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Estrutura e constituição

da clínica psicanalítica
Uma arqueologia das práticas
de cura, psicoterapia e tratamento

Christian I. L. Dunker

W
/\N IM /IBLUM E
COLEÇÃO ATO PSICANALÍTICO
Conselho científico: Christian Dunker (direção), Nina de Araújo Leite, Dominique
Fingermann, Antonio Quinei, Raul Albino Pacheco, Vladimir Safatle, Nelson da Silva
Jr., Maria Angela Vorcaro, Ana Paula Gianesi, M aria de Fátima Milnitzki, Heloísa Helena
Aragão e Ramirez, Tatiana Carvalho Assadi, Fuad Kirillos Neto, Ronaldo Torres

A Coleção Ato Psicanalítico objetiva tornar público trabalhos de orientação psicanalítica vol­
tados para a reflexão sobre sua prática clínica. Compreende tanto estudos temáticos sobre
grandes figuras da psicopatologia psicanalítica quanto desenvolvimentos de formalização so­
bre a estrutura do tratamento, o diagnóstico e as variedades de intervenção clínica. Inclui-se
neste projeto estudos epistemológicos sobre a história e constituição da clínica psicanalítica,
com ênfase na perspectiva de Freud e de Lacan, privilegiando a interlocução com a filosofia
e a teoria social.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.


Dados Internacionais de Catalogação 11a Publicação - CIP

D93 Dunker, Christian Ingo Lenz.


Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das
práticas de cura, psicoterapia e tratamento. / Christian Ingo Lenz Dunker. —
São Paulo: Annablume, 2011. (Coleção Ato Psicanalítico).
660 p . ; 16 x 23 cm.

ISBN 978-85-391-0271-6

1.Psicanálise. 2. Psicologia. 3. Clínica Psicanalítica. 4. Psicoterapia.5. Cura.


6. Tratamento. 7. Freud, Sigmund (1 8 5 6 - 1939). I. Título. II. Uma arqueologia
das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. III. Série.

CDU 159.9
CDD 156.42

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

ESTRUTURA E CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA


UMA ARQUEOLOGIA DAS PRÁTICAS DE CURA,
PSICOTERAPIA E TRATAMENTO

Projeto e Produção
Coletivo Gráfico Annablume
Revisão
Anna Turriani
Cítpct
Carlos Clémen

Ia edição: agosto de 2011

© Christian Ingo Lenz Dunker

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros


05415-020 . Sao Paulo . SP . Brasil
Tel. 55 11 3539.0226-Televendas 3539-0225
www.annablume.com.br
AG RAD ECIM EN TO S

Depois de orientar teses e dissertações durante alguns anos


e de passar por esta experiência em diferentes circunstâncias,
percebo melhor as amplas repercussões deste tipo de trabalho
na vida de alguém. Não se trata apenas do tempo do qual se
priva os entes queridos de nossa presença, e a presença deles de
nós, mas da divisão subjetiva que transparece na própria elabo­
ração do texto e de uma espécie de diálogo indireto e invisível
com aqueles que nos acompanham: família, amigos, alunos e
pacientes. Daí o sentimento de gratidão e a vontade de que
estes se sintam não apenas representados, mas partícipes de
uma obra coletiva. Agradeço a colaboração, nem sempre tão
silenciosa, de meus filhos, Mathias e Nathalia, fundamental
para desviar-me do tipo de ensimesmamento que um trabalho
como este perigosamente induz. A participação direta de mi­
nha esposa Ana Cristina, capaz de criar um gesto a mais quan­
do tudo o mais parecia improvável, em meio a uma noite sem
fim de datas, impressões e livros abduzidos. Minha querida
mãe, primeira a apontar-me o caminho das letras e a ensinar-
me a arte da confusão e desespero necessários à criação.
A meus queridos alunos e orientandos, especialmente Pau­
lo, Ronaldo, Ana, Abenon, Cecília, Leandro, Jonas, Rafael,
Marcelo e Letícia que me trouxeram perguntas chaves nos
momentos inusitados. Para Amfa Turriani, que com seu “sabre
de luz” tratou as partes mais obscuras do texto. Ao Seminá­
rio das Quintas, sobre a Obra de Jacques Lacan, primeiro na
Universidade São Marcos e depois na USP, que foi o campo
de provas para este trabalho; a todos que dele participaram ao
longo destes dez anos, meu sincero agradecimento. Ao pessoal
do Fórum de Psicanálise do Campo Lacaniano, principalmen­
te Dominique, Tati, Daniele e Helô, bem como aos dedicados
colegas da Rede de Pesquisa sobre Corporeidade (Psicossomá-
tica), minha gratidão pelo acolhimento, incentivo à pesquisa,
além das traduções, ombros e palavras emergenciais. A minha
querida turma da Psico, que depois se desdobrou neste percur­
so inusitado de nosso consultório, Ana Laura, Michele, Con-
rado, Gui e Bia, devo a escuta e a conversa de cozinha mais
produtiva que conheço. À Ana e Micha, pela leitura e apon­
tamentos cruciais no texto, uma gratidão a mais, assim como
a Andressa, malabarista de meus horários. Álvaro Faria, meu
querido amigo, o interlocutor mais exteriormente próximo da
psicanálise que conheço. A Yladimir Safatle, querido amigo
e companheiro de jornadas filosófico-psicanalíticas, devo não
apenas a importância fundamental de seus trabalhos para o
que venho fazendo, quanto a solidariedade generosa de sua
interlocuçao. Aos alunos e viajantes do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip), fruto e efeito
de nossa colaboração.
A Ian Parker e Erica Burman, que me acolheram na Uni­
versidade Metropolitana de Manchester, e com quem discuti
os primeiros passos desta pesquisa, devo a redescoberta do sen­
tido da palavra saudades. Aos antigos novos colegas do IPUSP,
especialmente Lea, Maria Lúcia, Miriam e Helena, agradeço
a paciência, apoio e estímulo para este projeto. As discussões,
contra opiniões, devaneios e sobretudo viagens que este livro
comporta teriam sido inviáveis sem a presença constante de
Contardo. Finalmente devo mencionar a sempre presença da­
queles que me introduziram ao estudo da filosofia e da psica­
nálise: Luis Cláudio Figueiredo e Luiz Carlos Nogueira.
Este livro é fruto da revisão de minha tese de Livre Docên­
cia. Alterações significativas decorreram dos debates calorosos
causados por ocasião de sua defesa. Minha gratidão expressa
às provocações, interpelações, críticas e sugestões destes que
acolheram tão generosamente o texto: Gilberto Safra, Philippe
Willemart, Leandro de Lajonquière, Nelson da Silva Jr. e Raul
Albino Pacheco.
Finalmente gostaria de declarar meu especial agradecimen­
to a Terence Hill, que traduziu e discutiu a versão inglesa deste
livro comigo, com sua infinita paciência e irlandesa solidarie­
dade, bem como a Sergio Fingermann, pela imagem da capa,
ao pessoal da Karnac em Londres, e uma vez mais a Ian e Eri-
ca, em Manchester... afinal, os inventores primeiros da ideia,
naquela fria noite chuvosa, à beira da lareira, em 2001, como
devia ser.
Este projeto não teria sido possível sem a confiança e a
aposta de José Roberto e Eva, da Annablume Editora, a quem
agradeço.
SU M Á R IO

N o ta biblio g rá fica , 13

P re fá c io à e d içã o in g lesa 15

In t r o d u ç ã o ' 19

C a pít u l o 1. A D ú v id a de U lisses 55
1.1. Práticas Narrativas e Formas de Mal-Estar 60
1.2. Etica e Técnica 65
1.3. O Caso Quesalid: Eficácia e Excelência
Simbólica do Xamã 72

2. O R e t o r n o de E m pé d o c le s
C a pít u l o 87
2.1. Empédocles entre a Falta e o Excesso 87
2.2. Hipócrates e o Tempo da Cura 95
2.3. Platão e a Medicina Filosófica 101
2.4. A Clínica na Antiguidade e a Teoria Psicanalítica
do Retorno 104

C a pít u l o 3 . O A t o de A n t íg o n a 115
3.1. O Teatro Terapêutico e a Dimensão
Estética do Sofrimento 117
3.2. Antígona: Catharsis Integrativa
e Catharsis Desintegrativa 123
3.3. Édipo: Saber, Poder e Desejar 129

4. R e t ó r i c a s d a I n t e r p r e t a ç ã o
C a p ít u lo 141
4.1. Persuasão, Convencimento e Convicção 144
4.2. Inventio: Lugares da Interpretação 156
4.3. Dispositio-. Estrutura Temporal da Sessão Psicanalíticalôl
4.4. Elocutio: Paradoxos da Interpretação 168

5. A C u r a c o m o C u i d a d o d e S i
C a p ít u lo 193
5.1. Cura sui 193
5.2. Crítica do poder e Experiência de Mal-Estar 208
5.3. Ascese 222
5.4. Meditação 224
5.5. Memória 229
5.6. Método 231
5.7. Sócrates e a Cura de Alcebíades 233
5.8. A Verdade e a Constituição da Cura 237

6. M o n t a i g n e : o m a is C é t i c o d o s H i s t é r i c o s
C a p ít u lo 251
6.1. A Cura Real 251
6.2. Confissões de Agostinho e Vidas Paralelas de Plutarco 262
6.3. Montaigne: Escrita de Si como Questão 271

7. A M e d i t a ç ã o d e D e s c a r t e s
C a p ít u lo 285
7.1. A Imoralidade da Verdade 289
7.2. Sonho e Loucura na Gênese do Método Cartesiano292
7.3. O Tratamento Lógico do Sujeito 298

8. A C o n t r o v é r s i a d o M é t o d o
C a p ít u lo 311
8.1. O Real e a Constituição do Método Clínico 313
8.2. Método de Tratamento e Método de Investigação 318

C apítu lo 9. A E st r u t u r a do T ratamento P sica n a lítico 3 2 7


9 .1 . P rim eiro T em p o : em e rg ê n c ia do su jeito d o in co n scien te 3 3 5
9.2. Segundo Tempo: Mutação da Transferência 340
9.3. Terceiro Tempo: Separação do Objeto a 343
9.4. Ato e Discurso do Psicanalista 350

C a pít u l o 1 0 . K a n t e o P a to ló g ic o 355
10.1. O Objeto Patológico como Experiência
de Determinação 362
10.2. O Sujeito Ético como Experiência
de Indeterminação 368
10.3. Antropologia e Psicopatologia 373

1 1 .0 N a s c i m e n t o d a C l í n i c a
C a p ítu lo 389
11.1. A Estrutura da Clínica Clássica 400
11.2. Clínica na Psiquiatria 424
11.3. Clínica na Psicanálise 438
11.3.1. Semiologia 441
11.3.2. Etiologia 445
11.3.3. Diagnostica 456
11.3.4. Terapêutica 468
11.3.5. A Subversão Psicanalítica 477

12. H e g e l : o R e a l e s e u N e g a t i v o
C a p ít u lo 483
12.1. Fenomenologia da Experiência Psicanalítica 490
12.2. Senhor e Escravo 503
12.3. Lógica do Real 514

13. A C o n s t r u ç ã o d o C a s o C l í n i c o
C a p ít u lo 537
13.1. Pinei e a Superfície da Cura 547
13.2. Liébault e a Superfície Psicoterapêutica 555
13.3. Charcot e a Superfície Clínica 557
13.4. Freud: o Caso Clínico como Construção
de um Romance 566
13-5. Lacan e os Limites da Forma Romance 570
13.6. O Caso Singular e o Caso Genérico 575
C a p ít u lo 14. L ó g ic a e P o lítiÇ a d a
E x p e r iê n c ia P s i c a n a l í t i c a 581
14.1. História e Topologia 582
14.2. Lacan: o libertador da psicanálise? 590
14.3. Espaço, Lugar e Posição 596

C o n c lu s ã o : C lín ic a , C u r a e P s ic o te r a p ia 607

R e f e r ê n c ia s b ib l io g r á f ic a s 619
N O T A B IB L IO G R Á F IC A

o d o s o s t e x t o s d e F re u d fo ra m c ita d o s a p a r t ir d as

T Obras Completas Sigm und Freud, edição Amorrortu,


tradução de José L. Etcheverry (1988) e cotejadas com a
Sigm und Freud Studienausgabe, S. Fischer Verlag (1989) e com
as Sigm und Freud Standart Edition, tradução de Jaime Salo­
mão, Imago (1983). Quando disponível utilizou-se também
as Obras Psicológicas de Sigmund Freud, tradução de Luiz Al­
berto Hans et alli (2004). Tanto os títulos quanto as passagens
citadas constam em português com tradução do autor. Para as
datas de citação, utilizou-se a padronização (ano/letra) sugeri­
da pela Edição Amorrortu.
Para Lacan utilizou-se as obras em português Os Escritos,
edição Jorge Zahar, tradução de Vera Ribeiro (1998) (coteja­
dos com Ecrits, Seuil (1990) e com Ecrits —a selection, tradu­
ção de Bruce Fink, Norton (1999)) e Outros Escritos, edição
Jorge Zahar, tradução Vera Ribeiro (2003) (cotejados com
Àutres Ecrits, Seuil (2001)). Para as obras sem publicação em
português foram utilizadas diversas fontes, sempre com tra­
dução do autor. As datas da citação foram padronizadas pela
equipe da Coleção Ato Psicanalítico, com fins de facilitar o
trabalho de identificação das obras. Buscou-se utilizar as datas
de primeira aparição, respeitando o valor histórico dos tex­
tos, assim como diferenciar tentos do mesmo ano com letras,
seguindo a hierarquia Seminários, Escritos, Outros Escritos
e outros textos. Ao longo do texto as referências para Semi­
nários, Escritos e Outros Escritos serão sempre precedidas do
identificador Sx, E, e OE respectivamente.
Todos os livros publicados nesta Coleção seguem a mesma
padronização para Freud e Lacan.

14
P R E F Á C IO À E D IÇ Ã O IN G L E S A

Ia n P a r k e r
Manchester Psychoanalytic Matrix

E
s t e liv r o t r a ç a u m a h is t ó r ia d a p r á t ic a p s ic a n a lític a .
Uma história da “clínica” como espaço social circunscri­
to, no qual um ser humano fala com outro e descobre como
tal fala evoca algo sobre a verdade acerca dos envolvidos nes­
ta experiência. Uma clínica que opera como contraponto ao
mundo organizado pelo simulacro, um mundo que parece
convocar cada sujeito a demitir-se de seu desejo, a enganar a
si e aos outros para sobreviver. O que Christian Dunker nos
mostra é que a cura pela palavra (talking cure), que tomou sua
forma no mundo Ocidental depois de Freud, constituiu sua
racionalidade a partir de diversos campos e debates envolvi­
dos nas relações entre linguagem e verdade. Sua genealogia
exaustiva sobre o que significa bem fa la r remonta aos antigos
estudos sobre a retórica, passando pela teologia medieval, pela
história da medicina, pela crítica moderna da subjetividade,
pela literatura, até chegar às investigações filosóficas sobre a
natureza das representações lingüísticas.
Este livro é uma jornada pelas condições de possibilidade
deste complexo histórico, que permitiu ao sujeito se dirigir ao
outro no espaço psicanalítico. Ele dá um passo significativo
para alcançar como Freud - e Lacan, depois dele —conseguiu
estabelecer um lugar na cultura do Ocidente que se multipli­
cou através do mundo. Dunket, em seu magistral relato, acres­
centa a sensibilidade psicanalítica à genealogia da psicanálise,
introduzindo assim outra torção naquilo que nós pensávamos
sobre as relações entre discurso e sujeito. Ele traz para esta
história o argumento crucial sobre a relação entre “espaço”,
“lugar” e “posição” como categorias estruturais para pensar as
relações de poder e de recusa do exercício de poder, que carac­
terizam a política do tratamento psicanalítico. Este ensaio de
topologia histórica mostra como o psicanalista precisa articu­
lar estes três registros de forma a evitar reduzir a psicanálise a
uma psicoterapia de adaptação conformista, a um método de
tratamento de formações patológicas, ou a uma cura ontoló-
gica de suas alienações. Por outro lado, o psicanalista também
não deve esquecer que, na constituição histórica de sua prá­
tica, estas três superfícies estão constitutivamente envolvidas.
Neste ponto, Dunker está no cruzamento entre o que há de
melhor em Lacan e o que há de melhor em Foucault. Ê neste
momento que nos damos conta de como as noções de espaço,
lugar e posição emergem como conceitos centrais do estudo
histórico realizado neste livro.
Alguém poderia dizer que isso é genealogia feita às avessas,
que se contenta em reativar batalhas já vencidas, imperfeita­
mente lembradas e teorias da linguagem ou do sujeito já supe­
radas. No entanto, é só agora, depois do evento representado
pela psicanálise na história das práticas de cura, de tratamen­
to e de terapia, que torna-se possível reconhecer a relevância
formativa das teorias pré-psicanalíticas sobre o mal-estar, a
importância construtiva dos métodos pré-psicanalíticos para
lidar com o sofrimento humano, tendo em vista a constituição
da psicanálise como clínica autônoma e irredutível. Este li­
vro é uma interpretação sobre o espaço psicanalítico que pode
mudar a forma como falamos e pensamos o lugar desta prática
no mundo de hoje.
A clínica psicanalítica, e seu trabalho teórico correlato, cir­
cula entre múltiplos e perpendiculares universos simbólicos,

16
marcada pelo confronto agonístico entre discursos que envol­
vem a psicanálise, mas também a psicologia, a psiquiatria, a
moral, as políticas públicas, a educação e assim por diante. A
Coleção Lines o f Symbolic Series, da Karnac Books, na qual a
primeira versão deste livro foi publicada, enfatiza as conexões
entre diferentes lugares culturais nas quais a psicanálise laca-
niana se desenvolveu, em diferentes formas, com distintas for­
mulações críticas, mas tendo em comum o questionamento da
ideia de que existe uma única e correta leitura e aplicação da
psicanálise. Assim como na Coleção Ato Psicanalítico, da edi­
tora Annablume, na qual o livro aparece agora em sua versão
brasileira, nós nos preocupamos em contribuir para que o tra­
balho reflexivo da psicanálise, que traduz Lacan pelo mundo,
trace um caminho alternativo, entre as tentações metalinguís-
ticas, os apelos de redução imaginária, a demanda em produzir
um olhar complacente sobre a psicanálise e o imperativo de
que a psicanálise precisa ser a mesma em toda parte do mundo
na qual é praticada. A elaboração da psicanálise no simbólico
alcança sua teoria e sua prática, na história e na política de seu
trabalho, em uma variedade de intervenções que tocam o real.

17
INTRODUÇÃO

Não é de se espantar que não existam dois his­


toriadores ou dois clínicos que tenham a mesma
experiência, e que discussões sem fim sejam fre­
qüentes à cabeceira do doente.
Paul Veyne

E
m 1 8 9 0 , F r e u d r e d ig e u m p e q u e n o a r t i g o p a r a u m m a n u a l
de medicina no qual advoga benefícios e importância dos
tratamentos psicológicos realizados por meio das palavras.
Este é um dos textos fundadores da psicoterapia tal qual a con­
cebemos hoje, relativamente distinta dos tratamentos da alma.
Tratamento Psíquico —Tratamento da Alma [Psychiche Bahan-
dlung (Seelenbehandlung)] aparece em uma obra de divulga­
ção, a Gesuntheid (Saúde). Nas suas sucessivas reimpressões
percebe-se claramente o estado embrionário da disseminação
cultural e do reconhecimento social das práticas psicoterápi-
cas. A retórica deste artigo oscila entre a exigência e necessida­
de da abordagem científica das causas dos estados patológicos
e os aspectos históricos das práticas de cura pela palavra. Em
torno desta consideração histórica levanta-se o problema da
eficácia de técnicas psicoterápicas, práticas de sugestão, influ­
ência e hipnotismo. A passagem do tratamento da alma (See-
lenbehandlung) ao tratamento psíquico (Psychiche Behandlung)
representa uma transição necessária para o aparecimento da
psicanálise. Em grande medida este livro é uma investigação
sobre o que resta dos tratamento da alma na época dos tra­
tamentos psíquicos. Uma espécie de reedição modificada da
pergunta que Freud se fazia em 1890.
A definição do que vem a ser psicoterapia ainda hoje é obje­
to de confusa classificação, em variados critérios, seja pela sua
orientação teórica, por seus critérios de habilitação, por seus
fins ou por sua eficácia diferencial. Sua afinidade circunstan­
cial com práticas mágico-religiosas, com estratégias científicas
ou com visões de mundo particulares combina-se com um
amplo dispensário de técnicas (corporais, grupais, farmacoló-
gicas, pedagógicas). Algumas parecem melhor justificadas que
outras. Consideremos a psicanálise uma forma de psicoterapia
ou não, o fato inarredável é que Freud tem papel fundador e
inaugural nesta epopeia moderna das psicoterapias.
Não se pode dizer que antes de 1896 a psicanálise já estivesse
estabelecida como método de tratamento1. No entanto Freud
recebia pacientes e acompanhava tratamentos há pelo menos
dez anos. Do serviço de psiquiatria com Meynard (1883), aos
experimentos com a cocaína (1884); dos estudos com Charcot
(1885) ao trabalho no Instituto de Doenças Infantis (1886) e
do emprego da eletroterapia e do hipnotismo (1887) ao estu­
do clínico sobre as afasias (1891) há, na trajetória formativa
de Freud, uma recorrente combinação entre experiências de
observação e experiências de tratamento psíquico.
Portanto, antes de se tornar psicanalista, Freud era um
clínico e um psicoterapeuta. Clínico refere-se aqui principal­
mente ao paciente e metódico exercício de observação, descri­
ção e comparação de fenômenos. O clínico é, sobretudo, um

1. A primeira aparição da expressão “psicanálise” ocorre 110 artigo A h e r a n ç a e a e t i o lo g ia


d a s n e u r o s e s (1896a).

20
leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia e
organizam uma diagnostica de forma a justificar as escolhas de
tratamento (a terapêutica). Esta conotação pode soar estranha
se lembrarmos que o clínico é também um prático e que sua
figura descende do cirurgião barbeiro, do médico de família
ou do profissional liberal, cujo habitat natural é o consultório
e antes disso, a casa ou a rua, não o hospital ou a universidade.
Ocorre que esta antiga e pertinente acepção do termo “clíni­
co”, como praticante da arte da cura, é anterior à formação
do dispositivo clínico moderno, que se estabelece apenas em
fins do século XVIIL A partir de então o saber proveniente da
experiência, relativamente assistemático e sujeito a regras de
transmissão pessoais, artesanais e idiossincráticas, incorpora-se
a uma nova forma de racionalidade.
O clínico, no sentido da ciência médica moderna, deve
submeter sua prática à primazia do método de tal forma a fa­
zer corresponder, mas não eqüivaler, as regras da investigação
científica às regras da condução do tratamento. Sua intuição
do objeto mórbido se constrange à descrição universal das for­
mas do adoecer (diagnostica), ao código comum de suas des­
crições (semiologia) e a remissão de seus efeitos às suas causas
(etiologia). Quando afirmo que Freud era um clínico e um
psicoterapeuta, isto se presta a indicar seu lugar estratégico no
movimento das disciplinas médicas, nesta operação de conver­
são da “clínica antiga” a “clínica moderna”:

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropato-


logistas, fui preparado para empregar diagnósticos locais
e eletroprognósticos, e ainda me causa estranheza que os
relatos de casos que escrevo pareçam contos e que, como
se poderia dizer, falte-lhes a marca da seriedade da ciência.
(...) Os casos clínicos desta natureza devem ser julgados
como psiquiátricos; entretanto possuem uma vantagem
sobre estes últimos, a saber, uma ligação íntima entre a
história do sofrimento do paciente e os sintomas de sua
doença - uma ligação pela qual ainda procuramos em

21
vão nas biografias das outras psicoses. (Freud & Breuer,
1895d,p. 174) !

Percebe-se como Freud interpretava esta passagem de neu-


ropatologista à psicoterapeuta pela introdução do elemento
histórico: a história do sofrimento do paciente, a biografia das
psicoses. Psicoterapeuta, considerando-se a acepção da época,
é uma designação mais genérica do que clínico. Compreende
um campo difuso de práticas curativas que vão do tratamento
moral, ao magnetismo animal, da metaloterapia às práticas de
purificação, incluindo um leque de compromissos com dis­
cursos religiosos, pedagógicos e místicos. Talvez seja a convi­
vência com este campo heterogêneo de narrativas que o habi­
lite a contar, interpretar e raciocinar em termos da história dos
sofrimentos do paciente.
O psicoterapeuta na virada do século XIX francês é alguém
principalmente interessado na eficácia de sua ação. Eficácia
regulada pela avaliação subjetiva do próprio paciente, e tam­
bém do público que o acompanha. As hipóteses causais e a
descrição dos sintomas lhe dizem respeito na medida em que
podem contribuir para estes efeitos no âmbito do assentimen­
to do paciente e do incremento de sua fama de terapeuta. Para
o clínico, ao contrário, as impressões subjetivas do paciente
sobre seu próprio estado, sua origem ou causalidade, são irre­
levantes senão perturbadoras. O paciente deve relatar e deixar
ao médico a interpretação dos fatos. Sua história clínica, obti­
da pela anamnese, deve ser traduzida na forma de signos, sin­
tomas e síndromes segundo um vocabulário convencionado e
de pretensão universal. Para os psicoterapeutas, ao contrário,
a forma de apresentação do sofrimento, segundo a nomeação
do próprio paciente, em seu sentido popular e local, é o crivo
da expectativa de cura. Ele age transformando a teoria da cura
e da doença, que o paciente carrega consigo, absorvendo-a em
uma narrativa plausível para o paciente. Portanto, de maneiras
distintas, tanto o psicoterapeuta quanto o clínico são espe­

22
cialistas na arte da inversão da expertise. Isso significa desqua­
lificar o saber do paciente (reconhecendo sua dignidade no
caso do psicoterapeuta) e em seguida transferir o saber para o
agente do tratamento. Saber do qual se faz seu representante
impessoal, no caso do clínico, ou seu agente direto e pessoal,
no caso do psicoterapeuta (Nathan, 1996).
Um decreto francês datado de 1803 estabelece as regras
para a legitimidade da prática médica separando-a dos char­
latões ou curandeiros ilícitos, em nome da segurança da po­
pulação. Em 1838 ocorre a regulamentação da psiquiatria.
Mas é só em 1872 que o termo psicoterapia é utilizado, pela
primeira vez, por Daniel Tuke. Ele é popularizado por Ber-
nheim em um texto de 1888, do qual Freud fez a tradução
para o alemão (Roudinesco, 2005). Há, portanto, um hiato
de 69 anos entre a legitimação social-j uridica do clínico e a le­
gitimação científico-universitária do psicoterapeuta. Este hia­
to exprime a dificuldade em assimilar ao campo estritamente
clínico aquilo que caracteriza a eficácia das psicoterapias, ou
seja, a importância da autoridade pessoal do psicoterapeuta
sobre o paciente. As psicoterapias são tratamentos baseados na
influência ou relação entre paciente e terapeuta. O tratamento
clínico, ao contrário, toma a influência como um elemento
adjuvante operando sobre causas ou mitigando efeitos que
são, a princípio, independentes da forma como o paciente os
concebe ou de como a cultura popular os interpreta e legitima.
Assim, a noção de autoridade pessoal associada à figura do
clínico em sua acepção antiga, torna-se um obstáculo para a
fundamentação científica das disciplinas médicas. Para estas o
programa epistemológico depende da transferência da autori­
dade da pessoa para a autoridade impessoal do método:

A expectativa con fian te (glãubige E rwartung) com que ele


[o paciente] vai ao encontro da influência direta de uma
providência médica depende, de um lado, da extensão de
sua própria ânsia de cura (G enesung), e, de outro, de sua

23
confiança em ter dado o|passo certo para isso, ou seja,
de seu respeito p ela arte m édica em gera l; depende ainda
d o p o d er que ele atribu i à pessoa do m édico, e a té mesm o
da sim patia p u ra m en te hum ana q u e este desperta nele. (...)
Assim, tanto naquela época [Antiguidade] quanto hoje, a
pessoa d o m édico era um a das con dições p rin cip a is p a ra p r o ­
m over no d oen te o estado psíq u ico p ro p ício a cura {Heilung).
(Freud, 1890a, p. 123 [grifo nosso])

O trecho faz referência à ideia de cura duas vezes, não obs­


tante, utiliza termos distintos para isso (Genesung e Heilung),
mas evitando palavras diretamente disponíveis para isso em
alemão: Kur ou Sorge. Examina-se assim a composição da ex­
pectativa de cura. Retenhamos a sutileza da expressão glãubige,
que provém do verbo glauben, ou seja, crença ou convicção.
Erwartung, remonta ao verbo warten, ou seja, espera. O con­
junto nos conduz à cura como capacidade de espera - aliás, de
onde vem o termo esperança —acrescida de crença e convicção,
mas não necessariamente fé. Esta atitude, que o texto reputa
favorável ao tratamento {Behandlung), é composta por dois
aspectos: (a) o desejo de sarar, de encontrar a saúde (Genesung)
e (b) o reconhecimento de correção da escolha, de um médico,
deste médico. O sinal que verifica este segundo aspecto é a
simpatia puramente humana irein menschlichen Z uneinigung).
A expressão é curiosa, pois sugere que haveria uma simpatia
não puram ente humana. Isso sem falar na expressão Zuneini­
gung, que contém a ideia de einigung, ou seja, unificação (ein,
um). Mas ao final do trecho há uma mudança de termo. Em
vez de reencontrarmos a ideia de saúde e saramento {Gene­
sung), aparece a expressão Heilung, que nos remete à antiga
tradição da salvação, das curas mágicas {healing) e de todo o
universo pré-moderno da cura. Se tudo gira em torno da pessoa
do m édico (Artzes Persorí) vemos que esta pessoa se decompõe
em referências distintas: a arte, a formação e a ciência médica
que constrói uma expectativa de saúde {Genesung), da qual
este médico é um representante; a força da antiguidade desta

24
expectativa de salvação (H eilung) e a possibilidade de manter-
se nesta espera com alguma convicção, ou seja, de ser capaz
de trabalhar e incluir sua própria expectativa no processo de
cura ou cuidado (Kur), o trabalho de deixar-se cuidar. A ideia
de salvação (Heilung) decompõe-se ainda, ocasionalmente, em
uma noção muito importante para a terapia, a saber, o resta­
belecimento (Herstellung). Reestabelecer-se, estabelecer-se no­
vamente, voltar ao ponto em que se estava estabelecido, é uma
ideia que liga, originariamente, o adoecer com a experiência
da perda de lugar.
Apenas para mostrar como esta problemática não fica res­
trita a este texto seminal examinemos brevemente como Freud
refere-se à prática psicanalítica em um de seus textos de ma­
turidade. Em Observações sobre Amor de Transferência (1915a,
pp. 163-167), encontramos afirmações como: a transferência
dificulta o desenvolvimento da terapia psicanalítica (psycho-
analytischen Therapie), mas pode ser conciliável com a cura
(Kur); em caso de enamoramento pelo analista o paciente
pode renunciar ao tratamento psicanalítico (psychoanalytis-
che Behandlung), mas isso jamais prestará uma contribuição
tão boa ao restabelecimento (Herstellung) do paciente; isso
pode não parecer auspicioso para a cura (Kur) uma vez que
o paciente perde o interesse no tratamento (Behandlung), e
pode declarar-se são (gesund, adjetivo derivado de Genesung);
o analista menos experiente terá dificuldade de manter a situ­
ação analítica (analytische Situation) ou achar que o tratamen­
to (Behandlung) chegou efetivamente ao fim. O tratamento
psicanalítico se constrói sobre a verdade (psychoanalytische
Behandlung aufW ahrheitkeit aufgebaut ist) e a cura (Kur) tem
que se realizar sob abstinência. Corresponder ao amor do pa­
ciente é uma derrota para a cura (Kur) e uma diminuição da
influência do tratamento (Behandlung)', mas há pacientes que
permanecem inexoráveis em serem correspondidos ou em
suas pretensões de vingança contra os interesses da cura (Kur).
Tanto os enamoramentos dentro do tratamento psicanalítico

25
(,analitischen Behandlung), qtfanto fora da cura analítica (ana-
litische Kur), assemelham-se aos fenômenos anormais da alma
(abnormale seelischen Phãnomene). O enamoramento aparece
quando se introduz o tratamento psicanalítico (analytischen
Behandlung) para a cura das neuroses (H eilung der Neuro­
se). Em suma a psicanálise não é um método de tratamento
(.Behandlungsmethode) sem perigos ou riscos (harmlosen). Ou
seja, nem uma página sequer, deste que é provavelmente um
dos textos mais importantes de Freud sobre a prática da psica­
nálise, sem a oscilação de termos em torno do tratamento, da
cura e da terapia. As oscilações entre os resultados diferenciais
de cada uma destas vertentes da prática são notáveis. Surgem
insistências, como a que liga a cura (Kur) ao anímico (alma), o
tratamento (Behandlung) ao método e a terapia (Therapie) ao
restabelecimento e à técnica. Infiltram-se nesta variação certos
contextos diferenciais: a autoridade do médico, a eficácia do
tratamento, a confiança na cura.
Observemos que a noção de autoridade pessoal, excluída
do programa metodológico das ciências médicas, encontrará
ampla recepção no quadro das ciências sociais neste mesmo
período. Neste hiato entre a instituição jurídica da medici­
na e o reconhecimento universitário da psicoterapia emerge
uma questão na filosofia política. Torna-se um problema saber
como a autoridade jurídica se transfere para os indivíduos e
inversamente como a autoridade dos indivíduos pode solapar
a autoridade instituída. Noções político-teológicas tais como
carisma, influência, magnetismo, sugestão e relação pessoal
(;rapport), noções chaves para o nascimento da psicoterapia,
tornam-se o foco da discussão sociológica sobre a autoridade.
Uma pergunta corrente em meados do século XIX diz respeito
à possibilidade de que uma pessoa, pela força de sua persona­
lidade ganhe poder e apareça como um legislador legítimo,
como um líder carismático, um artista de talento ou um cien­
tista genial, em vez do direito adquirido ou pela promoção den­
tro das regras burocráticas (Sennett, 1973, p. 332). Sociólogos
como Weber (1864-1920), historiadores como Tõnnies (1855-
1936) e teóricos da democracia como Tocqueville (1805-1859)
indagavam-se sobre as origens desta transmutação do indivíduo
como valor. Trata-se de uma espécie de anomalia que torna
alguém não apenas uma pessoa dotada da força de reconheci­
mento da comunidade de origem a que pertence, ou ainda de
um indivíduo que pela habilidade e engenho se faz reconhecer
na massa de anônimos das comunidades artificiais e nem mes­
mo de um sujeito que pelo exercício das faculdades universais
da razão, da linguagem ou das trocas humanas realiza-se em
uma obra comum. A anomalia desta nova forma de ser alguém,
de constituir uma autoridade pessoal dotada de força e expressão
universal, remonta ao fato de que ela aparentemente contraria
as estratégias de reconhecimento das quais provêm e nas quais
se origina. Como no caso dos líderes que são pessoas tão de­
masiadamente humanas que despertam a perigosa simpatia não
puram ente humana. Ou ainda do artista que na expressão de
sua singularidade alcança o universal. Isso para não mencionar
o grande herói sem qualidades, aquele que tal como ninguém,
mostra-nos o para além do humano no homem. Vê-se assim
como a noção de personalidade surge simultaneamente como
uma noção política e psicoterapêutica.
Benjamin Rush, fundador da psiquiatria americana e sig­
natário da Declaração de Independência daquele país, nos ofe­
rece um ótimo exemplo de como a estratégia psicoterápica,
desde as suas origens, implica em uma tática de poder. Eis suas
recomendações para encontrar-se com um paciente: “Olhe-o
nos olhos até desconcertá-lo, há chaves no olho. Um segun­
do meio de fazê-lo obedecer é através da voz. Em seguida o
semblante deve ajustar-se ao estado da mente e a conduta do
paciente” (Zaretski, 2006, p. 27).
O olhar, a voz e o semblante são categorias que nos acostu­
mamos a encontrar na análise da formação dos regimes disci-
plinares e nas táticas de poder sobre os corpos e pelos discursos.
A crer na estreita relação entre a constituição do dispositivo

27
médico e psiquiátrico e a ifivenção de uma nova forma de
poder, baseada na autoridade institucional e na confiança no
método, sugerimos que a distinção entre psicoterapia e clínica
reside em duas estratégias distintas, duas formas-poder.
E comum acentuar a importância da experiência de Freud
com Charcot em seu período de formação junto à Escola de
Paris. Charcot era, antes de tudo, um clínico. Suas questões
passam, por exemplo, pela comprovação de que a histeria po­
deria acometer o sexo masculino, pela possibilidade de um
diagnóstico diferencial entre histeria e epilepsia ou ainda
pela minuciosa descrição das quatro fases do ataque histérico
(Charcot, 2003). O emprego do hipnotismo por Charcot en­
fatizava a possibilidade de simular os sintomas histéricos, não
de curá-los. Era um método de investigação não um método
de cura. Vê-se assim como as duas acepções de clínica, antes
apresentadas, cruzam o caminho de Freud. Charcot é um clí­
nico moderno, pois emprega o método clínico de investiga­
ção, baseado em inquérito, descrição e intervenção controlada
sobre a gênese e transformação dos fenômenos patológicos. E
nesta direção que Freud comenta sua experiência pessoal com
Charcot:

(...) considerava o hipnotismo uma área de fenômenos que


ele submeteu à descrição científica, tal como fizera muitos
anos antes, com a esclerose múltipla e com a atrofia mus­
cular progressiva. (...) sua mente leva-me a supor que ele
não consegue descansar enquanto não descreve e classifica
corretamente algum fenômeno que o interesse, mas dorme
tranquilamente sem ter chegado á explicação fisiológica do
fenômeno em questão. (Freud, 1886/1956a, p. 42)

Foi na herança do ensino de Charcot que desenvolveu-se


a tradição clínica francesa de psicologia, cujo maior expoen­
te foi Pierre Janet. Atento aos fatos, Janet era um especialista
em descrições clínicas e no levantamento de regularidades psi-
copatológicas. Seguindo a tradição iconográfica, que incluía

?8
o uso do desenho e da fotografia para capturar as formas de
apresentação da histeria, Janet dedicou-se ao minucioso tra­
balho de compilar narrativas clínicas. Formalizando o méto­
do clínico, que vira em ação nas mãos de seu mestre, Janet
exemplifica o contexto de cientificização da medicina e por
extensão da Psicologia. Janet foi contemporâneo de Freud em
sua experiência na Salpêtrière e o vienense sempre considerou
a Escola de Paris como sua principal concorrente teórica.
Menos valorizado que a aprendizagem com Charcot são
as pequenas incursões que Freud fez, principalmente ao leste
da França, para conhecer melhor as técnicas de hipnotismo
e encontrar figuras como Liébeault e Bernheim. Autênticos
“curadores de almas” eles declaravam-se capazes de aliviar o
sofrimento pelo poder da relação pessoal (rapport), da suges­
tão e do hipnotismo. A psicoterapia como um movimento de
expressão popular, exposto à crítica permanente de charlata­
nismo, impregnou pejorativamente o termo, especialmente na
França (Roudinesco, 2005). Contribuiu para isso a figura de
Anton Mesmer, psicoterapeuta que baseava seu programa de
cura no magnetismo animal, energia fiuídica que ele afirmava
evadir-se dos corpos causando as doenças. Mesmer colocava li­
malhas de ferro sobre uma mesa giratória na qual jazia o corpo
de belas senhoras da aristocracia europeia promovendo autên­
ticos espetáculos de cura.
Freud não deixou de cruzar seu caminho com outros psico-
terapeutas, como Fliess (para alguns o analista de Freud), Gro-
deck (o pai da psicossomática) e Oskar Pfister (o pastor peda­
gogo). Note-se que no caso de Fliess a noção de psicoterapia
inclui práticas materiais como cirurgias no nariz, órgão fonte
e regulador das neuroses para este autor. No caso de Groddeck
dá-se o inverso, ele alegava que suas representações teatrais
coletivas, entre pacientes e médicos, poderiam agir sobre as
afecções orgânicas e psíquicas das mais diversas. Para Pfister a
psicanálise mostrava potencial para renovar o antigo tratamento
moral sem alterar substancialmente seu enquadre educativo e a

29
situação de aconselhamento 4a consciência. Freud cede nos três
casos, mas não sem reformulações cruciais: admite a hipótese
da bissexualidade —sugerida por Fliess —mas retira sua conexão
nasal; introduz o conceito de Id - empregado por Groddeck -
mas integrando-o a uma teoria da pulsao; e concede designar a
psicanálise como uma pós-educação - acolhendo as expectativas
de Pfister - mas convidando a uma reflexão sobre o que sig­
nifica educação. Este período, no qual se pode designar Freud
como um clínico e como um psicoterapeuta foi lembrado, vinte
e quatro anos depois, da seguinte maneira:

(...) uma época heróica, ao splendid-isolation não faltam


vantagens nem atrativos. Não tinha nenhuma bibliografia
que ler, nenhum oponente mal informado a quem escu­
tar, não estava submetido á in flu ên cia alguma nem urgido
por nada. Aprendi a refrear as inclinações especulativas
e, atendendo ao inesquecível conselho de meu mestre
Charcot, a exam inar de novò as mesmas coisas tantas ve­
zes quanto fosse necessário para que elas, por si mesmo,
começassem a dizer algo. (Freud, 19l4d, p. 21)

A ênfase na observação faz prevalecer a experiência clínica


sobre o contato com a psicoterapia, mas a alusão à inoperância
de influências é falaciosa: Freud vivia agudamente a influência
de Fliess. O fascínio pela personalidade deste otorrinolarin-
gologista de Berlim é patente na correspondência entre am­
bos (Masson, 1986). Compreende-se que, neste fragmento,
Freud tenha evitado as referências à psicoterapia, mas isso não
elimina o texto de 1890. O título deste artigo - Tratamento
Psíquico ( Tratamento da Alma) —assinala, como vimos, uma
ambigüidade entre alma {Seelè) e psíquico (Psychische). O dois
termos são precedidos pela palavra tratamento (Behandlung).
Diante do exposto seria simples associar a noção de alma à
psicoterapia e a noção de psíquico à nova clínica emergente,
de aspiração científica. Desta maneira a conversão freudiana

.30
residiria na passagem da alma ao psíquico. Contudo, um dos
objetivos do presente trabalho é mostrar que há uma triparti-
çáo, e não apenas uma bipartição, nas práticas formativas que
deram origem à psicanálise.
Comecemos salientando que a noção de alma (Seele) nao
deve ser considerada, exclusivamente, como uma noção má-
gico-religiosa, especialmente se levamos em conta o contexto
alemão do século XIX. A palavra Seele é coloquial, e não técnica
como psíquico, ou intelectualista como mente (mind). Em ale­
mão a palavra Seele tem sua conotação filtrada pelo romantis­
mo literário e filosófico e pela sua etimologia gótico-pagã, que
deve ser ponderada com a sua conotação cristã. Ademais Freud
utiliza ambos os termos (psíquico e alma), com pequenas va­
riações, ao longo de toda sua obra, como por exemplo, no uso
recorrente da expressão: Seelenleben (vida da alma, traduzida por
vida anímica). Nos manuais médicos da virada do século XIX
encontramos o termo Seelenartz para designar o francês alié-
niste (alienista) e o inglês alienist physician (médico alienista) e
ainda Seelenanalyse, para designar... psicanalista (Hanns, 1996,
pp. 332-337). Se a noção de tratamento (Behandlung) é a que
melhor se ajusta aos princípios do método clínico e a ideia de
psíquico, remonta à modernização da tradição psicoterapêutica,
que se autonomiza das práticas religiosas mais instituídas, o que
fazer com a preservação insidiosa na noção de alma?
A questão seria meramente filológica não fosse o fato de
que ela se coordena com uma série de outras ambigüidades
que aparecem quando lemos os textos de Freud em busca da
caracterização da prática da psicanálise. Principalmente no
início da obra, e especialmente quando se tratam de textos
dirigidos à comunidade médica, como notas enciclopédicas,
prólogos e apresentações em manuais, Freud não hesita em ca­
racterizar a psicanálise como um tipo de psicoterapia (.Psycho-
therapiè). Uma psicoterapia distinta do hipnotismo catártico e
da terapia moral de inspiração psiquiátrica. Quando se tratam
de textos sobre a técnica ou da explicitação de conceitos clínicos

31
como transferência, resistência ou interpretação Freud dá des­
taque ao termo tratamento {Behandlung). Contudo, quando se
trata da exposição de casos clínicos ou de se referir à trajetória
ou desenrolar, ao êxito ou fracasso do processo, e ainda quando
analista ou analisante nomeiam o que eles estão fazendo na si­
tuação psicanalítica, há uma expressão onipresente: cura (Kur).
Essa diferença seria irrelevante não fosse o fato de que cada
emprego diferencial dos termos envolvidos remete a distintas
acepções do que se pode esperar da experiência psicanalítica.
Quando Freud fala da psicanálise como uma psicoterapia a
expressão recorrente para designar seus fins é Genesung, isto
é, restabelecimento, convalescência, retorno a um estado
anterior, ou seja, cura como resultado, em francês guerísón.
Quando Freud fala da psicanálise como um método clínico de
tratamento a expressão que encontramos privilegiadamente é
Heilung, isto é, atividade e processo de sarar, cura como exer­
cício de meios adequados, em francês cure.
Todavia, vimos que Freud tem um terceiro termo para
designar a prática da psicanálise, ou seja, Kur. Sua tradução
direta para cura {cure) obscurece o fato de que são dois ter­
mos distintos na origem (Kur e Heilung), ambos comprimidos
pelas traduções brasileira, francesa e inglesa na mesma expres­
são. Falta, portanto, um termo correlato para designar os fins
da experiência psicanalítica quando esta é tomada como Kur.
Este termo existe em alemão, mas é de emprego raro, mas não
ausente em Freud, trata-se do cuidado (Sorge). Curiosamente
a expressão Sorge traduz-se tanto por cuidar de, quanto preocu-
par-se com e ainda por tratar de. Estamos assim diante de um
termo que compreende ambas acepções anteriores, a psicote-
rapêutica (preocupar-se) e a clínica (tratar), mas além disso
introduz uma nova ressonância semântica que ficara esque­
cida nas traduções, perdendo assim parte de sua autonomia:
o cuidado. O problema é realmente espinhoso, pois implica
reconhecer a diferença entre a cura como substantivo {Kur,
cura) e a cura como atividade {Kur, cuidado).

t2
Ocorre que enquanto Genesung indica principalmente os
resultados, a cura como restabelecimento da saúde envolvendo
passividade do paciente, H eilung refere-se ao processo e aos
meios do tratamento, sugerindo uma intervenção mais ativa
e pontual do agente da cura. Sorge (cuidado), contudo, suge­
re ao mesmo tempo pequenas intervenções, associadas a um
regime especial e continuado de atenção, como a que se deve
praticar na arte da jardinagem2. Sorge indica passividade e ati­
vidade, incluindo a importância da passagem do tempo, tal
como se verifica no fabrico do queijo e do vinho, que devem
aguardar um tempo de “cura” até que o processo se complete.
Vejamos um exemplo: um filho procura seus pais, choran­
do com um ferimento no pé. Podemos fazer ataduras e assep­
sia local {Heilung), mas ao mesmo tempo perguntamos o que
aconteceu para saber a extensão e gravidade do ocorrido ou
avaliar a adequação dos procedimentos (Behandlung). Temos
ainda que acalmar o rebento (Therapie) desviando sua aten­
ção, oferecendo palavras de consolo e resignação. E de bom
tom sugerir aquietação imediata, contudo é preciso tempo
até que se realize a cicatrizaçao (Genesung) e complete-se o
restabelecimento {Heilung). Neste tempo costuma intervir a
meditação sobre o ocorrido, as ponderações sobre as causas,
as imprecações para que o caso não se repita. Durante todo o
processo, mesmo depois dele e a causa dele, será preciso cui­
dado {Sorge). Vê-se assim como Sorge implica não apenas a
cura como retorno da saúde, mas a experiência legada por seu
processo, a integração, à história dos envolvidos, da cicatriz
formada, dos conselhos recebidos e do sentido do evento ... ou
de sua falta de sentido.
A palavra cura tem sido preterida em relação à noção de
tratamento tendo em vista sua associação direta e automática
com a conotação médica e com a ideia de resultado. Além

2. Devo a discussão destas variações semânticas ao Prof. Nelson da Silva Jr.

33
disso, a noção de cura ecoa,'conotação mágicó psicotcrapcu-
tica que encontramos em expressões como “a cura de águas”,
que se realiza em balneários e sanatórios, ou a “cura religiosa”,
como a que se atribui a centros de peregrinação como Lurdes
ou Fátima. A noção de cura contrasta tanto com a de terapia
quanto com a de tratamento. Freud menciona várias vezes que
seus pacientes, antes do tratamento psicanalítico, passaram por
curas dos mais diversos tipos: Emmy Von N. enfrentou uma
cura de massagens associada a banhos elétricos; Elizabeth Von
R. tentou uma cura hidropática; o Homem dos Ratos e o Ho­
mem dos Lobos passaram períodos intermitentes de cura em
sanatórios; sem falar em Anna O., o-caso seminal da psicaná­
lise, que esteve por mais de 10 anos em sanatórios. A mesma
Anna O. que definiu a psicanálise como uma “talking cure”,
ou seja, cura pela palavra.
Freud discute duas formas de cura aparentemente muito
populares na época. A cura de Weir Mitchcll (Freud, 1988a),
ou cura de playfair, consiste na conjunção entre isolamento
absoluto, aplicação sistemática de massagens, faradização e ali­
mentação intensiva. Sua concorrente direta, a cura do Pastor
Kneipp (1821-1897), implicava banhos de contraste, repouso
e caminhadas no pasto com os pés descalços, no famoso sana­
tório de Bad Wõrishofen, localizado na Suábia (Idem, 1898a,
pp. 265-266). Freud atribui a eficácia relativa de tais curas a
dois fatores: (1) retirado de seu ambiente patógeno e expos­
to a condições favoráveis para a terapia moral a relação com
novas formas de autoridade amenizariam as exigências causais
da neurose (Idem, 1889a), e (2) alterações substanciais nas
exigências ligadas à prática sexual, quer pela relativa licencio-
sidade e tolerância de alguns sanatório, quer pelo afastamento
das contingências e limites da sexualidade conjugal. A cura
pelo repouso descendia da antiga prática de retirar-se para lu­
gares isolados nos quais se podia recuperar as forças perdidas
ou dispersas na atribulação cotidiana. Esta forma de cura está
estreitamente ligada à noção de ambiente, de contato com a

.64
natureza e de “retirada do mundo”. Ela incorpora ainda a anti­
ga imagem de que uma cura assemelha-se a uma viagem, uma
peregrinação ou uma caminhada.
Em contraste com a ênfase na noção de ambiente, presente
na cura, a prática da terapia desenvolve-se em torno da noção
de instrumento e de técnica. A eletroterapia, técnica popular
na virada do século, foi proposta por Erb e estudada longa­
mente por Freud que comprovou sua ineficácia. Um exem­
plo pitoresco do desenvolvimento das técnicas terapêuticas
encontra-se no livro de Hartenberg (1912), Tratamento das
Neurastenias, um caso representativo da emergente literatu­
ra dedicada à terapia das afecçÕes nervosas. O livro de Har­
tenberg inclui dentro da proposta mais ampla de tratamento
(;traitment): (1) instruções detalhadas para a construção de um
dinamômetro para diagnosticar a fraqueza muscular (astenia)
característica da neurastenia, (2) lista minuciosa de exercícios
voltados para a recuperação do tônus muscular, (3) descrição
de substâncias excitantes que deveriam ser evitadas, (4) pres­
crições de higiene, repouso e tônicos medicamentosos, e (5)
psicoterapia orientada para o reforço da vontade e mudança
de hábitos. Veja-se como a psicoterapia é uma entre outras
técnicas incluídas no tratamento. Ela é explicitamente com­
parada ao treinamento disciplinar da mente e aos exercícios
militares e pedagógicos.
Admitida a possibilidade de que a prática da psicanálise seja
considerada como uma cura, como uma psicoterapia e como
um tratamento clínico, seria preciso explicar porque as duas
primeiras conotações estão virtualmente ausentes nos textos
contemporâneos de psicanálise, nos quais vigora a expressão
canônica e soberana “clínica psicanalítica”. O caso da psico­
terapia parece mais simples. A autonomização da psicoterapia
como uma prática dependente da formação em Psicologia, Psi­
quiatria ou, em alguns países em Social Worker (trabalhador so­
cial), cria um sério obstáculo diante dos princípios formativos
da psicanálise (análise pessoal, supervisão e transmissão dentro

35
de uma Sociedade ou Escolaiespecializada). Acrescente-se a isso
o fato de que muitas modalidades de psicoterapia simplesmente
não admitem formação sistemática. Mas o argumento funda­
mental e, quero crer mais pertinente, é de que de fato a psicaná­
lise não é, exclusivamente, uma form a de psicoterapia. Como ve­
nho sugerindo ela é também uma clínica e uma forma de cura.
Há um duplo sentido na recusa da noção de cura em psicaná­
lise. Por um lado ela soa demasiadamente clínica, no sentido em
que se associa a cura com a completa remoção dos sintomas e o
retorno à saúde. Por outro lado o termo cura está perigosamente
próximo da psicoterapêutica de compromisso moral, mágico ou
religioso, e assim soa pouco clínica. Sugiro que a fonte de nosso
desconforto com as noções de cura e psicoterapia não decorre
apenas da pertinência a um âmbito mais ou menos científico
de discursividade, mas da ligação que os termos induzem com
a esfera do poder. Tanto a cura como produto da técnica médi­
ca, quanto a cura como expressão de uma epifania mística, nos
convidam a uma posição de exercício de poder que a psicanálise
haveria de recusar. Esta recusa não deveria servir de argumento
nominal para a evitação dos termos em que o problema se colo­
ca do ponto de vista da constituição histórica da psicanálise. Há
diversas maneiras de recusar o poder, há inclusive formas de re­
cusa que funcionam como álibi para sua perpetuação. Há ainda
limites para a extensão e emprego deste conceito uma vez que
uma situação na qual esteja ausente qualquer figura de poder é
virtualmente uma situação inhumana.
Neste livro examino as práticas históricas de valor forma-
tivo para a psicanálise, levando em conta a explicitação dos
modos de recusa ou engendramento do poder. Entendo que
não basta declarar uma espécie de evasão do terreno político
para garantir uma extraterritorialidade cujos fundamentos não
estaríamos mais, nem na obrigação nem no encargo de apre­
sentar. Esta estratégia nos levaria a manter como incógnita na
prática psicanalítica o tema da influência que o analista exerce
sobre seu analisante e, inversamente, que o analisante exerce
sobre seu analista. É sobre este tema que prossegue o nosso
texto guia sobre o Tratamento Psíquico (Tratamento da Alma):

As palavras são, sem dúvida, os principais mediadores da


influência que um homem pretende exercer sobre os ou­
tros: as palavras são bons meios para provocar alterações
anímicas naquele a quem são dirigidas e por isso já não
soa enigmático asseverar que a influência da palavra pode
eliminar fenômenos patológicos, ainda mais aqueles que
têm sua raiz em estados anímicos (Seelenlebens). (Freud.
1890a, p. 123)

O tema da influência reúne uma constelação de estratégias


cuja fonte seria difícil de rastrear. Trata-se aqui da formulação
de métodos e procedimentos que derivam dos mais dispersos
saberes práticos: a interpretação de sonhos, as curas tauma-
túrgicas e animistas, a sugestão, a retórica médica e literária,
as práticas religiosas de aconselhamento, a direção de cons­
ciência e confissão, bem como as pedagogias da alma. Dizer
que as palavras são fonte de influência é uma afirmação vazia
se não se puder explicar como funciona a própria influência.
Isso é mencionado, no texto de Freud, por intermédio de uma
descrição técnica sobre o modo como se pratica o hipnotismo:

Pode-se hipnotizar mantendo diante dos olhos, imóvel,


por alguns minutos, um objeto brilhante, ou aplicando à
orelha do sujeito, durante o mesmo lapso, um relógio de
bolso, ou passando repetidas vezes a mão aberta, diante de
seu rosto e membros à curta distância deste. (Ibid, p. 125)

Se a primeira parte do texto enfatiza o fundamento do mé­


todo a segunda descreve sua técnica. Método de tratamento e
técnica são constantemente objeto de confusão. Uma técnica
caracteriza-se pela reprodutibilidade e eficácia dos meios, o
método envolve consideração sobre os fins à que se propõe a
ação. Há, no entanto, uma longa trajetória da noção de méto­

37
do até que esta se desfaça de sua conotação ética inicial. É só
então que a clínica pode se tornar o nome de um método de
investigação que subsidia um método de tratamento.
Este momento inicial da trajetória freudiana permite isolar
bem estes dois aspectos da prática. O método baseia-se na pa­
lavra (a cura pela palavra —talking cure), mas a técnica ainda
é a técnica do olhar, voz e semblante, presente no hipnotismo
e na tradição psicoterapêutica desde antes de Benjamin Rush.
Método e técnica presumem modos de relação distintos com
o paciente. O método é um mediador, a técnica um instru­
mento. Um método estabelece um objeto ou um campo de
experiência que rege suas condições de aplicabilidade, a téc­
nica é relativamente indiferente ao seu contexto de origem.
Vejamos um exemplo paradigmático. Galileu é considerado
pedra fundamental da ciência moderna porque desenvolveu
um método, a análise matemática do movimento. Em função
deste método ele mobiliza uma série de técnicas que lhe ser­
vem: aparelhos construídos em sua própria oficina (como o
compasso militar), controle de observações (as famosas tábuas
de Ticho Brae) e a não menos importante técnica do experi-
mentus mentis (experimentos mentais). Ao que tudo indica o
famoso experimento da Torre de Pisa simplesmente não acon­
teceu empiricamente. Trata-se de um experimento mental,
ou seja, mais do que uma conjectura e menos do que uma
hipótese verificada. Mas o melhor exemplo da soberania do
método sobre a técnica é o próprio telescópio. Em 1609 Gali­
leu ouve falar que um flamengo construíra um aparelho pelo
qual objetos distantes podiam ser observados com nitidez. Ele
constrói então um instrumento semelhante, três vezes mais
poderoso e o orienta para o céu. A construção do telescópio é
um empreendimento técnico, sua orientação para o céu, um
gesto teórico, a combinação entre ambos um fato metodológi­
co (Mariconda, 1988).
Outra característica importante do método é que ele esta­
belece um objeto ou um campo de experiência que circuns­
creve, ao mesmo tempo, os limites deste método. É em acordo
com este aspecto que o texto de Freud prossegue com uma
apresentação das. formas de sofrimento às quais esta combina­
ção entre método da palavra e técnica do olhar se aplica:

Entre esses enfermos há um grupo chamativo pela riqueza


e variedade de seu quadro clínico: não podem realizar um
trabalho intelectual por causa de dores de cabeça ou falhas
de atenção; lhes doem os olhos quando lêem, as pernas se
lhes cansam quando caminham; sentem dores surdas ou
adormecem; padecem de transtornos digestivos na forma
de sensações penosas, vômitos ou espasmos gástricos; não
podem defecar sem purgantes; se tornaram insones, etc.
(Op. Cit., p. 116)

Nesta descrição predominam alusões ao corpo e a privação


de sua liberdade. O corpo é um fato visível, as palavras não.
Para os olhos, como afirma o texto, a dor é surda. Entramos
aqui no vasto campo narrativo daquilo que compõe as formas
de sofrimento da alma. Neste fragmento encontramos um dos
traços fundamentais da tradição psicoterapêutica, a saber, a
descrição do sofrimento em termos apreensíveis por qualquer
leitor não especializado, ou seja, uma apresentação que fala
a língua dos pacientes. Considere-se a diferença deste trecho
para uma apresentação clínica de sintomas baseada em expres­
sões como: astasia-abasia, parapraxias, distúrbio de atenção ou
transtornos do sono.
Se o psicoterapêutico configura seu objeto em torno da no­
ção de sofrimento e o tratamento clínico em termos de sintomas
que termo estaria reservado para a dimensão da cura? Freud
valeu-se de uma expressão muito feliz para designar este tipo
de padecimento que não se pode nomear perfeitamente e cuja
natureza é indissociável da relação com o outro, e da condição
de estar no mundo, trata-se do mal-estar (Unbehagen). Se a
noção de sofrimento sugere passividade e a noção de patologia
exprime certa atividade sobre a passividade (conforme o radi­

39
cal grego pathos), a ideia de mal-estar nos remete à noção de
lugar ou de posição. Estar, de onde deriva o cognato estância,
não implica ser, nem agir, nem sofrer uma ação, mas simples­
mente estar. “Wo es war soll ich werden”, a máxima que Freud
mencionou para sintetizar o trabalho da psicanálise, já foi tra­
duzida de muitas maneiras, desde “o eu deve desalojar o Id”
até o lacaniano “Onde Isso era eu devo advir”. O problema
decorre de que o verbo ser (sein), pode ser traduzido também
pelo verbo estar, logo, onde isso estava (war) o eu deve advir,
tornar-se (werden). Talvez a palavra Unbehagen derive do radi­
cal Hag, bosque ou mata, ou seja, um lugar propício para pra­
ticar a arte de estar. Além disso, a noção de cura associa-se com
a de mal-estar na medida em que esta remete à noções como
angústia, desespero ou desamparo (Rocha, 2000, p. 158). En­
contramos aqui a longa reflexão filosófica sobre estes concei­
tos. Dos filósofos helênicos que meditaram sobre o desamparo
(Sêneca, 2002), às intuições de Kierkegaard (1849) sobre o
desespero, até a incursão de Heidegger sobre a cura {Sorge)
como angústia no ser-para-morte (1927), há um insistente re­
conhecimento desta dimensão do mal-estar como inerente às
relações entre existência e verdade. Pode-se dizer que para esta
tradição a própria filosofia deve ser encarada como uma prática
de cura e a cura como desesquecimento e experiência do tempo.
Todo sintoma exprime uma forma de mal estar, mas nem
toda forma de mal estar é um sintoma. Talvez o mal estar ex-
prima a verdade incurável de um sintoma. Mais ainda, nem
todo sintoma expressa uma forma de sofrimento para o pró­
prio sujeito. Há sofrimentos impercebidos, há sintomas ino-
meados. Ainda que o sofrimento expresse um saber sobre o
sintoma, nem sempre este saber é reconhecível ou subjetivável
pelo que sofre. O sofrimento pode ser retinto de indiferença
ou remetido aos que convivem com a pessoa. Não é simples
definir a fronteira entre o que é um sintoma, distinguindo-o
internamente do que representa um mero signo ou traço clí­
nico, e, externamente, do que é da ordem do sofrimento, mais

40
ou menos suportável. Complexa é também a tarefa de separar
sintoma e sofrimento do que pertence à “dor de existir”: a pre­
cariedade do corpo, a contingência do amor, os desencontros
do desejo, a solidão, a devastação, a angústia do que ainda não
tem nome. O sintoma exige tratamento (Behandlung), o sofri­
mento pede por alívio (Genesung) e o mal estar demanda cui­
dado {Sorge). O sintoma pode ser curado (.Heilungj e o sofri­
mento pode ser mitigado. Quanto ao mal estar não podemos
prometer o restabelecimento do sujeito {Heilung), entendido
como um estado que substitua a miséria neurótica por um es­
tado grandioso de felicidade e bem estar sem oscilações. Neste
quesito Freud contentava-se em propor alternativas como a
possibilidade de amar, criar e trabalhar, no quadro da infeli­
cidade banal. Todavia restabelecer-se é uma noção compatível
com a ideia de mal estar, afinal estabelecer-se é estar em um
lugar, ocupar uma posição, habitar um espaço. Restabelecer-
se indica retomada ou apropriação de um lugar, o que não
está inteiramente fora dos propósitos de uma experiência de
cura. No entanto, a cura como destino para o mal-estar não
pode reduzir-se ao retorno a um estado anterior. Isso é impos­
sível, pois tratamos de alguém ao qual se acrescentou a pró­
pria experiência da cura. A cura não se constrange às ambições
negativas, presente na ideia de retirada dos sintomas ou de
abreviação do sofrimento, ambas formas de redução, clínica e
psicoterapêutica, do desprazer. A cura não apenas faculta amar
e trabalhar, mas sugere que isso possa ser feito segundo uma
nova forma de estar no mundo, uma forma que convida à
criação e à invenção de outras maneiras de satisfação. Quando
alguém chega ao tratamento psicanalítico, tem suas próprias
ambições quanto ao que a vida lhe promete e o que dela se
pode esperar. Tais ambições, frequentemente tomam parte em
sua própria neurose. A cura, em grande sentido, é também a
cura destas ambições.
Tratando-se do sofrimento da alma é preciso considerar a
posição daquele que sofre, o modo particular como este so­

41
frimento se articula com sjtia vida, com os sistemas simbóli­
cos dos quais participa e com as estratégias discursivas que
legitimam, reconhecem e individualizam aquela experiência
como uma ruptura tratável. No fundo o sofrimento é função
de quem o designa e de como o faz. O sintoma, ao contrário,
depende de quem o sanciona. O trabalho do clínico, neste
caso, é o de estabelecer alguma ordem, inferir certa regularida­
de no curso e aparecimento dos sintomas, separando-o do mal
estar e do sofrimento e conduzindo-o às suas causas.
Não há separação substancial entre o relato descritivo da
tradição terapêutica, que a cada época tenta sistematizar o mal
estar, e outras modalidades de fazê-lo, como a literatura, o dra­
ma teatral, os tratados demonológicos, as observações popula­
res. A história da psiquiatria mostra também que não há uma
distinção inequívoca entre o relato clínico, que tenta sistema­
tizar as regularidades do sintoma, e outras descrições que lhe
são adjuvantes como as formas jurídicas, as tipologias políticas
e as classificações antropológicas. Um químico realiza em seu
laboratório as mesmas operações que um cozinheiro prepa­
rando um jantar. A forma como se aprende química é muito
diferente da transmissão culinária; não obstante as descrições
alternativas que cada um pode oferecer sobre o que faz, não há
alteração da realidade do que se passa entre as moléculas. Para
o químico interessa que esta realidade possa ser conhecida.
Para o cozinheiro interessa que seu saber se atualize em sabor.
Assim como o químico pode ser destituído de habilidade culi­
nária, o clínico pode ser um péssimo terapeuta e um inepto
para a cura.
Como vimos, o clínico apresenta-se como um especialista
em métodos de investigação, enquanto o psicoterapeuta de-
fine-se pelo domínio prático da técnica. Mas seria exagerado
dizer que o clínico não dispõe de técnicas ou que o psicotera­
peuta esteja destituído de métodos. A questão se concentra em
saber qual seria a especificidade do método psicanalítico e qual
regime de relação ele mantém com suas técnicas.

