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A TRILHA

sobre a Estética Transcendental Kantiana


Vinícius Scheffel




PROPÓSITO
filosofia nos liberta. Os animais, em geral, estão presos ao seu instinto, e não são capazes

A
de trilhar um caminho que não é apontado por ele. O ser humano, como animal racional,
possui a capacidade de realizar perguntas filosóficas e, às vezes, encontrar as suas
respostas. O conhecimento nos ensina sobre o mundo e sobre nós, de maneira a
possibilitar a sabedoria do bom, do belo e do verdadeiro. Com ele, conseguimos suprimir
os instintos e alcançar um grau mais elevado de existência. A filosofia, ciência primeira,
nos ensina a estabelecer as bases para tal. De nada adianta construirmos um edifício sem
fundações, assim como não adianta construirmos o saber sem filosofia.

Kant foi uma das pessoas que passou pelo nosso mundo e que, no seu pequeno intervalo de
existência, conseguiu construir muita coisa. Por mais que hoje em dia existam outras teorias
divergentes, é de extremo valor entender o seu pensamento, que reflete em incontáveis outras
obras. A teoria kantiana pode ser vista como uma imponente montanha - sólida, firme, mas que
possui difíceis obstáculos. Ela não irá permitir que o caminho seja fácil. Se o leitor deseja o fácil,
que pare agora. Ela irá nos derrotar caso não tenhamos um propósito decidido a nossa frente.

A Estética Transcendental é o primeiro passo para subir a montanha - compreender a mente de


um gigante. Sejamos como Frodo e Sam subindo a Mount Doom: incansáveis, imparáveis,
corajosos. Eu garanto ao leitor que o final do caminho, o pico da montanha, será glorioso. Assim
como o mal supremo fora destruído pelos pequenos Hobbits, nós iremos destruir parte da nossa
ignorância, expandindo a nossa sapiência. Estaremos mais livres.

“That there’s some good in this world, Mr. Frodo… and it’s worth fighting for.”
– Sam


nos interessa nesse artigo é, basicamente, a
 sensibilidade. Se, para Kant, o objeto é
pensado pelo entendimento através do
conceito, ele é dado, certamente, pela
PARTE 1 sensibilidade através da intuição.2 É a
sensibilidade a faculdade que alimenta o
entendimento. Sem as intuições, os conceitos
seriam vazios, ocos, e não teriam a
DAS FACULDADES possibilidade de fazer referência aos objetos
DA MENTE da experiência.

P
ossuímos quatro importantes
faculdades na mente e, antes de
explicá-las, convém explicarmos
primeiro o conceito de faculdade, sendo esse
o ponto de partida desse artigo. A faculdade,
em Kant, pode ser vista sob diferentes
prismas, e, para os trabalhos que teremos
aqui, defini-la-emos nos baseando nas
diferentes fontes das representações - o termo
mais geral que designa conteúdos mentais. Figura 1

Quando a representação surge imediatamente Também é de suma importância entendermos


da nossa afetação aos objetos externos, ela que, apesar da nossa capacidade de receber
leva o nome de intuição, e a sua fonte é a representações ser a sensibilidade, ela é uma
sensibilidade1, a primeira das quatro faculdade meramente passiva. Ela é sempre
faculdades. Quando a representação se afetada, e jamais age de forma ativa. Ela não
relaciona mediatamente ao objeto da atua no diverso que recebe. Assim, ela é a
experiência, através de outras faculdade da recepção, da receptividade das
representações, ela recebe o nome de impressões.3 O trabalho ativo de pensar as
conceito, e a sua fonte é o entendimento. O percepções é realizado pelas outras três
juízo, que manipula os conceitos, é oriundo faculdades, que as manipulam, dão forma,
da faculdade de julgar. Finalmente, quando unidade, etc.
um conceito ultrapassa a própria experiência,
ele recebe o nome de ideia, e a sua fonte, a 
quarta faculdade, é chamada de razão. A
razão, também pode-se dizer, é a faculdade
das inferências. Intuição, conceito e juízo
DA REALIDADE
serão melhor elucidados nas seções que A palavra transcendental adquire um
seguem, para que sejam absorvidos pelo significado crucial na teoria Kantiana.
leitor no momento ideal da construção do Transcendental, para Kant, sempre está
argumento. ligado ao conceito de possibilidade, uma
condição sem a qual algo não se dá.4 Esse
É perceptível que as faculdades possuem algo, ao qual Kant procura as condições de
uma hierarquia, como nos mostra a figura 1. possibilidade ao longo do Crítica da Razão
No nível mais baixo, temos a sensibilidade, Pura, é a experiência. Diferentemente de
que é designada como faculdade inferior do transcendental, transcendente se refere
conhecimento. As outras três, entendimento, àquilo que vai além dos limites da
faculdade de julgar e razão, são as faculdades
superiores do conhecimento. A faculdade que 2
CRP, B 75.
3
CRP, B 75.
1 4
Crítica da Razão Pura (CRP), B 33. CRO, B 44.
experiência, quando a razão procura alcançar ideal. A experiência do pedaço de madeira, e
algo fora do seu alcance.5 O oposto de poderíamos retirá-lo da piscina e verificar
transcendente é imanente, que significa que ele não é desconectado ou torto, estaria
dentro dos limites da experiência.6 no reino empiricamente real.

