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DO
X
TOXICOMAIMO
CLAUDE
OLIEVENSTEIN
ri
Título original
Destin du Toxicomane
Claude Olievenstein
Copyright (c) Librairie Arthème Fayard
Destino do Toxicômano
tradução para a língua portuguesa por
Marie Dominique Grandy
Projeto Gráfico/Capa
CLR Balieiro Editores Ltda.
Impressão / Acabamento
IMPRES Cia. Brasileira de Impressão e Propaganda
Direitos Reservados
Nenhuma parte pode ser duplicada ou reproduzida
sem expressa autorização dos editores
para a língua portuguesa
ALMED Editora e Livraria Ltda.
CIP-Brasil. Catalogaçáo-na-Publlcaçáo
Câmara Brasileira do Livro, SP
B ib lio g r a fia .
CDD-616.863
8 5 -13 76 NLM-WM 27O
CLAUDE
OLIEVENSTEIN
Tradução
Marie Dominique Grandy
Apresentação
Haim Grünspun
\
/
ALIÏ1ÊÔ
São Paulo-1985 • Brasil
Apresentação
Haim Grünspun
Protocolo 13
1. A Clínica ................................................................................ 51
2. A Infância doToxicômano ................................................. 79
3. O Idiota da Família ............................................................. * 103
4. Androginia ........................................................................ 131
5. Sofrimento doIndivíduoDesintoxicado .............................. 151
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Protocolo
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2
A Infância do Toxicômano
O estágio do excesso
Vimos o choque da ruptura, e o choque devolvido através da
reação da mãe. É neste ponto que se inicia todo excesso. Em rela
ção a tudo que vinha antes, a sensação, o sentimento vivenciados
são exacerbados. É o evento: imenso. A partir de então, com o
prosseguimento do processo biológico e psicológico de envelhecimen
to, o futuro toxicômano tem nas mãos os pedaços esparsos do
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espelho, e tenta se constituir um ego e uma personalidade. Para
tanto, ele explora todas as dimensões de seu espalhamento. Cada
uma delas remete-o à sua “incompletude”, pois se todas são neces
sárias, nenhuma é suficiente.
Thomas, de cinco anos, é filho de L., que mencionamos acima.
Seu pai A., de 33 anos, é um ex-toxicômano, que agora trabalha
em uma instituição para toxicômanos e não vive mais com a mãe
do seu filho, a qual vem acumulando acidentes demonstrativos.
Thomas já viu de tudo, conhece tudo, inclusive os amantes de sua
mãe. Ele está na praia conosco e sua atividade de jogo frenética.
Mas o que ele nos mostra com orgulho, encorajado pelo pai, é a
dimensão enorme do seu pênis. Na nossa frente, sem vergonha
nenhuma, com cinco anos de idade, ele se masturba várias vezes
e se entrega a um simulacro de relação sexual com sua prima.
Visivelmente, está acostumado com esse tipo de jogo, sem ser repri
mido de nenhuma maneira. Nenhuma lei foi aqui estabelecida, pelo
contrário, o pai — que no entanto resolveu admiravelmente sua
relação com a droga e com a lei — está muito orgulhoso. Thomas
está apenas repetindo algo que ele já fez, e que ele sente como
sendo permitido.
Mais tarde, o menino nos leva para uma cabana que ele construiu
no meio de uns espinheiros; descreve seu apartamento da seguinte
forma: “aqui é a cozinha, aqui o quarto, o banheiro. . . e aqui, é
a farmácia”. É evidente que outra criança não teria pensado em
nos mostrar a farmácia. O que Thomas nos mostra, e que ocupa um
lugar importante na sua vida, é o que ocupa um lugar importante
na vida de sua mãe. Não é apenas um local de cuidados médicos:
é um local fundamental.
