Você está na página 1de 5

IDENTIDADES ASSASSINAS.

Resenha critica

“O Oriente e o Ocidente pertencem a Deus. Para onde quer que se voltem os vossos olhos,
eles encontrarão sempre a face de Deus,pois Deus é imenso e sapiente.” (Alcorão, II, 109)

1.

No início tínhamos que analisar e comentar duas páginas de

As Identidades Assassinas

de Amin Maalouf. Que se compreendem melhor se analisarmos todoo livro. Nem podia ser de
outra maneira. Porém, o problema da identidade temuma génese. E por aí também fomos,
mesmo correndo o risco de estarmos aceder a essa tentação de ver nos Gregos o início de
tudo. Que não é maistendenciosa que a inclinação para descobrir no Oriente, de cores hippies,
asolução para o deprimido homem ocidental a viver na selva das cidades. Fomos,sem ligar a
estes avisos, perceber melhor Heraclito e Platão. O obscuro Heraclitoe o luminoso e etéreo
Platão. E depois a solução hegeliana. A superaçãohegeliana (

Aufhebung

). Aos poucos, clarifica-se o problema e abre-se ohorizonte a novas questões. Adensa-se o céu
das ideias. Ao mesmo tempo,multiplicam-se as leituras: Steiner, Giddens, Said, Savater,
Finkielkraut.Depenicam-se os textos que o menu é extenso e escasso o tempo. Alguns servir-
se-ão mais tarde: Castells, Slavoj

ek, Chomsky, Negri. Este deambular íasendo vertido num diário de viagem, um relato
fragmentário dessa errância. Esteescrito é um pouco isso, um pouco mais que isso por respeito
às exigênciasacadémicas. Mas reconhecemos que o estilo ficou sacrificado. Se é verdade queo
estilo é o homem, então a mulher não se deveria sacrificar ao estilo. Noentanto, optámos por
um texto que reflecte a viagem errática da reflexão, as suashesitações, os seus momentos mais
inspirados e luminosos, os seus becos semsaída que terminam abruptamente, as
considerações intempestivas. No fim, asensação de algo que não ficou completo, mas a
fundamental vontade deprosseguir um caminho que aparece agora tão-só vislumbrado.2.
Existe uma reacção contra a mundialização, vista como um flagelo, sem noentanto se reagir do
mesmo modo contra os aspectos concretos de que se revesteesse processo, como sejam a
evolução da própria aldeia planetária (aldeiaglobal), a Internet ou a evolução das
comunicações.3.

A reacção contra a mundialização dá-se pressupondo uma identidade entremundialização e


americanização e, neste contexto, levantam-se questões sobre aidentidade cultural da França
perante esse processo de uniformização.4.

Maalouf constata, deste modo, que num país ocidental culturalmente evoluído,há quem
desconfie da modernização / mundialização, vista como uminstrumento camuflado para
a dominação duma cultura estrangeira.5.

Daqui Maalouf parte para sublinhar outro aspecto essencial: o sentimentomilenar dos povos
não-ocidentais de negação de si próprios e de capitulação dasua cultura em muitas dimensões:
medicina, arte militar, literatura, religião,língua, perante a cultura ocidental que, ao longo dos
tempos, se apresentou comosuperior.6.

Este sentimento facilmente conduziu a uma personalidade ressentida, resultadoduma


identidade ameaçada, dum sentimento de orfandade, sentindo-se estranhose intrusos no
mundo.

7.

Este sentimento pode ser ilustrado com a reacção de alguns franceses perante
amundialização, vista como uma forma de americanização, um cenário subtilonde entraria o
mortífero “Cavalo de Tróia”.8.

É assim que a modernização ou qualquer esforço de modernização se tornasuspeito quando se


desconfia tratar-se do “Cavalo de Tróia” duma culturadominadora (ou aspirando a isso).9.
Podíamos distinguir mundialização e globalização. Segundo DOLFUSS (1998:12),
“a mundialização é o intercâmbio generalizado entre as diferentes partes doplaneta, sendo
então o espaço mundial espaço de transacção da humanidade”. Aglobalização, corresponderia
a um último estado deste processo demundialização, alcançado graças à instantaneidade da
informação e que vêsurgir um forte e tentacular sistema financeiro que se autonomizou e
controla aeconomia (DOLFUSS, 1998:13). Segundo GIDDENS, (2007: 52), aglobalização
corresponde ao “facto de viermos cada vez mais num «únicomundo», pois os indivíduos, os
grupos e as nações tornaram-se mais

interdependentes

.” Este processo de globalização conduz ao esboroar dosquadros tradicionais de referência


para a construção da identidade dosindivíduos. A nível cultural, muitos são os que manifestam
a sua preocupaçãopelo facto da globalização levar à criação duma cultura global, comandada
apartir de Hollywood, pelo que “a globalização é uma forma de «imperialismocultural», em
que os valores, os estilos e as perspectivas ocidentais sãodivulgados de modo tão agressivo
que suprimem as outras culturas nacionais”(GIDDENS, 2007: 64). No entanto, outros autores
apontam para umaconsequência diferente, mesmo oposta: a de uma crescente diferenciação
dasidentidades culturais que daria lugar à coexistência da diversidade de culturas.Esta situação
daria lugar a novas formas de identidade híbrida, um estiloeclético, apontando para
composições oriundas de diversas culturas tradicionais(GIDDENS, 2007: 65).10.

