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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Graduação em Psicologia

Nathalia Malta Martins

O gozo e a posição masoquista da personagem O

Belo Horizonte
2020
Nathalia Malta Martins

O gozo e a posição masoquista da personagem O

Monografia apresentada à Faculdade de


Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.
Orientadora: Carla de Abreu Machado Derzi

Belo Horizonte
2020
Nathalia Malta Martins

O gozo e a posição masoquista da personagem O

Monografia apresentada à Faculdade de


Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Bacharel em Psicologia.
Orientadora: Carla de Abreu Machado Derzi

_____________________________________________
Carla de Abreu Machado Derzi (Orientadora) – PUC Minas

_____________________________________________
Hélio Cardoso de Miranda Júnior (Leitor) – PUC Minas

Belo Horizonte, 05 de novembro de 2020


AGRADECIMENTOS
RESUMO

O presente trabalho traz luz à interpretação, na perspectiva psicanalítica, da obra ‘A


História de O’, de Pauline Reagè (2005), com o objetivo de compreender alguns
temas relevantes a partir da história da personagem, como o amor, alienação, o
gozo e o sintoma na história da personagem. Para isso, foi realizada uma revisão
bibliográfica cujo enfoque foi voltado aos aspectos psíquicos observados na história
da personagem O. Assim, será abordado um resumo da história da personagem O;
para então alçarmos entendimento, sobre o gozo masoquista da personagem; onde
será questionado também a posição de alienada de O, e o amor para a mesma. Por
fim tenta-se alcançar e trazer a luz a parceria sintomática presente na história. Nota-
se que a personagem, ao longo do desenvolvimento histórico goza de uma posição
submissa numa relação sadomasoquista com aqueles que a açoitam, o que por sua
vez, reflete em sua alienação no Outro, fruto de sua total rendição à uma relação
que se manifesta em sintoma com um parceiro que preencheria toda a falta que lhe
há. A discussão aqui proposta, não se finda nesta produção, mas dá
direcionamentos a outros debates no campo do amor, violência e submissão.

Área de Conhecimento: Psicologia clínica.

Palavras-chave: O, gozo, sadomasoquismo, sintoma, alienação.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 7

2 METODOLOGIA .................................................................................................. 9

3 HISTÓRIA DE O ................................................................................................. 11

4 O GOZO MASOQUISTA DE O ........................................................................... 18


4.1 A alienação de O ............................................................................................ 21
4.2 O amor para O ................................................................................................ 22

5 PARCERIA SINTOMÁTICA ............................................................................... 24

6 CONIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 27

7 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 28
7

1 INTRODUÇÃO

Os relacionamentos abusivos vêm ganhando visibilidade desde a criação da


Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada no país no dia 7 de
agosto de 2006. Tal lei visa, entre outros objetivos, assegurar que as mulheres
tenham medidas protetivas de urgência para situações de violência, como por
exemplo o afastamento e prisão preventiva do agressor. (BRASIL, 2006). Porém as
pesquisas apontam um número crescente de mulheres que sofrem agressões por
seus companheiros ou ex-companheiros. Segundo o Atlas da Violência, edição de
2019, houve um crescimento de 30,7% de homicídios de mulheres no Brasil entre a
década de 2007 e 2017. (IPEA, 2019).
Muitos são os motivos para que essa taxa seja tão alta. Um deles é a
dependência que a mulher abusada constitui pelo seu agressor e aquela relação
destrutiva. Foi deste contexto em que o interesse pelo tema surgiu. Durante um
atendimento, uma cliente, a qual já teria conseguido se separar de seu agressor,
revela haver voltado para a situação de abuso, mesmo que a guarda de seus filhos,
que se encontravam em situação de acolhimento, estivesse em pauta. A partir deste
caso, aflorou-se a curiosidade acerca do que faz com que as mulheres se
mantenham em um relacionamento abusivo. O que leva a mulher a retornar ou se
manter com o agressor? Existe algo em seu psiquismo que influencia esse tipo de
relação destrutiva ?
Um outro ponto crucial a ser discutido acerca do aprisionamento das
mulheres abusadas em tais relacionamentos, que se constitui como objetivo de
investigação da presente pesquisa, é estudar e levantar hipóteses de um possível
além do princípio do prazer e que rege a vida destas mulheres. Será que pode se
falar de um gozo masoquista e compulsão à repetição nestes relacionamentos?
Segundo Ribeiro e Pinto (2012), o masoquismo e a mulher começaram a ser
relacionados devido a característica passiva de ambos, porém ao longo dos estudos
de Freud esta teoria caiu por terra. Freud desenvolve, posteriormente em suas
obras, que ambos, masoquismo e o feminino não podem ser vistos como passivos.
Ribeiro e Pinto, em sua produção pontua que “[...] o masoquismo seria um retorno
do sadismo sobre o próprio corpo em decorrência da consciência de culpa e do
complexo de castração.” (2012, p. 507).
8

Freud em sua obra “O Problema econômico do masoquismo” (1924/1996) cita


que o masoquismo é considerado um fenômeno primário do sadismo e se divide em
três partes. A primeira é o masoquismo dito erógeno/primário, o segundo feminino e
o terceiro moral. Ribeiro e Pinto (2012) enfatizam que Freud (1924/1996) não
postula que o feminino é masoquista e sim que o masoquismo é feminino.
Com tudo isto dito, conclui-se que esta pesquisa se voltará para os possíveis
motivos e manifestações clínicas que levam uma mulher a se manter em um
relacionamento abusivo. Como o masoquismo pode se manifestar na vida destas
mulheres? De que maneira influência em tais relacionamentos? Será que é possível
falar de “amor” dentro destas relações?
Para ilustrar e fazer um estudo mais aprofundado sobre o tema, será utilizado
o livro “A história de O” de Pauline Reagè (2005) onde a personagem O, sofre
diferentes abusos e violências em nome do “amor” de seus mestres. O vive uma
intensa relação de sadomasoquismo com seus amantes e serão estas relações
discorridas e analisadas neste trabalho, assim como as manifestações clínicas de O.
Será utilizado, para realizar a análise das manifestações clínicas de O, a
teoria psicanalítica e alguns de seus conceitos relevantes como, a compulsão à
repetição, o gozo masoquista, alienação e separação e a parceria sintomática. Para
tal, este estudo foi dividido em seis capítulos, sendo o primeiro a introdução, o
segundo a metodologia, o terceiro a História de O. Os capítulos centrais, quarto e
quinto, terão como foco explanar os conceitos citados acima. O último capítulo trará
o fechamento e as considerações finais deste trabalho.
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2 METODOLOGIA