Kant divide a realidade entre o reino das


coisas em si, o Real Transcendental, e o reino
das aparências, que ele chama de Ideal
Transcendental. Assim, o real transcendental
se refere a quando não consideramos as Figura 2
condições de possibilidade da própria
experiência, quando tentamos utilizar a Poderíamos pensar, também, na experiência
razão para algo que ela sequer pretende ser que Sam causou no grupelho de Orcs que
usada. O ideal transcendental ocorre quando estavam prestes a matá-lo no livro Return of
de fato consideramos essas condições de the King. Ele projetou a sua sombra na
possibilidade, nos mantendo no reino da parede de maneira a induzir os Orcs a
experiência possível. acreditarem que o seu tamanho era muito
maior do que realmente era. Dessa forma, os
Kant não nega que existam coisas no espaço Orcs se assustaram, porque se enganaram
fora de mim, objetos externos à nós, dos acreditando na percepção da sombra
quais não obtemos meras imagens, mas que vinculando-a a uma pessoa muito grande - o
os experienciamos.7 Pelo contrário, ele é que é empiricamente ideal. No entanto, o
capaz de provar que a mera consciência da próprio Sam, não a sua sombra, mas de fato o
minha própria existência, empiricamente Sam, é um pequeno Hobbit, que não deveria
determinada, prova a existência dos objetos ter sido vinculado a figura de uma pessoa
no espaço fora de mim.8 grande. Quando o Sam se revelou, os Orcs
perceberam o seu verdadeiro tamanho - que é
O ideal transcendental, o reino da aparência empiricamente real - e o atacaram.
de como a coisa se apresenta a nós a partir de
uma afetação da mente, também possui uma A partir dessa distinção, podemos entender
divisão: o Empiricamente Real e o facilmente que, quando Kant fala sobre
Empiricamente Ideal.9 conhecimento, ele o limita ao reino das
aparições, dos fenômenos, que é justamente
A observação de um pedaço de madeira o reino da experiência possível. Um dos
mergulhado em uma piscina pode nos ajudar pontos kantianos é o que a metafísica
a entender a diferença desses conceitos. Essa transcendental é impossível, e que as suas
experiência nos fornece a percepção de que, proposições não podem ser provadas, mas
ao mergulhá-lo em uma piscina, o pedaço de isso é assunto para outro artigo.
madeira aparenta estar desconectado por
causa do efeito físico da refração. A figura 2 Para consolidar, irei sintetizar o que foi
tenta exemplificar isso. Até podemos explicado nessa seção. Ideal transcendental
acreditar que aquele pedaço de madeira seria dentro do reino da experiência, onde
realmente seja desconectado, ou torto, caso consideramos as suas condições de
não tenhamos conhecimento do efeito de possibilidade e construímos conhecimentos.
refração. Essa ilusão estaria no reino O ideal transcendental é dividido entre
empiricamente ideal, ela é empiricamente empiricamente real e empiricamente ideal.
5 Real transcendental seria dentro do reino das
A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed, "A
coisas em si, onde não é possível obter
priori e transcendental".
6
CRP, A XIV. conhecimento, porque não são consideradas
7
CRP, B 70. as próprias condições de possibilidade da
8
CRP, B 275. experiência.
9
CRP, B 44.
 O conhecimento não antecede a experiência,
porque todos eles começam com ela, e a
justificativa para isso se dá através do fato
DO CONHECIMENTO de que o único modo de colocar a nossa
Para entendermos a divisão dos faculdade de conhecimento em movimento é
conhecimentos estabelecida pela teoria a partir dos dados de entrada da
kantiana, é importante começar explicando o experiência.11
conceito de representação de forma mais
profunda. Esse termo, na minha visão, é o Sobre a faculdade de conhecimento é possível
termo mais importante de se ter em mente pensarmos na alusão a uma engrenagem, que
para entender Kant, porque ele é base de é parte passiva e parte ativa. Ela é em parte
muitos outros. passiva porque depende de um movimento
inicial para começar a funcionar, como uma
Uma representação [Vorstellung] é o termo engrenagem, e esse movimento é iniciado
mais geral possível para determinações pelo peteleco que a experiência nos dá, i.e.,
internas ou conteúdo da consciência, que pela afetação da nossa mente.
aparenta ter, ou, possa ter, mesmo que
hipoteticamente, um significado cognitivo, e No entanto, isso não significa que o
que possivelmente possa levar a algum conhecimento surge ou é derivado apenas da
conhecimento. Pensamentos, intuições, experiência e, além disso, a representação
conceitos, são todos representações. por si só não basta para formar um
conhecimento.12 É necessário entender que
Por exemplo, se fizermos referência ao para se conhecer algo, é necessário sair dessa
exemplo de uma miragem de um oásis, ela primeira representação, para que possamos
nada mais é que uma representação que reconhecer outra representação como ligada
aparenta ter uma conexão com o a ela.
empiricamente real, mas na verdade é
empiricamente ideal, ou seja, não possui o Conhecimento é, portanto, síntese de
significado cognitivo que aparenta ter. representações.13 Afirmamos do objeto de
uma representação algo que não está contido
No entanto, se realmente encontrarmos o nessa representação.
oásis, um lugar com água que poderia saciar
a nossa sede, esta seria uma representação Quando a síntese depende da experiência, ou
que é empiricamente real, e possui o quando a fonte do conhecimento é a
significado cognitivo que aparenta ter. experiência, ele é chamado de a posteriori.14