42
Voltemos ao nosso texto guia sobre o Tratamento da Alma.
Nele, Freud lança uma espécie de pedra fundamental do seu
método clínico:. “Apenas depois de estudar o patológico se
aprende a compreender o normal” (p. 118). Este gesto localiza
o método psicanalítico em uma estratégia diversa dos aportes
médico, psiquiátrico ou neurológico. A pressuposição de uma
forma saudável, funcional e positiva do corpo permite que se
possa comparar e julgar as apresentações desviantes, patológi­
cas ou particulares como acidentes ou contingências que alte­
ram a rota da saúde. Também com relação ao plano psicoterá-
pico Freud afasta-se dos aportes moral, religioso ou educativo
e sua pressuposição básica de um estado inicial de harmonia,
potencialidade e bem aventurança. Para Freud, ao contrário, o
desvio não é uma ruptura de um estado anterior (o corpo sau­
dável ou a infância feliz), ao qual se pode retornar praticamen­
te (H eilung) e do qual se deve partir teoricamente. O desvio é
o próprio critério do método. Isso se exemplifica na ordem das
razões pelas quais Freud postula a existência do inconsciente.
Em 1893 ele utiliza a hipótese do inconsciente para explicar
a gênese dos sintomas histéricos e a resistência à lembrança
dos elementos patógenos (Freud & Breuer, 1895d). Até aqui
estamos na esfera de um inconsciente como sucedâneo do pa­
tológico. Sete anos mais tarde Freud amplia o escopo desta
hipótese para o que se poderia chamar de inconsciente ordiná­
rio: o sonho (1900a), os chistes (1905c) e a psicopatologia da
vida cotidiana (1901b). Nesta operação o próprio sentido do
patológico se altera. Há na psicanálise uma teoria psicológica
geral, de aspiração universalista, mas esta é construída como
uma espécie de corolário ou inferência, jamais deduzida do
funcionamento psíquico normal à priori. Resta saber que tipo
de realidade é concernida por este método e se esta compreende
a totalidade da ontologia da prática psicanalítica.

43
ESPAÇO, LUGAR E POSIÇÃO
Este breve exame do texto seminal de Freud sobre O Tra­
tamento Psíquico (Tratamento da Alma) é um ponto de parti­
da para entender a constituição histórica da psicanálise como
conjunto de táticas psicoterápicas, estratégias clínicas e po­
líticas de cura. No entanto, há inúmeras dificuldades tanto
em incluir quanto em separar a psicanálise da psicoterapia, tal
como esta se configura em fins do século XIX, ou ainda, no
amplo espectro de ramificações produzidas ao longo do século
XX. Há também um contingente de argumentos contrários
à ideia de que a psicanálise provém diretamente da tradição
clínica, tal como constituída na medicina ocidental, principal­
mente a partir do século XVIII. E ainda, remanescem muitas
incertezas quanto aos reais subsídios que encontraríamos para
a prática da psicanálise, que derivaria da antiguidade grega ou
da tradição judaico crista. Particularmente as tragédias e mi­
tos, bem como algumas interpolaçÕes sobre o nascimento da
filosofia, fazem levantar, com frequência, a hipótese de que
a psicanálise se incluiria na tradição da cura, que remonta às
escolas filosóficas helenísticas do século II a.C. e que tem em
Sócrates seu personagem originário.
Uma dificuldade enfrentada por aqueles que pretendem
estudar a arqueologia da psicanálise diz respeito à própria de­
finição de seu objeto. Uma definição excessivamente cernida
na obra de Freud tem o inconveniente de deixar de lado seus
inúmeros desdobramentos, derivações, releituras e apropria­
ções, sem os quais a própria obra não poderia ser pensada,
particularmente quando se leva em conta as práticas clínicas
que nela se amparam ou que dela derivam. Uma análise que
pretenda abordar todas as variantes possíveis do discurso psi-
canalítico tende a concentrar-se demasiadamente em concei­
tos chaves ou matrizes epistemológicas. Dispersa entre as for­
mações culturais que disseminam o discurso psicológico como
um complexo discursivo, ou ainda, artificialmente restrita às

44
instituições que se encarregam de representá-la, a definição do
que vem a ser psicanálise, só pode ser dada retrospectivamen­
te. Mas ao final,, esperamos encontrar uma definição não es-
sencialista ou meramente dogmática de nosso objeto: a prática
psicanalítica.
É em função desta dificuldade em estabelecer, com ante-
rioridade e de modo claro e distinto, o que vem a ser a prática
psicanalítica, que pretendo examinar o assunto tendo em vista
o método topológico aplicado à história. Esta escolha baseia-
se em dois motivos e remete-se a duas fontes. Uma é interna à
psicanálise e refere-se ao uso extenso que Lacan faz da topolo­
gia como instrumento de sua reflexão sobre a clínica psicana­
lítica e não apenas como meio de formalização de seus concei­
tos. O segundo motivo é externo à psicanálise. A reconstrução
histórica dos saberes práticos recomenda certo recuo com re­
lação às descrições e às teorias que tomamos como referência
material para a tarefa. Por exemplo, a teoria da guerra nos fala
de como a guerra era efetivamente praticada, ou como ela de­
veria ser praticada? Os tratados médicos são um retrato fiel da
clínica ou uma espécie de norma ideal de conduta?
Foucault mostrou que toda prática pode ser pensada em
descontinuidade com práticas que a antecederam e a tornaram
possível. É a pergunta que nos leva ao conceito de constitui­
ção, ou seja, o que teve que ser perdido, ao modo de um corte
radical, para que uma determinada prática adquira autono­
mia, legitimidade ou visibilidade? Neste sentido uma prática
deve ser pensada como um ponto fora de uma reta, ou como
uma reta fora de um plano. Podemos apresentar como pri­
meira tese que a prática da psicanálise se constitui como uma
subversão da clínica clássica, nascida em fins do século XVIII.
Uma subversão que responderia a constituição de uma nova
forma de sujeito. Aqui estamos diante de algo que é perdido,
mas não é dialeticamente incorporado. O uso da noção de
constituição deve ser ponderado contra certas interpretações
orientadas pelo uso assistemático da noção de corte episte-

45
mológico derivada de Baçjhelard, aprofundada por Cangui-
lhem e renovada por Althusser, ademais de amplo emprego
no comentário psicanalítico corrente, em analogia com a epis-
temologia lacaniana do corte. Muitas vezes esta perspectiva é
convocada para argumentar que a psicanálise é uma prática
inteiramente nova, sem precedentes ou antecedentes. Interes­
sada em assinalar a extraterritorialidade da psicanálise, dado o
caráter original de sua forma de tratamento, este argumento é
compreensível na esfera disciplinar e no âmbito da afirmação
da permanência da psicanálise em uma configuração cultural
específica. Ao mesmo tempo é uma estratégia reativa. Ela difi­
culta que a psicanálise pense sua própria constituição histórica
de tal forma a reinventar seu presente.
Por outro lado, como mostrou a tradição marxista em fi­
losofia da história, toda prática deve ser pensada como um
conjunto de compromissos nos quais se escondem contradi­
ções, ou seja, negações que conservam e suprimem exigências
e aspirações. Podemos representar tais movimentos dialéticos,
expressos pelo conceito de formação (Bildung) e pela noção
mais genérica de práxis, por meio da figura topológica da tor­
ção. Uma torção representa a inversão da orientação de uma
reta ou de uma superfície. O conceito de formação, emprega­
do aqui para designar este processo, subentende as ideias de
conflito e compromisso. E preciso considerar, nesta medida,
como nossa segunda tese, que exigências heterogêneas da clí­
nica, da psicoterapia e da cura não formam um espaço sim­
ples, mas uma paisagem de contradições e de soluções múl­
tiplas que instituem a diversidade e a riqueza da psicanálise
como sintoma da modernidade.
Em terceiro lugar, e como nossa terceira hipótese de traba­
lho, temos que considerar que toda prática está sujeita ao pro­
cesso de seu próprio aperfeiçoamento interno. Ela se aprimora
ao modo de uma construção, agregando em sua continuidade
experiências de sucesso e fracasso, de excelência e eficácia. A fi­
gura topológica que melhor exprime o processo de construção

46
é a reta projetiva. Virtualmente uma prática instituída tende a
se perpetuar até que esta encontre como resistência outro pla­
no contra o qual .ela se delimita, se interrompe ou se intersecta.
Ocasionalmente, na história da psicanálise, métodos baseados
na construção, reconstrução ou desconstrução são emprega­
dos para refazer a cadeia de ideias psicológicas ou filosóficas,
de pressupostos sociais ou culturais, que levaram à noção de
inconsciente, de sexualidade, de infância ou de recalcamen-
to. Deste ponto de vista este livro será bastante fragmentário,
preocupando-se apenas em estabelecer as linhas de fuga fun­
damentais de uma determinada prática, sem examinar todas as
suas derivações ou redes de influência.
Construir é combinar, escolher, ou seja, tomar posição. As­
sim como constituir implica em corte, e formar implica em
nó ou laço. A escolha das noções de constituição, formação e
construção obedece a uma segunda razão. Trata-se de noções
centrais em diferentes concepções historiográficas, mas tam­
bém de conceitos de grande importância na teoria psicanalí-
tica. Em psicanálise há o conceito de constituição do sujeito,
assim como àe. form ação de sintomas e ainda de construção de
fantasia (Dunker, 2002a). A criança constrói suas teorias sexu­
ais infantis em acordo com as hipóteses que consegue levantar,
a cada momento, e sobre as premissas das quais consegue se
apropriar, a cada vez. A construção de um saber sexual é ao
mesmo tempo uma experiência do corpo. Por outro lado, to­
mar posição, como sujeito, exige uma espécie de interpretação
do funcionamento, em uma determinada rede de lugares. Lu­
gares que são, sobretudo, formações simbólicas. Contudo, tais
lugares só podem ser definidos em relação a um determinado
espaço, e é neste espaço que se pode falar na constituição de
sujeitos, saberes e práticas. Posição, lugar e espaço são assim
nossas três categorias topológicas que associam-se com as ati­
vidades de construção, formação e constituição.
Quero evitar, pela combinação entre estes meios de abor­
dagem, que chamo de topologia histórica, concentrar-me no

47
exame de tipo epistemológico sobre o estatuto científico ou
para-científico da psicanálise. Interessa-me mais os modos de
subjetivação, as estratégias do dizer e de calar que a psicanálise
emprega para levar a cabo sua política de cura, seu método de
tratamento e suas técnicas terapêuticas. Há bons trabalhos de
reconstrução conceituai (Neu, 1998), crítica da cultura (Pa­
rker, 1997) e epistemologia da psicanálise (Nobus & Quinn,
2005), mas poucos, particularmente em português, sobre a
constituição e estrutura de sua prática. Alternativamente aos
trabalhos que se preocuparam com a composição da estrutura
de saber, necessária para a constituição da prática psicanalítica,
a topologia histórica facultaria examinar a formação da clínica
psicanalítica, do ponto de vista do poder.
Por isso escolhi trabalhar com um espectro de temas e ques­
tões que situam-se entre Freud e Lacan, procurando manter a
distância e as convergências que se verificam entre estes dois
autores. Esta escolha se justifica tanto no fato de que Lacan
talvez tenha sido o autor que, dentro da psicanálise, mais siste­
maticamente abordou as vicissitudes do poder nas instituições
psicanalíticas, quanto no fato de que ele tenha tematizado isso
em seus escritos sobre a relação analítica.
Lacan insistiu no uso da noção de cura em psicanálise.
Sempre me pareceu curioso que o texto mais importante e
mais sistemático de Lacan sobre a clínica psicanalítica chame-
se justamente A Direção do Tratamento e os Princípios de seu
Poder (E: 1958b). Em francês trata-se de Direcion de la Cure,
assim como em Variantes da Cura Padrão (E:1955b), trata-se
de cure. A tradução brasileira realiza uma escolha involuntária,
mas não sem conseqüências, ao traduzir cure por tratamento.
A escolha torna-se mais problemática ainda quando notamos
que a expressão tratamento {traitement}, também é emprega­
da por Lacan, como em Du Traitement Possible de la Psychose
(E: 1958c). Isso implicaria que a cura se aplica às neuroses (so­
bre o que versam os dois textos anteriores) restando às psicoses
o eufemismo contido na noção de tratamento? Tratamento
possível seria diferente de cura? Que dizer da exclusão da refe­
rência psicoterapêutica? De toda forma, se tratamento soa mais
palatável ao público brasileiro e também ao anglo-saxônico
(Bruce Fink escolhe treatm ent na tradução dos Escritos para o
inglês) é por que na ideia de cura há algo de potencialmente
crítico a ser recuperado.
Da dialética do senhor e do escravo à crítica dos modelos
de formação de analistas, da noção de ato analítico à teoria dos
quatro discursos, da crítica da primazia da técnica psicanalí­
tica sobre a ética à teoria do final de análise, há uma persis­
tente reflexão lacaniana sobre a dinâmica do poder envolvido
na situação analítica. Esta não é a única nem a mais original
contribuição de Lacan ao escopo específico do tratamento,
mas quero crer que é um dos veios menos explorados pelos
que se dedicaram a refletir sobre sua obra. Acostumamo-nos
a reconhecer uma separação entre ética e política, a ponto de
nos parecer natural que onde há poder esteja ausente a ética e
onde há ética ali se ausente o poder. Aprendemos a considerar
a situação analítica como um território no qual constitutiva-
mente o exercício do poder está excluído. Mas esta garantia,
por decreto axiomático, pode revelar apenas uma concepção
frágil e irrefletida, senão ahistórica, sobre o poder. Isso nos
impede de ver como ele se exerce em inúmeras estratégias e,
principalmente, nas formas diversas de recusá-lo para susten­
tar “autenticamente uma práxis”. O resultado desta atitude
dificulta pensar as estratégias para sua desconstrução e man­
tém o funcionamento do poder para além de sua visibilidade
e de toda forma de resistência (Derrida, 1997). Não é, pois,
suficiente, dizer que a prática psicanalítica inspira uma recusa
ao poder, é necessário mostrar como esta recusa se estabelece,
qual é a gramática desta recusa, qual é a política, a estratégia e
a tática desta recusa ao exercício do poder.
Este giro para uma analítica do poder encontra precedentes
nas ideias foucaultianas de arqueologia e de genealogia. A in­
tenção arqueológica aparece principalmente nos capítulos de­

49
dicados à formação do dispositivo de tratamento e a hipótese
de uma estrutura geral da clínica. Aqui o interesse reside na
migração e compromisso entre conceitos e superfícies de pro­
blemas necessários para a formação da psicopatologia e para
a subversão da noção de tratamento. A intenção genealógica
aparece distribuída na tripla dimensão que Foucault (1979, p.
171) estabeleceu com relação a este conceito: (1) uma ontolo­
gia histórica de nós mesmos em nossas relações com a verdade;
(2) nossas relações com o campo do poder, que permitem a
constituição de sujeitos que agem sobre os outros; e (3) nossas
relações com a moral, que examina a constituição de sujeitos
éticos. Pretendemos assim contribuir para delimitar o regime
especial de verdade em curso na prática psicanalítica, segundo
a historicidade de sua ontologia; situar tal regime no quadro
de certas estratégias de poder e examinar a constituição de prá­
ticas éticas que fazem resistência a tais estratégias. A genealo­
gia, por outro lado, é um tipo de pesquisa que se opõe à uni­
dade ou totalidade da narrativa histórica e a busca da origem.
Ela trabalha, inversamente, com a diversidade e a dispersão
dos acasos e dos acidentes em uma tentativa de desassujeitar
os saberes históricos, capaz de torná-los figuras de oposição e
luta contra a ordem do discurso (Revel, 2005, p. 53): “[a gene­
alogia] deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos,
a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar, o que somos,
fazemos e pensamos” (Foucault, 1971, p. 26).
Constituição do sujeito, tarefa da genealogia, combina-se
assim com a noção de formação. O exame da formação de
discursos é tarefa da arqueologia e a noção é empregada por
Foucault para estudar os discursos segundo uma lógica de
oposição e compromisso e uma tática de dominação de obje­
tos. Genealogia e arqueologia mostram-se assim tarefas meto­
dológicas distintas, porém articuláveis. Elas figuram em nosso
título nas figuras da constituição e da estrutura.
O poder de que se trata, na construção de posições, não é
o poder de Estado (interessado na segurança das populações),

50
nem o poder das associações (interessado na disciplinariza-
çao da prática) e ainda menos o das políticas de saúde mental
(interessado na eficácia), mas aquele que confronta o sujeito
com seu desejo e com seu destino. Apesar disso este não é
um trabalho sobre as implicações e conseqüências diretas da
psicanálise para a teoria política ou para o entendimento do
funcionamento social, campo no qual a pesquisa psicanalíti­
ca tem avançado frutiferamente. A presente pesquisa tem um
escopo menos ambicioso. Pretende apenas pensar a prática do
tratamento à luz de sua história, cruzando-a com certos pon­
tos da história de outras práticas e relacionando tais pontos
com a estrutura do fazer psicanalítico. Neste sentido interes­
sa investigar o poder constituído pela palavra que influencia,
o poder que se fabrica e se desfaz no dispositivo analítico, o
poder que legitima, prescreve e se positiva nas formas de so­
frimento psíquico ou o poder que se problematiza no axioma
psicopatológico pelo qual o sintoma é uma figura da privação
de liberdade.
A maior parte dos trabalhos que examinaram as críticas
emanadas da genealogia foucaultiana ou das objeçÕes pós-
estruturalistas à psicanálise, defenderam esta última baseando-
se no contra argumento de que nossos críticos realizam um
englobamento genérico e uma unidade homogênea da psica­
nálise, bem como extrapolações indevidas de conceitos como
sexualidade, desejo e repressão. Isso despertou objeções de psi­
canalistas (Mezan, 1988, p. 184-217) que invocam a necessi­
dade de um exame mais detalhado e não redutivo da questão
em suas diferentes ramificações e variantes, quando não uma
autêntica ruptura trans-histórica representada por seus funda­
dores. Geralmente quando se pretende examinar a constitui­
ção histórica de uma prática devemos deixar de lado os inter-
pretantes que esta própria prática nos impõe, caso contrário,
nos arriscamos a encontrar apenas o que introduzimos com
nossas próprias categorias e organizar a história anacronica-
mente, segundo uma teleologia confirmatória. Por outro lado

51
as discussões temáticas e as implicações clínicas dos próprios
tópicos encontrados não nos interessam apenas pelo seu valor
historiográfico, mas também porque tensionam a própria prá­
tica presente, acrescentando-lhe conseqüência e iluminando
problemas de sua formulação. E por isso que conjugamos o
exame histórico da constituição da clínica psicanalítica com
proposições sobre aspectos de sua estrutura. Pretendemos
mostrar, ao final, que esta oposição relativa entre a lógica de
um procedimento e a origem histórica de seus elementos não
é externa ao problema tratado.
De certa maneira este é um ponto que separa a história da
psicanálise, marcada pelo exame dos monumentos que lhe de­
ram origem, da arqueologia e genealogia da psicanálise, cujo
intuito é a análise de fragmentos que podem questionar e rein­
ventar o presente. A dispersão e descontinuidade, decorrente de
nosso método histórico topológico, poderá ser complementada
pela leitura de trabalhos sobre história da psicanálise (Roudi-
nesco, 1986) e das práticas psicoterapêuticas em geral (Jackson,
1999). Se encontrará nestes textos ótimas referências, quer so­
bre a epistemologia histórica dos conceitos clínicos (Assoun,
1978) quer sobre a implantação cultural da psicanálise (Parker,
1997) e ainda sobre as origens do método (Cazeto, 2001) ou da
psicopatologia psicanalítica (Berrios, 1996).
Por isso pareceu-me importante ressaltar, ao lado destas
duas vertentes, o exame das relações entre cura, tratamento e
clínica com a esfera do poder. Seria vão tentar estabelecer uma
definição do poder que fosse exterior aos contextos e fragmen­
tos tratados uma vez que o propósito mesmo da genealogia é
tornar esta forma-poder visível. Contudo, para que esta noção
não acabe diluindo-se em seu entendimento mais comum, li­
gado ao tema da dominação, da lei e do Estado, e consequen­
temente da força e da violência, parece-me prudente introdu­
zir algumas palavras sobre o assunto.
Dois saberes interessam-se diretamente pelo tema do po­
der: a política e a guerra. Ambos mantêm uma referência his­
toricamente insistente com relação ao espaço. No fundo toda
política e toda arte da guerra começam por uma espécie de
geografia, uma teoria imanente do território, do lugar e da po­
sição. Não é coincidência que a reflexão política do ocidente
tenha se inaugurado pela noção de pólis, se desenvolvido na
ideia de cidade e posteriormente de território. A posse primei­
ra é a posse do espaço. Que seja o domínio do próprio corpo
e de sua circulação, que seja a posse do outro, não há reflexão
sobre a liberdade que não contenha uma pequena teoria sobre
o espaço e sua habitação ou domínio. Supomos, nesta medida,
que o poder, na tradição metafísica ocidental, tem sido pensa­
do como adequação e englobamento entre espaço, lugar e posi­
ção. É uma constante que esta amarração entre estes três níveis
seja determinada por redes de inclusão, exclusão e conflito. O
presente estudo tenta mapear zonas de instabilidade, mostrar
como a montagem dos diferentes discursos e dispositivos não
é uma marcha totalitária rumo a uma máquina de poder sem
fissuras. Sem isso o esforço de Foucault terá sido apenas mais
um empreendimento usado para em nome de uma prática ex­
cluir outras. Inversamente, a serventia de seus trabalhos para a
reflexão crítica dos psicanalistas, terá sido inútil.

53
CAPÍTULO 1

A D ÚVIDA DE U LISSES

LISSES ENCONTRA-SE EM PLENO SOLO DE BATALHA. ISOLADO

U de seus companheiros, ele se vê diante de um exército de


troianos que avança em sua direção. Nesse momento, o herói

(...) o que via acontecer comigo? Se eu fugir assustado por


eles, será um grande mal; mas se for agarrado sozinho, será
mais terrível. Mas por que meu thym os me diz estas coisas?
Pois eu sei que os maus (kakói) abandonam a batalha, mas
aquele que é excelente (aristeyesi) na luta deve resistir co­
rajosamente. (Homero, 2000, Livro XI)

Para os heróis de Homero ou de Hesíodo, esta é uma cena


rara. E normal que as narrativas épicas contenham dois tem­
pos, um horizontal (diacronico), relacionado ao presente, ao
desfecho da ação, e outro vertical (sincronico), relacionado à
reconstrução dos elementos da cena com base em referências
do passado que produzem o sentido da cena no presente. A
cena narrada contém estesjdois planos em perspectiva. No pla­
no horizontal, está a açao objetiva em que se aguarda o desfe­
cho do ataque. No entanto, no plano vertical, não há um re­
torno ao passado, e sim, uma conversa do herói consigo, gerada
na hesitação e na surpresa diante de seus pensamentos; cena
rara pois relata a verticalização de um conflito no interior de
um personagem. Em contraste a esta cena, um exemplo, tam­
bém na Ilíada: em meio ao incêndio de navios e a providencial
chegada dos mirmidões, lendário povo grego que acompanhou
Aquiles à guerra de Tróia, há tempo para uma comparação en­
tre a situação premente e a vida dos lobos, a ordem genealógica
dos mirmidões, além de informações precisas sobre a vida dos
subalternos; interpolam-se histórias detalhadas sobre a vingan­
ça de Juno contra sua terra natal apenas porque tal ilha tinha
o mesmo nome da amante de Zeus. Assim, a urgência de que
algo deve ser feito, uma vez que os navios da frota grega estão
em chamas, cede espaço a reconstrução da matéria memorial
da qual a cena é composta. Depois da reconstrução do lugar e
das posições dos elementos que compõe a cena, o ato torna-se
completamente inteligível, sem que tenhamos que recorrer à
deliberação individual do herói (Auerbach, 1989, p. 5).
Portanto, o tempo no qual se desenrola a dúvida de Ulisses
é um acontecimento inusual. Em geral, o passado nos informa
a genealogia do herói ou é reconstituído por uma narrativa
que explica, pela filiação a uma linhagem, aos laços e aos com­
promissos com o grupo de origem, quem é o personagem e
por que ele está ali. No fundo, a dúvida de Ulisses é pertur­
badora e anômala, pois traduz a seguinte questão: p o r que me
pergunto sobre o que fazer, uma vez que sei quem soul A astúcia
e engenho de Ulisses não o transformam. E por isso que nele,
depois de uma década de jornada, de lutas contra monstros,
inimigos e deuses, não se apresentam cicatrizes, nem marcas
corporais desta jornada. Esta permanência de si é realizada por
meio de certas escolhas formais, presentes na narrativa homé-
rica, consoantes ao manejo do tempo. Só há primeiro plano,

56
uniformemente iluminado e objetivo, e é por isso que “o grego
conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente
soluções (mesmo, que enigmáticas), mas nenhum enigma, so­
mente formas, mas nenhum caos” (Lukács, 1916).
A situação de isolamento, que estrutura narrativamente a
epopeia, assim como a experiência de suspensão da lei, presente
na tragédia, são duas condições complementares que retratam
a situação de alguém que está fora de lugar. O desterro ou o
exílio do herói épico, estabelece uma separação entre o lugar de
origem do herói e as situações que ele tem que atravessar em sua
viagem. A experiência de perda do lugar é representada pelas
referências simbólicas da comunidade de origem, suas leis e cos­
tumes, sua família, sua língua, para as quais tenta retornar. Por
outro lado a saga épica constitui uma experiência nova, baseada
na tomada de posição diante de situações inéditas.
Este sentimento de perda de lugar e o esforço para tomar
uma posição, que caracterizam tanto a experiência trágica
quanto a épica, se cruzarão novamente na concepção grega da
loucura. Para eles a loucura pode acometer qualquer um sem
aviso ou previsão, como decorrência da intervenção dos deu­
ses e particularmente das Erínias. A loucura pode acontecer
como uma ate, ou seja, um estado transitório de insensatez ou
cegueira, induzido pelos deuses, como instrumento de resgate
da ordem. Um estado no qual, diríamos, alguém “sai de si
mesmo”, ou seja, “sai de seu lugar”. No segundo tipo de indu­
ção da loucura há intervenção direta das Erínias. Elas enlou­
quecem os homens, de forma mais duradoura, ao revelarem
seus nomes: tychê (evento), nemesis (vingança), moira (destino)
ou anankê (necessidade) (Pessotti, 1994). Tais nomes expri­
mem uma tomada de posição diante de circunstância superior
ou invencível.
Nas duas formas de loucura grega há uma espécie de pos­
sessão do thymos, o mesmo órgão dos sentimentos que falava
fora de hora na cena em que Ulisses está cercado pelos inimi­
gos. O thymos é o que nos move para frente, sede das paixões e

57
da raiva, fonte do desvio. Ç)s deuses se apossam deste órgão de
duas maneiras: mania e melancolia. Portanto, a loucura não é
castigo ou punição por um ato específico, mas possessão pelo
desejo dos deuses. Ela pode se assemelhar a uma desmesura
(.hybris), ou seja, um ato humano que ultrapassa o limite hu­
mano; ela pode se parecer ao isolamento e ao exílio; contudo,
a loucura, ao contrário destas outras experiências é, sobretudo,
perda não consentida de si e intrusão inadvertida do outro.
Daí que para agir como herói Ulisses deva dominar seu thy-
mos, até o ponto em que possa concluir o regresso ao seu lugar
em Itaca, e tomar posição, como lhe cabe, afastando os preten­
dentes de sua esposa Penélope.
Os heróis do Velho Testamento possuem outra textura.
Na épica de Moisés ou de Abrahão há camadas verticais so­
brepostas de sentido e conflito. Há perspectivas em profun­
didade escalonada, insinuando uma espacialidade subjetiva e
moral. A sintaxe é pobre e salta os detalhes; os pressupostos
da narrativa não são explicitados. O estilo é humilde e alusivo
(Auerbach, 1988, p. 39). Em acordo com tais propriedades
formais a dúvida dos protagonistas aparece criteriosamente
distendida e depois solucionada. Ela é uma experiência desen­
volvida, disseminada e adiada ao longo do texto, por meio de
sucessivos aprofundamentos verticais nos quais a incerteza e a
confiança são levadas ao paroxismo. E neste cenário discursi­
vo que loucura aparece também como uma figura da dúvida,
mas em sentido distinto da dúvida de Ulisses. Agora se trata
de colocar a prova um pacto de fé, de testar os limites de uma
comunidade invisível, que acompanhará o herói onde quer
que ele vá, pelo deserto, pelos exílios e desterros ou ainda pelo
vale das sombras. Em Eclesiastes, por exemplo, a loucura apa­
rece como uma espécie de privação da sabedoria, como uma
desarticulação entre saber e crença. Aparece assim o caráter
vertical da temporalidade, que tende a produzir efeitos de in-
teriorização que explicam a atribuição de uma estatura moral
a loucura, completamente ausente para os helênicos: “Do riso

58
eu disse: loucura. E da alegria: para que serve?” (Eclesiastes).
A loucura nio é mera perda da razão prática ou do bom sen­
so. Ela não provém de fora, pela interveniência ou possessão
divina, mas decorre da perturbação interna da própria lógi­
ca da confiança. Esta perturbação aparecerá em uma série de
divisões nas quais o processo prático da crença se desdobra:
separação entre saber e crer, dissociação entre querer e poder,
isolamento entre disposições e atos.
Tal sistema de divisões aprofunda-se no Novo Testamento.
Mas agora seus heróis não são definidos pela economia da ação
ou pelos desdobramentos de causas inacessíveis, e sim pelo
tipo de transformação gerado pelo acúmulo de divisões. Saulo
de Tarso, por exemplo, transforma-se sucessivamente desde o
caminho de Damasco à sua prisão pelos romanos e sua estadia
entre os gregos: passa de perseguidor de cristãos a apóstolo e
mártir; e torna-se Paulo em uma experiência decisiva de con­
versão. Muda assim um dos traços mais marcantes da perten­
ça de alguém a seu lugar de origem: o próprio nome. Pau­
lo, viajante como Ulisses, mostra pelo domínio das línguas e
das culturas nas quais se torna sucessivamente cativo, que seu
passado pode ser ultrapassado, que ele não precisa se definir
sempre e apenas pela comunidade da qual procede. Portanto,
as coordenadas simbólicas que definem um sujeito podem ser
alteradas por uma experiência radical de suspensão da lei. A
conversão é este novo início, esta tomada de posição radical
que abole o ordenamento de lugares simbólicos pelos quais
o passado define o presente. E por isso que Paulo teria sido o
inventor do conceito de universal, segundo a sua conhecida
fórmula: “Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo
nem homem livre, não há mais homem nem mulher” (Paulo,
Epístola de Gálatas, 3.28).
O preço pago por esse tipo de herói é que sua história tor­
na-se repleta de desconexões, contradições, alusões e alegorias.
Formas discursivas nas quais o sistema de divisões se mostra
como um trabalho indeterminado de reconstrução de referên­

59
cias. O herói bíblico não decide sua ação baseando-se no re­
gresso à sua identidade. A coerência de seus atos não se dá pela
exatidão de sua filiação, como em Homero —em que há uma
única paternidade. Para o leitor do Novo Testamento impõe-se
outra exigência de interpretação. Um trabalho de decisão de
sentido que completa a consistência do que é narrado. Este
trabalho coloca a própria crença a prova no exercício de inter­
pretação do texto.
Isso reaparece nas principais formas da loucura descritas no
universo judaico-cristão. Aqui a loucura não é perda de si, mas
experiência de divisão radical, que pode ocorrer de duas ma­
neiras. No primeiro caso há uma espécie de desintegração do
sentido, típica do espectro esquizoide. No segundo caso esta
divisão ocorre no próprio sujeito, mas conservando a unidade
de suas figuras de alteridade, sentidas como perseguidoras, ao
modo da experiência paranóica.

1.1. PRÁTICAS NARRATIVAS E FORMAS DE MAL-ESTAR


A temporalidade judaico-cristã decorre de um universo que
teve um início e, consequentemente, terá um fim. Ao contrá­
rio de Ulisses ou Eneias, que vivem um tempo circular sincrô-
nico à epopeia dos deuses e às estações do ano, os heróis do
Velho Testamento são habitados pela questão permanente: como
devo agir para m e tornar o que sou? Quando Moisés pergunta
o nome deste que lhe transmite as tábuas da lei, a resposta é
Ehyeh acher ehyer (Bíblia de Jerusalém, Êxodo, p. 3). Esta res­
posta é um enigma e uma inversão da pergunta. Ela inspira o
uso de menções alusivas da divindade: uma voz ou um som,
(como no ritual da shofar). Ela é também um escrito impro-
nunciável (YHVH). A interdição do nome combinam-se com
a mítica do animal sacrificado em nom e de. A própria contro­
vérsia em torno da tradução desta expressão hebraica faz parte
desta dúvida imanente à crença: sou aquele que sou (tradução
de S. Agostinho), sou aquele que é (tradução septuaginta), eu

60
sou quem eu sou (tradução católica) e ainda, eu sou, eu sou (tra­
dução protestante).
Para os greco-latinos a revelação do nome de um deus e sua
remissão a uma genealogia precisa contém a racionalidade que
equilibra as relações humanas. Na tradição semítica, ao contrá­
rio, o nome que sustenta a autoridade esconde-se, ele não está
em nenhum lugar e, portanto, pertence a toda parte. A função
da nomeação é substituída por perífrases, alusões ou figuras de
tratamento, tais como El Shaim, Adonay, Shem ou Elohim.
Examinando aspectos exegéticos do antigo testamento, Lacan
(1963c) observou que há uma homologia entre as relações de
nomeação, de designação e de metaforização com o processo
de negação, deformação e retorno que caracteriza a formação
de sintomas. Sintomas neuróticos contém um aspecto origi­
nalmente im pronunciável ou secreto. Eles expressam um saber
deformado quanto ao seu modo de expressão. Assim como a
nomeação da divindade justifica uma prática simbólica de sacri­
fício, atualizada nos ritos sociais e reforçado por novas versões de
sacrifícios importantes para a disciplina civilizatória, o sintoma
é uma prática de satisfação inconsciente que responde ao supe-
reu, instância internalizada da lei, que possui ação interditora,
prescritiva e coercitiva. A nomeação envolve criação de sentido
inédito e divisão do sujeito, o sintoma, por sua estrutura de me­
táfora, envolve indução de uma nova significação e substituição
simbólica do desejo.
Agamênon se desculpa por ter encolerizado Aquiles, ao
roubar-lhe à amante, dando origem a uma das melhores repre­
sentações da loucura furiosa na antiguidade: “Não fui eu que
causei este ato, mas Zeus, o destino e as Erínias que andam
na escuridão: foram eles que, na assembleia, colocaram uma
ate selvagem na minha compreensão” (Homero, Op. Cit., Li­
vro XIX). O paradigma judaico-cristao, por sua vez, aborda a
loucura como errância ou ignorância de nomeação. Sua con­
cepção sobre o patológico centra-se nas ideias de desvio, inde-
terminação e ruptura.

61
Para Freud, herdeiro dà tradição judaico-cristã, tal ruptura
corresponderia ao assassinato do pai. A multiplicidade de ho-
mologias, apresentada acima, entre as funções de nomeação e
as funções do sintoma, sugere que a dificuldade de nomeação
de um ancestral (totem) e a conseqüente quebra de um pacto
(tabu) introduzem um objeto novo, uma anomalia refratária
ao sistema de classificação, que se apresenta como um nome
impronunciável. O paradigma greco-romano enfatiza a loucu­
ra como perda de regulação do espírito, como no caso da atê, ou
como perda da alma, como no caso da possessão divina. Estes
desdobramentos hipotéticos convergem, em grande medida,
com as quatro concepções etiológicas das doenças compiladas
nas diversas culturas ao longo dos tempos (Ellemberger, 1970,
p. 5): (1) desregulação do espírito; (2) perda da alma; (3) que­
bra de tabu e (4) aparição de um objeto intrusivo.
Há uma quinta teoria (influência maligna ou feitiçaria) que
discutiremos mais adiante. Se as teorias greco-romanas sobre o
patológico inspiram práticas baseadas na recomposição da or­
dem interna ao espírito estrangeiro e no regresso da alma para
seu lugar, as concepções judaico-cristãs, por sua vez, enfatizam a
problemática da extração de um objeto intrusivo e a reconcilia­
ção de um pacto rompido. Enquanto a concepção greco-latina
valoriza o patológico ipathos) como excesso de indeterminação
do espírito, a tradição judaico-cristã enfatiza o patológico como
falta de determinação da alma. Ulisses está possuído por dúvi­
das cuja existência ele jamais deveria ter admitido e seu processo
envolve sucessivas supressões das forças divinas ou terrenas que
o confrontam com experiências de indeterminação. Paulo, ao
contrário, está possuído por uma falta de determinação. Seu
processo de conversão, suas viagens e seus atos, constroem um
percurso de gradual recuperação da determinação pela fé, e que
se confirma pela fé na determinação divina: “Em Paulo, existe
uma ligação fundamental entre universalismo e carisma, entre
poder da destinação universal do Um e a absoluta gratuidade da
militância” (Badiou, 1999, p. 91).

62
Daí que as práticas de cura judaico-cristã insistam nas es­
tratégias de nomeação, seja, ao modo da oração, da invocação,
seja ao modo da confissão ou da narração do caminho da alma
que se perdeu. Os atos de nomeação são maneiras de reintro-
duzir a relação entre razão e fé, por meio do reconhecimento
de uma determinação. Portanto, a falta de determinação tem
um duplo sentido. Falta moral uma vez que falta significa erro,
errância, violação de preceitos, mas também falta ontológica,
pois falta indica imperfeição e insuficiência, em contraste com
a perfeição e suficiência divina. E por isso que Deus m e p ed e
para gozar, mas sob determinadas ordens, dentro de limites, se­
gundo certas regras (SX:1962-63, p. 91).
No caso greco-romano a prática de cura é inversa. Trata-se
de fazer silenciar o estranho, de apaziguar o intruso, de trans-
feri-lo para outro lugar, devolvê-lo para onde ele se originou.
Se a cura judaico-cristã acrescenta algo ao sujeito, a greco-ro-
mana pretende retirar-lhe algo. Voltemos ao caso do thymos
de Ulisses. Afinal é esta parte de seu corpo que naquele mo­
mento da batalha deveria estar silenciosa, mas que passa a falar
como um elemento alienígena induzindo uma desregulação
do espírito, que suspende a ação, e uma perda da alma, que
faz o Odisseu perguntar-se quem é. O thymos é um potencial
obstáculo ao que se espera de um herói homérico, ou seja, que
ele apresente, permanentemente, uma congruência entre agir
bem e ser bom. Ser bom (agathós) implica usar as habilidades
e os talentos necessários para reunir os meios e os fins de uma
ação conforme seu lugar na comunidade. Ser bom é possuir os
bens necessários para agir de modo eficaz e dar provas disso.
Mas ser bom não é o mesmo que agir de modo virtuoso, assim
como possuir recursos não é o mesmo que empregá-los bem.
Para Ulisses ou Aquiles, é necessário que, além da eficácia e da
astúcia {agathós), esteja presente ainda a excelência {aretê). A
excelência incide na relação entre o agente e o outro a quem se
destina a ação; a eficácia, por sua vez, organiza a relação entre
os fins e os meios.

63
Os heróis mitológico! têm sua excelência garantida por
uma espécie de participação entre a finalidade de seus atos
e os interesses e as disposições dos deuses. E assim que a lei
dos deuses (dikê) se sobrepõe ou se opõe à virtude (areté) dos
heróis. Isso explica por que Ulisses se espanta com sua própria
hesitação. Um guerreiro deve lutar, caso contrário não seria
um guerreiro, cujos fins são a luta e a glória. Ele é o que é, pois
está em seu lugar. Além disso, ele dispõe dos recursos para lu­
tar, principalmente coragem e astúcia. Ulisses prefere perder,
desempenhando bem seu papel, a ganhar, saindo de seu lugar.
Contra isso pesa essa pequena pedra adicional: o thymos.
O Velho Testamento nos dá outra versão do problema. A
finalidade está presumida, mas ela é essencialmente desconhe­
cida dos personagens. Seus meios são também obscuros, como
se nota no Livro de J ó ou no Cântico de Salomão. O herói bí­
blico deve confiar e agir sem dispor de todo o saber necessário
para tal. Nele, a virtude está em permanente descompasso com
a lei. É por isso que um herói homérico jamais experimenta a
culpa, mas pode padecer de vertiginosa vergonha; está sempre
em seu tempo, idêntico a si mesmo. O herói judaico-cristão,
ao contrário, é um exilado em sua própria temporalidade; pro­
cura encontrar seu tempo em sucessivas experiências de trans­
formação, crise e reformulação. Durante esse trajeto, como vi­
mos, o sujeito pode “tornar-se outro”, mudar o próprio nome,
mudar de país, alterar as regras genealógicas e morais nas quais
se formou. Como mostrou Lévinas (1997), foi no seio da ex­
periência judaico-cristã que se abordou pela primeira vez o
caráter problemático da alteridade, assim como foi no cosmos
grego que se firmou a primeira reflexão sobre o caráter instá­
vel da identidade. Ora, este tipo de generalização se presta a
salientar como podemos encontrar diferentes respostas para
a questão da estrutura e constituição de uma prática. Diante
da pergunta ‘o que fazer? três famílias de respostas podem ser
colocadas (Macintire, 1991, p. 31):

64
(a) O agente do ato raciocina a partir do que é bom para os
que são de seu tipo social. A partir disso extrai o melhor benefí­
cio possível da situação, ou seja, sua ação se justifica na preser­
vação dos laços que unem o agente ao outro. Suas conclusões
se realizam na forma de atos que visam conciliar causas, mo­
tivos e razões que preservem esta identificação. Neste caso é
difícil discernir a excelência do processo da eficiência e eficácia
de seus resultados, sobretudo se falamos de uma comunidade
com fortes laços de pertencimento.
(b) O agente do ato raciocina a partir do que é desejável
para si epa ra os seus, ou seja, a sua comunidade de origem ou
referência atua como meio e justificativa da ação. O ato é pen­
sado como se o agente fosse um suporte para a transferência
das aspirações de sua comunidade de pertencimento. A partir
disso avalia-se os meios e condições pelos quais o agente levará
a cabo sua intenção, que é também a intenção dos outros.
Suas conclusões se realizam na forma de decisões, atitudes ou
disposições que lutam para conciliar meios e fins de forma a
aumentar a excelência dos envolvidos.
(c) O agente do ato raciocina a partir do que é satisfatório
para si, sendo seu tipo social ou sua comunidade de origem uma
extensão contingencial ou problemática desta condição. A par­
tir disso o agente avalia os riscos e benefícios implicado em uma
ação racional orientada para tal objetivo. Em outras palavras,
o agente enfatiza sua ligação aos fins, próprios ou impróprios,
mas, sobretudo delimitados por ele mesmo. Suas conclusões se
realizam como um processo calculado de desempenho e eficácia

1.2. ÉTICA E TÉCNICA


Ao contrário de Lênin, nem Freud nem Lacan jamais es­
creveram tal coisa como um O Que Fazer? Seus conselhos
(Ratschlage), questões preliminares, observações, ou princípios
jamais formaram uma totalidade harmônica, sistemática ou
consensual que pudesse submeter de fato a prática do psica­

65
nalista a um conjunto de;regras de ação protocolares. Os cha­
mados textos sobre a técnica, bem como suas extensões mais
ou menos felizes, mais ou menos padronizantes ou digressivas,
possuem o principal mérito de indicar alguns pontos cruciais
quanto ao quê e como não fazer. Não intervir muito cedo, nem
julgar, não interromper a associação livre, nem praticar trata­
mentos gratuitos, não corresponder aos apelos pulsionais do
paciente, nem aceitar pacientes com certas características, não
estabelecer promessas nem limites temporais para a cura, não
deter-se demasiadamente em todos os aspectos de um sonho,
e assim por diante. Quero crer que o argumento lacaniano de
que a ética deve substituir a técnica tem sido empregado de
maneira um tanto genérica, pois é evidente que há uma técnica
em curso na psicanálise. O problema seria delimitar seu lugar
no conjunto formado pela estrutura da prática na qual ela se
insere. Assim como há uma técnica na pintura, no teatro, na
cirurgia ou na arte de concertar uma bicicleta, há uma forma
regular de obter certos efeitos por meio do uso da palavra em
situação de tratamento. Ocorre que a técnica, à qual pertence
o regime das táticas, deve manter uma relação específica com o
campo da ética. No caso de analistas de extração inglesa encon­
tramos uma tese análoga: a interpretação deve subordinar-se
às condições da contratransferência, ou ainda, o setting deve
respeitar as condições de acolhimento. O que estou queren­
do insistir aqui é que a dispersão das formas de entendimento
sobre o assunto e a disparidade ou ingenuidade dos modos de
organizá-lo, sugerem que há uma espécie de lacuna na psica­
nálise em estabelecer e refletir sobre o que é uma prática. Em
outras palavras, dado o caráter contra intuitivo da ação psica-
nalítica é como se suspendêssemos nossa reflexão mais genérica
sobre o que significa fazer algo, em todas as suas modalizaçÕes:
saber-fazer, querer-fazer, dever-fazer e poder-fazer.
Daí que a distinção entre eficiência {agathós) e excelência
{areté) esteja no início das considerações sobre os princípios do
poder no tratamento psicanalítico. Se considerarmos a análise

66
como um processo interminável que propõe aprofundamento
contínuo na relação com o inconsciente, um trabalho aberto
de decifração de. si, só poderemos medi-la pelos critérios de
excelência. Por outro lado, o trabalho da psicanálise pode ser
considerado à luz de sua eficácia na remoção dos sintomas e
no alívio do mal-estar psíquico. Neste caso, a psicanálise é um
meio para realizar um fim, um bom método para remoção de
sintomas específicos.
A oposição entre excelência e eficácia é um tema recorrente
na história da psicanálise. Basta citar a controvérsia que opu­
nha a análise dos sintomas à análise do caráter, nos anos 1930;
a querela que opunha pacientes analisáveis e pacientes não
analisáveis, nos anos 1940; a oposição entre análise padrão e
suas variantes, nos anos 1950. Ainda em nossa época, encon­
tramos aqueles que defendem que há uma ética na psicanálise,
mas ela tem papel regulador, pois, no fundo, seu fundamento
é o método; e aqueles que defendem que a psicanálise é uma
ética, pois nela o método está a serviço de uma ética em sen­
tido constitutivo.
A análise do caráter não implica apenas remover, reduzir
ou solucionar conflitos e seus compromissos, mas também
mudanças “em nível de um modo de vida e de seu compor­
tamento” (Ferenczi, 1927, p. 16). Ora, tais mudanças exigem
um crivo de consideração que a eficácia tradicional não pode
oferecer, pois sua condição é sempre negativa: a remoção de
algo que obstrui ou limita a vida do paciente, a extração de um
objeto. Ao contrário do sintoma, da inibição ou da angústia,
o caráter é algo de que dificilmente os sujeitos se queixam. O
mesmo se poderia dizer de muitos transtornos narcísicos. Nes­
tas circunstâncias a cura implica acréscimo qualitativo.
A tese da tensão de éticas nos remeteria, assim, a uma du­
pla origem. De um lado, as pretensões psicoterapêuticas, de
inspiração judaico-cristã, se assentam na relação pessoal, na
autoridade direta e no benefício positivo. De outro lado, en­
contramos as pretensões clínicas, de inspiração greco-roma-

67
na, que enfatizam a relação entre meios e fins e apoiam-se na
autoridade impessoal e no benefício negativo da cura. Se a
narrativa judaico-cristã incita à fuga de desprazer, a narrativa
greco-romana nos convida à procura de satisfação.
Freud (1905a) enfrentou o problema representado pela es­
trutura da prática recorrendo às categorias da estética de Le­
onardo da Vinci. Há as artes que operam p er via di porre e
as que o fazem p er via di levare. Pela via de porre, trata-se de
acrescentar algo, como na pintura, no hipnotismo e nas prá­
ticas de sugestão. Nelas, supõe-se que a terapia introduz algo
novo no sujeito, algo que ele não possui e que lhe seria entre­
gue como positividade, enriquecendo-o com mais saber e, em
última instância, propiciando uma forma positiva de poder.
Na via de levare trata-se, ao contrário, de retirar ou subtrair
algo, como na arte da escultura: “A terapia analítica, ao con­
trário, não quer agregar ou introduzir nada novo, senão restar,
retirar, e com este fim se preocupa com a gênese nos sintomas
patológicos e a trama psíquica da ideia patógena, cuja elimi­
nação se propõe como meta” (Ibid., p. 250).
Por esta definição, a psicanálise se orientaria, sobretudo,
para uma forma negativa de poder; um poder nem prescriti-
vo nem restritivo, mas apenas referido à retirada daquilo que
obstrui a soberania do sujeito. Ela não engendra uma nova
forma de liberdade; apenas abole a sua privação contingen­
te. O critério freudiano da via de levare tem o inconveniente
de reduzir a psicanálise à sua dimensão clínica, refreando sua
pretensão psicoterapêutica. Ele está mais próximo da narrativa
greco-romana da excelência do que da narrativa judaico-cristã
e sua incontornável temática acerca do fim do processo. A pro­
blemática da terminação da análise, com critérios claros e dis­
tintos para o encerramento do processo, exige uma teoria forte
sobre a transformação esperada do sujeito. Ao contrário, para
a leitura de inspiração psicoterapêutica, o tema do término
do tratamento estaria ligado à imperícia técnica (interrupção
precoce) ou um esgotamento espontâneo (por critérios prag­

68
máticos), mas não seria uma exigência intrínseca e estrutural
do tratamento.
Ocorre que a.dimensão psicoterapêutica se reapresenta no
tema da dissolução da transferência. As relações de influên­
cia e autoridade, que agiram durante o tratamento como seu
meio privilegiado de ação (a transferência), precisam ser igual­
mente tratadas redundando em uma separação. Uma solução,
de clara ressonância judaico-cristã, remete à possibilidade de
que após o tratamento psicanalítico alguém se torne psicana­
lista, ou seja, uma experiência compatível com a da conver­
são. Outra possibilidade, não incompatível com a primeira, é
que o próprio princípio que orienta e subsidia este poder da
transferência, que é também onde reside o poder da cura na
psicanálise, seja reduzido a um objeto e então extraído. Con­
tudo esta operação não pode ser pensada nem sob a égide de
um procedimento clínico, pois toma a transferência como um
meio, nem como uma estratégia psicoterapêutica, posto que o
objetivo é questionar seus fundamentos.
A analogia freudiana com a estética de Leonardo levanta
outro problema: o que fazer com as artes que, de fato, mais se
aproximam da psicanálise —chamemo-las “artes da palavra”?
A poesia e a literatura, artes da palavra escrita; ou o teatro, arte
da palavra falada; a dança, arte da palavra escrita por meio de
gestos. Que dizer da música, esta forma de arte refratária aos
princípios da representação? Seria pela via de porre ou pela via
de levaré*. Acrescentar palavras sobre o papel não é o mesmo
que jogar tinta sobre uma tela; palavras adicionam sentido,
mas também são capazes de desfazê-lo. A alternativa entre
despojar-se de sintomas, interpretados como excessivos {via de
levare) e tornar-se alguém melhor {via de porre), assemelha-se
à alternativa entre fugir do desprazer e buscar o prazer, ambas
dialetizadas no âmbito das artes da palavra.
Vimos que tanto a cultura grega clássica quanto a hebraica
se estabelecem a partir da escrita de uma tradição oral. Nessa
passagem há uma transmutação do poder atribuído à palavra.

69
O dito dos poetas e dos profetas muda quando se torna fato
escrito. O mito transmitido oralmente se transforma, mas as
transformações que sofre são compensadas pela autoridade do
testemunho, de seus intérpretes ou representantes. A palavra
oral e a palavra escrita inscrevem-se de modos distintos no
tempo. Quando o mito assume a forma escrita torna-se ou­
tra coisa, mitologia, crônica ou, talvez, história, e sua ligação
com a crença torna-se exterior, opcional e discutível. Uma vez
escrito, o mito forma parte de um aparato de regulação, não
mais uma prática constitutiva do laço social em determinada
comunidade.
Homero e Hesíodo —em que pese a controvérsia sobre a
existência real do primeiro - compilaram e traduziram os mitos
e poemas aedos e rapsodos por volta do século VIII a.C. A filo­
sofia e os sistemas jurídico e político gregos, que associamos a
Platão e Aristóteles, consolidaram-se apenas no século V a.C. A
figura fundadora da filosofia grega, Sócrates, nada escreveu, sen­
do seu legado organizado pelos que testemunharam sua experi­
ência. E uma figura de transição entre o oral e o escrito muitas
vezes comparada ao psicanalista, tanto por seu método (ironia e
maiêutica) quanto por seus fins (a verdade de Eros).
Inúmeras práticas de cura mágica afloraram na Grécia no
período em que os mitos encontravam sua passagem para o
universo escrito. O menadismo (baseado na dança), a taurgia
(baseada nos astros), a oniromancia (baseadas no sonho) e as
diferentes formas de mântica (adivinhação), formam um ce­
nário sincrético entre os diferentes tipos de culto de onde pro­
cedem (órficos, dionísicos, pitagóricos), forçados à unificação
pela compilação escrita dos mitos (Dodds, 2002). Podem ser
lidos, portanto, como expressões da desestabilização da comu­
nidade grega em momento de transição e como repertório he­
terogêneo de táticas de cura. Sua própria existência plural e a
disparidade de suas particularidades indicam o declínio social
de sua função. São formas de cura que localizam a comuni­
dade positiva não no presente, mas no passado ou no futuro.

70
As narrativas heróicas, gregas ou judaico-cristãs, combi­
nam-se em seu uso terapêutico e clínico. Separadas do mito
tanto pela sua forma de transmissão escrita quanto pela pro-
blematização do poder ligado à palavra, esses gêneros narrati­
vos incitam uma terapêutica baseada no compromisso com a
comunidade e uma diagnostica de inspiração moral. A dúvida
de Ulisses aparece quando ele se vê separado de seu exército e
de seus companheiros, isto é, quando a contingência o leva a
se considerar como um indivíduo, diante de uma massa hostil
de estrangeiros que talvez não o reconheça como o grande
Ulisses, rei de Itaca. O isolamento, o exílio, a separação, o
estado de marginalidade, em sentido antropológico, são pro­
tótipos da experiência de interiorização e individualização
(Dumont, 1985, p. 36). São situações que questionam a con­
sistência da identidade uma vez separada da comunidade de
origem. Naquele instante, Ulisses pergunta-se como agir, mas
antes de considerar os meios e métodos mais adequados para
sair daquela situação, põe em cena um exercício de lembran­
ça de si. Essa retomada do compromisso com a comunidade
que, afinal, o torna quem ele é, antecede a astúcia que ele
pode e deve empregar. Este é um ponto constante e comum
na perspectiva greco-romana e judaico-cristã acerca da cura.
A cura implica reintegração na comunidade de origem, quer
pela eliminação do estrangeiro, quer pelo acréscimo de re­
conhecimento naquele que deixou para trás o patológico. A
cura estabelece uma crença, independente da gramática que
esta pratique.
Contudo a comunidade organizada pela escrita produz
uma terapêutica um pouco diferente daquela que se verifica
entre as comunidades orais. A narrativa de Ulisses permite
que cada qual se reconheça neste personagem e considere suas
condições particulares para reatualizar o pacto com a comu­
nidade de modo a reunir excelência e eficácia, imortalizando
o nome do herói. A narrativa bíblica também serve de guia
para a reafirmação de laços em uma comunidade, contudo ela

71
coletiviza a nomeação, fazendo de cada herói uma reedição do
que os antecederam. Aqui é a palavra iverbuni), e não o nome,
o agente da cura.

1.3. O CASO QUESALID: EFICÁCIA


E EXCELÊNCIA SIMBÓLICA DO XAMÃ
Até aqui examinamos as relações entre as formas do patoló­
gico e seus destinos em duas tradições governadas pela escrita.
Contudo há sociedades organizadas pelo mito oral nas quais a
escrita possui outra dimensão. Para as sociedades sem escrita,
no sentido do uso gráfico de sinais codificados, a função da
escrita está representada justamente pela dimensão do nome.
O totem, animal que miticamente originou um objeto, uma
família ou uma tribo, tem uma função classificatória. O nome
exprime um tipo de ligação com a coisa que este representa
semelhante ao que um traço mantém com o fonema que ele
supostamente indica (Lévi-Strauss, 1962). São, portanto, cul­
turas sem escrita, no sentido do alfabeto, mas sociedades que
comportam a função da letra, seja pela ação do totem, seja
pelas técnicas corporais como a tatuagem ou culturais como a
estatuária ou a cerâmica.
Aqui intervém o quinto tipo de concepção sobre o pato­
lógico que aludimos anteriormente: a influência da magia.
Não que as outras formas do patológico estejam ausentes nes­
te caso, aliás, foi nelas que a Antropologia descobriu a fun­
ção do tabu e sua ligação com o totem, a ideia de possessão
e de perda da alma. Nestas sociedades, chamadas de holistas,
a própria emergência de individuações ameaça o conjunto da
comunidade. São sociedades que se organizam contra o Esta­
do, contra a formação de Um (Clastres, 1998). Ocorre que o
adoecimento pode ser considerado uma estado de potencial
individualização, como uma espécie de exílio ou parênteses
no qual a vida se introduz e da qual espera-se que o indivíduo
possa retornar.

