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A relação entre sujeito e objeto na filosofia.

PUBLICADO EM 09/07/2014

Por Michel Aires de Souza

Nós temos a forte impressão que o real existe fora de nós, que o mundo é tal como o vemos, mas
na verdade a realidade não existe como algo externo ao indivíduo. A realidade é um dado interno.
Não sabemos como o mundo é na verdade. Nossa percepção não o percebe como ele é em si
mesmo. Nós só conseguimos perceber a realidade de forma coerente e coesa porque os estímulos
do mundo externo são transformados por nossos sentidos. Desse modo, transformamos vibrações
em sons, reações químicas em cheiros, fótons em imagens, ondas eletromagnéticas em cores. O
mundo em si não tem cheiro, cor, sabor, sons ou uma forma definida. Não podemos dizer que o céu
é azul, uma vez chamamos de azul certas ondas eletromagnéticas que, ao serem captadas pelos
olhos, são transmitidas pelos nervos ópticos causando a impressão de azul em nosso cérebro. O
aparelho visual humano percebem radiações eletromagnéticas dentro de um espectro de
comprimento de onda que vai de aproximadamente 380 nanômetros até 780 nanômetros. Contudo,
é necessário que essas ondas sejam captadas por nossa retina e sejam transformadas por nosso
cérebro em um estímulo mental, que chamamos cor. Da mesma forma, sentimos o doce, o
amargo, o azedo, o ácido, por causa das papilas gustativas, que são receptores do paladar da língua,
produzindo a partir das propriedades químicas do objeto um estímulo mental, que chamamos sabor.
Não podemos dizer, também, que o mundo que nos cerca produz sons. O que existe são ondas que
se propagam no ar. Para que essas ondas sejam transformadas em sons é necessário que tenham
sido captadas por nossos ouvidos e sejam transformadas em um estímulo mental, que denominamos
som. Hoje, já podemos responder uma velha pergunta filosófica: há som quando uma árvore desaba
numa floresta, se não tiver alguém para ouvir? É claro que não, uma vez que a queda da árvore
produz ondas no ar, mas essas ondas só produzem sons se forem captadas por um ser vivo que possa
transformá-las em estímulos sonoros.

Essas questões sobre a percepção do real nos remetem a um velho problema da filosofia: a
relação entre sujeito e objeto. Há três vertentes que procuram esclarecer essa relação: o realismo, o
idealismo e o criticismo kantiano. Em cada uma delas há um modo peculiar de compreender a
realidade.

A primeira vertente, o realismo, se refere ao primado do objeto. O ponto de partida para o


conhecimento são as coisas, tal como elas se encontram no mundo. A representação que fazemos
do real depende dos objetos. O conhecimento se estabelece como adequação. Os nossos conceitos
e ideias se adequam as coisas. Dessa forma, o mundo é tal como o vemos e percebemos. A palavra
latina que designa coisas é res. Esta resposta primordial, e até diria primitiva, natural, leva na história
da metafísica o nome de realismo, da palavra latina res. À pergunta: quem existe? Responde o
homem naturalmente: existem as coisas – res – e esta resposta é o fundo essencial do realismo
metafísico” (Morente, 1980). Para o realismo, o mundo possui uma inteligibilidade que pode ser
compreendida pela razão. A partir da reflexão podemos formar conceitos ou noções das coisas,
procurando conhecer suas estruturas. Assim, o conhecimento reflete na mente a realidade. Essa é
uma posição ingênua, uma vez que acreditamos naquilo que percebemos por nossos sentidos.
Acreditamos na percepção humana como uma instância capaz de captar as estruturas da realidade
como elas são em si mesmas. É como se os nossos sentidos fossem o espelho do mundo.
Percebemos um mundo acabado, pronto, estável, com uma estrutura determinada, que pode ser
compreendida pela razão. Toda filosofia até o século XVI foi realista, uma vez que todo
conhecimento tinha como postulado a existência das coisas. Do mesmo modo, o senso comum é
realista, pois acredita na existência das coisas como elas são em si mesmas. Muitos séculos demorou
até que a humanidade mudasse seu modo de pensar. Foi somente no mundo moderno que a
filosofia começou a estudar os modos ou as estruturas subjetivas do conhecimento. Foi a partir daí
que surgiu um novo modo de conhecer e pensar a realidade: o idealismo.

A segunda vertente surge no mundo moderno. Ao contrário do realismo, o idealismo se refere


