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O SER COMO OBJETO DA

INTELIGÊNCIA

Luiz Gonzaga de Carvalho Neto


Revisão:
San

Editado:
San

Projeto gráfico e capa:


San

Transcrição:
Carlos Eduardo de Carvalho Vargas

SUMÁRIO
CAPÍTULO I: AS DUAS DIMENSÕES DA VIDA HUMANA
CAPÍTULO II: O SER COMO OBJETO DA INTELIGÊNCIA
CAPÍTULO III: A PERCEPÇÃO INICIAL DO SER
CAPÍTULO IV: A INVESTIGAÇÃO SOBRE O SER
CAPÍTULO V: UM EXERCÍCIO FUNDAMENTAL DE PERCEPÇÃO DO SER
CAPÍTULO VI: A DIFERENÇA ENTRE O SER E A QÜIDIDADE
CAPÍTULO VII: O EXERCÍCIO DE IMERSÃO NO SER DE UMA ATO
CAPÍTULO VIII: INVESTIGANDO O ASPECTO INCONDICIONADO DA REALIDADE
CAPÍTULO IX: O SIMBOLISMO DO PRIMEIRO DIA DA CRIAÇÃO E DO PRIMEIRO DOM
DO ESPÍRITO SANTO
CAPÍTULO X: O SEGUNDO DIA DA CRIAÇÃO OU O SEGUNDO DOM DO ESPÍRITO
SANTO
CAPÍTULO XI: OUTROS ESCLARECIMENTOS ACERCA DO EXERCÍCIO DE
REMEMORAÇÃO DA IMERSÃO NO SER DE UM ATO
CAPÍTULO XII: DOIS PLANOS INTELECTUAIS OU A DISTINÇÃO ENTRE DOIS
ASPECTOS DA INTELIGÊNCIA HUMANA
CAPÍTULO XIII: À GUISA DE CONCLUSÃO: O INTELECTO E O SENTIDO DA VIDA
HUMANA
CAPÍTULO I: AS DUAS DIMENSÕES DA VIDA HUMANA
Professor: Na última aula, nós estávamos tratando das duas dimensões da vida
humana: a vertical e a horizontal. A vida humana tem duas questões fundamentais que
precisam ser resolvidas durante a sua vida. Ele é o único animal capaz de transcender
para o absoluto e capaz de antecipar conscientemente a sua própria morte. A capacidade
humana de conceber a morte e o absoluto é algo completamente dispensável em termos
biológicos. E isso ocorre justamente devido à presença de uma inteligência abstrata no
indivíduo. A inteligência abstrata somente encontra sua justificativa na capacidade de
conceber o mundo do puro espírito e o mundo transcendente, de modo que um ser
humano passa ter um problema duplo na sua existência:

1) Ele precisa saber algo sobre o absoluto;


2) Ele precisa ser capaz de integrar esse conhecimento na vida dele como um
todo.

Ele não pode ficar apenas pensando no absoluto e dedicando-se à inteligência.


Como ele resolverá esse problema? Resolverá na medida em que existir em toda atividade
humana uma referência ao transcendente. Em tudo que ele fizer, mesmo o que fizer
apenas em nome das necessidades biológicas, será inserida esta dimensão transcendente.
Toda e qualquer atividade humana implica nisso para que seja propriamente humana: que
seja um casamento do mundo terrestre com a dimensão celeste.
Aluno: Como um todo?
Professor: Isso é para que o ser humano tenha uma vida completa. Uma vida
humana completa implica que o sujeito seja capaz de cruzar estas duas dimensões em
cada uma das suas atividades. O primeiro problema seria isso: “como eu posso conhecer melhor
o que é o Absoluto, o que é a Transcendência, o que é Deus?”

CAPÍTULO II: O SER COMO OBJETO DA


INTELIGÊNCIA
Neste primeiro problema surge uma questão fundamental: o objeto da inteligência
abstrata é o ser enquanto tal. O objeto dos sentidos e da imaginação não é o ser, mas os
modos de existir. Estes são uma espécie de participação no ser. Por exemplo: falar é um
modo de existir ou de ser. Andar é outro, respirar é outro, pensar é outro: todos estes são
modos de ser. Mas nenhum deles é o próprio ser. Por exemplo: se o sujeito fala, falar é
alguma coisa, mas falar não é andar. Andar não é comer e assim por diante. Cada uma
destas modalidades possui uma analogia com as outras atividades e essas analogias se
fundam justamente no ser, pois todos estes são modos de efetividade. Então, a primeira
coisa que a inteligência capta ao perceber algum modo de existência ou atividade concreta
é que tal objeto é, de algum modo, real. A primeira percepção que se tem de uma coisa é
que ela é real. Mas esta percepção imediatamente passa para o fundo da consciência e a
atenção se volta para a formalidade própria daquele objeto e não para o seu caráter de ser
enquanto ser. Volta-se para a “qüididade” dela. Ao perceber uma pedra caindo ou a água de
um rio fluindo, a primeira percepção da inteligência é que aquilo é algo. E o segundo
passo é perceber quais são as qualidades distintivas deste “algo” e que o diferenciam de
qualquer outro ser. Embora a inteligência seja feita para o ser, a psique humana não é
feita para voltar sua atenção fundamentalmente para o ser, mas para as formas
particulares do ser. Esta é a primeira tensão que precisa ser resolvida para uma vida
humana completa. De algum modo, tenho que balancear essa tendência psíquica de me
voltar apenas para um modo de existência particular e dirigir-me para o caráter de ser.
Aluno pede mais um exemplo
Professor: Veja bem, escolham um objeto que vocês não saibam exatamente o que
é. Por exemplo: este objeto em cima da mesa e aponta para um enfeite localizado sobre a
mesa.
Aluno: É uma urna!
Professor: Veja bem, você olhou isso e imediatamente a sua atenção se voltou para
as características que diferenciam isso entre os objetos ao redor. Mas antes, para que eu
pudesse perceber isso, eu tive que perceber esse objeto como um ser. Esta coisa se
apresentou como uma realidade. Ele exerceu alguma efetividade sobre a minha pessoa.
Esta efetividade é o caráter de ser deste objeto. Se a minha atenção se voltasse pelo
tempo suficiente para essa efetividade do objeto sobre o sujeito, eu captaria claramente o
que é ser. Não é o que ser “urna”, mas o que é ser. Mas o objeto “ser” pertence ele
mesmo à ordem transcendente. Porque nada que é captável pelos sentidos é apenas ser
ou ser em um sentido puro, mas é ser isto ou ser aquilo.
Aluno: É um existente!

CAPÍTULO III: A PERCEPÇÃO INICIAL DO SER


Professor: É um existente , exatamente! É um modo de ser. Esta impressão do ser
é somente um mínimo inicial na percepção do ser humano. A psique do sujeito pode
apagar isso e dizer: “você nem sabe se isso existe”. Mas para que a psique humana deturpe esta
percepção a ponto de dizer que isso é nada, primeiro você teve que captar que isso é ser.
O primeiro problema, então, é esse: desenvolver a percepção do ser. O segundo passo é
apropriar-me da captação do ser enquanto tal. Por quê? Porque a diferença entre o ser e o
nada é absoluta.1 Este é o primeiro indício ou a primeira nota que o sujeito possui sobre o
mundo transcendente, é a diferença entre o ser e o nada. É perceber que não existe
intermediário entre ser e não ser. Não existe o algo entre o nada e o que é. Pode existir
algo que mais ou menos é uma coisa, isto é, mais ou menos é uma mesa ou uma urna,
mas não pode existir algo que mais ou menos é. Não existe algo que é mais ou menos

