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@ Christian Ingo Lenz Dunker, Clarice Pimentel Paulon, Sobre os autores

José Guillermo Milán-Ramos, 2016


. 1
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor titular do
Direção editorial: José Luiz Aidar Prado e Kathia Castilho Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da
Direção de arte, projeto gráfico e diagramação: Adenize Luiza USP. Livre-docente em Psicopatologia e Psicanálise pelo mesmo de-
Revisão: Sâmia Rios e Márcia Moura
partamento (2011) com pós-doutorado pela Manchester Metropoli-
Capa: Lu Glaeser e Erich Demuro a partir da ilustração de Keytielle
Mendonça tan University. Analista Membro de Escola (AME) do Fórum do Cam-
po Lacaniano. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia
e Psicanálise da USP (Latesfip). Autor de Mal-estar, sofrimento e sin-
toma; Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Prêmio Jabuti
de 2012); O cálculo neurótico do gozo e Lacan e a clínica da interpreta-
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONA PUBLICAÇÃO ção. Colunista e colaborador regular de diversos jornais e revistas,
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ dedica-se à pesquisa sobre clínica psicanalítica de orientação laca-
niana e suas relações com as ciências da linguagem e com a filosofia.
D86a
Dunker, Christian Ingo Lenz
Análise psicanalítica de discursos: perspectivas lacanianas / Clarice Pimentel Paulon é psicanalista, mestre em Psicologia pela
Christian Ingo Lenz Dunker, Clarice Pimentel Paulon, José Guillermo Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto,
Milán- Ramos. - 1. ed. - São Paulo : Estação das Letras e Cores, 2016.
doutoranda pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de
324 p. : il. ; 18,5 cm.
Psicologia da USP. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia
Inclui bibliografia e Psicanálise da USP (Latesfip). Autora do livro Silêncio pelas pala-
ISBN 9788568552452
vras: uma investigação acerca da operação do silêncio na linguagem -
1. Psicanálise. 2. Psicologia I. Paulon, Clarice Pimentel. II. Milán-Ra- O Caso Signorelli. Dedica-se à pesquisa sobre clínica psicanalítica e
mos, José Guillermo. III. Título.
suas relações com as ciências da linguagem, especialmente Análise
16-36840 CDD: 150.195 do Discurso e Linguística Estrutural. Docente nas Faculdades Inte-
CDU:159.964.2 gradas de Ourinhos - FIO.

José Guillermo Milán-Ramos é licenciado em Linguística pela


Estação das Letras e Cores Editora Universidad de La República (Montevidéu, Uruguai, 1995) e doutor
Rua Cardoso de Almeida, 788, cj.144 - Perdizes
em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Au-
05013-001- São Paulo
Tel.: 55 114191-8183 ou 4191-8668 tor do livro Passar pelo escrito (Mercado de Letras, 2007). Atualmente
www.estacaoletras.com br é professor agregado no Instituto de Psicología Clínica da Facultad de
facebookcom/estacaodasletrasecoreseditora Psicología, Universidad de La República (Uruguai).

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanlanas l3


Introdução------------------ 6

1. Perspectivas históricas em Análise do Discurso-------------------- 48


49
1.1.A controvérsia do texto -----------------------·-······--------------------------·----
62
1.2. A controvérsia do conceito -------------------------------------------------------
1.3. Do conceito à Análise do Discurso: Foucault ----------------------------74
1.4. Do conceito ao discurso: Freud - - 78
1.5. Leitura, interpretação e comentário 89
1.6. O conceito de construção em psicanálise 99
1.7.Do conceito ao Método Estrutural: Lacan - 103

2. Psicanálise e Análise do Discurso ------------------------------------ 112


2.1. Lacan e a Análise do Discurso ------------------------------------ 113
2.2. Discurso e sujeito -·····-······-·-··-------------------- - 130
2.3. Da narrativa ao discurso -··········-·-·········------- 146
2.4. O conceito de discurso em Lacan ---------- 155
2.5. Discurso e consumo: metáfora e metonímia ------------------------ 185
2.6. Topologia histórica: espaço, lugar e posição------ 199

3. Variações do método -- 220


3.1. Topologia histórica do discurso: a construção
222
de casos clínicos -----------------------------------------------·--·------------------
3.2. Análise discursiva de um caso clínico de Freud -------------------- 237
3.3. O modelo estrutural no caso do Homem dos Ratos 24
---------------7
3.4. O modelo do grafo do desejo no caso do
257
Homem dos Ratos-------------------------'------------------------------------------
3.5. O modelo dos quatro discursos: uma
264
· fotografia destrutiva ---------------------------------------------------------------
3.6. Análise lógico-discursiva do delírio no caso Aimée 272
--------------

Conclusão --------------------- 290

300
Referências bibliográficas -----------------------------------------------
m seu percurso de ensino, Lacan utilizou o termo dis-

E curso em muitas ocasiões, em diversos contextos, com


acepções e compromissos doutrinais desiguais; porém,
observando o conjunto, percebe-se que o termo foi objeto de um
trabalho de determinação teórica relevante para qualquer estu-
dioso de sua obra, e, em geral, para qualquer pesquisador na pers-
pectiva materialista sobre o sujeito e a linguagem. Mas essa teo-
rização a respeito da categoria de discurso permitiria falar em
análise do discurso? A prática psicanalítica e as construções teó-
rico-metodológicas desenvolvidas por Lacan compreendem ou
habilitam, de alguma forma, uma prática de linguagem que mere-
ça ser chamada de análise do discurso? No presente livro respon-
demos afirmativamente a tais questões, oferecendo subsídios
conceituais e metodológicos para uma prática da análise do dis-
curso de orientação lacaniana Para isso, na primeira parte do li-
vro, desdobraremos uma série de conceitos estratégicos prove-
nientes de diversas disciplinas e campos de saber- como filosofia,
epistemologia, linguística e antropologia- que, além de prefigura-
rem o terreno que percorreremos em toda a sua complexidade,
constituem subsídios para escolhas metodológicas que se apre-
sentam em diversos momentos da pesquisa psicanalítica
Tal aproximação consiste no cruzamento de duas perspec-
tivas. Na primeira, trata-se de reconhecer que existe uma prá-
tica de análise do discurso já contida no método psicanalítico 1•

1 Recomendamos ao leitor separar por um instante a expressão ªanálise do discurso" das moda-
lidades consagradas dessa disciplina. O significante ªanálise" deve ser remetido a sua presença
comum nas palavras "psicanálise" e "análise do discurso". A ambiguidade assim formada sugere
que a psicanálise pode ser considerada como uma forma de análise do discurso e que a análise do
discurso pode ser uma psicanálise da ideologia na língua.

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J 7


A segunda perspectiva consiste em distingui-la e compará-la ceita de teoria. O discurso do psicanalista, que tem o desejo na
com as várias abordagens - surgidas a partir do trabalho de Mi- cúspide de sua ética, é a forma como ele coloca em ato sua aná-
chel Foucault sobre a arqueologia do saber, das contribuições lise do discurso. É bastante comum encontrar homologias e pa-
de Louis Althusser quanto à crítica da ideologia, bem como da ralelismos entre as diferentes perspectivas de Lacan sobre o
obra de Michel Pêcheux - que formaram um campo conhecido discurso e o emprego dessa noção nas ciências da linguagem.
como Análise do Discurso (AD). Seria possível, então, sistematizar tais afinidades em nível me-
Examinaremos as práticas linguístico-discursivas mais tí- todológico e epistemológico, de tal forma a pensar uma análise
picas da psicanálise, considerada tanto como método clínico psicanalítica de discursos?
quanto como método de investigação, apresentando alguns de Para aqueles que identificam a denominação análise do dis-
seus esquemas práticos, seus usos da linguagem, suas políti- curso com disciplinas ou abordagens consagradas no meio uni-
cas e éticas discursivas. Nosso objetivo é contribuir para pensar versitário, isso parecerá polêmico, ou árido como o estilo laca-
inflexões ideológicas ou críticas da própria situação de trata- niano. Aqueles que circulam pelos âmbitos de transmissão da
mento, incluindo seus condicionantes históricos, seus com- psicanálise, em suas escolas, associações e discursos, fincarão o
plexos discursivos e suas modalidades de subjetivação. Além pé na prática clínica lacaniana e argumentarão que se trata de
disso, pretendemos estabelecer alguns fundamentos úteis mais uma tentativa do discurso universitário-cientificista para
para a prática do método de investigação e pesquisa em psica- cercear ou degradar o caráter de exceção e a dimensão subver-
nálise. siva do discurso analítico.
Entendemos que a linguagem é, em si mesma, um dispositi- Para tanto, é crucial replicar não apenas as teses de Lacan,
vo transformativo, do mundo e do sujeito, na clínica e na políti- mas também seu método, à política discursiva empregada por
ca. Lacan é um autor que trouxe para a psicanálise um conceito ele do início ao fim de seu ensino. Qualquer "composição" entre
de discurso ao mesmo tempo ético e epistêmico. Por isso é im- psicanálise e outra disciplina, saber ou prática, deve ser cons-
portante examinar a intensa parasitagem de conceitos e no- truída em nível local, examinando um procedimento ou concei-
ções, autores e obras, procedimentos e métodos, que ele "im- to por vez, sem ceder às tentações da dedução generalizada de
portou" para o "interior" da psicanálise. Esta começou como argumentos 2• Por isso nosso livro traz, em sua parte final, casos
uma experiência clínica de tratamento das neuroses, vale di- e exemplos do que chamamos de método psicanalítico da análi-
zer; uma experiência de cura caracterizada por um investi- se do discurso. Este carácter local e fragmentário distingue o
mento de trabalho continuado com a linguagem. A noção de
2 O carácter local é uma espécie de axioma lacaniano que diz respeito à condição do pensamento
discurso é primariamente, em Lacan, um sucedâneo do con- teórico e dos procedimentos literais em psicanálise (MILNER, 1995/1996, p.122).

81Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: PerspectivciS Laeanianas l9
modo com que Lacan explorou a relação entre a psicanálise e em esquemas conceituais e literais 3, orientado por uma ética
outras disciplinas - tais como filosofia, linguística, antropolo- transformativa.
gia, lógica-matemática, topologia-, mas também discursos - Presumimos - ainda que não nos dediquemos a demonstrar
como a literatura, a poesia chinesa, a tragédia e a casuística isso aqui - que mesmo em Freud, em seus estudos sobre a afasia
clínica. Constitui um traço crucial de seu pensamento, com e em seus trabalhos sobre o simbolismo, o recurso ao campo da
efeitos marcantes em seu estilo de transmissão, essa hibridi- linguagem sempre acompanhou a construção da teoria psicana-
zação de discursos. Inúmeros traços do corpo teórico da psica- lítica Textos inaugurais como A interpretação dos sonhos, A psi-
nálise, hoje considerados parte de seu "núcleo duro", em algum copatologia da vida cotidiana ou O chiste e sua relação com o in-
momento foram acréscimos provisórios, derivados de explora- consciente constituíram o terreno no qual Freud debruçou-se
ções conceituais em disciplinas vizinhas que chegariam a in- sobre a materialidade linguística das formações do inconsciente,
corporar-se como articulações válidas e inovadoras. Um exem- dando entrada para a releitura "em chave linguística'' realizada
plo disso pode ser mencionado quando lembramos que uma por Lacan. Por outro lado, esses textos constituem a semiologia,
piada lateral em Freud sobre a psicanálise ser uma profissão ou seja, a teoria geral dos signos, própria da clínica psicanalítica
impossível torna-se, em Lacan, uma vertical teorização sobre o A psicanálise enquanto método de investigação, evidente-
sentido lógico do conceito de impossibilidade, em sua distin- mente, segue princípios análogos aos da prática da psicanálise
ção da impotência, como propriedade estrutural e formativa - tais como a abertura para a associação livre, a escuta equi:fl.u-
dos discursos. tuante, a interpretação de formações do inconsciente, a consi-
Qualquer opção que aponte na direção contrária, procuran- deração da transferência-; contudo, os métodos para análise de
do algum tipo de combinação total e massiva, deve ser rapida- textos escritos não são imediatamente aplicáveis a esse contex-
mente descartada. O real pode ser uno (fl y a de l'Un), mas os to. Um discurso colhido em situação de enunciação social cole-
discursos são sempre múltiplos - pois não há, neste sentido, tiva, uma peça de propaganda, um relato de experiência, uma
universo de discurso. narrativa de testemunho e mesmo um livro, ainda que autobio-
Freud definiu a psicanálise não apenas como um método de gráfico, não são redutíveis à fala do paciente em análise. Reci-
tratamento, mas também como um método de investigação. É procamente, um diário clínico ou um caso clínico, ainda que
exatamente nesse ponto que a psicanálise pode ser mais facil- publicados, possuem propriedades específicas de gênero e
mente caracterizada como uma análise do discurso. Faz-se ne-
cessário compreender que, já em Freud, encontra-se a compo- 3 Por exemplo: condensação/ deslocamento; interpretação/ construção; conteúdo mamfesto / con-
teúdo latente/ desejo do sonho/ umbigo do sonho; história material/ verdade histórico-vivencial;
sição de um trabalho sobre a materialidade linguística escorado recordar/ repetir/ elaborar etc.

10 1 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectiva,; Lacanianas Análise Psieanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 11
construção que restam como um discurso. Se o método de in- a materialidade linguístico-discursiva do sujeito, fora do qua-
vestigação psicanalítico segue princípios análogos aos da práti- dro mentalista e representacional que atravessava a metapsi-
ca da psicanálise, uma análise do discurso que encontre seus cologia freudiana. Ambos os cortes são mirantes ou pontos de
alicerces em esquemas conceituais e literais psicanalíticos de- observação opostos a partir dos quais podemos organizar os
verá seguir os mesmos princípios. Guardadas as proporções, fatos da linguagem e do sujeito. Embora intimamente interco-
seria possível parodiar o teórico da guerra Claus Von Clau- nexos e solidários, suplementares um ao outro, eles não são si-
sewitz (1832/1853, p. 27), que dizia que "a guerra é a política métricos. Para pensar a linguagem, Lacan recorre a Saussure e
praticada por outros meios", e dizer que a psicanálise é uma ao método estrutural; para pensar o sujeito, Lacan recorre a He-
"análise do discurso praticada por outros meios". gel e ao método dialético. Ambos os cortes são o fundamento e a
pedra angular do campo do discurso.
O campo da linguagem Ainda hoje, linguistas e estudiosos da linguagem, em geral,
No âmbito da linguística e no campo clínico, de modo quase pensam e visualizam os objetos linguístico-discursivos no es-
simultâneo, Ferdinand de Saussure [1857-1913] e Sigmund paço definido pela partição saussuriana: língua/ fala. As abor-
Freud [1856-1939] introduziram dois cortes que determinam, dagens históricas frequentemente destacam a diferença entre
até hoje, o modo em que percebemos os fenômenos de lingua- os enfoques puramente linguísticos, estruturais ou formalistas
gem e a determinação material da vida simbólica do sujeito. O que objetivam reconstruir um determinado funcionamento de
corte saussuriano entre língua e fala definiu a partição dos fe- linguagem, mostrando suas relações lógicas, gramaticais ou ar-
nômenos da linguagem e o método estrutural com o qual a ciên- gumentativas e as propostas "impuramente" linguísticas que
cia linguística os aborda. Esse gesto metodológico determinou redescrevem um determinado funcionamento de linguagem,
duas exclusões. A fala, por ser individual e contingente, estava insere-o em uma série política, criticando seus compromissos
fora da pesquisa linguística. Esta é a sutura do sujeito (da ciên- éticos ou desconstruindo seu potencial ideológico.
cia) no campo da linguagem. Por outro lado, isso permitiu que o No primeiro caso encontramos as perspectivas mais pro-
inconsciente freudiano pudesse ser redefinido como uma estru- priamente linguísticas, derivadas da Filologia do século XVIII e
tura de linguagem. Esta é a sutura do inconsciente como sutura do projeto da Gramática de Port-Royal, no século XVII. Nessa
entre o individual e o coletivo, ou seja, como os sistemas simbó- perspectiva trata-se de encontrar estruturas de pensamento
licos pensam a nossas expensas. universais, ou ao menos profundamente estáveis, nas produ-
A partir dessas duas suturas, a análise das formações do in- ções da linguagem. No segundo caso agrupamos as tradições da
consciente toma-se possível, como compreensão inédita sobre Literatura Comparada - inspirada no conceito de Weltliteratur

12 J Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J 13
[literatura mundial], proposto por Goethe no século XVIII -; a "Essa é a primeira bifurcação que se encontra quando se procura
crítica marxista da ideologia, que prosperou no século XX; ateo- estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois
ria da desconstrução, de Jacques Derrida - que encontrou seu caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo" (SAUSSURE,
apogeu na virada do século XXI. O foco dessa perspectiva são os 1916/1971,p. 28).
interesses, as relações de poder e dominação que a linguagem Efeito de um corte sincrônico, a língua aproxima-se de um
carrega em si. Se na primeira perspectiva, inaugurada pelo Crá- ideal, um sistema abstrato e virtual, entidade autônoma, uma
tilo de Platão, vamos do pensamento para a linguagem, na pers- forma pura, neutra e dessubjetivada. "Unicamente [da língua]
pectiva inversa, cujo marco é o Ensaio sobre a origem das lín- é que cuidaremos, e se por acaso [...] pedirmos luzes ao estudo
guas, de Rousseau, vamos da linguagem para o pensamento. da fala, esforçar-nos-emos para jamais transpor os limites que
Saussure concebeu esse duplo corte, que instaura o campo separam os dois domínios" (SAUSSURE, 1916/1971, p. 28). O
da linguagem, como lugar de encontro entre o acústico e o vocal, objeto da "linguística propriamente dita" cede perante seu
o individual e o social, o som e a ideia, entre um sistema estabe- próprio ideal, e nesse mesmo movimento a fala surge como
lecido e sua evolução transformativa. Ou seja, "O conjunto glo- resto e impureza, um dejeto expulso pela própria operação que
bal da linguagem é incognoscível, já que não é homogêneo" constitui a língua.
(SAUSSURE, 1916/1971, p. 28). Este campo teórico interessa a Em face dos atributos de abstração, pureza e virtualidade da
muitas disciplinas, como Psicologia, Antropologia, Gramática língua, não devemos esperar achar a dimensão da subjetividade
normativa, Filologia, sendo impossível inferir uma unidade e integrada a tal abordagem 4 • Qualquer instância psicológica ou
constituir o objeto de uma ciência. Tributário da cena episte- subjetiva é, de fato, um fenômeno de fala: tanto as categorias de
mológica positivista do último quarto do século XIX, Saussure indivíduo e de ato individual quanto a de subjetividade, em suas
define um objeto autônomo, que opera como princípio de or- diversas acepções, são abordáveis pela.fala, lugar e posição de
dem e classificação, e assim constitui a especificidade e a razão onde se infere o sujeito. Diante do ideal de língua, o sistema de
de ser da Linguística: "[...] é necessário colocar-se primeira- signos, o sistema de valores puros deve ser compreendido tam-
mente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as bém como uma entidade virtualmente livre de subjetividade -
outras manifestações da linguagem" (SAUSSURE, 1916/1971, definível, para Lacan, pela posição do sujeito e suas proprieda-
pp.16-17). Separando língua e fala, Saussure separa o social do des elementares: divisão, negação, temporalidade, alienação,
individual; o sistemático, concreto e objetivo do acidental, abs- separação, afânise. Isso não significa que a subjetividade - en-
trato e subjetivo; o essencial do secundário; a forma da substân-
4 A única ressalva que introduziríamos a essa afirmação seria a emergência do sujeito da ciência
cia; enfim, o fato especificamente humano daquilo que não o é. na própria letra da teoria

14 I Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 115
tendida como modalidades históricas de individualização, prolegômenos sobre o modo em que as análises de discurso se
como mentalidade coletiva ou identificação imaginária - seja, posicionam, na geografia das ciências da linguagem e na topo-
ela mesma, descartada. logia da psicanálise.
Para Saussure, a língua é um sistema de signos, o principal Não existe uma concepção sobre o discurso ou sobre o sujei-
deles. Junto da língua, em um degrau um pouco menos elevado, to que unifique o campo 5• Cada abordagem em análise do discur-
localiza-se toda uma série de sistemas de signos - os rituais so produz dados, corpora característicos compostos pelos ar-
simbólicos, os diversos sistemas de sinais, os costumes, as for- ranjos linguístico-discursivos que melhor representam os fatos
mas de polidez, a própria escrita alfabética-, que são estudados sob análise. Dentre estes, as situações nas quais o poder se exer-
por uma disciplina geral, a Semiologia, definida como a ciência ce por meio de relações de linguagem são seus objetos mais
cujo objeto é "a vida dos signos no seio da vida social" (SAUS- chamativos - ou seja: o discurso em sala de aula, entre médico e
SURE, 1916/1971, p. 24). Voltaremos a nos referir a esta disci- paciente, entre mídia e consumidores, entre candidato e seus
plina semiológica idealizada por Saussure. O que importa aqui eleitores, entre patrão e funcionário. O discurso é um laço so-
é compreender que a língua encarna um duplo ideal de pureza e cial que não se reduz à soma das suas falas individuais, mas é
de hierarquia no vasto e intrincado fenômeno da linguagem hu- uma espécie de condição de possibilidade para um conjunto de
mana. A língua é essência e princípio de classificação; e, no do- enunciados possíveis. Cada dado ou material discursivo é, em
mínio semiológico, ela é o sistema principal, prima inter pares. sua estrutura mínima, uma composição de elementos linguísti-
Em decorrência dessa supremacia ou hierarquia teórica, a cos que comportam, pelo menos virtualmente, a emergência do
língua passa a ser concebida como um ponto de observação, lu- sujeito. Para a psicanálise de Lacan, a linguagem é condição do
gar de referência ou foco organizador a partir do qual se orde- inconsciente, mas também a referência que ela partilha com
nam e localizam as distintas concepções e dimensões dos fenô- outras disciplinas:
menos da linguagem.
A teoria da linguagem fornece o modelo para a epistemolo-
Uma Geografia dos Discursos gização da psicanálise, na medida em que varia e amplia a
denotação do que significa linguagem: meio intersubjetivo
Diversas concepções de discurso e de análise do discurso pa-
de reconhecimento (fala), sistema simbólico de determina-
gam tributo à partição língua/ fala. Do ponto de vista do corte ção (língua), suporte material de identidade (escrita), esva-
saussuriano, qualquer fato discursivo é um fenômeno de fala. O
discurso sustenta-se na língua, só existe no esteio dela; mas, por 5 Isso está nas antípodas de constituir um fator unüicador ou comum apontando, segundo certas
aplicações do teorema de Gõdel, para a impossibilidade de produzir um sistema teórico-meta-
assim dizer, rompe suas fronteiras. Referiremos, agora, alguns linguístico perfeitamente fechado, controlado e autoconsistente.

161 Análise Psicanalítica <leDiscursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 117
ziamento comunicativo representacional (matemática), por não dar lugar à dimensão do sujeito. O polo discursivo, pelo
esvaziamento do pensamento conceitual (lógica e topolo- contrário, distingue-se por abordagens interpretativas e trans-
gia) e criatividade imanente (a língua). A teoria do sujeito,
formativas, por uma prática teórica que supõe o solapamento e
ao contrário, provém de um modelo de contraepistemologi-
zação, na medida em que varia a incidência de seus atribu- constante rebaixamento da posição metalinguística, e por uma
tos refratários à representação: o tempo, a negatividade, abertura ao reconhecimento da dimensão do sujeito. Por exem-
sua objetalização (objeto a), sua paradoxalidade (divisão), plo, em certo ponto intermédio do continuum localizamos adi-
sua efetividade (corte). (DUNKER, 2009, p. 3) mensão especificamente linguística da enunciação, abordada
nas obras de Ducrot e Benveniste: "Aenunciação é este colocar
Para nos situarmos melhor na relação possível entre as dis- em funcionamento a língua por um ato individual de utilização"
ciplinas, imaginemos uma superfície que reúna os enfoques e (BENVENISTE, 1970/1974, p. 82). Trata-se do espaço enun-
abordagens mais típicos das ciências da linguagem, os concei- ciativo codificado linguisticamente em categorias como os pro-
tos e noções mais característicos, incluindo as diversas modali- nomes pessoais, as formas indiciais, os tempos verbais:
dades de análise do discurso: língua, gramática universal, texto,
enunciado, enunciação, comunicação, ato de fala, discurso. En- [...] a presença do locutor em sua enunciação faz com que
tre língua e fala, entre a pureza formal da língua e o magma cada instância de discurso constitua um centro de refe-
rência interno [que se manifesta] por um jogo de formas
substancial dos "fatos discursivos", imaginemos este conti-
específicas cuja função é de colocar o locutor em relação
nuum que teria em seus extremos os cortes mencionados aci- constante e necessária com sua enunciação. (BENVE-
ma: de um lado, a radical pureza formal da língua (polo linguís- NISTE, 1970/1974, p. 84)
tico ou semiológico-linguístico); do outro, o inconsciente en-
quanto acontecimento discursivo radical, discurso do Outro, Um pouco mais além, próximo do "polo discursivo", localiza-
encruzilhada de corpo e linguagem (polo discursivo). Cada en- mos a dimensão enunciativa-performativaque se configura pela
clave teórico ou conceito realiza um recorte-redução sobre o incidência do ato e do acontecimento (Austin, Pêcheux). A locali-
campo da linguagem e do discurso, introduzindo perspectivas zação de lugares contíguos, em contato recíproco, no espaço pla-
particulares. Ao fazê-lo, localiza-se mais ou menos próximo ou no do continuum, pode sugerir a existência de relações fluidas,
distanciado do "polo linguístico", ou mais ou menos próximo ou mas isso deve ser discutido, examinado em cada caso. Noções
distanciado do "polo discursivo". O polo linguístico caracteri- como as de discurso, sujeito e inconsciente, cada uma em sua es-
zar-se-ia por abordagens descritivas, tipológicas e explicativas, ,1.
pecificidade, têm alcances e modos de incidência particulares
por uma modalidade de enunciação teórica metalinguística e que, certamente, extravasam e atravessam transversalmente as

18 f Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas f 19
disciplinas e campos de saber, pois eles são coextensivos ao fenô- rentes perspectivas de estudo da linguagem conforme o ponto
meno da linguagem. Para cada disciplina há uma noção diversa de partida que tomam para deduzir as relações entre Real, Sim-
de discurso. Podemos perguntar em que medida a dupla sutura, bólico e Imaginário, conforme o esquema borromeano abaixo:
apresentada acima, reconhece a emergência de um sujeito do in-
consciente. O caso da análise do discurso francesa (Pêcheux) é
exemplar, na medida em que, do ponto de vista de sua aposta
epistemológica, propõe realizar a articulação de três regiões ou
campos de saber 6 que "são, de certo modo, atravessadas e articu-
ladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalíti-
ca)" (PÊCHEUX; FUCHS, 1975/1990, pp. 163-164). Coloca-se
assim a "transversalidade" do sujeito psicanalítico, cortando ou-
tros campos de saber. Pêcheux não conseguiu resolver essa ques-
tão do sujeito e na obra dele resta um enorme impasse.
Para Lacan (1965), o sujeito sobre o qual se opera em psica-
nálise é o sujeito da ciência. E o discurso da ciência caracteriza-
Imaginário Simbólico Real
-se pelo fracasso de seu esforço por suturá-lo. Essa afirmação
HermenêuticaBíblica GramáticadePort-Royal Lógicade Aristóteles
seria válida não apenas para os diversos ramos da ciência mo-
Semiologia LinguísticaEstrutural LógicaMatemática
derna, mas também para as disciplinas e saberes que se espe- (Saussure,Barthes) (Saussure) (Frege,Bourbaki)
lham num ideal da ciência. Uma maneira de representar as di- Teoriasda Comunicação AntropologiaEstrutural Formalismo
ferentes acepções de discurso que comparecem em nosso diá- (Jakobson,Bakhtin) (Lévi-Strauss) (Propp)
HermenêuticaCrítica Linguísticada Enunciação FilosofiaAnalítica
logo com a psicanálise consiste em perceber que entre as for- (Heidegger,Ricoeur) (Ducrot,Todorov) (Wittgenstein)
mas históricas de alienação do sujeito e a estrutura da lingua- Desconstrução Semiótica Arqueologia-Genealogia
gem há lugar ainda para o que não se inscreve nem em uma nem (Derrida) (Greimas) (Foucault)
Literatura-Comparada Semiótica GramáticaGerativa
em outra. É o que Lacan chama de Real, aquilo que é contorna- (Lukács) (Peirce) (Chomsky)
do e contido pelo discurso. Daí que possamos distribuir as dife- Análisedo discurso Análisedo discurso Análisedo discurso
(Fairclough,Halliday) (Landowski,Zilberberg) (Pêcheux,Authier-Revuz)
6 Tais regiões são: "L- o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas trans- Psicanálise(Lacan) Psicanálise(Lacan)
formações, compreendida aí a teoria das ideologias; 2.- a linguística, como teoria dos mecarusmos Psicanálise(Lacan)
(ChantalMouffe, (ErnestoLaclau,Pavón
sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo; 3.- a teoria do discurso, como teoria da (ZizekIan Parker)
determinação histórica dos processos semânticos" (PÊCHEUX; FUCHS, 1975/1990, p.163). JudithButler) Cuellar)

20 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 121
Lembrando que essa localização não pressupõe que as abor- que tomam parte numa conversação, ou, mais raro, uma troca
dagens se limitem a examinar exclusivamente os efeitos dos de escritos" (TRASK, 1993/2004, p. 84).
registros onde as localizamos. Trata-se apenas de uma espécie Temos aqui uma definição descritiva, em certo sentido pré-
de ponto de partida metodológico a partir do qual os outros re- -teórica, que enumera elementos que fazem do discurso um
gistros podem ser inferidos. Por exemplo, quando Lévi-Strauss fenômeno complexo, mas que não sai de uma visão estática, em
define as estruturas simbólicas, ele prescreve um lugar na es- termos de nível e unidade da fala/ linguagem. Um enfoque dis-
trutura para o "sujeito impossível" - portanto, para o Real-; ao cursivo supõe abordar e trabalhar as determinações (mate-
mesmo tempo, sua abordagem pretende explicar as variações riais) que incidem sobre certo material linguístico com o suben-
imaginárias dos mitos, suas paradoxalidades temporais, a par- tendido de que esse material é o suporte de um processo, acon-
tir de sua matriz simbólica. Ou seja, cada teoria poderia ser tecimento ou experiência de transformação - subjetivo, concei-
pensada como uma forma de inferir o Real, Simbólico e Imagi- tual, histórico. Esta seria uma tarefa elementar de uma prática
nário a partir de um grupo específico e epistemologicamente de análise do discurso: examinar os fundamentos e mecanismos
definido de fenômenos. linguístico-discursivos de um acontecimento ou experiência
transformativos.
Descrição e transformação As dimensões e alcances da transformação podem ser múlti-
Existem definições descritivas e operacionais de discurso plos. Um analista de discurso interessa-se por uma espécie de
que tentam oferecer uma visão abrangente, mas seu aporte é anatomia da transformação, e para isso deve familiarizar-se
muito limitado. Por exemplo, a tentativa tradicional de encami- com os principais mecanismos e recursos linguístico-discursi-
nhar a problemática do discurso como uma questão de nível e/ vos que podem introduzir variações e mudanças na situação
ou unidade de fala ou de linguagem. Em continuidade com uma enunciativa, na interlocução, no estatuto de um texto ou na pró-
visão da organização da língua em estratos, o discurso é conce- pria língua- enfim, transformações no sujeito e no mundo. Pro-
bido como os elementos de uma linguagem tomados em unida- curando os recursos elementares, ele pode voltar-se para ades-
des maiores do que a sentença (gramatical), a proposição (lógi- crição de como as transformações são apreensíveis, por exem-
ca), a frase e o enunciado (linguística) ou a superfície e o plano plo, na variância de modos discursivos, entre verbos como dever
(topologia). Igualmente, a questão da unidade está em jogo na (modo da necessidade) e verbos como poder (modo da possibi-
seguinte definição de discurso: "Qualquer fragmento conexo de lidade). Seu interesse recai sobre a intenção de personagens
escrita ou fala. Um discurso pode ser produzido por uma única (tentar, premeditar, projetar), sua ligação com o resultado (conse-
pessoa que fala ou escreve, ou também por duas ou mais pessoas guir, alcançar, obter) ou a maneira (esforçar-se, ousar, ser hábil)

22 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalilicade Discursos: Perspectivas Lacanianas l 23
de realizar um objetivo. Sua atenção concentra-se em determi- o aspecto mais significativo resulta da ética transformativa que
nativos de aspecto (começar, terminar) ou de estatuto (positivo, presidiu essa proposta, articulada à prática política e militante
negativo, oposto) (DUCROT; TODOROV, 1972/2001). Igual- marxista - no Partido Comunista Francês (PCF) - de Michel
mente, os ressoantes exemplos do poder transformativo inscri- Pêcheux e de outros autores. Em um contexto de dura luta polí-
to nas palavras presentes nas análises da filosofia da linguagem tico-ideológica (plena Guerra Fria), a ética transformativa da
ordinária, descrevendo a dimensão performativa da linguagem AD visava uma questão absolutamente crucial e iniludível para
(teoria dos atos de fala, de John L. Austin). o marxismo - a relação entre o sujeito-militante e a prática
Ao querer introduzir ou registrar mudanças ou novas pers- político-ideológica (o problema da "consciência político-ideo-
pectivas em um modo de discurso, uma inflexão de gênero lite- lógica") -, para criar as condições de surgimento do sujeito re-
rário ou uma determinada perspectiva de mundo, há um traba- volucionário. Segundo relata Pêcheux (1975/1982, p. 293), a
lho de invenção e futuros possíveis. Análises minimalistas ou partir de "uma espécie de 'Tríplice Aliança' teórica que, na
mais ou menos abrangentes são, todavia, decisões que já fazem França ao menos, se configurou sob os nomes de Althusser, La-
parte da construção de uma análise do discurso. Como a câmera can e Saussure, no decorrer dos anos 60", eles conceberam a
de cinema que, às vezes, escolhe planos abertos e os contrasta análise do discurso como uma verdadeira intervenção político-
com tomadas fechadas, a escolha do escopo do discurso já faz -militante no marxismo e no PCF - como um elemento que po-
parte de seu problema metodológico. Ler o discurso em um close deria preencher um vazio teórico sobre o lugar do sujeito na
reading, fechado sobre o texto de um autor ou de uma obra, pode história e intervir e corrigir diversos desvios práticos (entre
ser uma estratégia tão iluminadora quanto afastar-se do texto outros, o voluntarismo militante e o burocratismo, a "pedago-
para uma tomada histórica em arco longo, ainda que não exaus- gia do proletariado").
tivo, como certas análises foucaultianas sobre a invenção das A ética da psicanálise possuiria assim uma espécie de "ho-
ciências humanas no século XVII e XIX, ou sobre a história da mólogo político" quando se trata da abordagem dos discursos.
loucura desde a Idade Média até a alta modernidade. Isso nos levaria a postular que, do ponto de vista de sua localiza-
A ênfase ou incidência transformativa da análise do discur- ção metodológica, a psicanálise, como método de investigação,
so francesa (Pêcheux) pode ser referida a processos de longo estaria incluída em uma dessas formas "engajadas" da análise
alcance ou a acontecimentos pontuais, indistintamente 7; porém, do discurso. Essa é a maneira mais simples e mais concisa de
entender o programa estabelecido por Lacan como o "retorno a
7 Porém, o contraste entre a Análise Automática do Discurso (AAD-69) -procurando sistematizar
corpora massivos através de programas informáticos -, e a análise mirumalista do enunciado "On Freud", bem como seu vínculo com o "retorno a Marx" no cam-
a gagné!"("Ganhamos!"),emPêcheux (1998/2002), é um gesto redutor, que enxuga, pleno de con-
sequências teóricas e metodológicas. po da filosofia e das ciências sociais.

241 Amili.se Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaniana.s l 25
Sabe-se que existe um paralelismo expressivo no modo que, instância do sujeito - estão "incluídos na conjuntura'', sofrem as
do ponto de vista formal, desenvolve-se o saber no marxismo e determinações do inconsciente etc. Em psicanálise, Lacan refere
na psicanálise: uma relação transferencial com a figura sobres- a "topicalidade" através de um neologismo, ex-ti midade, aludindo
salente do fundador (Marx, Freud), cuja obra é objeto de uma à exterioridade ou exclusão interna entre sujeito e objeto dese-
sequência de movimentos de "retorno a .." (FOUCAULT, nhada por uma banda de Moebius. Esse comprometimento radi-
1966/1986); o fato de a verdade emergir através do erro, do tro- cal, esse modo de inclusão e determinação do sujeito na/pela prá-
peço (contrariamente à ideia corrente de uma externalidade tica de um saber "tópico" é o lugar estrutural de uma ética da
entre erro e verdade); o caráter tópico do pensamento, de acordo transformaçãoª. No tratamento psicanalítico, a topicalidade -
com o qual o "objeto" mesmo da disciplina é a transformação do fundamento estrutural da ética transformativa - se faz presente
objeto. Segundo Zizek: na relação não anônima de reatualização e repetição chamada
"transferência''. A ética transformativa supõe que, de alguma for-
[...] no marxismo e na psicanálise encontramos o que Al- ma, o analisante realize sua experiência com o inconsciente, re-
thusser chama de topique, o caráter tópico do pensamento conhecendo desejos, subjetivando suas contradições, desfazendo
[...] a teoria sempre é parte da conjuntura na qual intervém.
alienações e, como que por acréscimo, prescindindo de sintomas.
O "objeto" do marxismo é a sociedade; porém, "a luta de
classes na teoria'' significa que o tema fundamental do O conceito central da ética transformativa, no caso da psicanáli-
marxismo é a "força material das ideias", vale dizer, o modo se, foi formulado por Lacan na figura do desejo de psicanalista
pelo qual o marxismo qua teoria revolucionária transforma Se, como afirmamos acima, existe uma prática de análise do
seu objeto (provoca a emergência do sujeito revolucionário discurso já contida no método psicanalítico, qual é o interesse clí-
etc.). Isso é análogo da psicanálise, que tampouco é sim-
nico que sustenta tal prática? Tal interesse remonta ao fato de
plesmente uma teoria de seu "objeto" (o inconsciente), se-
não uma teoria cujo modo intrínseco de existência supõe a que a experiência psicanalítica lida com as narrativas de sofri-
transformação de seu objeto (através da interpretação na mento, com as nomeações do mal-estar ou com as metáforas do
cura psicanalítica). (ZIZEK, 1994/1996, pp. 270-271) sintoma (DUNKER, 2015) de maneira não neutra. Há uma con-
sideração de eficácia que diz respeito à insuficiência de apresen-
A topicalidade da teoria-pensamento pressupõe não apenas tar ao paciente a semiologia de seus sintomas, descrevendo as
que o "objeto" da disciplina sofre uma transformação, mas tam- regras de sua composição ou alógica de seus atos de nomeação
bém que o processo ou objeto da transformação "inclui'' o sujeito.
8 Tal analogia ou aproximação entre a psicanálise e o marxismo é formal, estrutural. A concepção
Os "praticantes" da disciplina - o analista e o analisante, em psi- de sujeito, aquilo que se coloca em jogo na transformação, em cada campo, é diferente. A teoria
de Pêcheux é um testemunho dramático da tensão e impasse que pode chegar a colocar-se entre
canálise; o militante, o filósofo etc., no marxismo, "encarnando" a consciência (revolucionária, militante) e inconsciente (psicanalítico).

26 [1\.nálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 27
do mal-estar. Por outro lado, há uma consideração de fundamen-
to. O psicanalista só faz o que faz porque lida com a linguagem, e 1 ciência que estude a vida do signo no seio da vida social; ela
constituiria uma parte da Psicologia Social e, por conseguinte,
os sintomas são reversíveis justamente por possuir tal estrutura. da Psicologia Geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego
Especialmente a partir de Lacan, a psicanálise recorre ao campo semeion, "signo")" (SAUSSURE, 1916/1971, p. 24).
da linguagem como o alicerce ou esteio de uma espécie de "ciên- A semiologia é o começo da clínica. Nela define-se o escopo e
cia de base" na qual se pode demonstrar o funcionamento do in- o campo dos signos patológicos, dos sintomas, dos quadros, das
consciente, as operações de divisão e alienação do sujeito, a re- síndromes. Para a psicanálise, essa psicopatologia encontra-se
petição da pulsão. A chave dessa questão foi condensada por na análise dos sonhos, dos chistes e dos atos falhos. Como ante-
Lacan em sua máxima sintética: o inconsciente se estrutura como cipamos acima,A interpretação dos sonhos, O chiste e sua relação
uma linguagem. com o inconsciente e A psicopatologia da vida cotidiana podem
Um capítulo decisivo da constituição desse fundamento lin- ser entendidos como uma prática linguístico-discursiva homó-
guageiro foi a composição do que se pode chamar de semiologia loga a uma análise do discurso, fundante da semiologia da clínica
da clínica psicanalítica, constituindo uma importante fonte de psicanalítica. É a partir da semiologia, entendida como descri-
recursos tanto para a psicanálise como método de tratamento ção das diferentes gramáticas diagnósticas, dos processos de
quanto para a psicanálise como método de investigação. A psi- reversibilidade terapêutica do sintoma, do chiste como processo
canálise é uma experiência de cura, cuja referência é a verdade social, dos processos primários de deslocamento e condensação,
do desejo, e um conjunto de técnicas de palavra, cuja referência que se funda o que se pode chamar de clínica psicanalítica
é a retórica; mas ela é também um capítulo da história da clínica Se o lema "o inconsciente é estruturado como uma lingua-
no Ocidente, mais precisamente uma subversão da clínica mé- gem" condensa a questão do fundamento linguageiro da psica-
dica (DUNKER, 2012). Tal subversão implica a transposição do nálise, um outro lema, "O inconsciente é o discurso do Outro",
olhar, como fundamento da perspectiva clínica na medicina, dá embasamento à dimensão sócio-discursiva da psicanálise.
para a escuta, como fundamento da clínica psicanalítica. Com De acordo com o psicanalista francês: ''.Aquilode que se trata
isso a semiologia psicanalítica deixa de se estruturar por refe- nos sintomas é da relação do sistema integral da linguagem, sis-
rência às perturbações do organismo - como prescrevia o para- tema das significações das relações inter-humanas como tais"
digma anátomo-patológico de Claude Bernard - e passa a ser (LACAN, 1953/1986, p. 32).
regulada pela semiologia como ciência geral da linguagem, O "sistema integral da linguagem" e o "sistema das significa-
compreendida como sistema de signos, tal como postularam ções das relações inter-humanas", tal como aparecem nessa cita-
Saussure, Peirce ou Humboldt: "Pode-se, então conceber uma ção, reunidos como uma unidade ou problemática compreensi-

281 Análise Psicanalilica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 29
va, não são objeto particular nem das ciências da linguagem nem larmente na perspectiva de desenvolvimento anunciada nela -
das ciências sociais: nessa área lnbrida encontraria também seu não teve continuidade, ficando, em grande parte, estanque.
fundamento uma análise do discurso de matriz lacaniana Cabe destacar o livro Psicanálisee análise do discurso:o acon-
Com um nível de implicação análogo podemos acompanhar tecimentona estrutura, de Nina Leite, publicado em 1994 (LEITE,
todos os desdobramentos de Lacan em sua deriva estruturalis- 1994). Esse foi um trabalho pioneiro no que diz respeito a uma
ta marcada pelos empréstimos de Lévi-Strauss; do formalismo discussão sistemática e informada da relação entre análisedo dis-
tomado de Jakobson; do dialogismo emprestado de Benveniste; curso e psicanálise; e, ao mesmo tempo, em face do rumo adotado
do logicismo retirado de Frege e da topologia de Bourbaki- este pelos outros pesquisadores em análisedo discurso,constitui uma
ramo tardio da matemática. Contudo, se a semiologia e a lin- exceção. Pautado na introdução de dois conceitos-chave, o sujeito
guística nos permitiriam pensar o significante em sua autono- e o Real, Nina Leite mostrou que a análisedodiscursonão era ape-
mia simbólica, e se a teoria social das trocas simbólicas nos per- nas uma técnica que poderia ser mais ou menos útil para a análise
mite distinguir a relação imaginária e simbólica dos atos de re- de processos sociais como a ideologia; sua discussão metodológi-
conhecimento, é só com a teoria da letra que se poderá pensar a ca e histórica mostrou também como a própria análisedo discurso
linguagem no Real. É assim que nasce a teoria lacaniana dos havia suprimido a força da psicanálise em suas origens.
quatro discursos como inferida dos impossíveis que caracteri- Na década dos anos 1990 começaram a chegar também as
zam o mal-estar (educar, desejar, analisar, governar). Em sua primeiras traduções de Zizek, as combinações com a teoria das
maturidade, a teoria lacaniana dos discursos é uma maneira de instituições (GUIRADO, 2000), a chegada do pensamento de
pensar relações entre Real, Simbólico e Imaginário. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (TORFING, 1999). A isso se
combinou os desenvolvimentos em semiologia (BEMDAS,
Perspectivas lacanianas 2000) e semiótica psicanalítica (CHALUB, 1998). Hoje esse
No Brasil, particularmente a partir do trabalho de E. Orlandi, campo se desdobrou em uma tradição de pesquisa para a qual
na Unicamp, a obra de Michel Pêcheux e de outros autores vin- tentamos contribuir.
culados à escola francesa de análise do discurso- incluindo auto- Assumimos neste livro que a pesquisa em psicanálise pode
res como Authier-Revuz, Maingueneau etc. - tem tido uma difu- ser mais bem fundamentada e justificada em termos universitá-
são e desenvolvimento expressivos. Porém, a relação de abertura rios se a consideramos, ela mesma, como uma forma de análise
em face da psicanálise 9 - presente na obra de Pêcheux, particu- do discurso;e se, ao mesmo tempo, praticarmos um tipo de refle-
xão metodológica necessária para empregar noções provenien-
9 Pêcheux e Fuchs (1975/1990) tes das ciências da linguagem. Como já foi argumentado acima,

30 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análi,;e Psieanalitica de Di,;cursos: Perspectivas Lacanianas J 31
não foi isso, afinal, que Lacan realizou ao trazer para a psicanáli- baixamento, desestratificante e des-hierarquizante sobre a
se noções e conceitos que lhe eram inicialmente estranhos, como composição de métodos e conceitos, em geral, e sobre a relação
significante, letra, enunciação, discurso e dizer? Contudo, isso entre método e objeto discursivo, em particular.
requer uma consideração sobre o lugar da psicanálise na pesqui- Igualmente, e de modo alternante a esse movimento de alie-
sa universitária. A composição com os conceitos e métodos pro- nação e subordinação ao método ou objeto sob análise, é decisivo
venientes de outras disciplinas e saberes sempre inclui um mo- que se explicite e justifique a escolha das perspectivas e opera-
mento (lógico) de alienaçãodo raciocínio teórico da psicanálise dores de leitura levados em conta Finalmente, é preciso expli-
na outra disciplina, necessário para explorar a possibilidade de citar o regime de covariâncias e de diferenças que se pretenderá
tal composição, que se revelará num tempo "só-depois". Mas empregar na composição de cada montagem metodológica de
esse tipo de alienação, estritamente necessária, não deve ser uma análise do discurso de orientação lacaniana.
confundida com a crença de que tal composição poderia ser ga- Para fazer frente a esses critérios, o presente livro apresentará
rantida realizando um mero "empréstimo" ou "aplicação" de téc- quatro tipos de análisedo discursoque encontramos em Lacan:
nicas, na qual o corpo das disciplinas não se veria afetado. 1) O modelo estrutural baseado na análise da estrutura dos mi-
Uma forma tradicional de emprego da psicanálise para ana- tos, formulado inicialmente por Lévi-Strauss;
lisar discursos, textos e obras de cultura foi realizando uma es-
pécie de aplicação, ao modo de um saber constituído para fazer 2) O modelo conceitual baseado na análise do significante em
a análise de personagens literários, para subsidiar psicobiogra- sua dupla articulação sincrônica e diacrônica, derivado das
fias, funcionando como narrativa-mestre, metalinguagem ou análises de Saussure;
como hermenêutica de conteúdo, sempre primando por uma 3) O modelo topológico do grafo do desejo,cuja referência maior
espécie de soberania e autonomia da psicanálise, quer em rela- é a concepção dialética do desejo e da demanda combinada
ção a outros métodos, quer com relação ao objeto mesmo - quer, com oposições estruturais como significante/significado,
ainda, sobre a experiência estética. Entendemos que, para evi- enunciado/enunciação;
tar essa dificuldade, é preciso construir o método de análise
4) O modelo representado pela teoria dos quatro discursos, que
discursivo de cada pesquisa de modo que este eleveseu objetoà
inova ao considerar a dimensão do gozo e da economia de po-
dignidade de coisa,conforme a definição lacaniana de sublima-
der, no interior dos diferentes tipos de laço social.
ção;ou seja, que ele subordine seus meios à experiência que ele
pretende investigar, deixando-a falar e reconhecendo o percur- A apresentação sintética desses quatro modelos será prece-
so de sua verdade. Esse modo de proceder tem um efeito de re- dida por uma localização das diferentes formas de análise do dis-

32 IAmili.se Psicanalíticst de Di.scun;os: PerspectivctS Lacanianas Amilise Psicanalítica de Di.scursos: Perspectivas Laeanianas 133
curso, suas condições e exigências, bem como a justificativa de Excurso: psicanálise e ciência
por que a psicanálise, como método de investigação, pode ser ca- O leitor perceberá que tomar a psicanálise como um método
racterizada como uma análise do discurso. Para tanto, apresen- de análise do discurso toma agudo e decisivo estabelecer que tipo
taremos alguns conceitos estratégicos para escolhas metodoló- de discurso é a própria psicanálise. Por isso, este livro pode ser to-
gicas com as quais usualmente nos encontramos na pesquisa mado também como um trabalho de introdução à epistemologia
Examinaremos com especial detalhe aquilo que caracteriza da psicanálise.Nele se retomará o extenso e já vigoroso debate so-
uma análise do discurso de orientação lacaniana, nesse contex- bre a cientificidade da psicanálise, sua implantação nas ciências
to, que é a necessária implicação do sujeito. Considerando este humanas como antifilosofia ou antipsicologia e, ainda, sua crítica
como o ponto de maior complexidade e especificidade do méto- do conhecimento como dispositivo de objetivação (alienação).
do psicanalítico, propomos uma quinta alternativa de método, a Serão abordados impasses epistemológicos mais ou menos clás-
topologia histórica, desenvolvida no livro Estrutura e constitui- sicos, tais como a teoria de verdade e a concepção de sujeito envol-
ção da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de vidas na psicanálise, bem como a relação peculiar que ela desen-
cura, psicoterapia e tratamento (DUNKER, 2011). volve entre o conteúdo de suas teses e a forma de sua exposição.
Junto à inscrição do sujeito como condição de leitura surge Isso se deve ao fato de que, por psicanálise, deve-se entender
outro critério de método, que podemos chamar de crítica da tanto uma prática quanto um método. E ainda que Freud acha-
metalinguagem. Crítica que se exprime em diferentes momen- masse de doutrina ou teoria, temos em Lacan uma quarta defi-
tos da obra de Lacan, não apenas como uma posição negativa nição possível da psicanálise, a de que ela é um discurso. Muitos
diante da possibilidade de afirmar o sentido de sentido (the mea- conhecem a defesa psicanalítica contra a sua incorporação
ning of meaning), mas como uma declaração positiva de que como modalidade de expressão artística, filosófica, religiosa ou
esta corresponde a certo modo de relação com a verdade a que a política, mas poucos lembram que essa asserção tem um preço
psicanálise não pode renunciar. Ele não é apenas um princípio que nos toma tributários do campo da ciência:
metodológico, mas ético. A posição daquele que se coloca fora
da linguagem, em posição angelical e não intencionada, para Opino que a psicanálise é incapaz de criar uma visão de
mundo particular. Não lhe faz falta; ela forma parte da ciên-
descrever - com precisão e sem interferência - os discursos
cia e pode aderir-se à visão de mundo científica Mas esta
desconhece, intencionalmente, sua participação em um dis- merece este nome gtandiloquente, pois não contempla o
curso; e isso seria incompatível com um dos que critérios que todo, é demasiadamente incompleta, não pretende abso-
mais fortemente caracterizam a análise do discurso psicanalíti- lutismo nenhum, nem formar um sistema. (FREUD,
camente orientada, ou seja, a transferência. 1932-36/2004)

341 Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 135
Ou seja, a psicanálise não é uma visão de mundo porque ela 1) Uma forma de conhecimento caracterizada por propriedades
assume e se inclui na visão de mundo proposta pela ciência, intrínsecas de verificação, reprodução e transmissão, caracte-
desde que não se entenda a ciência como um sistema completo. rizada por uma linguagem conceitual e por seu uso regulado;
Ou seja, o critério de científicidade, um critério que resiste ao 2) A prática de um método cujo resultado pode ser comparado
tempo, não é o acúmulo triunfal de saber - mas, o contrário, a e acumulado ao longo do tempo, tendo em vista a descrição
capacidade de errar, de reinterpretar e criar problemas. Essa é a de regularidades segundo certos critérios de validade, cau-
diferença entre ciência e metafísica: a ciência se equivoca e é salidade e verdade;
capaz de reconhecer isso.
3) Uma determinada modalidade de consenso, disposição ou
Contudo, desde Freud, diferentes transformações ocorre-
laço social para produzir um tipo de saber partilhado e reco-
ram no interior da psicanálise à medida que diferentes discipli-
nhecido por comunidades específicas ou instituições forma-
nas científicas se afirmaram como um ideal, suporte ou con-
das por cientistas.
traideologia para a fundamentação da psicanálise. Alguns
exemplos discursivamente verificáveis: o desvio regrado na tra- Examinando rapidamente alguns acontecimentos marcan-
dução imposta por Strachey; a absorção da psicanálise pela psi- tes na história das relações entre ciência e psicanálise, veremos
quiatria americana, a partir de Adolf Meyer; o programa da es- como essas três acepções de ciência se intercalam na gênese
cola psicossomática de Chicago; a neuropsicanálise de Peter dos argumentos.
Fonagy e Mark Solms. Em todos os casos, temos "ajustes" prati-
cados no interior da psicanálise em nome de seu passaporte de 1784 I O rei Luís XVI nomeia a comissão mista da Academia
entrada no discurso das ciências biológicas. Real de Ciências e da Sociedade Real de Medicina para investi-
Lacan mostrou, de inúmeras maneiras, que a concepção de gar as curas ocorridas por meio do magnetismo animal. A comis-
psicanálise é historicamente covariante com a concepção de são -formada por cientistas como Lavoisier, Benjamin Franklin,
ciência. Isso implicou deslocar fundamento epistemológico da Guillotin, Bailly e Jussieu - terminou com a impressão de oiten-
psicanálise das ciências biológicas para as ciências da lingua- ta mil volumes, nos quais os partidários de Mesmer abjuravam a
gem. Mas, ao mesmo tempo, ele tinha de defender que a ciência existência das curas e da crença no magnetismo. Mas um olhar
da linguagem - e não as ciências humanas, em geral - incorria atento aos autos do processo mostra que Jussieu e tantos outros
em certos problemas de autojustificação. confirmavam o valor terapêutico da técnica, não obstante des-
Contudo, há três maneiras muito distintas que se revezam cartassem sua explicação teórica (CHERTOCK; STENGERS,
no entendimento do que podemos chamar de ciência, ou seja: 1989/1990). Vê-se assim que a discussão sobre a científicidade

36 IAnáli.se Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Di.scursos: Perspectivas Lacanianas l 37
da cura pela palavra se divide, desde a sua origem, em sua dimen- cessos mentais, não intenções significativas ou ativas. O relato é
são terapêutica (método de tratamento) e de pesquisa (método um análogo da mente, não o desdobramento de uma trama, daí
de investigação), incidindo uma parte considerável das objeções que a psicologia seja um discurso em terceira pessoa que pressu-
à ligação teórica entre um e outro. põe uma ontologia de terceira pessoa A psicologia deve se cons-
tituir como ciência equivalente a outras ciências fundadas em
1928 I Georges Politzer - em sua Crítica dos fundamentos da psi- metodologias e ontologias semelhantes. A psicologia é basica-
cologia (1936/2001) - afirma que a psicanálise é, em parte, uma mente uma teoria sobre o funcionamento abstrato, universal e
psicologia concreta, quando aborda os fatos da vida em estrutura impessoal da mente. Se essa concepção de psicologia se encon-
de drama; e, em parte, uma psicologia acadêmica, quando se vale tra na metapsicologia, por exemplo, no Capítulo VII de Interpre-
de um vocabulário conceitual baseado em processos, represen- tação dos sonhos (FREUD, 1900/1988), uma psicologia muito
tações e funções mentais. A psicologia acadêmica postula que o mais crítica encontra-se nas análises dos sonhos que Freud
fato psicológico é, em última instância, elementar, atomístico e apresentou antes disso.Nelas o fato psicológico é a trama da vida
imediatamente acessível à consciência A ligação entre os fatos de significações do sujeito concreto. O teatro, a literatura, o mito
elementares é mecânica (automática), fisiologicamente ou são as melhores expressões dessa trama, que deve ser abordada
adaptativamente explicável e causal A observação controlada, pelo método interpretativo ou compreensivo. O fato psicológico
assim como a auto-observação, é fonte de conhecimento cujo ob- é apreendido de forma mediada pela história, pela linguagem,
jeto é o comportamento. Ela admite a existência de uma vida in- pelo pensamento, pelos símbolos. A subjetividade é um fato sin-
terior, no contexto de um dualismo da natureza humana O fato gular e compartilhado; a vida exterior não é um reflexo deforma-
psicológico resulta de processos, e não de atos de pessoas con- do da vida interior. O dualismo não é ontológico, mas uma ex-
cretas, e o método deve comportar a abstração desses processos. pressão do conflito, condição da subjetividade humana, para a
O psicólogo é, antes de tudo, um esteta: um observador em posi- qual a alteridade é parte constituinte da subjetividade. Como o
ção privilegiada. O eu é um mero centro funcional do indivíduo, fato psicológico resulta do ato de pessoas concretas, o método
um sintetizador de funções abstratas (quimismo mental). É pos- deve comportar análise de situações concretas, e o psicólogo é,
sível e desejável uma representação espacial desses processos. sobretudo, afetado pela situação que estuda. Não há conven-
Para tanto, a psicologia acadêmica postula a convencionalidade cionalidade de significação, mas uma pirâmide invertida que
do significado nos relatos, bem como a generalização e impes- expressa a contínua individualização da significação, particula-
soalização do relato. Para ela, a linguagem é mera denotação ex- rização do sentido e singularização do relato. A linguagem é pre-
pressiva da vida interior, e sua significação é relacionada a pro- ferencialmente conotativa, um fato nem exterior nem interior,