Para responder os objetivos desta pesquisa será realizada uma análise das
manifestações clínicas da personagem fictícia do livro de Pauline Rèage ,“A História
de O” (2005), chamada O. Tal livro servirá de análise para o projeto em questão,
para remeter a teoria do gozo masoquista, as pulsões de morte e como tais pulsões
se manifestam em um sujeito, no caso em questão, em O.
Para fazer a análise, será utilizada a pesquisa qualitativa. Segundo Neves
(1996), a pesquisa qualitativa consiste em um conjunto de técnicas interpretativas
que têm como objetivo descrever e decodificar, a partir de um estudo de dados
descritivos com um contato direto, o objeto estudado. Ainda segundo o autor, a
perspectiva do que será estudado é levada em conta, as singularidades fazem parte
da pesquisa. Além de não ser uma pesquisa que busca enumerar ou medir eventos.
O estudo será também conduzido através de pesquisas bibliográficas que
constituirão uma revisão de literatura. Lakatos (2002) cita que a pesquisa
bibliográfica é a pesquisa feita a partir de toda bibliografia que foi publicada acerca
de um tema. Tais publicações podem ser de jornais, revistas, livros, pesquisas,
monografias e também podem ser de vias orais, como, rádio e gravações e ainda de
filmes, documentários, etc. Porém, a autora enfatiza que a pesquisa bibliográfica não
é uma cópia do que já foi dito por outros autores e sim “[...] propicia o exame de um
tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras.” (p. 71,
2002). Pode-se dizer, mais especificamente que será utilizada, dentro da pesquisa
bibliográfica, a pesquisa psicanalítica, pois esta será a abordagem principal para
realizar a análise da obra literária.
Para Moreira et al (2018) ao realizar uma pesquisa psicanalítica o
pesquisador deve ocupar uma posição de analisante, ou seja, deve ser movido pelo
não saber e enquanto pesquisa, como consequência, produz efeitos em si mesmo. É
uma pesquisa que leva em conta a própria subjetividade do pesquisador, dito de
outra forma, é o olhar do pesquisador que dará forma ao objeto de pesquisa, é a
partir da transferência que se estruturará a pesquisa. (ELIA, 1999 apud MOREIRA et
al, 2018). Um dos pontos cruciais deste tipo de pesquisa, ainda segundo a autora, é
que ela parte da afetação do analista pelo real da clínica e sua característica, é a
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dimensão ética da psicanálise, a ética do desejo, do inconsciente e a relação


transferencial. Outro fato importante para a execução deste tipo de pesquisa é

(...) ao comentar sobre as singularidades da pesquisa psicanalítica, aponta


dois pontos fundamentais: não visa e nem possibilita uma vertente
generalizadora, pois diz da produção de novos sentidos em relação a um
particular; e suas estratégias de análise de resultado não trabalham com o
signo, mas com o significante. (MOREIRA et al, 2018, p. 132)

Por fim, importante destacar, segundo Moreira et al (2018) que a pesquisa


psicanalítica tem o objetivo de construir sentidos a partir dos significantes que o
sujeito da pesquisa traz, o que quer dizer que o conhecimento, a significação, é
construída a posteriori.
A análise das manifestações clínicas da personagem O será realizada dentro
da pesquisa psicanalítica e ainda mais, pesquisa psicanalítica na literatura pois,
dentro deste tipo de pesquisa os instrumentos para coletar dados são todos aqueles
que se estruturam pela linguagem. Segundo Peres (1996), a Psicanálise foi fundada
a partir de obras literárias, Freud utilizou, por exemplo do mito de Édipo-Rei para
criar sua teoria do Complexo de Édipo. Villari (2000), diz que para que haja uma
interdisciplinaridade entre Psicanálise e Literatura, não é a teoria que deve surgir
antes e sim a obra literária. A obra, deve incitar a partir de um não saber, a
pesquisa, o pesquisador deve deixar com que a obra fale por si mesma, é implicar
que o conhecimento não está com ele mesmo, e sim naquelas palavras que estão
sendo lidas por ele. O autor ainda completa dizendo que o pesquisador tem que
aguardar e reconhecer na obra literária aquilo que o provoque a escrever, a
pesquisar.
A “História de O” é uma obra literária que fala por ela mesma, dá os seus
próprios exemplos e instiga a pesquisar a fundo o que se passa com aquela
personagem, tudo que será explicitado nos capítulos seguintes.
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3 A HISTÓRIA DE O

A “História de O” é um livro publicado em 1954, escrito pela autora Pauline


Rèage que, anos depois revelou que seu nome verdadeiro era Anne Desclos. A
autora devido a sua família cristã e por se tratar de um livro erótico criou o
pseudônimo Pauline Rèage. Outro motivo curioso é que o livro foi feito em formas de
cartas de amor. Anne redigia as cartas e enviava para o editor Jean Paulhan de
quem ela era amante com o pseudônimo, provando assim para ele que uma mulher
seria capaz de escrever um conto erótico de qualidade, pois ele afirmava o contrário.
Anne escolheu justamente o romance erótico com requintes significantes de
sadomasoquismo pois Jean era admirador dos contos do famoso Marquês de Sade,
cujo nome deu origem ao termo Sadomasoquismo.
A história do livro se passa em Paris, França. O, que não tem seu nome
revelado em momento algum, é uma jovem moça que, um dia, sai para jantar com
seu amante René. No caminho para o tal jantar, René ordena que O tirasse sua
calcinha, levantasse suas meias e abrisse os botões de seu vestido. O obedece
prontamente e sem questionar o porquê dos pedidos de seu amante. Ao chegarem
no local, O tem suas mãos amarradas em suas costas e é vendada, quando entram
no estabelecimento, tiram sua roupa toda e ela escuta a voz de seu amante e de
vários outros homens que, com o consentimento de René começam a abusá-la. A
tocam, a penetram brutalmente, provocando os choros e gritos de suplício de O.
Quanto mais a jovem gritava mais prazer os homens sentiam. Em um certo
momento a amarram para poderem observá-la melhor e um dos rapazes comenta
que O precisa ser alargada e René concorda prontamente e permite que o rapaz a
penetre novamente. Os homens usam de chicotes entre outros objetos para
molestar a jovem.
Ao final de tudo René explica a O que ela passará alguns dias naquele
castelo, onde qualquer homem que chegasse poderia possuí-la. Explicou que ela
nunca poderia olhar no rosto de nenhum deles e muito menos falar, que quando
saísse do castelo deveria usar um anel que quem fosse membro do castelo
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reconheceria e poderia tomá-la, entre outras regras. Duas outras mulheres a


