 1997, p. 37).
O eu/leitor, sujeito de corpo e alma, no contato com seres de papel, pode
tomar consciência de sua individualidade na sua relação com a sociedade. Ao
ler um texto ficcional o eu-leitor poderá reconhecer-se nesse texto pelos olhos
dos outros: narrador e personagem, seres de papel que, pela sua atuação na
ficcionalidade, trazem à baila a condição humana, provocando assim o reco-
nhecimento do leitor na obra de arte.
Em seu livro Para uma filosofia do ato responsável (2010), Bakhtin foca-se no
ser, responsável pelos seus atos e pela formação da sociedade.
Essa responsividade tem a ver com os atos praticados pelo ser, como as pala-
vras e ideias por ele escolhidas, as quais lhe acarretarão consequências que devem
ser responsabilizadas pelo ser.
Bakhtin nos diz que o ser se constitui como tal na sua relação com o mundo da
cultura e o mundo da vida; do social com o individual. Para ele, “a vida inteira na
sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com
toda a minha vida e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento
do meu viver-agir” (2010, p. 40).

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Na experiência com o outro o ser toma consciência de si e de sua responsabi-


lidade na vida social e particular. Na obra Puratig, o remo sagrado, vê-se a relação
de alteridade na troca de saberes entre o velho e os seus ouvintes.
O livro em questão traz sete narrativas que falam dos mitos cosmogônico,
etiológico, antropogênico, fechando com uma narrativa fantasmagórica.
Ainda tratando da relação de alteridade entre o velho e seus interlocutores, é
interessante destacar aqui que a obra termina com uma narrativa em que se deixa
claro a importância do velho como alguém que mantém viva a memória de seus an-
tepassados e cuja função é repassar essa memória para os mais novos por meio da
contação de histórias, como se pode observar no excerto da narrativa “O fantasma
da casa abandonada”:

Depois de ouvir essas histórias bonitas e fabulosas, deixamos o velho pajé

Karumbé tecendo vigorosamente sua rede de pescar sob o bonito e frondo-

so abieiro. Acenamos e nos despedimos. Voltamos para casa sonhando com

todas essas lindas histórias, imaginando aqueles tempos em que os animais

falavam como gente e os nossos grandes heróis viviam suas aventuras aqui

na Terra (YAMÃ, 2001, p. 41).

Os espíritos trasvestidos de animais de acordo com o perspectivismo in-


dígena são os xamãs, entidades sobrenaturais, responsáveis por comunicar o
conhecimento ao homem:

O xamanismo amazônico pode ser definido como habilidade manifesta por

certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e ado-

tar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a administrar

as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não-humanos como

estes se veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de

interlocutores ativos no diálogo transpecífico; sobretudo, eles são capazes

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de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer.

(CASTRO, 2002, p. 231)

Os indígenas, quando admoestados, ou acatam os conselhos e advertên-


cias dos xamãs ou arcam com as consequências, caso desobedeçam às entida-
des sobrenaturais da floresta. Podemos ilustrar aqui como exemplo duas nar-
rativas na obra Contos da floresta de Yaguarê Yamã, em que o espírito xamânico
adverte e castiga os homens pelo fato de eles desobedecerem às entidades sobrena-
turais e também atentarem contra a natureza.
O primeiro exemplo encontra-se na narrativa “As makukauas”, em que o ho-
mem caça makukaua, pássaro típico da Amazônia, de forma indiscriminada, ma-
tando além das suas necessidades. A mulher do caçador, vendo aquela quantidade
exagerada de makukauas para depenar e cozinhar, começa a murmurar e diz não
aguentar mais tratar e cozinhar tantos pássaros, desejando em voz alta que alguém
a ajude. De tanto reclamar, aparece para a mulher um homem alto, com pés de pás-
saro para ajudá-la. Ao terminar de ajudar a mulher, o homem com pés de pássaro
adverte ela e o marido, dizendo que se eles caçarem e matarem makukauas, além do
necessário, serão duramente castigados:

– Vou lhes avisar. E que isso sirva de lição para vocês. As makukauas são bi-

chos visajentos e não podem ser mortas aos montes, por uma só pessoa. Se

isso acontece, venho em visita e assombro o caçador. Ninguém pode matar

mais do que o necessário. De hoje em diante, você só matará para o seu con-

sumo, caso contrário, eu voltarei e não lhe darei perdão. Quanto à senhora,

preste atenção na hora de pedir ajuda. Não fale bobagem, chamando quem

não conhece. As mães-da-floresta são vingativas e não toleram gente tola.

Se instigarem os espíritos da floresta novamente, volto para matar vocês

(YAMÃ, 2012, p. 24).

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V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã

Em outra narrativa, intitulada “História de Kawera”, o espírito defensor


da floresta, encarnado na figura do monstro kawera, primeiramente adverte
o caçador, que diz não acreditar que kawera é real. O caçador desafia o mons-
tro que, por sua vez, o adverte, atentando-o para que não matasse os animais,
pois eles lhe pertenciam. Caso não obedecesse, o monstro voltaria e mataria o
caçador.

– Não falei que eu existo? Agora você vai ser um dos meus.

O rapaz finalmente reconheceu o poder do bicho:

– Largue-me, por favor. Prometo não voltar mais aqui.

– Não! Você me desafiou, agora não tem perdão. Eu lhe dei uma última

chance e você não aceitou. Aguente as consequências. Por ter desafiado um

Kawera, você será castigado [...].

– Ao anoitecer, vai acontecer a sua transformação.

O rapaz esperou. Enquanto dormia, o corpo dele ganhou garras, pelos, um

rabo, dentes grandes e afiados, os pés se transformaram em patas e surgiram

duas enormes asas em suas costas (YAMÃ, 2012, p. 15-17).

A relação discursiva entre o ente sobrenatural e os caçadores das duas


narrativas traz nas linhas do discurso, uma posição ideológica da entidade so-
brenatural, cuja função é impor, por meio de sua autoridade discursiva, uma
posição de poder sobre o homem. Nas linhas do discurso das entidades sobre-
naturais fica evidente a posição ideológica dos povos indígenas no que con-
cerne à relação do homem com a natureza e da importância deste respeitar os
espaços sagrados para preservar sua própria vida.
Esta posição ideológica é trazida à tona, nas narrativas, pelo modo como o
autor-criador indígena vê o mundo, pois “a posição axiológica do autor-criador
é um modo de ver o mundo, um princípio ativo de ver que guia a construção

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L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S

do objeto estético e direciona o olhar do leitor” (FARACO apud BRAIT, 2017,


p. 42).
A posição axiológica do autor-criador na literatura indígena amazonense se
constrói com ingredientes peculiares de uma literatura que traz no seu corpus as
marcas da oralidade, numa relação constante entre enunciador e enunciatário, en-
tre narrador e ouvinte, estabelecendo assim um caráter dialógico responsivo entre
o emissor e o receptor da obra de arte, nesse caso o leitor dessa literatura, que pode
ou não reconhecer-se no texto ao ser guiado pelos pensamentos de outrem. Bakhtin,
na obra Estética da criação verbal (1997), discute essa relação de alteridade entre
autor e herói, autor e leitor, reforçando o caráter responsivo da obra de arte. Para
ele, “na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regres-
samos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que parece-nos resumir a
todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa própria vida” (1997, p. 37). Ou seja,
o herói ficcional e seus desdobramentos na obra de arte estará sempre colocando
em evidência, nas malhas do texto ficcional, a vida, a nossa condição humana, por
meio dos atos do herói, que se manifesta na ficção de diferentes formas, com dife-
rentes posicionamentos ideológicos, construídos pelo autor-criador.
Daí que para Bakhtin, “o acontecimento estético, para realizar-se necessita de
dois participantes, pressupõem duas consciências que não coincidem” (1997, p. 42).
As duas consciências ficcionais, ao chegarem na terceira via, ou seja, o leitor,
provocam e criam assim uma terceira consciência, a do leitor receptor que dará
sentido e valor à obra de arte a partir de um contexto histórico e cultural do qual
ele faz parte. Em se tratando de literatura indígena amazonense, pode-se dizer que
essas narrativas, ao saírem do campo da oralidade e materializarem-se no texto
impresso, pelo autor-criador dos heróis, tiram do silenciamento e da invisibilidade
essa literatura considerada menor porque é oriunda de povos ágrafos, portanto,
considerados inferiores, subalternos; incapazes de produzir obra de arte.

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V i . A a p l i c a b i l i d a d e d o s e s t u d o s b a k h t i n i a n o s e m n a r r a t i v a s d o e s c r i t o r i n d í g e n a Ya g u a r ê Ya m ã

Diante do contexto, os estudos de Bakhtin sobre Rabelais, são fundamentais


para compreendermos a condição da literatura indígena amazonense, uma vez que
se trata de uma literatura ainda não consolidada, à margem do cânone literário,
mas que vem aos poucos ganhando o mercado editorial e espaço acadêmico.
Lembramos aqui Rabelais, uma vez que sua obra é profundamente marcada
pela oralidade, por um vocabulário que marcava o lugar de fala do homem da pra-
ça pública, rica na forma linguística, cultural e histórica; que provoca o riso e por
conseguinte, a sátira e crítica aos intelectuais e à língua do poder.
Ao tomarmos aqui o vocabulário da praça pública de Rabelais e ligarmos a
literatura, tratamos sobre o lugar de fala de quem escreve literatura com marcas
da oralidade, com a presença de elementos e ações simbólicas no texto que, por
trazerem marcas linguísticas fora da língua considerada padrão, ou por serem pro-
duzidas por escritores que não fazem parte do cânone literário, é literatura tida
como menor.
Nesse contexto, lembramos aqui a literatura indígena amazonense, que tem
como ingrediente as marcas da oralidade perceptivas nos mitos, na figura do nar-
rador que se apresenta como rapsodo e também na presença de elementos insólitos
responsáveis pela criação do mundo e do homem.
Assim, da mesma forma que imagens grotescas em Rabelais aparecem com
sentidos ambivalentes, como os excrementos e a urina, na literatura indígena ama-
zonense determinadas imagens e situações grotescas também carregam em si, sen-
tidos positivos e negativos. Para Bakhtin,

As imagens dos excrementos e da urina são ambivalentes como todas as ima-

gens do “baixo” material e corporal: elas simultaneamente rebaixam e dão a

morte por um lado, e por outro dão à luz e renovam; são ao mesmo tempo

bentas e humilhantes a morte e o nascimento, o parto e a agonia estão indis-

soluvelmente entrelaçados (1987, p. 130).

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No imaginário amazônico, registrado também na literatura em questão, o


sentido ambivalente de muitos elementos aparece recorrentemente no texto.
A exemplo disso, cita-se aqui a dissertação de mestrado de Sicsú (2013), em que
a pesquisadora aborda sobre o imaginário literário em dezenove narrativas da
literatura infanto-juvenil, analisando como determinadas imagens têm senti-
dos positivo ou negativo, dependendo do contexto em que se apresenta.
É o caso do peixe que pode significar vida, fartura, alimento para o ho-
mem e nesse caso, tem sentido positivo. Mas o peixe também tem um sentido
negativo, quando representa a morte, destruição e devoração do homem. Em
síntese, da mesma forma que esse animal pode ser alimento para o homem, ele
também pode devorá-lo. Quando muitas pessoas morrem afogadas nos rios
amazônicos, podem ser devoradas por peixes carnívoros-piraíba, pirara, can-
diru, piranha.
No imaginário amazônico, a cobra é um animal que carrega sentidos
ambivalentes, pois ao mesmo tempo que simboliza morte, ela também é tida
como protetora dos rios. Na obra Puratig, o remo sagrado, o sentido ambivalente
encontra-se na narrativa intitulada “Sobre a origem do mundo”. Na narrativa em
questão, a Cobra-Grande Moi Wató Magkaru tem uma carga semântica negativa,
quando simboliza traição, mas também tem sentido positivo, pois é dela que, se-
gundo o mito Maraguá, é criado o mundo.

Há muito, muito tempo o mundo não existia. Nada ainda havia sido cria-

do. Somente dois Espíritos Criadores viviam no infinito: Tupana e Yurupary.

Tupana criou A’at, o Sol, e Yurupary criou Waly, a Lua. E eles passaram a

existir.Um dominava o dia e o outro, a noite, e eles nunca se encontravam.

Por isso, Tupana e Yurupary tiveram a ideia de criar um ser que ficasse en-

tre A’at e Waty, entre o Sol e a Lua. Assim surgiu a Cobra-Grande Moi Wató

Magkaru Sése, uma grande serpente fêmea. A’at e Waty logo se apaixonaram

por ela. Mas a Cobra-Grande não se decidia. Quando chegava a noite, ela se

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deitava com a Lua e a amava. Quando despontava a primeira claridade da

manhã, ela deixava a Lua dormindo e ia se deitar com o Sol.E nenhum dos

dois desconfiava da traição e da deslealdade da Cobra-Grande. Um dia, po-

rém, a Cobra-Grande ficou grávida, e não sabia quem era o pai. Por isso ela

contou aos seus dois amantes que, ao saberem do fato, ficaram com tanta

raiva da Cobra-Grande que a deixaram sozinha e foram para o alto (YAMÃ,

2001, p. 10-11).

A partir do excerto da narrativa, tomamos aqui a cobra como símbolo


da traição que vem desde o mito cristão, no paraíso perdido e, na história de
Yamã, essa simbologia também se faz presente, pois a Moi Wató Sesé relacio-
na-se amorosamente com a Lua e o Sol, sem que eles saibam. Mas, no decorrer
da narrativa, pode-se perceber que a gravidez da Cobra-Grande, fruto desse
relacionamento com a Lua e o Sol, é que trará os seres que habitarão o mun-
do; seres reais e encantados. Assim, ao dar a luz a esses seres, a cobra tem um
sentido positivo.
A ambivalência de sentidos da cobra é perceptível em toda a narrativa, pois
ora ela aparece como símbolo da vida, da criação, ora ela simboliza a morte.

– Vocês me fizeram terra, está bem. Mas eu os chamarei sempre pra mim.

Esse será o preço que vocês pagarão por terem me transformado em mundo.

É por essa razão que todos os seres morrem, até mesmo os seres humanos: a

mãe. A Cobra-Grande, transformada em terra, está sempre nos chamando e

dela não podemos escapar (YAMÃ, 2001, p. 13).

Ao tomarmos como base os estudos de Bakhtin sobre Rabelais e possibi-


litando sua aplicabilidade à literatura indígena amazonense, acreditamos que
as narrativas oriundas da oralidade têm o mesmo valor que as literaturas pro-
cedentes da classe letrada.

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Se o vocabulário da praça pública em Rabelais, tem um importante lu-


gar na compreensão do modo de pensar e ver o mundo no contexto social do
escritor, a literatura indígena amazonense, embora escrita em português, ao
colocar em evidência expressões, mitos e imagens do contexto indígena, têm
uma carga ideológica muito forte na maneira como os nativos veem e pensam
o mundo.
Embora híbrida, a literatura indígena inscrita no suporte livro evidencia a
necessidade dos povos indígenas deixarem para a posteridade sua história, sua
identidade cultural, mesmo que para isso seja preciso apropriar forma de lin-
guagem na composição do livro, de todos os gêneros possíveis. É, em especial,
no livro Puratig, o remo sagrado que se chama atenção para a ilustração do livro.
A ilustração é uma linguagem não-verbal muito importante na composição de
um livro destinado ao público infanto-juvenil. Por isso ela não pode ser colocada e
nem vista como adereço, mas como linguagem que vem para reforçar ou acrescen-
tar ao conteúdo da linguagem verbal. Há de se destacar aqui, porém, uma diferença
entre livro com ilustração e livro ilustrado. No primeiro, a ilustração aparece ape-
nas como adereço que, pode muitas vezes, confunde o leitor; por sua vez, o livro ilus-
trado é aquele em que a ilustração agrega e acrescenta sentidos à linguagem verbal.
Peter Hunt, um dos grandes críticos da literatura infantil, assim diz sobre o
livro ilustrado: “Os livros-ilustrados podem cruzar o limite entre os mundos verbal e
pré-verbal. [...] podem desenvolver a diferença entre ler palavras e ler imagens: não
são limitados por sequência linear, mas podem orquestrar o movimento dos olhos”
(HUNT, 2010, p. 234).
Toca-se aqui na ilustração porque o livro Puratig, o remo sagrado, diferente
de outros livros ilustrados de Yaguarê Yamã, tem um estilo, um traçado diferente.
Em outras narrativas, a ilustração é feita por artistas plásticos de São Paulo
e do Rio de Janeiro, diferente do livro Puratig, o remo sagrado cuja ilustração nos
chamou atenção desde a capa. A pesquisadora, em questão, decidiu perguntar

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diretamento ao escritor sobre a ilustração do livro. Assim ao ser perguntado do


porquê do livro ser ilustrado pelas crianças da aldeia, por ele e por sua irmã Queila,
Yamã respondeu:

A pedido da editora. A obra era infantil. Então perguntaram se eu podia

pedir para algumas crianças da aldeia fazer. Aceitei. Mas como elas não al-

cançaram um desenho satisfatório para a editora pedi a minha irmã que é

artista plástica refazer alguns desenhos. Ela fez, mas não modificou tanto

para não ficar muito incompatível. Precisava de uma imagem de aldeia, en-

tão eu mesmo desenhei duas. E aí no final queriam um desenho que fosse

capa. Consultei as crianças e nenhuma delas conseguiu agradar a editora.

Pedi que a mamãe insistisse que elas fizessem um pouquinho com mais for-

ça os riscos e a pintura. Foi então que minha mãe de oitenta anos resolveu

ela mesma desenhar uma onça para que as crianças vissem. A editora gostou

da onça (rsrs). Mas o crédito a minha mãe não está no livro (YAMÃ, 2018,

setembro de 2018)12.

Como se sabe, um livro para ser publicado necessita passar pelas exigên-
cias do mercado editorial. Na fala de Yamã essa exigência é bem clara quando
a editora solicita que as crianças fizessem os desenhos. As ilustrações do livro
em questão ajudam a reforçar o conteúdo das narrativas, bem como acrescen-
tam mais informações. Para um leitor que não conhece o contexto amazônico
elas ajudam na compreensão. Importante também destacar a valorização dos
desenhos feitos pelas crianças, por Queila e pelo próprio escritor, pois elas têm
uma característica bem artesanal, diferente das ilustrações feitas por artistas
plásticos do Rio de Janeiro e São Paulo.

12 Entrevista cedida no dia 18 de setembro de 2018, via Messenger.

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Considerações Finais
A aplicabilidade dos estudos bakhtinianos na literatura indígena ama-
zonense é um grande desafio, uma vez que, por se tratar de uma literatura
que nasce no bojo da cultura oral, ela ainda é vista por muitos como literatura
menor.
Diferente, contudo, dessa visão estereotipada que ainda se tem acerca da
literatura indígena, seja ela do Amazonas ou de outro Estado do país, a litera-
tura indígena, objeto deste estudo, é rica, interessante e guardiã da memória
ancestral dos povos da Amazônia.
Por se tratar de uma literatura advinda da oralidade e hoje inscrita no su-
porte livro impresso, a literatura em questão, certamente se apresenta híbri-
da, tanto na materialidade do texto, quanto na língua em que é escrita, para
atender as necessidades do mercado editorial. Contudo, mesmo que os textos
em questão apresentem essa hibridização, eles continuam importantes para
a manutenção da identidade cultural do homem amazônico, pois mantém os
registros de lendas, mitos, saberes, modos de ver e pensar o mundo sob a ótica
de um escritor indígena.
É uma literatura tão rica que aspectos discutidos por Bakhtin na literatu-
ra de outros contextos culturais, puderam também ser aplicados nela, o que
prova que, diferente do que ainda se ouve por críticos e pesquisadores avessos
à literatura não canônica, a literatura indígena amazonense pede passagem
e busca sua legitimação no mercado editorial, nas escolas e, principalmente,
no espaço acadêmico. Por isso, a discussão aqui trazida é apenas uma dentre
tantas que se tem levado à academia, a eventos científicos culturais e a outros
espaços de discussão e divulgação científica.

Referências
BAKTHIN, Mikail. Os gêneros do discurso. Org. trad. Posfácio e notas de Paulo
Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.

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BAKTHIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:


o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
HUCITEC, 1987.
BAKTHIN, Mikail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Emsantina Galvão
G. Pereira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKTHIN, Mikail. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios
de antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2002.
FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-
chave. 5.ed. 4. Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2017.
LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores e leitura. São Paulo: Moderna, 2001.
NUTO, João Vianney Cavalcanti. Autoria em Bakhtin: um problema teórico.
Artigo socializado em uma de suas aulas da disciplina Literatura e Cultura,
ocorrida entre os dias 23/07/2018 a 03/08/2018
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-
chave. 5.ed. 4. Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2017.
YAMÃ, Yaguarê. Contos da floresta. Ilustração Luana Geiger. São Paulo:
Peirópolis, 2012.
YAMÃ, Yaguarê. Puratig, o remo sagrado. Ilustrações das crianças Sateré Mawé,
Queila da Glória e Yaguarê Yamã. São Paulo: Peirópolis, 2001.
YAMÃ, Yaguarê. Um curumim, uma canoa. Ilustração Simone Matias. Rio de
Janeiro: Zit, 2012.
YAMÃ, Yaguarê. Guanãby Muru-Gáwuá: a origem do Beija flor. Ilustrações
Taísa Borges. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2012.
YAMÃ, Yaguarê. Entrevista cedida no dia 18 de setembro de 2018, via
Messenger.

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Parte 2
LITERATURA, HISTÓRIA
E IDENTIDADES NA
AMAZÔNIA

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118
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

VII. Entre a literatura e a história,


a pacificação dos parintintins em O
Instinto Supremo de Ferreira de Castro
Veronica Prudente Costa

Henrique Andrade Germano

O presente trabalho refere-se à análise da obra O instinto supremo, do es-


critor português Ferreira de Castro, e é fruto de pesquisas que foram realizadas
durante a execução do Projeto “Presença Portuguesa na Amazônia”, que con-
tou com a participação de estudantes da Universidade do Estado do Amazonas
no âmbito da Iniciação Científica; surgiu do interesse em pesquisar narrativas
que dialogam com episódios relevantes da história da Amazônia escritas por
portugueses que migraram para este espaço.
Ferreira de Castro, amplamente conhecido pela obra A selva, publicada
em 1930, a partir das experiências vividas por ele no Seringal Paraíso, retorna fic-
cionalmente ao espaço amazônico com a obra O instinto supremo, publicada em
1968. O romance se insere nas características literárias do Neorrealismo, com a
ênfase na representação da realidade e dos problemas sociais que denunciam os
enfrentamentos entre seringueiros e indígenas.
Nascido em Salgueiro, na Vila Oliveira de Azeméis, Portugal, em 24 de
maio de 1898, Ferreira de Castro era um jovem pobre, mas otimista; se tor-
nou órfão de pai muito cedo. Iludido por novos horizontes, veio ao Brasil com
destino a Belém do Pará, onde esperava encontrar progresso com um bom em-
prego, contando especialmente com a boa vontade de seu padrinho. Porém, de
acordo com Baze (2012), após desembarcar em Belém, logo vivenciou sua pri-
meira desilusão, percebendo que no domicílio de seu padrinho não havia lu-
gar para se acomodar, e em consequência disso, seria incentivado por ele para
aceitar o trabalho de seringueiro. Assim, o futuro escritor português passou

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por muitas situações humilhantes. Já no embarque se deparou com as condi-


ções precárias em que homens, mulheres e crianças, cheios de esperanças de
enriquecimento, eram levados como animais para os confins da floresta sem
nem saber o que futuro lhes reservava. Destacando na partida, a divisão de
classes no barco “Justo Chermont”, pois os barões dos seringais viajavam na
primeira classe e se vestiam de forma diferenciada tendo o chapéu na cabeça
como marca distintiva.
Recrutado como mão de obra, o escritor se juntou a homens, geralmente
do sertão nordestino, torturados pela seca e pela miséria, iludidos com falsas
promessas de riqueza fácil, trabalhando no serviço de extração do látex, que
constituía a principal força da economia exportadora da borracha vegetal e
trouxe um grande retorno econômico para a Amazônia. Esse amplo processo
migratório ampliou consideravelmente a população amazônica. Do auge ao
declínio da borracha, algumas vidas prosperaram e outras tantas se perderam.

Mas já no ano de 1911, o adolescente Zé Maria Ferreira de Castro presenciou

os primeiros sinais do declínio do ciclo da borracha triunfante e as primei-

ras dificuldades econômicas e financeiras dos atacadistas de látex [..] onde

imediatamente começou a agravar-se as condições de vida e de trabalho dos

seringueiros, presos no “cárcere verde” na mata tropical, onde se tinham en-

tranhado em busca de um amanhã melhor (BAZE, 2012, p. 24).

Assim, Ferreira de Castro foi testemunha dos primeiros momentos do


declínio da economia e vivenciou o sofrimento dos seringueiros, su-
jeitos à boa ou má vontade dos seringalistas e comerciantes que os en-
ganavam, pois na maioria dos casos, sequer sabiam escrever o nome.
Deste modo, o universo do seringal e dos desafios na floresta são mui-
to presentes na obra castriana e são fatos importantes para análise da
obra em tela, pois permitem um diálogo interessante entre a Literatura
e a História dita oficial em um enredo ficcional cuja unidade temática
é a pacificação dos Parintintins – realizada historicamente por Curt

120
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

Nimuendajú, em 1922 e seguindo as orientações de Cândido Rondon.


A obra expõe características do contexto histórico amazônico em uma
narrativa detalhista, densa e complexa; com situações que mostram a
vivência na floresta e seus perigos enigmáticos. Evidencia a violência
entre seringueiros e indígenas, entrelaçada por situações psicológi-
cas que expõem a força e as fraquezas da mentalidade humana sob o
efeito do medo e no confronto com o Outro. A ferocidade dos nativos
mais temidos e conhecidos como decapitadores de cabeça era um obs-
táculo a ser enfrentado para atingirem seus objetivos.
Trabalhando nas lacunas da História oficial, o escritor denuncia a dura
realidade de um mundo vivido no interior da floresta, totalmente con-
trário àquele mundo encontrado nas capitais da borracha ou do mundo
europeu de onde veio.

Ferreira de Castro é o primeiro escritor a apanhar a realidade da vida amazô-

nica numa linguagem coerente e pensada criticamente. A cor, o monocórdio

cotidiano, os odores, toda a sorte de experiências encontram-se registradas

nas páginas de seu romance. Um registro de voo rasante, totalizador e, por-

tanto, direto e profundamente documental. Ao nível estético, é a reconquista

do homem como centro e personagem do drama amazônico. E, por ser do-

cumental, o estilo e intransigente. O homem não é uma figura da retórica

em sua narrativa. O homem é o seringueiro, o explorado, e a prosa amazôni-

ca torna-se insolente, denunciadora. A falsa sublimidade da literatura oficial

sofre um abalo, a linguagem literária, em Ferreira de Castro, torna-se grave,

contundente. Finalmente, a Amazônia merece um escritor que claramente

revela as circunstâncias vitais em que o homem encontra-se prisioneiro de

uma aberração (SOUZA, 2010, p. 139).

Tornando-se deste modo um escritor incumbido em relatar os bastidores


e agruras da vida na floresta, temos em detalhes o conhecimento amazôni-
co assimilado pelo autor e que também expõe as relações humanas existentes

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entre os personagens, ou seja, a relação homem versus floresta e as ideologias e


compreensões do mundo amazônico que estão em jogo. Logo no início da narrati-
va, observamos a descrição do navegar cauteloso pelo rio, a fim de se protegerem de
possíveis ataques: “com os remos a chapejarem surdamente, cautelosos como os dos
ladrões, nas proas um ruído fino, menor ainda que o dos botos cortando a tona da
água as canoas meteram a terra.” (CASTRO, 1988, p. 21)
Temos a evidência de um aspecto muito importante, o conhecimento ama-
zônico da navegação silenciosa para que pudessem navegar na surdina, evitando
o ataque dos Parintintins. Também deve ser observado o emprego da palavra “la-
drão”, indicando a forma como se comportam. Nesta passagem da obra, um grupo
de homens seguia na calmaria do rio Maicy Mirim com o propósito de derrubar as
árvores longínquas de suas margens. Naquele local seria a abertura de um posto de
pacificação, conforme as táticas determinadas por Rondon.
Um sentimento de grande inquietação e de uma ameaça iminente apavora os
sujeitos na embarcação. Fazendo emergir no mais íntimo dos homens, o instinto
supremo de conservação da vida que através do medo, se torna inevitável. Logo em
seguida, observamos a descrição de como a ação de derrubada da mata é descrita
de forma a mostrar a violência contra a natureza:

O machado voltou a insistir. O tronco foi-se inclinando, estalando pouco a

pouco, ainda hesitante em obedecer ao desígnio dos seus algozes. E quando,

enfim, se decidiu, os galhos dos vizinhos, a que se amparava e com brutalida-

de ia partindo, lançaram protestos mais ruidosos e aflitos do que ele próprio,

que a esse apoio forçado ficou devendo poder morrer abafadamente, como

se tivesse rolado de degrau em degrau, até à cova. Desde então, na noite

cheia de rumores, poucos minutos decorriam sem que se ouvisse “Vai pau!”,

“Vai pau!” e sem que os quatro jactos de luz tornassem a aderir, no jeito de

arcobotantes, à frança da nova vítima.” (CASTRO, 1988, p.22)

122
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

Neste contexto podemos observar que a floresta está assumindo a posição


de vítima diante da agressão que está a sofrer, como uma crítica à ação que está
sendo executada pelos homens, configurando-os como indivíduos perversos,
como podemos observar. É preciso considerar, no entanto, que estes homens
estão condicionados por uma ação externa e não interna a eles próprios. Por
questões de subsistência, assumem a posição de agressores e carrascos da flo-
resta, e assim inimigos dos indígenas, sem nem terem conhecimento profundo
dos interesses maiores que estão por trás das ações demandadas.
A partir da violência impetrada à floresta, destacamos a forma como os in-
dígenas são nomeados como “demônios”, nesta passagem: “as próprias árvores
tinham abandonado o ar austero e imóvel, essa enigmática expectativa com
que haviam recebido, pouco antes, aquele bando de demônios que tudo assa-
rapantava ao seu redor.” (CASTRO, 1988, p. 22). Usando do discurso religioso
para denominar os indígenas como demônios, percebemos rastros da ideolo-
gia religiosa colonial que ainda não havia abandonado o pensamento social so-
bre o índio não “civilizado” no início do século XX. A partir do momento que se
tornam pacificados ou “civilizados” deixam de ser nomeados como demônios e
passam a ser vistos como irmãos.
Em seguida à derrubada das árvores, pelo olhar impaciente de Amaro ao
relógio, os personagens se mostram preocupados em sair da floresta antes que
o sol raiasse. Mas, apesar da preocupação, são surpreendidos:

De súbito, assustando a paz da manhã em desenvolvimento, revoaram até

elas brados de guerra, estridentes e selváticos, através dos quais a morte

parecia tomar, antecipadamente, uma voz de frenética alegria; brados de

triunfo, alternando com gritos de dor, tão agudos, tão desesperados, como

jamais os enormes troncos, nem mesmo os muito velhos, tinham ouvido

naquelas solidões do Mundo. (CASTRO, 1988, p. 25)

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L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S

Este episódio que é narrado em sequência do tombamento das árvores,


entenderemos melhor mais adiante na narrativa quando, semanas depois, já
diante de Curt Nimuendajú, os homens que restaram da empreitada relatam
o ataque dos Parintintins. Os desafios de lidar com o universo amazônico se
refletem na obra como a necessidade de pacificar esses nativos em prol da tran-
quilidade e segurança que esses homens necessitavam para realizar a extração
da borracha.
Neste sentido, a floresta é vista como um lugar onde há a perdição do
homem ou sua fortuna se não souber lidar com seus perigos. Do ponto de
vista social e cultural, é tida como vítima dos homens e de todo e qualquer
processo de exploração, ao observarmos como a narrativa exprime a violên-
cia da derrubada de árvores. Há, portanto, uma contradição, pois ao mesmo
tempo em que há a violação da floresta, há o desejo de dominá-la para fins de
enriquecimento, onde todo aquele que se coloca como barreira de qualquer
processo de exploração comercial da floresta e suas inúmeras riquezas precisa
ser “amansado” ou “pacificado”.
A ideia de pacificação nos é transmitida logo no início da narrativa através
de uma carta enviada pela esposa de Bonifácio queixando-se da ausência do
marido e do perigo a que ele estava se expondo na missão:

[...] mas que ia continuar no Serviço de Protecção aos Índios. Disseste que

era um dever civilizar eles, fazer deles homens iguais aos outros e que tinhas

as mesmas ideias de Rondon e se todos tivessem as mesmas ideias as pessoas

seriam melhores no futuro. [...] Te parece, que esses selvagens, que só sabem

cortar as cabeças aos civilizados, merecem os sacrifícios que vais fazer por

eles? (CASTRO, 1988, p. 31)

Percebemos nesta passagem a referência direta às ideias de Cândido


Rondon (1865-1958), que foi um importante personagem histórico. Ele

124
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

próprio, tendo antepassados indígenas, se identificou com a causa pacificado-


ra e estabeleceu formas de contato que deixou um legado controverso para as
futuras gerações. Ainda jovem, Rondon se mudou do Mato Grosso para o Rio
de Janeiro para estudar na escola militar, desenvolvendo uma carreira militar
de sucesso. Se destacou como grande sertanista, se empenhou na expansão
do telégrafo e na abertura de estradas. Foi o primeiro presidente do Serviço
de Proteção ao Índio – SPI, um dos pioneiros na política indigenista do país.
Instaurou uma política de desbravamento das florestas e de pacificação indíge-
na, cujo lema era “Morrer, se preciso for; matar, nunca”. Também foi o ideali-
zador do Parque Nacional do Xingu e incentivou a criação do Museu do Índio.
O SPI foi a primeira agência leiga do Estado brasileiro a gerenciar povos
indígenas. Embora em muitos momentos os seus ideólogos enunciem os seus
princípios de acordo com uma linguagem positivista (e mesmo com uma retó-
rica anticlerical), o modelo indigenista adotado retoma – como herdeiro – for-
mas de administração colonial empregadas desde os tempos dos missionários
jesuítas. Os postos indígenas do séc. XX mantêm muitos pontos de semelhança
com os aldeamentos missionários constituídos desde o séc. XVI. A explicação
circunstanciada de algumas regulamentações e a descrição de algumas práti-
cas dos indigenistas no séc. XX permitirão a compreensão dessa genealogia.
(OLIVEIRA & FREIRE, 2006, p. 112)
Em suas andanças pela Amazônia e outros sertões do Brasil, Rondon teve
contato com diversas etnias indígenas. Destaca-se que na sua passagem pelo
Amazonas foi defensor dos Parintintins, que sofriam diante de constante con-
flito e perseguição por parte dos seringueiros. Na obra de Ferreira de Castro
ele aparece primeiramente através de uma carta enviada aos homens que o
aguardavam para uma nova missão:

“Estou em espírito com vocês e ninguém pode imaginar como lamento não

estar em corpo também. Conto com a vossa coragem. Os índios são nossos

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irmãos, são mesmo os mais brasileiros dos brasileiros. O nosso sangue veio

da Europa e da África e começamos por estrangeiros, ao passo que o deles

aqui se gerou e se desenvolveu. Quando os portugueses chegaram, já esta

pátria, que parece sem fim, tão grande é, pertencia aos índios, desde tempos

tão remotos que ainda hoje não lhes podemos atribuir uma data certa. [...]

Tomámos-lhes as terras, algumas vezes mesmo os brancos destruíram-lhes

as malocas, por essas clareiras afora, nos recessos das selvas, onde criavam

os filhos e confiavam ao sol uma vida isenta de ambições; e quando reagiam

aos invasores, com suas flechas primitivas, gentes sem compreensão respon-

diam-lhes com balas e rifles. Chegou, porém, o momento de concluirmos

a tarefa pacificadora, que iniciámos há tempos, de acordo com o profundo

sentido humano do nosso povo. Devemos concluí-la sem sangue, antes com

paciência e fraternidade, para que os índios possam evoluir e beneficiar tam-

bém da civilização que existe agora no Mundo” (CASTRO, 1988, p. 34).