38 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 139
posto que as significações são equivalentes da intencionalidade. sobre os menos favorecidos. Contudo, para Wittgenstein, essa
A linguagem não serve apenas para representar, mas para fazer não é uma verdadeira explicação:
no interior de uma trama que tem lógica própria. A psicologia
é um discurso em primeira pessoa, que trabalha com uma onto- Se não for causal como saber que é correta Você diz: "sim
é justo". Freud transforma a piada em uma forma diversa,
logia de primeira pessoa, e deve se constituir como campo do
reconhecida por nós como uma expressão de encadea-
saber, epistemologicamente em condição precária, mas com mé- mento de ideias que nos levou de um extremo ao outro da
todos e ontologia adequados à primeira pessoa A psicologia é ba- piada É um modo inteiramente novo de exprimir uma ex-
sicamente uma práxis, não apenas teoria ou technê (Aristóteles). plicação correta. Um modo que não concorda com a expe-
riência, mas é aceito. (MONK, 1993, p. 363-364)
1938 1 Gaston Bachelard publica A psicanálise do fogo, preten-
dendo realizar uma reforma do espírito científico começando Para Wittgenstein, esse é o tipo de explicação que se deseja
pela psicanálise do conhecimento: "Sob a imagem a psicanálise em estética, mas não em ciência, pois ele não estabelece rela-
procura a realidade, esquece a pesquisa inversa: sobre a realidade ções entre causas, mas explicita relações das quais não havía-
buscar a positividade da imagem" (BACHELARD, 1949/2008, mos nos dado conta - ou seja, ela mostra, mas não demonstra.
p. 24). Bachelard inspira a epistemologia histórica francesa de
Canguilhem, Cavaillés e Foucault. Observa-se assim como a 1963 1Karl Popper publica Conjecturas e refutações atacando o
psicanálise infiltrou-se como crítica da psicologia e como parte núcleo de verificabilidade e de refutabilidade da psicanálise
integrante da epistemologia dos saberes científicos ao mesmo (POPPER, 1963/1972). Segundo ele, haveria uma espécie de ex-
tempo que era questionada por estes. cesso de confiabilidade das ilações psicanalíticas porque elas
negociam a interpretação dos fatos segundo as conveniências de
1939 ILudwigWittgenstein, em seu Livro azul comenta o chis- suas demonstrações, produzindo uma "distorção convenciona-
te "Ele [o tio rico] me tratou como um seu igual, bastante fami- lista", que a posteriori confirma a teoria reduzindo progressiva-
lionariamente", examinado por Freud (1905/1988) em O chiste mente seu teor de cientificidade. Desta feita, há uma correção
e sua relação com o inconsciente, para demonstrar que o riso inerente ao reposicionamento dos fatos que impede encontrar-
provém do enlaçamento entre duas cadeias de pensamento. A mos um acontecimento que refute a teoria. Por outro lado, a
primeira (enunciado) aponta para o acolhimento igualitário do psicanálise possui baixo poder de previsibilidade porque não
tio e a segunda (enunciação recalcada), para a condescendên- deixa claro o que seria "proibitivo" ou vetado de acontecer, o
cia do homem mais rico, que goza de sua própria benevolência que reforça a irrefutabilidade. A evidência confirmadora, racio-

40 j Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 41
cínio mais utilizado por Freud em suas argumentações, é de lise como método de tratamento permanece vivo. Seguiu-se
baixo indiciamento científico, segundo Popper. mais recentemente uma série de pesquisas científicas e meta-
-análises, mostrando como a "psicoterapia psicodinâmica de
1984 1 Adolf Grünbaum publica The foundations of psychoa- longo prazo" (LEICHSENRING RABUNG, 2008) apresenta
nalysis, questionando o método clínico de validação, mas ao efeitos mais consistentes (HUBER et al., 2012), mais perma-
mesmo tempo descarta as objeções de Popper. Aqui o ponto é a nentes e mais abrangentes que a maior parte das psicoterapias
natureza da eficácia terapêutica da psicanálise e seu argumento conhecidas (DOIDGE, 1997). Essas pesquisas utilizam méto-
de que a psicanálise é eficaz para remover sintomas porque leva dos estatísticos complexos, capazes de incorporar dados obti-
o paciente a encontrar as causas, motivos ou razões de tais sinto- dos por meios e modalidades de apresentação muito divergen-
mas em traumas e conflitos experimentados no passado. No tes entre si. Nessa via, o problema se desdobra indefinidamente
fundo, a objeção de Grünbaum aponta para uma espécie de falá- para a comparação entre tipos de patologias, diferença para
cia argumentativa da psicanálise. Baseia-se no argumento de adultos ou crianças (FONAGY;TARGET, 1996), contextos cul-
adequação (tally argument) entre as falas do psicanalisante e as turais e institucionais (CANTIN, 1999), extensão e qualidade
declarações do psicanalista de tal forma que o círculo de interre- da experiência do psicanalista, linhagens e sublinhagens psica-
missões de significação não pode ser rompido: opsicanalista terá nalíticas. Para todos esses casos há pesquisas que comprovam a
sempre razão. O efeito terapêutico adviria da crença nas pala- eficácia do tratamento psicanalítico. Note-se que esses estudos
vras do terapeuta, equiparando a psicanálise com o efeito place- não comprovam a cientificidade da psicanálise, mas a sua eficá-
bo, por um lado, e com as técnicas de sugestão, por outro. As con- cia. Um xamã amazônico que utiliza plantas mágicas que con-
firmações podem ser indefinidamente adiadas e remetidas a não têm princípios ativos insabidos para o próprio agente da cura
aceitações transferenciais, uma vez que não existem confirma- não está praticando ciência, mesmo que ele seja extremamente
ções independentes nem provas extraclínicas dos achados psi- eficaz. A eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1953/1988) é um
canalíticos: ''Na ausência deste substituto, a descontaminação fenômeno interveniente na cura, assim como o efeito placebo;
epistêmica da massa das produções do paciente no divã, relati- porém, nenhum dos dois é um argumento de cientificidade,
vamente aos efeitos sugestivos das comunicações do analista, mas sim de efetividade técnica. A cientificidade é um atributo
parece inteiramente utópica" (GRÜNBAUM,1984, p. 84). do método; a efetividade, um predicado da técnica.
Examinando o escrutínio epistemológico pelo qual a psica-
Tomando o debate dos anos 1930 como referência, vê-se, em nálise passa há mais de um século, percebe-se que as críticas se
primeiro lugar, que o tema da prática ou da eficácia da psicaná- repetem, oscilando entre certas propriedades circulares, fala-

42 1 Análise Psicanalílica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 43
ciosas e irrfluenciadoras, presentes no uso da linguagem, e as por algo que, em princípio, é uma virtude - a saber, a diversida-
propriedades empíricas, objetivadoras ou verificáveis fora da de de entendimentos e de leituras, que caracteriza a teoria psi-
linguagem. Ou o método psicanalítico é ineficaz, ou sua eficácia canalítica como uma teoria de baixos teores de consenso. Ou
não pode ser universalizada, ou ele não pode ser impessoalmen- seja, quando se afirma a a-cientificidade da psicanálise - para
te reproduzido. Em outras palavras, ou o método psicanalítico retomar uma antiga expressão de Joel Dor - é preciso produzir
não é científico, ou ele não é um verdadeiro método, ou a teoria "metodologicamente" uma unidade do que nossa comunidade
de onde ele procede não é consequente com este método. Argu- científica chama de psicanálise, cujo poder de representativi-
mentamos, neste livro, que essa cascata de objeções talvez pos- dade é tão redutivo quanto uma redução operacional de concei-
sa ser mais bem compreendida como derivando de certas pre- tos. Algo semelhante acontece quando se pensa em divisões
concepções, eventualmente insuficientes ou demasiadamente como o doutrinal de ciência (moderna) e o ideal de escrita pós-
parciais, para interpretar as relações entre linguagem e sujeito, -científico do último Lacan (MILNER, 1995/1996).
de acordo com as exigências epistemológicas próprias da psica- O terceiro nível de consideração do problema é a crítica po-
nálise, como método de tratamento e investigação. lítica ou ética do que vem a ser o estado atual da ciência em sua
Essa crítica de abordagem "dualista", inaugurada por Polit- organização disciplinar. Aqui o argumento se divide entre os
zer para a epistemologia da psicanálise, permanece presente. que advogam a extraterritorialidade da psicanálise, baseada na
Passando pelo dualismo causalidade ou compreensão, descrito irredutibilidade ética de seus procedimentos, e os que refutam,
por Sartre (1936/1994); pelo enaltecimento da teoria contra o com boas indicações críticas, a conveniência entre a ciência e
método de tratamento, presente em Adorno (1937-49/2015); ou os processos de individualização da modernidade, ou entre a
pela relação inversa prevista em Habermas (1968/1987), que foraclusão do sujeito e seu retorno sob a forma de racionalidade
enaltece a prática da psicanálise como uma experiência comu- técnica, segregação e alienação. Às vezes isso é acompanhado
nicativa e critica sua fundamentação teórica, ocorre que - do exame crítico das modalidades de pesquisa prevalentes hoje
quando dividimos o problema da cientificidade entre o método em psicologia (LAPEYRE; SAURET, 2008) ou ciências huma-
clínico, que possui ele mesmo sua teoria, e a própria teoria, nas. As defesas da singularidade do sujeito contra as generaliza-
isenta da experiência clínica - o sentido da integração e do ções classificantes que operam no interior da metodologização
agrupamento dos efeitos da prática desse método permanece dos objetos de pesquisa e do discurso do psicanalista contra o
prejudicado e precisa ser repensado ao nos atermos ao tema da discurso do capitalista surgem, assim, como resistência aos fun-
teoria psicanalítica como uma teoria científica E aqui, se per- damentos da própria ciência - ou melhor, de uma corrupção de
manecermos no dualismo, facilmente somos desqualificados seu projeto inicial em uma ideologia científica. Desde Althusser

44 j Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 45
até Zizek e Ian Parker, esse tipo de crítica vem se consagrando a força de seus quadros na administração deste grande negócio
no interior da psicanálise. Contudo, o que ele apresenta em ter- chamado "ciência". A ciência, assim como a universidade da
mos de alta penetração nas ciências sociais se reverte, muitas qual ela se tornou serva, tornou-se um imenso empreendimen-
vezes, em admissão de exterioridade e de demissão epistemoló- to burocrático de administração e certificação do saber. Do ou-
gica no contexto das práticas de saúde mental e geral. tro lado, a pesquisa sobre a técnica se autonomizou, formando o
A estratégia internalista nos faz dizer algo assim: nós temos novo casamento universidade-empresa.
nossa própria cientificidade, com critérios que podemos apresen- Este breve sumário sobre a epistemologia da psicanálise e
tar para justificar em termos universais, públicos e transmissí- sua relação com a ciência mostra como, de forma sistemática e
veis. Neste ponto, costumamos cometer o equívoco de nos opor recorrente, a psicanálise se viu interpelada quanto às suas aspi-
a outras formas de ciência de tipo empírico ou positivista, sem rações de transformatividade clínica e de justificação teórica,
percebermos que o internalismo já foi absorvido pela lógica do tendo em vista a suposição de que seus fundamentos seriam
capital científico. Ou seja, o debate dominante não é mais saber análogos aos das ciências naturais. Um giro e deslocamento
se há características intrínsecas e verificáveis na conceitogra- dessa perspectiva devem ser dados com a assunção mais explí-
fia psicanalítica que a tornaria admissível no bojo da ciência. O cita de que os fundamentos epistemológicos da psicanálise de-
grande ideal unicista do método científico foi abandonado nos vem ser buscados nas ciências da linguagem. É nesse campo
anos 1980. No lugar dele emergiu uma nova cultura científica que seu método se afina a seu objeto e que suas técnicas decor-
que tolera perfeitamente bem a diversidade, as formalizações rem de sua ética.
internas dos objetos, as regionalidades epistêmicas, desde que
elas apresentem suas próprias condições de verificabilidade se-
gundo critérios externalistas, como propõe Dancy (1985/1990).
De fato isso veio a se realizar, ainda que de modo inesperado,
pelas pesquisas de Shevrin et al. (2013), que, por meio de provas
extraclínicas, derrubou o argumento da "internalidade" da situa-
ção psicanalítica, contando com o assentimento explícito e fi-
nal do próprio Grünbaum. Essa nova edição da ciência a define
por critérios tais como: a qualidade das revistas científicas; o
impacto de citações; a capacidade de se impor aos seus concor-
rentes "locais"; a capacidade de obter e justificar financiamento;

461 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 147
1.1. A controvérsia do texto
Quando nos deparamos com um texto, oral ou escrito, a atitu-
de intuitivamente mais simples para interpretá-lo corresponde a
perguntar pelas intenções desse texto, ou seja, o que seu autor
"quer dizer", qual é a mensagem que ele "quer comunicar" ou qual
é o apelo que o outro me faz, qual é a informação que ele me passa
ou, ainda, quem é o emissor dessa mensagem. Essa pode ser ca-
racterizada como a perspectiva psicologista de entendimento do
discurso. Nesse caso, o sentido do texto decorre das intenções do
autor, e o método mais simples para saber quais são essas inten-
ções é colocar-se no lugar do outro. Um bom exemplo dessa pers-
pectiva se encontrará no método hermenêutico proposto por W.
Dilthey, segundo o qual, para ler um discurso, seria decisiva a
nossa atitude de compreensão e de empatia para com o autor da
mensagem. Enxergar as coisas pelo ponto de vista do outro, com-
preender quais são seus termos, motivos e os contextos, seria es-
sencial para que a partilha do sentido pudesse se realizar.
Essas perspectivas são consideradas hermenêuticas. O termo
hermenêutica remete ao deus grego Hermes, responsável pelo co-
mércio e pela comunicação, inclusive entre deuses e homens. De
fato, as perspectivas hermenêuticas originaram-se na tradição de
leitura e comentário de textos sagrados, tentando fixar o seu sen-
tido atribuindo grande autoridade e soberania a quem os escreveu.
No século XIX houve um grande esforço para criar critérios mais
objetivos para fixar o sentido de um determinado texto, seja ele
bíblico, seja literário, histórico ou moral. Em quase todos os casos,
essa operação de leitura foi concebida como uma tradução - uma
troca, portanto - entre o sentido para o autor e para o destinatário

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 49


de um texto. Entender as intenções de quem cria a mensagem é é o seu soberano e senhor, uma vez que o sentido do texto decor-
entender a vida de seu autor; portanto, a biografia é um recurso re do contexto histórico-cultural que envolve sua produção. Um
fundamental para as tradições hermenêuticas, que acabaram bom exemplo dessa perspectiva encontra-se na tradição mar-
sendo criticadas por colocar o autor no lugar da obra, por entender xista de crítica da ideologia corria um método para realizar a
a linguagem apenas como meio de expressão de ideias e represen- reconstrução histórico-crítica dos discursos, mostrando assim
tações mentais, incorrendo assim em uma concepção idealista que o sujeito, menos do que autor autônomo de seu próprio
que sobrepõe pensamento e linguagem Esse modelo é o mais in- discurso, é determinado pelas condições que o tornaram um in-
tuitivo, mas também o mais frágil quando é abordado do ponto de divíduo posicionado em uma determinada classe social, com
vista da psicanálise, pois ele supõe autonomia do sujeito em rela- interesses específicos que só podem ser compreendidos se en-
ção à linguagem, como se o eu fosse exatamente esse senhor e so- tendermos os antagonismos sociais que presidem sua forma-
berano de sua própria morada, como Freud criticou fortemente ção. Examinar o contexto social da produção e a série histórica
ao introduzrr a noção de inconsciente. A ênfase no emissor e o en- no interior da qual ele se posiciona permite que entendamos
tendimento da interpretação como reconstrução da intencionali- melhor a mensagem do que se olharmos para as intenções indi-
dade do autor ignoram que o sentido deriva do desejo recalcado, viduais de seu autor. A crítica que usualmente se levanta contra
que pode aparecer decisivamente ali mesmo onde não é pretendi- as perspectivas historicistas é a de que elas colocam o contexto
do ou intencionado: em um deslize (ato falho), um tropeço de lin- no lugar da obra. Tais perspectivas assumem que a linguagem é
guagem, um lapso, um chiste - ou seja, em todos os fenômenos um campo de forças discursivas que correspondem às contradi-
que um hermeneuta talvez considerasse periférico diante das ções sociais historicamente produzidas, levando-nos a uma con-
verdadeiras intenções do autor. Quando Freud fala do sonho como cepção materialista de sentido no interior da qual se sobrepõem
uma via para produzrr a verdade do desejo, ele ao mesmo tempo relações de linguagem e de poder. O indivíduo falante é então
conta com um sujeito que não sabe de onde fala e com um sentido entendido como a-sujeitado à linguagem, assim como será a-su-
que não pode ser reconhecido imediatamente por aquele que con- jeitado em suas relações de dominação. Nesse caso, a noção de
ta seu sonho a alguém. Assim, o sonho é, ao mesmo tempo, uma discurso aproxima-se de um determinado código, dotado de alta
produção simbólica altamente individualizada e opaca para o força normativa, por isso a análise do discurso deve interpretar e
próprio sonhador. Fica claro, dessa maneira, que Freud não parti- iluminar o contexto de produção do discurso, como a crítica
lha de uma posição psicologista em matéria de discurso. marxista explicitava as relações encobertas na produção econô-
Contra a perspectiva psicologista desenvolveu-se o que pode- mica e a consciência que delas se alienava. Também para a psica-
mos chamar de perspectiva historicista. Aqui o autor do texto não nálise o sentido deriva da história, no entanto esta é individuali-

50 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas l 51
zada da arqueologia do sentido em suas diferentes cenas de pro- Ou seja, também para pacientes neuróticos, especialmente
dução, como se observa no seguinte exemplo: diante de seus sintomas, o sentido não lhes é transparente, mas
. !
depende da recuperação e da lembrança, em situação de transfe-
Uma senhora, com cerca de trinta anos de idade, que sofria
das mais graves manifestações obsessivas, [...] executava,
rência, de contextos de produção dos sintomas. Também a cons-
entre outros, os seguintes e notáveis atos obsessivos, mui- ciência se encontra alienada em relação aos conflitos que a posi-
tas vezes por dia. Ela corria desde seu quarto até um outro cionam de modo amnésico, ou seja, em esquecimento da história
quarto contíguo, assumia determinada posição ali, ao lado e de seus antagonismos. Contudo, uma crítica importante pode
de uma mesa colocada no meio do aposento, soava a cam-
ser levantada aqui. A perspectivahistoricista acaba substituindo
painha chamando a empregada, dava-lhe algum recado ou
a obra ou a mensagem por seu contexto de produção, perdendo
dispensava-a sem maiores explicações, e, depois, corria de
volta para seu quarto. Este não era certamente um sintoma assim a dimensão de acontecimento e de autonomia estética
muito desagradável, mas assim mesmo, não podia deixar de Para corrigir esta fragilidade da concepção historicista, po-
causar curiosidade. [...] Sempre que eu perguntava à pa- deríamos girar o ponto de determinação do sentido no discurso,
ciente "Por que faz isto? qual o sentido disto?" ela respon- não mais no seu autor e suas intenções, ou no contexto e suas
dia: ''Não sei". Um dia, porém, após eu haver conseguido in-
contradições, mas para algo que, de certa maneira, reúna o con-
validar uma de suas dúvidas, uma dúvida importante, fun-
damental, ela subitamente soube a resposta, e contou-me o texto e um correlato do autor, a saber, a recepção. É caracterís-
que é que estava em conexão com o ato obsessivo. Mais de tico da perspectiva relativista enfatizar que o sentido do texto
dez anos antes, casara-se com um homem de muito mais decorre da tradição que o assimila, recebe ou decodifica. É o que
idade do que ela, e, na noite de núpcias, ele ficou impotente. Lacan chamou de poder discricionário da linguagem, por meio
Amiúde, durante a noite, ele viera correndo de seu quarto
do qual quem define o sentido do texto não é quem fala, mas
para o dela, a fim de tentar mais uma vez, porém sempre
sem êxito. Na manhã seguinte, ele disse com tristeza: ''Eu
quem escuta. Um bom exemplo dessa combinação entre exi-
devia sentir-me envergonhado perante a empregada, quan- gências da produção-contexto e a consideração pela relação
do ela arrumar a cama", pegou de uma garrafa de tinta ver- autor-destinatário se encontra no método hermenêutico da fu-
melha que casualmente havia no quarto e derramou seu são de horizontes de sentido (Erwartungshorizont) proposto
conteúdo sobre o lençol, mas não no exato lugar em que por Gadamer. Se a ênfase recai no contexto de recepção, podería-
uma mancha viria a calhar. Num primeiro momento, não
mos argumentar que essa perspectiva acaba colocando o público
pude atinar com a relação entre esta lembrança e o ato ob-
sessivo em exame; a única semelhança que pude encontrar no lugar da obra. Ao entender a linguagem como meio universal
foi no ato de correr de um quarto para o outro e, talvez, na compartilhado, assume-se uma concepção antropologizante
vinda da empregada. (FREUD, 1916-17/1988a) que sobrepõe linguagem e cultura. O sentido do texto varia e é

52 IAnálise Psieanalílica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaniana.s l 53
relativo à posição social e ao contexto histórico daquele que re- intersubjetivos, pragmáticos ou contratuais da linguagem. A lin-
cebe. O sujeito é decorrente de sua formação pela linguagem, e guagem aparece, assim, como um reflexo da realidade; e a reali-
isso é uma observação que enfatiza na linguagem a sua proprie- dade, como uma construção social - daí decorre que a análise
dade de ser uma alteridade. Quando chegamos ao mundo, a lin- do discurso seja uma espécie de análise das condições cogniti-
guagem nos é imposta pelo outro, e por isso ela é a própria for- vas e normativas da imposição de sentido.
ma elementar do que Lacan chamará de Outro, lugar de onde Ora, as abordagens relativista e perspectivista admitem e per-
recebemos nossa própria mensagem invertida, a partir do in- cebem que existe uma espécie de conflito entre modos de expres-
consciente. Mas a ênfase no canal receptor, postulada por Ga- são e que os meios expressivos concorrem decisivamente para a
damer (2001/2008), ainda nos faz pensar a interpretação como determinação do sentido - o que, aliás, foi reconhecido por Freud
compreensão, o que se tenciona com a tese psicanalítica de que quando este descrevia o inconsciente da seguinte maneira:
o sentido deriva da situação de transferência, das condições
contextuais de produção; mas nela o analista não é um simétri- A linguagem dos sonhos pode ser encarada como o método
co idêntico do sujeito, e sim o representante de suas posições de pelo qual a atividade mental inconsciente se expressa Mas
o inconsciente fala mais de um dialeto. De acordo com as
alteridade, do que ele não pode assumir ou reconhecer, do que
diferentes condições psicológicas que orientam e distin-
está negado ou recalcado. guem as diversas formas de neurose, encontramos modifi-
Os problemas da abordagem relativista podem ser corrigi- cações regulares na maneira pela qual os impulsos mentais
·i
dos pelo que se pode chamar de vertente perspectivista, cuja inconscientes se expressam. Enquanto a linguagem de ges-
origem nos remete a Nietzsche. Surgem daqui as diferentes tos da histeria concorda em geral com a representação pic-
abordagens que entendem a produção de sentido como uma es- tórica dos sonhos e das visões etc., a linguagem de pensa-
mento das neuroses obsessivas e das parafrenias (demên-
pécie de negociação, de contrato, de luta por hegemonia entre
cia precoce e paranoia) apresenta peculiaridades idiomáti-
diferentes posições de recepção e entre diferentes contextos de cas especiais, que, num certo número de casos, fomos capa-
produção. É o que se observa em autores mais próximos da her- zes de compreender e inter-relacionar. Por exemplo, o que
menêutica particularista e pragmática, como Ricoeur, e tam- um histérico expressa através de vômitos, um obsessivo
bém em autores ligados à tradição mais universalista e crítica, expressará por meio de penosas medidas de proteção con-
tra infecções, enquanto um parafrênico será levado a quei-
como Habermas. Em ambos se nota que o método para a deli-
xas ou suspeitas de estar sendo envenenado. Todas essas
mitação do sentido deve incluir uma espécie de cotejamento de são representações diferentes do desejo de engravidar do
posições, entre a produção e a recepção. Ainda assim podemos paciente que foi reprimido para o inconsciente, ou de sua
criticar o perspectivismo pela sua ênfase excessiva nos poderes reação defensiva contra esse desejo. (FREUD, 1913/1988)

541 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 55
Tanto para as perspectivas psicologista e historicista quan- do. O estruturalismo clássico prescinde metodologicamente da
to para as correções relativista e perspectivista, o sentido é uma
espécie de efeito segundo ou de instrumento de mediação para
1 existência do sujeito, colocando a ênfase na interpretação ou na
leitura da própria mensagem. Em verdade, o tema aparece em
relações anteriores, de natureza social ou econômica, estas sim Lévi-Strauss, com a ideia de que o sujeito da estrutura é impos-
materiais e positivas - sejam elas relações de poder, de reco- sível (BAIRRÃO, 2003), observação que fará Lacan considerar
nhecimento ou de significação. Podemos dizer que essas quatro que o sujeito é justamente este real que a estrutura contorna. É
maneiras de entender a produção de sentido secundarizam o possível então retomar e incluir as diferentes perspectivas an-
próprio texto, em sua materialidade específica. teriores, entendendo a interpretação como essencialmente
Contra essas perspectivas que querem pensar o sentido do uma leitura de processos transformativos inerentes à lingua-
texto fora do texto, privilegiando quer o autor ou a recepção, gem e suas diferentes incidências. Quando passamos de uma
quer o contexto, quer os códigos, podemos entender a perspecti- língua para outra (tradução), podemos extrair a constância do
va estruturalista como um retorno ao texto. Para ela, o sentido significado. Quando passamos de um sistema de signos para
do texto deve ser procurado no próprio texto, e este deve ser en- outro (decifração), podemos descrever superfícies de saber.
tendido como dotado de uma materialidade específica. O méto- Quando passamos de um meio linguístico para outro (leitura),
do estrutural, seja na filosofia de Victor Goldschmidt, seja na podemos reconstruir a natureza dos gêneros. Quando passa-
linguística de Saussure ou na antropologia de Lévi-Strauss, mos de um sistema de escrita para outro (transliteração), pode-
tem em comum pensar a linguagem como um sistema compos- mos perceber as alterações de código. Quando passamos de um
to por relações lógicas e propriedades especificamente simbóli- uso no tempo para outro, atentando ao processo de repetição
cas. Constituído como uma espécie de anti-historicismo e de (desconstrução), podemos ler a potência diferenciante. Quan-
anti-humanismo, o método estrutural privilegia o ponto de vista do passamos de um universo de discurso para outro (redescri-
da totalidade a partir das relações lógicas que se podem assu- ção), podemos captar as relações genealógicas de poder que
mir por essa suposição. Assim, suas leituras produzem inter- existem entre ambos.
pretações deflacionadas de contexto e de historicidade. O mé- Mas o método estrutural requer uma ênfase, por um lado,
todo estrutural privilegia a ordem, a forma ou a estética em nas relações lógicas do sistema e, por outro, na escrita como su-
detrimento do conteúdo e da verdade da doutrina e impõe-se porte material do objeto que se pretende estruturar. Essas duas
como uma técnica de leitura. Entendendo a linguagem como exigências também aparecem na definição freudiana do in-
um sistema de signos, ela não é um mediador simbólico univer- consciente:
sal, mas meio e matéria para o cálculo de possibilidade de senti-

56 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 57
Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos É importante lembrar que a análise do discurso não é nem a
são principalmente imagens visuais, e não palavras, vere- análise de texto nem a exegese de conceito, ainda que tenha sido
mos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos a um precedida por ambas em termos de problemas e procedimentos
sistema de escrita do que a uma linguagem. Na realidade, a
comuns. Por outro lado, o campo formado pelas diferentes for-
interpretação dos sonhos é totalmente análoga ao decifra-
mento de uma antiga escrita pictográfica, como os hierógli- mas de análise do discurso enquanto método constituído é vasto
fos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que e sujeito a inúmeras subdivisões. Muitas delas se valem de pro-
não se destinam a ser interpretados (ou lidos, segundo for o cedimentos consagrados para a análise de texto, análogos a mé-
caso), mas têm por intenção servir de "determinativos", ou todos historiográficos ou filosóficos; e, ainda, a técnicas de for-
seja, estabelecer o significado de algum outro elemento. A malização lógica ou linguística. Furtando-nos a uma definição
ambiguidade dos diversos elementos dos sonhos encontra
que pudesse abarcar tal complexidade, escolhemos recortar
paralelo nesses antigos sistemas de escrita, bem como a
omissão de várias relações, que em ambos os casos tem de essa diversidade a partir da proposta de que a psicanálise, parti-
ser suprida pelo contexto. (FREUD, 1913/1988) cularmente com base na leitura de Lacan, pode ser pensada
como uma análise do discurso, exposta, portanto, a conexões e
De fato, na prática do método estrutural freudiano o sentido infiltrações com outras modalidades de análise do discurso.
deriva da concorrência de processos inconscientes, pré-cons- Contudo, há uma perspectiva que definitivamente se opõe à
cientes e conscientes, mas a análise do discurso visa transfor- análise do discurso, que é a chamada análisede conteúdo.A análi-
mar o latente em manifesto, passar do símbolo como ordem se de conteúdo (BARDIN, 1977/2009) é usualmente praticada
operatória ignorada para o símbolo subjetivado. Contudo, o mé- em pesquisa qualitativa, com base em um tipo de discurso colhido
todo estrutural não vem sem perdas: em situação controlada, como uma entrevista ou uma enquete, do
qual se procura extrair o que pensa ou diz um grupo, uma pessoa
O risco da tentação estruturalista em matéria de leitura e ou uma coleção de sujeitos em certa situação ou segundo deter-
interpretação das obras de pensamento, quaisquer que minado tema O cerne da análise de conteúdo é a noção de catego-
sejam elas (filosóficas, científicas ou literárias), não é
ria, a partir da qual se classificarão incidências homogêneas,
nada desprezível: simplesmente o texto fica no lugar do
contexto, a obra passa a ocupar o lugar do autor e, sub- exaustivas, exclusivas, objetivas e adequadas a uma determinada
-repticiamente, o texto do intérprete põe-se no lugar do pergunta AB categorias podem ser compostas antes ou depois do
autor, quando se perde exatamente aquilo que se pretende material encontrado; podem, inclusive, remeter a aspectos for-
analisar, a saber: a obra ela mesma em sua positividade. mais do discurso, como a sintaxe, a lógica ou a estilística A análise
(DOMINGUES, 1998, p.127)
frequencial de incidências de termos, que são incluídos em gru-

58 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 59
pos, gerando relações de aproximação ou afastamento, de recor- va está sujeita a enganos, interesses e determinações que estão
rência ou raridade, são os objetivos mais simples e imediatos de muito longe da hipótese de um emissor autônomo e da lingua-
uma análise de conteúdo. Mapas semânticos, escalas ou grafos gem como mero meio de condução de ideias. Entendemos, as-
geralmente são produzidos pela operacionalização de catego- sim, que a análise do discurso, em suas variadas formas, caracte-
rias necessárias para traduzir e reduzir a diversidade apresenta- riza-se pela crítica e pela procura de hipóteses alternativas para
da pelo texto ou pelo material discursivo que se está utilizando. cada um desses elementos do modelo comunicacional, a saber:
Inferir regularidades ou modalidades de representação, como 1) Uma crítica do sujeito como emissor autônomo, dados a ideo-
na teoria das representações sociais proposta por Moscovici logia, a hipótese do inconsciente e os processos políticos edis-
(1961/1978), é privilegiar no discurso sua capacidade de expres- cursivos de individualização. Daí que o próprio sujeito seja
sar ideias, pensamentos, atitudes ou disposições de ação. O dis- considerado mais um efeito de discurso (Lacan) do que sua
curso é entendido como um meio expressivo, uma espécie de su- causa, e que o indivíduo seja produzido pelo discurso (Fou-
porte homogêneo para a exposição de algo de natureza mental, cault), e que esta individualização dependa de aparelhos ideo-
como nossas intenções, nossos desejos ou emoções. A análise de lógicos de Estado, como a escola e a policia (Althusser );
conteúdo assume o modelo comunicacional de linguagem, em
2) Uma crítica da transparência da mensagem, dadas as proprie-
que o emissor envia uma mensagem, em um determinado código,
dades ambiguizantes paradoxais, deformativas e negativas
por certo canal, de tal forma que a mensagem chega ao receptor,
(recalque, foraclusão, renegação) que intervêm na sua cons-
que, por sua vez, a decodifica, reconstruindo a ideia, representa-
trução. Daí que todo discurso deva ser tomado como interpre-
ção ou intenção que estava inicialmente no emissor. Esse é um
tação (Nietzsche), dividido entre seu conteúdo manifesto e
método compatível com o estudo de objetos da função referencial
latente (Freud) ou passível de interesses de classe (Marx);
da linguagem, ou seja, a função na qual ela representa, informa ou
ilustra estados do mundo. Contudo, quando nosso objeto de in- 3) Uma crítica da acessibilidade do código, dado o fato de que o
vestigação depende crucialmente de outras funções da lingua- simbólico não precisa ser considerado como um sistema com-
gem - como, por exemplo, a função fática (que pontua a relação pleto e decifrável segundo uma determinada metalinguagem,
entre os falantes), a função poética (que se volta sobre seus sig- como um objeto inerte, descartadas as suas propriedades
nos) e a função metalinguística (que redescreve a própria lingua- criativas e sua incompletude. Ora, o código não é um depósi-
gem) -, essa abordagem pode mostrar limitações importantes. to de significados autoidênticos, mas um princípio de dife-
Lacan afirmava que o mal-entendido é a essência da comuni- renciação (Derrida), um território indeterminado (Deleuze)
cação, sugerindo, com isso, que mesmo a dimensão comunicati- ou uma alteridade irredutível (Levinas);

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 61


60 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
4) Uma crítica da paridade e reflexividade como propriedades autorreferência que, por vezes, teria sido criticada como meta-
imanentes da relação entre emissor e receptor. É preciso linguística. É porventura útil definir o significado do que vem a
presumir, então, que tais relações de comunicação não são ser um conceito em psicanálise, para melhor definir o sentido
colocadas segundo uma ética neutra, colaborativa e sem an- de pesquisa teórica e da criação e transformação de conceitos
tagonismos, mas, pelo contrário, o discurso envolve sempre em sua relação com a experiência clínica.
uma teoria tácita de poder (Pêcheux), dominação ou exercí- Comecemos por separar o conceito de "conceito" de ideias
cio de autoridade (Foucault). conexas para melhor aproveitar sua força metodológica. Con-
ceito, do latim conceptus, do verbo concipere, significa "conter
1.2. A controvérsia do conceito completamente", "formar dentro de si". É aquilo que a mente
Pode-se dizer que a análise do discurso nasce do encontro en- concebe ou entende, ou seja, uma figura do pensamento, uma
tre a tradição de estudo e interpretação de textos com as estraté- ideia ou noção, representação geral e abstrata de uma realidade.
gias de leitura e entendimento dos conceitos. De certa maneira, a Por outro lado, um conceito pode ser também definido, em ter-
análise do discurso ampliará a noção de texto, de modo a incluir mos de linguagem, como uma unidade semântica, um símbolo
enunciados verbais, gestos e demais práticas discursivas, bem mental ou uma "unidade de conhecimento".
como a abordagem de instituições, política e demais formas de Saussure inicialmente definiu que um signo era composto
poder que impregnam a relação entre textos e conceitos no que por duas metades, como uma folha de papel: de um lado está sua
tradicionalmente se chama de crítica da ideologia O conceito de substância acústica ou significante; do outro, sua substância de
cão não late, mas o discurso no qual ele se introduz, sim. Isso quer pensamento ou conceito. A primeira formulação de Saussure
dizer que um discurso necessariamente efetua algo no mundo. afirma que um signo não une uma palavra com uma coisa, mas
No discurso misturam-se sobre o que se fala, com quem se fala e uma imagem acústica com um conceito. Depois ele substituirá a
quem fala, em uma combinatória cujo resultado realiza uma imagem acústica pelo significante e o conceito pelo significado.
transformação - daí que ele seja um conceito eminentemente
[...] não é o som material, coisa puramente física, mas a
usado para analisar relações de práxis e relações de poder.
impressão [empreinte] psíquica desse som, a representa-
Isso significa que é preciso encontrar o conceito de "concei-
ção que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal
to" em psicanálise para que ela possa ser incluída nessa breve imagem é sensorial e; se chegamos a chamá-la "material",
história da análise do discurso. E esse conceito talvez não possa é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da
ser reduzido ao entendimento filosófico ou textual do que é con- associação, o conceito, geralmente mais abstrato. (SAUS-
ceito, uma vez que, para esses campos, o conceito implica certa SURE, 1916/1971,p. 84)

62 [Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 63
O conceito (Begriff, concept) admite uma acepção lógica Aristóteles entendia que o conceito se refere às proprieda-
(pela qual uma palavra se liga a um objeto, ou seu correlato in- des essenciais do objeto, invariante em relação a suas perspec-
tencional, real, ideal ou mesmo conceitual) e outra psicológica tivas. A universalidade é a substância ou necessidade do con-
(por exemplo, a maneira pela qual a criança forma representa- ceito. Os estoicos acrescentaram que o conceito é um signo do
ções, ou a mente cria imagens). Um conceito varia, portanto, objeto e se acha em relação de significação com este. Há, por-
conforme a acepção de objeto: formal (lógica), material (psico- tanto, dois tipos de conceitos conforme os dois tipos de signos:
lógica) ou essencial (ontológica), assim como os objetos que rememorativos e indicativos. Esse dualismo reaparece no filó-
caem sobre esse conceito se dividem em indivíduos, espécies, sofo medieval Abelardo, do século XII. Para ele, o conceito pos-
gêneros, classes, conjuntos. Daí que o conceito comporte uma sui caráter predicativo, não é nem uma coisa (res), nem um
dimensão extensional (os objetos que caem sobre o conceito) e nome (vox), mas um discurso (sermo), que possui referência
intensional 1º(aquilo que ele compreende essencialmente). Em semântica a uma realidade significada, também chamada de
outras palavras, um conceito deve ter um referente, o que re- suposição (suposittio) - ou seja, tanto particular quanto uni-
presenta um problema para a psicanálise: versal. O início da modernidade pode ser apresentado pela revi-
ravolta do conceito de conceito. Enquanto o empirismo de Ba-
Falei dos conceitos que me parecem essenciais para es-
truturar sua experiência [a da psicanálise] e vocês pude- con e Rume entendia que o conceito possui sua dimensão de
ram ver que, em nenhum desses níveis, foram verdadeiros signo e sua dimensão de causa, o racionalismo de Descartes
conceitos que pude fazê-los apreender, na medida em que afirmava que o conceito une pensamento e matéria. Daí que a
os tornei rigorosos, no lugar de nenhum referente; que grande síntese imposta por Kant seja também uma reformulação
sempre, de alguma maneira o sujeito que traz esses con- do conceito de conceito, pois para ele "os conceitos sem intui-
ceitos está implicado em seu próprio discurso; que não
ções são vazios, intuições sem conceitos são cegas". O caráter
posso falar de abertura ou fechamento do inconsciente
sem estar implicado, em meu discurso próprio, por esta constitutivo dos conceitos puros opõe-se ao caráter representa-
abertura e fechamento. (LACAN,1968-69/ 2006, p. 4 7) tivo dos conceitos empíricos, assim como os juízos analíticos se
opõe aos sintéticos.
10 Não confundir "intenção", como ilação, vontade ou aspiração- um estado psicológico do sujeito-,
com "intensão", que é uma propriedade lógica das proposições. Em filosofia da linguagem costu- Chegamos assim a Hegel, para quem o conceito é o terceiro
ma-se dizer que a extensão de uma expressão são os objetos que sobre ela caem e que a intensão
da expressão é o seu conceito ou significado. A extensão vem de um termo singular, "o mestre tempo entre o ser e o devir. O conceito não é uma representação
de Platão", coincide com a extensão da expressão "marido de Xantipa", já que ambos referem-
-se ao mesmo indivíduo: "Sócrates". Qualquer diferença em extensão implica uma mudança de subjetiva pura, mas a própria essência das coisas, o tempo das
intensão, ao passo que a mudança de intensão não altera a extensionalidade de uma proposição.
Operadores frásicas como ªé verdade que", "realmente" ou ªé o caso que· são todos extensionais. coisas. Um objeto não precisa se adequar a seu conceito, pois há
Operadores modais como "necessariamente·, "possivelmente· ou "contingentemente· são todos
intensionais (BRANQUINHO; MURCHO; GOMES, 2006, p. 321). um processo ou um movimento que reúne objeto e conceito.

64 I J\milise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 165
Esse é o trabalho da teoria, como autorrealização do conceito. Em "Homem é um animal racional" lê-se que animal é o gê-
Para Hegel, resolver o problema do conceito é resolver: (1) are- nero próximo e racional é a diferença específica. Aristóteles re-
lação entre a dimensão universal e particular do pensamento"-; comendava alguns procedimentos definicionais, por exemplo: a
(2) a relação entre o pensamento e a sua realização como rea- definição deve ser mais clara que a coisa definida; o definido
lidade12; e (3) a relação do conceito consigo mesmo, em sua tem que ficar excluído da definição; a definição não deve conter
autoidentidade e autodiferença 13• nem mais nem menos do que é suscetível de ser definido; e, fi-
Apliquemos o método da separação e contraste ao próprio nalmente, a definição deve estabelecer a essência do definido, o
conceito de conceito, distinguindo-o de noções conexas: que faz do "ente aquilo que é". Uma definição deve aludir à es-
Conceitos não são definições. Como a palavra sugere, definir é sência do que pretende definir; não deve ser circular; deve ser
colocar um fim (em alemão, Urteil: corte do começo). É essa a es- colocada na forma afirmativa, e não metafórica (HEGENBERG,
tratégia aristotélica, que consiste em definir algo pelos seus "fins 1975, pp. 62-63). A definição pode ser:
ou limites (conceituais) de um ente em relação aos demais" 1) Nominal: dada por uma convenção específica ou delimitação
(MORA, 1978/1982, p. 94). Basta praticar negações repetidas com de uso ou contexto. Pode ser feita por estipulação (fixação de
relação a objetos análogos que, ao final, nos restará a essência do sinônimos). Uma definição nominal seleciona, em um con-
que queremos definir. Contudo, definir não é discernir. Discernir ceito, uma propriedade, uma classe, uma relação ou uma se-
é separar empiricamente, ainda segundo a tradição aristotélica: melhança;
Definir um ente consiste, fundamentalmente, em tomar a 2) Contextual: "é uma regra para traduzir toda sentença que con-
classe da qual ele é membro e pôr esta classe em seu "lugar tém o definiendum, transformando-o em outra sentença sinô-
ontológico correspondente". [...] o gênero próximo e a dife-
nima que não contém o definiendum" (MORA, 1978/1982);
rença específica Daí a fórmula tradicional: a definição
realiza-se por gênero próximo e diferença específica 3) Real: asserção empírica ou lógica que afirma que determinadas
(MORA, 1978/1982, p. 94)
condições explicitadas pelo conceito são satisfeitas por todos
11 "A estrutura do eu reflete a do conceito, o qual é simultaneamente universal, particular e indi-
os objetos do conjunto que define o conceito, e só por este.
vidual e o qual, à semelhança do Eu, abrange ("compreende") ou ultrapassa (übergreift) o que é
outro além de si mesmo" (INWOOD, 1997, p. 74).
Um conceito não é uma categoria. A expressão categoria pro-
12 "O próprio contraste entre conceitos e objetos externos é em si mesmo um conceito ou uma constru-
ção conceitual: o conceito bifurca-se no conceitodeum conceitoeno conceitode um objeto(assim como cede de Aristóteles (MORA, 1978/1982). Exprime flexões, casos
no conceito do Eu), da mesma forma que o universal se particulariz.a no universal, no particular e no
individual; o conceito ultrapassa o que é outro além e si mesmo" (INWOOD, 1997,p. 74). ou modos de ser ou modos de relação referentes a uma substân-
13 "A ideia absoluta ou infinita, a Razão autoconsciente que é a substância do mundo outra coisa cia ou ao ser: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar,
não é senão o 'conceito como conceito'" (HEGEL, 1807/1992).

66 I Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 67
tempo, situação, posse (condição), ação e paixão. Pode envolver de verdade. Um conceito pode se tornar um objeto quando o
as divisões necessárias para apreender um objeto ou fenômeno. tornamos sujeito de predicação.
Para Kant, há quatro categorias apenas: quantidade, qualidade, Um conceito não é um sentido [Sinn], ou seja, o modo como o
modo e relação. Há diversas acepções para a noção de categoria, objeto nos é dado: "Um mesmo objeto físico concreto x corres-
conforme se considere uma decorrência da gramática ou uma ponderia a dois sentidos, "estrela da tarde" e "estrela da manhã",
hierarquia tendo na sua cúspide a categoria das categorias, ou e poder-se-ia dizer que os dois sentidos são duas descrições
seja, a substância (ousia). Também se pode dizer que as catego- precisas que se podem referir [Bedeutung] ao mesmo objeto"
rias condicionam o conhecimento - como em Kant -, ou que (ECO, 1984/1991, p. 132) Os sentidos são descrições possíveis
elas são apenas uma forma do conhecimento - como, por exem- de um objeto. A significação é a descrição verdadeira. Exemplo:
plo, na noção de "categoria operacional", que equivale apenas a a que objeto corresponde o nome: "o objeto mais distante da ter-
uma convenção ou a uma regra de interpretação. Uma categoria ra"? A pergunta tem sentido, mas não admite significação. Uma
define, portanto, o tipo de abordagem lógica que se terá dos con- expressão dotada de sentido é uma expressão bem formada, sin-
ceitos, sua relação com as noções de classe, ordem ou conjunto, taticamente coerente e ontologicamente verificável.
mas também o seu tipo de consideração sobre a relação entre Finalmente, um conceito não é um termo (BRANQUINHO;
ontologia e linguagem MURCHO; GOMES, 2006), expressão originada na lógica, que
Um conceito não é uma noção.Noção [notion] compreende cri- designa partes do silogismo. Na premissa maior "todos os ho-
térios, usos ou condições para o reconhecimento de conceitos mens são mortais;', a palavra mortal é o termo geral.Na premissa
(RYLE,1973). Um estado preliminar ao da fixação e explicitação menor "Sócrates é homem", homem é o termo singular. O termo
do conceito propriamente dito. Descartes, por exemplo, usa as no- médio é transportado da premissa maior para premissa menor,
ções de clareza e distinção para especificar seu conceito de evi- autorizando a conclusão: "Sócrates é mortal". O termo (ou variá-
dência antes de encontrar a primeira evidência (o cogito) de fato. vel) pode ser aproximado, de um lado, com a noção de predicado
Uma noção define-se por sua recorrência prática, por seu uso ou e, de outro, com a noção conjuntista de domínio.
emprego dentro de uma determinada conformação de linguagem De certa maneira, tal complexidade de noções conexas e a
Um conceito não é um significado ou uma significação sobreposição de usos dessas palavras ao longo do tempo leva-
[Bedeutung], mas sua relação com o objeto [Gegenstand] a que o ram ao esforço de desambiguação do conceito de conceito. Isso
signo se refere. Uma proposição pode ter apenas dois objetos: foi levado a cabo de modo sistemático por Gottlob Frege, que
verdade ou falsidade. Todas as proposições verdadeiras terão a deu contornos modernos ao problema do conceito. Ele perce-
mesma Bedeutung. A Bedeutung de uma proposição é seu valor beu que havia uma terceira dimensão entre o pensamento e a

68 J Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J 69
linguagem, a dimensão da lógica como sistema de escrita. As- conceito; e, mais especificamente, ele é proposto como uma es-
sim, ele formulou que é a acepção lógica do conceito que implica pécie de oposto do conceito. No capítulo ''Princípios gerais" do
que "o conceito é o significado de um predicado" (FREGE, 1978, Curso de linguística geral, Saussure introduz o signo linguístico:
p. 78). Lembremos que o significado é uma categoria de lingua-
gem, o conceito é uma categoria do pensamento e o predicado é Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor, ou a
palavra com que o latim designa o conceito "árvore", está
uma categoria lógica. O caminho de Frege é, de certa maneira,
claro que somente as vinculações consagradas pela língua
análogo ao de Charles Peirce, o criador da semiótica, que tam-
nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda
bém atentou para os diversos meios e níveis pelos quais um sig- e qualquer outra que se possa imaginar. (SAUSSURE,
no pode articular pensamento e linguagem. Depois de Frege e 1916/1971, p. 80)
Peirce, podemos dizer que um conceito deve resolver quatro
exigências ou condições:

1) descrever objetos da experiência para permitir seu reconhe-


cimento (caracterização);

2) classificar diferenças de forma inclusiva e exclusiva em rela-


ção ao "caso" (designação);

3) organizar os dados da experiência, estabelecendo entre eles Portanto, Saussure tem um conceito de conceito, e este é an-
relações lógicas (dedução e indução); terior à própria introdução do conceito de significante. Esse
conceito remete ao próprio significante posto entre aspas e su-
4) prever o comportamento de processos ou funções por meio
postamente fixo e permanente. Isso contrasta com a variação
de modelos ou construções (abdução).
da imagem acústica entre línguas. Depois de expor as leis do
Para Peirce (1990), a acepção pragmática do conceito consis- signo linguístico (arbitrariedade, imotivação, linearidade, sin-
te em "considerar que efeitos concebemos que possam ser o ob- cronia, diacronia), Saussure volta ao problema da unidade do
jeto de nossas concepções. A concepção destes efeitos corres- signo, reconhecendo que há duas relações envolvidas no con-
ponderá ao todo da concepção que temos do objeto". ceito:"[ ...] a contraparte da imagem auditiva no interior do signo"
Ora, a última noção que precisamos contrastar com a de e a "contraparte dos outros signos da língua" (SAUSSURE,
conceito é, justamente, a de significante. O significante não é o 1916/1971, p.133).

701 Análise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 171
1) O significante determina algo no mundo:
[...] o deslocamento do significante determina o sujeito em
seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu
sucesso e sua sorte, não obstante seus dons inatos e sua
posição social, sem levar em conta o caráter e o sexo, e que
por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como
armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psi-
cológico. (LACAN,1955/1998, pp. 33-34)
Saem as flechas e entra o sinal de equivalência. Segue-se a
explanação de que existe um princípio geral que se aplica aos 2) O significante se apreende por meio de uma topologia:
valores: eles podem ser trocados por outra coisa semelhante
[...] suas unidades [...] estão submetidas à dupla condição
cujo valor resta determinar, ou eles podem ser comparados com de se reduzirem a elementos diferenciais últimos e de se
outra coisa cujo valor está em causa: "Do mesmo modo, uma pa- comporem segundo as leis de uma ordem fechada [os fo-
lavra pode ser trocada por algo dessemelhante; uma ideia, além nemas] [...] o sistema sincrônico de pareamentos diferen-
disso, pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma ciais [...] que presentificam validamente o que chamamos
outra palavra" (SAUSSURE, 1916/1971, p.133). de letra, ou seja, a estrutura essencialmente localizada do
significante. Com a segunda propriedade do significante,
A troca pelo conceito é chamada de significação; contudo, a
de se compor segundo as leis de uma ordem fechada, afir-
comparação - tanto intrassigno quanto extrassigno - é chama- ma-se a necessidade do substrato topológico do qual a ex-
da de valor. pressão "cadeia significante", fornece uma aproximação:
anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de
Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, anéis. (LACAN,1957/1998a, pp. 504-505)
subentende-se que são puramente diferenciais, definidos
não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente 3) O significante se apreende pelo trabalho de negatividade, re-
por suas relações com outros termos do sistema. Sua ca- petição:
racterística mais exata é de ser o que os outros não são.
(SAUSSURE, 1916/1971, p.136) A presença do significante no Outro é, com efeito, uma
presença vedada ao sujeito, na maioria das vezes, já que,
comumente, é em estado de recalcado [Verdriingt] que
Ora, compreende-se então por que a teoria lacaniana do
ela persiste ali, que dali insiste em se representar no sig-
significante resume e engloba a discussão que historicamente nificado, através de seu automatismo de repetição
se erigiu em torno do conceito de conceito. [Wiederholungszwang]. (LACAN, 1957/1998b, p. 564)

721 Análise Psicanalítica de Discuruus: Perspectivas Lacan.ianas Análise Psicanalilica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 173
4) O significante sobredetermina e representa o sujeito no dese- mas levar em conta suas normas de sucessão, ou seja, a repetição
jo, na demanda, na fantasia, na identificação, na transferência: histórica de ideias em sistemas teóricos, tradições, disciplinas,
[...] pois essefading [desaparecimento] se produz na sus- culturas, discursos. Também é preciso localizar o conceito em
pensão do desejo, por eclipsar-se o sujeito no significante uma ou mais séries enunciativas envolvendo demonstrações,
da demanda - e na fixação da fantasia, por tornar-se o pró- descrições, generalizações, narrativas e enunciados. Em segui-
prio sujeito o corte que faz brilhar o objeto parcial de sua da precisamos saber quais são os tipos de correlação, ou seja, hi-
indizível vacilação. (LACAN, 1961/1998, p. 663)
póteses, verificações, asserções críticas, leis de aplicação do ge-
ral ao caso específico nas quais o conceito está envolvido. Depois
1.3. Do conceito à Análise do Discurso: Foucault
disso, examinamos os esquemas retóricos: descrições, deduções,
Chegamos assim a uma das estratégias de análise do discur-
definições, gêneros, espécies, estruturas.
so apresentadas por Michel Foucault, em seu livro metodológi-
Uma das contribuições decisivas de Foucault para a episte-
co chamado Arqueologia do saber, no qual ele de certa forma
mologia é mostrar que um conceito não está preso em uma dis-
explica o método que levou a cabo em seus estudos precedentes
ciplina, mas admite formas de coexistência ou campos de presença
sobre a arqueologia das ciências humanas, a história da loucura
verificáveis em enunciados formulados em um discurso e reen-
e o nascimento da clínica.
contrados em outro, transportando para o último um efeito de
[G.Dumézil] foi ele que me ensinou a analisar a economia verdade decorrente de sua validação lógica ou experimental em
interna de um discurso de modo totalmente diferente dos seu campo de origem, de seu acúmulo de comentário e autorida-
métodos de exegese tradicional ou do formalismo linguís- de. Os campos de presença podem envolver relações com cam-
tico, foi ele que me ensinou a detectar, de um discurso ao
pos de concomitância, nos quais se apresentam relações de ana-
outro, pelo jogo de comparações, o sistema de correlações
funcionais, foi ele que me ensinou a descrever as transfor- logia entre domínios diferentes e com domínio de n:emórias, ou
mações de um discurso e as relações com a instituição. seja, enunciados que não são mais admitidos ou discutidos e que
(FOUCAULT,1970/1996, p. 45) produzem laços de precedência, filiação ou influência
Descolando-se das propriedades lógico-formais do concei-
Para Foucault, examinar a formação de conceitos correspon- to, Foucault vai propor que levemos em conta, na arqueologia
de a reconstruir a lei que explica a emergência histórica de con- dos conceitos, os procedimentos de intervenção, que podem en-
ceitos discordantes. ''Para analisar a formação dos conceitos volver técnicas de reescrita, como a atualização de conceitos,
não é preciso relacioná-los nem ao horizonte de idealidade nem redefinições nominais e contextuais; métodos de transcrição,
ao curso empírico das ideias" (FOUCAULT, 1966/1986, p. 70), como passagens do conceito entre línguas; modos de tradução,

741 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 175
nos quais encontramos passagem de qualidades a quantidades, se prende à noção de poder; e, ainda, na vertente ética, onde o
aproximação entre enunciados assemelhados, refinamento da discurso se organiza em torno de práticas.
exatidão de conceitos, delimitação, restrição ou generalização A primeira etapa de uma análise do discurso consiste em
de emprego de um conceito, transferência de enunciação. Fi- suspender as suas definições e contextualizações "naturais". Um
nalmente, um conceito pode estar ligado a determinados méto- discurso pode ser abordado do ponto de vista de sua relação com
dos de sistematização, no interior dos quais ocorrem redistri- outros (tradição), de sua classificação (influências, evolução ou
buição de enunciados componentes de conceitos, formação de desenvolvimento) ou de sua continuidade (mentalidade, espíri-
novos conjuntos, subconjuntos ou classes. to). Uma característica importante da noção foucaultiana de dis-
Reencontramos assim, nesse iniciador das novas formas de curso é o fato de que ele não se reduz a categorias como as de autor,
análise do discurso, as exigências do conceito que antes havía- obra, gênero ou livro. Um discurso cria uma unidade entre práti-
mos levantado quanto ao que esperar de uma definição: (1) atri- cas sociais e de transmissão simbólica diferentes entre si, reunin-
buição, articulação, designação, derivação; (2) separação entre do, por exemplo, aspectos da alta e da baixa cultura, da apreensão
relações de ordem e relações de classe; (3) separação entre do- popular ou especializada de um objeto, levando em conta posições
mínios de validade, normatividade e atualidade de um conceito; de classe, de disciplinas e de valência de autoridades distintas.
e (4) circulação, troca, mudança de contexto de aplicação, A segunda etapa da análise do discurso consiste em detectar
transferência de um conceito. Uma definição possível de dis- os acontecimentos [événements] que estabelecem transforma-
curso, segundo Foucault o entende: ções que remetem a novas unidades entendidas como efeito de
discurso. Três estratégias podem ser empregadas aqui (CAS-
[...] conjunto de enunciados que provém de um mesmo TRO, 2009, pp.118-119):
sistema de formação; assim se poderia falar de discurso 1) O estudo das regras de formação de um discurso, ou seja, as
clínico, discurso econômico, discurso da história natu-
condições pelas quais ele cria objetos segundo certas regras
ral, discurso psiquiátrico [...]. O discurso está constituído
por um número limitado de enunciados para os quais se regulares;
pode definir um conjunto de condições de existência. 2) O estudo dos critérios de transformação, ou seja, os limites
(FOUCAULT, 1970/1996, pp.141, 153) que um discurso encontra em outro discurso no qual ele
pode ser convertido, englobado ou recortado;
Contudo, a noção de discurso varia na obra de Foucault 3) O estudo dos critérios de correlação, ou seja, o tipo de ligação
conforme seja tomada na vertente da arqueologia, onde está li- entre um discurso e suas instituições, suas inscrições jurídi-
gada a uma dada episteme, ou na vertente da genealogia, onde cas, suas normas ou disciplinas.