1
Conferir “Filosofia Concreta” de Mário Ferreira dos Santos [N.T.].
humano, algo que é mais ou menos cavalo, mas não pode existir algo que mais ou menos
é.
Aluno: Se existisse, seria um meio termo entre o ser e o nada.
Professor: Mas não há um meio termo entre o ser e o nada.
Aluno comenta sobre o ser e o nada na Criação do Gênesis.2
Então, esta captação é a primeira notícia a respeito do ser. Para que o sujeito possa
ter uma ideia clara sobre o que é Deus, primeiro é preciso perceber isso. Ele,
primeiramente, precisa perceber essa diferença entre o ser e o nada.
Aluno: Por quê?
Professor: Por que o ser não é objeto da psique. Porque a inteligência abstrata não
é um ato da psique. Ela é um elemento que está na psique humana, mas ela não é, por si,
uma atividade psíquica.
Aluno: faz uma pergunta pedindo para retomar alguns pontos da explicação a
partir de um exemplo baseado na percepção do perigo de uma onça.
Professor: Exatamente, a primeira impressão é de que há algo diante de mim.
Imediatamente depois, você captou um modo distintivo: é um ser perigoso. No caso da
onça, a sua atenção se voltou para uma característica distintiva por uma questão de
sobrevivência. Nesta hora, com a onça, não é possível parar e pensar sobre a diferença
entre o ser e o nada. É preciso pensar sobre a diferença entre ser comido pela onça e não
ser. Devo pensar simplesmente: “o que faço para a onça não me atacar?”. Mas é
justamente este conflito entre uma necessidade biológica ou corpórea e uma necessidade
da inteligência que leva a psique a se colocar a serviço da corporalidade na maior parte do
tempo. No momento em que você olha a onça e pensa em fugir dela, por que você está
fazendo isso? Para sobreviver. Você não está fazendo isso por uma necessidade da sua
inteligência abstrata. Naquele momento você não age apenas motivado pela sua
inteligência abstrata, mas faz aquilo porque você precisa sobreviver. A psique humana faz
isso durante o tempo todo, mesmo que não seja para sobreviver. A atenção da psique sai
do ser para a qüididade ou espécie da coisa. E da espécie passa por um acidente
particular. De modo que a atenção tende, quase que constantemente, a ficar nos acidentes
particulares das coisas. É isso que impede uma captação do transcendente. Se a sua
atenção ficasse apenas no ser do objeto, você captaria naquele ser particular o próprio ser
e não apenas a qüididade daquele objeto. O ser simplesmente é. Por exemplo: em vez de
imaginar um objeto temível, vamos considerar um objeto desejável. Ao perceber um
objeto desejável, tende-se a fazer algo e tomar posse daquele objeto. Na posse deste
objeto, você frui dele. A atenção, no processo da fruição, passa do objeto ou do modo de
ser do objeto para o próprio processo de fruição. Então, por exemplo, você está
comendo uma maçã maravilhosa. Assim, a sua atenção vai se voltando da maçã para o
efeito que ocorre em você. Esse é o mesmo processo. Primeiro você captou o ser da
maçã. Em segundo lugar, você captou um conjunto de acidentes que tornam aquela maçã
perfeita. E, em terceiro lugar, você se voltou para o efeito daquela maçã sobre você. Isso
2
O relato do Gênesis foi tema de uma das aulas anteriores deste curso [N.T.].
acontece porque o ser é efetivo. Sendo efetivo, é como se o ser se pressionasse na sua
direção. Todo ser é uma presença.3 Primeiro você percebe o ser. Em seguida a sua
atenção vai seguindo o fluxo do ser: da causa4 até o efeito.
Aluno: faz uma pergunta sobre o Ser.

CAPÍTULO IV: A INVESTIGAÇÃO SOBRE O SER


Professor: Surge o problema seguinte: em que consiste o ser das coisas que são? O
que é ser? O que é se urna? O que é ser cavalo? O que é ser cachorro? E assim por
diante.
Aluno: pergunta sobre o sentido de Ser.
Professor: Não se trata de ser como categoria. Não é o ser no sentido lógico,
como gênero supremo.5 É o ser no sentido ontológico relativo à pergunta: o que é ser?
Aluno: pergunta sobre a capacidade humana de se conscientizar desta percepção
do ser enquanto ser.
Professor: Consegue, mas não é um hábito natural. Por quê? Não é um hábito
natural porque a primeira nota do ser é justamente a sua efetividade. Todo ser atua como
se irradiasse de si para outro. Esse conceito fundamental, esse conceito de ser, é ele que
vai dar o fundamento para todas as concepções sobre o mundo. Por exemplo: “por que
uma virtude é melhor do que a outra?” Por que uma obra feita segundo a arte é melhor do que uma
outra que não é feita conforme aquela arte?” Em tudo isso, a diferença fundamental é que uma é
mais ser do que a outra. A virtude é um modo de ser e o vício é um modo de não ser.
Todos os conceitos fundamentais da vida humana derivam da sua essência ou
característica principal ... da diferença entre o ser e o nada.
Aluno: pede mais uma explicação.
Professor: Um vício é uma forma de privação, é uma forma de não ser aquilo que
você poderia ser. Um vício é uma ausência, um “não ser”.
Aluno: Como já dizia Santo Agostinho.
Professor: Exatamente, como já dizia Santo Agostinho.
Aluno: comenta sobre a sua dificuldade em perceber o Ser.

3
Conferir “Ser e Conhecer” de Olavo de Carvalho.
4
De modo que se pode definir causa como aquilo que produz ser, como Mário Ferreira dos Santos explicou em
“Ontologia e Cosmologia” [N.T.].
5
Conferir “Isagoge” de Porfírio, traduzido e comentado por Mário Ferreira dos Santos.
CAPÍTULO V: UM EXERCÍCIO FUNDAMENTAL DE
PERCEPÇÃO DO SER
Professor: Diante da dificuldade da psique em perceber o Ser, que é próprio do
intelecto, a solução que os filósofos encontraram para isso foi usar os interesses pessoais
que a pessoa já possui. Então, você tem um talento profissional, isso corresponde a um
campo da realidade. Isso implica que você prestará atenção em alguns objetos. Em parte
você usará essa tensão para que você possa compreender a estrutura daqueles objetos,
para que você possa modificá-los. Mas já que você presta atenção tanto tempo naquilo, de
vez em quando você vai prestar atenção no ser daquilo. Você pode captar o ser daquilo.
Aluno pede mais uma explicação.
Professor: Veja bem, trata-se de uma atenção. Ainda não é um projeto analítico.
Trata-se de um projeto que vai lhe levar a percepções fundamentais sobre aquilo para que
os projetos analíticos sejam bem fundamentados. Por exemplo: posso fazer uma análise
completa da realidade a partir do pressuposto de que não eu não sei se as coisas são reais
ou não.6 Posso partir do pressuposto de que eu não saiba se o mundo existe ou não
existe7, como se ele fosse apenas uma ilusão da minha mente. Isso acontece! Por que isso
acontece? Simples, porque o sujeito não se voltou para a captação do que é o Ser. Não
percebeu que o processo analítico deve vir depois8. Essa tensão pode ser comparada com
a situação do sujeito que está perto de uma fogueira. O que acontece com quem está
perto de uma fogueira? Sente calor e seu corpo começa a se esquentar. Mas se você ficar
mais tempo, você ficará mais quente. Você será um pouco fogueira. É como se aquilo
tivesse sido “capturado”. Com a ideia de ser acontece a mesma coisa. Se você pegar os
objetos simplesmente para perceber enquanto ser, como é que aquela ideia é assimilada?
É claro que o sujeito não conseguirá prestar atenção em coisas completamente
irrelevantes para ele9. É mais fácil fazer esse exercício pensando em algo que você gosta.
É como na seguinte conto budista:

Havia um rei que recebeu a visita de um monge budista. Este lhe contou
sobre os princípios e o simbolismo do budismo, mas o rei disse-lhe que somente
queria saber das próprias jóias. Era a única coisa que lhe interessava neste mundo
eram as suas jóias. O monge, então, disse-lhe que não havia nenhum problema
nisso e pediu-lhe que, no final de cada dia, o rei ficasse contemplando a beleza das
jóias com a condição de que ficasse prestando atenção apenas na beleza das jóias
sem deixar que atenção se volte para o gozo que você sente diante desta beleza. O
monge pediu-lhe que fizesse isso diariamente por meia hora. Passou o tempo e o
rei se iluminou.

6
O que seria uma espécie de abandono do problema ontológico e da percepção do ser [N.T.].
7
Ou o mundo como um todo, ou algum aspecto particular como as relações causais, por exemplo [N.T.].
8
Parece lembrar o simbolismo do mercúrio e do enxofre em uma das artes tradicionais medievais [N.T.].
9
E poderia até mesmo ser prejudicial! [N.T.].
O que significa, nesta história, o alcance da iluminação? É simples! Não é
que o sujeito passe a fazer uma análise do conceito de ser, mas ele fica tão
inebriado com a contemplação do ser que, em tudo que ele olha, a partir de
determinado momento, que irá perceber se aquela coisa é mais ou menos do que
ela pode ser. É como se ele possuísse um critério fundamental para a avaliação das
coisas enquanto seres.
Aluno: Não é tão abstrato, então?
Professor: Não é tão abstrato, mas a atenção irá se voltar para um objeto
completamente abstrato que é o Ser. Por exemplo: se há uma maçã diante de você,
sua atenção irá se voltar para cada uma das qualidades dela, como sua consistência,
aroma ou cor. Mas, a cada vez que a sua atenção se voltar para cada um destes
acidentes, você retoma o objeto inicial, pensando: “este é o perfume da maçã” ou
“esta é a cor da maçã”.
Aluno: A tendência é fugir, mas devo voltar para o objeto inicial.
Professor: Volte-se para o objeto inicial.