conduziram para um quarto, que tinha apenas uma cama e um penico para suas
necessidades. As moças contam a O que ela terá um Criado, que iria puni-la caso
descumprisse alguma ordem solicitada, que a vigiaria durante a noite e que poderia
possuí-la também. Dentro desse quarto as moças vestiram O e a maquiaram, e
quando estava pronta, a guiaram até a sala onde se encontravam alguns homens
que proferiram o seguinte discurso:

Você aqui a serviço de seus mestres. Durante o dia, cumprirá tarefas na


casa, como varrer, arrumar os livros, as flores, ou servir à mesa. Nada mais
complicado que isso. Mas, ao menor sinal ou palavra, você largará o que
estiver fazendo pra prestar seu único e verdadeiro serviço, que é se
entregar. Suas mãos não lhe pertencerão, nem os seios [...]. Você ficará
vestida durante o dia, levantará a saia quando mandarem, e qualquer um
poderá se servir de você. [...] (RÉAGE, 2005, p.45)

Quando O estava se retirando da sala com as moças que lhe acompanhavam


viu seu amante sentado no chão que a chamou, pelo seu verdadeiro nome, lhe fez
um carinho, a beijou e disse que a amava. O respondeu, com terror, que também o
amava. O foi deitar-se em sua cela e percebeu que mesmo depois de toda aquela
violência, outros homens a possuindo, ela sentia uma doçura, e ao mesmo tempo,
um terror e se perguntava o porquê.
Sempre que era submetida a outros homens e aos chicotes O sofria, mas se
agarrava ao pensamento que esse era o preço a se pagar para que René
continuasse a amando, era uma prova de amor. A moça então sempre suportava os
maus tratos, por René, seu amante. Em alguns momentos, quando a jovem estava
com outros homens, ela sentia prazer, gemia e ao final se culpabilizava, pois estava
sentindo prazer com outro homem, que não o seu amante. Mas isso logo passava
pois ela se via com René novamente, deitando-se com ela e dizendo o quanto a
amava. René afirmava que ele era dela, que ele a possuía, mas que ela seria
oferecida por ele aos outros membros do castelo sempre, ele a entregaria e que ela
dependia apenas dele.

Ele a possuiria assim, como um deus possui suas criaturas, das quais ele se
apodera sob o disfarce de um monstro ou de um pássaro, do espírito
invisível ou do êxtase. Ele não queria se separar dela. Quanto mais a
entregasse mais ela pertenceria a ele. (RÈAGE, 2005, p. 62)

O escutou tudo o que René falou, com muita alegria, pois ela tinha a certeza
que ele a amava. Em muitos momentos ela necessitava da afirmação do amante
sobre o seu amor. Uma noite René tocou uma das outras garotas que também
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serviam aos homens do castelo e O se sentiu desesperada, logo René percebeu e


