Você está na página 1de 9

Filosofia da Mente (2023)

Docente Dina Mendonça

Tema 1: O papel da noção de Qualia


João Quarenta, a2021128679

1
Introdução

Qualia, as experiências subjetivas dos indivíduos, têm sido tema de investigação filosófica
há séculos. O termo “qualia” foi utilizado em 1929 por C.I. Lewis para se referir a
propriedades de dados sensoriais, apesar do conceito filosófico ter uma história longa e
complexa. Este conceito perdura e continua a fascinar o imaginário Humano com as
perplexidades da perceção humana.

Atualmente, o estudo deste termo continua relevante na filosofia da mente e nas


neurociências, que exploram as bases neurológicas das experiências subjetivas, numa
tentativa de perceber como processos físicos do sistema nervoso dão forma a qualia.

Mas até que ponto é que os qualia são realmente algo útil para as investigações científicas e
filosóficas? Este debate ainda continua em aberto, com pontos de vista contrários dentro da
academia.

Neste trabalho, procuro primeiramente apresentar uma visão geral do termo qualia. Em
seguida, contrapor dois artigos sobre a sua existência ou não existência e, finalmente,
apresentar uma metodologia para mapear cronologicamente o fenómeno dos qualia.

Parte I- Visão Geral sobre o termo Qualia

Qualia, plural de quale, é um termo utilizado frequentemente por filósofos para se referirem
às experiências acessíveis introspetivamente das nossas mentes. Por outras palavras, qualia
são as experiências subjetivas e conscientes que temos ao perceber ou vivenciar algo. São as
sensações, emoções e qualidades sensoriais que experimentamos, como a cor vermelha de
uma maçã, a sensação de dor ou o sabor do chocolate. O termo qualia deriva do latim e
significa "qualidades" ou "propriedades".

Historicamente, o seu primeiro uso remonta-nos para os trabalhos de um filósofo e teólogo


francês chamado François D'Aguilon, que usou o termo "qualitas" em sua obra "Opticorum

2
Libri Sex" em 1613. No entanto, o seu uso estava mais relacionado às propriedades dos
objetos visuais do que às experiências subjetivas.

Em 1866, nos trabalhos de Charles S. Pierce, considerado como o “pai” da semiótica,


encontramos “qualia” como caráter fenomenológico, ou seja, como uma experiência subjetiva
e interna.

Contudo, é em 1929 que o termo se desenvolve com a obra Mente e a Ordem do Mundo:
uma Visão Geral de uma Teria do Conhecimento de C.I. Lewis. Neste trabalho, Lewis utiliza
o termo como propriedades dos dados dos sentidos, não apenas num sentido geral como em
Pierce, mas como as cores, formas, cheiros, sabores e tudo aquilo que poderá constituir uma
unidade na sensação subjetiva.

No entanto, foi principalmente através dos trabalhos do filósofo norte-americano Willard Van
Orman Quine e do filósofo australiano J.J.C. Smart que o termo "qualia" se tornou
proeminente na filosofia contemporânea da mente.

Quine discutiu a noção de "propriedades qualitativas" no seu livro Word and Object (1960),
enquanto Smart desenvolveu ainda mais o conceito no seu artigo Sensations and Brain
Processes (1959). Neste artigo, Smart introduziu a ideia de que as experiências subjetivas (os
qualia) estão diretamente relacionadas com processos físicos no cérebro.

O termo "qualia" ganhou maior popularidade e debate a partir da década de 1970, com o
desenvolvimento da filosofia da mente e o aumento do interesse na consciência e na
experiência subjetiva. Filósofos como Thomas Nagel, David Chalmers e Frank Jackson
contribuíram para o debate sobre os qualia, explorando questões sobre a natureza das
experiências conscientes e como elas se relacionam com o mundo físico.

Desde então, o estudo dos qualia tornou-se um tópico central na filosofia da mente, gerando
uma ampla gama de teorias e perspectivas diferentes. É um campo em constante evolução,
onde os filósofos e os cientistas cognitivos continuam a explorar a natureza das experiências
subjetivas e a tentar resolver o enigma da relação entre a mente e o cérebro.