72
A maior parte da literatura sobre a história comparada da
psicoterapia, da cura e da clínica aborda o campo das práticas
mágicas em contraste com as curas pastorais, segundo um crivo
de comparação dual, baseado na racionalidade-irracionalidade
ou na oposição natural-sobrenatural. Freud (1912-13) descre­
veu a ideia de pensamento mágico, como afetação à distância
e controle auto-centrado do mundo, como característica de
tais sociedades e também de psicóticos e crianças. Contudo, o
ponto crucial não está na formulação de uma hierarquia en­
tre formas mais primitivas e mais avançadas de pensamento
—ademais falso, diante de um exame mais atento de tais socie­
dades —mas no fato de que tal prática seja percebida como um
problema de excessiva concentração de poder. Não é a forma
cognitiva que importa, mas seu uso e sua interpretação social
como estratégia contra a unificação do poder.
Independentemente da ontologia, da teoria da causalidade
ou do tipo de racionalidade, entendemos que a cura psicana-
lítica é uma operação de linguagem. São, portanto, as práticas
de linguagem, em seus diferentes níveis, que deveriam guiar
nossa arqueologia, e não uma pré-classificação das formas pos­
síveis do pensamento ou da ação às quais a experiência neces­
sariamente deve se conformar. Muitas vezes isso nos leva a uma
história teleológica, etnocêntrica e orientada para a justifica­
ção do presente (Jackson, 1999, p. 13). Neste ponto voltamos
a ressaltar a passagem da cultura oral para a cultura escrita. A
formalização de um sistema de escrita, que se consolidou entre
gregos e fenícios, por volta de VII a.C., permitiu a invenção de
um passado que podia separar-se do presente. Não que antes
disso o passado fosse uma noção vaga ou nebulosa, mas a par­
tir de então era possível perceber a existência não de um, mas
de vários passados possíveis. Isso produz o problema da com­
paração e concorrência entre estas versões sobre o que se deu,
até o ponto em que se pode conceber o passado do passado, ou
seja, um tipo de relação nova e perturbadora com a memória
(Havelock, 1996, p. 32). Isso é pleno de conseqüências para

73
uma prática de cura pelá palavra oral, como a psicanálise, mas
cuja racionalidade clínica opera principalmente sob a função
da escrita. Da tese de que o inconsciente funciona como um
sistema de escrita (1900a) à hipótese do recalcamento como
uma falha na transcrição (1892-99/1950a), do modelo da du­
pla inscrição (1915 d) ao aparelho psíquico concebido como
camadas sobrepostas de traços e letras (1925a), Freud insis­
tiu na imagem da escrita como representação do psiquismo.
Vejamos então um aspecto da cura em sociedades nas quais
oralidade e escrita se articulam de outro modo.
Quando Lévi-Strauss (1949b) compara o psicanalista a um
xamã moderno, ele tem em vista que em ambas as práticas
haveria uma espécie de reequilibração entre a mítica social e
as contingências particulares daquela forma de sofrimento.
Como o herói, o doente é um indivíduo separado; seu lugar
reflete uma diferenciação que o desconecta da vida comum. O
doente é alguém que, voluntária ou involuntariamente, está
apartado, temporariamente, de uma comunidade de destino e
do sentido de vida comum que ela partilha. O xamã, ou equi­
valente, age como uma espécie de mediador, reintegrando a
desordem pela conciliação entre atos rituais e narrativas sociais
de referência. Há três tipos de cura: (1) aquelas nas quais o
xamã manipula fisicamente um órgão ou membro doente, ex­
traindo ou adicionando um elemento causai; (2) aquelas que
realizam um combate simulado contra os espíritos nocivos; e
(3) aquelas que se baseiam em encantamentos, cantos e pres­
crições sem ligação perceptível, para o enfermo, com a causa
do mal-estar (Idem, 1949a).
Contra a tese que localiza as origens da prática psicanalítica
na magia xamanística pesa uma primeira crítica com relação
à generalização etnocêntrica do xamanismo (Hadot, 1995, p.
224). Longe de incluir todo o campo da magia curativa, o
fenômeno parece restrito a América, Oceania e a Ásia, prin­
cipalmente a Sibéria. O xamanismo não deve ser confundi­
do com a religião com a qual frequentemente se entrelaça,

74
mas também se opõe. O xamã nem sempre é um mago, um
feiticeiro ou üm bruxo, mas sempre é um tipo de m ediciné-
man (healer). Há. três formas, mais comuns, para torna-se um
xama: transmissão hereditária, vocação ou chamado, e ter pas­
sado por uma bem sucedida experiência de cura. Um xamã
só é reconhecido como tal após uma dupla instrução baseada
na indução de experiências extáticas (sair fora de si), como
sonhos, transes, retiros; e baseada no aprendizado da tradição
oral, das técnicas xamânicas, no domínio de nomes e funções
dos espíritos, dos mitos, lendas e genealogias e na linguagem
secreta (Eliade, 1951). Os xamãs são usualmente reconhecidos
por sua saúde prévia um tanto incerta: taciturnos, sensitivos,
de coração fraco, sujeitos a alucinações, ou deprimidos. Isso
faz parte da ideia de que o primeiro a ser curado pelo xama é
ele mesmo. No relato de um xamã Golde:

Não se conhecem xamãs entre meus antepassados mais


próximos. (...) Quando eu mesmo comecei a atuar como
xamã, minha saúde melhorou. Tornei-me xamã há dez
anos, mas no início só atuava sobre mim mesmo; foi so­
mente depois de três anos que comecei a cuidar dos ou­
tros. A profissão de xamã é muito, muito cansativa. (Lévi-
Strauss, 1949a, p. 42)

O percurso que leva ao tornar-se xamã tem sido associado


com a noção de rito iniciático. Isso é parcialmente verdadei­
ro na medida em que ambas as experiências assemelham-se
a uma espécie de viagem, composta por provas e desafios,
incursões e retornos, neste mundo e em outros. Contudo, a
iniciação nos mistérios gregos de Elêusis, nos ritos budistas
ou no ocultismo renascentista, é, desde o início, regulada por
critérios formais, etapas mais ou menos regulares, além da pre­
sença de um guia ou mestre cujo sistema de transmissão faz
parte de uma tradição de escrita. O mesmo nem sempre se dá
com relação ao xamã. Sua viagem pode ser reconhecida como
um empreendimento formativo muito depois de realizada, ela

75
pode ser feita sem um propósito claro e se inscreve em tradi­
ções orais. As experiências colhidas nesta viagem são as mais
diversas: a contemplação de si como um esqueleto (Caribus),
ser devorado por um urso (Esquimós), enfrentar sonhos, pesa­
delos e alucinações (Samoiedos), ter o corpo real ou imaginá­
rio despedaçado (Tungues), ter pedras introduzidas nos corpo
(Aborígenes Australianos), ter o corpo furado, transpassado,
amputado e até mesmo a mais comum experiência da própria
morte. O xamã deve conhecer tanto a geografia funerária de
seu percurso quanto aos modos de sua dissociação entre mun­
dos; deve ser capaz de narrar epicamente sua jornada, assim
como falar a língua poética dos animais e entes da natureza;
deve ser capaz de dirigir e encenar o teatro da cura (Eliade,
Op. Cit., pp. 553-554).
Seja tecnicamente um xamã ou não, o curador se caracteri­
za por oferecer ao doente uma linguagem, mesmo que incom­
preensível, na qual se podem expressar estados não formulados
e, de outro modo, informuláveis. Não se deve reduzir a prática
xamanística ao seu estilo. Ela funciona, antes de tudo, pela sua
estrutura. E aqui que começam as homologias com a psicaná­
lise. Experimentar o mito de forma participativa e atual, ou
seja, a forma oral de um passado, se assemelharia à ab-reação
e à transferência. Mas a homologia proposta por Lévi-Strauss
carrega um detalhe que nem sempre foi observado pelos que
examinaram a questão. A relação entre psicanálise e xamanis-
mo é de homologia e de inversão. O xamã enfatiza a fala; o
psicanalista a escuta. O xamã lida com mitos coletivos; o psP
canalista, com um mito individual. O paciente se identifica
com o xamã, mas faz uma transferência com o analista. A cura
xamanística é sancionada coletivamente, a cura psicanalítica
depende do consentimento daquele indivíduo. O xamã é o
agente da cura, capaz de ler os signos da natureza e interpre­
tar a fonte de sua disparidade; mobiliza um significante da
natureza em substituição metafórica ao significante do ado-
ecimento. O psicanalista também é um leitor, mas de signos

76
gerados em associação livre, cuja sanção depende sempre do
próprio paciente; substitui a articulação metafórica em que
se apresenta o sintoma por uma articulação metonímica, ao
passo que o xamã lê a metonímia do desequilíbrio com a me­
táfora do mito. Os dois efeitos terapêuticos se explicam pela
eficácia simbólica, que opera em estruturas diferentes, ambas
inconscientes.
Considerando que o termo “eficácia”, nesse contexto,
pode ser aproximado de seu equivalente grego (agathós), se­
ria possível falar, então, em uma excelência (aretê) simbólica?
E exatamente este problema que Lévi-Strauss aborda em seu
artigo que discute as condições sob as quais alguém se torna
um xama. O artigo comenta a observação etnográfica feita por
Frank Boas, em 1930, junto aos indígenas Kwakiutl. Trata-se
de Quesalid, um indígena canadense que, movido pelo desejo
de desmascarar e denunciar as fraudes empreendidas pelos xa-
mãs, começa a freqüentar os círculos de magia. Sendo convi­
dado a se tornar um xamã, ele aprende os truques e as técnicas
de ilusão próprios do ofício tais como: simular convulsões, po­
sicionar animais em locais estratégicos antes da cura, infiltrar
informantes ou sonhadores. Sua primeira cura é um sucesso
estrondoso que ele, não obstante, credita ao fato de a paciente
“acreditar firmemente no sonho que tivera a meu respeito”
(Lévi-Strauss, 1949b, p. 203). Não demora para que Quesalid
—que continuava convicto do embuste representado pela cura
mágica —comece a pensar que mesmo que todas as curas sejam
falsas, há algumas mais falsas que outras. Visitando outra tri­
bo, ele consegue curar uma doente que se mostrava refratária
ao xamã local. Quesalid havia retirado, por meio de prestidigi-
tação, um verme sanguinolento de sua própria boca e o mos­
trara ao público como prova da extração do mal. O xamã local
apenas cuspia nas próprias mãos, sendo o método de Que­
salid, portanto, mais impressionante. Instigado a revelar sua
técnica ele declara que é apenas um aprendiz e que, portanto,
“não pode transmitir a arte da magia curativa”. Sua fama se

77
estende a ponto de ser convocado a um grande duelo com os
maiores xamãs estrangeiros. A técnica do verme ensangüenta­
do triunfa sobre a incorporação do mal invisível proposta por
seu maior oponente, apesar deste incluir em sua cura o truque
pelo qual seu chocalho aparece suspenso no ar. Para ressaltar
seu feito Quesalid distribui 200 dólares entre os espectadores,
“para que estes saibam qual é seu nome”. O xamã derrotado e
envergonhado experimenta o desmoronamento de seu sistema
terapêutico. Implora então a Quesalid que lhe confie o segre­
do: era uma verdadeira moléstia ou foi fabricada? Em troca, o
velho curandeiro lhe explicaria sua própria teoria da doença.
A dúvida de Quesalid encontra agora seu complemento na
hesitação do velho feiticeiro. Quesalid continua sua carreira,
silenciando o segredo de seu truque, cheio de desprezo por sua
profissão. O velho xamã se exila, enlouquece e morre. Depois
de muitos anos desmascarando falsos xamãs, depara-se afinal
com um caso no qual não consegue descobrir se está diante de
um verdadeiro xamã ou de mais um simulador. Este operava
pela sucção, não exigia pagamento pela cura e jamais ria. Aqui
a dúvida se reverte: se existem verdadeiros xamãs, ou pelo me­
nos alguns que não podem ser desmascarados, ele próprio,
Quesalid, não seria um deles?
A dúvida de Quesalid deve ser separada de seu aparente ce­
ticismo. Todo xamã reatualiza, no processo prático da cura, a
experiência que o tornou um xama. Daí o fato de alguém po­
der se tornar xamã por um chamado, por um estigma ou por
ter passado, com sucesso, por uma cura xamanística - exata­
mente como um psicanalista deve passar por uma análise antes
de praticá-la. Mas este caso mostra como essa experiência não
deve ser reduzida à incorporação de uma teoria da doença e da
cura, nem ao domínio da técnica. Quesalid não era um grande
feiticeiro porque curava doentes: ele curava doentes porque
tinha se tornado um grande feiticeiro (Ibid., 208). Sua experi­
ência sugere que isso pode ser feito sem que o curandeiro acre­
dite no que faz, sèm que ele confie no mito ao qual reintegra o
doente. Esse raciocínio é parcialmente verdadeiro. Ele mostra
apenas que a eficácia da cura não depende da crença como
adesão a um saber interiorizado ou coletivamente sancionado.
A crença pode ser pensada de outra maneira, ou seja, como
uma prática em relação à qual a convicção pessoal interiori­
zada é efeito secundário. É o fazer, e não o saber, a causa pri­
meira da crença. Como dizia Pascal: “Ajoelha e reza, a fé virá
por si mesma”. Isso se ajusta à observação antropológica que
verifica um razoável e constante grau de divergência entre os
mitos, como narrativas sociais compartilhadas, e os ritos, como
práticas que não são o decalque direto e coerente dos mitos.
Ao praticar o rito da cura, com todos os atos que lhe são corre-
latos, Quesalid pragmaticamente acreditava. Esse tipo especial
de crença, na qual a implicação subjetiva no saber se encontra
suspensa, era fonte do aprimoramento de sua eficácia, uma
vez que lhe permitia mobilidade para agregar novas táticas de
sugestão. Contudo, o exercício extenso de sua dúvida man­
teve em ação um tipo de relação com a verdade que também
era fonte de sua autoridade. Ao colocar em segundo plano
seus interesses em se tornar um grande xamã, sua necessidade,
portanto, de praticar curas espetaculares conquistando fama e
reconhecimento, Quesalid tornava seu desejo enigmático (aos
outros xamãs), ironizava sua própria posição (distribuindo
dinheiro) e recusava um posto no sistema de transmissão do
xamanismo (era apenas um aprendiz). Surge assim um novo
efeito, que podemos chamar de excelência simbólica, caracte­
rizada pelo fato de que ele possuía um lugar, pois era reconhe­
cido como xamã, mas não se identificava com a consistência
positiva deste lugar, pois sabia que os xamãs eram ilusionistas.
Encontramos aqui um terceiro modo de articulação da dúvi­
da. Não se trata da sua exclusão através da lembrança de si,
como em Ulisses, nem de sua distensão através da renovação
sistemática de si, como nos heróis bíblicos.
A crença de Quesalid possui uma função diferente daquela
que se pratica por meio de orações, invocações ou cantos ten­

79
do em vista a cura. Pará o fiel que pede em suás preces pela
intercessao divina, trata-se da crença-fé em algo ou em alguém;
para o usuário da cura mágica, trata-se de acreditar o xamã
(Zizek, 2003, p. 110). Ou seja, a primeira é uma crença idea­
lista e transitiva indireta; a segunda é uma crença pragmática
e transitiva direta. O primeiro caso admite a ideia de crença
sem fé, e o segundo, da fé sem crença, daí o fato de as orações
náo serem consideradas parte das curas mágicas, em que pese
devotarem sua crença em entidades transcendentais (Jackson,
1999, p. 19).
Não seria, então, a dúvida de Quesalid parte decisiva de
sua excelência simbólica? A cura xamanística pressupõe uma
relação complementar entre o pensamento coletivo, que lo­
caliza uma falta de significado, e o pensamento patológico,
que se caracteriza por um excesso significante. Ela fornece um
novo sistema de referências no qual os dados contraditórios
podem se integrar. Ou seja, ela não resolve o problema da fal­
ta de significado pela administração de um vocabulário mais
consistente: ela equaciona as contradições numa nova forma­
lização sintática. Isso explica a maior eficácia do segundo tipo
de xamanismo, no qual se oferece uma linguagem incompre­
ensível ao doente. Ela é um tratamento para a forma da crença
e da dúvida, não de seu conteúdo, falso ou verdadeiro. Neste
sentido, a crença demasiada no próprio vocabulário, na efi­
cácia da técnica ou na legitimidade que o público confere ao
curador potencialmente atrapalha a excelência simbólica ne­
cessária à cura.
A dúvida de Ulisses, a conversão de Paulo e a incerteza
de Quesalid exprimem três modos de divisão do sujeito, ou
melhor, três destinos para essa divisão. Ela se mostra, em cada
caso, como a apresentação de um saber apartado da verdade.
Nas três estratégias a cura se define como processo de reinsta-
lação desses efeitos de verdade. A verdade em Ulisses funciona
como aletheia, ou seja, desocultamento, revelação. Lethé refe-
re-se ao lago mítico que fazia aquele que bebesse de sua água

80
esquecer o próprio passado. Adicionando-se o prefixo negativo
\a\, temos algo como desesquecimento ou nao-esquecimento.
Ocorre que esquecer já é, em si, um termo negativo, ou seja, não
lembrar. Assim, aletheia refere-se a um modo da verdade forma­
do por dupla negação e intrinsecamente ligado à relação entre
presente e passado. A verdade revela o que já estava lá numa
espécie de retorno a si, segundo uma ontologia que liga o passa­
do ao presente em relação de identidade. A verdade, entendida
como posição, e não como conteúdo, retorna a Ulisses quando
ele se lembra que é o rei de Itaca, o grande guerreiro grego. Daí
ela explorar, principalmente, a dimensão declarativa da lingua­
gem: a proposição, a sentença e a escolha.
Para os heróis bíblicos, a verdade se diz como emunah, ou
seja, presume uma referência pessoal ligada à ideia de confian­
ça e sinceridade. O Deus verdadeiro é aquele que cumpre as
promessas; o falso fiel é aquele que não cumpre o trato (He-
genberg, 1975, p. 13). Portanto, a verdade, nessa narrativa,
orienta-se para o futuro e para a dimensão performativa da
linguagem: o juramento, a promessa, a aposta. Já se observou
que a difícil passagem da lógica proposicional ou funcional
veritativa, baseada em tipos de juízos e, em especial, juízos
apofânticos, para a lógica modal, baseada nas noções de ne­
cessário, possível, impossível e contingente, deriva de peque­
nas diferenças na função de verdade envolvida em cada caso
(Tugenhat & Wolf, 1997, p. 38). Um exemplo dessa diferença
aparece nas práticas que estamos examinando.
Em nossos três personagens há uma “separação de poderes
entre a verdade como causa e o saber posto em prática”. Vi­
mos como tais saberes respondem pela eficácia simbólica do
tratamento. Introduzimos agora a ideia de que a excelência
simbólica liga-se com a posição do sujeito diante da verdade
como causa. A tese de Lacan é que na magia a verdade assume
seu papel como causa eficiente. Ou seja, torna-se condição
do processo transformativo que seu agente coincida com seu
suporte corpóreo para que a cadeia causai entre natureza e en­

81
cantamento se mantenha, homogênea. Isso só ocorre pelo recal­
que (Verdrãngung) do sujeito. E exatamente isso que se exprime
na dúvida de Quesalid e na separação entre sua crença pragmá­
tica na magia e sua descrença no saber que a justifica. Também é
pelo suporte corpóreo que ele enfatiza contra seus concorrentes,
que se torna um primoroso curandeiro. É exatamente essa coin­
cidência que está vetada na experiência de Ulisses, na tradição
do logos e da ciência. Seu thymos comparece como fonte de per­
turbação e engano. Ele precisa livrar-se dessa substância corpó-
rea em seu processo de anamnese. Nele vigora a verdade como
causa formal. Para tanto, há uma espécie de foraclusão (Verwer-
fa n g) do sujeito. Isso se exprime pelo modo como Ulisses lida
com a própria aparição da questão; independentemente de seu
destino ou solução, ele se espanta que ela tenha aparecido. Em
tese, a dúvida não deveria ter sido colocada.
Finalmente, na esfera da religião, a divisão de poderes entre
saber e verdade se apoia na causa final. Aqui, a relação do su­
jeito com a verdade afirma-se principalmente por denegaçao
(Verneinung). É quando Paulo denega a existência de gregos e
romanos, de homens e mulheres, que simultaneamente afirma
a finalidade universal da crença cristã - daí que o processo
transformativo seja descrito como trajetória das negações de
si, necessárias para a descoberta da verdade.
E importante salientar que essas categorias - recalque,
foraclusão e denegação —não devem levar a inferência que
aproxime a ciência da psicose ou a magia da neurose. Não
são utilizadas aqui em sua habitual relação com estruturas clí­
nicas. Elas exprimem, especificamente neste contexto, modos
de negação e um tipo de relação que remanesce com o que é
negado. Em outras palavras, designam o tipo de verdade e de
causalidade que deve permanecer oculta ao sujeito que fala
para que determinado saber faculte o exercício de poder. São
estratégias narrativas, não determinações estruturais.
A narrativa homérica, a narrativa judaico-cristã e a narra­
tiva xamanística presumem soluções terapêuticas eticamente

82
distintas. Enquanto Ulisses tenta reequilibrar a relação entre
meios e fins para reencontrar seu lugar, Paulo tenta ajustar a
relação entre o agente e seu destinatário para reencontrar uma
nova posição no mundo. Quesalid, ao contrário de ambos,
não está interessado na honra ou na salvação, mas na verdade.
O que particulariza esta relação é a negatividade. Sua preo­
cupação inicial não é encontrar a verdadeira cura, mas a não-
verdadeira. Estão em jogo as ideias de revelação e de confian­
ça, mas ambas marcadas por um sinal negativo: a revelação da
falsa cura e a crise de confiança.
ImpÕe-se como conclusão a hipótese de que a psicanáli­
se seria herdeira das terapias de compromisso - em suma, a
combinação das três variantes já descritas. No entanto, ao
contrário destas, sua estratégia de cura declara manter perma­
nentemente em aberto a questão “quem fala?” e, consequen­
temente, a pergunta acerca da fonte do poder nesta fala. Não
se deveria presumir que o sujeito chega à análise como uma
tábula rasa em termos de narrativas terapêuticas. Ao contrário,
é possível que sua queixa se articule em relação às estratégias
narrativas pelas quais seu mal-estar é formulável, e que sua
demanda clame pelo restabelecimento de sua eficácia ou exce­
lência (Parker, 1999).
Segundo Rieff (1990, pp. 79-90), as terapias de compro­
misso baseiam seu método na força coercitiva do sistema sim­
bólico capaz de reunir os membros de uma comunidade em
torno de um ideal de caráter. O sentimento de bem-estar e a
saúde são definidos pela participação orgânica e ajustada ao
destino e às origens de uma comunidade. Quem cura, em úl­
tima instância, é a própria comunidade, através do mito ou
da narrativa que ela sanciona e dos intermediários que elege
para tal função. A função do terapeuta é fazer o indivíduo se
re-comprometer com essa comunidade, usufruindo, assim, de
seu efeito simbólico integrador. O desvio moral e o conflito
psicológico são, dessa maneira, mímesis do desequilíbrio so­
cial. O truque ideológico aqui é que a integração que se realiza

83
por esse meio não al tera e, em tese, contribui para acirrar a
contradição social de onde procede. O tratamento exige re­
composição do compromisso pelo qual, em troca da adesão
aos ideais comunitários, o indivíduo receberá cura, tratamento
ou terapia de si. Já se observou que a estratégia mais comum
das terapias de compromisso na modernidade é subordinar al­
gumas exigências tradicionais da moralidade convencional aos
requisitos de realização pessoal e de esperança (Taylor, 1994,
p. 647). Há um tipo de política de subjetivação envolvido
aqui e, consequentemente, uma estratégia de estabilização do
cálculo da felicidade.
Para a psicanálise, no entanto, não há nenhuma comunida­
de positiva com a qual o indivíduo poderia se fundir terapeu-
ticamente. Há, no máximo, comunidades negativas, ou seja,
um laço social baseado na suposição de um reconhecimento
intersubjetivo jamais inteiramente realizável e na partilha con-
flitiva sobre os bens e seu gozo. Por outro lado, há o trabalho
crítico de desestabilização de ideais e valores que se preten­
dem destacar do sujeito e afirmar sua validação intrínseca. E
uma prática que parte de uma configuração social na qual há
impossibilidade do laço comunitário orgânico e que envolve
analisar os diferentes modos pelos quais o fracasso desse laço
ocorre: educar, governar, fazer desejar e até mesmo psicanali-
sar. Não haveria, portanto, salvação coletiva, nem alívio defi­
nitivo para a dialética entre esperança e desespero (Rieff, Op.
Cit., p. 89). Adicionalmente, supõe-se que a própria demanda
de cura, salvação ou restabelecimento, segundo o paradigma
da integração comunitária, tem suas fontes no supereu, ou
seja, toma parte na origem do problema, não em sua solução.
Isso se combina com o fato de que, na situação analítica, o
psicanalista situa-se como um desconhecido. Ele não é uma
personalidade sacra, muito menos modelo exemplar de con­
duta ou alguém investido de participação mágica com este ou
outro mundo. Sua autoridade deve ser cuidadosamente sepa­
rada da legitimidade moral, religiosa ou mágica que poderia
fundamentar sua ação. Pelo contrário, sua ação dirige-se con­
tra o poder que uma identificação desse tipo pode lhe confe­
rir. Não é uma iniciação, mas uma espécie de contra-iniciação
cujo objetivo é terminar com a necessidade de iniciações. Fica
então, em aberto, que tipo de relação com a verdade se poderia
encontrar tal que esta justificasse os princípios de seu poder.

85
CAPÍTULO 2

O R E T O R N O DE E M P É D O C L E S

Eu sei a palavra que cura


Empcdocles

2.1. EMPÉDOCLES ENTRE A FALTA E O EXCESSO

P
OR VOLTA DO SÉCULO IV A .C ., SURGIRAM NA G r ÉCLA ALGUNS
discursos distintos do pensamento eleata, do qual nasce a
filosofia socrático-platônica. A descendência de Parmênides,
fundada na ideia de que tudo o que existe compõem uma uni­
dade (Jogos), não se adapta bem quando se trata de pensar uma
variação desse ser, como é o caso de uma doença. Além disso, na
história da medicina costuma-se contrapor o desenvolvimento
das doutrinas à evolução dos métodos. As doutrinas procuram
explicar o funcionamento do corpo na saúde (anatomia, fisiolo-
gia, morfologia) ou na doença (patologia) (Frias, 2005, p. 40).
O método, por sua vez, decorre da experiência do médico dian­
te de seus pacientes, dividindo-se entre a observação clínica e a
nomeação de seus sinais significativos (semiologia) e a formação
de regras de decisão (prognóstico e terapêutica).
Interligando doutrina e método há duas práticas cujo es­
tatuto foi sempre o mais incerto e discutível: a diagnostica
(como processo de construção e verificação do diagnóstico) e a
etiologia (como teoria das causas das doenças). Por exemplo, na
elaboração do diagnóstico, deve prevalecer a regularidade dos
casos semelhantes ou seu agrupamento em localizações, princí­
pios ou oposições básicas de funcionamento do corpo? O diag­
nóstico deve ser principalmente nominalista (uma convenção
operacional sobre o estado do adoecimento) ou realista (uma
descrição das alterações no corpo, especialmente considerado
como uma combinação de fluidos ou humores)? A etiologia, por
sua vez, deve ser aprofundada em uma teoria geral e exaustiva
das ligações causais (metereológicas, políticas, geológicas, meta­
físicas), ou deve deter-se apenas na causalidade imediatamente
atinente ao corpo (química, física ou biologicamente definida)?
A divisão clássica entre as escolas que enfatizam o prognóstico,
como a Escola de Cós, e as Escolas que enfatizam o diagnóstico,
como as de Cnido, baseiam-se em divisões algo anacrônicas en­
tre uma tendência mais ou menos materialista e empirista (Cni­
do) e uma tendência mais idealista e teoricista (Cós). O adágio
em Cnidos o diagnóstico, em Cós o prognóstico no fundo opõe o
diagnóstico de prevalência fenomenológica ao diagnóstico de
tipo funcional. Ocorre que se queremos localizar os elementos
da clínica psicanalítica neste cenário da medicina grega, ambas
as concepções parecem insuficientes. Como veremos a seguir,
apesar de apresentar pontos de aproximação significativos com
a medicina Hipocrática e com a medicina platônica, no que diz
respeito ao tipo de articulação entre método e doutrina, ou ao
tipo de relação entre diagnóstico e terapêutica, a clínica psica­
nalítica está mais próxima de outro autor da antiguidade: Em-
pédocles de Agrigento (492-432 a.C.).
Empédocles viveu em Agrigento, cidade situada ao sul da
ilha da Sicília, uma colônia grega sujeita a alta turbulência po­
lítica. Médico, político e teatrólogo, Empédocles propunha
um sistema de pensamento que se ajustasse melhor à sua prá­
tica médica do que a metafísica estática do ser. Empédocles
recorre, então, a uma metafísica da pluralidade, que era, ao
mesmo tempo, baseada na exatidão da observação e na soli­
dez especulativa. Para Empédocles o ser não é uno, mas di­
vidido em princípios ou raízes (arché) —terra, fogo, água e
ar —, que são organizados em diversas proporções que com­
poriam o cosmos. Os quatro princípios estão sujeitos a uma
regulação cosmológica. Há eras em que predomina a força
de philia (amizade), que agrega cada elemento segundo a lei
“igual se liga ao igual”, logo as porções de água se reúnem com
mais água, as de terra com mais terra e assim por diante, até
o momento em que o cosmos se dividiria em quatro regiões
inteiramente diferentes e internamente homogêneas. Nesse
momento, ocorreria um paradoxo: a ação contínua da união
entre os elementos idênticos culmina no grau máximo de se­
paração entre os princípios. Isso redundaria em inversão da lei
da philia e no início de uma nova era, agora governada pela
neikós (discórdia), cujo enunciado aproximado seria: “o igual
se separa do igual”. A força da neikós separa o fogo do fogo,
a terra da terra, a água da água, produzindo um movimento
crescente de mistura entre os elementos até um grau máximo
de dispersão, momento em que ocorreria nova inversão, de
neikós em philia, e assim por diante (Empédocles de Agrigen-
to, 1973, pp. 219-253). Portanto, trata-se de uma medicina
que não enfatiza nem o diagnóstico nem o prognóstico - nem
Cós, nem Cnido - mas a etiologia e a terapêutica.
Convém lembrar que a axiomática de oposições parece ser
uma tônica entre os primeiros estudiosos da medicina. A me­
dicina pitagórica (que teria exercido influência sobre Empédo­
cles) partia de dez pares de oposição para definir a saúde, assim
como Alcménon de Crotona desenvolvera as oposições entre
potências (dynamis) como ponto de partida para sua medicina
(Frias, Op. Cit.). O axioma das oposições se consagraria na
história da medicina com Galeno e Avicena permanecendo
como fundamento desta disciplina até o século XVIII.
Para Empédocles a doença é o desequilíbrio desses princí­
pios num indivíduo, e a cura, o retorno da correta proporção,

89
ou seja, aquela que mejhor replicaria a força predominante
no momento: neikós ou philia. Para Empédocles, esse retorno
possuía um sentido moral e significava a libertação do eu ocul­
to, que ele denominava daimon, (não psyche (Dodds, 2002,
p. 156)). Ao médico caberia descobrir qual dos princípios
encontra-se em excesso ou falta. Para tanto, realizava pergun­
tas acerca do momento em que a perturbação apareceu, tais
como: £o que vestia?’, ‘O que comia?’, ‘Qual era o clima?’,
‘Que constelação estava no céu?’. O objetivo desta investiga­
ção era estabelecer relações analógicas do tipo “trajava verme­
lho, logo há fogo em demasia”. A cura passa pela reintrodu-
ção do elemento ausente. Por exemplo, na falta do princípio
pneumático, recomenda-se uma alimentação à base de aves.
Até aqui, temos um modelo de cura que podemos considerar
incorreto, mas, devemos admitir, coerente com suas premis­
sas. Além disso, é um modelo que adquire algum reconheci­
mento social, principalmente depois de mostrar sua eficácia
quando Empédocles consegue erradicar a malária endêmica
na cidade de Selinonte. Inaugura-se, assim, uma prática clíni­
ca extensivamente baseada na arte de elaborar boas perguntas
e organizá-las segundo uma estratégia investigativa coerente
com seus princípios causais. Todavia, sua prática ainda não se
pode considerar propriamente médica:

Empédocles representa não um novo, mas um tipo de per­


sonalidade mais velho - o xamã que combina as funções
ainda indistintas do mago, do poeta e do filósofo, pre­
gador, curador e conselheiro. Depois dele, estas funções
sofreram uma desintegração; dali em diante, os filósofos
não seriam nem poetas nem magos. (Ibid., 150)

As perguntas acerca das contingências que cercaram o apa­


recimento do sofrimento frequentemente o impediam de lo­
calizar precisamente o momento de origem da perturbação.
A doença confundia-se com a própria vida do paciente, e esta
se desdobrava nas vidas anteriores, de acordo com os cultos

90
órficos e pitagóricos que influenciaram Empédocles. Isso teria
sido um motivo que o levou a se especializar em técnicas de
recordação e memória. Provavelmente sob influência da escola
pitagórica, ele desenvolveu técnicas de remem oração baseadas
na respiração e na reconstrução minuciosa dos acontecimentos
da vida diária. O controle do diafragma {prapid.es) permitiria
a comunicação e o isolamento entre as memórias desta vida e
de vidas pregressas (Hadot, 1995). O sopro {psiche) tornava-
se, assim, a chave de sua doutrina curativa, na medida em que
o levava a resolver o problema da memória, o que permitia
estabelecer exatamente o momento inicial da doença e, con­
sequentemente, verificar o tipo de desproporção entre os ele­
mentos em causa na produção da doença. No entanto, faltava
ao método de Empédocles uma maneira de estabelecer o mo­
mento de descontinuidade entre a vida comum e a emergên­
cia do patológico, ou ainda, entre neikós e philia. Empédocles
precisava justificar não apenas seu poder de descrever a doença
e explicar sua origem, mas as razões para agir sobre ela, o ato
de sincronizar o momento da ação com a narrativa da doença.
Para alguns, Empédocles teria enlouquecido diante desse
problema. Ele atribuía a si poderes mágicos, como o de para­
lisar os ventos. Segundo a lenda, teria se atirado na cratera do
vulcão Etna para provar que era um deus. Seria esse aspecto
da história irrelevante para a concepção de tratamento que
Empédocles propunha? Por que, além de um bom método de
cura, seria necessário que o agente ou executor deste método
fosse, ele mesmo, alguém diferente, tocado ou ungido pelos
deuses? A resposta está em um dos aspectos mais bizarros do
ponto de vista médico, mas mais interessantes do ponto de vis­
ta psicanalítico, da concepção de Empédocles sobre a etiologia
das doenças. Para ele o desequilíbrio entre as raízes ocorria em
função da natureza dos poros ou orifícios existentes no corpo
pelos quais a alma circula para dentro e para fora de si (Frias,
Op. Cit., p. 78). Os poros não podem ser alterados nem pela
dieta, nem pelo exercício, nem mesmo pela sabedoria. Os po­

91
ros se alteram pela relaçfo de contato entre as pessoas e destas
com os objetos sensíveis. Privilegia-se assim em Empédocles a
ideia de que a patologia corresponde a uma perda da alma ou
uma interrupção de sua circulação. Ou seja, Empédocles nos
dá a primeira concepção etiológica baseada nas relações entre
os seres segundo uma teoria do contato e da influência direta
de um ser sobre outro na determinação do patológico.
O modelo de cura em Empédocles nos permite visualizar,
reduzidamente, os elementos que estruturam nosso problema.
Há, primeiramente, uma distribuição entre elementos e prin­
cípios que se referem à natureza genérica do ser. Depois disso,
há a manifestação particular de uma perturbação dessa rela­
ção, coordenada pela economia da falta e do excesso —mani­
festação que deve ser interpretada ou reconhecida pela leitura
de signos. Finalmente, há o procedimento de restabelecimen­
to e recomposição que caracteriza a cura. Esse é um processo
de retorno à proporção adequada dos elementos no corpo e
deste para com sua proporção na natureza. E o princípio da
isomoiria (Jager, 1987, p. 787).
As primeiras oposições que constituem o campo da me­
dicina ocidental são provenientes do vocabulário político,
da teoria da guerra e do pensamento sobre a temporalidade.
Em Empédocles, o domínio de um elemento sobre outro é
chamado de monarquia e a justa proporção é a harmonia. O
adoecimento é entendido como uma suspensão da vida co­
mum, uma alternação da ordem (kósmos) e da lei (nomos). Ele
envolve, portanto, a perda de um estado comum e das relações
sociais que este envolve. Esta perda tem uma causa (aitía) e
esta causa produz efeitos que se distribuem, necessariamente,
no tempo. Daí que o esquema clínico de Empédocles envolva
o desequilíbrio ou desproporção entre os elementos (causa) e
a alternância de eras ou idades (tempo). Tais formas temporais
se dividem em duas: a amizade (filia) e a discórdia (neikós).
Hipócrates, por outro lado, conferia grande importância ao
ciclo do adoecimento, comparando-o às estações do ano (tem­

92
po). Para ele, o médico deve conhecer o ciclo de cada doença
de modo a intervir de forma mais breve e precisa possível no
momento exato, agindo assim sobre as causas, e desequilibran­
do o combate entre saúde e doença.
Se o governante governa o corpo social, o médico governa,
provisoriamente, o corpo do indivíduo. Assim como seu poder
é ameaçado pelas potências estrangeiras ou pelos inimigos in­
ternos o corpo doente é invadido por elementos estranhos ou
assolado pela desproporção interna de seus elementos. Como
o general que combate o inimigo, o médico combate o adoeci-
mento. E no quadro desta grande alegoria entre a cura e a guer­
ra que podemos entender como as formas políticas de governo
tornam-se homólogos das políticas do tratamento. Os proble­
mas práticos relativos à arte de governar, inclusive o problema
da passagem da política para a guerra, são sincronizados com
os problemas práticos da arte da cura. As teorias sobre a causa
do adoecimento entram, desta maneira, em analogia com as
concepções sobre o desequilíbrio político. O objeto intrusivo
replica a ideia de uma invasão por potência estrangeiras, que
pode se infiltrar sorrateiramente ou se manifestar na forma de
um confronto aberto. A desregulação do espírito aponta para a
ideia de conflito interno, ou divisão entre diferentes posições,
lugares ou funções sociais. A perda da alma eqüivale à noção
de anomia, ou seja, suspensão dos princípios ou das lideranças
que os encarnam e representam. Finalmente a noção de quebra
de tabu, corresponde à violação interna ou externa das regras
que constituem o campo político.
Uma das condições práticas mais importantes, que se im­
põe tanto às decisões políticas quanto às decisões médicas, é a
exiguidade do tempo. Muito se argumentou que a democracia
implica em um processo de decisão mais lento se comparado
com a agilidade administrativa que se obtém pela escolha da
tirania. Em contrapartida a decisão democrática distribui ris­
cos e conseqüências, enquanto a decisão tirânica concentra os
riscos naquele que governa. Isso deu ensejo às primeiras ten­

93
tativas de regulamentar p poder dos médicos, assemelhada aos
primeiros ordenamentos jurídicos que visavam refrear as am­
bições dos governantes, como se lê no código de Hamurabi:

Se um cirurgião fizer uma incisão profunda no corpo de


um homem livre com uma lanceta de bronze e salvar sua
vida, ou abrir uma carúncula e salvar o seu olho, receberá
10 shekels de prata. (...) Se causar a morte de um homem
ou destruir o seu olho, eles cortarão fora sua mão. (Oli­
veira, 1981, p. 13)

A política assim como a clínica são duas atividades na qual


é preciso agir em situação de risco. Mesmo sem todo o saber
necessário, premidos por uma ameaça, sem dispor do tempo
que seria desejável, é preciso agir. Consideremos a coragem
dos médicos babilônicos: eles só tinham duas chances. Na prá­
tica diagnostica a evolução do tempo, no qual se interpretam
a aparição e transformação de sinais, deve ser combinada com
a decisão do momento terapêutico no qual se deve intervir.
A própria teoria da cura, como retorno a um estado anterior,
ou como criação de um estado novo, pode ser pensada em
analogia com os fins políticos. A ideia de formação social de
indivíduos (paideia) introduz entre os gregos a noção de pro­
gressão e de regressão em relação a um determinado ideal. Isso
traz para a forma de vida grega o problema quanto a determi­
nação de quais seriam as experiência produtivas e quais seriam
as experiências improdutivas. A medicina recebe assim uma
nova tarefa, a de saber quais seriam as experiências que nos
afastariam do adoecimento, nos protegendo dele por meio de
práticas inerentes a uma vida boa e quais seriam as formas de
superar as experiências improdutivas, como o adoecimento.
A ideia de que o adoecimento é uma suspensão da vida de
trabalho, de desejo e de participação discursiva na comunida­
de depende deste crivo entre experiências produtivas e impro­
dutivas, de experiências progressivas ou regressivas diante de
expectativas e aspirações sociais.

94
Podemos usar esta aproximação estrutural entre política e
cura, para entender melhor as diferenças entre a medicina gre­
ga, tomada aqui como caso modelo da medicina ocidental, e a
cura xamânica. Se acompanhamos da tese de Clastres (1988)
de que o mito nas sociedades aferentes exerce a função de dis­
solver e de evitar a concentração do poder sobre um, podemos
supor que o surgimento das escolas médicas de Empédocles
e Hipócrates é consoante a um novo questionamento sobre a
localização e distribuição do poder. Um questionamento que
dá origem ao ideal de democracia e às novas concepções de go­
verno e organização social. Se o xamanismo depende de uma
sociedade contrária à concentração do poder, o nascimento da
medicina ocorre em uma sociedade que é capaz de interpretar
a perda da experiência comum, como desequilíbrio, em ter­
mos da falta ou excesso na relação entre seus elementos cons­
tituintes. O xamanismo envolve um regime de interpretação
relativamente determinado quanto a relação entre inimigos e
amigos, o que gera um sistema de alianças, capaz de incluir
vivos e mortos, familiares e estrangeiros. A aparição da me­
dicina grega implica na admissão da existência de inimigos
ainda desconhecidos, e uma atitude de suspeita regrada em
relação aos primeiros sinais de adoecimento. Ou seja, uma in­
determinação quanto aos objetos intrusivos que produzem o
adoecimento.

2.2. HIPÓCRATES E O TEMPO DA CURA


Hipócrates de Cós (460-377 a.C.) resolveu esse problema
de modo muito simples e, talvez por isso, ele (e não Empédo­
cles) seja considerado o pai da medicina. Hipócrates inven­
tou uma forma de ato que limita a autoridade do curador ao
mesmo tempo em que fixa os princípios de seu poder: o jura­
mento. O juramento é um ato de linguagem, público e conti­
nuado, que estabelece a passagem e a autoridade do curador,
inscrevendo-o num discurso. O juramento é para o discurso

95
o que o dêixico3 é parada fala. Se o dêixico é o lugar onde o
sujeito da enunciação se inscreve no enunciado, o juramento é
o ato pelo qual o sujeito da enunciação se inscreve no discur­
so. Ele é uma aposta na permanência da disposição do sujeito
no tempo, uma fidelidade antecipada ao fato de que por mais
que as cirscunstâncias se alterem o sujeito permanecerá fiel à
sua própria palavra empenhada. Essa ligação entre a confiança
temporal da palavra, expressa no juramento, não é sem liga­
ção, como veremos, com a própria concepção hipocrática do
adoecimento, como ciclo temporal no qual se pode confiar
e prever. Ciclo no interior do qual se trata de saber qual é o
melhor momento para agir.
O juramento de Hipócrates é composto de dez pontos e
se inicia da seguinte maneira: “Juro por Apoio médico, por
Esculápio, Hígia e Panaceia, e tomo como testemunha todos
os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e mi­
nha razão, o juramento e o compromisso que se segue” (Rou-
dinesco, 2005, p. 141).
O primeiro ponto refere-se à transmissão da arte da medi­
cina, a dívida para com quem ensinou tal arte e a necessidade
de ensiná-la aos filhos do mestre “sem remuneração ou com­
promisso escrito”. O segundo ponto versa sobre a transmissão
exclusiva da medicina aos filhos, aos filhos do mestre e aque­
les ligados “por um compromisso e um juramento em acordo
com a lei médica”. O terceiro ponto insiste na importância
em se abster de todo mal e injustiça. O quarto ponto veta o
uso de venenos e substâncias abortivas. O quinto retorna às
virtudes da arte médica que deve ser exercida na “inocência e
na pureza”. O sexto veta o uso da talha, ou seja, da cirurgia.
O sétimo retorna à dimensão ética: impedindo, sobretudo, “a

3. Dêixis (mostrar) refere-se ao aspecto da linguagem que conecta o sujeito da mensagem ao


enunciado da mensagem. Pronomes tais como eu , tu, e l e são dêixicos de pessoa, advérbios
como a m a n h ã , h o je , o n tem são dêixicos de tempo e pronomes como a li, a qui, lá são
dêixicos de lugar.

96
sedução de mulheres e de rapazes, livres ou escravos”. O oitavo
ponto versa sobre o sigilo considerando a “discrição como um
dever”. O nono promete ao médico “gozar felizmente da vida
e de minha profissão” caso o juramento seja cumprido. O dé­
cimo ponto reafirma o anterior: “Caso viole [o juramento] ou
cometa perjúrio que me aconteça o contrário”.
Temos, portanto, três preceitos de natureza moral: não fa­
zer o mal (ainda que o peçam), abster-se de injustiça, preservar
a pureza e a ingenuidade. Três preceitos que versam sobre a
extrapolação do poder na situação de cura: não seduzir, não
praticar a cirurgia e manter sigilo. Duas indicações sobre a
transmissão da medicina: discipular e restrita. Os últimos dois
pontos são uma curiosa consideração sobre o próprio jura­
mento: se a jura for cumprida, que seja dada ao médico uma
vida feliz; em caso de perjúrio, que se dê o contrário. O jura­
mento versa, portanto, sobre a transmissão do saber, sobre os
limites do poder de quem o exerce e sobre a relação do médico
com a própria palavra.
Hipócrates valoriza a observação e a regularidade do adoe­
cer, enfatizando clinicamente o prognóstico. São exemplos da
prognostica hipocrática a doutrina da cocção e a observação
da fncies hipocrática. A teoria da cocção afirmava que há uma
mudança na espessura e coloração dos humores que antecede
sistematicamente a crise pela qual os humores nocivos são ex­
pelidos pelo corpo e que marca a fase de declínio da doença.
A facies hipocrática é um conjunto evolutivo de sinais faciais
que prenunciam a morte. Sua descrição serve de exemplo para
introduzir a racionalidade clínica em ação conjugada com a
observação:

Observe a face de um paciente durante uma enfermidade


aguda. Se a face tem aspecto saudável bom sinal. Caso
contrário mau sinal. Quanto mais alterado pior. Observar
a presença dos seguintes sinais: olhos fundos, fontes côn­
cavas, orelhas frias e contraídas, com os lóbulos para fora,
pele áspera, seca ou apergaminhada da face, cor amarela

97
ou enegrecida. Se houve insônia, intestinos soltos ou falta
de alimentação, bom sinal. Caso contrário, e se os sin­
tomas não cederem no lapso de um dia, trata-se de uma
coisa certíssima que a morte se aproxima. Se a este quadro
se acresce que não suportam a luz, choram involuntaria­
mente, se o baço dos olhos se avermelharem ou forem co­
bertos por goma, são sinais de que o prognóstico é fatal.
(Hipócrates, 1957, p. 9, citação modificada)

O trecho ilustra bem a árvore de decisões e condições que


devem guiar a observação do médico. Ela está baseada na evo­
lução e orientada para o prognóstico. Assim como a doutrina
da cocção, a teoria da face hipocrática combina admiravel­
mente observação e inferência. Ilustra-se também o método da
divisão (diaíresis) segundo o qual cada fragmento do processo
deve ser dividido em partes tão pequenas e exatas de modo a
antecipar e permitir decisões sobre o momento subsequente.
Esta ênfase no prognóstico tem, contudo, uma curiosa susten­
tação. Não se afirma a importância do prognóstico baseando-
se em motivos teóricos (como Platão), nem doutrinais (como
Galeno) e muito menos metodológicos (como em Empédo­
cles), mas na importância intersubjetiva da retórica da eficácia:

Parece-me coisa excelente que o médico cultive o prog­


nóstico; pois prevendo e predizendo, perante o enfermo
e sem sua colaboração, o presente, o passado e o futuro
e pondo em relevo as omissões de que cabe inculpar os
pacientes, estarão estes mais inclinados a acreditar que o
médico sabe o que se passa com o enfermo; e assim as
pessoas se entregarão mais confiantemente nas mãos de tal
semelhante médico. (Hipócrates, 1998)

Grande parte do Corpus Hipocraticus aborda a relação mé-


dico-paciente. Daí decorrem os três objetivos reais que o mé­
dico deve manter diante de si —aliviar o sofrimento do pacien­

98
te, reduzir a gravidade da doença e reconhecer e se abster de
tratar o intratável (Adler, 2006, p. 22): “Aquelas doenças que
a medicina não cura, o ferro [a faca] cura; aquelas que o ferro
não cura, o fogo cura; e aquelas que o fogo não cura devem ser
reconhecidas como incuráveis” (Op. Cit., 1998, p. 173)
Vê-se por este aforismo e pela sexta regra do juramento, que
há uma separação entre medicina e práticas que utilizam inter­
venções mais intrusivas como a extração de cálculos e o uso de
queimaduras em amputações e hemorragias, por exemplo.
A patologia é a conseqüência da intrusão do meio físico no
corpo. Portanto, objeto invasivo e a desregulação do sistema
são as duas fontes etiológicas fundamentais para Hipócrates.
Por isso o médico deve examinar o ambiente no qual chega
para examinar seu enfermo: a natureza dos ventos, das águas,
dos solos, o tipo de regime alimentar, a geografia, as doenças
típicas. Daí que um dos tratados mais importantes de Hipó­
crates chame-se Ares, Aguas e Lugares.
Se a causa do patológico prende-se ao lugar, a cura corres­
ponde à dominação do tempo da doença. Segundo o aforismo
que abre sua principal obra: “a vida é breve, a arte é longa, a
ocasião é fugaz, a experiência enganadora, o juízo é difícil”
(Ibid., p. 10). A expressão kayrós (ocasião) designa aqui o mo­
mento fugaz em que a regularidade da doença é captada pela
inteligência por meio dos sentidos. Para Hipócrates o médico
é uma espécie de auxiliar da natureza, e esta precipita tanto a
doença quanto sua própria cura.
A febre, por exemplo, pode indicar o início do processo de
restabelecimento, o início de um ciclo que é uma espécie de
tendência natural do organismo, em relação ao qual o médi­
co tem a função de guardar e proteger seu desenvolvimento
(Lima, 2003, p. 45). Daí a metáfora de que a doença se apre­
senta como um ciclo similar às estações do ano. O princípio te­
rapêutico de Hipócrates é de que o contrário cura o contrário,
o oposto é a cura para o oposto (contraria contrariis curantur),
ou seja, doenças causadas pela sobre-alimentação são curadas

99
pela restrição alimentar; ,'doenças causadas pelo frio são curadas
pelo calor; doenças causadas pelo excesso de trabalho são cura­
das pelo descanso e assim por diante. Se para Empédocles vigo­
rava de fato um projeto de cura e tratamento pelo reencontro
de proporções quantitativas, inversamente em Hipócrates en­
contramos um programa que procura aliviar, mitigar, reduzir o
sofrimento, ou seja, um projeto de cuidado e restabelecimento
qualitativo (Jackson, 1999, p. 203). Nasce aqui uma distinção
importante entre o sofrimento e o sintoma. Tanto para Empé­
docles quanto para Hipócrates, forma-se a consciência de que a
medicina deve tratar a doença pelos seus sintomas e, ao mesmo
tempo, aliviar o sofrimento do paciente; mas essas são tarefas re­
lativamente distintas. Por exemplo, certa vez, Erasístrato (330-
255 a.C.) é chamado para tratar o príncipe Antiochus de uma
curiosa moléstia. Ele recusava comida e passava os dias prostra­
do em profunda tristeza. Tinha problemas para dormir e difi­
culdades gastrointestinais havia meses. Seu sono era agitado e
os pesadelos constantes. Os médicos locais diagnosticaram uma
disfunçao da bílis negra, a melancolia. Chegando ao local, Era­
sístrato percebeu que a doença do príncipe apresentava curiosas
oscilações. Durante o exame, notou que o olhar do príncipe re­
cuperava o brilho de quando em quando. Viu que isso se devia à
presença de sua sobrinha Stratonice no recinto. Assim, concluiu
que “era o amor, e não a doença, a sua enfermidade” (Jackson,
1986, p. 352). A diferença entre um conjunto organizado de
sintomas (insônia, perturbações digestivas) e o sofrimento que
a eles se associa (tristeza) foi decisiva para separar a noção de
tratamento inspirada na terapêutica mágica, religiosa ou nar­
rativa, da clínica e do tratamento. O sofrimento se cura com
palavras; os sintomas, com uma alteração das condições de vida
do paciente. A doença tem um ciclo previsível, o sofrimento
não. A doença é uma alteração qualitativa, o sofrimento uma
transformação quantitativa.
Deve-se apreender as diferenças entre Hipócrates e Empé­
docles no quadro de uma época na qual a medicina era parte

100
da formação (paldeia) e da cultura do cidadão grego. Ela não
se distinguia claramente como método de cura de doenças,
mas era um saber, necessário para a prática de uma estilística da
vida. Nesse terreno, deviam ser equiparadas as virtudes físicas,
como saúde, força e beleza, com as virtudes da alma, entre
elas a piedade, a coragem, a moderação e a justiça. A medicina
era, principalmente, o campo da dieta e da purgação, incluía
tanto os exercícios físicos quanto o modo de alimentação e as
pequenas escolhas da vida cotidiana: a que horas se levantar,
quando dormir, quando e o quê comer, quando e como se
exercitar. Uma parte importante dessa estilística era a erótica
ou aphrodisia. O uso dos prazeres não se baseava na noção de
restrição, mas na ideia de temperança {sophrosinè), ou seja, a
capacidade de dominar os prazeres, exercendo sobre eles uma
relação de soberania. O ponto central dessa gramática residia
tanto na oposição entre atividade e passividade, quanto na in­
tensidade da ligação ao objeto, e não na natureza específica do
objeto sexual (Foucault, 1984b).
Compreende-se, assim, que a medicina de Hipócrates não
impunha demasiada ação sobre o doente, restringindo expli­
citamente o uso de táticas nesta direção, como a cirurgia. Isso
seria reforçar a condição passiva, associada à perda de liberda­
de. A concepção de Empédocles, ao contrário, não se organi­
zava pela oposição entre passividade e atividade, mas pela ação
sobre as causas; ela introduz uma reflexão crítica, e não apenas
normativa, sobre o poder no processo de cura.

2.3. PLATÃO E A MEDICINA FILOSÓFICA


Platão representa um modelo alternativo aos dois anterio­
res. Ele estabelece que a filosofia, como terapêutica da alma,
corresponde a uma espécie maior de saber que submete e con­
tém dentro de si outros saberes, entre eles a medicina. A me­
dicina serve de modelo para uma verdadeira arte retórica, ou
seja, uma técnica cujos fins são determinados pela epistemé, e

101
cujos meios expressam-se nos métodos hipocráticos da divisão
(idiaíresis). Para Platão, a cura deve envolver sempre um modo
de relação com a verdade, o que é repudiado por Hipócrates
e incerto para Empédocles. A cura deve envolver o corpo e a
alma, divisão esta improcedente para Hipócrates. Se ambos es­
tiverem doentes, deve se começar sempre pela alma, e sobre ela
aplicar as “palavras justas” ifair words) (Jackson, 1999, p. 24).
No Fedro afirma-se que a medicina está para o corpo as­
sim como a retórica está para a alma. Nestas duas artes defi­
nidas pela combinação, antagônica em cada caso, entre techne
e tyche, encontraríamos um mesmo método (Gadamer, 1993,
pp. 48-51) baseado no conhecer em separado (diagnose), na
observação diferenciada que reúne os respectivos sintomas na
unidade de uma descrição patológica e, a partir disso, faculta
um tratamento uniforme. A noção platônica de essência ou
ideia (eidos) foi utilizada primeiramente na ciência médica. Ao
fim, se trata na medicina de restaurar, restabelecer ou retornar,
por meios artificiais, a uma condição natural.
Platão aplica quatro teses gerais que permitem integrar a me­
dicina em uma teoria geral do conhecimento: a perfeição ma­
temática do mundo (o que se aplicaria aos quatro elementos);
a unicidade do mundo (do que se deduziria a identidade das
doenças); o princípio da autarquia (que desqualifica as trocas e
os contatos como fonte das doenças); e a tese da eternidade e
juventude do mundo (que prescreve a harmonia como finalida­
de do cosmos) (Frias, 2005, p. 122). Vemos aqui uma oposição
ponto a ponto com a concepção de Empédocles para quem a
doença só pode ser entendida no quadro de trocas, relações ou
contatos (cujo modelo é o contágio), da pluralidade do mundo
(aplicada aos quatro elementos), da autarquia como expressão
do patológico e da efemeridade do mundo (que se destrói de
quando em quando assim como cada vida chega a seu fim).
No Timeu desenvolve-se uma das primeiras tentativas de
estabelecer um sistema diagnóstico segundo o qual as oposi­
ções integram-se em uma totalidade que permite efeitos dedu­

102
tivos. É nele que pela primeira vez as doenças dividem-se entre
doenças do corpo e doenças da alma. As doenças do corpo
dividem-se em três classes:
(a) Doenças causadas pelo desequilíbrio entre elementos
constitutivos do corpo (fogo, água, terra e ar);
(b) Doenças derivadas da corrupção dos tecidos do corpo;
(c) Doenças causadas pelo ar (como o tétano), pelo fleug-
ma (como a epilepsia, o mal sagrado) ou pela bile.
As doenças da alma classificam-se de forma mais complexa
(Ibid., pp 127-137):
(1) Demência ou desrazão {anoia)
(2) Loucura (mania)
(2.1) Intemperança sexual
(2.2) Paixões da alma
(2.2.1) Tristeza ou desgosto
(2.2.2) Audácia ou covardia
(2.2.3) Esquecimento ou preguiça mental
(3) Ignorância (amathía)
(3.1) Constituição corporal ruim associada com regi­
mes políticos viciosos
(3.2) Queda da alma no corpo
(4) [Melancolia - acrescentada por Aristóteles]
Vê-se assim que a nosologia de Platão inclui uma heteroge-
neidade de práticas, de funções e de saberes agrupados segun­
do uma hierarquia de determinações. A terapêutica obedece
a uma heterogeneidade semelhante. O tratamento da despro­
porção entre corpo e alma envolve a ginástica preventiva, o
estudo da matemática e a prática da música. O tratamento
do corpo envolve a ginástica ativa e passiva bem como a re­
gulação do regime alimentar. O tratamento da alma envolve
o movimento das três partes da alma, o estudo da música e
da astronomia, e é claro, para combater a pior das doenças (a
ignorância), o estudo da filosofia.
Essa hierarquia entre filosofia e medicina permite que a ori­
gem do poder desta seja remetida à sua dimensão filosófica. A

103
hierarquia se desdobra no interior da própria atividade médi­
ca. O médico cumpre três etapas na formação de seu saber:
a prática, o estado de investigação original e a condição de
homem culto. A relação com o outro é inteiramente diversa
em cada caso. O médico prático é o médico de escravos, que
trata aqueles cuja condição social se associa com a passividade.
Como um tirano o médico corre de um enfermo para outro,
distribuindo instruções sem fa la r com os doentes. O médico
investigador cura seus pacientes e discute com seus pares, ou­
tros médicos, em regime de restrição corporativa. O médico
culto, por sua vez, não apenas cura, mas discorre sobre a natu­
reza do mal, sobre os fundamentos da cura e sobre o funciona­
mento daphisis em geral. Aqui se encontra uma série de sátiras
a esse personagem que combina a figura do médico com a do
professor, como se a sua função não fosse restabelecer a saú­
de, mas converter seus pacientes em médicos (Jager, 1987, p.
794). Entre os médicos, havia aqueles reconhecidos como pro­
fissionais (demiurgos) e os que eram designados idiotés, ou seja,
isolados, não pertencentes ao estado e à comunidade humana.
A escola de Empédocles mantinha uma relação completa­
mente distinta quanto ao uso da palavra no processo de cura.
Ela era praticada no interior mesmo de um diálogo, portanto
não era silenciosa, como na cura dos escravos, nem fechada
entre pares, e menos ainda restrita à condição daquele que en­
sina sobre a doença. Empédocles era e curava como um idiotés
(Ibid., 788). A noção àe. philia desdobra-se aqui numa espécie
de dupla exigência à qual o médico deve aderir e combinar, a
saber, a philantropia (amor ao ser humano em geral) e a philo-
technia (amor à arte da cura) (Jackson, 1999, p. 40).