CAPÍTULO VI: A DIFERENÇA ENTRE O SER E A


QÜIDIDADE
Deve-se começar pela pergunta “o que é ser?” E não se deve responder essa
pergunta com a qüididade da coisa. Quando a mente se volta para o que é “ser maçã”, a
atenção, quase imediatamente, se volta para o que distingue aquela fruta do abacate ou
das outras. E, por meio desta pergunta, passa para a qüididade da coisa. É diferente de
você se perguntar “em que consiste ser maçã?” A inteligência humana opera em dois
planos simultaneamente: o plano das essências das coisas e o plano das qüididades das
coisas.
Aluno: O que é qüididade?
Professor: Qüididade é a característica daquilo que é.
Aluno: Qüididade?
Professor: Por exemplo: a maçã tem a sua respectiva qüididade. Esta é a
característica que responde à pergunta: o que é a maçã? Por exemplo: a qüididade do
homem é expressa como “animal racional”, que é a resposta para a pergunta: “o que é o
homem?”. A qüididade é uma abstração feita a partir da pergunta sobre o que é a coisa.
Mas antes, ontologicamente anterior ao ser maçã, há o ser: ser maçã é ser. Para ser maçã é
preciso ser. Ao pensar sobre o que é maçã, aprende-se muito sobre características de
todas as maçãs. Já sabe muito sobre a qüididade da maçã. Mas perceba, quando prestar
atenção na maçã, que algo precede a qüididade dela. Porque a qüididade da maçã
corresponde a um modo de participar do ser. A estrutura intrínseca da maçã é um modo
de ser. E assim por diante, para cada objeto.
Professor: Por exemplo: quando eu era mais novo, gostava muito de matemática.
Mas um dia prestei atenção nesse objeto e me perguntei: o que é ser número?10 Prestar
atenção no que é ser números inevitavelmente me levou à questão sobre o que é ser.
Neste exercício de contemplação do ser, é recomendável que a pessoa se volte para
aquele objeto para o qual ela é naturalmente atraída. Na medida em que a nossa atenção
naturalmente vai da percepção do ser das coisas para nós mesmos, a nossa atenção segue
um curso análogo ao da luz. A luz bate nos objetos e se volta para o olho humano. Todo
objeto que atrai a nossa mente tem essa característica. Mas o que está irradiando estas
informações? Em que consiste ser isto que irradia estas informações.

CAPÍTULO VII: O EXERCÍCIO DE IMERSÃO NO SER DE


UMA ATO
Darei um outro exemplo. Você já reparou que, quando você está trabalhando, há
uma etapa do trabalho em que o processo é consciente. Nestas ocasiões você está
testemunhando o que é Ser. Em outras ocasiões não é assim, de modo que o trabalho se
torna inconsciente. Você não percebe as etapas seguintes enquanto você realiza aquele
trabalho. Mas ele não é inconsciente no sentido comum desta palavra, como se estivesse
sem nenhum controle. Ele é inconsciente na medida em que você desconhece o controle
dele. Quando este trabalho acaba, você tem a percepção exata deste momento. Mas ele
ocorre espontaneamente, de certo modo. Aquele trabalho que você faz diariamente acaba
se tornando espontâneo, de modo que a sua atenção não fica mais vigiando o processo.
As coisas até acontecem exatamente da maneira como deviam acontecer. Sabe o que
aconteceu? É o seguinte: naquele breve período, a sua consciência ficou absorvida no ser
daquele trabalho.
Aluno: pede mais uma explicação.
Professor: Às vezes a gente faz as coisas no piloto automático. Você pode ir no
banheiro no piloto automático, perfeitamente, porque aquilo pode ser mal feito mesmo
que não terá problema. Mas no trabalho não é assim: nem sempre se pode entrar no
piloto automático.
Aluno: O “piloto automático” do Ayrton Senna não era um “piloto automático”.
Ele dizia que era como se entrasse em um túnel.
Professor: O que acontecia? A consciência dele ficava imersa no ser daquele ato11.
E a inteligência dele também ficava imersa no ser daquele ato.
Aluno: Ele já sabia se devia deixar o carro a um milímetro de um obstáculo. Ele
não via mais nada e simplesmente acertava.

10
Pergunta que Mário Ferreira dos Santos se fez em “Pitágoras e o tema do número” e Edmund Husserl se fez em
“Filosofia da Aritmética”.
11
Conferir definição da filosofia de Olavo de Carvalho, pai do professor Luiz Gonzaga: “a filosofia é a unidade da
consciência na unidade do ser e vice-versa” [N.T.].
Professor: Vocês lembram daquela história do arqueiro zen?12 O que acontecia era
a imersão do ser do mestre no ser do objeto tratado pela sua arte e daquele processo.
Aluno: Como acontecia com o Ayrton Senna.
Professor: Exatamente! Antes era como se o sujeito testemunhasse aquele ser de
fora, mas agora ele passou para dentro daquilo.
Aluno: Isso é raro!
Professor: É raro, mas pode ser treinado. O sujeito pode ser educado para isso.
Aluno: Não é um talento extraordinário, mas é um treinamento.
Professor: Um treinamento!13
Aluno: Até conseguir fazer bem feito.
Professor: Até entrar no ser daquilo e submergir naquela atividade. E, então, não é
mais ele que faz, mas é o ser daquilo que faz. Quando se diz que é o próprio sujeito que
faz, significa que é o seu psiquismo individual que faz, em vez da inteligência. Mas
naquele momento magistral é a inteligência que está se manifestando, não é simplesmente
o sujeito que está agindo com o seu psiquismo. Não é o “fulano de tal”!
Aluno: É o Ser!
Professor: É o Ser!
Aluno: Isso pode acontecer com qualquer um?
Professor: Com todo mundo! A vida fica melhor na proporção em que mais
pessoas fizerem isso. Não somente as coisas ficam mais bem feitas, mas esse processo
renova o sujeito.
Aluno comenta sobre esta experiência.
Professor: Exatamente! Naquele momento é como se a pessoa recebesse um
prêmio!
O que é essa imersão no ser? Naquele momento, o que operou quando eu estava
neste piloto automático? O que foi isso que operou? Quem fez isso? Se não fui eu que
fiz, quem fez?
Aluno: Essa é a pergunta do Santo Agostinho?
Professor: Sim, essa é a pergunta dele.14 Essa pergunta pode partir de qualquer
objeto. Quanto mais a pessoa se aproxima da resposta dessa pergunta número um, mais
se aproxima de um critério que permite avaliar todas as coisas que são.
Aluno: pergunta sobre a pergunta acerca do Ser.
Professor: Exatamente. O objeto desta primeira pergunta é o Ser. E nesse
processo você chega à conclusão de que você está no Ser de fato . Por quê? Mesmo a
qüididade de algo somente pode ser compreendida quando há uma captação suficiente do
Ser. Você somente vai compreender uma mesa, por exemplo, se você, em alguma medida,
compreender que ela é. Se a minha atenção se voltar prematuramente para a análise, eu
não saberei se a estrutura alcançada no final da análise corresponde a algo real ou não.
12
Conferir a aula anterior em que o professor Luiz explicou um exemplo relacionado [N.T.].
13
Ver algumas das aulas anteriores deste curso, onde se fez observações sobre o aprimoramento em uma arte,
especialmente a aula intitulada “estética escolástica” [N.T.].
14
Conferir aula de Olavo de Carvalho sobre Santo Agostinho do curso “História Essencial da Filosofia”[N.T.].
Aluno: pergunta sobre essa condição da análise.
Professor: A análise feita somente pode ser compreendida se houver uma
captação suficiente do Ser.

