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Crítica: O problema do conhecimento e do cepticismo http://criticanarede.com/epi_pappas.

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21 de Abril de 2005 ⋅ Epistemologia

O problema do conhecimento e do
cepticismo
James W. Cornman
Keith Lehrer
George S. Pappas

Sobre o cepticismo
No capítulo 1 confrontamos brevemente um céptico e sentimos o seu poder.
Um céptico nega que sabemos aquilo que pensamos saber. Ele pode, contudo,
limitar o seu cepticismo a um domínio vulnerável. Por exemplo, a maioria das
pessoas pensa que tem conhecimento através dos sentidos. Pensam que vêem, tocam, sentem, ouvem,
cheiram e provam o sabor das coisas, e que por isso sabem da sua existência através da percepção
sensorial. Antes de qualquer contacto com a filosofia, defenderias que neste momento vês um livro e que
sabes que há um livro à tua frente. Afirmarias ter ganho conhecimento da existência do livro, assim como
da sua forma e cor, devido à percepção visual. Mas será que sabes realmente estas coisas? "Sim", dirias
tu? Os cépticos negam que saibas. Se vais tornar-te filósofo, deves seguir a viragem céptica e avaliar os
seus méritos.

Os motivos do cepticismo
É provável que perguntes que motivo terá um filósofo para negar que sabemos aquilo que pensamos
saber. A motivação mais directa surge da teoria e da especulação. Quando a investigação filosófica
conduz um filósofo a conclusões que entram em conflito com o que as pessoas vulgarmente afirmam
saber, ele sentir-se-á estimulado a derrubar as afirmações contrárias, desobstruindo o caminho para a sua
teoria. Platão foi um filósofo especulativo que chegou à conclusão de que a realidade, o verdadeiro
objecto do conhecimento, não era perceptível pelos sentidos, porque consistia em objectos inteligíveis
captados pelo intelecto (Platão, República, 476-79, 504-09, 509-11). Estes objectos inteligíveis incluíam
objectos da matemática (números, triangularidade e congruência), da moral (justiça, bondade e honra) e
de outras áreas igualmente abstractas. Platão argumentou que estes objectos inteligíveis eram imutáveis e
eternos, ao contrário dos objectos da experiência dos sentidos, efémeros e em constante mudança. Platão
alegou que os objectos da experiência dos sentidos são como meras sombras das formas inteligíveis. Por
isso, foi levado a negar que tenhamos conhecimento de objectos sensoriais como mesas, estrelas ou
mesmo manchas de sujidade. O cepticismo foi um ingrediente na sua teoria especulativa acerca da
natureza inteligível da realidade.
Formas correntes de cepticismo emergem frequentemente das teorias científicas e da especulação. Por
exemplo, a luz leva um determinado número de anos a chegar até nós vinda de uma estrela distante.
Quando observamos o céu numa noite limpa e pensamos estar a ver uma estrela tal como ela é no
momento em que a vemos, e consequentemente pensamos saber pelo menos alguma coisa acerca da sua
aparência actual, estamos completamente enganados. A estrela pode já não existir, porque o que vemos no
presente é luz por ela emitida alguns anos antes. Reflectindo sobre este facto, Bertrand Russell observou
que mesmo objectos próximos, como uma cadeira a poucos passos de um indivíduo, são vistos como
resultado de ondas luminosas que atingem o olho, e que essas ondas luminosas levam algum tempo a
viajar do objecto até à superfície do olho. Assim, Russell argumenta que se supusermos que estamos a ver
um objecto exactamente como ele é e que sabemos algo acerca da sua aparência nesse instante,

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certamente estaremos errados. Mesmo no curto período de tempo necessário para que a luz emanada do
objecto chegue ao olho, o objecto pode sofrer alguma alteração ou mesmo desaparecer por completo.
Russell conclui que não sabemos se os objectos são como aparentam, se a cadeira é preta, por exemplo,
ou também se os objectos que pensamos ver ainda existem nesse momento (Bertrand Russell, The
Analysis of Mind. Londres: Allen & Unwin, 1921, 124-36). Assim como um objecto pode mudar no curto
espaço de tempo que as ondas luminosas levam a alcançar os nossos olhos, também pode deixar de existir.
Deste modo, uma teoria científica das ondas luminosas e da fisiologia da percepção fornece as premissas
para uma argumentação céptica.
Podemos encontrar outro caso de teorias científicas que levam a conclusões cépticas na obra de Wilfrid
Sellars. Sellars pensa que as nossas convicções de senso comum colidem com conclusões científicas
acerca da cor dos objectos. Supõe que temos um cubo de vidro rosa transparente, que parece ser rosa de
um extremo ao outro. Normalmente pensaríamos que o cubo é homogeneamente rosa. Mas para Sellars as
coisas não são assim. A ciência diz-nos que o cubo é feito de átomos incolores, e que ao nível atómico ele
não é completamente homogéneo. Devido ao poder explicativo da ciência, Sellars conclui que devemos
aceitar a teoria atómica e rejeitar a ideia de que o cubo é homogeneamente rosa (Wilfrid F. Sellars,
Science, Perception and Reality. Nova Iorque: Humanities, 1963, 121-23). Assim, Sellars será levado a
rejeitar a afirmação de senso comum no que respeita à homogeneidade da cor dos objectos.
Concordando ou não com estes argumentos, eles ilustram uma característica fundamental de grande
parte da filosofia céptica, nomeadamente que esta recebe suporte da especulação acerca de outras
questões. Mencionámos teorias científicas e filosóficas que conduziram filósofos ao cepticismo. Mas
algumas teorias religiosas evocaram igualmente maquinações cépticas. Um fundamentalista, ou qualquer
pessoa que acredita na revelação da verdade através de fontes sobrenaturais, pode ser levado a rejeitar as
afirmações do senso comum. Por exemplo, se alguém acredita na interpretação bíblica de que a Terra
existe há apenas alguns milhares de anos, será levado a negar, devido à fé, aqueles pressupostos que a
maioria das pessoas afirma saber e que sustentam a conclusão de que a Terra existe há milhões de anos.