2.4. A CLINICA NA ANTIGUIDADE E A


TEORIA PSICANALÍTICA DO RETORNO
Pode-se argumentar que a psicanálise situa-se como uma
combinação entre a medicina platônica e a medicina hipo-

104
crática. Contudo isso seria obscureeer a presença de esquemas
terapêuticos que remontam a Empédocles. Para a psicanálise a
cura não eqüivale a um acréscimo na formação cultural, nem
está restrita à remoção de sintomas. Ela se assemelha a uma
investigação, mas sem finalidade teórica. Seus meios se asse­
melham aos da retórica, mas sem que esta se desdobre numa
técnica de vida regrada. Todavia, a principal aproximação resi­
de na própria tematização do estatuto da palavra e da relação
firmada no processo da cura.
A centralidade da noção de retorno para a medicina filo­
sófica surge assim como uma espécie de organização para as
concepções mágicas do adoecimento. As diferentes formas de
retorno podem ser associadas aos tipos de concepções etioló-
gicas sobre o adoecimento, examinadas no capítulo anterior
(Beauchesne, 1989, p. 23):

Etiologia Mágica Terapêutica Médico-Filosófica


Objeto Intrusivo Exteriorização das Emoções: catharsis platônica (tea­
tro), experiência da memória em Empédocles, diag­
nostica hipocrática (extração do objeto)
Desregulação do Princípio de Regulação: retorno à proporção de
Espírito elementos, isomoiria em Empédocles (separação do
excesso)
Retomo à V ida Natural: ciclo hipocrático do adoecer,
oposição entre N eikós —Vhilia em Empédocles
Perda da Alm a D espertar da Consciência: metanoia platônica (escolha
do próprio destino)
Princípio da Consolidação: técnicas de apaziguam en­
to (música), de autodomínio (método) e de estimula­
ção (cphrodisia)
Quebra de Tabu Princípio da Purificação: ascesis platônica (reconstitui­
ção dos laços com a comunidade simbólica)

105
Há ainda uma proximidade entre a psicanálise e o pensa­
mento de Empédocles que passa pela forma como a prática
articula-se com sua justificação, vale dizer, com o tipo de ra­
cionalidade que a legitima. Tanto em Hipócrates quanto em
Platão ou Empédocles vigora como princípio patológico a
ideia de retorno. Ê também como retorno que o tratamento se
apresenta. Contudo há diferenças substanciais entre o retorno
platônico, como reminiscência de uma essência determinada,
o retorno hipocrático, como restabelecimento de um ciclo e o
retorno de Empédocles, como retorno a um ponto indetermi­
nado. No primeiro caso o agente da cura é o saber, no segundo
é o método, no terceiro é o próprio médico. As formas de re­
torno associam-se assim ao tipo de transferência de poder que
se encontra em jogo. Freud definiu a transferência como meio
principal da cura psicanalítica em termos bastante correlatos:

Mas tão pouco a cura obriga o enfermo, mediante a trans­


ferência, a uma neoprodução que de outra maneira não se
consumaria. Se produzem curas da neurose também em
institutos que excluem o tratamento psicanalítico; se pode
dizer que a histeria não é curada pelo método, senão que
pelo médico; se obtém por resultado uma dependência
cega e um permanente cativeiro do enfermo com relação
ao médico que o libertou de seus sintomas mediante su­
gestão hipnótica, a explicação científica de tudo isso tem
que ver com as “transferências” que o enfermo empreende
regularmente sobre a pessoa do médico. (Freud, 1905e,
p. 102)

Observe-se como Freud não exclui a força curativa do mé­


dico, mas a submete ao domínio do método e da ciência em
geral. Veja-se como a utilização deste poder de cura, sem o
método que analise as origens deste poder, não deixa de ser
eficaz, mas conduz à servidão. Além disso, limita seu alcan­
ce, pois pode contar apenas com as transferências amistosas
e depende da simpatia para com o médico, tão ao gosto da

106
perspectiva hipocrática. Note-se ainda como o retorno inde­
terminado, que extraímos da postura de Empédocles, combi­
na com a abertura para o retorno de qualquer moção, hostil
ou amorosa, na forma da transferência.
Lacan observou que a noção de retorno está presente na
expressão freudiana retorno do recalcado ( Wiederkehr des Ver-
drãngterí). Na composição desta expressão Freud escolhe o
mesmo termo que Hegel (Wiederkehr) descartando seu si­
nônimo mais usual (Rückgang). Vejamos então, brevemente,
o caráter estratégico desta noção para o desenvolvimento do
conceito de inconsciente para situar o tipo de retorno que ca­
racterizaria a racionalidade clínica da psicanálise.
No Rascunho K (1896/1950a) emprega-se pela primeira
vez a noção de retorno do recalcado com as seguintes caracte­
rísticas: ( l ) o recusado retorna inalterado, mas sem atrair sobre
si a atenção; (2) ele aparece como consciência de culpa, vergo­
nha, angústia ou hipocondria carente de conteúdo; e (3) ele
entra em conexão com um substituto duplamente desfigurado
no tempo (ação presente e futura) e no conteúdo (ocorrência
real e efetiva). Em Novas Observações sobre a Neurose de Defesa
(1896b) sintomas de retorno são opostos a sintomas de defe­
sa secundária, assinalando o caráter primário do retorno na
formação de sintomas. Começa a destacar-se aqui a categoria
de regressão (tópica, dinâmica ou temporal) como um caso
particular do retorno. Enquanto o retorno é um trabalho pro­
dutivo que se positiva em formações do inconsciente a regres­
são é um esforço negativo que incide de forma causai sobre o
retorno. O retorno em questão tem ressonâncias platônicas
que se combinam com a ideia de que as histéricas sofrem de
reminiscências.
Em Sonho e Delírio na Gradiva de Jensen (1907a), encon­
tramos um ciclo consagrado: recalcamento, fracasso do recal-
camento e retorno do recalcado. O retorno se faz respondendo
a diferentes exigências de figurabilidade. Como na fobia do
pequeno Hans (1909b), o temor aos cavalos é simultanea­

107
mente um retorno do desejo hostil dirigido ao pai, um retorno
de sua identificação com este e um retorno da angústia e ex­
citação experimentada com a mãe. A noção de retorno é em­
pregada para exprimir uma contradição que aparece unificada
e suprimida por um objeto. Ainda em acordo com a noção
de formação (Bildung) o termo contempla a reunião de forças
contrárias e heterogêneas. Trata-se de uma noção de retorno
mais próxima da que encontramos em Hipócrates.
Em dois casos dedicados ao estudo da paranóia (1911c) em
confronto com a concepção psicanalítica (19150 examina-se
a possibilidade de que exista um retorno do recalcado que se­
ria anterior ao recalcamento propriamente dito. Um retorno
que se daria sem que aquilo que retorna tenha plenamente se
inscrito no psiquismo.
Em O Recalcamento (1915 d) Freud discute criteriosamente
a diferença entre retorno do recalcado e formação de sinto­
mas. Todo sintoma é um retorno do recalcado, mas nem todo
retorno do recalcado é um sintoma; pode ser, por exemplo,
uma formação de compromisso ou um traço de caráter. As­
sim, também o retorno pode ou não acompanhar-se de perda
da crença na realidade suprimida (1919h) ou na efetividade de
imagens ou de atos (1923c). Ou seja, pode haver inconsciente
sem sintoma, mas não pode haver formação do inconsciente
sem retorno. Há aqui uma combinação entre a forma platôni­
ca (sintoma) e a forma hipocrática (inconsciente) de retorno.
No texto que marca a passagem da primeira para a segunda
tópica, Além do Princípio do Prazer (1920g), encontramos um
novo emprego para a noção de retorno, agora com contornos
mais próximos de Empédocles. A redefinição ou radicalização
da noção de pulsao implica em pensá-la, antes de tudo, como
um retorno a um estado anterior. Daí a inferência da pulsão
de morte como retorno ao estado inorgânico, que precedeu
o estado vital. Argumento que se reaplicará também à teoria
dos afetos e em particular da angústia, como retorno a uma
experiência anterior, o protótipo de um afeto. Os sonhos trau­

108
máticos, as neuroses de guerra e o brincar repetitivo da criança
tem em comum o fato de que são formas de retorno. Se não há
inconsciente sem retorno, o próprio retorno parece se inserir
aqui em uma categoria mais ampla: a repetição.
Finalmente em Moisés e a Religião Monoteísta (1939a), é o
pai que centra e explica os efeitos genéricos do retorno como
reanimação do trauma. A última formulação freudiana sobre
este tema retoma a primeira, ou seja, assim como na histó­
ria do indivíduo retornam, com sinal trocado, experiências de
prazer e desprazer, na história da civilização, modos de organi­
zação familiar e de dominação originários, retornam, de forma
invertida, no interior de formas de organização social poste­
riores. Mas agora Freud pode distinguir as formas positivas e
as formas negativas do retorno do traumático.
Este breve percurso em Freud nos permite salientar que a
noção de retorno é central para a consideração do inconscien­
te. Quase todos os atributos da noção de inconsciente encon­
tram paridade direta na noção de retorno. Freud pôde dizer,
por exemplo, que nem tudo que é inconsciente é recalcado,
mas ele não pôde dizer que há inconsciente sem de alguma
maneira afirmar a presença de um tipo de retorno. Isso decorre
da abrangência da ideia de retorno. Ela implica o inconsciente
como memória e desejo (retorno a traços mnêmicos de satisfa­
ção), ou como pensamento e linguagem (retorno associativo,
Bahnung) e em última instância a própria definição de pulsão
como trabalho de retorno a um estado anterior. Finalmente,
mas não menos importante, a própria ideia de transferência,
meio e princípio ativo do tratamento psicanalítico, contém
referências marcantes ao retorno a traços de relação infantis ou
atualização de objetos. Isso sem mencionar a recordação e a
rememoração como formas terapêuticas do retorno.
Temos então uma definição possível do inconsciente em
Freud: o inconsciente é o retorno. Não postulamos aqui uma
identificação entre estes dois conceitos, decerto díspares entre
si, mas uma noção mais ampla e genérica (o retorno) que con­

109
diciona e inclui um conceito específico (o inconsciente). O re­
torno é uma hipótese operativa, não exclusiva nem fundante da
psicanálise; o inconsciente é uma hipótese metapsicológica que
pretende explicar e organizar as formas do retorno. O retorno
pode ser descrito como fenômeno de reconhecimento, pois o
inconsciente só se apreende por seus derivados, ou por suas
reapresentações. Wieder - Kehr, ou seja, novamente, de novo
( Wiederj ao qual se acrescenta um Kehr, um círculo hipocrá-
tico, uma volta, uma curva: uma volta nova, um outro turno,
um retorno. Daí os cognatos: sich gekehrt (ensimesmar-se, vol­
tar-se para si), Kehrreim (estribilho, refrão), Kehrseite (reverso,
avesso). Contudo o retorno pode esquecer sua própria consti­
tuição e apresentar-se como retorno do mesmo, como retorno
sem diferença, é a resistência: Wieder —Stand, o que apresenta,
o que se coloca, o que se põe (Stand) de novo {Wieder).
A aproximação com Empédocles se aprofunda, portanto,
a partir da introdução da noção de pulsão de morte. Com ela
altera-se a concepção sobre o patológico em psicanálise. Dois
grandes princípios, pulsao de vida e pulsao de morte estão em
permanente mistura e desfusão, alterações quantitativas que
levam a mudanças de qualidade. Como em Empédocles, há
elementos heterogêneos em conflito, segundo uma economia
de trocas e uma topologia descritível. Como em Platão, há
um fragmento de verdade que qualifica este retorno. Tal como
em Hipócrates, há combinação entre qualidades que se repe­
tem de forma automática. A semelhança metapsicológica já
fora notada por Freud: “... os dois princípios fundamentais
de Empédocles são, quanto ao nome e quanto à função, o
equivalente de nossas duas pulsÕes originárias (Urtriebe): Eros
e Thanatos” (1937c).
Salientemos que essa referência a Empédocles reaparece
justamente no último grande texto freudiano sobre o trata­
mento analítico (Análise Terminável e Análise Interminável).
Freud compara Empédocles a Fausto, e se mostra fascinado
pelas mais agudas contradições que seu espírito parece reunir,

110
especialmente a ambivalência entre o pesquisador (Forscher)
e o pensador (.Denker) (Assoun, 1978, p. 147). Freud admira
ainda a adesão de Empédocles ao materialismo pluralista que
é capaz de incluir, ao mesmo tempo, a importância decisiva do
acaso {tychè) e a confiança na causalidade. Outro ponto im­
portante é que também para a psicanálise* a história do sujeito
confunde-se com a dos sintomas sendo, portanto, problemá­
tica a noção de doença como alteração qualitativa. Remanes­
cendo o problema do estabelecimento de descontinuidades,
tanto para a psicanálise quanto para o modelo representado
por Empédocles, a diferença entre o normal e o patológico é
quantitativa e não qualitativa.
Assim como Empédocles, a psicanálise enfatiza o diagnós­
tico em vez do prognóstico. Surge daí a afinidade com uma
diagnostica centrada na arte de perguntar, com evidente es­
forço de leitura dos signos que compõem a narrativa de uma
vida. Tais perguntas não são apenas uma anamnese neutra dos
fatos, mas indutoras de um espaço triplamente ficcional: (1)
relativo às hipóteses clínicas do analista; (2) à estrutura de ver­
dade em jogo para o paciente; e (3) às suposições sobre a pró­
pria relação que se desenvolve ao longo do tratamento.
Se há uma incorporação possível destes três paradigmas da
antiguidade na prática clínica da psicanálise é preciso notar
que estes representam posições muito distintas em relação ao
exercício do poder e respostas diversas sobre o problema da
autoridade do analista. O drama de Empédocles não é resol­
vido por intermédio de um juramento apaziguador, capaz de
integrar o analista em uma comunidade de curadores, apesar
do espírito hipocrático ser bem-vindo. Ocorre que a posição
de agente da cura para um sujeito deve ser permanentemente
posta em questionamento durante o tratamento. Daí as difi­
culdades crônicas, e precariamente solúveis, quanto aos crité­
rios para formação de analistas. Mas também daí o complexo
de impostura, a sensação de marginalidade social e o horror
do analista diante de seu ato. Se, em nosso contexto, a ideia de

lll
jogar-se na cratera de tfm vulcão por causa disso é um pouco
insólita, isso não exclui que alguns analistas sejam tentados a
se transformar em deuses. De toda forma, esse ato decidido
e enlouquecido de Empédocles foi aproximado por Lacan da
operação de separação que caracterizaria a formação de uma
nova forma de desejo pela experiência da psicanálise: “Aqui
um nem a \ni a] é convocado a suprir outro nem a \n‘y a]. O
ato de Empédocles, respondendo a isto, evidencia que se trata
aí de um querer. O vel retorna como velle. E o fim da opera­
ção” (E: 1964b, p. 857).
Lacan joga com a oposição entre a ideia de que, na separa­
ção, o objeto a não está (ni a) e a ideia de que ele também não
é {riy a), ou seja, de que a falta que este representa é também
um vazio, sem que ambos se reúnam numa unidade. A segun­
da oposição ocorre entre o vel (um tipo específico de alternati-
vidade baseada na interseção) e o velle (querer). Veremos mais
adiante o lugar crucial que essa operação ocupa no esquema
lacaniano do tratamento. Por ora, é importante salientar a afi­
nidade patente entre o ato de Empédocles e o tipo de proble­
ma relativo à ideia de que o analista não se autoriza senão de si
mesmo (Rabinovich, 2000, p. 125-145).
Ora, o que separa a psicanálise da perspectiva de Empé­
docles não é a estrutura da racionalidade de sua clínica, mas
o fato de que sua ação terapêutica não se baseia numa palavra
de tipo deontológica. E certo que o analista eventualmente o
faça, e há bons exemplos históricos disso em Freud e Lacan,
sem falar na técnica ativa em Ferenczi, mas não é da obediên­
cia a essas injunçÕes que se espera qualquer progresso na cura.
Chegamos, assim, à conclusão de que a psicanálise não
responde perfeitamente a uma ética da recomposição, típica
das terapias de compromisso, nem a um puro modelo clínico
como o que extraímos de Empédocles e Hipócrates, ou filosó­
fico, como encontramos em Platão. Que exista uma relação de
oposição entre as formas de poder envolvidas na psicanálise e
esses projetos clínicos e terapêuticos, isso ainda não nos habili­

112
ta a estabelecer a existência de um tipo de negação constitutiva
e específica da forma de poder envolvida em tais práticas. Ou
seja, não basta dizer que há uma recusa das terapias de com­
promisso, reformulada por Platão nos termos de um compro­
misso com ideias universais ou da medicina hipocrática e seu
ideal de restabelecimento. O que é negado na emergência de
tais práticas aparece como formação residual na figura de Em­
pédocles. As afinidades que sugerimos entre sua perspectiva
e a da psicanálise são importantes para salientar como, desde
a origem, encontramos interstícios, pontos de instabilidade e
não completude entre a razao clínica e a razão terapêutica. A
peculiaridade da noção de retorno, presente neste autor, refor­
ça esta suposição no plano teórico.

113
CAPÍTULO 3

O ATO DE A N T Í G O N A

Agarra-tc aos teus pretextos.


Quanto a mim, vou dar sepultura
a meu irmão.
Sófoclcs - Antígona

NTÍGONA É FILHA DE ÉDIPO, REI DE TEBAS (SÓ FO CLES, 2 0 0 0 ) .

A O casamento incestuoso entre ele e Jocasta originou qua­


tro filhos: Polinice, Etéocles, Ismena e Antígona. Quando
Édipo retira-se para o deserto, segurando seus próprios olhos
em direção ao sol, castigando-se pela transgressão cometida,
Creonte4 assume o trono de Tebas, ato contestado por Polini­
ce, contudo apoiado por Etéocles. Os dois irmãos lutam nas
portas da cidade e seus corpos jazem insepultos ao final do

4. Creonte (Crêon) filho de Meneceu (por vezes designado, sem grande rigor, por Menécio),
foi o pai de Hémon, e de Menoceu, marido de Eurídice. A sua história está intimamente
ligada à história de Tebas, antes e depois do reinado de Édipo. Foi rei de Tebas depois de
Laio ter sido morto pelo seu próprio filho Édipo, que ignorava a identidade do seu verda­
deiro pai. Mais tarde, quando Édipo vence a Esfinge que aterrorizava a cidade, Creonte é
obrigado a ceder-lhe o reino, de acordo com a promessa que tinha feito a quem livrasse a
cidade de tal ameaça. Na mesma ocasião, casa Édipo com Jocasta, sua mãe, viúva de Laio.
Mais tarde, após a morte de Etéocles e de Polinice, volta a reinar novamente em Tebas,
possivelmente como regente de Laodamante.
combate. Creonte decide que Etéocles deve ser enterrado com
todas as honras, enquanto Polinice sofrerá o pior dos desti­
nos que um homem grego pode enfrentar. Não apenas será
esquecido, Polinice nao será rememorado, e assim é como se
nunca tivesse existido. Os ritos fúnebres marcam a integração
de alguém à comunidade simbólica grega. Sua ausência torna-
se, assim, o mesmo que uma exclusão simbólica. Recordemos
que o ideal de vida grego incluía morrer jovem e no campo de
batalha, sendo assim, lembrado para sempre pela comunidade
como alguém virtuoso. O édito de Creonte responde drama­
ticamente ao próprio desejo de Édipo quando este se confina
ao deserto. Nesse momento, o pai de Polinice diz: m ephunai,
ou seja, melhor seria se eu não tivesse existido. Creonte ameaça
realizar com Polinice a declaração de desejo de seu pai.
Antígona decide, então, contrariar Creonte e enterrar Poli­
nice. Ismena, como Etéocles, coloca-se ao lado do soberano de
Tebas. Obrigado a manter sua palavra, Creonte ordena que An­
tígona seja enterrada viva. Forma-se aí uma intrincada rede de
alianças e apelos destinados a demover Creonte de sua decisão.
Ismena decide tardiamente salvar a irmã, arriscando-se a ser tra­
gada pelo mesmo destino. Hemôn, filho de Creonte e noivo de
Antígona, tenta demover o pai para salvar sua amada. Eurídice,
mãe de Hemôn e esposa de Creonte, tenta evitar o sofrimento
do filho intercedendo junto a seu marido. Os anciãos de Tebas e
o adivinho Tirésias ponderam sobre o tipo de desequilíbrio que
poderia ser gerado por tal punição imposta a Polinice.
Creonte, ao perceber as inusitadas implicações de seu ato,
tenta revogar seu édito, o que é sempre problemático em se
tratando da palavra de um rei. Mas o intervalo temporal dessa
dúvida é longo demais. Antes que o ato profundamente sim­
bólico de “voltar atrás” seja proclamado, Antígona inusitada-
mente assume seu destino e deixa-se emparedar junto com o
irmão Polinice. Seu noivo, Hêmon, suicida-se diante de seu
túmulo, o que leva ao suicídio de sua mãe, Eurídice. Creonte
é o grande perdedor: fez valer uma palavra da qual ele mesmo

116
recuou —perdeu a sobrinha, o filho e a esposa, além de parte
de sua autoridade como governante. Antígona perde de outra
forma - ela sofrerá o mesmo destino que quis evitar para o
irmão, não tendo seus próprios rituais fúnebres. Seu ato, que
visava afirmar as leis de fidelidade impostas pelo parentesco
ioikós) contra as leis da pólis, reformuladas pelos homens se­
gundo as contingências de seus atos, acaba por destruir essas
mesmas relações de parentesco, arrastando Hêmon e Eurídice
para a morte.
A tragédia grega combina assim três feixes discursivos: a re­
alização estética de uma problemática social; um discurso que
visa educar seu público, retomando as narrativas simbólicas da
comunidade grega e situando-as num novo conjunto de con­
tradições éticas; e por fim, ela procura realizar uma cura das
paixões (catharsis) que acometem tanto os indivíduos quanto
a comunidade. As inúmeras formas históricas pelas quais o gê­
nero trágico foi entendido contêm as diferentes soluções que
se pode encontrar para a controvérsia entre métodos de cura e
princípios éticos que lhes seriam coetâneos. Vemos se esguei­
rar em nossa discussão uma categoria nova, uma espécie de in­
termediário espontâneo entre a função da cura e os princípios
éticos de seu poder, ou seja, a dimensão estética.

3.1. O TEATRO TERAPÊUTICO E A


DIMENSÃO ESTÉTICA DO SOFRIMENTO
Para cumprir sua função catártica e educativa, o gênero trá­
gico precisa resolver uma série de problemas estético-formais.
Ele deve subdividir a ação em cenas isoladas, que se desenvol­
vem em um só lugar, necessariamente em tempo contínuo,
através de diálogo envolvendo, no máximo, três atores. Do
ponto de vista do enredo, a tragédia deve recortar o mito, iso­
lar seus fragmentos essenciais, como que a extrair-lhe a estru­
tura. Não há tempo para descrições exaustivas: o núcleo da
ação deve se impor à narrativa (Snell, 2001, p. 100). O preço

117
pago por essa exigência formal é que o protagonista, ou seja,
aquele que vive o conflito (agon) em si, passa a representar, e
não a ser o herói. A narrativa deve ser, antes de verdadeira ou
conforme o real, plausível ou verossímil. No centro da ação
dramática encontra-se uma espécie de julgamento e avaliação
sobre o ato do herói. Esse ato caracteriza-se pela ultrapassagem
do metron que define o homem. Em outras palavras, o herói é
alguém que se separa das condições que o definem como per­
tencente à comunidade e das leis (divinas e humanas) que esta
prescreve. Seu destino é construído pelas reviravoltas integrati-
vas e desintegrativas desse ato. O herói trágico comete sempre
uma hybris, ou seja, um ato que não se consegue situar, clara
e imediatamente, nas estratégias de subjetivação esperadas ou
prescritas por sua época. Esse ato pode lhe ser desconhecido,
como em Édipo Rei, ou deliberado, como em Antígona.
Mas, além dessas condições formais que definem o gênero
trágico, é importante ressaltar a proximidade entre o estatuto
da palavra em psicanálise e nessa forma de arte da palavra que
é o teatro grego. Dentre a vasta tradição de comentários sobre
a tragédia e a ainda extensa assimilação desta pelos estudos
psicanalíticos gostaria de situar brevemente duas vertentes. Há
aqueles que entendem a tragédia como uma espécie de síntese
das contradições'de uma época, uma matriz para a abordagem
de problemas ético-políticos ou lógico-práticos na esteira do
pensamento de Hegel, Nietszche e Adorno. Em oposição a
esta tradição temos aqueles que reforçam tratar-se na tragédia
de um fenômeno estético a ser reconhecido em sua autono­
mia, cuja ligação com a esfera ética ou lógica é de natureza
mimética. Nesta linha, argumentam Hõlderlin, Heidegger e
Blanchot, a tragédia é uma forma de colocar o paradoxo como
paradoxo, não de tratá-lo sob a forma de contradições que se
desenvolvem assimilando suas próprias premissas. Ela afirma:
seja como eu e também, não seja como eu sem designar uma
conciliação possível, mas explorando a dimensão do que só
pode ser dito no quadro de uma poética (Figueiredo, 2007).
No centro do confronto encontra-se a própria definição de
catarse, como pletora de conflitos sociais e como experiência
estética do sofrimento (pathos). Para os nossos propósitos in­
teressa saber como a tragédia participa na formação da prática
psicanalítica, a saber, como matriz de problemática ética ou
como referência para o potencial transformador da experiên­
cia estética. No primeiro caso a tragédia é uma espécie de mo­
delo lógico para o tratamento e apresentação de contradições
éticas, no segundo caso a tragédia envolve um tipo de mímesis
que se atualiza no próprio tratamento.
Não há campo algum da arte que não tenha contribuído
para a reflexão psicanalítica, mas, no caso do teatro, a ligação
parece envolver a própria estrutura do tratamento. O anali­
sante traz sua narrativa: ele não apenas a relata, mas a encena
na transferência, muitas vezes sem saber disso. Para o analista,
o problema é estabelecer o lugar em que é colocado por essa
narrativa, mas também deslocar-se desse lugar, transformando
o sentido da narrativa e, eventualmente, alterando o discur­
so na qual ela se desenvolve. Aliás, theatron quer dizer “lugar
de onde se vê”, que replica um problema clínico central do
tratamento: o lugar de onde se escuta. Sendo assim, analista
e analisante se envolvem numa trama organizada em vários
níveis pelas posições de narrador-narratário, ator-personagem
e autor-destinatário. São as várias figuras do Outro das quais
se serve o analista. Assim como Sófocles, Eurípides e Esquilo
tiveram que comprimir as extensas narrativas míticas, o anali­
sante deve condensar o inesgotável repertório de lembranças,
recordações, acontecimentos, ilusões e promessas que compõe
sua vida. Ele o faz, a cada vez, de acordo com o conflito {agon)
que o domina, estabelecendo seus contracenantes em lugares
distintos, sempre sujeito à reação inesperada do coro, da or­
questra e do próprio auditório. O analisante também preci­
sa lidar com problemas formais, do tipo “o que colocar no
proscênio (primeiro plano)”, “o que deixar para a skenê (cena)”
e, finalmente, com as aparições da outra cena {andere Shau-

119
platz) e os elementos qfie provêm do obsceno (literalmente, o
que está fora da cena). Assim como os dramaturgos do século
IV a.C., o tratamento analítico divide a fala em segmentos
descontínuos no tempo —os atos, ou sessões, cuja estrutura
é também dialogai, mas comportando quatro lugares, e nao
três personagens. Assim como os atores e o auditório grego,
o analisante também espera um efeito que é o de cura e de
redimensionamento de seu destino.
Salientei que a afinidade práxica entre psicanálise e teatro
pode envolver uma relação de mímesis, o que Lacan (SVII: 1959-
60, p. 341) chamou de cilindro anamórfico da tragédia ou de
estrutura moebiana da tragédia. Aqui a separação entre tragédia
e comédia é crucial. Considerada no nível de sua estrutura ló­
gica, tragédia e comédia não se separam tanto assim; o que im­
porta neste caso é essa reversão entre o herói, suposto agente e
soberano de seus atos, e o que Lacan, em referência a Antígona,
chama de dejeto, o resíduo de uma história que não pode ser in­
teiramente absorvida no campo do sentido. Isso ocorre também
na comédia. Vejamos um exemplo.
Na comédia Heutontimoroumenos, de Terêncio (163 a.C.),
Medenemo trata seu filho com excessiva severidade e depois
se arrepende. Passa então a punir a si mesmo empregando-se
como escravo de seu vizinho. Trabalhando de sol a sol, privan­
do-se de seus bens e de sua família ele declara ter menos culpas
enquanto for infeliz. Um claro exemplo de como o sofrimen­
to pode ser preferível ao mal estar. A comédia termina com
subsequente reconciliação com o filho e o casamento deste
com a filha de seu vizinho (Cremes). A expressão heutontim o­
roumenos provém do pronome reflexivo (heuton, si mesmo)
em conjunção com tim e (honra, valor) ou timoreo (socorrer,
vingar) e, no conjunto, designa pun idor de si mesmo, ou ator­
m entador de si mesmo. O resíduo, que neste caso responde pelo
efeito de humor na peça, refere-se a esta conotação paradoxal
da expressão time, que designa ao mesmo tempo a honra e sua
perda, o valor e a falta de valor. No fundo a comédia joga com

120
o paradoxo da reparação, ao castigar-se a si mesmo como for­
ma de reconhecer seu erro, ele erra mais uma vez impedindo-
se de reparar seu. ato. Esse parece ter sido o ponto de partida
clínico de Lacan, que propõe em sua tese a noção de paranóia
de autopunição:

Esses tipos clínicos com os quais o caráter de nossos su­


jeitos nos revelou suas congruências precisas, o psicastêni-
co, o sensitivo, se revelam a si mesmos por suas relações
mais salientes, seus escrúpulos obsessivos, as inquietações
de sua ética, seus conflitos morais interiores, como tipos
muito belos de heutontim oroum enos', toda sua estrutura
parece ser deduzida da prevalência de mecanismos de au­
topunição. (1932, p. 254)

O resíduo pode ter, portanto, uma dimensão trágica ou


cômica, pode referir-se ao que não se integra ao universo das
leis ou ao que foge ao domínio das convenções (sobre como
tratar os filhos). Mas a importação psicanalítica de modos de
relação presentes na tragédia, sua universalização na forma de
tipo clínico ou estrutura, utiliza a tragédia como matriz des­
critiva, prescindindo, portanto, de sua relação com o gênero
específico. Mas a apropriação psicanalítica da tragédia alcança
ainda o nível da própria estrutura do tratamento. Lacan in­
siste que o lugar do analista é homólogo não ao do auditório,
nem ao dos juizes ou ao da orquestra, mas ao lugar do coro.
O coro é uma referência para designar a função de semblante,
que Lacan atribui ao psicanalista, e como tal, o lugar em que
o gozo virtualmente se realizaria (SXVI: 1958-59, 4/06). Ora,
com a introdução das noções de gozo e de semblante Lacan
desloca-se da incorporação ética e lógica da tragédia para sua
dimensão estética.
O coro (chóros) era composto por dançarinos e cantores
mascarados, uma espécie de personagem coletivo que repre­
sentava a pólis e a expansão do conflito para além da esfera in­
dividual. O coro marca a pausa entre os atos, assinala seus mo­

121
mentos de transição e pode incitar a reflexão sobre um tema
moral ou social atinente à narrativa. Ele pode tanto agir como
um personagem, dialogando com os atores, como tomar parte
ativa na ação ou ainda comentar os acontecimentos da cena
dramática. Ele age assim tanto como espectador ideal quanto
como uma voz, responsável pela moderação dos discursos e
pela economia dos afetos (Nietzsche, 1872, pp. 56-62).
Neste ponto, é importante lembrar o privilégio que Lacan
concede ao exame da tragédia como gênero teatral. Há uma
diferença a ressaltar entre a tragédia como teatro e o trágico
em geral. Existe sentido trágico do mito, assim como há uma
literatura, uma filosofia e uma tradição de pensamento trá­
gico, na qual, por exemplo, se inscrevem Lucrécio, Pascal e
Nietzsche. A afirmação de Lacan de que a ética da psicanálise
é uma ética trágica (SYII: 1959-60, p. 375), pode ser lida no
sentido de que a psicanálise teria uma visão trágica do mundo,
afim ao pessimismo freudiano ou às éticas da resignação e da
renúncia. Outra maneira de entender esta tese é aprofundan­
do as relações formais e estéticas da psicanálise com o gênero
trágico. Aliás, já se mostrou que a ideia de tragédia como nar­
rativa fatalista é uma incorporação medieval cristã ao sentido
grego da tragédia (Williams, 2002, p. 36). Consoante ao gêne­
ro narrativo, a ética da psicanálise é trágica, mas também cô­
mica; ela inspira tanto o pathéticos (como apatia diante da di­
versidade das formas de gozo) quanto o enthousiastikós (como
engajamento decidido no desejo) (Lacan, Op. Cit., p. 298).
Ainda como forma de pensamento o trágico pode nos remeter
à curiosa combinação entre ceticismo e esperança que encon­
tramos no estilo de Freud (Marcuse, 2006). O fundamental é
que se realize essa experiência de retorção entre herói e anti-
herói, entre narrador e narratário, entre coro e protagonista,
entre autor e ator da própria vida. Esse efeito foi chamado por
Aristóteles de catharsis.

122
3.2. ANTÍGONA: CATHARSIS INTEGRATIVA
E CATHARSIS DESINTEGRATIVA
Mas isso ainda nao resolve o problema da dimensão esté­
tica da experiência. Em Aristóteles catharsis é um efeito esté­
tico, uma purificação das paixões, obtida a partir do lugar do
qual o espectador vê e é colocado pelo drama. A análise que
se concentra apenas no enredo trágico tende a apagar esta di­
mensão na medida em que prescinde do exame dos recursos
de construção necessários para obter tal efeito. Para este tipo
de análise é indiferente se o sujeito tenha lido o texto da peça,
participado da montagem de seu espetáculo ou de sua apre­
sentação. Essa etificação do fenômeno estético representaria,
portanto, uma perda importante.
Lembremos que a noção de espetáculo insiste na forma­
ção da tradição psicoterapêutica. Vimos a importância disso
nas curas praticadas por Quesalid e reconhecemos sua impor­
tância no desenvolvimento do “teatro histérico”. A finalidade
do espetáculo é favorecer o reconhecimento intersubjetivo da
experiência, aumentando a influência e eficácia da sugestão.
A tradição clínica, por outro lado, procura restringir o espetá­
culo da cura a uma representação reduzida entre mestre, dis­
cípulo e paciente. Sua finalidade é epistêmica, ou seja, a trans­
missão em ato de um saber. Na vertente representada pela cura
propriamente dita há uma crítica da própria separação entre
estética e ética e com isso os próprios limites do que vem a
ser um espetáculo se distendem. Apesar dos potenciais efeitos
colaterais, quais sejam a estetização da ética ou a etificação da
estética, a perspectiva da cura propriamente dita parece estar
mais preocupada ou com a fronteira entre ambas ou com sua
negação mútua. Vejamos como estas três perspectivas leriam a
tragédia de Antígona.
Podemos enxergar no drama de Antígona uma catharsis
conciliatória, se entendemos que ao final, Creonte deixa de ser
um tirano e torna-se um soberano prudente e mais sábio. Is-

123
mena, por sua vez, tran^forma-se de súdita medrosa em defen­
sora ponderada das leis-domésticas. Há, portanto, uma espécie
de con ciliação en tre a lei da pólis, representada por Creonte
e a lei da oikós, representada por Ismena. Reciprocamente,
para que essa transformação ocorra, é necessário que a antiga
ordem, baseada no excesso de apego familiar de Antígona e
na sucessão sanguínea de Creonte por Hêmon, desapareça. O
drama da morte desses personagens funciona como uma espé­
cie de lição contra a excessiva identificação com as normas da
ação moral convencional, como que a convidar o espectador
a refletir melhor e mais criticamente sobre sua própria forma
de interiorização da lei (Freitag, 1992, p. 23). Nesta interpre­
tação a tragédia aparece como uma evolução das narrativas de
compromisso, uma resposta às transformações e conflitos da
sociedade grega, às voltas com a integração entre o laço social
organizado pela oralidade e pela escrita.
Uma interpretação alternativa alegaria que Antígona fez
valer sua ética individual, recusando decididamente sua inte­
gração moral à esfera quer das relações pessoais de família (seu
amor por Hêmon não seria tão forte assim), quer das relações
econômicas (ela renuncia à confortável vida como futura rai­
nha de Tebas), quer das relações políticas (ela confronta a lei
de Creonte e, por extensão, da cidade). Mas essa recusa é o que
lhe confere a razão final, uma vez que funciona como mensa­
gem permanente de que as leis da pólis podem ser injustas e
indignas. A vida confortável e segura não é necessariamente
a existência feliz e as relações pessoais familiarizadas podem
ser demasiadamente pobres para definir a excelência de uma
vida. Tal interpretação transforma aquilo que seria a precipi­
tação e a teimosia de Antígona em um gesto de liberdade. Seu
ato não é prova de fidelidade irrestrita às leis da família, pelo
contrário: é uma maneira de se libertar definitivamente dela.
E uma espécie de catharsis negativa, cujo fim é “purificar” o
desejo de purificação. Sua hybris é investida de um excesso
desequilibrador para u m ato cu jo lim ite é representar a in co n ­

124
sistência dos sistemas simbólicos na determinação do sujeito,
ou seja, um ato que indica a falta interior à ordem simbóli­
ca. Antígona revela o ponto preciso em que os diferentes sis­
temas simbólicos (parentesco, político, religioso, jurídico) não
se reúnem em uma totalidade harmônica, mas num sistema de
contradições. Se Ulisses é um personagem que está sempre em
seu lugar (apesar de viajante inveterado), de acordo com a ética
convencional (que resiste a um percurso de provas), Antígona
é aquela sem-lugar. Habitante de uma comunidade negativa,
seu ato se inscreve numa ética pós-convencional. Seu ato é para
além da lei (Safatle, 2003, pp. 189-234). Por isso, o afeto que a
domina não é a vergonha, nem a culpa, mas a angústia. Essa é a
leitura que localiza em Antígona uma ética do Real. Através de
seu ato ela mostra pragmaticamente a não universalidade da lei
proposta por Creonte e ao mesmo tempo a universalidade con­
tida nesta forma de desejo particular. A ética do real reverte-se
aqui de determinismo em experiência de liberdade.
Uma terceira interpretação para o ato de Antígona contor­
naria a problemática ética, afirmando que a filha de Édipo não
é a heroína de uma moral individualizada nem o pretexto para
uma transformação coletiva. Antígona agiu simplesmente de
modo pouco engenhoso. Em vez de usar sua influência como
membro da realeza para induzir seus guardas de confiança a
enterrar Polinice de forma secreta, mas de acordo com os ritu­
ais, ela transformou o combate contra Creonte em uma espécie
de luta sem fim pela “posse da razão”. Ao mesmo tempo, ela
poderia ter empregado a astúcia necessária para fazer seu pre­
tendente, Hêmon, conquistar alguma condescendência junto
ao pai. Finalmente, ela recusou uma conversa franca, aberta e
eventualmente sedutora com Creonte de modo a mostrar que
seus interesses políticos poderiam ser afetados por uma ação
tão drástica e que, em vez disso, se poderia fazer uma espécie
de acordo por meio do qual o rei de Tebas “fecharia os olhos”
a um ritual fúnebre realizado sem muita pompa e alarde. Esta
última solução seria regida por uma espécie de tecnologia das

125
relações baseada principalmente na ética da eficácia. A posi­
ção de Antígona seria-abordada aqui como uma espécie de
sintoma social: teimosia maníaca, masoquismo renitente ou a
inaptidão cognitiva. A sobrevivência dos interesses implicaria
ajustes pouco dignos do ponto de vista da combinação entre
a lógica privada e a lógica pública. Ela traria a teatralização
para dentro do próprio drama, como se os atores começassem
a parodiar seus próprios personagens. Nessa leitura, não há
catharsis integrativa, nem catharsis negativa, mas uma espécie
de catharsis funcional.
Essas três estratégias assinalam maneiras distintas de rela­
ção com a lei, associáveis a entendimentos diferentes acerca do
desejo humano. A primeira interpretação enfatiza a dialetiza-
ção do desejo entre o sujeito e o Outro; a segunda acentua os
limites dessa dialética, pensando-a de forma não integrativa;
a terceira interpretação focaliza a equilibraçao do cálculo do
gozo. Cada uma dessas leituras implica uma política da felici­
dade, ou seja, uma distribuição distinta da incidência do Ou­
tro sobre o sujeito e uma potência diferencial do sujeito sobre
o Outro. A primeira política acentua a dimensão da simpatia
e da compaixão, e possui uma extração terapêutica (Jackson,
1999, p. 47). Seu conceito central é a noção de sofrimento. A
segunda política acentua a dimensão da cura, e seu conceito
central é a noção de verdade. A terceira política é de inspiração
clínica, e aqui trata-se de olhar para a trama de forma a resol­
ver os sintomas que ela coloca.
A tragédia condensa essas diferentes políticas em uma mes­
ma metáfora. Lida desta maneira, a catharsis torna-se outra
designação para a dialética entre a falta e o excesso no campo
do sentido político. Já se assinalou (Silva Jr., 1998) que ca­
tharsis é um conceito originalmente político que nos permite
discriminar diferentes modelos de subjetividade e diferentes
maneiras de lidar com o “mal” no campo das relações sociais.
O primeiro poderia ser denominado de modelo do quimis-
mo mental, cuja extração é platônica. Este inspiraria represen­

126
tações da subjetividade, ilustrados, por exemplo, por um círculo
com um ponto em seu centro, ao modo de uma mônada. Se­
gundo esse modelo, a catharsis positiva opera uma expulsão do
mal; o impuro deve ser excluído para que a ordem se mantenha
em sua pureza harmônica. E a política das particularidades, que
eventualmente evolui para a segregação, e que acompanha his­
toricamente as estratégias psicoterapêuticas. Esse modelo está
presente na teoria freudiana da representação e domina todas as
metáforas que se organizam em torno da noção de aparelho psí­
quico, os esquemas tópicos e os conceitos derivados do associa-
cionismo. Do ponto de vista prático, ele aparece nas referências
à catarse e à ab-reação dos afetos.
Aristóteles, por sua vez, representaria um segundo modelo.
Trataria-se aqui de um subjetividade compartilhada, na qual
o mal precisa ser reconhecido, como originado nos próprios
desvios das relações entre os indivíduos, para ser, em seguida,
reintegrado. A imagem aqui é a de dois ou mais círculos que
se interpenetram ao modo de uma corrente. E a política da
reconciliação e do retorno que encontramos na matriz clínica.
Ele aparece indexado, por exemplo, em noções como identifi­
cação, projeção e introjeção (Gabby Jr., 2002). Sua referência
prática é, naturalmente, a noção de transferência, as estraté­
gias de trocas e relações possíveis entre o sujeito e o outro.
E esse segundo modelo que torna a experiência estética um
paradigma da problematização da ética.
Haveria ainda na psicanálise um terceiro modelo de sub­
jetividade, aquele que encontramos na segunda leitura de
Antígona, e que Silva Jr. (Op. Cit.) chamou de subjetividade
aberta. Neste caso, se trataria de uma relação não integrativa,
mas produtiva (poiética) com o passado —um passado que se
torna aberto à imprevisibilidade e a indeterminação. Uma boa
representação deste modelo encontramos na figura da elipse.
A elipse é uma figura da indeterminação do próprio centro.
As temáticas teóricas da sexualidade feminina e da pulsão de
morte, os problemas clínicos da sublimação e do masoquis-

127
mo, bem como a diménsão técnica da construção, envolvem
conceitos afins a esse terceiro modelo. Ocorre que este terceiro
modelo nao é nem clínico, nem psicoterapêutico. Ele convida
a pensar a psicanálise como uma cura e a tomar a tragédia
como uma experiência real, ontologicamente anterior, portan­
to, à separação entre ética e estética.
Os dois primeiros modelos implicam, portanto, políticas
diferentes respectivamente ao sofrimento e ao sintoma. No pri­
meiro caso trata-se de sacrificar o outro, no segundo de sacrificar
a si. No terceiro modelo encontramos uma outra formulação:

Estou disposta a sacrificar tudo, “exceto isso!” - tudo exce­


to seu papel de vítima, exceto o próprio sacrifício. O que
o sujeito tem que fazer para livrar-se deste papel de “bela
alma” é precisamente este sacrifício do sacrifício: não bas­
ta “sacrificar tudo”, é preciso ainda renunciar à economia
subjetiva em que o sacrifício traz o gozo narcísico. (Zizek,
1991b, p. 86)

Este seria um exemplo de enunciação compatível com a ca-


tharsis desintegrativa. Ou seja, ela não apenas purifica ou inte­
gra, mas dissolve os termos em que a questão se coloca. Esta
operação apresenta-se como estética desde que por isso se enten­
da as próprias estratégias de mímesis como forma de apresentar a
inadequação da representação ao representado. Reencontramos
assim, no interior da tragédia, esta forma de sofrimento que não
se constrange à sua nomeação, este modo de mal estar que é
refratário ao tratamento ou a integração em contradições.
As formas de ler a tragédia, aqui remetidas à sua utilização
como estratégias de tratamento, podem ser associadas a uma
reinterpretação dos regimes etiológicos que verificamos com
relação à esfera da magia. Poderíamos, esquematicamente, nos
apoiar para tanto na ideia de que as tragédias são reinterpreta-
ções de mitos orais. Levando em conta que a nascente tradição
filosófica ocupou-se da tragédia como objeto estético e políti­
co encontramos a seguinte associação:

128
Etiologia Mágica Tipo de Causa Formas da Catharsis

Objeto Intrusivo Causa material Catharsis Positiva


(Platão)
D esregulação do Espírito Causa formal Catharsis Integrativa
(Aristóteles)
Quebra de Tabu Causa eficiente Catharsis Desintegrativa

3.3. ÉDIPO: SABER, PODER E DESEJAR


Freud argumentou que a comunidade de sentido que carac­
teriza a transmissão simbólica do desejo é redutível, sempre,
à relação com o pai. Lacan adicionou a isso a ideia de que o
pai, em psicanálise, é uma função lógica e um efeito de lingua­
gem, mais precisamente um efeito metafórico e um efeito de
escrita. Aristóteles (2003:1457, b8-9) definia a metáfora como
“a aplicação de um nome alheio por meio da transferência”.
Nesta definição, encontramos dois termos que serao caros ao
tratamento teórico que Lacan aplica à questão: transferência e
um outro nome.
A ideia de que, na metáfora, um significante é substituído
por outro poderia nos levar à afirmação de que, antes da me­
táfora, haveria um nome que não seria outro —um nome que
seria idêntico a ele mesmo. Isso não é verdade, se nos atermos
ao campo de produção do sentido, mas se verifica no caso da
letra e do nome próprio. Todo significante é outro em relação
aos outros significantes, mas também em relação a si mesmo,
considerando-se sua insistência diacrônica no discurso. O sig­
nificante é uma posição, não uma palavra; ou melhor, é uma
palavra em posição. Quando Ulisses se lembra de seu nome
em pleno campo de batalha, quando Hipócrates profere seu
juramento ou quando Antígona afirma o nome de sua linha­
gem, eles fazem transferir a identidade ancestral para a iden­
tidade atual, mas isso é um truque narrativo que obscurece o

129
fato fundamental de qÈie há apenas outro nome. O nome ori­
ginal já é outro, daí o fato de que a hipótese freudiana do pai
primordial (Urvater•) é estruturalmente mítica, e não apenas
narrativamente mítica.
A anterioridade do Outro é um fato lógico, nao narrativo.
Outro, em grego, se diz allótrios, palavra de tripla conotação.
Se tomarmos o outro em oposição ao ídios (si mesmo, soli­
tário), temos em vista o campo semântico do pertencimen­
to, geralmente empregado em assuntos pessoais ou privados,
onde o “meu” se opõe ao “alheio”. Se tomamos o outro em
oposição a óikeos (familiar, próprio), é entendido como estran­
geiro ou pertencente a outra família. Finalmente, se tomamos
allótrios em oposição a kyrios (senhor, soberano), referimo-nos
ao campo da legitimidade e da autoridade (Azevedo, 2001). O
nome-do-pai, em psicanálise, pode ser considerado uma me­
táfora que designa, no limite, a alteridade representada pela
linguagem, uma estrutura que precede o sujeito tanto no nível
da fala (aprendemos a falar com o outro - óikeos) quanto no
nível do discurso (que estipula o que pode e o que não pode
ser dito - kyrios), e ainda no nível da subjetivação da fala (que
determina a assunção da linguagem por alguém - ídios). O
nome-do-pai é uma encruzilhada da qual procede, por trans­
ferência, o pai como instância formadora de ideais (Ideal do
Eu), o pai como posição normativa (Supereu) e o pai como
função da falta fálica (castração). Há, portanto, apenas versões
do pai, ou nomes-do-pai, que não se reúnem em um univer­
sal consistente. Cabe observar que o nome não é exatamente
uma palavra, e nem sempre eqüivale a um significante. Um
nome, ou a função de nominação, possui certas características
que o ligam tanto ao sistema da fala e da língua quanto a este
sistema próprio, no interior da linguagem, que é a escrita. Um
nome, por exemplo, não se traduz; ele designa, mas não signi­
fica algo ou alguém. Em sua dimensão significante, o nome do
pai funciona como um amarrador, propiciando consistência e
estabilidade à significação fálica. Todavia, em sua dimensão de

130
nome, ele representa o buraco ou furo no simbólico (Lacan,
1963b). Isso indica que a ordem simbólica nao deve ser con­
cebida como urna unidade coerente formada pela harmonia
entre os diferentes sistemas simbólicos (óikeos, ídios, kyrios).
Essa breve incursão em torno da metapsicologia da fun­
ção paterna é importante para separar a leitura tradicional da
tragédia, especialmente de Edipo Rei, que a apreende apenas
como um drama familiar em torno do assassinato do pai, de
sua radical reflexão sobre os limites da lei. A tragédia pode ser
concebida como um sistema prático de negatividades que visa
tratar os fundamentos éticos do poder na família, na sociedade
e no Estado. Daí ser ela compatível com a pesquisa sobre os
fundamentos do poder no tratamento analítico.
Foi nessa direção que Foucault (1975a) mostrou que a tra­
gédia de Édipo contém uma estratégia de pesquisa da verda­
de que é, a um tempo, testemunho das práticas judiciárias
gregas e expressão da problemática que separa saber e poder
no início da época clássica. Ao contrário das práticas anterio­
res, baseadas no juramento e na consistência narrativa de sua
enunciação (do tipo “Se sou Ulisses, então digo a verdade”),
a prova enfrentada por Édipo ordena-se pelo desejo de saber.
A tragédia reúne, neste quesito, três aspectos constitutivos da
prática psicanalítica: um método de investigação (compatível
com o de Empédocles), uma reflexão crítica sobre o poder
(compatível com a psicoterapia) e uma experiência com a ver­
dade (compatível com a noção de cura).
Édipo, Rei de Tebas, consulta o oráculo de Delfos para saber
a causa da peste que assola sua cidade. Apoio responde tratar-
se de uma impureza causada pelo assassinato impune do anti­
go governante, Laio. O oráculo diz a verdade, mas não-toda,
uma vez que silencia sobre o nome do assassino. Convoca-se
então, o adivinho Tirésias, que afirma diretamente, e logo na
segunda cena: “Prometeste banir aquele que tivesse matado;
ordeno que cumpras teu voto e expulses a ti mesmo”. Tanto o
oráculo quanto o adivinho enunciam sua sentença no futuro,
como uma predição. Aprendemos a reconhecer nessa enunciação
imperativa, que faz apelo a uma exigência de trabalho, incerta e
indecidida para o próprio sujeito, a noção de demanda. Essa de­
manda o impele a levantar o testemunho do passado.
Isso se inicia por um primeiro desmentido. Jocasta afirma
que ele não pode ser o criminoso porque se sabe que Laio
foi morto por vários homens no entroncamento de três ca­
minhos. Esta parte da lembrança, desconhecida por Édipo,
passa, então, da condição de desmentido à de prova, pois foi
justamente dessa forma que Édipo lembrou-se de ter matado
um homem quando de sua chegada à Tebas e antes do en­
contro com a Sphinx. Mas isso não prova que Édipo tenha
matado seu pai, e menos ainda que Jocasta, sua atual esposa,
seja também sua mãe. Novamente, o momento de verdade
se mostra incompleto. Agora, porém, ocorreu uma retificação
das relações de Édipo com a realidade. Sua investigação, an­
tes dirigida ao outro, torna-se indeterminada. Paira a dúvida
sobre quem afinal é Édipo, tanto se considerado a partir da
linhagem e da filiação quanto se considerado como agente e
responsável por seus atos.
A essa altura, um escravo vindo de Corinto chega com a
notícia de que Políbio havia morrido. Édipo chora o pai mor­
to, mas alegra-se porque isso é uma prova de que ele não o
matou e nem matará, indício que a profecia era equivocada.
Novamente, a certeza de Édipo é desmanchada, agora pelo
escravo que revela que Políbio não é o verdadeiro pai de Édi­
po. A trama está incompleta, a verdade permanece semi-dita,
falta a prova de que, de fato, ele, quando pequeno, tinha sido
entregue por Jocasta aos cuidados de uma família em Corin­
to. Esse último elemento vem à tona com o reaparecimento
do escravo Citerão, que havia fugido depois de participar na
trama do exílio da criança e agora vivia modesta e isoladamen­
te como pastor de ovelhas. Citerão confirma a troca e Édipo
não tem mais dúvida: impõe-se o degredo, de acordo com sua
promessa inicial.

132
Essa estratégia de investigação opera pelo desmembramen­
to da verdade, a cada momento, em sua dialética com o saber.
Ela obedece à técnica grega do símbolo, ou seja, parte-se um
objeto em duas metades, confiando-se cada uma a alguém.
Isso permite que cada um se reconheça como portador da
mensagem sem que a nenhum deles seja dada por inteiro. Isso
autoriza ainda que cada um reconheça o outro portador da
mensagem como partícipe do mesmo símbolo. E uma bonita
imagem para ilustrar a tese lacaniana de que o sujeito recebe
sua própria mensagem invertida desde o Outro. Essa técnica
aparece fortemente na primeira concepção que Lacan tem do
tratamento, na qual este se divide em duas fases: a simboli-
zação da imagem e a realização do símbolo. A simbolização
da imagem corresponde ao reconhecimento de que ali, onde
se localiza um objeto supostamente acessível por designação,
encontra-se, na verdade, uma significação. A realização do
símbolo corresponde à transformação da significação, como
saber anônimo e imparcial, num ato intersubjetivo.
A dialética entre saber e verdade se desenvolve em vários
níveis em Edipo Rei. Primeiro, há o discurso divino e proféti­
co, orientado para o futuro e marcado pela demanda (Apoio
e Tirésias). Depois, vem a fala marcada pela dificuldade de
reconhecimento intersubjetivo. Entre Édipo e Jocasta se trata
de um diálogo entre dois soberanos, entre marido e mulher ou
entre filho e mãe? Finalmente, aparece a fala dos escravos, que
se orienta pelo testemunho do passado e pela construção de
uma ficção plausível sobre o presente. O fio temporal da trama
é semelhante ao que Freud descreveu para as formações do
inconsciente. É como a estrutura do sonho, que parte do fu­
turo (os desejos suspensos do dia anterior), retorna ao passado
(os desejos sexuais, infantis e recalcados) e se apresenta como
realizado no presente (a alucinação onírica). Assim como o
segredo do sonho está em sua forma de construção, não no
conteúdo escondido, o segredo da tragédia não é dado pelo
veredicto, mas pelo percurso das provas.

133
Há uma apropriaçab psicanalítica da tragédia que a toma
como uma espécie de narrativa-mestre da psicanálise. Uma das
grandes contribuições de Lacan reside na crítica à edipianiza-
çao das análises, que terminam por enclausurar o sujeito numa
remissão interminável ao sistema de identificações e de esco­
lhas objetais implicados no Complexo de Édipo. Nesta leitura,
o paciente, tal qual o personagem Édipo, está privado de um
saber que o determina e que a análise poderia fazer surgir pelo
trabalho de rememoração. O método analítico, assim como o
sistema de provas grego, teria seu centro na análise das resis­
tências e defesas que o impedem de reconhecer a verdade de
seu desejo recalcado. Neste sentido, o tratamento segue uma
estratégia próxima do que chamei anteriormente de catharsis
integrativa, apaziguando a força do superego pela reconcilia­
ção com as figuras primárias e pela transformação dos modos
de relação que lhe são correspondentes. Este programa clínico,
aliás, consistentemente freudiano, apoia-se numa identificação
entre o sujeito e o personagem de Édipo. Neste caso, a função
da análise é levar o paciente até o fim da narrativa acentuando
assim o polo psicoterapêutico da psicanálise.
Há vários problemas com esse tipo de absorção da tragédia.
Ele a toma apenas no nível da óikeos (família), deixando de
lado justamente a condição altamente problemática do pai,
que é também soberano (kyrios) e homem {ídios). Disso decor­
re uma espécie de sobreposição entre o sistema simbólico da
aliança com o da sexualidade. A reinvenção de Édipo, como
um personagem moderno que não sabe, ou que não sabe ade­
quadamente, ou ainda, que não tira todas as conseqüências do
que sabe, exige esta sobreposição.
Ora, Lacan e Foucault tomam um caminho contrário a
essa leitura. Édipo não sofria do Complexo de Édipo, pois
não desejava a morte do pai. Édipo nao é um ser despojado
do saber, mas, pelo contrário, alguém que sabe demais. Sua
hybris reside na associação excessivamente estreita entre seu
saber e seu poder. O título da peça é Edipo Rei, não Edipo, o

134
Incestuoso ou Edipo, o Parricida. Basileus, usualmente traduzi­
do por “rei”, significa, na verdade, “tirano”, ou seja, alguém
que possui o poder, mas nao tem como justificá-lo plenamen­
te, pois o adquiriu pela força, pelo medo ou sem consenso
dos cidadãos. A tirania não era um sistema político univo-
camente condenado na antiguidade; pelo contrário, temia-se
sua instabilidade, mas, ao mesmo tempo, era considerada ne­
cessária, sob certas circunstâncias excepcionais. Assim como
o tirano adquiriu o poder por seus próprios méritos, ele pode
vir a perdê-lo. Remanesce para o tirano a presença suspeita de
um falso reconhecimento, uma dúvida de que seus súditos,
na verdade, se submetem a seu poder, mas não o reconhecem.
Surge aqui uma figura que fará história no imaginário político
ocidental: o tirano como alguém solitário, inseguro, ignorante
e profundamente infeliz. E nesta mesma direção que Lacan
(SVII: 1959-60) argumentará que existem duas narrativas mí­
ticas na psicanálise e elas não são redutíveis entre si: o com­
plexo de Édipo (referido ao mito de Totem e Tabu) e Moisés e
Monoteísmo (referido ao mito judaico-cristão).
É também como uma crítica ao excesso concentracionário,
representado pela leitura dominante de Édipo, que Lacan pro­
porá uma espécie de contra-leitura da noção de Nome-do-Pai.
A tese encontra-se condensada no título dado ao Seminário
XXI em 1973-74, Le non-dupes errant, uma construção homo-
fônica com Le Nom Du Pére (O Nome-do-Pai). Le non-dupes
são os “não patos”, ou seja, os espertos, os astuciosos, os que
nao se deixam enganar, os que sabem ... demais. ‘Os espertos
erram’, pelo seu sabor irônico, funciona como um exemplo da
crítica lacaniana à unificação dos poderes do pai, particular­
mente o poder de saber.
Na peça de Sófocles, Édipo adquiriu poder porque soube
decifrar o enigma proposto pela Sphinx, ou seja: qual o ser
que de manhã tem quatro patas, de dia duas e à noite três?
A resposta do herói é curiosa. Ele faz um gesto que aponta
para si mesmo. Mas, como todo gesto, ele designa, porém não

135
nomeia. O designado {seria o homem? Ou seria ele próprio,
Edipo? Édipo como nome (Oedipous, pés inchados) ou Édi­
po como pessoa? Ou seria ainda a linhagem que ele atualiza
(Édipo filho de Políbio, etc.)? A Sphinx joga-se no precipí­
cio, pois recebe sua própria mensagem de maneira invertida,
não necessariamente porque Édipo tenha proferido a resposta
correta. Como sói na prática clínica, Édipo respondeu a um
enigma com uma citação. Uma citação realiza um enunciado
sem fixar sua relação com a enunciação, daí a diversidade de
alusões contidas no gesto de Édipo.
O drama de Édipo é o drama da perda do poder. Se o
poder foi alcançado por seus próprios méritos, ele também
poderá perdê-lo por falta de astúcia ou virtude. Ao contrário
de Ulisses, que pode se certificar de seu lugar, Édipo dispõe
apenas de uma posição. Ele detém um tipo de saber: o saber
gerado pela experiência, o saber de encontrar as coisas, um
saber técnico, baseado na eficácia, uma espécie de saber fazer.
Acentuou-se bastante como o nome Oedipous faz menção aos
pés ipous), pés inchados, e, consequentemente, filia o herói a
Laio (coxo) e Lábdaco (aquele que anda com dificuldade). Isso
é mais um traço da primazia da oikós na interpretação da tra­
gédia. O nome Oedipous contém também uma alusão a oedi,
que significa, ao mesmo tempo, ter visto e saber. O saber de
Édipo é um saber solitário, não gerado e construído na garan­
tia da comunidade. Lembremos que Édipo é, antes de tudo,
um estrangeiro em Tebas. Daí que seu saber é o de quem quer
ver com os próprio olhos; não acreditar nas palavras ou no
testemunho dos outros. Reencontramos aqui o problema da
origem da excelência simbólica ligada à autenticidade da prá-
xis: “Pretendemos mostrar como a impotência em sustentar
autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na histó­
ria dos homens, ao exercício de um poder” (E:1958e, p. 592).
Essa concentração excessiva entre saber e poder correspon­
de exatamente ao que Lacan chamou de falo. O falo não é
o pênis, mas o valor simbólico e imaginário a ele atribuído.

136
Como unidade de valor do desejo, ele é necessariamente uma
medida relacionai, um regulador entre potência e impotência,
entre unidade e fragmentação, entre poder e saber. Daí o fato
de o significante fálico ser um significante impronunciável por
representar a falta de um significante, o [-1], ou até mesmo
impensável, por sua equivalência, do ponto de vista da signi­
ficação ao 1960c, p. 837). É por isso que o Complexo
de Édipo, relido por Lacan em sua teoria da constituição do
sujeito, parte da noção de falta e termina na ideia de “circula­
ção do falo”. A descoberta final da criança edipiana é de que
ela não é o falo, nem sua mãe o possui, muito menos seu pai.
Também o Outro é faltante; dizer isso é função do pai sim­
bólico. O falo é um representante da falta que opera por cir­
culação dialética do desejo. Ele inaugura e coordena a ordem
dos objetos, poderes e saberes que podem ser compartilhados
ou trocados (SX:1962-63, pp. 11-24). OpÕe-se, assim, ao que
não pode se inscrever na ordem desta circulação. O falo é um
efeito de linguagem, uma posição significante, não um objeto
ou atributo que possa ser perenemente possuído. A função
paterna tem, por efeito, localizar o falo no campo do Outro,
ou seja, no campo da linguagem. Mas, ao unificar as diferentes
inscrições do pai, a função paterna, assim considerada, unifi­
ca também a dimensão do saber, do poder e do desejar. Isso
deixaria de lado todo o esforço de Lacan em separar a fun­
ção paterna da função de suposição de saber (transferência ao
mestre), da função de imperativo prescritivo e restritivo de
gozo (a lei do supereu) e da função de causa do desejo (objeto
a). Um indício adicional desse esforço de distinção reside na
afirmação de que o Outro não existe. Isso não quer dizer que
o campo da linguagem, enquanto universal incompleto, não
exista, mas que a reunião das inscrições paternas neste campo
é heterogênea em seus efeitos. No fundo, o medo de Édipo de
perder essa colusão saber-poder-desejar é o medo de perder o
que ele não possui. E ele começa a perdê-lo assim que se em­
brenha na investigação da verdade.

137
Eis-nos, pois, no-princípio maligno desse poder sempre
possível de um direcionamento cego. E o poder de fazer
o bem - nenhum poder tem outro fim, e é por isso que o
poder não tem fim. Mas aqui se trata de outra coisa, trata-
se da verdade, da única, da verdade sobre os efeitos de
verdade. Desde que Edipo enveredou por este caminho,
ele já renunciou ao poder. (E:1958d, p. 647)

Esta leitura tem implicações para a concepção de tratamen­


to. Além de refazer a narrativa edípica, como uma narrativa
conciliatória, o tratamento deve explorar as dificuldades de
subjetivação do desejo decorrentes da sobreposição entre os
efeitos da metáfora paterna. Como sói em todo processo que
se queira analítico, e não sintético, trata-se de separar o su­
jeito de seus modos de alienação ao Outro, tendo em vista o
excesso sintomático que decorre de sua unificação. Esta é uma
pretensão sumamente clínica que aparece em expressões como
a dissolução (Untergang) do Complexo de Édipo, dissolução
(.Losung) da transferência e a travessia da fantasia.
Portanto, se no tratamento psicanalítico, a palavra tem to­
dos os poderes, nem sempre esses poderes são homogêneos,
muito menos sua ligação com o saber e com a verdade. Há um
saber-fazer próprio da atividade investigativa e outro, que lhe é
afim, ligado à relação com o ato de fala na transferência. Am­
bos aparecem articulados no desenvolvimento do tratamento,
mas isso não significa que sejam de mesma natureza. A liber­
dade da fala no analisante contrasta com a privação do uso
do poder na interpretação pelo analista. Note-se como esse
contraste aparece na forma como Lacan conclui sua discus­
são sobre os princípios do poder no tratamento psicanalítico
(Ibid., p. 647 [citação adaptada]):

A fala tem todos os poderes especiais do tratamento (...)


Não dirigimos o sujeito à fala plena e ao discurso coe­
rente, mas também não o impedimos e o deixamos livre
para experimentá-la (...) Essa liberdade, o paciente tem

138
dificuldade de tolerar (...) O analista se exclui de satisfazer
a demanda (...) Não se coloca obstáculo à declaração do
desejo; sua dificuldade emana da incompatibilidade entre
desejo e fala.

Da leitura das formas de absorção da tragédia grega à es­


trutura do tratamento psicanalítico extraímos a importância
da referência ao teatro e sua ênfase na ação. Em Antígona,
encontramos uma espécie de modelo do ato como elemen­
to problemático situado entre a ética e a lei simbólica. Aqui
aprendemos que o tratamento envolve também atos, decisões
e apostas que estão para além da razão normativa, da eficácia
técnica e da moral convencional. É o domínio da transferên­
cia, em relação ao qual descrevemos algumas estratégias possí­
veis. Para além destas estratégias vimos se infiltrar na discussão
sobre as formas de absorção psicanalítica da tragédia diferentes
modelos de subjetividade. A partir deste modelos isolamos al­
guns traços preliminares acerca da distinção de políticas entre
cura, tratamento e psicoterapia.
Em Edipo Rei, argumentamos pela presença de uma relação
controversa entre poder, saber e desejar. Aqui aprendemos que
o tratamento envolve um tipo de pesquisa, uma economia de
perguntas e respostas, situada num campo ficcional, que não
exclui a verdade. Aliás, é pela prática dessa ficção, tanto como
raciocínio hipotético dedutivo e abdutivo quanto pela possibi­
lidade da mentira e do engano, que Edipo desvenda a trama.
Estamos aqui no domínio da interpretação, no qual pudemos
ver a importância fundamental da metáfora e do Nome-do-
Pai. Desmembrando as diferentes acepções que encontramos
reunidas na figura de Édipo (pai, tirano e homem) e ligando-
as com funções distintas (saber, poder, desejar) surge como
problema saber como isso se articula nas diferentes formas de
prática que compõe a psicanálise.
Ao final de sua obra, Lacan parece ter percebido mais
claramente esta decomposição da antes unitária função

139
paterna. Ele propõe então a noção de sinthom e como um
“quarto nó” que manteria a articulação entre os três an­
teriores (SXXIII: 1972-73). O Nome-do-Pai é assimilado
desta maneira à noção de sinthom e, como um suplemento.
Sem entrar nos detalhes deste conceito é curioso que ele
seja formado a partir de um conceito eminentemente clíni­
co tal como sintom a, mas derivado para sua grafia anterior
ao nascimento da clínica moderna. Sua introdução corres­
ponde à retomada de inúmeras expressões mais próprias
da tradição psicoterapêutica do que da clínica, tais como:
a personalidade, a loucura e mesmo a ideia de que a mu­
lher seria um sinthom e para o homem. Finalmente a noção
de sinthom e é empregada para designar certas atividades,
tais como a atividade de escrever em James Joyce, a prática
amorosa (a carta/letra de amor) e o trabalho. Seria então o
sinthom e uma tentativa de reunir as diferentes políticas do
tratamento psicanalítico?

140
C A P ÍT U L O 4

R E T Ó R I C A S DA I N T E R P R E T A Ç Ã O

Se dixes o que queres,


deves escutar o que não queres.
Terêncio

ó rg ia s (487-380) e r a d isc ípu lo d e E m p é d o c l e s e fo i

G considerado o introdutor da retórica em Atenas. Vivendo


como estrangeiro, estava atento à ampla relatividade dos costu­
mes, à fragilidade dos princípios universais e à humanidade dos
deuses. Górgias foi lido como um cético e relativista que afirmava,
por exemplo: “Nada existe; mesmo que haja o ser, nao podemos
conhecê-lo; e mesmo que pudéssemos conhecê-lo, não podería­
mos comunicar e explicá-lo aos outros” (Barili, 1979, p. 15).
Como um prático da linguagem e especialista em defender
ou desfazer posições, fossem quais fossem, Górgias partilha­
va uma perspectiva trágica, mas também cômica da vida. Se
o real está dilacerado por contradições, o destino humano é
incerto e por fazer. Se o destino humano só se apreende sim­
bolicamente em estrutura de ficção e por meio de metáforas
oraculares, o destino pode ser construído por meio do manejo
da linguagem. É tarefa poética inventar uma posição possível
e justa para o homem. Se poesia é uma ilusão desejável e boa,
a sofistica (sabedoria) é uma extensão desse projeto. A técnica
que lhe seria corre] ativa foi chamada de psicagogia, ou seja, a
arte de conduzir a alma e o estudo da receptividade da alma à
música e ao ritmo das palavras. A psicagogia costuma ser refe­
rida como o precursor mais antigo das psicoterapias.