Juntando estes fatos: o lugar do “demonstrativo”, aceito, que se
tornou banal, o prazer concedido da masturbação, o orgulho pela
dimensão do sexo (quando se trata de uma criança) e, finalmente,
o peso não habitual atribuído à farmácia, e temos então, refletidos
no menino, os elementos que tiveram uma importância despropor
cional para os pais, elementos que ocuparam — ou ocupam —
grande parte do “agir” do pai e da mãe. Parte suficiente, no míni
mo, para que a criança possa expressá-los sem culpa e sem vergonha,
aos olhos de todos, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
O agir dos pais toxicômanos é o agir de pessoas que se encon
tram numa situação irreversível; eles não podem voltar a um estágio
de fusão; a ruptura nesta hora (de sua infância) é irreparável como
os meios de que dispõem. Ela se define sozinha como impossibili-
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dade de repetição: eles não podem se olhar novamente, como qual
quer outro homem (por exemplo, como o futuro “simples” usuário
de drogas). Sua única alternativa é então a procura “pulsional” de
substitutos. E isto, até que encontrem a droga; daí a pressão lúdica,
as transgressões, até a prática de uma sexualidade vivida como
incompleta e, por isso mesmo, rapidamente desinvestida. Por en
quanto, eles não têm meios de negociar algum possível compro
misso, pois são pequenos demais para apreender, e alienados demais
para poder explicar. São apenas crescidos bastante para sentir a
falta e sofrer com isto.
Frente à falta, a esta falta de caráter arcaico, as únicas armas
que estão à disposição da criança, de uma maneira quase obriga
tória — de tão indizível que é o sofrimento causado pela apren
dizagem das leis familiares e sociais — , são o prazer e o jogo.
Sendo a realidade insuportável, a criança precisa alucinar o ima
ginário infinitamente mais que as outras. E como o tempo vivido
também lhe é intolerável, ela alucina durante um período mais
longo, além do limite normal — quando toda criança distingue o
fantasma da realidade — , até que a droga vai tornar possível o
desvendamento daquilo que foi ocultado, assumindo literalmente o
papel de porta-voz da identidade momentaneamente reencontrada.
E isto ainda mais porque o que aconteceu é para ela “insensato”,
e que a insensatez se não for anulada, pode enlouquecer.
Perante a insensatez, o excesso lhe é imposto; sua memória o
remete apenas a um bloqueio, ao estágio onde a auto-organização
primitiva foi bloqueada, a um fechamento. A crueldade da catás
trofe acarreta o excesso da própria reação e das novas tentativas
de organização. E na medida em que o desvendamento do incons
ciente está parcialmente paralizado, isto se dá através da mobiliza
ção de uma consciência voluntária. Deste modo, quando a alucina
ção deixa de ser possível por causa do peso da ordem, da lei, de
relação, ele procura por todos os meios reencontrá-la — até achar
seus efeitos melhorados na droga, por intermédio desta.
Na sua idade, nesta situação, devido ao bloqueio de todo sistema
de referências, ele não pode utilizar a língua. O discurso não é
possível, e mesmo que o fosse, não serviria para nada, pois todos
os fenômenos que acabamos de descrever são impalpáveis e imper
ceptíveis, apesar de se localizarem in vivo na psique do indivíduo.
Já assinalamos que o jogo constitui a primeira maneira de alu
cinar o imaginário. Mencionamos a “pressão” lúdica. Toda atividade
lúdica tem uma função, mas aqui a função do jogo é particular-
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mente coercitiva: tudo deve se transformar em jogo. A uma situação
de exceção, corresponde a um jogo de exceção. É “jogável” aquilo
que não o é para os outros: o afeto, o sentimento e, é claro, a lei
e seus representantes e representações.
Assim, em um centro de pós-cura que conhecemos, onde residem
rapazes e moças cujas idades variam entre 20 e 30 anos, os filmes
de vídeo que eles próprios fazem têm dois temas principais: o
travestismo e os assaltos a bancos ou a diligências. O próprio meio
ambiente se traveste: é só lembrar o início da moda dos cabelos
compridos, que surgiu em um universo onde a droga era soberana.
Com efeito, o excesso neste jogo se faz notar em suas dimensões
temporais (além do tempo em que se deveria parar de jogar. Ex.: o
mundo “hippie”), em seu travestismo (que mais uma vez sublinha
a identidade impossível), em sua recusa da realidade (sobretudo a
realidade escolar), no hedonismo, enfim, acoplado à recusa de cres
cer — neste mesmo centro de pós-cura, os jovens decoram seus
quartos conforme descrições vistas em livros de contos infantis,
com camas com dossel, cabanas de Tarzan etc.
