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EXPERIÊNCIAS SONORAS: REFLEXÕES SOBRE A TRADIÇÃO

OCIDENTOCÊNTRICA E OUTRAS CULTURAS MUSICAIS COM VILLA-LOBOS E


SEPULTURA

INTRODUÇÃO

Vou começar esse texto com um "causo".

Tenho um irmão que dedica sua vida ao trabalho com os povos indígenas. É um indigenista,
como diriam aqueles que gostam de classificar. Certa feita, ele recebeu a missão de
viabilizar a troca de sementes entre o pessoal de duas terras, uma aqui do Sul, outra na
divisa do atual Estado de Minas Gerais com a Bahia. Seria sua primeira visita a essa terra
do Brasil central. Depois de várias viagens, por vários meios, ele chega ao destino. Uma
comissão de anciãos e curiosos vem lhe receber. Encaminhadas as devidas apresentações e
esclarecimentos a respeito da natureza de sua missão, ele é orientado a tratar das sementes
com o responsável pela Opy (casa de reza). Lhe é apontada a direção e nada mais. Ele
caminha, pensando nas palavras que deve usar, no respeito humilde, na forma com que pode
conquistar a confiança. Chegando ao destino, vê que um homem trança algumas folhas na
entrada da Opy. Parece algo totalmente deslocado, mas esse homem guarani tem uma
tatuagem do Sepultura no braço direito e usa uma camiseta do Iron Maiden. Aproximando-
se, meu irmão diz:
- Boa tarde, estou procurando o responsável pela Opy.
- Se estava, já não está mais. Sou eu mesmo.
O olhar do menino ocidental deveria parecer atônito e espantado. O homem ri alto.
- Essa é a casa de reza mais rock'n'roll que tu vai encontrar na vida!

Fenômenos de trocas culturais como o deste “causo” já não são tão surpreendentes.
Os processos e tecnologias que viabilizaram a atual fase da globalização estão de tal forma
presentes na composição da realidade que é difícil imaginar alguém que não tenha tido
contato com eles. Porém, se a tecnologia e os processos são, de certa forma, controlados
pelos herdeiros de uma determinada forma de civilização, seria de supor que essa troca seja
muito mais uma imposição cultural do que uma relação dialógica estabelecida em pé de
igualdade. Quando pensamos na potência avassaladora da indústria cultural, sua
canibalização de culturas para refrescar e justificar sua ânsia comercial e a ideologia do
consumo, tendemos a ver o processo como uma via de mão única. Neste confronto entre
culturas, temos um ganhador e um perdedor; aquele que se impõe e aquele que é apagado.
Mas será que as coisas são sempre assim? Será que entre essa dicotomia em preto e
branco de poderosos e dominados, não existe uma zona cinza, um lugar onde essas relações
se tornam um pouco mais complexas? Pontos de ruptura e pontos de resistência? Analisando
dessa forma dicotômica, não estaríamos olhando o mundo pelas mesmas lentes que julgamos,
não damos por descontada uma pretensa superioridade de uns sobre outros?
Fato é que encontros interculturais não são novidade no mundo. Muito pelo contrário:
quando olhamos para a história numa ampla perspectiva, as trocas é que são a norma.
Inclusive, como alertam Jos de Mul e Renée van de Vall, "when we study history, we soon
realize that cultures never have been homogeneous, self-contained and unchanging wholes"
(2011, p. 11). Sem negar a pressão que uma forma cultural pode exercer sobre outra, muito
menos as relações e interesses de poder implicadas no processo, acredito que nem toda troca
entre a cultura de massa ocidental e as culturas dos povos originários seja realizada na base
do roubo, da imposição ou do apagamento. É possível, como disse antes, que existam pontos
de ruptura, de desvio, de resistência. Pontos de uma combinação improvável, que aproximam
personagens improváveis, e resultam em experiências artísticas e estéticas que marcam todos
os envolvidos e tornam difícil a análise dicotômica do dominante e dominado.
Para levar a cabo esta análise, vou buscar a referência em duas experiências artísticas
musicais que se dispõem a estabelecer o contato entre uma forma de produção ocidental com
produções das culturas de povos originários do que hoje é o Brasil. Uma delas é a suíte
sinfônica Floresta do Amazonas, composta por Heitor Villa-Lobos em 1958. A outra é o
disco Roots, da banda de heavy metal Sepultura, lançado em 1996. Este excêntrico encontro
tem um sentido: acredito que tais obras possam nos ajudar em algumas reflexões sobre a
produção artística em um mundo globalizado, onde diferentes processos histórico-culturais
inevitavelmente se comunicam e se influenciam. Uma pergunta que podemos nos fazer, e que
vai na mesma linha da pesquisa desenvolvida por Flávio Garcia da Silva (2019) sobre o disco
Roots, do Sepultura, é se houve nesses casos uma verdadeira troca de experiências que
culmina numa obra "original", marcadora de um encontro entre culturas não-hierarquizadas
no seu valor e sua constituição; ou se são casos do que José Jorge de Carvalho (2010) chama
de "canibalização" de culturas não-ocidentocêntricas, sem outro objetivo que não o de
refrescar a indústria cultural com um material exótico. Dito de outra forma: estamos lidando
com uma antropofagia, um encontro entre culturas que pode apontar novos caminhos e
perspectivas para ambas; ou uma canibalização de culturas estranhas ao cânone ocidental,
com o único objetivo de reciclar sua sanha consumista?