O ensino da retórica, agora explicitamente sistematizado,


deve passar pelo conhecimento dos gêneros das almas, de
suas maneiras de agir e de padecer, e por um conheci­
mento simétrico dos gêneros de discurso, para desembo­
car no conhecimento das relações causais entre gêneros
de discurso e gêneros de alma, e permitir colocá-los em
correspondência, em harmonia termo a termo, em vista
da psicagogia eficaz adaptada à ocasião. (Platão, 1970)

Ela envolvia a condução da alma de modo a, tanto nos meios


quanto nos fins, produzir três efeitos: a pistis (crença ou convic­
ção), o agapê (amor ou generosidade) e a elpis (esperança ou cer­
teza). E a partir da conjunção desses três aspectos que a palavra
adquire um tipo especial de poder capaz de “espantar o medo,
banir a dor, inspirar felicidade e incrementar a compaixão” (Ja­
ckson, 1999, p. 100). É possível que sofistica e retórica prove­
nham de uma mesma arte, sem nenhum nome consagrado, mas
que se aproximaria de algo como “cuidado do corpo”, de que
fazem parte a ginástica e a medicina (Cassin, 2005, p- 153).
A reunião desses efeitos e a conjunção correta entre a geome­
tria dos lugares e o tempo próprio da palavra definem o objetivo
da retórica: a persuasão. Nascem daí os dois problemas funda­
mentais da retórica: a temporalidade da linguagem e os lugares
pelos quais a alma pode ser conduzida. O tempo propício, o tem­
po descontínuo em que a palavra extrai toda a sua potência, é
chamado de kayrós (oportunidade, circunstância). O espaço onde
os temas, argumentos e provas se desenvolvem é o topoi (lugar).
Górgias definia a retórica como a arte de bem dizer e entendia
que ela se prestava, principalmente, a duas áreas: a política e a
terapêutica. Terapêutica inclui aqui a medicina, mas também a
poesia, a ética e, certamente, a catharsis (purificação das paixões).

142
Assim como a tragédia, a retórica foi objeto de uma espé­
cie de julgamento em sua absorção filosófica. Como técnica
de influência pela palavra, como colocá-la e distingui-la da
verdadeira busca pela sabedoria? Assim como a tragédia, a re­
tórica implica uma mediação estética entre a prática de cura
ou transformação e o sentido moral-pedagógico. Ambas se
iniciam na esfera da palavra falada e em situação de ação sem,
ao mesmo tempo, ignorar uma versão escrita. A retórica é a
primeira perspectiva ocidental, a refletir metodicamente sobre
a linguagem do ponto de vista de sua eficácia. Na verdade, e
de acordo com a tradição cética que lhe dá continuidade, a
retórica é uma espécie de terapia da linguagem, uma prática
de desilusão dos preconceitos que fazem o ser anteceder a lin­
guagem. Nos termos que Górgias definia:

A retórica é a arte relativa aos discursos, que tem sua força


no ser artífice de uma persuasão. Nos discursos políticos e
sobre todos os assuntos, arte que é criadora de uma crença
não de ensinamentos; os seus argumentos próprios dizem
respeito, sobretudo, ao justo e ao injusto, ao bem e ao
mal, ao belo e ao feio. (Plebe, 1978, p. 17)

No campo político, trata-se dos discursos que podem al­


cançar a todos, independentemente do assunto, partindo e
retornando ao patrimônio, que é o bem comum e o senso
comum. Isso admite várias leituras. A mais tradicional encon­
tra aqui os discursos destinados a essa forma de comunidade
particular chamada de pólis e, dentro dela, todos os temas que
lhe concernem. Todavia, também podemos encontrar aqui
várias aproximações com a psicanálise. Não há restrições de
temas, como se espera da fala analisante. Para bem proceder
aos argumentos, o retórico deve suspender seu próprio juízo
sobre o justo, o belo e o bem, assim como se espera do ana­
lista. Finalmente tratando-se de uma persuasão política, ela se
define por uma determinada relação ao poder e à suspensão
problemática de seu exercício, mas não de sua consideração. A

143
retórica só se torna necessária qúando há indeterminação do
poder e, inversamente? não há retórica que não recoloque o
problema discursivo do poder. E justamente por se apresentar
como pura técnica, neutra do ponto de vista de suas intenções,
que, historicamente, a retórica se presta às piores articulações
com o poder. Pela retórica, os políticos, os religiosos, os dema­
gogos, os publicitários e... os psicanalistas, nos influenciariam
a fazer e pensar algo diferente do que faríamos e pensaríamos
em “estado de liberdade” e por nós mesmos. Vejamos como
essa teoria do contato e da influência entre mentes é um retra­
to muito parcial sobre a retórica.

4.1. PERSUASÃO, CONVENCIMENTO E CONVICÇÃO


A noçao de persuasão deve ser examinada em detalhes,
tanto porque distinguiria psicanálise de psicoterapia quanto
porque envolve detalhar o tipo de efeito que se espera da in­
terpretação. Para Freud, ao contrário de Lacan, a interpretação
terminaria seu percurso elaborativo quando formasse uma ex­
periência muito específica no próprio analisante:

Se comunicamos a um paciente uma representação que


ele recalcou em seu próprio tempo e conseguimos recupe­
rar, isso, em princípio, nada modifica seu estado psíquico.
(...) Não se conseguirá mais que uma nova desautoriza-
ção (A blehnung) da representação recalcada. Mas agora o
paciente tem a mesma representação numa dupla forma,
em lugares diferentes de seu aparelho psíquico; primeiro
possui a recordação consciente do traço auditivo da re­
presentação que comunicamos, em segundo lugar, c o m o
com certeza sabemos, leva em seu interior a recordação in­
consciente do vivenciado. Só quando esta última se torna
consciente se alcança êxito. (Freud, 1915e, pp. 171-172)

Essa experiência depende, pois, da aceitação do recalcado


e é simétrica à suspensão (Aujhebung) do recalcamento. Freud

144
descreveu extensamente esse processo de aceitação em seus dife­
rentes matizes: a denegação, a ab-reação, a elaboração, o tornar
consciente. Em vários momentos, ele utiliza metáforas políticas
para designar essa experiência: aceitação do estrangeiro, reco­
nhecimento de cidadania, reconhecimento do conflito. A chave
para definição do cancelamento do recalque pela interpretação
reside, no entanto, numa transformação da posição do sujeito
diante do saber que se recupera por meio dessa operação. Aqui
Freud utiliza o termo “aceitação”, que não se reduz ao assenti­
mento ou à negação explícita do paciente, mas que envolve um
estado entre a convicção e a crença. Tal estado tem por efeito
transformar a relação transferenciai com o analista. Surgem, en­
tão, novas resistências. Na passagem do ouvir ao vivenciar (.Er-
lebnis) há uma transmutação do poder terapêutico da palavra.
Também nessa passagem é importante notar a emergência de
um contrapoder do lado do analisante; ele deve reconhecer, por
si mesmo e em si mesmo, a eficácia desse saber.
Nosso problema pode ser introduzido pela própria peculia­
ridade semântica do termo utilizado por Freud para se referir à
interpretação (D eutung). O termo alude à descoberta de senti­
dos não evidentes num texto ou fala, e contrasta com o termo
interpretieren, cujo significado se aproxima da interpretação
no sentido de tradução:

A D eutungkunst (arte da interpretação) tem o sentido de


uma “habilidade” ou “arte” no manuseio e aplicação de
uma técnica no sentido puramente tecnológico do termo.
De maneira geral, a forma como Freud emprega os ter­
mos D eutungkunst (arte de interpretação) e D eutungste-
chnik (técnica de interpretação) é diversa tanto de uma
arte divinatória quanto de uma tecnologia desvinculada
de quem a aplica. (Hanns, 1996, p. 291)

A dificuldade de se estabelecer o sentido da D eutung freu­


diana talvez resida justamente no seu estatuto híbrido entre
a tradução e o efeito transformador dessa tradução sobre o

145
sujeito que fala. Uma coisa é traduzir, outra é julgar o que
foi traduzido. Como o próprio Freud assinala ao especificar
clinicamente seu modo interpretativo: “A interpretação de um
sonho incide em duas fases: a fase em que é traduzido (Uber-
setzungj e a fase em que é julgado ou seu valor (Deutung) de­
terminado” (Freud, 1923c, p. 127).
Ou seja, do ponto de vista da tradução, é possível imaginar
que a interpretação está aberta a todos os sentidos; mas, do
ponto de vista do juízo que ela implica, seu valor não é inde­
terminado, mesmo que seja por meio de um significante sem
sentido (non sensicat) (SXI: 1964a, p. 236).
Freud parece reservar a expressão “interpretação” ao traba­
lho de resignificação pontual, como, via de regra, observa-se
em relação aos sonhos, pequenos esquecimentos, atos falhos e
chistes. O emprego do termo em relação a sintomas, fantasias e
manifestações transferenciais é mais raro, e geralmente suben­
tende a combinação de elementos originados do trabalho in­
terpretativo do primeiro tipo. O termo Ubersetzung, presente
na passagem acima, pode ser entendido como “tradução”, mas
também como “estabelecimento”, no sentido em que se diz que
algo está estabelecido para alguém, ou que um texto foi estabe­
lecido. Mas estar estabelecido no sentido de que se formou uma
convicção a respeito, não no sentido de que algo se impôs. Daí
a tradução alternativa de Ubersetzung por “convicção”.
Convicção (Ubersetzung,) e persuasão (Überredung) são
duas expressões que se deve distinguir, apesar do termo grego
para persuasão (petihous demiourgós) incluir tanto a convicção
quanto o convencimento sugestivo. A convicção é o resultado
subjetivo de uma argumentação, enquanto a persuasão é fruto
de um convencimento subjetivo que procura induzir uma re­
lação entre juízos e atos. Na retórica publicitária, é a diferença
entre estabelecer a convicção de que o produto é bom e persua­
dir o público a efetivamente comprá-lo.
Como se pode facilmente notar, convencer o outro (ven­
cer com) coloca em jogo uma dimensão agonística compatível

146
com a desautorizaçao (Ablehnung). A categoria mais ampla da
persuasão inclui, além da convicção, outro termo que encon­
tramos em Freud: a Uberlistung (logro, engano). Neste caso,
o sujeito é levado a aderir a um saber sem torná-lo próprio, o
que se diz em português com a ideia de sugestão ou de como­
ção. Há um efeito de persuasão que se verifica na identificação,
quer na relação do líder com as massas quer na relação histé­
rica com o desejo do outro e ainda na identificação regressiva,
formadora dos sintomas. A identificação é uma interpretação
inexata, pois reúne em si dois processos heterogêneos: a proje­
ção imaginária, em curso na Uberlistung, e a introjeção simbó­
lica, em curso na Ubersetzung.
A arte da interpretação psicanalítica, assim como a técnica re­
tórica, tem seu ponto de partida na questão: a quem se dirige o
discurso? Quem é seu interlocutor, auditório ou destinatário? A
segunda questão é saber quais são as circunstâncias da enuncia­
ção, problema para o qual se estabelecem três gêneros retóricos:

Ju d iciá rio, cuja finalidade é defender ou acusar, orienta-se


para o passado e para a avaliação da ação realizada;
E piditico se baseia no elogio ou na censura, e é endereçado
ao presente;
D eliberativo, cujo fim é aconselhar ou demover alguém,
orienta-se para o futuro e para a tomada de decisão. (Mos­
ca, 2001, p. 32)

A classificação dos gêneros retóricos parece um manual de


anti-psicanálise. Ela rastreia precisamente os tipos de ação que
o analista deve evitar: defender ou acusar, aconselhar ou de­
mover e elogiar ou censurar. Contudo, é no campo da retórica
e, sobretudo, na história da retórica, que podemos localizar a
primeira reflexão sistemática sobre as formas de influência pela
palavra, sobre o diagnóstico do interlocutor e sobre a eficácia
da intervenção de linguagem. É na retórica, como tradição de
pensamento e prática intersubjetiva, que se reuniram, origina-
riamente, as diferentes problemáticas que a teoria da interpre-

147
tação em psicanálise teve que enfrentar: a dimensão herme­
nêutica do sentido como decifração, a dimensão pragmática
da fala como ação, a dimensão estrutural da linguagem como
universal e finalmente a dimensão literária da língua como
mediação cultural. Classificar os tipos de discursos segundo
seus lugares, seus modos temporais e suas estruturas lógicas foi
desde o início tarefa da retórica. Ela forneceu, desta maneira,
os esquemas que vieram a formar a própria prática diagnosti­
ca. A palavra diagnosis provém de um campo semântico que
compreende três principais conotações: (a) discernir, separar
e comparar; (b) reconhecer, reencontrar e perceber; e (c) de­
cidir, escolher e fazer conhecer (Saurí, 2001, pp. 108-115).
O diagnóstico é uma prática de leitura de signos segundo sua
disposição (diáthesis), sua apresentação no tempo e segundo a
figura {tropo) ou lógica.
O livro II da Retórica de Aristóteles (1997) é um tratado
sobre a localização dos diferentes tipos de pathos que domi­
nam o destinatário: o temor ou a confiança, a vergonha ou a
compaixão, a indignação ou a inveja e a emulação. Segue-se
um estudo dos diferentes tipos de caráter, nos quais paixões se
distribuem regularmente também segundo pares de opostos (a
cólera e a calma, o amor e o ódio, o temor e a confiança). O
caráter é dado tanto quando se considera tais atitudes quanto
pela idade de vida (adulto ou idoso) ou ainda pela posição
social (nobres ou ricos). De fato, essa classificação dos afetos e
das formas de caráter em opostos complementares caracteriza,
desde Hipócrates até os tratados sobre a paixão dos séculos
XVI e XVII, o modo como se pensa a retórica da cura como
uma retórica da temperança e da produção da equidistância
entre dois extremos (Jackson, 1999, p. 207).
Cada caráter, assim definido, exige uma estratégia retórica
específica que a ele deve se ajustar. O retórico deve reconhe­
cer o caráter de seu destinatário para inferir qual tipo de p a ­
thos lhe será predominante e formar sua estratégia discursiva
complementar. Poderíamos aproximar aqui a recomendação

148
freudiana de que o analista deve, sobretudo, utilizar a “moeda
neurótica que o paciente lhe propõe” e a recomendação retó­
rica de que se encontre o pathos adequado ao seu destinatário.
O retórico deve combinar uma diagnostica da pathê, rela­
tiva à leitura do caráter de seu destinatário, com uma avalia­
ção da força de sua autoridade como orador. Essa autoridade,
tantas vezes empregada por Freud como condicionante do
tratamento psicanalítico, emanava de três aspectos (Barthes,
2001a, p. 78):

P hronésis: a qualidade de quem delibera bem, ponderando


prós e contras de forma imparcial segundo determinada
eficácia simbólica.
Areté-, a franqueza, a confiança e a lealdade de quem se
exprime segundo uma excelência simbólica.
E unoia: a cumplicidade simpática e benevolente com o
destinatário.

O poder que circula na relação retórica depende do jogo de


posições entre a p a th ê do destinatário com a ethê (eticidade)
do orador. Entre ambos há os lugares nos quais essas posições
se realizam ou se transformam. A ethê pode ser aproximada da
noção de estilo em psicanálise.
Na abertura dos Escritos, Lacan retoma uma afirmação
clássica que diz: “o estilo é o homem”. Estilo é uma noção di­
fícil de definir, apesar de sabermos empregá-la com facilidade.
Diz-se que alguém tem estilo, ás vezes, como sinônimo do que
a psicologia popular chama de personalidade ou classe. São no­
ções que sugerem que alguém tem algo de muito próprio que
torna esse alguém... alguém. Mais precisamente, isso significa
que podemos reconhecer esse alguém, mas o curioso é que
não sabemos exatamente como e por quê o fazemos. Quando
reconhecemos um estilo, há uma impressão de que existe uma
essência perceptível naquela pessoa, uma essência que a faz
diferente, única e idêntica a si mesma. Há outra propriedade
importante da noção de estilo; é algo que, em nossa época, se

149
deseja possuir ou encofitrar no outro. Uma pessoa sem estilo
é alguém comum, no sentido de vulgar ou indiferenciado. É
aquele que está submetido a signos, modos de ser, falar, ves­
tir e consumir que o localizam demais num gênero. É aquela
pessoa cujo estilo de vida nos parece inautêntico ou postiço.
Portanto, o estilo não é definido apenas por uma prática regu­
lar de gozo, mas fundamentalmente pelo desejo e pela relação
que alguém mantém com o que consome.
Ora, essa maneira de entender o que é um estilo é comple­
tamente oposta à de Lacan. Se seguirmos a referência comple­
ta, encontramos que a frase usada por Lacan na contracapa de
seus Escritos vem de Buffon, e não diz apenas que “o estilo é o
homem”, mas que “o estilo é o homem a quem nos dirigim os”.
Vejamos como as considerações de Freud sobre a sua própria
técnica terapêutica se ajustam a isso:

Estou obrigado a dizer expressamente que esta técnica re­


sultou a única adequada para m in h a in divid u a lid a d e [grifo
nosso]; não me atrevo a por em dúvida que uma persona­
lidade médica de constituição diversa possa ser forçada a
preferir outra atitude frente aos enfermos e às tarefas por
solucionar. (1912e, p. 111)

Vê-se, por essa afirmação e pelo tom pouco normativo dos


chamados artigos sobre a técnica psicanalítica, que Freud con­
siderava os procedimentos específicos do tratamento como uma
espécie de solução de compromisso entre as exigências das desco­
bertas clínicas, suas conseqüências teóricas e as particularidades
do estilo de cada analista.
Isso nos levaria à ilação de que temos duas exigências contrá­
rias: de um lado, a ethê do analista; de outro, apathê do analisan-
te. Ocorre que isso presume a existência de apenas uma retórica
em curso no tratamento analítico, a do analista. Isso nao é verda­
de. Pelo contrário, certos analistas de discurso (Mahony, 1990,
pp. 68-97) sugeriram que, especialmente no início do tratamen­
to, o discurso retórico e persuasivo está do lado do analisante. O

150
analista responderia a essa retórica com o discurso dialético e o
tratamento terminaria pela assunção, por parte do analisante, de
um discurso estético. Essa não é a acepção de retórica que temos
em mente, uma vez que não se pode dissociar discurso retórico
e discurso não retórico. Não há fala que não seja também, em
algum nível, organizada pela retórica. Portanto, ethê e pathê são
posições circulantes, mas não simétricas. O analista deve falar a
“língua” de seu paciente. Isso, evidentemente, nao se refere ape­
nas à língua como idioma ou à língua como universo semântico,
mas, principalmente, à língua como estrutura retórica que o ana­
lisante propõe, ou seja, seu estilo.
Aqui há uma encruzilhada: até que ponto é possível falar a
língua do outro (ajustar-se à receptividade de seu caráter) para
levá-lo mais além de onde ele, por si só, conseguiria ou deseja­
ria? Inversamente, como saber que a personalidade médica nao
reflete apenas uma forma de justificar o exercício de um poder?
Já se argumentou que toda forma de dominação começa
por fazer o outro falar uma língua que não lhe é própria. Isso
se exemplifica nos processos de colonização, no uso dos jargões
e nas referências discursivamente segregatórias. Ferenczi (1933,
V-IV. pp, 97-109) observou como esta condição se inaugura
com a violência contida na situação formada entre o adulto e a
criança. Nesta situação, a criança se vê forçada à língua do outro.
Sem considerar se as conseqüências que Ferenczi tira disso são,
de fato, contornáveis por uma prática mais terna de acolhimento
da criança, nos interessa aqui salientar como a recomendação
retórica que, de certa maneira, nos convida a falar a língua do
outro, falar a língua do paciente é uma alternativa de contrapo-
der na situação analítica.
A sistematização da retórica prossegue na cultura ocidental
seguindo este caminho aberto por Aristóteles, ou seja, de que
a retórica nao produz conhecimento válido nem é razão segura
para analisar a veracidade lógica ou dialética do discurso. Assim,
ela tornou-se serva da educação, da religião, da política e mes­
mo da ciência. Prática menor, mera técnica do falar, a retórica

151
transformou-se em sinonimo de palavra vazia, mal-intencionada
ou feita para iludir e manipular. Ainda assim, foi no campo da
retórica que a separação entre autor e narrador realizou-se plena­
mente de forma metódica e onde, pela primeira vez, a linguagem
foi reconhecida como um domínio técnico independente. E na
retórica que emerge a ideia de que a palavra é pharmakos, isto é,
veneno que mata e remédio que cura. A absorção filosófica da
retórica deve-se em muito ao personagem social do sofista, aque­
le que, em troca de pagamento, defende uma causa ou apresenta
uma ideia. Essa separação entre a técnica do falar e a ética de
quem fala deu à luz uma forma de poder sentida como poten­
cialmente perigosa.
Talvez como herança dessa problemática, encontramos em
Freud (1912b) uma associação constante entre a técnica da in­
terpretação, reputada como de fácil domínio, e o tema da trans­
ferência, problema clínico apresentado como muito mais com­
plexo e difícil de dominar. Podemos dizer que a relação entre
interpretação e manejo da transferência é semelhante à que se ve­
rifica, historicamente, entre retórica e dialética (Dunker, 1996).
Em outras palavras, a retórica compõe um conjunto de táticas
discursivas a serviço de uma estratégia. Mas essa estratégia, ela
mesma, é dada pelo manejo da transferência. Nada mais equivo­
cado do que uma interpretação que se situa fora do tempo e da
rede de lugares formada na transferência. Nada mais incorreto
do que interpretar sem que o tempo da transferência nos autori­
ze. Isso se consagrou na fórmula clínica proposta por Lacan para
o tratamento: “... segundo um processo que vai da retificação
das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da trans­
ferência, e depois, à interpretação” (E:1958d, p. 604).
Esse ordenamento dos tipos de intervenções ajusta-se muito
bem aos três tipos de argumento nos quais usualmente a retórica
se distribui (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 1996): os que pro­
cedem baseados na estrutura do real, os que enfatizam a relação
entre orador e destinatário e os argumentos quase-lógicos. São
também esses os três grandes tipos de interpretação que a psi­

152
canálise costuma enfocar: a interpretação do conteúdo, a inter­
pretação da transferência e a interpretação da resistencia (Etche-
goyen, 1987, pp. .237-245).
A interpretação está, assim, triplamente condicionada pela
posição do sujeito (o caráter em Aristóteles), pela transferência
(a dynamis retórica em Aristóteles) e pelo material discursivo que
ela leva em conta (os lugares e argumentos em Aristóteles). Sua
incidência recai em pontos enigmáticos que, de algum modo,
reclamam sentido. O objeto da interpretação é, antes de tudo,
uma formação do inconsciente: o sonho, o chiste, o ato falho e
o sintoma. Poderíamos nos referir ainda à inibição, à angústia,
ao déja reconte, ao déja vu, à despersonalizaçao, ao sentimento de
estranheza (unheimlicti), ao acting out e assim por diante. Ocorre
que o que diferencia a noção de interpretação em Freud, mas
também em Marx e Nietszche, é que ela não é uma interpretação
sobre objetos, baseada em sua semelhança, assinatura, conveni­
ência ou emulação com outros objetos, mas uma interpretação
sobre outras interpretações (Khalil, 2004, pp. 217-230). Daí que
as tipificações dos objetos interpretáveis em psicanálise acabem
por se resumir num mapa sobre as fronteiras do que configura
a interpretabilidade na atividade do próprio paciente, os limites
nos quais esta se dissolve numa espécie de reação, os limites pe­
los quais ela se torna inacessível ao próprio sujeito ou ainda os
limites pelos quais ela se ultrapassa por meio de um gesto ou de
um ato. Ou seja, circunstâncias nas quais a própria atividade in-
terpretativa se vê questionada como tal. A presença de referências
a esses limites retóricos aparece na organização mais sistemática
que Lacan (SX: 1962-63, p. 89) fez dessas formações do incons­
ciente, do ponto de vista de sua semiologia clínica:

D ificuldade —>
M ovim ento Inibição Im pedim ento E m baraço
4 E m oção Sintom a P assagem ao ato
E fusão A ctin g out A ngústia

153
O diagrama reflete â tensão entre dois eixos. O movimento
pode ser aproximado da dimensão da persuasão e seu efeito é in­
duzir atos a partir de juízos. A dificuldade, por sua vez, exprime
o eixo da convicção ou da certeza e refere-se à atividade de tra­
dução dos atos. A primeira coluna exprime as afecçÕes do ima­
ginário, a segunda do simbólico e a terceira do real. Cada uma
dessas formações corresponde a uma pequena estrutura retórica
distinta e alude aos termos pelos quais Aristóteles definia as va­
riantes de seu discurso: o epidítico, que evoca a efusão, a emoção
e a inibição; o deliberativo, que evoca a decisão, a certeza e ação;
e o judiciário, que evoca a interpelação, a punição e o embaraço.
Tanto do ponto de vista das figuras quanto do ponto de vista
da transferência, a estratégia da intervenção deveria, portanto,
basear-se na reversão ou na transformação dessas estruturas.
Pode-se objetar que, ao contrário dos discursos retóricos, a in­
terpretação analítica é muito pontual, quase um parêntese na fala
do analisante —este, sim, agente do discurso retórico. Mas isso se­
ria desconhecer que cada interpretação, por mais infinitesimal ou
silenciosa que pareça, constrói, sanciona ou altera uma posição na
transferência, uma posição que autoriza uma nova interpretação -
por isso o veto lacaniano à interpretação da transferência. Isso seria
o mesmo que afirmar a possibilidade da metalinguagem, ou seja,
uma posição exterior à transferência que autorizaria, segundo um
poder sem limites, a interpretação do conjunto formado pelos pon­
tos de interpretação já construídos. Há aqui um problema para a
política do tratamento que é homólogo ao da existência da retórica
como pura técnica neutra utilizada por um sujeito sem intenções.
Seria necessário supor uma separação no discurso entre lu­
gares nos quais o inconsciente se apresenta e lugares onde ele
está ausente. Assim como não há áreas em que o discurso é
retórico e outras onde ele é literal (no sentido de não retórico),
assim como não se pode dizer, fora do tempo da enunciação, o
que é uma metáfora e o que não é, não há como localizar, por
designação ostensiva, o inconsciente. O inconsciente está em
todo o discurso do sujeito, sem zonas superficiais e profundas,
sem conteúdos e continentes.

154
Em Lacan, o inconsciente é uma estrutura temporal com­
posta pelo instante de ver, pelo tempo de compreender e
pelo momento de concluir. Ele é também uma rede topoló­
gica composta por relações entre espaço, lugar e posição. Fi­
nalmente, ele é também uma instância causai: em relação ao
desejo e ao gozo. Foi nestes termos que vimos se colocar a
apreensão retórica da linguagem: tempo de enunciação, lugar
de discurso e efeito de persuasão. Isso não significa que todo
discurso seja e deva ser interpretado —pelo contrário, o pro­
blema retórico é saber, antes de tudo, o momento, o lugar e o
efeito da intervenção. Já se observou que retórica e psicanálise
convergem para a apreensão da linguagem em termos do tem­
po, do espaço e da escolha (Metzger, 1995). Além disso, vimos
como se apresenta de modo problemático a questão do desejo
do retor. Se o psicanalista é um retórico, tem como causa uma
causa perdida, qual seja, a da verdade.

O psicanalista é um retor (rhêteur), para continuar equi­


vocando diria que ele retorifica (rhêtifie), o que implica
( O
que retifica rectifie ). psicanalista é um retor, quer dizer
que “retas” — palavra latina — equivoca com a retorifi-
cação (rhêtificatiori). Se procura dizer a verdade, mas isso
não é fácil porque há grandes obstáculos para que a verda­
de se diga. (SXXV: 1977-78, 15/11)

Considerando estas aproximações preliminares, examine­


mos agora três aspectos da interpretação em psicanálise, pro­
curando extrair deles implicações para o tema do poder na
esfera do tratamento psicanalítico. Nas táticas de intervenção
presumidas pelo tratamento psicanalítico podemos isolar for­
mas de negação mais internas aos discursos contrastantes com
a psicanálise: terapia de compromisso, terapia catártica e tera­
pia por reequilibração. Utilizaremos, para tanto, as três partes
principais nas quais o estudo da retórica se dividiu ao longo do
tempo: invenção, disposição e elocução.

155
4.2. INVENTIO: Of LUGARES DA INTERPRETAÇÃO
A arte de inventar, selecionar ou escolher o que dizer com­
preende o conjunto de assuntos ou argumentos abordados.
Para Aristóteles, é na Tópica (teoria dos lugares) que encontra­
mos um repertório formal e invariante de argumentos e figuras
de linguagem que se preenchem indefinidamente, formando o
discurso. Há os lugares comuns (conhecidos de toda a comu­
nidade) e os lugares especiais que melhor se aplicam a poucas
pessoas, a uma especialidade ou a uma disciplina. Os lugares
tematizados pela retórica (comum e especial) incluem ainda
lugares encontrados na demonstração dialética ou axiomática,
tais como os lugares lógicos (definição, divisão, gênero), os
lugares gramaticais (ação, sujeito, predicado) e os lugares no­
minais (palavras cognatas, etimologias, figuras) (Perelman &
OIbrechts-Tyteca, 1996, pp. 75-115).
Os lugares comuns admitem três casos gerais: o possível
e o impossível, o existente e o não existente e o maior e o
menor (grandeza). Os lugares especiais não são enumeráveis,
dependem do âmbito de restrição discursivo que se queira
considerar. Como vimos, a psicanálise admite como condição
elementar que o discurso empenhe-se principalmente a partir
dos lugares especiais prescritos pelo paciente.
Em Freud, encontramos uma prática interpretativa que os­
cila entre a importância dos lugares específicos, decorrentes da
história associativa singular do paciente, e os lugares comuns,
decorrentes de certas sedimentações culturais. É o caso da re­
lação entre dinheiro e excrementos, da ligação entre o fogo e a
experiência sexual, da ligação entre símbolos como a escada e o
ato sexual. Se olharmos para esse esboço de simbólica universal,
através do qual Freud se interessava pela mitologia, pela história
das religiões e pelo folclore na perspectiva retórica, e não meta­
física, fica claro como nisso se trata apenas da elaboração de cer­
tos lugares comuns, e não de um motivo causai que determine
a significação fixa dos termos (Forrester, 1983, pp. 118-127).

156
Mas o que determina a inventio retórica nao é a escolha dos
lugares, e sim o emprego de um tipo específico de argumento
conhecido como .entimema. Sua característica formal é partir
do que é verossímil ao sujeito, nao do que é imediatamente
verdadeiro ou demonstrável. A categoria do verossímil inclui
dois pontos de partida para um argumento: aquilo que é pos­
sível (eikota) e aquilo que é signo (seimineiá). O entimema é
silogismo elíptico, no qual uma ou mais premissas ou proposi­
ções são supostas, suprimidas ou elididas. Os entimemas e suas
variações, como as tautologias e os lugares-comuns, replicam
retoricamente os argumentos lógicos baseados em verdadeiras
contradições, paradoxos e inverossimilhanças (Todorov, 1980,
p. 232). A reversão retórica baseada na elisão e na transforma­
ção, contida na noção de entimema, ajusta-se à descrição que
Lacan (E: 1953a, p. 342) faz da interpretação em psicanálise,
pois nela o analista toma:

a) uma história cotidiana por um apólogo;


b) uma larga prosopopeia por uma interjeição direta;
c) um simples lapso por uma declaração completa;
d) o suspiro de um silêncio por um desenvolvimento lírico.

Barthes (2001a, p. 60) viu na prática da concisão um tipo


especial de prazer produzido pelo entimema, ao deixar para
o destinatário a satisfação de concluir, por seu trabalho, os
elementos elididos ou pressupostos. As máximas, os jogos de
palavra, os sofismas, as repetições utilizam retoricamente os
lugares lógicos, gramaticais e nominais. Assim se pode enten­
der os tipos de interpretação propostos por Lacan (OE: 1973a,
pp. 493-495): lógica, gramatical e homofônica, sem romper a
tese de que a interpretação em psicanálise possui uma inventio
ligada ao entimema.
Se não encontramos em Freud uma reflexão sistemática
sobre os modos e táticas interpretativas, há um texto que se
inscreve amplamente na tradição de estudos retóricos e que

157
versa sobre o problema homólogo da inventio. Trata-se de O
Chiste e sua Relação com o Inconsciente (1905c). O método em­
pregado por Freud na compreensão do dito espirituoso (Witz)
eqüivale a um autêntico inventário retórico. Se a interpretação
deve percorrer, de maneira invertida, o caminho de produção
de determinada formação inconsciente entendendo a lógica
da formação do chiste, se infere, por inversão, o caminho da
interpretação (Dunker, 1999).
Freud postula que: o chiste é “um juízo (Urteilung) que
brinca”, uma vez que a efetuação do chiste implica na produ­
ção de um “sem sentido dentro do sentido”; seu efeito sobre
o sujeito é sempre de “desconcerto e iluminação”, que tem a
propriedade intrigante de nos enganar apenas por um mo­
mento; e estipula que a alma do chiste é sua brevidade, capaz
de condensar o sentido sob a forma de uma comparação inu­
sitada. Vê-se, por isso, como a execução do chiste se assemelha
muito à interpretação. Ambos devem despertar desconcerto e
iluminação (insight), assim como se avaliam por seus efeitos
e implicam a organização do sentido com o contra-sentido.
Em diversos pontos de seu texto, Freud recorre à noção de
Einfühlung, que se poderia traduzir tanto por sentimento de
si quanto por simpatia ou empatia. O termo, em seu sentido
técnico, é tomado de Lipps e empregado para definir não só
o efeito do chiste, como também sua condição de realização
eficaz. Ora, para Lips, a Einfühlung é uma noção-chave para
explicar o funcionamento da psicoterapia, o que nos permi­
te supor que o livro sobre os chistes não é apenas um em­
preendimento descritivo sobre um tipo especial de formação
do inconsciente, mas uma investigação sobre os princípios de
funcionamento da cura.
Na primeira parte do estudo, Freud analisa as condições
formais e subjetivas para a construção do chiste: os diferentes
tipos de equivocidade (por alusão, por metáfora) e os diferen­
tes tipos de tensão de sentido, por exemplo, entre o todo e
a parte, entre conteúdo e continente. Aparentemente, Freud

158
não dispunha de um repertório organizado das categorias re­
tóricas, o que explica suas dificuldades de classificação. Ele
divide os chistes, em dois grandes grupos em função de sua
forma de construção: os que se produzem a partir da expres­
são verbal e os que extraem seus efeitos do jo go de ideias. No
primeiro caso, fala-se em chiste de palavra e, no segundo, em
chiste de pensamento. Os chistes de palavra se dividem ainda
em dois subgrupos segundo a presença ou ausência de defor­
mações morfológicas na própria palavra. Quando Freud fala
em expressão verbal, a ressonância com a ideia de significante é
imediata. No entanto, há variantes em que se pode considerar
essa noção, por um lado, como modificação da imagem acús­
tica da palavra e, por outro, pela relação desta com outros ele­
mentos da frase (gramática) e, finalmente, como indutora de
relações lógicas, o que Freud chama de chistes de pensamento.
Isso quer dizer variações morfológicas, sintáticas e semânticas
do significante.
A segunda parte do livro é dedicada à tese de que o chiste
realiza um desejo sexual recalcado, transpondo, assim, para o
chiste o que fora descoberto em relação ao sonho. Mas, em
contraste com o sonho, que sugere uma formação de senti­
do privada e idiossincrática, o chiste é abordado como um
processo social. O chiste exige condições relacionais para se
efetivar. Condições que Freud exemplifica pela participação na
mesma classe social, na mesma origem étnica, na “mesma pa­
róquia” ou ainda pela presença ou não de mulheres no recinto.
A condição do chiste torna-se ambígua: por um lado, ele é
um paradoxo despretensioso que decorre de um uso lúdico da
linguagem; por outro, ele exige circunstâncias sociais precisas
que o condicionam.
Essa condição exprime a volatilidade política do chiste e,
por extensão, da interpretação. Já se observou que o chiste, o
humor e a ironia são táticas importantes nas práticas de resis­
tência política (Zizek, 2002). O humor é um efeito que marca
a mudança de um discurso para outro e fonte de perturbação

159
da fantasia. Assim como a blasfêmia e o xingamento, o humor
assinala uma espécie deponto de mutação possível, mas não ne­
cessário, de um discurso ao outro (Bassols & Garcia, 1994, pp.
185-200). Por outro lado, o chiste facilmente instrumentaliza,
reforça e propaga todo tipo de segregação.
Ora, essa indeterminação articulatória do chiste, que pode
servir tanto à segregação quanto à perturbação da fantasia ide­
ológica, nos convida a outro aspecto da interpretação. Ou seja,
além de responder aos critérios de figurabilidade social e in-
tersubjetiva, a interpretação deve tocar a causa do desejo, deve
aludir ao objeto. O critério pragmático de verificação do chiste
(o riso) nos faz inferir, pelos efeitos, a presença da causa. As­
sim, a interpretação, bem como o chiste, realiza uma extração
do objeto em relação ao Outro (A a) (Metzger, 1995, p.
97). Ora, essa extração se dá em dois tempos. Primeiro, há um
deslocamento, uma deformação ou uma subtração do objeto,
que aponta, então, para a inconsistência do Outro. Todavia, há
um segundo tempo: nele se reapresenta, por exemplo, a sutura
neurótica da falta no Outro, que se completa em sua demanda.
Aqui se recompõe o imperativo superegoico e a fantasia. Assim,
a interpretação deve lidar sempre com seu efeito de alienação,
que convida o sujeito a reafirmar sua servidão voluntária, e com
o efeito de separação, que transforma a metáfora do sintoma (ou
equivalente) na metonímia do desejo.
O tempo da separação permite, mas não determina, o mo­
mento de escolha. E neste momento que se decidirá em qual dis­
curso se articulará a interpretação ou, ainda, se estaremos diante
de um ato. Essa captura discursiva da interpretação permite en­
tender a formação da demanda, particularmente em seu aspec­
to de coletivização. O exemplo mais simples desse efeito ocorre
quando estamos apaixonados por alguém e tendemos a praticar
uma ambigüidade dos significantes que esse alguém nos dirige de
modo a confirmar ou desmentir nosso sentimento. Este signifi­
cante flutuante {floating) (Laclau, 2000, pp. 40-90) pode, então,
ser manejado pelo sedutor para dirigir as demandas do sujeito.

160
Temos, então, duas novas articulações possíveis da retóri­
ca da interpretação. No primeiro caso, estamos às voltas com
a decomposição da universalidade da lei, com a aparição de
uma exceção, um significante não articulável que desestabili-
za a consistência do Outro. No segundo caso, lidamos com a
apresentação de uma contingência real que mostra a singulari­
dade em sua face irredutível como objeto a. Essa contingência
real, expressa pelo significante flutuante, pode ser coletada na
vertente da alienação, reforçando ainda mais a consistência do
Outro. Disso se conclui que não é necessário que o paradoxo
semântico envolvido na interpretação —e, por homologia, no
chiste —realize também um paradoxo lógico, que toque o real
e remeta a uma modificação da posição do sujeito frente ao
objeto.

4.3. DISPOSITIO. ESTRUTURA TEMPORAL


DA SESSÃO ANALÍTICA
A disposição dos elementos do discurso refere-se, retorica­
mente, à compreensão do encadeamento das partes do discurso
na narrativa. Classicamente, são definidas: introdução (exórdio,
proposição, partição), narração (argumentação confirmativa
ou refutativa) e conclusão (peroração). Esta estrutura narrati­
va ou argumentativa mostra-se compatível com a apresenta­
ção corrente da sessão analítica. Ou seja, a abertura da sessão,
regularmente está marcada pela construção de uma situação.
Uma situação implica uma rede de lugares que deve responder
a três condições: apresentação de personagens, exposição do
cenário e configuração da natureza da intriga. Seria possível,
neste sentido, ler a disposição da sessão analítica em função de
sua estrutura lógico-temporal, desde que pudéssemos mostrar
como essa estrutura não é apenas um esquema transcenden­
te da linguagem assumida por um falante, mas também uma
constante retórica. Isso implica ler as três figuras do tempo ló­
gico descritas por Lacan (E: 1945a) como articulações retóricas.

161
Constitui um problema clínico relevante determinar quan­
do uma sessão pode sei dada por começada. Certamente, nao
é quando o paciente começa a falar, pois há sessões que nunca
começam; não formam a estrutura de uma sessão. Mas esse
tempo de começo só pode ser delimitado retroativamente. Ou
seja, só sabemos que o primeiro tempo terminou quando se passa
para o segundo. Só quando a sessão se encerra é que essa primeira
escansão se absorve à segunda, que se pode dizer conclusiva.
O que encerra a abertura de uma sessão é a realização de
um instante de olhar, o “tempo objetivo da intuição inicial”
(Ibid., p. 209). E o momento de formação da questão, de
precipitação de uma vacilação narrativa. Na retórica, essa é
a circunstância que define a existência de uma causa, ou seja,
da quaestio (questão). A causa como questão envolve o reco­
nhecimento de uma contigência que não é imediatamente de-
cidível. Esta contingência pode ser abordada pela via da tese
(quando se evita os parâmetros de lugar e tempo) ou pela via
da hipótese (quando tempo e lugar participam da formulação
da questão) (Barthes, 2001a, pp. 85-87).
Mas não chegaremos à segunda escansão sem passar pela
primeira. Do ponto de vista lógico, é apenas no ponto de en­
cerramento e conclusão que se pode inferir, retrospectivamen­
te, seu ponto de início e sua escansão segunda. Mas, do ponto
de vista retórico, o final deve ser construído por ações que o
tornem possível. Esta ideia é convergente com a tese de que
“o manejo da transferência é o manejo do tempo em análise”
(SL1953-54). Ocorre que esse lugar ideal não confere com
o transcorrer das sessões porque nelas é preciso, progressiva­
mente, agir de tal forma que seja possível um ponto de encer­
ramento. Por exemplo, o excesso de digressões ou de caracte­
rizações pode tornar uma sessão interminável justamente pelo
fato de que ela não se iniciou.
Lembremos o sofisma analisado por Lacan (E: 1945a): três
prisioneiros têm fixado às suas costas um disco cada um (entre
dois pretos e três brancos disponíveis). Na primeira situação,

162
o prisioneiro vê dois discos pretos e conclui, im ediatam ente,
que ele é um branco (instante de ver). Na segunda situação, o
prisioneiro vê um preto e um branco e conclui, m ediatam ente,
que se o prisioneiro branco não se move, é porque não está
vendo dois pretos e, logo, ele mesmo pode se assumir como
um branco. Há aqui uma escansão temporal e a realização sub­
jetiva de uma passagem do tempo; é o tempo para compreender.
Na terceira situação, o prisioneiro vê dois companheiros bran­
cos. Evidentemente, nenhum deles se move, mas essa imobili­
dade é absorvida ao caso anterior, e então cada qual inicia sua
saída pensando tratar-se do caso II (um preto e dois brancos).
No entanto, quando se percebe a movimentação conjunta dos
prisioneiros, cada qual se detém. A certeza antes adquirida va­
cila, pois não sabem mais se é mesmo da situação II que se tra­
ta. A escansão comum do movimento leva, então, à recuperação
da certeza, agora indubitável, de que se trata de um caso III, no
qual há três brancos, o que conduz à liberdade coletiva.
Assim como uma análise começa pela localização subjetiva
do paciente, uma sessão começa quando reconhecemos uma
questão. Esta localização se confirma pelo emprego, no texto
de Lacan, do termoprótase-. “... mais do que uma hipótese for­
mal, representa uma matriz ainda indeterminada —digamos
esta forma de conseqüência que os linguistas designam pelos
termos prótase e apódose. Sendo..., só então se sabe que se é...”
(Ibid., p. 207).
Em seu artigo de 1945, Lacan sugere algumas aplicações
para seu “tempo lógico”: a diplomacia, o jogo, o manejo psi­
canalítico e os fenômenos de massa. Salta aos olhos a exclusão
da aplicação literária, o que fica ainda mais problemático se
consideramos que a primeira versão desse texto aparece numa
revista de arte (Le Cahiers d'Art), e que o sofisma dos três pri­
sioneiros tenha sido proposto a Lacan por André Weiss, que o
recebeu de Raymond Queneau.
A homologia entre os programas teóricos de Lacan e Que­
neau tem sido pouco enfatizada. Queneau, que era poeta e

163
matemático, foi colega*'de Lacan nos famosos seminários sobre
Hegel, ministrados por Kojéve na década de 1930. Em 1960
ele funda o grupo Oulipo, abreviação de Oficina de Literatura
Potencial (Motte, 1998), interessando-se pelas possibilidades
de aplicação da topologia combinatória ao campo da criação
literária. Entre os problemas colocados pelo Oulipo está o es­
tudo matemático das árvores narrativas, ou seja, uma maneira
de estabelecer formalmente as possíveis ou potenciais soluções
para a relação entre seqüência e transformação que definiriam
uma narrativa segundo sua forma lógica. Essa lógica combina­
tória pode ser exercitada no nível dos significantes, como é o
caso do uso de contrantes. Por exemplo, George Perec (1969),
membro do Oulipo, escreve o livro Disparicion, sem usar a
letra e. Apesar da ocorrência freqüente desta vogal em francês
o exercício da restrição formal gera efeitos literários inéditos.
Essa escrita combinatória pode ser praticada ainda t l o nível
dos blocos narrativos, como fez ítalo Calvino, ou em versos
poéticos, como Queneau se esforçou em demonstrar com seu
Cent M ille M illiards de Poèmes (1961) no contexto de reno­
vação formal do surrealismo (Lionnais, 1998). Este detalhe
histórico sugere uma possível linha de continuidade entre o
texto sobre o tempo lógico, a lógica do significante e a tradição
retórica da narrativa em psicanálise.
Levando em conta a homologia entre contexto literário e
projeto de formalização lógica em Lacan propomos uma leitu­
ra retórica do tempo lógico, que leve em conta tanto o plano
do significante, quanto o do discurso e ainda o da narrativa.
Com efeito, a natureza mesma do problema, tal qual ele é
formulado por Lacan, no texto de 1945, segue a rotina tradi­
cional da retórica:
—Prótase: colocação do problema, as regras pelo carcereiro,
o número de discos, a liberdade.
—Hipótese: situação intersubjetiva criada entre os três prisio­
neiros que obriga cada um deles a conjecturar a solução ba­
seado apenas no que vê do comportamento dos outros dois.

164
—Apádose-. saída e explicação da solução.
Isso nao significa que a cada sessão seja apresentado um
problema e dele proceda uma espécie de solução, ao modo de
uma narrativa integrativa ou conciliatória. Vimos que a estra­
tégia psicanalítica se caracteriza pela inversão e pelo desloca­
mento do lugar e das posições que determinam a questão. As­
sim como na literatura potencial, trata-se de isolar uma forma
lógica a partir de seus contrantes (nao se chega ao terceiro sem
passar pelo segundo, e ao segundo sem passar pelo primeiro),
e não de uma situação empírica. Desta maneira, as diferen­
tes posições temporais podem se realizar entre sessões, intra-
sesssão ou entre blocos de sessões. Tudo depende de como se
conta a ordem de execução dos contrantes —daí que a defini­
ção de uma posição ou outra seja um ato de decisão, não o en­
caixe de uma lógica transcendental numa exposição empírica.
Por exemplo, em 1971, Lacan (SXIX: 1971 -72a, 9/02) traduz
os três tempos em três modos de enunciação da demanda: o
pedido imaginário, o oferecimento simbólico e a recusa real.
Diante deste circuito fechado, que se atualiza na estrutura da
transferência pela alternância dessas posições, forma-se uma
espécie de sofisma temporal cuja solução depende de um ato,
e cuja enunciação seria: não é isso. Esse ato corresponderia à
forma temporal do objeto a. Outra leitura possível encontra-
se na contagem do tempo lógico segundo a escrita da fantasia
pensada em analogia com a noção de série convergente em
matemática (2+a; 1+a; 1+a = l/a). Ou seja, o tempo lógico é
um instrumento clínico que depende, quanto a sua utilização,
da estratégia adotada pelo analista, nem sempre se identifican­
do com o encerramento da sessão. No entanto, em todos os
modos de ser empregado ele exige uma espécie de parâmetro
de leitura que pode ser a demanda, a fantasia ou o sujeito, de
acordo com os exemplos que abordamos, ou ainda o discurso
e o desejo, como mencionamos anteriormente. Entre esses pa­
râmetros de leitura inclui-se, como caso adicional, a estrutura
narrativa da sessão.

165
Passemos, então, aofsegundo tempo, a dispositio na situação
analítica. Ele está mareado pela meditação e pela compreen­
são. Corresponde, em termos narrativos, ao desenvolvimen­
to da intriga, com a apresentação de fatos e descrições. Nele,
as posições delineadas pelos significantes que representam e
constroem a situação inicial são expostas a um movimento de
resignificação. Lacan (E: 1953a) afirma que “o inconsciente de­
manda tempo para se revelar”. Quanto tempo? Podemos dizer
que ele demanda, no mínimo, o tempo da situação. Ou seja,
toda sessão começa, lógica e discursivamente, quando se pode
introduzir ou verificar um desequilíbrio narrativo. O que cha­
mamos de desequilíbrio narrativo tem exatamente o mesmo
sentido que a técnica da associação livre em seus primórdios.
Antes de estabelecê-la como regra fundamental e geral para a
fala dos pacientes em análise, Freud utilizava a associação livre
como uma técnica pontual e restrita. Ou seja, diante de um
elemento preciso da fala do paciente, ele interrompia o curso
das ideias ou levava em conta a interrupção espontânea por
parte do analisante e intervinha, pedindo uma associação livre:
“Diga-me o que lhe vem à cabeça, mas diga-me agora”.
Vários autores têm associado o segundo tempo lógico à
noção de saber. A ideia de compreensão, presente na expres­
são tempo de com preender, fornece uma base intuitiva para tal
aproximação. Penso que algo se pode acrescentar aos motivos
dessa aproximação quando se leva em consideração o argu­
mento retórico de que o desenvolvimento da intriga se liga aos
efeitos de suspense, expectativa e dúvida que trazem consigo a
exigência de produção de um saber —um saber que deve per­
manecer in absentia para que a trama prossiga. Inversamente,
são esses pontos de ruptura, ambigüidade ou indeterminação
narrativa que convocam a atenção flutuante. São as formações
de resistência, entendidas aqui não apenas como interrupção
da intencionalidade da significação, mas como interrupção ou
quebra da temporalidade narrativa. Freud (1912b, p. 102) in­
siste que essa interrupção geralmente remete a pensamentos

166
sobre o analista. Mas que essa resistência se manifeste na esfera
do eu, isso não significa que sua origem esteja na dimensão
egoica. Pois há resistências que procedem do supereu, do Id,
do recalque. Para Lacan (SIL1954-55, pp. 159-171) a resis­
tência é uma propriedade do discurso, assim como a censura
procede do eu. Podemos imaginar que a narrativa é um nível
intermediário entre a fala e o discurso.
O analista, como destinatário da narração, tem função um
pouco diferente de quando ele opera como leitor. Aqui ele inter­
vém sobre a narrativa, alterando seu ritmo e sua velocidade - em
suma, seu tempo. Ao dizer, por exemplo, “adiante”, o analista
dá por recolhido o que se antecedeu na narrativa. Isso pode ser
feito por uma interjeição, pela mera indiciação de presença ou
pela intervenção de um silêncio ali onde se espera assentimento.
O tempo da narrativa não é definido pela extensão de palavras,
mas pela temporalidade lógica dos atos que o compõem.
O terceiro tempo da sessão deve, portanto, realizar uma
segunda escansão narrativa. A primeira escansão determina,
retroativamente, o início da sessão e desestabiliza a narrativa
pela mudança da posição do destinatário da narração. Precipi­
ta, como vimos, um significante protático na posição de alteri-
dade em relação à posição concêntrica inicial entre o narrador
e o agente do discurso. Vimos, ainda, que o desenvolvimento
da intriga narrativa, por meio da associação livre, orienta-se
para a indeterminação do saber (a quaestio). A segunda escan­
são, que realiza o terceiro tempo da sessão, deve precipitar o
sujeito num ato que traduz a estrutura de um juízo. Ora, um
juízo é uma proposição no modo indicativo', “sou um branco”,
“sou um preto” (Ibid., 207).
Note-se como isso contrasta com o modo subjuntivo que
determina o segundo tempo da sessão (apódese —se... então)
e com o gerúndio, particípio ou infinitivo que determina o
primeiro tempo da sessão (prótase —sabe-se que). O corte é,
portanto, um ato que constitui retroativamente a certeza dos
momentos anteriores; modifica a modificação realizada pelo

167
segundo tempo sobre $ primeiro. É por isso que podemos di­
zer que no corte está a estrutura inteira da sessão analítica. O
mais certo é que o corte deve interromper ou modificar a posi­
ção inicial do narrador, mesmo que com um simples silêncio.
Ou seja, o ato que se espera no corte é um questionamento da
soberania no narrador, uma queda de sua posição de agente
do discurso de forma que uma nova posição se precipite em
seu lugar.

4.4. ELOCUTIO: PARADOXOS DA INTERPRETAÇÃO


A elocutio refere-se à parte da retórica que inclui a análise
e a classificação das figuras ou tropos. Na origem, a elocutio
englobava todas as condições necessárias para a fala concre­
ta: a gramática, a pronúncia, a dicção, o teatro da voz e o
léxico, ou seja, todos os indicadores da relação entre o agente
da fala e o seu dizer. Mas é por se referir ao reservatório de
figuras e técnicas que embelezam a linguagem, transportando
e modificando o sentido, que a elocutio acabou se tornando
sinônimo popular de retórica. O campo da elocutio, também
traduzido por “enunciação”, nos leva a admitir uma espécie
de hierarquia no uso da linguagem. De um lado, haveria um
uso que seria literal, puro, referencial ou denotativo, no qual
a linguagem se mostraria “nua”. De outro, um uso metafóri­
co, impuro, poético ou conotativo, no qual a linguagem se
mostraria “vestida e ornamentada” (Barthes, 2001a, p. 90). A
forma como se considera a distância entre esses dois modos de
linguagem, inclusive a admissão de sua existência, determina o
tipo de entendimento que se terá sobre a simbolização.
Para Cassin (2005, p. 18) a retórica deve ser considerada
como o embrião de uma reflexão lógica alternativa à reflexão
de Parmênides e a tarefa de Górgias consiste em mostrar que o
poema ontológico é um discurso sofistico. O Ser é o herói de
Parmênides assim como Ulisses é o herói da Odisséia de Ho­
mero. Ambas são epopeias ou alegorias do retorno da verdade

168
e de recomposição da identidade (Ibid., p. 24). Esta concep­
ção não referencial de discurso foi associada por Aristóteles à
apologia do incomunicável, contudo isso só é válido se restrin­
gimos o comunicável quer à referência quer à imagem men­
tal ou ideia. Aristóteles não parece julgar os sofistas de modo
justo uma vez que examina seus postulados fora de seu eixo
proposto, a saber, a eficácia da linguagem. E preciso notar que
o ponto de partida da retórica-sofística reside na semiologia,
ou seja, na distinção entre tipos de signos, os signos comemo­
rativos (que reúnem duas percepções usualmente verificadas)
e os signos indicativos (que mostram um estado do mundo).
Esta distinção é necessária não porque dela se pode erigir uma
concepção de conhecimento, mas porque ela é a matriz das
formas de fracasso da comunicação. Seja pela impossibilidade
de verificar uma designação rígida, seja pela deformação da
memória comemorativa, seja ainda pela confusão entre come­
moração (representação) e indicação (apresentação), o efeito
sofistico é antes um efeito-mundo do que um efeito interno.
O sentido só pode ser apreendido a posteriori, em vista do
mundo que ele produziu (Ibid., p. 63). A retórica sofista esco­
lhe o tempo e o curso, e a retórica filosófica escolhe o espaço
e a presença, contudo ambos se encontram no mesmo terreno
que é o político. O campo político é caracterizado por Aris­
tóteles à partir de uma condição muito simples: querer dizer
algo (legein ti, semainein ti). Se o homem quer ser homem ele
quer dizer algo. Aqui se coloca a crítica de que ele faz passar
as categorias de uma língua particular (a língua grega) por ca­
tegorias do pensamento universal. Deste modo somos leva­
dos a considerar que o primeiro princípio da lógica, a saber,
o princípio da não-contradição, é antes uma propriedade da
linguagem do que uma característica do ser ou do pensamen­
to. Somos levados a considerar o princípio do “querer dizer” á
luz desta constatação: “Esimplesmente quando imaginamos que
Aristóteles quer dizer algo que nos inquietamos com o que ele
circunscreve” (SXX: 1972-73, p. 51).

169
Esta afirmação, apfrentemente banal de Lacan, reforça a
importância do problema lógico relativo a querer dizer algo.
Querer dizer implica, segundo Aristóteles, em aceitar a situa­
ção enunciativa, implica participar de um lugar. Ora, a situ­
ação enunciativa primária ao ser aceita concede também que
se aceite a sua negação ou refutação. Querer dizer subenten­
de que outro possa querer dizer e dizer outra coisa, de outra
maneira. É por isso que Lacan critica a metalinguagem como
uma atitude ética indefensável, pois ela presume o domínio e
a posse do querer dizer. Há então refutação lógica, refutação
pragmática e refutação transcendental que alguém admite, au­
tomaticamente, quando alguém se empenha no querer dizer.
A arma absoluta de Aristóteles resume-se, portanto, na inti­
mação a falar, como se neste gesto estivesse contido toda a
partilha entre sentido (como impossibilidade da contradição),
significação (como afirmação ou negação) e condição política
do homem (biospolíticos) (Cassin, 2005, p. 86). Qual atitude
escapa desta estratégia discursiva da retórica do espaço? Aquele
que se recusa a querer dizer é identificado por Aristóteles como
a planta, com o entimema de que as plantas não falam. Outro
desdobramento desta estratégia permite dividir a posição dos
adversários de Aristóteles entre aqueles que ao admitir o prin­
cípio do querer dizer, são inexoravelmente conduzidos a dizer
o que é (o Ser) e aqueles que se colocam fora deste jogo em
duas circunstâncias notáveis pela descrição oferecida:
(a) aqueles que estão fora da política, porque não falam
(como as plantas);
(b) aqueles que “falam por falar” (legein logou kharin) ou
“aqueles que falam pelo prazer de falar” (Ibid., p. 114).
A aparição repentina da regra fundamental da psicanáli­
se em meio às mais complexas controvérsias sobre a natureza
retórica do sentido chama nossa atenção. Aqueles que “falam
por falar” são aqueles que não defendem (hypokhein) seu dizer.
Eles exercitam uma liberdade de discurso que ainda assim é
considerada curável pelo método aristotélico da refutação.

170
I

Para entendê-lo é preciso acompanhar o que Cassin chama


de topologia do sentido, presente no livro gama da Metafísica
de Aristóteles. Trata-se de um espaço delimitado por duas vi­
zinhanças (Ibid., p. 132):

Sentido sem referência Sentido Significante sem senti­


(Bedeutung) (Bedeutung + Siri) do (Siri)
Ficção Essência Homonímia
“outro sentido” “homem que quer dizer” “um sentido”
Saber dizer Saber pensar Saber ouvir

Ora, não há concepção de tratamento que se queira psica-


nalítico que não tome, explicita ou implicitamente, uma posi­
ção sobre a distância envolvida nesses três usos da linguagem.
Sedimentou-se o consenso, desde Freud, de que a cura se dá,
necessária ou suficientemente, por algum tipo de simboliza-
ção. Ela pode privilegiar uma dimensão econômica, na qual
se trataria de fazer passar intensidades pré-reflexivas, intuiti­
vas ou pré-posicionais, para a dimensão da palavra e da re­
presentação, como no método catártico. A simbolização pode
enfatizar o plano tópico, quando se trata de promover víncu­
los (Bindungeri) e inscrições entre lugares psíquicos distintos,
como no método elaborativo (D ucharbeiten). Pode-se pensar
ainda que a simbolização opere como uma rearticulação do
conflito, verificado quer na relação entre os níveis de lingua­
gem ou ainda pela consideração de que o próprio conflito é
uma simbolização do real.
Para Lacan, a simbolização em curso no tratamento analí­
tico é a simbolização do desejo. Existiria, ainda, uma operação
complementar ou alternante com a simbolização, que é a sub-
jetivação. Os dispositivos clínicos de simbolização são redu-
tíveis à metáfora, assim como o dispositivo metapsicológico
central para a constituição do sujeito é a metáfora paterna.
Mas, ao contrário da tradição da elocutio, pela qual a metáfora

171
deveria ser consideracfa instrumento conotativo, para Lacan
ela é também, e antes de tudo, denotação, ou seja, ela não
nos mostra apenas o ornamento acessório da linguagem, mas
revela que este ornamento é seu esqueleto. Ao afirmar que
“toda designação é m etafórica”, Lacan (SXIX:1971-72a, 10/02)
inverte a relação tradicional entre as camadas de sentido da
linguagem, fazendo da metáfora não apenas instrumento do
deslocamento de sentido, mas também de criação de sentido.
Isso traz um problema imediato. Se a linguagem tem es­
trutura de metáfora e, subsidiariamente, de metonímia, nos
protocolos clínicos do tratamento não faria mais sentido a
distinção entre organização simbólica do pensamento e a pro­
dução de metáforas. No fundo, as estratégias clínicas rema­
nescentes seriam apenas aquelas que se referem à tradução
econômica do excesso quantitativo (gozo) e a rearticulação
tópica entre as posições (subjetivação). Nesta direção, La­
can teria abolido aquela que é a mais constante referência de
Freud à natureza dos sintomas, qual seja, a de que eles são
a expressão simbólica de conflitos. A teoria da metaforiza-
ção generalizada nos conduz, assim, à imanência do conflito,
que acaba sendo polarizado apenas nas operações de inversão
entre a metáfora do sintoma na metonímia do desejo e reci­
procamente. Isso levou a uma concepção de tratamento cuja
cúspide é a aceitação ou submissão ao simbólico. O neuróti­
co, mas também o perverso ou o psicótico, em outro senti­
do, seriam sujeitos que resistem, com seus sintomas e práticas
correlatas, ao funcionamento transcendental da lei, a lei sim­
bólica como equivalente à lei da linguagem. E contra este en­
tendimento algébrico e formal da metáfora, contra a diluição
identificatória da metáfora nos processos de simbolização que
se levantam contra Lacan tanto as críticas de Laplanche (1992,
pp. 215-263), quanto dos pragmatistas (Freire Costa, 1994,
pp. 9-60) e ainda da hermenêutica crítica. Veremos como essa
concepção se liga historicamente às primeiras considerações
retóricas sobre a metáfora.