Destacamos a carta na íntegra para que possamos vislumbrar alguns pon-


tos importantes da ideologia que a permeia. Através das palavras de encoraja-
mento e da importância da missão, percebemos ainda certos valores oriundos
da colonização, no sentido de ver os nativos como seres a serem civilizados e
pacificados. Neste sentido, com base no enredo ficcional e em fundamentos
históricos, foi verificado que Rondon era firme nessa retórica de lidar com os
indígenas, defendendo que eles não deveriam ser tratados como propriedade
do Estado, mas como Nações autônomas. Apesar de na prática, terem sido tu-
telados após a pacificação.
Em seguida à leitura da carta, os personagens declaram que há retóri-
ca nas palavras de Rondon, pois sabem que as lutas pela vida na floresta não
eram fáceis. Este questionamento está intimamente relacionado às contradi-
ções históricas na representação de Rondon como defensor da causa indígena
no Brasil. Pois, se por um lado ele defendia a vida dos indígenas, por outro, o

126
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

legado de Rondon e do SPI sofre severas críticas de indigenistas da atualidade.


Em que pese o discurso de proteção guiado pelos ideais positivistas, muito san-
gue indígena foi derramado ao longo do século XX. Essa crítica nos faz recor-
rer às reflexões do antropólogo João Pacheco de Oliveira a respeito do regime
de tutela que se instala na política indigenista brasileira a partir da experiência
de Rondon:

O regime tutelar, instaurado com a criação de uma agência indigenista

inspirada na experiência da Comissão Rondon e formatada no sertanismo

como representação imagética, tem seu dinamismo estabelecido por uma

contradição básica e fundadora, conhecida como “o paradoxo da tutela”

(PACHECO DE OLIVEIRA, 1988).

O tutor existe para proteger o indígena da sociedade envolvente ou pa-

ra defender os interesses mais amplos da sociedade junto aos indígenas? É

da própria natureza da tutela sua ambiguidade, as ações que engendra não

podendo ser lidas apenas numa dimensão humanitária (apontando para

obrigações éticas ou legais), nem como um instrumento simples de domina-

ção. É no entrecruzamento dessas causas e motivações que deve ser buscada

a chave para a compreensão do indigenismo brasileiro, um regime tutelar

estabelecido para as populações autóctones que foi hegemônico de 1910 até

a Constituição de 1988, perdurando em certa medida até os dias atuais em

decorrência da força de inércia dos aparelhos de poder e de estruturas gover-

nativas (OLIVEIRA & FREIRE, 2006, p. 115).

Nesta reflexão observamos que a crítica feita por Oliveira comprova que
ainda não conseguimos chegar a um consenso entre as políticas econômicas,
socioambientais e humanitárias em relação aos indígenas em pleno século XXI.
Daí a importância da obra de Ferreira de Castro, que se baseia em fatos e do-
cumentos históricos, para nos fazer pensar sobre como, através da Literatura,

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vislumbramos um passado que se reflete no presente ainda de maneira cruel


para os povos da floresta e de como o autor, em poucos anos de vivência na
Amazônia, conseguiu captar tão bem e com tantos detalhes, os dilemas e en-
frentamentos presentes nesse espaço.
Na obra há uma construção retórica para persuadir os homens recruta-
dos com palavras inspiradoras, camuflando os objetivos econômicos dos serin-
gueiros, com um discurso de visão humanitária e introduzindo valores de um
conceito de civilização proveniente do eurocentrismo, sendo aqueles incapa-
zes de compreenderem que estavam diante de outras formas de ver o mundo
e de se relacionar com a natureza, estabelecendo outros padrões de cultura.
Essa persuasão no discurso foi identificada por um dos integrantes do grupo
de pacificação, Jarbas, que era alfabetizado, “o único que deixava escorrer, pelo
canto dos lábios, um sorriso lento e ambíguo” (CASTRO, 1988, p. 34), que já
havia trabalhado em fábricas em outros Estados, mas por motivo de desempre-
go, buscou outras formas de subsistência, migrando para o Amazonas. Nota-se
que seu grau de compreensão da realidade é mais amplo que os dos outros ho-
mens presentes em seu grupo, pois indaga questões complexas para este meio:
“Beneficiar da civilização... Que civilização? Isso é retórica! [...] e quase todos
se entreolharam, surpresos e interrogativos, que muitos deles ignoravam até o
significado da última palavra (CASTRO, 1988, p. 34).
Apesar da compreensão limitada, muitos homens não estavam se dei-
xando levar apenas pelas ideias de Rondon, mas também por outros motivos,
como o gosto pela aventura, a curiosidade de se arriscarem numa missão tão
difícil e que oferecia histórias de lutas e perigos ouvidas há tempos:

Confuso desejo de se transcenderem, um momento que fosse, mesmo só por

intenção, vontade de ultrapassarem a luta diária de cearenses e maranhenses

na mata brava, de que eles eram testemunhas desde a infância, os impelia; e

a certeza de serem ainda vigorosos para meter direito aos perigos, rompendo

128
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

a monotonia quotidiana de suas pobres vidas, produzia-lhes, com um fervor

de coragem, um sentimento de superação. (CASTRO, 1988, p. 45)

Assim como o desejo de aventura, também o motivo financeiro era um


atrativo que este trabalho poderia oferecer, como por exemplo, quando o cabo-
clo Eleutério preocupava-se em cumprir suas palavras, pois comprometeu-se
em dar “um baile de duzentas pernas. “É, há-de ser no meu terreiro [...]” mas
veio-lhe o problema “onde ia arranjar dinheiro para tanta cachaça?” (CASTRO,
1988, p. 41).

De Três Casas, de Popunhas, de Pádua e de Paraíso vinham também ofer-

tas de seringueiros, algumas chanceladas até pelos donos dessas tremendas

florestas, ansiosos de porem fim às ameaças que impediam fortemente a

exploração da borracha, por tantas mãos de párias colhidas nas verdes de

silêncios estarrecidos. (CASTRO, 1988, p. 45)

Essas informações circularam rapidamente por toda região. Dessa for-


ma, muitos homens nordestinos, ex-seringueiros, caboclos ribeirinhos, e
até mesmo seringueiros com dívidas ainda pendentes, foram cedidos pelos
seringalistas:

[...] variados na tez como na estatura, brancos e pretos, brônzeos e mulatos,

uma dezena de corpos entre os trinta e os cinquenta anos, quase todos se

retraíam, sussurrando apenas as palavras, por se encontrarem nos aposentos

do senhor daquelas terras imensas, tão misteriosas e tão pouco habitadas

que dir-se-iam mesmo sem dono. (CASTRO,1988, p. 33)

Após participarem do recrutamento para a pacificação, muitos tinham


dúvidas sobre o problema em que estavam prestes a se meter, pois o lema de-
fendido por Rondon “Morrer se necessário for! Matar nunca!” desencadeou

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uma série de incertezas, contradições e reflexões entre os homens, conforme


veremos a seguir:

Entre o algoz e a vítima é sempre a vítima que adquire autoridade moral.

[...] Eu conheço, por mim próprio, a dificuldade que temos em subjugar o

instinto de conservação, que é o instinto supremo do homem, sobretudo

quando há grande risco de morte. O movimento de legítima defesa só pode

ser dominado pela força de uma ideia, que será tanto mais poderosa quanto

mais nobre for (CASTRO, 1988, p. 34-35).

E ainda, mais adiante, para além das dúvidas em relação às suas próprias
vidas, começam a duvidar dos benefícios da empreitada civilizatória para os
indígenas:

– E que vantagens podem trazer, afinal, toda esta nossa canseira e todos os

perigos que vamos correr? [...] Não digo vantagens para nós, digo para os

índios, é claro. Há quem pense que não vão ganhar nada com isso. Outros

julgam que eles são uma vergonha para a civilização. [...] Mas que benefícios

terão eles em ser civilizados agora? Talvez os índios não sejam mais felizes

do que nós, pode ser, mas infelizes também não são. Andam acostumados

àquela vida, como nós andamos à nossa. Trabalhar verdadeiramente, como

nós, não trabalham. Acertar com a flecha num bicho não é trabalho, é uma

satisfação. Também não precisam de dinheiro para muitas coisas de que nós

precisamos, nem eles precisam dessas coisas. E mulheres não lhes faltam.

(CASTRO, 1988, p. 50)

Deste modo, na narrativa de Ferreira de Castro há espaço para a dimen-


são psicológica e humanitária desses sujeitos que, ainda de maneira rude, co-
meçam a refletir se a forma de vida dos indígenas não seria melhor do que a
deles próprios, ou simplesmente diferente na forma de enxergar as relações

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Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

de trabalho, a necessidade pelo dinheiro e as relações entre homem e mulher.


Essas reflexões surgem quando estão prestes a entregar suas vidas em prol de
uma aventura que poderia ser de muito sucesso ou de morte para cada um de-
les. Quais interesses maiores estariam por trás dessa expedição?
Fundamentando a nossa reflexão em dados históricos, fica óbvio o inte-
resse de Rondon em transformar os índios em pessoas civilizadas em prol de
torná-los mão de obra para os interesses econômicos do Estado, para a defe-
sa das fronteiras e para deixar o caminho livre para a extração da borracha.
Segundo Melo (2007), de acordo com o pensamento positivista, o caminho
correto seria retirá-los do “primitivismo” e levá-los para um “estágio positivo”
para incorporação destes povos à sociedade, tornando-os produtivos e geran-
do assim o progresso.
Conforme a carta, Rondon os considera como irmãos e até mesmo mais
brasileiros do que ele próprio, para que isso instigue a identificação dos ho-
mens no sentido da ação pacificadora. Porém, esses argumentos são refutados
historicamente ao observar o seu interesse maior:

Imaginava ele que as terras ocupadas pelos indígenas deveriam ser desen-

volvidas economicamente, sob a orientação dos denominados “patrões”, que

eram ou tinham sido responsáveis pela empresa seringalista e/ou castanhei-

ra. Predominava uma interpretação do extrativismo baseada na lógica dos

“patrões” responsáveis pelo sistema de aviamento e pela imobilização da for-

ça de trabalho indígena” (MELO, 2007 p. 208).

Nota-se, entretanto, na carta, que é fato reconhecido o massacre feito


contra os indígenas no passado colonial e também no período pós-colonial e
o reconhecimento dos mesmos como verdadeiros donos desta terra. Por este
motivo, durante o processo de recrutamento, estes são advertidos que em caso

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de perigo, caso fossem atacados, só poderiam se defender pela inteligência e


nunca pela violência (CASTRO, 1988, p. 44).
Deste modo, a ação indigenista teria por finalidades:

a) estabelecer a convivência pacífica com os índios; b) agir para garantir a

sobrevivência física dos povos indígenas; c) fazer os índios adotarem gra-

dualmente hábitos “civilizados”; d) influir de forma “amistosa” sobre a vida

indígena; e) fixar o índio à terra; f) contribuir para o povoamento do inte-

rior do Brasil; g) poder acessar ou produzir bens econômicos nas terras dos

índios; h) usar a força de trabalho indígena para aumentar a produtivida-

de agrícola; i) fortalecer o sentimento indígena de pertencer a uma nação

(SOUZA LIMA, 1987 apud OLIVEIRA & FREIRE, 2006, p. 112-113).

Dito isto, verificamos que estas ações estão presentes na obra ficcional
de acordo com os valores rondonianos e, ora em diante, prosseguimos a nossa
discussão, destacando a presença de outra importante personagem histórica
presente em O instinto supremo – Curt Nimuendajú. Historicamente, ele se dedi-
cou à causa indígena e morreu entre os índios em 1945. Nascido em 1883, como
Curt Unkel, o etnólogo alemão chegou ao Brasil aos 20 anos, e ganhou o novo
sobrenome dos Guarani, em 1905, que significa “aquele que constrói sua própria
morada”. De fato, Nimuendajú construiu a sua morada no Brasil, pois foi um pro-
tetor incansável dos indígenas e fez descobertas importantes no campo não apenas
da etnologia, mas da arqueologia e da linguística.
Considerado o precursor da linguística no Brasil, descreveu as línguas de di-
versos grupos indígenas, dominava bem o português, o guarani e o nheengatu e
deixou material que abriu caminhos para diversas novas pesquisas. Muito já foi
feito e ainda há por fazer e descobrir de seu legado. Além de muitos textos contendo
informações detalhadas sobre as etnias que observava, seus modos de vida e o olhar
sobre a natureza onde passava, ele deixou um grande acervo de imagens:

132
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

Suas imagens, capturadas no curso de quatro décadas de trabalho e durante

38 expedições feitas de norte a sul do país, revelam a existência e os modos

de vida de dezenas de povos indígenas habitantes desta terra – alguns deles

já extintos. (VEIGA, 2018, p. 1)

Infelizmente, a parte física deste material deixado por ele foi perdido no
incêndio ocorrido no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018.
Mas graças ao trabalho de pesquisadores, desde a década de 80, muitas des-
sas imagens foram microfilmadas e digitalizadas. Além do Museu Nacional
do Rio de Janeiro, há acervo de Nimuendajú em vários museus do mundo.
Conhecendo a vasta produção escrita que ele deixou, temos a oportunidade de
conhecer os olhos atentos que registraram detalhes da vida, costumes e cultu-
ras, bem como peculiaridades da forma como se identificavam. Destacamos as
anotações realizadas a respeito dos Parintintins:

A tribu de índios vulgarmente conhecida por “Parintintin”, no Rio Madeira,

em sua própria língua se denomina Kawahíb ou Kawahíwa quando este nome

ainda é seguido por um suffixo, uma posposição ou um adjetivo. Não tem este

nome a significação de “homens da matta”, como Martius explica (CM II.5), mas

é composto de kab, káwa = vespa + ahíb ( = ?), e designa uma pequena qualida-

de de vespas sociaes, de côr avermelhada e muito irritaveis que também entre

os moradores do Baixo Amazonas é conhecida por ‘cauahiba’. “Parintintin” são

estes indios chamados pelos seus inimigos, os Mundurukú. [...] Desconheço a

significação desta palavra e a explicação dada por Martius (CM 1.707): pore

tendis - raptores de crianças, na Lingua Geral (?), não me parece admissível. G.

Tocantins cita na mesma página também os “Paren-an-an, e parin-a é o nome

da cabeça do inimigo, cortada como tropheo, en Mundurukú (a = cabeça). Em

língua Maué todos os índios hostis são denominados Paritín. (NIMUENDAJÚ,

1924, p. 46-48)

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Portanto, compreendemos que a denominação de Parintintins foi dada


por outros grupos, pelo fato deste grupo ser historicamente conhecido como
hostil, violento e tem como marca registrada o processo de decapitação. No en-
redo, eles aparecem como os mais ferozes do Amazonas. É fato que defendiam
suas terras da cobiça dos exploradores, sobretudo dos seringueiros. Também
não se subjugavam a nenhum tipo de trabalho forçado, daí a necessidade da
pacificação. Conforme já discutimos, está claro na obra ficcional o propósito
de que “no fim das contas, a pacificação dos índios permitindo assim a lida dos
seringueiros isenta de riscos e de interrupções, e não o lugar onde se efectuasse
o ingresso dos selvagens na civilização.” (CASTRO, 1988, p. 37)
Na narrativa, o etnólogo é representado com a missão de empreender a
pacificação dos temidos Parintintins, auxiliado por um grupo de homens que
às vezes não o compreendiam e não conseguiam cumprir o que era solicitado.
Apesar do fácil recrutamento, a execução das ações nem sempre saíam confor-
me o planejado de que tudo ocorresse em paz e sem mortes. Observamos que
Nimuendajú é representado como um homem comedido, de poucas palavras,
sem muitas emoções, diferente da vida real, conforme relatos sobre o etnólogo.

Alguns destes lagos conservam no verão uma quantidade fabulosa de peixes

e são, por esta razão, annualmente visitados pelos Parintintin, vizitas estas

que muitas vezes resultam em encontros hostis, com os seringueiros, ha-

bitantes dessas regiões. A terra firme é coberta de matta alta, mas não da

mais vigorosa, onde existem castanhaes e algum caucho. São estas riquezas

naturaes que incitam o civilizado a arriscar a sua vida na conquista da terra

dos Parintintin. No divisor de águas, apenas perceptivel, entre o Madeira e

o Maicy encontrei muitos cerrados e até alguns campestres limpos (“cam-

pinaranas”), e tambem muitas lagôas e patauazaes (Oenocarpus batuá) que

formam obstaculos desagradavéis para o explorador. (NIMUENDAJÚ, 1924,

p. 6)

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Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

Esta citação pertence ao relatório publicado no Journal de la Societé des


Américanistes”, em 1924, baseado na experiência de contato entre Nimuendajú e
os Parintintins. O próprio Ferreira de Castro o cita como fonte histórica para a
construção de sua obra, apesar de afirmar que teve a liberdade de se afastar do rigor
histórico para a escrita do romance. A leitura deste documento é importante para
conhecermos os Parintintins e como ocorreu o processo de pacificação na vida real.
Na narrativa, observamos o conflito de interesses entre seringueiros e indíge-
nas. Enquanto muitos chegam para o trabalho no seringal pensando em dias me-
lhores, os Parintintins lutam pela defesa do seu território com violência, decapitan-
do os inimigos a fim de expulsá-los. No relatório de Nimuendajú (1924) é exposto
que o proprietário do seringal Três Casas, Manuel Lobo, a fim de estender suas
explorações para o sul e sudeste, chegou à bacia do rio Maicy Mirim. Notou logo de
início que a guerra contra os nativos era iminente. Dessa forma, observa-se que ele
teria encontrado um obstáculo real entre seus interesses financeiros e o desenvolvi-
mento comercial da extração do látex.
Diante dessa situação, ele fez o possível para não chamar a atenção dos nati-
vos, proibiu que seu pessoal atirasse contra eles e deixou por diversas vezes, “presen-
tes” nas palhoças que encontrou. Embora com toda essa cautela, já afastados do rio
Maicy Mirim, foram atacados, mas conseguiram sobreviver para contar a história.
Destacamos no texto de João Pacheco de Oliveira, que as técnicas de aproximação
eram muito definidas e inspiradas em processos históricos anteriores.

As táticas e as técnicas de conquista de povos indígenas, empregadas nas ati-

vidades de atração e pacificação do SPI, foram paulatinamente desenvolvidas

por Rondon no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas. Entretanto,

filiam-se a uma longa genealogia que tem origem nos contatos dos jesuítas

com os povos indígenas no séc. XVI. Ao se basear em noções militares, a es-

tratégia de Rondon e seus colaboradores era proceder a “um grande cerco

de paz” [...] apresentando-se como seu interlocutor principal e de confiança.

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Adotavam-se, então, as seguintes técnicas de atração e pacificação: 1 A tur-

ma de atração deveria ser constituída por trabalhadores esclarecidos. 2 O

chefe da equipe deveria ser um indivíduo experimentado no trato com os

índios. 3 Era necessária a participação de vários índios do mesmo tronco lin-

guístico dos índios arredios para trabalharem como guias e intérpretes. 4 A

equipe deveria instalar-se dentro do território indígena. 5 Entre as primeiras

providências, seria construída uma casa protegida, além da plantação de um

roçado. 6 Era importante explorar as redondezas, conhecendo matas, rios

e tapiris. 7 Diante do ataque de índios hostis, exibir as armas de fogo e até

mesmo usá-las (em tiros para o alto), evidenciando o poder de que dispunha

a equipe de atração, mas nunca usando-as contra os indígenas. 8 Armam-se

tapiris com presentes e expõem-se os intérpretes pelas matas. As trocas de

presentes estabelecem a fase inicial da conquista: é o “namoro”. 9 A partir do

contato inicial, a conquista pode ser consolidada, havendo confraternização,

ou se houver algum incidente grave, ocorrer o colapso da equipe de atração

(ERTHAL, 1992; RIBEIRO, 1962 apud OLIVEIRA & FREIRE, 2006, p. 117).

Diante dessa estratégia bem organizada, os contatos com os indígenas iam


se estabelecendo com tempo, persistência e paciência. Na obra, destacamos
que o grupo liderado por Curt Nimuendajú também seguiu esse ritual de apro-
ximação que levou meses para toda a execução, o isolamento dos personagens
no local escolhido como casa de proteção, as diversas tentativas de comuni-
cação e de ofertas de presentes, mesmo quando perdem um de seus homens:

Nimuendajú abandonou a protecção da casa, deu três ou quatro passos em

frente, agitando no ar os colares: – Irmãos, não querermos fazer-vos mal! [...]

– Estamos aqui como vossos irmãos e trazemos muitos presentes para vocês

– gritou Nimuendajú com a maior força da sua voz. [...] aquela massa confu-

sa, meio escura, meio avermelhada, de linhas empastadas, tão mal definidas

136
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

que à primeira vista mais parecia assim na ponta de comprida vara, um brinco de carnaval do

Mataram o Eleutério!” (CASTRO, 1988, p. 123-124)

A atitude de decapitar a cabeça e usar como troféu, era uma forma de mostrar que eles
cabeça espetada na vara representava a vitória sobre essa invasão. Diante desse ato cruel, N
mens que não reajam com violência, apesar da revolta de alguns. Nesse momento da narrativ
se renova para prosseguir com a missão e salvarem suas próprias vidas. Com o conhecimen
Nimuendajú ordena que sigam até o local onde deixaram os presentes para saber se os índio
devem deixar mais brindes no local, ao que Tito Boludo reage com rancor:

– Mais brindes ainda para esses bandidos?

Dorival apoiou-o:

– Mais brindes, seu Curt?

Os homens animaram, finalmente, as caras, perante aquele germe de disputa. Nimuendajú

seco: – Os brindes são as únicas armas de que podemos dispor. Vocês dois não compreende

E esta manhã não deve haver perigo, creio eu. Os índios vão agora, provavelmente, a cami

(CASTRO, 1988, p. 127).

Desta forma, o plano de pacificação prossegue e surgem sentimentos controversos ent


aos índios o mesmo que fizeram ao companheiro, enquanto Jarbas alega que os índios nã
relembram que a missão é de paz e refletem como reagiriam se alguém aparecesse em suas
tificação de humanização entre eles quando Jarbas levanta a hipótese de que os índios pode
que podem gostar de seus familiares, mas estão habituados a reagir com violência para defe
relato do etnólogo:

A terra dos Parintintin tem, por conseguinte, uma densidade de população de 0,01 por kilo

mas possa produzir, quando muito, uns 50 homens de combate, chegamos ao resultado ve

guerreiros é sufficiente para conservar livre de estabelecimentos inimigos a area colossal d

(NIMUENDAJÚ, 1924, p. 50)

137
L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S

Neste relato, podemos perceber a capacidade de organização e desloca-


mento desses indígenas para que pudessem em pequeno número, proteger
uma área tão grande – um dado relevante para avaliar o poder de resistência
dos povos da floresta diante das invasões e violências que sofreram.
Com o desenrolar do enredo, Curt Nimuendajú adoece e não consegue
prosseguir na missão até o final, ele retorna para cuidar da saúde, e os outros
homens do grupo prosseguem conforme as suas orientações e por fim, con-
seguem sucesso na empreitada: “– Morremos alguns, mas não matámos nin-
guém” (CASTRO, 1988, p. 235).

Considerações Finais
Assim, concluímos refletindo que o processo histórico na Amazônia foi
construído a partir de conquistas, enfrentamentos e muita violência cultural.
Apesar do discurso de pacificação pregado por Rondon, a tutela exercida sobre
os indígenas após o sucesso das empreitadas também foi danosa em termos de
afirmação das suas múltiplas identidades e culturas. No entanto, dentro dos
limites do pensamento social que prevaleceu em grande parte do século XX, a
obra O instinto supremo nos mostra uma floresta com aspectos humanizados,
que são evidenciados pela presença de indivíduos que sentem, sofrem e lutam
pela dignificação do homem e pela sobrevivência em terras onde muito mais
importavam as riquezas que dali pudessem ser extraídas.
Sua inspiração se deu na sua própria experiência quando adolescente, tra-
balhando no corte da seringa, pois seu maior medo eram “os índios decapita-
dores de cabeça”, como eram conhecidos os Parintintins. Em um discurso que
destaca o medo e o deslumbre do encontro com o Outro, Ferreira de Castro
reverbera o combate aos excessos, o legado de pacificação de Cândido Rondon
e a atuação de Curt Nimuendajú no relacionamento e trato com os indígenas.
O escritor atrai o leitor para refletir sobre os conceitos de pacificação e
violência ao relatar os acontecimentos históricos permeados pelas sutilezas

138
Vii. Entre a literatura e a história, a pacificação dos parintintins em O Instinto Supremo de Ferreira de Castro

que a ficção impõe ao preencher as lacunas da História oficial e oferecendo


ao leitor a possibilidade de refletir sobre os fatos e as emoções vividas nesse
processo, pois enquanto discurso ficcional, a objetividade e imparcialidade do
discurso histórico podem ser deixadas de lado e cria-se o encantamento do
entrelaçamento entre História e Literatura.

Referências
BAZE, Abrahim. Ferreira de Castro – um imigrante português na Amazônia.
Manaus: Editora Valer, 2005.
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – formação social e cultural. / Samuel
Benchimol. 3 Ed. Manaus: Editora Valer, 2009.
CASTRO, Ferreira. O instinto supremo. Lisboa: Guimarães Editores, 1988.
MELO, Joaquim Rodrigues. A política indigenista no Amazonas e o Serviço de
Proteção aos Índios, 1910-1932. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
do Amazonas, 2007.
NIMUENDAJÚ, Curt. Os índios Parintintin do Rio Madeira. Separata do
“Journal de la Societé” des Américanistes, Paris, n.s. 16: 201-278, 1924.
Textos indigenistas: relatórios, monografias, cartas. São Paulo: Editora Loyola,
1982. Disponível em: www.etnolinguistica.org/source:26.
OLIVEIRA, João Pacheco de, & FREIRE, Carlos. A presença indígena na formação
do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade; Laced/Museu Nacional, 2006.
SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1. Série, Ensino Médio – 1
ed. Rio de Janeiro: Menvavmen, 2010.
SOUZA. Márcio. A expressão amazonense. Manaus: Valer, 2010.
VALADÃO, Virginia. Senhores desta terra: os povos indígenas no Brasil – da
Colônia aos nossos dias/ Virginia Marcos Valadão, Gilberto Azanha; coordenação
Maria Helena Simões Paes, Marly Rodrigues. São Paulo: Atual, 1991. (Histórias
em documento)
VEIGA, Patricia da. Museu recupera acervo do etnólogo pioneiro Curt
Nimuendajú. Disponível em: https://xn--conexo-7ta.ufrj.br/artigos/museu-
recupera-acervo-do-etnologo-pioneiro-curt-nimuendaju. Edição 15, nov. dez.
2018.

139
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

VIII. Os trilhos da modernidade na


amazônia: uma leitura de The Jungle
Route, de Frank Kravigny
Luciana Marino do Nascimento

Introdução
A imagem da Amazônia como paraíso, inferno verde ou Eldorado foi mol-
dada, a partir dos textos de viajantes europeus, que por lá estiveram e pela
força da letra fixaram no imaginário as citadas imagens. Ao falarmos do campo
semântico Amazônia, nossas referências tendem a conferir um grau de identi-
dade à região no todo, o que se explica pelo longo processo histórico de estabe-
lecimento, de criação e de “invenção da Amazônia” como processo de percep-
ção e apropriações de imagens acerca dessa região.
No entanto, a Amazônia urbana, que é o que se quer aqui destacar, pouco
sobressai na maioria dos estudos acerca da cultura e da literatura amazôni-
cas. Nesse sentido, cabe-nos destacar que, assim como em todas as cidades do
mundo, as capitais da Amazônia possuem uma imagem, dentre tantas imagens
que as identificam, como por exemplo, em Rio Branco, o Palácio Rio Branco, o
sítio histórico do Primeiro Distrito; em Boa Vista, o monumento ao garimpei-
ro; o Centro Cívico; em Manaus, o Teatro Amazonas; a orla da Ponta Negra;
em Belém, o Teatro da Paz; o Mercado Ver-o-Peso; em Macapá, a orla do rio
Amazonas, o monumento Marco Zero do Equador; e em Porto Velho, sobressai
a imagem das Três Marias (Caixas d’água de ferro montadas inicialmente para
abastecer a construção da ferrovia) e o conjunto arquitetônico da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, ou seja, esses elementos na paisagem urbana funcionam como
se cada capital amazônica tivesse o seu Cristo Redentor ou sua Torre Eiffel como
ícone.

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No que se refere à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), cujo empre-


endimento grandioso constituiu uma das faces da modernidade na Amazônia,
conforme assinalou Foot Hardman, ao nomear tal evento como a inserção da
“modernidade na selva”, sua construção se deve a um dos itens do Tratado
de Petrópolis, de 1904, que previa construção de uma ferrovia que escoasse a
produção boliviana em troca da anexação do Acre ao Brasil (BUENO, 2012).
A ferrovia, hoje incorporada à paisagem urbana de Porto Velho, ícone
representativo reproduzido em cartões postais e souvernirs, aponta para uma
epopeia amazônica e para um discurso de mito fundador da modernidade, no
Estado que teve Rondon como a figura do desbravador da marcha a Oeste.
Toda a saga da construção da Ferrovia foi registrada com maestria pelo roman-
cista Marcio Souza, em Mad Maria, porém, anteriormente, outras produções
deram conta de tematizar a EFMM, como foi o caso do fotógrafo estaduniden-
se Dana Merryl; pelos jornais The Porto Velho Times e The Porto Velho Courier,
editados em inglês durante o primeiro ano da construção; pelo relato Do Rio
de Janeiro ao Amazonas e Alto Madeira: itinerário e trabalhos da Comissão de
Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré – impressões de viagem por um
dos membros da mesma comissão, de Ernesto Maia Forte; pela obra de Manoel
Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do diabo; pela obra de Bastos Ferreira, O romance
da Madeira-Mamoré; Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma
expedição, de Neville Craig, e também pela obra de Frank Kravigny – The jungle
route.
Como autobiografia, na perspectiva de Philippe Lejeune, a obra de
Kravigny entrelaça ficção e história, demonstrando que através do discurso, o
saber e o poder caminham lado a lado na “escrita de si.” (Foucault, 1992).

A Madeira-Mamoré na memória de um escriturário

142
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

Figura 1. “Grupo de norte-americano, com dois engenheiros fiscais brasileiros e Frank W. Kravigny (com uma máquina
de escrever) – Museu do Patrimônio da USP.jpeg. Fonte: By Dana B. Merrill, Public Domain, https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=74578604

Utilizando de uma analogia muito simples, podemos dizer que a constru-


ção da Ferrovia Madeira-Mamoré foi uma espécie de Canal do Panamá na nossa
história, pela semelhança na sua dimensão, no início da construção que se deu
em fins do século XIX e nos trágicos acontecimentos no decorrer das obras. O
Canal do Panamá teve sua construção iniciada pelos franceses em 1879, mas a
empresa Companhia Universal do Canal Interoceânico do Panamá, do francês
Ferdinand de Lesseps (o mesmo que havia criado o Canal de Suez), faliu em
1889, devido aos muitos desabamentos e mortes de funcionários em decorrên-
cia de doenças tropicais. E em 1904, os Estados Unidos compram a massa falida
da companhia francesa, dando início à construção do Canal e inaugurando-o
em 1914 (NAVARRO, 2015, p. 15). O próprio Frank Kravigny compara as duas
grandiosas obras: “The great year of Railroad expansion [...] in the jungles of

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South America a railroad was being built under far great difficulties than those
encountered in the building of the Panama Canal, and under circumstances
that have had no parallel in engineering history.”13 (KRAVIGNY, 1940, p. 2).
Já o caso da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o início
de suas obras se deu em 1871 por iniciativa do governo boliviano a cargo da
Companhia PT&Collins, que iniciou a demarcação da linha ferroviária, con-
forme assinala Neville Craig (CRAIG, [1907], 1947), tendo seu percurso nova-
mente estudado em 1883, já sob os auspícios do Imperador D. Pedro II, pelo
brasileiro Carlos Alberto Morsing, a partir da Comissão Morsing.14 (BUENO,
2012, p. 82).
Posteriormente, a construção passou ao encargo da empresa May, Jekill
& Randolph, do estadunidense Percival Farqhar, em 1907, que iniciou os tra-
balhos não mais em Santo Antonio, mas em um ponto a 7 km distantes rio-
-abaixo, dando origem à cidade de Porto Velho. Essa fase da construção da
Madeira-Mamoré pela Companhia de Farqhar, Frank Kravigny, em The jungle
route, recria através de suas memórias. (BUENO, 2012, p. 83-84).
Kravigny foi um escriturário que trabalhou durante um ano na construção
da Madeira-Mamoré e, anos mais tarde, ao retornar aos Estados Unidos, publi-
ca a obra em tela. Frank Kravigny narra suas vivências durante um ano em que
esteve na Madeira-Mamoré, lutando contra a malária, a gestão e modus ope-
randi inadequados em um esforço para construir a Ferrovia dos rios Madeira

13 Todos os trechos da obra serão citados na língua original, pois não há edição em língua portuguesa. Nesse sen-

tido, utilizaremos as notas de rodapé para inserir a nossa tradução: “O grande ano da expansão da Ferrovia nas

florestas da América do Sul que estava sendo construída sob grandes dificuldades, as mesmas que encontramos

na construção do Canal do Panamá” (KRAVIGNY, 1940, p. 2). Tradução livre.

14 Neville B. Craig narra todos os detalhes dos antecedentes da construção da EFMM, em sua obra, Estrada de Ferro

Madeira-Mamoré. História trágica de uma expedição, [1907]. Trad. Moacir N. Vasconcelos. Rio de Janeiro: Compa-

nhia Editora Nacional, 1947. Não constitui escopo desse trabalho reconstituir os antecedentes da construção da

EFMM, mas sim, estudar a narrativa de Frank Kravigny, que participou da última tentativa de construção dessa

Ferrovia, embora Kravigny tenha sido leitor de Neville Craig, conforme afirma na introdução de sua obra, The

jungle route.

144
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

e Mamoré no Brasil, cuja motivação para escrever e publicar a obra o autor


explica em seu prefácio. [Foreword]
A gênese da obra, de acordo com Kravigny, foi o recebimento de uma car-
ta, em 1937, escrita por Edgar Smith, um importante engenheiro que viven-
ciou a “Jungle adventure” juntamente como o narrador. Naquele momento, o
engenheiro organizava um encontro dos sobreviventes da Madeira-Mamoré,
a ser realizado durante New York World’s Fair, em 1939. Para conferir um
“efeito de real”15 ao seu texto, o autor menciona que se baseou no editorial do
Jornal Herald Tribune, intitulado “Survivors of a Railroad”16, no auxílio da con-
tista Miss Ruth Berry, além de incluir ao longo da narrativa, recortes de jor-
nal, contratos de trabalho, cartas e as fotografias de Dana Merrill, o fotógrafo
oficial da Madeira-Mamoré Railroad: “Dana Merrill, whom I meet at this time,
and whom I am indebted for many of the photographs used in this book, was
the oficial photographer of the railroad.”17 (KRAVIGNY, 1940, p. 39).
A modalidade “escrita de si”, postulada por Foucault (1992), se caracteriza
por ser um exercício de expressão de um sujeito que pode ser tanto as cartas
como o caderno de notas. Segundo o autor, “os cadernos de notas, que, em si
mesmos, constituem exercícios de escrita pessoal, podem servir de matéria-
-prima para textos que se enviam aos outros” (FOUCAULT, 1992, p. 145). A
inserção de variados gêneros textuais dentro da narrativa The jungle, tais como
relatórios, contratos de trabalho, recortes de jornais e cartas, constitui um exer-
cício de convocar a memória, tecendo esquecimento e lembrança, analogamente
ao ofício que exerce o caderno de notas, conforme assinalou Foucault: “o papel
da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um corpo [...] o pró-
prio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua
15 Barthes, 1987, p. 131.

16 Os sobreviventes da ferrovia (KRAVIGNY, 1940, p. XV). Tradução nossa.

17 Dana Merrill, a quem conheci neste tempo e a quem estou em débito por muitas das fotografias usadas neste

livro, era o fotógrafo oficial da ferrovia (KARVIGNY, 1940, p. 39). Tradução nossa.

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a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em


sangue” (FOUCAULT, 1992, p. 143).
Nesse diapasão, Frank Kravigny esclarece que essa história de uma aventu-
ra na selva, escrita trinta depois, não trata somente da aventura bem sucedida,
até porque tal sucesso é raramente registrado ao longo da obra: “This story,
written thirty years later, not only concerns a glorious adventure, but also –
something wich is seldom recorded in this fashion – what its ultimate results
were after such a period time.”18 (KRAVIGNY, 1940, p. 39). A obra é assim apre-
sentada pelo narrador:

I am particularly impressed with the vividness of these recolletions, my origi-

nal fear oh haziness being almost entirely dispelled, and I am quite prepared

to affirm that is factuallly correct. If the reader can place himself in a mental

attitude of living these experiences with me, he will better understand this

version, written first, as it was, for the survivors of the Madeira-Mamoré

Railroad (KRAVIGNY, 1940, p. XIV).19

Kravigny, ao afirmar que utilizou imagens vívidas, sinaliza para nós, lei-
tores, que embora ele lance mão de um relato, a ficção se expressa também na
“aventura” de adentrar a floresta amazônica, termo muito utilizado por ele.
Ainda que tenha vivido aquele episódio, ele nos contará de acordo com a sua
percepção e convida o leitor a reviver com ele as experiências, o que, de certa

18 Esta história escrita trinta anos depois não é somente uma preocupação com uma gloriosa aventura, mas tam-

bém algo que raramente é registrado dessa maneira – quais foram seus últimos resultados após esse período de

tempo.