ao primado do sujeito. O sujeito surge para a filosofia moderna como um ser pronto e acabado, que
contém em si certas estruturas fixas. É a partir dessas estruturas que podemos conhecer o real. O
real, nesse sentido, é determinado pelas estruturas que subjaz no indivíduo. O real somente se
constitui a partir do eu. Ao contrário do realismo, “o idealismo considerará, preferentemente, o
conhecimento como uma atividade que vai do sujeito às coisas, como uma atividade elaboradora de
conceitos, ao final de cuja elaboração surge a realidade das coisas” (Morente, 1980, p.68). Desse
modo, o conhecimento não é mais determinado pelo objeto, mas pelo sujeito. A capacidade de
conhecer depende da subjetividade do indivíduo, do “eu penso”. O maior representante do
idealismo foi o filósofo francês René Descartes (1596-1650). Foi ele que tornou a subjetividade o
fundamento do sujeito do conhecimento. Em seu livro, “Discurso do método”, ao duvidar de toda a
realidade e de todo saber produzido em sua época, ele partiu em busca de um axioma que pudesse
servir de fundamento a todo conhecimento, uma verdade primeira indubitável. A partir da dúvida
Descartes chegou a uma verdade certa e segura, ao “eu penso”: “cogito ergo sum”. Se duvido, eu
penso; se penso, eu existo. A partir dessa verdade ele deduz a realidade do eu e do mundo. Em seu
ponto de vista, o ser humano já nasce com certos conhecimentos universais e necessários capazes de
conhecer a realidade. Esses conhecimentos já estão no indivíduo. Por exemplo, sabemos que todo
triângulo têm três lados ou que duas paralelas são equidistante intuitivamente, não precisamos
demonstrar empiricamente essas verdades, uma vez que elas são inatas. Sem esses conhecimentos
ou princípios a priori seria impossível conhecer a realidade. O eu cartesiano é puro pensamento (res
cogitans). O pensamento é o lugar da verdade, é o puro intelecto, pois é por meio dele que
adquirimos as idéias claras e distintas. É esse puro intelecto que se torna o núcleo do conhecimento.

A terceira vertente, o criticismo kantiano, vai buscar um meio termo entre o realismo e o
idealismo. Chama-se criticismo, porque o filósofo alemão Emmanuel Kant fez uma crítica da razão,
traçando os limites daquilo que podemos conhecer. Em sua opinião, o conhecimento se dá como
relação entre o sujeito e o objeto, entre um ser cognoscente e um objeto cognoscível. É dessa
relação que surge o conhecimento. O conhecimento é uma síntese entre o objetivo e o subjetivo.
Para Kant, todo nosso conhecimento começa na experiência, mas nem todo ele provém da
experiência. O real não é algo externo ao indivíduo, mas este o produz no interior de si mesmo.
Somos nós que através de certas faculdades a priori, estabelecidos independentes da experiência,
organizamos e damos sentido e coerência ao real. A razão seria essa capacidade que o ser humano
tem, partindo de princípios a priori, representar e conhecer o mundo. Desse modo, o conhecimento
só lida com fenômenos. O mundo aparece como representação para o sujeito que o conhece.

Conhecer é o ato pelo qual o pensamento apreende o objeto ou o torna presente, esforçando-se
para formar uma representação que exprime perfeitamente este objeto. Na teoria kantiana, para
conhecer é preciso se distinguir a matéria, isto é, o objeto; e a forma, ou seja, a maneira pela qual
conhecemos o objeto. A matéria é aquilo que no fenômeno corresponde à sensação. Já a forma do
fenômeno é aquilo que faz com que a diversidade do fenômeno seja ordenada na intuição, através
de certas relações. Há duas formas, portanto, a priori do conhecimento: a sensibilidade e o
entendimento.

A sensibilidade é a capacidade de receber representações graças à maneira pela qual somos


afetados pelos objetos. É mediante a sensibilidade que os objetos nos são dados, só ela nos fornece
intuições. A intuição é aquilo que se torna consciente de maneira imediata. Quando imaginamos, por
exemplo, um objeto qualquer em nossa mente. Quando alguém nos diz cadeira, intuímos de forma
imediata em nossa mente. A sensibilidade intui os objetos pela percepção dos sentidos, organizando
o material sensível em uma relação espaço-temporal. Tempo e espaço são formas a priori do sentir,
que organizam as intuições que temos da realidade. O tempo e o espaço não existem fora do sujeito,
são categorias que não pertencem à realidade, mas fazem parte da interioridade do sujeito.
Para Newton, tempo e espaço são entes reais absolutos. Para Leibniz, são apenas determinações ou
relações das coisas em si mesmas. Já para Kant, são determinações ou relações inerentes apenas à
forma da intuição. Espaço e tempo não são propriedades das coisas e nem se originam da
observação do mundo exterior. Pelo contrário, aquilo que entendemos como realidade pressupõe o
espaço e o tempo.
Por sua vez, para que haja o conhecimento é necessário também o entendimento, ou seja, a
faculdade que sintetiza em conceitos as intuições da sensibilidade. A causalidade, a unidade, a forma,
e a relação, que percebemos nas coisas, não são atributos delas, mas são atributos da nosso
entendimento. O entendimento possui as formas de relacionar as coisas como causa e efeito,
substância, atributo, unidade, pluralidade. Essas formas são os predicados de toda experiência
possível. É o entendimento que produz esse mundo organizado que representamos o em nossa
mente. Assim, percebemos um mundo organizado, estritamente conexo, segundo a ordem causal.
Em outras palavras, só podemos ter a experiência do real pela conjugação da sensibilidade (que nos
dá os objetos) e do entendimento (que pensa esses objetos). É assim que surge a representação da
realidade em nossa mente. Com o criticismo kantiano o problema do sujeito e objeto chega a um
impasse, pois não podemos conhecer de forma absoluta a realidade em si mesma. Não podemos
conhecer o mundo a nossa volta, uma vez que o real é produzido pelo sujeito que conhece. O
mundo surge como representação, como fenômeno. Saber o que é a realidade em si não é mais
possível.

BIBLIOGRAFIA

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