A ARTE ENTRE A ANTROPOFAGIA E A CANIBALIZAÇÃO

Antes de prosseguir, seria interessante desvendar um pouco os sentidos de


antropofagia e canibalização que pretendo usar aqui. Me parece que o ponto central para
entender estes conceitos é a comunicabilidade entre representantes de universos culturais
distintos dentro do processo de criação artística. Levando em consideração o fato de que
quando fazemos a análise da comunicação estética entre culturas, principalmente quando está
presente alguém que traz consigo uma formação eurocentrada, não é possível abrir mão dos
aspectos políticos e econômicos que o processo inevitavelmente carrega; não temos como
fugir da questão da intencionalidade subjacente ao encontro. Simplificando: o que pretendem
os envolvidos nos momentos de encontro? Quais as consequências que o encontro tem para
os envolvidos? Será possível estabelecer uma fronteira entre a produção autêntica, a
performance que une e transforma participativamente os envolvidos, e a exploração de uns
sobre os outros?
Com essa última questão já é possível delinear uma possível distinção entre
antropofagia e canibalização. Na primeira, estaria em curso um processo de colaboração e
transformação não-hierárquica no fazer artístico, sendo que na segunda haveria o sequestro
de elementos de uma cultura pela produção artística da outra para seu proveito (na grande
maioria das vezes, senão todas, econômico). Pensando em termos de uma pluralidade artística
do mundo, podemos pensar que esses pontos de encontro podem ser colaborativos e criativos,
ou predatórios e limitadores. Podem significar a abertura de perspectivas para os envolvidos,
ou a colonização estética de um sobre o outro.
Partindo da ideia desenvolvida por Oswald de Andrade (1976) e suas companheiras e
companheiros de movimento modernista no Brasil, podemos pensar a antropofagia como um
momento de revolta e “vingança” contra o processo de imposição cultural perpetrado pelos
colonizadores. Como bem resume Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto (2014, p. 284),