172
Mas esse entendimento nao parece ser o único possível
da concepção lacaniana de metáfora. Safatle (2006, p. 104)
mostrou que, para além da metáfora como procedimento de
seleção de elementos presentes no eixo diacrônico da lingua­
gem (o eixo metonímico), há a noção de metáfora como mo­
dalidade de relação com a referência. E o que autoriza Lacan
(E: 1957b, p. 532) a “ligar a metáfora com a questão do ser”.
O que a leitura convencional da teoria da metáfora em Lacan
deixa de lado é que essa não é apenas uma estratégia de nega­
ção simbólica de um significante por outro, mas também, de
negação simbólica (em outro sentido) que formaliza o conflito
real. A metáfora é um tropo de substituição; a substituição
é feita com base na similaridade; a similaridade só pode ser
estabelecida por meio de distinções; distinções envolvem es­
colhas, escolhas requerem oposições e exclusoes, e a exclusão
é um processo de negação (Chaitin, 1996, p. 35). A metáfora
envolve, portanto, dois níveis em relação de dupla negativida-
de entre si. De um lado, há a negação como efeito de redução
da significação, que introduz significantes puros, sem força
denotativa, capazes de deslocar o desejo retido no sintoma.
De outro, há a negação como efeito de sentido real. Aqui a
negação corresponde à anulação da facticidade da referência.
Mas essa negação da referência não tem por objeto o mundo
da percepção imediata; não há negação do Real, tal como ele
se apresenta, porque sua apresentação já é uma afirmação {Be-
jahung). Esta é apenas a negação de uma construção imaginária que
o naturaliza e corresponde ao primeiro tipo de negação metafórica.
A palavra como morte da coisa exprime um tipo de sim-
bolização que nega a paridade entre a transcendência do de­
sejo e os objetos empíricos imaginários. Todavia, essa posição
imaginária, a posição do eu, é o lugar de onde toda verdade
se enuncia (SXXII: 1974-75,18/03). Se essa forma de negação
situa-se entre o imaginário e o simbólico e presume um uso
constatativo da linguagem, a segunda forma de negação situa-
se entre o simbólico e o real e presume um uso performativo

173
da linguagem. Se o fracasso do primeiro tipo de n egação me­
tafórica dará origem ao sintoma, o fracasso do segundo tipo
de negação metafórica dará origem ao resto metonímico e,
portanto, ao desejo.
Tomemos como exemplo a análise que Lacan faz de um frag­
mento do caso do Homem dos Ratos. Trata-se de uma cena de
infância em que o paciente dirige impropérios ao pai, que o re­
preendera. A criança vocifera: “Seu guardanapol Sua lâm pada?.
Lacan argumenta que o que menos importa nesta metaforização
do pai é o significado dos signos envolvidos {guardanapo, lâm­
pada) —aliás, eles parecem ter sido escolhidos apenas por sua
relação de contiguidade com a cena. O essencial é a presença
da relação de substituição envolvida na metáfora, que permi­
te nomear o pai pelo que ele não é. Poder-se-ia dirimir dois
modos de negação em curso nessa metaforização. Primeiro, o
paciente faz da nomeação um ato de designação do pai pelo
que ele não é, ou seja, nega-o e, por esta negação, afirma-o em
seu lugar como outro: guardanapo, lâmpada. Essa estratégia dá
corpo ao conflito, nomeia seus elem entos, exprime a força entre
os oponentes. Todavia, em outro plano, a negação aplica-se ao
conjunto da situação de conflito, fazendo passar o conflito real
para a ordem de um conflito sexual. O pai o havia repreendido
talvez porque ele mordera alguém; logo, a nomeação do pai faz
tâmbém uma escrita da pulsão. Esse modo da pulsão poderia
ser qualificado como anal-sádico e destrutivo, como expressão
de uma objetalidade específica ou como um ponto de fixação
de sua fantasia. Tais leituras podem ter sua utilidade clínica, mas
tendem a obscurecer o fato de que este ato de nomeação não
é apenas a tradução de um conflito, que passa a ser, desde en­
tão, representado simbolicamente. Ele é um ato de inscrição do
conflito no corpo, o que introduz outro tipo de simbolização,
regulado por um sistema de escrita (Dunker, 2004).
No primeiro caso, a metáfora é indutora de saber. No se­
gundo, a metáfora é a escrita da verdade como inadequação
(Safatle, 2006, p. 107). Escrita refere-se aqui ao campo da le­

174
tra, que é o operador fundamental desse modo de negação ou
de formalização, em contraste com o significante, que seria o
operador fundamental do primeiro modo de negação. Temos
agora as bases para repensar a elocutio como campo do confli­
to e, consequentemente, a interpretação como sistema entre
escuta-fala e escrita-leitura.
Lacan (OE:197C)e, p. 428) fala da interpretação a partir da
Midrash. A Midrash é um método judaico de interpretação da
Torá que se pauta pela suposição de soberania do texto escrito
e pela crença na literalidade de seu sentido. Ou seja, um méto­
do para reduzir e controlar a ingerência do leitor na decifração
do texto de tal modo que ele resista a uma interpretação “in­
tencionada”, no sentido tradutivo acima examinado. Detalhe
sugestivo, em raras ocasiões o rabino está autorizado a fazer
interpolações no texto. Uma delas, de acordo com Ischmael, é
denominada de método de Ceres ou método da castração. Tal
procedimento se autoriza quando a irracionalidade do texto é
patente (por contradição entre duas passagens) ou quando há
uma contradição forte entre a lei escrita e a tradição oral de
uma época. Duas formas de conflito legitimam, portanto, que a
interpretação se faça como um ato, propriamente dito, do leitor.
Há, pois, uma primeira oposição entre fala e escrita e um
segundo nível de contradição intra-fala e intra-escrita. Isso se
compreende pelo contexto social no qual o método da M i­
drash se desenvolve. A interpretação da Torá era privilégio de
um dos grupos da antiga comunidade hebraica, os saduceus.
Eles correspondem à casta dos reis e juizes que herdam o po­
der genealogicamente. Desta maneira, encarregavam-se tanto
de interpretar a lei quanto de executá-la, e assim o faziam de
acordo com suas conveniências políticas, usando e articulando
o texto como instrumento de solução para os conflitos. Con­
tra essa posição erguem-se os fariseus, no seio da qual nasce
a Midrash. Sua reivindicação é de que o texto sagrado possui
um sentido que pode impor-se contra os interesses de quem
está encarregado socialmente de fazê-lo. Constituindo-se em

175
camadas médias e liberais, os fariseus introduzem a Midrash
como técnica de interpretação, na medida em que logram
participar mais ativamente da organização do poder, princi­
palmente durantes os períodos de ocupação babilônica e ro­
mana que acarretaram perda de autonomia para os saduceus.
Cabe destacar que há, ainda, dois grupos importantes para a
constituição da Midrash: os essênios, grupo que se retira da
convivência urbana, considerada impura e corrompida (prin­
cipalmente diante da aliança entre saduceus e fariseus), e os
zelotes, grupo guerreiro interessado em utilizar as Escrituras
para justificar uma resistência armada contra o jugo romano.
O personagem histórico de Jesus é claramente composto
para dar corpo a esse conflito de interpretações. Ele é apresenta­
do como um rei (saduceus) que veio para libertar seu povo (ze­
lotes), renovar a lei (fariseus), mas cujo reinado é de outro mun­
do (essênios). Assim como o método de Ceres visava conciliar a
discrepância entre oralidade e escrita no terreno da hermenêu­
tica judaica, a hermenêutica patrística desenvolverá uma teoria
da autoridade textual para resolver a discrepância entre os textos
sagrados. Vê-se, assim, como o antagonismo social recobre per­
feitamente as técnicas de interpretação do escrito e sua tensão
com o regime oral. A figura de Jesus funciona exatamente como
metáfora, articulando negativamente os significantes do confli­
to e, ao mesmo tempo, escrevendo em ato a sua impossibilidade
- daí a importância de seu destino corpóreo. Adicionalmente,
isso produz uma unificação dos nomes-do-pai, reduzindo a he-
terogeneidade à qual já nos referimos anteriormente.
A estratégia cristã para conter as variações de leitura a que
um texto está sujeito consiste, basicamente, em dividi-lo em
camadas de sentido e limitar o acesso a essas camadas segun­
do uma hierarquia simultaneamente social e hermenêutica. Por
exemplo, pode-se distinguir os diferentes sentidos de um texto,
segundo a hermenêutica cristã, estabelecida por Orígenes, em:
a) sentido literah o texto é soberano; ele pode ser percebido
como incoerente e contraditório consigo. No entanto,

176
tais propriedades não emanam do texto, mas da insu­
ficiência do leitor para interpretá-lo. Essa insuficiência é
remetida à disparidade entre a permanência da escrita e
a impermanência da tradição oral e da transformação
cultural;
b) sentido psíquico ou moral: as lacunas de sentido do texto
são preenchidas pelas condições discursivas que definem
seu destinatário ideal. A contradição do texto é resolvida
pela afinidade moral ou psíquica do sujeito, segundo
uma espécie de “contato entre mentes” ou emulação. O
sentido psíquico deriva, portanto, da absorção do literal
ao oral; e
c) sentido místico ou espiritual: a falta de sentido do texto é
remetida à ausência de um saber e de uma experiência
que o torna acessível. É preciso uma transformação do
sujeito, que seria, assim, a chave para o acesso a seu sen­
tido. Neste caso, é o literal que se impõe e domina a
expressão oral do sentido.
Lacan, ao situar a interpretação ao lado da Midrash, nos
leva a crer que seu caráter deve ser eminentemente literal. No
entanto, a Midrash é um método para leitura de textos, não de
discursos orais como, em tese, é a associação livre. Pode-se con­
tornar esta objeção recorrendo à noção de estrutura de escrita
e de letra, mas isso recoloca uma dificuldade. A temporalidade
da escrita é diferente e irredutível à da fala. Na escrita pode-
se retornar, ler de novo, pular trechos, rasurar, editar. Todas
essas operações não são perfeitamente reversíveis ao domínio
da fala. É como comparar o teatro ao cinema, ou a pintura à
poesia. Não são apenas dois modos de expressão distintos: são
duas experiências diferentes. Freud comparou esses dois siste­
mas em seu texto sobre o Bloco M ágico (1925a). Trata-se de
um brinquedo composto por uma camada de celofane, uma
camada de papel e outra camada de argila. Quando se escreve
sobre o celofane, um análogo da consciência, este tende a vol­
tar ao seu estado anterior sem deixar marcas, permanecendo,

177
assim, apto para novas'utilizações. O papel retém a impressão
causada pelo sulco formado na argila, assim como a memó­
ria pré-consciente, que pode ser constantemente renovada. A
massa de argila, ao contrário, é continuamente reaproveitada.
Sobre ela se acumulam traços de diferentes trabalhos de escrita
que se sobrepõem, assim como no inconsciente. A atividade
interpretativa trabalha tanto com a temporalidade evanescente
da fala quanto com a temporalidade sedimentada nos traços
da letra. Na dupla incidência da metáfora, reencontramos a
chave bífida da escolha (real) e dos lugares (simbólicos) com­
primidas na tática da interpretação.
A ideia de que a interpretação deve capturar as “ressonân­
cias semânticas da palavra” (E: 1953a, p. 238) deveria se ajus­
tar, portanto, a um modo de produção de sentido que não é
nem inteiramente da ordem da escrita nem completamente da
natureza da fala. Em 1975, Lacan tenta especificar melhor sua
noção de sentido {Bedeutung), localizando-o no interior do
simbólico, mas apenas numa de suas regiões (1975d, p. 104).
O sentido estaria sujeito a algumas fronteiras; seu campo seria
entrecortado por outros domínios, ao modo de um litoral. A
morte, o sintoma, o gozo fálico [J(®)] e o objeto a seriam
quatro recortes no simbólico que limitariam, por sua exterio-
ridade, o campo do sentido. Com esse modelo, Lacan tenta
mostrar que a redução do sintoma não se dá pela expansão de
seu sentido, mas pela delimitação de suas fronteiras, ou seja,
pela formalização de pontos em que o sentido encontra aquilo
que o nega. Poderíamos formular uma pequena tipologia da
transformação e reversibilidade do sintoma:
—Pela introdução de um novo sentido, que é oposto ao sen­
tido recalcado, como em um contra-senso (lógica da opo­
sição). Por exemplo, quando Freud (1907b, p. 97) apon­
ta que as preocupações higiênicas dos neuróticos obses­
sivos referem-se ao sentimento de ser “sexualmente
sujo”, encontramos esta lógica da oposição;
- Pela remoção de um sentido consolidado, pela mudan­

178
ça de aspectos formais, como no caso do nao-senso (non
sense). Por exemplo, Freud (1918b) afirma ao Homem
dos Lobos .que a “Espe”, presente em seu sonho, nao é
um problema de tradução (pouco domínio da língua
alemã em um paciente russo) mas uma referência à mu­
tilação de si mesmo. O som Espe pode ser lido como as
iniciais S.P. (Serguei Pankejeff, o nome do Homem dos
Lobos). Aqui Freud está invertendo o princípio da escu­
ta com o princípio da leitura;
- Pela confrontação da falta de sentido (Bedeutung) com
os limites do sentido (Siri). No sonho da injeção de
Irma, Freud vê a fórmula da trimetilamina em caracteres
espessos. Ela alude ao ingrediente recalcado da sexuali­
dade (oposição). Ela indica também os grupos de três
pessoas que insistem no sonho, na medida em que a fór­
mula indica três átomos de carbono (inversão entre lei­
tura e escuta) (1900a, p. 118). Mas considerando a tri­
metilamina como um componente químico da sexuali­
dade (Bedeutung) e como um componente social das re­
lações humanas (Siri), é uma maneira de colocar a con­
tradição ou a falta de sentido (ab-sense) da sexualidade.
Voltamos a 1953 e à ideia de que a interpretação deve captar
as ressonâncias semânticas da palavra. Para ilustrar essas resso­
nâncias, Lacan faz referência ao termo indiano dvahni. O termo
não procede da teoria da interpretação dada na Midrash ou na
patrística, mas de uma categoria homóloga na retórica indiana.
Dumal, um dissidente do surrealismo, publica, em 1938, um
texto sobre a poética indiana em que se acentua o papel das
ressonâncias semânticas da palavra. Dumal divide os sentidos
possíveis da poética indiana em três: (a) o sentido literal (que se
obtém, por exemplo, num dicionário); (b) o sentido figurado
ou metafórico (a conotação); e (c) o sentido sugerido.
As duas primeiras categorias mantêm uma relativa proxi­
midade com a hermenêutica de Orígenes. No caso do sentido
sugerido, trata-se de algo irredutível ao código, “...é algo que

179
depende das circunstancias; ocorre num lugar e momento es­
pecífico”. O sentido slugerido implica um plus de sentido, um
“a mais de sentido” que os indianos chamam de dvhani. Trata-
se de uma forma de sentido que depende do tempo de sua
enunciação. E performativo, e não pode ser retido para além
de seu acontecimento. Contudo, há técnicas de escrita que
permitem saber que, em dado momento, ocorreu um dvhani,
sem que se saiba de que forma e por quais meios.
O interesse inicial de Lacan pela retórica indiana encontra-
se em consonância com seus desenvolvimentos posteriores em
tomo da escrita chinesa. Normalmente este interesse é enten­
dido no quadro do aprofundamento da noção de linguagem
em Lacan (SXIX: 1971-72b), que o leva a reconhecer, dentro
da linguagem, uma autonomia relativa entre os sistemas de
escrita e os sistemas de fala. Certas línguas orientais se prestam
facilmente para o exame deste tema uma vez que em muitas
delas não há correlato direto entre o escrito e o falado. Contu­
do pelos textos que Lacan adota por referência é possível que
seu interesse inclua ainda a procura de um modelo alternativo
para pensar a ação e a estratégia. A tradição ocidental de refle­
xão sobre a ação, no contexto da guerra e da política, no qual a
noção de estratégia se desenvolveu enfatizou, desde Aristóteles
até Clausewitz (1996) um pensamento por modelos. Uma ci­
ência que se expressaria em uma espécie de geometria do mo­
vimento entre eidos e telos da ação (Jullien, 1994, p. 13). Isso
implicou uma dominação da tática pela estratégia e um méto­
do baseado na probabilidade média de casos análogos. A teoria
da estratégia chinesa deriva de um contexto diferente da fala
de uma pessoa dirigida aos muitos e indeterminados membros
da pólis, reunidos pela situação de deliberação. Ela nasce do
discurso pessoal dirigido ao imperador de quem se quer obter
benefícios e estabelecer influência. Daí que suas noções funda­
mentais sejam as de situação e configuração. Deixar a situação
agir em seu favor, esta seria uma síntese da estratégia retóri­
ca chinesa. A planificação cede lugar à avaliação do potencial

I 180
de configurações de uma situação. A soberania do espaço é
substituída pela primazia do tempo. A melhor imagem para
entender a noçãq de situação nao é a do lugar ou da posição,
mas a da água, que se movimenta e se conforma às superfícies
pelas quais passa. Daí a importância de detectar o antagonis­
mo antes mesmo que ele tome forma, de tal maneira que a
batalha esteja decidida antes mesmo de ser iniciada (Ibid., p.
165). Em outras palavras, é uma estratégia pensada para fazer
o outro agir, para incluí-lo em uma situação, para induzi-lo a
uma determinada disposição:

... é um tratado de anti-retórica: em vez de ensinar a per­


suadir o outro fazendo-o ver a justeza, ou pelo menos o
interesse de nosso conselho, ele ensina a influenciárlo de
tal maneira que, antes de qualquer conselho, ele seja levado
espontaneamente a seguir nossa intenção. (Ibid., p. 185)

É uma retórica da indução de reações, nao do cálculo de


ações. Não é uma retórica dirigida àquele que fala como o
agente de um discurso, mas da incitação ao dizer do outro e
da interrogação necessária para levar o outro a dizer a verdade.
Este manejo de contrariedades, cujo fim revela ao outro sua
própria situação, é exercido por alguém que se apresenta como
um homem sem qualidades (Ibid., p. 220). Sua posição jamais
é a do senhor soberano, mas daquele que se conforma ao real
da situação. Encontramos assim na retórica chinesa um con­
tra exemplo para a retórica narrativa grega. Essa incursão nos
mostra que o problema da influência e do poder remanesce
em discursos diferentes dos que estamos habituados.
Torna-se crucial, então, distinguir esse tipo de sugestão, da
qual pouco se diz sobre seu conteúdo, da sugestão que é mera
captura metafórica num discurso ao qual o sujeito deve se
submeter. Muitas críticas ao tratamento psicanalítico (Spen-
ce, 1992) convergem para a acusação de que ele efetua uma
espécie de subjugação do analisante a uma narrativa mestre,
cujo conteúdo ou estrutura já estão pré-definidos e ao qual o

181
analisante deve se converter. A noção de narrativa mestre foi
desenvolvida por Jameson (1981), que extraiu da psicanálise a
importante distinção entre a narrativa e o ato de narrar, sendo
este uma forma simbólica de tocar e transformar o antago­
nismo social real. O argumento de Jameson se ampara numa
distinção importante entre a metáfora e a alegoria. Ou seja,
a prática de dominação ideológica exploraria duas estratégias
lingüísticas fundamentais: o uso e a compreensão da metáfora
como instrumento de uma influência psicológica (um contato
e uma influência entre mentes) e a combinação entre metáfo­
ras numa rede de alegorias.
Vimos que as teorias sobre a hierarquia do sentido e seus mé­
todos correlativos de interpretação estão abertamente conecta­
das com a sustentação e o exercício do poder. Vimos também
que tais concepções contêm estratégias para articular o dis­
curso oral ao escrito de acordo com fins políticos. A questão é
saber se a psicanálise, como prática que envolve aspectos retó­
ricos e como teoria sobre a produção do sentido, não estaria às
voltas com uma estratégia similar. Nossa análise da noção de
metáfora afasta a primeira objeção, mas isso não evita a hipó­
tese de que a psicanálise estaria, em termos discursivos, imersa
numa espécie de teologia negativa, cuja alegoria fundamental
reside na perda e na queda do sentido (Dunker, 2006a).
A teologia negativa, teologia apofática ou Via Negativa
tenta descrever Deus pela negação, falar de Deus apenas no
escopo do que não pode ser dito. A tradição apofática tem sido
aproximada de várias formas de misticismo, especialmente fo­
cados na experiência individual, espontânea ou cultivada da
transcendência. Historicamente a tradição apofática (grega ou
oriental) floresce como oposição às formas institucionalizadas
da experiência, da vida e do discurso religioso. A teologia ne­
gativa enfatiza que Deus é inefável e rejeita particularmente o
próprio discurso teológico como via de produção desta expe­
riência (Pondé, 2003). Lacan parecia nutrir uma simpatia por
esta tradição ao qual se refere por meio de inúmeros de seus

182
representantes: Jacob Boheme, Angelus Silésios, as místicas do
século XVI, São Juan da Cruz, além da poesia de Donne.
Vejamos, então, como se destaca, a partir da Midrash, o
método alegórico e sua estratégia de produção de sentido. A
alegoria está no centro de um método de interpretação desen­
volvido por Filon de Alexandria (25 a.C. —50 d.C.). Essen­
cialmente, esse método visava extirpar, a partir de um saber
exterior ao texto, seus elementos percebidos como irracionais.
O método alegórico sustenta-se num tipo especial de impli­
cação lógica conhecida como implicação material ou impli­
cação filônica. Segundo Filon, uma proposição declarativa
(se... então) era perfeita se, e somente se, não começasse por
uma verdade e acabasse por uma falsidade. Ou seja, o valor de
verdade da conclusão dependia apenas dos valores de verda­
de das proposições, e não da relação lógica entre elas (Kneale
& Kneale, 1962, p. 133). Duas grandes aplicações históricas
deste método são conhecidas: aos textos épicos de Homero
e Hesíodo, injetando-lhes filosofia platônico-aristotélica, e à
cristologia, que fixou o sentido do texto bíblico, forçando o
Antigo Testamento de forma a fazê-lo confessar uma intenção
profética e antecipatória em relação ao do Novo Testamento.
Por exemplo, no poético livro do Antigo Testamento conhe­
cido como Cântico de Salomão há uma passagem na qual o rei
toma em suas mãos os dois seios de Sulamita. E uma cena do­
tada de alta carga de erotismo. Um dos motivos que permite
a inclusão desse texto no cânon cristão é a estratégia alegórica.
Para os praticantes do método alegórico, os seios de Sulami­
ta não são o que parecem. Sua comparação textual com dois
tenros cachos de uva não é suficiente para esconder a verdade:
os dois seios de Sulamita são, cada um, Jesus Cristo e a Santa
Igreja; ao tocá-los com suas mãos, Salomão.simboliza a unida­
de indissociável entre ambos. Ora, questões teológicas à parte,
o método alegórico procede exatamente como uma interpre­
tação que cria, retrospectivamente, as próprias condições para
sua posição de sentido.

183
Uma alegoria é ufna metáfora estável capaz de funcionar
como polo atrator e catalisador de outras metáforas —os ca­
chos de uva, no exemplo acima. A alegoria, mais do que a
metáfora em si, é o que se obtém quando se considera a metá:
fora como analogia produzida por um “contato entre mentes”,
como quer Perelman (E: 1961 a), ou como uma proporção
possível e qualquer entre dois signos, como querem os surre­
alistas. Chegamos, assim, a delinear uma forma de entendi­
mento da sugestão, importante para as práticas de influência
que encontramos como extensão psicoterapêutica das narrati­
vas de compromisso. E importante notar que Filon de Alexan­
dria desenvolveu sua concepção alegórica no quadro da Escola
dos Terapeutas, em Alexandria. E compreensível, ainda, que
ele tenha sido o primeiro a sistematizar o valor terapêutico da
leitura (biblioterapia).
A teoria nasal-cósmica de Fliess é exemplo do método ale­
górico. Fliess, que para alguns fora o analista de Freud, parte,
em sua teorização, de dois significados matriciais: as “substân­
cias” masculina e feminina, a partir das quais o universo se
organiza. O lugar originário dessas duas substâncias pode ser
condensado numa parte do corpo: o nariz. Desta forma, os
sangramentos nasais representam a menstruação, a congestão
nasal a gravidez e a excitação sexual, as duas narinas referem-
se a cada um dos sexos e assim por diante. Essa associação
referencial entre a menstruação e o nariz será a base para a
superinterpretação (Eco, 1993, pp. 27-52), cuja característi­
ca maior é não poder ser desmentida. Lemos essa disposição
paranóica não apenas em sua hiperinterpretação própria da
alegoria, mas também na resistência que dele emana a que algo
perca sentido. Um universo paranoico é, essencialmente, um
universo onde tudo possui sentido, onde não há espaço para o
não-sentido como subtração de sentido (ab-sense), que é o que
se introduziria pelo segundo modo de negação metafórico.
Curiosamente, este universo não é pacificado; pelo contrário,
ele está em permanente conflito.

184
Comparemos essa estratégia interpretativa a um fragmento
clínico analisado por Freud (1927e): o Glanz a u f die Nase,
brilho do nariz q.ue regia as escolhas amorosas de determinado
paciente. Ou seja, a escolha amorosa, algo habitualmente con-
flitivo e incerto, encontra-se estabilizada por um traço, certo
brilho específico no nariz de uma mulher que condicionava
e facultava sua escolha como objeto. Apesar de “brilho” apa­
rentemente ser uma boa descrição ao próprio paciente, isso
lhe parecia insuficiente. Ele poderia ter dito: “E um brilho
indescritível. Posso reconhecê-lo, mas não designá-lo. Con­
tudo, esta falta de saber não me perturba”. O problema se
resolve pela atenção ao equívoco metafórico: Glanz (“brilho”,
em alemão) substitui Glance (“olhar”, em inglês). O paciente
fora criado por uma babá inglesa, experiência de onde provi­
nha possivelmente este traço da economia pulsional do sujei­
to. Ocorre que esse brilho no nariz não é uma alegoria, como
constatamos no caso de Fliess. Ele é um traço da escrita da
pulsão; não expande o campo do sentido, mas o deflaciona,
organizando sua economia de gozo.
Temos aqui três operações envolvidas: (1) uma substitui­
ção entre línguas, (2) uma substituição entre significantes e
(3) uma substituição entre sistemas de escrita. Allouch (1994)
percebeu a importância da heterogeneidade entre a tradução,
a transcrição e a transliteração para a teoria da metáfora e,
consequentemente, para a prática da interpretação. A tradu­
ção opera na perspectiva da preservação do sentido entre lín­
guas diferentes. No caso da psicanálise, isso se exemplifica­
ria na ideia de traduzir o material manifesto, recuperando o
sentido latente. E este esquema interpretativo que permitiu
a Freud, no caso do Homem dos Ratos (1909d), explorar a
polissemia do significante Ratten, que, no desenrolar do tra­
tamento, foi traduzido por ratos (Raten), no sintoma fóbico,
mas também dívida (Ratten), na relação ao pai e, secundaria­
mente, por filhos (que são pequenos e agressivos como ratos) e
por excrementos (na língua da pulsão anal).

185
A transcrição supcfe variações na produção do sentido, le­
vando-se em conta diferentes modos expressivos de uma língua
ou suas condições de figurabilidade, notadamente da língua
falada para a escrita. Por exemplo, Raten e Ratten têm exata­
mente o mesmo som, mas implicam formas escritas diversas.
Freud utiliza o termo “transcrição” para se referir às diferentes
formas de associação e dissociação entre representação-palavra
e representaçao-coisa. Neste caso, há uma transcrição de traços
(Zug) por signos (Spur) e destes por marcas (Zeichen).
Outro exemplo: no artigo O Inconsciente (Freud, 1915e)
discute-se a incidência diferencial da expressão Augenverdrehen
—literalmente, “virador de olhos” e, no sentido metafórico,
“alguém que é muito sedutor”. Essa metáfora tem incidências
clínicas diversas. No caso da histeria, ela poderia engendrar
uma conversão ocular; no caso da psicose, uma sensação sub­
jetiva de reviramento nos olhos. Como se na segunda circuns­
tância não houvesse a transcrição do literal para o metafórico,
ou como se isso se desse sem perda de sentido. A alegoria mos­
tra, assim, desconhecer ou abolir a heterogeneidade entre fala
e escrita (enquanto sistemas diversos) na produção do sentido
e, consequentemente, a diferença entre tradução, transcrição
e transliteração.
A transliteração refere-se à passagem entre diferentes siste­
mas de escrita. Sabe-se que a maioria das línguas glossográfi-
cas, isto é, baseadas na representação da fala, podem admitir
variações conforme o princípio associativo, seja o morfema
(caso do chinês), um segmento da fala (como nas línguas se-
míticas), a sílaba (caso do Linear B) ou o fonema (caso da
maioria das línguas ocidentais). Estes exemplos servem para
ressaltar que não se deve confundir o grafema ou letra, deriva­
do de um sistema de escrita, com o significante, derivado de
um sistema composto por fala e língua (Sampson, 1996).
A ideia de que, na psicanálise, também se deve levar em
conta o modo de escuta transliterativo recebe forte apoio na
seguinte observação de Freud (1913j, p. 180):

186
Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos
são, principalmente, imagens visuais, e não palavras, ve­
remos que é ainda mais apropriado comparar os sonhos
a um sistema de escrita do que a uma linguagem. Na re­
alidade, a interpretação dos sonhos é totalmente análoga
ao deciframento de uma antiga escrita pictográfica, como
os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos, há certos ele­
mentos que não se destinam a ser interpretados (ou lidos,
segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ”de-
terminativos”, ou seja, estabelecer o significado de algum
outro elemento.

O procedimento transliterativo também se mostra em


Freud (1900a) quando este se detém sobre o sonho de Ale­
xandre, o Grande. O general macedônio sitiava a cidade de
Tiro e hesitava entre atacá-la ou nao. Neste momento, sonha
com um sátiro dançando sobre um escudo. A interpretação
dada pelos adivinhos realiza-se pela dissociação semântica de
“Sátiro” em “Sá-Tiro”, literalmente, “a cidade de Tiro é sua”.
O significante Sátiro, ser mitológico metade homem meta­
de bode, vê-se substituído, tanto por tradução e transcrição
(outro arranjo significante) quanto por transliteração (outro
arranjo entre letras).
A diferença que apresentamos nos permite retomar o tema
do conflito. Vimos, na seção dedicada à inventio, que Freud
faz distinção entre chistes de palavra e chistes de pensamen­
to. Na seção anteriormente dedicada à dispositio, examinamos
como a estrutura lógica da sessão analítica passa pela distinção
entre um juízo e um ato. Quando abordamos a elocutio, fomos
conduzidos à importância da heterogeneidade entre fala e es­
crita. Em cada um desses desenvolvimentos, somos levados a
explorar dois tipos de paradoxos distintos que, porém, se apre­
sentavam misturados na prática da interpretação: o paradoxo
semântico e o paradoxo lógico.
Este último pertence, por excelência, à retórica, como mos­
tra um pequeno apólogo das origens dessa disciplina. Nele,

187
Tísias viaja ao sul da Jtália para ter aulas de retórica com Cár-
pax. Depois de algum tempo, o mestre, considerando o ensi­
namento concluído, pede a Tísias um pagamento. O discípulo
responde: “Se, de fato, me tornei um retórico, sou capaz de
convencê-lo de que nao devo pagar; se, no entanto, não con­
seguir persuadi-lo, isso mostra que não sou um bom retórico
e, portanto, não devo pagá-lo”.
Onde o axiomático procura a solução para um problema, o
retórico se contenta com um efeito de linguagem que colapsa
a alternativa de escolba dada por um discurso. No apólogo em
questão, as conclusões do ensinamento e do pagamento são
simultaneamente negadas e afirmadas. Se Tísias pagasse pelo
ensinamento recebido, negaria tê-lo concluído. No entanto, a
única forma de concluí-lo é provar que ele não deve ser pago.
Trata-se de um paradoxo semântico porque sua chave é o en­
timema que define o retórico, irrestritamente, como “aquele
capaz de persuadir o outro”.
A figura retórica que resume a ideia de paradoxo semântico
é o oxímoro. Chama-se oxímoro a uma oposição entre um ter­
mo e a qualificação que lhe é dada, ou entre duas qualidades
atribuídas a um mesmo termo, ou entre as simultâneas nega­
ção e asserção de um mesmo fato ou conceito (Plebe, 1978).
O tó oxímoron do grego refere-se, literalmente, ao “agudamen­
te louco”. O oxímoro é a essência da contradição semântica,
cujas variantes são o paradoxo e a antítese. Ele é a realização
semântica da coincidência entre os opostos.
Um aspecto do caso do Homem dos Ratos se presta a de­
monstrar como a interpretação analítica é tributária da figura
do oxímoro. Trata-se de uma fórmula protetora à qual o pa­
ciente recorria para livrar-se de certos pensamentos libidinosos
e onanistas que lhe ocorriam em relação a determinada dama.
Para impedir-se de pensá-los, ele proferia a si mesmo a palavra
glejisam en, neologismo que construíra da seguinte forma:
“g” —Gisela (a dama cobiçada)
“gl” —glücklich (feliz)

188
“e” —Ernst Lanzer (o Homem dos Ratos)
“ji” —jetz t und im m er (agora e para sempre)
“s” —letra cujo sentido é ignorado pelo paciente
“amen” - amen (que assim seja)
A fórmula protetora remetia ao próprio nome da dama,
transcrevendo cada conjunto de fonemas por um significante
e traduzindo o arranjo significante numa significação prote­
tora. A negação do desejo onanista. A significação do con­
junto seria, então: “Gisela e Ernst felizes agora e para sempre,
amén”. É neste ponto que a interpretação proposta por Freud
subverte o sentido da frase, ao escutar em glejisam en a termi­
nação samen, literalmente, “sêmen”. Para tanto, Freud levou
em conta justamente a letra sem sentido (s), cujo significado
estava desconhecido para o sujeito numa operação de transli-
teração. A fórmula protetora reunia justamente o que visava
evitar: a união entre Gisela e sêmen pelo ato masturbatório.
Examinando o percurso retórico da fórmula protetora, vemos
que ele passa de uma antítese a um oxímoro. Uma antítese
corresponde a duas afirmações contrárias que não podem ser
verdadeiras ao mesmo tempo. O oxímoro reúne esta contrarie­
dade numa formação autocontraditória. Essa diferença pode
ser elucidada pelo fato de que a antítese supõe um sistema de
fala, cuja forma elementar é o juízo ou a sentença; o oxímoro
precisa apenas de um sistema de escrita, cuja forma elementar
é o traço ou o elemento. Por exemplo, se digo “A é um círcu­
lo” e depois afirmo que “A é um quadrado”, há antítese entre
as proposições; no entanto, se considero a existência de um
círculo quadrado, há um oxímoro. Ambos engendram formas
de sentido, mas em fronteiras distintas do campo simbólico.
A interpretação em psicanálise pode ser pensada em fun­
ção de seus aspectos retóricos. Coligimos evidências diretas
e indiretas dessa aproximação na história da retórica em seus
diferentes âmbitos. Por mais que procuremos nos aspectos for­
mais da retórica algo que prescreva e justifique seu uso, não
encontraremos mais do que uma técnica de linguagem. Por

189
mais complexa ou abrangente que seja a relação entre psicanáli­
se e retórica, ela não deixará de ser uma afinidade técnica, cujos
fins parecem ultrapassar seu próprio escopo. Neste sentido, a
retórica parece ser uma espécie de habilidade necessária, mas
não suficiente para a prática psicanalítica. Ela ilustra com clare­
za a combinação entre a dimensão clínica e psicoterapêutica da
psicanálise. No entanto, para que a retórica se configure desta
maneira foi necessário excluir, mesmo que metodologicamente,
uma série de problemas insistentes na formação destas duas prá­
ticas: o exercício da dúvida crítica, presente no contra-exemplo
representado por Quesalid, a reflexão sobre os fundamentos do
poder (presente na tragédia); a ontologia do retorno presente
em Empédocles e a não menos importante dimensão da verda­
de presente nas narrativas de recomposição. Sem estes elementos
não se pode caracterizar inteiramente a prática da psicanálise.
***

Examinamos alguns aspectos específicos da epopeia homé-


rica, dos textos judaico-cristãos e do mito em modos de orga­
nização social holistas. Encontramos um conjunto de estraté­
gias narrativas baseadas no compromisso e na recomposição.
Vimos também que o nascimento da tragédia representa uma
estratégia inversa, ainda que de linhagem psicoterapêutica. Ela
adiciona à estratégia narrativa da recomposição a centralidade
e a extensão do conflito. Aqui o conflito não envolve mais uma
separação entre mundos, mas o reconhecimento e a tematiza-
ção do conflito na imanência desse mundo em sua atualidade
jurídica, social e epistêmica. Daí as táticas de reequilibração
integrativas ou desintegrativas que se associam à catharsis. Esse
novo tipo de relação entre lei e verdade cria uma superfície de
problemas em tomo da unificação entre saber, poder e desejar.
Sugerimos, no entanto, que a absorção da experiência propria­
mente teatral e estética da tragédia, ao universo psicanalítico
poderia se efetuar por intermédio da noção de catharsis negativa.
Em Empédocles e Hipócrates localizamos a matriz de ou­
tra superfície, a superfície clínica. Ela se caracteriza principal­
mente pela autonomizaçao de um regime causai e pela pro-
blematizaçao da autoridade no processo de cura. A retórica
se enquadra na extensão desse projeto clínico, oferecendo um
repertório de táticas de influência e persuasão que, mesmo ori­
ginadas nas terapias narrativas, desliga a posição de seu agente
das instâncias de legitimação de poderes tradicionais. E um
novo tipo de relação com a linguagem que condiciona proble­
mas comuns e afins ao campo da interpretação.
Acentuando uma diferença, que vimos ser intrincada em
cada caso, podemos dizer que tanto a superfície psicoterapêu­
tica quanto a superfície clínica encontram uma dificuldade
sistemática em conjugar a excelência simbólica de seus agentes
com a eficácia simbólica de suas práticas. Se o tema da excelên­
cia nos leva à problematização das formas de poder, o âmbito
da eficácia nos leva ao questionamento da exclusão do estatuto
da verdade.
Que exista uma afinidade tática da psicanálise com a retó­
rica ou com o esboço clínico de Empédocles, e que exista uma
afinidade estratégica com as terapias de compromisso, discu­
tível em extensão e qualidade para cada caso, isso não garante
nem prescreve uma afinidade política da psicanálise com cada
uma dessas matrizes constitutivas. Argumentar que a psicaná­
lise guarda proximidade com o dispositivo médico, com a ex­
periência trágica, com a retórica ou com a relação dialética de
inspiração socrática (Cottet, 1989) apenas situa elementos no
plano do que Foucault (1969) chamou de modalidades enun-
ciativas, conceitos e estratégias. Esses elementos não são sufi­
cientes para descrever a política de um discurso. Para caracte­
rizar uma formação discursiva é preciso especificar um objeto
e mostrar como ele obedece a regras de composição específicas
e regulares, mesmo que heterogêneas entre si. Veremos no pró­
ximo capítulo como os elementos que aparecem negados, ou
denegados, na heterogeneidade das estratégias clínicas e psi-

191
coterapêuticas descritas até aqui, vem a constituir uma nova
prática com a conseqüente redefinição de seu objeto.

192
C A P ÍT U L O 5

A C U R A CO M O C U ID A D O D E SI

Abandona a tua dor, antes de ser abandonado


por ela.
Sêneca

5.1. CURASUI

URA, AO ATRAVESSAR UM RIO, VIU UMA MASSA DE ARGILA E,

C mergulhada em seus pensamentos, apanhou-a e come­


çou a modelar a figura. Quando deliberava sobre o que fize­
ra, Júpiter apareceu. Cura pediu que ele lhe desse uma alma
à figura que modelara, e facilmente conseguiu o quepediu.
ComoCura quisera de si própria, dar um nome à figura que
modelara, Júpiter proibiu e prescreveu que fosse dado o seu.
Enquanto Cura e Júpiter discutiam, Terra apareceu e quis que
fosse dado o seu nome a quem ela fornecera o corpo. Saturno
foi escolhido como árbitro. E este equitativamente assim jul­
gou a questão:

Tu Júpiter, porque lhe deste a alma, tu a terás depois da


morte. E tu, Terra, porque lhe deste este corpo, tu o rece-
berás após a morte. Todavia, porque foi Cura quem pri­
meiramente modelou, que ela a tenha, enquanto a figura
viver. Mas, uma^vez que existe entre vós uma controvérsia
sobre o nome, que ela seja chamada Homem, porque feita
de húmus’. (Rocha, 2000 [citação modificada])

A fábula acima foi compilada pelo poeta latino Higino


(50-139 d.C.), no contexto da elaboração de um mito grego.
Zeferino Rocha, que traduziu este trecho, escolheu o termo
angústia para traduzir a expressão latina cura. Isso se justifica
no contexto do comentário de Heidegger para quem angústia,
cuidado e cura reúnem-se em uma disposição ou abertura pri­
vilegiada para o ser (.Dasein). Cura é de fato uma palavra que
admite extensa conotação em latim. Em sentido próprio de­
signa cuidado, mas há tantas atividades, disposições e estados
da alma envolvidos no cuidado que esta parece umá daquelas
expressões que sabemos empregar melhor do que definir. Na
língua administrativa cura indica encargo, incumbência ou ta­
refa. No vocabulário militar oü doméstico designa o guarda­
dor, vigia ou guarda. Na língua médica indica, como já vimos,
tratamento ou cura. Na língua jurídica é a causa ou objeto de
preocupação e inquietação. Também na linguagem amorosa
designa o objeto amado e por extensão a própria atividade de
amar. Usa-se também cura em latim para designar um livro ou
uma obra literária. Um levantamento mais sistemático destas
conotações da cura permite agrupar seu sentido em quatro
dimensões (Muchail, 2007, pp. 26-27):
(1) atos de conhecim ento regidos pelo olhar —nesta acepção
cuidar liga-se ao olhar, por exemplo, quando dizemos “olhar a
casa” ou “olhar as crianças”. Cuidar implica um determinado
estado de atenção, concentrado e disperso. Daí a imagem de
alguém que volta o olhar sobre si, como alguém que olha e
se preocupa com sua própria casa. Daqui procedem tanto as
técnicas cristas do auto-exame e da auto-observação quanto
os métodos psicológicos baseados na introspecção. É preciso
mencionar ainda os diferentes empreendimentos filosóficos
baseados na auto-reflexão, na meditação e na especulação;

194
(2) m ovim ento não só do olhar, mas da existência p or inteira
—aqui encontramos o sentido da cura como recolhimento, re­
tirada ou orientação para si. Trata-se da acepção forte de con­
versão (refluir sobre si) como retorno a um lugar próprio. Daí
o sentido heideggeriano da cura como temporalidade da con­
sistência e da inconsistência de si-mesmo (Heidegger, 1927,
p. 127). Esta ek-stase das diferentes temporalidades de si, na
disposição, ná decisão, na decadência, no poder-ser reúnem-
se na cura como abertura para a existência como finitude. Na
abertura do ser como ser-para-a-morte;
(3) atividades ou condutas particulares —aqui a cura designa
um processo de tratamento da alma que pode ter uma conota­
ção médica, como na ideia de que uma escola de filosofia é um
“hospital da alma” ou na metáfora jurídica de “fazer valer seus
direitos”, “liberar-se”, “desobrigar-se”, e ainda na metáfora re­
ligiosa de “cultivar-se”, ou “retomar o respeito por si”. E nesta
acepção que encontramos as diferentes combinações entre as
estratégias clínicas e táticas psicoterapêuticas que estamos des­
crevendo neste livro. Sua matriz é a filosofia helenística desen­
volvida entre o apogeu do pensamento grego e a ascensão do
império romano;
(4) tipo de relação perm anente consigo —neste caso incluem-
se tanto a noção de soberania, tais como “ser senhor de si”
quanto sensações consigo e percepções de si tais como “sentir
prazer consigo” ou “alegrar-se consigo”. O herdeiro mais claro
desta acepção da cura é Nietszche. Entendendo que a arte da
cura (Heilkunst) passa pelo diagnóstico de sua época, domina­
da por esta patologia chamada ressentimento, Nietszche fará
a crítica do tratamento moral baseado na assepsia da vontade
e no retraimento das causas do sofrer na forma da culpa e
da vítima. Tanto pela valorização da força terapêutica da arte
quanto pela reformulação da noção de soberania, como von­
tade de potência e a m orfa ti (amor ao destino), ele é um bom
representante desta conotação política da ideia de cura (Cha­
ves, 2007, pp. 111-124).
Vimos que tanto ajtragédia quanto a retórica e ainda a clí­
nica de Empédocles ou Hipócrates situam-se como formações
intermediárias entre o regime do mito (anterior ao século VIII
a.C.) e a nascente filosofia socrático-platônica (posterior ao sé­
culo V a.C.). Após o grande apogeu da academia de Platão e do
liceu de Aristóteles, vemos surgir, no período de transição para
o nascente cristianismo, uma série de escolas próprias ao mun­
do helênico. Essa época de disseminação da cultura grega e de
formação do império romano assistiu à aparição de inúmeros
movimentos para os quais a filosofia não se situava, privilegia-
damente, como a transmissão de um saber teórico, mas como
uma prática de vida (Hadot, 1995). Durante muito tempo a
filosofia helenística foi considerada um capítulo menor da his­
tória da filosofia. Entendida genericamente como momento
de recuo das pretensões políticas e epistêmicas representadas
por Platão e Aristóteles. Seu caráter menor se justificaria ainda
pela interiorização da reflexão em pequenas escolas cuja maior
preocupação seria praticar uma boa forma de vida. Reputava-
se aos pensadores deste momento a falta de originalidade, o
dogmatismo e a demasiada dependência para com os mestres
fundadores de escolas (Erler & Graeser, 2005, p. 9). A partir
da década de 1970 ocorre um movimento de retorno a estes
pensadores e reavaliação crítica de suas contribuições.
Este movimento de retomada da filosofia helenística talvez
tenha relação com as curiosas semelhanças entre o solo sócio
cultural em que esta se desenvolveu e a nossa própria época.
Tratava-se de um período de grande mistura entre populações
e de intenso cosmopolitismo. A perda da independência das
cidades gregas tendia a dissociar o homem do cidadão, o filo­
sófico do político, a teoria da prática. Pululam projetos reli­
giosos e técnicas de vida que procuram substituir a perda da
liberdade exterior pelo incremento da salvação interior. Havia
um crescente sentimento de nostalgia e decadência diante do
aprofundamento da disciplina jurídico militar que dá luz ao
Império Romano. Paralelamente emerge uma unidade comer­

196
ciai e econômica cuja extensão era sem precedentes. Diferen­
te das formas de dominação anteriores, a dominação romana
interessava-se pela transformação dos subjulgados, pelo assu-
jeitamento e eventual assimilação de suas culturas e línguas.
Isso explica a formação do complexo sistema de controle e
administração em torno do direito romano. O funcionamen­
to do Império, com sua lógica interna baseada na expansão
indeterminada de fronteiras e aquisição de escravos estimula a
cultura da sobrevivência. Nela a estetização da vida e a etifica­
ção da política tornam-se dispositivos se segurança e refúgio.
Esta desconfiguração da filosofia, que contribuiu para o des­
crédito do pensamento helenístico, pode ser atribuída ao deslo­
camento da atividade filosófica como atividade contemplativa.
Verifica-se entre os helênicos uma desmontagem da metáfora
ótica que domina o conhecer desde Platão. Para este conhecer
é olhar, lembrar e reconhecer, mas olhar no sentido de olhar
com a razão (logos), com a inteligência (nous) ou com os olhos
do espírito. É uma metáfora que se apoia em sua expressão no
mito de Er, ou do passeio das almas. Para os helênicos este olhar,
sem deixar de ser o olhar da alma, é ainda um olhar empíri­
co, voltado para experiências materiais. O problema ontológi-
co predominante entre os helênicos não é o da distinção entre
alma e corpo. Com a exceção relevante dos neoplatônicos, para
a maioria dos helênicos tratava-se de uma concepção materialis­
ta e de uma ontologia monista. Tudo o que existe é corpo, não
obstante há ainda os incorporais (OE:1970e). Os incorporais
não são fenômenos ideais, mas aspectos inusitados do funcio­
namento da linguagem, detectados primeiramente na filosofia
megárica e estoica.
Portanto a forma de vida contemplativa era apenas uma en­
tre as formas de vida das quais o filósofo deveria se ocupar. Sua
oposição com a vida ativa (vita activa), marcada pela ocupação,
pelo desassossego e pela inquietude, não é imediata. É só após
um conflito entre discursos que a experiência da liberdade se
localizou na forma de vida teorética (Arendt, 1958, pp. 20-26).

197
O formato discursivo das práticas envolvidas na vida ativa
não se caracterizava sempre pelo discurso sobre um objeto es­
pecífico de conhecimento, mas, às vezes, por um discurso com
um sujeito que aspira uma transformação em sua vida. Essa
prática que encontramos entre os estoicos, epicuristas, céticos
e cínicos, com sistematizações diferentes e dispersas entre si,
orienta-se para as relações entre o sujeito e a verdade. Não se
trata da verdade sobre o céu e as estrelas, sobre a ordem do
cosmos ou mesmo sobre a ética ou a religião em geral. O que
está em causa aqui são condições pelas quais um sujeito pode
enunciar e praticar uma forma de vida conforme a verdade
que será produzida sobre si no espaço de sua relação com o
outro. E o que Foucault (1981-82) examinou através da ex­
pressão “cuidado de si” - epimeleia beatoü, para os gregos, ou
cura sui, para os latinos.
Muitas vezes se tem evocado o preceito délfico do conhe­
ce-te a ti mesmo {gnôthi seauton) como máxima da situação
terapêutica. Essa máxima, longe de apontar para uma busca
interiorizada de si mesmo, era, originalmente, uma recomen­
dação de prudência com tripla significação: evitar o excesso
{hybris), não se comprometer além do que se pode e examinar
bem as questões propostas ao oráculo e à vida. Esse impera­
tivo de prudência (sophrosine) tem como pressuposto, na filo­
sofia socrática, uma recomendação mais genérica: cuida de ti
mesmo. Ou seja, antes de conhecer-se, é preciso cuidar de si,
ocupar-se consigo. Cuidar ou ocupar correspondem ao verbo
therapeúein, de onde vem terapia e significa tanto os cuidados
médicos sobre a alma quanto o serviço que alguém presta a
seu mestre, o cuidado que se tem com a casa e ainda o culto
que se faz a uma divindade. Ao contrário da terapêutica como
tratamento, que se refere a uma ação descontínua no tempo,
exercida sempre que necessário e segundo uma demanda es­
pecífica, o cuidado exprime uma atitude de atenção contínua
consigo, uma orientação permanente. Isso condiciona as ações
pelas quais nos modificamos, nos transformamos e nos trans­

198
figuramos (Ibid., p. 15) para além de dificuldades pontuais
dos encargos específicos da vida ativa. O cuidado de si toma
por objeto o sujeito, mas seu fim é a cidade, as relações sociais
e cotidianas com os outros. Aqui há, ainda, uma relação de
precedência: cuidar de si é condição para cuidar dos outros:

... não procurar estabelecer o que se é a partir do sistema


de direitos e obrigações, que nos diferenciam e nos situam
em relação aos outros, mas interrogar-se sobre o que se é
para daí inferir o que convém fazer, no geral ou numa ou
outra circunstância, mas sempre segundo as funções que
se tem que exercer. (Epicteto apud Ibid., p. 563)

A recomendação de Epicteto nos mostra esta espécie de


inversão de perspectiva presente no cuidado de si. Não se trata
do sujeito como uma instância retirada ou isolada do mundo,
mas de uma ordenação que estabelece um ponto de partida
para a ação ética, segundo suas funções, mas não inferidas do
sistema de direitos e obrigações. É preciso separar o cuidado de
si da noção mais genérica de cuidado amoroso (caritas), de­
senvolvida no interior do cristianismo. Esta última forma de
cuidado implica um tipo de auto-observação cujo objetivo é
decifrar a si mesmo. Ela emerge nos tratados político-teológi-
cos como imagem fundamental para designar a analogia entre
o governo dos homens por Deus e a caritas, aqui definitiva­
mente uma forma de amor pastoral, que o governante deve
ter com relação a seus súditos (Campanella, 1973). Assim a
caritas enfatiza o conhecer-se para dominar-se e o ser conhe­
cido para ser cuidado, terminando numa renúncia a si. A es­
pecificidade do cuidar helênico é inteiramente diversa, senão
oposta. Ela se torna difícil de precisar quando se considera que
seu horizonte é a verdade na esfera do ser do sujeito em sua
imanência e atualidade, não na esfera do sujeito em geral e em
sua transcendência. Trata-se do cuidado amoroso (eros) e do
cuidado entre iguais (ágape).

199
O argumento dos,;helênicos é que o cuidado de si nao é
uma atividade concernente ao mundo do trabalho; nao en­
volve a produção de um objeto nem as técnicas inerentes a
ele. Também não é, necessariamente, atividade estética ou re­
ligiosa, e muito menos atividade contemplativa ou teórica, se
bem que possa incluí-las, desde que sejam consideradas como
atividades no mundo. Há quatro esferas que levam à proble-
matização crítica do universo moral grego, quatro domínios
nos quais a liberdade seria assim abordada: a saúde do corpo, a
relação com a esposa, a relação com o mesmo sexo e a relação
com o acesso à verdade (Fonseca, 2003, p. 105).
Historicamente, há três momentos na prática do cuida­
do de si: (1) o momento socrático-platônico, cuja referência
maior é o diálogo Alcibíades, atribuído a Platão (V. a.C.); (2)
o período helênico, em que o cuidado de si se expande numa
cultura de si, à época da Roma imperial (II a.C. a III d.C.); e,
finalmente, (3) os séculos IV e V d.C., nos quais tal prática é
absorvida ao asceticismo cristão que termina por submeter o
cuidado de si à primazia do conhecimento de si.
No diálogo platônico encontramos o personagem de Alci­
bíades, o mesmo que se encantara por Sócrates em O Banquete
(Platão, 1973) e que Lacan (SVIII: 1960-61) usa para reler a
estrutura da transferência em termos do amor ao saber e ao
objeto que o indicia (agalma). Todavia, no diálogo intitula­
do Alcibíades (Platão, 2007) a situação é outra. Aqui o jovem
guerreiro envelheceu, ingressando na idade crítica em que
abandona os amores^de juventude, ambicionando agora a vida
política. Alcibíades não está interessado apenas em usufruir
suas relações e viver pacatamente em família ou entre outros
cidadãos. Ele quer transformar seu status numa ação política
de governo sobre outros. Diante desta demanda, Sócrates lhe
responde que o exercício do poder deve ser antecedido pelo
cuidado de si. Sem a experiência do cuidado de si, na qual Al­
cibíades se mostra ignorante, o poder se extrapola em excesso
ou se corrompe em tirania. Antes de tudo é preciso tratar esta

200
demanda, e a estrutura desta demanda, como de toda deman­
da inconsciente é: “eu te peço que recuse o que te ofereço,
porque não é isso”. Em acordo com isso a resposta de Sócra­
tes não é uma simples negativa, mas uma revelação de que
Alcebíades não sabe o que pede. Nao que falte a Alcibíades
formação {paideia), experiência política ou virtude (sabedoria,
justiça, temperança e coragem); falta o cuidado de si. Como
cuidar dos outros, no sentido de ser soberano de uma cidade,
sem antes saber como cuidar de si? Alcebíades é levado pela
ironia socrática a reconhecer sua ignorância face à questão: o
que é isso, o próprio eu, do qual ele deve se ocupar? É a ig­
norância, reposta ao longo do percurso como uma espécie de
paixão renitente, que guia o cuidado de si. Trata-se de um di­
álogo aporético. Nele, não se elucida propriamente a questão
levantada, não sendo possível, portanto, uma medida exata do
que significaria o cuidado de si para Platão. Certo é que ele
inaugura um longo trajeto de absorção, redução e dominação
do cuidado de si pelo conhecimento de si. O movimento con­
tingente aqui é a passagem da questão ética (como cuidar de
si?) para a questão epistêmica (o que é o eu?).
O diálogo platônico começa pela observação de Sócrates.
Este estivera acompanhando Alcibíades desde sua juventu­
de. Notara seu orgulho, sua vaidade, sua atitude diante dos
amigos e, sobretudo, a vaidade que toma conta de Alcibíades
tendo em vista suas vantagens. Daí a promessa socrática: “(...)
espero provar-te que te sou indispensável, e de tal forma in­
dispensável que nem o teu tutor, nem teus parentes, nem nin­
guém mais encontra-se em condições de entregar-te em mãos
o poder que tanto ambicionas” (Ibid., p. 236).
A prática maiêutica começa pela indagação da origem do
saber sobre a guerra, a paz e os demais assuntos de estado e
pelo reconhecimento de que é necessário adquirir a excelên­
cia (arete) neste campo. Neste assunto domina a controvér­
sia. Como aprender a distinguir o justo do injusto, o justo
do vantajoso, o bom do belo, se nesta matéria não sabemos

201
o que aprendemos por nós mesmos e o que nos foi ensinado
por outrem? Sócrates ^afirma tratar-se de um erro relativo à
vida prática, onde, incorremos na ignorância de presumirmos
saber o que nao sabemos. Daí a primeira interpretação: Al-
cibíades atira-se rumo à política como parte de uma doença:
a ignorância de si (Ibid., p. 258). E por isso também que ele
não consegue transmitir seu saber político. Ou seja, falta-lhe
preparo, falta-lhe uma experiência propedêutica que o habi­
lite a governar os outros. Assim também ele desfaz dos seus
oponentes persas ou lacedomônios, por pura ignorância de si:
“(...) não virias a tomar mais cuidado consigo mesmo, no caso
de teres medo deles e de os considerares adversários temíveis,
do que se pensasse o contrário?” (Ibid., p. 261).
E contra este destemor no qual se ampara a ignorância que
Sócrates lembra pela primeira vez a divisa de Delfos: Conhece-te
a ti mesmo (Ibid., p. 266). Ela não é, contudo, o fim necessário
para a tarefa, mas apenas o lema maior pelo qual nos lembramos
da importância de aperfeiçoar-se. Aqui são chamadas as artes
com as quais a arte de governar pode ser comparada e distin-
guida: a arte do remador, do piloto e do marinheiro. A elas se
acrescem a arte do médico, da medida, do comércio e da con­
córdia. Termina-se o elenco com a evocação dos laços familiares
e de amizade, no quais pratica-se o governo dos outros. O que
todas estas práticas tem em comum e ao mesmo tempo o que
está negado na prática maior na qual todas se incluem?

Então responde: que significa a expressão cuidar de si


mesmo? Pois pode muito bem dar-se que não estejamos
cuidando de nós, quando imaginamos fazê-lo. Quando
é que o homem cuida de si mesmo? Ao cuidar de seus
negócios cuidará de si mesmo? (Ibid., p. 273)

Cuidar ocorre quanto tratamos algo de tal forma que o dei­


xamos melhor do que o encontramos. Porém cuidar de si não
eqüivale a cuidar de algo que nos pertence. Aqui o cuidado
torna-se um conceito crítico da noção de posse e pertencimen-

202
to, pois a arte que se ocupa conosco não é a mesma que se ocupa
com o que nos p erten ce (Ibid., p. 275). Vemos aqui a primeira
sinonímia socrátiça: cuidar é fazer, cuidar é ocupar-se com.

Não é a arte por meio da qual deixamos melhor qualquer


coisa que nos pertença, mas a que nos deixa melhores a nós
mesmo. (...) o que é certo é que, conhecendo-nos ficaremos
em condições de saber como cuidar de nós mesmos, o que
não poderemos saber se nos desconhecermos. (Ibid., p. 275)

Aqui fica clara a distinção entre conhecer a si mesmo e cuidar


de si mesmo. Que o primeiro seja uma condição, uma condição
para saber de si, para orientar-se para si. Ora, cumprindo-se
a condição isso não necessariamente cumpre o que ela condi­
ciona. Surge a oposição subsequente entre conhecer e cuidar
que encontrará uma longa história. Para Sócrates, na seqü­
ência deste diálogo, trata-se de descobrir a essência íntim a do
ser, no corpo, na alma e na reunião do corpo e da alma. Nesta
relação o corpo é o dominado e a alma o governante. O Alcibí­
ades real é, antes de tudo, sua alma. Consequentemente, quem
cuida do corpo não cuida de si mesmo, mas apenas do que lhe
pertence, assim como só te ama quem amar sua alma. Também
ao apaixonar-se pelo povo, a quem pretende governar, Alcibí­
ades perder-se-ia de si mesmo. O cuidado de si deve preceder
ao governo dos outros.
Ora, este cuidado começa pelo olhar, e mais precisamente,
pelo olhar que toma o outro olhar como um espelho, refletin­
do assim a própria alma que pode ser contemplada a partir do
espelho representado pelo outro. Alguém pode conhecer as
coisas que lhe dizem respeito sem conhecer a si próprio, mas
nesta condição jamais poderá reconhecer o outro para além
das propriedades do outro ou daquilo que lhe pertence. Um
homem nestas condições nunca exercerá a política, pois não
terá atravessado em si mesmo os paradoxos do reconhecimen­
to. A única forma de impedir a tirania política é tratar a tirania
de si, em outras palavras, é libertar-se de si mesmo.