se voltou a ela, a acalmou e disse que a amava, que O era o amor de sua vida e
então a jovem se tranquilizou depois de ver que o amante ainda a amava.
Submetida as sevicias diárias, aos chicotes e estupros, O se via perdida, “[...]
numa delirante ausência de si mesma que a entregava ao amor e aproximava-a
talvez da morte.” (RÈAGE, 2005, p 69). Sua dependência emocional ficava cada dia
mais evidente, mas quando René a comunica que passará alguns dias longe do
castelo ficou claro ao leitor. O ficou esperando ansiosa e nervosa, sentindo a
ausência de seu amante. René voltou de surpresa e quando voltou levou O embora
do castelo, no caminho para a cidade disse mais uma vez o quanto a amava e
tomou-a nos braços.
O não participava da vida de René, apenas dentro do apartamento em que
ela morava, até que um dia ele resolveu apresentá-la para seu grande amigo Sir
Stephen. No jantar em que se conheceram os dois amigos contaram a O que Sir
Stephen era meio-irmão de René e que O também seria submissa a ele. René
dessa vez perguntou a amante se ela aceitaria, depois de pensar e ficar um pouco
confusa, com medo de aquela situação ser um teste e que se ela aceitasse René a
deixaria. O aceitou como prova de seu amor por seu amante, uma prova de
completa submissão. Os dois explicaram a jovem que Sir Stephen poderia solicitar
sua companhia sempre que quisesse, não seria como no castelo que era somente
no castelo, poderia ser quando e onde Sir Stephen desejasse. O queria fazer de
tudo para que seu amante seguisse sempre a amando, mas também estava
sentindo um desejo por seu novo mestre. Neste momento a moça sentia que estava
traindo René e ficou repetindo em sua cabeça “[...] eu te amo, faça de mim o que
você quiser, mas não me deixe, meu Deus não me deixe.” (RÈAGE, 2005, p. 127).
Sir Stephen era um homem mais forte, mais rígido e agressivo que René. René não
tomava O em seus braços na presença de Sir Stephen, apenas para facilitar o
acesso do meio-irmão ao corpo de O. Ele também obedecia a Sir Stephen. Quando
O o questiona ele diz que é por respeito ao meio-irmão, e O rebate dizendo que ela
o pertence e René diz que antes de pertence-lo, ela pertence a Sir Stephen.
O desejava que seu novo mestre também a amasse, era um desejo que ela
não percebia com clareza, mas pensou que seria necessário reduzir-se a nada para
que esse sentimento crescesse dentro dele. “Ela queria existir para Sir Stephen, por
pouco que fosse, assim como existia para René, e que ele tivesse por ela mais que
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desejo.” (RÈAGE, 2005 p 123-124). Mesmo com essa vontade, a jovem amava
René e quanto mais se doava a Sir Stephen mais amada se sentia. René tinha uma
admiração muito grande por Sir Stephen, em certa medida se submetia a ele como
se ele fosse um deus, o soberano e ele tinha e desejava idolatra-lo, logo, quando ele
devolvia O para os seus braços René buscava nela marcas de um deus. Certa vez,
após desobedecer a Sir Stephen, O levou várias chicotadas pelo seu corpo,
chicotadas que tiraram sangue da moça. René admirava cada vergão que surgiu
após o açoitamento e disse com alegria em seus olhos que amava muito O e a
possuiu.
A única parte da vida de O que ainda lhe pertencia era o seu trabalho como
fotógrafa, quando foi para o seu trabalho conheceu uma mulher que seria sua
modelo no dia que se chamava Jaqueline. O logo se encantou pela jovem, assim
como René quando foi buscá-la no trabalho e Jaqueline lá se encontrava. René
contou para Sir Stephen de Jaqueline que também se interessou pela garota. Sir
Stephen exigiu que O conquistasse a jovem e a levasse ao castelo, onde também se
tornaria submissa. O se recusa internamente pois admira extremamente a modelo,
mas não pode recusar a exigência de seu mestre.
O e René começam a se aproximar de Jaqueline e em certo ponto
conseguem. Jaqueline vai morar com O e as duas, por muitas vezes, trocavam
carícias. O seduz e enlaça Jaqueline como não faz com seus mestres. Nem sempre
funcionava pois Jaqueline e René se aproximavam cada dia mais, assim como O de
Sir Stephen. Sir Stephen era um mestre muito mais exigente e mais seguro que
René e O sentia uma certa igualdade entre ela e Sir Stephen, os dois pelo menos
tinham a mesma idade, o que anulava nela o sentimento de submissão apesar de
ele existir e ser muito forte. O que Sir Stephen desejava era o desejo de O também,
simplesmente pelo falo de que era ele quem estava fazendo o pedido.
O diz a René que não levaria Jackeline ao castelo como consequência, René
a ordena que fale então a modelo que ele estava apaixonado por ela e que ele a
levaria então para o castelo. O reluta mas, por fim, dá o recado de seu amante para
Jaqueline. O percebendo a aproximação dos dois, se volta a Sir Stephen, que
estava se apaixonando por ela. Sir Stephen não só a usava como escrava, como
objeto, mas também lhe acariciava e a beijava. O se apaixonava assim por ele.
Certo dia, Sir Stephen leva O para a casa de uma amiga, Anne-Marie, uma
mulher dominadora que torturava, açoitava e marcava as mulheres que lá se
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encontravam a pedido de seus respectivos mestres. Sir Stephen diz a O que iria
marcá-la com suas iniciais e colocaria argolas e correntes em seu sexo,
demonstrando assim que ela o pertencia. O nesse momento é questionada se
consentia tal ato e ela consente, tentando provar seu amor por Sir Stephen e por
René e pensando que dessa forma eles a amariam ainda mais. Os dois vão embora
juntos pois Anne-Marie colocaria as argolas em O no início do próximo mês. No
carro a jovem começa a pensar em René, se questionar se ela tinha se tornado tão
obediente a Sir Stephen que seu amante pudesse ter deixado de amá-la. Será que
René lhe entregou a Sir Stephen tão inteiramente que não a amava mais?
Chegando em casa, O pegou um taxi e foi às pressas ao trabalho de René. René
calmamente pediu que a secretária dele saísse e os deixasse a sós. O preferia que
tivesse sido repreendida pelo seu ato, a repreensão seria uma prova de amor. O
amante questionou o que estava acontecendo e O diz que teve medo de que ele não
a amasse mais, René riu. O falou que voltando da casa de Anne-Marie, e logo parou
pois achou que René ficaria bravo ao saber de Anne, mas ele logo já falou que sabia
de tudo e O completa “[...] não me importo com o que farão comigo, mas diga se
você ainda me ama.” (RÈAGE, 2005, p. 183). René completa afirmando que a ama e
ela novamente se sente segura.
René se planeja e comunica a O que iria para Escócia visitar sua família e por
um momento ela pensou que ele a levaria, o que não aconteceu. Sir Stephen a avisa
que iria buscá-la e iriam para casa de Anne-Marie. Sir Stephen a deixou, mas, antes
de ir embora perguntou “você é minha, O, você é mesmo minha?” (RÈAGE, 2005, p.
187), a beijou e foi embora.
Após dias sendo algemada e açoitada entre suas coxas onde, segundo Anne-
Marie, a pele era mais sensível e devia ser preparada, finalmente chegou o dia de
pertencer plenamente a Sir Stephen. As argolas são postas em seu sexo e as
iniciais do amante são marcadas em suas nádegas a ferro em brasa.

É aqui, onde você é tão curva e lisa, que vamos imprimir as iniciais de Sir
Stephen, de um lado e do outro da fenda das ancas. Vou trazer você
novamente à frente do espelho, na véspera de ir embora, você não vai se
reconhecer. (RÈAGE, 2005, p.199)