76 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectiva8 Lacanianas \ 77
Contudo, a grande convergência que podemos intuir da con- trabalhos, bem como da fenomenologia de Brentano e de traços
cepção foucaultiana de discurso para a epistemologia da psica- positivistas também já foram assinaladas. De forma coerente
. 1
nálise remonta ao deslocamento que essa noção procede com com essas heranças kantianas, Freud postula a psicanálise como
relação à noção de conhecimento. Para Foucault, antes de exa- . uma ciência natural [Naturwissenschaft]. De acordo com este
minar as formas locais de conhecimento e conceito, é preciso quadro, ele argumenta que seus conceitos fundamentais [Grun-
entender a episteme, a arqueologia do saber, na qual esse co- dbegriffen] podem ser fenomenalizados e transformados pela
nhecimento é possível. Assim como Foucault, Lacan também verificação empírica No conhecido parágrafo inicial de As pul-
fará a sua crítica da noção de conhecimento, como alienação sões e seus destinos, descreve-se a investigação científica nos se-
conaturalizante do sujeito ao objeto [co-naiscence], inserindo o guintes termos: "Ouvimos muitas vezes a opinião de que uma
conhecimento em uma dialética histórica entre saber e verda- ciência [Wissenschaft] deve se edificar sobre conceitos básicos
de. A noção de discurso integra as diferentes formas de enten- [Grundbegriffen] claros e precisamente definidos, mas na reali-
der o que vem a ser ciência que enfocamos no início deste livro, dade nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata começa com
ou seja, um tipo de representação do mundo, um método de pro- tais definições" (FREUD 1915/2013, p.113).
dução e uma comunidade social que o produz. Outro ganho tra- Freud claramente coloca a psicanálise sob o crivo de conside-
zido pela noção de discurso é que ela permite organizar níveis ração da ciência, e a partir disso se posiciona no quadro de uma
de epistemologização, mais especificamente descritos por Fou- epistemologia clássica, que entende a ciência como um tipo de
cault da seguinte maneira: (1) a positivação do saber; (2) a con- conhecimento caracterizado por conceitos e definições confor-
ceitualização; (3) a formação discursiva e (4) a formalização. me o uso público da razão. Mas a observação enfatiza o ordena-
mento, o início da ciência que não deve estar dado em conceitos
1.4. Do conceito ao discurso: Freud exatos e bem construídos, tais como se espera da metafísica
Quando olhamos para o problema do conceito de conceito
em psicanálise, devemos lembrar que os problemas epistemoló- O verdadeiro [richtige] início da atividade científica con-
siste muito mais na descrição [Beschreibung] de fenôme-
gicos da psicanálise começam pela filiação declarada de Freud a
nos [Erscheinungen] que são em seguida agrupados [gru-
esta concepção genericamente kantiana do conhecimento. Tal piert], ordenados [angeordnet] e correlacionados entre si
concepção é matizada por alguns acréscimos vitalistas, prove- [Zusammenhiinge] (FREUD, 1915/2013, p.113).
nientes do Romantismo alemão, bem como pelo fisicalismo que
impregna sua formação inicial como neurólogo. As presenças do Temos então uma resposta para a questão do início da ativi-
associacionismo inglês, de Stuart Mill, de quem traduziu alguns dade científica. Esta concerne quatro operações: descrição,

78 IArnilise Psicanalítica de Discursus: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 179
agrupamento, ordenamento e correlação. ''.Alémdisso, é inevi- uma recomendação explícita: "as ideias devem conter indefini-
tável que,já ao descrever [Beschreibung] o material, apliquemos ção". Ou seja, vemos aqui como a indeterminação, a ambiguidade
sobre ele algumas ideias abstratas obtidas não só a partir de no- ou a dúvida são o ponto de partida da investigação psicanalitica
vas experiências [Eefahrung], mas também oriundas de outras Agora se acrescentam dois outros procedimentos: a atribuição
fontes" (FREUD, 1915/2013, p.113). de significação [Bedeutung] e a repetição [Wiederholung]. Isso
Aqui Freud é claro e direto: a escrita do material acrescenta nos coloca diante de uma posição interessante sobre a conceito-
a ele ideias abstratas que possuem uma multiplicidade de fon- grafia psicanalitica: ela é, ao mesmo tempo, convencional e in-
tes. Como entender essas outras fontes, além da experiência? tuitiva; ela envolve descoberta e invenção. Entretanto, é preciso
Estaria aqui Freud nos remetendo a certas categorias do enten- que tais convenções não tenham sido escolhidas arbitrariamen-
dimento, que ordenam, agrupam ou organizam a experiência? te, e sim determinadas pelas relações significativas que mantêm
Ou as outras fontes seriam formas análogas da experiência, que com o material empírico.
generalizam um achado por meio de analogias e homologias
É comum que imaginemos poder intuir tais relações antes
com formas da cultura, mitos e demais discursos nos quais a
mesmo de podermos caracterizá-las e demonstrá-las, mas
psicanálise, particularmente Freud, se apoia, sempre em senti- só depois de investigarmos a fundo determinado campo de
do corroborativo. fenômenos é que podemos formular com precisão seus
conceitos básicos [Grundbegriffen] e modificá-los pro-
Tais ideias iniciais - os futuros conceitos básicos da ciên- gressivamente, até que se tornem amplamente utilizáveis
cia - se tornaram ainda mais indispensáveis quando mais e, portanto, livres de contradição.É apenas então que tal-
tarde se trabalha sobre os dados observados. No princípio, vez tenha chegado a hora de confinar os conceitos em defi-
as ideias devem conter certo grau de indefinição, e ainda não nições [Definitionen].Entretanto, o progresso do conheci-
é possível pensar em uma delimitação clara de seu conteú- mento não suporta que tais definições sejam rígidas, e
do. Enquanto elas permanecem neste estado, podemos con- como ilustra de modo admirável o exemplo da física, mes-
cordar sobre seu significado [Bedeutung]remetendo-nos mo os "conceitos básicos" que já foram fixados em defini-
repetitivamente [wiederholen]ao material experiencial a ções também sofrem constante modificação de conteúdo.
partir do qual elas aparentemente foram derivadas; contu- (FREUD,1915/2013,p.113)
do, na realidade [Wirklichkeit], esse material já estava su-
bordinado a elas. (FREUD, 1915/2013,p.113) Chegamos assim ao critério terminal da construção de con-
ceitos: a não contradição como forma de estabilização de defi-
Aquilo que antes era uma observação prática sobre a impos- nições. Ainda assim espera-se que tais definições sofram um
sibilidade de começar por conceitos seguros torna-se, agora, processo contínuo de aperfeiçoamento e reforma.

80 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 181
Podemos decompor este parágrafo na seguinte cadeia de gundo, a incidência do conceito em uma rede de conflitos (por
implicações: exemplo, as identificações e os objetos); e, pelo terceiro, a inten-
1) A ciência [Wissenschaft] começa pela descrição [Beschrei- sidade e quantidade de energia envolvida nas trocas psíquicas
bung], agrupamento, ordenação de fenômenos e proposição (por exemplo, o investimento ou contrainvestimento que pode
de correlações; recair sobre uma representação).
O parágrafo epistemológico de As pulsões e seus destinos re-
2) A própria descrição infiltra algumas ideias abstratas recolhi-
serva, ainda, uma comparação subterrânea praticada por Freud.
das em outras fontes;
Lembremos que ele é também o primeiro dos artigos sobre ame-
3) Essas ideias iniciais tornam-se os conceitos fundamentais tapsicologia da psicanálise, e que o termo metapsicologia,
[Grundbegriffen] quando expostos ao trabalho repetido de cunhado por Freud, remete naturalmente à metafísica - e pare-
atribuição de significação; ce ter sido forjado em sua oposição. A metafísica é considerada
4) Ainda assim, os conceitos contêm "um certo grau de indefi- ponto de partida para o conhecimento, entendido como uma to-
nição" enquanto são remetidos "repetitivamente ao material talidade fechada em si mesma, versando sobre a composição e
experiencial"; determinação do ser (Deus, alma e mundo) e sedimentando uma
visão de mundo. A metafísica é um tipo de saber que tem a forma
5) Finalmente, eles se tornam convenções que subordinam "o
de uma theoria (para ser contemplada) ou doutrina (para ser
material experiencial";
obedecida). A exposição inicial de Freud sobre a metapsicologia
6) Tais convenções não arbitrárias são determinadas pelo ma- nega cada uma dessas características. Ela é ponto de chegada do
terial empírico [empirische Stoffe ], resistentes à contradição, conhecimento, composta por hipóteses necessárias para supe-
mas não à revisão. rar a experiência Compõe-se de uma totalidade aberta à refuta-
ção clínica. Ela versa sobre modelos - como aparelho psíquico,
Temos aqui um exemplo de como se deveria proceder à análi- teoria da pulsão, teoria do recalcamento - e não inclui ou recusa
se e construção de um conceito em psicanálise, ao que podería- uma visão de mundo. Não é, portanto, nem uma teoria filosófica,
mos acrescentar três critérios desse método, ou seja: que todo nem uma teoria científica, stricto sensu, mas o que Assoun
conceito deve possuir uma versão ou uma descrição em termos (1981/1983) chamou de "replicação esquematizante" de ambas.
tópicos, dinâmicos e econômicos - entendendo-se pelo primei- Ocorre que um exame mais atento da prática de investiga-
ro sua localização em um sistema de relações entre lugares (por ção psicanalítica mostra que ela encontra dificuldades para
exemplo, inconsciente, pré-consciente, consciência); pelo se- responder a tais exigências triviais dos conceitos em ciência,

82 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 183
pois seu objeto (o inconsciente) é definido a partir de qualidades neira. De fato encontramos aqui um primeiro divisor de águas
refratárias à sua fenomenalização: atemporalidade, ausência 1 na história da psicanálise, entre aqueles que pretendem reno-
de contradição, imunidade à negação etc. Além disso, o método var a filiação psicanalítica às ciências naturais - através de
psicanalítico é definido por parâmetros refratários à universa- acréscimos e redescrições de seus conceitos -, e outros que
lização impessoal e à repetição controlada (transferência). postulam que a psicanálise está sujeita a outro tipo de funda-
A teoria da prova em psicanálise é semelhante à que encon- mentação e, quiçá, a outra localização epistemológica: como
tramos na teoria da evolução de Darwin (MEZAN, 2007). Ou- ciência do espírito, do homem ou do sentido.
tro problema epistemológico é que a metapsicologia da psica- Surgiu daí uma resposta dos psicanalistas que entendem
nálise contém críticas, revisões e usos contraintuitivos das que a própria psicanálise deveria utilizar seus conceitos para
principais categorias que definem o entendimento e o uso da formular uma epistemologia que lhe seja própria. Uma cientifi-
razão (causalidade, qualidade, quantidade e relação), bem cidade assim tão particular não deixa de causar problemas
como a inserção do objeto no espaço (contínuo) e no tempo (ir- diante de uma das aspirações mais francas da ciência moderna,
reversível). Um bom exemplo disso reside na afirmação de que a saber, a universalidade do saber. Essa perspectiva, quase
o inconsciente equivale à Coisa em si [Ding an sich], quando se sempre, acaba epistemologizando conceitos psicanalíticos ou
sabe que a Coisa em si, para Kant, não é cognoscível. Final- psicanalitizando conceitos epistemológicos. Alguns exemplos
mente, a concepção sobre o sujeito do conhecimento em psica- podem ser mencionados aqui:
nálise está continuamente tensionada quer por afecções éti- 1) A tipologia antropológica das formas de pensamento sugerida
cas, quer por dimensões estéticas. Diversos aspectos que defi- por Freud (animismo, religião e ciência) replica a hierarquia
nem esse sujeito, na modernidade científica, estão problemati- dos modos de pensamento na gênese do sujeito psicológico.
zados pela própria psicanálise: autoreflexividade, identidade, Ora, a ciência que estuda o sujeito gnoseológico não é ames-
autodeterminação etc. ma que estuda o sujeito psicológico; portanto, a sobreposição
Isso levou muitos teóricos da epistemologia a argumentar é acidental, e não ontológica;
que as condições mais elementares para a fundamentação da 2) A analogia entre o tratamento e a investigação científica -
ciência encontram, na psicanálise, um caso problemático. Po- presente na afirmação de que "o progresso no trabalho cien-
de-se objetar que isso revela apenas que Freud era um mau tífico realiza-se de maneira similar ao progresso analítico"
epistemólogo de sua própria obra e que as razões que apresenta (FREUD, 1916-17/1988b, p. 232) - sugere que se trata da
para filiar-se a uma determinada estratégia de fundamentação mesma forma de conhecimento o que se obtém ao final, o que
não excluem que a psicanálise seja fundamentada de outra ma- é improvável, se não discutível;

841 Anàlise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 185
3) A tese de Lacan, de que o conhecimento é uma função para- mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode
noica, compreende uma observação válida no impacto inter- ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da
subjetivo da atividade de conhecimento, isto é, no âmbito da verdade só pode apoiar-se sobre si mesma, e é na medida em que
relação entre sujeitos. Considerá-la uma asserção epistemo- a fala progride que ela a constitui" (LACAN,1953/2008, p.13).
lógica geral é atribuir uma intencionalidade e uma qualifica- Daí que ele buscará outra forma de empregar o conceito em
ção irrelevantes para a definição e para a prática da ciência psicanálise, combinando-o tanto com o discurso no qual incide
instituída em nossa época. quanto com o significante de que é composto. Há uma espécie
Mas a entrada de Lacan nessa discussão reformulou com- de dialética entre conceitualização e formalização na obra de
pletamente a problemática. Isso porque ele, de certa maneira, Lacan, assim como havia uma dialética entre experiência e de-
percebeu que a psicanálise estava ao mesmo tempo ligada àtra- finição em Freud. Pensamento e linguagem são então examina-
dição do texto e à tradição do conceito. Ele intuiu, assim, que a dos do ponto de vista dos limites e das figuras específicas nos
epistemologia da psicanálise repousava nas ciências da lingua- quais eles são negados.
gem, uma vez que a linguagem é condição do inconsciente. Duas A declaração "trata-se de passar por uma outra forma que a
teses fundamentais verificam essa peculiaridade bífida entre o apreensão conceitual" (LACAN,1966/1998, p. 65) levará Lacan a
conceito e a textualidade em Lacan. A primeira refere-se à co- introduzir, em psicanálise, a oposição entre saber e verdade. Não
nexidade necessária entre expressão e conteúdo, o que nos leva podemos deixar de reconhecer que foi exatamente essa a noção
à noção de estilo. A segunda é uma condição negativa, que versa primitiva na análise do discurso proposta por Foucault, ou seja, a
sobre a impossibilidade da existência de metalinguagem. noção de saber. O saber é esse correlato intermediário entre o
O que se transmite na definição da verdade é o que tradicio- conceito e a linguagem, entre o poder e a forma, entre a ideologia
nalmente se chama de conceito; contudo, a afirmação postula e a ciência Além disso, Lacan enfatizou um aspecto pouco notado
que, em psicanálise, essa definição não supera a fala que condi- até então pelos que se detinham na definição dos conceitos e sua
ciona sua enunciação - ela não ultrapassa o tempo daquele que a relação com os signos, ou seja, os fenômenos de obstrução, fracas-
enuncia O mito é o modelo fundamental do que vem a ser um dis- so ou negação do sentido - tais como o chiste, o ato falho e o sinto-
curso. Nele não há versão original, mas apenas versões reconhe- ma - que formavam a base semiológica do inconsciente freudia-
cíveis por mitemas que se repetem, sendo os mitemas definidos no: "Unbegriff', o conceito do que falta ao conceito para se realizar.
como relações lógicas com outros mitemas. Portanto, o mito joga A tese de Lacan, de que "a psicanálise deveria ser a ciência da
com conceitos, mas não é um discurso que transmite sua verdade linguagem habitada pelo sujeito" (LACAN, 1956/1988, p. 276),
por meio de conceitos. Nesse sentido, como afirma Lacan: "O não nos convida apenas a uma concepção instrumental, comuni-

86 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 187
cacional ou hermenêutica de linguagem, cujo acréscimo seria o festações de não saber; e, ademais, a suposição de que, nesse pon-
sujeito. Melhor seria dizer que a habitação da linguagem pelo su- to de não saber, há uma verdade. São, portanto, como em Foucault,
jeito, sua dit-mension ["a mansão do dito", "a menção do dito"] as oposições, os contrastes, a articulação das diferenças - e não as
implica certas consequências metodológicas que radicalizam a positividades - que devem presidir a investigação do discurso.
constituição da linguagem como objeto de investigação. Antes de
definir uma forma regular de produção de sentido, feita para co- 1.5. Leitura, interpretação e comentário
municar ou fixar normas, a linguagem contém tipos específicos Freud definiu a psicanálise corria um método de tratamento e
de negação da realização de sentido (non-sense). São pontos de de investigação. Podemos intuir que esse método de investigação
resistência à significação (orientada pelo falo, pelo qual o desejo se situe como inflexão particular do método clínico, tanto em sua
não se articula todo na linguagem); de instabilidade denotativa extensionalidade diagnóstica quanto semiológica No entanto,
(metafórica ou metonímica); de impossibilidade de gozo (organi- particularmente com Lacan, tal método de investigação mos-
zado pelo discurso); de disparidade da enunciação - pela quales- trou-se também dotado de uma segunda acepção: a investigação
tou onde não penso e penso onde não sou (negação do caráter psicanalítica de textos. Estaríamos nós, os psicanalistas, às vol-
concêntrico entre enunciação e enunciado) - ou do dizer, que fica tas com uma forma particular de apreender textos, por exemplo,
esquecido atrás do dito (negado pelo que se ouve e compreende). os textos de nossos fundadores, ou deveríamos nos constranger
Podemos chamar esse critério geral da abordagem lacaniana em aos métodos de interpretação e aos critérios de rigor que têm ca-
análise do discurso de critério da negação [Verneinung] da trans- racterizado as ciências da linguagem, o direito ou a filosofia?
parência do sentido, reservando para o termo não apenas o senti- Consideremos as antigas estratégias de leitura e interpreta-
do da denegação trivial, mas de compreensão da verdadeira gra- ção de textos. É em relação a elas que se desenvolveu a hermenêu-
mática das negações presente na psicanálise. Da teoria da defesa tica antiga, seja ela de extração judaico-cristã, seja greco-latina.
(Verleugnung, Verwerfung, Verdriingung) à teoria da pulsão A combinação entre a dimensão moral e política, as implicações
(Sublimierung, Verkehrung, Wendung), da teoria do desejo teológicas e jurídicas e as infiltrações estéticas e expressivas pre-
(Aufhebung, Erinnerung, Durcharbeiten) aos conceitos da técnica sentes nesse tipo de texto levou à formação de uma consciência
(Gegenstand, Übersetzung, Wiederstaná), a psicanálise compor- de que certos escritos não podiam apenas ser lidos, considerando
ta-se como uma teoria da ação negativa da linguagem, ou como que seu sentido é de uso livre e determinado segundo o leitor.
uma teoria da opacidade do sentido. Estudar a estrutura do senti- Esse é um problema relativamente datável, uma vez que as so-
do a partir do trabalho negativo da linguagem, em suas múltiplas ciedades sem escrita resolvem o tema da interpretação reme-
incidências, implica um método baseado na localização das mani- tendo-o à oralidade do mito e à autoridade de seu intérprete.

88 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspecli\'as Lacanianas l 89
O problema da interpretação de textos torna-se urgente 2) Sentido anagógico: surge aqui o sentido segundo do texto, que
quando a oralidade do mito se tenciona com a permanência do convida a uma leitura política, remetendo ao significado co-
escrito. E esse tema tem um equivalente psicanalítico. Lembre- letivo da história Trata-se de um texto para uma determinada
mos que a psicanálise é uma experiência de fala, que ocorre em comunidade, que se reconhece nele e em sua função, seja ela
um contexto pessoal e direto, que é o tratamento. Temos então de código moral, de antecedência cultural, seja de relevância
uma passagem dessa experiência baseada na temporalidade da histórica. Neste caso, a função do texto é principalmente
fala para outra temporalidade, que é a da escrita. marcar o acordo ou a comunhão de entendimento entre os
Os primeiros códigos jurídicos da Mesopotâmia, as primei- seus leitores, definindo assim uma aliança entre eles;
ras escritas astronômicas indo-europeias e os textos históricos 3) Sentido moral: especifica uma interpretação psicológica.
e morais da tradição judaico-cristã estavam sujeitos aos fenô- Aqui o texto é endereçado ao sujeito individual, que o inter-
menos da passagem do tempo, que cria a consciência de sua pró- preta segundo as circunstâncias e os conflitos pessoais que
pria historicidade. A cristologia e a hermenêutica bíblica esta- atravessa naquele momento. O texto adquire uma função
beleceram-se assim, até que Lutero e Espinosa questionassem educativa, com efeitos pragmáticos de elevação ou de rebai-
esse princípio - nos séculos XVI e XVII, respectivamente-, pos- xamento do humor, de integração ou de isolamento diante de
tulando que os textos tinham um sentido, mas que esse sentido uma dada comunidade de sentido, ou de reinterpretação do
era estratificado. As diferentes maneiras de abordar um texto mundo, da alma e do destino;
podiam ser separadas em termos da natureza de seus destina- 4) Sentido alegórico: presume a existência de um código ou de
tários. Funcionavam como uma mensagem secreta, que, para um conjunto de referências que não são autoevidentes e que
alguns iniciados nos códigos, significava uma coisa e, para os convidam a uma explicitação do sentido tácito das passa-
incautos e leigos, significava outra. É a chamada teoria das ca- gens, dos personagens ou dos movimentos do texto. A alego-
madas de sentido do texto, elaborada por autores como São J erô- ria é uma espécie de metáfora que se multiplica, englobando
nimo de Alexandria, Plotino e São Clemente: e determinando outras metáforas por relações de sugestão,
1) Sentido literal: neste caso, o texto nos oferece um sentido analogia ou empatia
transparente, imediatamente apreensível e determinado. Os Percebe-se, assim, que os antigos hermeneutas estavam se
problemas levantados aqui são relativos à própria materiali- debatendo com o que hoje chamaríamos de métodos de leitura
dade do texto: sua legitimidade, a fidelidade de sua tradução de textos.Na Antiguidade havia uma hierarquia entre os diferen-
ou transcrição em relação àversão original, sua pertinência a tes tipos de causa descritos por Aristóteles: na cúspide estava a
um códice ou a um cânone; causa final (objeto de contemplação teórica) e na base inferior, a

90 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectims Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 91
causa eficiente (pela qual deviam se interessar os artesãos e tra- mais importante seu sentido literal. O truque aqui não é que va-
balhadores). Entre elas estavam a causa formal e a causa mate- mos voltar a uma fé interpretativa na transparência e no acesso
rial. A hierarquia epistemológica das causas refletia a hierarquia imediato ao sentido, mas em abordar a produção de sentido pela
social do mundo antigo e medieval, com os aristocratas "pensan- negatividade, ou seja, pelas zonas e estratégias de produção de
tes" em cima e os artesãos e técnicos "trabalhadores" embaixo. "não sentido". É assim que nossa consciência lida intuitivamen-
Algo similar acontecia com os sentidos de um texto: o mais sim- te com o inconsciente, como zonas ou ocorrências de não senti-
ples e literal ficava embaixo e era acessível a todos, ao passo que do. Há muitas formas de verificar a negação do sentido, e aqui
o mais complexo e espiritual, o alegórico, ficava em cima Assim reencontramos, de modo invertido, a classificação medieval:
como a modernidade inverteu essa hierarquia das causas, ela pa- 1) O não sentido gerado por um "erro" no nível da letra, da im-
rece ter invertido a hierarquia dos sentidos, tornando-se para pressão ou da escrita, como se estivéssemos em uma violação
nós, crescentemente, mais importante a dimensão de arquivo, de sentido por corrupção do canal ou da língua que se está uti-
documento, testemunho do que a dimensão de sentido ligada à lizando. Podemos dizer que aqui estamos às voltas com uma
revelação de uma camada de sentido secreta e epifânica resistência no nível da leitura da letra, como é o caso de um
As ciências humanas - e creio que, nesse aspecto, elas in- texto rasurado, mal impresso ou sobreposto a outro;
cluem a psicanálise - caracterizam-se pelo fato de que seus mé- 2) O não sentido ocasionado pelo desencontro de interpreta-
todos não se fundamentam na exatidão e na reprodutibilidade ções, como no caso em que tomamos uma palavra ou um
experimental, mas no rigor e na disciplina que respeitam a conceito e lhe atribuímos diferentes sentidos, porque em
complexidade da produção de sentido, partindo de sua materia- cada um desses sentidos estamos fazendo valer um discurso,
lidade imediata. Foi essa a primeira revolução imposta pela ou melhor, uma série significante. Este é o caso das forma-
semiologia lacaniana. O sentido inconsciente não é algo pro- ções do inconsciente, como o chiste. Exemplo extraído do li-
fundo, acessível apenas a quem tenha a chave iniciática de seu vro freudiano dos chistes: "Um cego pergunta para um man-
funcionamento, mas ele se dá na superfície - sem profundida- co: - Como anda você? E o manco responde: - Do jeito que
de, mas nas articulações entre significantes. Ele não é composto você está vendo". O sentido do significante anda na pergunta
por conteúdos, mas por variações de forma. Ele não consiste em refere-se ao modo de estar na vida, ao passo que a resposta o
significados, mas em posições significantes. toma de forma literal. ''.Andar"e "ver" deixam de ser metáfo-
Com isso, podemos dizer que a modernidade em geral, e La- ras, permitindo assim que o diálogo ocorra de modo desen-
can em particular, inverteu a hierarquia das estratificações de contrado entre o cego e o manco, causando em nós, que so-
sentido, considerando menos importante seu sentido alegórico e mos posicionados como uma terceira pessoa, o efeito de riso;

921 Análi,;e Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análi,;e Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 193
3) O não sentido causado pelo objeto, ou seja, a negação do sen- ab-sense 14), mas agora se trata de uma negação do sentido ge-
tido psicológico de um texto, das variações de enunciação rada pela variação do enunciado, não da enunciação. É o que
que podemos impor a um enunciado. Neste caso, verificamos encontramos no não sentido dos sintomas, como uma espécie
o não sentido no interior do qual o sujeito pode emergir. de sentido imposto, coercitivo e contrário à variação. Por isso
Quando Lacan diz que recebemos nossa própria mensagem Lacan associou o desejo com a metonímia, que vai deslizando
invertida desde o Outro, ele está se referindo a essa proprie- o sentido, e o sintoma com a metáfora, que detém e mantém o
dade de inversão (que é um tipo de negação), pela qual o su- movimento do sentido. A emergência do sintoma e também a
jeito aparece ali mesmo onde ele se nega. O sujeito em um do sonho, mas em outro sentido, criam um problema herme-
texto não deve ser confundido com o eu, nem com o eu lírico nêutico espontâneo para o sujeito. Ele se vê surpreendido pela
ou com o narrador. O sujeito pode ser discernido justamente impossibilidade de variar o sentido e, ao mesmo tempo, pela
nas operações de deslocamento do narrador, de substituição repetição e insistência desse mesmo "não sentido". Por exem-
do eu lírico ou de surpresa imposta ao narratário. Um bom plo, no caso do Homem dos Ratos, o significante Ratten, "ra-
exemplo desse modo de produção de não sentido ocorre de tos", em alemão, remete simultaneamente a heiraten [casar] e
forma genérica no uso dos heterônimos em Fernando Pes- à sua dificuldade em decidir-se a casar; aRaten [prestações] e
soa, ou, para nos remetermos a um exemplo específico, na à dívida não paga legada por seu pai; aRatte [rato], animal sujo
obra memorialística de Marcel Proust, Em busca do tempo e agressivo que entra em locais apertados; aSpielratte [rato de
perdido - que, em determinado momento, introduz, para sur- jogo], alguém, como seu pai, que tem uma compulsão por jogo;
riresa do próprio leitor, um personagem chamado ''Marcel e aRattenwiihrung [moeda dos ratos], especulação criada pelo
Proust". Em outras palavras, o não sentido "psicológico" ou Homem dos Ratos que traduzia qualquer valor monetário em
"moral" pode ser localizado nas divisões, oposições, repeti- uma determinada quantia equivalente ao que ele chamou de
ções, inversões ou deformações que podemos perceber dian- "sua moeda dos ratos". Percebe-se como as diferentes valên-
te da relação dialógica inicial suposta entre o emissor da cias do significante, suas equivocações, decorrem da relação
mensagem e seu receptor; entre este sistema de diferenças sem valores fixos e sem iden-
4) O não sentido evocado pelas operações lógicas de contradi- tidade, que é o significante, para este outro sistema de lingua-
ção, indeterminação, indecidibilidade ou indiscernibilidade gem, que é a escrita - onde há elementos que não são traduzí-
do texto, ou seja, nas variações do enunciado diante da pre- veis como os nomes próprios; há identidade, no traço que se
sumida unidade e constância da enunciação. Assim como no
14 A noção de ab-sensese distingue da de non-sense.Enquanto ab-sensese relaciona a ausência de
caso anterior, estaríamos no campo de non-sense (e não do sentido, non-sensecorresponde a sua negação.

941 Análise Psicanalitlca de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitlca de Discursos: Perspectlvas Lacanianas 195
repete. A escrita não é apenas a transposição da fala, mas um Lacan, são versões que supõem o saber em algumas condições
sistema com leis próprias. Se o significante está no simbólico, elementares que corrompem ou denegam o ato perfeito de comu-
a letra está no real Se o significante está sujeito a uma dialéti- nicação. O fato de a psicanálise estudar objetos destituídos de
ca de negações, a letra é objeto de rasura ou apagamento. sentido e se deter sobre isso não quer dizer que ela o faça por meio
de uma teoria ou que seja sintática ou semanticamente mal cons-
Se a psicanálise se detém fundamentalmente sobre os fenô- truída Ocorre que, nesse caso, teríamos uma teoria que não seco-
menos de negação do sentido, ela coloca-se imediatamente, do munica com a lógica expressiva dos objetos que pretende apreen-
ponto de vista de seu objeto, em uma tensão com a perspectiva der, o que contraria a regra lacaniana do estilo-metalinguagem.
epistemológica desenvolvida pela Escola de Viena, precursora Segundo Jakobson (1961/1999), toda comunicação envolve
do positivismo lógico - notadamente as teses de Rudolph Car- um emissor, um receptor, um código e uma mensagem, além de
nap (1955/1980, pp. 171-213) sobre os critérios que devemos um canal em que a mensagem se efetua. A partir dessas condi-
procurar nesta linguagem bem-feita que define e caracteriza a ções, Jakobson deduziu certas funções da linguagem: a função
ciência. Para ele, a ciência constrói-se sobre enunciados "pro- fática, que enfatiza o laço entre emissor e receptor; afunção re-
tocolares", imediatos e elementares, que permitem mostrar o ferencial, que enfatiza a relação da mensagem com o mundo; a
sentido de um termo e como ele participa de um conjunto sintá- função expressiva, que salienta a relação do emissor com a men-
tico-semântico: "uma proposição se define por suas condições sagem; a função metalinguística, que se liga à relação da mensa-
de verdade e seus métodos de verificação" - daí o nome de sua gem com o código; e, finalmente, a função poética, que valoriza a
doutrina, o verificacionismo. Para ele, a falta de sentido advém relação entre a mensagem e seu canal.
dos mesmos pontos acima elencados: falta de significado de Ora, as controvérsias históricas sobre como ler um texto no
seus termos (agramaticismo), intermissão contraditória entre fundo são variações sobre onde colocar o acento da determina-
eles (ilogismo) ou ausência de acréscimo de sentido na proposi- ção do sentido: no autor (psicologismo, hermenêutica românti-
ção (tautologia). Em suma, a não verificabilidade pode ocorrer ca), no receptor (estética da recepção, antropologia da leitura),
por motivos sintáticos, como uma falha semântica - como no no código (historicismo, contextualismo) ou na própria mensa-
enunciado "César é um número primo" - ou pela combinação gem (estruturalismo). Podemos transportar essas atitudes
gramaticalmente indevida entre classes de termos - como, por diante da produção do sentido para distinguir o que vem a ser o
exemplo, no enunciado "César é um e". exercício de leitura enquanto explicitação das condições mate-
Portanto, tanto a teoria medieval do sentido como sua versão riais de produção do sentido; da prática da interpretação, na
invertida, modificada e negativa, que podemos reconhecer em qual predomina a intenção de articulação do texto com outros

96 1 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaniana.s Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaniana.s J 97
textos conforme o interesse de pesquisa e investigação do in- introdução da noção de sujeito, como crítica à teoria freudiana
térprete; da disciplina do comentário, na qual enfatizamos a do narcisismo; e da introdução da noção de gozo, como especifi-
construção de correlações entre o texto e a obra ou entre o texto cação da teoria freudiana da pulsão de morte. Em todos os ca-
e seus diferentes contextos; e, ainda, da construção ou recons- sos, o critério adotado é a não incompatibilidade, a necessidade
trução, que é o exercício de formalização lógica, ou de reescrita epistemológica e a exigência clínica que justificam a interpre-
sintética, do texto que se tem diante de si tação do texto freudiano em uma chave que não era a sua origi-
Essas diferentes atitudes metodológicas estão presentes nalmente. Esse é o caso de textos como Introdução ao comentá-
quando examinamos a maneira como Lacan lida com o texto de rio de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud (LACAN,
Freud. Lacan é um leitor de Freud, uma vez que ele se preocupa 1954/1998a) ou Resposta ao comentário de JeanHyppolite sobre
em examinar o texto desse autor em sua língua original, o ale- a Verneinung de Freud (LACAN,1954/1998b). Apesar de os títu-
mão, discernindo cuidadosamente certos termos que consti- los remeterem à ideia de comentário, o que encontramos nesses
tuem noções que passaram despercebidas, assim como certas textos é uma interpretação do artigo de Freud sobre a negação, à
noções - como a ressignificação só depois (apres-coup, Na- luz de uma intenção muito clara e definida, estranha à obra de
chtriiglichkeit) e a Verwerfung (foraclusão) - que permaneciam Freud, a saber: a teoria hegeliana das negações.
obscuras aos psicanalistas da sua época. Lacan é também um
leitor de Freud ao enfatizar a importância política de retornar 1.6. O conceito de construção em psicanálise
aos seus textos seminais - como Interpretação dos sonhos O conceito psicanalítico de construção é um conceito-limi-
(1900/1988), Psicopatologia da vida cotidiana (1901/1988) ou O te, proposto por Freud para dar conta daquilo que, no interior
chiste e sua relação com o inconsciente (1905/1988b) - para ob- de uma análise, não pode ser lembrado. O limite mesmo de um
ter uma justa compreensão de sua obra. Também ao valorizar programa clínico baseado na reconstrução de experiências
textos excluídos do cânone freudiano - como o texto sobre as traumáticas esquecidas. Contudo, o procedimento clínico da
afasias e o Projeto de psicologia científica para neurólogos-, La- construção requer certas habilidades da parte do psicanalista.
can está agindo como um leitor de Freud. A construção deve produzir uma unidade entre diferentes pro-
Mas Lacan é também um intérprete de Freud, ao trazer para cessos interpretativos levados a cabo durante o tratamento. Por
a obra freudiana desenvolvimentos que não estavam evidentes outro lado, a construção é um conceito-limite, porque ela per-
nem eram presumíveis da pesquisa inaugurada por Freud. mite que a psicanálise se conecte com outros discursos. Diz-se
Esse é o caso da introdução da noção de significante, como crí- que uma construção deve manter pertinência com a considera-
tica ao conceito freudiano de representação [Vorstellung]; da ção científica do nome do pai, ou seja, deve estar ancorada na

981 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalilica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 99
gramaticalidade do discurso daquele que se esquece, mas que, aos critérios de validade da construção, pois "[...] apenas a conti-
concomitantemente, deixa rastros da forma como ocorreu o es- nuação da análise pode decidir se nossa construção é correta ou
. 1
quecimento. Ela deve também ser uma espécie de escrita, lógica viável" (FREUD, 1937/1988, p. 266). O critério estabelecido por
ou poética, do real. Finalmente, ela deve discernir um estilo, Freud não é o assentimento (ou a confissão, na lógica jurídica),
uma regra comum, na envoltura formal dos diferentes sintomas. mas a confirmação indireta pelo material. Exemplo: um paciente
Construção é também um conceito na filosofia da lingua- se queixa de que sua esposa não lhe concede favores sexuais. Ele a
gem, na matemática, na lógica e na topologia. Em Freud é a no- traz ao consultório e pede a Freud que lhe explique as consequên-
ção de construção que se presta a particularizar e definir o caso cias de sua atitude. Freud começa então a mostrar como essa re-
clínico, entre a peça de argumentação e a narrativa literária. Ao cusa pode trazer "lamentáveis perturbações à saúde dele e ainda
apresentar a noção de Konstruktion, Freud parece retomar os tentações que poderiam levar à quebra do matrimônio". Nesse
três ângulos semânticos examinados anteriormente: ponto o marido intervém: "O inglês em que você diagnosticou
"[O analista] tem que coligir o esquecido desde os indícios um tumor cerebral também morreu" (FREUD, 1937/1988, p.
que este deixou atrás de si; melhor dito, tem que construí-lo" 265). É óbvio que o marido queria corroborar o "diagnóstico" de
(FREUD, 1937/1988, p. 260) como um arqueólogo -visto que, Freud, mas ele não o faz direta, e sim indiretamente, através des-
para este, a reconstrução é um fim em si mesma, e, para o psica- se comentário aparentemente sem sentido. Assim como na
nalista, é um meio. Ora, o critério aqui empregado é o critério da construção do caso médico, não interessa o assentimento cons-
verossimilhança, ou seja, a conjectura ou ficção que acolha, reú- ciente do paciente, mas as corroborações indiretas, reveladas
na e seja corroborada pelo maior número de elementos do caso. pela evolução do quadro clínico. O critério em curso aqui é a efi-
Encontramos aqui a figura do investigador policial, ou do pro- cácia, não a verdade tética dos acontecimentos - daí que uma
cesso jurídico às voltas com a produção de uma verdade. "[...] construção eficaz tenha o mesmo valor terapêutico de uma lem-
Não só há método na loucura, como discerniu o poeta, senão que brança rememorada (FREUD, 1937/1988). Vemos, assim, que o
ela contém também um fragmento de verdade histórico-viven- conceito de construção nos remete à ideia de escrita, e esta nos
cial [historische Wahrheit]" (FREUD,1937/1988,p. 269). Chega- conduz ao que Lacan chama de Real. A construção está para
mos assim à tese de que a construção nos remete à ficção, e esta, Freud assim como a escrita e a formalização estão para Lacan.
em Lacan, é um dos critérios da verdade. A verdade se estrutura A construção consistiria em "liberar o fragmento de verdade
como ficção, e a ficção se estrutura como uma construção. histórico-vivencial de suas desfigurações e apoios no real-obje-
Se a finalidade da investigação não é a inclusão ou a exclusão tivo, e ressituá-lo nos lugares do passado a que pertence"
em categorias de potencial dedutivo, surge o problema relativo (FREUD, 1937/1988, p. 269). A função da construção é equipa-

100 j Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 101
rada, aqui, à função do delírio na psicose. Ora, sabemos que essa 1.7. Do conceito ao Método Estrutural: Lacan
função se refere a uma tentativa de cura pelo reinvestimento Reunindo o exercício do rigor no trato do texto com a inclusão
que faz de realidade. Ou seja, o delírio é uma espécie de realida- do texto em uma série em movimento, Lacan foi também um co-
de artificial construída para tratar o Real. Se o Real não é repre- mentador de Freud. Nesse caso, podemos comparar Lacan com
sentável por descrição, mas corresponde tanto à deformação Jean Laplanche, Octave Mannoni, Peter Gay e a série de autores
quanto ao limite do que pode ser descrito, encontramos aqui as que tentaram fixar o sentido da mensagem freudiana combinan-
duas estratégias de cercamento do Real, presentes na noção de do movimentos de leitura com movimentos de interpretação (so-
construção: a via dos poetas e a da formalização lógica. "Se se ciológica, histórica, literária, epistemológica) da obra do funda-
toma a humanidade como um todo e se a põe em lugar do indiví- dor da psicanálise. A prática do comentário oscila entre o polo da
duo humano isolado, resta que também ela desenvolveu forma- erudição e o da especulação, buscando a explicitação de seu senti-
ções delirantes inacessíveis à crítica lógica e que contradizem a do segundo certa estratégia de organização, temática, biográfica,
realidade efetiva [Wirklichkeit]" (FREUD, 1937/1988, p. 270). historiográfica, tendo em vista um critério que é a verdade do que
Vemos, assim, que o conceito de construção inclui os próprios se encontra no texto do autor (FOLSCHEID; WUNENBERG,
ato, hipótese ou ilação sobre o objeto estudado como parte des- 1992/1997). Textos de Lacan como ''A coisa freudiana" ou ''A psi-
se objeto e os efeitos do método sobre os próprios princípios do canálise verdadeira e a falsa" têm esse horizonte por referência
método, tal qual a noção psicanalítica de transferência Finalmente, temos Lacan como um autor que pratica re-
Vemos aqui como a noção de construção aponta para o ter- construções da obra de Freud. O método da reconstrução im-
reno da realidade [Realitiit] e do Real [Wirklichkeit], sem que plica uma decomposição do texto de saída segundo a lógica de
este se confunda com o critério da eficácia terapêutica nem sua composição e, em seguida, uma reconstrução do texto em
com o critério da verdade [Wahrheit]. É, sobretudo, o domínio um texto de chegada, que não guarda mais pertinência com os
da clínica como clínica da linguagem que está comprometido termos ou as estratégias expressivas ou estilísticas, mas pre-
aqui. AB três dimensões da noção de construção, metodologica- serva e extrai sua forma lógica. O comentário está para a tradu-
mente enfatizadas aqui, possuem estreita relação com as linha- ção assim como a transliteração está para a reconstrução. O
gens históricas que deram origem à psicanálise como prática de comentário atualiza a língua; a reconstrução cria homologias
cura, psicoterapia e clínica. entre sistemas de escrita.
Portanto, a construção corresponde, assim, à dimensão do Esse é o método estrutural que Lacan pratica em seus semi-
conceito [Begriefj] como tempo da experiência, reconstrução nários, e cujo exemplo parece ter sido escolhido para abrir os
de seu percurso de contradições e história condensada. Escritos (LACAN, 1998), ou seja, na reconstrução estrutural

102 I Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1103
que Lacan faz do conto de Edgar Allan Poe, chamado ''A carta terpretação, percebendo que envolvia uma espécie de pressu-
roubada", de tal maneira que extrai dele uma lógica do signifi- posto sobre como o tempo incide na obra dos filósofos. Foi as-
. l
cante, uma temporalidade do texto, uma teoria da realização do sim que ele escreveu seu opúsculo Tempo lógico e tempo históri-
desejo, e assim por diante. Também é essa a estratégia que en- co na interpretação dos sistemas filosóficos (GOLDSCHMIDT,
contramos na reconstrução do caso do Homem dos Ratos (LA- 1947/1963), como adendo metodológico ao seu magistral traba-
CAN, 1953/2008), a partir das regras do método estrutural lho de reconstrução da obra de Platão. Segundo Goldschmidt,
apresentadas por Claude Lévi-Strauss. há dois métodos tradicionais de interpretação histórica dos sis-
O fato de que Lacan tenha sido, de modo combinado, alterna- temas filosóficos: o dogmático e o genético. O que um parece ter
do e constante um leitor, um intérprete, um comentador e um de científico, o outro parece ter de rigoroso - sendo sua ambição
reconstrutor da obra de Freud, além de um autor que desenvol- reunir essas duas condições. Se pensamos a filosofia como ex-
veu seus próprios problemas e soluções, toma a abordagem de plicitação de uma ideia, percebemos que ela se compõe de mo-
seu texto extremamente difícil. Ainda não estão claras, para os vimentos sucessivos, nos quais se abandonam e ultrapassam
continuadores de Lacan, as oscilações metodológicas de seu pro- teses ligadas umas às outras. A isso ele chama de ordem das ra-
grama e, consequentemente, a heterogeneidade de sua produ- zões:"[ ...] a progressão (método) desses movimentos dá à obra
ção. AB inúmeras homologias que ele propõe com outros autores, escrita sua estrutura e efetua-se em um tempo lógico" (GOLDS-
como Marx, Hegel, Kant e Joyce, e com a matemática só são CHMIDT, 1947/1963, p. 140). Isso permite definir a prática da
compreensíveis à luz das distinções que apresentamos acima interpretação de textos como a arte de reaprender, conforme a
Um dos motivos para que a obscuridade do método lacania- intenção do autor, a ordem das razões, "sem jamais separar as
no ainda não tenha preocupado os comentadores e intérpretes teses dos movimentos que as produziram" (GOLDSCHMIDT,
de Lacan pode estar na indiferença com a qual se tem tratado o 1947/1963). É preciso estudar a "estrutura de comportamento"
fato de que Lacan foi um membro ativo da Sociedade Francesa do texto ou da obra, pensada como o conjunto de relações inter-
de Filosofia, participando regularmente de seus encontros e nas. Ler estruturalmente um texto é sair da doutrina e alcançar
reuniões, ao lado de Émile Bréhier, Léon Brunschwig, André o seu método, é passar da ordem dos temas para a ordem das
Lalande e Martial Guéroult. Isso teria permitido entrever a razões, é ligar as teses com seus movimentos de produção. No
grande afinidade entre a síntese metodológica desses pensado- fundo, o tempo lógico implica a crítica da crença na anteriori-
res, proposta por Victor Goldschmidt, e o método de Lacan. dade da existência da doutrina em relação à sua exposição.
Platonista e estudioso dos pensadores clássicos, Goldsch- Os movimentos do texto estão inscritos na estrutura da
midt dedicou-se ao problema da relação entre comentário e in- obra, e a estrutura da obra são as "articulações do método em

104 J Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J 105
ato" (GOLDSCHMIDT, 1947/1963, p.143); é delas que se deduz Compreender a independência relativa dos sistemas em re-
a arquitetura da obra. Se os movimentos e a progressão impli- lação ao tempo genético, o tempo psicológico, o tempo da recep-
cam o tempo, o tempo estritamente metodológico, é preciso ção significa isolar história da vida do autor, história dos fatos
reconstruir a lógica desse tempo. Nisso Goldschmidt segue Ba- políticos, história dos fatos econômicos, história das ciências,
chelard e sua ideia de que o pensamento se desenvolve no tempo história da arte, história das ideias gerais, que são histórias ex-
lógico, e não no tempo da vida: ''Esta 'temporalidade' está conti- teriores ao sistema do texto: "Tais ucronias fazem ver que o que
da, como cristalizada, na estrutura da obra, como o tempo musi- é essencial num pensamento filosófico é uma certa estrutura''
cal na partitura'' (GOLDSCHMIDT, 1947/1963, p.143). (GOLDSCHMIDT, 1947/1963, p. 64). Mas a estrutura não se
Goldschmidt e Bachelard antecipam Koyré, T. S. Kuhn - de opõe àgênese. A estrutura domina e compreende a gênese como
quem foi orientador - e Althusser, que inspirou alunos de La- causa e devir interno ao sistema Disso se extrai um segundo
can- como Jean-Claude Milner, J acques-Alain Miller, Étienne princípio de método: a coerênciafilosóficase mede pela respon-
Balibar e Jacques Ranciere - na ideia de que a ciência se trans- sabilidade,nãopelo princípio de não contradição.Ou seja, diante
forma por cortes ou por revoluções marcadas pela descontinui- de uma disparidade, de uma incongruência, de uma variação,
dade entre formas de pensamento; daí que sua história não não devemos procurar uma espécie de síntese ou solução final,
possa ser descrita como uma acumulação contínua de conheci- muito menos uma hierarquia que situe no fim da obra a neces-
mentos e descobertas empíricas. O método estrutural procura sidade da verdade de sua gênese. As diferenças que a obra apre-
recolocar em movimento a estrutura, situando-se em um tem- senta com relação a si mesma são sua estrutura. Suas dispari-
po lógico. Para tanto, ele inicialmente dissocia a ordem dos te- dades devem ser aceitas sem aplainamentos nem desculpas,
mas ou das matérias, expostas em um sistema filosófico. Em como se os erros de juventude fossem apenas preparações para
seguida, essas matérias são reordenadas segundo a ordem das a sapiência da maturidade.
razões, ou seja, segundo a hierarquia de argumentos que logica-
mente se condicionam uns aos outros. Dessa maneira, um tema [...] a missão interpretativa de uma causalidade estrutural
abordado no fim cronológico de uma obra pode ser reconhecido encontrará, pelo contrário, seu conteúdo privilegiado em
como logicamente inicial ou primeiro, ao passo que certos te- falhas e descontinuidades dentro da obra e, em última
mas que aparecem no início de uma investigação podem-se re- análise, na concepção do antigo conceito de "obra de arte"
como sendo um texto heterogêneo e (para usarmos a de-
velar, logicamente, últimos, segundo a ordem das razões. Isso se
nominação mais dramática e recente) um texto esquizo-
deve ao fato de que certas descobertas e necessidades de expo- frênico. (GOLDSCHMIDT, 1947/1963, p. 50)
sição impõem-se ao que pode ser central em uma obra.

106 I Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1107
Se a distinção entre reconstrução e leitura parece simples e truturais de um texto científico, porque ele é, por definição, par-
mutuamente condicionada, a fronteira entre comentário e in- te de uma série aberta, que nos convida à reinterpretação de si
terpretação é, ela mesma, objeto de controvérsia. Para os positi- mesmo diante de novas evidências.
vistas, seria possível separar absolutamente o comentário do Isso torna o método de investigação em psicanálise um mé-
texto, referente ao que o texto diz, de sua interpretação - ou todo bífido, condicionado pelo comentário, mas inerentemente
seja, de como este texto se insere em uma ordem de razões que orientado para a interpretação. Observemos que o método es-
o ultrapassa A tese de Lacan de que, ao ler um texto, devemos trutural de Goldschmidt obtém seus melhores resultados sobre
colocar "algo de nós próprios" deve ser compreendida não como sistemas de textos relativamente fechados em forma de obra,
uma sanção irrestrita ao psicologismo, mas como a afirmação como a obra de Platão ou Descartes, ou sobre os sistemas meta-
metodológica de que, depois da disciplina do comentário - que físicos. Goldschmidt quer separar as centenas de anos de co-
tem por objetivo localizar os diferentes sentidos de um texto, as mentários sobre esses textos da primazia da abordagem direta
contrariedades entre suas noções, ou a contradição entre seus do texto e sua reconstrução lógica, combinando prática rigoro-
conceitos-, podemos então introduzir o momento da interpre- sa de leitura e reconstrução lógica de ideias. Com isso, ele quer
tação. Ou seja, o comentário reconhece o conflito no sentido, a se afastar tanto do comentário quanto da interpretação. Sua
interpretação surge para tratar desse conflito. pretensão é criar um método que nos proteja dos principais
Há um segundo motivo pelo qual a abordagem psicanalítica equívocos em que o comentário de texto costuma recair, asa-
de textos deve comportar interpretação e comentário, assim ber: a pressuposição de essências permanentes e não históricas
como faculta a leitura e a reconstrução. E esse motivo nos re- dos objetos ou temas de uma obra (essencialismo ); o julgamento,
mete ao fato de que a doutrina psicanalítica não é propriamente interpretação ou avaliação de uma obra fora de suas circunstân-
uma doutrina, ou seja, um sistema fechado de asserções que se cias históricas de apreensão (anacronismo); a pressuposição de
remetem mutuamente e cujo critério de verdade é a consistên- existência de entidades universais como a razão, a história, a hu-
cia interna entre elas. Mesmo a metapsicologia deve estar sem- manidade que garantiriam a verdade do texto (universalismo);
pre pronta para ser reformulada por novas descobertas vindas ou a colocação de parâmetros de uma dada visão de mundo,
da experiência clínica. Uma singularidade da teoria psicanalíti- gênero, classe ou etnia para avaliar as determinações da obra
ca, enquanto teoria, é que ela se assemelha, por vezes, a um sis- (etnocentrismo ).
tema filosófico - ainda que não fechado como a metafísica -; Podemos agora voltar às distinções iniciais sobre o sentido
mas, em outros aspectos, ela se comporta como uma teoria de para reconfigurar como essa estratificação nos ajuda nas dife-
ciência. Nada menos apropriado do que conduzir leituras es- rentes abordagens metodológicas presentes em Lacan, talvez

108 IAmilise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacaniana.s l 109
mantendo uma relação direta com o objeto mesmo de sua in- lítico francês-, idealizaram dispositivos cuja reaplicação é ob-
vestigação. Se tomarmos o texto como uma unidade indepen- jeto de decisões políticas nos inúmeros contextos culturais em
dente, exclusivamente relacionada com outros textos, ao modo que se realiza.
de um sistema, podemos dizer que estamos privilegiando o sen- O desconhecimento de que a psicanálise é ao mesmo tempo
tido literal e a prática de leitura. Ocorre que o sentido literal de- um sistema de textos, uma prática social, uma disciplina e um
pende de uma suspensão metodológica do texto no tempo his- discurso tem produzido massas de comentários de texto cuja
tórico. Portanto, o texto se torna uma espécie de enclave sobre o irrelevância é notável. Tem criado uma confusão entre comen-
real que ele pretende escrever. tário e interpretação que libera a interpretação de qualquer ri-
Se pensarmos o texto como uma unidade dependente de suas gor. Além disso, a relativa ausência de discussões de método na
próprias condições históricas e conceituais de produção, entra- psicanálise lacaniana tem feito as análises de texto adquirirem
mos na disciplina do comentário e no seu objetivo genérico, que uma tonalidade inteiramente canônica - baseada na autorida-
é a explicitação do sentido anagógico do texto. O comentário re- de de um mestre, e não na estrutura de argumentos - , cuja prin-
cria a estrutura de ficção de um texto ou de um conjunto de tex- cipal característica é a desconsideração pela historicidade tan-
tos; para isso ele admite a verdade como constante do texto. to dos comentários quanto das interpretações, quanto mais do
Se entendermos que o texto é parte de uma prática social, texto de referência:
como a ciência ou a clínica, será preciso combinar leitura e co-
mentário com a prática da interpretação, de acordo com o que os Esta história - a "causa ausente" de Althusser e o ''Real"
antigos chamavam de sentido moral, ou seja, o sentido interessa- de Lacan - não é um texto, pois é fundamentalmente não
narrativa e não representacional; contudo pode-se acres-
do. A interpretação parte do fato de que a estrutura de verdade
centar a isso a condição de que a História, a não ser sob
de um texto apresenta lacunas, de que ela não é completa, e para forma textual, nos é inacessível, ou seja, que só pode ser
tanto requer uma perspectiva adicional, que é a interpretação. abordada por meio de uma re (textualização) anterior.
Finalmente, se entendemos que um texto compreende to- (JAMESON, 1985, p. 75)
das essas camadas de sentido, e ainda é parte de dispositivos de (

poder, de políticas que o ultrapassam em termos de objeto e de


disciplina, entraremos no campo do sentido alegórico e da prá-
tica que é a análise do discurso. Nesse caso, encontram-se os
chamados textos institucionais de Lacan, que, datados em uma
contingência específica- concernente ao movimento psicana-

110 1llmílise Psicanalítica de Di,;cursos: Perspectivas Lacanianas llnáli,;e Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1111
2.1. Lacan e a Análise do Discurso
Um problema fundamental para a epistemologia da psica-
nálise é que a sua forma de conhecer envolve tanto o manejo de
conceitos quanto de textos e, ainda, de fenômenos clínicos. Em
cada um desses níveis a psicanálise carrega uma série de obje-
ções e de restrições para se comportar no nível ordinário da
ciência. Seus conceitos envolvem uma crítica do conceito de
conceito, presente, por exemplo, na tese lacaniana de que não
existe metalinguagem (LACAN, 1966/2008a). Seus textos en-
volvem uma política de advertência permanente quanto ao ca-
ráter transparente e imediato do sentido, daí a tese lacaniana
de que a transmissão envolve um estilo, na qual a coisa tratada
depende e é covariante com o modo de sua própria exposição
(LACAN, 1966/2008b). Finalmente, seus fenômenos estão li-
gados às condições mais ou menos específicas de produção, a
saber, a fala, em primeira pessoa, em situação de transferência.
Mas, dentre as muitas e variadas definições que Lacan dá de
discurso, é importante reter duas condições persistentes: a li-
gação entre o discurso e o tempo e a precedência do discurso
sobre os registros da experiência:

Após termos nos interessado pela fala [parole],vamos


agora nos interessar lim pouco pela linguagem, à qual a
repartição tripla do simbólico, do imaginário e do real
justamente se aplica [s'applique].Seguramente o cuidado
que Saussure toma para eliminar de sua análise de lin-

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1113


guagem a consideração da articulação motora mostra um caso particular de um campo mais extenso que poderíamos
claramente que ele distingue sua autonomia. O discurso chamar de discurso. Um texto e seus enunciados sempre per-
concreto é a linguagem real [lelangageréel c'est le discours tencem a um discurso, mas nem tudo no discurso é texto. Lem-
concret],e a linguagem, isso fala. Os registros do simbóli-
bremos: o discurso concreto é real. É por isso que poderíamos
co e do imaginário se encontram nos dois outros termos
com os quais ele articula a estrutura da linguagem, isto é, dizer que o texto encontra suas condições de produção em for-
o significado e o significante. (LACAN, 1954/1988, p. 64) mações discursivas e que as formações discursivas impõem re-
gras de reconhecimento aos conceitos que preservam a hetero-
Notemos a inversão da tradução brasileira, que diz "o discur- geneidade do sentido de que se trata:
so concreto é a linguagem real", enquanto a edição francesa
aponta para" a linguagem real é o discurso concreto". E o discur- A definição de uma formação discursiva como uma forma
de repartição, ou, ainda, um sistema de dispersão convida a
so enquanto real não pode ser resumido nem à sua articulação
colocar a contradição entre a unidade e a diversidade, entre
simbólica do significante, nem à sua dimensão imaginária de
a coerência e a heterogeneidade no interior das formações
significado. Enquanto o significante se encontra em uma espé- discursivas; vem a fazer de sua unidade dividida "a própria
cie de sincronia temporal e o significado é seu efeito instantâ- lei de sua existência". (FOUCAULT,1966/1986, p. 207)
neo, o discurso, ele mesmo, é a temporalidade da linguagem,
como Lacan diz, duas páginas adiante:"[ ...] é fundamentalmen- Tais formações discursivas incluem não apenas mensagens
te verdadeiro que não há discurso sem uma certa ordem tempo- escritas, éditos, declarações jurídicas ou literárias, mas tam-
ral, e consequentemente sem uma sucessão concreta, mesmo bém instituições que restringem fortemente a valência de
se ela é virtual" (LACAN, 1954/1988 p. 66). enunciação de determinados enunciados. Elas especificam e
Temos então textos, conceitos e fenômenos em um regime individualizam quem pode falar e quem deve silenciar. Elas de-
de autocrítica e de heterogeneidade temporal. O texto - seja ele terminam o sentido da mensagem a partir da posição de quem
livro, carta, poesia, meditação filosófica ou tratado moral - sur- a cria. Nesses lugares sociais pode-se perceber a cristalização
giu como objeto historicamente preferencial de análise dadas de conflitos históricos, onde se negociam as determinações de
sua relevância política e sua força determinativa de autorida- poder e se formam regiões culturais com forte captura em in-
de. Cumpre lembrar que a interpretação de textos remonta à terdiscursos, ou seja, de sobreposição de formações discursi-
dimensão jurídico-religiosa da palavra, tensionada entre a efe- vas diferentes - como, por exemplo, a ordem médica e a ordem
meridade da enunciação oral e a perenidade da letra escrita. jurídica; ou ainda a ordem econômica e a ordem religiosa. Pare-
Essa problemática da análise de textos logo foi percebida como ce ser este o sentido da seguinte afirmação de Lacan:

114 I Análise Psicanalítica de Dillcursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 115
Cada realidade se funda e se define por um discurso. [...] E Pêcheux, na década de 1970, nasce da confluência das preocupa-
não há universo de discurso. No fim das contas, há apenas ções sobre o sentido provenientes de crítica da ideologia, repre-
isso, o laço social. Eu o designo como o termo discurso sentada por Althusser; da arqueologia do saber, proposta por
porque não há outro meio de designá-lo, uma vez que se
Foucault; da teoria psicanalítica do sujeito de Freud, apresenta-
percebeu que o laço social só se instaura por ancorar-se
na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se da por Lacan; e da semiologia estrutural de Saussure. Nessa ver-
situa sobre aquilo que formiga [o gozo], isto é, o ser falan- tente, a análise do discurso é um capítulo da análise da ideologia.
te. (LACAN, 1973/1982, p.79) De fato, em vários momentos da obra de Lacan há ressonâncias
nessa direção, desde a oposição entre palavra plena (discurso
Foi nessa direção que Ricoeur criticou o paradigma de instituinte) e palavra vazia (discurso instituído), até a noção de
Saussure e Jakobson como excessivamente dependente de no- "disque-ursocorrente" (LACAN, 1972/2014, p. 47) [disque-our-
ções elementares como o signo, e não de sentenças ou de con- courant] para designar o discurso comum, que ignora sua pró-
juntos de atos enunciativos aptos a captar a lógica articulató- pria causa real, incapaz de reconhecer o inconsciente e seus
ria de imagens (RICOEUR, 2010). Foi nessa direção, ainda, efeitos, passando pela noção de discurso interior (imaginário).
que Richards (1971) criticou essa concepção de linguagem A análise do discurso anglo-saxônica origina-se nos estudos
como muito dependente da antiga retórica dos trapos (metáfo- de Wittgenstein sobre a natureza lógica da linguagem e, depois,
ra, metonímia) como expressão direta e cognitiva dos concei- na grande metáfora da linguagem como um jogo e como famí-
tos. Percebe-se agora com mais clareza a potência da tese de lias de jogos, com regras constitutivas e reguladoras que se in-
Lacan de que o discurso se situa como um contorno no real, um tercambiam. Bons exemplos dessa abordagem podem ser en-
aparelhamento do gozo, como uma espécie de ex-sistência na contrados nas análises de discurso que caracterizam a teoria
linguagem e condição de possibilidade conceitual, dos ditos e feminista (Haraway), a teoria pós-colonial (Spivak), as teorias
enunciados simbólico-imaginários. de gênero (Butler), as teorias multiculturalistas (Homi-Bha-
Como se pode perceber, a teoria dos discursos absorve den- bha) e as teorias do cinema (Maudsey), que se desenvolveram
tro de si a controvérsia sobre o conceito contra o sentido, ou entre os anos 1980 e 1990. Aqui também encontramos resso-
sobre o oral contra o escrito. O texto é sobredeterminado pelo nâncias da análise da ideologia, mas agora expandida para uni-
discurso ao qual ele pertence. Essa é a intuição que está na ori- versos de linguagem e contextos culturais específicos, resguar-
gem das duas principais tradições em análise do discurso: a dando principalmente a força da linguagem ordinária, ou seja, a
francesa e a anglo-saxônica. linguagem comum. Talvez seja nesse sentido que possamos re-
A análise do discurso francesa, presente nos trabalhos de ter esta afirmação de Lacan sobre os discursos:

116 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 117
A primeira necessidade ó.VUYJCTI [ananke1é a Ô.VUYJCTI
do dis- tura e acontecimento. Que o acontecimento não se perca na es-
curso. [...] A lógicaformal de Aristóteles dá o primeiro passo truturação da análise e que, assim, continue causando efeitos.
que nos permite saber o que propriamente o distingue A partir de Lacan, essa questão se traduziria em: um discurso
comoo nível do enunciado,e o formula comodotadode cer-
que não fosse do semblante, um discurso que não desconheces-
ta fonte, a necessidade da enunciação, quer dizer, que não
há meio de não recolher.Poisbem, é o sentido que cada épo- se sua causa no gozo e na não existência da relação sexual de-
ca reserva ao termo bncmíµ11[episteme1,ou seja, o de uma veria estar advertido de que todo discurso sobre algo (genitivo
enunciação segura A distinção entre bncmíµ11[episteme1e objetivo) é ao mesmo tempo um discurso baseado em uma supo-
Ml;a [doxa]não é outra senão uma distinção que se situa ao sição sobre este algo (genitivo subjetivo) (LACAN, 1972/2014).
nível do discurso.(LACAN,1972/2014, p.106)
Para Lacan, esse é um dos problemas primários de sua teoria.
Como produzir o que Meyerson chamava de uma ciência do
Ora, o que todas estas abordagens em análise do discurso
Real, ou seja, uma ciência que incorporasse em seus achados e
têm em comum é um problema que estava claro de saída para
em seus métodos a distância que os métodos e perspectivas de
Lacan, qual seja: como incluir o discurso sobre o objeto na de-
abordagem científica do objeto necessariamente introduzem.
terminação do próprio objeto? Pêcheux percebeu esse proble-
Meyerson (1908/1951) era um químico polonês que inspirou,
ma da seguinte maneira:
ao lado de Politzer (1938/2001), a epistemologia lacaniana dos
anos 1930. Crítico da ingenuidade metodológica do positivismo
A partir do que precede, diremos que o gesto que consiste
em inscrever tal discurso dado em tal série, a incorporá-lo francês, ele queria que a ciência reconhecesse os perigos e de-
em um "corpus",corre sempre o risco de absorver o acon- formações em curso na identificação do objeto com o discurso
tecimento deste discurso na série na medida em que ten- sobre o objeto. Essa separação está na origem mesma do con-
de a funcionar como transcendental histórico, grade de ceito moderno de método. O método cria um objeto "operacio-
leitura ou memória do discurso em questão. (PÊCHEUX,
nal", um objeto que responde às restrições e limites que todo
1998/2002, p. 22)
método estabelece para si mesmo. Então o que dizer disso que
fica fora da identificação entre o pensado pelo método e o mun-
O que Pêcheux nos apresenta aqui é o ponto central de sua
do? De certa forma é exatamente esse problema que a análise do
argumentação em Discurso: estrutura ou acontecimento?
discurso enfrenta para sua própria autodefinição. Milán-Ra-
(1998/2002), no qual o analista de discurso reflete sobre a pos-
mos, em sua crítica da análise do discurso derivada de Pêcheux,
sibilidade de realizar uma análise discursiva que conserve um
afirma que:
espaço indeterminado ou seja, uma análise que concilie estru-

118 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1119
A teoria do reflexo: as teses clássicas do materialismo his- aparelhos (Althusser), sobredeterminado pelo antagonismo
tórico sobre a objetividade da história, a distinção objeto social (Laclau) ou pelo evento (Badiou). Retorna aqui a velha
real/objeto de conhecimento, a tese dos Aparelhos Ideoló- questão da relação entre sentido e sujeito.
gicos de Estado[ ...] todas elas compartilham o mesmo im- Mas agora ela está fortificada por uma divisão, interna à an-
passe: o curto-circuito se produz quando entra em cena a
tropologia, entre a lógica das trocas simbólicas (que entende a
ordem simbólica enquanto Outra Cena, enquanto "forma
de pensamento anterior e externa ao pensamento", que cultura como um texto) e a razão prática da produção material
subverte a relação dual entre realidade "objetiva'', "exter- (que entende a cultura como um conflito de interesses, que so-
na" e o pensamento considerado como experiência subje- bredetermina conceitos).
tiva "interna". (MILÁN- RAMOS, 2007, p.113)
Com uma virada na direção deste discurso cindido da an-
tropologia, os artistas e críticos podem resolver esses mo-
Enquanto a análise do discurso francesa toma como objeto delos contraditórios magicamente: podem adotar os dis-
privilegiado o discurso institucional-doutrinário (escrito), a farces do semiólogo cultural e do pesquisador de campo
análise do discurso anglo-saxônica se concentra na conversa- contextual, podem continuar a condenar a teoria crítica,
ção ordinária (oral). Se a tradição francesa preserva o propósito podem relativizar o sujeito, tudo ao mesmo tempo. Em
nosso atual estado de ambivalência teórico-artística e im-
textual, sua versão anglo-saxônica se concentra no fenômeno
passes políticos-culturais, a antropologia é o discurso do
da comunicação. Enquanto a primeira se dedica à explicação da compromisso na escolha. (FOSTER, 1996/2004, p. 49.)
forma do discurso (semiologia-semiótica), a segunda privilegia
sua descrição e uso (pragmática-comunicação). Se os conti- É importante delimitar as condições de circulação do saber
nentais se interessam pela estrutura - definida na confluência quando ele se estabiliza em regras tácitas e explícitas que coor-
entre linguística, história e psicanálise-, os anglo-saxônicos denam trocas sociais e atos de reconhecimento, mas também
focam na interação, pensada a partir da psicologia, da sociolo- estabelecer quando e com quais movimentos ocorrem efeitos
gia e da comunicação. de antecipação, ruptura ou conflito entre saberes-discursos di-
Vemos assim como as diferentes análises de discurso têm de ferentes. É preciso saber quais são as regras formativas do dis-
resolver problemas remanescentes das antigas querelas sobre a curso para entender os objetos que ele produz. Estamos aqui na
produção de sentido no texto e sobre a formação de conceitos. É questão do contexto e sua temporalidade.
preciso descobrir quais são as condições de produção do senti- Mantêm-se aqui as duas condições do conceito de discurso
do e sob quais critérios alguém se torna individualizado por um em Lacan: sua pertinência ao Real e ao tempo, como se poderá
discurso (Foucault), sujeitado à sua lei, interpelado por seus verificar em um dos seminários da parte final de sua obra:

120 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitfoa de Discursos: Perspectivas Lacanianas I Í21
O nó borromeano é assim justificado por materializar, por Isso não se reduz ao problema que os hermeneutas descre-
apresentar certa referência à escritura O nó borromeano veram com a ideia de "círculo hermenêutico", ou seja, o intér-
não é mais que modo de escritura Ele se prova em suma prete faz parte das condições e do campo que ele vai interpretar,
presentificando o registro do Real. Quando de saída eu me
i..rnpedindo-nos assim de considerar uma espécie de posição
interrogava sobre o estatuto do inconsciente, eu o apreendi
ao nível do que constitui efetivamente a experiência analí- externa e privilegiada de onde examinamos, como um cientista
tica Naquele momento eu não havia elaborado um discur- em um laboratório, um determinado estado de linguagem.
so como tal, a função do discurso que não veio senão um Por isso, excetuando-se os procedimentos de formalização
pouco tarde. É, portanto, este discurso que é ou está locali-
propriamente ditos, nos quais uma língua objeto tem suas pro-
zado em um laço social, e, portanto, podemos dizer, político,
e é para tanto que o discurso se situa, é para isso que eu falei priedades lógicas ou semânticas redescritas em uma lingua-
de discursos. (LACAN,1974-75, p. 98; tradução nossa) 15 gem formal, as análises de discursos se valem de metáforas,
analogias e homologias para mostrar o funcionamento regio-
Finalmente, precisamos ter uma teoria de como se efetivam
nal da língua. Temos então o que se pode chamar de estruturas
as condições intensivas ou interativas do discurso, como ele en-
de ficção, no sentido de que estabelecem condições hipotéticas
gendra pactos, compromissos retóricos e produz efeitos de po-
(fictio quer dizer "hipótese") para que um determinado regime
der. Ou seja, é preciso entender como se produzem transforma-
de verdade possa ser descrito pelo analista do discurso.Nas di-
ções e como podemos caracterizar as mudanças nos regimes de
ferentes formas de análise do discurso encontramos recorren-
saber e de sentido.
temente quatro destas estruturas de ficção: o teatro, o jogo, o
Se levarmos em conta a tese de Lacan de que não há metalin-
tribunal e o espaço. Apresentemos brevemente cada uma de-
guagem, toda forma de análise do discurso deve incluir-se em
las, de modo a introduzir procedimentos usuais da análise do
sua própria perspectiva como se fizesse parte do discurso que
discurso.
pretende analisar: "A necessidade estrutural que é carregada
A referência ao teatro pode ser encontrada extensamente
por toda expressão da verdade é justamente uma estrutura que
em um autor como Maingueneau (1993/1995) e em sua noção
é a mesma da ficção. A verdade tem uma estrutura, se podemos
de cena enunciativa. Nesse caso, o discurso é pensado como
dizer, de ficção" (LACAN, 1956-57/1995, pp. 258-259).
um teatro, com seus gêneros, com sua situação de representa-
15 "Le nceud borroméen est ici justifié de matérialiser, de présenter cette référence à l'écriture. Le ção (cena enunciativa), seus personagens, enredos e evidente-
nceud borroméen n'est, dans l'occasion, que mede d'écriture. Il se trouve en somme présentifier
le registre duRéel. Quand, au départ,je me suis interrogé sur ce qu'était l'inconscient,je n'ai en- mente seus atos dramáticos. Do lado do sujeito temos, então,
tendu le prendre qu'au niveau de ce qui constitue effectivement l'expérience analytique. À ce mo-
ment,je n'avais d'aucune façon élaboré le discours comme te!, la notion, la fonction de discours ne que distinguir o autor, o ator e o personagem. Devemos enten-
devait venir que plus tard. C'est pour autant que ce discours estou se situe un lien social et donc, il
fautle clire,politique, c'estpour autant que ce discours le situe, quej'aiparlé de discours". der que aquele que fala, o locutor, não é necessariamente aquele

122 J Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 123
que efetivamente propõe o enunciado (diretor ou autor da shifter de tempo, pois seu valor depende do momento em que é
peça). Fenômenos como a ironia, o sarcasmo e o cinismo, nos empregado; se isso for dito "agora", ele quer dizer uma coisa; se
quais o sujeito fala uma coisa, mas diz outra, mostram como o foi dito "antes de ontem", o sentido de "amanhã" é outro. Quan-
personagem pode inclusive lidar com sua própria condição de do escrevo "lá'', estou indicando um lugar, e cruzando isso com
personagem, aparecendo, discursivamente, como mais ou me- o shifter "nós", de pessoa, contido em "combinamos", fixo odes-
nos consciente de sua posição. Se pensarmos que o teatro ad- tinatário de minha mensagem. Lacan afirmava que o sujeito é
mite extensões históricas como a ópera e a tragédia, podemos dividido justamente porque a relação entre o enunciado e a
entender que o discurso é composto por várias vozes, que ora enunciação jamais se unifica perfeitamente. Por exemplo,
tendem ao acordo, ora à dissonância, ou ao ruído e à sobreposi- quando faço o enunciado "eu, agora, estou mentindo", no plano
ção - de tal forma que, em um único personagem, podemos da enunciação estou dizendo a verdade. Para Lacan, o sujeito é
encontrar uma polifonia de vozes, como nos propõe Bakhtin. um efeito do discurso, e não o seu autor e agente, porque esse
Disso se depreende uma propriedade muito importante: a he- lugar da enunciação, segundo a hipótese do inconsciente, é
terogeneidade discursiva. Ou seja, um discurso é parasitado ou parcialmente insabido para o próprio falante. Em outras pala-
atravessado por muitos outros, e podemos encontrar um mes- vras, o eu acredita-se senhor, diretor e autor de sua fala, mas é
mo termo realizando várias funções e satisfazendo diferentes mais seguramente um personagem que está alienado de sua
interesses. Essa heterogeneidade pode ser mostrada, por própria condição de personagem.
exemplo, na variação do discurso direto ao indireto, mas tam- Foi essa propriedade que levou Althusser a pensar o sujeito
bém pode estar escondida em pontos de ambiguidade, citações da ideologia como este personagem ou indivíduo que se acredi-
ou passagens em diálogo. A heterogeneidade do discurso repli- ta implicado no shifter que o Outro nos impõe, ao dizer "faça
ca e explora a diferença entre aquilo que se diz, ou seja, o enun- isso" ou "pense assim" ou, ainda, "aja desta maneira". É o que ele
ciado, e o lugar de onde dizemos, ou seja, a enunciação. A lin- chama de interpelação ideológica, ou seja, esta propriedade da
guística da enunciação, desenvolvida por Ducrot e Todorov, linguagem - mas também de nossa articulação social - de nos
confere especial atenção à análise de certas partículas prono- impor a crença na soberania do indivíduo, e de convocá-lo em
minais, os embreantes ou shifters, que se prestam a indicar, no situação de reprodução da autoridade constituída quando ele é,
enunciado, onde está o sujeito da enunciação. Por exemplo, por um lado, a-sujeitado à linguagem-ideologia e, por outro, di-
quando escrevo: "encontre-me lá, amanhã, conforme combina- vidido em sua condição de sujeito desde o inconsciente.
mos", o termo "me" é um shifter de pessoa, pois ele varia de A segunda estrutura de ficção, presente em diferentes mo-
acordo com quem o emprega- nesse caso, "eu". ''.Amanhã" é um delos de análise do discurso é o jogo. ''A análise inteira, quero

124 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 125
dizer a técnica analítica, pode de certa maneira elucidar essa mas estou efetivamente fazendo algo, estou contratando uma
referência, se for considerada como um jogo - entre aspas - de pessoa. O mesmo se encontrará em enunciados como "eu te ba-
interpretação" (LACAN, 1969-70/1992, p.126). tizo" (diante de um navio no cais), "sim, eu aceito" (diante de um
Nesse caso, o discurso deve ser entendido como uma conco- padre na igreja) ou "foi tão bom para você quanto para mim?'
mitância entre regra e conflito, na qual diferentes jogadores (diante de alguém na cama).
agem com a linguagem. Essa ideia de que a linguagem é com- Essa dimensão performativa do discurso aparece primeira-
posta por diferentes famílias de jogos de linguagem foi elabora- mente em Lacan na ideia de que a fala é um instrumento emi-
da por Wittgenstein no contexto de sua autocrítica ao entendi- nentemente simbólico, porque nos coloca diante de um pacto
mento da linguagem como uma representação lógico-pictórica com o outro. Por meio da promessa, do engano e até mesmo da
do mundo. Segundo Hintikka & Hintikka (1994), há dois tipos transgressão, minha fala age no interior de um regime de per-
diferentes de regras nos jogos de linguagem, que o analista do formatividade que define o desejo não como a vontade por obje-
discurso pode vir a descrever: as constitutivas - que, se forem tos, mas como desejo de reconhecimento. Essa gramática geral
transgredidas ou modificadas, alteram o jogo no qual estamos do reconhecimento é a lei geral do desejo. Por meio dela o sujeito
- e as regulativas - que são recompostas a cada momento du- se humaniza, se socializa e se civiliza, de tal maneira que entrar
rante a prática do jogo, correspondendo mais ao plano estraté- na linguagem é reconhecer os diferentes sistemas simbólicos e,
gico e tático do discurso. A noção de jogo se encontrará também no limite, a ordem simbólica que torna todos sujeitos desse
em autores da filosofia da linguagem, como Austin e Searle, que pacto de reconhecimento do desejo pelo desejo. No interior
se dedicaram a estudar os atos de linguagem, separando a sua desse pacto somos simultaneamente senhores e escravos, em
força ou fraqueza elocucionária - ou seja, a dimensão de persua- antagonismo com outros de quem esperamos reconhecimento
são, crença ou convencimento, da sua potência para descrever e com quem lutamos para erigir e desfazer as leis que a cada
coisas e fatos no mundo. Cabe notar que essa perspectiva do va- momento presidem atos de negação, pelo trabalho, pelo desejo e
lor de verdade do enunciado é suspensa e substituída pela sua pela linguagem, que constituem, a cada vez, o sujeito diante do
"felicidade" ou eficiência pragmática. O discurso é entendido Outro. O que Lacan chama de dialética do senhor e do escravo,
aqui como uma ação, principalmente quando reconhecemos a em alusão a um capítulo da Fenomenologia do espírito, de Hegel,
dimensão performativa da linguagem. Nesse caso, se quiser- é, no fundo, uma teoria do reconhecimento que coloca o per-
mos usar a noção de verdade, ela deve ser oposta à de mentira, e formativo como gramática geral do antagonismo nas trocas
não à de falsidade, erro ou ilusão. Quando digo "O senhor está sociais. Há, portanto, uma sobreposição entre dois jogos de
contratado", não estou somente representando fatos do mundo, linguagem, entre essa lei universal do reconhecimento e outra

1261 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J\nálli;e Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l127
lei que lhe seria homóloga em termos de linguagem, alei do sig- que os discursos criam corporeidades. Nesse caso, a verdade
nificante: "[...] a linguística, cujo modelo é o jogo combinatório não se opõe nem ao erro nem à mentira, mas à crença autêntica
operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-sub- ou inautêntica. E o corpo é desde sempre uma unidade, à qual
jetiva - é esta estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente" atribuímos um sentido e uma tendência.
(LACAN, 1964/1998, p. 26). Esse efeito de unificação permite que falemos, com Foucault,
Outro autor que também trabalha a questão da performati- em regimes de verdade,inerentes a cada discurso, e em formações
vidade de um modo discursivo é Jacques Derrida (1977). O filó- discursivas, como compósitos de enunciados, acontecimentos e
sofo afirma, em consonância com Lacan, que o ato performati- disposições institucionais, que, apesar de sua heterogeneidade,
vo não pode ser saturado, já que pressupõe um sujeito dividido são percebidas como unidades individualizadas em sua autori-
entre enunciado e enunciação, submetido aos diversos proces- dade e saber - o que toma todo discurso uma ordem, com o duplo
sos de significação que coloca em ato. Esse jogo performativo dá sentido que o termo comporta.
mostras da não obviedade do sentido e da pujança pulsional É também nesse sentido que Lacan (1969-70/1992) falará
premente em qualquer ato de fala. em quatro discursos, como organizadores do laço social, segun-
A terceira grande estrutura de ficção empregada pelas análi- do certos regimes de gozo:
ses de discurso nos remete à ordem jurídica e ao discurso como • O discurso do mestre, que tem por agente o significante da au-
contrato social.Nesse caso, podemos entender o discurso como toridade insensata, da autoridade que se autojustifica - vale
uma interação de argumentos ou como uma concorrência de dizer, que se justifica por seu próprio discurso;
versões, tendo em vista a relação entre o orador e o auditório • O discurso da histeria, que é uma espécie de sintoma do dis-
(retórica), ou o tipo de argumento empregado (análise de argu- curso do mestre e que tem por agente a exposição da divisão
mentação), ou até mesmo a concorrência pela produção de uma do sujeito, denunciando - e, com isso, demandando - uma
determinada realidade interna ao discurso, em conformidade nova articulação de saber;
com a noção de realidade diegética proposta por Genette • O discurso da universidade, que toma por agente o próprio sa-
(1994/2001). Aqui o discurso engendra uma relação ético-políti- ber, objetivando suas figuras de alteridade em estudantes obe-
ca criando relações que constituem sujeitos, organizam saberes dientes;
e formas de poder. Todo discurso possui um ethos discursivo, um • O discurso do psicanalista, que coloca o objeto como agente,
gênero que define certas regras para ser lido e interpretado. Den- evidenciando que o laço social com o outro está baseado em
tro dessas regras desenvolvem-se efeitos de autoridade e sedu- relações de extração de gozo, indutoras de sujeitos, que surgi-
ção, de pressuposição e interpelação, que nos permitem pensar riam assim na posição de alteridade desse discurso.

128 j Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1129
2.2. Discurso e sujeito texto comporta, qual a posição de individualização que o texto
Uma vez que verificamos uma conexidade sugestiva entre interpela ou convoca no narratário ou em seu destinatário;
temas e noções recorrentes nas análises do discurso e na psica- 4) A economia de saber e verdade que o discurso constitui em
nálise, podemos agora apresentar em que sentido a psicanálise seu desenrolar; o tipo de jogo, teatro ou contrato que ele rea-
pode ser empregada como um método de análise do discurso. liza com seu destinatário;
Segundo o psicanalista Ian Parker (1997), o giro para a lingua- 5) Como o discurso se comporta em sua relação entre metalin-
gem na psicologia e nas ciências humanas, a partir das décadas guagem e estilo; quais são os interdiscursos, os pontos de au-
de 1960 e 1970, acontece principalmente como resposta a uma toridade e autoria; a forma como se resolve a relação entre o
crise e ao esgotamento de paradigmas baseados na oposição modo de exposição e o conteúdo afirmado ou negado;
entre interioridade (mentalismo) e exterioridade (teorias so- 6) A forma como o discurso lida com sua própria impossibilida-
ciais), cruzadas pelo debate entre o inato (nature) e o aprendido de estrutural; a forma como educa, ordena, faz desejar ou ana-
(nurture) - e que evoluiu, nos anos 1990, para uma tensão entre lisa um objeto - particularmente a existência de cortes, inter-
construtivistas e realistas, para as epistemologias da complexi- rupções e suspensões da série significante ou argumentativa;
dade e os diferentes debates sobre a contextualização cultural e 7) A maneira como o texto articula efeito de imaginarização
discursiva da ciência. (exemplos, ilustrações, comunhões de sentido) com artifí-
Parker (2005, pp. 163-82) e seus colaboradores (PAVÓN- cios simbólicos e com seus cortes reais.
-CUELLAR, 2014) estabeleceram um conjunto de sete condi-
ções para uma possível Análise do Discurso orientada em La- É nesse contexto que o pensamento anglo-saxônico sobre a
can, que sintetizam o que até aqui foi exposto e argumentado: linguagem começa a procurar novos problemas tanto na feno-
1) Atenção às qualidades formais do texto, particularmente às menologia alemã quanto no pós-estruturalismo francês. Verifi-
diferenças, dualidades e oposições que o próprio discurso ca-se, então, um retorno à significação construída pelo sujeito
constitui; aos significantes mestres que o organizam, bem na "vida cotidiana" (a linguagem ordinária), a revalorização do
como à posição na qual se localiza o sujeito; repertório interpretativo que define um discurso. Os discursos
2) Descrição dos modos representativos que o discurso apre- criam os objetos dos quais falamos (Foucault) e o sujeito apare-
senta, os elementos de repetição ou de iteração, os significan- ce como uma nodulação dos discursos, ao modo de uma polifo-
tes recorrentes em suas relações metafóricas e metonímicas, nia (Bakhtin). Nesse momento, a psicologia do ego - com sua
as ancoragens para as quais o texto converge ou diverge; descrição genérica de instituições e controle da psicologia hu-
3) O regime de interioridade e de exterioridade que a topologia do mana a partir de centros unificados - perde espaço para a psi-

130 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 131
canálise derivada de Lacan, que valoriza experiências da vida modos de expressão - incluindo o estilo, as escolhas de tradução e
moderna em que o self está fragmentado e capturado por múlti- as estratégias composicionais - não são estranhos ao teor de ver-
plos sistemas simbólicos. dade que se quer analisar. O estiloé o homem a quem nos dirigimos:
Portanto, uma condição para a aproximação entre psicanáli- a máxima colhida por Lacan de Buffon contém um pequeno prin-
se e análise do discurso é considerar as transformações con- cípio de método. O princípio de que o que se enuncia não é indife-
temporâneas no interior das ciências humanas, com a eleição rente à forma comose enuncia,nem à posição de quem o enuncia.
de fenômenos coletivos. Assim, a psicanálise surge como uma Mas esse princípio presume a incorporação da noção de dis-
estratégia de leitura mais interessante do que sua antiga utili- curso como uma espécie de lu'brido entre fala e língua, um hí-
zação categorial, privilegiando a tradução de conteúdos e a apli- brido que Saussure excluiu de seu método estrutural na origem
cação de teses genéricas sobre as razões, motivos ou causas. Em de seu programa. Para ele, a língua seria uma espécie de con-
outras palavras, a psicanálise passa de uma hermenêutica es- junto definido pela fórmula {1+1+1+1 ... = I}, "mais ou menos
pecífica para uma tática de leitura, que incorpora a memória e a como um dicionário, cujos exemplares, todos idênticos, fossem
história como textualidade, a transferência do pesquisador e o repartidos entre os indivíduos" (SAUSSURE, 1916/1971, p. 27),
texto como "outro". O texto como algo do qual participamos e o um conjunto que impõe suas regras a todos os indivíduos falan-
texto como outro podem ser pensados como um sistema de de- tes. A linguística da fala, ao contrário da linguística da língua, se
fesas e de sintomas, e desmembrados quando perguntamos: O definiria pelo conjunto{l+l'+l"+ 1'" ...}, e esse campo estaria ex-
que ele repudia?Que tipo de compromissos ele realiza?Do que ele cluído do interesse da linguística:
se apropria e nos obriga a esquecer?Em segundo plano, a leitura Nada existe, portanto, de coletivo na fala, suas manifesta-
psicanalítica se preocupará com o tipo de reação que ela causa ções são individuais e momentâneas. [...] Por todas estas
no destinatário e com quais são as associações livres a que ela razões, seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto de vista, a
língua e a fala. O conjunto global da linguagem é incognos-
induz. Mas, além dessas questões próprias de uma leitura sin-
cível.já que não é homogêneo, ao passo que a diferenciação
tomática, duas novas questões emergem quando levamos em e subordinação [entre linguística da fala e linguística da
conta a perspectiva propriamente lacaniana: Que "desejo"ele língua] esclarecem tudo. (SAUSSURE, 1916/1971, p. 28)
realiza?Qualposição elereserva ao sujeito?
Para isso, temos de levar em conta a não exterioridade do in- Contudo, é exatamente esse uso "individual" da linguagem,
terpretante em face do interpretado e considerar que o que cha- enquanto fala constrangida pela língua, que definirá a posição
mamos de teoria psicanalítica não é um código privilegiado de do que Lacan chama de sujeito. Ele é o shifter que inscreve no
decifração, mas é também um discurso. É por isso que os meios e enunciado a enunciação, ele é o lugar de onde o sujeito recebe

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


l 133
s
1321 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaniana
sua mensagem invertida, ele é a própria divisão da qual fala em uma única sessão. Opondo estes dois termos, pretendo
Saussure. Notemos como também as análises de discurso vão se substituir a oposição clássica entre análise do material e análi-
.i
interessar - por meio de noções como as de interdiscursa1 6, opa- se das resistências" (LACAN, 1953/1986, p. 77).
cidade17e heterogeneidade 18 - por esse ponto de interesse parti- Encontramos aqui a expressão análise do discurso, já imis-
cular no interior do instrumento universal e neutro da língua cuída com o tema do sujeito (análise do eu) em Lacan, quinze
Ora, Lacan contorna a objeção saussuriana assumindo que a anos antes do clássico Análise automática do discurso (AAD),
inscrição do sujeito na linguagem não se dá por meio da posse e de Michel Pêcheux (1969/1997), publicado em 1969. Propondo
do somatório de seus enunciados, mas pela constância de uma o estudo das condições de produção do discurso, das regras de
relação de discordância ou de negatividade, por meio da qual o correspondência e transformação, considerando o efeito meta-
sujeito se posiciona e se mostra ali mesmo onde se esconde e fórico e os diferentes tipos de dominância em curso nas opera-
resiste a dizer. Cabe notar que essa estratégia cumprirá a função ções de substituição e contextualização, Pêcheux encerra seu
de integrar duas correntes psicanalíticas tidas como opostas: artigo afumando:
Ana Freud e sua insistência de que a análise deve se concentrar
[...] um discurso não apresenta, na sua materialidade tex-
no eu (e em seus mecanismos de defesa contra a angústia) e
tual, uma unidade orgânica em um só nível que se poderia
Melanie Klein, que pleiteava a importância majoritária da aná- colocar em evidência a partir do próprio discurso, mas
lise das expressões lúdicas e simbólicas na forma ou no material que toda forma discursiva particular remete necessaria-
em que se apresentassem. Contra isso Lacan dirá: "[...] vamos mente à série de formas possíveis, e que estas remissões
continuar juntos o título de Análise do Discurso e Análise do Eu, da superfície de cada discurso às superfícies possíveis
mas não posso prometer dar conta de um título tão ambicioso que lhe são (em parte) justapostas nesta operação, consti-
tuem justamente os sintomas pertinentes do processo de
produção dominante que rege o discurso submetido à
16 Por meio do interdiscurso, um conjunto de ideias organizadas se apropria, implícita ou explicita-
mente, de outras configuradas anteriormente. Isso pode ocorrer por uma dupla valência ou pela análise. (PÊCHEUX, 1969/1997, pp.104-105)
migração de significantes de um discurso para outro. Para Gérard Genette, o conceito de inter-
discurso depende do de hipertextualidade, ou seja, uma espécie de entroncamento ou cruzamen-
to entre superfícies de discurso. A ideia de pensar o discurso a partir de sua produção será
17 Transparéncia e opacidade indicam, respectivamente, presença ou apagamento do emissor em
relação a seu discurso e do ponto de vista do seu emissor. Na transparência máxima o sujeito incorporada por Lacan em sua teoria dos quatro discursos
assume e explicita seu lugar na mensagem, como em uma declaração amorosa, ao passo que na
opacidade o sujeito é excluído e deve ser suposto em outro lugar, como no caso dos livros didáti- (1967-1970), mas vemos que a ideia de que o discurso não seja
cos (DUBOIS, 1991, p. 441).
uma unidade dada está em Lacan e Pêcheux, e que este último
18 Heterogeneidadeé o regime de presença ou de relação com o ªÓutroª em determinado discurso. No
caso da heterogeneidade mostrada, um locutor único produz formas linguísticas reconhecíveis, declara que seu método se dirige justamente aos sintomas
por meio de recursos como aspas, citação ou discurso indireto. O locutor apresenta-se como ªporta-
-voz', que reproduz em seu próprio discurso o discurso do outro (AUTHIER-REVUZ, 1988/2004). pertinentes do discurso, ou seja, às zonas de negação, de hetero-

134 IAnálise Psi<:analítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 135
geneidade, aos eventos de opacidade e de estranhamento, den- Outros elementos, de natureza cultural, convergem para are-
tro desta substância lubrida formada por diferentes superfí- novação da noção de subjetividade, como é o caso deste outro
cies, que é o discurso. complexo discursivo, chamado de pós-modernidade. Nele opa-
radigma da transformação descritiva, a estetização da subjetivi-
[...] posto que o significante é o que representa um sujeito
dade, a intelectualização,a transferência e o trauma são catego-
para outro significante, no qual o sujeito não está. Ali onde
é representado, o sujeito está ausente. É justamente por rias recorrentes. Os complexos discursivos posicionam o sujeito
isso que, ainda assim representado, ele se acha dividido. a quem são endereçados, incluindo desde o discurso acadêmico e
Não se trata apenas de que o discurso, a partir daí, já não o profissional até a mídia e a conversação cotidiana Eles pres-
possa ser julgado senão à luz de sua instância inconscien- crevem formas de subjetividade e uma ordem discursiva que fixa
te: é que ele já não pode ser enunciado como outra coisa
o que deve e o que pode ser dito e o que não deve e não pode ser
senão aquilo que se articula a partir de uma estrutura, em
dito. Todo complexo discursivo contém uma forma de vida, defi-
alguma parte da qual ele se acha alienado de maneira irre-
dutível. (PÊCHEUX, 1975/1982, p.157) nida por funções e normas (uma psicologia ou uma antropolo-
gia), uma forma de trabalho, definida pela relação entre conflito e
Para Ian Parker, o confronto entre as análises de conteúdo e as regra (uma economia e uma sociologia), além de uma forma de
análises de discurso exprime duas maneiras de pensar a subjeti- linguagem, definida pela relação entre significação e sistema
vidade. No segundo caso, trata-se de uma subjetividade em bran- (uma linguística e uma crítica literária). Ora, esta tripartição dos
co, descomplicada e operacional No primeiro caso, a subjetivida- saberes, descrita por Foucault em sua arqueologia das ciências
de é um emaranhado complexo, um efeito de sentido ou um acon- humanas (FOUCAULT, 1966/1988), se reapresenta na própria
tecimento efêmero. O sujeito não é o indivíduo, ainda que este noção de inconsciente. Pois o inconsciente é, ao mesmo tempo:
seja conceitualmente vago ou pouco rigoroso, envolvendo inten- 1) Um modo defiguraçãosimbólica.O inconsciente é identificável
ções de desejos individualizados, estrutura social e discurso. Por aos processos primários, à deformação, às formações de com-
·isso seria mais justo dizer que o método psicanalítico de análise promisso, como se vê na metáfora do texto censurado. Por
do discurso aplica-se com maior propriedade a repertórios inter- exemplo, quando um pobre convidado à mesa de um ricaço diz,
pretativos e ao que Parker chama de complexos discursivos. A ao modo de um lapso, que está se sentindo muito ''familionário",
psicanálise é um complexo discursivo do Ocidente, que tem em ele afirma que, ao mesmo tempo, está em casa, está se sentindo
suas raízes a modernidade, o individualismo e o capitalismo como parte da família, mas também que está deslocado, porque essa
condições de possibilidade.Nesse quadro, Lacan é uma revolução familiaridade lhe é estranha, por ser "milionária". A junção de
no entendimento do discurso e do sujeito (PARKER, 2014). "familiar" e "milionário" corresponde ao que Freud chamou de

136 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 137
condensação - e que a linguística reconhece como metáfora relação, a transferência é este campo possível do inconscien-
Por meio dela, a divisão do sujeito, entre a familiaridade e o es- te, resíduo e condição de encontro com o outro, acontecimen-
tranhamento, apresenta-se em uma formação de linguagem na to transindividual ou relacional, o conflito interiorizado ou
qual estão colocadas a estrutura de seu desejo e seu sintoma; exteriorizado. Freud afirma, explicitamente, que um chiste é
2) O lugar da verdadedo sujeito.Aqui o inconsciente se identifica um processo social, que depende de condições pragmáticas
com o núcleo da intencionalidade do sujeito, a realização do para sua efetuação e sucesso em criar o riso e o humor. Daí que
desejo e a satisfação da pulsão - a genealogia do sujeito for- seja preciso "certa empatia entre os participantes", que exista
mando uma espécie de traçado ou de trabalho da verdade, que o "pressentimento de inibições comuns", que o que conta e o
faz das formações do inconsciente não apenas um saber que que escuta o chiste pertençam "à mesma paróquia" (no senti-
não se sabe, mas também um fragmento de verdade que não do da mesma comunidade de sentido) e que exista uma posi-
pode ser reconhecido. Por exemplo, podemos tomar o lapso do ção terceira, simbólica, de onde o chiste pode ser ressignifica-
"familionário" como um chiste; afinal, ele aparece na escrita do e lido no processo repetitivo de sua transmissão.
de Reine, no contexto de sua prosa cômica Mas a escolha do
nome do protagonista do chiste, Hirsch Hyacinth, sugere uma Se o que distingue a análise do discurso psicanalíticamente
ligação com a biografia do autor, marcado pela insistência da orientada é a reorganização da noção de verdade, ela não deixa
letra "h". O incidente se passa em Hamburgo, cidade onde de se compor com uma teoria da simbolização e com uma teoria
Reine viveu durante algum tempo. Lá ele foi desconsiderado do sujeito. Reencontramos, assim, algumas condições que, se-
por seus familiares, tendo sido desprezado quanto a suas pre- gundo o filósofo Alain Badiou (1988/1994), são também as exi-
tensões amorosas. Em psicanálise, esse tipo de ilação deve ser gências para pensar a verdade na filosofia contemporânea. Es-
construído pelo sujeito, nunca pelo analista, como uma espé- sas exigências compõem um cenário de quatro condições:
cie de saber ex corpore;mas, a título de ilustração, suponha- 1) A revolta, a recusa a ficar instalado em um lugar e satisfeito
mos que Reine nos pudesse contar algo sobre essa iteração da em uma posição;
letra "h", e que isso se confirme em sua biografia Nesse caso, 2) A lógica, o desejo de uma razão coerente, a recusa da irracio-
essa letra seria o suporte de uma verdade que seu percurso nalidade;
como sujeito pode recuperar através do chiste-lapso; 3) O universal, a recusa do que é particular e fechado;
3) O espaço de um processo social. Temos que privilegiar, nesse 4) A aposta e o risco, a recusa à determinação e o reconheci-
caso, o fato de que o inconsciente é algo que se passa em uma mento do caráter produtivo de certas experiências de inde-
relação - e, particularmente, em uma relação de fala Nessa terminação.

138 IAnálise PsicamiliUca de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1139
'=1_
Estas exigências são respondidas, ainda que heterogeneamen- gico ou normativo, como no caso das restrições da lógica aristoté-
te, pelos grandes movimentos filosóficos do século XX,como: (1) o
1 lica quanto às relações entre o universal e o existencial, ou da es-
marxismo de Lênin aAlthusser; (2) a filosofia analítica de Wit- tratégia de Bertrand Russel para evitar os paradoxos de autorrefe-
tgenstein a Quine; (3) a fenomenologia e a hermenêutica, de Hus- rência, as confusões entre uso e menção, os paralogismos entre
serl a Heidegger e (4) a psicanálise, de Freud a Lacan. Assim, po- as noções de classe, conjunto ou coleção. A impossibilidade da
de-se falar em uma espécie de trajeto da verdade, envolvendo um metalinguagem não é operacional, mas demonstrável pelo recur-
evento indecidível que aspira a ser nomeado, um sujeito indiscer- so aos fundamentos da topologia (RONA, 2012). Ela é critério
nível que se implica em relações de fidelidade e uma verdade ge- para a permanência da noção não convencionalista de verdade
nérica que tramita do forçamento ao que não pode ser nomeado. em psicanálise (IANNINI, 2009). São esses pontos, superfícies e
Para Lacan, a psicanálise é uma ciência da linguagem habi- planos que constituem os objetos no espaço da linguagem, que
tada pelo sujeito. Seu método é o da análise do discurso. Posto produzem efeitos de identificação ao significante, que formam as
isso como uma espécie de fundamento, deduz-se que a clínica isotopias e paratopias estudadas pela análise do discurso france-
psicanalítica, como toda clínica, começa pela semiologia. Quer sa, seja ela de extração literária (MAINGUENEAU, 1993/1995),
estejamos no nível dos sintomas, das estruturas ou dos tipos clí- seja epistemológica (FOUCAULT, 1966/1986) ou propriamente
nicos, ou no nível das formações do inconsciente (atos falhas, discursiva (PÊCHEUX, 1975/1982).
chistes, sonhos, sintomas), quer ainda no nível das modalidades Antes de se definir apenas um efeito ideológico superestrutu-
de transferência, levamos em conta transformações de lingua- ral, como presume o marxismo clássico, o sujeito em psicanálise
gem e da relação do falante com o que ele diz. É nesse ponto que corresponde a um efeito temporal, sexuado e diferencial. Esta-
o método psicanalítico de investigação aproxima-se da semiolo- mos aqui diante do terceiro critério da psicanálise entendida
gia e da semiótica. Essa convergência epistemológica foi verifi- como uma análise do discurso: o critério da divisão [Entzweiung]
cada em autores ligados à análise estrutural do discurso, tais presente na tese lacaniana da subversão do sujeito. É nesse ní-
como Barthes (1966/2011) e Greimas (1966/1973), mas ~- vel, que implica o exame das modalidades de separação e de
bém sobrevive na crítica desconstrutivista (Derrida, 1976/1999) alienação ao Outro - e, mais precisamente, dos efeitos de retor-
e na crítica da filosofia da diferença (Deleuze, 1969/1980). no da mensagem, sob transferência, ao próprio sujeito -, que
Isso não representaria nenhuma novidade diante dos diferen- podemos distinguir mais claramente o método de tratamento e
tes projetos formalistas nas ciências da linguagem, inclusive o o método de investigação psicanalítico. Falamos em divisão do
método estrutural, não fosse o fato de que tal formalização não sujeito, mas também em divisão do Outro, divisão presente na
constitui uma metalinguagem. Esse não é um critério deontoló- sexuação, divisão que aparece na teoria dos discursos ou na

- Análise Psícanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1141


140 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
teoria do ato em Lacan. Falamos em divisão do sujeito, mas Esperamos, assim, ter mostrado como a psicanálise, en-
também no núcleo de gozo que mantém tanto a alienação ideo- quanto método, participa da família epistemológica da análise
lógica quanto a alienação neurótica. Se a interpretação, ou a lei- do discurso, sem que se possa sublinhar sua filiação a um tipo
tura sintomal, são recursos para analisar discursivamente adi- particular de análise do discurso - por exemplo, francesa ou an-
visão do sujeito, o ato e a fantasia ideológica são recursos para glo-saxônica. Há tantas formas de análises de discurso em psica-
analisar a economia de gozo de um discurso. Essa ideialacania- nálise quanto modalidades de psicanálise. Não é pela finalidade
na foi bem percebida pela análise do discurso pós-marxista, diferencial, entre o tratamento psicanalítico em um caso e a pes-
seja na herança de Althusser (ZIZEK, 1994/1996), seja de quisa científica em outro; ou pela qualidade das técnicas envolvi-
Lukács (JAMESON, 1981) ou de Gramsci (TORFING, 1999). das, a associação livre em um caso e o uso de questionários em
outro; e nem mesmo pelo critério metodológico de participação
À primeira vista, pareceria que o pertinente em uma da transferência, presente na primeira situação e supostamente
análise da ideologia é unicamente como esta funciona
ausente na segunda, que se pode traçar essa demarcação. Defen-
enquanto discurso, o modo como a série significante flu-
tuante se totaliza, se transforma em um campo unificado
demos a tese de que o ponto central nessa questão diz respeito à
mediante a intervenção de certos pontos nodais. [...] Segun- constituição daquilo que, em ciências da linguagem, veio a se
do esta perspectiva o gozo no significante seria simples- chamar de corpus. O corpus costuma ser definido como um con-
mente pré-ideológico, sem pertinência para a ideologia junto de textos escritos ou falados em língua disponível para aná-
como vínculo social. [...] Na ideologia nem tudo é ideologia lise. Ora, os métodos clínicos tradicionais não são incompatíveis
(quer dizer significado ideológico). Por isso podemos di-
com a psicanálise em virtude de diferenças epistemológicas de
zer que há dois procedimentos em crítica da ideologia:
base, mas porque eles constituem corpos discursivos inabordá-
- um é discursivo: a "leitura sintomal" do texto ideológico
que traz consigo a "desconstrução" da experiência espon- veis ou, nas palavras de Freud, excessivamente homogêneos.
tânea de seu significado; que demonstra como um campo Ora, no plano teórico, a contribuição da psicanálise às análises
ideológico determinado é resultado de uma montagem de do discurso se apresenta sob uma dupla vertente. Primeiramente,
"significantes flutuantes" heterogêneos, da localização em relação ao enunciado, pois a trança do sentido remete ao per-
destes mediante a intervenção de certos "pontos nodais";
curso do sujeito que se constitui como significante por meio do
- a outra aponta para extração do núcleo de gozo, para a seu próprio discurso, através das suas ancoragens, dos seus des-
articulação do modo como o campo mais além do signifi-
vios, das suas insistências, suas repetições, dos seus escapes - ou
cando, ainda que interno a ele, uma ideologia implica, ma-
nipula, produz um gozo pré-ideológico estruturado pela seja, a partir da repetição significante, em sua versão semântica e
fantasia. (ZIZEK, 1989, pp. 124-125) sintática Em segundo lugar, em relação à enunciação, pois aquilo

142 j Análise Psieamilitiea de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitiea de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 143
"que o inconsciente traz ao nosso exame é a lei pela qual a enun- "pressuposto do inconsciente" e o Outro tomado como "dimen-
ciação nunca se reduzirá ao enunciado de nenhum discurso" são exigida de que a palavra afirme-se como verdade" (LACAN,
(LACAN,1966/2008a, p. 892). O momento em que o sujeito cessa 1966/1998, p. 839). Por conseguinte, será apenas prestando
de poder testemunhar sobre aquilo que o torna cativo ou limitado, atenção ao processo de enunciação que poderemos apreender a
é precisamente ali que emerge, de maneira evanescente, o sujeito entrada em cena do sujeito do inconsciente, um sujeito consti-
do inconsciente: uma abordagem estatística ou linguística da lin- tutivamente separado do seu ser (divisão tanto constituída
guagem, caso ocorra de modo exclusivo, irá sistematicamente quanto revelada pelo jogo dos significantes).
apenas fracassar diante desse fenômeno negativo. Como observa À medida que o sujeito tenta, pela linguagem, suturar a falta
Jean-Claude Maleval, em sua crítica aos estudos linguísticos e na qual essa mesma linguagem o introduziu - falta redobrada,
cognitivistas sobre as perturbações da linguagem no psicótico: considerando que o acesso a essa parte do seu ser não cessa de
escapar-lhe, uma vez que o Outro (ele mesmo barrado) não
À pura análise linguística, que poderia ser confiada a um
computador, faltarão sempre dois elementos essenciais,
pode fornecer a chave -, a referência ao sujeito da enunciação,
difíceis de apreender, que dependem não somente das in- como dizíamos, constitui o fundamento de um trabalho clínico
tenções do locutor, aos pressupostos do contexto afetivo e de processamento dos dados. Nessa via, convém atribuir um in-
social, mas ainda mais fundamentalmente à relação do teresse pronunciado às rupturas e descontinuidades introduzi-
sujeito do inconsciente com suas produções verbais. das no processo de enunciação. Mais precisamente dois tipos
(MALEVAL, 2000, p.166)
de acidentes localizam o sujeito: em primeiro lugar, as mudan-
É assim que um método de análise do discurso remetido à ças do discurso que podem se produzir no âmbito do encontro
psicanálise, destacando a distinção entre o sujeito do enuncia- clínico sob transferência (estrutura da fala); em segundo lugar,
do e o sujeito da enunciação, se faz necessário. as descontinuidades da cadeia significante ao longo do discurso
Retomando o modo de análise freudiano do sintoma e as di- (a metáfora e a metonímia como estrutura da língua.).
versas formações do inconsciente, Lacan define este último A noção de discurso em Lacan deve ser compreendida sem-
não como "uma linguagem no sentido onde isto quereria dizer pre como heterogeneidade, entre fala e língua, entre significa-
que é um discurso", mas - para incluir a sua fórmula doravante ção e valor, entre enunciação e enunciado, entre dizer e dito.
famosa - "estruturado como uma linguagem" (LACAN, 1955- Essas partições, no interior das quais o sujeito pode ser extraí-
56/1998, p. 187). Pela sua pulsação temporal na estrutura, o in- do, possuem sua recíproca, em termos da teoria do inconscien-
consciente será então reconhecido na sua posição de borda. te, na dialética do desejo e da demanda e na teoria da pulsão,
Será assim pensado como um "corte em ato" entre o sujeito como gramática do objeto e da fantasia.