203
É no quadro do cifidado de si que uma série de técnicas,
práticas e dispositivos^ serão relidos e transformados, sempre
tendo por referência uma relação dialogai e pessoal. O cuida­
do de si é uma atividade para toda a vida, mas que se inicia e
se transmite privilegiadamente numa relação finita. A imagem
que podemos ter desse processo é a de uma série de encontros
de duração variável entre um mestre e um discípulo. Nestes
encontros, se pratica o exame de situações pontualmente pro­
blemáticas: assumir ou não um posto ou um encargo, casar-se,
comer um tipo de alimento, mudar-se de cidade, ser deserda­
do pelo pai, conduzir amizades e relações, lidar com a doença
de um ente querido, manter relações sexuais, enfim, tudo o
que pode ser fonte de bons e maus encontros durante a vida
cotidiana. O cuidado de si é impossível sem a participação
ativa e continuada do outro. O homem ama demais a si mes­
mo para libertar-se sozinho, afirma Galeno. E na esfera das
relações humanas que emergem as dificuldades, não seria fora
dela que estas se resolveriam.
O outro, suporte e con d içã o para o estabelecimento do
cuidado de si, possui um estatuto ambíguo, ora aproxima-se
de um amigo, outras vezes de um conselheiro fixo e ainda de
um mestre ou médico da alma. Entre as técnicas praticadas,
incluem-se a purificação (catharsis), a concentração e dispersão
da alma, o retiro e as provas. Há, ainda, a preparação e o exa­
me dos sonhos, o exercício da memória sobre os atos e circuns­
tâncias que compõe a vida, e o questionamento das decisões
nela envolvidas. Há as técnicas que visam atrair a atenção e di­
minuir a curiosidade dispersiva, outras cujo objetivo é reduzir
a atenção e fazê-la flutuar por novas paisagens. Há também as
técnicas de memória que recuperam as pequenas escolhas do
cotidiano, remetendo-as a um exame das representações que
estas evocam no próprio sujeito.
A atividade de separação e avaliação dos conhecimentos
necessários para o cuidado de si inclui os saberes de nature­
za etopoiética, ou seja, aqueles que conduzem à autarqueia

204
(depender de si) e à contenti (contentamento). É importante
separar tais práticas da enkrateia, ou seja, o domínio de si.
Reconhecemos esse impulso e essa exigência de dominar a si
mesmo na figura de Ulisses. Por exemplo, ele se faz amarrar
ao mastro e ordena colocar cera nos ouvidos dos marinheiros
quando a embarcação passa perto dos rochedos onde habitam
sereias. Uma bela metáfora da proporcionalidade entre o do­
mínio de si e o domínio do outro. Ocorre que, na esfera do
cuidado de si, a preocupação excessiva com o autodomínio é
interpretada como sintoma da ausência desse cuidado. Não
que o domínio exclua o cuidado —é a relação de ganância,
esforço e exercício de poder que denota a ausência da relação
de cuidado, sugerindo que ele se desloca para uma relação de
educação ou governo entre as pessoas.
Vemos aqui duas expressões de natureza política emprega­
das para especificar o cuidado de si. A relação de poder a si é
simétrica, mas não proporcional à relação de poder de si ao
outro. Portanto, a relação pressuposta na dominação de si é
ponto de partida para a dominação do outro ou da dominação
pelo outro. Aqui se localiza uma das incidências dessa espécie
de meta-hipótese dos trabalhos de Foucault —hipótese que in­
sere^ H ermenêutica do Sujeito (1981-82, p. 306), nosso texto
de referência para a questão, num projeto mais vasto: “não há
outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder polí­
tico senão na relação de si para consigo”. O interesse das es­
tratégias de poder nas técnicas de si não é, portanto, acessório
ou complementar, mas constitutivo. Daí seus trabalhos sobre
a história da sexualidade, sobre a história da loucura, sobre as
formas jurídicas ou de governabilidade serem simultaneamen­
te textos de crítica histórica e fragmentos de uma genealogia
da ontologia política da clínica psicanalítica.
A alma, como sujeito, não como substância essencial, é
agente de um tipo de cuidado que mantém uma relação me­
tafórica com outras formas de cuidado, a saber, o cuidado que
um médico dedica a seu paciente, que o dono da casa tem

205
para com seu lar (ecoifomia, oikos) ou que o amante oferece à
amada (eros). Diferentemente do médico, do pai de família ou
do professor, o cuidador cuida do cuidado que alguém pode
ter consigo. Isso não exclui a erótica, a dietética ou as relações
sociais que alguém tem para com sua vida, mas a relação é
indireta. O cuidado de si não implica descuido com os outros,
pelo contrário: problematiza o cuidado com o outro a partir
da forma de cuidado consigo.
Vejamos um exemplo concreto (Ibid., p. 330). E a história
de um pai de família que é tomado pelo desespero quando sua
filha fica gravemente doente. Vendo que em tal estado ele seria
de pouca ajuda, deixa-a aos cuidados da família e dirige-se para
a Escola, onde consulta Epicteto. O filósofo aponta ao pai que,
apesar do amor legítimo que sente pela filha, ele cometera um
equívoco. Comovido pela doença, não suportando ver aquela
triste cena, ele tivera, afinal, pouco cuidado consigo. Ao deixar
de cuidar de si para cuidar da filha (no sentido de ser tomado
pela pré-ocupação) o pai deixara de examinar as representações
que lhe ocorriam ao espírito, impedindo-se de agir ativamente
sobre a situação. E interessante notar que, aos nossos olhos, a
conduta sugerida ao pai seria um pouco egoísta, ao passo que,
para Epicteto, foi justamente por atentar pouco a si mesmo e
tentar cuidar da filha antes de cuidar de si que ele não pode, efe­
tivamente, cuidar dela, ou melhor, ajudá-la a cuidar de si. Regra
geral: é preciso cuidar de si para cuidar dos outros; começamos
cuidando dos outros e tudo estará perdido.
O destino do cuidado de si se divide claramente numa
tradição que tentará incluí-lo e submetê-lo ao conhecimento
de si como condição preliminar e propedêutica para o conhe­
cimento em geral, e outra tradição na qual o cuidado de si
se separa da finalidade epistemológica para se tornar parte de
uma técnica de vida: a busca do prazer para os epicuristas; a
retidão moral da escolha para os estéticos; a dúvida cética; a
comtemplação platônica; são práticas assimiladas ao cuidado
de si, que possuem no interior de cada um destes sistemas filo­

206
sóficos um sentido próprio e inoperante do cuidado de si. Para
tanto, é preciso matizar o sentido da noção de técnica (technè).
Neste caso, não se trata de uma atividade automática, repetiti­
va, anônima e transmissível na forma de um saber impessoal.
As metáforas mais comuns para designar o cuidado de si são
provenientes da arte da navegação, e remetem a uma forma de
saber-fazer semelhante ao daquele que dirige uma embarcação.
Na arte da pilotagem, é preciso saber sua própria posição, mas
também converter o olhar para os sinais das circunstâncias, o
vento, o movimento das marés, os rochedos e barrancas. Na
experiência da pilotagem é necessário poder ficar só, separar-
se de um conjunto de obrigações, prescrições e dívidas que
compõe o cotidiano. Daí a ideia de que é uma prática que se
aprende na própria experiência. A viagem impõe ainda a ideia
de soberania sobre si, de autoapropriação reflexiva sobre os
destinos e caminhos tomados. Há uma afinidade entre curar,
dirigir e governar que atravessa a história do cuidado de si
como uma metáfora fundamentalmente ligada ao tempo.
O tempo envolvido no cuidado de si inclui o kayrós, o tempo
em que palavra e ato convergem para o acontecimento, mas se
desdobra também no tempo que os gregos chamam de hóra, ou
seja, a estação da existência em que o cuidar de si torna-se não
apenas desejável, como em qualquer época da vida, mas neces­
sário. E o tempo entre a pedagogia e a política, marcado pela
reflexão sobre a velhice futura e pela lembrança (anamnésis) e
desaprendizagem da infância: “... almejo-te um desprezo gene­
roso por todas as coisas que teus pais te almejaram em abundân­
cia” (Carta de Sêneca à Lucilio, apud Ibid., p. 118).
Esta indicação de Sêneca mostra como na atividade de cui­
dar de si está em jogo uma espécie de liberdade tanto no que
diz respeito ao passado quanto ao futuro. Como mencionei, a
prática do cuidado de si se desenvolveu de forma heterogênea,
não admitindo formato único. Na Escola (Stoa) de Epicteto,
tratava-se de uma espécie de prestação de serviços que podia
envolver uma estada mais ou menos longa com uma circula-

207
çao periódica e retornps. Para os cínicos, era prática pública,
algo errática, realizada-por ocasião de encontros fortuitos nas
festas e cerimônias, e também nas esquinas da cidade. Para o
grupo dos terapeutas, organizado em torno de Filon de Ale­
xandria, tratava-se de uma experiência mais fechada, envol­
vendo restrições e obrigações ascéticas condizentes com um
tipo de iniciação: Finalmente, para Sêneca, para os estoicos
tardios e também para o epicurismo, era uma experiência rea­
lizada num tipo de sociabilidade próxima à da amizade, envol­
vendo encontros e também a troca de correspondência, além
do incentivo para a escrita pessoal.
E consenso, no entanto, que, à medida que o cuidado de
si se regulamenta, que seus critérios práticos se profissionali-
zam e que suas escolas admitem formas de organização cada
vez mais complexas, o cuidado de si tende a desaparecer ou
se transformar em outra coisa. Isso se explica pela infiltração
de uma forma de poder que corrompe a essência mesma do
cuidado de si. Na medida em que o desequilíbrio da relação
entre o poder a si e o poder ao outro admite um território de
exceção, no qual cuidar do outro antecede o cuidar de si, ocor­
re uma autocontradição dissolutiva.
Nota-se aqui uma curiosa similitude entre essas formas he­
terogêneas de organização em torno do cuidado de si e as so­
luções, aparentemente homólogas, que nossa época encontrou
para a transmissão da psicanálise: personalismo, grupalismo
e institucionalismo. Isso deveria nos servir como advertência
histórica. O cuidado de si transforma-se em outra coisa quan­
do se profissionaliza e quando aqueles encarregados de sua
prática voltam-se primordialmente para a prática positiva de
sua política associativa.

5.2. CRÍTICA DO PODER E EXPERIÊNCIA DE MAL-ESTAR


É importante distinguir a tradição da cura ou do cuidado de
si de outras modalidades de medicina da alma e de terapias por

208
conversão, o que nem sempre foi enfatizado pelos historiadores
da psicanálise (Jackson, 1999, p. 23). Estamos falando de três
tradições intimamente relacionadas:
—A Prática Terapêutica (restabelecimento). Nesta vertente
se enfatiza a recuperação do indivíduo pela via de sua
reintegração narrativa. Seu pressuposto é a noção de re­
torno a um estado anterior, no sentido do restabeleci­
mento de uma condição prévia de harmonia ou de uma
recomposição entre os elementos segundo uma ordem
natural anterior. O critério de eficácia está baseado na
redução do sofrimento na forma e linguagem em que é
posto pelo paciente.
— A Clínica M édica Antiga (tratamento). Aqui nós encon­
tramos a combinação entre observação das doenças, os
esforços para separá-las em grupos e agir sobre suas cau­
sas. Neste caso o critério de eficácia está baseado na ha­
bilidade de fazer prognósticos dos processos patológicos.
Saúde e doença são considerados diferentes pontos em
um processo cíclico de repetição. Nao há nada de novo a
ser criado, nem nada de antigo a ser retirado.
— Cuidado de Si (cura, cuidado): Na tradição da cura sui
trata-se da criação de um estado diferente da alma. De­
pois de curado o sujeito torna-se diferente do que era
antes, o que pode habilitá-lo a tornar-se um xamã ou a
contar sua história para sua comunidade de origem. A
cura pode envolver tanto a transformação da pessoa (he-
aling em inglês) quanto a remoção de uma doença (cure
em inglês). É por isso que o cuidado de si forma uma
experiência radicalmente nova. Esse estado anterior e,
ao mesmo tempo novo, é uma espécie de ficção que
se apoia, sobretudo, na experiência de apropriação.
Os estoicos, por exemplo, procuram experimentar um
estado tão próprio que ele possa ser percebido como
se fizesse parte do sujeito desde sempre, assim como a
infância ou um momento anterior da vida. Este assim

209
como designa u|na relação metafórica, não uma relação
real. O cri tcrio -envolvi do aqui é a excelência entendida
como um estado de ser, em acepção simétrica à de mal
estar (Unbehagen), como em M al Estar na Civilização5.

Essa distinção é importante, pois nela se ampara uma rede


de metáforas e alegorias, de referentes e referências, entre so­
frimento, mal estar e doença. A psicoterapia, como observou
Lacan (OE: 1974a, p. 516), é um projeto impraticável se nela
se quer realizar o ideal de cura médica, pois em uma vida não
é possível “voltar a um estado anterior”: ela será sempre uma
vida que inclui dentro de si a história e a experiência desse
retorno. Portanto, a doença, no sentido médico, é concebida
como metáfora do sofrimento (pathos) que se enfrenta na cura
da alma. Isso não implica uma alegoria psicossomática gene­
ralizada nem uma dissociação anacrônica entre alma e corpo.
Tratar a metáfora da doença não é tratar a doença. Não obs­
tante os sintomas abordados pelo cuidado de si serem reais,
ocorre que sua estrutura é metafórica, o que só pode ser pensa­
do à luz de uma teoria materialista da metáfora, tal qual trazi­
da pela noção de incorporai na filosofia da linguagem estoica.
Essa metáfora do sofrimento como doença foi enriquecida
pelas escolas helenísticas e seu esforço de distinção progressiva
entre o mal-estar, como experiência de perda do lugar, como
desterritorializaçao de si, o sofrimento, como ocupação com
o outro e conseqüente passividade, subserviência e renúnica à
liberdade e a dimensão própria do verdadeiro adoecimento,
baseado em sintomas. A distinção, contudo não procede de

5. Além do problema para traduzir o termo K ultu r (Civilização ou Cultura), há a questão


menos discutida acerca da expressão U nbehagen. Literalmente a palavra refere-se a um
estado de ser ou estar. Bem-estar ou mal-estar, não apenas desconforto ou descontenta­
mento ((d iscom fort ou discontent) como Freud argumentou contra Strachey. E importante
lembrar que o título originalmente imaginado por Freud para este trabalho era “Das Un-
glück in d er K ultur”, ou seja, a infelicidade ou a miséria (em sentido moral) na cultura.

210
uma natureza clínica, mas da atitude diferencial, que se verifi­
cada em cada caso, diante do poder. A relação de cura é uma
experiência crítica com o poder. Seja ela a experiência real de
redução do poder causada pelo adoecimento, seja ela a experi­
ência de alienação e de submissão ao médico, seja ela ainda a
relação propriamente política em relação ao lugar e à posição
que cabe a cada um diante do mundo e de seu destino. Tais
escolas médico-filosóficas chegaram a descrever cinco momen­
tos desse complexo metafórico formado pelo sofrimento-mal-
estar-doença (Foucault, 1981-82, p. 405): (1) a proclivias, ou
constituição; (2) o pathos propriamente dito, marcado pelo
aparecimento de uma perturbação (affectus); (3) a héxis, que
corresponde a uma assimilação da perturbação a ponto de o
sujeito pensar que, ao cuidar dessa perturbação, se ocupa de
si mesmo; (4) a arróstema, uma espécie de estado permanente
da doença em que a perturbação não é sentida mais como tal;
e (5) a kákia, quando a paixão domina o sujeito por inteiro
e passa a ser ativamente imposta aos que o circundam. Estes
cinco momentos se distinguem conforme o cuidado se dirige
à alma (therapeutike) ou ao corpo (iatrikè). Vemos por estas
distinções como o pathos (mal-estar) pode fazer sofrer mais ou
fazer sofrer menos, como ele pode ser concênctrico ou excên­
trico com relação ao sintoma real, mas principalmente como
ele se exprime como um poder que se exerce sobre alguém.
Logo, a relação entre a medicina convencional de Hipócra-
tes, Asclépio ou Empédocles não se confunde com a medicina
filosófica do cuidado de si. Entre elas, a distribuição não se
dá entre aqueles que se encarregam do corpo e aqueles que se
dedicam à cura da alma, posto que, para as diferentes escolas,
o cuidado de si incluía o cuidado do corpo. Aqui se trata do
cuidado com a relação que o sujeito mantém com seu corpo,
e não o cuidado direto com o corpo. Isso inclui tanto o corpo
como agente de uma ação quanto o corpo que é paciente de
uma afecção. Nem sempre é o corpo acometido pela doença,
uma das circunstâncias possíveis, pode ser o corpo que enve­

211
lhece, que se cansa, que se ocupa com satisfações e restrições; o
corpo como primeiro bem que pode dispor, usar ou emprestar
ao outro. Ou seja, o corpo considerado segundo uma econo­
mia de gozo e uma ars erótica.
Outra distinção crucial diz respeito ao modo como alguém
se engaja no cuidado de si. Esta não é uma obrigação univer­
sal, lei ética ou dever moral que todos devem se subtneter.
Engajar-se no cuidado de si é e deve permanecer como escolha
do sujeito. Não porque, em princípio, alguém seria excluí­
do do cuidado de si, mas porque praticamente são poucos os
que efetivamente reúnem a coragem e a persistência que esta
exige. Separa-se, assim, a soberania reconhecidamente perdida
quando se trata de procurar um médico, ao qual devemos nos
submeter, e a preservação desta soberania dentro do cuidado
de si. Surge aqui a ideia fundamental de que o paciente pode
ser também o agente da cura.
Isso fez do cuidado de si objeto de críticas, pois consistiria
numa atividade que seria evidentemente um privilégio e um
luxo destinado à elite. Um exame minucioso desmente esta
ideia. É mais provável que o cuidado de si tenha se dissemina­
do, como uma espécie de ingrediente cultural extensivo, prin­
cipalmente nos séculos I e II d.C., também entre as camadas
menos abastadas, em formações de compromisso com seitas e
práticas religiosas. No outro extremo, o cuidado de si mantém
sua associação social com a vida cultivada, com a investigação
teórica e com o ócio criativo. Entre as camadas médias, tal
prática se desenvolveu em estreita relação com as redes de ami­
zade que atravessavam as relações institucionais e familiares
nesse período (Ibid., p. 142).
Como vimos anteriormente, duas condições constituem
critérios de exclusão, em longo prazo, para o sistema de trans­
missão da prática do cuidado de si: de um lado, o fechamen­
to em grupos impermeáveis e sectários, o que redundava em
auto-segregação; de outro, o fechamento em uma posição de
classe muito restritiva. A hetero-segregação verificada entre os

212
ricos também contribuía para o desaparecimento do cuidado
de si. Essa oposição histórica entre o cuidado de si e a segre­
gação é um argumento adicional contra aqueles que associam
tal prática com o desligamento do campo social (anacoreta) ou
com um isolamento individualista. A identificação excessiva
com um líder carismático, com um grupo ou com uma insti­
tuição são sinais claros de extravio no cuidado de si.
Havia, sim, um tipo de mestria envolvido no cuidado de
si que se apoiava no saber sobre a tradição (os heróis e suas
epopeias), no saber da competência (saber-fazer) e no saber
maiêutico da investigação e da descoberta praticada no diá­
logo (trágico-socrático). Esse complexo de saberes possuía a
ignorância como condição. Isso é coerente, na medida em
que cuidar de si é também libertar-se das formas de cuida­
do que os outros nos impingem. A mestria, assim concebida,
funda-se na crítica sistemática e atualizada numa relação real,
dos fundamentos de seu próprio poder. O mestre deve ativa­
mente ignorar qual saber positivo o discípulo deve empregar
para cuidar de si. Assim, o cuidado de si leva o indivíduo da
posição de não-sujeito (no sentido de objeto do cuidado dos
outro) para o status de sujeito numa experiência que ele jamais
conheceu em momento algum de sua existência e que tende a
não encontrar espontaneamente.
O mestre é um mediador na relação do indivíduo com sua
constituição como sujeito (Ibid., p. 160). Antes dessa experi­
ência transformadora, o indivíduo deixado ao léu caracteriza-
se, sobretudo, como um stultos. Literalmente, “aquele que não
pensa”, o stultos é descrito como aquele que está à mercê das
contingências, disperso no tempo e na pluralidade do mundo
exterior; não pensa na velhice e, sobretudo, ignora a consu­
mação de sua própria vida pelos fins que ele mesmo poderia
delimitar. Daí seu sentimento de não-pertencimento, segundo
o adágio: “Para aquele que não sabe para onde vai, todos os
ventos lhe parecem contrários”. Ele é portador de uma von­
tade não livre e sem memória: quer algo e, ao mesmo tempo,

213
o contrário; deseja a glpria, mas quando a alcança, se queixa
da falta de tranqüilidade. Seu ser de sujeito não é capaz de se­
paração (discriminatio) porque entre o eu e a vontade há uma
espécie de desconexão ou infidelidade. Ao examinar apenas
um aspecto do objeto pretendido, ele se decepcionará quando
o alcançar. O cuidado de si é uma forma de tratamento para
esse estado, tratamento que tem por horizonte o querer livre,
o querer absolutamente, o querer sempre (Ibid., p. 164). Ao
stultos, como Alcebíades, não lhe falta saber, no sentido de que
ele poderia ser educado (educare). Falta-lhe quem o tire para
fora, que o faça sair de si (educere).
Está ficando claro, por exclusão, que a função de mestria no
cuidado de si deve ser exercida pelo filósofo, mas é importante
lembrar, do filósofo como agente de uma prática direta com o
outro, não do filósofo como professor agente de um discurso
genérico ou universal sobre o conhecimento, a virtude ou a
beleza. O cuidado de si dis ti ngue clara mente três atividades -
governar, educar e curar - que se relacionam como práticas,
externa e internamente, limitadas. Assim considerada, a figura
do filósofo se aproxima do retórico e do médico, esse especia­
lista nos meios pelos quais se pode agir sobre o outro através
do discurso ou da ação. Aproxima-se pelos meios, que são os
da palavra, mas também pelos fins, que em ambos os casos
estão abertos às circunstâncias do destinatário. A diferença
crucial é que o cuidador, ao contrário da retórica educativa ou
política, não deve exercer seu poder sobre o outro.
As relações entre cuidado de si e retórica não admitem uma
oposição tão polar. Na medida em que o cuidado se dá numa
relação de fala e esta envolve uma dimensão de influência, será
preciso especificar quais aspectos da retórica interessam ao seu
ofício e de que forma eles serão empregados. Destacam-se, as­
sim, dois modos de discurso que o cuidador deve evitar: a
lisonja, o discurso falso feito para agradar o outro e a cólera, o
discurso inflamante e belicamente incitativo. Há, ainda, outro
modo de discurso que o cuidador deve empregar sempre que
possível: a parrhesia (falar franco).

214
Aparrhesia ocupa lugar fundamental na organização de to­
das as práticas envolvidas no cuidado de si. Ela é a arte de dizer
livremente, a arte. da franqueza e da sinceridade. Este convite
ao dizer-verdadeiro poderia ser confundido com a prática da
confissão. Tal não é o caso. A confissão consiste numa obriga­
ção de dizer, e de dizer a verdade pela qual se alcança a salvação
ou a clemência de deuses ou juizes. Dizer toda a verdade e
nada mais que a verdade. No cuidado de si, trata-se mais de
uma prova pela qual se ingressa voluntariamente e que não
visa a verdade em sua generalidade e totalidade, muito menos
a indulgência do outro, mas a exploração da capacidade de
dizer a verdade sobre si, de tornar-se sujeito de uma verdade.
Aqui encontramos uma terceira acepção de verdade, que não é
nem aletheia nem emunah, antes examinadas. A veritas corres­
ponde à verdade como justo dizer — dizer preciso, que proce­
de do verum , ou seja, um relato exato, sem omissões e narrado
com integridade. Assim como a aletheia liga-se ao presente e
a emunah, ao futuro, a veritas liga-se ao passado e à narração
(Hegenberg, 1975, p. 14). Daí sua ligação com a dimensão
do testemunho. Ocorre que este testemunho não se refere à
ordem dos fatos jurídicos, na qual também a encontraremos,
mas à verdade que testemunha a conversação do sujeito para
consigo e que estabelece um compromisso. Neste sentido, o
cuidador é uma espécie de amigo da verdade, que inspira con­
fiança pessoal {emunah)-, uma espécie de professor, dedicado
a uma relação fiel com a palavra {veritas) e uma espécie de
mestre, às voltas com a descoberta ou invenção de uma nova
forma de vida {aletheia).
A libertas ou parrhesia é a qualidade moral exigida para tal
empreendimento. Ela é facultada inicialmente ao cuidador,
e não ao discípulo, que deve conquistá-la por seu empenho
no cuidar de si. Ela não é empregada a toda hora. Constitui
destreza e arte do cuidador fazer incidir temporalmente a pa­
lavra franca. Apesar da proximidade aparente, não devemos
incorporar a parrhesia diretamente à noção psicanalítica de as-

215
sociaçao livre. Primeirp, porque ela é atributo inicial daquele
que conduz o cuidado.de si, e não daquele que é sujeito desta
experiência. Segundo, porque a associação livre inclui a atitu­
de intencional de sinceridade, mas também a possibilidade da
mentira, da tapeação e do engano. A parrhesia combina mais
com a atitude genérica que Freud sugere aos analistas na forma
franca de abordar temas espinhosos, tais como a sexualidade,
o dinheiro e o poder.
A parrhesia deve evitar dois desvios que lhe são opostos:
a lisonja e a cólera. A cólera evidencia o abuso do poder e a
falta de soberania sobre si. Ela advém quando o sujeito se dá
conta de que nao tem o poder que supunha possuir. A lisonja,
como exato contrário, é o abuso do poder pelo inferior que
faz crer ao superior que ele é mais poderoso do que na verdade
é. Ambos mostram, pelo contraste com a parrhesia, que esta
envolve a capacidade de estar só, o que falta ao colérico e ao
emulador. O falar franco não incita a continuidade do dis­
curso do outro ou seu silêncio, como na lisonja ou na cólera,
nem presume a dependência derivada dos laços econômicos,
políticos ou familiares. É o compromisso com o cuidado de si
e com o regime de verdade que lhe é próprio, que torna esse
tipo de fala uma fala livre.
Isso não significa que haja oposição irrestrita entre retórica
e parrhesia. A retórica define-se pelo conteúdo tratado e pelo
destinatário do discurso. Também no cuidado de si, trata-se de
encontrar o tempo (kayrós) e o modo de dizer (léxis) no qual
o sujeito poderá se reconhecer e, afinal, tomar para si algo do
que foi dito. A parrhesia depende, portanto, do tempo oportu­
no em que a fala faz acontecimento. Encontramos aqui a raiz
prática dos desenvolvimentos estoicos em filosofia da lingua­
gem em torno da noção de incorporai. E o segundo aspecto
da linguagem, que os estoicos chamam de phásis, em oposição
à lexis (SIX: 1961-62).
Se, na retórica, é preciso encontrar o tempo correto para
o assunto tratado, no cuidado de si trata-se de integrar tais
condições, do tempo e do espaço, à forma do dizer e ao acon­
tecimento de linguagem. A parrhesia médica, assim como a
filosófica, implica uma atitude de generosidade e benevolência
por parte de quem a pratica. Isso se mostra no estilo simples
e direto de dizer que deve, não obstante, induzir um trabalho
ao lado do sujeito. Dizer o que se pensa e pensar o que se
diz; mostrar as coisas mais que se mostrar; tender o discurso
ao útil e eficaz mais que ao agradável; atenção à enunciação;
obediência tática aos recursos da retórica, tais são as regras do
franco-falar (Foucault, 1981-82, p. 488).
Contra a fala embusteira, que pode caracterizar o uso re­
tórico da linguagem, há também a oposição levantada pelos
cínicos. Eles não constituíam um grupo ou uma sociedade
definida, mas congregavam pessoas errantes ou marginais que
não possuíam uma posição social bem estabelecida, vínculos
familiares estáveis nem inscrição sólida no sistema de produ­
ção. O ascetismo é uma condição da vida cínica, pois seu fim
é interpelar e denunciar a inércia social pelo apontamento de
sua hipocrisia. Esse repúdio passa pela crítica da imagem que
caracteriza o filósofo profissional. Nada de barba bem-feita,
asseio ou belas vestes, pelo contrário: é aos andrajos e à inade­
quação à vida civilizada que os antigos ligam a figura do cíni­
co. Literalmente, cínico se refere a cão (kinos), ou seja, aquele
que experimenta a liberdade da errância, mas também a de
acolher e ser acolhido segundo uma fidelidade específica. Daí
o fato de os cínicos serem considerados os primeiros antifiló-
sofos. Atribui-se, tanto aos cínicos quanto aos epicuristas, a di­
fusão da poesia e da estatuária ligada ao deus Príapo. Colocado
geralmente no jardim, entre a casa e a cidade, uma estátua de
Príapo com seu descomunal membro fálico tinha a função de
evocar o riso, ao denunciar a abundância e o excesso, e incitar
à humildade (Oliva Neto, 2006).
Entre os estoicos, o cultivo da fala franca servia para afastar
aqueles que se aproximavam do cuidado de si com interes­
ses excessivamente definidos. Epicteto repudiava as demandas

217
utilitárias, afirmando ser um conselheiro de existência, nao
um preceptor, um amigo ou um diretor de consciência. Tam­
bém para Sêneca, este que era conselheiro de inúmeras figuras
ilustres, sua atividade no cuidado de si nao se confundia com
seu ofício como filósofo profissional ou professor. No primei­
ro caso, predomina a fala franca; no segundo, admite-se o uso
tático da lisonja e da arte de manipulação das impressões.
Essa diferença diminui à medida que o serviço da alma se
profissionaliza durante o período helênico romano. O declí­
nio da parrhesia como regra fundamental do cuidado de si
liga-se ao desligamento progressivo entre catharsis e política.
Se, para Platão, é preciso ocupar-se consigo para melhor ocu­
par-se com os outros e, assim, realizar a felicidade, no neopla-
tonismo o cuidado de si se desenvolve numa catártica de si que
esquece seu compromisso político e ambiciona a purificação
individual. Vê-se, assim, como a ascensão da vertente psicote­
rapêutica do cuidado de si é correlata da evasão de um aspecto
de sua vertente clínica. Os vínculos de finalidade, reciprocida­
de e reminiscência entre o plano político e o plano catártico
são progressivamente dissolvidos numa autofinalização do eu
que se expressa agora em duas práticas herdeiras do cuidado de
si: a arte da existência e a técnica de vida (Foucault, 1981-82,
p. 219). Nesse movimento, a curasui (cura de si) gradualmen­
te deixa de ser atividade permanente ligada à excelência e ao
cuidado e passa a se concentrar em sua significação de objetivo
ou produto do processo.
A cultura de si, que se estabelece como condição de possi­
bilidade para a emergência do cristianismo, é um dos espaços
em que o cuidado de si se profissionaliza, gerando um desloca­
mento e uma distribuição social das diferentes técnicas, antes
unidas por um mesmo escopo ético baseado na relação entre
o sujeito e a verdade. Por cultura de si deve ser entendido um
conjunto hierarquizado de valores tidos como universais, mas
de acesso restrito, segundo o grau de excelência do intérprete.
Reencontramos aqui esse duplo movimento de hierarquização

218
do sentido (literal, moral, espiritual) e substituição da relação
de fala pela exegese da escrita. A cultura de si de implanta­
ção latino-cristã prescreve valores articulados a um conjunto
de regras e condutas, de esforços e sacrifícios que encontram
sua justificação num sistema de saber socialmente válido, es­
tável e teoricamente transmissível (Ibid., p. 221). A aparição
da cultura de si introduz elementos inicialmente estranhos ao
cuidado de si —por exemplo, a noção de salvação e o problema
da imortalidade da alma, pelo qual, por exemplo, a preparação
torna-se a preparação para outra vida, não para esta. A con­
versão deixa de ser conversão a si (ocupar-se de si é retornar o
olhar para si) e passa a ser conversão ao outro. Surge a noção
de felicidade separada agora da noção de contentamento. A fe­
licidade, que se associa com a salvação, se realiza pelo caminho
da ataraxia (ausência de perturbação) e da autarcia (domínio
de si), retomando, assim, o tema grego original do autodomí­
nio (enkrateia). Conceitos antes ligados à conotação mútua de
cuidado e de política se despolitizam.
Neste espaço de desconexão entre o cuidado de si e a políti­
ca se instala a valorização progressiva de uma ética intermediá­
ria, a ética da amizade. O melhor espaço para cuidar de si não
seria o do grupo fechado nem o da errância, mas o da amizade,
entendida agora como suspensão e isolamento em relação à es­
fera dos interesses. A oposição, que nos parece tão natural, en­
tre cuidar de si e cuidar dos outros procede do entendimento
que dissocia cuidado e política, ou ainda desejos e interesses.
Um bom contra-exemplo disso encontra-se no modo como
os estoicos entendiam a amizade: “Nem é amigo quem busca
sempre utilidade nem quem nunca a associa à amizade, pois o
primeiro faz o benefício do tráfico do que dá em troca, o outro
rompe com a boa esperança para o futuro” (Epicuro Sentença
Vaticana apud Ibid., p. 238).
Isso decorre do fato de o cuidado de si assumir como tarefa
a realização do sujeito como qualquer um. Ou seja, para cuidar
de si é necessário tornar-se um entre outros, não alguém privi­

219
legiado ou excessivamente instalado em seu próprio espaço,
domínio ou posição social diferenciado. Tenha-se em mente
que esse princípio foi proposto por Marco Aurélio e seguido
por César, ambos imperadores romanos. E na amizade, mais
que em qualquer outra forma de sociabilidade, que essa sin­
gularidade entre diferentes e essa diferença entre particulares
pode ser melhor tratada.
O trajeto do cuidado de si passa, como já indiquei rapi­
damente, pela experiência de conversão. Três conotações se
cruzam nesta noção: a moral, a religiosa e a política. Para
Platão, a conversão (epistrophè) implicava desviar-se das apa­
rências, retornar a si e engajar-se na reminiscência, processo
de lembrança metódica das ideias essenciais, fonte e origem
do conhecimento. Ora, para a tradição platônica, a conversão
supõe outro mundo, independente de nós, ao qual é preciso
submeter-se segundo os ditames da vida contemplativa (theo-
ria). Para a filosofia helenística do cuidado de si, esse retorno,
essa conversão, se dá rumo ao mundo em sua imanência e ao
sujeito em sua vida ativa. Trata-se de uma libertação daquilo
que não dominamos em nossas relações atuais.
Sêneca conclama aquele que ingressa no cuidado de si a
fazer um giro em torno de si mesmo. Tal gesto, de girar sobre si,
era realizado tradicionalmente no momento em que o mestre
liberta seu escravo. Ele exprime, em seu simbolismo, um tipo
de liberdade imanente e interna aos laços sociais. Se a conver­
são platônico-cristã estava marcada por um momento fulgu­
rante, no qual havia mutação do sujeito (trans-subjetivação) e
ele ingressava em uma nova ordem, a conversão, para os helê­
nicos, implicava um processo longo de auto-subjetivação. O
sujeito do cuidado de si muda de posição diante da vida; não
inventa outra vida.
A conversão cristã se caracteriza pelo arrependimento, pelo
remorso e pela expiação (metanoia crista). Ela é preparada por
uma espécie de exegese de si, na qual o sujeito observa seus
atos, pensamentos e depois os julga e pune. Destituída de seu

220
sentido político, ela favorece uma cultura da culpa interioriza­
da. A conversão ao cuidado de si, ao contrário, procura alcan­
çar uma espécie de renúncia ao remorso pela assunção dos atos
da vida, induzindo uma cultura da vergonha. Ambas as formas
de conversão concordam na importância do retorno do olhar
a si, mas diferem na finalidade do que se segue a esse retorno.
A diferença pode ser remetida à absorção de elementos míticos
contidos no discurso platônico. O mito de Er, sobre o passeio
das almas, descrito em A República, é exemplo disso. Para os
helênicos, esse elemento mítico parece ausente ou não possui
a mesma importância estratégica. É preciso ultrapassar tanto o
temor aos deuses (e ao destino, por extensão) quanto o medo
das contingências que definem a experiência humana, e da
morte em particular. A conversão, no cuidado de si, assume
posição intermediária entre platonismo e cristianismo; é uma
conversão a si (Ibid., p. 289).
O declínio do cuidado de si, quando de sua transformação
numa cultura de si, reservará ainda outro destino para a con­
versão: a estetização. Fazer da vida uma obra sobretudo bela,
cultivar a si mesmo como uma obra de arte, constitui um pro­
longamento do programa helenístico original. Isso pode ser
atribuído, em parte, à valorização da velhice como momento
de consumação máxima da vida, consumação que se expressa
na forma de uma vida que vale a pena ser contada. Daí surge o
impulso para o nascimento do gênero biográfico e autobiográ­
fico. Uma vida que sirva ao mesmo tempo de exemplo e que
inclua em si a própria atividade de narrá-la. Isso é tributário
do cultivo, principalmente entre os estoicos, da escrita de si.
Diários, anotações pessoais, relatos epistolares formaram, as­
sim, um corpus de práticas e testemunhos pelo qual podemos
entender o funcionamento tardio do cuidado de si.
Os tipos de práticas envolvidas no cuidado de si, que discu­
tiremos à seguir, podem ser classificadas da seguinte maneira:

221
A. Ascese: (a) pxercícios do corpo
(1) Dietética;
(2) Erótica;
(3) Ginástica.
(b) Exercícios da alma
(1) Disciplinas;
(2) Atitudes.

B. Meditação: (a) Premeditação dos males;


(b) Meditação sobre a morte;
(c) Exame de consciência;
(d) Concentração e dilatação da alma;
(e) Olhar de perto e olhar de longe.

C. Memória: (a) Recordação;


(b) Exame dos sonhos;
(c) Consolação.

D. Método: (a) Observação da natureza;


(b) Exame do presente;
(c) Ponderação sobre o futuro;
(d) Avocatio (cálculo dos prazeres).

5.3. ASCESE
Examinados os princípios gerais do cuidado de si, suas
oposições e compromissos com a medicina da alma, com a
retórica, com o discurso filosófico e religioso, passemos agora
ao detalhamento de suas práticas específicas. Elas se dividem
em dois grandes grupos: a ascese (askésis) e o cuidado (melete)
(Hadot, 1991).
A ascese se subdivide entre a prática de exercícios corporais
igym nazein), como abstinências, prescrições dietéticas e eróti­
cas, e a prática de certos experimentos mentais, atitudinais e
disciplinares. A ascese compõe, gradualmente, uma espécie de

222
acervo de experiências, discursos e convicções cuja principal
característica é a de estarem facilmente disponíveis à memória
para que sejam úteis diante dos acontecimentos. Este acervo
deve ser uma espécie de equipamento incorporado e sempre
disponível, de tal forma que advenha espontaneamente à me­
mória. Há ainda sentidos diferentes de ascese: a platônica (re­
núncia aos prazeres dos sentidos), a cínica (suportar a fome, as
injúrias para conquistar independência e praticar a denúncia),
a estoica (retificar os juízos para nao se prender aos objetos), a
pirrônica (indiferença diante das coisas) e a epicurista (limitar
o desejo como meio para alcançar o prazer puro).
A ascese pitagórica reunia uma série de práticas restritivas,
de natureza dietética, erotológica e concernentes ao uso da pa­
lavra. A ascese crista, por outro lado, enfatiza a formação de
um código estrito de obediência e renúncia comportamental e
atitudinal. Para os estoicos, cínicos e epicuristas, a ascese tem
estatuto inteiramente distinto, uma vez que uma de suas ques­
tões centrais é saber até que ponto e sob qual fundamento
alguém deve se submeter à lei. A obediência deve ser exami­
nada como qualquer outra atitude servil. A ascese, neste caso,
implica uma série de exercícios cujo fim é preparar e advertir o
sujeito para a importância da contingência na vida humana e,
ao mesmo tempo, afirmar sua soberania sobre ela.
A ascese helenística se desenvolve em uma série de práticas
ligadas à noção de purificação e elevação. Isso se traduz em
disciplinas envolvendo a escuta, a leitura, a escrita e a fala.
E neste contexto, por exemplo, que se forma uma tradição
de exame dos sonhos e de atenção quanto à forma do sono,
como práticas específicas de exame de consciência. Confere-se
particular ênfase à maneira de dizer ou ler as coisas (léxis), em
contraste com o exame de como as coisas são (phasis). Não se
trata de uma técnica, como na medicina ou na oratória, que
também se dedicam ao modo de dizer e escutar o paciente ou
a audiência. O objetivo da ascese, como disciplina da escuta
e da atenção, é alcançar uma espécie de equilíbrio entre dois

223
aspectos da escuta: a dfsposiçao ponderada (sophrosyne) para o
pensamento lógico ilogos) e a capacidade de ser afetado pelas
palavras (pathetikós). Na prática da escuta recomenda-se, em
especial, o domínio do silêncio, ou seja, nao converter imedia­
tamente o que se ouviu em discurso, nao discutir cada ponto
do que foi dito, guardando uma atitude corporal de sereni­
dade. Trata-se de construir um silêncio ativo e significativo.
Nasce aqui a regra de que a competência para falar depende
da capacidade de escutar. Outro aspecto da ascese da escuta é
a arte de dominar a distribuição da atenção. Saber separar o
que é rigorosamente dito da retórica e da erotização induzida
pela mestria ou pela autoridade de quem fala. Tais exercícios
conduzem a um tipo de memória pela qual se retém o valor
das palavras proferidas, ao mesmo tempo em que se distancia
de seu efeito de dispersão na conversação.
Parece justo dizer que as práticas de ascese formam uma
superfície psicoterapêutica. Observe-se que nela há uma es­
pecial atenção à corporeidade e, particularmente, ao encontro
sexual. Neste tema, os pontos centrais são a frequência e o
momento, não as qualidades específicas do objeto ou do tipo
de intercurso. Isso ocorre porque é na intensidade que se loca­
liza o problema da relação entre o domínio a si e o cuidado de
si (Foucault, 1984c, pp. 88-110). A distinção entre exercícios
corporais e exercícios atitudinais é muito menos importante
do que a ênfase na interiorização do conflito e na auto-obser-
vação. Surge, assim, uma curiosa aproximação entre a ascese e
a disciplina da escuta, que se encontrará tematizada em mui­
tas formas da prática psicanalítica. Esta aproximação soa mais
intrigante ainda quando lembramos que a ascese é, no fundo,
herdeira da antiga tradição catártica.

5.4. MEDITAÇÃO
O segundo grupo de práticas envolvidas no cuidado de si
gira em torno da noção de meditação, e conecta o cuidado de si

22 4
à tradição clínica. A meditação é uma experiência ou um exer­
cício com o tempo ou com o espaço. A inserção do sujeito no
passado, no futuro ou no presente, assim como sua aproxima­
ção ou distanciamento do mundo são o fulcro deste exercio; ao
tomar uma posição outra, ou ainda, colocar-se em outro lugar,
há uma transformação regrada de si. Será importante reter, ten­
do em vista considerações vindouras, que no campo da cura e
do cuidado o método é originalmente uma prática entre ou­
tras, e não a ideia matriz de toda e qualquer prática. O método
refere-se a uma espécie de disciplina envolvendo prognóstico do
futuro, ordenamento de previsões e compromisso na forma de
proceder. Há, portanto, uma oposição relativa entre o método
e outras práticas, posto serem espécies do mesmo gênero. Entre
essas três grandes modalidades do pensamento reflexivo ociden­
tal, memória, método e meditação, podemos alinhar diferentes
acepções de verdade antes examinadas, respectivamente: a ve­
ntas (memória), a aletheia (meditação) e a emunah (método).
Para os estoicos a meditação tinha por centro o exame da
consciência a partir da pergunta: “Agiste em conformidade
com teu desejo?”. É exatamente a mesma formulação que
Lacan (SVII: 1959-60, pp. 373-390) escolhe para indexar a
ética da psicanálise e separá-la das éticas utilitaristas, trans­
cendentais ou naturalistas. Geralmente, a ética estoica é com­
preendida como ética da impassividade, que ensina a desejar
menos para sofrer menos. Mas se nos detemos no cuidado
de si, vemos que ao lado desta direção há ainda um convite à
subjetivação incondicional do desejo.
A principal forma de meditação é conhecida como medita­
ção sobre a morte. Pensada como modelo para enfrentar a pior
das servidões, a servidão a si mesmo, a meditação sobre a mor­
te convida o sujeito a assumir, experimentalmente, a situação
de finitude. A partir disso, ele pode redimensionar sua posição
no sistema de obrigações-recompensas ou de dívidas para con­
sigo. Assim como a contemplação da natureza (outro gênero
de meditação), a meditação sobre a morte nos faz ver as coisas

225
“desde o alto” e as relações humanas como um espetáculo:
“Quero me fazer levar pelas nuvens, do alto eu veria homens
errando ao acaso e tremendo, por falta de razão, ante a ideia
da morte” (Ovídio, 1986, p. 123).
Surge aqui uma oposição que marcará profundamente a
cena da cura até o século XIX, ou seja, os três lugares para­
digmáticos nos quais o restabelecimento (Heilung) deve se
desenvolver: o contato com a natureza, a viagem e o teatro.
Na forma do jardim, do átrio ou do passeio, presume-se que
o deixar-se em contato com a natureza possui propriedades
curativas, pois faz o sujeito sentir-se em si. Daí que elas devam
ser alternadas com experiências de separação de si, de estar
fora-de-si, como se realiza por meio do teatro e da viagem
(Foucault, 1973-74, pp. 25-48).
Ver desde o alto inclui localizar-se no mundo, relativizando
nossas pequenas paixões, nossos vícios e nossas virtudes em face
do caráter indissociável que preside a ligação entre os esplen­
dores do mundo e sua miséria. Portanto, nao se trata de pensar
sobre a morte como tema especulativo, mas de um exercício que
coloca o sujeito no instante infinitamente pequeno que consti­
tui o presente, antes do qual nada mais existe e após o qual tudo
é incerto, como se nos imaginássemos no lugar de alguém que
está morrendo ou que vive seus últimos dias.
Uma variante da meditação sobre a morte é a premeditação
dos males, ou seja, colocar-se na posição em que os piores in­
fortúnios que alguém poderia imaginar se dêem por realizados;
trazer para o presente imediato o que de pior pode ser conce­
bido. Trata-se de uma modalidade de prova pela qual alguém
se depara com o “tudo menos isso” que comanda sua vida. A
premeditação dos males é uma espécie de prova ou confronta­
ção com o pesadelo, de tal forma que ele possa ser olhado de
frente e atravessado. Novamente o cuidado de si não introduz
uma técnica que já não seja exagero ou diminuição controlada
da própria atividade do indivíduo. O estado de temor difuso e
de apreensão com relação ao futuro, assim como o estado de

226
antecipação do pior, já faz parte regular da vida do sujeito ator­
mentado. Ocorre que isso se dá sem a suficiente radicalidade,
conduzindo a uma espécie de jogo de sombras pelo qual uma
forma de temor impede de ver bem outra, e assim por diante.
Uma variação importante da meditação, que será aprofun­
dada posteriormente pelo cristianismo, é o exume de consciência.
O objetivo desta prática é criar auto-distanciamento. Envolvido
pela rotina cotidiana e pelas demandas do mundo, a pessoa es-
quece-se de si mesmo como experiência do presente. Isso signi­
fica um extravio da consciência em preocupações sobre o futuro
ou remorsos do passado. O exame de consciência não consiste
apenas em dirigir a consciência para as ideias e sensações que
ocorrem ao eu, mas na expectativa de apreender a posição, a par­
tir da qual, a consciência apreende tais ocorrências. A imagem
recorrente aqui é a do homem tão preocupado com a direção na
qual está indo e com o lugar de onde veio que se esquece de per­
guntar onde ele está. Se a meditação sobre a morte traz a alma
de volta ao presente, em uma estratégia de auto-aproximação,
o exame de consciência introduz uma distância de si a si que é
usualmente imperceptível para a alma.
Se Sêneca é uma referência para a meditação sobre a morte,
que atua por distanciamento e aproximação da alma, Marco
Aurélio desenvolverá uma prática inversa: a concentração e a
dispersão da alma. Aqui se trata de ver de perto, deter-se sobre
os detalhes, examinar o impacto e o valor dos acontecimen­
tos de magnitude infinitesimal que povoam nossa experiência.
Examinar os pensamentos que ocorrem espontaneamente ao
espírito, examinar o estranhamento com pequenas percepções
e sensações, nomear as coisas que nos passam despercebidas,
deixar evocar as memórias que tais impressões causam. Tudo
isso serviria para “dilatar a alma”, libertando, assim, o sujeito
de sua servidão ao ponto de vista médio. A dilatação da alma
deveria ser empregada em alternância com práticas de concen­
tração da alma, por exemplo: decompor um objeto numa série
temporal, redescrever um acontecimento tendo em vista seus

227
elementos componentes ou relatar de forma desqualificante
ou irônica os eventos aos quais atribuímos excessivo valor. O
objetivo nesta série é realizar uma decomposição da identidade
das representações que nos afligem ou nos fascinam. Compri­
mir e dilatar a alma são experiências complementares que fazem
alternar o sujeito como razão e o sujeito como ponto, desmem­
brando e decompondo a unidade de sentido que nos domina ou
que queremos dominar. No fundo, o stultos quer dominar o que
não pode e, com isso, deixa-se dominar pelo que pode.
Como uma contrapartida à concentração e distensão da alma
temos a estratégia oposta, que consiste em instalar variações de
contra-foco sobre a experiência. Por exemplo, tomemos uma si­
tuação problemática que alguém enfrente em sua vida e que o
torne obsessivamente ocupado com a questão. A solução para
este tipo de perda de si (alienação) consiste em considerar a si­
tuação do ponto de vista da eternidade, ou ver de cima ou de
olhar de longe. Olhemos para esta situação de cima, do céu como
diriam os estoicos. Esta mudança de perspectiva tende a revelar
outros aspectos da situação, eventualmente piores, que cercam
o indivíduo em sua vida pessoal. A estratégia inversa a esta é
chamada de “olhar de perto”. Aqui, por exemplo, temos um
problema menor, porém persistente, que não é suficientemente
importante para atrair nossa atenção de forma concentrada. A
consciência dispersa não investe a atenção de forma dirigida. A
ideia de olhar de perto é como focar lentes na situação de forma
a ver os detalhes que tornem a solução possível.
As variantes da meditação correspondem à combinatória das
possibilidades geométrica de relações entre o olhar e a visão. A
alma funcionaria como uma espécie de espelho, e a visão como
a função que localiza neste espelho os objetos, ou situações pro­
blemáticas. O espelho pode se afastar ou se aproximar do objeto,
permitindo assim ver e deixar de ver novos aspectos da imagem
formada. A alma pode ser ainda um espelho de maior ou menor
extensão, permitindo ver com maior ou menor amplitude. Fi­
nalmente, a alma pode ser um espelho que muda seu ângulo de
incidência sobre o objeto, deformando sua imagem.

228
5.5. MEMÓRIA
O terceiro grupo de práticas do cuidado de si reúne as
experiências com a memória (recordação, exame dos sonhos e
consolação). A reflexão sobre a memória é, ao mesmo tempo,
uma atitude diante do porvir e uma crítica do estado de ocu­
pação entendido como perda ou extravio de si. Concentrar-se
no presente, como enfatizam estoicos e epicuristas, é também
desligar-se de si no passado e no futuro. Inversamente, a re­
cordação é um caminho para reencontrar o presente e, a partir
dele, encarar o futuro. Segundo a afirmação de Epicuro: “Se
por eternidade não se entende a duração temporal infinita,
mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no
presente” (apud Wittgenstein, 1921).
Uma variante da prática da memória é o exame dos sonhos.
Aqui a convergência com a psicanálise encontra um raro pon­
to de apoio direto em Freud. A primeira parte da Interpretação
dos Sonhos (1900a) é um sumário fiel das questões levantadas
pelo cuidado de si em relação a esse tópico: a relação do so­
nho com a vida de vigília (a interpretação não deve ser pela
totalidade, mas por fragmentos); as relações entre o sonho e a
memória (incluindo a ideia de que o sonho é uma espécie de
memória profética); os estímulos internos e externos do sonho
(para os helênicos, havia numerosas formas de incitar um so­
nho); o lugar da corporeidade (incluindo o valor erótico dos
sonhos); o esquecimento dos sonhos (os helênicos desenvolve­
ram técnicas de lembrança dos sonhos); e, finalmente, o valor
clínico dos sonhos em sua relação com as afecções mentais.
Em suma, a ideia de que o sonho tem um sentido, de que este
sentido pode ser decifrado e que ele se refere à vida atual do
sonhador, mesmo que este não consiga reconhecer isso ime­
diatamente (daí o exame de consciência), toda esta série é uma
descoberta realizada no seio da experiência do cuidado de si.
Contudo, em suas referências à concepção sobre os sonhos na
antiguidade, e mesmo em sua admiração por Artemidoro de

229
Daldis, Freud mostra desconhecer completamente o lugar que
a prática do exame dos sonhos tinha dentro do sistema de cura
representado pelo cuidado de si (Lobo, 2004, p. 131).
A última variante dos exercícios da memória dá origem
a um gênero narrativo bastante cultivado na Idade Média: a
consolação. Boécio, expoente desse gênero, narra em A Con­
solação da Filosofia (1998) os últimos momentos de um con­
denado à morte. As agruras e temores diante da morte são
dissolvidos à medida que a figura onírica de uma mulher, ini­
cialmente vestida e imponente, designada como A Visitante,
revela-se ao fim uma grande alegoria da verdade. Quando Bo­
écio pode contemplá-la, encontra também “a face de seu ver­
dadeiro médico”. A consolação narra essa situação, que Lacan
(SVII: 1959-60, pp. 327-341) chamou de entre duas mortes’,
na qual aquele que fora professor de filosofia, injustamente
condenado, tem todas as suas demandas inapelavelmente sus­
pensas. Sua técnica consiste em intervenções que desequili­
brem as duas atitudes básicas diante da calamidade: a indife­
rença e a afetação exagerada (Jackson, 1999, p. 169). Ou seja,
diante da indiferença, convidar ao afetar-se; diante do afetar-
se, convidar à indiferença; e assim sucessivamente até que a
calamidade seja, ao mesmo tempo, profundamente sentida e
indiferente. A consolação se inclui entre as práticas que visam
um tensionamento máximo entre duas acepções de sujeito:
o sujeito como razão indeterminada e o sujeito como ponto
ou posição. O sujeito como razão instala-se na penumbra do
mundo, opera num espaço de distanciamento no qual todo
o tempo lhe é dado, e justamente por isso, a escolha se torna
impossível. O sujeito como ponto, ao contrário, funciona na
temporalidade de um instante irreversível no qual se deve es­
colher ou apostar.

Mostramos-lhe o mundo não para que possa escolher,


como as almas de Platão podiam escolher seu destino.
Mostramos-lhe o mundo para que se compreenda que não

230
tem escolha, e que nada se pode escolher se não se escolhe
o resto, que há somente um mundo, um único mundo
possível, e que é a ele que estamos ligados. (...) A única
escolha não é: que vida tu vais escolher, que caráter tu vais
atribuir-te, queres tu ser bom ou mal. O único momento
de escolha que é dado à alma, no momento em que no
lim iar da vida, nascerá neste mundo, é: delibera se queres
entrar ou sair, ou seja, se queres ou não viver. (Foucault,
1981-82, p. 347)

Na Consolação a M árcia (Sêneca, 2007, pp. 156-181), de-


senvolve-se o discurso da consolação dirigido a uma mãe que
perdera seu filho. A estratégia de Sêneca é apresentar dois per­
cursos sobre o luto. No primeiro narra-se a atitude de Octavia,
que ao perder seu filho Marcelo permanece toda a vida no
mesmo estado do dia do funeral. Rejeita seu outro filho, traja
luto e passa o resto de sua existência devotada à memória cris­
talizada do filho perdido. Lívia, em semelhante situação age
de forma inversa. Parece enterrar seu filho Drusos e ao mesmo
tempo o sofrimento por sua perda. Ela jamais deixou de pro­
nunciar o nome do filho perdido e convive pública e priva­
damente com sua memória. Vê-se assim como Sêneca parece
antecipar a diferença entre o luto patológico e a melancolia
(Octavia) do luto suposto normal (Lívia) (Silva, 2007). Sua
estratégia narrativa difere tanto da linhagem judaico-cristã,
quanto do gênero tipicamente grego. Em vez de designar os­
tensivamente qual deve ser a atitude a ser adotada por Márcia
ele lhe indica, cuidadosamente, que se trata de um momento
de escolha. A escolha deve ser feita, mesmo nesta circunstância
a qual o mais cruel destino cai sobre um sujeito.

5.6. MÉTODO
A quarta e última família de práticas ligadas ao cuidado
de si é composta pelo método. O método tem que ver com a
elaboração necessária da certeza e da decisão, duas dimensões

231
que compõem o horizofite da verdade, sobre o qual se estende
toda a experiência do cuidado de si. O método corresponde
à eleição de um ponto fixo, ao qual se poderá retornar e do
qual se pode projetar uma sistematização de si. Assim como a
meditação sobre a morte se opõe à distensão-concentração da
alma, o método se opõe às experiências de memória e exame de
consciência. O método pretende estabelecer um ordenamento
do futuro, tecendo compromissos e considerações sobre suas
contingências. Inclui-se aqui o tema dos acontecimentos im­
previsíveis, da brusca surpresa e também da avocatio, a fixação
de prazeres futuros, praticada pelo epicurismo. Esta fixação
não corresponde a uma espécie de plano de metas, mas a um
exercício de convivência e extração de prazer no trajeto que
leva ao prazer. É a distensão do prazer em trabalho, espera e
elaboração que o qualificam e o intensificam.
A forma reflexiva representada pelo método ganha impulso
na medida em que se torna cada vez mais importante pensar
o cuidado de si como método de educação individual. Com a
diluição do cuidado de si em cultura de si, o método torna-se
uma prática cada vez mais valorizada. Sua importância cres­
ce na medida em que a figura do cuidador evolui para a do
médico conselheiro. Encarregado de ajudar seu contratante a
fazer escolhas razoáveis e decidir pelas ações que não depen­
dem inteiramente de si, o método separa-se gradualmente do
cuidado de si até se autonomizar em disciplina de si.
No conjunto, os exercícios contidos nas diversas variantes
do cuidado de si testemunham um novo momento na forma
de organizar o conflito. Se, na tragédia, o conflito é tematizado
como prova da verdade que decidirá a partilha entre homens e
deuses, e se, na retórica, esta agonística se desloca para a rela­
ção de fala e convencimento entre os mortais, com o cuidado
de si, o regime de fixação e regulação do conflito se interioriza.
O cuidado de si forma-se no espaço deixado vazio tanto
pela cidade quanto pelas leis e pela religião no que se refere a
como conduzir a vida. Ele explora uma dimensão de liberda­

232
de que se localiza entre a pequena comunidade, a família e a
amizade, e as relações institucionalizadas, no sentido mais es­
trito da política e. das formas de produção. Este espaço, como
vimos, será gradualmente revertido pelas técnicas de vida bio-
políticas, religiosas e jurídicas que marcaram a Idade Média e
a ascensão do cristianismo (Foucault, 1981-82, p. 543). Nesse
trajeto os lugares públicos gradualmente absorvem para si as
posições privadas e, inversamente, os lugares onde essa liber­
dade se exercia se extrapolam em discursos públicos. Entenda-
se assim, que o cuidado de si representa o lugar em que essa
tensão entre os lugares e posições se localizou pela primeira vez.

5.7. SÓCRATES E A CURA DE ALCEBÍADES


A hipótese de que as práticas conhecidas como cuidado de
si, envolvem um tipo de relação com a soberania e com o po­
der que se reencontrará na psicanálise pode ser objetada por­
que não encontra corroboração textual em Lacan, autor que
mais sistematicamente procura referências práticas na antigui­
dade. Ao contrário, Lacan (E:1958d) repetidamente mencio­
na a ascese filosófica ou religiosa como contrária à psicanálise
e, ao mesmo tempo, localiza a psicanálise no contexto de uma
ética trágica. O argumento de que ascese e meditação são ver­
tentes distintas do mesmo sistema de práticas não é suficiente
para resolver o problema.
Pode-se argumentar adicionalmente que esse percurso pe­
las práticas do cuidado de si, em sua especificidade histórica e
em sua singularidade ética, parece ter passado despercebido a
Lacan. Ele morre um ano antes da publicação dos estudos pio­
neiros de Foucault (1981-82, p. 629) nesse campo, e é pouco
provável que tivesse contato com o trabalho de Hadot (1991).
Suas fontes helenísticas disponíveis para essa questão eram,
possivelmente, os trabalhos de Festugière (1950, p. 70), que
incorporava as práticas estoicas e a ascese filosófica à ascese
religiosa, e os estudos de Brochard (1887) sobre o ceticismo

233
grego, mencionados textualmente no seminário sobre o Ob­
jeto da Psicanálise (SXIII: 1965-66). No entanto, quando De-
leuze (1969) começa a recuperar a importância dos estoicos,
principalmente no que diz respeito à sua concepção de lin­
guagem, percebe-se uma imediata reação em Lacan. Os textos
do final da década de 1960 e início dos anos 1970 abundam
em referências aos estoicos, particularmente os trabalhos que
se referem mais diretamente ao tema da cura, tais como Da
Psicanálise e suas Relações com a Realidade (OE: 1968c) e O
Engano do Sujeito Suposto Saber (OE: 1968a), sem mencionar
passagens como esta:

Bem antes deveríamos encontrar nossos modelos no que


resta de tão irrealizado e, portanto, tão vivo do que a tradi­
ção nos legou de fragmentário dos exercícios do ceticismo,
na medida em que não são simplesmente estes malabaris­
mos cintilantes entre doutrinas opostas, mas ao contrário,
verdadeiros exercícios espirituais que correspondem certa­
mente a uma práxis ética, que dá sua verdadeira densidade
ao que nos resta de teórico sobre este assunto e sobre esta
rubrica. (SXIV: 1966-67, pp. 197-198)

Mas o argumento mais forte em favor da integração do cui­


dado de si à arqueologia da prática psicanalítica encontra-se
no uso que Lacan faz da figura de Sócrates. Há três momen­
tos desta aproximação. No primeiro (SVIII: 1960-61, p. 159),
Sócrates é apresentado como figura maior do desejo puro e
da posição de amante (erastes). Como tal, inspira o amor à
sabedoria. Ele é apresentado como: “... um miserável, porém,
no que a isso diz respeito, a divindade me proporcionou um
dom: o poder de reconhecer rapidamente um amante tão bem
quanto a um amado” (apud Goldschmidt, 1970, p. 75).
E a partir de seu saber prático sobre as coisas de Eros que ele
intervém no Banquete, redirecionando o amor que Alcebíades
lhe dedica a Agatão. E porque Alcebíades desconhece a função
do objeto como causa do desejo (agalma), que ele ignora as

234
razões de seu amor por Sócrates. O amor, o mais patológico
dos fenômenos normais, é separado do desejo, assim como a
verdade é separada do saber. Uma vez que o amor é o amor
ao saber, segundo a lição socrática, seria possível aspirar a uma
forma mais pura deste saber, que é a própria verdade. Ocorre
que a verdade deste saber não é um bem, mas um objeto vazio:

O que Sócrates sabe, e que o analista deve ao menos en­


trever, é que no nível do objeto a, a questão é inteira­
mente diferente daquela do acesso a um ideal. O amor
pode apenas circundar o campo do ser. (...) aqui está o
luto em torno do qual está centrado o desejo do analista.
(SVIII: 1960-61, p. 381)

Aqui o desejo de Sócrates aparece em estreita aproximação


com a noção de parrhesia:

Eu diria mesmo que quanto melhor o analista for analisa­


do, mais será possível que ele seja, francamente amoroso,
ou francamente tomado por um estado de aversão, de re­
pulsa, dos modos mais elementares da relação dos corpos
entre si, com referência ao seu parceiro. (Ibid., p. 183)

O segundo grupo de referências de Lacan a Sócrates altera


essa aproximação. Não se trata mais do desejo do analista como
um desejo puro, mas um desejo de obter a diferença absoluta.
Aqui o personagem socrático migra para a ideia de uma atopia,
um fora de lugar. Não se trata apenas da inversão do amante em
amado. Agora é importante que o desejo de analista se atenha a
manter a separação entre objeto a e o Ideal. O objeto a é aquilo
que denuncia no ideal seu déficit de existência, sua limitação. E
um luto, mas um luto diferente do que se prescrevia anterior­
mente. Surge uma aproximação entre o desejo do analista e o
desejo do escravo, e não mais com o desejo do suposto senhor,
que, pela ironia e maiêutica, dá à luz a sabedoria no outro. Apa­
rece, então, uma alusão direta ao cuidado de si:

235
Como ver outra <|oisa senão um primeiro esboço da técni­
ca do discernimepto da transferência no fato de Sócrates
lhe responder, não o que lhe dizia quando ele era jovem -
ocu pa-te d e tua alm a - mas o que convém ao homem ma­
duro e amadurecido - ocu pa-te do teu desejo... (SXI: 1964a,
p. 241)

Ora, essa mudança acentua a referência à verdade como


processo de enunciação do desejo e pensa a transferência não
do ponto de vista de sua instalação, ou seja, na vertente amo­
rosa, mas do ponto de vista de sua dissolução, concebida como
travessia das identificações e do luto correlativo dessas identifi­
cações. O falo difere do objeto a.
No terceiro momento, Lacan separa a figura de Sócrates e
a do analista, associando-o ao discurso histérico. Sócrates seria
ótimo exemplo da função do semblante em psicanálise —o
semblante que se expressa na ironia socrática como forma de
fazer produzir um saber no lado do analisante. Esta modifica­
ção pode ser atribuída à tematização de que, Sócrates (como
semblante histérico do psicanalista) ao se colocar como objeto
(,agalma), haveria que se definir não apenas por seu desejo,
mas também por seu gozo (Cottet, 1989, pp. 174-176). Para
desviar-se deste problema, Sócrates é deslocado da posição de
representante do desejo do analista para a de expressão histó­
rica do discurso histérico, cuja verdade é o gozo ignorado de si
como objeto. Ora, a diferença de Sócrates, o psicanalista, em
seu discurso, ocupa o lugar de semblante de objeto a (causa de
desejo) e não a função objeto a mais-de-gozar.
Ou seja, tudo se passa como se o desejo de Sócrates estivesse
inconvenientemente ligado ao desejo de saber, daí que Lacan
precise dar voltas para redimensionar, separar e relativizar sua
função no interior da transferência e do tratamento. Ocorre
que essa relação entre o desejo e o saber é problemática ape­
nas se tomamos como referência o Sócrates platônico. Como
vimos, as coisas se passam de modo inteiramente diferente

236
quando se trata do Sócrates helenístico ou do Sócrates retra­
tado por Aristófanes (como figura cômica, e não trágica). Ao
associar a tradição do cuidado de si à ascese filosófica, Lacan
termina por diluir o problema numa oposição simples entre
a dialética integrativa e a dialética desintegrativa que o leva a
descartar a importância arqueológica da figura socrática.
Não se deve considerar o cuidado de si apenas como prá­
tica de vida, uma técnica da felicidade, para usar a expressão
de Freud. Seria preciso ler novamente o tema lacaniano da
afinidade entre o desejo de Sócrates e o desejo do psicanalista,
levando em conta que Sócrates é metáfora central tanto para a
tradição platônica do conhecimento de si quanto para a tradi­
ção helênica do cuidado de si.