Sir Stephen busca a jovem e os dois seguem para Paris novamente e no


caminho explica exatamente os tipos de roupa que ela poderia usar, para que as
argolas e correntes não ficassem visíveis. Sir Stephen e O estavam cada vez mais
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próximos, andavam juntos e todos pensavam que ela era alguma sobrinha dele pois,
ele a tratava com mais carinho e ela continuava tratando-o respeitosamente. Nas
ruas de Paris quando os dois passeavam de vez em vez Sir Stephen a levava para
algum beco ou algum outro lugar escondido a beijava, a possuía e em seguida dizia
que amava-a.
Certa vez, Sir Stephen a chamou para um almoço com mais dois amigos, era
a primeira vez que aquilo acontecia. Chegando no almoço, Sir Stephen apresentou
O para os dois amigos e disse a eles quem era ela. O se sentou entre os dois
amigos e enquanto todos comiam eles a tocavam. Sir Stephen mostrava aos amigos
os seios da amante, o seu sexo com as argolas, suas iniciais na anca da jovem. O
reconheceu um dos dois amigos, ele esteve no castelo e a possuiu, o outro amigo
era desconhecido.
Sir Stephen ofereceu O aos dois amigos. O primeiro, que havia estado no
castelo logo tratou de possui-la, obrigou-a a se ajoelhar abrir seu zíper, expor o seu
sexo e o satisfez com a boca. O outro jovem não gostou da situação e da submissão
de O; mesmo assim, a tomou pelas mãos chamou um taxi e a levou para seu quarto
de hotel, possuiu seu sexo e sua anca diversas vezes, somente a deixou ir embora
após usar todos os orifícios da moça, até machucar. Quando O voltou para seu
mestre no dia seguinte, Sir Stephen contou que Eric, o amigo desconhecido, tinha se
apaixonado por ela e pediu para que ele libertasse O para que os dois pudessem se
casar. Sir Stephen diz que O era livre para escolher, mas que ela lhe pertencia e
avisou que Eric passaria lá as 15 horas para saber a resposta. O respondeu que Sir
Stephen lhe castigasse e mostrasse a Eric a quem ela pertencia. Eric viu a cena e
foi embora nunca mais procurando a moça.
Sir Stephen fala com O que agora ela teria que contar tudo para Jaqueline,
pois as duas moravam juntas e as argolas iam ser vistas em algum momento e era
então para recrutá-la para o castelo. De fato o que Sir Stephen disse aconteceu, O
estava tomando banho quando Jaqueline entrou no banheiro e viu as argolas de O
que logo tratou de lhe contar tudo, sua submissão a René e Sir Stephen, sobre o
castelo e tudo que sofria nas mãos dos dois meios-irmãos. Jaqueline fica
horrorizada com tudo que ouviu e com as argolas enquanto O sentia um tremendo
orgulho de tudo aquilo. René e Jaqueline se aproximavam assim como Sir Stephen
e O.
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Certa vez, O, Sir Stephen, Jaqueline, sua irmã e René foram para uma casa
alugada de campo em Cannes, onde todos eles passariam o mês juntos. Os dias
iam passando e O percebia como René estava apaixonado por Jaqueline e não se
sentia mal com aquilo, por não ter mais o amor de seu mestre René, pois, percebe
que Jaqueline não o ama da mesma forma e o domina. O então fica feliz por ter o
amor de Sir Stephen, um homem mais forte, viril e dominador que René. Sua
dependência emocional se volta totalmente para Sir Stephen.
No final do livro, Sir Stephen apresenta O para um amigo, conhecido por o
Comandante. Sir Stephen diz que O lhe pertence, mas que a emprestaria se fosse
necessário. O nesse momento está nua em pé se mostrando para o Comandante a
pedido de seu mestre. O estava incomodada e em um ato de desespero olhou para
Sir Stephen que se colocou atrás dela e segurou suas mãos deixando que ela se
apoiasse nele e logo o desconforto virou segurança. O ouviu quando então Sir
Stephen e o Comandante combinaram de emprestá-la na semana seguinte.
Uma semana depois Sir Stephen pega uma caixa que continha várias
máscaras de animais e escolhe a coruja e diz a O que ela seria a coruja do
Comandante e que seria levada pela coleira. Durante a tarde Sir Stephen ficou ao
lado de O o tempo todo, dormindo e de noite mandou servir o jantar apenas para os
dois no quarto e por volta de meia noite saíram para o evento do Comandante. O
desceu do carro nua, com a máscara de coruja e sendo puxada pela coleira, os
convidados da festa começaram a questionar quem era ela, de quem ela era e o
Comandante logo falou, ao ir de encontro de O e Sir Stephen, que ela seria de todos
eles se assim desejassem, e todos entraram para a festa.
O ficou exposta todo tempo, as pessoas iam até ela, a tocavam, alguns
pegavam em seu sexo, outros debochavam e riam e outros admiravam. O começou
a procurar Sir Stephen com o olhar e de início não o viu, somente quando o avistou
que se sentiu segura novamente. Ele estava de olho nela. Todos que chegavam
perto da jovem nem sequer se dirigiam a ela, ela era apenas um objeto em
exposição, não era um ser humano. No final da festa, a música parou e os
convidados foram embora. Sir Stephen e o Comandante se dirigiram a O, lhe tiraram
a máscara, a coleira a levaram para o meio do pátio, a debruçaram sobre uma mesa
e abusaram da moça, revezando, mas também, ao mesmo tempo.
O livro acaba desta maneira, mas a autora nos oferece mais dois finais. O
primeiro é quando, logo após a festa, Sir Stephen leva O para o castelo e lá a
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abandona, nunca mais retorna para buscá-la. O segundo é quando O percebe que
Sir Stephen está para abandoná-la e não suportando essa ideia prefere morrer. A
jovem então pede a Sir Stephen para se matar e ele consente.

4 O GOZO MASOQUISTA DE O

Será necessário discorrer acerca do que está Além do princípio do prazer


para falar sobre a posição masoquista de O e o gozo. Freud, em seu artigo “Além do
princípio do prazer” de 1920/1987, discorre acerca do que pode reger o psiquismo
do sujeito que não o princípio do prazer. Observando seu neto pequeno brincando
ele percebe que a criança quando joga o seu carretel para longe diz Fort, e quando
ele o puxa para perto, ele diz Da. Em suas análises sobre o que aquilo significava,
Freud propõe um modo de pensar, Fort quer dizer Lá e Da quer dizer Aqui e toda
vez que a mãe da criança se ausentava essa brincadeira era repetida diversas
vezes. Freud percebe então que esta brincadeira era a representação da ausência e
presença da mãe de seu neto e percebe também que a parte da ausência da mãe,
que causava sofrimento na criança, era repetida com mais frequência, era uma
compulsão a repetição que levava ao sofrimento. Notado isso Freud começa a
questionar o que está além do princípio do prazer, ou seja, existe algo no aparelho
psíquico que ultrapassa o princípio do prazer pois é a parte da brincadeira que faz
seu neto sofrer que é repetida diversas vezes. Outro ponto importante é a
transferência que em muitos momentos da clínica a rememoração é ineficaz, pode
vir a surgir o campo do indizível, do invisível, aquilo que não é dito e que causa o
sofrimento naquele paciente, como consequência aparece sob forma de ato. É
realizada uma ação para expressar o que está afetando o sujeito e que ele não
possui uma narrativa para tal. Schermann (2003) diz que a passagem ao ato é
sinônimo do fracasso analítico na medida em que o falar na análise é de extrema
importância, pois “a passagem ao ato satisfaz aos caprichos da razão” (p.87). Em
19