O sentimento de sede não é uma Assim sendo, se eu ligo a representação


representação, ele não faz referência a nada “copo” e a representação “vermelho” e
mais do que apenas a si mesmo, e não possui afirmo que “esse copo é vermelho”, eu estou
referência a nada que possa ou aparente realizando uma síntese cuja fonte está na
estar no reino ideal transcendental. experiência - a fonte desse conhecimento
deriva da experiência. A figura 3 tenta
Representação também significa síntese do exemplificar isso. Além disso, nem todo copo
que se apresenta10, i.e., dos dados de entrada é vermelho, e o copo que é vermelho, não
da experiência. Assim, conseguimos entender
melhor de onde vem o “re” de representação, 11
CRP, B 1.
12
justamente por ser o resultado uma operação A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed,
sobre algo que já foi apresentado. "faculdade superior de conhecer".
13
A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed,
"faculdade superior de conhecer".
10 14
A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed, "a CRP, B 2 e A filosofia crítica de Kant, Gilles
síntese e o entendimento legislador". Deleuze, 1ª ed, "faculdade superior de conhecer".
necessariamente é vermelho. Afinal, ele nenhuma representação que tenha tido fonte
poderia muito bem ser azul. Ou seja, não é na experiência. Já o conhecimento a priori
um conhecimento universal ou necessário. impuro se dá quando há algo de empírico
nele.

O exemplo do Kant é a proposição “toda


mudança tem uma causa”. Esse
conhecimento é a priori, e é portanto
universal e necessário, mas ele não é
inteiramente a priori, porque a mudança é
um conceito que só é possível de ser
estabelecido derivando-o da experiência.
Assim, ele é a priori impuro.

Figura 3 Kant percebe que existe uma relação


transcendental entre o objeto e a
Quando a síntese é independente da representação.18 Essa relação conecta nos
experiência, quando a fonte do conhecimento dois sentidos aquilo que chamamos de
independe de todas as impressões dos representação, e aquilo que chamamos de
sentidos, então esse é um conhecimento a aparência - ou fenômeno, aquilo que se
priori.15 apresenta a nós de maneira a formar uma
natureza. Dessa forma, o fenômeno deve
Se eu afirmar “tudo que muda tem uma obedecer necessariamente a princípios que
causa”, esse conhecimento é a priori, e eu são os mesmos princípios que regulam as
estou afirmando que as duas representações, nossas representações.
a de mudança, e de causa, estão
necessariamente e universalmente ligadas O transcendental qualifica o princípio da
uma à outra. Um outro exemplo, como submissão necessária dos dados da
podemos ver na figura 4, seria afirmar que o experiência as representações a priori, e, ao
volume de um cubo é o resultado de elevar o mesmo tempo -por isso uma relação de
lado ao cubo. O necessário e o universal são sentido duplo- de uma aplicação necessária
condições inseparáveis, e características do das representações a priori na experiência.19
conhecimento a priori.16