São ideias e intuições que possuem, como característica mais saliente, a tentativa de
libertação do espelho eurocêntrico (onde a imagem das sociedades latino-americanas
tem sido historicamente distorcida) por um ataque ao que o pensador peruano Aníbal
Quijano (2005) denominou como “colonialidade do saber”.
Trata-se, assim, do processo de resistência de uma cultura que, porém, não ignora a
inevitabilidade dos contatos e influências externas, mas se afirma dentro dessa inevitabilidade
enquanto personagem ativo, que deglute e molda ao invés de ser passivamente devorado.
Ainda seguindo a interpretação de Netto, podemos dizer que “as intuições antropofágicas de
Oswald afirmam a simultaneidade dos diferentes lugares na conformação do mundo: abrem
espaço para que múltiplas epistemes dialoguem” (2014, p. 285). Esta ideia da antropofagia
enquanto resistência e revolução é o que faz com que um antropólogo do calibre de Eduardo
Viveiros de Castro venha a comparar o conceito trabalhado aqui com seu conceito de
perspectivismo ameríndio, definindo-o como “uma arma de combate contra a sujeição
cultural da América Latina, índios e não índios confundidos, aos paradigmas europeus e
cristãos” (2007, 118).
Porém, se há resistência, é porque há ataque. Não podemos supor que, por conta de
alguns movimentos que buscam, pelo menos, equiparar as relações entre centro e periferia do
universo ocidental, elas tenham deixado de lado a característica colonial de imposição de sua
forma e saque, para seu único benefício, das produções culturais e artísticas que aqui se
desenvolvem. Afinal, a história de nosso continente é a história do roubo sistemático de
nossas riquezas, assassinato de nossas gentes, apagamento de nossas culturas 1. Na era da
indústria cultural, é perceptível o processo de apropriação de elementos das nossas culturas
populares e tradicionais para os fins de entretenimento e comércio, resultando assim num
produto esvaziado de seu sentido, de seu contexto e, pior, que gera lucro para uma indústria
alheia aos interesses da comunidade para a qual aquela cultura significa a própria
representação de si. Visto por essa ótica, o próprio movimento modernista brasileiro recebe a
crítica de ser veículo da canibalização da cultura popular, como coloca José Jorge de
Carvalho (2010, p. 64):

Esse ziguezague de hibridismo alcançou seu ápice no movimento modernista dos


anos 20 do século passado, de que sobressai, como testamento ideológico, o
Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. Este documento propicia a
justificativa para a “canibalização” irrestrita das culturas populares por parte de uma
elite social e política centrada em São Paulo e com ramificações no Rio de Janeiro,
em Belo Horizonte e demais centros de poder localizados no Sul e no Sudeste. (...) O
famoso lema antropofágico “Só me interessa o que não é meu” afirmou uma espécie
de direito inconteste dos artistas e intelectuais de elite a retirarem todos e quaisquer
elementos das nações indígenas, das tradições afro-brasileiras e do chamado folclore
1 Não deixo de pensar aqui na grande obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano, As Veias Abertas da América
Latina (1976).
em geral e incluí-los, tal como os encontraram, ou transformando-os em suas obras e
suas apresentações públicas. Tudo em nome de uma unidade nacional que foi
decretada por essa mesma elite, sem nenhuma consulta ou combinação com as
classes populares.

Dessa forma, temos a cristalização de uma situação que, em última instância, continua
o processo colonial de roubo e apagamento ao qual as culturas populares e tradicionais da
América Latina têm sido submetidas praticamente desde a chegada da cruz e da espada por
essas bandas.
Pois bem, o que separa e distingue os conceitos de antropofagia e canibalização? Será
apenas o ponto de vista de quem analisa o processo, já que o mesmo movimento modernista é
tratado de uma forma e de outra? Talvez a resposta esteja não exatamente no ponto de vista
de quem analisa o processo, mas de quem participa do processo. Se uma ou um artista
nitidamente identificado com a indústria cultural recolhe elementos até então não utilizados
para “refrescar” o interesse por seu produto, pode ser que a relação esteja mais relacionada ao
processo de canibalização. Porém, se artistas de diferentes culturas, mesmo que uma das
partes seja identificado com a indústria cultural, estabelecem uma comunicação e decidem,
cada um por seus motivos, estabelecer uma parceria na produção de uma obra ou um
intercâmbio de experiências, acredito que podemos pensar em antropofagia. Talvez a análise
deva partir para a intencionalidade entre as partes, a existência ou não do respeito mútuo, e a
ideia de que o encontro entre diferentes histórias culturais pode ser predatório ou
colaborativo. A seguir, apresento dois momentos da música brasileira que acredito ilustrarem
bem os movimentos descritos nesta seção.

