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Filosofia da História

Docente João Constâncio

O Sistema do Conhecimento (Questão B)

Trabalho realizado por João Quarenta

Consciência
Auto-Consciência Física
Razão Biologia(Vida)
Espírito Psicologia(Razão)
Religião
Saber Absoluto
É com máxima responsabilidade que procuro, neste trabalho, expor o conceito de
“Ciência da Experiência da Consciência”, por ser fundamental tanto para a
Fenomenologia do Espírito (1807), como para toda a obra de Hegel, recorrendo aos
conteúdos lecionados e à tradução de Terry Pinkard, publicada em 2018 pela
Universidade de Cambridge. No que diz respeito à Filosofia, é habitual observarmos
problemas que se sobrepõem. Onde se procura a Verdade (Ciência), encontra-se o
próprio ser, e onde se procura o ser esbarra-se com problemas da ontologia. Em Hegel
acontece o mesmo, e, se por um lado isso torna a sua compreensão um trabalho
extremamente esgotante, por outro garante à sua obra uma extensão que abrange de
maneira completa toda a Filosofia.
Deste modo, expor o conceito de “Ciência da Experiência da Consciência” de
maneira completa é uma tarefa que envolverá sempre uma definição que se
aproximará, em termos de extensão, ao próprio conceito de Filosofia. Isto porque o
objetivo de Hegel é estruturar aquilo que formará a Ciência (o Conhecimento) da vida
humana, pois a nossa vida, ou pelo menos aquilo que conhecemos dela, é aquilo que
dela experienciamos, através da nossa consciência.
Para isso, Hegel parte do facto da consciência ser assente na capacidade de negação1
para desenvolver e refinar o próprio conceito de consciência, que acabará por se
transformar no Geist, naquilo que é “o caminho da dúvida, ou, mais propriamente, o
caminho do desespero”2. Este conceito, o de consciência, terá a forma de um sistema
filosófico, que começará pela busca de provar o conhecimento e imediatamente
tomará proporções infinitamente mais complexas, eventualmente desaguando numa
teoria sobre a essência do ser humano não como indivíduo, mas como espécie.
Hegel vai tentar o que todos os grandes filósofos procuraram fazer, cimentar os
alicerces onde apoiar todo o conhecimento. Esta tarefa implica um movimento que é,
para o senso comum, paradoxal: o pensar sobre o pensar ou a tentativa de determinar a
essência do ser. É certamente intimidante essa formulação, contudo não devemos
fraquejar na iminência do sucesso, por mais trabalhoso que seja o objetivo. O objetivo
da Filosofia é justamente esse, provar a nossa objetividade, de maneira a que
possamos ter Ciência, isto é, ter o conhecimento sobre algo3. Parece, contudo, que
antes de começarmos este desafio somos, desde logo, impedidos de continuar, pois o
nosso pensamento é substancialmente diferente do que o objeto que queremos
apreender. Noutra formulação, o conteúdo da nossa consciência é conceptual, e esses
conceitos revelam-se como imagens, como representações ou fenómenos, e não como
os objetos em-si que queremos perceber. Esta vai ser a primeira preocupação de Hegel
na introdução, mostrar que o que parece ser um questionamento racional acaba por se

