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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras
Departamento de Letras Vernáculas
Setor de Literatura Brasileira
Profª. Maria Lucia Guimarães de Faria

LINGUAGEM E EPIFANIA:
A paixão segundo GH, de Clarice Lispector

1. Platão e a construção da metafísica

1.1 O drama do Ocidente I

. A metafísica se constrói na República (Politeia), através da articulação de três


imagens:

a) A linha segmentada

b) O Sol

c) A caverna

A) A linha segmentada

. Em um dos diálogos platônicos da República, Sócrates, personagem principal de


Platão, a fim de tentar esclarecer como se pode compreender o mundo e em particular
como se dá a aquisição de conhecimento, pede a seus interlocutores que imaginem um
segmento de reta vertical AB, dividido desigualmente em dois hemisférios no ponto C.
Cada um destes hemisférios, por sua vez, se subdivide em dois sub-hemisférios, nos
pontos D e E. Dentro dos nichos que se configuram ao longo desta linha segmentada,
ele vai localizando os diversos elementos que constituem as esferas visível e invisível
do cosmos. Como a linha vertical já contém implicitamente uma hierarquização e uma
escala axiológica, a distribuição a que são submetidos os elementos nomeados é de
fundamental importância para que se compreenda o edifício platônico e o sistema que o
filósofo funda e vem a se chamar metafísica.

. A metafísica é um sistema de pensamento que busca determinar os fundamentos, as


origens primeiras e os fins últimos de tudo que é e existe. A palavra se forma da
aglutinação dos termos metà tà physiká e aponta para o que está além (metà) de todos
entes físicos (tà physiká).

. O esquema da próxima página dá uma noção da performance da linha segmentada.


IDEIA DO BEM
Princípio e Fundamento de tudo que é e existe

UNIVERSO INTELIGÍVEL
ciência correta da Verdade
Aletheia
A

Ideias FILOSOFIA

(formas o não-hipotético, Conhecimento


prototípicas) o absoluto, o universal

Conceitos CIÊNCIAS

hipóteses Entendimento

C
Seres vivos VIDA

mutação contínua,
degradação Fé

Imagens ARTE

cópias, sombras Conjecturas

B
MUNDO SENSÍVEL
experiência incerta da Opiniões
Doxa
. Cria-se um sistema de reflexos, partindo da Ideia do Bem até chegar às imagens. Se a
Ideia do Bem é a fonte suprema de luz e a produtora de ser, naturalmente quanto mais
perto dela se localizarem os elementos, mais iluminados serão e mais dotados de
“essência”; quanto mais distanciados, menos luminosos e mais esbatidos. Assim, têm
muito “mais ser” as Ideias do que as imagens, situadas no ponto mais baixo da escala
cognitiva.

. De modo geral, a consequência imediata do esquema platônico da metafísica é que as


coisas concretas, que habitam o plano terreno e constituem o objeto da experiência
humana, têm sua relevância enormemente reduzida.
Eis a relação que se estabelece:
Coisas sensíveis = meros reflexos de seus protótipos inteligíveis

B) O Sol

. A fim de tornar mais claro o esquema apresentado, Sócrates, o personagem, sempre


falando como porta-voz de Platão, propõe uma homologia estrutural, estabelecendo
correspondências entre o mundo sensível e o universo inteligível. A ideia é dar aos
interlocutores uma pálida ideia do que seja a potência do Bem e da Verdade.

Mundo Sensível Universo Inteligível

SOL BEM

LUZ VERDADE

VER SABER/CONHECER

. Se a Luz é equacionada com a Verdade, compreende-se o absoluto privilégio que o


Ocidente concedeu a ela, em detrimento das trevas, e a razão pela qual o sentido da
visão é tão mais valorizado que os outros quatro. A própria palavra “teoria” é
proveniente do campo da visão.

C) A Caverna

. Das três imagens, essa é mais conhecida dentro da gnosiologia platônica.

. Sócrates pede a seus interlocutores que imaginem uma morada subterrânea em forma
de caverna. Lá no fundo, diz ele, estão sentados os habitantes, presos de pernas, braços e
pescoço, impossibilitados de girarem seus corpos e obrigados a olharem apenas para a
frente. Por trás deles, há um caminho escalonado que sobe até a saída. Em algum lugar
dentro da caverna há um fogo cuja chama bruxuleia, e alguns objetos estão espalhados
pelo ambiente. Fora da caverna, circulam pessoas, mas suas vozes só se ouvem remota e
indistintamente.
Tudo o que passa pela porta da caverna e os próprios objetos dentro dela
projetam sombras na parede ao fundo da caverna, diante da qual estão sentados, inertes,
os prisioneiros. Porque as sombras são tudo o que veem e que sempre viram, eles as
tomam pelas próprias coisas, incapazes de suspeitar que há toda uma realidade para
além delas.
Um dia, contudo, um dos prisioneiros consegue mexer a cabeça. Acentuando o
esforço, percebe que pode movimentar o corpo e acaba por libertar-se dos grilhões.
Uma vez de pé, faz um giro completo do corpo e se dá conta dos objetos, dentro da
caverna, que produzem as sombras projetadas na parede. Percebe, a seguir, o fogo, e
compreende que ele é a fonte de luz que gera a formação dos reflexos. Ato contínuo,
enxerga o caminho escalonado e se põe a subir os degraus.
Quando chega à porta da caverna, é noite. A luz do céu intensamente estrelado o
enceguece e ele precisa habituar os olhos para encarar os astros noturnos. O exercício é
preparatório para que, ao amanhecer, ele possa, primeiro, admirar a claridade e, por fim,
contemplar o sol em todo o seu esplendor. Neste momento, ele está apto a sair da
caverna.