CAPÍTULO VIII: INVESTIGANDO O ASPECTO


INCONDICIONADO DA REALIDADE
Se o sujeito investigar o que opera nesses momentos perfeitos em que não há
intervenção da própria psique, o sujeito perceberá que é algo dotado de liberdade. Não se
pode pegar essa arte do arqueiro zen por exemplo e formar uma célula de reprodução
dela que funcionará automaticamente. Por exemplo: existe uma fórmula para construir
um prédio direito, existe uma fórmula para dirigir um carro perfeitamente, mas não existe
uma fórmula para você se tornar o sujeito que dirige perfeitamente. Não existe uma
fórmula para imbuir isso em uma pessoa. Existe uma parte da realidade que é
condicionada e outra que é incondicionada. Por exemplo: na própria arte de construir um
prédio, existe uma parte que é condicionada. É a parte bem dada da qüididade da coisa: o
que é um edifício, o que é pedra e estas qüididades, você deduz as propriedades, com as
quais você monta uma estrutura. Metade da arte da arquitetura, da construção e da
engenharia é isso. E a outra metade? É a capacidade que se tem de submergir no ser desta
arte e fazer a coisa bem feita ou produzir um objeto perfeito. Para uma parte, como ela é
uma sequência de condições, pode-se esquematizar e transmitir para um outro. Posso
analisar os materiais e formalizar isso, deixando esquematizado em um tratado que
poderá ser passado a um outro.
Aluno: Isso é metade da coisa!
Professor: Metade da arte de construir prédios!
Mas se o sujeito que aprende essa arte e começa a construir prédios, isso tomará,
mais ou menos, um terço de sua vida. Ele vai trabalhar oito horas por dia. Mas esse é um
ser humano com capacidade de buscar o Transcendente e gastará quase metade da sua
vida fazendo prédios. Não é um tremendo desperdício? Um sujeito passa metade da sua
vida construindo prédios e outro passa metade de sua vida dando aula e assim por diante.
Qual é o único jeito de não ser um desperdício? Quando você exercita uma arte
regularmente, de tempos em tempos, você irá se submeter ao ser deste processo. Quem
não conseguir jamais submergir no ser disso, mudará de profissão, pois não aguentará. E
quando você submerge no ser disso, você volta e observa o que foi esse processo, o que
foi essa submissão. Assim você transformou um trabalho braçal qualquer em um meio de
edificação espiritual. Qualquer atividade humana regular pode se tornar um meio de
edificação espiritual, desde que se faça isso. É preciso criar este hábito. Quando o sujeito
volta deste estado, ele deve perguntar o que aconteceu consigo.
Aluno: Na volta!
Professor: Quando o sujeito volta. Então, ele deve recordar aquele estado. Por
quê? Porque se você não recordar esse estado, você irá tentar reproduzi-lo
mecanicamente, como se fosse algo da dimensão das coisas condicionadas.
Aluno: oferece um exemplo relacionado com o regime político cubano.
Professor: Mas o que acontece? O Ser no Estado cubano não corresponde em
medida nenhuma ao Ser de Estado. É um modo de não ser um Estado, não é um modo
de ser um Estado.
Aluno: Fica somente com a casca.
Professor: Exatamente: fica somente com a casca, apenas com a estrutura analítica
correspondente ao Estado. Não é sustentável. O modelo ideal do Estado cubano não é
baseado na observação do Ser Estado.
Aluno: Mas somente na arquitetura do Estado.
Professor: Exatamente: na arquitetura ou como na estrutura matemática.
Alunos: comentam este exemplo.
Professor: Então, o primeiro passo é justamente esse: quando o sujeito emerge
deste estado, a tendência é justamente a atenção voltar-se para o condicionado porque há
outras coisas a fazer. Mas, mesmo tendo estas outras atividades para fazer, o sujeito deve
marcar três minutos — e não é brincadeira: são três minutos marcados no cronômetro
mesmo. São três minutos para recordar esse estado, mas nesses três minutos o sujeito
deve mesmo fazer isso. E o que vai acontecer? É simples! Existe um processo, uma regra
matemática sobre o que vai acontecer. Ele deve pensar nessa coisa até perceber a
diferença que há entre o estado condicionado e o estado incondicionado. Deve notar que
isto que aconteceu não é devido a nenhum mecanismo, a nenhum processo mecânico.
Deve superar a tendência de pensar que isso aconteceu por algum outro motivo. Se
chegou à conclusão de que o efeito aconteceu porque tocou aquela música enquanto
estava trabalhando, você deve testar esta causa15. Neste caso, coloque a mesma música de
novo. Depois, vá testando as outras possíveis causas, uma por uma. Ao chegar no limite
deste processo, você provavelmente chegará à conclusão de que aquele resultado em
questão não foi causado por nada fora dele.

CAPÍTULO IX: O SIMBOLISMO DO PRIMEIRO DIA DA


CRIAÇÃO E DO PRIMEIRO DOM DO ESPÍRITO SANTO
Professor: isto é o primeiro dia da vida espiritual e corresponde ao primeiro dia da
criação, quando Ele disse ao criar a luz: “E Deus separou a luz das trevas”. Quando o
sujeito tenta rememorar este estado e atribui imaginativamente causas a este estado e vai
testando-as e eliminando-as até que ele esgota aquelas hipóteses e percebe que aquele
efeito é intrinsecamente diferente deste plano condicionado. Essa é a primeira Luz
espiritual na vida humana. É a percepção de que existe um plano que não é este da Terra.
Esta é a primeira percepção do “outro mundo”.
15
Para descobrir se há mesmo uma relação necessária entre esta causa e o efeito em questão [N.T.].
Aluno: É como se a pessoa percebesse uma ordem16 do Ser?
Professor: Ainda não é a percepção de uma ordem do Ser. É a percepção de que
existe algo que não é determinado por causas estranhas à sua própria natureza17. Por
exemplo: existem inúmeros fatores que interferem nas atividades. Por exemplo: você
estava passeando alegremente pelo parque quando uma pedra apareceu no seu caminho,
você tropeçou nela e caiu. O seu passeio pelo parque está condicionado a causas que são
completamente alheias à sua decisão de passear no parque. Todos os processos da sua
vida são influenciados por causas estranhas a eles mesmos ou até mesmo hostis. E você
vai descobrir que aqueles processos incondicionados não possuem causas estranhas a si
mesmos: nada pode obstaculizá-los. Você vai descobrir que não sabe de onde veio e para
onde vai: não sabe onde começa, nem onde termina.18 Assim você percebeu o que é o
Espírito.
A percepção humana das coisas espirituais possui uma analogia com a percepção
humana das coisas sensíveis. Lembram do mito da caverna?19 O sujeito estava
acorrentado na caverna escura e, quando sai, fica cegado pela luz. A primeira coisa que
ele percebe do outro mundo é de que ele não tem a menor idéia de como é, mas percebe
que se tratava de algo que estava presente, pois algo causou aquele processo. Algo causou
aquele efeito, mas não se tem a menor ideia do que foi. E toda vez que tento achar uma
causa, a minha imaginação coloca aquela causa no plano das coisas condicionadas.20
Então, é preciso testar cada uma destas causas até esgotá-las e concluir que nenhuma
destas causas condicionadas “produziu o ser” do efeito em questão. Alguém poderia
pensar que este processo de testar a causa poderia prosseguir indefinidamente. Mas não é
assim: a pessoa poderia prosseguir indefinidamente apenas se o seu psiquismo fosse
indefinidamente grande. Mas a sua imaginação não é indefinidamente grande, tendo um
limite. Chegará uma hora em que o sujeito testará uma causa última que não funcionará e
o sujeito perceberá algo sobre a natureza daquele processo. Perceberá que esse é
incausado. Se o sujeito prossegue fazendo isso no decorrer dos anos, perceberá que Deus
não foi criado. Que Deus não tem um princípio ou origem. Mas deve-se insistir no teste
das causas oferecidas pela imaginação. O psiquismo possui uma inclinação na direção do
mundo corpóreo porque ela sabe que é mais ampla do que o mundo corpóreo. Este está,
em certo sentido, sob o domínio da psique. Assim, o sujeito pensa: “se eu consigo achar a
causa do processo, este poderá acontecer todo dia e, assim, poderei dominá-la, terei a
‘chave da vida’ e serei o dono dela”. Mas este processo pode acontecer ao contrário:
“Descobri que não sou o dono da vida, mas, às vezes, ela é dona de mim”. Isso é apenas
uma questão de se rememorar sistematicamente o processo. Quando se fala em “dois
minutos”, não é brincadeira: são apenas dois minutos mesmo! Não se consegue
rememorar isso durante o tempo todo. São dois minutos!