19 “Estou particularmente impressionado com a vivacidade dessas lembranças, meu medo original da nebulosi-

dade sendo quase inteiramente dissipado, e estou bastante preparado para afirmar que essa obra é factualmente

correta. Se o leitor puder se colocar em uma atitude mental de viver essas experiências comigo, ele entenderá

melhor esta versão, escrita primeiro, como o foi, para os sobreviventes da Ferrovia Madeira-Mamoré.” (KRA-

VIGNY, 1940, p. XIV).

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Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

forma, caracteriza o que Philippe Lejeune designou de “pacto autobiográfico.”


(LEJEUNE, 2008).
De acordo com Lejeune, o texto autobiográfico é a “narrativa em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
individual, em particular, a história de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p.
14). Ou seja, estamos diante de um discurso voltado ao seu virtual leitor, que
objetiva constituir uma associação entre autor e leitor, criando uma identidade
entre ambos: “para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, lite-
ratura íntima), é preciso que haja identidade entre o autor, o narrador e o per-
sonagem” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Nessa perspectiva, a leitura da autobiografia
se diferencia da leitura de outros gêneros, por ser, conforme o teórico francês,
um objeto de amor, através do qual o leitor será “levado a tomar partido, a ser
testemunha, como se fosse membro do júri de um tribunal criminal ou de re-
curso.” (LEJEUNE, 2008, p. 20).
No capítulo I da obra The jungle route, o narrador conta o porquê de
haver se candidatado a uma vaga de trabalho na Madeira-Mamoré Railroad
Company e decidido se embrenhar na Amazônia. Conforme o narrador, New
York em 1909, era uma cidade efervescente, com muitos acontecimentos im-
portantes naquele momento, tais como: a mudança do novo presidente para
a Casa Branca, mudança da Broadway para um novo quarteirão, celebração de
100 anos da navegação na Baía de Hudson e inúmeros anúncios de oferta de
empregos para os trabalhos na construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Ou
seja, o sonho americano, a promessa de altos ganhos em terras distantes e a
modernidade chamam a atenção do narrador e contribuem para a sua decisão
de ir para a Madeira-Mamoré:

In the Spring of 1909, New York was a city of many changes. The “Gay White

Way” was a new phrase on the tongues of New Yorkers, coined to describe the

theatrical district which was then moving up to Broadway and Twenty-third

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Street. An important topic of the day was the eight-cent Gas Law Case and

kidnapping of Willi Whitla. The Robert Fulton was once again to steam up

the Hudson River to celebrate the One Hundredth Anniversary of steam na-

vigation and a man named Peary was to announce on April 6th of this year

that he had discovered the North Pole. A new President of the United States

had just moved into the White House. Ex-President “Teddy” Roosevelt had

gone to Africa and was even the contemplating the trip of exploration in the

Amazon jungles that he later made his son Kermit, in 1913. […]

The great year of railroad expansion in the United States was 1909; but

4000 miles away in the jungles of South America a railroad was being built

under far greater difficulties than those encountered in the building of the

Panama Canal, and under circumstances that have had no parallel in engine-

ering history. The building of this road had been attempted once before and

had been abandoned. Now in 1909, it was forging ahead, under direction of

Percival Farquhar who two years before had awarded the contract for survey

and construction to an American firm. […] I might have learned something

of those men and that far off railroad in a land where ants are over and inch

long, spiders look like crabs, and beetles are as large as a man´s hand, but

until March, 1909, it never occurred to me that I, too, might enter into this

great railroad adventure. […]

One day during the last week in March, while on a search for a better job […],

I walked into the employment department of the Underwood Typerwriter

Company in New York City. (KRAVIGNY, 1940, p. 1, 5-6)20

20 Na primavera de 1909, Nova Iorque era uma cidade com muitas mudanças. “Gay White Way” era a frase que mais

se ouvia da boca dos nova-iorquinos, criada para descrever a região teatral que havia se mudado para a Broa-

dway, o distrito teatral, situado na 23th Street. Nota: Gay White Way se referia à iluminação elétrica da Brodway

e era o título de um musical de sucesso na época. Um importante tópico do dia era o caso da Lei do Gás de 80 cen-

tavos e o sequestro de Willie Whitla [médico e político irlandês]. Nota: O caso da Lei do Gás de 80 centavos ficou

assim conhecido pela proibição da Corte Americana para que essa taxa entrasse em vigor. Mais uma vez, Robert

Fulton navegou pelo rio Hudson para celebrar o centésimo aniversário da navegação a vapor e um homem cha-

mado Peary tinha anunciado em 6 de abril deste ano que havia descoberto o Polo Norte. Um novo presidente dos

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Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

Figura 2. Engineering News (KRAVIGNY, 1940, p. 3).

A resposta de Kravigny ao anúncio do jornal se deu em função de sua agu-


çada curiosidade. Ele se candidatou, foi convocado e embarcou no Navio do
Lloyd Brasileiro rumo ao Pará, via Barbados. A narrativa da viagem é descrita
por Kravigny como tranquila, porém, o narrador apresenta um estranhamento
em relação à comida, por não ter o tradicional breakfast21 com ovos, presunto
e bacon e mais adiante, ele conta que alguns dos companheiros de trabalho
estavam preparando ovos no café da manhã, mas estes seriam segundo ele,
ovos de tartarugas.

[...] After hurried preparations, I boarded the S.S. Sergipe of the Lloyd

Brazileire Steamship Company, bound for Para by way of Barbados. I was in

almost ignorance of the nature of my destination, and my personal equip-

ment for a year´s stay in the jungle was unusual, to say the least. [...]

Estados Unidos acabara de se mudar para a Casa Branca. O ex-presidente “Teddy” Roosevelt foi para a África e

havia contemplado a viagem de exploração nas selvas amazônicas que mais tarde fez seu filho Kermit, em 1913.

O grande ano de expansão da ferrovia nos Estados Unidos foi em 1909; mas a 4000 milhas de distância, nas

selvas da América do Sul, uma ferrovia estava sendo construída sob dificuldades muito maiores do que

as encontradas na construção do Canal do Panamá e em circunstâncias que não tiveram paralelo na his-

tória da engenharia. A construção desta estrada havia sido tentada uma vez antes e havia sido abandona-

da. Agora, em 1909, avançava, sob a direção de Percival Farquhar, que dois anos antes havia cedido o con-

trato de pesquisa e construção a uma empresa americana. [...] Eu poderia ter aprendido algo sobre aqueles

homens e sobre aquela estrada de ferro, em uma terra onde formigas têm mais de um centímetro de com-

primento, aranhas parecem caranguejos, e besouros são tão grandes quanto as mãos de um homem, mas

até março de 1909, nunca me ocorreu que eu também pudesse entrar nessa grande aventura ferroviária.

[...] Um dia, durante a última semana de março, enquanto eu procurava um emprego melhor [...], entrei no de-

partamento de empregos da Underwood Typerwriter Company, em Nova York.

21 Café da manhã.

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The first of the many changes of diet to which I was to become accustomed

in the next twelve months came on the first morning after my departure,

when my breakfast was brought to my cabin berth by the Brazilian steward.

Accostumed to ham and eggs and the usual Brooklyn accessories, I ate the

six animal crackers and drank the cup of black, Brazilian coffee, then waited

for the rest of my breakfast to arrive. It did – four hours later, or to be exact,

when I went into the dining room for what the officers called breakfast, a

meal corresponding to a full course dinner. Four o´clock in the afternoon,

brought tea and more animal crackers, which tided us over until seven,

when another meal of several courses was served. The animal crackers stood

out into once we reached the jungle. (KRAVIGNY, 1940, p. 7-8).22

No capítulo intitulado “From Para into the Unknown”23, Frank Kravigny


descreve a Belle Époque amazônica, fruto do sucesso da economia da borracha,
o que destoa do que ele veria mais tarde, ao chegar a Porto Velho:

While waiting in Para for a steamer connection to take us up to Amazon to

Manaos, we spent a pleasant week at a commercial hotel, where we enjoyed

good food and lodgings. […]

22 Após os preparativos apressados, embarquei no S.S. Sergipe da Companhia Lloyd Braailei-

ro, com destino ao Pará via Barbados. Eu praticamente ignorava a natureza do meu desti-

no, e meu equipamento pessoal para estar na selva por um ano era pouco usual, para dizer o mínimo.

[...] A primeira das muitas mudanças na dieta com as quais eu me acostumei nos doze meses que se seguiram,

ocorreu na primeira manhã após a minha partida, quando meu café da manhã foi trazido para a cabine pelo gar-

çom brasileiro. Acostumado a presunto, ovos e os acessórios habituais do Brooklyn, comi as seis bolachas para

animais [biscoito de cachorro] e bebi a xícara de café preto brasileiro, depois esperei o resto do meu café da ma-

nhã chegar. Foi o que aconteceu – quatro horas depois, ou para ser exato, quando entrei na sala de jantar para o

que os funcionários chamavam de café da manhã, havia uma refeição correspondente a um jantar completo. Às

quatro horas da tarde, trouxeram chá e mais bolachas para animais, que nos serviram até as sete, quando outra

refeição de vários pratos foi servida. Os biscoitos para animais ganharam maior importância quando chegamos

à selva. (KRAVIGNY, 1940, p. 7-8).

23 “Do Pará para o desconhecido”.

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Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

There was a large theatre in para, the Theatro da Paz (Peace Theatre), a sort

of government opera house, of the stone construction and centrally located

in a public park. The evening I attended the theatre, the main attraction was

a moving picture of our wild west type of thriller. (KRAVIGNY, 1940, p. 21)24

Ao chegar a Porto Velho em 04 de julho de 1909, o autor destaca que o


Jornal The Porto Velho Times, de propriedade da Madeira-Mamoré Railroad
Company, editado em inglês, homenageia o dia da Independência dos Estados
Unidos em seu Editorial. Após a extinção do único número editado do The
Porto Velho Times, devido à doença de seu editor, foi criado o jornal Porto Velho
Courier e Frank Kravigny se torna seu editor assistente.

Of particular interest in Porto Velho was the celebration of Independence

Day in this far clime where the hearts of these American pioneers beat all the

faster in the realization of the distance from their homeland, here in the im-

penetrable jungles. On this July 4th, 1909, we inaugurated and published for

the first time in printed form, the Porto Velho Times, which was now entered

in the Post Office as first class matter. […] My gravitation to the publishing

field came about when the editor of The Times was taken ill. […] I started the

Porto Velho Courier, fully realizing that there was not a large enough field for

a competitive venture here, but not wishing to prevent the future publica-

tion of the older paper.

We encountered no difficulties in disembarking over the temporary lan-

ding staged at Porto Velho.[…] I was assigned to a room in the “ Mad House”

24 Enquanto esperávamos no Pará por uma conexão no vapor que nos levasse até ao Amazonas, para Manaos,

passamos uma semana agradável em um hotel comercial, onde desfrutamos de boa comida e acomodações. […]

Havia um grande teatro no Pará, o Theatro da Paz, uma espécie de Casa de ópera de propriedade governamen-

tal, de construção em pedra e localizado centralmente em um parque público. Na noite em que assisti ao teatro,

a principal atração era uma imagem em movimento de nossos filmes do tipo de suspense do oeste selvagem.

(KRAVIGNY, 1940, p. 21).

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Annex, which despite its name was a very pleasant two-story frame building,

containing some twelve rooms on each floor.[...].

The view up the river from Porto Velho around a gentle sweep of the Madeira

was of slight difference from the others hundreds of miles that I had already

traversed.[….]

San Antonio houses were made of colored stucco, the largest building in the

town being occupied as a warehouse and office by a firm of brothers who

were the virtual dictators of the rubber gathering industry in this section of

the Amazon Valley. (KRAVIGNY, 1940, p.40, 45, 59 e 63).25

Kravigny narra o dia a dia dos trabalhos da construção da ferrovia e de


seus trabalhadores, vindos do Panamá, do Caribe e espanhóis, tendo a floresta
como pano de fundo, além de destacar episódios inusitados, como a reunião
dos maçons no interior da floresta:

By 1909 the supply of common labor for the railroad was rapiddly being

depleted, by sickness, death and desertion. While negroes in Barbados were

getting less than a shilling a day, a top of twenty cents, to be accurate, – here

25 De particular interesse em Porto Velho foi a celebração do Dia da Independência, neste clima distante, onde os

corações desses pioneiros americanos batiam mais rápido, quando se davam conta da distância de sua terra natal,

estavam aqui nas selvas impenetráveis. Em 4 de julho de 1909, inauguramos e publicamos pela primeira vez, em

formato impresso, o Porto Velho Times, que passou a ser registrado nos Correios como matéria de primeira clas-

se. [...] Minha circulação no campo editorial surgiu quando o editor do The Times [The Porto Velho Times] ficou do-

ente. [...] Iniciei o Porto Velho Courier, percebendo plenamente que não havia um campo suficientemente grande

para um empreendimento competitivo aqui, mas não desejava impedir a publicação futura do antigo jornal. [...]

Não encontramos dificuldades em desembarcar durante o pouso temporário realiza-

do em Porto Velho. […] Fui designado para uma sala no anexo “Mad House”, que apesar do seu no-

me era uma estrutura de dois andares muito agradável, contendo cerca de doze quartos em cada andar. [...]

A vista do rio Madeira a partir de Porto Velho tinha em torno uma suave varredu-

ra que era ligeiramente diferente das outras centenas de quilômetros que eu já havia percorrido. [...]

As casas em Santo Antonio eram feitas de estuque colorido, o maior edifício da cidade estava sendo ocupado co-

mo armazém e escritório por uma empresa de irmãos que eram os ditadores virtuais da indústria de coleta de

borracha nesta seção do vale do Amazonas (KRAVIGNY, 1940, p. 45 e 84).

152
Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

laborers were offered opportunity to earn as much as 8$000 (eight milreis)

per day, at the time equal to two dollars forty cents gold. […]

Laborers from Spain and the West Indies were being recruited in large num-

bers at this time, for the Panama Canal, and besides extensives. […]

The cavalcade traveled all day, passing through Camp Number 11, which

had some time ago been the scene of very unusual gathering in this jungle, a

meeting of Free Masons. (KRAVIGNY, 1940, p. 45 e 84).26

Ao término de um ano, Frank Kravigny deixa o seu trabalho na Ferrovia


Madeira-Mamoré, chegando a New York no dia 4 de julho e para sua sur-
presa, no dia anterior o jornal “Brooklyn Eagle” publica uma homenagem ao
jovem que havia ido trabalhar na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré:
“BOOKLYN BOY BUILDS RAILROAD IN BRAZIL.”27 (kravigny, 1940, p.185).
Sem dúvida, a experiência vivida na Amazônia fez com que Kravigny modifi-
casse seus referenciais sobre o mundo, e ele mesmo afirma: “Impressions gai-
ned at this formative age of my life, had a marked influence in the molding
of my future, spiritual, moral and physical.”28 (KRAVIGNY, 1940, p. 185-186).

26 Em 1909, o suprimento de mão-de-obra para trabalho comum para a ferrovia estava rapidamente esgotado,

por doença, morte e abandono do trabalho. Enquanto os negros em Barbados recebiam menos de um xelim por

dia, no máximo vinte centavos, para ser mais preciso, – aqui os trabalhadores tiveram a oportunidade de ga-

nhar até 8$000 (oito mil réis) por dia, na época igual a dois dólares quarenta centavos do padrão-ouro. [...]

Nota: Padrão-ouro era um sistema monetário internacional que adotava uma banda cambial atrelada ao ouro.

[...] Trabalhadores da Espanha e das Índias Ocidentais (Caribe) estavam sendo recruta-

dos em grande número naquele momento, para o Canal do Panamá, além dos arredores. [...]

O grupo montado a cavalo viajou o dia todo, passando pelo acampamento número 11, que há algum tempo fo-

ra palco de reuniões muito incomuns nessa selva, uma reunião de maçons livres (KRAVIGNY, 1940, p. 45 e 84).

27 “Rapazes do Brooklyn constroem ferrovias no Brasil” (KRAVIGNY, 1940, p. 185).

28 As impressões recebidas nesta idade de formação da minha vida tiveram uma influência marcante no molde do

meu futuro, espiritual, moral e físico. (KRAVIGNY, 1940, p. 185-186).

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Considerações finais
Na narrativa The jungle route, Frank Kravigny, ao narrar o vivido no inte-
rior da floresta amazônica “escovou a história a contrapelo”. Como bem afir-
mou Benjamin (1986), tomamos conhecimento não apenas daquilo que ocor-
reu, mas o que poderia ter ocorrido, ao narrar o vivido e reviver trinta anos
depois aquilo que foi vivido na juventude. Embora a experiência na Amazônia
tenha marcado profundamente o narrador, ele saúda a civilização e afirma que
tal vivência fez com que ele apreciasse ainda mais the blessings of civilization, e
fecha a sua narrativa com uma citação de Darwin que aponta para uma con-
cordância íntima de que há uma impossibilidade de “domar” a floresta amazô-
nica, pois são como espécies de templos divinos.29
Mas, o último capítulo da história da ferrovia Madeira-Mamoré, de acordo
com o narrador, ainda não foi escrito, e a imagem da bancarrota e da decadên-
cia são as que ficaram marcadas no fechamento de suas memórias: após tantas
lutas, doenças e mortes, a ferrovia minguou. Kravigny agrega um artigo do ano
de 1939 da Revista Engineering News Record para ilustrar a sua nota de decep-
ção com a fabulosa obra, alimentada pelo discurso do progresso e da moder-
nidade, o que nos mostra que a “inserção compulsória do Brasil na moderni-
dade”30, parafraseando Nicolau Sevcenko (1989), se deu por uma modernidade
pelo alto, que mascarou as péssimas condições de trabalho, sem considerar as
peculiaridades locais e culturais.

29 “Charles Darwin aptly said, “No man can stand in the tropic forests without feeling that they are temples filled with the various produc-

tions of the God of Nature and that there is more in man than the breath in his body.” (KRAVIGNY, 1940, p. 186.).

30 A expressão de Sevcenko é: “Inserção compulsória do Brasil na Belle Époque.” (SEVCENKO, 1989, p. 35).
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Viii. Os trilhos da modernidade na amazônia: uma leitura de The Jungle Route, de Frank Kravigny

Figura 3. Engineering News Record of May, 1939 (KRAVIGNY, 1940, p. 190).

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155
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HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma. A ferrovia Madeira-Mamoré e


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LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Trad. e org.
Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte:
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article/viewFile/3554/2891. Acesso em: 26 mar. 2020.

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

IX. Multitonalidades do verde poético:


os ilimites identitários da Amazônia
João Carlos de Souza Ribeiro

Muitos nativos e ribeirinhos da Amazônia acreditavam – e ainda acreditam –

que no fundo de um rio ou lago existe uma cidade rica, esplêndida, exemplo

de harmonia e justiça social, onde as pessoas vivem como seres encantados.

Elas são seduzidas e levada para o fundo do rio por seres das águas ou da

floresta (geralmente um boto ou uma cobra sucuri), e só voltam ao nosso

mundo com a intermediação de um pajé, cujo corpo ou espírito tem o poder

de viajar para a Cidade Encantada, conversar com seus moradores e, even-

tualmente, trazê-los de volta ao nosso mundo (Milton Hatoun – Órfãos do

Eldorado, p. 105/106).

Os estudos literários no Brasil, no turno da Neodecadência, têm privile-


giado duas vertentes, de extrema relevância, dentre tantas outras, a meu ver,
constituindo-se importantes módulos de acesso no que concerne à revisão dos
estatutos epistemológicos, que sustentam o aporte crítico – teórico da lite-
ratura nacional. A saber, inicialmente: as questões relativas ao problema da
desconstrução do cânone, que permite jogar luz sobre a emergência das dis-
cussões em torno da descanonização literária, de um lado, e a reordenação da
historiografia, que, refém de um tempo marcado por desvios ideológicos, não
percebeu, a contento, outras escritas singulares, que são elementos fundantes
da gênese da literatura vernacular e que estiveram apartadas do processo de
edificação das sentenças determinantes da brasilidade, e, com efeito, da iden-
tidade nacional.

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A problematização, que ora abordamos, emerge, fundamentalmente, dos


estudos que, há anos, temos empreendido e que têm sido tutelados por refle-
xões de cunho hermenêutico, filosófico, teórico e, sobretudo, poeticista, no
campo da literatura nascente na/da Amazônia, sob o título denominado A po-
ética do verde (2016, p. 167-181), com desdobramentos críticos e consistentes, que
visam, objetivamente, privilegiar, no turno da revisão dos títulos bibliográficos, que
tratam, especificamente, da construção identitária modelar da dita terra brasilis,
e tendo como base fundante os textos literários, ao longo de mais de meio milênio
de história do país, a inserção ou o reconhecimento irrefutável das letras artísti-
cas, de alto-relevo, representando a Amazônia e seu universo plurissignificativo na
linguagem de formação do ser brasileiro, em extensão local e, principalmente, em
dimensão nacional.
Destarte, as questões inaugurais, de caráter poeticista, que incidem sobre o
universo da história da literatura brasileira, a partir do Modernismo, em 1922, e o
caminho historiográfico, que, ao longo do tempo, expôs os flancos sangrados de um
criticismo em estado infirme, desdobram-se em outras indagações legítimas, que
põem em xeque os saberes instituídos e sacralizados da letra literária, que represen-
ta a arte e a cultura brasileiras, respectivamente. Percebeu-se, nessa diretriz reflexi-
va, um movimento tectônico, que, além de abalar, contínua e progressivamente, os
alicerces inventados de um pensamento dominante, cuja correspondência atendeu
apenas uma parcela reduzida de quem conduziu, com mão de ferro, a pena sobre
a história e a literatura, em compasso paralelo, produziu um desconforto nause-
ante, revelando, na linha temporal, as incoerências e os vagos existentes sobre as
sentenças que balizaram os estudos considerados medulares sobre a brasilidade no
território constituído pela língua e literatura nacionais.
Nesse direcionamento, encontramos tons consonantes nas palavras de Afrânio
Coutinho:

158
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

De Norberto a Silvio Romero e Araripe Júnior, de Alencar a Afonso Arinos,

todos sentiam a necessidade de imprimir um cunho nacional, brasileiro,

à literatura que se produzia no Brasil fosse por via do indianismo, do ser-

tanismo, do regionalismo, fosse qual fosse o símbolo daquele “instinto de

nacionalidade” a que referiu e que tão bem caracterizou Machado de Assis.

(COUTINHO, 2014, p. 39.)

Ademais, é razoável supor que tais condicionantes críticas provoquem e,


com evidência, causem turbulências diversas, numa área que, por muito tem-
po, sentiu a estabilidade de modo calcificado, inflexível, que é o pensamento
hierarquizado e ordenado da literatura, como está arrolada em todos os livros,
manuais, compêndios, de ossatura enciclopédica; anais e documentos episto-
lares, que se responsabilizaram pelo soerguimento das bases, que deram, e o
ainda o fazem, quando o tema é, compulsoriamente, a literatura brasileira. As
variações em registros são apenas parte de um jogo de estruturas que, em vão,
tentaram dar voz e corpo novos, respectivamente, às escritas que deveriam fi-
gurar na catalogação já cristalizada, mas que, lamentavelmente, flutuaram em
debates circunscritos aos diminutos espaços acadêmicos.
Os empreendimentos críticos, que intentam privilegiar, substantivamen-
te, qualquer trabalho de revisão, devem, de forma irremediável, destituir os
objetos de suas máscaras históricas em razão da hipocrisia e das contradições,
que permearam uma parcela significativa daqueles que, literalmente, manipu-
laram, de forma maquiavélica, lápis, canetas e papéis, ao construírem o edifício
histórico da literatura nacional. Aliás, é lícito afirmar, para o bem e, portanto,
para a elucidação de álibis possíveis para gerações que se dispuserem a investi-
gar, a estudar e, com efeito, a montar o painel de nossa literatura, inicialmente,
sob as rédeas da história, e não poderia ser de outra maneira, e, posteriormen-
te, sob a centelha de uma crítica nascente e vigorosa, que tais personagens,
no turno da tradição da história da literatura e da historiografia concorrentes,

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foram reféns do próprio tempo e das condições existentes assim como a arte li-
terária, reconhecidamente de expressão nacional e que se moldou, segundo os
princípios que nortearam aqueles que não pouparam esforços para levantar os
andaimes necessários, a fim de acender o aclamado letreiro, que representaria,
de fato e de direito, uma literatura considerada emergente.
Desse modo, espelhamos nossa reflexão nas pontuações de Manuel
Antônio de Castro:

A compreensão do projeto cultural brasileiro em toda a sua extensão deve

levar em conta duas reflexões. Na primeira, a tematização das implicações

de um projeto, na segunda, a busca da sua especificidade. Faremos apenas

algumas indicações. Enquanto projeto cultural vai estar correlacionado com

todo o corpo de instituições para aqui transposto. E aí entra o literário, en-

quanto se movimenta no âmbito da instituição língua portuguesa. O projeto

é ao mesmo tempo estático e dinâmico. O estático é depreendido facilmente

da formalização institucional. O dinâmico se evidencia na medida em que,

no embate com um novo acontecer, dispõe inevitavelmente a configura-

ção de um novo projeto. Surge, por conseguinte, um choque entre o que se

transpõe e o que o novo acontecer dispõe. (CASTRO, 1979, p. 21.)

Outrossim, é imprescindível destacar que um dos constrangimentos, que


comprimia a consciência de uma intelectualidade coletiva, em várias gerações,
sombreando como fantasma a elaboração das diversas teses sobre o espírito,
senão puro de uma brasilidade, tão sonhada, tão desejada, mas com caracterís-
ticas sui generis, era ter que aceitar, com lucidez, que a literatura a representar uma
cultura nascente, ainda em formação, herdava a língua de outrem – a do coloniza-
dor – e insistia em negar ou não o interesse pelo código linguístico nativo, além de
sua fusão, tardiamente, com a africanidade, que se estabeleceria na maior colônia
de Portugal, no século XVI, de modo definitivo.

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

Os contrassensos não eclodiram com a proclamação do Modernismo nas le-


tras nacionais; antes, fizeram parte da origem da cultura literária brasileira. Assim,
a priori, o que era pétreo, portanto, impossível de ser modificado, está radicado
no fato de que a língua brasileira, defendida, arduamente, pelo inigualável José de
Alencar, ao tempo do Romantismo, era e continua sendo uma língua emprestada,
transplantada, o que prova, de forma cabal, a condição histórica de dependência
do Brasil, que fora no passado a mais importante das colônias pertencentes à Coroa
Portuguesa. Caberia, então, à literatura a mitigação dos traços culturais e das in-
fluências diretas e inalteradas, que nos mantinham ligados a Portugal, e, a poste-
riori, a libertação integral de uma tradição de origem europeia.
É nesta encruzilhada ideológica que erros e acertos se misturam; e parca é a
luminosidade para dar passos mais seguros numa caminhada que prometeria e sur-
preenderia, sobremaneira, a visão acurada acerca de uma literatura genuinamente
nacional e que poderia receber o predicativo que a distingue entre as demais – bra-
sileira –, além do sentido que abarcasse, de fato e de direito, a multiplicidade de
escritos e manifestações literárias e que espelhassem, em última análise, a forma e a
substância do que constitui um conjunto ímpar e, portanto, emblemático da pátria,
sob a legenda emergente denominada terra brasilis.
Os empreendimentos teórico e crítico, respectivamente, levariam, com efeito,
anos a fio para que uma plêiade de pensadores se formasse e que, de forma crível,
coerente e com bases historiográficas substantivas, pudesse, finalmente, moldar a
face da literatura em ascensão num idioma que, gradativamente, se distanciaria
de seu nascedouro. Assim, a língua transatlântica abrasileirar-se-ia na extensão
meridiana do Novo Mundo, tendo como brasão identitário uma literatura exem-
plar, cuja linguagem revelaria os matizes de uma cultura desconhecida e à guisa de
estudos. Destarte, a Ilha de Vera Cruz31, paulatinamente, descobria o Brasil.

31 Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz foram os primeiros nomes da terra brasilis conferidos pelos portugueses, na época do descobri-

mento, e que estão registrados na Carta, de Pero Vaz de Caminha.

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Um dos gargalos dessa questão incide, inequivocamente, em um dos pon-


tos que, de um lado, parece tabu, portanto, é assunto para ser tratado às es-
curas, e de outro lado, é tocar no centro de uma ferida aberta e que dói mais
na alma do que na consciência. Seria como, de forma proposital, meter a mão
inteira num vespeiro; e isto é da competência do trabalho de revisão sobre o
cânone da literatura em vigência. O desconforto e o perigo, nesse sentido, es-
tão entranhados na própria construção do pensamento nacional, que vigorou
e ainda preserva seus andaimes, como também persevera, desde a colonização,
ao manter fixos os anéis fossilizados em uma tradição marcada pelo imobilis-
mo histórico, pois inexiste outra maneira de autocrítica da própria casta cultu-
ral, que se formou no país e que, oficialmente, foi responsável pela edificação
dos pilares da cultura dita brasileira.
Evidenciamos, portanto, uma correlação entre o nosso pensamento e as
ponderações históricas de Nelson Werneck Sodré:

Em seu processo, a “classe culta” teria papel destacado, dando expressão

política aos interesses da classe dominante senhorial, que comanda os acon-

tecimentos. Numa estrutura social como a existente no Brasil do início do

século XIX, a camada intermediária, em que são recrutados os intelectu-

ais, deveria depender da classe dominante, cujos padrões aceita e consagra.

Nada a aproxima das classes dominadas que fornecem o trabalho. (SODRÉ,

1994, p. 35)

A partir desse equacionamento, cumpre-nos ressaltar que, escapar do fan-


tasma, que persegue a tentativa de construção de uma identidade nacional, é,
de forma evidente, admitir o que está cristalizado na história, neste caso, no
que concerne tanto às narrativas oficiais quanto às não oficiais. A saber: o sta-
tus quo de uma elite, que sempre reinou soberana nas letras e, também, noutras áre-
as de influências representadas, verticalmente, pela intelligentsia brasileira. A elite

162
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

cultural sempre fatiou o bolo, segundo suas convicções, de interesse particular e,


muitas vezes, circunstanciais, e, por consequência, destoantes da macrorrealidade.
E isto se deu de forma piramidal na história do país, haja vista a formação de cada
qual e a consequente atuação no cenário político, ideológico e cultural da nação.
Por um lado, a crítica carregada com tons hiperbólicos inclina-se, no mo-
vimento diacrônico, para condenar as práticas que inventaram um país ideal e
diferente da realidade que preponderava; e, sem muita procrastinação, somos
compulsoriamente levados a rememorar o tão afamado Romantismo nas letras
nacionais, e que, de acordo com a historiografia literária, foi de grande valia para
o limiar e o soerguimento das primeiras bases identitárias da literatura brasileira.
Nos dias atuais, o que outrora reluzia como ouro, num país dito emergente, pois a
noção de gigantismo do Brasil remonta ao século XIX, na contemporaneidade da
Neodecadência não passa de latão corroído pela ferrugem.
Por outro lado, há que se considerar, inegavelmente, que pessoas e ideias são
figurações simbióticas de seu próprio tempo. A discussão, neste sentido, não pode e
nem deve beirar à ideia de pioneirismo empreendido aqui ou alhures como desculpa
esfarrapada para muitos erros históricos quando o assunto reflete os fundamentos
literários da cultura nacional. Em modo adverso, entretanto, não é cabível atear
fogo à vaidade de uma pretensa e intocável horda de escritores, que pensou, ideali-
zou e, de forma incorreta, edificou alicerces que não correspondiam à dinâmica de
uma cultura compreendida em seu sentido fundador, cujas fronteiras estavam em
todos os lados; de baixo para cima, de cima para baixo, nas laterais, esfericamente;
em expansão, e movidas por vetores ideológicos de toda ordem.
Com propriedade, Alfredo Bosi destaca que:

Em mais de um momento a inteligência brasileira, reagindo contra certos

processos agudos de europeização, procurou nas raízes da terra e do nativo

imagens para se afirmar em face do estrangeiro: então, os cronistas volta-

ram a ser lidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico e saudosista

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como por um Mário ou um Oswald de Andrade modernistas. (BOSI, 2006,

p. 13)

Em quase quinhentos anos de existência, olhar retrospectivamente para


a Semana de Arte Moderna, em 1922, quando, historicamente, o Modernismo
foi oficialmente proclamado, divisando, para sempre, o que era ou deveria ser
pátrio, descolado de qualquer aparelhamento de influência estrangeira, pois,
neste sentido, não se podia aludir somente aos ares europeus, uma vez que o
império estadunidense começava a se erguer, gradativa e consistentemente,
nas Américas, tomando, nesse sentido, o lugar que antes era de domínio dos
ingleses, é atestar uma tentativa frustrada de descoberta dos genes da cultura
de tons brasilianistas.
As culturas do Novo Mundo apontavam para escritas emergentes, cujo
intento era retratar, ainda sob o risco de imprecisões, próprio daqueles que se
predispuseram ao lançamento de uma tarefa eivada de desafios, o descolamen-
to significativo dos polos emanadores das ideologias dominantes. As ex-colô-
nias discursavam em dois sentidos: de dentro para fora e de dentro para den-
tro. Era urgente estabelecer a ruptura com os discursos tradicionais e dialogar
com os pares sobre o verdadeiro sentido do nacionalismo.
Havia naquele setor, o movimento modernista, propriamente dito, uma
repetição de desacertos e ações ineficazes, e não uma inovação convincente no
que dizia respeito à libertação das cadeias que aprisionavam os idealistas das
letras e da crítica literária no Brasil. Um neo-ufanismo, mascarado de novida-
des propaladas com vocalizações altissonantes e brados disruptivos, forjou um
ambiente cênico que, mais uma vez e ciclicamente, devolvia todos os pseudo-
-atores para outra época, outra seara. O Modernismo, desse modo, se asseme-
lhou a um levante, que tentou destruir a ordem estabelecida, mas, com efeito,
não passou de estalos duma pólvora seca, completamente inofensiva, e que, se
passado a limpo, representa, nos dias atuais, uma farsa grotesca protagonizada

164
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

por um grupo diminuto de artistas e escritores pertencentes a uma elite tradi-


cional, iludidos por um poder, que se desfez na primeira geração de escritores,
e restritos a um palco teatral, sob vaias e protestos. A elite não discursou para
o povo; a elite vociferou no espelho, e nada mais. Narciso reinava soberano
nos ares modernistas ao tempo da eclosão do referido movimento nas letras
nacionais.
Asseguramos nossa letra crítica a partir da afirmação de Afrânio Coutinho:

A grande noite da Semana foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que

abriu os festivais, confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo

público, que provavelmente não a entendeu, e o espetáculo de Vila Lobos,

no dia 17, também foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “fu-

turismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor

assim se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a

música que os passadistas se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmen-

te à nova literatura e às novas manifestações da arte plástica. (COUTINHO,

1986, p. 18)

Assim, a elite cultural, novamente, dava o tom da opereta; da cantata. O


espetáculo ao qual somente poucos teriam acesso, pois o Brasil estava circuns-
crito apenas à região Sudeste, mais específica e historicamente, aos estados do
Rio de Janeiro e São Paulo. O primeiro, pelas obviedades históricas, e que fora,
desde sempre, o centro do poder: o lar da Corte Portuguesa, dos tempos da
realeza e do Império, e, posteriormente, sede da República – espaço das gran-
des transformações políticas e convulsões ideológicas. O segundo, pela força
econômica; por ter sido o principal núcleo do capital no país e que, na virada
do século XIX para o século XX, com a expansão do ciclo cafeicultor, alavan-
cara, de forma estupenda, em níveis mundiais, a produção brasileira de grãos