DO JUÍZO
Juízo, para Kant, é definido como o modo de
submeter determinados conhecimentos à
unidade objetiva da apercepção.20 O trabalho
de explicar os conceitos da Lógica
Transcendental, como a unidade da
Figura 4
apercepção, se dará em outro artigo. Para
esse, basta entender que quando realizamos
Dentre os conhecimentos a priori, ainda um juízo, através da legislação da faculdade
existe a separação entre os puros e os de conhecer, ligamos certos conceitos à
impuros.17 Conhecimento a priori puro é o outros.
que não possui nada de empírico, ou seja,
15 18
CRP, B 2 e A filosofia crítica de Kant, Gilles CRP, B 143.
19
Deleuze, 1ª ed, "faculdade superior de conhecer". A filosofia crítica de Kant, Gilles Deleuze, 1ª ed, "A
16
CRP, B 4. priori e transcendental".
17 20
CRP, B 3. CRP, B 142.
difusos, de maneira a possibilitar que você
Em todos os juízos nos quais é pensada a perceba a árvore como algo uniforme.
relação entre um sujeito e um predicado, essa Se eu definir o conceito livro dizendo que um
relação é possível de dois modos. O primeiro livro é um texto que possui uma capa, um
modo se dá quando o predicado “B” pertence autor, um título, apenas para usar como
ao sujeito “A” como algo que já está contido exemplo, eu poderia declarar o seguinte
(de modo oculto) neste conceito “A”. Este juízo: “todo livro tem um título”. Este juízo
modo recebe o nome de juízo analítico. O seria, de forma evidente, analítico, porque
segundo modo, no entanto, se dá quando o basta pensar em um livro, no conceito de
predicado B se localiza completamente fora livro, e ir revelando tudo o que for possível,
do conceito A, mesmo estando em conexão até que se perceba que já estava contido na
com ele, e, a este modo, Kant dá o nome de identidade de livro que ele possui um título.
juízo sintético.21
Por outro lado, se eu declarar o juízo “todo
Podemos pensar e entender que no caso do livro tem uma capa vermelha”, seria possível
juízo analítico, basta estudar sobre a conceber esse juízo na identidade de livro,
identidade do conceito A para revelar o apenas pensando no conceito livro? Não. Eu
predicado B. Afinal, o predicado B já estava preciso recorrer à experiência, analisando
inicialmente contido no conceito A. todos os livros e percebendo que todos eles
possuem a capa vermelha pra ter essa
No caso do juízo sintético, por mais que se relação. Assim, esse é um juízo sintético.
removesse camadas, revelando tudo o que
consiste o conceito A, nunca se chegaria no Também é por isso que todos os juízos de
predicado B, porque ele não está dentro do experiência são sintéticos.23 Seria absurdo eu
A. Ele está conectado com A de maneira fundar na experiência um juízo que eu já
externa, fora da identidade. encontro no próprio conceito.

Nesse momento, torna-se importante a A experiência fornece a possibilidade de


definição de conceito, porque apesar de ser realizar essa síntese entre o predicado capa
relacionado ao entendimento será vermelha e o conceito livro, porque mesmo
importante para a construção do argumento. que o predicado não esteja contido no
Conceito, em Kant, é uma regra que confere conceito, foi possível perceber que o
unidade às percepções. O conceito é plural, predicado pertence ao conceito, ainda que de
porque se refere a uma esfera de objetos. maneira contingente.
Assim, um conceito é sempre conforme a sua
forma algo universal que serve como uma Algo essencial a ser esclarecido é que todos
regra.22 os juízos sintéticos fundados na experiência
são apenas contingentes, isto é, não
Para exemplificar, pensem no conceito de necessários.24 Nem todos os livros tem a capa
árvore. Esse conceito subsume sob ele todas vermelha, e mesmo que todos tivessem, eles
as possíveis representações fenomênicas não necessariamente possuem a capa
individuais de árvores - por isso universal. O vermelha. Afinal, a capa poderia muito bem
conceito é uma regra porque ele impõe uma ser azul.
“reprodução necessária do diverso” dos
fenômenos. No caso da árvore, quando você

a está experienciando, i.e., recebendo os seus
estímulos externos, a regra serve para dar

unidade a todos esses dados sensoriais

21 23
CRP, B 11. CRP, B 12.
22 24
CRP, A 106. CRP, B 12.
 da experiência em algum momento, porque,
do contrário, seriam vazios, ocos, sem
conteúdo. Qual seria o corpo de conceitos a
PARTE 2 priori que provê a fundação necessária para a
possibilidade da experiência de objetos?