16
Nesta pergunta, o aluno provavelmente estava pensando no sentido de “ordem” de Eric Voegelin [N.T.].
17
Em outras palavras: existe algo absoluto ou incondicionado [N.T.].
18
Ver no Evangelho de São João [N.T.].
19
Conferir o livro VII da República de Platão [N.T.].
20
Nesta experiência é preciso perceber que esta atribuição imaginativa é equivocada [N.T.].
Revisando: então, em um primeiro estágio, surgirão imaginativamente hipóteses
sobre a causa. Você terá que testar sistematicamente cada uma das causas. Aliás, este
processo de testar as causas será, para você, o critério para testar se algo foi causado pelo
Espírito ou não. Se a causa funcionou, isto implica que isso não é do mundo do Espírito,
mas é do mundo natural. Se a causa funcionar, você não descobriu uma realidade
espiritual, mas descobriu uma lei natural. O que vai acontecer? O que vai acontecer é que
esse processo de rememoração e de teste constante das causas levará a psique do sujeito a
ser assimilada neste processo. No começo, ela sentiu apenas o calor, mas depois vai
esquentando também. O que acontece? A percepção daquele processo vai aumentar. Ele
começará a captar quando os outros estão naquele processo. Assim, captar que ser as
coisas é estar naquele processo durante o tempo todo. E começará a distinguir o que é a
natureza daquilo, o que é aquilo. O sujeito viverá uma vida simultaneamente em dois
planos ou em duas dimensões.
Aluno: pede mais uma explicação.
Professor: Você trabalha todo dia? Então, esse processo acontece todo dia. Às
vezes acontece somente na hora em que escrevemos algo, às vezes foi em uma conversa.
Aluno: Dependendo do caso, acontece apenas em algumas decisões.
Professor: Às vezes acontece em algumas decisões.
Aluno: Acontece todo dia.
Professor: Acontece todo dia, mas, às vezes, acontece em algumas coisas tão
pequenas que a pessoa nem dá importância para aquilo. Às vezes é no ato de almoçar.
Aluno: pede um esclarecimento sobre a maneira de identificar esse processo.
Professor: A pessoa pode passar por esse processo e não sentir nada “especial”.
Durante aquele processo, é como se a psique dele tivesse adormecido no ser daquele ato.
No decorrer do tempo, isto é, dos anos, o que acontecerá? Quando a psique dele
adormecer naquele processo, ele não adormecerá completamente. A inteligência abstrata
dele estará desperta naquele processo. Mas a sua emoção e sua psique como um todo
estará dormindo, mas a inteligência abstrata estará acordada. Mas, no nosso caso, que não
temos um treinamento espiritual, o que acontece? Quando nossa psique adormece, nossa
inteligência abstrata também adormece. Tudo adormece nesse processo. Observe quando
você está trabalhando e acontece isso: você sabe o que aconteceu? Não, tanto que a sua
inteligência dormiu também. Você dormiu inteiro. Não foi apenas o seu corpo que
dormiu, mas a psique e a inteligência adormeceram naquele processo. Se o sujeito vai
rememorando este processo, o que acontecerá? Chegará uma hora em que, quando a
psique dele adormecer naquele processo, a inteligência dele testemunhará o que é aquilo
ou o que está acontecendo naquele processo. Assim, quando acontecer um processo
assim, isto é, quando a psique adormecer e a inteligência ficar desperta, ele sentirá uma
espécie de felicidade que ele não tinha como experimentar antes.
Aluno: Ele está no Ser!
Professor: Exatamente, a inteligência dele percebeu o que é a realidade do Ser.
Alunos: perguntam sobre o Ser.
Professor: Exatamente. Ser com “S” maiúsculo.
Aluno: faz observação sobre o Ser.
Professor: Exatamente, é aquilo que liga as coisas com a realidade e caracteriza as
coisas como realidade.
Aluno: O vínculo do “realíssimo”!21
Professor: O vínculo do realíssimo, exatamente! Evidentemente você terá que
partir de uma vida humana comum. Conhecer isso a partir do Ser mesmo, é ser Deus. Se
você já sabia isso desde o começo de sua existência, então você é Deus.22 Ser Deus é ter
um conhecimento direto do incondicionado. Existe uma famosa história do folclore
judaico:
“Alguém perguntou a Deus: Por que você criou o mundo?
Deus respondeu: Eu não podia chorar.”

Isso quer dizer que Ele não podia conhecer a si mesmo passando pelo sofrimento.
Então, Ele criou o ser humano, que pode conhecer o Ser partindo de um estado de
privação. O ser humano pode chegar à plenitude. Deus não pode chegar à plenitude
porque Ele já é a própria plenitude.
Aluno: E a Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Aluno: Mas o provérbio é judeu!
Professor: Pode acontecer que um sujeito tenha um talento tão extraordinário para
isso que ele decida dedicar-se apenas à contemplação do Ser. Um em cada milhão de
pessoas pode ter esse talento, mas isso não é um modelo de vida prático para a maioria
dos seres humanos. A imensa maioria dos seres humanos precisa descobrir essa dimensão
contemplativa na sua atividade cotidiana, naquilo que efetivamente faz.
A primeira percepção que o sujeito tem sobre esse processo é de que isso é
ilimitado23 ou incondicionado: isso não está de modo algum sob o domínio das coisas que
já são conhecidas. É como diz o Cristo: “O Espírito sopra onde quer e ninguém sabe
para onde vai ou de onde vem”.24
Ele não pode ser determinado por outro fator. Se o sujeito percebe isso, é o
suficiente para modificar a vida do sujeito. Por quê? Porque ele perceberá, quase durante
o tempo todo, que existe essa outra dimensão. Quando esse saber da outra dimensão se
tornar um hábito25, surgirá a seguinte questão: “E se isso nunca mais acontecer em mim?
O que acontecerá comigo se isso se apagar completamente em mim?” Esse é o temor de
Deus, que é o princípio da Sabedoria.26 Assim, o sujeito realmente fica infundido do
temor de Deus como um dom espiritual.

21
Aqui provavelmente o aluno estava pensando no sentido que o filósofo Eric Voegelin atribui a este termo [N.T.].
22
O professor está raciocinando aqui por meio de uma “redução ao absurdo” [N.T.].
23
O que faz lembrar a noção de “ápeiron” de Anaximandro. Conferir as explicações a esse respeito oferecidas pelo
professor Olavo de Carvalho no curso de “História Essencial da Filosofia” [N.T.].
24
Do Evangelho segundo São João [N.T.].
25
No sentido aristotélico. Conferir “Ética a Nicômacos” [N.T.].
26
Conforme se ensina nos livros sapienciais da Sagrada Escritura, como Provérbios ou Eclesiastes [N.T.].
CAPÍTULO X: O SEGUNDO DIA DA CRIAÇÃO OU O
SEGUNDO DOM DO ESPÍRITO SANTO
Quando eu tenho esse temor, o que acontecerá? O sujeito perceberá que não pode
dominar isso, mas percebe que, quando se vive de um certo jeito, pode-se estar mais
próximo disso do que quando se procede de outra maneira. Neste caso, percebe-se que
se, por um lado, não se pode dominar o Espírito, pode-se propiciar o domínio do
Espírito sobre a sua própria pessoa. Ele pensa: “eu não sei como causar isso aí, mas sei
que certas ações minhas impossibilitam esta ação do Espírito em mim.27 Estas coisas me
separam completamente do Espírito”. Então, o sujeito concluirá que deve criar certas
regras de comportamento com este objetivo de permitir que o Espírito domine sobre a
sua pessoa. Isso já é um segundo estágio, que corresponde ao segundo dia da criação,
quando Deus fez o firmamento no meio das águas e separou as águas inferiores das
superiores.28 Há algum lugar da psique que é como uma barreira: o que estiver para lá
dessa barreira, irá me separar do Espírito. Por outro lado, satisfazer alguma tendência
para cá desta barreira não contraria o Espírito. Não o causa, mas também não o contraria,
não me afasta dele.
Aluno: Mesmo se não tivesse doutrina, se não houvesse religião, isso seria assim?
Professor: Sim! Isso é perfeitamente possível, mesmo quando o indivíduo
transcende o seu ambiente!
Aluno: Independente dos fatores culturais.29
Professor: Por exemplo: toda a ciência moral é apenas uma análise abstrata
daquilo que as pessoas que estavam neste estado fizeram para si mesmas. Porque somente
estas pessoas sabem o que se pode fazer e o que não se pode fazer para permanecer neste
estado espiritual.
Aluno: Esta atitude do segundo dia também corresponde a uma virtude do
Espírito Santo?30
Professor: Sim, esta virtude é a piedade, que é respeitar certos modos de agir
humano como sagrados e considerar outros como profanos. Assim, há uma divisão entre
profano e sagrado. Esta distinção entre sagrado e profano, neste sentido, não será uma
distinção formal, como “rezar é sagrado e sambar é profano”. Embora isso seja verdade,
não é esta regra que se cria neste caso. São regras criadas conforme o cotidiano da
própria pessoa, acerca das situações que se criam apenas para aquele indivíduo e não para
outro. É a moral viva dele! Todo esse processo ocorre, de certa forma, para todas as
pessoas. Isto é, todos possuem alguma regra de vida, por mais inconsciente que seja.
27
Nesta explicação ficou pressuposto a diferença entre causa e condição [N.T.].
28
Conferir, a este respeito, o relato da criação no livro do Gênesis e a transcrição da aula do professor Luiz Gonzaga
sobre os sete dias da criação [N.T.].
29
Os alunos parecem estar pensando em termos da doutrina da “unidade essencial” sobre a qual trataram Guénon e
Schuon. [N.T.].
30
O aluno se baseou no princípio de que conjuntos que necessariamente possuem as mesmas quantidades de
elementos possuirão uma certa analogia estrutural, quase isomórfica. O professor Luiz já ministrou cursos sobre
esse assunto cosmológico para outras turmas [N.T.].
Aluno: Mesmo que seja para se divertir.
Professor: Mesmo que seja para se divertir. Estas regras derivam desses processos
terem acontecido sem atenção. A única diferença entre uma vida espiritual e uma vida
não-espiritual é que aquela é uma vida em que isso, esse regrar da vida, é feito com
atenção. Neste caso, o sujeito para e pensa a esse respeito. Isso é feito de modo
consciente. O objetivo desse processo de rememoração e de atenção consciente é
justamente chegar a um estágio em que minha inteligência ficará desperta durante esse
processo. Porque somente assim eu saberei o que é a realidade. Saberei não porque eu
deduzi formalmente a realidade, mas saberei porque a experimente intelectualmente. É
claro que pode-se fazer uma análise filosófica do mundo e chegar à conclusão de que há a
dimensão do transcendente e do imanente, do condicionado e do incondicionado e, assim
por diante, formando sua cosmovisão.31 Isto formará uma teoria razoavelmente
interessante e aceitável, mas não será uma experiência do objeto desta análise. Será apenas
notícia.
Aluno: Por outro lado você pode ter a experiência, mas não saber explicar o que
aconteceu.
Professor: Exatamente: pode-se ter esta experiência e não ter a menor ideia do
que aconteceu ali. O próprio Ayrton Senna provavelmente nunca tirou as conclusões
sobre aquilo que estava fazendo.
Aluno: Mas eu acho que ele tirou algumas conclusões, pelas declarações que ele
fazia a este respeito.
Aluno: oferece alguns exemplos que não ficaram gravados claramente.
Professor: Então, o próprio Senna retirou algumas conclusões porque ele
percebeu que aquele seu estado procedia de algo que ele mesmo não sabia o que era e
que ele não dominava. Então, ele fez o primeiro estágio.
Aluno: Ao contrário do Nelson Piquet.
Aluno: faz uma pergunta sobre o assunto, usando “Rei Lear” de Shakespeare
como exemplo.
Professor: Exatamente, aquilo não é uma vida, mas um tipo, por meio do qual,
entende-se alguma coisa da nossa própria vida.
Aluno: faz mais uma pergunta sobre Shakespeare, pensando na obra “A arte
sagrada de Shakespeare” de Martin Lings.
Professor: Ele Shakespeare observou provavelmente a própria vida e descreveu o
processo pelo qual se chegou nessa captação do Ser.
Aluno: comenta sobre os personagens de Shakespeare.
Professor: Exatamente, não dá para imaginar a Cornélia de Rei Lear indo dormir.
Aluno: Jamais!
Aluno: pergunta se o professor continuará a descrição dos estágios espirituais até
o sétimo dia.