É claro que com a idade, o jogo torna-se mais complicado, e os
exemplos citados servem apenas de demonstração. O jogo vai então
lembrar na verdade todos os rituais sadomasoquistas: vai-se jogar
de fazer a família sofrer, de fugir, assustar, assustar-se (é impres
sionante, por exemplo, o fascínio que sente o pré-toxicômano pelos
filmes de terror). O jogo torna-se intelectual, racional, mas quando
porventura atinge alguém com crueldade, o indivíduo vivência este
episódio como “um teatro”. Aí reside a desproporção: no desvio
entre aquilo que é vivido pelo indivíduo da situação, e o que é
percebido por seus próximos.
Jogo prolongado, cada vez mais perverso, coercivo: o toxicômano
vive no meio de um turbilhão que se faz e se desfaz, enquanto,
exteriormente, sua forma continua a mesma. Este distanciamento
entre o “percebido” e o “que deveria ser percebido” psíquico é a
causa do sentimento de paranóia — também ele, desproporcional —
que acompanha quase sempre a vivência do toxicômano.
Para a criança, alucinar o real ou viver o imaginário não é o
bastante. Como toda criança, esta também tem relações privilegiadas
com seu próprio corpo. E usa estas relações de maneira tão exces
siva quanto o faz com o jogo. A descoberta do corpo como fonte
de prazer é fundamental. Ela que não é nada, que não tem nada,
para quem o real é incompreensível, para quem a identificação
com as figuras parentais não é nunca inteiramente possível, ela
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tem um corpo, do qual pode obter prazer quando quer, e como
quer. Esta criança, que busca uma repetição impossível, descobre
a possibilidade da repetição do prazer. E vai praticá-la exacerba
damente.
E antes de tudo, é a masturbação que vai adquirir uma impor
tância desproporcional, por sua repetição e sua duração no tempo
(não é raro encontrá-la depois da adolescência, quase sempre asso
ciada ao haxixe, que é uma droga parapubertária). Assim como
não é responsável pela loucura — crença difundida no século XIX
—, a masturbação também não cria a toxicomania; ela constitui a
prática na qual reside a única fusão acessível à criança: a do
concreto de seu corpo. Assim, a criança pode verificar que se corpo
é criação — não somente da possibilidade de prazer — mas da
instantaneidade, no clímax da qual finalmente a angústia da não-
identidade, do ser despedaçado, esfacelado, anula-se. Clímax este
que é uma verdadeira propedêutica daquilo que mais tarde ela
vai fazer com a droga.
Vimos então que a masturbação é repetitiva e que se desdobra no
tempo para que o indivíduo possa estabelecer verificações, o que já
constitui uma desproporção em relação à sua prática. Mas a mas
turbação é ainda mais desproporcional em relação à sua vivência
fantasmada e à “quantidade” do prazer que proporciona; é evidente
que o prazer sentido é enorme, se comparado com tudo que foi
vivido até então pelo futuro toxicômano, e que se resume à angústia,
à incerteza, à instabilidade e à permanente sensação de falta —
enquanto que, durante a prática masturbatória, ele é Um, e com
prazer. Esta dimensão é armazenada então na memória do indivíduo
e vai ser cada vez mais projetada no futuro, enquanto (como com
a droga) a “quantidade” de prazer e de fusão vai diminuindo com
a repetição, preenchendo cada vez menos a falta.
Ao mesmo tempo a pressão moral e social aumentam: o indivíduo
já não pode mais praticá-la sem vergonha e culpa. Deste modo,
com o término da alucinação lúdica e da masturbação — não na
prática (a qual ainda vai substituir por muito tempo na falta de
algo melhor), e sim, no seu poder de preencher a carência — ,
desenvolve-se uma busca compulsiva de algum substituto, que po
derá ser, então, a droga, caso esta seja descoberta.
