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Reflexões Errantes sobre Cidade e as Artes da Cena:

devoração cultural em Campos dos Goytacazes


Takna Mendonça Formaggini
Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este trabalho busca refletir sobre alguns aspectos das possibilidades


presentes na ação entre deambulação e percepção do espaço público que
contribuam para a provocação de porosidades nas relações do corpo atuador1
em suas práticas pedagógicas de pesquisa da cena teatral que se dá no espaço urbano.
Essa provocação se apropria do termo “devoração cultural”, dentro do sentido de busca de
uma autonomia cultural, desejos e afetos de pertencimentos de memória coletiva para uma
prática porosa entre teatro e cidade. 

Palavras-chave: Teatro de rua. Antropofagia. Devoração cultural. Arte e cidade.

Introdução

As reflexões acerca da compreensão de pertencimento dentro das relações entre


a sociedade e a natureza urbana estão abordadas neste trabalho. Adentra-se
em um debate pretendido sobre o fazer teatral em espaços urbanos, entendendo
a qualidade da experiência estética enquanto “devoração cultural” e disparadora
da reflexão de ações para um teatro que pretende ocupar as ruas em sapiência de
porosidades, colocando-se, para isso, enquanto força revitalizadora que pretende
ser capaz de produzir ação artística sobre cotidianidades. Os indivíduos envolvidos,
ao recuperarem sua condição de cidadãos pertencentes a este espaço urbano por

1
“O termo atuador, no teatro brasileiro, aparece pela primeira vez em um manifesto do Teatro
Oficina na década de 70, que trazia entre seus objetivos a busca por cativar o público que não tinha
acesso ao teatro; a ocupação de outros espaços, além dos teatros convencionais; a reformulação
da cena de forma que fosse concebida como um testemunho, sem divisão entre palco e plateia,
sem máscara, representação tradicional, maquiagem, fantasia ou qualquer elemento que pudesse
produzir fascínio ou distanciamento entre o espectador e a ação. A fim de cumprir todos esses
objetivos, a denominação ator – componente do grupo – deveria ser substituída por atuador” (SILVA,
1981, p. 203). No foco do presente projeto, os atuadores também se reconhecem como pesquisadores
durante os itinerários de investigação corpo-cidade. Por isso, “atuadores pesquisadores”.
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eles vivenciado, são instigados a desvelar novas possibilidades de compreensão e


atuação no mundo que os rodeiam, como um processo mesmo de antropofagia,
defendido por Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropófago”, de 1928.
A reflexão sobre o termo “devoração cultural”, quando relacionado a lugares onde
há existência de discursos diversos de posição autodepreciativa em relação à sua
própria cultura, traz questionamentos tanto no respeito aos sujeitos que sentem
que seu espaço, memória, cultura e história não têm valor quanto sobre quais
ações, ou falta de ações, em políticas públicas teriam contribuído para este (des)
pertencimento que é o compreender-se enquanto cidadão, enquanto ator dessas
políticas e enquanto possuidor de uma cultura histórica de valores e afetos.
Penetrar a cidade ao mesmo tempo em que se permite à cidade também estar
presente nesta ação dinâmica de constante interferência e reflexão pode ser uma
ação compreendida como devoração cultural. Para isso, o teatro vem propor a
ação como uma forma política de reexistência perante a condição de cidades que
vêm sendo corroídas em sua essência de fundamento da vida pública. No caso da
cidade de Campos dos Goytacazes, a devoração cultural vem propor o “perceber-se
Goitacá”, a partir da relação sensível que é a construção cultural ancestral da cidade,
tendo como conexão o acontecimento artístico. 

1. Goitacá or not Goitacá: uma questão de deambulação

“Tupy, or not tupy that is the question. [...]