31
Há notáveis exemplos destas análises nas obras de filósofos como São Tomás de Aquino e, mais recentemente,
Mário Ferreira dos Santos [N.T.].
Professor: Visando este processo aqui, não é bom descrever todas as etapas até o
sétimo dia, porque, neste caso, a atenção se voltaria para essa análise abstrata deste
progresso espiritual, em vez de pensar que deve fazer alguma coisa específica para
conseguir este aprimoramento concretamente.32

CAPÍTULO XI: OUTROS ESCLARECIMENTOS ACERCA


DO EXERCÍCIO DE REMEMORAÇÃO DA IMERSÃO NO SER
DE UM ATO

Se alguém quiser fazer esse processo de rememoração, terá que fazê-lo durante a
vida toda. Por quê? Porque se alguém fizer isso apenas por um dia ou dois ou até mesmo
por algumas semanas, não acontecerá nada de especial com ele. E concluirá que não
adianta nada, que ele não serve para isso. Mas perseverem! Por quê? Porque neste
processo de perseverar, a imaginação começará a produzir rótulos sobre o que é aquilo.
Isso funciona assim por quê? Porque a inteligência tem uma co-naturalidade com o
Espírito, mas a alma ou a psique como um todo não tem. A alma como um todo possui
tanta familiaridade com o outro mundo como possui com este mundo. Então, o que
acontece? É simples! O Espírito atende aos desesperados. Se a pessoa tenta e vai se
esgotando, ao se esgotar nesse teste dos rótulos da imaginação, se ele perseverar depois
que ele esgotou as hipóteses, é que ele perceberá alguma coisa. Se ele parar antes, ele não
perceberá nada, porque o Espírito somente aparece quando você percebe que não o
possui: “bem-aventurado os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus”.33 Este pequeno
exercício vai levar o indivíduo a perceber que não possui o Espírito. Não é que o Espírito
nunca aja nele, mas o fato é que não se possui o Espírito. E é somente quando se percebe
isso claramente que se pode perceber algo sobre o Espírito.
Então, é justamente isso: a primeira coisa que ele perceberá sobre o Espírito é que
ninguém possui o Espírito. Como está nos Provérbios: “como um eunuco que tenta violar uma
donzela, é o homem que tenta alcançar a Sabedoria à força”. Quer dizer que o ser humano não
tem o equipamento necessário para este fim, não será possível. Deve-se perseverar até o
fim para que você realmente perceba que não possui o equipamento para dominar o
Espírito. Neste caso, você aprendeu algo sobre o Espírito. Você aprendeu, por
experiência imediata ou direta, que Ele é indomável. Isso já é saber algo sobre o Espírito.
Algo que, apesar de se crer que o Espírito é indomável, às vezes a gente age como se ele
fosse domável. Por quê? Porque a gente não sabe isso por experiência. Porque eu sei por
ter lido em algum lugar. Neste caso, eu sei que isso é razoável, mas não se sabe se é
verdade ou não enquanto ainda não se experimentar este processo. Há uma diferença