suma, na passagem ao ato não há palavras, apenas o ato por si só. Dito isto, Freud
(1920/1987) percebe que existe algo no psiquismo que não busca o prazer, que está
além de buscar esse prazer e constrói as pulsões de morte, o gozo em Lacan.
Dessa forma articula-se esse campo mencionado com o real e não com o campo do
simbólico, já que não se situa na ordem do dizível.
Freud (1920/1987) vai classificar as pulsões sexuais e de autoconservação/do
ego como pulsões de vida, aquelas que são regidas pelo princípio do prazer e que
têm sua energia investida em um objeto. As pulsões de morte são regidas pelo além
do princípio do prazer e não têm um objeto para investir sua energia pois possui
uma energia dispersa, livre, desligada, é uma tendência para a morte e é nela que
se funda a compulsão à repetição. O vive a compulsão à repetição em seus
relacionamentos, primeiro com René, ela vive a relação sadomasoquista com seu
amante para não perder o amor do mesmo. Sua trajetória se inicia no castelo, onde
é confinada por diversos dias se submetendo aos abusos de vários homens, com o
consentimento de René, e açoitamentos. À medida que os dias no castelo iam se
passando os abusos se tornavam piores, como a vez em que depois de uma longa
sessão de sadomasoquismo com vários homens ela foi levada a sua cela quase
desmaiada. Com tudo isso, a única coisa que ela pensava era que não podia perder
o amor de René, que ela se submeteria a tudo, a todo suplício. Se aquele preço era
o que ela havia de pagar para garantir tal amor ela suportaria outros homens a
penetrando, chicotadas até seu sangue escorrer, mais de um homem abusando de
suas ancas, entre outros. Dias depois de sair do castelo René apresenta Sir Stephen
a O e diz que ela também iria pertencer-lhe. Após se tornar escrava de mais um
mestre, Sir Stephen, ela repete a história, porém agora esse mestre seria mais
rigoroso e mais agressivo.

A pulsão de morte seria redefinida por Lacan como sendo uma pulsação de
gozo que insiste na repetição de cadeia significante inconsciente. O prazer e
o gozo não pertencem ao mesmo registro. O prazer é uma barreira contra o
gozo, que se manifesta sempre como excesso em relação ao prazer,
confinando com a dor. (VALAS, 2001, p. 7)

O permitia sofrer todos os abusos e violências de Sir Stephen, um senhor


mais dominador e mais violento que René. Ao longo do tempo com Sir Stephen o
amor começa a florescer e O se vê completamente apaixonada pelo seu novo
mestre e todos os desejos dele se tornem os dela “o que ele lhe pedia, logo ela
passava a querer também, unicamente porque ele estava pedindo.” (RÈAGE, 2005,
20

p.146). Ela aceitava tudo, menos perder o amor de Sir Stephen. “A fim de provocar
a punição [...] o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, [...] e, talvez,
destruir sua própria existência real.” (FREUD, 1924/1996, p. 178). Freud encerra seu
artigo “O problema econômico do masoquismo”, explicitando que essa destruição
que o sujeito faz de si mesmo, no caso O se anulando e tomando como se fossem
seus os desejos de Sir Stephen, não pode se realizar sem uma satisfação libidinal.
O único momento em que O tem a possibilidade de viver um relacionamento
“normal”, ou seja, quando Eric quer tirá-la da relação sadomasoquista e casar-se
com ela, O não se interessa, pelo contrário, recusa-o livremente para continuar
sendo escrava de Sir Stephen e assim ir conquistando cada vez mais o seu amor.
Eric queria proporcionar prazer a O, e ela não queria pois ele não fazia parte de seu
gozo masoquista, ela queria o além do princípio do prazer. Tal fato evidencia que a
personagem se implica no próprio sofrimento, o que quer dizer que ela não possui
apenas um lugar de vítima, ela se desloca de tal lugar e é denunciada a sua
responsabilidade subjetiva.
O gozo de O estava em Sir Stephen desempenhando sua função de sadista
para com ela, assim como o gozo de Sir Stephen estava na função de O de ser
masoquista para o Sir Stephen, ou seja, o masoquista tem uma tendência a entregar
o seu gozo para o Outro para satisfazê-lo. O que ocorre então é uma encenação,
como explicita Schermann (2003), o masoquista faz uma simulação levando-o até o
limiar e assim fazendo com que o gozo retorne para o próprio corpo. O se entregava
para seus mestres, tanto René quanto Sir Stephen mas, o mais importante, ela se
colocava a serviço do Outro. O ocupava o lugar de objeto do Outro e só se
relacionava com quem fazia o papel de sádico para ela. Um momento em que fica
claro este lugar de objeto é quando O está no castelo em sua cela, acorrentada na
cama após ser abusada e açoitada por quatro homens a pedido de René, ela
começa a pensar que de tudo que havia sofrido naquele castelo, a única coisa que
havia lhe incomodado em todo o abuso era que ela não podia usar suas mãos,
estavam amarradas e então ela não podia se defender. Porém, logo após esse
pensamento outro veio, será que se suas mãos estivessem soltas ela iria mesmo se
defender? O tinha um misto de sentimentos, sentia terror e doçura com tudo aquilo
que estava vivendo no castelo, ela aderia a todo sofrimento ali presente. Eric logo,
não se tornaria uma possibilidade pois ele queria desposá-la, tirá-la do sofrimento.
21