1
A consciência humana é assente no refinamento da capacidade de construir imagens mentais alternativas à
realidade, ou seja, a capacidade de negar(ou questionar) o conteúdo do nosso campo sensorial.
2
§78 da Introdução da Fenomenologia do Espírito. Traduzido para português por mim.
3
O tema da filosofia é o absoluto a respeito do Ente. Não é sobre conhecer as coisas uma a uma mas
conhecer de algum modo todas as coisas. (§75)
revelar “não o medo do erro mas o medo da verdade” (§74). A dicotomia “absoluto” e
“cognição” acaba por pressupor que a verdade, ou o absoluto, é distinto de algo que
também é verdadeiro, os conteúdos da nossa cognição, mas como pode a cognição
estar fora do que é absoluto? Devemos, então, rejeitar tais conceitos, pois o que parece
um esforço sério da parte dos céticos acaba por, na verdade, “evitar o trabalho árduo
da ciência” (§76). Tais concepções, que o absoluto nunca será captado pela cognição,
parece que nos afasta daquilo que realmente é o mais importante, a determinação de
tais conceitos.
A ciência apresenta-se a nós numa forma que ainda não é ciência, pois vem
acompanhada dum tipo de saber que ainda não é científico, que não é verdadeiro.
Cada apresentação destas constitui uma figura da consciência (uma aparição do
conhecimento) que se irão suceder na Fenomenologia do Espírito até ao
conhecimento absoluto. Este processo, de sucessão entre figuras da consciência, será a
redução do conceito de ciência através da exclusão de incongruências presentes na
pretensão de saber, pois desse modo não estaríamos a conhecer a ciência em e para-si,
mas apenas uma aparência superficial. Este caminho é a história detalhada da
produção cultural e que elevará a consciência à ciência, ou ao conhecimento absoluto.
A análise fenomenológica da essência da consciência, será em si o caminho para a
ciência, para o conhecimento absoluto sobre o objeto, pois estaremos, antes de mais, a
conhecer o objeto não por aquilo que ele aparenta ser mas por aquilo que ele
realmente é. O problema da aparência que assombra a epistemologia extingue-se
quando o observador se observa a si próprio, quando a consciência se transforma em
auto-consciência, conhecendo-se em si. “O objetivo é o estado em que o
conhecimento já não precisa de ir para além de si mesmo, é o encontro do
conhecimento pelo próprio conhecimento, é onde o objeto corresponde ao conceito e o
conceito corresponde ao objeto.” (§80) Isto, para a consciência, representa a superação
dos seus limites, pois é o ir além dos limites da conceptualização, é a transformação
de um objeto num conceito.
Somos, assim, introduzidos à ideia de que o processo que nos levará ao objetivo da
Filosofia é, antes de mais, uma sequência de momentos (uma história) de formação
cultural que elevarão a consciência a ciência e que esta história é, ela própria, a
realização desse mesmo objetivo. É verdade que a natureza apresenta limites à
consciência, mas esta prova superá-los por ser em-si (objetivamente) o seu próprio
conceito. A consciência é naturalmente composta simultaneamente tanto por esses
limites quanto pela superação deles. É, assim, naturalmente o ir para além de si
mesma. Como na intuição espacial (em que a determinação de um objeto implica
espaço para além desse objeto) a determinação (ou limitação a um conceito) da
própria consciência revela, em conjunto, o que está além dela. A consciência sofre,
assim, pela sua própria mão, a destruição da satisfação de se ter como absoluta, pois
sabe, desde logo, que há algo para além dela. Contudo, por mais que tente voltar a
sentir-se em absoluto, não irá consegui-lo a não ser por meio de uma experiência que
o comprove.
Após considerar as principais formas de ceticismo de maneira a libertar a sua
filosofia da “vanity”4, Hegel vai procurar expor o método através do qual o objetivo
será realizado. Naturalmente, a aceitação de um método envolverá uma pressuposição
de um “standard”, pois um método consiste na aplicação desse padrão de medida, de
modo a ser validada a observação. Qual é, então, o padrão de medida que nos deixará
conhecer realmente os objetos? A verdade é que tudo o que temos nesta altura da
investigação são apenas aparições superficiais, conceitos dúbios, como “verdade” e
“ciência”. Tentemos, antes de sermos engolidos de novo pela conclusão de que o
conhecimento é impossível, perceber se existe algum objeto que, dada a sua natureza,
se apresente a nós de maneira pura, para si. Para isso, relembramos, primeiro, a
distinção entre ser para um outro e ser em si próprio. Se, por um lado, a verdade se
apresenta como o último (ser em si), o conhecimento passa por um sujeito que
apreende o que um objeto é para um outro (para o sujeito). O conhecimento do que o
objeto é para mim parece ser, então, distinto do que o objeto realmente é. Este último,
o que o objeto realmente é, é o que chamamos de verdade. A consciência percebe que
o objeto poderá ser para um outro diferente do que é para ela. Esta exposição levanta
uma contradição: para avançarmos com um método para conhecer (ter a certeza da
nossa observação) temos sempre de pressupor um padrão de medida que vai assegurar
a observação como a essência do objeto, mas, neste momento, ainda nada se mostrou
como essência, como o objeto em si, por isso nada pode ser esse padrão de medida.5