32
O autor desta transcrição é um péssimo exemplo de aluno que, apesar de acompanhar as aulas do professor Luiz
há mais de um ano, buscou apenas essas análises abstratas, desconsiderando qualquer progresso pessoal [N.T.].
33
Conferir “Sermão da Montanha” no Evangelho segundo São Mateus [N.T.].
entre o argumento provável e a certeza de algo.34 Quando o sujeito faz esta rememoração
e esta tentativa de esgotar a hipótese, o final desse processo irá levá-lo a uma certeza
acerca da existência do Espírito que nunca mais sairá da consciência desse sujeito. Ele
nunca mais pensará, em nenhum momento, que ele pode dominar esse processo. Isso é
uma experiência espiritual.
Aluno: pede mais uma explicação.
Professor: Ao rememorar esse processo de imersão no Espírito ou entrar no ser
de um ato, pode-se buscar entender isso, testando as causas, que são propostas pela
imaginação, até obter esta percepção direta e certa de que o Espírito é indomável. Este é
o primeiro encontro do indivíduo com Deus. O primeiro encontro consciente do ser
humano com Deus se dá assim. É claro que temos encontros com Deus durante o tempo
todo, mas, nestes, a gente não sabe que é Deus que está ali.35 A gente não sabe o que está
ali. Mas desta vez pode-se saber conscientemente que se está com Deus, porque nada
domina aquilo.36 A questão importante aqui é a perseverança no exercício. A primeira
semana será frustrante porque o sujeito perceberá que não sabe nada sobre o que
aconteceu ali. Ele não capta o que aconteceu ali, o que é evidentemente frustrante. Mas
persevere e vá buscando as causas. Por quê? Porque esse processo, que é frustrante,
corresponde, em uma escala menor, ao processo pelo qual o Rei Lear passou após dividir
o Reino. O que aconteceu? Quando o sujeito está nesse processo de comunhão com o
Espírito ou submersão no ser do ato, é justamente o que Lear tinha feito antes da peça
começar. É o reino perfeito que ele fez. É como se aquele ato perfeito fosse o seu reino
perfeito como aconteceu com Lear. O processo de entender aquilo é o processo inteiro
da peça do Lear. É evidente que, durante esse processo, predominará o elemento de
frustração. O ser humano é simultaneamente uma imagem de Deus e uma imagem do
mundo. O ser humano é uma imagem de tudo ou um “microcosmos”37. Se existe algo de
demoníaco no mundo, há algo de demoníaco no ser humano. Este ser demoníaco fará de
tudo para que você não preste atenção naquilo. De tudo! Usará todas as armas que
possui, mas, em certo momento, ele gasta tudo, isto é, acabam-se os recursos dele. Se o
sujeito persevera até que estes recursos demoníacos se esgotem, o sujeito capta algo do
Espírito. Qual é a primeira notícia que se percebe? É a notícia sobre essa liberdade e
independência do Espírito. Em termos metafísicos, o sujeito deve perceber que o
Espírito é incausado. O Espírito não possui uma origem. Ele sempre foi o que é. Se o
sujeito perceber isso e continuar no exercício de rememoração, este mudará de natureza.
O sujeito perceberá a segunda notícia sobre o Espírito. Esta é evidentemente mais
34
Conforme foi explicado na teoria dos quatro discursos que Olavo de Carvalho fez a partir do estudo do conjunto
da obra de Aristóteles. Conferir o livro “Aristóteles em Nova Perspectiva” [N.T.].
35
Esta observação faz lembrar que os discípulos de Emaús também não sabiam que estavam diante do Cristo.
Conferir, a este respeito, o Evangelho de São Lucas [N.T.].
36
O divino também aparece como indomável a São Tomé quando vê Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitado,
segundo o santo relato do Evangelho de São João. Também apareceu a Moisés quando viu a sarça ardente,
conforme o santo livro do Êxodo [N.T.].
37
Conforme um texto “clássico” de uma das artes tradicionais medievais: “Na verdade, na verdade, sem dúvidas e
incertezas: o que está em baixo assemelha-se ao que está em cima, e o que está em cima ao que está embaixo, para realizar os prodígios
do Uno”.
importante do que a primeira. O sujeito chegará mais próximo do núcleo do próprio
Espírito. Cada uma destas experiências vai sendo cada vez mais próxima daquilo que é o
próprio Espírito. O que o sujeito irá perceber no estágio seguinte é que não somente o
Espírito não possui origem, como não possui fim. Ele não se esgota. Se aquele processo
bem-aventurado cessou não foi porque o Espírito cessou, mas porque algo em mim
mudou. É essa percepção que levará o sujeito À formulação de normas para o seu
comportamento. Ele perceberá que quando age assim, o processo se alonga ou se torna
mais frequente e, quando age da maneira contrária, o contrário acontece. E isso vai
levá-lo à percepção de que o Espírito é ilimitado, é inesgotável.
(O professor pergunta se o exercício proposto ficou claro e o aluno pede mais um
exemplo.)
Professor: Um exemplo prático é o seguinte: medite sobre aquilo que você gosta
como o rei que amava o ouro. E outro exercício é o seguinte: perceba, na sua atividade
cotidiana, quando você faz um estágio correto pensando no estágio seguinte. Por
exemplo: sento na cadeira e penso em escrever algo para enviar ao fulano. Até um certo
ponto desse processo, você está fazendo algo e antecipando efeitos, na medida em que
pensa nos passos seguintes. Chega um certo momento em que o processo de realizar uma
etapa parece apagar as etapas seguintes e você esquece o seu plano e vai apenas fazendo
aquilo. Enquanto você está fazendo algo, levando em conta as etapas seguintes, o
processo é cansativo, Se você fica muito tempo trabalhando, no dia, pensando nos fatos
seguintes, depois de duas horas, ele somente quer descansar porque não aguenta mais.
Mas se trabalhar fosse apenas isso, seria infernal. Mas acontece que nestas duas horas há
momentos em que as etapas seguintes são esquecidas e você está simplesmente submerso
na etapa atual. Você nem repara nas próximas etapas. Você está simplesmente fazendo
aquilo que está fazendo. Em algum momento você volta para a dimensão temporal e nota
que faz um passo depois do outro. O exercício que estou propondo é o seguinte: nesta
hora em que você volta para esta dimensão temporal, antes de você retomar a caminhada,
rememore este período em que você ficou submerso na fonte do ser do processo. E
pergunte-se: aconteceu ali? O que aconteceu quando estava no ser do processo, quando
conseguia agir sem me esgotar psiquicamente? São estes momentos breves que tornam o
trabalho suportável. O exercício é este: quando saí deste processo de imersão no ser da
atividade atual e voltei a pensar etapa por etapa, antes de retomar o curso, irei parar e
perguntar: o que foi isso? O que aconteceu? O que causou isso?
Aluno: oferece um exemplo de um médico, na sua família, que fazia algo muito
similar a este exercício.
Professor: É isso! Esse sujeito estava a um passo da santidade. Se ele parasse para
refletir sobre esse processo da mesma maneira como ele fazia cirurgias, ele chegaria à
santidade.
Alunos: contam outros exemplos retirados da vida deste médico notável.
Professor: Este rememorar levará, no decorrer do tempo, ao aumento da
frequência dessa experiência.
Alunos: comentam sobre este exercício.
Professor: Isso pode ser feito em qualquer atividade humana.
Aluno: Inclusive na vida de estudos.
Professor: Porque senão a vida de estudos também seria um inferno.
Aluno: No limite, é como diz São Paulo Apóstolo: “Nele somos, nos movemos e
existimos”.
Professor: Isso pode ser feito em qualquer processo mesmo: até enquanto se
assiste a televisão. A gente falou do trabalho porque esta é uma atividade que
regularmente se tornará um inferno, mesmo que o sujeito seja apaixonado pelo seu
trabalho. Então, o sujeito pode observar estes momentos em que deixou de ser um
inferno, por exemplo. Isto pode ser feito em qualquer atividade humana.
Alunos: oferecem outros exemplos, como a alimentação.
Aluno: Qual é a diferença entre Alma e Espírito?
Professor: É simples! A alma é capaz de sucessão. Não é que ela seja medida pelo
tempo, o qual é um modo de sucessão. A alma está sujeita a etapas sucessivas. Uma
atividade psíquica exclui outra atividade psíquica. Uma cede sobre a sucessão da outra.
Em um momento estou pensando sobre o que falarei para vocês. No momento seguinte,
quando falo, tenho que parar de pensar porque quando estou pensando não posso falar.
Percebem? Um estado psíquico sucede ao outro e é sucedido por outro. Um momento da
psique precisa desaparecer para que outro surja. O Espírito não é assim. O Espírito é
permanente. O modo de duração do Espírito não é por sucessão, mas é a eternidade. Se
você fosse uma pessoa com um forte treinamento espiritual, o seu Espírito permaneceria
desperto quando sua psique fizesse essa imersão no Ser e você compreenderia diversas
coisas sobre o mundo espiritual. E quando você fizesse isso de novo, compreenderia
outras coisas, mas essas novas compreensões não fariam com que as anteriores cedessem
ou desaparecessem da sua percepção como acontece na dimensão psíquica. A fruição e a
percepção das coisas espirituais anteriores não desaparecem. A experiência espiritual
somente aumenta, mas não cede.
Aluno: É como se você estivesse em uma sala escura, depois abrisse uma janela,
depois outra, depois outra e assim por diante.
Professor: Exatamente! Uma luz não diminui a anterior. Para o sujeito perceber
38
isso , terá que fazer essa experiência anterior. É difícil falar do Espírito justamente por
causa desse elemento de incomparabilidade entre o Espírito e qualquer outra coisa da
qual se possa falar.
Aluno: A alma é individual. O Espírito também é individual?
Professor: O Espírito é e não é individual. Ele toca cada pessoa, mas está acima de
cada um.