Porém, apesar deste aspecto de desproporção, a masturbação seria
algo banal se não insistíssemos na Dimensão, a qual, como o tempo
vivido, a instantaneidade ou a “quantidade”, remete a noções que
só podemos comparar a termos da termodinâmica e da cibernética.
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Além da repetição e da duração, o que é exagerado, e até mesmo
exacerbado na prática masturbatória, é a intensidade das sensações
experimentadas. Assim como a criança futura-toxicômana vive sua
relação com terceiros em termos de paranóia, assim como vive suas
relações com o tempo (ver adiante) de maneira específica, assim,
também, seus movimentos de vaivém sobre seu sexo se intensificam
na verificação da própria existência do sexo, e a qualidade das
sensações freneticamente sentidas não pode ser comparada ao que
seria uma atividade sexual com um parceiro. Não é de surpreender
então que este movimento de vaivém sobre o sexo seja mais tarde
projetado, não apenas no vaivém da seringa, mas também, em sua
exacerbação, na "subida” e na "descida” que a droga proporciona.
Este mesmo vaivém tem outro significado importante, assim como
mais tarde a subida e a descida (o "high” e o "down”) — ambos
lembram os momentos de excitação e de depressão do maníaco-
depressivo.
Não é por acaso que introduzimos aqui este conceito de maníaco-
depressivo, usado por Rosenfeld: é o quadro clínico do excesso por
excelência, da fuga para um imaginário completamente megalo
maníaco, mas cujo preço é muito elevado, quando, em seguida, o
retorno à realidade é vivido como ainda mais excessivamente cruel
e inatingível.
Como acabamos de ver, é precisamente isto o que está em jogo
no toxicômano desde sua infância. É o que explica a presença de
elementos de excitação e de depressão no seu desenvolvimento ou,
quando de suas atuações, de elementos equivalentes; o "high” e o
"down” são para a toxicomania os equivalentes desta ciclotimia.
Mas as verdadeiras psicoses maníaco-depressivas são raras na infân
cia e na adolescência. Ao contrário, o que mais comumente impres
siona o clínico, é o aspecto fragmentado, despedaçado dos episódios,
como se fossem tentativas do indivíduo para dissimulá-los, disfarçá-
los. Um dos elementos destes momentos depressivos é, por exemplo,
o grande pânico do adormecer, a extrema dificuldade de ir para
a cama, no escuro, que é freqüente nessas crianças, bem como, no
dia seguinte, a enorme dificuldade para acordar, se colocar "de dia”,
sair do casulo da cama. As atuações suicidas, tão freqüentes nos
antecedentes juvenis do toxicômano, constituem outro elemento
desses momentos depressivos.
Sabemos que esta característica de fragmentação está ligada à
quebra do espelho. Por outro lado, como é o caso também da
masturbação, estes elementos podem ser encontrados em todas as
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crianças. São eliminados normalmente. No nosso caso, não somente
eles não são extintos, como também são vivenciados primeiro, de
uma maneira desproporcional no jogo e através deste — mas já
que a repressão pela aprendizagem da lei não pôde ser efetuada, a
angústia torna-se imensa, de tal modo que estes elementos são man
tidos e cultivados como único modo de ser no mundo. Como toda
tentativa de voltar ao normal desemboca no elemento depressivo
(que é cada vez mais melancólico, e menos depressivo), os elementos
de excitação passam a ser armazenados na memória como únicos
momentos dignos de serem vividos; e mais, passam a ser procurados
voluntariamente para serem vivenciados de novo, a qualquer preço.
Quando a droga está no caminho, há fissão nuclear — está criado
o toxicômano.
Empregamos aqui o termo de fissão nuclear, pois, no campo do
excesso, o choque experimentado, então, é no mínimo tão forte
quanto o da ruptura. É o choque associado da reconstituição da
Unidade no prazer. Ou, mais exatamente, a emergência da anulação
da ruptura, ultrapassada desta vez por outra totalidade, já definida
anteriormente como sendo “um filho que ele teria feito à sua mãe,
e que seria ao mesmo tempo imortal e jamais nascido”. O surgi
mento deste modelo, que lembra o do mutante, conduz toda a
economia psíquica para uma tentativa, em vão, de construção de
um sistema auto-organizador — é então a toxicomania.