4
Vanity, em inglês, significa tanto “em vão” como vaidade.
5
Figura 1, Esquema do problema da Epistemologia.
A dissolução desta contradição e, por conseguinte, o arranque da Ciência da
Experiência da Consciência(que vai ser a concretização do objetivo filosófico) é a
determinação da própria consciência como padrão de medida. Em vez de, como em
Kant, nos focarmos num objeto substancialmente diferente do que é revelado à
consciência, vamos antes focar-nos num objeto que seja, desde já, “em si para a
consciência'' (§86). O conhecimento é, como vimos acima, exatamente isso, o ser para
a consciência. Então, se determinarmos o conhecimento como o próprio objeto a
conhecer, deriva-se que o objeto em si é o que o objeto é para a consciência. Por
outras palavras, se o que procuramos é o conhecimento em si mesmo, então essa
essência tem a forma de um ser para a consciência, porque é isso que o conhecer é.
Contudo, ainda não estamos em condições de realizar esse conhecimento, isto é, de
concretizar o objetivo filosófico e corresponder a noção (ou conceito) ao objeto. Isto
porque aquilo que o conhecimento é em si é a realização, ou melhor, é a
correspondência entre o conceito e o objeto, e nós ainda estamos longe de ter
determinado o conceito de consciência. Distinguimos, deste modo, dois objetos da
consciência: o que a consciência declara como verdade, ou o em si, e aquilo que a
consciência conhece sobre si, ou o que a consciência é para si. Estes dois objetos são
essencialmente o mesmo (a Consciência), contudo, observamos que existe uma
discrepância entre o que ela é para si e o que ela realmente é em si. Se, por um lado, a
consciência é, em si, a verdade, por outro, a aparência que ela tem agora não é a da
verdade, isto é, aquilo que compõe as nossas definições (determinações) de
consciência não é, ainda, a nossa própria consciência, mas sim uma representação
empobrecida daquilo que é, por definição, a verdade. Como vemos, estas duas faces
do mesmo objeto interrelacionam-se, fazendo, a cada passo, suceder representações de
consciência pela comparação entre aquilo que é o nosso conceito de consciência (para
nós) e a consciência em si. 6
A consciência é, assim, suficiente para ser o seu
próprio padrão de medida, pois é, justamente, a
comparação entre a maneira como ela se apresenta para
si própria e o seu conceito em si, aquilo que é a sua
verdade. A análise comparativa entre estes estados vai
ter a forma de uma experiência, no sentido em que a
consciência experiência (apreende) a sua forma
verdadeira e compara-a com o seu próprio conceito,
formulando uma experiência rigorosa e detalhada
daquilo que ela realmente é. Quando o conceito fôr
conversível com o objeto, percebemos, finalmente, que
o projeto se realizou e que a consciência tem a certeza
de ser o seu próprio conceito, pois, aplicando o método,

6
Figura 2, A resposta ao problema da Espitemologia.
“a série de experiências atravessada pela consciência é elevada a progresso científico”
(§87), que lhe garante essa certeza. Cada uma dessas experiências é um momento em
que o objeto em si passa a ser o que o objeto é para a consciência, ou seja, cada uma
dessas experiências é uma alteração da própria consciência em si, que se transforma
naquilo que acha, para si, que é o conceito de consciência. Esta sucessão de figuras da
consciência será, por um lado, esta alteração da própria consciência e, por outro, o
refinamento dela própria pois, em cada sucessão, são encontradas e ultrapassadas
contradições dentro da da imagem que a consciência faz de si, resultando numa
conceptualização absolutamente coerente da verdadeira essência do objeto.
Lembrando que este caminho já é, ele próprio, o resultar do método, ou melhor, este
raciocínio (e todas as conclusões que dele são extraídas) é, ele próprio, a Ciência da
Experiência da Consciência, cujo método envolve, ele próprio, o Saber Absoluto. A
Ciência da Experiência da Consciência não pode ser nada menos que o sistema
completo da Consciência, resultando daqui o próprio termo “fenomenologia”.