HEITOR VILLA-LOBOS E SUAS PAISAGENS SONORAS PARA A ELITE

Lembro bem a primeira vez que ouvi a suíte sinfônica Floresta do Amazonas, de
Heitor Villa-Lobos. Eu, que nunca estive lá, me senti navegando por seus rios, ouvindo o som
de pássaros e insetos, até que ao longe começo a identificar um canto ritual. Aos poucos as
vozes vão crescendo, até que me sinto em plena terra indígena, rodeado por vozes ancestrais,
vozes que falam de dentro da floresta e me levam a descobrir seus encantos mágicos, exóticos
e assustadores.
Essa sensação de adentrar a floresta através do som, deve-se à capacidade genial que
Villa-Lobos tem de criar o que se chama de paisagem sonora a partir de elementos que busca
na musicalidade de diversas etnias que compõem o universo de nações do Brasil e da
América Latina. Como o compositor buscou esses elementos ainda é um mistério para nós,
principalmente porque ele mesmo criou uma mitologia sobre sua própria figura, fazendo com
que fiquemos sem saber até que ponto suas histórias são verdade ou fruto dessa criação de
personagem. Marco Antônio Carvalho Santos (2010, p. 19) conta que, entre os anos de 1905
e 1912, Villa-Lobos teria empreendido uma série de viagens das quais coleciona um acervo
de melodias e canções populares e folclóricas. Ainda segundo Santos, “mesmo sem o rigor e
sistematicidade de compositores como Bela Bartok ou Guerra Peixe, Villa-Lobos absorveu e
anotou muito da música que ouviu nas suas viagens utilizando o material registrado e,
sobretudo, a experiência acumulada na sua produção musical”.
Porém, toda essa influência da música tradicional e popular brasileira só vai aparecer
nas suas composições a partir da sua primeira viagem a Paris, em 1923, quando percebe que
existe um mercado para o consumo do exótico, aberto pelas vanguardas artísticas da época.
Assim, segundo Paulo Renato Guérios (apud SANTOS, 2010, p. 21),

Villa-Lobos começou a utilizar amplamente em suas composições os ritmos da


música popular, com os quais convivia fora dos teatros no Brasil, mas que não tinha
incorporado em suas criações devido ao valor negativo atribuído à estética popular
pelos músicos eruditos brasileiros (...). Logo após voltar de Paris, em 1924, ele
pesquisou também cantos indígenas, ouvindo no Museu Nacional os fonogramas
gravados por Roquette-Pinto durante a expedição Rondon, em 1908 - várias de suas
composições utilizaram a partir de então trechos desses cantos.

Uma delas é a que tratamos aqui, Floresta do Amazonas. Originalmente composta sob
encomenda para servir de trilha sonora para o filme Green Mansions (1959), de Mel Ferrer,
onde Audrey Hepburn representa uma menina da selva (sic!) que se apaixona por um viajante
representado por Anthony Perkins. Villa, porém, não gostou da forma como sua música foi
usada no filme, transformando-a em uma outra obra, essa sim a Floresta do Amazonas que
conhecemos como sua composição. Marcos Júlio Sergl (2019, p. 179) descreve assim a
formação da paisagem sonora composta por Villa:

O coro masculino, após alguns compassos introdutórios realiza sons onomatopaicos


(gritos frenéticos) sobre acordes dissonantes e vai reaparecer ocasionalmente, criando
uma paisagem sonora característica dos habitantes da floresta. O canto em uníssono,
com fragmentos de palavras em nheengatu, representa o elemento nativo. Uma voz
feminina realiza diversos cantos com caráter onomatopaico de pássaros da floresta.