A partir de agora, começa o núcleo do artigo.


DA ESTÉTICA Toda a base já foi explicada, e o leitor está
TRANSCENDENTAL preparado para escalar a montanha - o
argumento Kantiano acerca da Estética
Introdução Transcendental. Eu irei dividi-lo em seções

A
numeradas para maior organização. Iremos
questão que deve estar colocando o
escalar a montanha juntos, pouco a pouco.
leitor atento em agitação, nesse
Em cada seção, eu pretendo definir alguns
momento, é acerca dos juízos
conceitos ou provar algumas proposições.
sintéticos a priori. Esses juízos existem
Dessa forma, no final, o argumento poderá
quando a fonte de tal juízo independe da
ser entendido de maneira silogística,
experiência, dando necessidade e
partindo de premissas, chegando em
universalidade ao juízo, e quando o juízo não
conclusões.
pretende meramente tratar de algo já contido
no conceito, mas quando se propõe a ligar ao
conceito algo que não está contido no 1 Sensibilidade,
mesmo. Estamos falando de expandir a sensação, intuição
maneira que temos de entender o mundo.
A capacidade de receber representações
Não existe assunto mais instigante!
através do modo como somos afetados por
objetos denomina-se sensibilidade
Como poderíamos expandir o nosso
conhecimento acerca do mundo e das coisas [Sinnlichkeit]. O efeito que um objeto causa
de maneira a formular juízos necessários e na capacidade de representação, quando o
mesmo objeto nos afeta, se chama sensação
universais? Quais são as condições que
[Empfindung].25
tornam tal capacidade possível? Nós as
possuímos? Estamos adquirindo
conhecimento da coisa em si? Da realidade
independente? Para resumir todas as
perguntas em uma pergunta suprema: como
são possíveis os juízos sintéticos a priori?
Responder esta questão primacial é o que
pretende Kant através da Estética
Transcendental. Figura 5

Além dos juízos sintéticos a priori, por mais O que recebemos, em primeira instância, é o
grandiosos que sejam, precisamos também diverso de sensações, que é desordenado, e,
voltar a nossa atenção para os juízos por não possuir forma, ainda não é uma
sintéticos a posteriori. Afinal, todos os intuição. Através de uma síntese, que não
nossos conhecimentos dos objetos da cabe ser explicada aqui, o diverso é
realidade empírica são formados a partir de representado em uma intuição.
juízos sintéticos a posteriori. Por mais que os
juízos sintéticos a priori nos forneçam A maneira imediata a qual um conhecimento
universalidade e necessidade, são os juízos se relaciona com um objeto [Gegenstand] é
da experiência os que mais ocupam a nossa chamada de intuição [Anschauung]. A
atenção durante a vida. Todos os conceitos a
priori necessitam fazer referência aos objetos 25
CRP, B 33.
intuição é singular, i.e., se refere a apenas um
objeto.

A intuição é empírica quando mediante a


sensação, refere-se ao objeto, e é pura
quando abstraímos da intuição empírica tudo
o que pertence a sensação, resultando apenas
na forma pura da sensibilidade, que é
exatamente o que a sensibilidade pode nos
dar a priori.26

Figura 7

Como aquilo que torna possível que


possamos ordenar um diverso não pode ser
encontrado na própria sensação, pois nesse
caso seria empírico, a forma tem de estar
Figura 6 pronta a priori na mente. Já a matéria, cuja
fonte está na sensação, nos é dada a
posteriori.
Assim, podemos perceber que a única fonte
das intuições é a sensibilidade, que é a única Quando estamos vendo um cilindro azul na
fonte da qual os objetos nos são dados. A nossa frente, o que se apresenta a nós, ou o
sensibilidade não pensa os objetos, porque que aparece na intuição é, inicialmente, o
essa é uma tarefa do entendimento através fenômeno do cilindro enquanto diversidade
dos conceitos. empírica. O cilindro enquanto fenômeno não
é uma mera aparência, e sim uma aparição.
2 Fenômeno,
matéria, forma
O objeto indeterminado de uma intuição
empírica que, por meio da sensação, se
relaciona a um objeto, se chama fenômeno
[Erscheinung].27

Para aquilo que no fenômeno corresponde à


sensação, Kant denomina matéria. Aquilo
que faz com que o diverso do fenômeno
possa ser ordenado, Kant denomina forma.