Parte II- O fenómeno da cor

3
Já em 2007, Gary Hatfield no seu artigo The Reality of Qualia assume-se um realista a
respeito dos qualia.

Distinguindo-se de teorias representacionalistas e subjetivistas, neste artigo debruça-se sobre


o fenómeno da cor para apontar os qualia como um aspeto mediador entre a realidade e a
nossa perceção. Para Hatfield, o fenómeno de, por exemplo, vermelho, não é propriedade da
nossa experiência, no sentido em que a cor é uma disposição dos objetos que é representada
pela nossa consciência através de qualia. Trata-se, portanto, de um disposicionalista.

O estatuto ontológico dos qualia não é, contudo, consensual. Em 2017, Daniel C. Dennett
compara a existência de qualia com a da cidade prometida de El Dorado, afirmando se tratar
de um exemplo de má teorização que resulta do “fracasso em apreciar a distinção entre o
objeto intencional de uma crença e a causa dessa crença”.

Para Dennett, o vermelho é uma propriedade dos objetos, não da representação mental que
ocorre na perceção.“That belief is not red or round or juicy; it is about something red and
round and juicy.” (Dennett, 2017)

Podemos pensar em Dennett como um objetivista relativamente à ontologia da cor, que


defendem que a cor é uma propriedade dos objetos, independente da mente. Para um
objetivista, quando percebemos um objeto colorido percebemos uma propriedade física que
se identifica com a cor do objeto.

Há, contudo, outras posições relativamente à ontologia da cor, inclusive a de Hatfield, um


disposicionalista, que se distingue do objetivismo ontológico por adicionar à equação a
experiência mental, onde se produz o efeito da cor mesmo que haja espaço para a noção de
“cor do objeto”.

Finalmente, existem os subjetivistas, que encerram completamente o fenómeno da cor na


experiência mental dos sujeitos, afirmando que o fenómeno não passa de uma ilusão porque
os objetos não têm, na verdade, essa propriedade.

Do que sabemos na ciência, os objetos são constituídos por superfícies fotodinâmicas, ou


seja, que absorvem e refletem fotões. “The comparative amount of light of various
wavelengths that a surface reflects is called its ‘spectral reflectance distribution’ (SRD)”.
(Hatfield, 2007)

4
Se com “cor” nos referirmos aos raios luminosos, então é justo afirmar que os objetos
possuem cor, pois absorvem e emitem estes raios. Mas até que ponto é que neste sentido os
objetos não são de todas as cores menos aquelas que emitem?

Apesar de contraintuitivo, a verdade é que se os objetos absorvem certos comprimentos de


onda e refletem outros (os que constam no SRD) então o que devíamos interpretar como a
“cor” do objeto é aquilo que ele absorve, pois é o que realmente fica nele, não aquilo que
reflete e que sai.

É, no entanto, exatamente aquilo que é refletido pelas superfícies que chega à retina e
provoca nos seres fotossensíveis com diferenciação cromática um disparar sináptico.

Deste modo, penso que não é justificado dizer que os objetos possuem cor, neste aspeto, pois
aquilo a que chamamos cor é aquilo que é por eles refletido. Logo, ou o que vemos é o
contrário do que realmente é a cor dos objetos, ou a cor diz respeito àquilo que os objetos
refletem, ou seja, está intrinsecamente ligada à experiência mental dos seres vivos
fotossensíveis com diferenciação cromática.

Regressamos, assim, à discussão dos qualia. “I have claimed qualia realism gives the best
account of what it is to see colored objects, which implies that it is part of the best
philosophical account of what color is.” (Hatfield, 2007)

Realmente, se aquilo a que nos referimos quando dizemos “vermelho” é exatamente o oposto
da composição dos objetos (é o que sai fora) então referimo-nos especificamente à
experiência mental desse objeto, pois seria ingénuo assumir que a nossa experiência sensorial
nos daria “transparência metafísica” do que os objetos se parecem.

Por outras palavras, não existe, creio, motivo para pensar que um mecanismo desenvolvido
organicamente há dezenas de milhões de anos reflete de maneira transparente uma força
fundamental do Universo, a força eletromagnética. Seriam outras forças igualmente
fundamentais igualmente coloridas? Como a força de interação nuclear forte? Não creio que
esse seja o caso pois “Color perception is, after all, an evolved psychological capacity of
biological systems.” (Hatfield, 2007)

A noção de qualia parece, portanto, a melhor descrição do processo de perceção de cor, como
afirma Hatfield, mas até que ponto será útil para a metafísica? Até que ponto é que os objetos
intencionais revelam uma nova dimensão incomensurável com a natureza física?