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de café, projetando o país no cenário internacional como potência agrária, e


tornando-se, por conseguinte, o primeiro polo industrial da América do Sul.
A despeito da disputa histórica entre Rio de Janeiro e São Paulo acerca da
importância dessas cidades nas esferas política, literária, cultural e econômica,
o fato é que o tempo, imbatível em suas leis, mostrou às gerações que se des-
dobraram a partir do Modernismo de 1922, nas versões periodizadas e classi-
ficadas pelo canonismo incidente, a verdade sobre a ideologia e a construção
de um projeto renovador, que privilegiasse, com empenho e imparcialidade,
os estatutos genuínos de uma brasilidade representando, convictamente, os
valores de uma identidade, que abrangesse, em última análise, a totalidade das
manifestações culturais espelhando as várias faces de um país, por excelência,
multirracial. A brasilidade é edificada sobre múltiplas vozes; e esse vocalismo
plural deveria constar nos anais e na história da Literatura Brasileira.
Ao certificar, portanto, que a segunda geração modernista – o Regionalismo
- figuraria nos anais da crítica literária, inaugurando a rota ascendente da lite-
ratura escrita por brasileiros, que estavam mais próximos de uma ideia arque-
típica, e tematizando o Brasil, seja na narrativa, seja na lírica, a letra canônica
fizera o seu primeiro grande ato de justiça: reconhecer na literatura nordestina
(o uso do predicativo, neste sentido, é apenas um marcador temporal, de cunho
pedagógico, em sintonia com o turno diacrônico da própria tradição canônica)
o vanguardismo, o ineditismo, a originalidade e a distintividade de um grupo
de escritores nascentes, que marcariam, de forma definitiva, a literatura pro-
duzida em solo pátrio; devolvendo a insígnia de fundação da cultura nacional
ao Nordeste: os primórdios da identidade brasileira. A letra agreste e árida, até
então desconhecida, revelava às gentes citadinas, em processo avançado de ur-
banização e industrialização, o sertão da fome, da seca; dos desfavorecimentos
históricos e, sobretudo, das injustiças sociais.
Mais uma vez, recorremos a Alfredo Bosi (2006) que nos informa:

166
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

O Modernismo e, num plano histórico mais geral, os abalos que sofreu a

vida brasileira em torno de 1930 (a crise cafeeira, a Revolução, o acelerado

declínio do Nordeste, as fendas nas estruturas locais) condicionaram novos

estilos ficcionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfim

por uma retomada do naturalismo, bastante funcional no plano da narra-

ção-documento que então prevaleceria. (BOSI, 2006, p. 389)

A contracena produziu fissuras incontáveis em terras aparentemente fir-


mes, e os vapores inusitados, libertos, trouxeram a verdade à baila. A saber:
a força econômica, predominante no Sudeste do país e, consequentemente,
responsável pelas diretrizes dos grandes projetos nacionais, desprestigiou, à
época da proclamação do movimento modernista, os intelectuais de ascendên-
cia nordestina. Era, nesse sentido, a configuração clássica da guerra fratricida,
do Sul contra o Norte, ou vice-versa. Não havia, ainda, uma visão consolidada
e consensual sobre a compreensão do Brasil dividido nas cinco regiões, que
definem geopolítica e geoeconomicamente o país; processo ocorrido, somen-
te, em 1945. Aliás, vale ressaltar que a capital do Brasil, em 1922, era, ainda, a
cidade do Rio de Janeiro. O Centro-Oeste já existia, mas não demarcado poli-
ticamente, o que aconteceria em 1960, quando, então, a sede do governo seria
transferida, definitivamente, para o Planalto Central, tendo Brasília como o
novo núcleo do poder. Essa observação estende-se, também, à região Norte
que, até os dias atuais, devido aos descasos e aos desmandos históricos pe-
los quais passou, é estranhamente confundida com a Amazônia, em sua vasta
extensão territorial. Nesse sentido, é necessário destacar que, em geral, pela
lente difusa do olhar exógeno, perpetua-se a ideia de que a Amazônia é o lugar
da floresta e que nada tem a ver com os outros Estados, que estão sob a de-
nominação Amazônia Legal. A desinformação não se restringe apenas à visão
externa que se tem do Brasil, mas está presente e cristalizada no próprio país,
que identifica a região amazônica por meio de adjetivos genéricos, reduzindo a

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complexidade de um universo multicultural e singular ao tamanho exuberante


de uma floresta em processo contínuo de descobrimento. O embaçamento e
a ignorância, desse modo, tonificam as ideologias de manipulação dos pode-
res e discursos oficiais, que investiram, massivamente, no distanciamento e na
separação da Amazônia do resto do Brasil. Assim, para o poeticismo em curso,
cumpre-nos inferir, a priori, que a Amazônia pertence ao Brasil, mas o Brasil pa-
rece não pertencer à Amazônia.
A história da literatura, edificada pela letra canônica, dispôs no papel a ver-
dade sobre os ditames de uma arte escrita à cata de sua identidade. Ora, o Brasil,
para os sulistas, sob o poder da caneta tinteiro, que assalta, fere e até extermina,
legitimou, à época do Modernismo, a primazia pela revolução nas letras nacionais,
operando o segundo ato da independência política. Em 1822, o tresloucado im-
perador D. Pedro I, sob feitos controversos e recheados de factoides, caricaturando
uma travessia marcada por tropeços e atos irresponsáveis, montado num cavalo,
empunhando sua espada para o alto e encarnando a figura de um herói, decidira
pela independência do país às margens do rio Ipiranga – narrativas cunhadas pela
história oficial e transformadas em pinturas de caráter propagandístico, que nos
conduzem à seguinte indagação: fato ou fake?
Arrogando, portanto, o direito de serem os arautos ou os heróis a cortarem
o cordão de prata, quase inquebrantável, que unia o Brasil à antiga metrópole,
Portugal, e, por extensão, à Europa, os escritores modernistas, sarcasticamente, um
século após a independência política, empreenderiam a autonomia artística, cul-
tural e literária no Brasil, do Brasil e pelo Brasil. Em sua maioria, nesse sentido,
os grupos paulista e carioca, respectivamente, entrariam para a história, de forma
incontestável e grandiloquente, ironicamente, como os salvadores da pátria.
Para o grupo do Nordeste, que, genericamente, se contrapunha geografica-
mente aos sulistas, faltavam em suas mãos solares, muito desconhecidas, ainda, a
tinta carregada do poder e o farto volume financeiro, que foram itens determinantes

168
Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

para que, especialmente, o grupo de São Paulo, liderado por Mário de Andrade e
Oswald de Andrade arregimentassem todas as vozes possíveis e insatisfeitas contra
o status quo, à época, para, num arroubo brutal, como um golpe de mestre ilegíti-
mo, tomassem a frente dos escritores nordestinos, organizassem, como realizaram,
com alguma retumbância e sucesso, a Semana de Arte Moderna em 1922, e anun-
ciassem o início do Modernismo nas artes brasileiras. A ideia de uma revolução,
nas artes e letras nacionais, de fato, pertencia, originariamente, aos intelectuais do
longínquo Nordeste, mas implementada, astutamente, pelas vitrines culturais do
país: São Paulo e Rio de Janeiro. Coincidência ideológica ou plágio histórico?
Insta acrescentar, ainda, que o grupo do Nordeste, embasado pelas teses de
uma historiografia brasileira emergente, manteve a sua fidelidade ligada a um
projeto de refundação nacional calcado na coerência e, sobretudo, na consciência
acerca da evolução da própria história do país, apartando-se, substantivamente,
das influências d’além mar. Quanto ao grupo de São Paulo, a configuração passava
por dois pontos distintos e que depuseram contra os fundadores do Modernismo.
A saber: escritores advindos de uma burguesia ascendente, que se renderam aos
encantos das novidades e dos discursos que pregavam a transformação, em todos
os segmentos, em terras europeias; e o contato direto com o fluxo de informações,
que ditavam as mudanças no Velho Mundo, em todas as áreas do saber e, neste
caso, a Literatura, antes da abertura oficial do movimento modernista nas letras
nacionais.
A assertividade do criticismo em tela é confirmada pelo olhar de Sérgio Paulo
Rouanet, ao afirmar que:

Os rapazes de 1922 defendiam a autenticidade da cultura brasileira, como vi-

mos, mas não eram nacionalistas primários. Afinal, seus autores de cabeceira

eram os europeus Marinetti, Tzara e Breton. Como disse Mário, “o espíri-

to modernista e suas modas foram importados diretamente da Europa”.

(ROUANET, 1993, p. 344)

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O pseudopoder dos escritores sulistas desmanchou-se na arquitetura ide-


ológica e complexa dos romances inaugurais e nas narrativas conceituais dos
quais foram os protagonistas, e que, à luz da história e historiografia literárias,
foi reduzido, na escrita canônica, a um componente meramente explicativo;
de ilustração, raso, para dar um sentido, em segundo plano, do movimento
modernista; sua instalação, seu efeito, de curta duração, com suas incongru-
ências e idiossincrasias epocais. O que se seguiu a este cenário, mais histórico
do que literário, após a deflagração do movimento modernista, de forma pre-
ponderante, foi a revelação majestosa e irrefutável da face genuína do Brasil,
que emergiria das páginas de escritores como Raquel de Queiroz, Graciliano
Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, entre outros. Aliás, é imprescindível
destacar o antológico romance de Raquel de Queiroz, O Quinze, que fez da au-
tora, até então, uma desconhecida da tradição canônica recente, na contempora-
neidade do Modernismo, dona de uma escrita ímpar, uma das principais referências
na geração de 30, inaugurando, portanto, a segunda fase da corrente em questão,
que projetou, definitivamente, a escrita da seca, de uma região árida, pouco conhe-
cida pelos sulistas, e, essencialmente, humana, ao retirar das sombras cáusticas do
elitismo literário secular os rostos, as almas e as existências geradas na pobreza, na
magreza de corpos, em estado de fome; e reconfigurando a face do brasileiro sob as
cores fortes do sertão. Os retirantes, através do êxodo – imagem plasmada no texto
literário dos escritores dessa geração –, tornavam-se os protagonistas em ascensão
da literatura brasileira modernista.
Em sua obra capital sobre a literatura brasileira, Coutinho (1996) assevera:

A região nordestina prestava-se à maravilha para a valorização das tradi-

ções culturais, daí a força com que o movimento regionalista se difundiu

por toda a região, da Bahia ao Ceará e mais ao. A fórmula era buscar no am-

biente social, cultural e geográfico os norte-elementos temáticos, os tipos

de problemas, os episódios, que seriam transformados em matéria de ficção.

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

A técnica era a realista, objetiva, os escritores buscando valer-se de uma co-

leta de material in loco, à luz da história social ou da observação do campo,

tornando os seus romances verdadeiros documentários ou painéis descritivos da

“situação” histórico-social (COUTINHO, 1996, p. 278).

A história, em seu movimento natural e com seus vetores ativos, atrai para
o centro o que, momentaneamente, articulado por forças artificiais e opera-
das pelo discurso oficial, foi arremessado para as bordas, para as periferias.
Destarte, a reflexão crítica, que ora apresentamos, é clara o bastante para as-
segurar que o princípio da qualitas da diversidade triunfou sobre o quantum das
finanças; isto é, a literatura nordestina, aplacando a tradição literária vigente, com
o vigor e o traço diferencial de sua estrutura, que delineava, contundentemente, a
dura realidade de um país e apresentava ao grande público, ao próprio Brasil e ao
mundo os caminhos de uma nação às avessas, retirou o pó que embaçava o espelho
e revelou a outra face da nação. A brasilidade, enfim, ressurgia não como desejaram
muitas vozes altissonantes, não como idealizavam, sob os gritos opressores de uma
crítica planejada, quase um embuste; mas como era, em sua essência.
Os olhos volvidos para o umbigo fariam um arco ascendente, considerando,
sobretudo, o que havia e o que viria, primeiro e historicamente, na literatura dos
escritores nordestinos, tanto na prosa quanto na poesia, como estão arrolados nas
diversas obras, compondo o painel identitário da Literatura Brasileira, seus autores
e suas produções exemplares; classificadas nos períodos e nas escolas estético-lite-
rárias, como estão, até hoje, e cristalizadas nos compêndios e nos escritos oficiais
sobre a literatura nacional; e, posteriormente, no contraponto da cultura, secu-
larmente estabelecida, e que, por essa razão, excluiu a região Norte como espaço
representativo, formado, substancialmente, por linguagens próprias e singulares, à
guisa, ainda, de estudos valorativos, densos e verticais, e com contribuições relevan-
tes para a história da literatura em sua organicidade periodológica.

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Ora, a perseguir o criticismo em questão, se a literatura do Nordeste emergia


no horizonte da literatura brasileira, ainda em formação, como ponte dialógica
com as letras dominantes do Sudeste, pois já contávamos com o surgimento fas-
cinante e não menos grandiosa da literatura genuinamente provinda do Sul, na
exuberância e envergadura de Érico Veríssimo, por exemplo, o que se constatou, ao
longo de todas as modulações do Modernismo, desde a eclosão do movimento esté-
tico-literário até a sua pulverização, na desembocadura do Pós-Modernismo mar-
cado pelos vazios ideológicos e pela ausência da própria Crítica, além da percepção
de um globalismo emergente não apenas na literatura, mas em todos os ramos do
saber, foi o desgaste seguido do enfraquecimento dos postulados da corrente moder-
nista, de um lado, além do envelhecimento natural do movimento, em cujos ester-
tores as características destoavam e distavam do plano originário, pois a corrente
se aproxima dos cem anos de existência. Do outro lado, o anacronismo vicejante do
próprio Modernismo e não reconhecido pelos últimos defensores da corrente que,
no passado, defendera a independência total e irrestrita das influências europeias,
batia às portas da modernidade do trânsito, o final do século XX, ou buscando por
auxílio na sua grande agonia, ou para, num ato confessional, declarar que as leis
e os ditames pregados pelos fundadores da corrente literária, em 1922, não corres-
pondiam mais com a realidade vigente. O Modernismo foi alcançado pelas rugas e
pelo monologismo crescente e indelével.
Nesse sentido, as vagas deixaram de ser espaços sutis e o tecido, outrora cos-
turado e arrematado do passado, experienciava o esgarçamento e a debilidade dos
fios, que arrebentariam, paulatinamente, as vestes, já sem cor, do modernismo li-
terário nacional. Incoerentes e à mostra, as falhas, próprias do empreendimento
epistemológico e defendidas pelos últimos bastiões da corrente, e os declives, timbres
do desgaste natural, trariam à baila outras vozes, outros índices, que sempre fize-
ram parte do arco, diverso em tonalidade, e, por conseguinte, revelador de senten-
ças renovadoras; e que, estranhamente, permaneceram obscurecidas na linha do

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

tempo. O Brasil já não era conhecido apenas por um polo econômico, político, so-
cial, cultural, pujante, que se confundia com a própria história do país. O Brasil, em
sua forma geopolítica, estava demarcado nas cinco regiões que dividem o território
nacional. Assim, havia um espaço geográfico, cuja importância para a formação
identitária da nação fora excluída, pelas obviedades já explanadas neste ensaio,
dos grandes debates, no circuito da crítica, da historiografia literária e da própria
literatura: a região Norte.
O fato de a confusão ainda predominar nos dias atuais, quando o tema é a
Amazônia, pois, retornando ao ponto apresentado anteriormente, nestas linhas crí-
ticas, grande parte dos brasileiros se confunde, ao tentar compreender o espaço no
qual está situada a maior biodiversidade do planeta, estende esse desvio, fundindo
o nome Amazônia com o nome do estado do Amazonas, agravando o erro, e mis-
turam todas as peças de um jogo complexo, findando por manter esse equívoco sem
chances para reparos. Não bastasse esse desvio cometido por brasileiros, os olhares
estrangeiros também o fazem, não estabelecendo, portanto, os marcos divisórios
desse espaço físico.
Cumpre-nos acrescentar, ainda, que, dada a complexidade no que diz respeito
à constituição étnica de suas gentes, o desconhecimento pleno da região Norte e,
principalmente, da própria Amazônia concorreu, sobremaneira, para que os discur-
sos oficiais, capitaneados pelos intelectuais do eixo Rio – São Paulo, os detentores
e os normatizadores da crítica literária nacional, perdurassem e mantivessem uma
cortina de fumaça, que parecia eterna, emparedando o gigantismo da Amazônia, a
última fronteira a ser descoberta pelos historiadores, estudiosos, em geral, e, sobre-
tudo, pelos escritores.
Destarte, entrelaçamos a nossa exposição com o criticismo de Luciana Marino
do Nascimento e Sandra Teresa Cadiolli Basílio, ao empreenderem a seguinte
abordagem:

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A Amazônia constitui um sintagma polissêmico que abrange tanto a ima-

gem da imensa floresta tropical, com seus rios, fauna e flora, detentora do

maior bioma no mundo, como também, pode-se associar à Amazônia os seus

principais cartões postais, como os Teatros Amazonas e da Paz, bem como

a Ferrovia Madeira-Mamoré ou à terra do mais conhecido ambientalista e

defensor da floresta – Chico Mendes. Essa mesma Amazônia que figurou

nos relatos de inúmeros viajantes ao longo dos séculos XVII, XVVIII, XIX,

XX, é também uma Amazônia que encetou o boom da economia baseada no

extrativismo da borracha e, fins do século XIX e início do século XX, ou seja,

essa região é, pois um mosaico de imagens múltiplas [...]. (NASCIMENTO &

SIMÕES, 2016, p. 139)

O verde não era somente verde, como se imaginava ou como fora pinta-
do, há mais de meio milênio, nas páginas tortuosas da história, mas um poli-
cromatismo, que rompeu os rabiscos e as rasuras ditatoriais da historiografia
literária, surgia, de forma descomunal, no horizonte promissor para preencher
as lacunas do projeto de identidade nacional, pensado e levado a cabo pela in-
telligentsia brasileira representada por todas as gerações, que idealizaram um país
integrado por sua completude ontológica, cujas raízes mais viscerais não tinham
sido germinadas na tradição canônica. Ou havia óbices naturais, que retardaram
a compreensão sobre a importância da Amazônia e sua decisiva contribuição para
a formação identitária da cultura e literatura nacionais, respectivamente, ou exis-
tia uma rede de constructos artificiais baseados numa cadeia de pseudoverdades
ventiladas e repetidas pelas vozes oficiais, visando, em última análise, a separação
do resto do país do santuário quase intocável, cujas fronteiras avançam topogra-
ficamente para as nações andinas. A par disso, pautamos a seguinte reflexão: um
inferno verde32 ou um paraíso flamejante?

32 Referimo-nos, de forma proposital e cabível, à obra emblemática de Alberto Rangel, intitulada Inferno verde, que aborda o tema da

Amazônia brasileira, no início do século XX.

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

A visão para alguns e/ou a revisão para tantos outros da Amazônia e sua re-
levância para os estudos literários nacionais, e, sobretudo, para a crítica canônica,
problematizaria/problematizariam os estatutos erguidos e cimentados da literatu-
ra brasileira que, pela primeira vez, teriam suas bases rachadas e, por conseguinte,
condenadas. Nessa diretriz, cumpre-nos alargar o horizonte em questão para, iro-
nicamente, incluir não somente o Modernismo, mas todas as escolas estético-literá-
rias, que delinearam a escrita artística nacional pari passu à figura em construção
do ser brasileiro: o Homo brasiliensis. Iniciava-se, portanto, a repaginação da pró-
pria literatura brasileira, escrita por brasileiros, dedicada para os brasileiros e tendo,
substantivamente, como objeto axial o brasileiro, em sua constituição primária,
fundante, exegética; instância medular a refletir as multitonalidades de uma poé-
tica emergente próxima à linha equatorial, que inflama o Norte do Brasil, com sua
floresta hegemônica, arcaica, úmida; impondo-se, com o calor de suas gentes e com
o fogo abrasador de suas estórias, lendas, mitos e, principalmente, de sua literatura,
velada pelos discursos oficiais.
Objeto de nosso interesse, no turno do poeticismo sobre a literatura na/da
Amazônia, e privilegiando, portanto, a questão em torno da (con)figuração do
Homo brasiliensis, pontuamos:

A tese, portanto, de que o Homo brasiliensis nascia de fontes marcadas por um

sulismo original, por excelência, ruía, de forma imponderável, diante da verdade

que sentenciava o ser complexo, que habita o maior país latino, abaixo da linha

dos trópicos. A tentativa frustrada para a eternização de um perfil, de ascendên-

cia europeia, sucumbira diante da conjugação simultânea de vetores diversos, e

que apontavam, sobremaneira, para o nascimento, de fato e de direito, de um ser

dotado de modos e linguagens próprias. A questão linguística deportava, para

além do Atlântico, os arautos da verdade gramatical, e introduzia, no saber pró-

prio da língua brasileira, os fenômenos despadronizados, ocorrentes na extensão

territorial, que é o Brasil, concorrendo, desse modo, para a construção de uma

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língua distante e destoante, no tempo e no espaço dos prosaicos lusitanos. De

igual modo, a literatura, não mais uma sombra espectral do português e francês,

respectivamente, ditava novas regras, ao redefinir o traço de uma cultura, cujos

fundamentos enraizavam-se no nativismo do elemento indígena, mesclado com

a efervescente e rica corrente africana. (RIBEIRO, 2016 p. 170)

Para além da abordagem e da constatação histórica, que foi a grande fa-


lácia do Modernismo, que se deu numa tentativa hercúlea, ao pregar o rom-
pimento total com uma tradição europeia, de grande envergadura; e que não
aconteceu, com efeito, os fundadores da corrente literária no Brasil não pas-
savam de replicantes, com alto poder persuasivo, que envidaram todos os es-
forços para renovar e vocalizar o espírito de autoestima. Além disso, os mo-
dernistas, na verdade, eram a reencarnação atualizada do ufanismo, que tanto
rechaçaram, dos distantes românticos, no tempo e no espaço, juntamente com
todos os movimentos literários, numa visão diacrônica e perpetuada nas obras
de crítica literária; e, ainda, nos livros didáticos nos quais a literatura, lamenta-
velmente, fora reduzida a mero objeto de ensino, que empreenderam, de forma
obtusa, para não dizer enviesada. Em última instância, o que os modernistas
projetaram e, em vão, não conseguiram lograr êxito foi, justamente, a refunda-
ção da cultura literária brasileira.
Do Barroco, que no Brasil pairou com seus ares debilitados e finais da
maior corrente estético-literária, de expressão ocidental; passando pelo
Arcadismo, que reproduziu nas letras nacionais uma outra região – a Arcádia
– tão alienígena quanto o seu nome para uma nação que mal conhecia os re-
gistros de uma possível civilidade; atravessando o quase interminável deserto,
que foi o Romantismo, e que, resguardando as diferenças analógicas com a
história do povo hebreu, cujo líder, segundo a narrativa alegórica, amargara
40 anos num deserto sem fim, ao protagonizar uma passagem árida, épica, em
prol da conquista de uma terra paradisíaca, dita santa, e ao reproduzir, movido

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

pelos ideais e pelo sonho, tal qual os cativos do Egito, o desejo colossal de fazer
do próprio país, com suas gentes, sua língua e seus valores, a terra a ser con-
quistada, sem nunca dela evadir; alcançando o Realismo, que, retratou, com
ironia e sarcasmo, a hipocrisia de uma pseudosociedade burguesa, que no país
jamais existira, ao lado da miséria, que iniciava sua escalada na cidade que, um
dia, almejou ser a Paris dos trópicos – o Rio de Janeiro; emparelhando com o
Naturalismo, em franca ascensão, e que também tinha como matéria-prima
a pobreza, o nascimento dos bolsões de miséria, num perímetro que procla-
mava o processo urbanizatório, que levara séculos para sair do papel, entre as
ruelas e os morros, nascedouros das favelas; percorrendo o Parnasianismo, um
movimento controverso e não tão consensual entre os estudiosos, que seria,
desse modo, a reação realista na poesia; experienciando o Simbolismo, com
suas sinestesias, sugestões e reflexões universais; ao deságue no Modernismo
de 1922, intentando a reinvenção da história da literatura brasileira, o que se
infere, de modo incontestável, é a busca eloquente, porém erigida em falsos pi-
lares, de um projeto de identidade nacional, que passou ao largo das correntes
estético-literárias arroladas pela crítica e pela história da literatura.
A não inserção, que operamos intencionalmente, entre o Realismo e o
Modernismo, nesta explanação apositiva do fato em si, do breve momento
na literatura brasileira classificado como Pré-Modernismo, é justificada, por
nossa visão crítica, de uma forma estritamente líquida e objetiva: a corrente
literária em questão (se é plausível considerar o Pré-Modernismo como tal)
representa, sem sombra de dúvidas, a vacância de uma escrita ou de uma ma-
nifestação substancial, que pudesse significá-la, efetiva e crivelmente, na orde-
nação periodológica da literatura brasileira.
No entanto, um paradoxo surge das incoerências, dos desacertos e de-
sencontros notórios e historicizados pelo pensamento crítico da literatura
nacional, sem, é claro, emitir qualquer juízo de valor, e diz respeito, de forma

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surpreendente, ao próprio Pré-Modernismo e à obra nuclear desse período efê-


mero, que, solitariamente, reluz como escrita exuberante, com seu valor sui
generis, na literatura nacional, e que, dispersa no tempo e no espaço, une, apenas,
temporalmente, o Realismo, com ares de uma modernidade efervescente e avant la
lettre, ao Modernismo, sendo, desse modo, esmagado, sem sentido e, por conseguin-
te, sem qualquer reverberação diante das outras escolas estético-literárias. A obra
em questão que, desfigurada representativamente em seu tempo, com sua proposta
eloquente, mas permeada de tropeços e polêmicas das mais diversas quanto à sua
finalidade, no que tange ao fato literário, é, inequivocamente, o pomposo texto de
Euclides da Cunha: Os Sertões, obra publicada em 1902.
Recorremos, mais uma vez, a emblemática obra de Afrânio Coutinho, A
Literatura no Brasil, que sobre Euclides da Cunha e seu texto hegemônico, Os
Sertões, tece as seguintes considerações:

Escreve Gilberto Freyre: “Seria um erro ver na paisagem do grande livro um

simples capítulo de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter

escrito com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza pedagó-

gica de exposição. A paisagem que transborda d’Os Sertões é outra: é aquela

que a personalidade angustiada de Euclides da Cunha precisou de exagerar para

completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se – junto com ela – num todo dra-

maticamente brasileiro em que os mandacarus e os xiques-xiques entram para

fazer companhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra

e na coragem de resistir e clamar por ela. Resistir quando todos desistem. Resistir

sempre. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides mais do

que a paisagem, que transborda dos limites do livro científico d’Os Sertões, tor-

nando-o um livro também de poesia...” (COUTINHO, 1986, p. 207)

Aliás, antes de deslindar a problemática em face dos equívocos apontados


anteriormente, é imperioso frisar que, como poeticista e crítico literário, em

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

toada similar à dos escritores, cujos empreendimentos e relevância não podem


e nem devem ser questionados e vislumbrados com as lentes do presente, mas
com o olhar do passado, sob pena de cometer erros graves, o trabalho de revisão
da crítica literária e da historiografia devem, de forma sinérgica, contextualizar
os fatos epocais e compreendê-los à luz de uma intepretação, que promova
aberturas constantes e renovadas por meio de instrumentais hermenêuticos
adequados. Nesse sentido, é lícito pontuar que a reflexão em curso deve ser
estendida aos críticos e historiadores, bem como a todos que se ocuparam, e o
fazem, sob as leis do eruditismo epocal, em investigar, estudar e trazer à lume
os fatos, os problemas e as singularidades imanentes das diversas poéticas, que
integram o painel da literatura brasileira legitimada pela rubrica canônica.
Indistintamente, escritores, críticos e historiadores – os pioneiros do pen-
samento, que formaram a intelligentsia brasileira –, foram reféns do seu tempo;
portanto, não há álibi mais convincente do que as imposições e as limitações crono-
lógicas às quais todos estão e estarão, indelevelmente, submetidos. Assim, o que pa-
deceu na zona de penumbra, na virada do século XIX para o século XX, é de extrema
importância para o criticismo, que tem sido um dos nossos objetos de investigação,
desde as proposituras fundamentais, de cunho autoral, iniciadas com a escritura
poeticista em torno da existência de uma Poética do verde.
Para além do óbvio, nesse sentido, pois Euclides da Cunha, com sua obra icô-
nica – Os Sertões – elaborou o faustoso projeto literário, com vias ao estudo vertical
da porção de terra brasileira pouco investigada, e, mais objetivamente, ao desbra-
vamento da Amazônia envolta nas densas nuvens de um misticismo, que, natural-
mente, beirava ao exotismo; e sua floresta suntuosa, que assombrava, de um lado,
por sua existência pré-histórica, rústica e no corredor temporal para ser (re)des-
coberta, e fascinava, de outro lado, por representar, para o olhar externo, talvez o
derradeiro eldorado a ser conquistado no planeta, dada a sua singularidade; e para
o poder dominante, na terra brasilis, o solo virgem, que escondia muitas riquezas,

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despertando a sanha dos salteadores modernos, cuja linhagem remonta ao espírito


explorador e, portanto, devastador, e que, em última instância, serviu de pretexto
para o colonizador europeu.
Nessa diretriz, a obra de Euclides da Cunha, atualmente revisitada e conside-
rada um texto exemplar nas letras nacionais, para a fortuna da literatura brasileira,
não recebeu, ao longo da história, a pecha de ser um texto incoerente a representar
o período denominado Pré-Modernismo, uma vez que tal classificação descam-
bou para o vácuo completo das possíveis significações epocais. Na verdade, a letra
canônica tentou elaborar uma correspondência com as tendências e vanguardas
europeias e o que, efetivamente, aconteceu na passagem de século no Brasil, na lite-
ratura, ou, ainda em formação, ou buscando o fechamento de seu ciclo identitário.
Um vazio suspenso, que não pode, de forma alguma, ser classificado como época,
ajustava uma literatura que, para muitos, incorreu numa escrita solene, mas ainda
vacilante no que dizia respeito à Amazônia; e, para outros, provocou uma espécie
de alarido que faltava nos círculos literários para tangenciar uma região com uma
estória pouco conhecida e, por conseguinte, longe dos tratados e/ou axiomas que,
movidos por arroubos impulsivos, propalavam aos quatro ventos que o constructo
de uma teoria versando sobre a identidade nacional e demarcando as fronteiras
expoentes da brasilidade estava em fins de formação.
A grandeza da obra euclidiana está para além de sua significação epocal.
Destarte, ao buscar compreender a exuberância da região amazônica, dada a imen-
sidão de seu espaço territorial, que não está circunscrito somente ao Brasil, através
da descrição e do registro que Euclides da Cunha fez, em sua viagem, uma verda-
deira odisseia para o inferno verde, correndo todos os riscos que puseram a sua
sobrevivência faceando um abismo, ato que, em geral, é próprio de insanos
ou sujeitos inclinados ao heroísmo, a sua obra retirou da zona de conforto
os teóricos do asfalto para dar início a uma série de reflexões, que se arrastou
por muitos anos nos espaços acadêmicos, tendo como mote axial a seguinte

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

problematização: qual era o lugar da Amazônia na construção do projeto de iden-


tidade nacional? A indagação, elaborada de diversas maneiras, por muitos estu-
diosos, de todos os matizes ideológicos, nos vários campos do saber, e em gerações
distintas, mas sem corromper a espinha dorsal da reflexão original, ricocheteou
como bala de prata, cuja força parecia invencível no tempo e no espaço.
Alfredo Bosi, em sua obra modelar, História concisa da Literatura Brasileira
(2006) informa:

Voltando-se para as realidades sul-americanas, que conhecera de perto no

trato das questões de fronteiras, Euclides infunde no seu método de obser-

vação geográfica um interesse vivíssimo pelos problemas humanos, sempre

em um tom que oscila entre o agônico e o trágico. Leia-se, por exemplo, o

ensaio sobre a Amazônia, onde ao analista da paisagem sucede o crítico vio-

lento da espoliação humana [...]. (BOSI, 2006, p. 312)

Outras perguntas surgiram, outras tantas se multiplicaram e os estôma-


gos da crítica e historiografia nacionais, respectivamente, experienciaram os
efeitos de uma vertigem seguida por uma náusea sem fim. Perguntas sem res-
postas e um eco fibroso foram responsáveis por uma reviravolta nos estudos
de literatura brasileira que, gradativamente, teve que se esforçar para rever
seus postulados, conceitos e verdades acerca da tese que versa sobre o pro-
jeto identitário brasileiro. Este cenário turbulento, que jamais cessou, como
creram muitos, sobretudo os defensores do pensamento canônico tradicional,
e que, herdeiros de uma tradição elitizada, insistiam na ideia da Amazônia
como lugar rudimentar, incivilizado, sem representação étnica e, portanto, um
apêndice para a compreensão da história; e a literatura, de pouca valia, para
a elaboração do pensamento sobre o que, essencialmente, poderia ser alçado
à condição de brasilidade, atormentou, sobremodo, os pilares da Crítica, de
forma acachapante.