Figura 8

26
CRP, B 34.
27
CRP, B 34.
3 Formas puras 4 Espaço
A ciência de todos os princípios a priori da
sensibilidade é chamada de Estética
Transcendental. Nela, o objetivo de Kant é
abstrair da sensibilidade:
1. Tudo o que pertence ao entendimento,
i.e., tudo o que é adicionado por meio
dos seus conceitos, restando a intuição
empírica;
2. Tudo o que pertence a sensação, i.e.,
tudo o que nos é dado a posteriori,
restando a intuição pura, que é a mera
forma dos fenômenos.

No fim dessa abstração, se verificará que


existem duas formas puras da intuição
sensível, sendo elas tudo o que a
sensibilidade pode nos fornecer a priori como Figura 10
princípios do conhecimento: o espaço e o
tempo. Por meio do sentido externo, nós nos
representamos os objetos como fora de nós,
no espaço. O espaço é a forma das
percepções do sentido externo, e, não sendo
abstraído de percepções dos sentidos, está
disponível a priori na mente.

Prova
P0 - A receptividade do sujeito para ser
afetado por objetos antecede
necessariamente todas as intuições desses
objetos.
P1 - Logo, a forma de todos os fenômenos
precisa estar dada na mente antes de todas as
percepções reais, portanto, disponível a
priori.
P2 - Enquanto intuição pura, todas as
percepções do sentido externo têm de ser
determinadas nela.
P3 - Assim, ela contém os princípios das
relações das mesmas antes de toda
experiência.

1: P0
2: P0 ⇒ P1
3: P1 [Modus Ponens]
4: P2
5: P2 ⇒ P3
6: P3 [Modus Ponens]
____
A representação originária do espaço não é
O espaço é uma intuição pura. um conceito, mas uma intuição a priori.

Prova Prova
P0 - Só se pode representar um único espaço. P0 - É necessário pensar cada conceito como
Quando se fala de diversos espaços, entende- uma representação que está contida em uma
se por isso apenas as partes de um mesmo e infinita variedade de diferentes
único espaço universal. representações possíveis, e que, portanto
P1 - O espaço é essencialmente uno, e o contém-nas sob si.
diverso nele, portanto também o conceito P0’ - Nenhum conceito pode ser pensado
universal de espaços em geral, baseia-se como se contivesse em si uma variedade
simplesmente em limitações. infinita de representações.
P2 - Logo, o espaço é uma intuição a priori P1 - O espaço é pensado como se contivesse
que serve de fundamento a todos os conceitos em si uma variedade infinita de
de espaço. representações.
P2 - Logo, a representação originária do
1: P0 espaço não é um conceito, mas uma intuição
2: P1 a priori.
3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2
4: P2 [Modus Ponens] 1: P0’
____ 2: P1
3: P0’ ⋏ P1 ⇒ P2
O espaço é uma representação necessária a 4: P2 [Modus Ponens]
priori que serve de fundamento a todas as
intuições externas. _____

Prova A forma permanente da receptividade, que


P0 - Ninguém pode jamais representar-se que chamamos sensibilidade, é uma condição
não há espaço. necessária de todas as relações em que
P1 - Logo, ele é condição de possibilidade objetos são intuídos como fora de nós, e,
dos fenômenos. caso se faça abstração desses objetos, ela é
P2 - E, portanto, é uma representação a uma intuição pura que leva o nome de
priori que, necessariamente, serve de espaço.
fundamento a todos os fenômenos externos.
O espaço é transcendentalmente ideal, porque
1: P0 é condição da possibilidade de qualquer
2: P0 ⇒ P1 experiência, e é empiricamente real, porque
3: P1 [Modus Ponens] todos os objetos da experiência estão sujeitos
4: P1 ⇒ P2 ao espaço como uma condição.28
5: P2 [Modus Ponens]
Nada do que é intuído no espaço é uma coisa
____ em si, nem o espaço é uma forma das coisas
que lhes fosse próprias em si mesmas. Os
objetos em si não nos são conhecidos, e
aquilo que denominamos objetos externos
são meras representações de nossa
sensibilidade, cuja forma é o espaço, e cujo
verdadeiro correlato é a coisa em si mesma,
apesar de não ser de modo algum conhecida.