5
“Many philosophers find it difficult to grant the existence of qualitatively characterized
phenomenal states, or ‘qualia’. If we suppose that phenomenal red is real, they want to know
what phenomenal red is a property of, and where it is located.” (Hatfield, 2007)

Este problema, do mapeamento dos qualia, está no núcleo da questão metafísica, porque
ninguém tem a resposta para a pergunta “Como é que o processo fisiológico nervoso origina a
imaginação?”.

“This is the problem of fitting phenomenal red (say) into one’s ontology. In its general form,
as a problem of integrating visual consciousness with brain activity, it has been called the
‘‘first and greatest problem’’ (Sherrington, 1951, pp. 109, 113) and, as a general problem
about conscious experience, the ‘‘hard problem’’ (Chalmers, 1996, pp. xii/xiii)” (Hatfield,
2007)

Parte III- Mapeamento Ontológico dos Qualia

Nesta última parte procuro apresentar aquilo que penso ser uma metodologia para mapear
ontologicamente os qualia.

Para isso, volto-me para uma análise diacrónica do termo e, em vez de tentar encontrar uma
localização para os qualia e para a consciência no Espaço, tento perceber de que modo é que
os podemos encontrar no Tempo.

Desse modo, em vez de me focar nas neurociências, procuro localizar na Árvore Filogenética
do Sistema Nervoso a origem da Halucinação, ou melhor, da capacidade interior de
representação da realidade que pode ser associada à capacidade de imaginação e memória.

Figura 1- Árvore Filogenética do Sistema Nervoso


A árvore filogenética do sistema nervoso mostra a subdivisão dos organismos em diferentes
grupos taxonómicos, como invertebrados e vertebrados. Os invertebrados, como insetos e
moluscos, geralmente têm sistemas nervosos mais simples, com gânglios e nervos dispersos
pelo corpo. Os vertebrados, por outro lado, incluindo peixes, anfíbios, répteis, aves e
mamíferos, possuem um sistema nervoso centralizado, com um cérebro e uma medula
espinhal.

Para encontrar o aparecimento dos qualia nesta linha de sucessão, é importante associá-los a
fenómenos observáveis empiricamente como a memória e a imaginação. A capacidade de
imaginar envolve a criação interna de imagens, sons, sensações e ideias que não estão
presentes no ambiente imediato, por isso podemos associá-la também à capacidade de
memória, desde que percebamos a distinção entre memória “muscular”, isto é, química ou
mecânica e memória mental.

Pesquisas sugerem que a capacidade de formar memórias tem suas raízes nos organismos
mais simples, como invertebrados. Por exemplo, estudos em animais como as lesmas do mar
(Aplísia) e moscas da fruta (Drosófila) mostraram que esses organismos têm sistemas
nervosos relativamente mais simples, mas são capazes de formar memórias associativas
básicas.

No entanto, a origem exata da memória remonta a organismos ainda mais primitivos.


Estudos em animais como cnidários (por exemplo, águas-vivas e anémonas-do-mar) e vermes
planárias revelaram evidências de aprendizagem e comportamento adaptativo que podem
estar relacionados a processos de memória no seu sistema nervoso rudimentar.

Com base nestas descobertas, sugere-se que a origem da memória está enraizada em
mecanismos de processamento de informações mais básicos que evoluíram em estágios
anteriores da evolução. À medida que os organismos se tornaram mais complexos e o sistema
nervoso centralizado evoluiu, a memória tornou-se mais sofisticada e capaz de apoiar uma
variedade maior de funções cognitivas.

No entanto, é importante destacar que ainda há muito a ser descoberto sobre a evolução e
origem específica da memória na árvore filogenética do sistema nervoso. A pesquisa continua
a investigar os mecanismos subjacentes à formação da memória em organismos mais simples,
bem como as mudanças evolutivas que levaram ao desenvolvimento de sistemas de memória
mais complexos em animais mais avançados.

7
Concluindo, o estudo filogenético mostra-se promissor no que diz respeito ao papel dos
qualia, que parecem oferecer a melhor descrição de fenómenos como a cor.

8
Bibliografia

Dennett, (2017) A History of Qualia


Hatfield, (2007) The reality of Qualia

Você também pode gostar