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ALEGORIA DA CAVERNA

Platão/Socrates
(Adaptação de texto – Aldo Litaiff)

PLATÃO. A República. Brasília: Universidade de Brasília, 1996.


_____. Diálogos – O Banquete, Fédon, Sofista, Político. São Paulo: Abril Cultural,
1979 (Coleção Os Pensadores).

Esta história, a nossa história, se inicia com uma breve narrativa que remete à cena
inaugural da cultura ocidental. Esta epopeia é marcada por um grande projeto de um
antigo pensador grego, Platão (1972 e 1996), que buscava manter a unidade da polis
helênica, submetendo o indivíduo, ou melhor, a individualidade, ao coletivo. Assim
como os pensadores pré-socráticos, focado no princípio da racionalidade, Platão e seus
sucessores procuravam as causas dos fenômenos físicos nos próprios elementos e
eventos da natureza, não mais nas divindades. Influenciado pelo Orfismo 1, em sua
“Alegoria da Caverna”, que pode ser considerado o “mito fundador” (Lévi-Strauss,
1964) das sociedades ditas ocidentais, Platão (1979, p.69-70 e 1996, p.39-40) propõe a
necessidade de um fundamento metafísico para todo e qualquer conhecimento.
Conforme o mito platônico, Sócrates convida seu aluno e interlocutor Glauco a
imaginar a seguinte cena: como prisioneiros, seres humanos estão amarrados ao fundo
de uma caverna, tendo seus corpos e cabeças imobilizados. Diante de si veem sombras
se movimentando nas paredes da caverna e escutam ecos de vozes. Nas sombras vêm
figuras de madeira e de pedra que representam homens, animais etc., sobre um muro,
sendo conduzidos por titeriteiros (que eles não veem), como num teatro de marionetes,
sendo deles as vozes escutadas. Atrás de tudo isto, num plano superior, mas sempre no
interior da caverna, um fogo arde, sendo que, ao passar sobre o muro, sua luz ilumina
essas figuras projetando suas sombras na parede do fundo da caverna, para onde estão
voltados os homens amarrados. Em um dado momento, um dos prisioneiros é libertado.
Ele pode então se voltar para trás e ver os objetos e figuras das quais via somente as
1
Tendo Dioniso e Perséfone como principais deuses, trata-se de um conjunto de crenças e práticas
religiosas originárias dos antigos Gregos, associadas à tradição oral atribuída ao poeta Orfeu, que teria
descido e retornado dos mundos míticos inferiores.
sombras. Então, ele é conduzido para perto do fogo, porém seu brilho o impede de ver
com nitidez. Ele tenta olhar as sombras que conhecia e distinguia melhor que os
próprios objetos. Em seguida é conduzido para fora da caverna, onde brilha a luz do dia,
que o ofusca e o torna incapaz de ver. O homem centraliza então sua visão, primeiro nas
sombras dos seres vivos e dos objetos até conseguir levantar os olhos e ver os seres que
o cercam e, por fim, ver o sol. Após contemplar esta visão o prisioneiro recusa-se a
retornar ao interior da caverna. Mas quando ele penetra novamente na escuridão, seus
olhos são incapazes de discernir os objetos de seu interior. Após relatar sua experiência
aos outros prisioneiros torna-se alvo de zombarias daqueles que não vislumbraram “a
Verdade”.

Nessa narrativa, o mundo fictício da caverna clareado por uma fogueira representa o
mundo sensível; enquanto que o exterior, iluminado pela luz solar, simboliza o mundo
inteligível, para Platão, o “Bem”. Logo, segundo o mito, existiriam dois níveis
cósmico/óntico: um inferior, constituído por sombras e reflexos; e um superior, formado
por realidades consideradas verdadeiras. Assim, numa interessante analogia entre
conhecimento e visão, como o mundo externo é “mais claro” que o mundo da caverna, o
mundo inteligível seria real, enquanto que o mundo sensível ilusório. Glorificando o
filósofo pré-socrático Parmênides, a quem se refere como “pai”, Platão hipostasia 2
qualidades, aspectos de objetos, transformando-os em substantivos abstratos (O Bem, A
Justiça, O Belo etc.), reificando conceitos efêmeros, mas fundamentais para seu projeto.
Descontextualizando-os, Platão “cria” as essências tão buscadas pelos pensadores pré-
socráticos.

Podemos constatar então, que no alvorecer do pensamento ocidental o apriorismo


racionalista, fundamentado em sua “teoria da reminiscência”, Platão sustentava que
“conhecer é lembrar” dos “arquétipos”, ou das formas ideais e “verdadeiras” de objetos
do mundo sensível, negando que a experiência tivesse algum valor para a cognição.
Julgando que o conhecimento baseado na realidade empírica é algo que nos
familiarizaria apenas com aparência; não com a “realidade genuína”, ou seja, o
inteligível, Platão instaura o dualismo primordial, fundamentado nesse “corte
epistemológico”, uma divisão situada no cerne das dicotomias metafísicas decorrentes.

2
Em grego antigo ὑπόστᾰσις - hypostasis, que significa “substância”, essência, mas aqui
designando abstrações consideradas como objetos tangíveis.
Como relata o antigo pensador grego (1979, p.66-68), pouco antes de sua morte,
Sócrates fala a Fédon, seu discípulo: “...quando se trata de adquirir verdadeiramente a
sabedoria é ou não o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio?...
alguma verdade é transmitida aos homens por intermédio do olho ou do ouvido...? E se
dentre as sensações corporais estas não possuem exatidão e são incertas... Quando é,
pois, que a alma atinge a Verdade?” Sócrates segue o diálogo, afirmando a Fédon a
necessidade da morte como condição para se atingir “a Verdade” através da Filosofia:
“Temos de um lado que, quando ela [a alma] deseja investigar qualquer questão que
seja com a ajuda do corpo, este a engana radicalmente... Não é no ato de raciocinar, e
não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser? ...E, sem
dúvida, ela raciocina melhor precisamente quando nenhum empecilho lhe advém de
nenhuma parte, nem do ouvido, nem do olho, nem do sofrimento, nem do prazer – mas
sim quando se isola o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo à sua sorte,
quando, rompendo tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer contato com
ele, anseia pelo real?”. Na “Alegoria da Caverna”, para Sócrates a alma estaria
acorrentada ao corpo, considerado sua prisão, pois, como vimos, segundo ele, os
sentidos nos trariam somente ilusões. Em contrapartida, estando “a Verdade” ligada
necessariamente à alma, Sócrates recomenda a seus discípulos que buscam o
conhecimento, que se voltem para si mesmos examinando o que cada coisa é na sua
essência, que seria inteligível e, consequentemente, invisível (Platão, 1979, p.88). Como
veremos a seguir, na esteira lançada pelos pensadores da Antiga da Grécia, os filósofos
“modernos” decidiram que doravante será considerado real tudo o que for devidamente
imunizado de toda realidade empírica, de todo e qualquer contexto humano, de todos os
sentidos, ou seja, substantivos abstratos doravante considerados essências.

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