Dado o interesse deste texto, a pergunta que podemos fazer é: em que tipo de processo
está inserida a composição de Villa-Lobos? Uma boa pista podemos tirar do seguinte
comentário de Sergl (2019, p. 161) sobre o uso de elementos indígenas pelo compositor: “o
aspecto fundamental a ser observado é que liderou um movimento renovador, a busca por
uma cultura e por fontes musicais autênticas brasileiras, mostrando ao mundo uma paisagem
sonora particular, exótica, de acordo com o pensamento da elite nacionalista brasileira,
influenciada pelo pensamento europeu da época”. Dessa forma, me parece que o uso desses
elementos está muito mais a serviço de uma demanda por experiências estéticas exóticas que
parte de uma elite intelectual nacional e estrangeira, do que da real valorização da cultura
tradicional de nossos povos. Inclusive, o elemento indigena da composição é um elemento
sem corpo, é um fantasma que aparece e desaparece sem deixar rastro, sem marcar presença.
Quem ouve a obra não sabe quem é esse povo, de onde ele vem, qual sua cultura, qual sua
história, como se deu o encontro… até porque muito provavelmente esse povo não existe em
outro lugar que não seja na imaginação de Villa-Lobos. Temos, assim, uma relação que
beneficia apenas uma das partes, além de reforçar os estereótipos criados a respeito dos
“selvagens” pela ideologia colonial e reforçados pela indústria cultural (não podemos
esquecer que a demanda original era a composição para um filme de Hollywood, com todo o
peso que isso acarreta).

“ESTRATÉGIA XAVANTE” E A “REVOLUÇÃO CARAÍBA HEAVY METAL” DO


SEPULTURA2

Damos agora um salto de meio século e caímos no mundo do heavy metal, estilo
musical que leva ao limite a estética criada pelo rock’n’roll. Saímos da ambientação da
música erudita e movimentos de vanguarda e chegamos no centro da cultura de massa e da
indústria cultural. Temos, porém, semelhanças: assim como Heitor Villa-Lobos, a banda
Sepultura também buscou referências na cultura popular e tradicional brasileira para algumas
de suas composições, principalmente na concepção do disco Roots, lançado em 1996. Neste
álbum eles aprofundam uma tendência que já vinha sendo desenhada em seu trabalho

2 Os termos em destaque fazem referência aos textos de Flávio Garcia da Silva (2019) e Flavio Pereira Senra
(2008), utilizados para compor a reflexão a respeito da obra do Sepultura.
anterior, Chaos A.D., de buscar temáticas e sonoridades que conferissem uma identidade
brasileira ao som produzido pela banda.
À nossa reflexão interessa principalmente a faixa Itsári, gravada na aldeia Xavante de
Pimentel Barbosa, no interior do Mato Grosso. A história dessa aproximação começa com a
gravação do CD Etenhiritipá – Cantos da Tradição Xavante, viabilizada através de uma
parceria entre os Xavante e o Núcleo de Cultura Indígena de Ailton Krenak e Angela
Pappiani. Foi justamente através desta última que Max Cavalera, vocalista e guitarrista da
banda, conheceu a música tradicional Xavante. Segundo seu próprio relato, esta seria a
possibilidade da banda entrar em contato com o que existe de mais profundo na musicalidade
brasileira: “na minha opinião, se conseguíssemos gravar com eles, chegaríamos às raízes da
música brasileira. Era uma música feita quinhentos anos antes do samba ou da bossa nova, e
voltaríamos ao âmago e às origens da musicalidade do meu país”. (Mclver apud SILVA,
2019, p. 49).
Também foi por parte de Angela que os Xavante passaram a conhecer a música do
Sepultura e sua importância no cenário musical internacional. Flávio Garcia Silva (2019, p.
56), que foi até a aldeia conversar com os Xavante a respeito do episódio, relata assim a
decisão de receber a banda:

