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2004
Resumo
A abertura para o outro é uma condição para a tolerância, pois uma das
bases da intolerância é o mecanismo defensivo de projetar sobre o outro
— meu semelhante na diferença — tudo aquilo que eu rejeito em mim
mesmo. Se não quero admitir o “mal” e a contradição em mim mesmo,
vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero
saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, mais ele serve de
suporte para esse mecanismo de defesa — foi o que Freud percebeu ao
articular a intolerância ao “narcisismo das pequenas diferenças”.
É importante pensar que o conflito Ocidente versus islã hoje talvez não
seja um conflito entre bárbaros e civilizados, mas entre as modalidades
de barbárie produzidas por ambos os sistemas, em que cada um tenta
eliminar no outro os elementos que podem perturbar suas certezas de
estar do lado do Bem e da Verdade, únicos e inquestionáveis.
Observem que Lutero não propôs ideias heréticas em 1519; não colocou
em dúvida a existência de Deus nem a verdade dos textos sagrados, mas
apenas questionou o lugar da Igreja católica como detentora da verdade
divina e dos caminhos para alcançar a salvação. A crise que se abriu a
partir da Reforma foi uma crise sobre os critérios da fé, que equivaleu a
uma crise intelectual e existencial para os cristãos do século XVI . As
palavras das autoridades da Igreja foram, durante séculos, critério
confiável de verdade — e Lutero as recusava, propondo que a
consciência individual é que deveria se responsabilizar pelo caminho de
um cristão. A questão da escolha ficou colocada, a partir de então, de
uma forma diferente da que está em santo Agostinho, por exemplo. Não
se tratava apenas de escolher entre os caminhos do bem e o do pecado,
contidos nas Escrituras e revelados aos tutores das consciências cristãs;
era preciso tentar discernir, individualmente, o sentido dos trechos
obscuros dos textos sagrados para poder diferenciar o bem e o mal. Com
isso, inauguraram-se o desamparo intelectual do sujeito moderno e a
crise da verdade em que estamos mergulhados até hoje.
Sua obra não pretende propor uma nova certeza; tanto que escreveu
inaugurando o título de Ensaios. Como escreve Marcelo Coelho, é
impossível sintetizar o pensamento de Montaigne. Típico homem culto
da Renascença, queria incorporar ao seu pensamento toda a diversidade
de informações e de pontos de vista que estavam abalando seu mundo,
no século XVI. Homem aberto para o outro, manteve também em
suspenso as conclusões de seu pensamento. Pode ser considerado um
cético, em parte em função da abertura de seu pensamento, em parte
por sua afinidade pelo ceticismo da Antiguidade, que ele conheceu lendo
as obras de Sexto Empírico. Sua atitude cética não defendia a
impossibilidade de saber qualquer coisa — o que justificaria uma
liberdade moral sem limites —, mas a suspensão do julgamento: diante
de questões duvidosas, é melhor colocar os dogmas e as certezas em
dúvida. Nas vigas da biblioteca de mais de mil livros, onde poderia estar
contido um imenso saber, mandou escrever frases retiradas do
pensamento de filósofos céticos, a começar do célebre que sais je?.
A própria organização dos três volumes de sua obra afirma essa atitude:
Montaigne deixa seu pensamento navegar ao sabor de suas preferências
e curiosidades momentâneas, sem perseguir nenhum fio condutor a não
ser o gosto de experimentar-se por escrito. Sua filosofia confunde-se
com o registro minucioso e apurado desse eu que se observa em
permanente transformação, tomado não como critério de elaboração de
uma verdade absoluta, estável e universal, mas da verdade da
experiência plasmada pela escrita.
Mas, para ser fiel ao método, Descartes vai um pouco mais longe e
propõe um quinto nível de dúvida: e se Deus for um gênio enganador? E
se ele dotar o homem de uma capacidade de falsa percepção? Então
estaríamos isolados de toda possibilidade de conhecer o mundo. O
cogito só nos garante a verdade de nossa existência, mas não nos
assegura nada sobre a existência do mundo. Se o método cartesiano só
nos conduzisse até a certeza estabelecida pelo cogito, estaríamos
abandonados em uma existência vazia de qualquer certeza, apoiados
apenas em nosso eu inflado, perdidos em um mundo que nem sabemos
se existe ou se é um delírio solitário.
A partir daí ele encontrou o caminho para reconstruir a regra da fé, com a
ressalva de que a perfeição de Deus não é revelada ao homem mas
pensada por sua razão, percebida pelo homem. Se Deus não quis nos
enganar e nos dotou da capacidade de perceber claramente algumas
coisas — e isso, sei a partir da percepção clara e distinta de que existo
—, posso confiar nessa percepção para, a partir das ideias claras e
distintas, estabelecer a regra da fé. Assim, o cogito volta a ser um critério
de verdade firme sobre o qual se pode fundar a relação entre o eu, a
mente que percebe e julga a clareza e distinção de suas ideias, e a
verdade.
É importante pensar que o conflito Ocidente versus islã hoje talvez não
seja um conflito entre bárbaros e civilizados, mas entre as modalidades
de barbárie produzidas por ambos os sistemas, em que cada um tenta
eliminar no outro os elementos que podem perturbar suas certezas de
estar do lado do Bem e da Verdade, únicos e inquestionáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Giuseppe Ungaretti. “Atrito” (1816). In: A alegria. Trad. Sergio Wax. São
Paulo: Roswitha Kempf, 1989.
Escritos, vol. I. Trad. Tomás Segovia. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1987.