O que está em jogo é a questão da identidade; o confronto entre as culturas deveanalisar-se


começando-se por se esclarecer o que caracteriza a identidade própriade cada um dos
elementos em presença e em (eventual) confronto.11.

O sentimento dos povos não-ocidentais não é, assim, tão bizarro quando algo deparecido se
passa com os franceses que mesmo protagonizando uma culturaevoluída, amadurecida,
universalmente reconhecida, temem a mundialização,por verem nos elementos em que ela se
concretiza, elementos dum “Cavalo deTróia” que alberga num processo de americanização.12.

Se em termos do nosso ADN somos, sem dúvida, uma única espécie cuja origemremonta a
África; se as diferenças que associamos às identidades raciais sãosuperficiais (debaixo da pele
somos todos muito idênticos); se as diferentes“raças” têm vindo a cruzar-se entre si desde
tempos imemoriais; donde hajaquem afirme que não existem raças ou estão em vias de
extinção. Dondetambém resulta este “enigma central”: como se pode explicar a tendência
dosgrupos de homens a identificarem-se mutuamente como estranhos, quando são

5
todos biologicamente tão semelhantes? É que esta tendência esteve na origem demuitos dos
piores acontecimentos de violência no século XX.13.

Existem identidades assassinas. O exacerbar das identidades e o absolutizar dasdiferenças


conduz ao comportamento ressentido, à mentalidade do agredido. Àformação de dois campos
opostos que se acusam mutuamente. A mundializaçãoexacerba os comportamentos
identitários (MAALOUF, 2002:133), podedesencadear reacções suicidárias (MAALOUF, 2002:
133-134), mas contém emsi os instrumentos para uma saída. Como veremos.14.

“Nada há de bárbaro e de selvagem nesta nação, segundo me relataram, a não serque cada
um chame barbárie ao que não é seu hábito; como por certo parece quenão temos outra mira
da verdade e da razão além do exemplo e da ideia dasopiniões e usanças do país donde
somos. Aí está sempre a perfeita religião, aperfeita polícia, o perfeito e consumado uso de
todas as coisas.” (Montaigne,

Éssais

, Paris, Gallimard, p. 203) O bárbaro apenas existe para aquele que setoma a si mesmo como
norma perfeita e de referência a partir da qual se acha nodireito de julgar os outros. O olhar
que, exageradamente, se auto-contempla étambém o olhar que exclui o outro do seu campo
(de visão). Porém, nãopodemos excluir ninguém da missão de acolher o outro, de nos
desenvolvermoscomo rede, enquanto nós.”Porque é o nosso olhar que aprisiona muitas vezes
osoutros nas suas pertenças mais estreitas e é também o nosso olhar que tem opoder de os
libertar.” (MAALOUF, 2002: 31).15.

O problema da identidade vem até nós desde os Gregos. O problema sobre

o queé

ou

o que faz ser

, o problema do

ser enquanto ser

fundou em Aristóteles umconjunto de preocupações fundantes que a tradição arrumou numa


disciplinadesignada precisamente como ontologia. Mas já antes, nos pensadores pré-
socráticos, se colocava o problema da identidade. O célebre aforismo do obscuroHeraclito,

nunca te banharás duas vezes no mesmo rio


, enunciava asdificuldades que se encerram por detrás da impermanência do real: o rio nunca
éo mesmo, nunca é idêntico a si próprio; quando se entra no rio pela segunda vez,o rio já não
é o mesmo. Porém, seguindo este pressuposto de Heraclito de que

tudo flui

, ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, porque também osujeito que nele entra
nunca é o mesmo. Num real onde tudo está sujeito àmudança, nada permanece idêntico. O
problema que assim é formulado,encontra uma primeira solução em Platão: não se podendo
fazer conhecimentocerto e seguro duma realidade que flui,

que é e não é

, uma mistura de ser e não-ser, então há que postular uma realidade imóvel, perfeita por isso,
cujacontemplação proporcionará um conhecimento verdadeiro. É assim que o reinodas Ideias
surge como instância reitora do real, mundo das identidades perfeitas,porque imóveis, puras,
sem mistura. Do mesmo modo que a cultura filosóficaocidental nada mais é, segundo alguns,
que o comentário dos textos de Platão,também podemos afirmar que a colocação do
problema da identidade em Platão,acabará por marcar o destino do conceito. Com efeito,
teremos que esperar porHegel para que uma outra maneira de entender a identidade seja
decisiva para a

Você também pode gostar