28
CRP, B 44.
5 Tempo

Figura 11

Por meio do sentido interno, a mente intui a pertencem elas mesmas ao estado interno
si mesma, intui o seu estado interno. O como determinações da mente.
tempo é a forma sob a qual é possível a P1 - O estado interno pertence às condições
intuição do seu estado interno, no sentido formais da intuição interna, que é o tempo.
de que tudo o que pertence às P2 - O tempo é a condição formal a priori de
determinações internas é representado em todos os fenômenos em geral.
relações de tempo.
1: P0
Prova 2: P1
P0 - O tempo não pode ser uma determinação 3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2
dos fenômenos externos, ele não pertence a 4: P2 [Modus Ponens]
uma figura, a uma situação. _____
P1 - Ele determina, pelo contrário, a relação
das representações em nosso estado interno. O tempo não é um conceito discursivo, mas
P2 - O tempo é a forma sob a qual a intuição uma forma pura da intuição sensível.
do seu estado interno.
Prova
1: P0 P0 - A representação que só pode ser dada
2: P1 por meio de um único objeto é uma intuição.
3: P0 ⋏ P1 ⇒ P2 P1 - Diferentes tempos são apenas partes do
4: P2 [Modus Ponens] mesmo e único tempo.
_____ P2 - A proposição de que diferentes tempos
não podem ser simultâneos não pode ser
O tempo é a condição formal a priori de derivada de um conceito.
todos os fenômenos em geral. P3 - A proposição é sintética e não pode ser
originar-se somente de conceitos.
Prova P4 - Ela está imediatamente contida,
P0 - Todas as representações, quer elas portanto, na intuição e representação do
tenham coisas externas como objetos ou não, tempo.
1: P0 1: P0
2: P1 2: P0 ⇒ P1
3: P2 3: P1 [Modus Ponens]
4: P0 ⋏ P1 ⋏ P2 ⇒ P3 4: P2
5: P3 [Modus Ponens] 5: P1 ⋏ P2 ⇒ P3
6: P3 ⇒ P4 6: P3 [Modus Ponens]
7: P4 [Modus Ponens] _____
_____
O conceito de modificação , e com ele o de
O tempo não é um conceito empírico que movimento (modificação do lugar), só são
tenha sido derivado de alguma experiência, possíveis na representação do tempo e por
mas sim uma intuição pura. meio dela.

Prova Prova
P0 - Somente sob a pressuposição do tempo se P0 - Somente no tempo podem ambas as
pode representar que algo seja em um mesmo determinações contraditoriamente
e único tempo (ao mesmo tempo) ou em contrapostas ser encontradas em uma coisa,
diferentes tempos (um após o outro). como seja, uma após a outra.
P1 - A simultaneidade [Zugleichsein] e a P1 - Se a representação do tempo não fosse
sucessão [Aufeinanderfolgen] não se uma intuição a priori, nenhum conceito
apresentariam à percepção caso a poderia tornar compreensível a possibilidade
representação do tempo não lhes servisse a de modificação, que é a ligação de predicados
priori de fundamento. contraditoriamente contrapostos em um
P2 - O tempo é uma intuição pura, que é mesmo e único objeto.
forma de todos os fenômenos em geral. P2 - O conceito de modificação -e com ele o
de movimento (modificação do lugar)- só são
1: P0 possíveis na representação do tempo e por
2: P0 ⇒ P1 meio dela.
3: P1 [Modus Ponens]
4: P1 ⇒ P2 1: P0
5: P2 [Modus Ponens] 2: P0 ⇒ P1
_____ 3: P1 [Modus Ponens]
4: P1 ⇒ P2
O tempo é uma representação necessária 5: P2 [Modus Ponens]
que serve de fundamento a todas as _____
intuições.
A necessidade a priori do tempo funda
Prova também princípios apodíticos de relações de
P0 - Não se pode suprimir o tempo no que tempo. Por exemplo, o tempo tem apenas
diz respeito aos fenômenos em geral. uma dimensão: tempos diferentes não são
P1 - O tempo é, portanto, dado a priori. simultâneos, mas sucessivos.
P2 - Apenas nele é possível toda a realidade
dos fenômenos. O tempo é transcendentalmente ideal, porque
P3 - O tempo é uma representação necessária é condição da possibilidade de qualquer
que serve de fundamento a todas as experiência, e é empiricamente real, porque
intuições. todos os objetos da experiência estão sujeitos
ao tempo como uma condição.29