Cepticismo e dogmatismo
No entanto, o cepticismo merece ser considerado como um caso à parte em relação a teorias que servem
os fins da especulação, sejam filosóficas, científicas ou religiosas: se somos cépticos ou não, isso
provavelmente influencia o modo como discursamos e investigamos a verdade. Se alguém afirma saber a
resposta a uma questão ou problema, e depois revela o que sabe, a sua afirmação é o fim desse debate. Se
perguntarmos se todos os líquidos se expandem quando congelam, tal como a água, ou se isso é apenas
uma propriedade da água e alguém afirma saber que é uma propriedade específica da água e que os outros
líquidos não se comportam do mesmo modo, essa pessoa está a fazer uma afirmação que encerra o debate
acerca do tema. É verdade que nos sentimos bem quando nos libertamos da dúvida, mas vale a pena
perguntar se esse alívio é filosoficamente justificado.
Uma vez que as afirmações de que temos conhecimento significam o fim do debate, devemos tratá-las
com prudência, sob pena de cairmos numa posição que não permite a crítica; por outras palavras, no
dogmatismo. As afirmações de que temos conhecimento são dogmáticas, apesar de podermos não o notar,
talvez porque gostamos de julgar-nos iluminados e sem dogmas. Mas será que o somos? Uma vez
levantadas questões fundamentais, dogma e conhecimento passam a estar inextrincavelmente ligados. As
nossas convicções acerca da fonte do conhecimento e de como produzimos conhecimento são dogmáticas.
Numa determinada altura era dogma que o conhecimento vinha da revelação. Aceitando este dogma, uma
pessoa pode pensar que sabe que alguém está possuído pelo demónio ao observar alterações na
personalidade e comportamento que constituem a possessão pelo demónio. Partindo de pressupostos
diferentes, podemos negar que essa pessoa observe tal coisa. Repara como são dogmáticas as nossas
afirmações alternativas. Começamos por afirmar grosseiramente o dogma de que a ciência empírica, e não
a revelação, é a fonte do conhecimento. Tendo adoptado este dogma, rejeitamos as afirmações baseadas
em pressupostos alternativos, como a revelação. Mas então qual é o dogma correcto? O religioso? O

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científico? Perguntar é entrar em debate com o céptico, que responde com uma pergunta: "Quem sabe?" O
seu sorriso revela a sua conclusão. Ninguém sabe.
Num esforço para compreender o nosso dogma empirista de que o conhecimento do mundo resulta da
percepção e observação, devemos estudar o cepticismo relativamente aos sentidos. Supomos que sabemos
da existência e de características de objectos através dos sentidos, pela percepção. Pressupomos
dogmaticamente que a crença perceptiva é a melhor fonte de conhecimento. Mas serão conhecimento? O
céptico diz que não. Ele não nega que tenhamos crenças perceptivas. Nem mesmo nega que algumas
sejam verdadeiras. Nega é que saibamos que as nossas crenças perceptivas são verdadeiras. A sua recusa é
uma afirmação da abertura da investigação. Se ele estiver certo, não se pode parar de investigar com uma
afirmação dogmática de conhecimento. Se nos tornarmos cépticos, ele assegura-nos que perdemos
algumas coisas, nomeadamente o nosso dogmatismo e a ilusão de que chegámos ao fim. Mas ganhamos
outras, como liberdade para investigar sem dogmatismo. Não podemos, porém, somar perdas e ganhos
para decidir se nos tornamos cépticos. Temos de reflectir nas razões e argumentos do céptico. Ele está
pronto para examinar a sua doutrina à luz fria da razão. Pensemos com ele.
James W. Cornman
Keith Lehrer
George S. Pappas
Tradução de Marina Pinto
Texto retirado de Cornam, Lehrer, Pappas, Philosophical Problems and Arguments (Hackett Publishing
Company, Indianopolis, 1992).

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