Só me interessa o que não é meu.
Lei do homem. Lei do antropófago.” 
(Oswald de Andrade, 1928, p.3)

“Devoração cultural” tem sua definição alicerçada no termo “antropofágico”, presente


na publicação do “Manifesto Antropófago” (1928), na revista Antropofagia, em São Paulo,
de Oswald de Andrade, a partir dos movimentos advindos da Semana de Arte Moderna
de 1922, na qual os artistas brasileiros buscavam uma arte que representasse o Brasil
para além das inspirações e cópias da estética europeia. O termo trouxe a associação
direta com a palavra “antropofagia”, em referência aos rituais em que indígenas
consumiam carne humana. Nessa cultura ritualística, essas cerimônias evocavam
o sobrenatural na crença de que o indivíduo amplia sua força pela assimilação de
outros poderosos e perigosos, sejam guerreiros ou inimigos. No caso da proposta da
antropofagia cultural de Oswald de Andrade, esta promovia a ideia de deglutição,
porém da cultura estrangeira, como uma metáfora simbólica de que a influência
cultural de outros países não deveria ser copiada, e sim devorada e assimilada.
O ato de deambular, flanar, vaguear pelas ruas da cidade enquanto sujeitos errantes
(BENJAMIN, 2015; JACQUES, 2014) permite a atuadores pesquisadores elaborarem

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conexões integradas à construção de pertencimento entre o urbano e a sociedade


justamente no processo de deambulação, que permita ao corpo sensível perceber a
cidade em todos os seus desejos. 

Todos os afetos estão na cidade. Ódios, paixões, vergonhas, compaixões,


ressentimentos, desejos. Quanto mais a cidade puder absorver esses afetos,
mais densamente humana ela vai-se tornando. E quanto mais complexos
forem esses afetos e tanto mais variada a rede de relações humanas e sociais,
tanto maior a elaboração será necessária para a decodificação de seu sistema
de valores e à sua representação (PECHMAN, 2009, p. 1).

Na busca deste olhar significante sobre o lugar enquanto concentração do


acontecimento urbano e enquanto rede de relações humanas, como nos aponta
Pechman (2009), é que atuadores percorrem de forma errante o espaço público, no
rastro de recortes visuais pertencentes à poética presente na rotina da cidade. Na
construção de pontos significativos, experimentando, assim, trajetórias inesperadas,
sugeridas pelos parceiros de jogo.
A performance cênica urbana traz experiências que promovem impacto entre os
sujeitos presentes nesses aleatórios ou determinados espaços urbanos. Os locais
onde ocorrem tais ações de vivência e presença da cena de rua atravessam olhares e
afetos por meio da experiência estética então vivenciada. Nesse sentido, Saskia Sassen
(2018) nos provoca em suas reflexões sobre a memória coletiva urbana observando
que “uma determinada cidade possui múltiplos mundos. Há um imaginário urbano e
não apenas o imóvel urbano” (SASSEN, 2018, s. p.).
Esta relação entre sociedade e espaço urbano tem sido discutida por diversas
perspectivas que incluem também a apreensão entre a relação sujeito e objeto
enquanto complementação de sentidos, em que não se encontrariam como um
campo puro na compreensão da ciência, mas como campos complementares.
A não percepção de sua própria identidade cultural empobrece a experiência
de envolvimento da sociedade, no que diz respeito aos sentimentos de afeto e de
pertencimento cultural e cidadão, tão importantes em uma cidade que está vendo
seu patrimônio material e imaterial em um processo de constante desvalorização,
depreciação e esvaziamento de seus sentidos, disse Darcy Ribeiro (2014) em seu livro
“Utopia Selvagem: saudades da inocência perdida. Uma fábula”. Na obra, entende
tanto a miscigenação quanto a construção cultural de nosso povo brasileiro;
considerando a contribuição da relação antropofágica modernista, observa:

As gentes estranhas que Colombo e Américo viram viraram colombianos, americanos


e bolivianos além de abrasados e prateados e até equatorianos. (...) Esgotados e
enjoados do esforço de simular ser quem não somos, aprendemos, afinal, a lavar os
olhos e compor espelhos para ver. Neles nossa figura surge debuxada no Guesa, em
Macunaíma e, sobretudo, no Grito Antropofágico (RIBEIRO, 2014, p. 33).