. Os diversos passos concatenados executados pelo prisioneiro em sua rota ascensional


constituem os lances consecutivos num processo de aprendizagem mediante o qual, a
cada nova etapa, ele se depara com algo que “contém mais ser” do que o elemento
anterior. Assim, da sombra para o objeto, deste para o fogo, deste para o céu noturno,
deste para o céu diurno e deste, enfim, para o sol em toda a sua potência, o prisioneiro
vai gradualmente se aproximando da própria fonte produtora de luz.

. A imagem da Caverna inclui e transcende as outras duas. O caminho escalonado


dentro dela é a Linha Segmentada, e o Sol, sabe-se pela homologia estrutural, é a
própria Ideia do Bem.

. A Caverna arquiteta e dramatiza uma verdadeira alegoria, na medida em que nada do


que ela nomeia é de fato aquilo que se diz. Alegoria, do grego allos (= outro) agoreuein
(= falar) significa “dizer o outro”, isto é, dizer algo, mas significar para além do literal.

. Lida, então, na chave alegórica, a imagem da caverna expõe seus verdadeiros termos e
revela seus propósitos:
Prisioneiros = homens
Grilhões = sentidos corporais
Sombras na parede = coisas sensíveis

. O saldo final da alegoria da caverna se pode formular nos seguintes termos:


Vida, mundo sensível = Caverna subterrânea,
cujos prisioneiros (= nós todos, seres humanos)
se agitam na gestação de sombras

. Parece desejável sair de uma caverna abafada e trevosa. No entanto, como se trata de
uma alegoria, é preciso compreender com clareza o que significa deixar a caverna.

substituir o concreto pelo abstrato


Sair da caverna renegar o sensível pelo inteligível
abdicar da vida em nome da inteligência

. O giro completo sobre seu próprio eixo, que o prisioneiro perfaz para começar a
perceber as coisas ao seu redor e posteriormente deixar a caverna, desvela o seu sentido
maior: periagogé holes tes psychés, que significa uma conversão categórica da alma,
que volta as costas para o mundo sensível a fim de poder dedicar-se à pura
contemplação do universo inteligível.

1.2. A cisão metafísica

. o ente sensível e o ser inteligível são separados e sitiados em dois extremos


contrapolares:

o ideal supraceleste da essência X o real subterrâneo da aparência


(é, mas não devém) (devém, mas não é)

. Aporia platônica = o dilema de dois mundos cindidos e irreconciliáveis:

o das ideias, que são, X o das coisas, que existem,


mas não existem mas não são

1.3. Os desdobramentos

. O Platonismo é absorvido e incorporado pelo Cristianismo:


Em lugar da Ideia do Bem, coloca-se Deus, como princípio, modelo e
fundamento.

. O inteligível (espiritual) é supervalorizado, e o sensível (carnal) é degradado.

. Gera-se uma distorção: só o ideal é percebido como real. O mundo terreno se afigura
ilusório, fugaz, mentiroso, falso, traiçoeiro.

. Prega-se a renúncia ao êxtase sensorial. O corpo é considerado vil e impuro, e tudo que
lhe diz respeito é pecado.

. Instaura-se uma lógica binária, maniqueísta, um dualismo psicofísico: o que é


inteligível é bom, divino e verdadeiro; o que é sensível é mau, demoníaco, falso,
aparente.
O corpo se separa da alma, a realidade se separa da idealidade, a matéria, do
espírito, a aparência, da essência. Criam-se os dualismos antagônicos, isto é, contrários
que se excluem reciprocamente.

. Civilização esquizofrênica: o sensível é anulado pelo inteligível, ou o anula. No


primeiro caso, ele é reprimido; no segundo, é vivido com violência.
. Inverter as posições do sensível e do inteligível não suplanta o Platonismo, apenas o
cultua às avessas. Continua-se sob o domínio de uma cisão primordial e de um
binarismo elementar.

. O pensamento de Descartes (Cartesianismo) atomiza o Platonismo no autoritarismo


prepotente do sujeito. A metafísica platônica da idealidade se consuma na metafísica
cartesiana da subjetividade. O sujeito (cogito) se apresenta como fundamento de tudo o
que se representa. Reitera-se a cisão platônica do sensível e do inteligível na separação
cartesiana do sujeito e do objeto. As coisas são desintegradas pela subjetividade
imperial e se tornam inefáveis, porque já não reais ou “coisais”, mas ideais.

. Como resgatar o sensível? Como reaver a experiência (não a consciência) do homem,


do mundo, das coisas, do corpo, de Deus?
É deste impasse que nasce o romance de Clarice.

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