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Aberto o corte, que divisou o pensamento instituído e uma verdade que


precisava ser revista, a edificação quase pronta e inaugurada pelos modernistas
de 1922 desabou sobre seus pilares de fundação. Assim, tombava em solo raso,
de forma espetacular, um monstro de papelão. As perguntas que se multipli-
cavam feito pestes bíblicas e as respostas que sucumbiam, por serem demasia-
damente débeis, constituíam-se sinais claros de que o modus operandi utilizado
para dar forma à verdade sobre o projeto de identidade nacional e a brasilidade
fora, de certa maneira, em vão, pois um questionamento estonteante para os
modernistas, que arrogaram e advogaram a tese de serem os autores do pen-
samento filosófico, que certificaria, em definitivo, o que era/é ser brasileiro ou
genuinamente nacional, emergiu das sombras da ininteligibilidade como um
autêntico assassino de aluguel. A saber: como excluir a Amazônia da transcrição
ontológica, que daria origem ao arquétipo do Homo brasiliensis, se o espaço verde
era eminentemente o lócus mais identitário, mais representativo, que havia e que
há na terra brasilis?
A Amazônia, antes de ser vestida com tecidos rústicos e pintados de verde, é e
sempre foi multicolorida em sua manifestação plural. A multitonalidade que a per-
faz, nos circuitos internos do pensamento, que explorou a densidade de sua floresta
como lugar impenetrável, inabitado, ou, para muitos, inalcançado; ou ilimitada
em sua universalidade, cuja extensão extrapola a compreensão de base lógica, de-
vido às fabulações em torno de sua essência, é a vocalização de sua verdade, que
devassa os falsos cristais, que representaram o lúmen da literatura nacional no que
concerne à identidade do (ser) brasileiro e sua constituição identitária, que deter-
mina sua brasilidade na América do Sul, marcadamente hispânica, de um lado, e
hegemonicamente lusitana, do outro.
Desse modo, os tons plurais, aos quais nos referimos anteriormente, presen-
tificam-se nos elementos que compõem e integram o universo dito verde. Verde,
muito verde; verde essencialmente verde; verde para além do verde. Verde em

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

multitonalidade ilimitada. Quais sejam: a natureza, a physis exuberante; o movi-


mento interno e externo do espaço natural; os seres e as coisas; o índio, as gentes
da floresta; o caboclo e o ribeirinho; o elemento fantástico; os mitos, as lendas, o
folclore; os dizeres e a sabedoria popular; a língua que, em conformidade com uma
linguagem singular, alimenta e retroalimenta a cadeia quantitativa do que deno-
minamos Poética do verde.
Nessa diretriz, cristalina e flagrantemente, o que salta aos olhos da Crítica é
que, pela tomada de consciência sobre os desvios gritantes de um passado, ainda
recente, (pois o Modernismo não rompeu a barreira secular de sua fundação) im-
põe-se, cada vez mais urgente, a necessidade de atrair para o centro do debate o
que fora arremessado para as margens, de forma ideológica e danosa, servindo tão
somente para a manutenção dos discursos oficiais legitimados por uma elite, que
herdou as sementes conspiratórias e mandatárias em um tempo sem leis, quando a
voz do colonizador, de forma aterradora, era a única que podia ser ouvida na maior
porção de terra que pertenceu à Coroa Portuguesa, há mais de quinhentos anos,
situada na América Meridional. Acrescente-se a isto, também, o fato irrefutável
de que a amazonidade já existia, porque o amazônida era/é, efetivamente, o ser de
tonalidade ontológica, singular e augusta; constituinte originário das terras, que,
injustamente, não foi incluído na tábua biográfica do Brasil.
Sobre a amazonidade, portanto, recorremos às pontuações de Gilson Penalva
e Liane Schneider:

A amazonidade, conceito associado a processos de identificação na

Amazônia, precisa ser compreendida como passagem, meio, e não como

fim, pois de outra forma corre-se o risco de afirmar os valores de uma só

etnia – a indígena, por exemplo, criando-se cristalizações em torno de uma

identidade de raiz única, portanto, exclusiva e totalitária, o que não condiz

com as práticas das relações históricas na região. (PENALVA & SHNEIDER,

2012, p. 11-50)

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Ora, a par do nosso empreendimento poeticista, lançamos, portanto, uma


reflexão capital para a compreensão da verdade sobre o que era da ordem da
nacionalidade e que expõe, com efeito, a brasilidade: existe, de fato e de direito,
um projeto identitário, que espelha a pluralidade de uma cultura dita brasileira?
O questionamento tem como objetivo precípuo retomar o que assinalamos nestas
linhas, ao usarmos a metáfora referente à bala de prata, que ricocheteia para todos
os lados, cuja significação mantivemos em aberto, propositalmente, para conferir
o tom poeticista da intepretação, segundo a nossa rubrica em curso. Desse modo,
cumpre-nos, então, esclarecer que o projétil ao qual nos referimos, de forma apro-
priada, é prateado porque foi feito para matar, aniquilar, exterminar; e o seu movi-
mento, em trajetória violenta e frenética, é a prova cabal de que o desmantelamento
do castelo erguido pelos modernistas obrigou, forçosamente, todos a revisitarem a
história da literatura a partir de outro ponto, que entrou em colisão ideológica com
o próprio Modernismo: o Romantismo, com seus ideais prodigiosos, com sua vi-
são aguçada, por vezes exagerada, do país, investindo, ideologicamente, no sentido
scricto sensu de nação, e, sobretudo, no que diz respeito à literatura e à construção
de um projeto de identidade nacional balizado por uma língua aspirante ao desco-
lamento e deslocamento do idioma que, para cá, fora trazido nas soberanas naus,
que aportaram no Brasil, vindas doutra parte do Atlântico: a língua emprestada; a
língua transplantada; uma língua estrangeira – a língua portuguesa.
Se o desmascaramento dos modernistas começou com o embate intelectual e a
disputa sobre quem lideraria, no plano da abstração e, por consequência, no plano
da concreção, as ideias e a execução de um ato capaz de mobilizar a sociedade em
torno da proclamação da segunda independência do país, através do rompimento
com a tradição europeia, e que culminou na reunião de intelectuais e do público no
teatro municipal, em São Paulo, deflagrando, portanto, o Modernismo no Brasil
– uma trapaça histórica, que retirou os nordestinos do páreo –, a queda do disfar-
ce estava longe de terminar, pelo visto. Maldição ou não, enjoo ou infelicidade, o

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

fato é que a compreensão contemporânea sobre a questão do projeto de identidade


nacional obrigou os modernistas a beberem águas amargas em fontes que eles, em
uníssono, vilipendiaram, desprezaram, e reduziram a pó o seu valor histórico para
a edificação de uma verdade genuína, que traduzisse o que existe de mais brasileiro,
se assim podemos definir, na história e na formação de uma cultura nacional.
A despeito de os românticos serem, na história da literatura ocidental, os repre-
sentantes do mal-du-siècle, no Brasil, a maldição caiu sobre os ombros e as mentes
dos modernistas. Os fantasmas do passado não foram exorcizados e os modernis-
tas tinham um encontro marcado com a verdade: o projeto de José de Alencar,
que abarcava a ideia epistolar de cultura nacional integrando regiões, estórias e a
própria língua. José de Alencar, um dos maiores intelectuais e pensadores, em seu
tempo, não pode, jamais, ser culpado por não ter incluído a Amazônia, com sua es-
crita verde e para além do verde, em seu projeto inovador, pois, insuflado pelos sen-
timentos triádicos33, que sustentaram uma revolução, a baliza que serviu para
dividir a grande passagem do homem ocidental – da Idade Moderna à Idade
Contemporânea –, e as raízes de um pensamento identitário no Brasil, a seu
favor, nos anais da história, o escritor expressou, de forma exemplar, o desejo
inatacável pela criação e elaboração de um projeto nacional, de fato e de direi-
to, que revelasse, de forma vertical, os matizes essenciais e fundantes do Brasil.
A defesa ardorosa sobre uma língua brasileira, levantando a poeira secu-
lar, e a fogueira das vaidades dos intelectuais, à época, e que, com Alencar,
engrossou as fileiras e as vozes, advogando a tese sobre o idioma que represen-
taria o ser do/no Brasil, a despeito dos equívocos ocorridos, devido a precários
instrumentais comprobatórios, concorreram, sobremaneira, para que muitos
endossassem sentenças várias e promissoras acerca do Tupi Guarani, tronco
linguístico imaginário de onde teria se originado o idioma, por excelência, pá-
trio, uma vez que os indígenas foram os primeiros habitantes da terra brasilis.
33 Referimo-nos aos ideais basilares, que nortearam a Revolução Francesa, em 1789. A saber: Igualdade, Liberdade

e Fraternidade.

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Assim, deflagrado o projeto, no âmbito crescente da intelligentsia brasileira,


José de Alencar não poupou esforços para avançar com sua teoria que, apesar de
muitas opiniões polêmicas, em seu tempo, e mais tarde os modernistas, que in-
vestiram maciçamente contra suas ideias, a questão da identidade nacional, no
percurso histórico, tornara-se uma instituição sólida e inabalável. Nesse direcio-
namento, portanto, podemos inferir que o próprio José de Alencar não imaginaria
que a problemática por ele lançada ultrapassaria, de forma vicejante, os limites
canônicos da literatura brasileira, desaguando como manancial vivo nos leitos do
Pós-Modernismo.
A reflexão crítica de Marcelo dos Santos Carneiro corrobora o nosso posicio-
namento crítico, ao afirmar:

José de Alencar (1829-1877), escritor e político nacionalista, viu nos vocá-

bulos de origem tupi um motivo para a nacionalização da língua portuguesa

usada no Brasil, pois tais vocábulos presentes na flora e fauna brasileiras e,

por isso, utilizados pelo povo no seu dia-a-dia, uma vez inseridos na lín-

gua trazida pelos colonizadores, seria o caminho para sua nacionalização.

(CARNEIRO, 2017, p. 30-42)

Eis, portanto, a ironia do destino: os modernistas, ao se posicionarem,


com a devida legitimidade que a história lhes legou, contra a tradição euro-
peia, fincando suas bandeiras em terras nacionais e tendo como tese fundante
a brasilidade com seu teor plurissignificativo, não perceberam a armadilha que
a própria história contra eles armou, ou, talvez, um ato falho, como reflexo de
um inconsciente coletivo recalcado, tomando como alicerce a letra freudia-
na34. Desse modo, é impositivo destacar que os fundadores da Semana de Arte

34 Segundo a teoria freudiana que trata do psiquismo, os desejos recalcados constituem a substância oculta premi-

da pelas forças endógenas que, por sua vez, são representadas pelo Superego (as leis externas estabelecidas pelos

grupos sociais que restringem a ação efetiva e libertária do Ego). Assim, de acordo com o fundador da Psicanálise,

Sigmund Freud, os atos falhos são provas concretas do recalcamento, da castração do desejo de cada indivíduo

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Ix. Multitonalidades do verde poético: os ilimites identitários da Amazônia

Moderna alvejaram, como puderam, o brasão romântico, polarizando con-


trariamente ao ufanismo que, segundo eles, era nada mais, nada menos que
um atestado de loucura deliberada ou, segundo as críticas mais ácidas, causa
fundamental da estupidez romântica, que cunhou em seus representantes a
tarja da parvoíce e da alienação completa, tornando-se, de modo invariável, a
caricatura a ser debochada e dilacerada, sem pudores e sem limites. Ataques
francos e extemporâneos para justificarem a falta de um projeto de fôlego, e
que convencessem as massas sobre a brasilidade, sólida o suficiente para retra-
tar a identidade do dito ser brasileiro, reacenderam uma tese que não era de
seu pertencimento. E a queda fatal, entre brados e gritos exasperados, trouxe
de volta para as discussões acadêmicas a figura do índio idealizado, europei-
zado e distante daquele que vivia em nossa terras, e que não fora construído
ou pensado pelos modernistas, a contento. Ou os espectros românticos ain-
da assombravam as mentes inquietas e sensacionalistas dos modernistas, ou
aqueles estavam sendo atormentados em seu próprio descanso epocal.
Outro acidente modernista, que nada tem a ver com a obra impressionan-
te e conceitual e que, ao lado da emblemática pintura, símbolo do Modernismo
brasileiro, o Abaporu, de Tarsila do Amaral, integrou e impactou, sobremaneira, o
ambiente literário, com deflagração do movimento, a partir da antológica Semana
de Arte Moderna, em 1922, a saber: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de
Mário de Andrade. A interpretação do fato histórico, em si, apresenta dois lados
distintos e profundamente opostos. Se, de um lado, o livro – a obra prima de Mário
de Andrade –, considerado um dos elementos mais representativos do movimen-
to eloquente e promissor nas letras brasileiras, no início do século passado, com
sua narrativa plural, tocava na grande ferida brasileira, e, de modo carnavalesco
e rompendo com todos os tabus vigentes, expunha, abertamente, a identidade do
brasileiro, caracterizando-o, paradoxalmente por meio de suas descaracterizações,
ou de uma coletividade, que são expelidos pela via do consciente, revelando a verdade mais recôndita localizada

no Inconsciente. Cf. Valente (2002, p. 96-97).

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o que fez dessa obra um dos saltos quânticos da literatura brasileira; do outro lado,
o entenebrecimento do sentido alegórico da figura singular, que é a personagem
nuclear da obra, Macunaíma, advém do fato inegável de o escritor paulista eleger
o mito amazônico para destravar a pauta que impedia um novo olhar sobre o po-
lêmico projeto de identidade nacional. Nesse sentido, franqueamos mais uma refle-
xão: porventura, os modernistas, no afã de investirem no desterro dos românticos,
e navegando no imaginário de uma tradição, com considerável substantividade,
desejaram ser os autores legítimos das proposituras acerca da brasilidade, no alvo-
recer da nova corrente estético-literária?
Se não esqueceram ou não atentaram para este fato, acima postulado, os
modernistas não ousaram, sequer, tangenciar a imponente tese machadiana, já
consolidada e, portanto, reconhecida como marco inconteste no pensamento
histórico nacional denominado Instinto de nacionalidade (ASSIS, 1994), que so-
bressaiu, sem confrontos, face ao pensamento engendrado por José de Alencar, nos
idos do Romantismo, e que serviu de ponte luminar para os modernistas em 1922.
Assim, ao reler e/ou revisar a história recente, a que especificamente incide sobre o
Modernismo e suas propostas, e a que recai sobre o projeto de busca por uma iden-
tidade nacional, pedra angular idealizada por Alencar e sustentada pelos escritores
de sua geração, o que se constata, inconfundivelmente, é que o silêncio em torno de
uma cultura e uma história singular vertendo em solo amazônico não foi compre-
endido e tampouco interpretado, como deveria, tendo como consequência prejuízos
incalculáveis para o estabelecimento verossímil de uma cultura literária nacional.
A partir dessa configuração, Machado de Assis, com sua virtuosidade ímpar,
elabora as linhas diretivas dos caminhos da literatura brasileira e a questão da na-
cionalidade nas seguintes palavras:

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como pri-

meiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as

formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e

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não há como negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e

abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto-Alegre e Magalhães

são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga,

como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão.

Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vi-

da brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto

manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento na-

cional. Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de

Ipiranga; não se fará um dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura;

não será obra de uma geração nem duas: muitas trabalharão para ela até per-

fazê-la de todo. (ASSIS, 2008)

Influenciados, e não poderia ser diferente, pelos ventos que deram mus-
culatura às teses do nacionalismo epocal, uma das bases de fundação do
Romantismo na Europa e, posteriormente, no Brasil, os românticos persegui-
ram, com maestria e legitimidade, um mito fundador, um símbolo que repre-
sentasse, fielmente, a verdadeira face do ser brasileiro em seus traços arque-
típicos. Não sobreviveram, é claro, para darem cabo ao possível tratado sobre
o tema; e o índio, neste sentido, encarnando o espírito de um possível herói
nacional, consolidou-se, a despeito dos exageros da corrente literária, próprios
de seu tempo, como índice portentoso, sobretudo originário dessa terra ain-
da inexplorada, desconhecida. Entretanto, há que se registrar, também, que
a Amazônia não era e não fora o único lugar onde havia índios; os silvícolas,
como estão arrolados na história oficial a partir do descobrimento oficial do
Brasil.
É nesse caldeirão de cores e símbolos que o projeto identitário se encon-
tra, pois a grande dívida do Brasil é com o próprio Brasil, cristalizado nas cul-
turas amazônicas e no ser brasileiro genuíno, o amazônida: aquele que não
fora incluso nem nas letras românticas, de caráter crítico, nem tampouco pelas

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imposições modernistas, que intentaram a edificação de um novo projeto de


nação. Os desconfortos e as oscilações temperamentais em torno do tema, que
atravessaram séculos seguidos, advinham não pela existência da Amazônia
em/com seu universo verde e sua linguagem tão plural quanto as dimensões
de um país continental que a abriga ou que por ela é abrigado, mas pelas escu-
sas históricas, que tentaram enquadrar o espaço amazônico, talvez uma besta
fera, numa estrutura de falsos esteios, que não suportaria a imensidão do que
há para além da floresta; para além dos sons e das cores, graduando-se numa
infinidade sinestésica de sentidos, que vão além das simples e, também, das
complexas conceituações ordenadas, hierarquicamente, pela Crítica.
O álibi para a historiografia literária acerca do projeto de identidade na-
cional que, a nosso ver, é uma instituição que se amalgama com o pensamento,
que busca a solidificação de uma cultura genuinamente brasileira, está/estará
ancorado no duo exclusão – inclusão da Amazônia reconhecida como com-
ponente essencial para a compreensão definitiva da brasilidade não como tra-
ço desenhado de fora para dentro, mas como símbolo que eclode em rotação
máxima de dentro para fora. Assim, o que se pode depreender do poeticismo
que empreendemos nestas linhas, em conclusão, a priori, é que o princípio da
exclusão tornou manquitola e claudicante a teoria que sustenta a tese da iden-
tidade nacional e todos os seus efeitos vinculantes, desacelerando, sobremodo, os
motores modernistas em relação às velas estufadas e venturosas dos românticos.
Os modernistas, ao mirarem suas ogivas para os românticos, exageraram na dose
e desconheceram os tons e suas gradações ascendentes da parte mais brasileira do
Brasil: a Amazônia.
A overdose, nesse sentido, teve efeitos reversos. Os românticos perpetuaram,
candidamente, em seus sonhos e devaneios, também marcados por hipérboles, a
ideia de alcançarem, com seu projeto identitário, sobretudo pelas mãos de José
de Alencar, todos os matizes e representações, que constituíam a tradução mais

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próxima do que era/é o Brasil, rompendo, de forma original, os laços que manti-
nham a nação e sua cultura submissas aos colonizadores.
Os modernistas, a despeito do conhecimento que detinham, de forma privile-
giada, uma vez que pertenciam à elite dominante nas letras nacionais, (um legado
de um país com mais de quatro séculos de cultura acumulados) por preconceito,
desleixo e arrogância, excluíram a Amazônia do projeto identitário nacional, e os
românticos não conseguiram incluí-la porque sucumbiram, naturalmente, ao tem-
po, e grande parte de seu ideário não fora, portanto, concluído.
Quanto ao princípio da inclusão, estão salvos pela historiografia literária e,
também, pela Crítica, os românticos, os modernistas, as personagens que, ao longo
da história da literatura brasileira – e ressaltamos, com o devido louvor e reconhe-
cimento – os inconfidentes, no Arcadismo brasileiro, e o próprio Euclides de Cunha,
que se tornou magistral, ao empenhar-se, vigorosamente, in loco, para desvelar a
vastidão e a importância da Amazônia para o Brasil, no vácuo do Pré-Modernismo,
talvez pecando, somente, ao intitular o seu magnífico texto com o nome Os Sertões,
sem conceder-lhe um aposto mais luminoso, mais esclarecedor para o leitor, à pri-
meira vista, pois o ser que ali sempre viveu e resiste aos conceitos e definições, que
estão mais para os calabouços do que para os faróis, não é, não foi e jamais será um
sertanejo, apenas; é, antes de qualquer denominação, um amazônida constituído
por sua amazonidade: a última peça a ser encaixada no complexo mosaico que
dará a forma e a substância à ementa elucidativa do projeto de identidade nacio-
nal. Nesse sentido, em tempos de inclusão, é hora de redescrever e/ou quem sabe re-
descobrir o Brasil, iniciando o seu trajeto não pelo litoral, atlanticamente azul, mas
pela Amazônia, que é verde, azul, amarela, branca; multicolorida e multirracial;
gigantesca e parte essencial do ser brasileiro em sua pluridimensionalidade étnica,
religiosa, filosófica e literária.
Entre as velas das naus românticas e os motores dos automóveis modernis-
tas, a irrefreável bala de prata continua a sua trajetória vívida e lancinante a

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ricochetear frenética por todos os lados, com um alvo ímpar: o cerne da questão
incompleta sobre o projeto identitário nacional. O elo perdido, que deverá unir o
passado e o presente, (re)construindo o talismã mítico, sagrado, está para além do
verde que constitui a Amazônia; está, radicalmente, nos limites imponderáveis de
uma brasilidade, que é amazônida, por excelência, e poética, por ser eminentemente
universal.

Referências
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Domínio público. [S.I.] 2008. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/
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RIBEIRO, João Carlos de Souza. A poética do verde – reflexões propedêuticas. In:


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VALENTE, Nelson. Psicanálise freudiana: uma análise atual ao alcance de todas
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193
X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

X. Representações feministas na obra


Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre
Jorlaíne Monteiro Girão de Almeida

Yurgel Pantoja Caldas

Introdução
O livro Exageros e delicadezas (2013), da autora amapaense Carla Nobre, re-
úne mais de 50 poemas que retratam a realidade da mulher e reformulam o estere-
ótipo utilizado no título de “delicada” e “exagerada”, formado socialmente ao longo
do tempo, conforme constata-se em Marx (apud BEAUVOIR, 2009, p. 133): “Assim
é que as qualidades inerentes à mulher são deturpadas em seu próprio detrimento,
e todos os elementos morais e delicados de sua natureza se transformam em meios
de escravizá-la e fazê-la sofrer”.
Os poemas que serão analisados retratam a realidade feminina em várias es-
feras, como a vida profissional, as várias jornadas de trabalho, as dificuldades em
criar os filhos sozinhas (quando as mulheres se tornam mães solteiras ou viúvas), a
recriminação da sua sexualidade, a criação do mito da beleza para uma espécie de
coerção social, o preconceito no uso de palavras e comportamentos considerados
vulgares, a luta por seu espaço profissional e por equiparação salarial e contra a
violência sexual (WOLF, 2008).
Dentre as criações literárias amapaenses, a obra de Carla Nobre é a primeira
a representar a luta das mulheres de forma clara e objetiva. Outras autoras, como
Maria Helena Amoras, em sua obra Macapá: um rastro de pirilampos (1997), traz
alguns aspectos de defesa da pauta das mulheres, mas negam o feminismo de forma
contundente, devido à resistência que existe em torno do termo.
Este artigo mostrará a perspectiva feminista da literatura e sua importância
para a formação social, de forma que as representações de gênero e as convenções

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estéticas demonstrem valores, atitudes e crenças que estão enraizadas em uma


sociedade.

Carla Nobre
Carla Nobre é uma autora da literatura amapaense que traz a representati-
vidade feminista em suas obras. Suas poesias apresentam a realidade da mulher
da atualidade, com todos os seus desafios inerentes ao gênero, numa sociedade
extremamente marcada pelo machismo. A autora é macapaense, professora de
Literatura e Língua Portuguesa, mãe de dois filhos e coordenadora do grupo
Abeporá das Palavras. Ela nasceu no dia 1º de julho de 1975 e publicou as obras
Ao vento – crônicas e poemas (2005) e Servindo haicais (2005), em edições
artesanais (computador); Sobre o adeus e o encelado de Saturno (pela Editora
Scortecci, 2007).
Carla já ganhou as seguintes premiações nacionais: Menção Honrosa
pelo poema “Anel de formatura”, no concurso da Biblioteca Prof. Gerson Alfio
de Marco, em Descalvado-SP. Menção Honrosa pelo poema “Escolha”, no
1º Concurso Nacional de Poesia Audifax Amorim, em Colatina-ES. Menção
Honrosa pelo poema “Um beijo longo” e pela crônica “Sou de significados”,
no 9º Concurso Literário Prêmio Missões, promovido pela Igaçaba Produções,
em Roque Gonzáles-RS. Terceiro lugar com o poema “O homem, os garis e
uma casca de laranja”, no 1º Concurso de Poesia Falada da Fundação Cultural
Casimiro de Abreu, no município do mesmo nome, no Rio de Janeiro. Menção
honrosa pelo poema “Presente de férias”, no 1º Concurso Apem de Literatura,
em Marília-SP. Participação na Tribuna da OFFFLIP/RJ/2006 – evento paralelo
à Festa Literária de Paraty – para leitura dos poemas “Vento da partida” e “Anel
de formatura”. Terceiro lugar com o conto “Os enterros”, no 8º Concurso de
Literatura – 2006 da Fundação Cultural de Canoas-RS.

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

Nobre desenvolve um trabalho voltado para a difusão da literatura pro-


duzida na Amazônia, organizando e participando de saraus literários, além de
produzir materiais literários como agendas e livros artesanais.

“Soneto da palavra nua” e a escolha das palavras


O poema “Soneto da palavra nua” (NOBRE, 2013, p. 29) é o primeiro do
livro Exageros & delicadezas a quebrar os paradigmas femininos. A obra inicia com
uma menção metalinguística, citando sua própria criação, onde as delicadezas, ca-
racterísticas da formação literária feminina, são substituídas pelas “palavras nojen-
tas” e por uma “linguagem piolhenta”. Na sequência, o eu lírico destaca sua cora-
gem em não se envergonhar de suas escolhas, visto que todas as palavras deveriam
ser adequadas ao falar da mulher, pois palavras não deveriam ser seletivas, em rela-
ção a seu contexto social ou profissional. Por fim, o eu lírico escolhe o verbo “parir”,
que representa a força da mulher no ato da reprodução, e deixa implícitos todos os
condicionamentos referentes a tal, quando destaca a memória presente na palavra.

SONETO DA PALAVRA NUA

Quero para minha poesia


Todas as palavras nojentas
As obscuras, as ambíguas
Uma linguagem piolhenta
Não me envergonho das minhas escolhas
Minha palavra é minha pepita
Catarro, mentira, dor, sangue
Suvaco, urubus, bruxaria, bauxita
Todas as palavras são bem-vindas
E com elas as penas, a moela, as tripas
E todos os seus sentimentos e suas histórias
Das mais tristes às mais lindas
Fico com o verbo parir
E toda a sua memória (NOBRE, 2013, p. 29)

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A literatura feminista é baseada na crítica ao pensamento patriarcal, lu-


tando para desconstruir as definições do antigo “feminino”. Os trabalhos li-
terários nessa linha, até o século XX, ainda traziam os estereótipos femininos
que normalmente ocorriam no ambiente doméstico, revelados através do fazer
manual e com delicadeza (WOLF, 2018). A poesia de Carla Nobre mostra jus-
tamente o contrário, pois adentra o espaço da mulher na literatura, sem essas
marcações da feminilidade, com críticas ácidas e palavras agressivas.
O padrão delicado da mulher a descarta enquanto indivíduo, que segue
modelos criados por homens para se sentir olhada e valorizada (como um obje-
to). No entanto, na realidade, existe uma busca incansável para o encaixe nesse
padrão, que está além da realidade, ou alcançado através de muitos sacrifícios.
Portanto, a mulher deixa de valorizar suas características físicas e psicológicas
para criar outras, em virtude das expectativas masculinas (WOLF, 2018).
A diferença social está assim estereotipada quando se propõe manifesta-
ções em que o corpo da mulher é mostrado nu. Existe estranhamento e vio-
lência por parte da sociedade quando isso ocorre: enquanto os homens são
ensinados a exibirem seu corpo, seja ele urinando na rua, ou mostrando o cor-
po para os familiares como forma de orgulho de seu desenvolvimento, as mu-
lheres são doutrinadas a cobrirem o corpo, fecharem as pernas, envergonha-
rem-se de seu corpo e nem sequer tocar na palavra “vagina”, por exemplo. A
repressão sexual continua atual para as mulheres, principalmente as de família
religiosa, que prega o puritanismo (MCCANNER, 2019).
Assim, no título do poema “Soneto da palavra nua”, a palavra “nua”
(NOBRE, 2013, p. 29) retrata a utilização de termos não adequados à mulher,
segundo o pensamento patriarcal. Mas apresenta também a coibição da nu-
dez feminina, pois a culpa religiosa reprime sua sexualidade, no entanto, estimula
a compulsão masculina. A repressão foi tão significativa que vários mecanismos
de controle (mutilação) sexual foram criados para que as mulheres não pudessem

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

sentir prazer, o que poderia tirar o foco de sua tarefa primordial de procriar e cuidar
dos filhos e da casa.
No Egito e em vários países da África, a clitoridectomia é um ritual de pas-
sagem realizado há mais de dois mil anos com o objetivo de impedir que a mulher
obtenha prazer sexual. O ritual pode acontecer na primeira semana de vida da
mulher ou até na adolescência, onde pode ser retirada uma parte do clitóris e até os
pequenos lábios da vagina. A dor é intensa, devido à precariedade do procedimen-
to, causando, em muitos casos, infecções e esterilidade. Esse ritual é utilizado até
os dias atuais, mostrando que a luta pela liberdade sexual está longe de terminar
(MCCANNER, 2019).

“Soneto íntimo” e a luta das mulheres


“Soneto íntimo” é, na sequência, o segundo poema do referido livro de
Carla Nobre a retratar a luta feminista. O eu lírico retrata as “loucuras” e o
atrevimento das mulheres quando invadiram os quartéis, o que pode ser rela-
cionado ao contexto da ditadura militar, quando as mulheres eram torturadas
e mortas por seus envolvimentos em grupos políticos contrários aos militares.
Desafiaram o papel feminino tradicional, participando de movimentos estu-
dantis, partidos políticos e sindicatos de trabalhadores. Ainda que em menor
número que os homens, elas se armaram e lutaram para derrubar o regime
militar entre as décadas de 1960 e 1970. Foram duramente reprimidas e ainda
assim, iniciaram o movimento pela anistia (MCCANNER, 2019). No trecho “a
vida sempre foi nossa prioridade”, temos a luta em defesa da vida, pelo direito
da luta e de liberdade:

SONETO ÍNTIMO

Pela vida já fomos e somos


Capazes de qualquer loucura
Pela vida somos atrevidas
Aliamos garra e ternura

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Pela vida invadimos quartéis


Mudamos de identidade
Gritamos nas avenidas
A vida sempre foi nossa prioridade
Tratamos a vida como amálgama arrebatadora
Fogo, gelo, cristal e pérola
A vida nos faz cicatrizar e recomeçar
Ela é nossa matriz encantadora
E nos dá a mão: Vem comigo, Mulher, margarida
Somos pura contravenção! (NOBRE, 2013, p. 33)

As manifestações protagonizadas por mulheres continuam acontecendo


nas ruas e pelas redes sociais. Em 2015, o projeto de lei 5069/2013, apresenta-
do pelo deputado federal Eduardo Cunha (hoje cumprindo pena por corrupção
em regime fechado) dificultava os cuidados médicos por vítimas de estupro, o
acesso à pílula do dia seguinte e ao aborto, em casos de estupro. Rapidamente,
mulheres de todo o Brasil organizaram movimentos nas ruas e na internet
através de hashtags. Essa luta alcançou patamares inéditos para a luta feminista.
Outro movimento lançado nas redes sociais reivindicava o direito da amamenta-
ção em público, onde as mulheres ainda são retaliadas ao amamentarem seus fi-
lhos em público, sendo orientadas desde sempre a esconder o corpo com um pano.
O movimento atingiu grandes proporções e foi divulgado por mulheres de todo o
Brasil. Hollanda (2018, p. 32) apresenta as marcas desse ativismo contemporâneo:

Há pelo menos dois pontos a serem destacados acerca dos modos de orga-

nização dos ativismos contemporâneos que eclodiram em junho de 2013 e

são a marca do feminismo atual. Por um lado, a busca pela horizontalidade,

a recusa da formação de lideranças e a priorização total do coletivo. Por ou-

tro lado, uma linguagem política que passa pela performance e pelo uso do

corpo como a principal plataforma de expressão. Esses são os elementos que

se notam à primeira vista nas novas manifestações feministas.

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

A luta pelos direitos da mulher em um contexto internacional tem re-


cebido crescente hostilidade devido às manifestações de ódio, intolerância e
rejeição aos direitos conquistados pelas mulheres, pelas comunidades indíge-
nas, pelas populações negras e pelas pessoas pertencentes aos grupos LGBTI,
dentre outros grupos e comunidades que vinham ganhando espaço. Essa into-
lerância é reflexo de atuais governantes de extrema direita, que compartilham
dessa premissa e que dão voz aos que antes faziam uso da máscara social do
“politicamente correto”. Um dos fatores dessa intolerância crescente se dá em
virtude da crise econômica de vários países, que trouxe os velhos e preconcei-
tuosos julgamentos do crescimento econômico vinculado a homens brancos e
ricos, daí a crescente discriminação (HOLLANDA, 2018).
No entanto, mesmo diante do cenário discriminatório, a escolarização das
mulheres vem crescendo em todos os níveis de ensino. Nos anos 2000, elas
quebraram os paradigmas sociais passando a ser maioria dos matriculados e
concluintes do Ensino Fundamental, Médio e Superior. Com o crescimento do
nível de escolaridade das mulheres, houve também um aumento significativo
no número delas no mercado de trabalho. Outro marco importante é o acesso
das mulheres a cargos e funções antes consideradas masculinas, como cargos
de chefia e gerência. No entanto, as áreas tradicionalmente direcionadas à mu-
lher ainda são a realidade para a maioria delas (MCCANNER, 2019).

“Soneto da fábula da mulher” e a figura de feminilidade (des)cons-


truída

“Soneto da fábula da mulher” é outro poema de Exageros & delicadezas que


indica algumas das formas pelas quais as identidades são construídas. O estereóti-
po feminino que a designa como “princesa”, “delicada” e de “cabelos longos” é subs-
tituído pela figura realista da “mulher normal”, “cheia de sal”, “feita de Marabaixo”,
sugerindo que os tempos estão mudando, tornando aceitável que a posição femini-
na possa incluir a satisfação de seus próprios desejos pessoais, bem como a cultura

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regional, representada aqui pelo Marabaixo – que é a maior manifestação cultural


do estado do Amapá e que foi recentemente reconhecido pelo IPHAN como patri-
mônio cultural imaterial do Brasil – favorecendo a relação teórico-prática no que
diz respeito à diversidade cultural (VIDEIRA, 2009).

SONETO DA FÁBULA DA MULHER

Era uma vez uma mulher


Que não nasceu da costela de ninguém
Ela era linda e comandava até as marés
Não ficou adormecida esperando o príncipe chegar
Não tinha medo do escuro, nem do lobo
E estava disposta a encarar
Era uma vez uma mulher de cabelos curtos
Que não gostava definitivamente de sapatinhos de cristal
Era uma vez uma mulher normal
Que brilhava na noite e respingava fogo
Ela era uma mulher cheia de sal
Era uma vez uma mulher feita de marabaixo
Gostava de gengibirra, muita folia e suor
E que ninguém queira apagar o seu belo e doce facho!
(NOBRE, 2013, p. 36)

O verso “Que não nasceu da costela de ninguém” (NOBRE, 2013, p. 36)


apresenta a história da criação segundo a tradição judaico-cristã, que estabele-
ce a concepção da mulher a partir do homem, tornando-a um ser de segunda
classe: “Mandou, pois, o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e, enquanto
ele estava dormindo, tirou uma de suas costelas” (BÍBLIA, Gênesis 2, 21-23).
Então, segundo a Bíblia, Deus criou o homem a sua imagem, enquanto a mu-
lher é criada a partir de uma costela descartável, deixando clara a superiorida-
de do homem em relação à mulher, de acordo com o texto bíblico.
A criação da mulher, a partir de outra criatura perfeita (o homem), traz a
ela uma necessidade de aperfeiçoamento constante. Daí, quase sempre emer-
gir a ideia de que a mulher, ser imperfeito por definição e origem, necessita

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

de acabamento; ou seja, ela precisa ser aperfeiçoada. Seu corpo é cheio de im-
purezas e imperfeições (tanto por conta do fator criação, quanto pelo pecado
original). Segundo Wolf (2018), essa visão fez a mulher seguir os ritos da beleza
que se propõem a queimar o corpo feminino no forno da beleza, e a eliminar
suas impurezas, dando-lhe o acabamento necessário e definitivo de outro cor-
po, moldado pelo desejo masculino.
No verso “Ela era linda e comandava até as marés” (NOBRE, 2013, p. 36),
observa-se que o apego à beleza acontece mesmo após a superação da mística
feminina da domesticidade, onde o mito da beleza foi redirecionado, amar-
rando as mulheres na indústria da beleza compulsória, ainda que sejam es-
petacularmente independentes e profissionais, como fica claro no comando
das marés do eu lírico, pois a beleza é um fator de controle social da mulher
(WOLF, 2018).
Os versos “Não ficou adormecida esperando o príncipe chegar/ Não tinha
medo do escuro, nem do lobo” (NOBRE, 2013, p. 36) trazem a libertação do
padrão de “princesa”, ensinado às meninas quando crianças. Essas meninas são
instruídas a falar baixo, sentar-se adequadamente, andar de salto e com lindos
vestidos, e o pior de tudo é a submissão vinculada à figura do príncipe, que
aparece para salvá-la de seu cruel destino. O eu lírico liberta a si mesma e a ou-
tras com suas palavras, ressaltando a importância da independência feminina
para que elas tenham voz e não fiquem presas a relacionamentos abusivos, em
razão, por exemplo, de dependência financeira (MCCANNER, 2019).
A libertação apresentada pelo eu lírico também é evidente nos versos “Era
uma vez uma mulher de cabelos curtos/ Que não gostava definitivamente de
sapatinhos de cristal” (NOBRE, 2013, p. 36). Aqui também é desconstruída a
beleza da mulher que normalmente é vinculada aos cabelos longos e ao uso de
sapatos brilhantes. Os versos “Era uma vez uma mulher normal/ Gostava de
gengibirra, muita folia e suor/ E que ninguém queira apagar o seu belo e doce

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facho!” (NOBRE, 2013, p. 36) também reforçam essa quebra de padrão, trazen-
do uma mulher que se diverte, que sua e que tem seus desejos sexuais libertos.

“Soneto da minha rebelião”: um retrato da violência sexual


No poema “Soneto da minha rebelião”, observa-se a descrição do período
político e de suas campanhas eleitorais. Tem-se a retratação das falsas promes-
sas de campanha e a crítica em relação às “farras” que são feitas pelos candida-
tos na pré e pós-campanha, e muitas vezes com dinheiro público, aproveitan-
do-se de um sistema eleitoral que privilegia com grandes montantes de verbas
os partidos políticos mais corruptos.
Além da crítica política, nota-se no segundo verso, a retratação do estu-
pro, que, neste caso, pode ser relacionado ao rombo nos cofres públicos, em
virtude da corrupção que assola o Brasil, mas que também podemos relacionar
aos altos índices de estupros ocorridos no país, sobre os quais os governantes
não se atentam ao alarmante aumento ano a ano desses índices, não priorizan-
do o combate a esse crime nas políticas de segurança nacional:

SONETO DA MINHA REBELIÃO

Eu até gosto dos tempos da política


Outubro já rima com estupro
E quero despejar água podre e crítica
Em um bando de promessa falsa
Eu acredito é na farra deles
Numa trindade una e santa
“Rei, capitão e ladrão”
Espada na cinta, santinho na mão
E se você quer um poema
Mais belo e contente
Não me venha com explicações
Eu entendo tudo de fanfarrões
Não se venda pelo coeficiente
Vá é entender dos sonhos da sua gente
(NOBRE, 2013, p. 36)

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

O jornal Agência Brasil divulgou a pesquisa realizada pelo 13ª Anuário


Brasileiro de Segurança Pública (2019), que registrou recorde da violência sexual.
Foram 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018, maior índice desde que o estu-
do começou a ser feito, em 2007. A maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de
até 13 anos de idade. Conforme a estatística, apurada em microdados das secreta-
rias de Segurança Pública de todos os Estados e do Distrito Federal, quatro meninas
até essa idade são estupradas por hora no país. Ocorrem, em média, 180 estupros
por dia no Brasil – 4,1% acima do verificado em 2017 pelo Anuário.
Quando se discute estupro, tende-se a culpabilizar com frequência a vítima,
defendendo a lógica da biologia de que os homens são movidos por instinto em
busca de sexo – assim, a vítima sempre facilitaria, de alguma forma, a ação do
estuprador. Essa abertura aconteceria pela forma que a mulher estava vestida, pelo
seu estado de embriaguez ou por estar sozinha durante a noite. De toda maneira,
o crime sempre era responsabilidade da mulher, que muitas vezes, por vergonha ou
por temor de várias ameaças, deixou de denunciar o agressor. Nesse contexto, o
desejo sexual masculino nunca foi reprimido (RIBEIRO, 2018).
A partir dos anos de 1970, as feministas passaram a desafiar a reação da socie-
dade ao estupro e a introduzir a violência sexual motivada pelo poder. Brownmiller
(apud McCANNER, 2019) mostrou que, desde a pré-história, o homem reafirma o
domínio sobre a mulher através do estupro. Trata-se de um ato consciente, não pas-
sional, no qual reivindica seu poder sobre o corpo das mulheres. A autora defende
também que o sentimento de posse é dado ao homem pela discriminação social, que
coloca a mulher em condição de inferioridade e reforça o papel dominador do ho-
mem, que a vê como propriedade. O pior disso tudo é que o grupo de estupradores
não se limita aos maníacos, mas abrange homens considerados honrados (cristãos
e “cidadãos de bem”) que, além de mulheres adultas, estupram as crianças de seu
próprio lar.