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A expressão de Darcy “esgotados e enjoados do esforço de simular ser quem não


somos”, ou seja, a não percepção de nossa própria identidade cultural empobrece
a experiência de envolvimento da sociedade no que diz respeito aos sentimentos de
afeto, pertencimento cultural e cidadão. É urgente ser devorador cultural da cidade em
que se vive. Esse conjunto de elementos faz com que moradores da cidade acabem
por nutrir uma relação de distanciamento e mesmo de desprezo pelos espaços
públicos, impactando, consequentemente, o convívio com o outro. Isso acarreta um
esvaziamento de encontros, experiências e criação de afeto pela cidade, sua história,
possibilidades de vivência, observação e aprendizado, destituindo pouco a pouco
esses sujeitos das experiências coletivas. É nessa cidade, possuidora de memórias,
que o teatro deseja estar — para devorar e ser devorado.

2. O atuador pesquisador: devorador cultural da rua, do teatro e de si mesmo

A prática da cena teatral para a rua, assim como para outros espaços não
convencionais de encenação, necessita de um constante refletir sobre as relações
estabelecidas entre atuadores e a semântica desses espaços. Por essa razão, ao se
colocarem também como sujeitos errantes na percepção de sua relação com as ruas
e os espaços urbanos, é que atuadores pesquisadores, em trabalho de preparação
para a linguagem do teatro de rua, permitem-se, empiricamente, práticas de grupo
que envolvem saídas para o espaço público e percepção sensível da cidade, debater
uma experiência artística, justamente dentro da ideia de porosidade — esta enquanto
trama de percepções histórico-afetivas envolvidas na relação de compreensão
sensível para com o espaço urbano. 
Para que haja significação no processo que inclui a percepção do olhar sensível sobre
a cidade em todos os seus afetos, o artista também deve construir seu processo a partir
da experiência de seus próprios afetos sobre a cidade, oportunizando, assim, o conceito
híbrido e transdisciplinar proposto para preparação que antecede a experiência de
fruição pretendida para a etapa de intervenções urbanas. A manifestação teatral,
por conter um conjunto de signos, permite ao espectador a associação desses
signos pertencentes a esse sistema para que haja o processo de descoberta dos
seus significados (HONZL, 1988). Portanto, para um projeto artístico que se proponha
à produção de sentidos a partir de diversas possibilidades de experiências, vivências
e sensorialidades entre os que o vivenciam, é necessário considerar a investigação
no tocante às referências significativas que o artista envolvido, o atuador, irá operar. 
Em vista disso, percebe-se, nesse campo investigativo de estudo, um significativo
debate que se refere a praticar a cidade também como criadores, dentro da
compreensão de que não são apenas os imóveis que estão presentes em uma
cidade, mas sim toda a memória coletiva que ela carrega em si e onde, neste debate,

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o teatro errante vem nos convidar a (re)pensar sobre esses sentidos. Percebe-se
a tríade sociedade-espaço-tempo como algo indissociável, não como relação de
pertencimento de um para com o outro, mas dentro de uma relação indissociável de
existência. Percebe-se esses sujeitos da ação na relação com os ambientes diversos
e enquanto partes interligadas constituintes do ensino-aprendizagem, em uma
relação que considere o caráter híbrido existente entre atuadores, espectadores e
espaço urbano. 
O levantamento de uma metodologia de trabalho, portanto, que busque essa
porosidade de relações entre experiências concretas sobre arte e cidade é necessário.
A cidade é percebida/devorada em seus valores a partir de experiência significativa/
devoração cultural, que se dão tanto para os sujeitos passantes quanto para os
atuadores pesquisadores que se propõem a essa jornada errante, além de tecerem
itinerários a partir da busca pessoal de compreensão particular e coletiva de cidade
na construção da ação artística pessoal. Buscam-se trabalhos corporais de atuação
em teatro, dentro da procura de uma linguagem de apropriação desses sentidos da
cidade e da relação de si mesmos com o espaço e com o outro, como busca por essa
porosidade afetiva. 
A proposta que relaciona devoração cultural e teatro de rua, quando pensada dentro
do panorama vivenciado pela sociedade global nos anos de 2020 e 2021, em que o
espaço público colocou-se como “perigoso” devido à pandemia mundial do vírus de
Covid-19, vem, a partir daqui, trazer um sentido extremamente mais potente enquanto
ação. Nunca se desejou tanto a devoração do espaço urbano, do espaço público.
Nunca se desejou tanto novamente a devoração das copresenças e a devoração
cultural do cotidiano de uma cidade. A arte pública, através de ações teatrais em
espaços da cidade, vem propor o retorno e a ampliação das possibilidades de
convivência em diversidade cultural e artística dentro de um contexto em que a
prática do teatro de rua e da arte pública faça-se cada vez mais necessária, e o
espaço urbano possa prevalecer como lugar de experiência estética.
Os goitacazes (cidadãos campistas) do presente trazem consigo, como herança
ancestral, toda a história que vem desses povos nativos dizimados, negros brutalmente
escravizados, europeus colonizadores, membros de ordens religiosas e tantas outras
histórias presentes nesses assuntos. De lutas, guerras, heróis e anti-heróis. Do horror e
injustiça à herança de danças e costumes de doces, frutas e cozidos. Essas reflexões
acerca da compreensão de pertencimento dentro das relações entre a sociedade
e a natureza urbana estão presentes no pensamento do fazer teatral para esses
espaços, trazendo a qualidade da experiência estética em arte como disparadora
da ideia de devoração cultural. Perceber-se Goitacá a partir da relação sensível que
é a construção cultural de si próprio com a cidade.