1441 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1145
universitário, da histérica, do mestre, do analista e do capitalista
2.3. Da narrativa ao discurso
Foram diversas as concepções até agora mencionadas ares- são modos de estruturação do laço social que apontam para for-
mas discursivas específicas a partir do posicionamento de letras
peito da noção de discurso, a partir das quais podemos depreen-
que agem como operadores de significação e encerramento do
der um panorama sobre as teorias do discurso: por meio de ope-
sentido. Aqui, a relação entre espaço,lugar e posição é essencial
radores teóricos distintos, elas procuram localizar e posicionar
para observarmos as mudanças discursivas que apontam, espe-
a linguagem em relação à historicidade. Esse panorama traz,
cificamente, para mudanças em relação ao saber e a verdade.
subjacente a ele, a perspectiva de que um discurso seria aquilo
que faz corpo, ou seja, aquilo que faz unidade a partir de um re- Temos, portanto, aspectos teóricos sobre a linguagem que
apontam para posicionamentos. O que fazer, então, com a ação?
corte - recorte delimitado; portanto, localizado. Localizamos
um discurso por suas relações de oposição, disjunção e conjun- De que modo é possível, a partir da noção de discurso, observar-
mos o movimento, as mudanças subjetivas, as transformações
ção com outros, e também por sua imisção com outros. Essa lo-
calização é o que as análises do discurso tradicionais, que se de estado? Com a noção de discurso temos o início e o final; fal-
ta-nos o processo. E, em psicanálise, falta-nos justamente o
aproximam das teorias semióticas, empregam para diferenciar
processo de subjetivação, que levaria, por exemplo, de um dis-
discurso e narrativa:
curso a outro, de uma posição a outra - ou seja, falta-nos a ma-
O nível discursivo produz variações de conteúdos narra- terialidade que encontramos no caso clínico.
tivos invariantes. Uma fotonovela, por exemplo, tem uma Para que possamos ter acesso ao processo, em sua materiali-
estrutura narrativa fixa: X quer entrar em conjunção com
dade, introduzimos aqui a noção de narrativa em conjunção
o amor de Y,X não pode fazê-lo (há um obstáculo), X pas-
sa a poder fazê-lo (o obstáculo é removido), o amor reali- com a noção de discurso. Esta, no entanto, traz uma vasta rede
za-se. Entretanto seu nível discursivo varia. O seu obstá- de problemas em sua entrada na psicanálise, principalmente
culo, por exemplo, ora é a diferença social, ora é a presen- no que tange aos principais constructos teóricos sobre ela.
ça de outra mulher, ora é a doença, e assim por diante. Muito do que a psicologia entende por narrativa assemelha-
(FIORIN, 2002, p.102)
-se a uma concepção comum de estória: começo, meio e fim,
Já em psicanálise há o tão aclarado sintagma: "o discurso é o com a ação de um sujeito sobre um objeto (GONÇALVES, 2000;
que faz laço social" (LACAN, 1969-70/1992, p.40 ). Essa concep- HENRIQUES, 2000). Há outros autores que focam no aspecto
funcional da narrativa, sem, no entanto, prescindir da perspec-
ção psicanalítica, de vertente estruturalista, também dispõe o
discurso como localizado, como um dispositivo que realiza uma tiva da estória Bruner (1991), por exemplo, afirmará que a nar-
rativa aponta para a forma como um indivíduo realiza sua cons-
posição possível em relação às demais existentes: o discurso do

Análise Psicanalítica de Diseursus: Perspectivas Lacanianas l 147


146 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
trução de um conhecimento sobre o mundo. O autor afirma que dade em que vivem. Ou: a narrativa seria um modo de relacio-
a aquisição do conhecimento se dá pela narrativa, essencial ao nar objetos de forma primitiva, substituindo a lógica e a capaci-
processo de cognição. Vygotsky (2001) irá associar o processo dade de abstração - portanto, pautada em uma concretude e
narrativo ao primitivo em detrimento da lógica e da abstração, funcionalidade das modalidades de significação. Assumindo
pontuando que pessoas não alfabetizadas realizam a relação que toda definição de narrativa deve comportar uma definição
entre objetos por via da narrativa e não da lógica: se há dois ob- subsidiária do que vem a ser ficção - e que a ficção, para Lacan,
jetos de distintas origens - maçã, faca, abacate, colher, garfo, nos dá a estrutura da verdade -, podemos verificar que a narra-
açúcar, café, melancia, por exemplo-, e esses objetos forem tiva compreende duas margens, representadas pelas atividades
apresentados a essas pessoas, elas associarão esses objetos por de contar [Erzéihlen]e de mostrar [Darstellen]:
sua utilidade (uma faca a uma maçã, uma colher ao açúcar), e
No primeiro modo [contar] a mediação do narrador não é
não pela classificação desses objetos em categorias específicas
oculta. É visível. O narrador é aparente e não dissimula
(utensílios de cozinha e alimentos), como fazem habitualmente sua presença. O leitor sabe que a história é contada por
19
pessoas que passaram pelo processo de alfabetização • um ou vários narradores, mediada por uma ou várias
Vygotsky irá então concluir que pessoas que não foram alfabe- "consciências". Esse modo, o do contar (também chamado
tizadas não desenvolveram a capacidade de abstração lógica, e diegese), é sem dúvida o mais frequente em nossa cultura,
vai supor que essa capacidade é substituída por uma forma pri- das epopeias às notícias de jornal, passando pelos roman-
ces. No segundo modo narrativo, o do mostrar, também
mitiva (segundo o autor, semelhante ao modo como as crianças
chamado mimese, a narração é menos aparente, para dar
desenvolvem relações entre objetos) de relacionar objetos - ao leitor a impressão de que a história se desenrola, sem
que ele irá nomear de forma narrativa. distância, diante de seus olhos, como se ele estivesse no
Esses apontamentos trazem uma boa intuição sobre o que teatro ou no cinema. Constrói-se assim uma ilusão de
seria narrativa; no entanto, concluem precipitadamente sobre uma presença imediata (REUTER, 1997,p. 60)
as suas formas de significação. A narrativa seria uma forma de
construção de conhecimento, partindo de uma lógica de signifi- É devido a esses e outros desenvolvimentos semelhantes
cação pautada no significado (sentidos universais, comparti- que Zizek (1988/1991) irá tomar a narrativa a partir de uma
lháveis): a transmissão de significados pela via da narrativa perspectiva tipicamente - e somente - imaginária O autor afir-
traria uma espécie de conscientização às pessoas sobre a reali- ma que: "a contingência essencial tem sua melhor dissimulação
na narrativa linear" (ZIZEK, 1988/1991, p. 40), o que permite
19 Entende-se aqui a alfabetização, portanto, como uma forma de realizar uma normatividade que
faz relação entre pensamento e linguagem.
afirmar que, na perspectiva do psicanalista e filósofo, a narrati-

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 149


148 j Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
va seria uma conjunção de formas de significação via significa- sujeito à linguagem, o que passaria por criar associações entre
do, configurando a linguagem a partir de uma causalidade que memória e sentido (distinto do relato que se atentaria aos fatos e
não permite equívocos. Afirma-se, portanto, que narrar linear- às informações sobre o caso). A memória não estariajá-lá, aces-
mente é uma forma de "driblar" as contingências dos aconteci- sível, ela seria construída por vias narrativas. Já a ação possibi-
mentos, ordenando as situações por uma causalidade imposta litaria pensarmos que toda a construção narrativa seria associa-
por uma racionalidade egoica. da a um movimento do sujeito, a uma mudança que poderia
Propomos, aqui, adiar a antecipação conclusiva do que seria apontar para posicionamentos estruturais e discursivos.
narrativa e ficar apenas com parte desse desenvolvimento teó- A construção de uma unidade a partir destas associações
rico para a compreensão de seu processo de significação. Assim entre memória e sentido apontadas por Freud não implicaria
podemos apreender qual seria a função da narrativa dentro de uma causalidade linear. O tempo na construção do caso clínico
uma proposta psicanalítica. seria um tempo circular (MONTESANO, 2014), o que implica-
A narrativa seria uma forma de construção que implicaria ria uma dupla volta do significante para a construção do senti-
relacionar objetos por meio da ação. Ela, segundo Pereira do: ao narrar-se, o analisante nunca está no presente momento
(2009), estaria no nível da enunciação, e não do enunciado, o da narração - sua ação é marcada por construções passadas e
que implicaria observar que seu movimento traz um constante predições sobre essas construções. O eu enunciativo serviria
processo de ressignificação ao nível do enunciado. Estas são, a como marca de um processo de atualização e performatividade
nosso ver, as características necessárias para a composição de do sofrimento. O tempo no caso clínico, portanto, distintamen-
uma narrativa dentro da perspectiva psicanalítica sobre a lin- te de uma narrativa linear, seria denominado como "futuro an-
guagem: ela guardará aproximações com a oralidade e carrega- terior" (MONTESANO, 2014). A narrativa, desse modo, conso-
rá a possibilidade de movimentações acerca da autoria (TFOU- lida--se na psicanálise por uma relação temporal distinta, o que
NI, 1998) - o que traz ao caso clínico, quando pensado narrati- permite que exista um constante processo de reconstrução do
vamente, particularidades a respeito de sua construção. dizer do analisante pela sua fala, como também de reconstru-
Freud (1937/1988) aponta para o modo como construímos, ção da escuta do analista pela sua escrita. Esse tempo circular
em um sentido pragmático do termo, a verdade em uma sessão permitiria que a narrativa, no caso clínico, tivesse uma sequên-
de análise. Construir estaria associado a relacionar fragmentos cia que se conformaria à temporalidade do inconsciente, ou
de sentido, criando uma unidade. Essa forma de construção se seja, disposta em uma diacronia e, no entanto, marcada por
distinguiria do relato, já que a função de uma psicanálise seria uma sincronia de significação (dada pela relação significante-
criar uma verdade que se estruture pelo modo de apropriação do -letra). Narrar, opostamente à afirmação de Zizek, seriaorgani-

150 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas j 151
zar as relações de contiguidade (JAKOBSON, 1961/1999), ou linguagem pautado no princípio de não contradição aristotéli-
seja, contingenciais, entre esses distintos processos de signifi- co, que não tem qualquer relação com sua estrutura mínima.
cação em consonância com o desejo. Ao emanciparmos a narrativa de seu caráter de encerra-
Este movimento de reinscrição da fala a partir da tempora- mento do sentido, podemos associar seu funcionamento a uma
lidade do inconsciente põe em ato as posições discursivas do lógica de significação pautada no significante: isso possibilita-
sujeito, colocando-o em movimento ao longo do seu dizer. Ao ria uma polissemia interpretativa na construção do sentido,
organizar as relações contingenciais por via narrativa, há uma dando abertura a uma estruturação narrativa na qual a lingua-
performatividade constante pela palavra, que, em psicanálise, gem não seja banhada por uma intencionalidade do sujeito-
conforme sua aposta ética- como expusemos anteriormente-, -narrador sobre sua construção. Há, portanto, uma importante
preconiza que o acontecimento analítico seja transformativo. modificação na forma como nos apropriamos da noção de nar-
É, portanto, pela via narrativa que pensamos as transforma- rativa: ao estruturar a ação pela via do significante, ampliamos
ções no caso clínico, as quais evidenciam a linguagem em mo- as formas de interpretação sobre ela e posicionamos a escuta
vimento. Essa perspectiva vai ao encontro do que Greimas e analítica em um constante processo de determinação-indeter-
Courtés (2008, p. 34) concluem a respeito de uma estrutura minação. A narrativa, portanto, poderia ser considerada como
narrativa mínima: "um estado com uma sucessão de transfor- nos propõe Dunker (2014), ao sintetizar as características nar-
mações de estado" - ou seja, uma estrutura que denota uma rativas necessárias do famoso ensaio O narrador (BENJAMIN,
ação transformativa. 1936/1994):
Essa estrutura mínima narrativa permite que associemos
seu modo de funcionamento a qualquer unidade de sentido. Há [...] transformação criativa entre memória e história, va-
lorização do lado épico da verdade, inerência a uma tradi-
palavras que, em si, são narrativas. A palavra naufrágio, por
ção oral, recusa da soberania da informação, evitação de
exemplo, seria uma narrativa, já que abarcaria um objeto e uma explicações, fala autoral que se elabora em seu próprio
transformação desse objeto: uma embarcação que afundou. processo e apropriação coletiva de uma experiência.
Todo esse desenvolvimento a respeito da narrativa possibilita a (DUNKER, 2014, p. 5)
inferência de que a narrativa é um modo de operar da lingua-
gem por via da movimentação e da sucessão de transformações Todos esses aspectos supracitados sobre narrativa mostram
- ao modo de sequências que se estabelecem por alguma tem- que ela tem um importante papel na construção clínica em psi-
poralidade. A forma como ela seria aplicada à criação de estó- canálise, principalmente no tocante à construção do caso e sua
rias e gêneros discursivos implica um modo de organização da transmissão. A narrativização enquanto processo de formali-

152 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 153
zação na clínica possibilita vislumbrar o caráter transformati- oralidade denuncia a autoria da transferência na escrita, que
vo que a linguagem tem para a psicanálise. aponta para a presença de outro como constituinte do caso. O
Esse caráter transformativo ocorre devido ao apontamento significante (de)forma o escrito com a oralidade.
para o significante dentro da transferência. É ela, enquanto au- A relação entre narração e narrativa, então, se conjecturará
tora na construção do caso clínico, que marcará a movimentação como um semblante (DUNKER, 2015) de unidade: é a partir de
significante na associação livre. É nesse sentido que estamos de uma constante tentativa de apreensão do sentido que analista e
acordo com Butler (2005/2009), que define que a construção analisante constroem um saber, efeito das reinscrições da le-
narrativa na linguagem só é possível devido à opacidade origi- tra no inconsciente. A imisção entre oral e escrito no caso clíni-
nária que temos sobre nossa constituição subjetiva. O eu não co é o que o especificará como gênero discursivo, sendo este
estava presente no dia do seu nascimento. Ele foi dito ao sujeito pautado na construção narrativa e seus desdobramentos aos
por um outro e, a partir desse dizer, pôde se construir. O eu, en- gêneros literários.
tão, passa a ser, para a autora, um efeito da relação com o Outro
pela via narrativa. 2.4. O conceito de discurso em Lacan
Essa construção em relação ao eu permite que o coloquemos O interesse de Lacan pelo tema da linguagem remonta à sua
como dêitico na linguagem. Ele é uma marca na construção formação psiquiátrica e à sua proximidade com os surrealistas.
narrativa que suporta o aspecto transferencial na fala. Nesse Nessa época, ele estudou as particularidades do discurso esqui-
sentido, a construção narrativa na clínica psicanalítica sugere zofrênico e do paranoico, muito influenciado por Paul Guiraud
uma transformação na relação do eu com o Outro, passando pe- pela ideia de que o estudo dos escritos de pacientes poderia ser-
las modulações transferenciais com o outro, analista. vir de base mais segura para a efetivação de diagnósticos. Já na
É nesse aspecto que podemos observar que a escrita do caso tese de 1932 Lacan falava em discurso interior como uma espé-
clínico irá da narração à narrativa, sem, no entanto, prescindir cie de lógica produtiva do delírio.
da narração no que concerne à presença da oralidade na escrita Contudo, a primeira acepção conceitual de discurso na obra
demarcada pela "vivificação do significante na letra" (LACAN, de Lacan desenvolve-se em torno de seus estudos sobre a es-
1966/2008a, p.895): as marcas heterogêneas na escrita do caso trutura dos mitos como equivalente à estrutura da neurose. A
(usos particulares de marcadores como aspas, dois-pontos, vír- estrutura possui uma temporalidade própria, baseada na repe-
gulas e organização sequencial de acontecimentos por parágra- tição de certos lugares e na reprodução da mesma lógica arti-
fos, dentre outras marcações) apontam para a construção via culatória. Mas, para que o método estrutural se efetive, é ne-
significante no caso clínico, marcando sua oralidade. Essa cessário excluir a história, ou então mostrar como história e

154 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacan.ianas l 155
estrutura articulam-se metodologicamente. O discurso será com a verdade de seu discurso - o amor, o ódio e a ignorância -,
então a categoria que compreende, em Lacan, o lado represen- cada qual associável com um modo diferente de relação com o in-
tado pela história, a progressão e a memória que os atos de lin- consciente: o recalcamento [Verdriingung], a metáfora/conden-
guagem criam sobre si mesmos. sação [Verdichtung] e a negação (Verneinung).
O conceito de discurso aparece no Seminário I, Os escritos
técnicos de Freud (LACAN,1953/1986), e em artigos como "Sim- O sujeito desenvolve no discurso analítico o que é sua ver-
dade, sua integração, sua história. [...] É pela assunção fa-
bólico, imaginário e real" (LACAN,1953/2005) e "Função e cam-
lada de sua história que o sujeito se engaja na via da reali-
po da fala a e da linguagem em psicanálise", todos de 1953.A en- zação de seu imaginário truncado. [...] Essa complemen-
trada clínica da noção de discurso em Lacan examina a contenda tação do imaginário se realiza no outro, à medida que o
entre AnnaFreud, que propunha que a análise deveria centrar-se sujeito assume no seu discurso, enquanto o faz ouvir pelo
sobre o eu e seus mecanismos de defesa contra a angústia, e Me- outro. [...] Se os ecos do discurso se aproximam muito de-
pressa do ponto A - quer dizer, se a transferência se faz
lanie Klein, que argumentava que o tratamento deveria privile-
muito intensa-, produz-se um fenômeno crítico que evo-
giar a expressão das fantasias inconscientes na relação de trans- ca a resistência [...]. (LACAN,1953/1986, p. 323)
ferência com o psicanalista. Contra essas duas alternativas, mas
de certa maneira absorvendo ambas em sua própria concepção, Aqui temos uma ligação primeira entre discurso e história,
Lacan afirmará que a análise é a análise do discurso (LACAN, entre discurso e a sucessão de termos falados por alguém, que
1953/1986, p. 77). Nesse contexto, análise do discurso significa, tenta se apreender no próprio discurso a partir do outro a quem
principalmente, análise do diálogo - do que é efetivamente dito e ele se dirige, ainda que esse outro esteja indeterminado, como é
pronunciado durante a sessão psicanalítica-, mas alguns traços o caso da posição do analista no processo transferencial: repre-
metodológicos podem ser destacados. Primeiro, que o destinatá- sentante e reedição de figuras e modos de relação do analisante
rio de um discurso permanece estranho a quem o pronuncia; ele com a sua própria história.
está mais além do próximo ou interlocutor. Segundo, que a men- Uma maneira simples de definir o discurso é entendê-lo
sagem é cifrada, deformada, e não transparente ao próprio falan- como realidade social da comunicação. Essa noção aparece já
te. Terceiro, que a posição do sujeito se denuncia mais no ponto nos primeiros seminários de Lacan: "[...] podemos, no interior
que ele quer negar, do qual quer se afastar ou em que quer resistir do fenômeno da fala, integrar os três planos: o simbólico, repre-
a algo, resistir a uma significação, do que naquilo em que ele me- sentado pelo significante, o imaginário, representado pela sig-
lhor se reconhece como senhor de sua própria mensagem. Quar- nificação, e o real, que é o discurso mantido realmente em sua
to, que há diferentes paixões que animam a relação do sujeito dimensão diacrônica" (LACAN, 1953/1986, p.140 ).

156 IAnálise Psieanalítiea de Discursos: Perspectivas Laeanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 157
Decompondo essa fórmula, poderíamos dizer que o discurso como campo da realidade transindividual do sujeito; suas
é este processo pelo qual recebo do Outro minha própria men- operações são as da história, no que ela constitui a emer-
. 1
sagem de maneira invertida. E esta vale como uma definição gência da verdade no real. (LACAN,1956/1998, p. 258) .
comensurável com a de inconsciente. Por isso Lacan afirma
que o "inconsciente é o discurso do Outro". Temos então três Portanto, discurso é tanto realidade discursiva como transin-
propriedades do discurso: (1) seu retorno invertido sobre a sua dividual, exatamente como o capítulo censurado por Saussure
fonte, produzindo uma divisão ou um corte no sujeito; (2) a pos- para o estudo da linguística. Há, portanto, uma tensão e uma dia-
sibilidade de reconhecer-me na mensagem, de tomá-la como lética entre a fala e o discurso como sua objetificação, generali-
minha e de antecipar sua conclusão; (3) ela provém de um lugar, zação e historificação (LACAN,1956/1998, p. 282). Mas é justa-
o lugar da linguagem, como tesouro do significante, que é o Ou- mente quando o sujeito não consegue se reconhecer, não conse-
tro. Reencontramos assim o simbólico (Outro), o imaginário gue subjetivar-se no discurso, que temos o inconsciente: "O in-
(reconhecimento antecipado) e o real (a divisão do sujeito pela consciente é a parte do discurso concreto, como transindividual,
linguagem e pela mensagem). que falta à disposição do sujeito para reestabelecer a continui-
O discurso à altura de textos como ''Função e campo da fala e dade de seu discurso consciente" (LACAN,1956/1998, p. 260).
da linguagem em psicanálise" (LACAN,1956/1998) compreende Esse discurso concreto não é a história como algo concluído,
tanto certa concepção de história quanto de intersubjetividade: mas a história como tempo. Aplica-se, portanto, a categoria de
''Mesmo que não comunique nada, o discurso representa a exis- tempo lógico (LACAN, 1945/1998) ao discurso. É o discurso
tência da comunicação; mesmo que negue a evidência, ele afirma transindividual, cuja lógica é coletiva, que se articula entre o ins-
que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, ele tante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir.
especula com a fé no testemunho" (LACAN,1956/1998, p. 253). A segunda acepção de discurso em Lacan liga-se com a cons-
O discurso é mais claramente posicionado como um nível trução de um modelo conhecido como grafo do desejo e pode ser
de linguagem intermediária, entre a fala individual e a história encontrada em O seminário, livro V:As formaçõesdo inconsciente
coletiva. Ele constitui, portanto, uma certa modalidade de me- (1999), O seminário, livro VI: O desejoe sua interpretação(2003),
mória compartilhada e de mediação para os atos de reconheci- bem como no artigo "Subversão do sujeito e dialética do desejo no
mento. Nessa medida, o discurso é o campo no qual a psicaná- inconsciente freudiano" (1998). Se a primeira acepção de discur-
lise acontece: so era de natureza mais social, ligada à realização da fala [parole],
Seus meios são os da fala em que ela confere um sentido às a segunda acepção é mais topológica e está relacionada com o de-
funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, senvolvimento e a ampliação da teoria do significante.

158 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Pen;pectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 159
Acreditam ter dado um grande passo dizendo que o signi-
ficado nunca atinge seu fim senão por intermédio de um ~
outro significado, remetendo a uma outra significação; é
apenas o primeiro passo, e não se percebe que é preciso
-+s(A)-+ A-+
dar o segundo. É preciso perceber que, sem a estruturação
do significante, nenhuma transferência de sentido seria
possível. (LACAN,1945/1988, p. 200)

Consideremos a relação inicial entre o sujeito e o Outro


11
I(a) 3
como lugar do inconsciente. Essa relação está atravessada pelo
campo imaginário, no qual o sujeito se identifica ao eu [moí] e, Temos então duas acepções de discurso: a primeira o enten-
este, à imagem de seu semelhante: i(a). Temos então a estrutu- de como diacronia da fala, cortada pelos efeitos de retorno sin-
ra da fala, na qual o sujeito recebe sua própria mensagem in- crônico do significante; a segunda o entende como acoplamen-
vertida a partir do Outro: to do sujeito, com seus efeitos imaginários de identificação e de
alienação. A partir dessas duas cenas, pode-se dizer que: "O in-
m consciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que
? em algum lugar (numa outra cena, ele escreve) se repete e insis-
3 97 i(a) te, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e

~
na cogitação que ele dá forma'' (LACAN, 1960/1998, p. 813).
Mas até aqui consideramos o discurso apenas como articula-
ção de enunciados compostos por signos, que por sua vez são com-
Contudo, a significação é determinada simultaneamente postos por significantes em sua ligação dupla com o significado
pela posição, nesse Outro, de um significante que produz uma (internamente) e com a significação (com outro signo). Os efeitos
retroação simbólica, ou um corte, ou um basteamento que ca- de significação, ou de significado ao Outro - s(A) -, correspondem,
racteriza a cadeia significante. O retorno sincrônico da mensa- portanto, àposição de alienação do sujeito. Aqui devemos interpo-
gem sobre a cadeia determina o ponto de fechamento da signifi- lar um segundo patamar do grafo que representa o plano da enun-
cação, também chamado de ressignificação. Esse é o lugar do ciação. Entre enunciado, composto pela cadeia de significantes, e
sintoma, ponto de fixação de uma mesma mensagem, determi- enunciação, em que se representa a dimensão pulsional do sujeito,
nada pela significação do falo. encontramos duas articulações importantes: o desejo e a fantasia

160 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1161
(3&a) (d) sia, ou interpelação superegoica (ordenando: Gozel), como ainda
Fantasia Desejo se apresentar como questão: O que o Outro quer de mim?O sujei-

1 1
to inscreve-se no discurso como a enunciação se inscreve no
enunciado, ou seja, por meio da negação, mas também por meio
das partículas chamadas dêiticos ou embreantes: os pronomes
7 s(A) 7A7
pessoais (eu, tu, ele etc.); as partículas de tempo (antes, agora,

1 1
ontem, amanhã); os indexadores de espaço (aqui, lá, adiante).

I(a) 3 78(%) 7 3&D7


Isso significa que agora o discurso se determina quadrupla- Castração Demanda
mente, a partir de: (1) seus efeitos imaginários de sedimentação
da identificação da significação aos agentes dos enunciados:
(m), I(a); (2) seus efeitos simbólicos de retroação sincrônica do
l
(3&a) .....
I
(d)
discurso: A, s (A); e (3) seus efeitos de causação do desejo pela
fantasia Contudo, esse último entroncamento é sobredetermi- Fantasia Desejo
nado pelo nível da enunciação inconsciente, (4) composta ela
mesma por uma relação homóloga à que o sujeito estabelece
com o Outro - só que, dessa vez, entre a castração [s(%)] e ade-
7 s(A) 7 A 7
manda [$&D].A castração é o lugar pelo qual a estrutura da lei
que rege as trocas sociais (Édipo/Metáfora Paterna) se articula
com a lei que rege as trocas linguísticas (metáfora/metonímia,
significante/significado, significação/valor). A demanda é o lu-
l
m .....
I
i(a)
gar onde o desejo se objetiva, quer pelas vias do supereu, quer
pelas vias dos objetos parciais, que dão vestimenta ao objeto do
(eu) eu ideal
desejo. Há uma dialética entre desejo e demanda, assim como há
uma espécie de estática entre fantasia e sintoma; mas o impor-
tante é que a demanda pode retomar tanto como forma de fanta-
l
I(a)
I
3

162 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1163
-
Assim como no patamar do enunciado temos um litoral en- representa um momento pós-estruturalista em Lacan, na medi-
tre significante e voz, no andar da enunciação temos uma se- da em que há três mudanças intervenientes na noção de discurso.
.1
gunda passagem, que vai do gozo à castração. Com tantas deter- Em primeiro lugar, a teoria dos quatro discursos retorna de
minações para o discurso, não é de espantar que, ao longo dos maneira surpreendente e radical ao modelo representado pela
seminários V e VI, encontremos inúmeras menções ao discurso dialética das relações de reconhecimento entre senhor e escravo,
do Outro, ao discurso do sujeito, ao discurso significante e ao proveniente de Hegel. Agora, de forma invertida, será preciso
discurso imaginário (narcísico). Lacan fala também do discur- pensar o laço social a partir de suas formas típicas de fracasso
so da criança e do discurso poético. De todas as variações, a que das relações de reconhecimento: educar, governar, fazer dese-
nos parece mais original é a expressão discurso da demanda: jar e psicanalisar. Contudo, esse fracasso é representado por
uma espécie de personagem ou de indivíduo, no sentido fou-
É da solidariedade deste sistema sincrônico que repousa caultiano, que se acredita agente de um discurso - quando na
no lugar do código que o discurso da demanda, enquanto
verdade ele é falado por esse mesmo discurso. Os discursos são
anterior ao código, toma sua solidez; em outros termos,
que na diacronia, quer dizer, no desenvolvimento deste estruturas, por isso eles se constroem como feixes duplos de re-
discurso, [...], aparece o que se chama a mínima duração lações entre quatro lugares. Lembremos que o mito sobrevive
exigível para a satisfação, mesmo o que se chama de satis- na modernidade como dispositivo lógico capaz de acolher a
fação mágica, ou ao menos a repulsa, a saber, ao tempo de verdade, ainda que não toda. Daí que o primeiro movimento da
falar. (LACAN, 1958-59/2003) formalização dos discursos nos remeta ao semblante ou agente,
como algo que está suportado pela verdade.
A última e quiçá mais conhecida concepção de discurso
aparece em Lacan entre os seminários De um Outro ao outro Semblante
(1968-69/2006), O avesso da psicanálise (1969-70/1992), De um Verdade
discurso que não fosse do semblante (1967/2013), bem como nas
aulas dadas na Capela de Sainte-Anne, conhecidas como O saber Em segundo lugar, o discurso deixa de ser pensado como a
do psicanalista (1972/2014). Boas sínteses da teoria dos quatro versão diacrônica da fala e passa a representar relações de poder
discursos serão encontradas no artigo ''Radiofonia" (1970/2003) imanentes ao laço social. O discurso obriga a dizer, e esta "obri-
e complementadas nas conferências americanas - que reúnem, gação" define o laço social a partir de certas impossibilidades
sem contradições, tudo o que esse autor fizera até aquele mo- que lhe são imanentes: educar, governar, fazer desejar, psicana-
mento com o conceito de discurso. Pode-se dizer que essa teoria lisar. Ou seja, essa obrigação de dizer não está apenas condicio-

1641 Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1165
nada e constrangida pelas leis genéricas da estrutura da lingua- com o objetoa-lógica do fantasma (LACAN,1966) - e, principal-
gem, nem mesmo pelas leis da interdição totêmica do incesto, mente, a teoria dos quatro discursos (LACAN, 1969-70/1992)
mas também por certa barreira representada pelo Real. Os dis- são todos esquemas e usos variantes do grupo de Klein. Ele ad-
cursos contornam o Real, eles aparelham o gozo. Assim, ele mite uma expressão algébrica e outra geométrica, comportando
substitui a economia como jogo de quantidades, que em Freud ou não uma semântica específica São exemplos de estruturas
correspondia a um dos pontos de vista fundamentais dametapsi- desse tipo os sistemas de parentesco descritos por Lévi-Strauss,
cologia (ao lado da dinâmica e da tópica) pela economia política certas linguagens formais descritas por Russell ou Tarski, as
Ele conserva, do método baseado no grafo, a ideia de circulação estruturas cognitivas descritas por Piaget e os quadrados lógi-
necessária- daí que a necessidade seja compreendida como ne- cos da análise do discurso propostos por Greimas. Vejamos um
cessidade de discurso. Mas agora o modelo da circulação não exemplo de grupo de Klein:
será o da troca social generalizada, como se observa em sistemas
simbólicos como o parentesco, a aliança, a sexualidade, a reli- (1) (2)

gião ou a arte. Para pensar a estrutura do Ato dopsicanalista (Se-


minário XV), Lacanjá havia introduzido um novo modelo topo-
6-- D
lógico baseado no grupo de Klein - esse caso particular, e talvez
o mais simples, das estruturas algébricas-: "Uma estrutura al-
gébrica é um conjunto cujos elementos são quaisquer, mas entre
os quais estão definidas uma ou mais regras de composição ou
r l
~-- li
(sinônimo) operações" (BARBUT,1996, pp.145-170). (3) (4)

Essas regras de composição, no caso do grupo de Klein, são:


existência do elemento neutro, operação associativa, operação Temos, então, dois elementos, triângulos e tetraedros, com-
de inversão e operação de permutação. O emprego do grupo de binados com duas propriedades, coloridos e não coloridos. Há
Klein é constante em Lacan (TORRES, 2008). Ele exprime a duas formas básicas de transformação: de cor e de forma A ope-
essência tanto da estratégia expositiva baseada na topologia ração (1) (2) é uma mudança de forma. Se a mesma operação for
quanto da lógica modal. A lógica do significante - rede de arado repetida, retorna-se à forma inicial, extraindo-se a propriedade
(LACAN, 1955/1998, ) - , a estrutura da relação de fala - esque- de que a repetição do oposto constitui elemento neutro. Pode-se
ma Lambda (LACAN, 1954/1988) -, a estrutura do sujeito - dizer que entre (1) e (2) há uma relação de oposição. Mas, se rea-
grafo do desejo (LACAN, 1960/1998) -, as relações do sujeito lizarmos o percurso (2) (4), há uma mudança de cor. Esta opera-

166 IAnálise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1167
ção deve ser distinta da primeira, e é chamada de inversão, mas Ocorre que o grupo de Klein completo é uma estrutura fe-
apenas se a considerarmos no âmbito do sistema que estabele- 1 chada e involutiva. Isso significa que sempre se pode retornar,
ceu antes a relação de oposição. Finalmente, se realizarmos o segundo um conjunto finito de elementos e lugares, a um estado
percurso (1) (2) (4), há uma operação de inversão e de oposição. anterior do sistema pela repetição ordenada das operações que
Esta é chamada de operação de transposição ou de permutação nele são prescritas. A propriedade involutiva (o retorno ao esta-
(BARBUT,1996, pp.145-170). Pode-se refazer o exemplo consi- do inicial) não pode ser aplicada à experiência analítica. Essa
derando as quatro operações elementares da matemática: objeção leva Lacan a trabalhar não com um grupo de Klein per-
feito, mas com dois subgrupos de Klein, ou duas monoides.
a) oposição [x""' -x];
O terceiro desenvolvimento crucial para a aparição da teoria
b) inversão [x""' 1/x]; dos quatro discursos é a incorporação da noção de objetoa, to-
mada como função de mais-de-gozar, baseando-se em uma ho-
e) produto [x""' -1/x];
mologia entre a economia energética de Freud e a economia
d) identidade [x""'x]. política de Marx. Isso parece incluir uma releitura do conceito
de circulação, cujo modelo topológico é o grupo de Klein, agora
Diz-se que uma coleção de elementos forma um grupo em com um corte mais econômico (NOMINÉ, 2007):
relação a determinada operação se:
Vendedor ) Comprador
(1) a coleção é fechada sob a operação, (2) a coleção con-
tém um elemento de identidade com relação à operação,
(3) para cada elemento na coleção há um elemento inver-
so com relação à operação e (4) a operação é associativa. Mercadorxinheiro
Os elementos podem ser números (como na aritmética),
pontos (na geometria), transformações (álgebra ou geo- Vimos que a verdade possui estrutura de ficção. Vimos, tam-
metria) ou qualquer coisa [...] A operação pode ser arit- bém, como o mito pode fornecer o modelo dessa estrutura de
mética (como na adição ou multiplicação), geométrica ficção. Contudo, na teoria dos discursos inclui-se não apenas a
(como uma rotação em torno de um ponto ou um eixo) ou
comunidade que participa reproduzindo o mito, oralmente, de
qualquer outra regra para combinar dois elementos de
um conjunto (tais como duas transformações) de modo a
geração em geração, como um sistema de transmissão simbóli-
formar um terceiro elemento do conjunto. (BOYER, ca de uma origem. A novidade desde a teoria do grafo e o modelo
1968/2002, p. 379) da estrutura do mito é dada pela substituição das relações de

168 IAmllise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1169
saber pelas de poder. Nada poderia ser mais explícito quanto o Semblante ) Outro
diálogo de Lacan com as fontes primárias da análise do discur-
so. O giro da estrutura de saber para a dinâmica de poder é ho-
mólogo ao da teoria althusseriana da crítica da ideologia, in- trdade/
cluindo também o problema da crença a partir do modelo de
Pascal (reze, e afé virá por si mesma). É interessante observar a Essa integração segue a mesma direção de Pêcheux ao levar
influência cruzada entre Althusser e Lacan. Althusser traz a em conta o conceito de produção. O sentido do discurso sobrede-
concepção lacaniana do estádio do espelho para pensar a alie- termina-se a partir do Outro, de onde recebo a mensagem de for-
nação ideológica do sujeito em seus processos de individualiza- ma invertida Ele não é apenas o lugar de onde me chega a ideolo-
gia, mas também a posição de onde é possível extrair mais-valia
ção. Pode-se descrever essa alienação como identificação da
verdade ao semblante, que a desconhece. Dessa maneira, o Mas o Outro não será apenas um ponto de confluência entre a
semblante torna-se também o sintoma de um discurso. Lacan, verdade e o semblante; ele é também a posição intermediária
por sua vez, integra elementos da teoria althusseriana da lin- para o ponto de retorno, ou seja, o lugar da produção. Há três es-
guagem em sua própria concepção de discurso. O terceiro mo- critas diferentes para os lugares do discurso: a primeira é mais
vimento metodológico presente na teoria dos discursos remonta hegeliana (LACAN, 1968-69/2006), a segunda é mais marxista
à absorção conjugada de dois problemas foucaultianos: a verda-
(LACAN, 1969-70/1992) e a terceira é mais estética:
de e o sujeito. Com a teoria dos discursos, o sujeito deixa de ser
uma função primária dos discursos e passa a ser um de seus ter- o e
mos. Com isso, Lacan pode localizar com mais clareza o que se- Desejo ~ Outro Agente ~ Trabalho
ria a dimensão actancial do discurso, sem confundi-la com a
noção de sujeito autor. Consequentemente, ele pode deflacio-
terdade / Perda terdade / Produção
nar a função do sujeito no interior dos discursos, função que
agora será representada pela surpreendente aparição da noção
de semblante, antecedida pela noção provisória de dominante
discursiva, de acordo com J akobson 2º. Semblante ~ Gozo

20 O termo dominante discursiva foi introduzido por Eikhembaum (1922) e Akhmatova (1923).
No entanto, aqui remetemo-nos aos desenvolvimentos de Jakobson sobre o termo, em seu texto:
"The Dominant" (1927).
terdade / Mais-de-Gozar

170 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspecti,"as Lacanianas j 171
No que diz respeito à substituição da economia libidinal pelo Esse é o discurso do mestre. Ele compreende duas circula-
discurso considerado como economia de gozo, há um duplo ções, assim como em Marx há uma circulação fechada, que vai
ajuste de contas. Por um lado, retorna-se aqui à antiga ideia da do sujeito dividido (3) para o seu semblante em um significante
antropologia de Bataille, baseada na heterologia. Ou seja, se o mestre (Si), e desse significante assemântico, ordenativo e in-
sujeito já era uma anomalia no interior do discurso, o objeto a, terpelativo para o saber suposto no Outro (S2). E, desse saber se
como condensador de gozo, torna-se uma segunda forma de ir- produz um objeto a-mais-de-gozar, que retorna para o signifi-
redutibilidade da linguagem, vindo a ocupar o lugar da causali- cante mestre, iniciando uma nova troca fechada, com o objeto
dade no interior do discurso. A rota já estava aberta pelo fato de se transformando novamente em significante.
que - na origem da teoria estrutural das trocas simbólicas - es- Notemos que o lugar da verdade é abrigado. Dele só partem - e
tava presente o tema da doação (dom), que agora é pareado, em não chegam - vetores. Isso ocorre porque a verdade é o lugar no
escala invertida, com a extração de um mais-de-gozar [Mehr- qual a circulação aberta, que liga esse discurso com outros, rela-
lust] presente nas relações de discurso. O que se acentua nesse ciona-se com a circulação fechada, que reproduz o discurso nele
movimento é a aceitação de elementos de uma teoria da diferen- mesmo. Em outras palavras, quando o discurso do mestre é con-
ça ontológica no interior da teoria posicional da diferença, ideia frontado com a sua verdade, por meio de um ato de interpretação,
que viria a se consagrar no vindouro pós-estruturalismo. É as- produz-se o movimento ou giro de um quarto de volta, pelo qual
sim que Lacan escreve o discurso do mestre como o discurso do um discurso transforma-se em outro. Esse movimento é muito
inconsciente. Nele se coloca o objetoa, até então pensado como importante, porque é uma descrição das mudanças possíveis e
causa do desejo, como objetoa-mais-de-gozar.Assim se encon- também porque representa um momento de incidência da trans-
tra um equivalente discursivo da mais-valia A partir de então se ferência O amor é um signo de que mudamos de discurso. E mu-
pode escrever uma espécie de devolução deste a-mais-de-gozar damos de discurso quando a verdade se revela, ou seja, quando a
para aposição do semblante, que no discurso do mestre é ocupa- estrutura de ficção se mostra como ficção. Contudo, a transforma-
do pelo significante mestre ou S1: ção de discursos pode ser progressiva ou regressiva No caso pro-
gressivo, o discurso do mestre evolui para o discurso da histeria.:

iêL_> ~ l
X 3 Objeto a-mais-de-gozar

1721 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 173
gia e
domes- A teoria dos quatro discursos é, antes de tudo, uma tipolo
O caso inverso e simétrico é a regressão do discurso intersec-
nante do uma topologia, ou seja, uma descrição do discurso como
tre ao discurso da universidade, caso no qual a domi como Fou-
é trata- ção de superfícies, estratégia e objetos - exatamente
discurso passa a ser o significante do saber (S 2) e o outro , de 1966.
o prome- cault (1966/1986) defenderá em Arqueologiado saber
do como um objeto que será produzido como um sujeit , é antes de
Lembremos que esse livro, que Lacan leu várias vezes
tido ao saber (ideal da educação). sido feito em
tudo uma justificação metodológica para o que havia
) e As
A história da loucura (1960), O nascimento da clínica (1962
os mo-
palavras e as coisas (1966). Lacan parece seguir à risca
texto - li-
mentos de epistemologização do saber sugeridos nesse
e limiar de
miar de positivação narrativa, limiar de cientificidade
nálise se
rso da formalização -, mesmo que na pesquisa atual em psica
Ora, a verdade que não deve aparece como tal, no discu ndindo-o
arieda- desvalorize injustificadamente o limiar narrativo, confu
universidade, é que o que sustenta o saber é uma arbitr s momentos
com o limiar descritivo, como já apontamos em outro
de, é uma filiação ou mera contingência a teoriala-
pro- (DUNKER 2015). Contudo, ao contrário de Foucault,
Finalmente, como antípoda do discurso do mestre e como Excetuan-
psicanalista caniana do discurso parece muito refratária àhistória
gressão do discurso da histeria, temos o discurso do to dos dis-
no dis- do-se as breves e esporádicas menções ao ordenamen
Nele, o semblante é dominado pelo objeto a, assim como ica e do
idade: a cursos no tempo - do mestre, da universidade, da histér
curso do mestre ele se organiza a partir de uma impossibil o mestre
do discur- psicanalista - ou os apartes sobre as diferenças entre
castração dada e encoberta pela fantasia Ao contrário m a se apre-
zem impo- antigo e o mestre moderno, os quatro discursos tende
so da universidade e do discurso da histeria, que produ estáveis, que
-, o discur- sentar como estruturas algébricas demasiadamente
tência- respectivamente no próprio sujeito e no outro
(LACAN, não deixam de esconder altos teores metafísicos.
so do psicanalista "coloca o saber no lugar da verdade" au 21 su-
significantes Analistas do discurso como Dominique Mainguene
1969-70/1992, p. 197 ), produzindo, por sua vez, a muito
stória: gerem que a teoria dos quatro discursos não se mostr
mestres para o sujeito, que são os significantes de suahi tipológi-
útil, na medida em que seu uso parece ser meramente
údos depois
co - fazendo-nos voltar a uma hermenêutica de conte
de, o que
de uma promessa de libertação formalizante. Na verda

21 Comunicação pessoal.

Análise Psic:analitica de Discursos: Perspectivas Lacanian


as l 175
Lacanianas
1741 Análise Psicanalítica de Dí.suursos: Perspectivas
parece existir de mais interessante nessa teoria é a sua própria uma espécie de narrativa mestre (JAMESON, 1985) cuja estrutu-
construção, havendo aparentemente tantos textos que refazem o ra engloba todas as outras. A noção de semblante [semblant]aqui
percurso envolvendo a conceituação dos lugares do discurso (ver- é decisiva, pois permite separar o sujeito como efeito da relação ao
dade, semblante, outro, produção) e dos termos que ocupam es- significante (desejo) ou como alienação ao objeto (fantasia) de
ses lugares (sujeito, significante mestre, significante do saber e sua "aparência" - seja ela de sentido, seja ela de autoria e actância
objeto a-mais-de-gozar). Em seguida, há o tema da circulação A noção de semblante é homóloga à noção marxista de fetiche da
intradiscursiva, que compreende um circuito fechado - que vai mercadoria, ou seja, ela é feita para explicar o efeito ideológico
do semblante ao outro e, do outro, àprodução, retornando da pro- que mantém a unidade dos discursos e, consequentemente, sua
dução ao semblante - e um circuito aberto - que vai da verdade gramática de poder. O semblante é a aparência tomada como ca-
ao outro e, deste, à produção, mas sem retornar desse ponto à ver- paz, portanto, de produzir falsas unidades e falsas universalida-
dade. Ademais, essa circulação intradiscursiva, homóloga aos ti- des, que habilitam relações de troca e troca de relações.
pos de circulação da mercadoria descritos por Marx, deve ser A passagem de um discurso a outro gera um efeito residual.
contrastada com a circulação interdiscursiva - pela qual passa- Além da permutação dos termos dentro dos lugares, retomando
mos, seguindo regras homólogas às que regem a internalidade do brilhantemente as noções freudianas de progressão e regressão
discurso-, mas agora de um discurso a outro. Essa dupla permu- como orientações do funcionamento do aparelho psíquico, há o
tação retoma o tema da dupla torção, já presente na fórmula ca- surgimento de um signo. Esse signo, como tal, é um signo de
nônica do mito importada de Lévi-Strauss, como vimos. amor. Temos, portanto, espaço para pensar a transferência
A passagem de um discurso para outro corresponde a articula- como efeito da permutação entre discursos. É possível pensar
ções interditadas ou restritas entre versões do mito envolvendo também a noção de demanda, emergente entre os momentos de
suas diferentes funções e termos. Neste sentido, há uma novidade estabilização de um discurso. Se a orientação da demanda em
interessante quando, ao final do Seminário XVII, Lacan parece sua dialética com o desejo é sempre demanda de signo de amor,
descobrir uma espécie de incongruência ou irreversibilidade en- infiltra-se aqui espaço para pensar as diferentes modalizações
tre dois ou três dos mitos fundadores da psicanálise: o de Totem e do discurso. Uma semiótica dos afetos, por exemplo, poderia fa-
tabu,o de Édipo e o mito expresso em Moisés e o monoteísmo.Não cilmente ser derivada desta estrutura homóloga entre a deman-
há passagem perfeita de uma versão do mito a outra, sendo possí- da, cuja fórmula canônica é eu te peço que recuses o que te ofere-
vel supor que não se trate, afinal, de um único e mesmo mito. Isso ço,porque não é isso;a transferência, cuja estrutura se baseia na
teria sido uma descoberta bastante original, pois a tradição de lei- circulação fechada ou aberta entre sujeito, suposição e saber; a
tura dentro da psicanálise frequentemente torna o mito de Édipo estrutura da fala, na qual recebo minha própria mensagem de

1761 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1177
maneira invertida desde o Outro; e o saber e os discursos, como rial. Assim se deve qualificar sua originalidade na ciência.
Esta causalidade material é, propriamente, a forma de in-
aparelhos de gozo e formas de laço social.
cidência do significante como aí eu defino. Pela psicanáli-
Além disso, é preciso pensar de que forma o plano do discurso se, o significante se define como agindo, antes de mais
se relaciona com um dos aspectos críticos da primeira teoria do nada, como separado de sua significação. [...] Essa teoria do
discurso sintetizada no estudo sobre ''A carta roubada" (LACAN, objeto a é necessária, como veremos para uma integração
correta da função, no tocante ao saber e ao sujeito da ver-
1955/1998), de Edgar Allan Poe - a saber, a exclusão, apontada dade, como causa. (LACAN, 1966/2008a, p. 890)
por Derrida, da função do narrador na análise de Lacan. É essa
exclusão ou subordinação dos níveis inferiores de linguagem à AB comparações entre os discursos como articulações desa-
categoria de discurso que seria, por exemplo, indiferente às nar- ber e como formas de negação da verdade em posição de causa
rativas que nele incluem, tornando inúteis as variações e versões permitiam separar a magia, como recusa da causa eficiente; a
nas quais o discurso exerce seus efeitos. Essa exclusão ou hierar- religião, como denegação da verdade como causa final; a ciên-
quização das categorias infradiscursivas, quando aplicada sem cia, como foraclusão tanto do sujeito (em sua divisão) quanto
uma verdadeira análise do discurso, perde toda riqueza e rigor. da verdade (como causa), que retornam, redutivamente, como
ABrelações entre discurso e causalidade seguem uma trajetó- causa formal (LACAN, 1966/2008a). Lembremos que a verda-
ria complexa em Lacan. Nos anos 1940 a causalidade está asso- de para Lacan tem a particularidade de ser um acontecimento
ciada com o tema da identificação e da alienação, funcionando no de fala ("Eu, a verdadefalo") cuja inscrição como fato de discur-
quadro das posições dialéticas de reconhecimento. Aqui o dis- so ou como fato de escrita não deixa de ser problemática. Com
curso é fundamentalmente palavra [parole]que progride rumo a se vê, isso traz consequências metodológicas imediatas para a
sua realização, cuja causa é o desejo. Nos anos 1950 a causalidade pesquisa em psicanálise, uma vez que esta começa pela cons-
é parcialmente substituída pela noção estrutural de determina- trução de um corpus de linguagem que transcreve ou escreve
ção, ou de sobredeterminação simbólica Aqui o discurso é equi- acontecimentos de fala na forma de um registro material de es-
valente da dimensão diacrônica da linguagem, ou seja, a que se crita, por exemplo, o caso clínico.
realiza por contiguidade. Nos anos 1960, particularmente com a Esta discussão sobre a causalidade, suportada pela história
introdução da noção de objeto a como causa do desejo, e a hipóte- da ciência moderna, proposta por Koyré, e pela crítica da meta-
se de que a verdade ocupa função de causa: física subjacente à ciência, formulada por Heidegger, levará La-
can à tese de que não existe metalinguagem. Portanto a análise
[...] a incidência da verdade como causa na ciência deve
ser reconhecida sob o aspecto de causa formal[ ...] a psica- do discurso deve incluir a causa que a tornou possível, dada a
nálise, ao contrário acentua seu aspecto de causa mate- "separação de poderes, entre a verdade como causa e o saber

178 1Análise Psicanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas 1\.milise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 179
(como posição de ordenamento), o discurso histérico (como prá-
posto em prática" (LACAN, 1966/2008a, p. 884). É neste ponto
tica de questionamento) e o discurso universitário (como em-
preciso que Lacan introduz a noção de sujeito do sofrimento:
preendimento de racionalização). De fato a ciência é muito mais
[...] para o sujeito da ciência, ambas [magia e religião] não e muito menos do que o discurso da ciência Isso ocorre porque a
passam de sombras, mas não para o sujeito sofredor com
ciência não é apenas um laço social, o laço social entre os cientis-
quem lidamos. [...] Sim, ou não, isso que vocês fazem tem o
sentido de afirmar que a verdade do sofrimento neurótico tas, como quer certa leitura de T.S.Kuhn. A ciência é também um
é ter a verdade como causa? empreendimento de escrita, de pensamento e de transmissão de-
monstrativa cujo horizonte é a formalização. Além disso, a ciên-
Lembremos que a dimensão transformativa da psicanálise, cia é uma prática produtiva de objetos, ou seja, seu saber e sua
sua potência como prática de reversibilidade dos sintomas, de- tecnologia decorrentes. É possível que uma análise fina do que
corre da pressuposição de que a experiência da fala possui força
significa, por exemplo, afirmar que o discurso do mestre produz
causal. Que isso seja indiscernível de operações no campo do
objetos, o discurso da universidade produz sujeitos (retidos so-
pensamento ou da escrita, da simbolização ou do conceito, das
bre a barra), o discurso histérico produz saber, assim como o dis-
relações de reconhecimento, de discurso ou corporeidade, isso
curso do analista produz significantes mestres (inconsciente)
tudo é secundário em relação à premissa da verdade como ex-
possa restituir à teoria dos quatro discursos o que ela tem de me-
periência de fala, em sua temporalidade e causalidade própria.
lhor - que é se apresentar como um modelo, abrangente e conver-
Esta discussão sobre a verdade acaba incorporada no modelo
gente, para o método de investigação em psicanálise.
final representado pela teoria dos quatro discursos, no qual a
É através dessa análise que a teoria lacaniana dos discursos
verdade ocupará um lugar decisivo na estrutura do discurso. A
contempla a noção de heterogeneidade constitutiva, desenvolvi-
verdade sob a barra ilustrará aqui a função de negação da verda-
da por Authier- Revuz (2004), na medida em que, com a noção de
de, o elemento sobre a barra definirá o semblante ou dominante
semblante, traz exatamente este outro que fala por e através da
de um discurso. A posição do sujeito se distribuirá em confor-
posição do enunciador: o outro que se revela e que se esconde por
midade com isso. Ocorre que a função da causalidade ficará
meio de semblantes. O semblante é, ele mesmo, uma espécie de
representada e ampliada agora pela incidência do real, como
dispositivo, ou seja, reunião de significantes, ditos, letras e signos
impossível de se inscrever no discurso, como mal-estar, ou im-
possível de que cada discurso se transforme em uma metalin- que se apresentam como uma unidade, uma falsa unidade que
guagem, em um universo de discurso ou um mundo possível. exprimiria o indivíduo falante em sua autonomia e liberdade no
Sem esse detalhamento, o discurso da ciência, por exemplo, uso da linguagem. O semblante se rompe quando minha posição
acaba distribuído tipologicamente, entre o discurso do mestre de autoria é interrompida pela emergência de vozes, citações e

Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1181


180 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanfanas
enigmas que se apresentam involuntariamente, ou não são mos- uma única aula, conhecida como "Conferência de Milão", em
tradas em ato, no dizer. É neste rompimento que surge a hetero- 1972, o discurso do capitalista constitui uma mutação do dis-
geneidade constitutiva do dizer: o rompimento do semblante curso do mestre. Antes disso, por diversas vezes Lacan aproxi-
pela emergência de um outro, outras vozes e outros discursos, mou o capitalismo do discurso dó mestre, o que deu ensejo a
abre possibilidade para a ocorrência de giros discursivos. leituras como a de Pavón-Cuellar (2010):
Portanto, o giro de discurso - por meio do qual passo, por
exemplo, por progressão, do discurso do mestre ao discurso his- S1 S2
térico; ou, regressivamente, do discurso do mestre ao discurso (identificação-opressão) (alienação-exploração)
universitário - ocorre sempre pela emergência de uma hetero-
geneidade mostrada como operação de transferência de autori- 3 objeto a
dade, no segundo caso; ou pela transferência de amor, no caso (divisão-proletarização) (produção-deprivação)
do discurso histérico; ou ainda como transferência de saber, no
caso do discurso universitário. Isso não quer dizer que teremos Contudo, a escrita do discurso do capitalista como uma inver-
uma mudança de discurso sempre que houver um gesto de he- são, antes proibida no modelo do semigrupo de Klein, entre sujei-
terogeneidade mostrada. A citação, o enigma, a homofonia, a to e significante mestre, aparece na conferência aos italianos, em
isotopia gramatical ou lógica são recursos inerentes ao discur- Milão. Essa mutação escreve-se como um sistema fechado de
so do psicanalista, que definem seu trabalho interpretativo circulação simples. Diante da pergunta da plateia sobre a relação
como um trabalho de rotação de discurso. Ora, a teoria lacaniana entre sua concepção de discurso e a teoria de Marx, Lacan decla-
dos quatro discursos dispõe de uma potência crítica na medida rou que a mais-valia é o mais-de-gozar. Em seguida, afirmou:
em que não é apenas uma hermenêutica formal, mas a assimila-
ção da heterogeneidade, do inconsciente e do gozo, do sujeito e O discurso é o quê?É o que,na ordem,no ordenamento do
do significante, da relação de poder entre senhor e escravo para que pode ser produzido pela existência da linguagem,faz
função de laço social. Talvez haja um laço social, assim,
o interior das operações discursivas. A transformação dos dis-
natural, é dele que se ocupam os sociólogos...mas pessoal-
cursos pela ingerência de atos interpretativos mostra-se, assim, mente não creio. E não há trinta e seis possibilidades,há
homóloga à transformação que o analista do discurso espera somente quatro. (LACAN, 1972/1978, pp. 32-55)
pela deflação da força ideológica dos discursos.
Acrescentemos uma nota final sobre um possível quinto dis- A conferência continua com uma nova pergunta, pedindo a
curso, chamado de discurso do capitalista. Desenvolvido em Lacan que diferencie o discurso do mestre do discurso do capi-

1821 Análise Psicanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas 1\nálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 183
talista. Lacan respondeu a isso, ao final da conferência, escre- sim um sigruficante mestre. Não temos, no andar de baixo do dis-
vendo, uma única vez, o discurso do capitalista: curso do capitalista, a estrutura de fantasia (3 & a), que aliena e

i_l_ ~ 1
separa o sujeito do objeto, que permite que o sujeito se reconheça
(separe) e se apague (aliene) no sigruficante. O circuito fechado do
discurso do capitalista segue rumo ao sujeito dividido como domi- .
S1 xobjetoa nante, exatamente como no discurso da histeria Essa é a posição
do consumidor, premido pelo mais-de-gozar, ou seja, pela produ-
E é uma escrita muito incomum, quando comparada com os ção calculada de insatisfação de um lado e pela produção de mais
quatro outros discursos. Primeiro porque temos vetores que atra- sigruficantes mestres sobre a barra - comunicando-se, assim, di-
vessam a barra, e segundo porque o discurso do capitalista assim retamente e em sentido invertido, com a verdade. Ou seja, no dis-
escrito é um grupo de Klein perfeito, ou seja, uma combinatória curso do capitalista, a verdade não está recalcada e nem é opaca ao
circular e fechada Não estamos em uma estrutura homóloga à do sujeito; ele se aliena entre a produção (objeto a) e o consumo (Si).
sigruficante, que comporta uma ordem fechada e outra aberta Dito isso, seria mais pertinente afirmar que o discurso do ca-
Partindo do lugar da verdade, ocupado pelo sigruficante mestre pitalista, quando não é considerado como um caso particular do
(Si), se vai ao lugar do Outro. Com isso, temos que a verdade não é discurso do mestre, não é propriamente um discurso, mas uma
mais um lugar abrigado dentro do discurso, e ela não suporta mais montagem entre discursos, um curto-circuito dos discursos que
um semblante sob si Isso corrompe o critério da impossibilidade ele importa para dentro de si: o saber e o objeto são homólogos
de metalinguagem e a tese da verdade em estrutura de ficção. No ao discurso do mestre; a divisão do sujeito provém do discurso
lugar do Outro ocupado pelo saber (S:a),bem poderíamos ler o mer- da histeria; e o objeto remete à posição do discurso universitá-
cado e sua fetichização universal da forma mercadoria Essa é a rio. A operação de giro em um quarto de volta não pode ser feita
posição que encontramos para o saber no discurso do mestre; e, de da mesma maneira que nos outros discursos, pois não há nada
fato, podemos ver aqui como o saber em causa é da ordem do tra- que nos remeta à emergência transformadora da verdade; por
balho, da obediência e da exploração. Várias vezes Lacan mencio- maior que seja o número de rotações, jamais se chegará ao dis-
na que a posição do Outro alocada como saber é a posição do escra- curso do psicanalista partindo do discurso do capitalista.
vo. Esse lugar do Outro às vezes é chamado por Lacan de lugar do
gozo. Esse Outro produz o objetoa em sua função de a-mais-de- 2.5. Discurso e consumo: metáfora e metonímia
-gozar, assim como no caso do discurso do mestre. Mas, ao contrá- Dificilmente uma compreensão do processo de consumo po-
rio do discurso do mestre, não há um sujeito no lugar da verdade, e derá se desenvolver sem pressupor uma teoria da identificação,

184 IAnálise Psicanalitieade Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de DiscLlfsus:Perspectivas Lacanianas 1185
uma concepção sobre o desejo e um entendimento sobre a eco- Lacan definiu a identificação como "uma transformação que
nomia social da satisfação. O consumo tornou-se uma das mais acontece no sujeito quando este assume uma imagem" (LACAN,
importantes práticas de subjetivação da modernidade, porque 1938/1998, p. 98). Portanto, o universo de imagens atraentes e
em seu interior articulam-se práticas de construção e de deses- provocativas que costuma povoar a apresentação do objeto de
tabilização de identidades, bem como processos de constitui- consumo precisa ser assumido pelo sujeito. Assumir uma ima-
ção, disseminação e generalização de desejos - e, ainda, o hori- gem não implica apenas uma dimensão imaginária, mas é, antes
zonte de regulação das expectativas de realização e satisfação de tudo, um ato simbólico, porque inscreve e representa o desejo
possíveis para diferentes formas de vida Geralmente esses di- do sujeito como desejo do Outro. Quando escolho me apresentar
ferentes aspectos do processo de consumo são explicados pela e me representar por uma imagem, digo não apenas como quero
associação entre teorias econômicas, psicológicas e sociológi- ser visto, mas também como quero ser reconhecido, por quem
cas. Assim como o entendimento do processo de produção, an- quero ser reconhecido e, em certos casos, que quero ser reconhe-
tes de Marx, era segmentado em diferentes problemas discuti- cido - tornando-se secundário como e por quem. No capitalismo
dos pela economia clássica (origem da riqueza, distribuição da contemporâneo, a ligação entre ser visto e ser reconhecido é tão
propriedade, processos de fabricação, monetarismo), a teoria intensa que facilmente perdemos as diferenças entre os dois re-
do consumo tem se apoiado na combinação de aspectos dife- gimes actanciais. Isso acontece também inversamente, pela as-
rentes, que vão da mentalidade do comprador ao simbolismo sociação entre não ser visto e não ser reconhecido e o sentimento
das cores nas peças de propaganda; e que abordam, desordena- de perda ou deflação da existência É assim que as escolhas de
damente, problemas como disposições de compra, estilos de consumo se sobredeterminam como escolhas compartilhadas.
vida, tendências e expectativas de comportamento. Ao escolher assumir uma imagem, eu escolho também "com
A teoria psicanalítica permite articular esses diferentes as- quem estou falando". Por mais que esse destinatário possa ser
pectos do consumo, pensado como unidade entre determina- tipificado por relações de empatia e contraste com os valores
ções imaginárias simbolicamente organizadas em torno de ex- presentes no sujeito do consumo, a resposta advinda daqueles
periências reais. A noção de simbólico, na psicanálise de Lacan, que me reconhecem permanecerá parcialmente indeterminada
pode ser apresentada de modo a subsidiar um entendimento do Ou seja, se o sujeito recebe sua própria mensagem de maneira
consumo como processo de subjetivação. Isso pode ser feito se invertida desde o Outro (LACAN,1938/1998), e se essa mensa-
considerarmos que, a partir da noção genérica de simbólico, po- gem é a reversão do desejo inconsciente sobre o próprio sujeito,
demos entender tanto processos de identificação quanto de de- explica-se o efeito de descentramento ou descompasso entre o
sejo - e, ainda, de gozo - envolvidos no consumo. modo como o consumidor espera ser visto e o modo como ele

1861 Análise Psicanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1187
realmente se sente reconhecido durante o ato de compra e uso. Assumir uma imagem - ou seja, realizar uma identificação - im-
Ou seja, há uma distância entre a mensagem visada e a mensa- plica tanto defender sua falta, por meio de uma vestimenta imagi-
. r
gem efetivamente produzida pelo próprio sujeito, e isso acontece nária que transforma o consumidor em alguém que é como um
porque ele não dispõe de todos os meios para reconhecer o reco- falo, quanto incluir uma falta em um sistema simbólico - ou seja,
nhecimento que o outro lhe dispensa Esse reconhecimento do um sistema de trocas que, envolvendo significantes e desejos,
reconhecimento, ou seja, a decifração que o usuário tem de fazer torna o consumidor alguém que tem um falo (podendo então
do olhar de inveja ou intimidação, das manifestações de aprova- trocá-lo com outros). Explicam-se assim dois efeitos aparente-
ção ou desaprovação confunde-se com a própria sensação desa- mente contrários da relação de consumo: ela é uma relação po-
tisfação ou inadequação que o sujeito realiza quando "se vê sen- tencialmente democrática, na medida em que envolve escolhas
do visto" na esfera de seu narcisismo especular. Chegamos assim dotadas de valores universais, pois são fonte de inclusão dos su-
ao desacordo potencial entre dois circuitos narcísicos: (1) aquele jeitos em sistemas simbólicos, que por sua vez remetem a outros
que comporta o fazer-se reconhecido por um Ideal parcialmente sistemas simbólicos, fazendo circular valores, significações, gru-
opaco, mas ainda assim dotado de uma história, que é a história pos ao modo da cultura como obra humana; mas o consumo pro-
de identificações pregressas que formam o eu; e (2) aquele que picia também um reforço das relações de alienação do desejo
implica a apreensão da imagem de si tal qual ela estaria sendo (pela interpelação superegoica), de reificação do eu (em identi-
formada desde uma posição terceira, como se apresenta na situa- dades de consumo), de fetichização do objeto (que gradualmente
ção em que alguém examina seus diferentes ângulos diante da substitui o próprio eu do sujeito) e de instrumentalização de
própria imagem no espelho. O primeiro circuito pode ser chama- Ideais (que se tornam signos de gozo).
do de simbolização da imagem (LACAN,1953/2008), pois reflete A segunda acepção pela qual se pode considerar a afinidade
um processo de descoberta sucessiva e continuada dos sentidos entre os processos de consumo e a ordem das trocas simbólicas
da imagem como retornos da resposta invertida desde o Outro, diz respeito ao entendimento do desejo. Se do ponto de vista da
ou seja, desde o inconsciente. O segundo circuito descreve me- identificação entre consumidor e objeto encontramos uma
lhor o processo de imaginarização do símbolo, pois corresponde concepção de reconhecimento, no interior da qual o consumo
à apresentação de imagens que recobrem e expressam a falta, equivale a um ato de fala, consumir é trocar mensagens que são,
que por sua vez determina a dialética do desejo e do ser-desejado. por sua vez, modalidades de relação com objetos. No entanto,
Se na primeira situação trata-se de obter certo efeito no Outro, isso presume, mas não explica, a gênese social do desejo que se
por meio do ato simbólico de reconhecimento, na segunda situa- produz no interior das relações de consumo, seja ele o consumo
ção o próprio lugar do Outro é ocupado imaginariamente pelo eu. de objetos, de imagens, de atitudes imateriais ou de signos. Para

188 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1189
isso, é necessário entender que o desejo possui uma estrutura quantidade de excitação psíquica. Lacan associa o desejo com a
específica de linguagem que é equivalente à da metonímia (LA- metonímia, pois ele apresentaria uma estrutura semelhante à
CAN, 1958-59/2003). A metonímia seria uma forma de expres- do deslocamento, por meio do qual traços de um elemento são
sar linguisticamente o que Freud havia descrito através da no- substituídos, por contiguidade, pelo segundo. O próprio sonho é
ção de deslocamento [Verschiebung]. O deslocamento é um dos formado pela compressão de inúmeras cadeias associativas
processos primários, por meio do qual representações hiperin- (pensamentos oníricos), que transferem a energia ligada a cada
tensas, do ponto de vista do desejo, transferem sua carga de ex- representação para uma mesma imagem, que deixa então de ser
citação para outras representações, produzindo-se assim uma uma imagem lembrada e passa a ser uma imagem alucinada.
deformação da ilação de desejo original. Um exemplo de deslo- Temos então, em todo sonho, uma metáfora (condensação), que
camento, mencionado por Freud em Interpretação dos sonhos é composta por diferentes metonímias (deslocamentos).
(1900/1988), refere-se a um determinado sonho no qual um tio A metonímia se estabeleceria como um processo primário
de Freud aparece dotado de um elemento que ele não possui na de simbolização. A criança aprende a simbolizar suas relações
realidade, uma barba. Tio Joseph, apesar de ser querido pela fa- retendo traços do objeto em suas alternâncias de aparição e de-
mília, é notoriamente pouco esperto e com uma vida repleta de saparição, de presença e ausência. É assim que ela pode reter
infortúnios. Mas, no sonho, a barba acrescentada ao persona- traços e representantes da mãe, que simbolizam não apenas a
gem de tio Joseph é intensamente viva e colorida. Freud nota própria mãe, mas seus movimentos de idas e vindas; e, ainda, a
que, se tio Joseph não tem barba, há outro personagem impor- passividade ou atividade diante dessas oscilações. Freud tam-
tante na vida do sonhador, com quem este mantinha uma rela- bém havia descrito o processo de constituição do desejo como
ção de rivalidade, e esse sim é dotado de barba. Ao transportar um processo de retenção e de retorno a traços mnêmicos desa-
esse traço e inseri-lo no personagem de tio Joseph, é como se o tisfação. É pela reativação desses traços - inicialmente, por
sonho reduzisse o rival à estupidez, tornando-o, por assim di- meio da alucinação; em seguida, pela substituição desse objeto
zer, inofensivo. O personagem do sonho, que reúne em uma alucinado por ações inespecíficas (como o choro ou a retração);
mesma imagem tio Joseph e a barba, corresponde a uma con- e, finalmente, por ações específicas, como o pedido, o chamado
densação [Verdichtung], ou seja, uma reunião de elementos he- e a articulação da experiência de satisfação-insatisfação em
terogêneos sob a unidade de uma mesma imagem. Mas o fato de circuitos de representação de memória - que se estabelecerá a
ser uma imagem hipernítida e o trabalho de transportar a barba simbolização, e, então, a constituição do eu e do sujeito pelo
do rival para o tio correspondem a um deslocamento, no pri- processo de hiância entre desejo e representação. É isso que
meiro caso, de uma representação; no segundo caso, de uma Lacan tenta redescrever por meio do conceito de significante.