“Finally, while itself grasping this, it’s own essence, consciousness will signify the
nature of absolute knowing itself.”(§89)

Termino por aqui uma exposição que é, sem dúvida alguma, uma redução daquilo
que é, na minha própria opinião, o levantamento do sistema filosófico absoluto e
verdadeiro. O que Hegel realiza na sua obra é nada menos que a verdadeira crítica do
sistema do conhecimento, pois este, como se verifica no próprio índice da
Fenomenologia do Espírito, vai muito além dos limites da razão. É verdade que é
impossível, para qualquer existencialista, o reconhecimento de que o objetivo da
Filosofia foi cumprido, contudo, a Verdade continuará a existir, mesmo se
escolhermos não a reconhecer. Por mais que os céticos arranjem mil e uma artimanhas
para a descartar, a Verdade continuará, absolutamente intacta, a ditar todos os dias o
que esses mesmos céticos irão comer ao almoço. Em vez de olhar para as nossas
limitações como elas próprias indicadoras da Verdade, os céticos ficam mais
preocupados com distinções mitológicas. A razão humana, como é formulada no
modernismo, é um fruto direto do conceito de alma, que não existe. A mente humana
tem, certamente, as suas limitações, mas em vez de as encararmos como “os limites do
que podemos saber” encaremos como frutos de um processo evolutivo que, apesar de
tudo, não é arbitrário, porque o verdadeiro fim da vida, ou fim da História, é a
permanência da vida, como mostrado tanto por Platão, no Fédon, como por
Aristóteles, no conceito de bios politikos, como por todas as observações biológicas.
Daqui, percebe-se que se a mente realmente distorcesse o que para ela é a sua
subsistência, por exemplo, concebendo um sapo venenoso como uma refeição, a
mente seria inviável e suicida. A consciência é, uma vez mais, o indicador para a
própria Verdade, pois, se não houvesse uma sinalização pelos nervos sensoriais e uma
significação que esse conteúdo é útil à sobrevivência, como haveria o animal de
sobreviver?
É clara e distinta a resposta a estas pergunta, a Vida é, ela própria, produto do
absoluto7 e, como tal, a estrutura da consciência revela-nos elementos da Verdade
absoluta da qual se origina. Aquilo que se apresenta como imperfeições ou limitações
são, na verdade, padrões de hábitos celulares que subsistiram durante o processo
evolutivo. A nossa imperfeição, o “corpo” na tradição platónica e modernista, é
justamente aquilo que nos revela e comprova o mundo real, na análise
fenomenológica da nossa consciência. Esse conjunto de células, que ganhou
consciência de si próprio e se tornou social, transporta, em si, a herança de todo o
processo evolutivo, conservando, à luz da lei da seleção natural, hábitos celulares que
se manifestam em todas as dimensões do ser vivo, incluindo o seu comportamento. O
comportamento está diretamente ligado ao sistema nervoso, pois, mesmo em seres
vivos mais primitivos, existe a capacidade de sinalização, nem que seja através da
permeabilidade seletiva da própria célula. O ponto é que mesmo de maneira
puramente mecânica a Vida sempre discriminou entre diferentes objetos do seu meio
ambiente, e isso é tanto o início da sinalização como da consciência. A consciência
vai, com a complexificação e diversificação dos sistemas de sinalização,
posteriormente adotar a forma de sistema interpretativo de diferentes sinais. Nessa
altura, a consciência é a tentativa de conciliar, por exemplo, estímulos visuais e
auditivos, de maneira a dar ao ser vivo maior capacidade de compreender o meio,
ficando com vantagem biológica sobre seres vivos sem a mesma capacidade.
Imaginemos dois seres vivos aquáticos que competem pelo mesmo recurso alimentar,
o que deles conseguir identificar de maneira eficaz e precisa o alimento fica com a
maior vantagem em termos de sobrevivência.8

7
"O ser humano se existe já faz parte do absoluto", dito pelo professor.
8
Figura 3, árvore filogenética do Sistema Nervoso.
É esta evolução que irá desabrochar na forma de História, sendo a História a sua
continuação e, sendo a História contida pela Evolução, também ela segue um sentido,
o da permanência da Vida. Esse objetivo é, como mostra Hegel, um objetivo coletivo,
como Espírito, não como um simples indivíduo, contudo cabe ao indivíduo fazer o
que puder para disseminar esse princípio, pois só através da adesão em massa do
princípio da sustentabilidade é que o ser humano vai atingir a plataforma para a sua
justiça absoluta.
Bibliografia

Hegel, G. W., The Phenomenology of Spirit. (1807) tradução de T. Pinkard, edição da


Universidade de Cambridge, 2018

Várias palestras de Gregory B. Sandler, no Youtube: Half Hour Hegel: The Complete
Phenomenology of Spirit

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