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Conclusões

A intenção da assimilação das temáticas devoração cultural e pertencimento


contribui com o debate que inclui a multidisciplinaridade nas artes da cena, a
corporeidade e suas relações dentro da compreensão do universo da cidade, de
sua história e cultura. A ampliação da percepção desses desejos e afetividades
por parte de atuadores pesquisadores que investiguem as relações entre o teatro
e a rua pretende a devoração dos sentidos de cidades que enfrentam desafios de
reconhecimento e criação de valores relativos à suas próprias histórias, ao seu povo
e ao seu espaço.
Para uma cidade plena de desejos, como propõe Pechman (2009), é necessária
uma sociedade que perceba a potencialidade do espaço urbano como local de
encontro e de festa; talvez isso seja o grande fator que fará com que a cidade possa
ser um lugar possível da manifestação e percepção de todos os desejos. Ver e sentir
a cidade culturalmente a partir dessas novas significações é devorar a cidade e a
deglutir na ação da criação artística.
Este campo de estudo interdisciplinar vem trazer contribuições para um debate na
retomada de um pensamento sobre a relação arte-cidade. Um desenvolvimento
urbano necessita de um envolvimento urbano. O contexto relativo à pandemia
de Covid-19 trouxe uma convivência urbana deslocada, em que as relações de
pertencimento e de encontro estiveram em período de confinamento. Pensamentos
que nos ofereçam outras e novas presenças, outras e novas potências sonoras a
partir também de um novo entorno urbano. Reflexões de práticas artísticas, sociais
e culturais que deem conta dessas novas relações entre o teatro e a rua. Retoma-
se Paola Jacques (2014), que traz o pertencimento coletivo urbano promovido pela
errância e o desejo de que a devoração cultural seja fonte de encontro e reconstrução
de afetos e desejos, tendo a potencialidade da relação entre o teatro e a cidade
como possível fio condutor desses processos.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, v.


1, n. 1, 1928.

BENJAMIM, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. 

HONZL, Jindrich. A mobilidade do signo teatral. In: GUINSBURG, Jacó; NETTO, José
Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves (Orgs.). Semiologia do teatro. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1988.

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JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014.

PECHMAN, Robert Moses. Cenas, algumas obs-cenas, da rua. Fractal: Revista de


Psicologia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 351-368, 2009.

RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem. 1. ed. São Paulo: Global Editora, 2014.

SASSEN, Saskia. Futuro imperfeito. Entrevista cedida a Pedro Zimmermann. Telos


Cultural: Fronteiras do Pensamento, 2018. Disponível em: https://canalcurta.tv.br/
filme/?name=futuro_imperfeito. Acesso em: 10 ago. 2021.

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