Para o conjunto de fenômenos que acabamos de descrever, insis
timos sempre sobre noções temporais: falamos em cinética, instan-
taneidade, excesso, desproporção. Com efeito, a dimensão do tempo
vivido é para nós essencial, assim como^enorme a diferença existente
entre o tempo vivido do adulto e o da criança normal (por exemplo,
um mês não tem a mesma dimensão para um e para outro), existe
também uma grande diferença entre o tempo do toxicômano e o do
homem comum. Tal diferença se inscreve a partir da ruptura. Pode
mos dizer, por exemplo, que para ele a dimensão da ansiedade é
diferente, é desproporcional; é possível encontrá-la na vivência da
instantaneidade, principalmente quando è questão de satisfazer o
“tudo, já”, e na necessidade absoluta de transgredir apesar da
consciência de ter de pagar por isto com uma angústia de culpa
ainda maior.
Esta dimensão está ligada à noção temporal fundamental da im
possibilidade de reprodução dos fenômenos anteriores, e à da irrea
lizável unidade sintética necessária a todos nós. O passado do futuro
toxicômano reveste-se de uma dimensão diferente da de todos os
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outros, pois sua permanência é absolutamente impossível. Não há
sucessão legítima entre passado e presente, nenhum sistema de
referências. Dissemos dimensão, e não ansiedade; dimensão do pas
sado, e não passado. Uma tal dimensão de tempo, informulável, é
pessoal e única, e o seguinte exemplo pode ilustrá-la: A., de 24
anos, toxicômano com múltiplas tentativas de suicídio, incapaz de
suportar a mínima frustração, cuja vida está cheia de inúmeras
atuações, que transpira ansiedade noite e dia, é, no entanto, capaz de
ficar horas a fio pescando com uma vara na mão. Esta pescaria o
traz de volta a momentos felizes de sua infância passados com o
avô: e ele, que é incapaz de tolerar a espera um minuto sequer,
permanece assim durante longas horas. É que o tempo adquire neste
caso uma outra dimensão, deixa de ser fonte de angústia.
Esta dimensão irrecuperável do tempo vivido, ao desvendar a
irredutibilidade da morte, faz com que compreenda mais que os
outros, que não se pode dominar o tempo, pois, como diz Wladimir
Jankélévitch, “mesmo que o último corpo celeste desapareça na
conflagração universal, o tempo continua a passar”.
Para ele, houve conflagração, e o tempo continuou a passar. De
um modo mais marcante que todos nós, ou em todo caso mais
preciso, ele aprende que há um começo e um fim, e isto, apesar de
todas as tentativas de repetição. Vimos que a repetição-verificação
tenta anular isto. Com a droga, ele acredita ter encontrado a extraor
dinária possibilidade desta anulação do tempo vivido. O que é ver
dade, mas apenas por um segundo. “Oh, tempo, suspende o teu
voo!” — tempo suspenso, unidade reencontrada, sensação de calor.
Trata-se mesmo de um paraíso, do paraíso perdido. Porém, como
no caso da maçã de Adão e Eva, é preciso pagar o preço: preço
da inexorabilidade dos efeitos da droga, que acaba, e do tempo
que passa. Como Adão e Eva, o indivíduo sabe que deverá pagar
com a própria morte, pois ele não se tornou Deus. E podemos
dizer agora que a “dimensão” da morte, ou melhor, da consciência
da morte, ocupa em sua vida, principalmente na adolescência, um
espaço desproporcional. Tanto assim que muitas vezes, passada a
angústia da primeira atuação suicida e a primeira transgressão para
o outro lado do espelho, por intermédio de uma espécie de jogo-
suicida, o indivíduo vai repetir com um verdadeiro luxo de pro
gressão suas tentativas de suicídio, até encontrar a droga. E quando
esta não fizer mais efeito, ele vai então com freqüência buscar
uma saída na morte.
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Repetição excessiva do jogo ao suicídio, da masturbação à inje
ção. Mais ainda que a progressão, a repetição é o mecanismo auto-
regulador que o indivíduo encontra para atingir uma finalidade que
lhe escapa, pois a sua finalidade foi desde cedo comprometida —
menos no que concerne a morte.
