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PROPÓSITO
filosofia nos liberta. Os animais, em geral, estão presos ao seu instinto, e não são capazes
A
de trilhar um caminho que não é apontado por ele. O ser humano, como animal racional,
possui a capacidade de realizar perguntas filosóficas e, às vezes, encontrar as suas
respostas. O conhecimento nos ensina sobre o mundo e sobre nós, de maneira a
possibilitar a sabedoria do bom, do belo e do verdadeiro. Com ele, conseguimos suprimir
os instintos e alcançar um grau mais elevado de existência. A filosofia, ciência primeira,
nos ensina a estabelecer as bases para tal. De nada adianta construirmos um edifício sem
fundações, assim como não adianta construirmos o saber sem filosofia.
Kant foi uma das pessoas que passou pelo nosso mundo e que, no seu pequeno intervalo de
existência, conseguiu construir muita coisa. Por mais que hoje em dia existam outras teorias
divergentes, é de extremo valor entender o seu pensamento, que reflete em incontáveis outras
obras. A teoria kantiana pode ser vista como uma imponente montanha - sólida, firme, mas que
possui difíceis obstáculos. Ela não irá permitir que o caminho seja fácil. Se o leitor deseja o fácil,
que pare agora. Ela irá nos derrotar caso não tenhamos um propósito decidido a nossa frente.
“That there’s some good in this world, Mr. Frodo… and it’s worth fighting for.”
– Sam
nos interessa nesse artigo é, basicamente, a
sensibilidade. Se, para Kant, o objeto é
pensado pelo entendimento através do
conceito, ele é dado, certamente, pela
PARTE 1 sensibilidade através da intuição.2 É a
sensibilidade a faculdade que alimenta o
entendimento. Sem as intuições, os conceitos
seriam vazios, ocos, e não teriam a
DAS FACULDADES possibilidade de fazer referência aos objetos
DA MENTE da experiência.
P
ossuímos quatro importantes
faculdades na mente e, antes de
explicá-las, convém explicarmos
primeiro o conceito de faculdade, sendo esse
o ponto de partida desse artigo. A faculdade,
em Kant, pode ser vista sob diferentes
prismas, e, para os trabalhos que teremos
aqui, defini-la-emos nos baseando nas
diferentes fontes das representações - o termo
mais geral que designa conteúdos mentais. Figura 1
DO JUÍZO
Juízo, para Kant, é definido como o modo de
submeter determinados conhecimentos à
unidade objetiva da apercepção.20 O trabalho
de explicar os conceitos da Lógica
Transcendental, como a unidade da
Figura 4
apercepção, se dará em outro artigo. Para
esse, basta entender que quando realizamos
Dentre os conhecimentos a priori, ainda um juízo, através da legislação da faculdade
existe a separação entre os puros e os de conhecer, ligamos certos conceitos à
impuros.17 Conhecimento a priori puro é o outros.
que não possui nada de empírico, ou seja,
15 18
CRP, B 2 e A filosofia crítica de Kant, Gilles CRP, B 143.
19
Deleuze, 1ª ed, "faculdade superior de conhecer". A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed, "A
16
CRP, B 4. priori e transcendental".
17 20
CRP, B 3. CRP, B 142.
difusos, de maneira a possibilitar que você
Em todos os juízos nos quais é pensada a perceba a árvore como algo uniforme.
relação entre um sujeito e um predicado, essa Se eu definir o conceito livro dizendo que um
relação é possível de dois modos. O primeiro livro é um texto que possui uma capa, um
modo se dá quando o predicado “B” pertence autor, um título, apenas para usar como
ao sujeito “A” como algo que já está contido exemplo, eu poderia declarar o seguinte
(de modo oculto) neste conceito “A”. Este juízo: “todo livro tem um título”. Este juízo
modo recebe o nome de juízo analítico. O seria, de forma evidente, analítico, porque
segundo modo, no entanto, se dá quando o basta pensar em um livro, no conceito de
predicado B se localiza completamente fora livro, e ir revelando tudo o que for possível,
do conceito A, mesmo estando em conexão até que se perceba que já estava contido na
com ele, e, a este modo, Kant dá o nome de identidade de livro que ele possui um título.
juízo sintético.21
Por outro lado, se eu declarar o juízo “todo
Podemos pensar e entender que no caso do livro tem uma capa vermelha”, seria possível
juízo analítico, basta estudar sobre a conceber esse juízo na identidade de livro,
identidade do conceito A para revelar o apenas pensando no conceito livro? Não. Eu
predicado B. Afinal, o predicado B já estava preciso recorrer à experiência, analisando
inicialmente contido no conceito A. todos os livros e percebendo que todos eles
possuem a capa vermelha pra ter essa
No caso do juízo sintético, por mais que se relação. Assim, esse é um juízo sintético.
removesse camadas, revelando tudo o que
consiste o conceito A, nunca se chegaria no Também é por isso que todos os juízos de
predicado B, porque ele não está dentro do experiência são sintéticos.23 Seria absurdo eu
A. Ele está conectado com A de maneira fundar na experiência um juízo que eu já
externa, fora da identidade. encontro no próprio conceito.