Por vezes o masoquista, segundo Freud (1924/1996), possui um sentimento


de culpa, como se tivesse cometido algo muito grave e se encontra na manifestação
das fantasias sadomasoquistas. Nota-se tal fato quando René apresenta Sir
Stephen para O e propõe que ela se submeta a ele também. Neste momento O é
solicitada a consentir e ela sente culpa ao dizer que aceita ser escrava de Sir
Stephen, mas também um enorme receio com medo de perder o amor de René caso
dissesse sim. Logo após aceitar se submeter a Sir Stephen e sentir culpa, ela é
açoitada e abusada por ele, como se fosse uma punição pelo seu ato criminoso.
Outro momento que O sente culpa é quando ela está no castelo e ao ser penetrada
fortemente por um homem, que não o seu amante, começa a sentir prazer, um
prazer que deveria sentir apenas com René. Logo depois ela é amarrada e recebe
diversas chicotadas.
Segundo Schermann (2003), Freud (1924/1996) considera o masoquismo
relacionado diretamente com as pulsões de morte. A pulsão de morte é originária
dos três diferentes tipos de masoquismo, o primordial, ou originário, que diz respeito
ao modo de excitação sexual, ao erógeno, no prazer no sofrimento. O masoquismo
feminino, que expressa a essência do ser feminino e o moral que se concretiza
como norma de conduta que o supereu coordena. (SCHERMANN, 2003). Dessa
forma Freud percebe que o masoquismo vai além da perversão, ele alcança na
fantasia inconsciente uma forma de satisfação pulsional paradoxal que é chamada
por Lacan de Gozo.
Neste estudo, quando explicitado acerca da compulsão à repetição e ao
masoquismo de O é usado o conceito de masoquismo primordial pois, como
explicita Schermann (2003), é o masoquismo primordial que tem como padrão uma
compulsão à repetição.

Há pessoas em cujas vidas se repetem indefinidamente as mesmas reações


não corrigidas, em prejuízo delas próprias, assim como há outras que
parecem perseguidas por um destino implacável, sem se aperceberem,
causam a si mesmas esse destino. Em tais casos, atribuímos um caráter
“demoníaco” à compulsão à repetição. (FREUD, 1924/1996, p.133)

Nota-se, como já dito, que O amava seus mestres, se submetia a todos os


abusos em nome do amor deles, mas o que mais esses homens tinham que O não
podia perder de forma alguma? Segundo Schermann (2003) o masoquista tem um
objetivo de fazer desaparecer, eliminar a castração. “O perverso masoquista, por
sua vez, insiste em denegar esta fenda aberta, inserindo no Outro o gozo enigmático
22

para nomeá-lo de falo.” (p. 145). Pode-se dizer que Sir Stephen e René possuem
aquilo que O não possui, o falo e exercem a função de falo na fantasia masoquista
da mesma, logo, ela não pode perdê-los pois, perdendo-os teria que lidar com a
castração.

4.1 A posição alienada de O

Levando em conta o histórico de O, pode-se pensar, também, em uma


alienação para a psicanálise. A alienação é quando o sujeito desaparece enquanto
real e é substituído como significante, que ocupa lugar dentro da cadeia de desejo
do Outro (LAURENT, 1997). Como se O, ocupasse então um lugar de significante no
desejo de Sir Stephen e René. O sujeito, O, deseja ser tudo para o Outro, este Outro
é absoluto e como consequência, este sujeito passa a ser um objeto de gozo do
Outro, se posicionando como assujeitado. Para a teoria de alienação, Lacan define
um conceito de Outro que se resume em

[...] o Outro como “o lugar em que se situa a cadeia significante que


comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito”. (193-194). Esta
definição liga o Outro e o sujeito de um modo que constitui, claramente, uma
alienação: o sujeito como tal só pode ser conhecido no lugar ou locus do
Outro. (LAURENT, 1997 p.34)

O sujeito toma os desejos do Outro como se fossem os seus próprios, para


ilustrar, como já dito, O dizia exatamente isto, que os desejos do Sir Stephen, seu
mestre, o Outro, se tornavam os seus próprios desejos, não havia distinção. Se ele
desejasse abrir o sexo de sua escrava e penetrá-la brutalmente ou se quisesse
marca-la com suas inicias e colocar argolas em seu sexo, assim ela desejava
também. René a colocou em um castelo onde ela era abusada por quantos homens
ele desejasse e isto também passou a ser o seu desejo. “Entretanto, nunca se sentiu
tão entregue a uma vontade que não era a sua, tão totalmente escrava, tão contente
em sê-lo”. (RÈAGE, 2005, p. 92).
O autor diz também de um assujeitamento, como citado brevemente acima,
existe um assujeitamento ao capricho do Outro, daquele de quem se depende,
independente de que capricho seja. Assim como uma criança ao nascer tem que se
assujeitar ao Outro para poder existir, O também o faz. O se põe disponível, se
submete a todos os caprichos de René e Sir Stephen, mostrando também, uma
23

dependência entre ela e seus mestres, uma dependência de amor. Mas que amor
que seria este? Um amor que não leva em consideração a falta?

4.2 O amor para O

No artigo intitulado “A metáfora do amor”, a autora, Elizabete Siqueira (2014)


cita algumas obras de Jacques Lacan e Sigmund Freud para discorrer acerca do
amor. A autora esclarece que a posição de amante se caracteriza por aquilo que lhe
falta, ele procura no outro aquilo que lhe falta, não de forma consciente, o amante
vai em busca do objeto a, o objeto da falta. O não é um sujeito de falta, ela nega a
sua falta, não lida com sua castração, fortalecendo assim a sua relação
sadomasoquista com René e Sir Stephen. Pode-se dizer então que não é amor que
a personagem sente pois, “[...] é na medida em que o amante enquanto sujeito da
falta substitui a função do objeto amado que se produz a significação do amor [...]”.
(SIQUEIRA, 2014, p. 3). Além disto, O ainda não se tornou um sujeito, ela é objeto
de gozo para o outro, seus mestres faziam dela o que quisessem logo ela é um
assujeito. Devido a isto a personagem não se tornou um sujeito desejante, o sujeito
da falta, sendo assim inviável falar de amor. O amor não existe sem o desejo, que
não existe sem a falta (COSTA, 2016). Segundo Siqueira (2014) citando Lacan
(1973-1974), é pelo amor que o sujeito consegue alcançar o desejo e só existe
desejo que se realize, realizável, quando já ocorreu a castração. Logo, o que resta a
O?