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O estupro marital não existia na lei até o século XX. Um retrato dessa visão do-
minadora do homem aconteceu no século XVII, quando o juiz inglês, Sir Matthew
Hale, determinou que o estupro conjugal não poderia existir judicialmente. Ele de-
fendia que o casamento dava plenos poderes ao homem sobre o corpo da mulher,
e que ela ao se casar consentia o sexo pelo resto da vida com o marido. O estupro
matrimonial só se tornou crime no século XX, quando foi estabelecido pela ONU,
como uma violação de direitos humanos, em 1993. No entanto, apenas 52 dos 193
países integrantes da ONU o consideram crime, e grande parte desses países que
não acataram essa visão baseiam-se em discursos religiosos que são conduzidos por
homens, fazendo com que o direito da mulher seja extirpado (MCCANNER, 2019).
A partir de 2010, com a amplitude da quarta onda feminista, as manifesta-
ções públicas aumentaram em todo o mundo, lutando contra a visão condenatória
social sobre a vítima de estupro. Um dos movimentos mais importantes ocorreu em
2011, em Toronto, Canadá, com a Marcha das Vadias. O termo faz referência à
mulher que, quando violentada, era condenada por estar utilizando trajes de “va-
dia”, fazendo com que o “instinto sexual” masculino agisse. O movimento já chegou
à sétima edição e luta cada vez com mais veemência contra essa visão machista,
deixando clara a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo (MCCANNER,
2019).
No Brasil, atualmente, a militância feminista jovem luta pela causa através
das redes sociais. Djamila Ribeiro é uma dessas ativistas que lutam pela causa, atra-
vés de suas publicações em livros e por meio da Internet. A violência sexual, o assé-
dio no transporte público e as agressões psicológicas têm ganhado visibilidade na
sociedade, através das hashtags de denúncias e mobilizações. Esses movimentos que
se iniciam nas redes sociais, perpassam para manifestações de rua e ações judiciais,
incentivando as mulheres a lutarem por direitos básicos, como liberdade e respeito
(RIBEIRO, 2018).

“Minha linhagem” e a segregação profissional das mulheres

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

No poema “Minha linhagem” (NOBRE, 2013, p. 52), o eu lírico inicia com


a descrição de sua intromissão em lugares em que não é chamada. A partir daí,
podemos analisar os vários setores dos quais a mulher foi excluída e que, ao
longo do tempo, ela vem buscando o seu lugar. No âmbito profissional, muitos
setores ainda segregam as mulheres, que preferem homens para a ocupação
dos cargos, devido à tripla jornada feminina de atividades domésticas e fami-
liares. E, mesmo conquistando os cargos elevados, elas ainda recebem um sa-
lário menor que o dos homens, exercendo a mesma função – esses índices só
pioram, quando falamos de mulheres negras (MCCANNER, 2019). No último
verso do poema, observa-se, mais uma vez, a quebra dos padrões de feminili-
dade quando o eu lírico se autodescreve como uma mulher “mal comportada”:

MINHA LINHAGEM

Sou daquelas
Que mete o nariz
Onde não é chamada
Sou mulher para ser amada
Sou daquelas para quem
É tudo ou nada
Não aguento gente
Que é só fachada
Abrigo os sonhos
Em enseadas felizes
Faço revoadas
Com minhas cicatrizes
Sou de uma linhagem
Que não nega a jornada
E toda a minha linguagem
É de mulher mal comportada
(NOBRE, 2013, p. 52)

Um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)


e divulgado pelo jornal Agência Brasil, em 2019, mostra que as mulheres ganham
menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa. Mesmo

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com uma queda na desigualdade salarial entre 2012 e 2018, as trabalhadoras ga-
nham, em média, 20,5% menos que os homens no país. Esse dado ratifica a im-
portância da temática utilizada por Carla Nobre, pela luta por seu espaço e por
igualdade social.
Além da diferença salarial, as mulheres também estão vulneráveis ao julga-
mento masculino no ambiente de trabalho. Um dos grandes problemas relaciona-
dos ao mercado é o chefe que qualifica o trabalho de acordo com a idade, a beleza
e a ausência de filhos. O número de casos de assédio sexual e moral no trabalho é
alarmante. As mulheres precisaram ter muito jogo de cintura para se manterem nos
empregos por conta de chefes assediadores, onde o “não” da mulher pode significar
sua demissão. Elas apresentam um alto nível de tensão dentro e fora do ambiente
de trabalho, em virtude da forma como se vestem, onde muitas ainda se sentem
culpadas por acreditar que incitam o assédio contra si (MCCANNER, 2019).
O julgamento social voltado para a beleza e a forma com que elas se vestem
ainda é muito presente na contemporaneidade. Os homens continuam a dissemi-
nar o poder feminino de sedução e o quanto as mulheres o utilizam para conseguir
cargos e vantagens no trabalho (WOLF, 2018). Enquanto uma pesquisa de 2017 do
Datafolha, divulgada no jornal virtual A tarde, demonstra que os casos de assédio
sexual no Brasil ainda são uma preocupação para as mulheres, 42% das brasileiras
afirmaram já terem sofrido assédio no ambiente de trabalho.

O mito da beleza e a repressão sexual nos poemas “Fêmea” e “Can-


sei de ser sereia”

O poema “Fêmea” (NOBRE, 2013, p. 54) traz a visão social da mulher que
teve vários casamentos quando se utiliza do termo “mulher usada”, descre-
vendo a discriminação da sociedade que ainda remete aos séculos passados,
em que a mulher divorciada era subjugada como má esposa e/ou má mãe. No
entanto, a realidade é outra, pois grande parte das mulheres do século pas-
sado assumiu o papel de “mulher perfeita”, aceitando todas as condições de

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

tratamento, infidelidade e ausência física ou moral de seus maridos. Essa im-


posição social dava a elas a obrigação de cuidar da casa, dos filhos, do mari-
do e de estarem sempre disponíveis, amáveis e felizes com a chegada de seus
parceiros. Isso acontecia, principalmente, pela dependência financeira de seus
maridos que, ao tirá-las da casa dos pais, assumiam a responsabilidade total
sobre elas (WOLF, 2018). Com a universalização do movimento feminista, as
mulheres expuseram as suas insatisfações e lutaram pela liberdade financeira
que as mantinha presas ao casamento. Com isso, o número de divórcios vem
aumentando e a maioria dos pedidos de separação são solicitados por elas.

FÊMEA

Sou uma mulher usada


Passada de mão em mão
Tive 3 filhos 5 maridos intensas paixões
Trago em mim todos os nomes
Os medos as aflições as dores as maldições
E esse olhar forte de fêmea
Sou fêmea das ladeiras e periferias
Não uso unha de pelúcia
Não aguento fricote
Meu macho tem que ser alguém
Que ame coma dê lambida faça comidinha
E que não me boicote
Sou fêmea assumida
Nasci na floresta
Como farinha maniçoba e taperebá
(NOBRE, 2013, p. 54)

Os versos “Os medos as aflições as dores as maldições/ E esse olhar forte


de fêmea” (NOBRE, 2013, p. 54) remetem ao padrão de debilidade e delicadeza,
constituído ao longo do tempo para a contenção das mulheres; o exemplo de
perfeição vem sendo substituído pela realidade corporal da mulher e a aceita-
ção de sua força fora do padrão.

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O modelo social de beleza feminina muda muito ao longo do tempo. O


padrão que era imposto na Grécia antiga (500 a.C. a 300 a.C.) é muito diferente
do atual, logicamente. Antes, o belo se dava através de formas corpulentas,
hoje, essas formas são quase consideradas anomalias. Na atualidade, depen-
dendo do lugar, as formas variam entre o corpo escultural ou o extremamente
magro. No entanto, o padrão de beleza atual tem causado transtornos à vida
da mulher, que ao tentar se encaixar acaba recorrendo a uma alimentação não
saudável, através das dietas, ou submetem-se a cirurgias plásticas e a várias
outras formas prejudiciais à saúde para alcançarem o “modelo” de corpo físico
imposto atualmente (WOLF, 2018).
As mulheres jovens e adolescentes são vítimas desse mal, pois buscam
aceitação da sociedade e acabam recorrendo a remédios para emagrecer, ana-
bolizantes para crescimento muscular, procedimentos químicos no cabelo e no
corpo, em busca da forma “ideal”. A cada ano é constante o aumento do núme-
ro de jovens que sofrem de bulimia e anorexia, o que comprova os transtornos
causados pela imposição social de um corpo perfeito (WOLF, 2018).
Essa visão é colocada em xeque no poema de Carla Nobre, quando ques-
tiona o padrão social imposto à mulher “barbie” – o mito da beleza que estabe-
lece um modelo a ser seguido por mulheres perfeitas, aquela que precisa estar
sempre maquiada, de salto alto, com roupas justas e com o corpo magro:

Ser barbie tá fora de moda


E dentro de mim inteira
Um coração pulsa ligeiro
Minha vagina estala
E quando eu não quero nada
Vou dormir feliz também
Sou fêmea para dizer não
Sou fêmea para deitar de costas
Seja de sono ou de tesão
Trago em mim a TPM
E rezo pra tudo quanto é santo
Visto saia jeans fico nua

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

Sou fêmea para derrubar


Qualquer muro ou compromisso
E ainda que eu leve um tiro
Levo também comigo
A alegria de ter tentado
Meu coração sempre vai em paz e bem cuidado
(NOBRE, 2013, p. 55)

De acordo com Wolf (2018, p. 31), “o mito da beleza não tem absoluta-
mente nada a ver com as mulheres, ele gira em torno das instituições masculi-
nas e do poder institucional dos homens”. Diante de tal afirmação, a conclusão
que se tem é de que as mulheres continuam seguindo os padrões estabelecidos
pela sociedade patriarcal e tentam ao máximo encaixar-se nele, mesmo diante
da evolução do movimento feminista. Esse padrão inalcançável, estabelecido
por eles, acaba trazendo vários transtornos à vida da mulher, que, por sua vez,
acaba recorrendo a cirurgias plásticas e a dietas doentias. O Brasil está em se-
gundo lugar no ranking dos países que registram o maior número de cirurgias
plásticas no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. O número de ci-
rurgias cresce a cada ano, mesmo diante de crises econômicas atuais. Naomi Wolf
(2018, p. 26) ratifica essa realidade quando diz que seguimos numa condição pior
que a das mulheres das décadas anteriores, quando se fala em padrão de beleza:

Mesmo assim, em termos de como nos sentimos do ponto de vista físico,

podemos realmente estar em pior posição do que nossas avós não libera-

das. Pesquisas recentes revelam com consistência que, no mundo ocidental,

entre a maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e

equilibradas, existe uma “subvida” secreta que envenena nossa liberdade: im-

pregnada de conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas,

obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle.

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Outro ponto muito relevante do poema diz respeito ao consentimento à


relação sexual. No trecho “Sou fêmea para dizer não” (NOBRE, 2013, p. 55), o
eu lírico apresenta um dos grandes problemas nas relações afetivas: o respei-
to à mulher e à sua vontade. Grande parte dos homens vê as mulheres como
posse, e usa a premissa de que a satisfação sexual dele é obrigação feminina,
mesmo que contra a sua vontade, o que caracteriza o estupro. No trecho “Visto
saia jeans fico nua”, observa-se a liberdade de escolha da vestimenta feminina,
o que ainda é motivo de retaliação da sociedade atual.
No poema “Cansei de ser sereia” (Nobre, 2013, p. 56-59), o eu lírico refor-
ça a fuga ao padrão social do corpo esbelto com intervenções cirúrgicas. Os
versos “Meu peito é mole, sim” e “Minha bunda é caída” reforçam a busca pela
aceitação social para além dos padrões de beleza, onde a mulher se orgulha do
que é e do que faz, desvinculando-se da imposição de um modelo físico para si
(de fora para dentro).
Na passagem “Minha vontade/ Bole no mundo”, destaca-se a liberdade se-
xual conquistada pela mulher, que durante séculos foi alvo de severa repressão,
por conta, principalmente, da religiosidade que ligava o sexo ao pecado. Por
esse motivo, a sexualidade da mulher era realizada apenas para fins de procria-
ção. O mesmo não se aplicava aos homens, que satisfaziam seus desejos com
outras mulheres, o que não era condenado socialmente (MCCANNER, 2019).
Os versos “Plena de desejo/ Não tenho medo de olhar,/ De arranhar, de gri-
tar...” demonstram a condição do desejo feminino na atualidade, em que a mu-
lher vem conquistando sua liberdade em todos os âmbitos. Sua sexualidade,
embora ainda muito reprimida, ganhou uma visão positiva, onde já é possível
falar em satisfação sexual sem a condenação pecaminosa:

CANSEI DE SER SEREIA

Meu peito é mole, sim


Minha boca é carnuda

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

E eu gosto
Meu jogo é aberto
E eu posso
Minha vontade
Bole no mundo
Não sou de esconder as estrias
Não tenho medo da celulite
Eu sou Fada
Dama da noite
Afrodite
Não me venha com papo furado
De tia ou madrinha
Minha bunda é caída,
Sim, senhor!
E não é por isso que eu vou
Tapar o sol com a peneira
O que eu não tolero
É asneira
Eu sou uma mulher inteira
Plena de desejo
Não tenho medo de olhar,
De arranhar, de gritar...
Só não me venha
com modelos
Que eu não sou de apelar
Eu ando no mundo
Com o salto
que eu quiser
Eu me jogo do trampolim
me atiro sem para quedas
fumo
tomo gim
Se for preciso
mando até a merda
Cansei de ser sereia
Viúva negra
Bela adormecida
Chapeuzinho vermelho
Com medo do lobo
Eu? Medo?
Eu quero é comer o lobo!!!!
Principalmente se ele for mau

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Lindo
E beijar devagar
E gostoso...
Eu quero é ser
Aranha caranguejeira
Quero ser de ostentar
Quero ser Mulher
Pronta para arrasar
(NOBRE, 2013, p. 56-59)

Os versos “Só não me venha/ com modelos” (NOBRE, 2013, p. 56-59) re-
forçam o padrão estético da atualidade, em que as mulheres fazem loucuras
para emagrecer e alcançar a “beleza” das modelos magérrimas das capas de re-
vistas. Wolf (2018, p. 28) afirma que “o peso das modelos despencou para 23%
abaixo do peso das mulheres normais, a incidência de transtornos alimentares
aumentou exponencialmente e foi promovida uma neurose em massa”. Tal
neurose é uma das formas de controle da mulher, o que antes era feito através
do casamento, controle de natalidade e situação financeira.
Nos versos “Cansei de ser sereia/ Viúva negra/ Bela adormecida/
Chapeuzinho vermelho/ Com medo do lobo” (NOBRE, 2013, p. 56-59), aten-
ta-se ao padrão feminino criado pelos contos de fadas. Nesse contexto, Wolf
(2018, p. 94) afirma que a “cultura estereotipa as mulheres para que se ade-
quem ao mito, nivelando o que é feminino em beleza-sem inteligência ou in-
teligência sem beleza”. Ou seja, as mulheres devem escolher entre uma mente
ou um corpo desenvolvido, os dois não. Segundo a cultura masculina, uma
mulher que demonstre personalidade não é desejável, pois o padrão masculino
e seu horizonte de expectativa requerem a presença de mulheres ingênuas. A
mulher passa a ser, assim, um objeto estético para contemplação. Estés (2018)
ratifica a visão de Wolf quando afirma que nos esforçamos demais para conter
os impulsos e as contrações da criatura selvagem e para nos adequarmos ao
padrão de damas educadas, recatadas, contidas e reprimidas.

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

A carga de trabalho das mulheres e a manutenção do status da beleza


no poema “Para minhas filhas”
Em “Para minhas filhas”, temos o reflexo da realidade feminina, com as
atividades domésticas como serviço vinculado à sua realidade social, pois, mes-
mo que a mulher, na atualidade, trabalhe fora, essas atividades são de sua ex-
clusividade, ou pelo menos a maioria do trabalho. Nos versos “não quero para
as minhas filhas/ a herança que herdei/ casa, comida, mobília” (NOBRE, 2013,
p. 62-63), observa-se essa realidade das mulheres sobrecarregas com excesso
de trabalho. Assim, a realidade profissional delas mudou, mas a doméstica não.
Wolf (2018, p. 44) ratifica essa visão ao dizer que, “embora uma mulher tenha
o emprego remunerado em horário integral, ela ainda faz todo ou quase todo
o trabalho não remunerado que antes fazia”. Desse modo, a mulher tem mais
tarefas, menos lazer e menos credibilidade profissional:

PARA MINHAS FILHAS

Não quero para minhas filhas


a herança que herdei:
casa, comida, mobília
cabelos em rabo de cavalo
e histerias
Quero que minhas filhas
Tenham o direito de serem livres
Tenham o direito de serem felizes
E se for preciso eu chamo todas as forças
Chamo a caridade da minha sogra Maria
A fome vencida pela minha vó Adelaide
Eu chamo a força das minhas ancestrais
Iemanjá, Maria de Nazaré, Zilda
E tudo o que arde dentro do nosso peito
Chamo os tambores das mães e seus terreiros
A força das flores em nossos canteiros
Para os sonhos das minhas filhas
Essa beleza que se inicia
Eu não abro mão da rebeldia
E defendo:

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Não dá para ficar calada


Não dá para fingir que não viu
E não é porque tenho pavio curto
Não é porque eu sou mal amada
Meninas, somos todas humanas!
Olhos, nariz
Boca e gana
Quero que minhas filhas
Tenham o melhor dom:
Somos todas porta-vozes
Sem medo
Sem receio
Quero que minhas filhas
Não fiquem no maldito meio termo
Usem todos os seus sentidos
E sejam rainhas dos seus desejos.
(NOBRE, 2013, p. 62-63)

As donas de casa de décadas passadas viviam isoladas, inseguras e entedia-


das, passando boa parte do seu tempo buscando produtos domésticos e cos-
méticos que mantivessem sua visão de mulher/mãe organizada e produzida
para a chegada do marido após a jornada de trabalho. Com a saída dessa mu-
lher para o mercado, a indústria da beleza e os anunciantes precisaram de uma
nova forma para manter os interesses da mulher no consumo de seus produ-
tos. Wolf (2018) afirma que foi a partir de então que se criou a visão da mulher
“heroína” – aquela que tem filhos, trabalha fora, cuida dos afazeres domésticos
e está sempre linda. Essa mulher nunca envelhece, tem sempre uma fórmula
para aquelas que “gostam” de cuidar de si. Junto a isso, houve a caricatura das
mulheres de sucesso, bem como das líderes do movimento feminista, que eram
vistas como feias, mal-amadas, mães relapsas, quando as revistas para mulhe-
res começaram a propagar a visão da “mulher perfeita”, que é seguida até os
dias atuais.
Mas, por que as mulheres se importam com o que dizem as revistas fe-
mininas? Para Wolf (2018), essas revistas representam a cultura de massa, as

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

mulheres encontram incentivo ao seu desenvolvimento, tanto educacional


quanto estético. Esse tipo de incentivo não é normalmente encontrado pela
sociedade em geral, que condena grande parte dos atos das mulheres, mesmo
que elas ajam conforme o figurino. Para desenvolver a confiança nas leitoras,
essas revistas passaram a oferecer muito mais do que a seção destinada à be-
leza; a revista passou a fornecer “serviços reais, informa números telefônicos
para a ajuda de emergência, apresentam pesquisas entre as leitoras, dão às
mulheres ferramentas para preparar orçamentos e informações financeiras”
(WOLF, 2018, p. 114).
O status da beleza isola as mulheres, que são treinadas desde a infância para
serem rivais. As mulheres aproximam-se pelo laço afetivo, mas não deixam de cri-
ticar umas às outras por sua aparência e beleza. Enquanto os homens são ligados
sem hostilidade, em sua maioria, por seus pensamentos comuns, como as páginas
de futebol estampadas nas capas de jornais, interesses financeiros, dentre outros,
as mulheres disputam entre si, julgando e discriminando a outra pela maquiagem,
tônus muscular ou sapatos, por acreditarem estar sempre em disputa uma com as
outras (WOLF, 2018).
Da revista, a visão da mulher sempre bela, passou a ocupar o espaço da te-
levisão e da internet. Além dos programas tradicionais de TV, que normalmente
têm uma mulher lindíssima como apresentadora e outras igualmente belas como
repórteres, temos na atualidade os reality shows, que contam em seu elenco, em sua
grande maioria, com mulheres malhadas, maquiadas, cheias de intervenções cirúr-
gicas no corpo, procedimentos que vêm se tornando o sonho da massa feminina. A
beleza padrão também é realidade nas exibições cinematográficas, em que as atri-
zes refletem um padrão quase que inalcançável para a maioria as mulheres, e o pior
é que quando essas atrizes envelhecem, se tornam alvo de críticas ferozes, fazendo
com que não exista empatia em matéria de beleza (WOLF, 2018).

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A indústria pornográfica vem contribuindo com o novo modelo padrão de be-


leza das mulheres, com tônus muscular perfeito e cheias de cirurgias plásticas. O fa-
turamento da indústria pornográfica é superior ao da cinematográfica tradicional
(WOLF, 2018). Além disso, a submissão e a agressão, visando à satisfação sexual
apenas dos homens, compõem a maioria dos vídeos, o que deixa claro o padrão
de mulher que os homens desejam manter com toda a sua força, o que contesta o
verso de Carla Nobre, ao dizer que gostaria que suas filhas “sejam rainhas dos seus
desejos” (NOBRE, 2013, p. 62-63).

“Elegia para a tua beleza” e a condenação da mãe solo


Finalizando a análise da obra de Carla Nobre, seguimos com o poema
“Elegia para a tua beleza” (NOBRE, 2013, p. 83), que foi uma homenagem para
Joana D’arc dos Santos Alfaia. O eu lírico se despede de Joana, que partiu ines-
peradamente, e exalta a garra e a força dessa mulher que se formou e criou três
filhos com toda a determinação. Um dos pontos mais importantes dessa obra
é justamente o verso que cita a criação dos filhos: “Pariu três filhos e deu o seu
jeito”, num país em que, de acordo com dados do IBGE, divulgados no site do
jornal O Estado de São Paulo (2017), 57,3 milhões de lares são chefiados por mu-
lheres, isto é, 38,7% das casas. Apesar de ser uma situação comum, ser uma “mãe
solo” é um grande desafio. Ainda por cima 5,5 milhões não têm o nome do pai no
registro de nascimento:

ELEGIA PARA TUA BELEZA

Não há certezas na vida


Também não há final na morte
Uma despedida é sempre uma oportunidade
De vencer os medos e a vaidade
Sua partida inesperada
Ainda arranca gotas de lágrimas
De sangue, de saudade, de perdão
Gotas do abraço perdido na tarde de sábado e solidão

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

É impossível preparar bem uma partida


Você bem que tentou com seu planejamento:
Deixou sorriso, costelinha de porco
Altar com flores, sapato alto e batom
Não adiantou!
Mas você também deixou no seu caminho
As gotas de sua delicadeza, o seu brilho
As gotas de sua coragem, a sua intensidade
O exagero no tom certo que você criou...
Gotas de sangue para olhar a vida
Com toda a liberdade e em seus vários lados
Sem nenhuma pretensão de escolher o melhor
Apenas seguindo o que manda o coração
Você deixou com a gente
Gotas de bondade e alegria
As gotas da beleza que desafia
A morte, a maldade, o desamor...
Você foi e deixou sua audácia
Foi no Japão e tocou o solo sagrado
Pariu três filhos e deu o seu jeito
Se formou, defendeu e dançou feliz
Você foi onde a morte não apaga a força feminina
Então leva contigo Joana, mulher e menina,
As gotas da nossa eterna lembrança e cura
Qualquer ferida com as gotas delicadas da esperança
(NOBRE, 2013, p. 83)

A crítica social em relação à mãe que cria seu filho sozinha é severa. Por
isso, muitos movimentos vêm tentando mudar a nomenclatura de “mãe soltei-
ra” para “mãe solo” com o objetivo de mudar a forma como são vistas pela so-
ciedade. As mulheres reivindicam respeito, mostrando a cada dia seu profissio-
nalismo, seu cuidado com os filhos, sua capacidade na criação dos mesmos e a
manutenção dos lares, sozinhas. Apesar de elas suprirem todas as necessidades
de sua casa, desdobrando-se em várias jornadas, o sentimento de culpa é uma
realidade, pois ainda há quem encontre defeitos nessa conduta, considerando
que isso não é suficiente, ou que falta tempo para várias das tarefas e compor-
tamentos sociais “padrões” que são disseminados por julgamentos alheios. Elas

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ainda se cobram pela falta de atenção, carinho e acompanhamento do pai, que


em muitos casos, após o nascimento dos filhos ou a separação do casal, deixam
os filhos de lado e correm atrás de seus objetivos pessoais, direcionando toda
a responsabilidade para a mãe. Essa cobrança e esse esforço para suprir todas
as necessidades físicas e psicológicas dos filhos deixam a maioria das mães em
estado de exaustão, mas que não pode ser externado, sob pena de julgamento
e condenação social por não se acharem no direito de individualidade após a
maternidade.
O verso “Você foi onde a morte não apaga a força feminina” (NOBRE, 2013,
p. 83) representa a luta dessas mulheres por seus espaços. Quantas morreram
por dignidade e igualdade? Quantas são vitimadas todos os dias, enquanto
apenas buscam liberdade de ir, vir e permanecer? Quantas são mortas por seus
maridos e ex-maridos por terminarem o relacionamento? A luta cotidiana é
árdua e se faz cada vez mais necessária. Vivemos em tempos de retrocesso,
onde os direitos fundamentais estão sendo colocados à prova, após décadas de
tanto labor. O incentivo à rivalidade precisa ser abolido e as mulheres precisam
acreditar que, na realidade, elas são a segurança umas das outras, o que já ocor-
re em alguma escala, quando há risco eminente de violência sexual, ou seja,
quando ameaçadas por algum estranho se aproximando de forma suspeita,
elas sempre buscam outra mulher para se sentirem seguras. É necessário que
entendam definitivamente que aqui não estamos em competição para a beleza
ou para a perfeição, mas cada mulher busca seu espaço na sociedade com suas
individualidades, que devem ser valorizadas.
E individualmente, o que devemos buscar? O que tivermos vontade.
Vamos cativar a tolerância e a admiração pela escolha das outras mulheres,
como fez o eu lírico de “Elegia para tua beleza” na homenagem à sua amiga.
Vamos escolher nossas próprias causas, sem a influência da necessidade em
agradar os homens que já são tão favorecidos. Vamos enaltecer o trabalho das

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X. Representações feministas na obra Exageros e Delicadezas, de Carla Nobre

mulheres através de pesquisas que exaltem o seu trabalho. Busquemos a igual-


dade e apreciemos em outras mulheres as conquistas, que são de todas nós.

Referências
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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

XI. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”:


a palavra poética entre personagens e
identidades no Beiral, de Zeca Preto
Sheila Praxedes Pereira Campos

Para início de conversa...

donde virá tanta energia tanta garra

serão as brisas do Rio Branco sei lá

(Xikinha, Zeca Preto em Beiral)

José Maria de Souza Garcia (1950), conhecido como Zeca Preto, é um


poeta, cantor e compositor paraense, radicado em Roraima, autor da canção
“Roraimeira”, que dá nome ao movimento cultural que liderou juntamente
com Eliakin Rufino e Neuber Uchôa, iniciado em 1984 em Boa Vista, e que
“buscou discutir o problema da identidade cultural roraimense através da
produção de uma arte referenciada pelos elementos da vida e paisagem local”
(OLIVEIRA; WANKLER; SOUZA, 2009, p. 28).
Neste texto, é sublinhado o esforço do poeta Zeca Preto, cuja labuta escri-
turística se deu na perspectiva de dotar a figura de cinco personagens do Beiral
de características suficientemente singulares, num instante em que a consolidação
identitária tornara-se um alvo interessante no cenário da arte roraimense. Ao es-
crever o Beiral, coletânea de poemas publicada em 1987, durante o Movimento
Roraimeira, Zeca Preto pautou-se claramente nas ligações entre o lugar (o Beiral
como bairro) e as pessoas que nele viviam ou passavam, conferindo vigor e identi-
dade aos seus personagens.
Beiral é um bairro central em Boa Vista, capital de Roraima, localizado às
margens do Rio Branco, também chamado de Caetano Filho e atualmente, em

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obra de revitalização pela Prefeitura com vistas a integrá-lo à Orla Taumanan,


complexo turístico que fará parte do chamado Parque do Rio Branco. Os mo-
radores foram registrados no Programa Minha Casa Minha Vida e transferidos
para outros bairros, como o Laura Moreira, construído para receber os mora-
dores do antigo Beiral.
Já na década de 80, o poeta tinha consciência das mudanças que ocorriam
no universo do “bairro”, a partir de todas as transformações, como a vinda de
índios e imigrantes de outros Estados para a capital Boa Vista e sua instalação
em lugares, como o Beiral (talvez pela localização ribeirinha e central). Pode-
se afirmar que emanou disso o comportamento do poeta com guardião desse
lugar, indo além do registro documental, ao recriar literariamente o modo de
vida desse universo.
Como se estivesse com uma câmera fotográfica e fosse dando flashes do
universo da população ribeirinha do Beiral, essa recriação está guiada por uma
concepção mimética de arte. Por outro lado, na medida em que recria os elemen-
tos desse universo, procedimento responsável pelo não congelamento da cultura,
mas que pela sua dinâmica, distancia-se de certa forma de uma possível postura
imobilizadora.
Nesse processo de recriação do universo do Beiral, o fio condutor de sua ela-
boração literária é a escolha de personagens representativos do bairro em recortes
descritivos de situações ou práticas que remetem à identidade e refletem tipos (o
pescador, o balseiro, a macuxi ribeirinha, o “colono” desbravador, a prostituta), sím-
bolos da autenticidade do lugar. Trata-se, na verdade, da história do Beiral escrita
de forma literária, por meio de personagens heroicizantes, que se pretende legada
para o futuro.

O Beiral como lugar de identidade(s)


Por integrar um movimento que buscava basicamente glorificar a plurali-
dade cultural que caracteriza Roraima, não há como tratar da obra Beiral sem

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

abordar alguns conceitos imprescindíveis às atuais discussões que envolvem as cha-


madas “literaturas regionais”, como cultura, identidade e diferença.
Discutir esses fatores constituintes das identidades culturais tem sido uma prá-
tica crescente na atualidade ao se pensar que os indivíduos necessitam de elementos
que os situem num contexto social, conferindo sentido às suas existências e aos pa-
péis desempenhados enquanto sujeitos. Sob este ponto de vista, a identidade em si,

é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos incons-

cientes, e não algo nato, existe na consciência no momento do nascimento.

Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre a unidade. Ela perma-

nece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’

(HALL, 2006, p. 38).

As identidades, como mostra Hall, estão em constante processo de forma-


ção, a depender dos fatores sociais que agem sobre os indivíduos. Daí a con-
cepção do termo identificação, uma vez que, à medida que as interpelações
dos sistemas culturais se apresentam, as pessoas se identificam de acordo com
cada circunstância. Os processos que desencadeiam as identificações são múl-
tiplos e por isso geram uma dinâmica favorável à não fixação permanente das
identidades, em um processo denominado por Gumbrecht (1999, p. 121) de
nomadismo, isto é, a “identidade em movimento”.
Aqui neste texto, as palavras identidade e identificações são usadas em
termos de profunda relação dialética/dialógica, partindo do princípio de que
uma identidade se constrói a partir das identificações de um grupo com de-
terminados valores. Nessa esteira de pensamento, é importante lembrar que o
sentido dessas palavras é múltiplo em autores diferentes, como Cuche (2002) e
Hall (2006), entre outros.
Forçando uma acepção mais concreta, a identidade pode ser entendida
como passível de permitir múltiplas identificações dinâmicas e mutáveis. Por

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sua vez, o conceito de identificação aponta para valores, características e práti-


cas culturais com as quais determinados grupos sociais se identificam, funcio-
nando como “afirmação ou como imposição de identidade” (CUCHE, 2002, p.
183). De certa forma, é o que acontece com os personagens que transitavam no
Beiral e que hoje, como uma comunidade em vias de extinção, ainda é possível
de se observar nos que ainda resistem e insistem em continuar no local.
Ainda, ao tratar as culturas como algo elaborado e imaginado dentro de
determinadas comunidades (segundo acepção de Benedict Anderson, 1989),
percebe-se que não poderia falar em uma identidade local, mas sim em iden-
tificações que permitem a coesão de um grupo, entendendo, com Cuche que

A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que

determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas repre-

sentações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é

uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais

(CUCHE, 2002, p. 182).

O autor assegura ainda que “não há identidade em si, nem mesmo uni-
camente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja,
identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética. A iden-
tificação acompanha a diferenciação” (2002, p. 183). Entende-se, assim, que
afirmar a identidade e marcar a diferença envolvem operações de exclusão e
inclusão, exigindo, para tanto, complexas relações interacionais, seja entre
pessoas ou entre personagens.
Esse fator relacional faz referência ao próprio caráter adaptativo da cul-
tura e da natureza humana, numa espécie de “processo de automoldagem”, no
dizer de Eagleton, que defende a ideia de que, “Se somos culturais, também
somos parte da natureza que trabalhamos. Com efeito, faz parte do que carac-
teriza a palavra ‘natureza’ o lembrar-nos da continuidade entre nós mesmos e

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

nosso ambiente, assim como a palavra ‘cultura’ serve para realçar a diferença”
(2005, p. 15).
Em outras palavras, a identidade é mediada pelo contexto, a partir dos
grupos aos quais o sujeito pertence. Assim, ao mesmo tempo em que ele tran-
sita por uma coletividade que lhe é externa, constitui-se como sujeito ao se tor-
nar parte dessa coletividade. É importante destacar que, embora esse processo
de construção social da subjetividade não envolva possibilidades de escolha,
isso não significa o engessamento do indivíduo ao seu meio. Ao contrário, é
nesse contexto de interdependência com os demais que surge a diferença.
Dessa forma, os moradores do Beiral agem sobre o local onde vivem, ade-
quando-o às suas necessidades, ao mesmo tempo em que o local exige certa
passividade desses habitantes ao moldá-los “à força”, como bem descrito por
Simeão e pelos outros personagens, como veremos a seguir.

O Beiral como lugar de personagens


Feitas as digressões teóricas iniciais, necessárias para o estabelecimento de
limites da conversa aqui entabulada, compreende-se melhor a natureza dialó-
gica da linguagem poética circunscrita em Beiral, envolvendo quem fala numa
perspectiva também social. Essa linguagem criada pelo poeta é retirada da própria
existência, ou seja, a palavra de “todos os dias” – a palavra poética, sendo esta “a
revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na realidade, se no-
meia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele mesmo e o outro” (PAZ,
1982, p. 217).
Estas considerações remetem aos conceitos de Identidade e Diferença, ao pen-
sar que a palavra poética também é constituída em seus aspectos pessoal, social e
histórico, tendo em vista o constante diálogo do Eu e do Outro dentro do poema.
Mais que isso, é preciso atentar para o projeto que envolvia a tentativa de constru-
ção de uma identidade para Roraima, pelos membros do Roraimeira, como bem
assinala o professor Roberto Mibielli, nos estudos por ele empreendidos sobre isso

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(2014) e que apontam as estratégias de composição de imagem identitária litero-


-musical para o Estado, e que partem inicialmente de certa filiação ao imaginário
sobre a Amazônia, como faz perceber:

É interessante ressaltar que em casos fronteiriços, como soe ser o da lite-

ratura de/em Roraima, este modelo de alusão intertextual também serviria

como uma marca de pertença, uma vez que é nessas periferias que o tecido

do imaginário, que sustenta a ideia de nação, começa por desfiar. Ao decla-

rar-se membro de uma dada tradição, o autor periférico não apenas atestaria

a filiação de sua produção, mas e também reafirmaria a sua pertença a este

tecido imaginário (MIBIELLI, 2017, p. 89).