21 23
CRP, B 11. CRP, B 12.
22 24
CRP, A 106. CRP, B 12.
da experiência em algum momento, porque,
do contrário, seriam vazios, ocos, sem
conteúdo. Qual seria o corpo de conceitos a
PARTE 2 priori que provê a fundação necessária para a
possibilidade da experiência de objetos?
A
numeradas para maior organização. Iremos
questão que deve estar colocando o
escalar a montanha juntos, pouco a pouco.
leitor atento em agitação, nesse
Em cada seção, eu pretendo definir alguns
momento, é acerca dos juízos
conceitos ou provar algumas proposições.
sintéticos a priori. Esses juízos existem
Dessa forma, no final, o argumento poderá
quando a fonte de tal juízo independe da
ser entendido de maneira silogística,
experiência, dando necessidade e
partindo de premissas, chegando em
universalidade ao juízo, e quando o juízo não
conclusões.
pretende meramente tratar de algo já contido
no conceito, mas quando se propõe a ligar ao
conceito algo que não está contido no 1 Sensibilidade,
mesmo. Estamos falando de expandir a sensação, intuição
maneira que temos de entender o mundo.
A capacidade de receber representações
Não existe assunto mais instigante!
através do modo como somos afetados por
objetos denomina-se sensibilidade
Como poderíamos expandir o nosso
conhecimento acerca do mundo e das coisas [Sinnlichkeit]. O efeito que um objeto causa
de maneira a formular juízos necessários e na capacidade de representação, quando o
mesmo objeto nos afeta, se chama sensação
universais? Quais são as condições que
[Empfindung].25
tornam tal capacidade possível? Nós as
possuímos? Estamos adquirindo
conhecimento da coisa em si? Da realidade
independente? Para resumir todas as
perguntas em uma pergunta suprema: como
são possíveis os juízos sintéticos a priori?
Responder esta questão primacial é o que
pretende Kant através da Estética
Transcendental. Figura 5
Além dos juízos sintéticos a priori, por mais O que recebemos, em primeira instância, é o
grandiosos que sejam, precisamos também diverso de sensações, que é desordenado, e,
voltar a nossa atenção para os juízos por não possuir forma, ainda não é uma
sintéticos a posteriori. Afinal, todos os intuição. Através de uma síntese, que não
nossos conhecimentos dos objetos da cabe ser explicada aqui, o diverso é
realidade empírica são formados a partir de representado em uma intuição.
juízos sintéticos a posteriori. Por mais que os
juízos sintéticos a priori nos forneçam A maneira imediata a qual um conhecimento
universalidade e necessidade, são os juízos se relaciona com um objeto [Gegenstand] é
da experiência os que mais ocupam a nossa chamada de intuição [Anschauung]. A
atenção durante a vida. Todos os conceitos a
priori necessitam fazer referência aos objetos 25
CRP, B 33.
intuição é singular, i.e., se refere a apenas um
objeto.
Figura 7
Figura 8
26
CRP, B 34.
27
CRP, B 34.
3 Formas puras 4 Espaço
A ciência de todos os princípios a priori da
sensibilidade é chamada de Estética
Transcendental. Nela, o objetivo de Kant é
abstrair da sensibilidade:
1. Tudo o que pertence ao entendimento,
i.e., tudo o que é adicionado por meio
dos seus conceitos, restando a intuição
empírica;
2. Tudo o que pertence a sensação, i.e.,
tudo o que nos é dado a posteriori,
restando a intuição pura, que é a mera
forma dos fenômenos.
Prova
P0 - A receptividade do sujeito para ser
afetado por objetos antecede
necessariamente todas as intuições desses
objetos.
P1 - Logo, a forma de todos os fenômenos
precisa estar dada na mente antes de todas as
percepções reais, portanto, disponível a
priori.
P2 - Enquanto intuição pura, todas as
percepções do sentido externo têm de ser
determinadas nela.
P3 - Assim, ela contém os princípios das
relações das mesmas antes de toda
experiência.
1: P0
2: P0 ⇒ P1
3: P1 [Modus Ponens]
4: P2
5: P2 ⇒ P3
6: P3 [Modus Ponens]
____
A representação originária do espaço não é
O espaço é uma intuição pura. um conceito, mas uma intuição a priori.