Podemos acrescentar que o futuro toxicômano tem mais que os
outros o sentimento de ter sido vítima de uma injustiça temporal:
ele sofreu a ruptura, não a desejou; aquela carência inicial não foi
buscada por ele; a onda de choque proveniente de sua mãe parace-
Ihe incompreensível e insuportável. Ele é e será para sempre um
culpado-inocente. E esta culpabilidade-inocência vai ser responsável
pela sua “imoralidade”, que tanto nos escandaliza quando depara
mos com o aspecto aparentemente voluntário de seu comportamento.
Com efeito, a desproporção também está sempre nesta dimensão
moral, na maneira de se interrogar continuamente, de ser espectador
da própria existência, desde o início estigmatizada por uma infâmia
indesejada e não aceita.
O Evento, que para qualquer um de nós é insignificante, assume
para ele uma ressonância incrível; um nada será tudo — o excesso
aplica-se ao microscópico. Porém, a fortiori, também ao macroscó
pico! Cada segundo, cada minuto adquire um valor estranho, estran
geiro, e cada minúscula ferida inflingida ao narcisismo cria estragos
inimagináveis. O indivíduo vivência seu tempo como uma seqüência
de feridas e traumatismos, como a impossibilidade de comunicá-los
a terceiros e à sua família em primeiro lugar.
Trata-se aqui da construção do “espaço ”-tempo. Assim como
também não pôde construir seu “espaço” libidinal e seu “espaço”-
ego, o indivíduo, por mais que tente efetuar a repetição, é incapaz
de organizar o tempo em seqüências orientadas para um futuro.
Seu tempo não é uma vivência em ação com destino ao futuro. Sua
única possibilidade é ser anulado no êxtase do prazer ou no clímax
da emergência, ou então ser vivido na angústia existencial. O tempo
não é organizador nem construtor — mesmo, ou sobretudo, se é
medido pelo envelhecimento biológico, ele só permite a verificação
da “incompletude”. Verificação esta que é tanto mais angustiante
quanto mais marcante se tornar a comparação com os outros. Prin
cipalmente, comparando-se a outros irmãos, ou a outras crianças da
mesma faixa etária com as quais compete. Surge então a tentação
de voltar à imobilidade, de suspender o tempo — as saudades do
tempo arcaico, fetal, caloroso. E somente no “planeta” da heroína,
naquele “útero” xaroposo, o indivíduo vai ser capaz de achar o
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equivalente mais parecido com este estado. Ou então, no caso
daqueles que não podem suportar nem mesmo o resíduo de estado
de vigília suposto por este "planeta”, só resta o instante sutil onde
a ingestão maciça de barbitúricos faz o indivíduo submergir no estado
de coma.
"Oh, tempo, suspende o teu voo!” O desejo é efetivamente esta
suspensão do tempo, ou melhor, da função do tempo que é criar
a descontinuidade. É que, para o indivíduo, as rupturas do tempo
não passam da repetição da perda de si mesmo. A suspensão do
tempo, ela sim, permite o status quo impossível. É preciso que o
tempo não conte mais. Vimos que a alucinação do real no imaginário
lúdico preenche esta função. No exemplo veio acrescentar-se a
parte da lembrança, desproporcional, colecionada à vontade. Esta
força é tão grande que pode literalmente anular sua atuação com
pulsiva constante.
Mais uma vez aparece o papel essencial desempenhado pela me
mória. Raramente os outros homens contabilizam suas lembranças
de infância com tanta intensidade quanto o toxicômano. É que, na
seqüência de traumatismos e carências, qualquer época feliz —
mesmo insignificante para os outros — é vivida como um evento.
Evento este que é igualmente mobilizado e buscado, quase sempre
no temor de que não produza o efeito desejado, para tentar preen
cher a "falta”. Evento repetido, prelúdio da repetição da injeção.
Compreendemos então que por causa de sua insignificância, a
lembrança feliz não pode ser dita, e, conseqíientemente, é incomu
nicável para terceiros, pois se o fosse, sua dimensão poderia parecer
irrisória, isolando ainda mais o indivíduo.