Com base nessas perspectivas, observa-se que o “tecido do imaginário” (e


exotismo em medida, por que não?), as confluências de culturas, o “multicul-
turalismo” por assim dizer, e a vinculação do local e do global encontram-se
evidentes na obra Beiral, na qual Zeca Preto apresenta uma poesia em que a diver-
sidade cultural manifesta-se a partir de uma identidade (o Beiral), perpassada por
muitas outras identidades (os habitantes do Beiral), em um mundo cujas fronteiras
se encontram em constante processo de deslocamento e flexibilização.
Por outro lado, essa reflexão sobre a literatura e a cultura regional, realizada
por escritores e intelectuais, pode implicar na criação de mitos e símbolos aos pro-
palarem discursos “retificadores” da imagem da região. Neste caso, pensar a pro-
dução artístico-literária de uma região como Roraima, por exemplo, é arriscar-se
a enfrentar diversas e múltiplas dificuldades, entre elas o caráter fluido do conceito
de região, que traduz a impossibilidade de estabelecer uma definição com base em
recortes ou dados geográficos.
Por assumir também papel ou função político-social, a própria tentativa
em conceituar região já implica em acionar toda a carga cultural, imaginária e

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

ideológica implícita na disputa por conceituação ou demarcação. E isso envolve os


diversos discursos regionalistas e identitários, literários ou não...
Refletindo sobre os aspectos culturais da literatura produzida na América
Latina, Ángel Rama afirma que a “literatura produz um discurso sobre o mundo,
porém esse discurso não passa a integrar o mundo, mas a cultura da sociedade, tor-
nando-se parte da vasta malha simbólica mediante a qual os homens conhecem e
operam o mundo” (2008, p. 121). Esse discurso, elaborado a partir de fundamentos
ideológicos, designam a cosmovisão, propagadora de novos princípios simbólicos
e, ao mesmo tempo, originária de discursos anteriores. Por se ver representado no
“imaginário social”, resulta em contradições que evidenciam a correlação existente
entre o discurso literário e outros discursos paralelos, pertencentes ao campo sim-
bólico da cultura.
Essa reflexão do crítico uruguaio nos leva em direção às postulações elaboradas
pelo professor José Luís Jobim (2008), ao apontar a ‘cor local’ como integrante do
processo de elaboração da nacionalidade, especialmente a americana, baseando-se,
para tanto, em uma dimensão espacial e uma dimensão política, isto é, em um
território e um Estado-nação, respectivamente. Entre diversas outras ações citadas
pelo autor para esse processo, ele aponta a elaboração de um “sistema de referências
da nacionalidade – incluindo determinado universo de temas, interesses, termos,
etc., tanto estabelecendo-se um limite dentro do qual o campo de enunciação literá-
ria circunscrevia quanto recriando-se o passado sob uma nova ótica” (2008, p. 97).
O regionalismo, nesse contexto, constitui-se numa tendência representativa da
literatura brasileira, voltado para uma cor local, o que, em determinados momen-
tos, foi expresso até com excessos. Trouxe, mesmo assim, do espaço representado,
uma constante, o lugar de sua enunciação, um lugar “sempre fonte de pré-con-
cepções que, de alguma maneira, contribuem para a elaboração do nosso dizer,
pois nele se situa o sistema de referências desse dizer [...], sistema que sempre já

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estabelece um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se circunscreve”


(JOBIM, 2005, p. 42).
Forjado no calor das discussões em torno da arte roraimense e sua con-
solidação identitária, em âmbito local e nacional, Beiral, de Zeca Preto, revela
uma intenção de alcançar a totalidade de um determinado espaço, de reunir
pessoas/personagens circunscritas nas configurações de uma região ribeirinha
da capital Boa Vista. Para tanto, apresenta uma poesia que reflete a inquietação
do poeta em cantar esse universo.
Para tratar desse lugar descrito pelo poeta é preciso primeiramente enten-
der o que é “lugar” em suas correlações com os discursos literários e culturais.
Cooperando com esta conversa ainda tratando do lugar, Jobim (2006) esclarece
que

Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada por várias gera-

ções de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram, e que

ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é constituído por redes públicas

de sentido, formadoras de subjetividade. Nele se constituem interpretações

públicas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e

sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que

de algum modo impõem sentido às experiências singulares dos sujeitos, ele-

mentos em relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e

os textos que lêem), bem como direcionam suas ações.

Assim, ponto de convergência de muitas culturas, o poeta mostra o Beiral


como um espaço transitado repleto de idealismo, com um lirismo que se torna
acentuado pela presença humana, transformada em personagens capazes de
representar esse espaço. O movimento e a forma dos textos que compõem a
obra são definidos pela linguagem metafórica (em certos momentos também
denotativa), pelos versos livres e pelo ritmo dos poemas.

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

Tendo o Rio Branco (e suas margens) como elemento norteador e ponto


de encontro de culturas e identidades, há no canto do poeta a referência explí-
cita a cinco personagens que se destacam no conjunto da obra (composta de
59 poemas), por trazerem nomes próprios como títulos. É claro que o próprio
bairro Beiral configura-se como personagem maior.
Segundo Cândida Gancho (2002, p. 14), “os personagens se definem no
enredo pelo que fazem ou dizem, e pelo julgamento que fazem dele o narrador
e os outros personagens”. No caso do Beiral, o lugar (também personagem) é
responsável por essa definição, “determinando” as identidades dos persona-
gens, ao mesmo tempo em que eles também constroem a identidade do lugar.
Por sua vez, Beth Brait (2002, p. 31) adianta que

não cabe à narrativa poética reproduzir o que existe, mas compor as suas

possibilidades. Assim sendo, parece razoável estender essas concepções ao

conceito de personagem: ente composto pelo poeta a partir de uma seleção

do que a realidade lhe oferece, cuja natureza e unidade só podem ser conse-

guidas a partir dos recursos utilizados para a criação.

Acerca do personagem como ente composto, é interessante destacar aqui


o posicionamento de Gancho, para quem, “Por mais real que pareça, o per-
sonagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados
personagens são baseados em pessoas reais” (2002, p. 14). Ao tratar especifica-
mente de personagens, a autora propõe uma classificação básica, baseada no
papel desempenhado e na caracterização.
Conforme essa proposta, segundo o papel desempenhado, é possível
classificar o lugar Beiral como sendo o grande protagonista, enquanto os per-
sonagens que transitam por ele, segundo seus caracteres, embora também
protagonistas desse universo, podem ser apontados como tipos, por serem re-
conhecidos por suas características típicas e invariáveis, moldadas pela relação

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de cada um com o lugar. Esse lugar é repleto de material capaz de ser trans-
formado em ficção pelo poeta, embora este revele a intenção de construir um
retrato que se pretende fiel, e aqui vale lembrar Costa Lima, para quem “uma
teoria da ficção não pode ser empreendida sem se levar em conta as relações
do produto ficcional com a realidade que transforma” (LIMA, 1989, p. 130).
Realidade transformada em produto ficcional e vice-versa, é assim que o
poeta elabora cada um dos seus personagens, como veremos a seguir.

GENÉSIO

Símbolo do pescador natural


palmo a palmo de rios igarapés
lagos matas e serras conhece
sua tarrafa cai
como o giro da saia rodada
da negra baiana
de seu espinhel
a cada correção
flutuam dourados e filhotes
cicerone amazônico
autêntico valor tropical
(PRETO, 1987, p. 20)

No poema intitulado Genésio, o sujeito lírico o apresenta com “símbolo do


pescador natural”, conhecedor profundo da região (“palmo a palmo de rios igarapés
/ lagos matas e serras conhece”) e, por isso, servindo como “cicerone amazônico”.
Por representar uma das principais ocupações do homem ribeirinho, o poeta o defi-
ne como “autêntico valor tropical”.

CHICO RIBEIRO

Rio branco
sem ponte concreto
e faróis
travessia com balsa
balseiro

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

travessando esperanças
ilusões, mercadorias
homem da navegação
nossa ponte
nosso bálsamo
(PRETO, 1987, p. 23)

Já o poema Chico Ribeiro apresenta o balseiro, o “homem da navegação”, res-


ponsável por realizar a travessia de “esperanças / ilusões, mercadorias”. Nota-se,
nos seguintes versos, que há uma crítica do poeta à modernização: “Rio branco /
sem ponte concreto / e faróis”. Entretanto, o trabalho do balseiro não sofre ameaça,
considerado pelo sujeito da enunciação “nossa ponte / nosso bálsamo”.

XIKINHA

Qual será o feitiço de tua saúde


que durante
todo esse tempo
vigora como fosse uma fonte de vida
em ti ainda restam traços de uma beleza pura
a firmeza em tuas pernas
a clareza em teu falar
donde virá tanta energia tanta garra
serão as brisas do rio branco sei lá
talvez o vento forte que sopra teu corpo
e assanham teus cabelos como redemoinhos
minha pescadora sensível da beira do rio
teu perfil macuxi transmite a essência
da pureza de uma bela e forte mulher
e subirás ainda que tua bengala
milhões de vezes este barranco
mulher
(PRETO, 1987, p. 24)

Por sua vez, Xikinha é a macuxi ribeirinha, cuja saúde “vigora como fosse
uma fonte de vida”. O poema aponta para a nítida descrição feita pelo eu lírico dos
traços caracterizadores dessa mulher “pescadora sensível da beira do rio”, de beleza

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pura, pernas firmes, falar claro, com energia e garra, cujo “perfil macuxi transmite a
essência / da pureza de uma bela e forte mulher”. O poeta suspeita que a fonte disso
seja “as brisas do rio branco” ou o “vento forte”. Seja como for, ele tem a certeza que
mesmo na velhice (“tua bengala”), ela ainda será capaz de subir o barranco.

MARIA

Tudo acontece de repente


Maria da saudade Maria da paixão
que anda por aí em forma de canção
viajante das modinhas dos corações
e a vontade de ver-te novamente
é querer outra vez este amor desalmado
esse aroma da tua beleza fútil
esse amor aventureiro
sei que vai ser preciso
cantar pular amarelinhas
até fingir que não vejo
o infinito do meu fim
Maria da saudade, da paixão
Maria das minhas canções
Maria das minhas entranhas
(PRETO, 1987, p. 33)

Maria é a personagem inspiradora da saudade e da paixão, a que “anda por aí


em forma de canção / viajante das modinhas dos corações”. Essa mulher, de “beleza
fútil” (uma prostituta talvez), desperta no poeta um “amor desalmado”, “aventu-
reiro”, uma “vontade de ver-te novamente”, mesmo que seja preciso “cantar pular
amarelinhas” ou até “fingir que não vejo / o infinito do meu fim”. Típica represen-
tante da noite no Beiral, onde “Tudo acontece de repente”, é a “Maria das minhas
canções / Maria das minhas entranhas”.

SIMEÃO

Cortei a mata
e a fiz campo

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

plantei e colhí
o meu sustento
gados brotaram
de meu suor
lutei com onças
cobras e jabotis
amarelo fiquei malária
da febre amarela escapei
fugi do verde hepatite
e vivi no meio
do verde esperança
dominei a natureza hostil
e a transformei em paraíso
e nele quero o meu sepultamento
sem que ele morra jamais
(PRETO, 1987, p. 53)

O poema Simeão mostra um sujeito da enunciação na 1ª pessoa do discur-


so que relata algumas experiências vividas. Com 11 verbos no passado (cortei, fiz,
plantei, brotaram, lutei, fiquei, escapei, fugi, vivi, dominei e transformei), o único no
presente (quero) representa o desejo resultante dos esforços empreendidos por este
sujeito desbravador: ele quer ser sepultado no “meio do verde esperança” que lutou
para dominar, posto que ele o transformou em paraíso.
Este poema é um dos mais interessantes no contexto das discussões aqui em-
preendidas, no sentido de que reporta justamente a vivências oriundas de um olhar
que encontra o diferente: uma “natureza hostil” que precisa ser dominada, a luta
com “onças / cobras e jabotis” e o enfrentamento de doenças (“amarelo fiquei ma-
lária / da febre amarela escapei / fugi do verde hepatite”). Entretanto, apesar do
desmatamento necessário para o sustento (“plantei e colhi / o meu sustento / gados
brotaram / de meu suor”), Simeão expressa um desejo com esse verde transforma-
do em paraíso (uma preocupação ambiental?): “nele quero o meu sepultamento /
sem que ele morra jamais”. Simeão é, com as devidas referências, o representante
desse ideário que ainda repercute da dual Amazônia, como inferno a ser vencido e

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paraíso a ser preservado, oriundo dos relatos de viajantes e dos interesses que sem-
pre envolveram a região.
Genésio, Chico Ribeiro, Xikinha, Simeão e Maria: cinco personagens cujas
identidades refletem o Beiral, ao mesmo tempo em que também são refletidas por
ele. Para Anatol Rosenfeld, “a personagem do poema lírico não se define claramen-
te” (2009, p. 23). Contudo, o poema intitulado Beiral caracteriza e dá vida a esse
lugar de forma tão viva e sensorial, que sua definição como personagem maior da
obra é operada muito claramente. Há, nos versos, um eu lírico atento à descrição
da paisagem que envolve essa região, comparando-a a cada momento do dia – ma-
nhã, tarde e noite (relacionam-se com a “divisão” interna do poema).

BEIRAL

Manhã
vento sol banzeiros
escova água e sabão
batida de roupa escovada
na tábua da beira do rio
espumas que descem ligeiras na correnteza
bolhas que explodem
sonhos ilusões
tarde
brisa sombra remanso
anzol linha e minhoca
fisgadas erradas
espertos mandis
noite
batom perfume e som
unhas pintadas
corpo gracioso
paixão amorosa
delírios
feminina
mulher
(PRETO, 1987, p. 74)

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Xi. “Serão as brisas do rio Branco sei lá”: a palavra poética entre personagens e identidades no Beiral, de Zeca Preto

Repleto de palavras soltas que remetem à ideia de captação de instantes,


cada período do dia relaciona-se com atividades específicas: a lavagem de rou-
pas na beira do rio pela manhã (“vento sol banzeiros / escova água e sabão”), a
pescaria realizada à tarde (“brisa sombra remanso / anzol linha e minhoca”) e as
paixões e as festas trazidas pela noite (“batom perfume e som”).
E é assim que o movimento poético-literário expresso pelo Beiral (o “lu-
gar” e a obra), seus personagens e sua paisagem manifesta-se enquanto orga-
nismo vivo, perfeita metáfora usada por Calvino: “A obra literária é uma dessas
mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um
sentido, que nem é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa mobilidade
mineral, mas tão vivo quanto um organismo” (2003, p. 84).
No conjunto da obra, com seus versos livres, Beiral é uma ode, palavra-can-
ção, de canto e amor ao Beiral (pode ser até que no sentido ufanista, de certo
modo): ao “cantar” o Beiral e criar personagens que o representassem lirica-
mente, o poeta apresenta um diálogo com pessoas, sua diversidade cultural,
seu modo de vida e suas relações com o lugar onde vivem.
Aventurar-se pelos caminhos da produção literária roraimense inserida
no contexto amazônico é um desafio que mobiliza as nossas visões de mundo,
movimenta uma série de representações que povoam o universo do imaginá-
rio, dadas as condições do lugar onde nascem e proliferam essas produções,
bem como as intenções de quem as produz. Assim, coube-nos aqui, no espaço
deste texto, apenas refletir sobre o Beiral como um lugar de cultura e tenta-
tiva de consolidação identitária no contexto de Roraima, sendo interessante
perceber o caráter imediatista e sensorial da poesia, no sentido de captação de
realidade e sua transmutação em palavra poética.

Referências
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239
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

XII. Roraima: poesia e poetas


na contemporaneidade
Roberto Mibielli

A Amazônia literária, em que pese sua condição periférica (na maior parte
do tempo), conviveu e convive com uma diversidade de temas, histórias literá-
rias e com volumes de produção de publicações diversos, de acordo com o lo-
cal da região do qual se fala. Historicamente, para os locais mais urbanizados,
beneficiados pelo ciclo caucheiro, que teve como consequência a Belle Èpoque
Tropical, tais como Manaus e Belém, há todo um período de pujança e de im-
portação (para o bem ou para o mal) e circulação de ideias e produtos culturais
que os diferencia dos demais lugares/lugarejos da região. No entanto, mesmo
em se tratando das capitais que mais se desenvolveram nesse período, as his-
tórias se diferenciam, bem como a circulação de bens da cultura: Manaus e
Belém, também não são semelhantes.
Os contrastes entre os pequenos povoados ribeirinhos isolados da
Amazônia e suas cidades pequenas já são grandes, imagine se comparados às
cidades médias ou mesmo às grandes da região. As carências e as disparidades
ocorrem de tal modo a ensejar, por exemplo, a crença de que em boa parte
desses locais não há cultura. Também, pudera: sem cinemas, sem livrarias, sem
bibliotecas (quando muito as escolares, que, dependendo da sensibilidade dos
gestores, funcionam como bibliotecas comunitárias, ou não), sem galerias de
arte, sem exposições, museus, conservatórios, orquestras e com uma série de
outras carências, em relação aos grandes centros urbanos, a população, no seu
senso comum, se entendia por não haver cultura efetivamente nesses locais.
A quantidade de comunidades indígenas transculturadas, no seu todo ou
em partes, deixadas à margem pelo poder público, em alguns casos em situação
de mendicância, também contribuíram para que essa crença se difundisse. Em

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algumas dessas localidades, a mata pujante e a presença de povos originários


criaram uma imagem externa profundamente exótica, selvagem, subdesenvol-
vida, mágica, ou até trágica. Ali, a (considerada insipiente) literatura, mais di-
fundida na forma de narrativas orais, menos instituída que em outros lugares,
assumiu, por vezes, o papel de formadora de uma imagem simbólica da identi-
dade local exótica, com profundas raízes nas tradições indígenas.
Depois do contato, os que para lá se deslocaram, oriundos de todas as de-
mais regiões do Brasil, principalmente durante seus fluxos de explosão demo-
gráfica mais intensa (o ciclo da borracha, o garimpo de ouro e pedrarias, o plan-
tio da soja), ajudaram a criar a falsa impressão de que não havia uma cultura
local. É que, em muitos desses lugares e lugarejos, a mescla de muitas pessoas
de diferentes origens, em maior número que a população local, sem que hou-
vesse uma assimilação das tradições do lugar e sem que houvesse também uma
tradição hegemônica do ponto de vista cultural, gerou um impasse simbólico,
uma ausência de padrões, símbolos e signos dominantes e de consenso, que
pudessem dar uma aparência identitária a esses espaços. O impasse, no domí-
nio das tradições culturais entre grupos populacionais distintos, decorrente
dos grandes fluxos migratórios, por seu turno, ajudou a ampliar essa impressão
de não haver cultura em boa parte desses rincões, quando o que não havia, era
uma tradição hegemônica estabelecida e recognoscível.
Vale salientar, no entanto, que guardadas as devidas proporções e res-
guardados os diferentes motivos de então, esse processo de mobilidade, desde
muito antes do contato entre indígenas e não indígenas, sempre foi um fato
típico da região. Historicamente migratória, a Amazônia, desde muito antes
da chegada dos europeus colonizadores, teve como característica a mobilida-
de de seus povos originários. Nômades por natureza e modo de produção, os
indígenas, de diferentes etnias e culturas, ocupavam determinadas regiões de
seu território pelo tempo que achavam conveniente e, depois, mudavam suas

242
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

comunidades de lugar. A diferença está no fato de que os indígenas tinham,


apesar do contato, uma imagem consistente de sua identidade, que permitiu
que fossem, inclusive, tematizados como base da cultura de determinados ou-
tros locais, enquanto nas demais comunidades, formadas majoritariamente
por não indígenas, a disputa pela hegemonia não permitia esse reconhecimen-
to. Em que pese a complexidade gigantesca de todo o processo, a modos de
simplificação, é preciso salientar que ele abarca boa parte das comunidades de
médio e pequeno porte da Amazônia.
Boa Vista, e talvez Roraima toda, é um desses locais. Sua literatura ofi-
cial, tardia e apequenada na quantidade, suposta e oficialmente inaugurada
com a publicação do romance A mulher do garimpo, em 1976, “o romance do
sertão do extremo Amazonas”, como a autora o define, teve, aos poucos, sua
produção ampliada com a criação, na década de 80 (mais precisamente em
1984), do movimento Roraimeira. Até então, a poesia figurava isolada num ou
noutro número de jornal, nos saraus das famílias tradicionais e numa ou nou-
tra cerimônia pública, declamada pelos poucos que se aventuravam a compor
publicamente.
O grupo Roraimeira, cujo núcleo principal é formado pelos músicos
Eliakin Rufino, Neuber Uchoa e Zeca Preto, criadores do movimento homô-
nimo (movimento que, aliás, congregava inúmeros outros escritores, músicos,
atores, pintores, bailarinas, fotógrafos, etc), defendia (e ainda defende) a cria-
ção de uma imagem cultural, ancorada nos povos originários, para o estado
de Roraima. Fato que o nome do movimento reivindica. Por esse motivo, a
cena cultural roraimense dos anos oitenta, amplamente dominada pelo movi-
mento, é considerada, inclusive, pelos próprios membros do grupo, como fase
identitária.
As elites locais, em sua constituição ideológica mais comum, de nega-
ção da ascendência indígena de boa parte de nossa miscigenada população

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brasileira, adotaram largamente a perspectiva da integração e do colonialismo/


desenvolvimentismo necessários, no dizer de seus defensores não-indígenas,
para domar a mata e seus habitantes incivilizados. O resultado prático dessa
disputa, também condizente ao campo simbólico, é que apenas uma pequena
camada das populações locais aceitava como sua a representação identitária
da Amazônia calcada na cultura indígena, que esses poetas e artistas, de modo
geral, procuravam construir.
Por outro lado, a suposição de que “não havia cultura” em Roraima, em
períodos anteriores ao movimento artístico-literário, ou à publicação de de-
terminadas obras, tampouco beneficiava àqueles artistas pela pretensão da
proposta. A frase, que hoje pode nos parecer um tanto deslocada e até mesmo
equivocada, dita por um poeta local de grande monta (Eliakin Rufino, em en-
trevista à professores da UFRR), tem sua razão de ser num dado contexto, que
vai dos anos 80 do século XX ao início do século XXI em 2001, mais ou menos.
Roraima vivia então, um boom populacional típico da descoberta de jazidas de
ouro, com a quase triplicação de sua população local, de tal modo que era difí-
cil conhecer alguém que não fosse migrante, ou filho de migrantes.
Trata-se de um espaço no qual o garimpo do diamante dos anos 30-40
e depois o garimpo do ouro, entre os anos 70-90 do século XX, operou dois
grandes ciclos migratórios internos. Para Roraima afluíram brasileiros de to-
dos os Estados da Federação, triplicando sua população em uma década. Além
desses, venezuelanos e guianenses também transpuseram as fronteiras e para
lá se deslocaram em busca de enriquecimento e melhoria de vida.
Em função desse boom, pode-se destacar dois elementos que contribuí-
ram para a ideia de que não havia cultura antes do Roraimeira: a primeira diz
respeito ao contraste entre o desenvolvimento econômico do Estado no perí-
odo, em contraste como escasso desenvolvimento de produtos de alta cultura;
em segundo lugar, a ausência de um grupo social simbolicamente hegemônico,

244
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

do ponto de vista da produção de bens culturais, geraria essa impressão da ne-


cessidade da “criação de uma cultura para o Estado”.
Demorou um pouco, alguns anos, que coincidiram com o início do sé-
culo XXI, para que a literatura local ganhasse personagens diferentes, novos
autores, novos temas, novas gerações do Roraimeira, inclusive. Alguns desses
poetas, a convite nosso (meu e do professor Devair Fiorotti e da Editora Patuá),
aceitaram o desafio de participar da coletânea de poetas contemporâneos (ain-
da no prelo), da qual extraí35 os poemas analisados a seguir.
Reiniciamos, pois, as atividades e análises desse projeto, pelo cabeça-de-
-chave Zeca Preto, um dos três principais fundadores do Roraimeira, autor do
livro de poemas Beiral (1987), no qual publicou, pela primeira vez a letra de
Roraimeira (p. 75), música que emprestou seu título ao movimento, criado por
ele e pelos amigos Neuber e Eliakin. Paraense de nascimento, radicado em
Roraima há gerações, o poeta-compositor, por se tratar de um dos próceres
do movimento, influencia e influenciou toda a safra subsequente de poetas,
mesmo quando essa influência não se faz notar diretamente em sua produção.

35 É necessário abrir um parêntesis para explicar a gênese deste texto e nesse ato, assumir a primeira pessoa do

singular, retomando, depois a primeira do plural, nossa predileta. Em 2014, organizamos e publicamos, Lucia-

na Marino do Nascimento, Roberto Mibielli, e Devair Fiorotti, o volume intitulado Nós da Amazônia (2014), pela

editora Letra Capital, no qual publiquei, sob o título Camadas de Identidade: do Roraimeira e as estratégias de cons-

trução e legitimação de uma identidade poética para Roraima aos poetas da geração 90/00, a primeira parte desse

texto, agora continuado. Naquela ocasião, foram analisados seis poetas diferentes dos de agora: Eliakin Rufino,

Edgar Borges, Devair Fiorotti, Cora Rufino, Avery Veríssimo e Francisco Alves. Em texto publicado no mesmo ano

(2014) pela coleção do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRR, Estudos de Linguagem e Cultura Regional:

Regionalismo e interdisciplinaridades. Col. Linguagem e Cultura Regional Vol. 3, incluí, numa versão deste mesmo

texto, sob o título Babel que Boa Vista comeu: poesia e estratégia identitária na gênese do Roraimeira e nos poetas da

atualidade, uma análise de um poema de Sony Ferseck. Em função do número de poetas e da limitação de laudas

para os capítulos do livro, optei por fazer e publicar essas leituras em etapas, das quais esta é a segunda.

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O poema Tomara, letra de música homônima, é o texto que escolhemos para


abrir essa sequência de análises:

Tomara

Tomara que existam rosas vivas na tua cabeça


Tomara que exista som batendo no teu coração
E que esse canto possa agradar tua aldeia
Pro teu povo ler poemas na janela
Tomara que existam cores no teu pensamento
Tomara que exista madrugada no teu bocejo
E que seja verso cada esquina donde moras
Pra que a poesia se encalhe no refrão dessa canção
Abre a porta do quintal podes entrar
Sou fruta de vez no teu pomar
Toma logo esse açaí, mata a vontade
Devora esses olhos castanhos do Pará
Devora esses olhos castanhos do Pará36.

Na letra da música em questão, o mote “tomara” funciona como votos


de benevolência, mas também põe em dúvida a realidade existente. E o faz,
propondo uma alternativa em que a música (“som”) fomente um contexto em
que “esse canto possa agradar tua aldeia/Pro teu povo ler poemas na janela”.
Interessante ressaltar a ideia de aldeia que, associada aos “olhos castanhos do
Pará”, situará o leitor no contexto amazônico. Embora não pareça um poema
pessimista, pelo que propõe de possibilidade e desejo (tomara), a carga semân-
tica que carrega no vaticínio proposto, revela, por outro lado, uma realidade
cuja feição não é a da proposta. Assim, o poema supõe que em outros lugares, e
mesmo nessa aldeia, que o eu poético parece desconhecer, as pessoas não têm
“cores no teu pensamento” nem “madrugada no teu bocejo”, fato que faz com
que o poeta deseje “que seja verso cada esquina donde moras/Pra que a poesia
se encalhe no refrão dessa canção”.

36 Alguns dos textos escolhidos para a coletânea são ainda inéditos, razão pela qual não podemos oferecer outra referência que não “acervo

do autor”. É o caso desta letra de canção. /cedida para a coletânea.

246
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

É de notar, também, que existe uma relação em espiral entre dois uni-
versos nessa letra, de um lado o mundo externo ao poeta/compositor, supos-
tamente pertencente à aldeia de quem o lê, para o qual ele deseja coisas boas,
que acredita não existirem em qualquer realidade. De outro lado, o universo
interno do poeta, sua composição, para a qual ele se volta, um pouco meta-
poeticamente, se referindo ao “encalhe” da “poesia” da “aldeia” (externa) no
“refrão dessa canção”, que canta e que compõe. É como se o poema/letra ideal
aspirasse para si esse universo real da aldeia e só pudesse existir através dele. A
inversão entre interno e externo continua, de modo a permitir que ao abrir “a
porta do quintal, podes entrar”, esse indivíduo da aldeia possa penetrar no rei-
no híbrido do poeta (entre real e ideal) – o Pará – e tome “logo esse açaí, mata
a vontade”, se transportando para essa Amazônia. A devoração dos “olhos do
Pará”, mais do que uma imagem antropofágica, é um convite para que o leitor,
dessa aldeia para a qual se vaticina a poesia, visite a alma do compositor, e dela
se alimente, em função de seu próprio desejo de açaí e do desejo do poeta pelo
seu Pará natal. É de se convir que o açaí é iguaria majoritariamente paraense,
daí entender-se ser uma reminiscência essa leitura híbrida desse local imagi-
nário, fruto do desejo.
Regional, em quase tudo, esse poema acrescenta elementos composicio-
nais muito mais complexos que a mera alusão regionalista. Ao trançar exter-
no e interno do universo do poeta e do universo poético, o poema se refugia
numa perspectiva que procura embaralhar o desejo de pertença, tão comum
nas composições apenas regionais, extrapolando os limites dessa regionalida-
de e tornando-se um convite para a reflexão: Mas, afinal de contas, seu lugar
tem isso? Assim, o poeta veicula ideais que vão além do local, propondo ao seu
leitor que busque essas “rosas vivas na tua cabeça”. Pode-se dizer, ainda, que ele
propõe que se veja a Amazônia com outros olhos, que não apenas o do vazio

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demográfico e da necessidade de integração, uma vez que seu povo pode ter
“verso em cada esquina” em que “mora”.
Este trajeto parece ser o contrário do experimentado pelo DJ internacio-
nal que fixou residência em Estocolmo na Suécia, onde segue com intensa
produção poética (versosdameianoite.blogspot.com ) e que além disso, é per-
former, jornalista e poeta, com três livros publicados Fúria, pólvora e escracho
– poemas subterrâneos (2001), no qual decreta ser (nesse primeiro momento de
sua poesia) “tatuagem no peito da rebeldia” (p.3), Um Macuxi na Escandinávia
(2005), do qual extraímos o poema abaixo Caboclo punk, e Quando a mente cala
o coração fala (2016), no qual, mudando profundamente os rumos e temas de
sua poesia, passa da crítica social, predominante em seus dois livros anteriores,
para uma jornada poética pela Índia iogue, além de diversos textos de teatro
encenados. Gean Queirós, todavia, difere, nesse poema, de Zeca Preto, por ado-
tar um tom mais combativo, menos utópico e ainda mais híbrido (agora em
relação à temática).
Ativista intenso da poesia durante 10 anos, no Rio de Janeiro, com seu
evento cultural “Versos da meia-noite”, participou de diferentes antologias e
foi integrante do grupo “Voluntários da pátri””, viajando pelo Brasil com músi-
ca e poesia (ao lado de Tico Santa Cruz, Tavinho Paes e outros artistas), Gean
Queirós, que também atende pelo nome artístico de Jokassoul Queiróz, quan-
do promove suas festas do movimento Favela Viking, na Suécia (onde vive atu-
almente), e que em Roraima, é atualmente conhecido pelo apelido Macuxiva,
nos dá aqui uma versão ainda mais carregada, talvez pelo olhar distanciado, do
macuxi37 diante do mundo, de uma poesia que chegou a participar da segun-
da geração Roraimeira, para depois, distanciando-se desta, adquirir um outro
matiz.

37 “Macuxi”, além de designar a principal etnia presente na região de Boa Vista (capital do Estado) e cercanias,

também serve como gentílico de quem nasce em Roraima.