Prova Prova
P0 - Só se pode representar um único espaço. P0 - É necessário pensar cada conceito como
Quando se fala de diversos espaços, entende- uma representação que está contida em uma
se por isso apenas as partes de um mesmo e infinita variedade de diferentes
único espaço universal. representações possíveis, e que, portanto
P1 - O espaço é essencialmente uno, e o contém-nas sob si.
diverso nele, portanto também o conceito P0’ - Nenhum conceito pode ser pensado
universal de espaços em geral, baseia-se como se contivesse em si uma variedade
simplesmente em limitações. infinita de representações.
P2 - Logo, o espaço é uma intuição a priori P1 - O espaço é pensado como se contivesse
que serve de fundamento a todos os conceitos em si uma variedade infinita de
de espaço. representações.
P2 - Logo, a representação originária do
1: P0 espaço não é um conceito, mas uma intuição
2: P1 a priori.
3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2
4: P2 [Modus Ponens] 1: P0’
____ 2: P1
3: P0’ ⋏ P1 ⇒ P2
O espaço é uma representação necessária a 4: P2 [Modus Ponens]
priori que serve de fundamento a todas as
intuições externas. _____
28
CRP, B 44.
5 Tempo
Figura 11
Por meio do sentido interno, a mente intui a pertencem elas mesmas ao estado interno
si mesma, intui o seu estado interno. O como determinações da mente.
tempo é a forma sob a qual é possível a P1 - O estado interno pertence às condições
intuição do seu estado interno, no sentido formais da intuição interna, que é o tempo.
de que tudo o que pertence às P2 - O tempo é a condição formal a priori de
determinações internas é representado em todos os fenômenos em geral.
relações de tempo.
1: P0
Prova 2: P1
P0 - O tempo não pode ser uma determinação 3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2
dos fenômenos externos, ele não pertence a 4: P2 [Modus Ponens]
uma figura, a uma situação. _____
P1 - Ele determina, pelo contrário, a relação
das representações em nosso estado interno. O tempo não é um conceito discursivo, mas
P2 - O tempo é a forma sob a qual a intuição uma forma pura da intuição sensível.
do seu estado interno.
Prova
1: P0 P0 - A representação que só pode ser dada
2: P1 por meio de um único objeto é uma intuição.
3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2 P1 - Diferentes tempos são apenas partes do
4: P2 [Modus Ponens] mesmo e único tempo.
_____ P2 - A proposição de que diferentes tempos
não podem ser simultâneos não pode ser
O tempo é a condição formal a priori de derivada de um conceito.
todos os fenômenos em geral. P3 - A proposição é sintética e não pode ser
originar-se somente de conceitos.
Prova P4 - Ela está imediatamente contida,
P0 - Todas as representações, quer elas portanto, na intuição e representação do
tenham coisas externas como objetos ou não, tempo.
1: P0 1: P0
2: P1 2: P0 ⇒ P1
3: P2 3: P1 [Modus Ponens]
4: P0 ⋏ P1 ⋏ P2 ⇒ P3 4: P2
5: P3 [Modus Ponens] 5: P1 ⋏ P2 ⇒ P3
6: P3 ⇒ P4 6: P3 [Modus Ponens]
7: P4 [Modus Ponens] _____
_____
O conceito de modificação , e com ele o de
O tempo não é um conceito empírico que movimento (modificação do lugar), só são
tenha sido derivado de alguma experiência, possíveis na representação do tempo e por
mas sim uma intuição pura. meio dela.
Prova Prova
P0 - Somente sob a pressuposição do tempo se P0 - Somente no tempo podem ambas as
pode representar que algo seja em um mesmo determinações contraditoriamente
e único tempo (ao mesmo tempo) ou em contrapostas ser encontradas em uma coisa,
diferentes tempos (um após o outro). como seja, uma após a outra.
P1 - A simultaneidade [Zugleichsein] e a P1 - Se a representação do tempo não fosse
sucessão [Aufeinanderfolgen] não se uma intuição a priori, nenhum conceito
apresentariam à percepção caso a poderia tornar compreensível a possibilidade
representação do tempo não lhes servisse a de modificação, que é a ligação de predicados
priori de fundamento. contraditoriamente contrapostos em um
P2 - O tempo é uma intuição pura, que é mesmo e único objeto.
forma de todos os fenômenos em geral. P2 - O conceito de modificação -e com ele o
de movimento (modificação do lugar)- só são
1: P0 possíveis na representação do tempo e por
2: P0 ⇒ P1 meio dela.