A lembrança não tem aqui uma função nostálgica, não é um
romantismo: é um instrumento ativo, como o jogo e a masturbação.
Desempenha um papel de recarregamento, necessário para que possa
haver pausas na existência compulsiva, sem as quais o indivíduo
ficaria esgotado. A lembrança do tempo feliz vivido organiza a
economia psíquica do futuro toxicômano, assim como o fazem as
outras repetições.
A desorganização provém da interrupção entre todas estas ativida
des, que é fonte de uma angústia insuportável. Para evitá-la, Edgar
Morin afirma ser preciso "um pensamento não inteiramente inves
tido na ação presente, isto é, uma presença do tempo no seio da
consciência”. Esta presença aguda do tempo no seio da consciência,
do tempo passado, do tempo da instantaneidade, do tempo impos
sível de ser repetido, conseqüentemente, esta presença aguda da
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Morte antes mesmo da organização da construção do seu futuro,
vai acabar constituindo a parte dominante da consciência que o
toxicômano tem de sua infância.
Para sobreviver a esta consciência da Morte, só lhe resta fabricar
imaginário. Aliás, é bom notar que, guardadas as devidas propor
ções, isto é válido para todos nós — daí a invenção de Deus.
Podemos compreender agora porque a lembrança da vivência feliz
é mobilizada numa contra-ofensiva contra a presença deste outro
tempo vivido, e porque ela também passa a ocupar um lugar exces
sivo, gerando desproporções nos momentos “high” e “down” do
futuro toxicômano, antes da tomada da droga, quando a lembrança
do seu efeito vai ter uma importância excessiva na memória do
indivíduo.
O paradoxo do futuro toxicômano vai residir então em sua contí
nua tentativa para resistir à morte, ao mesmo tempo em que a
suscita e provoca. O “western” é parte integrante de sua vida, asso
ciando de modo contraditório a ingenuidade da criança que brinca,
e a angústia daquele que sabe que vai morrer.
Será que ressaltamos bastante o procedimento constantemente
contraditório desta criança? Ela é “fusionada”, e não o é; é Uma,
e não é; joga, e não pode jogar; encontra o paraíso, e por isso sua
queda é ainda mais dura; anula o tempo, e o tempo vivido lhe é
infinitamente cruel. Se toda verdade provém do homem, é difícil
imaginar onde estará a sua, já que a ela só cabe duvidar de tudo
e de todos, e em primeiro lugar de si mesma enquanto Unidade.
Vemos então que com um indivíduo assim, a aplicação de qual
quer linha terapêutica ortodoxa seria inicialmente inútil. Constata
mos que é preciso, primeiro e antes de mais nada, restituir-lhe um
tempo — situá-lo nas dimensões de seus semelhantes, no seu tempo
vivido. Mas que também é necessário levar em conta os “high” e
os “down”, e a função de descontinuidade do tempo, o papel orga
nizador da função lúdica, do imaginário em ação. Em suma, deve
mos estar atentos a tudo aquilo que para ela (mais que para as
outras) depende do aleatório das perturbações cinéticas, da comple
xidade irredutível à uma progressão linear encontrada nos outros
homens. Como diz H. Atlan: “é preciso ter uma visão fluida e
móvel na cabeça”, pois assim é a realidade do nosso indivíduo, em
confronto permanente com o momento de sua morte.
Desde logo, se lhe for restituído um tempo de homem normal, vai
poder enfrentar o aprendizado de uma vida que começará, como
para todos nós, pela capacidade de suportar as frustrações e de
100
expressar a culpa de outras maneiras, e não somente através de
atuações.
Podemos prever, porém, a complexidade de tal processo, pois o
indivíduo que se apresenta a nós está sempre por um fio, entre o
“já-quase” e o “quase-não-mais”, naquela instantaneidade digna de
uma jogada de pôquer, onde ele exige de nós “tudo, já”.
3
0 Idiota da Família
129
4
Androginia
150
5
Sofrimento do Indivíduo Desintoxicado
Georges Bataille,
em “A experiência interior”
174