29
CRP, B 52.
sensibilidade, que em mim como sujeito
Nada do que é intuído no tempo é uma coisa precede todas as impressões reais através das
em si, porque ele seria algo real mesmo sem quais sou afetado por objetos.32
objeto real. O tempo não é uma forma das
coisas que lhes fosse próprias em si mesmas, 8 Juízos sintéticos
porque ele não poderia, como determinação
inerente às coisas mesmas, preceder aos a priori são possíveis
objetos como sua condição, nem ser intuído Juízos sintéticos a priori são possíveis
ou conhecido a priori por meio de porque as intuições puras do espaço e do
proposições sintéticas. tempo nos permitem ir além de um dado
conceito para descobrir aquilo que é a priori
6 A intuição pura sinteticamente conectado com ele na intuição
que lhe corresponde.33
existe
O argumento que Kant usa para provar que O espaço e o tempo, meras condições da
resta algo, a intuição pura, depois de sensibilidade, determinam, também, os seus
abstrairmos da intuição empírica tudo o que próprios limites. O juízo sintético a priori
pertence a sensação, é baseado na alegação não pode nunca alcançar objetos que não os
de que aquilo no que as sensações podem dos sentidos, e só vale, portanto, para objetos
exclusivamente ser ordenadas e colocadas da experiência possível.34
em uma certa forma não pode ser, ele
mesmo, por sua vez, a sensação.30 
É claro que essa fundamentação é ela mesma 
apoiada no resultado da estética
transcendental, o espaço e o tempo, que já
foram provados.
DO RESULTADO
7 É possível DA ESTÉTICA
intuir a priori TRANSCENDENTAL

P
Uma intuição é uma representação que ela nossa travessia que iniciou-se na
depende da presença de um objeto, mas sensibilidade, a nossa capacidade de
parece que uma intuição a priori teria que receber representações, e findou-se
ocorrer sem que um objeto estivesse nas formas puras da intuição, o espaço e o
presente. Qual é o objeto de tal intuição? tempo - que são tudo o que a sensibilidade
pode nos dar a priori, nos deparamos com
Ora, a representação do espaço tem a sua conceitos complexos como conhecimento,
sede meramente no sujeito.31 O problema da juízo, sensação, matéria, forma. Apesar
intuição a priori se mantém apenas se disso, saímos desses numerosos desafios
considerarmos que a nossa intuição vitoriosos. No final, através das ferramentas
representa a coisa como ela é em si. Se fosse bem definidas por Kant, surgiu-nos a
assim, seria impossível intuir a priori. possibilidade de entender que juízos
sintéticos a priori são possíveis.
Só há uma maneira, assim, da minha intuição
preceder a realidade do objeto e ocorrer Esse passo nos é fundamental na busca pela
como uma representação a priori: se ela não verdade, e, sem ele, é impossível
contiver nada que não seja a forma da
32
Prolegômenos, Immanuel Kant.
30 33
Immanuel Kant: conceitos fundamentais, Editora Immanuel Kant: conceitos fundamentais, Editora
Vozes, 2020. Vozes, 2020.
31 34
CRP, B 41 CRP, B 73.
continuarmos a nossa aventura dentro da diminui na presença do sofrimento, mas o
teoria Kantiana. Já podemos avistar, agora, a encara com determinação. A sabedoria é o
próxima montanha chamada Lógica bem real mais importante; a coragem de
Transcendental, cuja escalada é mais enfrentar a ignorância, a virtude. Sapere
rigorosa. No entanto, o leitor já demonstrou aude!
plena capacidade para vencer o desafio.

O leitor que chegou aqui merece um caloroso


“parabéns”. Os conceitos expostos neste “All we have to decide is what to do
artigo são de dificuldade considerável, e a with the time that is given us”
quantidade de conceitos que manejamos nas
diversas provas realizadas é numerosa. Além
- J.R.R. Tolkien
disso, o interesse no estudo de questões
filosóficas demonstra um provável espírito
curioso e atrevido - aquele que não se



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