3: P1 [Modus Ponens]
4: P1 ⇒ P2 1: P0
5: P2 [Modus Ponens] 2: P0 ⇒ P1
_____ 3: P1 [Modus Ponens]
4: P1 ⇒ P2
O tempo é uma representação necessária 5: P2 [Modus Ponens]
que serve de fundamento a todas as _____
intuições.
A necessidade a priori do tempo funda
Prova também princípios apodíticos de relações de
P0 - Não se pode suprimir o tempo no que tempo. Por exemplo, o tempo tem apenas
diz respeito aos fenômenos em geral. uma dimensão: tempos diferentes não são
P1 - O tempo é, portanto, dado a priori. simultâneos, mas sucessivos.
P2 - Apenas nele é possível toda a realidade
dos fenômenos. O tempo é transcendentalmente ideal, porque
P3 - O tempo é uma representação necessária é condição da possibilidade de qualquer
que serve de fundamento a todas as experiência, e é empiricamente real, porque
intuições. todos os objetos da experiência estão sujeitos
ao tempo como uma condição.29
29
CRP, B 52.
sensibilidade, que em mim como sujeito
Nada do que é intuído no tempo é uma coisa precede todas as impressões reais através das
em si, porque ele seria algo real mesmo sem quais sou afetado por objetos.32
objeto real. O tempo não é uma forma das
coisas que lhes fosse próprias em si mesmas, 8 Juízos sintéticos
porque ele não poderia, como determinação
inerente às coisas mesmas, preceder aos a priori são possíveis
objetos como sua condição, nem ser intuído Juízos sintéticos a priori são possíveis
ou conhecido a priori por meio de porque as intuições puras do espaço e do
proposições sintéticas. tempo nos permitem ir além de um dado
conceito para descobrir aquilo que é a priori
6 A intuição pura sinteticamente conectado com ele na intuição
que lhe corresponde.33
existe
O argumento que Kant usa para provar que O espaço e o tempo, meras condições da
resta algo, a intuição pura, depois de sensibilidade, determinam, também, os seus
abstrairmos da intuição empírica tudo o que próprios limites. O juízo sintético a priori
pertence a sensação, é baseado na alegação não pode nunca alcançar objetos que não os
de que aquilo no que as sensações podem dos sentidos, e só vale, portanto, para objetos
exclusivamente ser ordenadas e colocadas da experiência possível.34
em uma certa forma não pode ser, ele
mesmo, por sua vez, a sensação.30
É claro que essa fundamentação é ela mesma
apoiada no resultado da estética
transcendental, o espaço e o tempo, que já
foram provados.
DO RESULTADO
7 É possível DA ESTÉTICA
intuir a priori TRANSCENDENTAL
P
Uma intuição é uma representação que ela nossa travessia que iniciou-se na
depende da presença de um objeto, mas sensibilidade, a nossa capacidade de
parece que uma intuição a priori teria que receber representações, e findou-se
ocorrer sem que um objeto estivesse nas formas puras da intuição, o espaço e o
presente. Qual é o objeto de tal intuição? tempo - que são tudo o que a sensibilidade
pode nos dar a priori, nos deparamos com
Ora, a representação do espaço tem a sua conceitos complexos como conhecimento,
sede meramente no sujeito.31 O problema da juízo, sensação, matéria, forma. Apesar
intuição a priori se mantém apenas se disso, saímos desses numerosos desafios
considerarmos que a nossa intuição vitoriosos. No final, através das ferramentas
representa a coisa como ela é em si. Se fosse bem definidas por Kant, surgiu-nos a
assim, seria impossível intuir a priori. possibilidade de entender que juízos
sintéticos a priori são possíveis.
Só há uma maneira, assim, da minha intuição
preceder a realidade do objeto e ocorrer Esse passo nos é fundamental na busca pela
como uma representação a priori: se ela não verdade, e, sem ele, é impossível
contiver nada que não seja a forma da
32
Prolegômenos, Immanuel Kant.
30 33
Immanuel Kant: conceitos fundamentais, Editora Immanuel Kant: conceitos fundamentais, Editora
Vozes, 2020. Vozes, 2020.
31 34
CRP, B 41 CRP, B 73.
continuarmos a nossa aventura dentro da diminui na presença do sofrimento, mas o
teoria Kantiana. Já podemos avistar, agora, a encara com determinação. A sabedoria é o
próxima montanha chamada Lógica bem real mais importante; a coragem de
Transcendental, cuja escalada é mais enfrentar a ignorância, a virtude. Sapere
rigorosa. No entanto, o leitor já demonstrou aude!
plena capacidade para vencer o desafio.