248
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

No poema Caboclo punk, carro chefe de sua produção atual, o poeta


propõe:

Caboclo punk

Entrar na floresta de pés descalços


E correr livre pelo mato
Subo na árvore e danço um rock com os macacos

Crina pintada de vermelho


Urubu planando no alto
Orquestra de bichos na alma
Guitarra tatuada no braço

Sou caboclo punk na selva de pedra


Jaqueta de couro de onça
Com cheiro de peixe e bafo de ervas
Comigo não tem caô
Tô no sol da meia-noite
Com meu ray-ban de camelô

De tarde preguiça na rede


De noite forró na chuva
Heavy metal na madrugada
Rolo na grama
Durmo na rua
E acordo com o sol na cara

Minha raiz é coisa brava


Sem essa de etnográfica
Da Amazônia pra Escandinávia
Nenhuma ciência me alcança
Sou caboclo punk
Mato a cobra e encho a pança

Caminho por entre os prédios


Mas sei o valor da natureza
Minha pele é morena
Meu teto é o céu
Os pés fincados na terra

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A lua embaixo do chapéu

Vou rompendo a mata adentro


Chutando lata
lambendo o vento
Autoridade nenhuma me assusta
Eu não tenho documento
Minha assinatura é o solo do meu instrumento

Minha casa já foi cenário de muita exploração


Por isso cuspo no homem
Tô cagando pra multidão
Que derruba a árvore e mata o bicho em extinção

Vou bater cabeça a noite inteira


Pra esquecer de tanta raiva dessa gente sem coração
Sou caboclo punk
Bateria ecoando na imensidão
Uivo de fúria na mata
Descanso na beira do igarapé
Água-doce pra curar ressaca/Larica de tucunaré

Sou caboclo punk na selva de pedra


Jaqueta de couro de onça
Com cheiro de peixe e bafo de ervas
Comigo não tem caô
Tô no sol da meia-noite
Com meu ray-ban de camelô
(QUEIROZ, 2005, p. 38)

Embora não se utilize de uma retórica apenas de imagens amazônidas, não


recorra totalmente ao imaginário popular do que se crê que seja a Amazônia
para reforçar sua construção imagética, o poeta em questão opta pela simpli-
cidade contrastiva entre a selva de pedra e a selva real de sua origem. E o faz,
colocando antes as questões em termos mais político-ideológicos (questionan-
do a lógica da subordinação do “cabloco”, do “matuto” “incivilizado” ao “civi-
lizado” mundo europeu), dizendo-se imune a essa ciência, a uma etnografia

250
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

preconceituosa e pregando um caminho antropofágico, muito ao gosto oswal-


diano, e outro tanto, a modos de tropicalista da mata.
Gean exagera, caricaturiza, mas age muito mais contrastivamente do que
decalcando elementos da cultura indígena, de modo a destacar-se como local.
Embora negue a força do falar estrangeiro, sobre a construção de uma ima-
gem amazônica, empresta a sua síntese toda à autoridade de ocupar o lugar do
outro, de falar do estrangeiro, dizendo-se, ainda assim, um ser local, híbrido,
embora com outra percepção de seu lugar no mundo. Seu caboclo é nativo,
sim, mas, como diz o nome, fruto da mescla racial e cultural. O epíteto “punk”
revela e acrescenta uma outra interação, mais atual, mais periférica, no sentido
de minorias pós-modernas, de tribos da urbe, de um processo de intensa recu-
sa do instituído. É talvez a suma de um caboclo que mata “a cobra” simbólica,
tal qual ocorre no dito popular (mata a cobra e mostra o pau) para “encher a
pança”, que dança “rock com os macacos” e que usa falsos “ray-ban de camelô”,
representando a um só tempo, as interações mata-cidade, periferia-urbe, si-
mulacro-realidade. Síntese de vários mundos, o caboclo-punk é, ainda, um ser
do submundo, primo próximo-distante do “punk da periferia, da freguesia do
Ó”, da música de Gilberto Gil, com sabor escandinavo e tentando sobreviver lá.
Híbrido e fluido, Gean, o Macuxiva.
Zanny Adairalba tem, como cordelista, 23 libretos ou cordéis publicados
e pelo menos, sete livros de poesia, dos quais destacamos: Palavras em preto e
branco (2011), no qual declara “Um poeta tristonho perde o mundo/Um poeta
ferido é edital” (p. 12) Repoetizando (2012), cujo Divino, poema diz: “Escandaloso
repousava o anjo/Num espaço de tempo chamado/desejo”(p. 46), Movimentos
inexatos (2016), em que reitera: “Bagunça nosso mundo, meu amor” (p.14) e
Pétalas de despedida (2016), do qual se extraiu o poema que discutimos abaixo,
além de Carrossel agalopado, PoesiaZinha e Micropoemas. Além disso, como dra-
maturga, publicou Chegança – o cordel do bem querer, premiado e publicado em

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Cuba. Faz parte do coletivo arte-literatura caimbé (como uma de suas funda-
doras), atua no projeto Caminhadas Literárias, que procura difundir o hábito
da leitura nas comunidades indígenas e não indígenas de Roraima, trabalhou
com teatro, dança, e é compositora (premiada em Festivais de música locais e
executada por artistas da terra, faz parte da iniciativa – coletivo – “máfia do
verso” e publica poesia regularmente em seu blog (re)poetizando, disponível
em http://www.repoetizando.blogspot.com.br/. Dona de um trabalho marcan-
te, essa bela poeta disputou espaço nos mesmos festivais em que os membros
do Roraimeira foram seus rivais/ concorrentes. Atuando como agitadora cul-
tural, manteve e mantém intenso convívio com todos os membros do grupo.
No entanto, apesar de pertencer ao mesmo ambiente, apesar de todo o
convívio, sua poesia não parece apontar na mesma direção da dos colegas, uma
vez que sua temática procura aproximar-se da natureza, do natural, a modos
da temática dos heiku, sem, contudo, entrar muito no mérito da cor local, sem
apontar uma necessidade premente de criação de um modelo identitário para
Roraima. O poema Folhas, por exemplo, chama a atenção nesse sentido:

Folhas

Eram leves
Como as pétalas de rosas
Sutilmente flutuando sobre o rio
Como folhas
Que se perdem pelas águas
Como impávido teor de calafrio

Eram claras
Como as faces de outras virgens
Que se entregam
Aos caminhos dos amantes
Como rosas
Soltas num vento tão frio
Eram passos
Sobre o trilho dos errantes

252
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

Nas canções
Que soam dias tão tristonhos
Bebe a palidez
Da face hoje descrente
Misturadas
No temor de anjos risonhos
Devoradas
Por mortais de olhar temente.
(ADAIRALBA, 2016, p. 15)

O poema, embora enfoque imagens de paisagens naturais, não se preo-


cupa em informar onde elas estão situadas, que rio é este, se é amazônida ou
não, evitando desta forma constituir-se em um emblema, em um brasão de
um determinado lugar ou região, universalizando a leveza que o poema traz,
ao invés de torná-la refém de um único lugar e de uma questão de luta pela
hegemonia simbólica.
Certamente, porque boa parte de sua poesia trabalha temas universali-
zantes, como o amor ou a sexualidade, Zanny raramente, procura situar sua
poesia no local onde vive. Este modo de situar-se parece obedecer a um con-
junto distinto de regras desenvolvidas pelos membros mais efetivos da gera-
ção Roraimeira. É que a poeta em questão não necessita enveredar pelo léxico
tupi-guarani, se utilizar de temas folclóricos, como bandeiras indicadoras do
lugar de onde fala para tratar ou descrever o natural ou mesmo transformar a
Amazônia numa utópica reminiscência e, quando o faz, pratica o modo mais
universal, como se aqueles elementos sempre estivessem por ali, integrados ao
seu fazer poético, ao dia a dia, e não como objetos ou fazeres sociais que me-
recessem destaque sobre os demais. O caricato da cor local, nesse caso, perde
a força, tornando-se obrigatória e lindamente diáfano, quase místico. A deli-
cadeza de suas “pétalas”, “calafrios” e “virgens”, contrastada pela voracidade do
olhar dos “mortais de olhar temente”, sugere trazer à tona, de modo suave, um
tema muito atual: o da predação sexual. A imagem da folha-pétala que flutua,

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já não-virgem, em favor das águas, enseja a imagem da sedução em busca do


desejado gozo (águas), causa dos calafrios. No entanto, da metade para o final,
a desilusão, as “canções / Que soam dias tão tristonhos” de “face hoje descren-
te”, revela uma triste realidade, decorrente da desventura e da errância.
Longe de querer parecer moralista, o poema procura abarcar um momen-
to, fotografá-lo (outro, dentre os talentos dessa surpreendente poeta), contê-lo
em seu circuito de alegria/felicidade e tristeza fugazes, de modo a apresentá-lo
como metáfora pétala-folha ao leitor. O moralismo, aliás, não parece mesmo
ser o objeto de quem afirma haver desejo de devoração de “anjos risonhos/
Devoradas /Por mortais de olhar temente”. “Mortais de olhar temente” sugere
algo cristão, como “temente” a Deus, portanto, moralmente contrário à de-
voração pelo “olhar”. Nesse sentido, a poeta parece denunciar a presença de
um falso moralismo nesse “temente”, que deseja vorazmente pelo “olhar”, ou,
fugindo à denúncia, procura tão somente fotografar essa relação, como parte
da vida, como essência, entre o desejo brutalmente reprimido pelo “temente”
e a leveza e sensualidade dessas “folhas” que se entregam ao vento e “Aos ca-
minhos dos amantes”. O toque sombrio de realidade fica patente a partir da
frase-verso: “Bebe a palidez/ Da face hoje descrente”, como se a descrença e a
desilusão entrassem em cena, num momento posterior, removendo a névoa de
sonho que envolve a trama e devolvendo aquela que se entregou “ao trilho dos
errantes”, à realidade. Tudo parece flutuar, até esse momento, em um daqueles
bosques de sonho, de contos de fadas. Talvez por esse motivo, seja mais difícil
aproximar essa poesia de um regionalismo declarado e amazônico. É certo que
há matas e florestas aí, mas elas diferem em muito do que o imaginário popular
guarda para a Amazônia.
Esse dilema, entre o local e o universal pode ser vivenciado na poesia de
Jaime Brasil Filho, que assumindo a primeira pessoa do singular na voz do po-
ema, afirma:
tenho quase certeza que a correnteza nos levará
254
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

como um dia a ventania nos trouxe até aqui


tá na cara que a claridade entre as sombras
nos mostra as sobras dos escombros que nos cercam
esqueça as profecias e os compromissos
que eu compro pra você balas de alcaçuz
que é pra lembrar dos dias azuis
e que não temos nada a ver com isso.38
O tom sombrio meio pós-apocalíptico de que lança mão este poeta,
oriundo de uma das mais tradicionais famílias roraimenses, casa-se quase
perfeitamente com a atmosfera híbrida da poesia experimentada até aqui.
Pudera, o poeta, nascido em Roraima, presenciou todos os passos da criação
do Roraimeira e convive com os poetas desse movimento desde então. Sem
ser claramente um adepto da onda roraimada, procura situar sua poesia num
estilo hermético e polissêmico, que causa, quase sempre, efeito de profundo
estranhamento em seus leitores. Autor de dois livros, Não (2014), e 50 (2017),
procura mesclar universos e sensações em uma poesia densa e liberta de line-
aridade. Em ambos, o poeta dá vazão ao fluxo de consciência, tornado poesia,
trazendo à tona referências e elementos da psiquê, misturados a fatos cotidia-
nos. Embora atento à cultura local, e como poeta, se fazendo presente em qua-
se todos os eventos da comunidade escritora de Roraima, sua escritura conjuga
elementos da cotidianidade com temas universais e locais sem deixar marcas
que os distingam entre si.
A começar pelo desfecho, no qual o eu poético, provavelmente não indí-
gena, ou, pelo menos, configurado como voz não praticante de uma imagem
estereotípica do ser indígena ou roraimense, ambientado em sua cultura tradi-
cional, oferece a compra/aquisição de “balas de alcaçuz” como consolo para a
desgraça. Ora, a compra e o consumo de “balas de alcaçuz”, muito mais difun-
dida entre os norte-americanos do que entre nós, de algum modo tangencia

38 Grifamos o primeiro verso que funcionará como título em poemas sem título. Esse poema pertence ao acervo do

autor/cedido para coletânea.

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uma realidade além das fronteiras locais, afastando, ainda que precariamente,
as personagens que parecem protagonizar a cena poética da possibilidade de
um nativismo evidente. Até porque não há “balas de alcaçuz”, hoje em dia, à dis-
posição para consumo em Roraima, muito menos em comunidades indígenas.
A cena, antes de mais nada, parece descrever um conjunto de catástrofes
“naturais”, que em tudo contribuem para a construção de um quadro apocalíp-
tico. Elementos como a inexorabilidade da “correnteza” (que “nos levará”), que
pode muito bem fazer referência às constantes cheias dos rios amazônidas, e a
“ventania” que independentemente da vontade humana “nos trouxe até aqui”,
tornam o quadro ainda mais autenticável, do ponto de vista da cor local.
Mas, se as referências podem, de algum modo, ser identificadas com essa
região, também podem ser imputadas a muitas outras regiões do planeta, onde
correntezas e ventanias são comuns. Esse descompromisso, esse aproximar-se
utilizando elementos que tanto cabem na realidade do lugar, quanto em outra,
é parte da atmosfera que se evidencia e se constrói em torno da temática do
poema. É com o verso “esqueça as profecias e os compromissos”, bem como
com sua corruptora sequência “que eu compro pra você balas de alcaçuz”, que
o eu poético (aqui construído em primeira pessoa) procura convencer seu(-
sua) interlocutor(a) a esquecer os momentos ruins e a “lembrar dos dias azuis”,
como se as “balas” prometidas pudessem substituir a ciência enquanto consci-
ência. Equivale dizer, como se se pudesse comprar o apagamento da memória
com distrações, como “balas de alcaçuz”, que de algum modo abrandassem o
sentimento de culpa ou o de impotência diante da inexorabilidade do destino.
O estranho da construção em si é que pouco leva a crer que se esteja fa-
lando do local Amazônia. Na verdade, não fossem as anáforas “aqui” e “isso” e a
ideia de proximidade com a realidade local, subsumiria ao restante do texto e
à problematização da culpa que este (re)apresenta.

256
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

A ilusão sugestiva de que este poema pertence ao local em que é enun-


ciado, graças ao “aqui”, lido como adjunto adverbial de lugar que encerra o
segundo verso “como um dia a ventania nos trouxe até aqui”, pode muito bem
ser transformado em adjunto adverbial de tempo, significando “aqui”, neste
tempo em que estamos, uma vez que a expressão “um dia” abre precedentes
para que se leia o verso todo como uma relação temporal. A complexa relação
de duplicidade que se estabelece aí contribui para permitir uma leitura mais
polissêmica do poema, fazendo crer a alguns que se está fazendo referência ao
local de elocução do poeta e a outros que se trata de uma questão mais univer-
sal, efeito do tempo sobre a memória.
É uma forma de estabelecer a dúvida sobre quais esferas o poema abrange,
a quem ele serve ideologicamente, a que local ele pertence, e permitir ao leitor
o convívio com as duas esferas (local e global), sem perda da poesia, ou seja,
sem que se perca a gravidade da reflexão universal proposta.
Essa relação se torna ainda mais clara com a leitura do verso final “e que
não temos nada a ver com isso”, que, ao um só tempo, garante o efeito de des-
compromisso, ao afirmar não termos “nada a ver com isso”, e o efeito/ilusão de
pertença a uma realidade próxima, em que o “isso” possa ser evidenciado mate-
rialmente. Arriscaria afirmar que a perspectiva do personagem que propõe esse
afastamento é politicamente pós-moderna, no sentido de desideologização, de
que a inexorabilidade está em não fazer parte do que ocorre ao redor, porque
não se comprometer é uma forma de se preservar e de não “ter nada com isso”,
de não sentir a dor, dessa complexa superproteção asséptica que estabelece-
mos, pela via do politicamente correto, para nossos descendentes.
Se traduzido na forma de enredo, o poema poderia ser lido de diversas
formas, mas, a versão mais próxima do fio da meada que queremos estabelecer
parece ser de extrema ironia para com o mundo em que vivemos. A trama indi-
ca que uma pessoa mais velha (a única da qual se ouve a voz, num diálogo que

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soa monológico) diz ser certo de que a “corrente” (aqui representando talvez
o tempo, talvez a própria torrente dos fatos incontroláveis) levará a ambos,
enunciante e provável interlocutor, inexoravelmente adiante (fato que parece
corroborar a tese de que a “corrente” represente alegoricamente o tempo, úni-
ca força a qual não é possível resistir e de que não há resistência a opor, sen-
do, portanto, inútil a resistência), evocando a tradição (aqui representada pela
“ventania” que os trouxe até ali) e dando a entender que a ideologia impede a
visão clara dos fatos (“tá na cara que a claridade entre as sombras/nos mostra
as sobras dos escombros que nos cercam”), aproximando o poema do mito da
caverna de Platão, no qual só se podia ver a realidade através das sombras pro-
jetadas no fundo da caverna. Só que neste caso, as imagens projetadas entre as
sombras demonstram apenas a catástrofe, os “escombros”, as “ruínas”. E estas
são opressivas, embora não possam ser vistas ordinariamente, sendo visuali-
zadas apenas através das sombras. A desesperança é a resposta a esse mundo
cruel. E esquecer (embora o poema propugne que antes devamos lembrar de
como a ventania nos levou ali) dos compromissos, do que foi vaticinado, da
utopia, trocando-os por balas de alcaçuz é também uma forma de não se de-
cepcionar, de estar pronto para mais escombros e derrotas.
No entanto, é na própria enunciação que o poema, em seu enredo, parece
guardar o maior de seus trunfos: a denúncia de como agimos em nosso tempo,
de como nos tornamos indiferentes ante o caos que adquirimos diariamente,
do quanto é sem esperanças a nossa crença hodierna, e de quão azuis foram os
dias em que podíamos acreditar, do quanto o vendaval da pós-modernidade, do
agora, da indiferença nos afastou deste passado e nos fez aceitar a falta de es-
peranças, nos fazendo pensar que, embora façamos parte disso (desde sempre)
é melhor acreditarmos que “não temos nada com isso”. De que não devemos
nos comprometer e que é “isso” que ensinamos quando viramos o rosto para
a realidade e substituímos seu amargo gosto pela doçura-amargor do alcaçuz.

258
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

Embora George Farias seja um músico que tenha chegado a Roraima al-
guns anos depois do surgimento do Roraimeira, logo se sentiu em casa e es-
tabeleceu parcerias e diálogos com todos os principais membros desse grupo.
Algumas de suas composições, francamente regionais, no tom e na proposta,
figuram entre as mais belas letras de música de Roraima. Autor de dois livros
de poemas: Vocais dos mitos (2003), livro no qual, segundo Cátia Wankler, na
apresentação, “George Farias (...) trata passados, memórias, origens” (p. 3); e
Dança dos sinos (2011), no qual George procura mesclar questões de identidade
local com temas universais, razão pela qual se considera membro da segunda
geração do Roraimeira.
Ainda assim, sua poesia não se tornou refém de uma única temática, tri-
lhando caminhos diferentes em busca de questões metafísicas, filosóficas, líri-
cas e sensuais, fato que pode ser observado no inédito poema a seguir:

No corpo sem alma39

Sem vida
Já não existe medo
Nem desejos
Muito menos sonhos
Que se realizem
Que renovem as forças
No corpo sem alma
Nem há calma
Nem delírios pelas noites
De abandono
Já não terá mais sono
Que as madrugadas verão
No corpo sem alma
Só um motivo permeia
Somente o acalanto passeia
Acalmando o coração da dor
É o acalanto poético
Que determinará o profético

39 Grifamos o primeiro verso que funcionará como título em poemas sem título. Acervo do autor/cedido para coletânea.

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Sentimento de alma viva


No escopo do amor

Em que pese o fato de sua poesia ter um ritmo próprio, muito atento à
musicalidade das palavras, neste poema a relação entre temática e ritmo, em-
bora pareça apontar para o lirismo exacerbado dos poetas do ultra-romantis-
mo ultramarino, não abre mão da impessoalidade em terceira pessoa, fato que
faz com que nos afastemos do rótulo lírico e possamos aproximá-lo dos poetas
que compõem o volume da coletânea (Avery Veríssimo e Edgar Borges) cujo
métier de jornalistas os leva à flutuação, observação meio dândi da realidade
humana.
É o outro e não o eu poético-lírico quem sofre as dores e o vazio da alma,
sendo assim, o poema se torna uma realização voyeurística do sofrimento
alheio, um olhar que percebe, numa espécie de feedback, a morte de um ser que
sofre por amor “No corpo sem alma/Sem vida/Já não existe medo/Nem dese-
jos/Muito menos sonhos”, é que na verdade, o poema inicia com o fim; com
um corpo inerte onde não há mais “alma”, “vida”, “medo” e “desejo”. O que faz
pensar em suicídio por amor, em uma tragédia algo sheakespariana.
No entanto, a sequência do poema não deixa claro se a morte é real ou
uma metáfora para um corpo prostrado pela dor de amor, uma vez que se fala
em “abandono”, mas não se define se este “abandono” corresponde ao do pró-
prio corpo à deriva, ao “abandono” do corpo pela alma (o que corresponderia
à morte) ou de um ser por outro, deixado, assim, à própria sorte. E essa ‘sor-
te’ poderia corresponder ao rompimento brusco e inesperado de uma relação
amorosa.
Mas o poema de George Farias causa estranheza mais pela utilização de
um termo – “motivo”, do que pelo efeito de feedback que realiza. Para elucidar
a interpretação polissêmica do termo motivo, procuramos pelos seus significa-
dos dicionarizados: “adj. masculino/singular: 1) Que pode fazer mover; Motor;

260
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

2) Que determina ou causa alguma coisa. 3) Causa; razão; 4) Fim, com que se
faz alguma coisa; 5) Intuito, escopo; 6) Frase predominante em qualquer com-
posição musical.”
De fato, o poema segue seu trajeto de trás para a frente, aparentando um
feedback que não se concretiza, pois o morto, embora apareça na sequência
permeado por “um motivo” (“algo que o move ou pode fazer com que se mova”,
no sentido etimológico do adjetivo “motivo”), ou seja, como ser que se move,
que tem vida, ou seja, um ser animado (o que faz pensar na brincadeira entre
“motivo” e animado, como numa relação secundária de sentidos entre mo-
vente e ânima-alma), já teve sua morte anunciada desde o princípio do poe-
ma. Anunciada, a modos de Gabriel Garcia Marques em Crônica de uma morte
anunciada, texto no qual, desde o início, o ganhador do Nobel de Literatura
nos brinda com o episódio do assassínio de seu personagem principal, deslo-
cando o leitor em feedback para momentos antes dessa morte, ocasião em que
começamos a torcer, cada vez mais fervorosamente para que ela não ocorra.
Estratagema, aliás, fecunda e forte, mas incapaz de superar a dualidade desse
“motivo”. O termo, como vimos acima, indica em sua sexta acepção de sig-
nificado, motivo como tema musical central de uma composição. É aí que a
palavra se torna de todo intrigante, porque fugindo das acepções mais comuns,
“razão de algo” e “movimento”, ela assume a profissão do compositor, do autor
do texto, incluindo-o (talvez) na trama.
O poeta, parece querer afirmar, tal e qual Zeca Preto em seus versos aqui
lidos, que, sem a música, sem a poesia, não há alma, não há vida, ao mesmo
tempo em que aproxima os sentidos de vida, alma (ânima), a movimento, amor
e música/poesia, colocando-os todos no mesmo campo semântico.
A expressão “escopo do amor” faz atentar para o fato de que tudo, até a dor
faz parte do universo amoroso, inclusive a morte. Aliás, não é incomum na li-
teratura e na poesia a temática que relaciona Eros e Thanatos e/ou Perséphone

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e Hades, sendo ainda mais comum a percepção de que essa relação é comple-
mentar e, embora dolorosa e triste, bela. São os contrários que se complemen-
tam, assim como a poesia/amor e a vida/morte e sem isso, nos quedamos sem
alma, sem isso não há “Sentimento de alma viva/no escopo do amor”.
Nossa última poeta desse ensaio, Eli Macuxi, é na verdade, de nascimento,
Elisângela Martins, paulistana que adotou Roraima como terra-mãe e que des-
de cedo procurou deixar clara sua filiação, incorporando o pseudônimo de Eli
Macuxi, no qual incorpora o gentílico dos filhos de Roraima. Professora uni-
versitária do curso de Artes Visuais da UFRR, essa poeta adota como tema cen-
tral em seu livro, editado pela Máfia do Verso, volume nº 3, Poemas para quem
odeia (2013), do qual extraímos o poema abaixo, a temática do amor como
forma de resistência. A ótica geral de seus textos, aliás, é essa: feminina, aman-
te, cotidiana e fervorosamente ativista. É o caso, por exemplo de seu poema,
escolhido para essa leitura:

Árvore genealógica

Geralda
uma mulher branca
fugiu com um índio
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre

Benvinda
uma mulher branca
fugiu com um negro
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre
Wanda e Lucas
filhos de brancas fugidas
fugiram juntos
tiveram filhos
e não foram felizes para sempre

262
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

eu filha
eu fruto
admito:
acredito na fugaz
felicidade das fugas
e nas fugas
como felizes finais.
(2013, p.16/17)

No poema em tela a autora descreve, de modo suscinto, três ou quatro


gerações de mães e filhas que, desrespeitando a hierarquia familiar machista, e
o preconceito étnico/racial, fugiram de casa para se casar e “não foram felizes
para sempre”. Aparentando dar uma solução machista e moralista aos seus ver-
sos, a autora termina as três primeiras estrofes indicando a infelicidade como
aparente consequência dos atos revoltosos. Note-se, no entanto, que o que liga
a aparente condenação à infelicidade, aos atos de revolta é um conectivo adi-
tivo “e”, que pode significar algo além, um final de enumeração, um acréscimo
de sentido.
E esse acréscimo de sentido só ficará definitivamente perceptível quando
lemos o final “acredito na fugaz/felicidade das fugas/ e nas fugas/como felizes
finais”, como a chave de ouro do poema em que se revê todo o seu sentido,
deslendo o moralismo aparente. O que a autora propõe a partir de então, é
que não existe felicidade eterna, mas sim, a “fugaz/ felicidade das fugas”, do
desprendimento, da superação da opressão masculina, paterna, moralista da
sociedade. Ela, aliás, acredita também na eternidade de todo o conjunto de his-
tórias de fugas como finais felizes. O que se coloca em discussão é a opressão,
não mais o sonho de princesa, de contos-de-fadas, de uma eternidade feliz.
Mas Eli faz mais que apenas emprestar um tom de manifesto feminista
ao seu poema – o que já seria muito, na nossa atual circunstância política. Ela
ousa burlar o tempo ao situar “Fugas como felizes finais”, como tempo antes
do tempo da leitura no poema. Isso permite ao leitor desler o poema de trás

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para frente, invertendo a leitura, diferenciando a ideia de final feliz dos contos
de fada e antecipando-o para o ato em si, que busca o fim da opressão e o final
feliz. É como previu Benjamim, nas suas famosas Teses sobre o conceito de histó-
ria (1940), “é preciso escovar a história a contrapelo”, coisa que a historiadora e
poeta Eli, bem faz, distinguindo entre a ideia de final feliz, do fim da fuga em si,
da própria fuga da opressão como felicidade final. É a libertação através da fuga
quem prevalece sobre o sonho de princesa. É o empoderamento a posteriori de
gerações que foram condenadas pela moral e pelos bons costumes.
E daí, se o final feliz que todos esperam é a trivial história de amor com
data de validade? O importante é dar-se o direito de não ser feliz para sempre,
nos moldes da imposição social, mas ser feliz no ato de revolta em si, na capaci-
dade de mudar o mundo, no domínio do próprio corpo, da geração da própria
prole (com quem se deseja, e não com quem o pátrio poder determina) e da
própria vontade. É preciso abolir essa aparência virginal punitiva: “É Preciso
ser, essa metamorfose ambulante”, como queria Raul Seixas, ainda que esse
reconhecimento demore algumas gerações para vir e perceber que a felicidade
esteve ali.
E ali esteve exatamente onde a sociedade acreditava haver a tristeza da
fuga do lar, com todas as agruras que isso pode acarretar: a falta de um casa-
mento de revista, o afastamento da família, a falta de dinheiro, de estrutura,
etc. A felicidade, como se viu, esteve em libertar-se, em adonar-se de si.
Os seis poetas que lemos e discutimos nesse texto, obviamente não estão
limitados a esses poemas e temas, muito menos, sua poesia se limita a tentar
descrever ou propor uma identidade para Roraima ou não, antes pelo contrá-
rio, sua produção, vária e de qualidade, os colocou na condição em que hoje
estão. Se alguns são ou foram estigmatizados pelas posições que defendem ou
defenderam majoritariamente ao longo de suas trajetórias, cabe uma leitura
mais poética, menos arrivista, de sua obra. Mesmo que alguns, como Eliakin

264
Xii. Roraima: poesia e poetas na contemporaneidade

Rufino, ainda pareçam defender, em tom de provocação, um viés exclusiva-


mente regionalista, como na música Universal, extraída do documentário diri-
gido por Tiago Bríglia, Roraimeira Expressão Amazônica (2007):

Universal

Eu não quero ser universal


eu quero ser da farinha
quero ser do pirão

Eu quero ser local


quero ser do fundo
do fundo do quintal
(...)

Estratégias de construção de identidade à parte, a poesia de Roraima, hoje,


também caminha para a universalização temática, sem descurar de si, de seu
lugar de fala.

Referências
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ADAIRALBA, Zanny. Palavras em preto e branco. Belém: Cromos, 2011.
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Adairalba. 2ª ed. Vol. 30 Col. Sementes Líricas. Marabá: Literacidade, 2016.
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BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 222-232. (Obras
escolhidas, v. I)
BRASIL, Jaime. Não. Jaraguá do Sul, SC: Editora da Casa, 2014.
BRÍGLIA, Tiago Chaves; LAVOR, Claudio Chaves (roteiro). Roraimeira
Expressão Amazônica. Direção: Tiago Bríglia. Documentário DocTV.
Convênio MinC/SE/FNC/ Nº 261/2007. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=p3o3137NoB8. Acesso em: 27 fev. 2020.

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CARVALHO, Fábio Almeida de. (Org.) Estudos de linguagem e cultura regional:


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QUEIROZ, Gean. Um Macuxi na Escandinávia: paisagens poéticas ou quase
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Sobre os Autores

Sobre os Autores

Anna Paula Ferreira da Silva


Mestre em letras/literatura pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras da UFRR (PPGL-UFRR). Com graduação em Letras – Literatura pela
Universidade Federal de Roraima (2015). Bolsista Pibid/Capes de 2010 a 2012
na Universidade Federal de Roraima; Bolsista e voluntária Pibic/CNPq nos
anos de 2011 a 2012; membro da equipe do projeto O Cânone – Invenção
Escolar da Amazônia: Literatura e Ensino em Roraima, entre os anos 2011 a
2012 (projeto fomentado em duas de suas etapas pelo CNPq). É professora de
Língua Portuguesa, desde 2015, no Colégio Objetivo em Boa Vista, Roraima.

Delma Pacheco Sicsú


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Amazonas
(1994); comunicação Social/Jornalismo também pela Universidade Federal do
Amazonas (2013). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura
Infanto-Juvenil. Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do
Amazonas (2010). Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade
de Brasília – UnB, com pesquisa dentro da temática de narrativas indígenas.
Atualmente é professora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) no
curso de Letras. Também é professora da Secretaria Estadual de Educação,
Cultura e Desporto – Seduc.

Henrique Andrade Germano


Possui graduação em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do
Estado do Amazonas (2016) defendeu o Trabalho de Conclusão de Curso in-
titulado: Representações amazônicas na obra O instinto supremo, de Ferreira

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De Castro, sob a orientação de Verônica Prudente Costa. Participou do Programa


de Iniciação Científica da Universidade do Estado do Amazonas na edição 2015-
2016. Professor da Seduc-AM. Atualmente é operador de sistemas da Prefeitura
Municipal de Tefé.

Ivone dos Santos Veloso


Doutora em Letras (UFPA), Mestra em Estudos Literários (UFPA/2007),
Graduada em Letras – Habilitação em Língua Portuguesa (UFPA), Professora
Adjunto II da Universidade Federal do Pará, atua no ensino de Graduação e
de Pós-graduação latu senso, bem como, na pesquisa e na extensão universitá-
rias. Coordena o Projeto de pesquisa “Dalcídio Jurandir: faces do jornalista” e, an-
teriormente, foi coordenadora do Projeto de Extensão “Literatura infantil e teatro:
formando professores”. Foi Diretora da Faculdade de Linguagem/ UFPA/Cuntins
(2007-2014) e Coordenadora Local do Parfor/Letras – UFPA/Cuntins (2009-2014).
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Luso-Brasileira, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: Dalcídio Jurandir, infância, literatura
infantil, literatura brasileira de expressão amazônica, literatura e ensino, cultura,
história e identidade.

João Carlos de Souza Ribeiro


Doutor em Ciência da Literatura (2001) e Pós-Doutor em Poética pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004), professor adjunto 4 do quadro
permanente da Universidade Federal do Acre, com atuação na graduação em
Letras nas áreas de Teoria da Literatura, Literaturas em Língua Portuguesa,
Cultura Brasileira e Poética e na pós-graduação, vinculado ao Programa de
Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras – Ufac, ministrando disciplinas
nas áreas de Leitura do Texto Literário e Ensino de Literatura. É consultor
ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Acre – Fapac, Membro

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Sobre os Autores

Titular da Academia Literária Lima Barreto e autor da antologia poética Solidão


dos peixes.

Jorlaíne Monteiro Girão de Almeida


Cursa Mestrado em Letras com ênfase em Estudos Literários na
Universidade Federal do Amapá. Possui especialização em Linguística Aplicada
pela Faculdade de Tecnologia do Amapá, Bacharelado e Licenciatura em Letras
Português/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá. Atualmente é
professora efetiva do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Amapá - IFAP, Campus Macapá. É líder
do grupo: Núcleo de Pesquisa e Estudo de Língua Materna - Nupelm. Tem ex-
periência na área de Língua Portuguesa, Teoria Literária, Literatura Brasileira
e Capacitação Profissional com ênfase em Letras.

Liozina Kauana de Carvalho Penalva


Doutora em Estudos de Literatura, na área de Literatura Comparada,
pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Letras pelo Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo. Possui Graduação
em Letras pela Universidade Federal do Pará. Atualmente, é professora efetiva
do Instituto Federal do Pará – Campus Marabá Industrial, na área de Língua
Portuguesa; também possui experiência na área de Estudos Culturais; parti-
cipa de um grupo de estudos denominado Gpellc-PAM (Grupo de Pesquisas e
Estudos Linguísticos, Literários e Culturais na Pan-Amazônia), que surgiu da
necessidade de se discutir metodologias adequadas para se pensar a Amazônia,

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subvertendo modelos metodológicos centrados em perspectivas ordenadoras,


racionalizantes, que subjugam, hierarquizam e excluem alteridades.

Lorena de Carvalho Penalva


Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal Fluminense
(2016), financiada por Bolsa de Estudos da Capes. Mestra em Teoria Literária
e Literatura Comparada, pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013-
2015), financiada por Bolsa de Estudos do CNPq para Mestrado. Graduada em
Letras-Português, pela Universidade Federal do Pará (2007-2011). Atualmente,
é membro do Grupo de Pesquisas e Estudos Literários, Linguísticos e Culturais
da Pan-Amazônia (Gpellc-PAM), coordenado pelo professor Gilson Penalva, que
busca estudar obras teóricas e literárias que disseminam visões de Amazônia.

Luciana Marino do Nascimento


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais
(1993), mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1998) e doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade
Estadual de Campinas (2003). Graduada em Pedagogia pela Faculdade
Wenceslau Brás-PR (2015). Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: imaginário ur-
bano, linguagem, modernidade, literatura, cidade. Bolsista de Produtividade
em Pesquisa 2 do CNPq (PQ). Atualmente, Professora Associada IV da
Universidade Federal do Acre, em exercício no Departamento de Ciência da
Literatura/ UFRJ – Faculdade de Letras. Consultora ad hoc do CNPq e da Capes.
Consultora na Avaliação Trienal 2013 – Capes dos PPGs da Área Interdisciplinar.
Avaliadora do Inep – Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior - BASis. Docente do quadro permanente do Pipgla- Programa
Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Faculdade de Letras

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Sobre os Autores

da UFRJ. Membro do Conselho Editorual do International Jounal of Literature and


Arts.

Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões


Possui graduação em Licenciatura em Letras (Português e Inglês) pela
Universidade Federal do Pará (1969), mestrado em Letras (Letras Vernáculas)
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) e doutorado em Letras (Letras
Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986). Atualmente
é professora aposentada da Universidade Federal do Pará, Coordenadora do
Programa de Estudos Geo-Bio Culturais da Amazônia – Campus Flutuante,
da Universidade Federal do Pará. Coordena também o Projeto IFNopap –
Imaginário das Formas Narrativas Orais da Amazônia Paraense. Tem experiên-
cia na área de Letras, com ênfase Literatura Portuguesa, História da Literatura e
Estudo da Narrativa, atuando principalmente nos seguintes temas: Amazônia,
narrativa, literatura, oralidade e cultura.

Marli Tereza Furtado


Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual
de Maringá (1977), mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC,1982) e doutorado em Teoria e História
Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2002). No mestrado e no
doutorado foi bolsista Capes. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professora Associado IV da
Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Letras, com ênfa-
se em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: li-
teratura brasileira, literatura infantil, Dalcídio Jurandir, literatura regional e

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L I T E R AT U R A , C U LT U R A E I D E N T I D A D E D A A M A Z Ô N I A : C I R C U L A Ç Ã O , T R A M A S E S E N T I D O S

ensino de literatura. Vice-Coordenadora do Mestrado Profissional em Letras


– ProfLetras. Desenvolve pesquisa dentro da temática mulher e Amazônia.

Roberto Mibielli
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990),
possui mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2000),
doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2007) e pós-
-doutorado também pela UFF (2016). Atualmente é professor Associado da
Universidade Federal de Roraima. Atua na área de Letras, trabalhando prin-
cipalmente os seguintes temas: ensino de literatura, teoria e ensino, litera-
tura brasileira e literatura da/na Amazônia. Coordena o Programa de Pós-
graduação em Letras da UFRR. Criou e coordena o Grupo de Estudos Literários
Comparados, Cultura e Ensino de Literatura (DGP/CNPq), assim como atua
nos grupos de pesquisa: Permanência e atualização das fontes textuais ame-
ríndias nas literaturas americanas – o caso Circum-Roraima, coordenado pelo
Professor Fábio Almeida de Carvalho (PPGL/UFRR) e As trocas e transferência
literárias e culturais e a circulação literária e cultural em perspectiva histórica,
coordenado pelo Professor José Luís Jobim (PPGLit/UFF). É poeta, escritor e
fundador do coletivo Máfia do Verso. Coordena, desde 2018, o projeto de ex-
tensão Literatura em Roraima: Diálogos e Leituras.

Sheila Praxedes Pereira Campos


Doutora em Estudos de Literatura, na área de Literatura Comparada, pela
Universidade Federal Fluminense e Mestre em Letras pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFRR, na linha de pesquisa Literatura, Artes e Cultura
Regional. É graduada em Letras com Habilitação em Literatura. Atualmente,
é professora adjunta na Universidade Federal de Roraima onde atua na área
de Literatura (Amazônicas e Infanto-Juvenil) e Estágio Supervisionado em
Literatura, com lotação na Coordenação do Curso de Letras. Desenvolve

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Sobre os Autores

pesquisas em torno da formação discursiva sobre a Amazônia, com foco em


viagens e viajantes, especialmente Theodor Koch-Grünberg, e, desde 2015, so-
bre Mário de Andrade.

Verônica Prudente Costa


Possui Doutorado e Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa
e Africanas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharelado
e licenciatura nas áreas de Letras: Português/Literaturas (2003) e Inglês /
Literaturas (2000) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Especialização em Literatura Portuguesa (UERJ). Atuou como Professora
Adjunta na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) entre 2011 e 2018.
Atualmente é Professora Adjunta na Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Membro dos grupos de pesquisa: Estudos de Literaturas e Identidades (UFRR)
e Literatura e Antropologia: cartografias e outros procedimentos narrati-
vos (UFFRJ). Líder do grupo de pesquisas: Cátedra Amazonense de Estudos
Literários e da Cultura (UEA). Professora permanente do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH-UEA), vinculado à
Rede Amazônica Interdisciplinar de Programas de Pós-Graduação. Professora
permanente e Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL-UFRR).

Yurgel Pantoja Caldas


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (1997),
mestrado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2001) e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2007). Cumpriu pós-doutorado na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa (2011/2012), faz parte do Conselho Editorial da revista
Cuadernos Literarios, é professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal
do Amapá e professor de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade

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Federal do Amapá, do qual foi coordenador entre 2009 e 2011. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente
nos seguintes temas: Amazônia, cinema, civilização, poesia, narrativa, fronteiras,
desenvolvimento, contemporaneidade e violência.

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