38
Parece que o professor Luiz está insistindo em uma percepção que Husserl chamaria de “autêntica”, isto é, uma
percepção na qual o objeto esteja presente, em contraste com a percepção simbólica, na qual o objeto não precisa
estar presente. Por exemplo: se penso no “meu falecido avô Horácio”, é uma expressão simbólica, pois ele não tem a
percepção autêntica dele como o aluno tem do professor presente que ministra a aula naquele momento, na sua
frente [N.T.].
Aluno: faz mais uma pergunta sobre essa diferença entre alma e espírito.
Professor: Entender o que está fazendo não pode ser um processo espiritual. Por
exemplo: se entendo que estou escrevendo um livro agora ou correndo uma maratona. Se
a pessoa corre uma maratona e a sua pisque está adormecida enquanto a sua inteligência
está desperta, ela não vai entender o que é uma maratona. Isso será entendido em outro
momento. O que ela entenderá, pela ação do Espírito, é o Ser que está infundindo
efetividade a esse processo de correr maratona naquele momento. Vai entender, em uma
expressão que é simbólica e deve ser entendida com cuidado, o que Deus está fazendo
quando você corre uma maratona. É evidente que, para você correr uma maratona ou
fazer qualquer outra coisa, Deus precisa estar fazendo algo, pois é Ele que sustenta todas
as coisas no Ser. Mas isso normalmente não é captado por nós.
Aluno: pergunta sobre o sentido do termo Espírito.
Professor: O Espírito de que estamos falando aqui é o próprio Deus. Alguns
momentos de silêncio.
Aluno: Essa captação do Ser, é compreender qual foi a intenção do Criador.
Professor: Exatamente! Compreender a intenção do Criador em cada uma das
coisas.
Aluno: comenta sobre a explicação que os escolásticos davam a isso e pergunta
sobre a frequência deste processo.
Professor: Esse processo acontecia com milhares de pessoas na Idade Média.
Aluno: Milhares?
Professor: Milhares, porque, nos mosteiros, eles observavam os talentos das
pessoas e orientavam-no a fazer esse processo enquanto desenvolviam seus talentos,
fosse cuidando de ovelhas ou escrevendo.
Aluno: Mas era uma minoria no conjunto da sociedade!
Professor: Mas era o suficiente para garantir a felicidade da sociedade como um
todo, embora esta possibilidade esteja aberta para todos, a princípio. O segredo é
perseverar neste exercício. Isto é uma Graça divina, pois Deus vem em um momento em
que nós não estamos preocupados com Ele. Mas trata-se de uma ação em que, em uma
medida ou outra, precisamos nos preocupar. Precisamos nos preocupar com as coisas dos
trabalhos, da família, etc. Então Deus leva em consideração isso: “quando você fizer uma
dessas coisas jogarei uma semente em você; se prestar atenção, captará, e vivendo a sua
vida, você viverá também a Minha”.
CAPÍTULO XII: DOIS PLANOS INTELECTUAIS OU A
DISTINÇÃO ENTRE DOIS ASPECTOS DA INTELIGÊNCIA
HUMANA
Aluno: Isso ainda é ensinado nos cursos de Teologia?
Professor: Isso parou sistematicamente de ser ensinado nas escolas de Teologia
por volta do século XIV. A crise da nossa civilização tem suas causas lá por volta dos
séculos XIII e XIV.39
Aluno: pede uma explicação.
Professor: A atividade filosófica dos escolásticos também era uma atividade social
que obedecia a regras. Então, qualquer um pode aprender estas regras e se tornar um
escolástico ainda hoje. Isso era metade da arte dos escolásticos. Agora aproveite essa
técnica filosófica para o seu progresso espiritual. Sem isso, ela perderá sua vitalidade e
desaparecerá da sociedade. E foi o que aconteceu! Sem esta atividade, a parte formal
continua a mesma, mas perde a vitalidade e não se consegue mais difundir aquele
conteúdo na sociedade como um todo.
Aluno: Somente pensar escolásticamente não irá adiantar.
Professor: A vitalidade se atrofia e, por mais certa que tal filosofia seja, não tem
força para “agir”. É a essas duas atividades que Aristóteles se referia quando disse que “se
a coruja não é capaz de ver o Sol, a águia, no entanto, é”. Quando Aristóteles foi ficando
mais velho, foi adquirindo uma tendência mais poética e mística como Platão.40 Ele estava
dizendo que a ave noturna, a coruja, é o aspecto da inteligência humana que é capaz de
analisar as coisas e dividi-las em estruturas formais, desenvolvendo as ciências, as artes e a
civilização. Isso tudo é muito útil, mas, por si, não tem vitalidade. Se você não entender
esse outro processo, que é o entender o Ser, essas coisas formais caducarão. Não
provocaram um interesse humano. Por quê? Porque uma civilização excelente não resolve
sequer o problema de uma vida humana. A melhor civilização, por si, não torna um único
indivíduo humano feliz. Do mesmo modo que o melhor tratado sobre cirurgia não faz,
por si, uma única cirurgia. Somente quem faz a cirurgia é a pessoa imersa nesse processo.
E a captação consciente desse processo é o que torna o ser humano feliz. É preciso
trabalhar nos dois planos. Por um lado, estamos constantemente analisando as estruturas
para tentar entendê-las melhor e tentar fazer o mundo ao redor um pouco menos pior.
Por um lado a inteligência se volta para isso em cada coisa cotidiana que tento fazer
melhor, como correr uma maratona melhor ou qualquer outra atividade. Mas isso não é
suficiente! É preciso que a inteligência volte, nessas ocasiões, e tente entender o que foi
aquela submersão.
Aluno: pergunta sobre o simbolismo do Espírito na oração do sinal da cruz.

39
Esta tese é defendida, por exemplo,no livro “A crise do mundo moderno” de René Guénon [N.T.].
40
Como diz um comentarista, foi se tornando um “amigo dos mitos (“filo-mitos”) além de um amigo da sabedoria
(“filo-sofia”). Conferir o volume introdutório de Giovanni Reale sobre a “Metafísica” de Aristóteles [N.T.]..
Professor: Por que você nomeou o Espírito Santo na dimensão horizontal e não
na dimensão vertical? Justamente porque essa submersão no Espírito estenderá ou
ampliará a dimensão horizontal. Você fez algo para este plano ser mais perfeito. Este
plano aumentou ou dilatou.41
Aluno: faz uma pergunta sobre esta dimensão.

CAPÍTULO XIII: À GUISA DE CONCLUSÃO: O


INTELECTO E O SENTIDO DA VIDA HUMANA
Professor: Se o sujeito não usar esta dimensão para obter a outra, não terá a outra.
Quem quer pensar na outra vida acaba não pensando em vida nenhuma, pois somente se
pode pensar na vida que se tem. Então, a sua outra vida precisa estar nesta aqui. Nada é
banal para o Espírito. Pode ser banal no plano humano, mas este processo espiritual
poderia ter acontecido naquele ato humanamente banal. Se você rememorar aquele ato
buscando a presença do Espírito ali, ele não é menos do que o ato do Rei Lear. O
Espírito é o mesmo tanto em um ato como outro. Não existem atos banais. O que existe
é uma mentalidade banal. Por hoje está bom, mas há uma lição de casa que não acabará
nunca!
Aluno: pergunta sobre esta tarefa de casa, se ela visa reviver o que aconteceu na
imersão no Espírito.
Professor: Não visa reviver o que aconteceu, mas entender o que se passou e
descobrir qual foi a causa por meio de testes que levaram a excluir as possíveis causas.42
Até uma hora em que a imaginação esgota suas possibilidades de atribuir causa. Se você
continuar a rememorar depois disso, começará a compreender o que é o próprio Ser. A
primeira coisa é rememorar. Quem fez isso sistematicamente, cumpriu a finalidade da
vida humana. Saber o que é esse estado ou compreendê-lo é a finalidade da existência
humana. O objetivo é compreender aquilo.
Aluno: Agora entendi.
Professor: Porque lá no miolo do ser humano há uma inteligência que somente
existe para entender o que é eterno. Se fizer isso, ele cumpriu inevitavelmente o objetivo
da vida. E a própria vida mundana vai se tornando mais compreensível e mais suave para
ele. Por quê? Porque o Espírito dilata este plano também! Dilata tanto até o ponto em
que as vidas dos santos ultrapassam os limites das leis naturais. A vida do santo passa a
ser mais ampla do que as leis naturais43, de tanto que essa recordação do Espírito dilatou
a alma dele.
Aluno: É o contato com o Sublime!

41
Com o sinal da cruz, é como se os ombros se ampliassem também com a nomeação do Espírito Santo, ao
contrário dos “homens sem peito” de que trata C.S. Lewis em “Abolição do Homem” [N.T.].
42
Até esgotar essa tentativa de compreensão e perceber “autenticamente” a causa incondicionada, que é o Espírito
[N.T.].
43
Ele penetra em um círculo mais amplo do que o próprio círculo das leis naturais, conforme o simbolismo dos
esquemas de círculos concêntricos dos medievais [N.T.].
Aluno: Isso é possível?
Professor: Sim, isso é perfeitamente possível para qualquer um! Porque esse
estado surgirá várias vezes na sua vida e isso é um dom gratuito de Deus. Mas é preciso
parar e perguntar o que é isso? Sei que há uma tendência nossa de achar que a vida
espiritual é apenas para pessoas nobres e excelentes e pensar o seguinte: “como não sou
uma pessoa nobre e excelente, não devo buscar a vida espiritual; afinal, somente gosto de
assistir televisão, jogar vídeo game, ir em festas, de pescar, correr maratonas, etc.”
Aluno: Isso é o que temos!
Professor: Então pratique esse exercício durante essas atividades que você gosta.
Pare dois minutos no meio da festa e reflita sobre esse estado espiritual. Porque já é uma
felicidade descobrir uma atividade na qual você regularmente entra nesse estado de
imersão no Ser. Descobrir as atividades em que acontece isso com a gente dará as
oportunidades. E pode ser qualquer coisa! Basta sair do estado e rememorar o que foi
aquilo.
Aluno: Nota dez!
Aluno: Muito bom!

Luiz Gonzaga de Carvalho Neto

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