[...] ali onde o desejo foi expulso temos o masoquismo como último recurso
para ligar o corpo ao simbólico e não se cair na insuportável e insustentável
leveza do ser. (Lacan,1973-1974 apud Siqueira, 2014, p.11)

Em suma, para O não é o amor que está ligando-a aos seus mestres, pode-se
dizer que ao invés disto o que a personagem vive é uma parceria sintomática, que
irá ser discutida no capítulo seguinte.
24

5 A PARCERIA SINTOMÁTICA

Para iniciar uma discussão acerca da parceria sintomática, se faz necessário


discorrer acerca dos conceitos de sintoma e parceiro para a Psicanálise. Miller em
seu texto “A teoria do parceiro” de 2000, diz que a teoria do parceiro é um
complemento da teoria do sujeito e começa a explanar sobre tipos de parceria. Para
este estudo será utilizado, primeiramente o conceito de parceiro-Deus bifacial. Miller
(2000) explana, em consonância com Descartes, que existe um parceiro imaginário,
fictício, um Outro que engana e o sujeito que permite tal parceria concede
onipotência a este Outro. Como consequência deste aval que o sujeito concede, o
Outro enganador despoja-o. Para ilustrar, pensa-se em O, a jovem permite que
René e Sir Stephen façam o que quiserem com ela, deixando-os serem onipotentes,
fazendo com que ela não seja mais dona de si, ela passa a não se possuir mais,
seus mestres a possuem. Segundo Miller (2000) é neste momento em que o sujeito
é despojado pelo Outro que ele encontra o seu ser, é aí que O encontra seu ser.
Importante salientar que o parceiro, para Miller (2000) é multifacetado, possui
várias caras, “[...] é uma instância com o qual o sujeito está ligado de forma
essencial, uma instância que lhe causa problemas e que eventualmente é
25

enigmática.” (p. 161). O autor continua ainda dizendo que este parceiro possui um
status de sintoma e utiliza da teoria lacaniana para explanar três tipos de parceiros.
O parceiro-imagem, parceiro-símbolo e o parceiro-sintoma, sendo este último o que
será abordado neste estudo.

O parceiro é tanto o sócio com quem dançamos quanto aquele ao lado do


qual exercemos uma profissão, ou partilhamos uma disciplina ou um
esporte. É também aquele com quem conversamos ou transamos. Com o
parceiro somos parte interessada “em uma partida. (MILLER, 2000, p. 163)

O sintoma por sua vez é uma metáfora da não-relação sexual, a necessidade


do sintoma responde à impossibilidade da relação sexual. (MILLER, 2000). Dito isto,
o autor enfatiza que não existe ser humano, homens e mulheres sem sintoma. Este
sintoma se inscreve onde há uma falha, falha propriamente dita do parceiro sexual.
Não há relação passível de acontecer entre duas pessoas que não passe pela via do
sintoma, e este, segundo Miller (2000) é mediação. Dunker (2016) enfatiza que o
sintoma só se completa na relação com o outro, é uma espécie de obra de arte
criada pelo sujeito para dar um destino para aquilo que ele não consegue colocar de
outra forma. O que funda um casal, a partir dos escritos de Miller (2000) é o sintoma,
é o sintoma de um que se conecta com o de outro e então a parceria
sintomática/parceiro-sintoma emerge. Para além disso, segundo Lacan citado por
Zalcberg (2010), o sintoma é um modo de gozo do sujeito, não é apenas uma
metáfora “[...] é também função de gozo desse elemento de inconsciente que é a
letra reduzida a ela mesma, fora de sentido e, por isso, condensador de gozo.”
(ZALCBERG, 2010, p. 20). Sendo assim, é um modo de gozar que se interlaça entre
significante e gozo. Zalcberg (2010) prossegue com seus escritos explanando que o
sintoma como modo de gozar pode se manifestar de duas formas. A primeira diz
respeito ao modo de gozar do inconsciente em conexão ao significante e a segunda
é o modo de gozar do corpo do Outro, que pode acontecer de duas maneiras: o
corpo do outro como meio do próprio corpo gozar e o próprio corpo com uma
dimensão de alteridade.
Dito isto, Zalcberg (2010) pontua que para que o Outro se torne parceiro-
sintoma, deve se converter em sintoma do sujeito, um meio de gozo para o sujeito,
ou seja, o Outro se torna um lugar de gozo. “O gozo pulsional, aparentemente
“autoerótico” se refere sempre ao Outro e é isto que faz com que o sujeito goze
sempre de modo sintomático.” (ZALCBERG, 2010, p. 21) Além de ser um gozo
26

autoerótico a autora enfatiza que também é um gozo aloerótico pois sempre inclui o
Outro, mesmo na masturbação. Segundo Zalcberg (2010) na masturbação
masculina é na medida em que o órgão está “fora do corpo” e marcado de
alteridade, na mulher, por sua vez, o gozo se encontra em seu próprio corpo, sem
perder de vista que este corpo próprio é outro. O que faz com que possam existir
dois destinos para alcançar o Outro, a partir dos escritos da autora. O primeiro é
através do gozo que vai alcançar o objeto a e o segundo é alcançar o Outro por
meio do amor, que colocará de lado o corpo e utilizará da palavra. Ainda mais,
segundo Lacan, citado por Miller (2000) a mulher é sempre objeto a para um
homem, um meio para o gozo e pode ser para a mulher, além de parceiro-sintoma,
um parceiro-devastação.
O parceiro-devastação é justamente aquele que degrada, deprecia de formas
particularmente cruéis, sua parceira. Segundo Miller (2000) a mulher se vê
devastada com os dizeres de seu companheiro, mas com análise percebe também
que goza de sua dor. As injúrias, os maus tratos são o núcleo de seu gozo. A mulher
escolhe seu parceiro justamente devido a essa degradação e mais, ela precisa disso
para se tornar mulher.

O sujeito se encontra ajustado com o Outro pelo que é o sintoma do Outro.


Ela satisfaz aí seu próprio sintoma. Se há relação, ela se estabelece aqui no
nível sintomático. E, nesse casal, cada um toma parte como sintoma.
(MILLER, 2000, p. 198)

Pode-se dizer que O e seus mestres possuem tal parceria-sintoma e, mais


especificadamente, aquela que alcança o Outro a partir do gozo, pois como
discorrido no capítulo anterior, o amor para O não seria possível. O é objeto de gozo
de René e Sir Stephen assim como o contrário. “O que o amante queria dela era
simples: que estivesse sempre e imediatamente, acessível”. (RÈAGE, 2005, p. 89).
Quando Eric pede sua mão em casamento a moça o recusa pois ele não faz parte
dessa parceria sintomática, pelo contrário, ele quer tirá-la deste tipo de relação. A
personagem recusa esse novo amante porque ela não quer o amor e sim o gozo,
pois a relação que ela vive com seus amantes é regida pela primazia do gozo.
27

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
28

7 REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a


violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da
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Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
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30

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