Angela enviou todo o material da banda Sepultura para Cipassé [liderança da aldeia
na época da gravação] que levou no Warã [ casa de assembleia do povo Xavante]
apresentando, então, para as outras lideranças. Segundo Cipassé, ele explicou que
seria importante para a aldeia esse trabalho, pois eles já haviam feito um trabalho
anterior (Cantos da Tradição Xavante) e que aquilo seria importante para a aldeia,
para os Xavante e para todas as comunidades indígenas. Cipassé entendia esse
projeto, conforme se recorda, como uma questão política mostrando para os não
indígenas e para o governo que a comunidade indígena atua em várias áreas. Ainda
de acordo com Cipassé, as lideranças concordaram, mas pediram que eles não
levassem bebidas alcoólicas e nem usassem nenhum tipo de droga ou substância
ilícita dentro da aldeia e, então, comunicaram a Angela que organizou tudo, entre
datas e disponibilidade de acordo com as atividades da aldeia.

Uma vez organizados os preparativos, a banda se dirigiu à aldeia para as gravações. O


encontro parece ter sido uma experiência de imersão e troca marcante para os envolvidos. Em
entrevista a Jotabê Medeiros, publicada no Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo, Max
Cavalera relata assim o encontro:
Quando o avião finalmente desce, os xavantes já cercam para receber os visitantes.
Tudo na aldeia tem certa cerimônia. Todos da tribo cumprimentam um por um os
visitantes, levam a gente ao centro de uma clareira, que os indigenistas chamam de
parlamento e começam a se apresentar, primeiro os mais importantes. Pedem que
todos nos apresentemos no centro do parlamento, a banda, os roadies, minha mulher,
todo mundo. não tem estrela lá, é todo mundo igual. Ficamos dois dias vivendo como
os xavantes, tomando banho de rio, encardidos de poeira, o corpo pintado. Para cada
música eles têm uma pintura adequada. Nós gravamos no primeiro dia pintados com
urucum, uma tinta vermelha, e no segundo dia pintamos a cara de preto e vermelho.

A composição que acabou recebendo o nome de Itsári (que significa “raízes” na


língua Xavante), tem como base um canto de cura chamado Datsi Wawere, sobre o qual os
integrantes da banda acrescentaram percussão e violões. Cabe salientar que, para os Xavante,
o processo de composição não estava separado do processo de cura do qual o canto
originalmente faz parte. Este relato trazido por Flavio Garcia Silva (2019, p. 60) é muito
importante:

Em certo momento, Cipassé comentou que soube, logo depois da partida da banda,
sobre as crises internas e os problemas dos músicos do Sepultura com o seu vocalista
(Max) e sua esposa/empresária (Gloria). Para ele, depois desse trabalho, a cerimônia
de cura funcionou e a banda se curou, mesmo cada um seguindo o seu caminho. Em
suas palavras: “Eles queriam a dança de cura, então nós curamos!”.

Por fim, o resultado parece ter agradado a ambos, Sepultura e índios Xavante, cada
um dentro da ideia que tinha para o encontro. Para os integrantes da banda, foi a experiência
sonora o mais importante naquele momento. Segundo Max, na mesma entrevista citada antes,
“é uma das coisas mais legais em termos de experiência. O som dos xavantes tem tudo a ver
com o nosso. (...) O som dos xavantes é guerreiro, tem peso. A tradução é a mesma que a do
nosso som: peso, força energia”. Já para os integrantes da aldeia, o projeto representou mais
do que uma experiência cultural. Reproduzo a fala de Caimi Waiassé presente no trabalho de
Silva para ilustrar a visão Xavante sobre o episódio e suas consequências:

Foi bom mostrar para o Brasil e para o mundo que as comunidades indígenas podem
se organizar e fazer um trabalho profissional e não somente para ‘gringo ver’,
podemos fazer um trabalho de qualidade mostrando que nosso povo tem cultura e
que não é esse folclore que falam de nosso povo, nós existimos e somos de verdade,
nós não brincamos de índio! Nós chamamos a atenção para o cerrado, pois não existe
somente Amazônia e as raízes das plantas do cerrado são fortes e profundas e através
da música a comunidade indígena de Pimentel Barbosa conseguiu mostrar o
ambiente que é o cerrado e chamamos atenção para sua proteção. Sem território
preservado não há vida! (...) Os jovens estão descobrindo agora essas coisas, eles
perguntam: ‘Vocês fizeram isso?’ Sim nós fizemos! Hoje eles baixam as músicas,
assistem os videoclipes. (...) Na época até usamos mais camisas pretas! 3

Pois bem, como analisar essa experiência dentro do contexto teórico proposto para
esse texto? Um ponto interessante é que o episódio representa uma tentativa de abertura ao
diálogo por parte de representantes de culturas distintas e em conflito histórico. Quando Max
Cavalera salienta que “todo mundo é igual”, me parece que ele tenta eliminar não apenas a
ideia de um possível estrelato da banda, mas a ideia de que uma cultura seria superior à outra.
Isso se reflete musicalmente, já que a performance é conjunta. O que ouvimos no disco é
exatamente o que aconteceu lá, sem edições ou cortes. Ao ouvir a música, assistir aos vídeos
e ler os relatos de quem participou, fica nítido que foi um momento marcante para todos que
lá estiveram.
Também podemos pensar que experiência artística, no caso, é ponto de encontro entre
duas histórias distintas. Isso fica evidente quando analisamos as intencionalidades por trás do
encontro. De um lado temos uma banda que, no momento, era o maior nome brasileiro no
circuito cultural do qual fazia parte. Assim, é impossível separar o Sepultura do universo da
indústria cultural. Por mais sinceras que tenham sido suas intenções ao se abrir para uma
construção coletiva com os Xavante, o resultado é a produção de um disco que foi o maior
êxito de vendas da história da banda, com a comercialização de mais de 2 milhões de cópias
no mundo, atingindo a 27ª colocação na parada de discos da Billboard (revista especializada
na indústria musical) e o 4º lugar em vendas na Inglaterra 4. De todo esse sucesso comercial,
os Xavante receberam muito pouco, apesar da anunciada intenção de passar para a aldeia os
direitos autorais sobre a música.
Outro ponto importante, que não pode deixar de ser mencionado, é a série de
apagamentos ou “esquecimentos” que é possível observar no produto comercial que é o CD
Roots. Começamos pelo fato de que as pessoas que gravaram a música com a banda foram
reduzidas a “Xavantes tribe” na ficha técnica da faixa. Além disso, ela é descrita como uma
3 Quem acessa o vídeo “Sepultura e Índios Xavantes 1996”, no seguinte link https://www.youtube.com/watch?
v=iBF1VmGAvgc vai encontrar um comentário de Caimi Waiassé dizendo “Gostei demais da visita da banda
na aldeia!!! Ficaram nas nossas memorias.”
4 As informações foram retiradas da matéria “"Roots": dez curiosidades do disco brasileiro que mudou o metal
mundial.”, disponível em: https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2016/02/20/roots-dez-curiosidades-do-
disco-brasileiro-que-mudou-o-heavy-metal.htm
“faixa instrumental”, o que nos leva a reproduzir os mesmos questionamentos de Santos (p.
69): “ora, se tem canto e letra, não poderia ser considerada uma faixa instrumental como está
descrito em vários canais de letra e música pela internet, incluindo no próprio site oficial da
banda Sepultura. Por que isso acontece? Seria pela falta de informação e distanciamento
sobre as culturas indígenas no Brasil?”. Por fim, temos a completa ausência do nome do
técnico de gravação Evandro Lopes, responsável pela captação do som no local, e que foi
indicado por conhecer o local e já ter trabalhado no CD Etenhiritipá – Cantos da Tradição
Xavante. Talvez estes “esquecimentos” não tenham sido propositais e nem tenham partido
dos membros da banda, mas demonstram bem a dificuldade da cultura de massas ocidental de
valorizar outras culturas.
Porém, apesar dos apagamentos da indústria, é impossível negar que os Xavante estão
lá. Eles têm voz, têm corpo e têm rosto. Eles estão presentes no processo, e sua presença nos
permite perceber o momento sob uma outra perspectiva. Mais uma vez reproduzo as
impressões de Flávio Garcia Silva:

Nessa conversa pude perceber que o protagonismo se inverte: se por um lado,


segundo relatos, a banda Sepultura teve a iniciativa de procurar o povo Xavante, a
inciativa para a realização de tal projeto com essa etnia começa mesmo em outro
espaço/tempo, partindo de decisões muito anteriores entre as lideranças Xavante
buscando uma forma de assumir um papel ativo em uma relação assimétrica com os
não indígenas. Os Xavante não estavam ali como meros coadjuvantes em defesa de
seus direitos e de sua cultura. Suas lideranças apostavam em uma nova estratégia
para mostrar toda sua força e resistência em uma guerra pela preservação de suas
terras, uma injustiça que parece não ter fim. Na luta para manter o território livre da
ocupação criminosa de fazendeiros e de donos de terras às margens de suas áreas, as
parcerias se tornaram uma forma de amplificar e fortalecer suas vozes politicamente,
chamando atenção dos não indígenas para as questões defendidas pelos indígenas.

Dessa forma, a presença Xavante na experiência compartilhada coloca em jogo um


elemento que não existe na produção de Villa-Lobos. Aqui temos o encontro entre duas
histórias, dois espaço/tempo, duas intencionalidades que vivem realidades diferentes (e quase
sempre em conflito), mas que por conta de uma experiência artística entraram em contato e se
abriram reciprocamente.

REFLEXÃO FINAL
Para uma conclusão provisória dessas reflexões, podemos dizer que as obras de Heitor
Villa-Lobos e do Sepultura representam dois momentos da relação do ocidente com outras
culturas. Seguindo as ideias apontadas por Krystyna Wilkoszewska (2013), Villa-Lobos
estaria inserido no contexto da curiosidade ocidental a respeito de formas exóticas de “artes
primitivas”, isoladas de seu contexto original e apresentadas como forma de enriquecimento
das belas artes produzidas no ocidente.
O caso dos Xavante e do Sepultura parece ser um pouco mais complexo.
Wilkoszewska fala que atualmente estaríamos numa etapa em que a ideia de superioridade da
cultura ocidental sobre as outras está enfraquecida, o que abre a possibilidade de uma maior
abertura a essas outras culturas e sua relação com a arte de maneira independente dos
cânones, conceitos e ideologias ocidentais. Nossa análise aponta para essa possibilidade,
ainda que soterrada em meio aos apagamentos e “esquecimentos” no produto final
comercializado pela banda. Mesmo assim, e aqui agradeço ao colega Flávio Garcia Silva por
seu primoroso trabalho, temos um outro lado da história. Do ponto de vista do povo Xavante,
seu contato com a banda Sepultura foi mais um capítulo da sua longa luta pelo direito à vida,
à terra e à permanência de sua identidade.
Talvez, na balança das vantagens que cada parte tirou do encontro, o ocidente ainda
esteja em larga vantagem; sua posição de poder ainda é evidente, principalmente quando se
trata de vantagens econômicas. Mas quem sabe não tenha sido um passo importante na
abertura desse diálogo. A abertura para experiências conjuntas existe e, talvez, o ensinamento
seja para que nós, ocidentais, passemos humildemente a ocupar a posição de uma cultura
entre as outras, deixando que outras vozes se tornem também protagonistas.

BIBLIOGRAFIA

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SILVA, Flavio Garcia da. “Itsári”, roots, raízes: um estudo de caso sobre o disco Roots da
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