190 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 191
Assim como o sonho é composto por deslocamentos de conti- F (S ... s') S = D (-) s
guidade e formação de uma nova imagem alucinada, o desejo é
. 1
formado no trabalho de transporte de traços de percepção con- A metonímia é uma função (F), ou seja, uma regra constante
tíguos com outros traços de percepção. Ora, isso permite for- de substituição que permite estabelecer a equivalência entre dois
malizar o funcionamento do desejo tanto em sua relação com conjuntos. É uma função na qual um significante (S) se relaciona
uma falta, pois o deslocamento sempre poderá ser objeto de um com um significado (s') como se este fosse um subconjunto de um
novo deslocamento, quanto por momentos de suspensão ou de- significante que permanece em elisão [S]. Ora, esse significado
terminação dessa contiguidade - como é o caso da imagem oní- corresponde à falta em ser, por meio da qual a significação aparece
rica alucinada, mas também do sintoma. O momento no qual o como um mero desdobramento de um significado anterior. Quan-
conjunto de metonímias estabiliza-se em torno de uma metáfo- do digo "30 velas"em vez de "trinta navios",é como se o significado
ra corresponde ao sintoma, que é, ao mesmo tempo, uma reali- de velas fosse apenas desdobrado em navios, uma vez que navios
zação simbólica do desejo, uma prática sexual simbólica e uma costumam portar velas. Produz-se assim um efeito de identifica-
forma de identificação do desejo a um objeto - processo tam- ção, por exemplo: F =Função metonímica S =navios: conceito ou
bém conhecido como demanda. significado em elipse. s' = velas:substantivo feminino, singular,
O funcionamento dos processos de incentivo ao consumo ou que designa estrutura geralmente de pano, feita para coletar vento
de organização das relações de consumo pode facilmente ser e impulsionar embarcações. D (-) s = tipo de significação.
explicado por meio da metonímia. A maior parte da propaganda O lado direito da fórmula exprime o efeito de desejo [D]; e o
explora relações simples de associatividade contígua entre tra- fato de que, nesse caso, não houve ultrapassagem da barra que li-
ços que representam expectativas de desejo e traços que defi- mita o acesso à significação: (-) s. É essa não ruptura da barra que
nem e representam o produto. No entanto, a eficácia do proces- mantém a significação implícita, que torna o desejo uma espécie
so será tão maior quanto melhor forem realizadas metonímias de intencionalidade sem objeto. Cada posição de objeto é apenas
inerentes à imagem do produto e as inerentes à vida do consu- um momento transitório para um novo deslocamento. Cada po-
midor. Essa metonímia sobre metonímias explica por que as sição de objeto é construída por meio de uma falsa identificação
mensagens envolvidas na propaganda devem ser indiretas e entre significantes, cujo trabalho e esforço de sustentação cha-
evocativas, e não diretas e apelativas. Ou seja, o sujeito do con- mamos de desejo, e cujo marcador posicional da significação
sumo deve entender que ele mesmo está produzindo o percurso chamamos de falo (LACAN,1958/1998). É por isso que a signifi-
do "sonho", no interior do qual atos de compra e uso se realizam. cação fálica permanece retida pela barra É o que na propaganda
Lacan propõe a seguinte fórmula da metonímia: poderíamos chamar de processo de evocação mimética em torno

192 IArnílise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Amílise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1193
ção implícita, desdobrada pela contiguidade, foi pensada por La-
do produto. As ilações construídas pelo consumidor permitem
can por meio da teoria da metáfora como equivalente do sintoma e
que uma nova identificação possa ser produzida entre seu desejo
sua operação constituinte, ou seja, o recalcamento [Verdriingung].
inconsciente e a imagem fílmica oferecida para ser seu suporte. É
O recalcamento é uma forma de negação que preserva e con-
assim que a propaganda não apenas explora a gramática de dese-
tém dentro de si aquilo que é negado e, portanto, é uma negação
jos do consumidor, mas também cria novas modalidades de dese-
simbólica (LACAN, 1958/1998). Por isso, aquilo que é simbolica-
jo e de substituição metonímica, que aparecem ao consumidor
mente negado retoma no simbólico. Temos, de um lado, a opera-
como "ainda não sonhadas" e como "desde sempre sonhadas".
ção de negação - ou seja, a instituição de uma barra que detém a
Contudo, uma estrutura de trocas que permitisse a articulação
significação, tomando o falo inconsciente - e, de outro, o retomo
de desejos - por mais eficaz que fosse, e por mais extensa em ter-
do que foi negado, como emergência de uma nova significação.
mos de acolhimento convergente de séries metonímicas - seria
Retenhamos aqui que há duas acepções de simbólico envolvidas
impraticável e inútil se não viesse a produzir dois outros efeitos,
nessa afirmação. No primeiro caso, falamos do simbólico como
além da identificação e do eliciamento de desejos, ou seja, a deci-
uma atividade de simbolização, uma atividade de negação.No se-
são de compra e a decepção com o objeto adquirido. Portanto, não
gundo, falamos do retomo em um registro específico, ou seja, na
basta produzir o desejo, é preciso que o sujeito o assuma na forma
produção de um objeto cujo estatuto para o sujeito situa-se na
de um ato, o ato de compra Também não basta que ele o adquira
ordem simbólica. Ora, a metáfora, como condensação de séries
suturando seu desejo por meio de um objeto, é preciso que esse ob-
de desejo, cada qual metonímicamente estruturado, é uma subs-
jeto inicie seu processo de desgaste, destruição ou declínio, tanto
tituição de outro tipo, pois implica a criação de uma nova signifi-
no que diz respeito à sua funcionalidade libidinal quanto ao seu
cação e, portanto, uma ruptura da barra que retém a significação,
lugar na relação com o desejo. Esse processo deve ser cuidadosa-
( agora redescrita como barra de recalcamento. Esse sistema de
mente calculado para que a degradação do objeto não ocorra rápi-
dupla negação foi representado por Lacan da seguinte maneira:
do demais - caso em que haveria uma inibição do reinício do pro-
cesso de consumo - nem de forma demasiadamente lenta - caso F (S') S = S (+) s
em que não acompanharia a temporalidade e as exigências do pro- ·' s
cesso produtivo e o reposicionamento necessário de ofertas de a estrutura metafórica, que indica que é na substituição
novos objetos. Essa dupla temporalidade pode ser pensada, por do significante pelo significante que se produz um efeito
de significação que é de poesia ou de criação, ou, em ou-
um lado, como equivalente do processo de detenção dos desloca-
tras palavras, do advento da significação em questão.
mentos metonímicos; e, por outro, como equivalente do processo
(LACAN, 1958/1998, p. 698)
de negação da significação implícita Ora, a negação da significa-

_ Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1195


194 I Amílise Psicanalilica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
Ou seja, temos novamente uma função [F] e um conjunto no ção exemplificam a primeira situação; o consumo conspícuo e o
qual o mesmo significante [S] aparece na posição de significante 1 consumo por impulsão são casos típicos da segunda categoria.
(em cima da barra) e na posição de significado (embaixo da barra). O modelo da metáfora-metonímia permite entender que o
Tomar o significante pelo significado produz, de um lado da fór- consumo envolve operações alternadas, nas quais se provê uma
mula, um significante sem significação [S'], que corresponde, no identificação com o modo de "ser o falo" e o modo de "ter o falo",
lado do conjunto espelho, a um significante [S] que ultrapassa a onde há momentos de conversão do desejo em demanda (metáfo-
barra de significação [(+) s], produzindo o efeito poético. Esse sig- ra) e momentos de conversão da demanda em desejo (metoní-
nificante sem significação foi chamado por Lacan de significante mia). O consumo envolve esta oscilação calculada entre satisfa-
do Nome-do-Pai, e esse cruzamento da barra de significação foi ção e insatisfação com o objeto (coordenada pelo supereu), bem
equiparado à significação do falo, como tal impronunciável ou ir- como a dialética entre significantes e sua ação negadora Englo-
redutível ao significado (daí que sua escrita seja feita por meio da bam-se, assim, no interior das relações metafóricas e metoními-
raiz quadrada de -1, ou seja, uma operação matemática vetada). cas, que mantêm relações invertidas entre a atividade de simboli-
Ora, se a metonímia nos permite entender a função desejan- zação (negação do primeiro tipo) e os efeitos de retorno (negação
te envolvida no processo de consumo, é a metáfora que explica do segundo tipo), as identificações narcísicas antes examinadas
tanto a importância do "efeito de novidade" capaz de reiniciali- na esfera da assunção de uma imagem. Podemos responder, ago-
zar o processo de expectativa de compra quanto o efeito de "de- ra, do que são feitos os elementos de indeterminação na esfera das
gradação" do falicismo do objeto, uma vez que ele significa e relações de reconhecimento: esses elementos são significantes.
enquadra a insuficiência da satisfação obtida com o objeto. A A terceira acepção, pela qual se pode falar da relação entre
relação entre um e outro efeito é regulada pelo sistema de ideais, consumo e ordem simbólica, diz respeito ao processo que coman-
que estabelece a paridade entre o consumo com os outros con- da a economialibidinal das sociedades modernas e que a caracte-
sumidores, mas também pelas exigências do supereu - ou seja, a riza como um processo discursivo. Em Lacan, o discurso pode ser
instância psíquica que julga, avalia e pune as experiências desa- considerado uma estrutura simbólica que contorna o Real, ou
tisfação do sujeito. Dessa maneira se entende como o ciclo de seja, o discurso como aparelho de gozo (LACAN,1956/1998). Nes-
consumo extingue-se pela queda do objeto em relação aos ideais se caso, a situação de consumo deve ser lida, principalmente,
que guiaram sua aquisição, assim como se reascende, pela exi- como uma variante particular do discurso do mestre. No discurso
gência de que mais gozo seja obtido com a mesma transgressão do mestre, a relação entre o agente e o outro é representada pela
da significação. O consumo segmentado por classe e o consumo relação entre um significante mestre (Si) e um significante que
definido pelo acesso a uma determinada experiência ou condi- representa o saber (S2). O modelo alegórico desse sistema de troca

196 IAnálise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas


Amilise Psicanalítica de Diseur::us: Perspectivas Laeanianas 1197
e reconhecimento é dado pela relação entre mestre e escravo primeiro caso está bem descrito pelo modelo clássico do consumo
(KOJEVE, 1934-36/2005). O mestre ordena, decide e obriga; o es- baseado na produção de necessidades e na descrição de deman-
cravo trabalha e, em seu trabalho, domina a natureza por meio de das objetivadas, o segundo caso permite entender a progressão
seu saber-fazer. O mestre domina o escravo como o escravo do- cada vez mais orientada para as categorias fetichistas do desejo,
mina a natureza O significante mestre é um significante asse- traço fundamental da montagem da fantasia A interpelação de
mântico, ou seja, cujo significado é paradoxalmente ele mesmo. O consumo só é realmente eficaz quando consegue reunir, de modo
significante do saber não deve ser entendido como lugar das ex- efetivo, a demanda expressa pelo enunciado com a enunciação da
pectativas cognitivas ou representacionais do sujeito, mas como fantasia 22 • Novamente, os dois circuitos podem ser apresentados
circuito de uso ou de construção de uma montagem pulsional, ao como variantes de simbolização. Enquanto o nível explícito do
modo de uma colagem surrealista O nível implícito do discurso discurso simboliza o real,no processo conhecido como articula-
do mestre é representado pela relação entre o que é produzido por ção significante da demanda, o nível implícito do discurso, repre-
esse discurso - ou seja, o objetoa - e a verdade desse discurso, que sentado pelo circuito da fantasia, realizao simbólico.
é a supressão da divisão do sujeito. Nessa medida, a relação de
consumo é uma relação na qual se obtura a divisão do sujeito, cujo 2.6. Topologia histórica: espaço, lugar e posição
sinal clínico mais evidente é a angústia e seus equivalentes. Em Para Lacan, o melhor método para abordar a linguagem -
segundo lugar, a relação de consumo produz uma função específi- seja no nível do significante, seja da fala ou do discurso - é a to-
ca do objetoa, que é o objeto a-mais-de-gozar. Nesse caso, está em pologia, este ramo da Matemática que estuda principalmente a
jogo uma espécie de satisfação adicional ou de insatisfação artifi- noç~o de espaço ou vizinhança. A topologia tornou-se assim
cialmente construída na relação com os objetos. Ademais, a rela- uma referência metodológica crucial para pensar a ideologia.
ção não assimilável entre a divisão do sujeito e o objetoa descreve Um espaço de discurso é o que torna possível um conjunto de
o funcionamento clínico da fantasia Portanto, a relação de consu- enunciados e delimita um campo de possibilidades ao qual o
mo apresenta-se aqui como uma relação de fantasia, com todas as sujeito está submetido. Lembremos que a referência ao espaço
suas características de condicionar o erotismo, inscrever a repeti- tem marcado os estudos sobre a linguagem 23 desde seu início,
ção, alienar o desejo, representar alei Assim como o nível explíci-
to do discurso do mestre reduz o consumidor a uma relação de 22 Uma excelente obra que torna evidente essa relação metonímica-metafórica nos jogos de con-
implicação entre significantes, formalizados como "se você quer sumo é o livro As coisas,de Georges Perec (2012). Nele, as relações metonímicas com os objetos
de consumo e sua obsolescência planejada pode ser entrevista a partir do tempo verbal utilizado
A, então adquira B",o nível implícito aborda o consumidor "adivi- pelo autor: o futuro do pretérito.
23 Aqui nos referimos aos estudos sobre a linguagem no Ocidente. No Oriente há tradições grama-
nhando" ou antecipando o funcionamento de sua fantasia Se o ticais mais antigas.

198 IAnálise Psicanalítica de Discunms: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 199
na antiga tradição retórica grega. A distinção de Aristóteles en- em termos de lugar, como forma particular e sistêmica da enun-
tre lugares comuns, baseados na universalidade, e lugares espe- ciação de ditos (dimensão sociológica da ideologia); e, final-
cíficos, baseados na particularidade, aponta para uma metáfora mente, em termos de posição, como forma singular e concreta
dominante na história da análise do discurso. da enunciação de um dizer (dimensão histórica da ideologia).
Como sugeriu Perelman (2005), a teoria aristotélica dos lu- Ocorre que um bom método para pensar a linguagem, sem ex-
gares variáveis prende-se a modos distintos de apreensão do cluir o sujeito, deve ser ao mesmo tempo capaz de descrever
real. O real cuja referência é o território se tenciona com o real formas puras - como, por exemplo, fonemas - e os aspectos se-
cuja referência é a morada. O espaço permanece, todavia, como mânticos ou pragmáticos da linguagem, que se caracterizam
uma categoria que inclui as duas formas anteriores em conti- pela ambiguidade. Na verdade, essas duas tendências, a desam-
nuidade. A partir disso, há uma tendência a considerar que o biguação e a ambiguação, estavam presentes, ejá em confronto,
lugar comum inclui e contém o lugar específico, assim como o no início dos estudos modernos sobre a linguagem, ainda no
gênero contém a espécie. Através de uma gramática de inclusão século XVI, representadas respectivamente pelo jesuitismo
e exclusão, a estrutura da ideologia nos leva a supor que toda (Descartes) e pelo jansenismo (Pascal) (HAROCHE, 1992).
posição inclui-se em um lugar e todos os lugares referem-se ao Assim como o discurso, o espaço se define por suas regras de
mesmo universal representado pelo espaço. Utilizaremos, por- formação e pelas dimensões inferidas a partir de seus objetos.
tanto, operatoriamente, as noções de espaço, lugar e posição São os deslocamentos que tornam, por assim dizer, "visível" um
para tentar organizar algumas concepções e problemas em tor- objeto em um determinado espaço, mas não em outro. Por exem-
no da relação entre ideologia e discurso. plo, a semelhança e a diferença entre gêneros de discurso, formas
Falamos, portanto, da ideologia como processo em que "a" de literatura, níveis de enunciação, tipos de personagens, éticas
linguagem, como universal homogêneo e pura abstração, "en- de discurso são formuláveis em termos de propriedades topoló-
caixa-se" perfeitamente com a língua, que seria seu particular gicas, como a paratopia, a homotopia e a heterotopia (semelhan-
correspondente em termos de lugar. Mais ainda, dentro da lín- ça e diferença de lugar) (MAINGUENEAU, 1993/1995), isomor-
gua como lugar, ou rede de lugares, se poderiam deduzir, sem fismo e homeomorfismo (semelhança e diferença de forma), que
contradição, as posições, as diferentes narrativas, os estilos e as são pensadas pela análise do discurso anglo-saxônica (discourse
enunciações singulares. Dessa forma, o discurso como ideolo- analysis, conversation analysis) por meio de categorias como
gia pode ser traduzido, alternativamente, em termos de espaço, coesão e coerência Por exemplo, as análises de Foucault sobre a
como condição de possibilidade universal e transcendental da história da loucura, o nascimento da clínica médica, a formação
significação (dimensão epistêmica da ideologia); mas também dos regimes disciplinares ou eróticos equivalem à delimitação de

200 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Laeanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Laeanianas l 201
certos espaços compostos por formações discursivas e não dis- pode ser apreendido pelas superfícies (os planos em que o dis-
cursivas (práticas e dispositivos), que em um determinado mo- curso se desenvolve); pelas instâncias de delimitação (espaço
mento tomaram visíveis determinados objetos como a loucura, a criado pela interveniência de outros discursos, os interdiscur-
doença, o homem etc. É por isso que as noções de superfície, des- sos); e pelas grades de especificação (suas oposições internas).
continuidade e corte são tão importantes para esse autor. Tudo se passa como se Foucault procedesse ao modo geométri-
Um discurso, segundo Foucault, pode ser compreendido a co, tentando definir um espaço pelos objetos que este comporta
partir de um domínio extenso definido pelo conjunto de enuncia- - tal como Euclides, em Elementos, ou Espinosa, em Ética.
dos efetivos, falados ou escritos, na sua dispersão de aconteci- O que podemos chamar de espaço ideológico é a suposição
mentos e na instância própria de cada um. Ou seja, o discurso não necessária da infinitude dos discursos, ou seja, de que "tudo
está concernido apenas aos lugares que supostamente o repre- pode ser dito" porque o espaço onde se vive, fala e trabalha é afi-
sentam, mas também distribuído em um espaço heterogêneo, nal único, homogêneo e transparente. Intuitivamente acessível,
que compreende diferentes níveis de organização do saber (posi- tal como a categoria de espaço nos induz a pensar. Todas as for-
tividade, epistemologização, cientificidade, formalização). Tra- mas de ideologia convergem, portanto, nesta fantasia ideológica
ta-se, na arqueologia foucaultiana, da localização do enunciado mais geral de que a própria linguagem é um meio neutro, vazio e
em sua dispersão, mesmo que ultrapasse o domínio inicial ou vi- indiferente. Espaço no qual os objetos vão sendo "depositados".
zinho, mesmo que não possua o mesmo nível formal Abandona- Observe-se que, assim como a relação entre o espaço e os obje-
-se, assim, o fechamento usual trazido por categorias como: obra, tos que nele tomam corpo, a ideologia nos induz a uma falsa rela-
autor, domínio epistemológico, gênero ou mentalidade. ção entre realidade e saber. É o que Zizek chamou de fantasia ideo-
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na lógica"[ ...] a ilusão não está do lado do saber, masjáestádolado da
medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; própria realidade, daquilo que as pessoas fazem. O que elas não
ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinida- sabem é que sua própria realidade, sua atividade social, é guiada
mente repetível e cujo aparecimento ou utilização pode- por uma ilusão, por uma inversão fetichista'' (ZIZEK,1996).
ríamos assinalar (e explicar se for o caso) na história; é
Os sujeitos podem não acreditar. As práticas e os objetos
constituído por um número limitado de enunciados para
os quais podemos definir um conjunto de condições de acreditam por eles. É, portanto, ao modo da análise de uma
existência (FOUCAULT,1966/1988, p. 211) crença fundamental que Zizek entenderá a fantasia ideológica
que regula a realidade social. Por exemplo, todos sabemos que a
Um discurso se compõe de enunciados, mas ele se define dife- burocracia não é perfeita, nem dispõe de todos os poderes que a
rencialmente de outro por um objeto. Um objeto que, por sua vez, ela atribuímos, mas mesmo assim nossa conduta efetiva diante

202 [Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Amílise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 203
da máquina burocrática é regulada pela crença em sua infalibi- digma linguístico. Esse movimento se apoia, genericamente,
lidade. Este "como se" é o que precisa ser explicado pela análise em um relativismo historicista, baseado em certa apropriação
discursiva da ideologia. de Nietzsche, renunciando assim ao problema da verdade.
A noção foucaultiana de dispersão e seu corolário em termos A noção de espaço discursivo foi desenvolvida, em outra dire-
de heterogeneidade discursiva abriram caminho para a renova- ção, particularmente pela análise do discurso anglo-saxônica,
ção pós-estruturalista que redundou, principalmente, no aban- inspirada em Foucault e Marx, mas também em Lacan. Nesse
dono da categoria de universalidade e na concepção de discurso caso prevalece a noção de estrutura, mas como um universal des-
como um espaço aberto, marcado pela deriva de sua diferencia- completo. A estrutura organiza-se em torno da falta e da diferen-
ção [di.fférance],como sugere Derrida É nesse momento que os ça Autores como Laclau e Mou:ffe,por exemplo, concebem a no-
universais dos quais se poderia deduzir, por contraste, a noção ção de hegemonia como movimento de expansão universalizan-
de ideologia - universais como a linguagem, o inconsciente, a te do espaço de um discurso. Os pontos nevrálgicos das análises
lógica formal e, é claro, a razão - tornam-se sobrepostos à pró- desses autores são a manutenção (ética) e a explicitação (meto-
pria noção de ideologia, fazendo-a tão vasta quanto inespecífica. dológica) da diferença entre o universal como um significante va-
Começa a faltar espaço para pensar, afinal, o que não é ideologia. zio - que indica a ausência de uma completa congruência discur-
Como observou Zizek, esse gesto, entre outros efeitos, acabou siva dentro de uma comunidade - e a forma particular de preen-
por inverter o tema do sujeito da produção no tópos da produção chimento desse espaço vazio do universal (ideologia). Em chave
do sujeito. Gradualmente, isso trouxe também o esquecimento lacaniana, a mesma tese corresponde a uma atitude crítica basea-
da noção de classe, substituída por outras categorias, mais da na não totalização da noção de Outro, entendido como espaço
"identitárias", como gênero, etnia, etariedade, ou então por di- da linguagem Segundo Stavrakakis (2007, p. 139): ''Para manter
mensões mais diretamente ligadas à noção de consumo aplica- uma relação não-totalizável com o Outro nós precisamos nos
da ao âmbito da cultura Essa implosão da noção de estrutura identificar com a falta no Outro e não com o Outro per si".
baseou-se no reconhecimento de que, como totalidade sistêmi- Essa falta no Outro decorre de uma heterogeneidade da no-
ca, ela restringia muito a análise do discurso, submetendo-a à ção de simbólico utilizada para defini-lo. O Outro como espaço
noção de signo ou forma; em suma, neutralizando em um uni- da linguagem é simultaneamente:
versal de linguagem as infiltrações ideológicas do discurso. 1) simbólico como sistema, um conjunto de regras, normas,
Mas a objeção pós-estruturalista acabou por descaracteri- prescrições e leis que impõem uma heteronomia ao sujeito,
zar a própria noção de ideologia (e, correlativamente, a de uto- ou seja, um dispositivo discursivo para redução e controle da
pia) ao abandonar o paradigma da produção em prol do para- contingência;

204 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1205
2) simbólico como ordem, lugar de realização da dialética entre milar à pergunta do psicanalista diante de seu analisante: "Qual
saber e verdade, campo de realização de reconciliação do su- o lugar do sujeito nesse discurso? Quem fala (e é falado) nesse
jeito ao modo de um mediador universal; discurso?" Em termos foucaultianos: "Qual é o status dos indiví-
3) simbólico como "eficácia", lugar de conflito, de antagonismo, duos que têm o direito, regulamentar ou tradicional, juridica-
da hegemonia e da contradição. Esse ponto vem se mostrando mente definido ou espontaneamente aceito, de proferir seme-
uma cunha para a teoria pós-lacaniana: um ponto de divergên- lhante discurso?". Definir a competência e o saber, as instituições
cia entre Zizek, que deposita sua esperança crítica na noção de ou normas que definem a posição do sujeito para sua inscrição
ato (real) capaz de subverter as coordenadas simbólico-ima- no discurso e a individualização dos personagens que o repre-
ginárias do espaço da ideologia; Ernesto Laclau, que afirma a sentam é função da análise das modalidades enunciativas. Ob-
possibilidade contraideológica a partir da plasticidade simbó- serve-se que, para Foucault, o sujeito deve ser tomado como um
lica do lugar; e Judith Butler, que denuncia, na fixidez do sim- lugar vazio, individualizado e prescrito pelo discurso:
bólico como posição, o substrato da ideologia - recorrendo,
[...] o sujeito do enunciado é uma função determinada,
para tal, à noção de performatividade e ao ponto de vista prag-
mas não forçosamente a mesma de um enunciado para
mático sobre a linguagem, como categoria crítica No espaço outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser
do discurso podemos isolar os lugares onde os sujeitos e as exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes. [...]
enunciações concretas se efetivam. Podemos dizer, então, que o mesmo indivíduo pode ocupar alternadamente, em uma
o discurso ideológico é composto por lugares e pelas relações série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel
de diferentes sujeitos. (FOUCAULT,1966/1988, p.102)
que definem esses lugares. Encontramos um precedente para
o estudo dos lugares discursivos também em Foucault, mais Noções como cena enunciativa, isotopia e paratopia, em
precisamente em sua noção de modalidade enunciativa Maingueneau; percurso gerativo e actante, em Greimas; apare-
[...] a descrição do nível enunciativo não pode ser feita lho ideológico, em Althusser, são exemplos de lugares a partir
nem por uma análise formal, nem por uma investigação dos quais se podem inferir aspectos semânticos, pragmáticos
semântica, nem por uma verificação, mas pela análise das ou sintáticos que definem as propriedades de um discurso e a
relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação, produção do sujeito. Os trabalhos de Certeau sobre o cotidiano
em que ele mesmo faz aparecer diferenças. (FOUCAULT,
1966/1988, p.101)
nos dão outro exemplo vivo e concreto da importância da noção
de lugar para a análise discursiva da ideologia. ''A diferença que
Aqui se coloca a dimensão da enunciação e do sujeito produ- define todo lugar não é da ordem de uma justaposição, mas tem
zido por um discurso. Ou seja, a pergunta do crítico deve ser si- a forma de estratos imbricados. [...] Este lugar, na superfície pa-

206 IJ\milise Psicanalítica de Discursos: Penapeclivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1207
rece uma colagem, mas de fato é uma ubiquidade na espessura. como contradição, como lugar impossível do sujeito ideológico.
Um empilhamento de camadas heterogêneas" (CERTEAU, Poder-se-ia argumentar que o real assume a forma da contradi-
1984/1994, p. 309). ção que engendra modos específicos do sujeito. Tais contradi-
Nesses estudos pode-se indagar, criticamente, qual seria o ções podem ser descritas em termos formais ou conceituais, de
lugar reservado para a noção de lugar. O autor que parece mais tal modo que a apropriação ideológica da linguagem revelaria
sensível à conotação linguístico-ideológica da noção de lugar é seu modo de funcionamento, tendo por referência a lógica de sua
Ranciere, que parece ter percebido sua afinidade intuitiva com produção. Entre o sujeito da linguagem (universal) e o sujeito da
a noção de classe, daí derivando consequências importantes ideologia (particular), nesta disjunção entre o sentido e o não
para a análise de textos. Veja-se para isso sua interessante críti- sentido, na hiância entre o efeito ideológico elementar de trans-
ca da convergência entre a noção de lugar e a de território em parência da linguagem e sua opacidade está colocado todo o pro-
sua abordagem crítica da noção da representação da democra- blema dos lugares do discurso. Isso implica aproximar esses au-
cia na América. Sua expressão ideológica redunda, justamente, tores de uma vertente crítica similar à que se pode encontrar, por
da convergência encobridora entre o social (como universal) e a exemplo, na Escola de Frankfurt; autores que, mesmo deslocan-
comunidade (como singular). Mais recentemente, reencontra- do o papel da cultura de um mero efeito superestrutural para um
mos a força crítica dessa mesma noção em sua análise do po- elemento-chave para a compreensão da dominação, não renun-
tencial crítico das favelas: ciaram a pensar o real como contradição e o sujeito como espaço
de liberdade (mesmo que impossível nas condições dadas). Ou
Nomes e lugares políticos nunca se tomam simplesmente
seja, o real deve ser pensado como uma categoria intervalar en-
vazios.O vazio é preenchido por alguémou outra coisa.Se
os que sofrem repressão inumana não conseguemimple- tre o linguístico e a realidade, mas também como uma categoria
mentar os direitos humanos que constituem seu último tensa, heterogênea tanto à linguagem quanto à realidade.
recurso, então outros precisam herdar seus direitos, para Outra maneira de entender o lugar como contradição entre
que os implementem em seu lugar. [...] O "direito à inter- linguagem, trabalho e vida pode ser encontrada em Maingueneau:
venção humanitária'' pode ser descrito comouma espécie
"Toda dificuldade consiste, como vimos, em admitir que o sen-
de "devoluçãoao remetente": o direito em desuso que ti-
nha sido enviado aos destituídos de direitos é devolvidoa tido e a linguagem não se superpõem às relações econômicas e
seus remetentes. (ZIZEK, 2014,p.12) sociais, mas consistem em uma dimensão constitutiva dessas
relações" (MAINGUENEAU, 1993/1995, p.105).
Ou seja, tanto Ranciere quanto Zizek parecem dispostos a ex- Para Maingueneau, o hiato assim criado entre o social-eco-
trair do uso crítico da noção de lugar uma das faces do real: o real nômico e o linguístico-discursivo é ocupado pela noção de corpo,

208 \ Amilise Psicanalítica de Discursos: Per,;pectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas \ 209
ou de ethos discursivo, que funciona como o lugar real da con- nicas, não é simétrica, no sentido de que cada classe tenta
tradição gerativa do texto. A extraterritorialidade entre o social obter em seu próprio benefício a mesma coisa que a outra
[...] [muitas concepçõesde ideologia]tomam por fato evi-
e o linguístico aparece ainda em Greimas - por exemplo, quan-
dente, antes da luta, que a "sociedade"existe (com o Esta-
do este associa diretamente a ideologia ao campo de produção do acima dela) como um espaço, como o terreno dessa
do valor. Note-se como há novamente um lugar intervalar entre luta. (PÊCHEUX, 1975/1982,p.146)
o valor na acepção ético-sociológica e o valor em sua acepção
linguístico-discursiva (lembremo-nos, para isso, da noção de Ou seja, pode-se dizer que Pêcheux está chamando a atenção
valor em Saussure). Como um nível de significação, entre ou- para o falso universal que se infiltra em teorias sobre o discurso
tros, a ideologia impregna qualquer tipo de mensagem, poden- ideológico quando estas trabalham apenas no registro dos luga-
do se manifestar em qualquer matéria significante, sem nenhu- res discursivos, supondo sua unificação em um espaço comum
ma participação subjetiva que não a da pura determinação. A anterior. Além disso, sua distinção em termos da não simetria
análise da cultura poderia se realizar, dessa forma, indepen- dos lugares ideológicos do discurso, que se desdobra na separa-
dentemente da análise da ideologia, ou seja, independentemen- ção entre os tipos de ideologia (técnica e política), permite re-
te do valor que os homens acrescentam ao simbólico - que é, ao servar um lugar para o antagonismo que não pode ser resolvido
final, apreensível como um puro sistema lógico. Ou seja, a no- em uma comensurabilidade dos universos de discursos.
ção de valor, de extração originariamente linguística, é empre- Outra estratégia para retomar o potencial crítico da noção
gada aqui sem deslocamento para a teoria do valor nos termos de lugar pode ser encontrada na hermenêutica crítica (Gada-
dos meios de produção (mais-valia, em Marx) ou ainda nos ter- mer, Ricoeur, Habermas). Para essa perspectiva, o funciona-
mos do valor de gozo, que a aderência ideológica impinge ao su- mento ideológico decorre de uma mistura de lugares: do mundo
jeito (mais-de-gozar, em Lacan). da vida [Lebenswelt], como o mundo administrado, do sentido
Um autor que percebeu a importância estratégica da dife- [Sinn] com a significação [Bedeutung], da comunidade de senti-
rença entre espaço e lugar, na análise do discurso da ideologia, do com a comunidade de interesses. Ricoeur isolou bem a pro-
foi Pêcheux: blemática da ideologia na hermenêutica crítica ao opor a ideo-
logia dei conflito a qualquer preço à ideologia da conciliação a
Os Aparelhos Ideológicosde Estado não são a expressão qualquer preço. Essas duas categorias, que são formas gerais de
da dominação da ideologia dominante, isto é, a ideologia
ideologia, transpõem para o universo da linguagem o problema
da classe dominante, [...] mas o local, e o meio de realiza-
ção desta dominação.[...] A forma da contradiçãoinerente da comensurabilidade entre diferentes sistemas simbólicos
à luta ideológicade classes, entre as duas classes antagô- (intra e interculturais) e a possibilidade de sua diluição ou pa-

2101 Análise Psicanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Pskanalilic.:a de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1211
mete à forma como, em um dado lugar, encontramos uma
reamento com uma, e somente uma, ordem simbólica. Fica en-
enunciação particular, e não outra. É o tema dos personagens,
tão em pendência a possibilidade de uma hermenêutica geral,
dos atores sociais e dos movimentos de grupo na crítica literá-
baseada em uma ontologia, como em Heidegger, ou se devemos
ria. Na linguística, é a definição de discurso em Benveniste: "a
nos contentar apenas com hermenêuticas regionais (exegese
língua assumida pelo homem que fala" (BENVENISTE,
bíblica, crítica literária, psicanálise), que se veriam limitadas
1956/1995, p. 81). Na tradição crítica, são as condições dialo-
por um contexto de aplicação, ou seja, um lugar.
gais e de enraizamento da linguagem na experiência que com-
Por meio desse trabalho vemos que as posições de interpre-
põem, propriamente, uma narrativa, segundo Benjamin. Na
tação podem ser isoladas em certos lugares de discurso (insti-
filosofia da linguagem, são as razões que conferem força e feli-
tuições, gêneros, cânones ou tradições). A quéstão para a her-
cidade a um ato de fala, segundo a teoria dos atos de fala de
menêutica crítica, com ou sem aporte pragmático, é sempre a
Searle. Como nos mostraram Barthes e Todorov, a partir de aná-
da impossibilidade tanto de um lugar privilegiado para inferir o
lises centradas na noção posicional de significante, podem-se
sentido (problema do círculo hermenêutico) como de reduzir
descrever sistemas os mais diversos- como a moda, as práticas
completamente uma posição interpretativa ao lugar de onde
de adivinhação, além das formas da literatura ou do cinema -,
procede (problema do horizonte de sentido). O risco ideológico
tendo em vista a estrutura do signo e o jogo diferencial entre
da hermenêutica é sua dificuldade em delimitar o que seria a
seus elementos. Ou seja, quando estamos no nível da posição, a
linguagem em seu estado de autenticidade em oposição ao seu
articulação crítica da ideologia nos faz perguntar: Quem pode
estado de inautenticidade - conforme o programa colocado por
Heidegger -, ou ainda o discurso sério do teatro - conforme a falar o que para quem?
Gramsci introduziu a noção de posição ao distinguir a guerra
polêmica entre Derrida e Searle - e, finalmente, o jargão do dis-
de posições da guerra de movimentos, enfatizando que, no pri-
curso criador, conforme a chave crítica de Adorno contra Hei-
degger: "A mitologia linguística e a rei:ficação se mesclam com meiro caso, trata-se de decifrar a organização do consentimen-
aquilo que faz a linguagem antimitológica e racional. O jargão to, a forma pela qual o poder estabelece seu funcionamento nos
resulta praticável em toda escala, desde o sermão até o anúncio "corações e mentes", e não apenas na obediência contingencial.
Ou seja, a regra geral do funcionamento ideológico é de que as
publicitário. O medium do conceito se assemelha surpreenden-
temente a seus costumes" (ADORNO, 1982, p. 201). posições, sejam elas quais forem, tendem a se organizar de
Nossa discussão acerca da tensão entre espaço e lugar na modo tendente à hegemonia. Nesse movimento, uma posição
pode absorver, ideologicamente, uma posição aparentemente
definição ideológica de discurso nos levou a introduzir a noção
de posição, condicionada pela noção de lugar. Posição nos re- contrária ou, ainda, preestabelecer o lugar e a forma de contra-

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1213


212 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
poder, de resistência ou contradiscurso para manter a hegemo- Eis aí, portanto, o paradoxo fundamental do "ponto de bas-
ta": o elemento da cadeia que totaliza e estabiliza sua signi-
nia. Em Hegemonia e estratégia socialista, Laclau e Mou:ffein- . 1 ficação, que detém seu deslizamento metonímico, não é o
sistem sobre a condição negativa das posições que sustentam a ponto de "plenitude" da significação [...] Ele é "diferença
hegemonia ideológica, ou seja, ela se enuncia de um lugar como pura": o elemento cujo papel é puramente estrutural, cuja
"a'' sociedade ou de um espaço como "a'' política, cuja unidade e natureza é puramente "performativa", isto é, cuja significa-
a positividade são mantidas apenas pelo movimento do discur- ção coincide com seu próprio ato de enunciação - o "signi-
ficante sem significado". (ZIZEK, 1988/1991, p.199)
so. Uma consequência da hipertrofia da noção de posição no
contexto do pós-marxismo é seu gradual descolamento da no-
ção de classe, de onde procede originariamente. Ou seja, a posi- A ideologia discursiva opera, portanto, não apenas cons-
ção de classe, com sua ideologia específica, seria uma entre ou- truindo falsos universais, mas também produzindo falsos parti-
tras posições que se articulam em torno da hegemonia. Tão culares. Em direção semelhante, um autor como Eagleton tem
importante como ela, e irredutível a ela, são as posições de gê- mostrado como a reflexão sobre a ideologia tem migrado e se
nero e de identidade. Virtualmente, qualquer significante, des- absorvido dramaticamente no terreno da estética. Lembremos
de que tomado em certa posição específica, pode ocupar o lugar que é no terreno da estética que a categoria de particular temes-
de representante geral da hegemonia. Chegamos, assim, à no- pecial predominância. Segundo esse autor, a articulação ideoló-
ção de basteamento ideológico, proposta por Zizek. Esse furo gica tem se apropriado progressivamente de posições estéticas,
constitutivo do espaço discursivo da ideologia é remediado pelo e a estetização da política, da cultura e das relações intersubjeti-
basteamento ideológico. O basteamento é uma operação ele- vas seria apenas a contraface ideológica de uma nova forma de
mentar de produção da significação a partir da qual um signifi- disseminação assumida pelo capital em tempos de pós-moder-
cante, colocado em posição de mestria, retroage sobre a cadeia, nidade. O recolhimento da discussão ideológica para o plano do
conferindo-lhe significação e fazendo-a consistir em um saber. particular tem contribuído para o entendimento da ideologia em
O ponto de basta inverte a falta representada pela exceção sin- termos dos jogos de linguagem, notadamente presentes em de-
tomática em uma confirmação de sua "supremacia'' sobre a rea- mandas ligadas a movimentos sociais e minorias. A superação
lidade. É o que vimos na reversão interpretativa que Napoleão desta "hipersegmentação" ideológica parece ser o problema
faz do projeto dos ideólogos do século XVIII. O sintoma social, central em correntes como os estudos de gênero (gender theory ),
ao qual aludimos anteriormente, pode ser compreendido assim a teoria feminista e os chamados estudos pós-coloniais.
como uma resposta ao basteamento ideológico. Uma resposta Prosseguindo nessa direção, encontraremos autores que apon-
que porta a verdade de sua incompletude. tam uma espécie de descortinamento do funcionamento ideológi-

214 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacfill.ianas 1215
co que pode apresentar explicitamente a forma como produz a o plano da dominação e o nível da historicidade. Isso ocorre
ilusão ideológica e manter-se eficaz apesar disso. Nesse caso, en- porque, como apontou Ducrot, não se pode traçar uma separa-
. 1
contraremos a ideologia convertendo-se explicitamente em bio- ção estrita entre o nível descritivo e o nível argumentativo da
poder (Agamben), no discurso cínico (Zizek) ou, ainda, para citar linguagem. Também Laclau (2013) mostrou que a ideologia
um estudo brasileiro, na fetichização da marca (Fontenelle). funciona capturando "significantes flutuantes", cujo sentido é
Aqui encontramos, no quadro do método arqueológico de fixado por sua articulação hegemônica. Portanto, o nível da
Foucault, o eixo dos conceitos e das estratégias. É o plano do do- análise posicional pode subverter a configuração de lugares à
mínio de validade e de normatividade de um discurso conside- qual, teoricamente, estaria constrangido.
rado em sua eficácia para fazer dizer, obrigar a dizer ou silenciar. O trabalho de J ameson (1985) sobre o tema da interpretação
No âmbito da análise de posições, deve-se considerar o discurso é muito útil para mostrar como o nível das posições discursivas
em seus pontos de remanência, retorno ou reinício, suas recor- não está necessariamente contido e submetido aos lugares dis-
rências retóricas, bem como sob o ângulo da seleção do que deve cursivos que geram sua produção. O argumento de Jameson
ser lembrado e do que cabe ser esquecido. Foucault também se (1985) é particularmente convincente no terreno da constitui-
refere, nesse plano, aos procedimentos de intervenção realiza- ção da História, ao mostrar que a análise da narrativa deve en-
dos por um discurso, as técnicas de reescrita (paráfrase), de fatizar o ato social simbólico que ela produz e evitar o risco de
transcrição (polissemia), transferência (iteração) ou citação submeter o texto à narrativa mestra, teoricamente mais verda-
(parasitagem). No plano da formação discursiva, a análise da deira. Ou seja, não é o contexto que gera a narrativa, mas o ato
posição ideológica vem se apoiando fortemente nas noções de que cria seu próprio contexto. Em certa medida, a crença na
heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada. consistência da noção de contexto é, em si mesma, um traço
No caso específico da estratégia geral do discurso ideológico, ideológico. Há, portanto, certos movimentos posicionais do dis-
Thompson (1990) mostrou como este recorre sistematicamen- curso que subvertem o lugar que os tornou possível:
te a certas estratégias típicas de legitimação (racionalização,
Essa História - a "causa ausente" de Althusser e o ''Real"
universalização, narrativização), dissimulação (deslocamento,
de Lacan - não é um texto, pois é fundamentalmente não
eufemismo), unificação (estandardização), fragmentação (di- narrativa e não representacional; contudo, pode-se acres-
ferenciação, exclusão da alteridade) e reificação (naturaliza- centar a isso a condição de que a História, a não ser sob a
ção, eternalização, nominalização). Ocorre que uma descrição forma textual, nos é inacessível, ou seja, só pode ser abor-
das principais estratégias retóricas, argumentativas ou formais dada por meio de uma (re)textualização anterior. (JAME-
do discurso ideológico é insuficiente para abordar criticamente SON, 1985, p. 75)

- Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1217


216 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
ou seja, o nível tático ou posicional da análise ideológica do desta lógica,obter a identificação de todos os sujeitos so-
discurso não pode ser compreendido nem como a mera descri- ciais com uma imagemparticular universalizada,isto é, a
.1 imagem da classe dominante. (CHAUÍ, 1986, p. 45)
ção formal de um funcionamento de linguagem nem pela her-
menêutica do englobamento de um discurso em outro, mas
Torna-se, portanto, tarefa da análise crítica da ideologia
deve oferecer espaço teórico para a contingência de um novo
mostrar como o espaço projetado pelo discurso, particular-
ato. Esse ato real pressupõe e reorganiza a estrutura de ficção
mente o discurso hegemônico, é apenas uma possibilidade, po-
simbólica que o torna possível e corresponde a um momento
liticamente determinada. A universalidade que este engendra é
temporal da verdade. Encontramos aqui a tese de Lacan de que
apenas uma forma de elidir uma impossibilidade real. Além
a verdade possui estrutura de ficção. É pelo jogo de posições
disso, trata-se de mostrar que os lugares que o discurso pres-
que a ficção torna possível que se possa depreender o instante
creve, por exemplo, na constituição de sujeitos e nas formas de
de verdade sem que este se prolongue ou se absorva integral-
interpelação, são formas de elidir a contradição e o antagonis-
mente na própria continuidade da narrativa. Badiou (1988)
mo social. Finalmente, uma análise radical da ideologia deve
vem desenvolvendo essa ideia no plano da análise da estética e
mostrar como, no quadro de narrativas específicas ou de jogos
da política, recorrendo às categorias de evento (real) e de filia-
de linguagem concretos, uma determinada posição subjetiva se
ção (simbólica), de modo a reintroduzir a noção de verdade no
sustenta e se reproduz a partir de uma ilusão estruturante ou
quadro da análise discursiva da ideologia.
fantasia fundamental que permite estabilizar a historicidade
Podemos voltar agora à noção de ideologia de modo a perce-
do discurso. Concluímos, assim, que o caráter ideológico do dis-
ber como esta pressupõe continuidade e homogeneidade entre
curso não pode ser apreendido pela análise isolada ou interna
o universal do espaço da linguagem, o real dos lugares sociais e
de uma de suas incidências. O que torna ideológico o discurso é
a verdade das posições subjetivas. Essa coincidência vertical
sua articulação, ou seja, a transversalidade não contraditória
entre os níveis discursivos e a neutralização horizontal entre os
entre espaço, lugar e posição.
elementos de um mesmo estrato de linguagem traduzem e con-
densam uma série de propriedades apontadas pelos teóricos da
ideologia, por exemplo:

[...] o discurso ideológicoé aquele que pretende coincidir


com as coisas,anular a diferença entre o pensar o dizer e o
ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificaçãoque
unifiquepensamento, linguageme realidade para, através

218 J Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas J 219
imos, até aqui, que uma análise discursiva, para ser

V psicanaliticamente orientada, necessita de condições


mínimas para sua construção. O entendimento de que
a linguagem é habitada pelo sujeito- e, do mesmo modo, de que
o sujeito também é habitado pela linguagem, inovação trazida
pela psicanálise - traz implicações para os usos e engajamentos
discursivos do sujeito em suas apropriações ético-políticas.
Essa evidência, já apresentada por algumas vertentes da
análise do discurso, especialmente a francesa, coloca em xeque
a perspectiva que traz a linguagem como mera nomenclatura
(perspectiva recusada, inclusive, desde Saussure) e comunica-
ção. Tal mudança de perspectiva, para tornar-se propositiva,
necessita sustentar-se por um método que, em suas bases
epistemológicas, também evidencie a presença do sujeito na
linguagem.
Tal método, que foi discutido amplamente neste livro, traz na
noção de discurso a possibilidade de mostrar, de trazer à tona, o
sujeito. Como vimos, um método que dê mostras do sujeito não
pode ser puramente estrutural; deve conter em si o aconteci-
mento, a possibilidade de conversão; deve dar mostras das mar-
cas da contingência e do impossível em seus alicerces. Para isso,
trazemos à tona também a noção de narrativa, para evidenciar
que o discurso, puramente estruturado, tenta totalizar a lingua-
gem - e, desse modo, as transformações nela contidas.
A partir deste momento, mostraremos variações desse méto-
do, bem como seus impasses. Afinal, o modo como a psicanálise
se apropria das ciências da linguagem traz conflitos e contradi-
ções de ambos os lados, não totalmente sanáveis. Evidenciare-

_ ,\náli.se Psicanaliticade Di.scursos: Perspeetivas Lacanianas 1221


mos as possibilidades de composição e leitura de casos clínicos diversão, e não como uma contribuição à psicopatologia das
dessa interlocução, das mais às menos estruturalistas. neuroses" (FREUD, 1909/1973, p. 8).
O termo em alemão para "novela", nesse trecho, é Schlüssel-
3.1. Topologia histórica do discurso: roman - ou seja, literalmente: romance-chave-, e não apenas
a construção de casos clínicos novela (como a tradução espanhola) ou romance (como a versão
Seria simples traçar, a partir daqui, uma linha divisória entre brasileira). Ora, o argumento freudiano reconhece que o esta-
literatura e ciência, separando as duas funções e demarcando as tuto da escritura do caso depende da vontade do leitor, da von-
duas formas de discurso que se fundem na construção de um tade repugnante dos médicos de Viena ou da vontade mais pura
caso clínico. Dessa maneira, as habilidades literárias da exposi- dos interessados em psicopatologia. Essa observação parece
ção seriam combinadas com as formas diagnósticas ou concei- fortuita, mas ela denuncia um problema de base: se a escrita do
tuais da ciência, a hermenêutica compreensiva se enlaçaria com caso clínico depende do destinatário, admite-se assim uma
a explicação causal, o poema se acasalaria com o materna suspeita sobre a possibilidade de definir a escrita de um caso
Ora, se assim fosse, a psicanálise teria resolvido uma ques- clínico tendo em vista suas propriedades intrínsecas - táticas
tão central da crítica da cultura na modernidade. Entre narrar formais, temática, estratégia de composição.
[erzéihlen] ou descrever [beschreiben], teríamos encontrado a A consideração aparentemente banal de Freud nos leva a as-
chave mestra para capturar e transmitir a experiência [Er- sumir que a noção de caso clínico é inerente a um sistema de
fahrung]. De fato, a experiência da psicanálise envolve uma transmissão, seja o sistema das artes ou da literatura, seja o siste-
transmissão cultural que muito se assemelha à da narração no ma científico, médico, jurídico ou, ainda, filosófico. Poderíamos
sentido forte do termo: transformação criativa entre memória e também argumentar que o sistema de transmissão no qual a no-
história, valorização do lado épico da verdade, inerência a uma ção de caso clínico deve ser avaliada é o da própria transmissão
tradição oral, recusa da soberania da informação, evitação de da psicanálise. Um sistema de transmissão funciona assim,
explicações, fala autoral que se elabora em seu próprio processo como um discurso que garante e regula a boa vontade dos que
e apropriação coletiva de uma experiência Contudo, essa for- dele participam. Mas o sistema no quai Freud quer indexar o caso
ma de transmissão cultural não deve se confundir com o ro- clínico é denominado explicitamente como o da psicopatologia.
mance formado sobre essa mesma experiência. Freud advertiu Examinando mais de perto a arqueologia desse sistema, veri-
sobre esse problema: "Sei que há - ao menos nesta cidade - ficamos que ele é composto por duas tradições distintas: a psico-
muitos médicos que (coisa bastante repugnante) vão querer ler terapêutica e a clínica propriamente dita. A tradição psicotera-
um caso clínico desta índole como uma novela destinada a sua pêutica, de Mesmer a Liébault, tem suas raízes na prática con-

222 IAnálise Psicanalítica de Discuruos: Perspectivas Lacanianas


- Análise Psicanalítica de Di,;cursus: Perspectivas Lacanianas l 223
fessional. Ou seja, compreende uma diversidade de narrativas,
depoimentos e relatos orientados por uma única e grande expe- 1 logia A busca pelo equivalente sustentava-se na matriz atomis-
ta, estática e intelectualista da psicopatologia da época: procura-
riência: a conversão. Quando Lacan afirmou que a psicoterapia va-se achar o "equivalente" orgânico, reduzir o "sintoma mental"
implicava o retorno ao pior, enfatizou-se a noção de pior, mas há a um "átomo" anatomopatológico - os alienistas procuravam,
também a ideia de retorno - e a conversão é um caso particular por exemplo, o "foco histerógeno" das pacientes histéricas, are-
da grande metafísica do retorno, o retorno a si A retórica psico- ferência anatômica que pudesse ser identificada como causa do
terapêutica está interessada em mostrar efeitos transformati- comportamento desviante. É na busca fracassada dessa equiva-
vos, em ressaltar diferenças entre antes e depois. Ela é um exer- lência que se abre o campo de uma antropologia, que entra na
cício combinado de provas que tem a estrutura argumentativa cena para dar consistência à tradição clínica psicopatológica
das fábulas e dos aforismos morais. Aqui o caso clínico tem uma Basta frequentar a história da psicopatologia para ver como
função metafórica; no pior caso, ele ilustra (alegoria) e, no me- ela nasce no contexto da medicina social (preocupada com a se-
lhor caso, cria uma nova significação a partir de um processo gurança das populações), da criminologia (preocupada com a
transformativo. Dessa forma, outros podem reconhecer-se nes- determinação do marginal), das teorias da personalidade (preo-
se mesmo processo, como é o caso da literatura de testemunho. cupadas com os tipos psicológicos, o caráter, as constituições).
A tradição clínica, de Charcot a Kraepelin, tem outra domi- Os chamados textos sociais de Freud (Mal-estar na civilização;
nante discursiva. Aqui interessa mais descrever articuladamen~ Futuro de uma ilusão) são simplesmente tentativas de fazer o
te um processo do que narrar a teleologia de uma transformação. que se esperava de uma psicopatologia naquela época: que ela
Trata-se de uma descrição controlada por quatro dominantes: apresentasse sua antropologia Ou seja, não estamos mais na do-
(1) uma semiológica, que procura estabelecer a regularidade e a minante do retorno, mas na dominante discursiva regida pelo
universalidade do valor e da significação de um determinado sig- que Kant chamou de metafísica dos costumes: o espaço de desvio
no; (2) uma diagnóstica, que pretende diferenciar as classes de entre o dever e o poder, da discrepância entre a liberdade e a he-
doenças e sintomas segundo a possibilidade de reconhecimento teronomia O que esse discurso pretende não é facultar a partici-
particular; (3) uma etiológica, que procura estabelecer as rela- pação em uma experiência, mas a nomeação de uma experiência
ções causais entre signos e sintomas, e (4) uma terapêutica, que A reunião, ao modo de uma síntese, entre as categorias do enten-
procura homogeneizar os procedimentos e intervenções decor- dimento e da sensibilidade permite, assim, organizar a diferença
rentes dos três aspectos anteriores e congruentes com eles. Ora, antropológica do ponto de vista da universalidade da razão. Ora,
no que toca ao campo da psicopatologia e à falta de um equivalen- no cenário da psicopatologia, o caso clínico tem uma função bas-
te anatomopatológico, esse discurso ampara-se em uma antropo- tante precisa: trata-se de uma função didática A escrita do caso

224 [Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 225
clínico pretende substituir e ampliar essa função de tal forma cias de fala entre médico e paciente. Essa infiltração da palavra
que a experiência do diagnóstico, as regularidades semiológicas, do paciente na escrita do caso clínico localiza o médico numa
as constatações etiológicas e as derivações terapêuticas sejam posição mais tipicamente psicoterapêutica. Muitas vezes, as
confirmadas ou desmentidas por outros psicopatólogos. ideias e práticas psicanalíticas infiltraram-se na clínica por
A psicopatologia deve ser compreendida, então, como um ter- essa via: depois do fracasso da posição clínico-diagnóstica, fa-
ritório no qual a falta de um equivalente anatomopatológico abre zer frente ao sofrimento implicava abrir uma fresta para a pala-
o espaço de uma antropologia cuja função principal teria sido a vra do paciente, empregando o "método de Freud".
abertura de espaços de nomeação em que o Estado, através dosa- Estas duas tradições, a psicoterapêutica e a clínica, combi-
ber-poder médico, define comportamentos e "costumes". Essa nam-se admiravelmente na escrita freudiana dos casos clínicos.
suposição do saber-poder médico configura uma verdadeira ''bio- A tensão entre literatura e ciência, que está na origem das discus-
política da alma". O discurso médico coloniza espaços até então sões sobre a construção de casos clínicos em psicanálise, deve,
indeterminados; amplia-se a abrangência da "doença mental'' em função do exposto, ser particularizada Não se trata de qual-
às zonas do comportamento que antes eram consideradas, so- quer literatura, mas da literatura de conversão testemunhal.
cialmente, como traços "particulares" de um indivíduo que não Também não se trata de qualquer ciência, mas da psicopatologia
o situavam "fora da norma". A abertura antropológica e normati- de fundamentação antropológica Ademais, a fusão entre uma e
vizante demarca o espaço da antiga tradição moralizante do saber outra não se dá em qualquer terreno literário, mas de uma forma
médico, mas, a partir de certo momento, essa tendência se super- bem definida: o romance. Encontramos em Freud (1907) uma
põe à medicalização da moral dominante, que será o processo que bela formulação dessa conjunção. Há na teoria sexual infantil um
anuncia o porvir. Esse deslocamento da fronteira entre o normal e autêntico exercício de investigação etnográfica sobre o modo
o patológico está na base dos dispositivos de encerramento como as crianças investigam a sexualidade, suas hipóteses regu-
(manicômios) - a separação entre o "homem comum" e o "louco". lares, suas correções, a transformação orientada para certas
Os casos clínicos da tradição psicopatológica tendem a uni- constatações. A criança pensa a sexualidade como um clínico a
ficar e consolidar a experiência clínica, mas também registram pensa: verifica certos signos, combina-os em formações regula-
aqueles acontecimentos da experiência clínica que produzem res, testa-os contra a experiência intuitiva, diagnostica as dife-
sua desestabilização. Por exemplo, no início do século XX, o renças entre os sexos. De forma quase complementar, Freud des-
aluvião de fracassos na posição clínico-diagnóstica dos médi- creve a aparição do romance familiar do neurótico, a formação da
cos perante os casos de histeria teria aberto o espaço, muitas grande narrativa pela qual a criança depõe os pais de seu papel
vezes, na escrita de caso, a algum tipo de registro de experiên- soberano, imagina-se adotada, formula para si um passado glo-

226 IAmíli,;e Psicanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Di,;cursos: Perspectivas Lacanianas l 227
rioso a partir da conversão dos pais em figuras menores e da con- todo, reduzida ao mínimo das relações lógicas que compreende.
versão de si em uma figura elevada Ela caminha exatamente Também em relação à chave freudiana da oposição entre teoria
como um psicoterapeuta interessado em narrar uma operação (sexual infantil) e romance (familiar do neurótico), Lacan inova
de retorno eficaz. Afinal, a moral do romance familiar do neuróti- ao propor por referência o conto, como modalidade literária, mas
co não é a da deposição dos pais, mas a sua proteção, a sua re- também o mito, como modalidade narrativa Assim, o mito indivi-
-instituição em seus lugares segundo uma nova chave simbólica dual do neurótico comprime teoria e romance em uma dominante
Ora, se considerarmos a escrita de casos clínicos em psica- discursiva que pode ser analisada e descrita segundo o método
nálise como um gênero literário, veremos que ela é, de fato, con- estrutural. É assim que os grandes casos freudianos são relidos.
temporânea de uma nova forma de romance: o romance poli- Homem dos Lobos, Homem dos Ratos, Schreber, Dora, Hans,
cial. Já se observaram as congruências entre a vida e a obra de nesta ordem, são seguidos por textos de outros gêneros: Hamlet,
Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e a escrita da Antígona, Paul Claudel, Sade. Garantido pelo método estrutural,
investigação psicanalítica em Freud. Resumidamente: a reu- qualquer texto poderia ser convertido em caso clínico. Ocorre
nião de signos em evidências, a lógica da suspeita, a função de que, mais ao final de sua obra, surgem novos obstáculos e dificul-
Watson como sucedâneo da transferência, a importância da dades. Marguerite Duras e James Joyce, duas formas de escrita
ficcionalidade como estratégia de revelação. Mas também já se assumidamente autobiográficas, parecem resistir ao método.
observou como a psicanálise ficou prisioneira dessa fórmula, Podemos agora voltar ao que ficou excluído nessa história da
historicamente datada, trazendo para a escrita de sua casuísti- escrita da clínica. Trata-se da premissa de que ela se resume às
ca um aplainamento narrativo e carregando para a concepção múltiplas combinações entre a eficácia psicoterapêutica e odes-
de tratamento analogias não muito produtivas. Sim, sabemos critivismo clínico. Ora, o que ficou excluído é justamente adi-
que Édipo é culpado, desde o início da peça. Mas e daí? Uma fór- mensão de verdade e a problemática do narrador na composição
mula retórica desgasta-se com o seu emprego, assim como um do caso clínico. É o que Derrida observou contra Lacan em "O
chiste contado indefinidamente perde sua função. fator verdade" (DERRIDA, 1976/1999, pp. 441-524), ou seja, o
Compreende-se, então, o impacto quando Lacan analisa um método estrutural é tão extensivamente aplicável porque coloca
conto policial seminal em seu gênero: ''A carta roubada'', de Edgar entre parênteses a função da verdade no acontecimento enun-
Allan Poe. Ele descarta a lógica da investigação e mostra como a ciativo do texto, suspendendo justamente aquilo que Freud ado-
narrativa dobra-se a certas posições que se repetem. A estrutura tava como critério intuitivo: a boa vontade do leitor ao qual o tex-
do conto interessa mais que sua história Por equivalência, a es- to se destina. Um caso clínico é um evento ético na vida de quem
crita do caso deve ser a escrita de sua estrutura- por razão de mé- o escreve e um prolongamento do acontecimento ético de uma

228 J Análise Psieanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas J 229
existência em análise. Ética e verdade têm, para a psicanálise, isolamento das letras e dos significantes da análise. Em Moisés e
uma relação que não pode ser evitada pela distribuição de tarefas o monoteísmo, texto em que trabalha mais extensivamente a no-
históricas entre psicoterapia e clínica, ou pela distribuição de ção de construção, Freud afirma: ''.Amedrontado pelainabarcável
condições metodológicas aplicadas à escrita e à leitura. Não é complicação do acontecer, nosso estudo toma partido em favor
um acaso que Joyce e Duras sejam contraexemplos: neles não se de um nexo e contra outro, formula oposições que não existem e
pode dissociar a pessoa do escritor de sua escrita- o preço é mui- que nasceram só pelo desgarramento de tramas mais compreen-
to alto. Lembremos que Freud introduz a noção de construção sivas" (FREUD, 1937-39/1988, p. 104). Se o trabalho analítico
justamente no contexto de uma discussão sobre a verdade. A identifica e interpreta letras e significantes circunscrevendo-os
verdade histórica, a verdade material e a verdade ou realidade e/ou reinserindo-os numa cadeia simbólica, a escrita do caso clí-
[Wirklichkeit] psíquica (FREUD, 1937-39/1988). Construir um nico supõe o redobramento dessa aposta mediante o desgarra-
caso clínico, diferentemente de relatar um tratamento, implica mento e isolamento de letras e significantes para reinscrevê-los
acrescentar ao caso o que não pode ser lembrado, nem pelo ana- em uma trama nova: a trama da escrita do que poderia ter acon-
lisante nem pelo analista, na cena da cura A construção não se tecido e do impossível de ter acontecido - reinscrição que, como
legitima como a interpretação, mas pelos efeitos de continuidade dissemos, faz parte das condições de enunciação da verdade. Tal
no discurso. Não seria aqui o caso de pensar nos efeitos de conti- desgarramento garante a distância entre analisante e caso.
nuidade de um discurso envolvido no sistema de transmissão da Ora, a relação entre ética e verdade foi tematizada muito an-
psicanálise? A rigor, um paciente em análise, um analisante, não tes de Freud. Corresponde a uma longa tradição conhecida
tem nada a ver com um caso clínico. Ele se torna um caso clínico como cuidado de si. Ela se expressa em um tipo de escrita parti-
apenas quando é escrito - e, como tal, desaparecido, rasurado cular: Os Ensaios, de Montaigne (2010); as cartas de helênicos
por essa operação. É preciso evitar que um analisante se trans- como Sêneca e Marco Aurélio (PESSANHA, 1985); as Medita-
forme em um caso clínico, como parece ter ocorrido com o Ho- ções, de Descartes (1641/1983). Aqui se trata das condições pe-
mem dos Lobos. Mas como fazê-lo, a não ser introduzindo o que las quais a escrita transforma a possibilidade de enunciação de
poderia ter acontecido e também o impossível de ter acontecido uma verdade sobre esse mesmo processo. Não se trata da escri-
como condições para a enunciação da verdade de um percurso? ta triunfalista nem da escrita descritivista. Esse é um tipo de
É importante destacar aqui que, na escrita/construção do engajamento que se percebe claramente em Freud, mas que é
caso clínico, o efeito de continuidade obtido a partir do acrésci- inteiramente diferente do exercício de um método nominalista
mo do que não pode ser lembrado realiza-se no solo de uma ope- ou do depoimento testemunhal. Ele contém isso, mas contém
ração lógica anterior, que é de desgarramento, desprendimento e algo mais. Nasio (2000/2001) afirma que o caso clínico com-

230 j Análise Psieanaliticade Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas ] 231
preende três funções: metafórica, didática e heurística. Vimos Escrever o caso é desgarrar e isolar, mas também esquecer e
como a psicoterapia impregna o caso clínico da função metafó- desfigurar. O escrito tem uma função ativa (construtiva) no es-
rica. Vimos também como a clínica ampara-se na função didá- quecimento, mas isso deve ser compreendido em uma relação
tica do caso clínico. Ora, a função heurística está associada, de complementaridade-e-contradição com a oralidade - essa
para N asio (2000/2001), com a possibilidade de criar sejam no- última, "menos submetida às influências das tendências desfi-
vas relações, sejam novos problemas para os leitores de casos guradoras", pode ser "mais veraz". Como se apresenta a dimen-
clínicos. Penso que essa ideia, aproximativamente correta, re- são da oralidade na escrita de caso? Devemos conceber a escrita
presentada pela heurística não deve ser atribuída à genialidade de caso como um cifrado que se oferece a uma operação oposta
ou originalidade espontânea do escritor. Ela cultiva-se precisa- e contraditória; a um deciframento que supõe fazer passar o
mente nessa tradição da cura e do cuidado de si, que traz uma caso novamente pela oralidade. Quem realiza essa operação é a
extensa rede de problemas, formais inclusive, sobre como seria comunidade de leitores, em transferência com o texto.
possível e com qual finalidade se escreve uma vida. Não creio que seja apenas por motivos internos ao método
Merece aqui um parágrafo à parte o modo como se presenti- estrutural ou relativos aos novos avanços meta psicológicos que
fica a distinção entre oralidade e escrita na escrita de caso clíni- Lacan tenha recuado em sua confiança sobre a escrita da clíni-
co. Também em Moisés e o monoteísmo, fazendo referência à ca. Há também o fato de que ele tenha colocado, mais que qual-
relação entre esquecimento (do assassinato de Moisés) e con- quer outro, o problema de como e em que termos é possível falar
servação da tradição, Freud afirma: da experiência da análise, como experiência própria da análise.
Esse experimento, conhecido como passe, coloca em jogo dire-
[...] Em virtude dessas constelações, pode configurar-se tamente a possibilidade da enunciação de uma verdade, que
uma oposição entre a fixação escrita e a tradição oral de
não é nem a do triunfo terapêutico nem a verificação de regula-
uma mesma substância, a substância da tradição. Aquilo
que foi omitido ou modificado na transcrição [Nieders- ridades clínicas. Trata-se da cura como processo de invenção
chrift] bem pode conservar-se intacto na tradição. Essa úl- de uma forma de vida, cuja criação não pode contar com crité-
tima era o complemento e ao mesmo tempo a contradição rios apriorísticos ou que estes apenas sinalizem indicações ne-
da historiografia Estava menos submetida às influências gativas, jamais positivas, da experiência.
das tendências desfiguradoras, e talvez em muitas de suas
Lacan (1967/2003) fornece apenas uma indicação, e mesmo
peças se subtraía por completo delas, e, por isso, podia ser
mais veraz que o informe fixado por escrito. (FREUD, assim indireta, sobre qual gênero narrativo poderia se ajustar a
1937-39/1988, p. 66) esse experimento. Trata-se de uma indicação acerca da destitui-
ção subjetiva, uma experiência associada ao final do tratamento

232 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1233
psicanalítico. Nesse contexto, ele afirma que essa experiência se Se para Benjamin o romance é a morte da narrativa, pode-
verifica no texto de Jean PauJhan, O guerreiro aplicado (2009). mos dizer que o mito corresponde ao seu nascimento. Se a for-
Ora, essa indicação permanece profundamente enigmática O ma romance opõe-se ponto a ponto à experiência da narração, e
texto narra a história de Jacques Maast, que se engaja na Primei- se esta exerce uma função opressiva sobre aquela, a construção
ra Guerra Mundial e a atravessa com uma aparente indiferença e do caso clínico, baseada no épico naturalista, longe de resolver
uma apatia espantosa Ora, Jean PauJhan é mais conhecido como a oposição entre narrar e descrever, contribui para acirrar o
crítico literário do que como escritor. Como editor responsável problema A estratégia psicoterapêutica, quando se toma hege-
pela Nouvelle revue française, ele foi uma espécie de eminência mônica na escrita do caso, mostra-se assim uma espécie de
parda na geração do pós-guerra francês, que justamente estava falsificação da experiência. Seria importante reconhecer que
às voltas com uma saída literária para a asfixia gerada pela hege- a construção do caso clínico não deveria se apoiar na continui-
monia da forma romance. Quando jovem, PauJhan trabalhou na dade entre a narrativa da análise e seu relato público, como se
ilha de Madagascar, interessando-se profundamente pelo uso fossem partes ininterruptas da mesma história ou versões
dos provérbios nesse lugar. Opondo retórica e terror, e tendo mi- alternativas dos mesmos fatos. A função fundamental danar-
litado na resistência francesa, foi responsável pela introdução da rativa é interromper a história, implodi-la ou criar rupturas
valorização dos aspectos linguísticos formais na escrita literária que poderiam.indicar a possibilidade de outras histórias e criti-
Ele desenvolveu uma forma curta de conto, conhecida como ré- car a ilusão da universalidade de uma narrativa totalizante
cit, em que narrava situações cotidianas aparentemente banais, (GAGNEBIN, 1996)-mesmo que seu prolongamento seja ateo-
mas que produzem um incrível efeito transformador em seus ria psicanalítica.
personagens. A ideia é muito aproximativa, mas parece que há Se do lado da narrativa encontramos o perigo da "narrativa
algo entre o provérbio e o récit que pode interessar profundamen- totalizante", também na estratégia que valoriza hegemonica-
te à renovação dos escritos sobre a clínica. Isso decorre do fato de mente a científicidade da descrição encontramos problemas.
que a escrita de casos clínicos surge no contexto histórico de Tal estratégia consiste em utilizar os conceitos como operado-
emergência do alienismo, com Pinel; de generalização do método res descritivos, procurando conter o uso extensivo da forma ro-
clínico, com Charcot; de expansão da psicopatologia e de autono- mance que os ilustraria. Respeita-se assim o critério da des-
mização da psiquiatria No arco temporal do início do século XIX continuidade entre experiência da análise e construção do caso.
aos primeiros anos do século XX, acompanha esse desenvolvi- Ocorre que um critério necessário para que isso aconteça é que
mento do gênero dos casos clínicos a emergência da forma ro- a linguagem na qual se descreve, a sua forma lógica, seja de um
mance como modelo-chave para a literatura moderna nível superior à linguagem que se verifica no objeto a ser forma-

234 IAnálli;e Psicanalítiea eleDiscun;os: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica eleDiscursos: Perspectivas Lacanianas l 235
lizado. A escrita do caso seria então a escrita da lógica do caso, determinada noção ou ideia de gênero que mantínhamos até
ou seja, uma montagem possível de sua estrutura e consequen- agora Seguindo Blanchot, Todorov (1978/1996) (1978 [2012])
te formalização. A realidade da experiência, que a narrativa se refere à crise de gênero na literatura própria da modernidade:
visa trabalhosamente produzir e transmitir, torna-se, dessa
maneira, indiferente. Na escala invertida do naturalismo de Seria inclusive um signo de modernidade autêntica em
um escritor que já não obedeça a separação entre os gêne-
Charcot, como estratégia puramente clínica da construção de
ros[ ...]. [Na] atualidade não há nenhum intermediário en-
casos, mostra-se apenas a verificação ou a proposição de um tre a obra particular e singular, e a literatura por inteiro,
modelo. Seu critério é exclusivamente a consistência interna, e gênero último: não há por que a evolução da literatura mo-
não a verificação referencialista; contudo, isso atrai o sério in- derna não consistir precisamente em fazer de cada obra
conveniente de não haver mais contrariedade possível entre a uma interrogação sobre o ser mesmo da literatura. (TO-
experiência da análise e a escrita do caso. DOROV, 1978/1996, pp. 57-58)

Chegamos, assim, a uma formulação mínima sobre quais


condições nos permitem, diante do relato de um tratamento, Entre a psicoterapia, a clínica e a cura - mais além do senti-
qualificá-lo propriamente como um caso clínico. Nesse caso, do, mais positivo ou negativo, que possamos adjudicar ao termo
não se deve excluir a vertente psicoterapêutica, nem a vertente crise-, o fato é que o gênero "caso clínico psicanalítico" consti-
clínica, nem a vertente da cura. A riqueza desse gênero e a pos- tui-se em um lugar altamente improvável, vale dizer; em um
sibilidade de sua sobrevivência dependem da forma como se lugar onde a contingência e o impossível mostram permanen-
podem criar novas combinações com e contra o romance, com e temente seus contornos, deixando suas marcas. Sua complexi-
contra o mito, com e contra a verdade. dade faz do caso clínico psicanalítico um gênero altamente co-
O caso clínico psicanalítico é um gênero em crise? Para cir- dificado, cuja condição consistiria precisamente em manter em
cunscrever essa circunstância, ao longo deste capítulo fizemos crise essa codificação.
referência a uma série de outros gêneros discursivos, exploran-
do limites e possibilidades de expansão: romance-chave, ro- 3.2. Análise discursiva de um caso clínico de Freud
mance policial, conto policial, literatura de conversão testemu- Vejamos agora como as superfícies discursivas da clínica, da
nhal, fábulas, aforismas, provérbios, récits ...Essa busca genealó- cura e da psicoterapia aparecem articuladas em uma topologia
gica através de diversas épocas e/ou vertentes discursivas pare- em um pequeno caso clínico apresentado por Freud num artigo
ce oferecer, mais do que a imagem de um gênero particular em pré-psicanalítico de 1892, conhecido como "Um caso de cura
crise, a imagem de uma crise de gênero - vale dizer, crise de uma por hipnotismo". Comecemos datando alguns acontecimentos,

236 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1237
de modo sequencial, a fim de localizar algumas relações impor- O caso narrado por Freud é de uma jovem senhora de 23
tantes dentro da dinâmica clínica da psicoterapia: anos que não conseguia amamentar seus filhos recém-nascidos
antes da intervenção hipnótica. Como esse fato ocorreu com o
1872 - D. Tuke usa o termo "psicoterapia" pela primeira vez.
filho anterior e com o posterior, essa repetição permitiu um
1885-1886 - Freud visita Charcot na Salpetriere e tem contato "controle, raras vezes possível, do êxito terapêutico" (FREUD,
com seu método clínico, bem como com o uso da hipnose. 1892-93/1988).
Vê-se aqui o discurso próprio do método clínico de compara-
1888 - Bernheim populariza o termo "psicoterapia''. ção de resultados interpolar a narrativa psicoterapêutica, inicial-
mente baseada na eficácia e na eficiência da técnica hipnótica
1890 - Freud caracteriza a "psicoterapia'' em contraste com o
Não tinha "fama de nervosa" nem para o seu médico de fa-
"seeliche Behandlung" [tratamento da alma].
mília. Tratava-se de uma histeria ocasional segundo a expres-
1892-1893 - Um caso de cura [Heilung] por hipnose com algu- são de Charcot. Freud apresenta o caso referindo-se ao irmão
mas observações sobre a gênese [Entstehung] dos sintomas his- da paciente, que teve seus planos de vida arruinados por uma
téricos por obra da "vontade contrária" [Gegenwillen]. gonorreia associada a uma neurastenia juvenil, que desenca-
deou uma dispepsia acompanhada de uma "quase inexplicável
1896 - Freud emprega pela primeira vez o termo "psicanálise",
obstrução intestinal". Fica a dúvida, portanto, se havia uma pre-
no artigo sobre "Herança e etiologia das neuroses".
disposição hereditária à neurose nessa família.
Portanto, o texto em questão localiza-se em uma espécie de Depois de estabelecer rapidamente um sintoma, a inibição
encruzilhada inicial, um ponto de interdiscurso entre os acha- da amamentação, ele propõe um diagnóstico: histeria de oca-
dos clínicos de Charcot, os avanços terapêuticos da hipnose e a sião. Em seguida, Freud continua discutindo a etiologia, mas
retomada da experiência ética ancestral da cura. Mas o caso clí- muda de discurso. Estamos aqui na medicina social, na antro-
nico é apresentado como uma peça probatória da eficácia do pologia da hereditariedade e na hipótese da degenerescência.
método hipnótico no tratamento da histeria "Se me decido a Apesar de o parto ter sido bem-sucedido e de ela apresentar
publicar aqui um caso isolado de cura por sugestão hipnótica, uma constituição corporal favorável, o leite não era abundante
isso se deve a uma série de circunstâncias colaterais que confe- e a criança lhe causava dores durante as tentativas de amamen-
rem virtude probatória e logo tornam-se mais transparentes do tação. Logo, ela mesma tornou-se inapetente e passava as noi-
que é habitual para a maioria de nossos êxitos terapêuticos" tes em claro, excitada e insone. Depois de quinze dias, a criança
(FREUD, 1892-93/1988, p. 151). foi entregue para uma ama de leite.

238 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Anâlise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 239
Três anos depois, uma nova gestação trouxe marufestações Freud foi chamado e fez a seguinte declaração, de natureza psi-
ainda mais penosas para a paciente, incluindo o retorno da in- coterapêutica: ''Não teve efeito algum meu argumento de que,
sônia, agora acompanhada de vômitos. Freud a encontrou irri- posto que ela havia sido convencida de que a perturbação podia
tada por sua incapacidade para amamentar. Ela mesma não se ceder, e que com efeito havia cedido por meio dia, tudo estava
alimentava e queixava-se de gosto amargo na boca ''A área da ganho" (FREUD, 1892-93/1988, p.154).
ressonância gástrica estava muito ampliada Não me saudou A convicção do paciente não deve interferir nos procedi-
como quem pudesse retirá-la do aperto" (FREUD, 1892-1893/ mentos clínicos, e mesmo na sua eficácia terapêutica, mas é
1988, p. 151). exatamente nessa direção que Freud argumenta. Ora, argu-
Observemos, na sequência dessas duas frases, um novo cor- mentar com pacientes não pode ser uma prática senão retórica,
te discursivo. Freud passa de uma expressão originada na mais envolvida na disputa pela legitimidade ou autoridade na inter-
estrita semiologia médica, tal como "a área de ressonância gás- pretação da doença.
trica", para uma observação sobre a recepção psicológica que a Isso combina com o fato de que, na segunda sessão de hipno-
paciente lhe destina: marcada pela saliente indiferença Uma se, ele tenha sido "mais enérgico e reassegurador" (FREUD,
observação que provém do discurso da cura: "Eu não contava 1892-93/1988, p.154). Ele fala então, assertivamente, que cinco
com grande confiança de sua parte" (FREUD, 1892-1893/1988, minutos depois de sua saída ela deve comer e a interpela "como
p.152). Um traço formal dessa mudança é a passagem da tercei- espera dar de mamar para seu filho se não pode comer você
ra pessoa para a primeira pessoa no relato. mesma?". Ela obedece, para surpresa do marido, que aparente-
Três minutos depois, Freud havia hipnotizado a paciente, mente confirma o tom crítico usado por Freud. No dia seguinte,
que, já em catalepsia, é exposta à seguinte dose de sugestão: ela não requeria mais tratamento. Ela amamentou por oito me-
"Você não tem por que se angustiar, será uma excelente mãe ses e graças a "nossa relação amistosa teve frequentes oportu-
com a qual seu filho vai prosperar magnificamente. Seu estô- nidades para me convencer do bem-estar de ambos. Só achei
mago está totalmente calmo, você tem muito apetite etc." incompreensível e ruim que nunca tenhamos falado daquele
(FREUD, 1892-1893/1988, p.153). assombroso sucesso" (FREUD, 1892-93/1988, p.154).
Ela acorda amnésica, mas antes disso Freud tem de acalmar Aqui está a interveniência direta da ética da cura. Até aqui
o marido, que estava preocupado que a hipnose pudesse preju- havíamos verificado uma espécie de oscilação discursiva entre
dicar ainda mais os nervos de sua esposa. Na manhã seguinte, a retórica da eficácia, da confiança ou da indiferença, e o discur-
ela acordou com apetite, comeu e amamentou a criança. No en- so do método clínico, com as descrições semiológicas sobre o
tanto, o almoço lhe pareceu excessivo, e ela voltou a vomitar. funcionamento da alimentação, do aparelho gástrico e da com-

240 1Análise Psicanalítica eleDiscursos: Perspectivas Lacanianas - Aná&e Psicanalítica eleDiscursos: Perspectivas Lacanianas l 241
paração de situações. Mas, precisamente no momento em que a todo seu sentido se nos recordarmos que, para Freud, são exigidos
superfície da psicoterapia parece se conciliar em um compro- dois traumatismos (e não apenas um, como se tem a tendência a
misso eficaz com a superfície clinica, Freud pergunta-se por acreditar, tão frequentemente) para que nasça este mito indivi-
algo que teria ficado de fora. Algo que está excluído do discurso, dual em que consiste a neurose" (LÉVI-STRAUSS, 1955/1973).
ou seja, a verdade, suposta no silêncio que recai sobre o ocorri- Ou seja, as duas cenas de que os casos clínicos são usual-
do - incluindo o seu primeiro fracasso, a nova tentativa e avio- mente compostos não replicam, necessariamente, a relação en-
lação da gramática de reconhecimento inicialmente pautada tre teoria abstrata e descrição empírica bruta. Acabamos de ver
pela indiferença do lado da paciente e pela expectativa de cura como Freud se vale de diversas ilações teóricas, ainda que la-
pelo lado do médico. A cura é exatamente esta superfície no in- tentes, para investigar a hipótese de uma patologia hereditária
terior da qual as relações de autoridade ou de poder podem ser para descrever os sintomas, para lançar hipóteses diagnósticas.
postas ou representadas ao modo da "colocação em ato da reali- Vejamos, portanto, como isso que usualmente codificamos
dade sexual da transferência" (LACAN, 1954/1988, p. 4 7). como "teoria" não é uma redescrição da mesma cena, de tal for-
Um ano depois sobrevém uma nova gravidez, nova anorexia, ma a iluminar sua estrutura.
novo sentimento de nojo para consigo mesma, nova incapaci- Freud começa distinguindo dois tipos de representação que se
dade de satisfazer seu filho. Dessa vez a hipnose só faz com que conectam com afetos: as que indicam decisões ou desígnios e as
ela perca ainda mais suas esperanças. É só depois de uma se- que indicam expectativas. As expectativas, por sua vez, dividem-
gunda sessão de hipnose que ela pode amamentar seu filho e -se segundo o significado de seu desenlace e o seu grau de incerte-
gozar do "mais imperturbado bem-estar" (LACAN, 1954/1988, za Quando o grau de incerteza combina com a expectativa con-
p. 52). É então que vem à luz a fala retida na gestação anterior: trária, surgem as "representações penosas contrastantes", cuja
"Me dava vergonha que algo como a hipnose se saísse melhor do expressão discursiva é: ''Não conseguirei realizar meu desígnio
que eu mesma, ali onde eu, com toda a força de minha vontade, porque isto ou aquilo é demasiado difícil para mim, eu sou inepto
resultei impotente" (LACAN, 1954/1988, p. 52 ). para isso; ademais, sei que em situações semelhantes tais quais
Encerra-se aqui a narrativa do caso, com um novo corte de dis- outras pessoas fracassaram" (FREUD, 1892-93/1988, p. 155).
curso, que introduz a "elucidação do mecanismo psíquico daquela Nas pessoas de "vida sã'', as representações contrastantes com
perturbação". Esse é o ponto típico de virada, em que se costuma os desígnios são sufocadas ou inibidas o máximo possível Ao
localizar a passagem da clinica para a teoria Não penso que deva- contrário, na neurose, e nesse caso ele não se refere à histeria ape-
mos acompanhar essa separação, não mais do que se seguirmos a nas, mas ao "status nervosus em geral", cabe pressupor uma "ten-
regra da análise estrutural de que: "A fórmula acima adquirirá dência para ades-ação, ao rebaixamento da autoconsciência, se-

2421 Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1243
gundo a conhecemos na melancolia como sintoma isolado de um res, coligem-se com os sintomas que "governam o corpo", como
desenvolvimento extremo" (FREUD, 1892-93/1988, p.155). a suscetibilidade do trato intestinal e os vômitos. Confirma-se
Nas neuroses, as representações contrastantes recebem assim a hipótese da histeria de ocasião, tendo por causa a exci-
grande atenção - expressando-se como uma "inclinação pessi- tação causada pela primeira gestação ou o esgotamento do par-
mista geral" - e, por associação com impressões contingentes, to, a "máxima comoção a que está exposto o organismo femini-
geram os sintomas fóbicos e a mania de dúvida dos neurastêni- no" (FREUD, 1892-93/1988, p.157).
cos. Se na neurastenia a representação contrastante se enlaça É aqui que Freud aduz um segundo caso clínico. Uma dama
com a representação vontade em "um só ato da consciência", na voluntariosa que sofria com tiques e maneirismos (Emy Von
histeria há uma dissociação da consciência e a representação N.). Nele se mostrará que, se a contravontade é o mecanismo
contrastante é desligada de seu desígnio, permanecendo sepa- histérico por excelência, isso não lhe é exclusivo, pois se apre-
rada no inconsciente. Na ocasião de realizar o desígnio retido, a senta também nesse caso de convulsão por tiques. Perguntada
representação contrastante se objetiva "por meio de uma iner- sobre a origem dos tiques, não sabia responder em estado de vi-
vação corporal" (FREUD, 1892-93/1988, p. 155). Surge assim a gília; mas, quando hipnotizada, respondeu que: "A minha filha
experiência de uma "vontade contrária", que deixa a vontade pequena estava doente e eu tinha que guardar silêncio [...] foi
consciente impotente. então que me veio o tique" (FREUD, 1988, p. 80).
Aqui ocorre o retorno para o plano narrativo do caso, mas Anos mais tarde, ela estava em uma carruagem e os cavalos
agora oferecendo uma variante estrutural. Caso se tratasse de se assustaram em meio a uma tempestade. Ela pensou: "agora
uma neurastênica, ela teria: devo ficar em silêncio" - e sobrevieram os tiques novamente. A
situação de exaustão apenas propicia que a disposição histérica
[...] arredado conscientemente a tarefa que tinha pela se manifeste.
frente; teria pensado muito nos possíveis contratempos e
perigos, e depois de muito titubear, em meio a apreensões
Aqui há um novo corte discursivo no texto e Freud empreen-
e dúvidas, talvez pusesse em prática a amamentação sem de uma segunda generalização, que liga os ataques histéricos
dificuldade, ou, no caso de prevalecer a representação com os delírios das monjas medievais. Explica-se, assim, a per-
contrastante, omitiria fazê-lo por não se atrever a tal.
versão histérica de caráter, a tendência a fazer o mal ou a adoe-
(FREUD, 1892-93/1988, pp.156-157)
cer quando mais precisam de saúde. Segue-se uma alteração de
Se a neurastenia sofre com uma debilidade da vontade, a his- discurso que o torna subitamente metafórico ou poético. Os
teria padece de uma perversão da vontade. Os sintomas subjeti- histéricos: "[...] passam uma existência insuspeita em uma sor-
vos, como a inapetência, a repugnância aos alimentos e as do- te de reino de sombras, até que saem à luz como espectros e se

- Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1245


2441 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
apoderam do corpo que ordinariamente estava a serviço da mos notar, também, que essa heterogeneidade se dá devido às
consciência egoica dominante" (FREUD, 1892-93/1988, p.161). posições discursivas ocupadas por analisando e analista duran-
Depois disso, uma nova comparação é proposta, dessa vez te o caso, que se alteram entre posições de autoridade e de hori-
com a coprolalia dos pacientes que sofrem com a loucura de dú- zontalidade entre ambos.
vida, como detalhados por Charcot e Guignon. Neles, como nos
histéricos, vigora o sinal desencadeante de que "não podem fa- 3.3. O modelo estrutural no caso do Homem dos Ratos
zer alguma coisa''. O medo levaria à realização do temido. Con- Freud começa a apresentação de seu "A propósito de um
tudo, um caso de Guignon é trazido para corroborar a tese, não caso de neurose obsessiva'' (FREUD, 1909/1973, p. 35) anun-
enunciada explicitamente, de que há um nexo simbólico entre ciando que exibirá um material duplo, composto pela "comuni-
as representações sufocadas e sufocantes. É o caso de um pa- cação fragmentária do historial clínico [Krankengeschichte] de
ciente que era compelido a exclamar "Maria!" diante de tais si- um caso de neurose obsessiva'' (FREUD, 1909/1988, p. 123) e
tuações nas quais "deveria ficar em silêncio"; e que, de fato, ha- por "indicações aforísticas sobre a gênese e os mecanismos
via se apaixonado na juventude por uma mulher de mesmo mais finos da neurose obsessiva", que continuam suas observa-
nome. Freud lança a hipótese de que a necessidade de manter o ções de 1896.
nome em segredo gerou o fenômeno da vontade contrária. Em seguida, ele caracteriza o caso como grave, dadas sua du-
Observamos, portanto, que o caso de hipnose narrado por ração, suas consequências para a vida do paciente [Schadigungs-
Freud marca um ponto de interdiscurso na teoria psicanalítica. folge] e a própria apreciação do paciente [subjektiver Werkung].
Enquanto anteriormente os casos associados ao sistema de Ao contrário dos histéricos, os obsessivos escondem seus sin-
transmissão da psicopatologia eram atrelados ao método clíni- tomas. Uma exposição detalhada e fidedigna do caso fica impe-
co, como expusemos no subitem anterior, esse caso evidencia a dida devido ao seu reconhecimento na cidade; por outro lado, as
passagem entre a soberania do método clínico para esse siste- desfigurações às quais pode recorrer para proteger o paciente
ma com fragmentos narrativos imiscuídos, de vertente de da indiscrição potencialmente destroem os nexos que se quer
transmissão psicoterapêutica. mostrar no interior do caso. Ocorre, assim, uma situação para-
O que passaremos a notar, portanto, na obra freudiana é uma doxal, pois "é mais possível tomar públicos os segredos mais
heterogeneidade discursiva cada vez maior na escrita dos ca- íntimos de um paciente, pelos quais ninguém o conhece, do que
sos, misturando as vertentes clínica, da cura e terapêutica. Essa os detalhes mais inocentes e triviais de sua pessoa, notórios
heterogeneidade é o que irá sustentar o caso clínico freudiano para todo mundo e pelos quais ele seria identificável" (FREUD,
no que concerne ao seu efeito de transmissão da verdade. Deve- 1909/1988, pp. 123-124).

- Análise Psicanalitica de Discursus: Perspectivas Lacanianas 1247


2461 Análise Psieanalilicade Discursus: Perspectivas Lacanianas
Aneurose obsessiva é muito mais difícil de tratar e entender Freud relata as primeiras sessões em detalhe e depois seus
do que a histeria, confessa Freud: alunos colocam perguntas e considerações:
1) Por que em alguns casos a pulsão sádica é reprimida e em ou-
O meio pelo qual a neurose obsessiva expressa seus pen-
tros sublimada? (Graf)
samentos secretos, a linguagem da neurose obsessiva, é
por assim dizer só um dialeto da linguagem histérica, mas 2) Por que desejamos experimentar somente sentimentos uni-
com relação ao qual deveria ser mais fácil de obter empa- ficados? (Schwerdtner)
tia, pois se aparenta mais que o dialeto histérico com a ex-
pressão de nosso pensamento consciente. (FREUD, 1909/ 3) A inclinação para homem ou mulher depende da relação com
1988, p.124) pai e mãe? (Rank)

4) Cada trauma único implica um trauma crônico? (Fedem)


Freud apresenta a primeira versão do caso do Homem dos
Ratos na reunião científica da Sociedade Psicanalítica de Vie- Ao que Freud acrescenta as recordações mais antigas dopa-
na, em 30 de outubro de 1907, e depois em 16 de novembro do ciente: sua irmã sendo levada para a cama, as perguntas que ele
mesmo ano. Na primeira ocasião, seu título é "Começo de um fazia ao pai, a mãe chorando e seu pai se inclinando sobre ela.
caso clínico" (NUNBERG; FEDERN, 1974/1979). Nele, torna a Contra Schwerdtner e Gra:f,Freud argumenta que "não temos
neurose obsessiva sinônimo de pensamento obsessivo. O pa- direito a supor que encontraremos a diferença entre doença e o
ciente se "sente acossado pelo temor de que possa ocorrer algo ser normal, porque, ao menos qualitativamente, não existe esta
a duas pessoas a quem ele quer muito", e a imprecisão das refe- diferença" (NUNBERG; FEDERN, 1974/1979, p. 247). Uma ex-
rências já é um traço clínico dessa neurose. Sua primeira rela- posição mais completa do caso foi feita em 27 de abril de 1908,
ção sexual ocorre aos vinte e seis anos de idade, e depois a mas- no I Congresso Psicanalítico Internacional, em Salzburg.
turbação tem um papel insignificante, pois Nesse congresso, Freud expôs que, em outubro de 1907, rece-
beu em seu consultório o tenente do exército austro-húngaro
neste caso o conflito básico reside em termos gerais, na Ernst Lanzer. Ele retornara de manobras militares assediado por
luta do paciente entre suas inclinações ao homem e sua intensa angústia e ideias obsessivas. O tratamento durou um ano,
inclinação à mulher (é mais forte sua inclinação ao ho-
e os sintomas foram reduzidos pela "solução da ideia do rato". O
mem). Algo que nunca falta nos estados da neurose obses-
siva: sentimento reprimido de ser mau, agressivo, hostil desencadeamento das ideias obsessivas ocorre quando ele está
ou cruel (desejos sádicos e assassinos). (NUNBERG; FE- estudando para o concurso final de provas para se tornar doutor
DERN, 1974/1979, p. 243) em jurisprudência Estava premido por várias circunstâncias:

248 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalitica ele Discursos: Perspectivas Lacaniana.s 1249
a) Estava "prometido" para uma prima distante, que, apesar dis- 1) O Capitão M entrega a Lanzer umpince-nez que ele havia en-
so, resistia a suas investidas, e não dispunha de dote familiar; comendado de Viena, dizendo que ele deveria reembolsar o
b) Casar-se dependia, portanto, de ser aprovado no concurso Tenente A;
para exercício do cargo público; 2) Uma ideia fulgurante lhe ocorre: "se ele não pagasse o Tenen-
b) Em uma das manobras militares, ele se envolvera com uma te A, aquilo aconteceriacom sua dama ou com seu pai";
garçonete, com quem teve suas primeiras experiências sexuais. 3) Mas havia um engano do Capitão M. Não era o Tenente A o
encarregado do correio naquela noite, mas o Tenente B.
Durante as manobras ele escutou o seguinte relato:
Logo, ele não poderia cumprir seu juramento;
Pois bem, durante a paradaparamos para conversare o capi- 4) Mas, na verdade, Lanzer sabia desde o início que não era
tiio contou-me que havia lido sobre um castigoparticular- nem o Tenente A, nem o Tenente B, mas a senhorita Z que
mente horrível aplicadono Leste [...] aqui o paciente inter-
estava responsável pelo malote naquela noite; e que, portan-
rompeu-se [...] Continuei, dizendo que faria tudo o que
pudesse, para, não obstante, adivinhar o pleno significado to, ele deveria pagar a ela.
de quaisquer pistas que me fornecesse.Será que estavapen-
Mesmo sabendo do absurdo do pensamento e da contradi-
sando em cercas de estacas? "- Niio, isso não ...o criminoso
foi amarrado..." expressou-seele de modo tão indistinto,que ção de seu juramento, ele urde o seguinte plano para permane-
não pude adivinhar logoem qual situação ':.. um vasofoi vi- cer fiel ao seu pensamento-juramento:
radosob suas nádegas ...alguns ratosforam colocadosdentro
dele...e eles..." - de novo se levantou e mostrava todo o sinal [...] ir a agência postal com ambos os homens, A e B. A da-
de horror e resistência - '~ cavaram caminho no ..." Em seu ria à jovem dama, as 3.80 coroas, a jovem dama as daria a
ânus, ajudei-o a completar.Em todos os momentos impor- B,e então ele mesmo devolveriaem pagamento as 3.80 co-
tantes, enquanto me contava a história, sua face assumiu roas a A, segundo as palavras de seu juramento. (FREUD,
uma expressãomuito estranha e variada. Eu só podia inter- 1909/1988,p.133)
pretá-la comouma face de horror ao prazer todo seu do qual
ele mesmo não estava ciente. (FREUD, 1909/1988,p.133)
Por esse plano, a jovem da agência postal arcaria com as des-
Ao ouvir o castigo dos ratos, Lanzer foi tomado pela ideia de pesas do seu pince-nez: "[...] roteiro imaginário a que chega
que "isso estava acontecendo com uma pessoa que me era mui- como se fosse à solução da angústia ligada ao desencadeamento
to cara", posteriormente nomeados como seu pai e Gisela. Em da crise" (LACAN, 1953/2008, p.19).
ambos os casos, a ideia era absurda, ainda mais porque seu pai Temos então uma circunstância, um momento de vida (oca-
havia falecido alguns anos antes. Na mesma noite, ocorre a se- samento, o concurso, a morte do pai) e um conjunto de encon-
guinte sequência de acontecimentos: tros precipitantes (o castigo dos ratos, a dívida, os tenentes e o

250 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1251
capitão). O conjunto formado por essas circunstâncias e seus ro de jogos, sendo severamente repreendido por seu pai por
encontros pode ser descrito em termos narrativos como um 1 causa disso;
conflito: pagar ou não pagar, casar ou não casar, casar com A ou 3) Como traço de seu sintoma relativo à indecisão quanto a ca-
casar com B, pagar A ou pagar B. sar-se [heiraten]. Como traço de seus pensamentos obsessi-
Para entender essa "cena", é preciso contar com uma segunda vos ligados ao dinheiro, a moeda dos ratos [Geldraten]. Como
cena; é exatamente isso que Freud constrói em seus primeiros traço de seu sintoma como sentimento de dívida ou como
encontros. O pai de Ernst Lanzer também servira ao exército, e dever de pagar prestações [Raten];
ele também enfrentara um dilema sobre com quem casar: com a 4) Como fantasia de que os ratos poderiam ser introduzidos
mulher rica (sua futura esposa) ou com a costureira pobre (mas pelo ânus (de seu pai e de sua amada) como punição pelo fato
bonita) com quem tivera uma rápida relação. A mãe de Lanzer de que ele não pagara a dívida devida.
lembrava, ludicamente, esse momento de dúvida paterna O pai O caso do Homem dos Ratos foi publicado em 1905, mesmo
de Lanzer era conhecido como um "rato de jogo" (Spielratte) e, ano de aparição do caso do pequeno Hans, como a primeira
certa vez, perdera toda a reserva do regimento, sendo salvo por grande demonstração da teoria do complexo de Édipo. Quaren-
um amigo que lhe emprestou a quantia. Coube ao destino que ele ta e oito anos depois, o antropólogo Claude Lévi-Strauss publi-
jamais reencontrou esse amigo para saldar a dívida (Raten). cou um pequeno texto chamado "Aestrutura dos mitos" (1973).
Portanto, os sintomas do Homem dos Ratos estavam sobre- Nesse texto ele apresentava a fórmula canônica dos mitos, to-
determinados pelo significante Ratte, que aparecia em diferen- mando como exemplo de análise o mito de Édipo.
tes conexões. Conexões que, quando foram interpretadas, sus- Quaisquer que sejam as precisões e modificações carecidas
penderam os sintomas: pela fórmula abaixo, estamos convencidos de que todo mito
1) Como significante da identificação ao pai, "rato de jogo" (considerado como conjunto de suas variantes) é redutível a
(Spielratte ), que deixara uma dívida em aberto com um amigo uma relação canônica do tipo:
e que se casara com a mãe "por dinheiro, e não por amor". Des-
Fx(a) Fy(b) 5 Fx(b) Fa-l(y)
sa forma, o significante dos ratos remetia à ambivalência do
Superestimação Subestimação Heróimata I;Ieróise chama
paciente, ou seja, ao amor e ódio que este sentia por seu pai; deparentesco deparentesco o ser ctônico Edipo
2) Como objeto do erotismo anal do paciente. Os ratos (Ratten) Laio
Lábdaco
entram por buracos estreitos (como o ânus). Eles remetem à
sujeira. Eles mordem, como o Homem dos Ratos, segundo a na qual são dados simultaneamente dois termos, a e b, e duas fun-
construção de Freud, talvez tivesse mordido seu companhei- ções, x e y; e, desses termos, afirma-se que existe uma relação de

252 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Pskanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 253
equivalência entre duas situações, definidas respectivamente fato, simétrica à alternância de casamentos entre autóctones e
por uma inversão de termos e de relações, sob duas condições: estrangeiros. O método de Lévi-Strauss não formaliza a estrutu-
1) que um dos termos seja substituído por seu contrário (na ex- ra dos mitos como um grupo de Klein, do quadrado de Greimas
pressão acima, a por a-1); ou da estratégia empírico-indutiva de Vladimir Propp. A escolha
2) que uma inversão correlativa se produza entre valor de fun- desse quarto elemento vem de outro grupo de mitos, os amerín-
ção e valor de termo (acima: y e a). dios, cujas figuras ctônicas são disformes. Ela constitui um "pas-
so transcendental", um "salto dialético", uma "dedução transcen-
Essa fórmula e seu comentário permitem passar do nível da
dental" ou uma "dupla torção" que contém uma condensação e
narrativa ao de certas recorrências temáticas que definem o
um deslocamento (em interversão). Ademais, esse quarto ele-
mito como uma unidade independente de suas versões. A essas
mento está baseado em uma recorrência "histórica": ''A variante
recorrências Lévi-Strauss chamou de mitemas. No caso do
que vem por último (o quarto membro da fórmula) brota de um
mito de Édipo, há quatro mitemas:
evento que ocorreu no tempo: a ultrapassagem das fronteiras
1) superestimação de relações de parentesco (Cadmo procura
culturais ou linguísticas, o empréstimo por uma audiência es-
sua irmã Europa, Édipo casa-se com a mãe Jocasta, Antígo-
trangeira" (LÉVI-STRAUSS, 1994/2001, p. 314).
na enterra Polinice);
Dois anos depois, Jacques Lacan publicava um texto inter-
2) subestimação de relações de parentesco (os irmãos Esparta-
pretando o caso do Homem dos Ratos à luz da teoria da estrutu-
nos se exterminam, Édipo mata o pai Laio, Etéocles mata o
ra dos mitos de Claude Lévi-Strauss. Seu interesse repousa
irmão Polinice);
precisamente nas circunstâncias do desencadeamento de sin-
3) o herói mata um ser que vem das entranhas da terra (Esparta-
tomas e na hipótese de que a neurose obsessiva do Homem dos
nos matam o dragão, Édipo mata a Esfinge, Laio mata a Píton);
Ratos corresponde a um mito individual: ''Este roteiro fantasís-
4) o nome próprio do herói faz alusão a um defeito no corpo
tico apresenta-se como um pequeno drama, uma gesta, que é
(Lábdaco = manco, Laio = gago, Édipo= pés inchados).
precisamente a manifestação do que chamo de mito individual
Se a lógica do mito fosse de silogismo, de analogia por regra de do neurótico" (LACAN, 1953/2008, p.33).
três, cuja formalização é o grupo abeliano, ou grupo de Klein, te- O mito deveria ser uma estrutura oral e coletiva explicando a
ríamos como proporção: Fx (a) está para Fy (a) assim como Fx-1 origem de algo.No entanto, como a modernidade, ele se individua-
(b) = superestimação da proximidade entre homens e monstros. liza, se escreve e se torna uma espécie de hipótese inconsciente
Algo como: Fx (a). Fy (b) = Fy (a). Fx (b). Mas a alternância polí- sobre a origem do desejo. ParaLacan, ele forneceria o "significante
tica entre autóctones e estrangeiros no poder de Tebas não é, de do impossível", ou seja, um instrumento lógico para que o sujeito

254 IAnálise Psicanalítica de Discunms: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 255
organize sua questão. Ademais, o mito seria uma maneira de cons- ponto da rede rrútica, como se o que não é resolvido em um lugar
truir uma "formulação discursiva a algo que não pode ser transmi- se reproduzisse sempre em outro" (LACAN,1953/2008, p.196).
tido na formulação de uma verdade" (LACAN,1953/2008, p.16). Lacan parece aplicar passo a passo a fórmula canônica do
Temos então dois planos, os dois lados da fórmula canônica, mito, proposta por Lévi-Strauss, ao caso do Homem dos Ratos.
nos quais os elementos se sobrepõem, como uma diplopia, como Temos então, novamente, as quatro funções:
um drama Dois planos que o neurótico não consegue reunir: o 1) Função narcísica aplicada ao objeto;
plano do gozo, sobredeterminado pela lei da interdição do inces- 2) Função paterna aplicada à mulher rica ou à mulher pobre;
to, e o plano da assunção do desejo, sobredeterminado pela cons- 3) Função paterna aplicada ao amigo (psicanalista) e à mulher
telação familiar. Isso levaria o neurótico a dois impasses. Quando rica (pai humilhado);
ele tenta unificar sua "função viril" 24, o objeto de amor sofre um 4) Função do nome próprio para o Homem dos Ratos em sua
"desdobramento", do tipo mulher pobre ou mulher rica, mulher relação com a morte (Ratten [ratos], Raten [dívida], heiraten
de hoje ou mulher do passado. Solução: "assumir seus frutos sem [casar], Spielratte [rato de jogo]).
conflitos" (LACAN,1953/2008, p. 29) ou "um gozo que possa ser
qualificado de sereno e urúvoco do objeto sexual, uma vez que te- 3.4. O modelo do grafo do desejo no
nha sido escolhido em conformidade com a vida do sujeito" (LA- caso do Homem dos Ratos
CAN, 1953/2008, p. 29). Inversamente, quando ele tenta unificar O grafo do desejo é uma importante ferramenta para pensar
o plano da sensibilidade 25, é o próprio eu que se desdobra, e ele a linguagem na psicanálise, pois apresenta a forma como o su-
aloca um substituto, um amigo, um representante real ou imagi- jeito se constitui na linguagem pela via do sentido. Ele é tam-
nário, que cumpre o fardo de "viver em seu lugar", sem ter aquele bém um modelo topológico dos caminhos ou combinatórias
sentimento de que "é outra pessoa, que não ele, que merece" (LA- estabelecidas pelas vias particulares do sujeito. Desenvolvido
CAN,1953/2008, p. 29), e se sente "excluído de sua própria vivên- entre os seminários sobre As formações do inconsciente (1957-58)
cia" (LACAN,1953/2008, p. 30): "Tudo se passa como se os im- e O desejo e sua interpretação (1958-59), compreende um mode-
passes próprios da situação original se deslocassem para outro lo baseado na tese de que o inconsciente se estrutura como uma
linguagem. Há duas formas de significação anunciadas no grafo
24 "Cada vez que o neurótico consegue ou tende a consegujr assumir seu próprio papel, cada vez que
ele se torna de certo modo idêntico a si próprio e se certifica da pertinência de sua manifestação - metafórica e metonímica - que apontam para a construção do
em seu contexto social específico, o objetoparceiro se desdobra"(LACAN, 1953/2008, p. 30).
25 "[...] se o sujeito faz um esforço para recuperar a unidade de sua sensibilidade, é então na outra
sentido, tendo como referência o sintoma, e também para a
ponta da cadeia, na assunção de sua própria função social e de sua própria virilidade que ele vê montagem da língua pela estrutura subjetiva. Ou seja: o grafo
aparecerao seu lado um personagem com quem tem uma relação narcisista enquanto relação mo-
ral" (LACAN, 1953/2008, p. 30). enuncia a linguagem habitada pelo sujeito.

256 IAnálise Psicanalítica tle Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica tle Discursos: Penspectivas Lacanianas l 257
Lacan desenvolve o grafo do desejo enquanto método de aná-
lise subjetiva (LACAN, 1957-58/1999) justamente quando se
depara com a constituição das formações do inconsciente. É
nesse momento que ele aprofunda sua leitura sobre a constitui-
ção do sentido pela linguagem e tenta, a partir do grafo, ver as
pistas, as "ruínas metonímicas" (LACAN, 1957-58/1999, p. 90)
que vinculamo sujeito ao desejo e asuaconsequêncianaconsti-
tuição, a demanda Nessa direção, o grafo passa a ser um ótimo
instrumento clínico para observação dos efeitos subjetivantes
na linguagem: ele atua como figuração simbólica do sujeito. No grafo,~ e Wcorrespondem, respectivamente, ao sujeito
A forma como a metáfora e a metonímia, enquanto mecanis- falante e ao objeto metonímico ao qual o enunciado faz referên-
mos de significação, anunciam-se no grafo apresenta uma par- cia. Já õ e õ' correspondem à cadeia significante e à cadeia sig-
ticularidade de estruturação que está vinculada ao campo da nificada. O y corresponde à mensagem e a, ao código. A linha
neurose. Esta forma de estruturação da linguagem evidencia de que conecta ~ e Wé correspondente ao discurso. As setas indi-
que modo o "sentido primeiro" (LACAN, 1968-69/2006) ecoa cam movimento de saída e entrada do sentido e mostram a rela-
nas construções posteriores, retroagindo ao sintoma e mos- ção contínua entre cadeia significante e cadeia significada.
trando como as formas de significação apontam para uma par- Há uma relação entre cadeia significante e cadeia significa-
ticularidade do sujeito com a língua, ou seja, com seu ser. da por meio de três condições: a de discurso (que liga o Eu ao
Aproveitaremos o exemplo dado anteriormente, do Homem objeto metonímico), a de código e a de mensagem (interligadas
dos Ratos, para mostrar de que forma podemos analisar o mes- e que promovem um movimento giratório na relação entre am-
mo material por distintos instrumentos e, desse modo, mostrar bas as cadeias).
diferentes aspectos que podem suplementar a análise do caso. A proposta de Lacan (1999) é de que há uma metaforização
Finalizado, o grafo do desejo consiste em uma duplicação de do sentido e que, a partir desta metaforização, há o rompimento
seu primeiro andar, que se constrói embasado no distancia- do sintagma, o que promove um sentido singular pautado na re-
mento entre o código, o discurso e a cadeia significante, e a for- lação metafórica-metonímica do sujeito com a linguagem. O
ma como estas três vias relacionam o sujeito ao seu "objeto me- autor propõe:
tonímico", que corresponderia a sua identificação a um sentido. Como vocês podem ver, portanto, esta linha é o discurso
Eis o primeiro andar do grafo: concreto [~ e W]do sujeito individual, daquele que fala e

258 I1\milise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 259
se faz ouvir, é o discurso que se pode gravar num disco, ao
Vemos a constituição alienante do sujeito em relação ao seu
passo que a primeira 26 é tudo o que isso inclui como possi-
desejo, apontada pela formulação ($0a). Há um espelhamento
bilidades de decomposição, de reinterpretação, de resso-
nância e de efeitos metafórico e metonímico. (LACAN, entre a constituição do eu através da imagem e a constituição do
1957-58/1999, p.19) sentido acessado no Outro. Do mesmo modo, a imagem do sujei-
to constitui-se através dos significantes, até seu "átomo literal"
A partir dessa primeira composição do grafo, o autor cons- (LACAN, 1957/1998a, pp. 807-842), apresentado na fantasia
trói seu segundo andar, sempre partindo do pressuposto de que A partir do caso do Homem dos Ratos, podemos ver de que
o grafo é "uma topologia que permite desenhar homologias" modo a linguagem realiza uma montagem algébrica na consti-
(LACAN, 1957-58/1999, p. 421). "Uma homologia desconcer- tuição subjetiva. Vimos, ao colocar em sequência na seção an-
tante" (LACAN, 1957/1998a, pp. 807-842), que aponta, em sua terior, sobre a análise do caso a partir da estrutura dos mitos,
configuração, para as relações de alienação do sujeito ao Eu e ao que há uma similaridade na escrita de algumas palavras: Ratten
Outro, para "a álgebra" (LACAN, 1957/1998a, pp. 807-42) da [ratos], Raten [dívida], heiraten [casar], Spielratte [rato de jogo].
constituição subjetiva. O grafo fica assim estabelecido: Seria essa similaridade uma construção algébrica do tenente
relacionada ao seu sintoma?
Podemos ordenar as palavras, através do histórico - diacroni-
camente - do caso, deste modo: o pai, um rato de jogo [Spielratte],
tinha uma dívida [Raten] relacionada ao jogo e que também se re-
lacionava a casar-se ou com a costureira (bonita e pobre) ou com
a prima (rica), com quem efetivamente se casou [heiraten]. Ernst
Lanzer repete a história do pai, associando a dívida ao casamento.
A condensação dessa álgebra culmina no castigo dos ratos [Rat-
ten], que retorna ao pai, à dívida e, novamente, a casar-se.
A relação ratos - dívida - casamento apresenta-se como
uma relação metafórica, ou seja, de substituição e sincronia do
sentido. Há um achatamento que conflui no objeto metonímico
rato [Ratte]. O discurso falado, apresentado diacronicamente (o
castigo), vincula-se na cadeia significante a tudo o que pode ser
26 Refere-se aqui à cadeia significante.
significado nesse discurso. No entanto, esse sentido não retor-

260 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas


Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 261
na, permanece como que coagulado entre o sujeito e sua identi-
ficação aos significantes do Outro.
Vê-se, assim, que há uma movimentação unidirecional do
sentido: tudo conflui ao lado esquerdo do grafo, onde se encon-
tram a imagem do outro i(a) e a fantasia, que Lacan também
define como: "o imaginário aprisionado num certo uso do signi-
ficante" (LACAN, 1957-58/1999, p. 421). Desse modo, observa-
-se que há como que um espelhamento entre o sujeito e o outro,
...........................
em que o Eu aparece como um efeito de "cola", de identificação i(a) t---~---, m
com alguns significantes oferecidos pelo Outro, sem a circula- que me matas tu és aquele
ridade temporal que ocorre no circuito da histérica, oferecido
também dentro do grafo (LACAN, 1957-58/1999, p. 481). Por
conta disso, não há transitividade na constituição subjetiva: "O O significante atua como objeto de troca, como equivalente
obsessivo é um homem que vive no significante. Está muito so- (LACAN, 1957-58/1999): no grafo, seu percurso consiste em ir
lidamente instalado nele [...] esse significante basta para pre- do Outro à imagem do outro, no primeiro andar, e da demanda à
servar nele a dimensão do Outro, mas esta é como que idolatra- fantasia, no segundo - promovendo uma equivalência, uma es-
da" (LACAN, 1957-58/1999, p. 483). pecularidade entre Outro e imagem do outro e entre demanda e
No caso, o significante que preserva a dimensão do Outro no fantasia A fala conclui-se apenas pela repetição, onde vemos as
Homem dos Ratos seria o ten: marca que permanece no discur- marcas que constituem o seu sentido (sintoma). A unidireciona-
so falado do tenente e se relaciona à fantasia fundamental do lidade apresentada pelo circuito do obsessivo no grafo mostra, ao
sujeito: ele é o átomo mínimo, aprisionado em seu caráter ima- mesmo tempo, uma destruição no Outro, mas que, por ser uma
ginário, dando sentido, pelas escanções metonímicas, às rela- articulação significante, o faz subsistir, no entanto, sem que a
ções apontadas por Ernst. A dívida do pai, objeto metonímico ação do sujeito seja concluída: "o pacto é recusado sobre um
do caso, age como referente à constituição do sentido, acompa- fundo de uma promessa" (LACAN,1957-58/1999, p. 425). O sig-
nhando todo o seu trajeto, relacionando dívida e casamento. nificante ten, então, apresenta-:-sepelo grafo ao modo de ruínas
Devido a essa diferença no modo de funcionamento do gra- metonímicas que insistem em uma fixação do sentido na confi-
fo, Lacan (1957-58/1999, p. 482) propõe o circuito do obsessivo, guração subjetiva Há uma espécie de tamponamento da possibi-
para evidenciar o caráter linear e unidirecional do significante: lidade de circulação de outras interpretações possíveis.

262 IAnáliEe Psieanaliti<,a de Discun;os: Perspectivas Lacanianas · AnáliEe Psicanalítica de DiEcursos: Perspectivas Lacanianas l 263
Desse modo, observamos que a partir do grafo é possível es- envolvido em uma tramamidiática, que guarda relações estrutu-
tabelecer uma análise discursiva pautada, centralmente, nas rais com o conto ''A carta roubada", mas é um "caso real".
relações metafórica e metonímica da língua, tendo como mate- Trata-se do percurso tomado por uma imagem feita pelo fo-
rial de análise as unidades mínimas do inconsciente estrutura- tógrafo sul-africano Kevin Carter. A fotografia, publicada em
do como uma linguagem: os significantes. março de 1993, no New York Times, retrata o horror da fome no
Sudão por meio da imagem de uma criança com a cabeça abai-
3.5. O modelo dos quatro discursos: xada, quase tocando o solo, tendo ao fundo um abutre que a es-
uma fotografia destrutiva preita. Agraciada com o prêmio Pulitzer de 1994, a fotografia
Vejamos um caso no qual podemos usar a teoria lacaniana provocou uma indignação generalizada, pois fez com que os
dos quatro discursos para interpretar um acontecimento da cul- destinatários a lessem com a seguinte interpretação, própria ao
tura. Inspiramo-nos na análise que Lacan propõe da obra de Ed- discurso do mestre: "o fotógrafo se interessou pela imagem e
gar Allan Poe, "A carta roubada", e que aparece na abertura de deixou a criança sem socorro". Dessa maneira, a "ganância im-
Escritos. A leitura de Lacan, em 1955,é uma aplicação do método piedosa" do fotógrafo fornecia a enunciação ideológica para a
estrutural da análise do mito ao conto (LACAN, 1955/1998). O fome da criança, que traria como primeiro efeito a impotência
conto possui duas cenas, em cada uma há quatro personagens. do destinatário diante da situação de desamparo.
Reencontramos aqui os quatro termos da fórmula canônica do É, portanto, da posição do discurso histérico que se denun-
mito: o rei, a rainha, o ministro e a carta, na primeira cena; o mi- cia na imagem, inserida no discurso do mestre, que há um sujei-
nistro, a polícia, Dupin e a carta, na segunda cena. Há uma isoto- to no lugar da verdade desse discurso. A fotografia não é uma
pia entre os personagens da primeira e da segunda cena, baseada expressão neutra e impessoal de um olhar desinteressado. Há,
na combinatória entre olhar e ver. Ao final, trata-se de analisar a sim, um interesse, que por metonímia se liga ao interesse gera-
circulação da carta como modelo para entender a circulação do dor da fome. Isso se confirmaria pelo relato do próprio Carter
significante fálico. No apêndice acrescentado em 1966, Lacan em seu diário, no qual ele diz que "enquanto enquadrava a ima-
relê ''A carta roubada'' com sua teoria do grafo, mostrando como gem e batia a foto, pensava: 'Será que devo enxotar a ave?' Um
essa circulação é sobredeterminada por certas regras topológi- lado respondia que sim, e outro dizia: 'continue fotografando,
cas, que permitem identificar e incluir a função do sujeito como você está aqui para trabalhar"' (MARINOVICH e SILVA,2000,
homóloga à abertura e ao fechamento de parênteses. Vamos p. 54). Temos então, precisamente, este significante mestre (SJ
apresentar a seguir uma espécie de contraleitura, baseada na no lugar de agente do discurso, a dizer, de maneira "assemânti-
teoria dos discursos, de um episódio com um repórter de guerra ca", que o trabalho deve continuar.

- Amilise Psicanalítica de Discursos: Pen;pectivas Lacanianas 1265


2641 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
Mas a própria imagem se aproveita de uma contingência que Sugerindo que "aquela criança'' poderia ser "a sua criança" (ele
aproxima o abutre da criança: ''Eu estava fotografando uma crian- tinha uma filha de 6 anos de idade). Isso significaria aumentar a
ça ajoelhada, aí mudei o ângulo e, de repente, havia um abutre tensão de sua própria identificação com o abutre. O que se ob-
bem atrás dela''. Há então este objetoa, que não é nem a criança servou, ao contrário, sugere uma regressão ao discurso universi-
nem o abutre, mas o olhar que se interpõe entre ambas, criando o tário. O jornal assume o semblante do processo, respondendo às
efeito de fantasia, próprio ao andar inferior do discurso do mes- milhares de cartas que indagavam sobre o paradeiro da criança,
tre. Como no conhecido caso do Homem dos Lobos, no qual um com a seguinte observação: ''Muitos leitores têm perguntado so-
lobo branco olha :fixamente para o sonhador, causando terror; e, bre o destino que teve a menina. O fotógrafo informa que ela se
no entanto - conforme a observação de Lacan -, não são os den- recuperou o suficiente para continuar a caminhada depois que o
tes, nem a cor, nem a ameaça representada pelo animal que fixam abutre foi afugentado. Não se sabe se ela conseguiu chegar ao
a posição do objetoa nessa cena, mas o próprio olhar, que se insere centro de abastecimento" (PATRASSO, 2003, p. 76).
na distância entre o sonhador e o lobo. É também com o senti- Por meio dessa declaração, a heterogeneidade mostrada ocul-
mento vívido "de estar participando da história naquele momen- ta a posição de autoria, assumindo ao mesmo tempo o controle
to" que ele prossegue seu trabalho. Para o olhar da câmera, o outro discursivo da situação. Em suas declarações à imprensa, Carter
representa um saber que lhe falta, por isso o significante saber segue a mesma estratégia, sustentando o discurso universitário,
(S2) está no lugar do Outro, no discurso do mestre. Kevin assinala em tom esclarecedor: "a criança estava a dez metros do posto de
que passou vinte minutos fotografando a cena, esperando que o abastecimento da ONU"; "alguém certamente faria o trabalho de
abutre abrisse as asas, para dar mais dramaticidade à cena levá-la até lá"; "era um menino [Kong Ning], não uma menina";
Mas a imagem produziu um curioso efeito de revolta indivi- ou, ainda, "é um costume local evacuar naquela área, e os abutres
dualizada contra o fotógrafo, não contra o jornal que a publicou, se alimentam destes dejetos". A produção de saber no lugar do
nem contra os que poderiam ser responsabilizados diretamente semblante do discurso chega ao ponto de ele explicar o efeito de
pela fome na África. Essa interpelação poderia ter feito emergir, proximidade entre a criança e o abutre, obtido na fotografia por
por progressão, uma divisão subjetiva na posição de semblante, meio de uma teleobjetiva. Ou seja, "na verdade", o abutre estava
o que acusaria um giro para o discurso da histeria Contudo, isso muito mais distante do que aparece na imagem publicada: "Se
aparentemente exigia que a conexão entre a criança faminta e você. usar uma lente teleobjetiva, achatada a perspectiva da
sua própria identificação com a cena mudasse de textura. Sobre criança em primeiro plano e ao fundo, parece que os abutres vão
sua estada no Sudão, ele diz: ''Eu vejo tudo e só consigo pensar devorá-la, mas isso é uma ilusão absoluta, talvez o animal esteja
em Megan. Mal posso esperar para chegar em casa e abraçá-la''. a 20 metros de distância'' (VÉLEZ, 2011, p. 23).

- /1.nálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1267


266 I!1.nálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
Essa série de explicações traz os diferentes interdiscursos que "Até agora fui uma pessoa egoísta" (discurso histérico).
operavam na construção da mensagem: o discurso da fome, a me-
táfora do abutre, a cabeça abaixada, a paisagem desolada Mas,
quanto mais Carter demonstra saber sobre a cena, maior a indig-
nação de seus interlocutores. Afinal, o discurso universitário lo-
caliza no Outro o objeto a-mais-de-gozar. Ele se colocava diante A imagem induz a uma divisão subjetiva Alguém se apresen-
de seus inquiridores como uma espécie de professor, escondendo ta em falta, representado por um dêitico temporal ("até agora").
o fato de que, na posição da verdade, havia ainda um significante Este shifter sugere que haverá um "antes" e um "depois", uma
mestre. A dispersão de posições pela qual esse discurso foi acolhi- transformação de rota ou de destino no sujeito. A culpa ou a ver-
do se expressa nas cartas de crianças japonesas para Carter: gonha são sentimentos que se posicionam como "a verdade da
situação". Depois de me encontrar com esse significante insensa-
"Se eu for pega em uma situação difícil, vou me lembrar de
to, que é o retrato da fome, nada mais será como antes. Produziu-
sua foto e tentar superar a situação" (discurso universitário).
-se um saber que retoma e transforma o sujeito em sua divisão.
s2~ objeto a

is
"Desde que vi sua foto, faço força para comer tudo" (dis-

1 ~ 1 curso do mestre).

A imagem cai como um significante de saber. Ela adverte o su-


jeito para ocorrências análogas, com relação às quais ele saberá
i X~ ª'---
êi__
3 Objeto a-mais-de-gozar
t
se comportar. Contudo, o receptor da mensagem não está dividi-
do, mas esclarecido, prevenido e informado, por isso o sujeito di- A imagem funciona como um significante mestre (Si). Ela or-
vidido se encontra no lugar da produção, subordinado ao objetoa. dena uma determinada prática, comer, que se relaciona com a
Em identificação ao outro, o receptor reage como instância de extração de um a-mais-de-gozar complementar ao que antes es-
memória de gozo. O que fica sob a barra no lugar da verdade, nes- tava excluído, pela ausência de saber sobre os famintos. Com
se caso, é que a imagem é um significante arbitrário, montado por isso, o sujeito sutura sua divisão. Ele aparece como um indivíduo
um conjunto de recursos como enquadramento, distância e de- que obedece, "que faz força", ou seja, que contraria certa disposi-
terminação do tema que é feito para um determinado olhar. Iden- ção de moral ou tendência de vontade, criando valor para o que
tificado com esse olhar, o sujeito nele se aliena ele possui, em contraste comparativo com os que não possuem.

268 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas - Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 269
Talvez seja por isso que em nenhum momento encontramos pelo local, o sentimento de isolamento e abandono é produzido
uma estabilização do discurso da histeria, que se caracteriza pela pelo efeito de enquadramento da fantasia do sujeito.
.1
presença do objeto a no lugar da verdade. Isso sugere que a inter- Mas, ao receber sua própria posição de fantasia, fora de
pretação "você é esse abutre que espreita a criança para se ali- qualquer transferência, o que sobrevém é passagem ao ato, ou
mentar da precariedade da situação" fixou-se como significante seja, a ejeção de si como objeto a. E Kevin Carter se mata, dois
mestre. Mas o que escapa a Carter é que ele mesmo está sendo meses depois de ganhar o prêmio, usando a mangueira da ex-
tomado como uma criança pelos abutres que o acossam publica- -namorada para inflar gás carbônico para o interior de seu car-
mente, sem que ele consiga dizer algo como: Identifico-me com ro. Ele, que havia encontrado na fotografia um novo sentido
esta criança espreitada pelo abutre, sou eu [Kevin Carter]. Regulei para viver, não conseguia mais exercer sua arte. É possível que
a distância que minha fantasia interpôs por meio da objetiva que a situação subsequente o tenha colocado parcialmente "fora
eu escolhi, reduzindo a distância na realidade para uma proximi- dos discursos", como se diz daquele sujeito que recusa se ins-
dade que é produzida por minha fantasia. Mas o que não percebia crever no laço social: ''Fico deprimido com o que vejo e tenho
nesta identificação é que também estava na posição de abutre, pesadelos. Sinto-me afastado das pessoas 'normais', inclusive
aproveitando-me, por meio de minha câmera, da miséria e do de- de minha família. Não consigo estabelecer conversas frívolas
samparo desta criança, gozando assim com seu sofrimento. nem participar delas". O bilhete deixado antes de seu suicídio
Este seria um exemplo de discurso no qual o sujeito dividido assinala esta situação de precariedade:
apresenta-se em posição de agente, sustentando-se na posição
Eu estou depressivo ... sem telefone ... dinheiro para o alu-
"não mostrada" do objeto a como verdade. guel... dinheiro para o sustento das crianças ... dinheiro
Levando adiante a conjectura de que a circulação dos dis- para as dívidas ...dinheiro! Eu estou sendo perseguido pela
cursos tivesse progredido rumo ao discurso da histeria, podería- viva memória da matança, cadáveres, cólera e dor... pelas
mos supor como o discurso do psicanalista poderia intervir na crianças famintas ou feridas ...pelos homens loucos com o
dedo no gatilho, mesmo policiais, executivos, assassinos 27•
situação, colocando o saber no lugar da verdade, chamando
para si a posição de objeto a (abutre) e alocando, no lugar do Ou-
A análise do caso da fotografia destrutiva de Kevin Carter
tro, um sujeito dividido: Talvez a cena toda seja montada por um não estaria completa se não levássemos em conta um quinto
engano. O sujeito não está nem como abutre, nem como criança
discurso, que atravessou o caso de ponta a ponta.
faminta, mas como "merda'; afinal era para isso que a criança ti-
nha ido até lá, e por isso não havia qualquer preocupação dos res- 27 Disponível em: <http://mocaamodaantiga.blogspot.corn.br/2012/01/foto-que-matou-kevin-
-carter.html>. Acesso em: 9 fev. 2016. <www.jn.ptfPaginainicialfMediajinterior.aspx?contenL
ponsáveis em ampará-la. Sabe-se que outras pessoas passavam id=1789058&page=-l>. Acesso em 27 fev. de 2016.

270 1Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas · Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 271
De fato, essa foi a experiência crucial no caso da fotografia da por Greimas. Ambos os autores dividem o discurso em cer-
de Kevin Carter. A revelação de que ele estava explorando a 1 tas conexões ou passagens lógicas; ambos se interessam pela
imagem de uma criança faminta para "vender mais jornais" - transformatividade do discurso; ambos ambicionam estabele-
de que, por trás da foto que deveria resgatar um sujeito estavam cer formalização lógica de sistemas narrativos; ademais, ambos
justamente as engrenagens que produziam o massacre no Su- trabalham com esquemas de modalização - quer seja incom-
dão - introduziu Carter, violentamente, na situação de um su- pleta e aberta, no caso dos quatro discursos, quer seja circular,
jeito dividido, cujos índices são sua surpresa e aturdimento no caso da mutação representada pelo discurso do capitalista.
tanto ao receber o prêmio Pulitzer quanto diante das acusações Tradicionalmente liga-se o estruturalismo lacaniano com a
de que ele deveria ter ajudado a criança em vez de tirar a foto. tradição de Lévi-Strauss, Jakobson, Saussure e Benveniste,
No segundo momento, o discurso do capitalista, com sua sa- mas pouco se tem comentado sobre a influência e proximidade
piência para explorar fatos e significações, extrai uma mais- que existiria entre a teoria lacaniana dos discursos e os forma-
-valia de Carter, fazendo-o passar da condição de explorado - listas, como Propp e Hjelmslev. A teoria do isomorfismo entre
nesse caso, pela indústria da guerra - para a condição de explo- conteúdo e expressão e a ambição de desenvolver uma semânti-
rado pela exploração da indústria subsidiária das notícias de ca estrutural certamente afastam os dois modelos. Contudo, há
guerra. Nesse ponto, o sujeito dividido se vê petrificado e alie- entre Lacan e Greimas um interesse comum pela lógica modal
nado no significante mestre (SJ, posição que já foi descrita por que não pode ser desprezado.
vários autores como a do dependente. Para o autor de Semântica estrutural, o estudo do discurso
É essa intuição de uma situação sem saída, sem alívio dis- presume três camadas de linguagem: o nível profundo (sinta-
cursivo, que ele retrata em suas últimas mensagens. O discurso xe), o nível de superfície das estruturas narrativas (semântica
do capitalista, ao contrário dos outros, não efetua laço social, narrativa) e o nível das estruturas discursivas (semântica dis-
exatamente como vemos em sua declaração de que não conse- cursiva). As estruturas semânticas são analisáveis pelo quadra-
gue manter uma conversação regular, nem mesmo com os do lógico semiótico. Para Greimas, o autor é, ao mesmo tempo,
membros de sua família. narrador e sujeito - duas figuras que se combinam, contingen-
cialmente, para Lacan, no discurso do mestre e no discurso da
3.6. Análise lógico-discursiva do delírio no caso Aimée histeria.
O leitor familiarizado com as diferentes linhagens da análi- A semântica gerativa, ambição maior de Greimas, utiliza ca-
se do discurso terá percebido várias semelhanças entre a teoria tegorias modais (universais), mas faz uma tipologia dos modos
lacaniana dos quatro discursos e a teoria semiótica desenvolvi- de existência, descrevendo estruturas actanciais e microuni-

272 \ Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas \ 273
versos semânticos. Os passos do método semiótica gerativo en- Sobre ele se escreve o quadrado dos predicados, dividido entre
volvem a definição do corpus tendo em vista critérios como a funções e qualificações, permanentes (ser) ou temporárias (ter) 28 :
representatividade (redundância), a exaustividade, a homoge-
neidade (parâmetros da situação), bem como o levantamento Ser (evidência) Parecer
das relações entre denotação e conotação, o predomínio do con-
(segredo) (mentira)
texto metafórico ou metonímico, as oscilações entre funções
(fática, expressiva, referencial, metalinguística) e, também, a Nãoparecer 1 (neutro) Nãoser
redução das variantes de pessoa, tempo, elementos idênticos,
equivalências sintáticas e semêmicas. Ou seja, os critérios de Chegamos, assim, às quatro modalidades narrativas funda-
emprego do modelo explicitados em Greimas são exatamente o mentais que ligam e transformam a relação entre o agente e seus
que está ausente em Lacan, que nos apresenta a estrutura do predicados. Ora, essas relações são aproximáveis dos quatro dis-
discurso, mas não deixa claro como ele deve ser lido, precisa- cursos de Lacan, mas deveriam ser pensadas como quatro narra-
mente na relação entre a circulação, os lugares e os elementos tivas que duplicam os discursos em relação a si mesmos:
do discurso. Aluta O contrato
Lendo Greimas com Lacan se poderia dizer que o primeiro [DiscursodoMestre] [DiscursodaUniversidade]
redefiniria o semblante como uma combinação entre atores e SignificanteMestrecomo SignificantedoSabercomo
actantes. Um actante compreende papéis e gêneros de papéis, insígniado ser insígniadoparecer
definidos narrativa ou sintaticamente, enquanto um ator é o lu- EstruturaActancialdoPoder EstruturaActancialdoDever
gar do personagem, definido por uma semântica e por um dis- Prescrição(ser)
-~~----
Interdição(parecer)
curso. Em suas diferentes esferas de ação, o agente, que inclui A comunicação Adisjuncão
atores e actantes, é também o lugar onde se encontram as estru- [Discursoda Histeria] [DiscursodoPsicanalista]
turas narrativas e as discursivas. Temos, então, um primeiro SujeitoDivididocomoinsígnia Objetoa comoinsígnia
quadrado lógico: donãoparecer donão ser
EstruturaActancialdoSaber EstruturaActancialdo Querer
Agente Permissão(nãoparecer) Facultatividade(nãoser)
Destinatário
Actante/Ator
- -~--------------!------------ ---- ----
28 Nos estudos semióticos, o quadrado da veridicção apresenta, no local onde colocamos o termo
Adjuvante Oponente neutro, o termo falsidade (BARROS, 2001). No entanto, observamos que, através da lógica modal,
a relação entre não parecer e não ser apresenta, pela dupla negação, um aspecto que remete ao
elemento neutro, devido à dupla recusa

2741 Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaníanas 1\nálise Psicanalítica de Discursos: Perspeclh•as Lacanianas l 275
Delimitamos, assim, às quatro modalidades aristotélicas 2) Uma representação de si mesmo formada pelas tensões en-
aplicáveis sobre as ações fundamentais (querer, dever, poder, tre o ideal e o real, que se traduz discursivamente pelas aspi-
saber) que definem os diferentes discursos. Lembremos que rações de realização do sujeito 29 ;
Lacan deduz a modalização dos discursos a partir da negação
3) A integração da constituição da personalidade em termos de
do que cessa de se escrever (ne-cessaire).
estrutura social.
Necessidade Impossibilidade Ou seja, em sua perspectiva metodológica, Lacan integra o
Poder Dever contar [Erziihlung], lembrando que zahlen, em alemão, é contar
Nãocessade se escrever Nãocessadenãose escrever no sentido literário e matemático, à dimensão do apresentar
Possibilidade Contingência [Darstellung]. lembrando que stellen, em alemão, é colocar de
Nãosaber Nãoquerer pé, pôr, sustentar. Isso nos dá a medida de um primeiro proble-
Cessadenãose escrever Nãocessadese escrever ma: contar e documentar, narrar e descrever, apresentar e re-
presentar. Mas, reunindo Darstellung- Erziihlung, encontramos
Ocorre que o quadrado lógico de Greimas emprega o modelo
uma nova oposição, agora com descrever [Beschreiben], que
topológico conhecido como grupo de Klein. Como vimos no caso
contém escrever [schreiben] como radical formativo. Um caso
do método estrutural de análise do mito, Lacan e Lévi-Strauss
clínico deve realizar um conjunto de aplainamentos narrativos
não trabalham com um grupo perfeito, mas com duas monoides
(ordenamento dos fatos, localização de ações e passagens fun-
não complementares.
damentais), discursivos (psiquiátrico, familiar, literário e bio-
Como forma de mostrar que a análise do discurso - nesse
gráfico), conceituais e lógicos.
caso, de inspiração greimasiana- pode ser combinada com a psi-
Daí se poderia depreender que o conceito metodológico de
canálise, propomos um exercício de leitura do caso Aimée, cons-
construção envolva a articulação de diferentes tipos de tempo-
truído e discutido por Lacan em sua tese de doutorado, em 1932
ralidade:
(LACAN,1932/1991). A tese apresenta uma longa discussão de
método centrada na ideia de introduzir um conceito crítico de 1) o tempo narrativo, no qual os acontecimentos do caso preci-
personalidade capaz de superar os impasses entre a psiquiatria pitam-se segundo a épica que lhe é própria (epos);
francesa e a alemã. Esse conceito deveria incluir três condições:
29 "Uma certa tensão das relações sociais" (LACAN, 1932/1991, p. 31); "conflito Ich e Über-Ich"
1) O "desenvolvimento biográfico",sem hiatos, que se traduz, nar- (LACAN, 1932/1991. p. 28); "substituição de um ato moral por urna tensão social", "aparente auto-
rativamente, pela ideia de síntese ou unidade da experiência; nomia do indivíduo é essencialmente relativa ao grupo" (LACAN, 1932/1991. p. 30); "ponto de vista
do social" "é o próprio individual e o estrutural [concreto absoluto]" (LACAN, 1932/1991. p. 320).

276 IAnálise Psicanalílica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 277
2) o tempo rememorativo e reconstrutivo, no qual o sujeito re- contra a vida da atriz com um canivete, em 1931, sendo então
compõe sua história e a cada momento projeta seu futuro levada ao Hospital de Sainte-Anne, onde foi tratada por Jac-
(mythos); ques Lacan. Temos algumas marcações biográficas:
3) o tempo lógico da transferência, no qual se incorporam, se 1885 - Nascimento de Marguerite Pantaine (primogênita de
integram e se modulam as duas formas temporais anteriores Jean e Jeanne Pantaine).
na direção do tratamento (logos); 1887 - Nascimento de Élise Pantaine.
4) o tempo da escrita, coligido para a transmissão e publicação 1888 - Nascimento de Maria Pantaine.
da experiência. 1890 - Morte acidental de Marguerite Pantaine 30 •
A construção de um caso clínico deve resolver o problema da 1891- Nascimento de Marguerite J eanne Pantaine, em Cantal
narração da épica do tratamento, da reformulação mítica de (Dordonha), no período de luto da mãe. A menina recebe o mes-
seus passos, da conceitualização de seus momentos fundamen- mo nome da irmã morta.
tais e da dissolução da lógica transferencial que a comandou. A 1902 - Nascimento de Clovis Pantaine, futuro professor pri-
tese de Lacan é a de que a paranoia é uma forma possível de sín- mário graças ao apoio material e moral de Marguerite.
tese psíquica, uma personalidade - lembrando que não se trata 1905 - Marguerite é indicada para fazer estudos secundários.
de síntese vivida como interior, relativa apenas ao sentimento 1908 - Reprovada para ingressar na Escola Normal; amiga
de si em sua tensão com as estruturas sociais, mas de uma sín- morre brutalmente, inspirando seu romance L 1dylle.
tese que ocorre desde o exterior (Real). 1910 - Torna-se funcionária dos correios - "pau para toda
Marguerite Jeanne Pantaine (1891-1981) nasceu em uma obra" (LACAN,1932/1991, p.173). É transferida para um vilare-
família católica do interior da França. Sua mãe tinha sintomas jo distante. Envolve-se com o "poetastro": "ela não foi para ele
persecutórios e ela sempre sonhou se tornar uma intelectual, senão um lance de aposta" (LACAN, 1932/1991, p. 223).
"saindo assim de sua situação". Em 1910 ingressou na adminis- 1913 - O amor ao poetastro inverte-se em ódio. Transferida
tração dos correios, e, em 1917, casou-se com um funcionário para Melun, encontra C. de la N. (de família nobre que decaiu
público. Grávida de seu primeiro filho (Didier), passou a sofrer socialmente), a quem admira e que inspira as primeiras ideias
com sentimentos persecutórios e estados depressivos. Depois de perseguição. ''Era a única que saía um pouco do comum, no
do nascimento, surgiu uma vida dupla: funcionária dos correios meio de todas as meninas feitas em série" (LACAN, 1932/1991,
e figura-chave de um delírio complexo. Em 1930, escreveu dois
30 "A familia insiste muito na emoção violenta sofrida pela mãe durante a gestação de nossa doente:
romances, um erotomaníaco e outro persecutório. Ela estava a morte da filha mais velha se deveu, com efeito, a um acidente trágico, ela caiu, na frente de sua
mãe, na boca de um forno aceso e rapidamente morreu em decorrência de queimaduras graves"
convicta de ser perseguida pela atriz Huguette Duflos, atentando (LACAN, 1932/1991, p.172).

278 [Análise Psicanalítica de Discursos: Per,;peclivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas [ 279
p. 226). Ela lhe conta histórias e introduz personagens: Sarah Depois é eleita perseguidora - "cristalização hostil" (LACAN,
Bernhardt, Huguette Du:.flos(LACAN, 1932/1991). 1932/1991, p. 156). Foi a primeira a falar em Huguette Du:.flos
1917 - Casamento com René Anzieu (Chalvignac): ciúmes pro- para Marguerite/ Aimée. Ruptura dos laços escolares e religio-
jetivos, frigidez, remorsos, confissões recíprocas. Sua irmã sos. Isolamento e reclusão. O delírio da mãe de Aimée (Jeanne
mais velha vem morar com o casal oito meses depois [ela não Pantaine) é atestado.
pode ter filhos e se encarregará de Didier (exclusivamente até 1923 - Koenigsmark aparece em filme, tendo Huguette Du:.flos
os cinco meses da criança) (LACAN, 1932/1991, p. 234); teme a como protagonista (Grã-Duquesa Aurore).
volta de Marguerite]. 1923 - Segunda gravidez - "volta do estado depressivo" (LA-
1918 - Marguerite lê Koenigsmark, de Pierre Benoit 31• CAN, 1932/1991, p. 156). Nascimento de Didier Anzieu (Me-
1919 - Lê L'Atlantide (Pierre Benoit) e se reconhece retratada lun). Sente-se uma estranha para seu marido, briga com o mo-
na personagem Antirreia. torista que passa "perto demais" do carrinho de bebê. Inicia
1920 - Período de dissipação. Ela "deve ir aos homens"; grande processo para imigrar para os Estados Unidos, onde se tornará
curiosidade pelo "pensamento dos homens" (LACAN,1932/1991, uma "grande escritora". Pede demissão dos correios.
p.165). 1924 - Aimée deixa a casa do marido; Didier fica aos cuidados
1921- Primeira gravidez, desencadeamento do delírio: críticas da irmã; ele é objeto de simultânea preocupação (imaginária) e
de suas ações, previsões de desgraça, sonho com caixões: ''Por descaso (real). Atestados locais: "melancolia com ideias de
que fazem isso comigo? Eles querem a morte de meu filho. Se fuga", "ideias de perseguição à base de interpretações deliran-
esta criança não viver, eles serão os responsáveis" 32• tes", "alucinações auditivas" (polícia!).
''.Arrebenta a facadas os dois pneus da bicicleta de um amigo. 1925 - Reintegrada à administração dos correios e transferida
Uma noite ela levanta para jogar um jarro na cabeça de seu ma- para Paris; visitas declinantes a seu filho, que permanece em
rido; outra vez é um ferro de passar roupa que lhe serve de pro- Chalvignac. O estado de solidão não é benéfico: progride a ela-
jétil" (LACAN, 1932/1991, p. 156). boração delirante 33•
1922 - C. de la N. telefona para Marguerite logo após o parto. 1926 - Encontro com Pierre Benoit para "pedir explicações" 34 •

31Koenigsmark [Reinado]. de Pierre Benoit (1918), conta a história de um jovem professor francês
(Raul) que se apaixona pela princesa alemã (Aurora). O marido de Aurora morre misteriosamen- 33 "Quais eram os inimigos nústeriosos que pareciam persegui-la? Ela não deviarealizarum evento
te na África; Raul torna-se preceptor do filho do Grão-Duque e se aproxima de Aurora por meio grandioso?" (LACAN, 1932/1991, p.158).
de sua dama de companhia. Constitui-se uma intriga amorosa e política em torno da desaparição
do Grão-Duque interrompida pela guerra entre Alemanha e França (1914). 34 "Eu esperei na porta, apresentei-me a ele e ele me propôs dar uma volta de carro pelo bosque,
o que aceitei; durante este passeio, eu o acusei de falar mal de mim, ele não me respondeu, por
32 "Na rua transeuntes sussurram a seu respeito e lhe demonstram desprezo. Reconhece nos jor- fim, tratou-me de mulhernústeriosa, depois de impertinente, e não tornei a vê-lo mais" (LACAN,
nais alusões dirigidas a ela" (LACAN, 1932/1991, p.155). 1932/1991, p.176).

280 1Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1281
1927 - Aimée "acredita ter lido" no Le Journal o anúncio da xinol) em oito dias (LACAN,1932/1991, p. 190), posteriormente
morte de seu filho, "porque sua mãe era caluniadora" (LACAN, assinado por "Jeanne Fontaine" (interrupção de três semanas);
1932/1991, p. 160). No artigo há uma foto da casa em Chalvig- em dezembro escreve O Idi1io,"numa atmosfera febril" (LACAN,
nac, onde ela identifica a imagem de seu filho. Ela procura, sem 1932/1991, p. 176). Reivindica o divórcio, afirma que irá se vingar
encontrar, o número do jornal. dos que acusaram seu irmão. Queixa contra a editora Flamma-
"Um dia, diz ela, como eu trabalhava no escritório, enquanto rion, que se recusa a publicar o livro, e atentado contra a secretária
procurava, como sempre, em mim mesma, de onde podiam vir que lhe transmite a notícia "Se conseguir publicar seus roman-
estas ameaças contra meu filho, escutei meus colegas falarem ces, seus inimigos recuarão assustados" (LACAN, 1932/1991, p.
da Sra. Z. (...) Durante minha amamentação tudo havia mudado 167). Toma objetos de sua família à revelia Queixa pública contra
ao meu redor" "(sentimentos de estranheza, de adivinhação do Pierre Benoit - ele a teria coagido a deixar o marido (LACAN,
pensamento, de transformação da ambiência moral)" (LACAN, 1932/1991). Desenvolvimento do delírio erotomaníaco com o
1932/1991, p. 206). Príncipe de Gales paralelamente à dispersão e concentração do
1928 - Estuda durante todo o tempo disponível (Biblioteca Na- delírio de perseguição: ''Pensei que a Sra Z. não podia estar só
cional); mas, apesar disso, fracassa três vezes no exame para o para me fazer tanto mal impunemente, era preciso que ela fosse
baccalauréat3 5• Assiste Huguette Duflos no teatro e no cinema. apoiada por alguém importante" (LACAN,1932/1991,p.162).
Sofre com "ansiedade onírica[ ...] vê em sonho seu filho afogado, 1931- "A doente 'sente necessidade de fazer alguma coisa' [...]
morto e preso" (LACAN, 1932/1991, p. 160); declara que sua se traduz primeiro pelo sentimento de que falta para com deve-
missão é "realizar o reino do bem, a fraternidade entre os povos res desconhecidos" (LACAN,1932/1991, p.167). Carta ao médi-
e raças" (LACAN, 1932/1991, p. 163). Erotomania: escreve um co: "os jornais prejudicam sua futura carreira ao chamá-la de
soneto por semana ao Príncipe de Gales. neurastênica". Ameaças em muros contra Pierre Benoit - codi-
1929 - Assedia jornalista, tendo em vista a publicação de suas nome Robespierre (LACAN, 1932/1991, p.163) -, pois ele alude
queixas. Insulta e denuncia colegas de trabalho nos correios. à sua vida privada em seus romances: "Que andar, que graça,
Pede um revólver emprestado ao senhorio do apartamento. que pernas" (LACAN, 1932/1991, p. 162). Encenação de Tout va
1930 - Nomeia-se a "a namorada das palavras" e escreve O detra- bien, com Huguette ex-Duflos. Devolução dos romances enca-
tor (dedicado a "SuaAlteza o Príncipe de Gales",codinome O Rou- dernados enviados ao Príncipe de Gales 36 • Tentativa de abrir
um processo contra a escritora Colette. Sarah Bernhardt é in-
35 Baccalauréaté um termo em francês que pode corresponder tanto a passagem do ensino secun-
dário ao ensino superior quanto a entrada e formação no ensino superior em um !Úvelque seria 36 Nota do Palácio: "It is contrary to Their majesties' rule to accept presents from those with whom
equivalente ao bacharelado no Brasil they are not personally acquinted". Buckingham Palace (April, 1931)".

282 IAnálise Psicanalítieade Discun;os: PerspeeUvas Lacanianas - Anáfue Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacaníanas 1283
cluída entre as perseguidoras; a guerra e os infortúnios da so- 1952-53 - Marguerite trabalha como governanta na casa de Al-
ciedade são atribuídos aos perseguidores. fred Lacan (pai de Lacan) e reencontra Lacan.
1931- (18 de abril) Atentado contra Huguette ex-Du:flosno tea- 1975 - Republicação da tese.
tro Saint-Georges (TPM); prisão em Saint-Lazare, mas "Ne-
nhum alívio se segue ao ato" (LACAN, 1932/1991, p.169). Marguerite, renomeada por Lacan como Aimée, era a "única
(B de maio) "Todo o delírio caiu ao mesmo tempo, 'o bom e o a contradizer a autoridade algo tirânica, em todo caso incontes-
ruim"' 37• "Como pude acreditar nisso? A lembrança dos temas tada do pai" (LACAN, 1932/1991, p. 218); por outro lado, "ela
delirantes provoca-lhe uma certa vergonha, um sentimento de nunca estava pronta junto com os outros. Ela sempre estava
ridículo, um sentimento de remorso. [...] Eu fiz isso porque que- atrasada'' (LACAN, 1932/1991, p. 122) e era dada ao cultivo do
riam matar meu filho" (LACAN, 1932/1991, p.153). devaneio (LACAN, 1932/1991). Aimée era discreta; padecia de
(3 de junho) Internada em Sainte-Anne por um ano e meio. certa abulia profissional versus ambição inadaptada (LACAN,
Início das entrevistas com Lacan. Este lhe pede que escreva sua 1932/1991). Lacan tenta caracterizar a paranoia na sua escrita,
história. 38 mas sem sucesso. Ele observa, no entanto, alguns traços discur-
(2 de março) Descoberta do fenômeno da ilusão de memória. sivos: maiúsculas em substantivos comuns, sublinhados e des-
(abril) Lacan descobre que a irmã mais velha é o protótipo da taques, vários tipos de tinta, estereotipias mentais, oscilação
perseguidora. de tom, falta de ritmo interior, sem expressões de aparente ori-
(maio) Lacan descobre que C. de la N. é o primeiro desloca- gem automática imposta, subordinações intrincadas e rodeios
mento em espelho da perseguição. de forma sintática (LACAN, 1932/1991). Seu estilo é marcado
1932 - Apresentação da tese de Lacan. por frases curtas, sentimento de natureza, atitude bovariana,
1938 - Marguerite é hospitalizada em Ville-Evrard (psicose in- sensibilidade infantil, juramentos e pactos, bruscas revelações
termitente). de pensamentos fraternos, alma romântica, toques de regiona-
1943 - Recolhida na casa da irmã Maria (Chaissac ). lismo e ingenuidade: ela sofre de uma intoxicação literária
(LACAN, 1932/1991).
37 "Vinte dias depois, escreve a doente, quando todos já estavam deitados, por volta das sete horas Segundo Maria Rita Kehl (2009), Aimée apresenta quatro
da noite, comecei a soluçar e a dizer que esta atriz não tem nada contra mim, que eu não de-
via tê-la assustado; as que estavam ao meu lado ficaram de tal modo surpresas que não queriam traços da paranoia: (1) experiência visionária, (2) ilusões de
acreditar no que eu dizia, e me fizeram repetir: mas ainda ontem você falava mal dela!" (LACAN,
1932/1991, p.163). memória, (3) delírios de perseguição e (4) delírio de grandeza,
38 Observação de Lacan sobre a escrita de Aimée: "A indeterminação e o maneirismo só se intro-
duzem em sua linguagem quando fazemos evocar certas experiências delirantes, elas mesmas
que se condensam no tema romântico e psiquiátrico do bova-
constituídas por intuições imprecisas e indizíveis logicamente. O ritmo do relato não é retardado
por parênteses ou retomadas" (LACAN, 1932/1991, p.153).
rismo ("o símbolo do próprio drama da personalidade", segundo

~ Anê!ill:ePsicanalilica tle Discursos: Perupeetivas Lacanianas 1285


284 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
Lacan), definido pela exigência social e psicológica de "tornar- Aluta Ocontrato
-se outra pessoa". Vêm daí sua ambição de ser reconhecida [DiscursodoMestre] [DiscursodaUniversidade]
como grande escritora, sua interpretação de que sua vida ínti-
EstruturaActancialdoPoder EstruturaActancialdoDever
ma estava sendo tornada pública, sua confusão quanto à natu-
Prescrição(ser) Interdição(parecer)
reza de sua posição na filiação e sua negação do aspecto coletivo
do ato transformador. DelíriodePerseguição Delíriode Ciúme
Euaamo Euaamo
Vemos então que a formalização de Greimas pode nos aju- Eunãoa amo...Eua odeio Eunãoa amo...Elao ama
dar a entender o raciocínio de Lacan. A situação de Aimée pode
ser assim descrita: A comunicação Adisjunção
[Discursoda Histeria] [DiscursodoPsicanalista]
Agente Destinatário
EstruturaActancialdoSaber EstruturaActancialdo Querer
[Aimée] [Jornais]
Actante/Ator [Editoras] Permissão(nãoparecer) Facultatividade(nãoser)
[Escritora]
DelírioErotomaníaco DelírioMegalomaníaco
Adjuvante Oponente Euaamo Euaamo
Eunãoa amo...ela me ama Eunãoa amo...eu nãoamoninguém
[Príncipede Gales] [HuguetteDufl.os]
[Sra.Z.] [PierreBenoit]
Isso permite extrair a estrutura actancial de cada tipo de delírio
A trama narrativa pode ser organizada da seguinte maneira: segundo o modelo de um grupo de Klein:

Ser (evidência) Parecer D-- D


l
(segredo) (mentira)

Nãoparecer (neutro) Nãoser


r
O que permite entender a lógica transformativa dos quatro
tipos de delírio que estão presentes no caso a partir das negações
modais do enunciado: ''Eu (uma mulher) a amo (outra mulher)":
~

Agora podemos escrever a estrutura dos diferentes delírios de
Aimée:

286 IAnálise Psicamililica de Discun;os: Perspectivas Lacanianas Anruke Psicanalítiea de Discursos: Perspeclivllii Lacanianas l 287
1) Delírio de Perseguição não permite reunir todos os aspectos da experiência clinica que
Eu (umamulher)a amo Eunãoaamo se esperam. A personalidade e o delírio mantêm uma relação de
J~utramulher) ______ _______ _ Eu a odeio exterioridade. Existe em Aimée um esforço de síntese, intencio-
Elameodeia Elanãome ama nalidade e responsabilidade - três atributos que a crença comum
Porqueeu a odeio Elamepersegue
reconhece na personalidade (LACAN,1932/1991) -, mas esse es-
2) Delírio de Ciúme forço, cuja melhor definição é o bovarismo, não deve se confundir
Eu (umamulher)a amo Eunãoaamo com as formações delirantes.
(outramulher)
Elame odeia Elanãome ama A escrita dos delírios comprova, ainda, que uma "definição ob-
Porqueeunãoa amo Elao ama(umhomem) jetiva dos fenômenos da personalidade" (LACAN, 1932/1991, p.
3) Delírio Erotomaníaco 31) deve levar em conta o desenvolvimento biográfico, a tipicidade
Eu (umamulher)a amo Eunãoaamo de reação, a regularidade compreensível, ou seja, a legibilidade do
(outramulher) Elameama delírio. ''No delírio surge uma concepção de si mesmo na qual a
Elameodeia Elanãome ama imagem ideal age como causa eficiente e complexo afetivo, man-
Porqueeleme ama
tendo uma certa tensão das relações sociais [...]" (LACAN,
4) Delírio Megalomaníaco 1932/1991, p. 31). "O conflito entreich [ego] e tÍber-Ich [superego]
Eu (umamulher)a amo Elanãome ama acarreta a substituição de um ato moral por uma tensão social, na
(outramulher)
Eu nãoamoninguém qual a aparente autonomia do indivíduo é essencialmente relativa
Eu amoa mim mesma ao grupo" (LACAN,1932/1991,pp. 28-30).
Elameodeia Elanãome ama,ela o ama A terceira tese que o método de escrita transformativa dos
Porqueé indiferentea mim (umhomem)
delírios permite confirmar é que a diferença entre a "personali-
A formalização da estrutura transformativa dos delírios de dade paranoica" e os "delírios paranoicos" é discursiva. A para-
Aimée, apoiada no modelo greimasiano dos grupos de Klein, per- noia é uma forma possível de síntese psíquica (uma personali-
mitiria corroborar as teses que Lacan pretende defender em seu dade), lembrando que não se trata de síntese vivida como inte-
estudo seminal sobre a psicose. Elas mostram que o uso empírico rior (solipsista), mas de uma síntese que ocorre desde o exterior
e "segundo a experiência comum" (psicologia científica, místi- (Real). A paranoia apresenta uma proximidade entre a perso-
cos, metafísica tradicional) danação de "personalidadeilusória" 39 nalidade e o ideal. Nela o eu se confunde com o ideal de eu ( delí-
rio de grandeza), e assim a "mesma imagem que representa seu
39 Baseado na pesquisa de Dario Negreiros sobre o conceito de personalidade utilizado na tese de
Lacan em 1932. ideal é também objeto de seu ódio" (LACAN, 932/1991, p. 254).

288 IAnálise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Arnili.se Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas 1289
este livro exploramos a variedade de composições

N epistemológicas e metodológicas que podemos en-


contrar entre a psicanálise de Lacan e as aborda-
gens contemporâneas dos discursos. Partimos do discurso
como um conceito dotado de definição necessariamente pro-
blemática; ou seja, qualquer definição de discurso ocorre, ela
mesma, no interior de um discurso. Neste ponto tentamos
seguir a tese lacaniana de que não há metalinguagem, mas
também de que "o mito é o que dá uma formulação discursiva
a algo que não pode ser transmitido na formulação de uma
verdade" (LACAN, 1953/2008, p. 16). O mito, mas também a
literatura, as teorias sexuais infantis da criança, o romance
familiar do neurótico, os delírios, as mitologias culturais e as
ideologias são também gêneros que conferem um suporte
discursivo para a transmissão de um fragmento de verdade.
Característico da perspectiva lacaniana é o reconhecimento
desta espécie de insuficiência do discurso, como aparelha-
mento de gozo e lugar de retorno invertido da mensagem do
desejo, em relação ao real que ele contorna e à verdade que
ele contém sem expressá-la.

Análi,;e Psicanalitica de Di,;cun;us: Perspeelivas Laeanianas 1291


Tentamos mostrar como as implicações epistemológicas termos. Finalmente, trabalhamos com um terceiro nível de
da noção de discurso fazem pensar a psicanálise como um gê-
1 apreensão dos discursos, atinente às posições. As posições
nero especial de teoria, ou seja, não apenas uma representação discursivas formalizam relações entre a cadeia significante e
e um modelo de um estado de coisas, mas um discurso que in- o sujeito, entre o sujeito e o objeto, entre a produção metafó-
clui e organiza duas perspectivas distintas: um método clínico rica ou metonímica da significação.
de tratamento do sujeito e um método genérico de investiga- Tomar as noções de espaço, lugar e posição como primiti-
ção da linguagem. Nossa tendência intuitiva é fazer dessas vas na definição dos discursos traz indiretamente o compro-
duas perspectivas uma totalidade. Foi também presumindo misso que anunciamos, no início, de pensar a clínica da lingua-
essa unidade que a maior parte das críticas à cienti:ficidade da gem como crítica social feita por outros meios. Neste ponto
psicanálise distribuiu-se ao longo do tempo. O critério da prova retomemos a afirmação de Lacan de que a "metafísica é o que
"extraclínica" foi confundido com a "prova clínica" da casuís- colocamos no buraco da política" (LACAN, 1974-75, p. 72).
tica, e esses dois foram tomados de forma homogênea com o Argumentamos que a metafísica sustenta-se justamente nes-
exame de seus fundamentos conceituais ou metapsicológicos. ta unificação entre espaço, lugar e posição. Esta é a língua fun-
Esperamos ter mostrado como essa concepção de teoria damental à ideologia: a cada espaço seus lugares e a cada con-
ajusta-se com dificuldade à realidade da pesquisa em psica- junto de lugares suas posições. O analista de discurso é aquele
nálise. O método psicanalítico é, na verdade, composto por capaz de mostrar que há posições que subvertem lugares, e
um conjunto de estratégias de investigação bastante vasto, que há lugares fora do espaço prescrito por um discurso. Nes-
aplicável a uma gama ainda mais extensa de objetos. Isso te ponto a noção de ato do psicanalista tensiona-se com a de
ocorre porque tais objetos são inseparáveis do discurso que discurso do psicanalista. E é por esse tensionamento - que
os constitui; em muitos casos são apenas efeitos de discurso. abre espaço para a contingência transformativa - que a teoria
Daí a importância de algumas distinções internas ao discur- lacaniana dos quatro discursos não é apenas uma tipologia
so, que exploramos neste trabalho, a começar pela separação dos modos de uso coletivo da linguagem. Dizer que a metafísi-
entre língua e fala, mas também entre enunciado e enuncia- ca é o que colocamos no buraco da política é afirmar também
ção, narrativa e descrição, dito e dizer. Tais separações - que que a política possui estrutura de buraco, ou seja, de antago-
qualificam e, eventualmente, definem um espaço do discurso nismo que impede que "o" social feche-se sobre si mesmo,
- foram combinadas com elementos que definem lugares dis- desconhecendo sua falsa unidade ideológica. Nesse sentido,
cursivos, recortados por significantes, conceitos, noções e nos parece razoável a tese de que o Outronão existe.

Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas \ 293


292 \ Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas
Espaço, lugar e posição são operadores primitivos da topolo- Com isso estávamos menos interessados em advogar que
gia dos discursos; contudo, isso não esclarece qual seria a relação a psicanálise produz uma espécie de síntese unificante das
entre os discursos e os registros. Para tanto argumentamos, nes- ciências da linguagem do que mostrar como a variedade de
te livro, que as separações clássicas - desenvolvidas no âmbito interesses do método psicanalítico pode travar diálogos e co-
do método estrutural - e a sua perspectiva de supremacia do laborações locais com concepções originariamente muito
simbólico deveriam ser cruzadas borromeanamente a outras distintas em termos de linguagem e de discurso. É por isso
perspectivas. Foi assim que introduzimos, localmente, conexões que o pesquisador se vê obrigado, cada vez, a construir, adap-
com o método arqueológico e genealógico de Michel Foucault, tar e circunscrever seu método em acordo com o objeto que
tendo em vista a análise do antagonismo político ou da armadu- ele pretende apresentar, ao sujeito que ele visa reconhecer ou
ra lógica da linguagem real interna aos discursos deduzidos do ao grupo de relações que ele quer formalizar. É por isso, tam-
real. Seguindo esse mesmo princípio, introduzimos elementos bém, que os conceitos de formação, construção e constituição
de abordagens mais preocupadas em estabilizar o recorte da sig- são conceitos sumamente metodológicos em Lacan. Eles ope-
nificação imaginária, eventualmente amparados em métodos ram tanto como operadores clínicos - como se observa em
mais clássicos de extração e estabilização do sentido de textos. expressões como: constituição do sujeito, formação de sintoma
Com esse procedimento tentamos praticar um princípio ou construção da fantasia- quanto em uma versão investiga-
que atravessa toda a reflexão lacaniana, qual seja, a de nunca tiva, no quadro de propostas de formalização de conceitos, de
dissociar a perspectiva antropológica, histórica e linguística escritura da experiência (matemização) ou de análise do dis-
da perspectiva ontológica dos três registros: Real, Simbólico cursos. Posicionamos o discurso como uma dimensão episte-
e Imaginário. O ensino de Lacan efetivamente não se distri- mologicamente intermediária entre o texto e o conceito. Por
bui, como comumente se insiste, em um momento inicial de isso um discurso pode ser objeto tanto de comentário, leitura
supremacia do imaginário, outro onde o registro simbólico e interpretação quanto da decomposição de suas estratégias
seria mais importante, culminando em uma terceira fase, su- de construção, constituição e formação.
prema, determinada pela soberania da ordem do real. Contra Se há um método de investigação em Lacan, este deve ser
essa descrição diacrônica ou anacrônica é preciso pensar caracterizado como um método topológico. Esse método,
uma espécie de lógica interna e permanente da pesquisa la- como vimos, emerge como um modelo conceitual baseado na
caniana que corresponde a essa tensão produtiva e - por que análise do significante em sua dupla articulação sincrônica e
não dizer? - dialética entre a linguagem e os registros. diacrônica, derivado das análises de Saussure. Ele evolui

294 IAnálise Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Lacanianas Análise Psicanalítica de Discursos: Perspectivas Lacanianas l 295
como modelo estrutural baseado na análise da estrutura dos de investigação que pretende construir e analisar o discurso
mitos, formulado inicialmente por Lévi-Strauss. No seu ter- da clínica, mais precisamente a construção de casos clínicos.
ceiro momento ele se apresenta como estrutura linguístico- Nesse ponto um método lacaniano para a construção de ca-
-matemática, conhecida como do grafo do desejo, cuja refe- sos deve ser uma proposição conjectural, uma vez que esse
rência maior é a concepção dialética do desejo e da demanda autor não nos apresenta nenhum modelo concreto sobre essa
combinada com oposições estruturais como significante/ matéria. Por isso tivemos que inferir seus procedimentos da
significado, enunciado/enunciação. O quarto momento do extensiva prática de comentário e interpretação de casos clí-
método topológico em Lacan é representado pela teoria dos nicos de outros autores, principalmente do próprio Freud.
quatro discursos, que inova ao considerar a dimensão do gozo Contudo, Lacan não fez apenas um comentário de casos de
e da economia de poder, no interior dos diferentes tipos de outros psicanalistas, ele criou seus próprios casos, extrain-
laço social. do-os particularmente do mito e da literatura. Nesse sentido,
Contudo, se levamos em conta os desenvolvimentos de ele comportou-se como um autêntico analista de discursos,
Lacan posteriores à teoria dos quatro discursos - nos quais montando seu corpus a partir de homologias e analogias que
se constrói, por exemplo, a teoria da sexuação e a topologia funcionam de forma tão elucidativa quanto comparativa.
dos nós -, percebemos que ele trabalha recorrentemente Aqui também ele conectou o texto e a letra com o conceito e o
com aquilo que ficara excluído ou problematicamente repre- significante por meio do discurso.
sentado pelo método topológico em sua perspectiva estrutu- Como forma de mostrar que um mesmo material textual
ral, a saber, o tempo e a universalidade do conceito. Nesse pode ser objeto de formalizações distintas, apresentamos o
sentido, propusemos uma variante do método lacaniano, que modelo estrutural do mito e o modelo representado pelo gra-
tenta incorporar as conquistas desses últimos momentos de fo, ambos focados no caso do Homem dos Ratos. Como forma
sua obra - que apresentamos, aqui, como método da topolo- de mostrar que o discurso, para Lacan, não se reduz nem ao
gia histórica. textual nem ao verbal, examinamos o caso do fotógrafo sul-
Os seis exercícios das perspectivas lacanianas de análise -africano Kevin Carter e a trajetória discursiva de uma foto-
dos discursos procuram evidenciar a prática destas duas ver- grafia-chave em sua obra e em sua vida. O objetivo, aqui, não
tentes da topologia lacaniana: a vertente antropológica e a foi apenas o de mostrar a teoria dos quatro discursos em ação,
vertente histórica. O problema mais agudo e, quiçá, mais cru- mas tematizar a hibridização e a interseccionalidade que ca-
cial para a pesquisa em psicanálise concentra-se neste tipo racterizam a análise psicanalítica de discursos aqui apresen-

2961 Análh;e Psicanalitica de Discursos: Perspectivas Laca.manas Análh;e Psicanalitica de Dh;cursos: Perspectivas Laca.manas 1297
tada. Nesse caso, o discurso jornalístico cruza-se com o judi- Esperamos que o leitor tenha percebido que há uma hipó-
ciário, e este com o discurso estético; e todos eles cruzam o tese que atravessa este livro consoante à existência de uma
plano biográfico. Aproveitamos para mostrar a afinidade en- espécie de análogo político da ética da cura. Esse análogo tor-
tre a análise do discurso e a desconstrução de dispositivos, ou na a análise do discurso psicanaliticamente orientada a um
seja, formas ou fantasias ideológicas compostas por práticas, compromisso ético, e não uma técnica que poderia ser apli-
regras explícitas e implícitas, coerções e determinações de cada a qualquer material discursivo de forma anônima e in-
sentido, produção e deslocamento de lugares, interpelações e consequente com a relação que se espera de um psicanalista
assujeitamentos, interdiscursos e opacidades, mostradas e diante da linguagem e diante de um sujeito. Afinal, se o que se
constitutivas. O último exemplo de análise do discurso psica- espera de um psicanalista é que ele seja analista de sua pró-
naliticamente orientada, retratado neste livro, diz respeito pria experiência, que isso seja feito no horizonte de subj etivi-
ao único caso clínico escrito por Lacan: o caso Aimée. Ele não dade de sua época, com as instituições e discursos que sobre-
é um caso psicanalítico, mas psiquiátrico. A análise das for- determinam e condicionam sua própria práxis.
mas de transformação do delírio de Aimée é uma conjectura
que leva em conta as modalizações da linguagem, a determi-
nação "gramatical" de sua combinatória, em uma circuns-
tância clínica ainda hoje desafiante. Ela se presta a mostrar
como o método de análise do discurso aqui defendido envol-
ve procedimentos sucessivos e mais ou menos regulares de
narrativização e conceitualização que precedem a formali-
zação lógica e topológica. O uso do grupo de Klein, emprega-
do na análise do delírio, subjaz à teoria dos quatro discursos.
Ele apenas retoma, ainda que de maneira modificada, a topo-
logia combinatória presente no grafo - que, por sua vez, re-
descreve a estrutura algébrica e canônica do mito. Ou seja,
por trás das variações de procedimentos e deriva de concei-
tos, que constatamos no método topológico de Lacan, há uma
curiosa constante que se repete.

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