5 . 8 . A VERDADE E A CONSTITUIÇÃO DA CURA


A noção de cura em psicanálise pode ser entendida como
ponto fora da reta formada entre psicoterapêutica e clínica.
Como contradição interna na superfície na qual convivem
diferentes exigências de poder. As práticas do cuidado de si
abordam o compromisso problemático entre técnica terapêu­
tica e método clínico. O ponto fora desta superfície é o que
cpodemos chamar de ética do cuidado. Afirmar que a psicaná­
lise se constitui apenas como formação discursiva homogênea
é um tanto abusivo. Quando considerarmos sua delimitação
externa por outros discursos (medicina, ciência, moral), ou
quando considerados sua delimitação interna pela formação
de um objeto (sintoma, sofrimento, mal-estar) não temos
como deduzir a ética do cuidado e a relação com a verdade.
O esforço crítico de Foucault com relação à psicanálise
pode ser lido como uma tentativa de fazer sua arqueologia
mostrando como ela participa de outras formações discursi­
vas: o silenciamento da loucura (1961), a ordem psiquiátri­
ca (1973-74), a disciplina da sexualidade (1984b; 1984c), o
dispositivo de confissão (1976). Não obstante, Foucault apre-

237
senta Freud como uip fundador de discursividade (1970) e
partícipe de uma hermenêutica da suspeita (1975b). Contu­
do o final abrupto da obra foucaultiana nao deixa claro se as
patentes ligações da psicanálise com o cuidado de si e com a
estética da existência poderiam alterar seu estatuto ético no
programa crítico foucaultiano.
Se a psicanálise, de fato, se afigura como dupla recusa, tan­
to da tradição psicoterapêutica quanto da tradição clínica, isso
não deveria nos eximir de pensar a concepção especificamente
negativa de poder que remanesce nesta recusa. Ela é uma psi-
coterapia e uma clínica, mas não só. Há, ainda, espaço para
que ela se apresente como uma forma de cura derivada da cura
sui aqui examinada. Ou seja, a separação entre ética e política
é bem menos clara quando se considera como hipótese que a
matriz desta divisão encontra-se na antiga tradição do cuidado
de si. Quando se afirma que “não há outro ponto, primeiro e
último, de resistência ao poder político senão na relação de
si para consigo”6, isso nao quer dizer exterioridade política,
neutralidade benevolente ou malevolente, nem mesmo confis­
são dirigida ou interiorização psicologizante. Como vimos, o
pedido de Alcebíades é explicitamente relativo ao ingresso na
prática política.
O problema da cura como conceito-limite entre filosofia e
psicanálise é que não basta recusá-la ou aderir a ela como se
consistisse apenas numa extensão da cura filosófica. E preciso
encontrar a justa medida para bem recusá-la sem perder a ten­
são entre ética e política que nela se exprime. Cumpre notar
que tanto o vértice clínico quanto o terapêutico nascem de
uma dissociação e uma renúncia a pensar sua articulação com
a política, quer pela redução ética quer pela redução técnica.

6. “Talvez seja um a tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável constituir uma


ética de si, se depois de tudo é certo que não há outro ponto, primeiro e último de re­
sistência ao poder político que na relação de si consigo mesmo.” (Foucault, 1981-82, p.
246).
Para Aristóteles, a práxis é composta por dois saberes: a éti­
ca e a política, cada qual orientada, respectivamente, para o
bem individual e. para o bem comum. A política é um campo
definido pela noção de conflito - conflito este tematizado e
tramitado segundo as regras que definem o próprio campo
político. Assim como a política parece acentuar a relação entre
meios e fins da ação, a ética parece acentuar a relação entre
o agente e o destinatário do ato. Ou seja, um conflito po­
lítico se resolve politicamente, e politicamente se deliberam
regras pelas quais ele poderá ser abordado: o direito, a guerra,
a economia, a diplomacia. Constata-se, assim, uma dimensão
pragmática e performativa na definição do campo político.
Definir qual é o espaço da política já é um ato que estabelece,
simultaneamente, uma posição neste espaço e quais são suas
posições correlativas.
Isso se aplica também ao caso da ética da cura. No entanto,
nem todas as éticas são éticas constitutivamente baseadas no
conflito, mas toda política o é. Segundo esta apreciação, a psi­
canálise se caracterizaria como uma ética que admite o caráter
constitutivo do conflito (e neste caso, segue o princípio geral
que rege a política) ou como uma ética para a qual o confli­
to possui valor derivado. Isso aparece de forma implícita em
Lacan quando aborda o desejo, ao longo de toda a sua obra, a
partir da relação dialética entre o senhor e o escravo. Ou seja,
uma relação definida pelo poder e pelo conflito entre as for­
mas do desejo que a própria situação engendra. Uma relação
na qual o poder se encontra em relação de descompasso e sus­
peita com o saber. O desejo, sendo efeito deste descompasso,
está ligado à noção posicionai de reconhecimento. Mas há ou­
tro fio condutor para essa questão na obra de Lacan. Trata-se
da hipótese de que o Real antecede o sexual, sendo este uma
espécie de defesa primária contra o primeiro. Ao contrário da
sexualidade, que se define em sua constituição, formação e
construção como campo do conflito, o Real é causa exterior
e condição de possibilidade do conflito. Como paradoxo para

239
o pensamento e para a‘ experiência, o Real não cessa de não se
inscrever, sendo, assim, condição de possibilidade para todo
conflito possível.
Na alternativa assim definida, encontramos a verdade
como tema demarcatório. Historicamente, política e verdade
só se reúnem à custa de uma teologia ou de uma metafísica.
Ambas as alternativas acabam por deixar de fora o ser mesmo
do sujeito. Tanto na teologia quanto na metafísica, o ser do
sujeito em sua facticidade e sua experiência é absorvido como
um caso particular do Ser em geral. Nisso se priva a perspec­
tiva em que o dizer verdadeiro seja uma experiência singular
ao sujeito. A questão acerca do ser do sujeito e dos efeitos de
retorno da verdade sobre o sujeito origina-se na tradição que
Foucault chama de espiritualidade, que não é a da teologia
nem a da metafísica, mas a do cuidado de si. Em nossa época,
haveria duas formas de prática que seriam heranças dessa tra­
dição: a psicanálise e o marxismo.

... todo o interesse e a força das análises de Lacan estão


precisamente nisso: creio que Lacan foi o único depois de
Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise preci­
samente nesta questão das relações entre sujeito e verdade.
(...) ele tentou colocar a questão que, historicamente, é
propriamente espiritual: a questão do preço que o sujeito
tem que pagar para dizer o verdadeiro e a questão do efei­
to que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse, de que
pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio. (Foucault,
1981-82, p. 40)

Allouch (2007), em estudo específico sobre as relações en­


tre psicanálise e espiritualidade, no sentido foucaultiano do
termo, assinala seis pontos de aproximação recíproca neste
tema. Do ponto de vista foucaultiano a psicanálise é descen­
dente da tradição da espiritualidade porque: (1) é uma ativida­
de paga, que constitui um meio de vida para quem a pratica;
(2) transmite-se sob a condição de um estilo de vida, de forma

240
oral e pessoal, em uma experiência; (3) é uma experiência que
acontece de forma continuada e que depende de uma relação
de fala com o outro; (4) ela é frequentemente promovida no
contexto do sofrimento, da desorientação e aspira algum tipo
de transformação ou salvação; (5) ela reúne a dimensão polí­
tica e terapêutica da catharsis na forma de um método ou de
uma atividade regrada; e (6) ela baseia-se na eficácia da verda­
de (truth-telling) e na fala franca e livre {parrhesia). Também
do ponto de vista lacaniano, encontraríamos seis pontos de
convergência entre a espiritualidade. Percorrendo o emprego
do termo espiritualidade, na obra de Lacan, verifica-se que ele
aparece para (1) indicar a transmissão da psicanálise no inte­
rior de uma Escola, na acepção que o termo tinha na antigui­
dade; (2) criticar a assimilação da psicanálise a uma técnica
de direção de consciência ou aconselhamento da personali­
dade; (3) criticar a fundamentação espiritualista da prática da
psicanálise ao modo de uma iniciação; (4) criticar a ideia de
que psicanálise conduz à elevação moral e espiritual do sujeito
tendo em vista uma escala de valores; (5) qualificar o legado
de dois autores: Hegel e Heidegger; e (6) afirmar que a psi­
canálise pertence à tradição da espiritualidade por assumir a
verdade como um valor:

Mas não nos esqueçamos de que a verdade é um valor que


corresponde à incerteza com que a experiência vivida do
homem é fenomenologicamente marcada, e que a busca da
verdade anima historicamente, sob a rubrica do espiritual,
os arroubos dos místicos e as regras do moralista, as sendas
do asceta e as descobertas do mistagogo. (E:1936, p. 83)

Ao reverter a verdade da psicologia (como falsa ciência) em


psicologia da verdade (a psicanálise), Lacan sugere a absorção
de critérios de verdade originados fora da ciência, a saber, a
certeza (prova do conhecimento místico), a evidência (prova
do conhecimento filosófico) e a não-contradição (prova do co­
nhecimento empírico-racional).

241
Birman é outro autor que dedicou-se ao problema das rela­
ções arqueológicas entre a psicanálise e o cuidado de si. Contu­
do seu encaminhamento sugere que “talvez se pudesse consti­
tuir outra modalidade de clínica, em cujo fundamento estaria
o cuidado de si, em que as figuras do louco, do enfrmo, do
criminoso e do erotismo seriam restituídas nas suas potências de
saber, como modalidades positivas de afirmação de si mesmas.”
(Birman, 2000, p. 98). Opondo o cuidado de si à filosofia do
sujeito e inscrevendo Lacan na tradição da purificação crítica do
sujeito, forma-se assim uma oposição desnecessária. Por outro
lado uma clínica exclusiva e majoritariamente baseada no mal-
estar e no desamparo mereceria ainda o nome de clínica? Talvez
Birman aceite demasiadamente o diagnóstico foucaultiano da
psicanálise incorrendo no mesmo tipo de unificação da prática
psicanalítica que nos parece conveniente evitar.
Uma questão que resta em aberto nesta trilha é se a psica­
nálise poderá dar conta desses efeitos no plano do conheci­
mento, uma vez que o cuidado de si, por definição, não pode
ser traduzido nestes termos. Ou seja, a questão é saber se a te­
oria psicanalítica e a formalização da clínica que a define pode
ou não estar à altura do fator de contrapoder inerente ao fazer
de onde esta emerge. De fato, a prática do cuidado de si situa-
se no campo político, mas como uma espécie de elemento ne­
gativo, como uma resistência a que esta estabeleça um único
regime possível de soberania, a soberania sobre os outros.
Que a psicanálise seja uma técnica de cura e um método de
tratamento, disso se conclui que a verdade é indiferente à fon­
te de sua eficácia. Técnica e método são condições da ciência
moderna, que, por definição, abole o problema da verdade.
O mesmo não ocorre, como vimos, no espaço da antiguida­
de. Inversamente, se a psicanálise partilha problemas e estra­
tégias com narrativas de compromisso narrativo, ela o faz ao
se aproveitar de pontos de desestabilização da verdade nesses
domínios de saber. A reunião dos dois argumentos convergi­
ria para a ideia de que a verdade é uma categoria totalmente

242
t
prescindível (senão desnecessária) em psicanálise. Ocorre que
a verdade negada na esfera da clínica não é a mesma verdade
negada na esfera da psicoterapia. São posições causais distin­
tas. Uma dificuldade para pensar a constituição histórica da
psicanálise é que ela comporta, sim, um regime próprio para a
questão da verdade:

... não foram tantas pessoas que, nos últimos anos, no


século XX, colocaram a questão da verdade. Não foram
tantas as pessoas que se perguntaram: o que se passa com
o sujeito e a verdade. (...) Quanto a mim, só vejo duas:
Heidegger e Lacan. (Foucault, 1981-82, p. 223)

E neste ponto que se introduz o horizonte de verdade pre­


sente no cuidado de si. Verdade, neste contexto, não se refe­
re ao ato de conhecimento prospectivo pelo qual alguém se
apodera do objeto e de sua ideia correspondente. O eu em
questão é um objeto, mas não no sentido de um objeto de
conhecimento. A verdade funciona para o sujeito do cuidado
de si como um efeito de retorno das transformações do sujeito
sobre si. Verdade, portanto, na ordem da veridicidade do dizer
verdadeiro {elocutio), mais do que do dizer sobre a verdade
(metalinguagem). Este é um ponto importante: é preciso que
o sujeito se modifique para que a verdade possa ser dita, por­
que a verdade aparece como nome possível para a causa dessa
transformação contingente. A verdade, nesta acepção prática,
é efeito desse esforço de transformação e, como tal, jamais
é buscada e procurada diretamente como fim em si mesmo,
como faz o filósofo profissional. Ela não possui valor deonto-
lógico ou tético, mas permanece no lugar de causa formal, que
só se apreende por seus efeitos.
Insisto: não se trata, neste contexto, de uma forma do co­
nhecimento (epistemé), como pleiteavam os gnósticos e os ne-
oplatônicos, ou seja, um saber suficientemente generalizável
e resistente ao tempo que seria possível guardar e transmitir,

243
aspirando sua universa|idade. Para o platonismo, a verdade é
um capítulo da história do amor da filosofia pelo saber, his­
tória que está repleta de condicionalidades, regras, métodos,
exigências intrínsecas e extrínsecas ao ato de conhecer. E um
processo de purificação que deixa de lado, progressivamen­
te, o ser do sujeito. Para os helênicos, e especificamente no
contexto da prática que examinamos, a verdade é imanente e
indissociável da própria experiência de transformação do su­
jeito na atualidade de sua vida ativa e seu discurso: “... a idade
moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia
em que postulamos que o sujeito, como ele é, é capaz de ver­
dade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar
o sujeito” (Ibid., p. 24).
Ou seja, a verdade, a partir do século XVII, torna-se atri­
buto do bom uso da razao universal. A verdade torna-se in­
diferente aos atos que constituem um sujeito como capaz de
verdade. Ê isso que Lacan chama de foraclusão do sujeito no
discurso da ciência (SXVII: 1969-70). Geralmente, esta di­
mensão da verdade se opõe à dimensão teológica e finalista
dominante no medievo. Ocorre, como vimos, que o domínio
da verdade em psicanálise se opõe a ambas as concepções, exi­
gindo outro ponto de partida.
Quero crer que essa problemática se liga a certa atopia
cultural da psicanálise que a torna de difícil assimilação aos
territórios disciplinares. Não é ciência, mas guarda relação
problemática com esta; não é arte, mas sua experiência seria
impensável sem ela; não é religião, mas pode se transformar
em uma (Gellner, 1985). Essa localização pelo negativo apa­
rece, por exemplo, na ideia defendida por Freud (1926e) de
análise leiga (Laienanalise). Leiga ou laica, neste contexto, é
um adjetivo que possui três conotações: opõe-se à ideia de que
a psicanálise seria um ramo da profissão médica (leigo = não
profissional); contraria a tese de que ela seria um sistema de
crenças (laico = não religioso); e confronta o argumento de
que ela seria uma forma específica de se obter conhecimento

244
(leigo e laico = saber comum). A dificuldade em situar a ori­
ginalidade da experiência analítica tem conduzido a reduções
discutíveis movidas pelo impulso de incorporar aquilo que é
novo ao já sabido, neutralizando ou derrogando seu potencial
de resistência e crítica.
Temos, então, a hipótese de que há um ponto inaugural no
espaço do cuidado de si, ponto no qual a noção de verdade,
concernente ao sujeito, é deflacionada de seu potencial episte-
mológico ou moral (no sentido de um saber pré-constituído so­
bre a ação). O interesse adicional desta tese é que, neste espaço,
a verdade seria potencialmente imunizada contra seus efeitos de
opressão e dominação. Se ambas as hipóteses se verificam, isso
depõe em favor da ontologia política das práticas clínicas, e da
psicanálise entre elas, sem que implique, ao mesmo tempo, o
exercício de poder como dominação sobre o outro.
O exame das configurações pré-modernas das estratégias
de tratamento da alma pode ser organizado a partir de três
formas de saber distintas, mas articuladas:

Cura

Terapia Clínica

A superfície formada entre a cura e a clínica compreende o


amplo espectro de práticas e compromissos baseados na trans­
formação de si como esforço de enunciação de uma verdade
própria, segundo a incidência maior ou menor de uma ética

245
da excelência. No eixcí que vai da clínica à terapia, a questão
da verdade é suprimida, e em seu lugar acentuam-se os efeitos
de transformação baseados numa ética da eficácia. Aqui ocupa
lugar central a noção de sintoma. Finalmente, no eixo que vai
da terapia à cura, encontramos as práticas que mais nitida­
mente se comprometem com uma estratégia política na qual
se vêem facilmente subordinadas. Aqui é a noção de sofrimen­
to que se torna central. Note-se como esta articulação entre o
sintoma, o sofrimento e a verdade está no centro da pergunta
dirigida por Lacan aos analistas, no que tange à sua relação
com seu fazer: “... para lhes formular uma pergunta, a vocês
analistas: sim ou não, isso que vocês fazem tem o sentido de
afirmar que a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade
como causa?” (E: 1966a, p. 825).
Ou seja, a superfície clínica prescinde da relação com a ver­
dade; a referência desta prática alude ao sintoma, mas nao ao
sofrimento. A superfície terapêutica inclui o saber, mas seu
referente é a noção de sofrimento, e não de sintoma. É com
a superfície do cuidado, que verdade e sofrimento podem ser
articulados na ideia de sintoma, e o saber pode se articular
ao sofrimento, na ideia de cura. Cada uma dessas superfícies
está aberta a múltiplas articulações discursivas, ou seja, não
são propriamente discursos, mas narrativas e esquemas de in­
terpretação e leitura. São estratégias e táticas que encontram
sua terminação final e sua visibilidade na medida em que sua
bidimensionalidade é desdobrada num espaço de múltiplas
dimensões. Por exemplo, a cura, como projeto ascendente na
esfera do cuidado de si, admite uma articulação com a filosofia
platônica, outra com as escolas helenísticas e uma terceira com
o cristianismo. A retórica admite variações extremas mesmo
que a consideremos no quadro de uma hermenêutica geral
e até mesmo de uma teologia. Podemos, assim, descrever a
distribuição e a ocupação dessas superfícies pelas práticas que
examinamos:

246
Cura

Catharsis Dcsintcgrativa Cultura de si


Catharsis Integrativa Cuidado de si
Compromisso Narrativo Técnica de si
Xamanismo

Terapia Clínica

Retórica Medicina Filosófica


Empédocles
Hipócrates

Em cada superfície, encontramos um ponto de torção in­


terna. Na superfície que vai da clínica à terapia, localizamos
essa passagem na virada que vai do xamanismo de Empédocles
à medicina hipocrática. E um corte interior que se relacio­
na com a inscrição social e com o sistema de transmissão de
determinada prática. Na superfície que vai da terapia à cura,
encontramos esse sistema de transição que é a tragédia, que se
desdobra tanto nas práticas ligadas à catharsis política quanto
em sua diluição em estratégias de compromisso e conciliação
entre as narrativas hegemônicas em termos de políticas de sub-
jetivação. Finalmente, na superfície que vai da cura à clínica,
podemos desenhar o amplo movimento de absorção das práti­
cas de cuidado de si {cura sut) até que esta desse origem a uma
tecnologia da confissão e do conhecimento de si. Refiro-me
a superfícies, e não retas ou linhas, pois penso que é na mú­
tua limitação e no compromisso entre as diferentes estratégias
que podemos caracterizar cada uma. De fato, falamos numa
constituição, e não apenas numa genealogia, porque cada su­
perfície se forma tanto pela negação interna, definida por seu
ponto de torção, sua negação interna, quanto por aquilo que
ela precisa suprimir para existir como tal, isto é, uma negação

247
externa. Lembremos i^ossa definição de constituição: proces­
so pelo qual algo se perde para que uma nova realidade se
torne possível. Apliquemos agora este conceito a cada uma
das superfícies descritas até aqui. O vértice extremo oposto a
cada uma das superfícies é o ponto de constituição. Assim o
vértice representado pelo cruzamento entre superfície da cura
e superfície terapêutica é o ponto de constituição da clínica.
Ou seja, para que a clínica pudesse existir como prática na
modernidade foi preciso excluir dela as noções de verdade e
de sofrimento moral, bem como qualquer conotação ético-
metafórica do olhar e ainda a antiga acepção ética da ideia de
método. Por outro lado, a partir de cada vértice pode-se deli­
near uma reta bissetriz que incide sobre a superfície oposta ao
modo de uma projeção deste ponto de constituição. Ora, este
ponto podemos chamá-lo de ponto deform ação. Ele representa
a contradição interna que gera uma determinada superfície.
Por exemplo, a contradição entre retóricas do espaço e retó­
ricas do tempo está no núcleo de formação das práticas de
interpretação da antiguidade. A contradição entre a clínica de
Empédocles e a clínica de Hipócrates é um ponto formativo
da superfície clínica da antiguidade. Finalmente, sobre o pon­
to externo de constituição e o ponto interno de formação de
uma determinada superfície podemos delinear o caminho de
construção de uma determinada prática. A construção respon­
de pela extensão ou hegemonia de uma determinada super­
fície, em um determinado momento histórico ou uma dada
configuração social. Por exemplo, a dominância da superfície
da cura no período helênico, ou a extensão da superfície te­
rapêutica no período clássico. Ou seja, a medicina de Hipó­
crates nega a estratégia de Empédocles num primeiro nível de
sua constituição, mas ambas suprimem a ideia de cura para
se estabilizar. Assim, podemos rebater esse ponto rejeitado na
própria origem e reencontrar as categorias freudianas:

248
Cura
{Kur, Sorge)

Restabelecimento / \ Saúde
(Heilung) / \ {Genesung)

Terapia Clínica
{Klinik)
Tratamento
{Behandlung)

Encontramos desta maneira, uma relação constitutiva en­


tre as formas de saber, ou modos de experiência (cura, clínica
e terapia), com o nível que caracteriza os procedimentos e as
práticas de tratamento, cuidado e restabelecimento. O ponto
de torção no interior de cada superfície encontra uma deter­
minação exterior que se sobrepõe à sua contradição interna.
Vimos como isso se manifestava na exclusão da noção de cura
em psicanálise, em detrimento da noção de tratamento. Agora
é possível compreender esta exclusão como elemento consti­
tutivo que localiza, por exemplo, a discussão sobre o poder
como elemento estranho à superfície propriamente clínico-te-
rapêutica. Exterioridade que possui valor constitutivo. Assim
como a retórica mantém uma relação constitutiva, mas exte­
rior à política, a cura, como produção de uma nova forma de
vida, mantém uma relação de exterioridade constitutiva para
com a superfície clínico-terapêutica. Segundo nossa teoria da
constituição topológica das práticas clínicas, algo estranho e
impensável mesmo nesta superfície da cura-clínica, funda a
torção constitutiva desse eixo. É por uma projeção similar que
entendemos a noção de restabelecimento, como procedente
do polo clínico injetando uma torção exterior na superfície da

249
cura-terapia. Em cada|caso, encontramos um tipo de prática
cujo núcleo encontra-se tematizado na forma de um ponto
constituinte que é exterior a reta e que incide sobre sua própria
contradição formativa.
Entre as exigências éticas e políticas, para tratar o mal-estar,
presentes na noção de cura, cuidado ou atenção (.Kur, Sorge)
e as aspirações metodológicas e científicas da noção de clínica
(.Klinik) formou-se o campo positivo e negativo da saúde (Ge-
nesung). Desde seu início no século XVIII, como veremos, a
saúde é uma noção gerada pela assimilação política de um ide­
ário científico do controle social de populações. Em psicanálise
esta superfície se exemplifica na ideia de que os sintomas são ao
mesmo tempo, expressões patológicas de simbolização e frag­
mento de uma verdade que ainda não pode ser reconhecida. E
a superfície na qual o sintoma se liga ao mal-estar (Unbehagen).
Entre as demandas científicas e universitárias da clínica
{Klinik) e as espectativas de eficácia e disciplina, derivadas da
terapia {Therapie) formou-se a prática do tratamento, enten­
dido como agir racional com relação a fins. A noção de trata­
mento {Behandlung) depende da associação entre as técnicas
de redução do sofrimento e os métodos de investigação, clas­
sificação e ordenamento do procedimento médico. Em psica­
nálise esta superfície compreende desde o problema relativo às
ligações entre formas de sintoma e modalidade de sofrimento,
até as questões de método e técnica, de interpretação e uso
diferencial da palavra.
Finalmente, na contradição posta entre a expectativa de efi­
cácia terapêutica, como redução do sofrimento por meio das
técnicas terapêuticas (Therapie) e as expectativas de excelência
de auto-realização, presentes na ideia de cura {Kur, Sorge), de­
senvolveram-se as práticas morais da salvação, da confissão e do
retorno ao estado anterior {Heilung). Em psicanálise esta super­
fície está bem representada pela temática do início e do fim da
análise, das condições de formação do desejo de analista, das
modalidades únicas ou regulares de transferência e seu manejo.
CAPÍTULO 6

M O N T A IG N E , O MAIS CÉTICO
DOS H IST É R IC O S

Temos na filosofia uma medicina muito agradá­


vel pois, nas outras, sentimos o bem estar apenas
depois da cura; esta faz bem e cura ao mesmo
tempo.
Montaignc

6.1. ACURA REAL

L
UÍS XIII SAGROU-SE REI EM 1610, MODIFICANDO OS COSTUMES
que presidiam a cerimônia de coroação. Há pelo menos
quatrocentos anos, o soberano francês iniciava seu reinado
com uma peregrinação à pequena abadia de Corbeny. Lá reza­
va diante dos restos mortais de São Marcoul. Assim ungido e
sancionado pela intercessao do santo, o rei de França tornava-
se um rei capaz de curar. A crença remontava a Clóvis, fun­
dador da dinastia dos merovíngios, que recebera tal dom por
meio de um sonho e o transmitia de forma sanguínea a seus
herdeiros, mas não sem a sanção religiosa que fazia o poder de
cura em potencial surgir como poder em ato. Daí que, logo na
saída da abadia, o rei tocasse alguns escrofulosos, curando-os,
mas não imediatamente. Era preciso devotadamente beber em
jejum, durante nove dias, a água na qual o rei se lavava após
tocar os doentes, para reforçar a cura.
Os monarcas comjpetiam entre si e tinham suas especiali­
dades: os reis ingleses curavam a epilepsia, contando para isso
com ajuda de anéis mágicos (cramp-rings); os reis húngaros se
especializaram na icterícia; os reis de França eram peritos nas
escrófulas, inflamações dos gânglios linfáticos causadas pelo
contato com o bacilo da tuberculose. A medicina medieval
distinguia mal a diagnostica das escrófulas, provavelmente in­
cluindo nela uma série de afecções do pescoço e da face, geral­
mente de tipo deformante ou desfigurativo (Bloch, 2005, pp.
51-52). A São Marcoul eram atribuídas curas, como a tantos
outros, mas foi por associação fonética com pescoço (cou) que
ele se tornou o milagreiro das escrófulas. Ou seja, não é por­
que havia uma relação histórica entre a casa real francesa que
São Marcoul tornou-se um de seus padroeiros, mas pelo fato
de o rei francês curar escrófulas foi necessário encontrar e valo­
rizar o santo que se encarregava de tal habilidade. Em que pese
a antiguidade da crença no poder de cura dos reis e na habili­
dade contígua do santo, foi só nos séculos XV e XVI que esses
dois saberes se cruzaram numa nova forma de legitimação do
poder. Aqui começam os espetáculos teatrais sobre a cura, a
distribuição de moedas aos participantes, as peregrinações po­
pulares massivas a Corbeny (Ibid., pp. 194-200), a reconstru­
ção mítica de seu padroeiro, São Marcoul. Agora era preciso
enviar um atestado de cura, assinado pelo pároco ou pela jus­
tiça local, confirmando formalmente a autenticidade da cura.
Os reis ordenavam investigações para saber se, de fato, os úni­
cos encarregados de curas milagrosas eram os santos, os reis
e os curandeiros natos. Entre os diferentes tipos de práticos
da cura, ganha visibilidade e legitimidade um tipo específico,
ou seja, os sétimos filhos nascidos de um mesmo casal cristão
(Ibid., pp. 206-208). Encontra-se, assim, uma duplicação do
princípio de transmissão genealógica da potência da cura que
não concorre, mas fortalece a dignidade da cura real. Ele é rei
por sua descendência natural, assim como os curandeiros o
são pela sua posição como filhos. O rei cuida de seus súditos

252
assim como o pai cuida de seus filhos e o médico cuida de seus
enfermos. Todas estas relações de cuidado estão regidas pela
grande alegoria da pastoral: o criador cuida de sua criatura as­
sim como o pastor cuida de suas ovelhas. Nesta reviravolta his­
tórica, a relação de cura, antes marcada pelo distanciamento
crítico com relação ao poder, torna-se agora expressão direta
de seu mais direto exercício. Estava definido o carisma da cura.
O milagre régio era a expressão de um tipo de poder polí­
tico supremo. Até o século XVI, ainda não vigorava a fórmula
consagrada depois de Luís XIV (1643-1715), ou seja: “O rei
te toca, Deus te cura”. Antes era o rei mesmo quem curava.
Havia reis que tocavam seus doentes todos os dias; outros,
uma vez por semana; alguns, até mesmo em campanha no
exterior. Todos praticavam a cura nos dias de festas, como a
Páscoa e o Natal. Carlos II, rei da Inglaterra, (1660-1685)
granjeou extrema popularidade entre seus súditos alcançan­
do a cifra impressionante de cem mil curas ao longo de seus
quinze anos de reinado (Ibid., p. 248), sem especificação de
classe ou origem.
Recusar a dignidade do milagre da cura era colocar em dú­
vida a legitimidade do poder (Ibid., 105). Os manuais médi­
cos e eclesiásticos reconheciam a Excelência e Eficácia da Cura
dos Reis, conforme título comum dedicado ao assunto. Dis-
cutia-se o momento exato em que um rei adquiria seu poder
taumatúrgico: quando eram elevados como reis ou quando
ungidos pelos santos óleos? Quando realizavam sua primeira
cura efetiva?
A alegoria da cura fazia parte da religião absolutista, e con­
sistia basicamente na articulação alternada e ambígua entre
diferentes ordens de legitimação do poder:

A majestade dos reis da França não pode ser declarada


inteiramente leiga. Disso temos diversas provas: primeiro
a santa unção, que é originária do próprio céu; depois o
celeste privilégio da cura das escrófulas, produzido pela

253
intercessão de S..»Marcoul; enfim, o direito de regalia,
sobretudo o de regalia espiritual... (Ceneu, 1597, apud
Ibid., p. 234)

O declínio da taumaturgia régia está no centro das con­


trovérsias políticas sobre o direito divino ao poder, e pode ser
assinalado pelas graduais modificações que vão se introduzin­
do na fala do rei quando do toque dos escrofulosos. No século
XVII, a expressão evolui de “O rei te cura” para “Deus te cura”
(.Dieu te guérit). No século XVIII, encontramos a variante
“Deus te cure” {Dieu teguérisse). Na última cerimônia de cura
praticada por Carlos X, em 1825, a expressão é “O rei te toca,
Deus te cure” (Ibid., pp. 260-263). E nesse contexto que o
dito é assimilado pela medicina e dela empregado por Freud
(1912e, pp. 114-115):

Aquela frieza de sentimentos que cabe exigir do psicana­


lista se justifica porque cria para ambas as partes as con­
dições mais vantajosas: para o médico, o muito desejável
cuidado de sua própria vida afetiva; para o enfermo, o
máximo grau de socorro que nos é possível prestar-lhe.
Um velho cirurgião abraçou esta divisa: “J e lepan sai, D ieu
lê guérit" [Eu o tratei, Deus o curou]. O analista deve dar-
se por satisfeito com algo parecido.

Desde Clóvis, O Meroveu, que se converteu ao catolicismo


e expulsou os Visigodos em 416, até a abdicação de Carlos X
em 1830, quatorze séculos se passaram. Neste período os reis
sempre curaram pessoas com a técnica taumatúrgica da imposi­
ção das mãos, mas foi apenas a partir do século XVI que a cura
tornou-se um fator político crucial. E preciso separar o discur­
so da cura do ato da cura. O discurso da cura régia envolvia a
eventual santidade do rei, episódios de conversões espetaculares
(desde a famosa conversão de Constantino), milagres e alianças
sagradas. O ato medieval da cura expressava a submissão do rei
ao poder celestial. O ato moderno da cura, ao contrário, afirma

254
mais a soberania do rei do que sua submissão à anuência divina.
Entre ato e discurso há uma inversão de funções. Através dela, o
rei representava uma espécie de paradigma da conversão. A co­
roação era, simultaneamente, um ato de investidura de poder
político e uma legitimação deste poder na esfera do sagrado.
Os reis médicos dialogavam, assim, tanto com o saber natural
da medicina quanto com a crença popular. Para os naturalistas
italianos do século XVII, e para os universitários alemães do
século XVIII, a cura régia representava o ponto capital de re­
sistência à laicização do saber médico. Ele é o último milagre a
ser descartado na formação das ciências naturais.
Se o rei exerce simbolicamente a função de primeiro médi­
co do reino cabe mencionar a importância de seu maior obstá­
culo. A antípoda da cura e o maior desafio médico à soberania
real atingiu a Europa em ondas sucessivas entre 1348 e 1720.
Retornava em ciclos de 8 a 12 anos sendo improvável que
algum europeu não tivesse contato com ela ao longo de sua
vida. Milão em 1630, Nápoles em 1656, Londres em 1665,
Marselha em 1720, são exemplos de cidades que perderam
mais de um terço de suas populações durante a Peste Negra. A
força deste mal confronta o poder real em vários sentidos. A
peste dissolve as diferenças sociais, avança de forma invisível
e gera um tipo de solidão forçada que ameaça o reino. Daniel
Dafoe, no Diário do Ano da Peste, Boccaccio no Decameron e
todos os cronistas médicos, religiosos e leigos são unânimes
em iniciar sua descrição dos eventos que cercam a instalação
da peste em uma cidade insistindo que ela primeiro toma os
bairros mais pobres, seguindo para os mais abastados, termi­
nando por atingir a todos, sem distinção de riqueza, origem,
idade ou posição social.

Era tão contagiosa, sobretudo quando acompanhada de


escarros de sangue, que as pessoas a apanhavam apenas por
estar perto de um enfermo, e às vezes apenas pelo olhar; de
onde aconteceu que morria gente sem ninguém assisti-la e

255
recebia sepultura seln a presença de sacerdotes. Os pais não
visitavam os filhos pem os filhos os pais. (Chauliac, 1957)

A peste ataca como um incêndio corrompendo rituais e


crenças, interrompendo o comércio e a comunicação. A con­
cepção erudita atribuía a origem da peste aos maus ares, quer
oriundos dos céus, quer provenientes do interior da terra. Céu
aqui admite duas conotações: conjunções astronômicas ma­
lignas (como a passagem de um cometa) ou a ira de Deus.
Também os “ares inferiores” admitem dupla conotação, pois
indicam tanto os pântanos quanto os domínios de Satã. A
concepção popular estava mais próxima da verdade. Para esta
a peste provém do contágio ou da contaminação social.
Talvez devido à sobreposição entre a forma bubônica e
a forma pneumônica da peste, esta adquiria representações
contrárias. Ora ela é descrita como um processo lento, que se
anuncia em fases previsíveis, antecipando inexoravelmente a
morte (bubões, febre, irregularidade do pulso, delírio, olhar
fixo); ora ela é apresentada como morte súbita, evocando a
imagem de reis e rainhas que caem bruscamente durante uma
missa. A peste impõe gradualmente solidão forçada ao indi­
víduo, que se vê abandonado por seus próximos, assim como
à cidade que se vê colhida pelo isolamento em quarentena. A
morte assistida e o luto coletivo são substituídos pelos corvos
que recolhem os cadáveres em carroças, quando não roubam
as casas abandonadas, e pelos ratos que disputam as vísceras
dos moribundos.

Interrupção das atividades familiares, silêncio da cidade,


solidão na doença, anonimato na morte, abolição dos ri­
tos coletivos de alegria e de tristeza: todas estas rupturas
brutais com os usos cotidianos eram acompanhadas de
uma impossibilidade radical de conceber o futuro, per­
tencendo a “iniciativa”, doravante, inteiramente à peste.
(Delumeau, 1999, p. 125)

256
A interpretação social do evento representado pela peste
é absorvida pelas quatro formas etiológicas descritas desde a
antiguidade. A peste é sentida como a entrada de um objeto
intrusivo. Vinda do outro, sua origem é sistematicamente im­
putada aos estrangeiros, aos viajantes, aos marginais segundo o
semblante que cada nação admitia para tais culpados preferen­
ciais. Ela traz consigo a desregulação do espirito como desagre­
gação dos costumes e dos laços sociais, tornando impotente a
autoridade constituída; é também a perda da alma, daí sua as­
sociação com a loucura, a apatia, a perda da coragem. Pessoas
urrando de angústia, cavando sua própria cova e cobrindo-se
com terra, dançando freneticamente ou simplesmente ataca­
das pelo olhar fixo da melancolia, fazem parte da iconografia
da peste. Finalmente, a peste é a quebra de tabu tanto no que
diz respeito à sua interpretação religiosa (como efeito da ira
divina) quanto pela anarquia na qual degenerava. São cons­
tantes os relatos de crimes, deboches e excessos praticados em
cidades acometidas pelo grande Mal, bem como a procura da
expiação purificadora (catharsis) pelo crime cometido, como
na tragédia de Édipo.
Holbein (1498-1543), o mesmo autor da tela Os Embaixa­
dores, realizou uma série de gravuras sobre A Dança Macabra,
ilustrando como neste estado de suspensão da lei há uma dilui­
ção do homem mediano. Diante da peste restam apenas heróis
ou covardes. Ocorre que não se pode saber a quem correspon­
derá cada papel. Holbein representa reis, médicos, párocos,
bem como pessoas comuns sendo assediadas pela peste. Todos
os personagens exprimem uma face de surpresa e indecisão. A
peste colocava para o vivente do início da modernidade uma
opção relativamente nova em sua extensão e radicalidade: ficar
ou fugir. Um grande problema “administrativo” representado
pela peste é a deserção. Ministros abandonavam suas paró­
quias, prefeitos suas cidades, médicos seus postos, camponeses
suas fazendas, pais suas famílias. Considerando-se a inépcia
dos tratamentos contra peste (mais de 70% dos contaminados

257
morriam) restava ao rfionarca tratar um único efeito moral
que unificava as diferentes qualificações da peste: o medo.
Como fazer para que, mesmo sob as circunstâncias de uma
epidemia, cada um fiq u e em seu lugari Esta é a tarefa dos reis
curadores, que recorriam recorrentemente a uma mesma es­
tratégia. Em acordo e confluência com as quatro causas acima
mencionadas, as autoridades procuravam ao mesmo tempo
incitar a coragem e instilar um medo ainda maior ligado à
fuga. Ganha impulso, desta maneira, as diferentes narrativas
sobre o inimigo interno (objeto intrusivo), sobre a importância
da penitência (desregulação do espírito), sobre a importância
estoica de manter-se senhor de si mesmo (perda da alma) e
finalmente, da obediência às regras sociais (quebra de tabus). A
coragem, como único tratamento possível para a peste, seja a
coragem de enfrentar a morte ou a coragem de permanecer em
seu lugar, encontra uma grande imagem representativa na au­
rora da modernidade: a imagem do fogo. A alegoria médica do
fogo é retomada de diversas maneiras: abrem-se fogueiras nas
encruzilhadas para deter o avanço da doença. Para expurgar
o mal queimam judeus e feiticeiras, assim como se acendem
os turíbulos nas catedrais. Incendeiam-se os corpos putrefa­
tos, mas também os bubões pestilentos. Daí que o abatimento
moral e o medo sejam considerados elementos que predispõe
ao contágio. Isso se adéqua tanto à concepção erudita, pois o
medo é uma atitude básica diante dos ares superiores e infe­
riores, quanto à concepção popular que acreditava que a trans­
missão da peste ocorria por meio do olhar. Era o olhar invejo­
so, fixo e pestilento do moribundo diante do sobrevivente que
instilava medo e concorria no contágio.
A figura do médico renascentista combatendo a peste é su­
gestiva. Ele usa óculos com lentes vermelhas (para “quebrar” o
olhar do pestilento) e uma máscara assemelhada à de um bico
de pássaro (no interior do qual se encontram alho, cebola e
incensos capazes de bloquear os ares da peste). A vestimenta
é negra (para intimidar o mal) e ele carrega na mão uma va­

258
rinha (para examinar os enfermos à distância). O conjunto
tenebroso formado por tais vestes funciona como uma espécie
de terapêutica espontânea. Diante do Doctore de La Pestis é
preciso mostrar coragem.
Nao foram os reis nem os médicos, portanto, os que se
notabilizaram no enfrentamento da Peste Negra. Dois santos
(Roque e Sebastião) além de um gentil homem (Carlos Borro-
meu) integram as fileiras dos curadores da peste. A história de
suas vidas revela um detalhe comum. Todos eles não temem o
estrangeiro e na verdade são tratados como tais.
E importante reter como a peste é, sobretudo, uma expe­
riência de restrição e isolamento, uma interrupção parcial das
trocas, dentro da cidade e desta com o exterior. Também Édi-
po, o Rei de Tebas, decide perseguir a verdade dos fatos para
salvar a cidade da peste. Apesar de na tragédia de Sófocles a
circulação entre cidades desempenhar um papel crucial (Édi-
po volta de Corinto, o escravo volta de Citerão) a trama se
resolve pela conjunção entre interior e exterior (Edipo é um
estrangeiro e um nativo). A peste, portanto, vinha de fora e de
dentro da cidade, denunciando o excesso de verdade, contido
no furor jurídico do filho de Jocasta. A cura da peste, ao con­
trário, é retratada pela retomada da circulação e das trocas. O
retorno do comércio, mais do que as liberações sanitárias ou
os decretos reais, decide quando uma cidade está livre. São
também os comerciantes, seus navios e suas caravanas, que
gradualmente integram-se, no imaginário popular, com a dis­
seminação da peste. A figura do rato, que se multiplica voraz
e indefinidamente, é outra alegoria que liga a peste ao comér­
cio7. Mas, ao contrário da peste na antiguidade, a peste mo­
derna é retratada como destruindo, e não reforçando os laços
de lealdade, domesticidade e reciprocidade entre as pessoas e

7. Mais uma vez a cultura popular tem alguma razão uma vez que o verdadeiro agente trans­
missor da peste bubônica é a pulga do rato.

259
destas para com a con|unidade. A peste é ao mesmo tempo a
síntese e a resistência a este novo tipo de laço social baseado no
mercado. É nesta medida que podemos reler o fato de ela ata­
car a todos indistintamente, como índice da emergência de um
novo tipo de igualdade. O fato de que ela se dá por contágio,
denuncia algo que se passa na troca social, como um excedente
indesejável. O fato de que ela suspende as leis comunitárias,
religiosas e jurídicas indica a ascensão de uma nova forma da lei.
Podemos agora interpretar que a cura taumatúrgica prati­
cada pelos reis representa um tipo mais antigo de cura, uma
espécie de retomada deslocada de práticas declinantes no
conjunto social que se tornam, gradativamente, propriedade
privativa do rei. A peste, ao contrário, como contra-exemplo
maior da potência curativa dos reis, representa um novo prin­
cípio iatrogênico e uma nova forma de incurabilidade.
Essa posição central da graça régia como elemento miste­
rioso e carismático, capaz de unir religião e política, deve ser
considerada à luz de outra “força mágica” em curso no século
XVI. Trata-se da expansão de um tipo de econ om ia baseada
no mercado. Nem sempre a ordenação de trocas baseada na
extração de lucro foi o princípio dos intercâmbios econômi­
cos. Marx (1867) mostrou como a modificação do modo de
produção feudal para o mercantil pode explicar a origem da
riqueza a partir do lucro e da mais valia. A perda dos meios
de produção, a divisão social do trabalho, o agenciamento da
produção favorecem um tipo de troca generalizada baseada na
universalização da forma mercadoria. A emergência do merca­
do é um fenômeno paralelo à extinção ou redução de outros
modelos de troca econômica baseada respectivamente na reci­
procidade, na redistribuição e na dom esticidade (Polanyi, 1944,
pp. 62-75). Ora, a cura real parece representar justamente a
permanência destes três princípios econômicos, deslocada-
mente, na esfera das relações de cura.
A noção de reciprocidade está vinculada ao padrão de sime­
tria nas relações de troca, ou seja, ao que se ganha eqüivale o

260
“dever” recíproco de doar algo em troca. Ora, é assim que o
poder de cura é nomeado: como um dom igifi), ao qual deve
corresponder uma prática de retribuição (os rituais de cura).
A noção de redistribuição vincula-se ao padrão de acumula­
ção coletiva de bens em um mesmo lugar ou instância, daí
que ele tenha estreita relação com a imagem da centralização
(lugar de concentração e peregrinação ritual). Percebe-se aqui
novamente traços de semelhança com as práticas de cura: o
rei é exclusivamente o concentrador da função da cura (fora
casos excepcionais já mencionados), ele redistribui sua força
simbólica entre os súditos e sobre ele misturam-se as diferentes
ordens de poder (econômica, política, religiosa e medicinal).
A última forma econômica de intercâmbio não orientada para
o lucro e remanescente na figura do rei médico é a dom estici­
dade. A imagem vinculada a este tipo de troca é a imagem da
autarquia, ou seja, a produção que não visa a formação de ex­
cedentes, mas a subsistência como princípio de soberania. De
fato, na prática da cura, afirma-se nao apenas o caráter divino
do rei, mas sua soberania. Que a cura fosse reservada a certos
momentos, lugares e circunstâncias, isso não impedia que ela
fosse apresentada como expressão da vontade individual do rei.
Como representante de formas degradadas de troca a cura
régia não era paga segundo o contrato liberal de prestação de
serviços contra honorários. Contudo não se trata aqui de uma
“prática residual” ou de um encobrimento simbólico para
uma transformação real. A simetria, a dom esticidade e a redis­
tribuição permanecem como princípios de estrutura, ao lado
do mercado, mas agora ligados a individualização da doença,
do mal-estar e do sofrimento. Se nas sociedades tradicionais a
doença eqüivale ao desequilíbrio social e a cura à restauração
das relações narrativas do doente com a comunidade natural,
social e espiritual a que pertence, na sociedade moderna, que
se avizinha no século XVI, é preciso inverter esta reequilibra-
ção para a relação do indivíduo de si a si e para os seus atos de
reinserção em comunidades simbólicas. Vejamos, então, essa

261
combinação de estratégias narrativas que sustentaram a cren­
ça na cura taumatúrgica durante o século XVI situando duas
estratégias formativas do dispositivo da confissão: a conversão
e a reforma de si.

6.2. CONFISSÕES DE AGOSTINHO


E VIDAS PARALELAS DE PLUTARCO
Após o período helênico, terapia é um termo que aparece
em Santo Agostinho (354-430 d.C.) para designar o processo
retórico-discursivo pelo qual é possível converter pagãos ao
cristianismo. A expressão provém do grego (terapós) e quer di­
zer serviço. Serviço é também cognato de servo, daquele que
se dedica a um tipo de ser-capaz-de-fazer efetivo não somente
contra a doença, mas precisamente para o doente (Gadamer,
1993, p. 116). O verbo servo em latim significa: preservar,
guardar, assegurar a salvação ou a conservação. E usado no
sentido de não tirar os olhos de, observar, vigiar e no sentido
figurado de não sair de, não largar, permanecer, ficar, conser­
var ou manter. A terapia é um tipo de serviço que se faz com as
mãos (Behandlung), de tal forma que toda terapia é um tipo de
tratamento, mas nem todo tratamento é um caso de terapia. A
cura praticada pelos reis era feita por meio das mãos, não era,
contudo, uma forma de terapia.
Confissões é um texto filosófico, moral e autobiográfico de
Santo Agostinho a serviço dessa estratégia de conversão. Aqui
se infiltra o argumento de que a melhor retórica para con­
verter o outro se baseia na narrativa, em primeira pessoa, da
própria conversão. Ela é fonte e testemunho (veritas) do qual
se extrai um novo tipo de autoridade —a autoridade pessoal da
experiência. E esta auctoritas que confere ao pontífice a mais
alta dignidade, em contraste com o rei que possui outra forma
de poder: apotestas temporal. Segundo a doutrina das duas es­
padas, inspirada em Agostinho, há uma espécie de proporcio­
nalidade conjugada do poder: a soberania do papa em matéria

262
eclesiástica é proporcional à soberania do rei em relação a seus
súditos. A atualização dessa tese se dá pela conversão do rei,
evento que marca, simbolicamente sua submissão à auctoritas e
a transferência de parte de seu poder ao papa (Chatelet, 2000,
pp. 31-32).
Santo Agostinho narra como sua vida pregressa desregrada,
dissipativa e repleta de incerteza é transformada pela experi­
ência da graça e da beatitude. Há um ponto de iluminação
fulgurante a partir do qual tudo se torna diferente; há um
recomeço radical, um renascimento. A contingência deste
evento justifica, mas não determina, os sacrifícios e disciplinas
da ascese. Santo Agostinho oferece um suporte identificató-
rio para que o converso altere o seu cálculo de gozo (Dunker,
2002b). Na tradição cristã, renúncia e sacrifício tornam-se
modelos da relação a si no presente, não apenas porque serão
revertidos em gozo no futuro juízo final, mas também porque,
em si mesmos, correspondem a uma economia da culpa e da
expiação, que redunda nessa nova forma de vida. A alegoria da
cura está por toda parte:

Aquele que, a vosso convite, seguiu o chamamento e evi­


tou as faltas - que agora lê em mim, quando as recordo
e confesso - não se ria de eu ter sido curado da minha
doença por Aquele médico. Por Ele foi-lhe concedido não
cair na mesma doença, ou antes, fez com que enfermasse
com menos gravidade. Por conseguinte, ame-Vos ele ou­
tro tanto. (Agostinho, 397 a.C., II-7, p. 15)

Isso não implica apenas um mero compromisso narrativo,


baseado no retorno a um estado anterior de harmonia, mas um
corte e uma ruptura, que lança fora a velha lei e começa um
novo estado de coisas. O gozo, na forma de beatitude e da graça,
toma o lugar da verdade. Os laços entre o' indivíduo e a comu­
nidade não são recompostos, como na solução por compromis­
so narrativo. A comunidade maior é decomposta em pequenos
agrupamentos identificatórios, cada um deles, organizados por

263
um modelo de destino** compartilhado. A conversão é o ritual
de entrada nesta espécie de nova comunidade. Nas palavras de
Agostinho:

Coloca-te em lugar de destaque na lista das pessoas que


abominam semelhante conduta; como os doutores em Só-
focles, que “bile amarga com remédio amargo purgam”,
exibes indignação e exasperação para fazer parelha com as
suas paixões e destemperos. Isto é ilógico. (...) Não imagi­
nes que seja de tua responsabilidade corrigi-las, ou que tal
seja fácil de fazer. Mas se as usares de conformidade com o
que são, do mesmo modo por que os médicos usam boti-
cões ou pinças cirúrgicas, revestindo-te da calma e da mo­
deração exigidas pela situação, o prazer que experimentarás
com a tua sábia conduta será maior do que o teu vexame
pela crueza e depravação dos outros. (Ibid., p. 123)

Uma segunda extensão da superfície terapêutica pode


ser extraída da antiga tradição que se dedicou à biografia de
homens notáveis. Ao contrário de Agostinho, sua estratégia
narrativa não se baseia na identificação com a experiência de
conversão, mas no a ssujeitamento à autoridade legítima, mas
impessoal, que emana da vida do biografado. A vida de Cristo,
- -dos santos ou dos apóstolos, assume o valor de exemplo; ao
mesmo tempo, modelo e inspiração para uma espécie de mí-
meses moral. Para Plutarco (125 d.C.) e a tradição jurídico re­
ligiosa greco-romana que o sucedeu, a substituição discursiva
era uma questão relativa à lei e sua obediência. Plutarco viveu
em uma época em que Roma tornava-se cosmopolita reunindo
costumes, línguas e tradições as mais diversas. Neste cenário de
intenso relativismo cultural Plutarco perguntava-se pelos crité­
rios que nos permitiriam reconhecer uma vida virtuosa ou que
valesse a pena ser vivida. O autor de A Arte de Tirar Proveito de
seus Inimigos aborda assuntos prosaicos como o consumo da car­
ne, a comparação entre doenças da alma e doenças do corpo, a
maneira de lidar com bajuladores e tagarelas ou com a prática de

264
empréstimos. Participou do gênero literário da consolação, exa­
minou as superstições e as diferenças entre credos, a educação
de crianças e um vasto espectro de temas antropológicos. Mas
a grande contribuição clínica de Plutarco reside na invenção da
técnica da comparação entre vidas, expressa em Vidas Paralelas
(1923). Neste texto personalidades gregas são apresentadas em
comparação com figuras romanas. A ideia básica é de que a re­
corrência de temas, de formas de decisão, de virtudes e de vícios,
de acontecimentos críticos, permite agrupar uma vida segundo
seus principais parâmetros. Assim, por exemplo, Theseu e Rô-
mulo, Dion e Brutos, Alcebíades e Coriolano, apesar de sepa­
rados por séculos, vivem vidas paralelas. Vidas que se repetem,
mas também vidas que são exemplos de outras vidas. O recurso
não é propriamente original, se considerando a vida de Jesus
e dos santos, tal como utilizada pelo cristianismo. A novidade
é que além desta substituição discursiva, depois de verificada a
identificação, segue-se a necessidade de submeter-se a esta vida,
de certa forma, já vivida. Há uma autoridade do vivido sobre o
vivente. A imagem cristã de uma vida central, da qual as outras
são círculos periféricos, mais ou menos aproximados da perfei­
ção, é substituída pela imagem de que a vida compõe-se de uma
linha, que deve ser examinada por exigências, princípios e con­
tingências de uma outra vida que lhe seja paralela. Há então
uma imediata pulverização das regras de comparação, o que nos
leva à ideia de que existem formas de vida relativamente limita­
das em número, gênero e grau.
A estratégia de Plutarco consiste em tomar um significante
mestre na posição de agente, interpelando o outro no lugar de
escravo. Há um escamoteamento da posição do sujeito que, no
fundo, é a verdade que sustenta auctorítas. Ao final, se obtém a
extração de um gozo específico do lado do praticante, baseado
no sacrifício e na renúncia. Associada à estratégia plutarquista
encontramos a estrutura do que Lacan chamou de discurso do
mestre. Vemos aqui a pertinência da distinção entre o mes­
tre antigo e o mestre moderno (SXVII: 1969-70, pp. 27-37).

265
O mestre moderno po§iciona um significante assemântico e
auto-referencial no lugar de agente do discurso; o mestre anti­
go coloca neste lugar a questão ou a metáfora do sujeito, como
vimos no caso do cuidado de si. Se a vida de Cícero é, de fato,
uma espécie de nova edição da vida do poeta grego Demóstenes,
qual é a vida que Demóstenes imitou? Se existem vidas paralelas
há infinitas outras vidas à nossa frente e indeterminadas versões
que nos precederam. O mestre antigo tem um nome no lugar de
agente do discurso; o mestre moderno possui apenas um signifi­
cante sem sentido que funciona como semblante unificador da
autoria. Ambos demandam, do outro, uma espécie de saber: o
saber fazer do escravo, o saber viver dos latinos, o saber acreditar
dos reis taumaturgos. Este discurso possui um paradoxo especí­
fico: ele se endereça ao outro como um saber de forma a extrair
dele um fragmento de gozo. Mas quem quer o reconhecimento
de um escravo? Quem quer ser reconhecido por aquele que nós
mesmos não reconhecemos? Este é o paradoxo do exercício do
poder como governo do outro.
No caso da estratégia agostiniana, encontramos outra su­
posição. No lugar do agente do discurso está um saber. Este
interpela o outro como um objeto (o pagão), produzindo, com
isso, um sujeito convertido à auctoritas (Dunker, 2005), antes
de tudo, forçado a falar uma língua que não é a sua. A verda­
de desse discurso é, naturalmente, o novo significante mestre,
representado pela beatitude. Encontramos, assim, uma versão
do que Lacan chamou de discurso universitário. Nele nos en­
dereçamos ao outro como objeto para fazer dele um sujeito. E
o paradoxo genérico da educação. O discurso universitário é
uma regressão do discurso do mestre, ou seja, ele transforma
a impossibilidade de que haja um saber sem sujeito (efeito do
discurso do mestre) na impotência em reduzir um sujeito ao
significante absoluto (discurso universitário). Em outras pa­
lavras, ele convoca os elementos a retornar as suas posições
anteriores, segundo os significantes das demandas prescritas
e retidas, conforme a definição de regressão (E: 1958a). Este
retorno, como retorno e conversão a si, é o que vimos carac­

266
terizar a conversão agostiniana. Temos então uma espécie de
mutualismo pelo qual a impotência do discurso universitário
em produzir a beatitude pela conversão é substituída pela im­
possibilidade, constitutiva do discurso do mestre, em produzir
um verdadeiro discípulo apenas por meio da imitação do mes­
tre. Substituição regressiva e progressiva que forma o disposi­
tivo de confissão. Podemos, então, representar as duas estraté­
gias narrativas, em função dos discursos em que participam:

Conversão Submissão
(Discurso universitário) (Discurso do Mestre)

g a

cxpericncia-vi ria — ►pagão vida-cxemplar — ►discípulo


beatitude <— conversão autoridade +— sacrifício

Na construção do discurso da cura real, concorrem a narra­


tiva hagiográfica —que constrói, por exemplo, a figura de São
Marcoul como mímesis histórica transmissível da genealogia
dos reis —e o discurso da conversão, atualizado pela cerimônia
do ato de investidura. A partir daí, o rei poderá operar tanto
no registro da propagação da conversão e da cura quanto no
registro da autoridade inquestionável. É a religião absolutista.
Isso é compatível com o incremento das campanhas de cristia-
nização do Novo Mundo e da reconversão dos fiéis tomados
pelas Reformas Protestantes. Trata-se de um empreendimento
inteiramente diverso das cruzadas, por exemplo, que associa­
vam a reconquista a um discurso de submissão e ocupação
territorial e espiritual da fé. Não há aqui nenhuma associação
com o discurso da catequese ou da conversão.
A montagem dessa circulação discursiva entre as duas nar­
rativas, da conversão e da submissão, replica os dois gran­
des procedimentos que o ocidente produziu para localizar a

267
verdade no âmbito da* sexualidade (Foucault, 1976, p. 61):
a ars erótica, inspirada'no discurso universitário, e a scientia
sexualis, cujo discurso é o do mestre. O primeiro baseia-se na
experiência de um saber-desejar, entendida como uma forma
de vida; o segundo no saber-poder, entendido como domínio
técnico e comportamental do corpo.
Até o século XVI, a confissão dos pecados não tem valor de
produção de verdade, e serve apenas para que o sacerdote deci­
da o tipo e o grau da penitência (Winter, 2006, p. 52). Sua pe­
riodicidade era anual, e podia redundar apenas no pagamento
de uma tarifa, necessária à salvação, ou na penitência vitalícia,
necessária à reconciliação. A confissão era praticada de forma
voluntária e deliberada; a penitência era chamada também de
“uma satisfação” (Foucault, 1974-75, p. 218).
Entre os séculos XVI e XVIII, a confissão torna-se um dis­
positivo, cruzando a ordem jurídica com a religiosa, a mo­
ral com a médica. E esse processo que produzirá a saturação
da sexualidade no corpo da mulher, a pedagogização do sexo
das crianças, a socialização do controle sobre o nascimento e
a reprodução, além da posterior psiquiatrização dos prazeres
perversos. Portanto, o ponto-chave para a formação dá inter­
pretação entre a superfície da cura com a superfície da psicote­
rapia, que deu origem à psicanálise, depende desse movimento
de mutação da confissão a partir do século XVI e da Reforma.

O cristão deve confessar incessantemente tudo o que se


passa com ele a alguém que estará encarregado de dirigir
sua consciência, e essa confissão exaustiva vai produzir, de
algum modo, uma verdade que não era conhecida pelo
pastor, mas que tampouco era conhecida pelo próprio su­
jeito... (Idem, 1984a, p. 70)

Essa nova forma da confissão liga a narrativa sobre a carne à


figura do confessor. A carne é a subjetividade do corpo, não é a
descrição de seus atos ou o julgamento de seus excessos, mas a

268
exploração das intencionalidades desconhecidas, a decifração
da voluptuosidade, a narração de sua concupiscência (Dunker,
2011). Duas condições ligam a relação entre o sujeito e o con­
fessor: a exclusividade e a exaustividade - contar tudo, mas
apenas ao confessor que, reciprocamente, guardará sigilo. A
penitência desloca-se de ato público para experiência da con­
trição, da vergonha e da expiação. Nasce uma fisiologia moral
da carne (Idem, 1974-75, p. 245) cujo apogeu será a obra do
Marquês de Sade.
Essa transformação do estatuto da confissão está estreita­
mente ligada ao interesse pelas técnicas de interrogatório e de­
cifração da narrativa do confessante. O modelo aqui é O M a­
nual dos Inquisidores, escrito em 1376 por Nicolau Eymerich
e revisto e ampliado em 1578. Nele se descreve os truques
usados pelos hereges que devem ser neutralizados pelo inqui­
sidor de tal forma a extrair a verdade. São eles: responder de
maneira ambígua, responder introduzindo uma contradição,
inverter a pergunta, fingir surpresa, mudar as palavras da per­
gunta, deturpar a intenção do inquisidor, justificar-se, fingir
debilidade física, simular demência e dar ares de santidade
(Eymerich, 1961, pp. 119-122). A suspeita e o indício são
condições suficientes para justificar a tortura, e estas se con­
firmam pela fala do acusado. Ou seja, há uma tecnologia da
escuta orientada para extrair a confissão que parte da premissa
que o confessante ignora, resiste ou oculta algo.
Essa nova forma de conceber a confissão rompe uma es­
pécie de equilíbrio vigente entre as duas formas da confissão:
a confissão dos pecados e a confissão da fé (Jackson, 1999, p.
145). Realizadas em um ciclo de alternâncias, no qual cada
uma firmava e garantia a verdade da outra, separa-se progres­
sivamente da questão da verdade do desejo. Ela decai de sua
condição de ato privilegiado para a transformação do sujeito e
torna-se, a partir de então, uma prática extensa, ininterrupta
e, principalmente, intra-subjetiva. Desloca-se, assim, sua posi­
ção entre as práticas de cura para as práticas terapêuticas.

269
Outro exemplo da formação desta intersecção entre o pla­
no da cura e da psicoterapia remonta a interpretação do dis­
curso feminino. Surgem, no século XVI, os fenômenos sociais
da feitiçaria e da possessão, verdadeiros sintomas do disposi­
tivo de confissão. A feiticeira (Foucault, 1974-75, p. 260) é,
geralmente, uma mulher da periferia da aldeia ou do limite da
floresta; ela representa a posição do pagão na estratégia agos-
tiniana. A possuída, ao contrário, está no centro da cidade
ou no interior do convento, e representa a posição em que o
exemplo plutarquista merece ser lembrado. Mulheres possuí­
das são mulheres nas quais a vida paralela se infiltrou na vida
atual. Como geômetras não euclidianas elas traçam mais de
uma reta paralela por um ponto exterior à reta dada. A possu­
ída confessa espontaneamente, confessa demais, extrapolando
os limites do sigilo e da exclusividade. A feiticeira, ao contrá­
rio, confessa de menos, resiste como cúmplice do diabo. Se a
possessa indica a aparição do estrangeiro no interior do fami­
liar, a feiticeira representa a aparição do familiar no interior
do estrangeiro. A feiticeira antecipa o tema psicoterapêutico
da influência, da dominação e da sugestão, assim como a pos­
sessa é a precursora do tema clínico do espasmo, da convulsão
e da crise motora como signo maior da loucura feminina. A
combinação entre estes dois discursos, o da feiticeira (discurso
do mestre) e da possessa (discurso universitário) gestará, no
século XIX a loucura histérica, tipo ideal e precursor social das
histéricas tratadas por Charcot.
A confissão não deve ser compreendida como discurso em
sentido psicanalítico, mas como operação de giro ou de re­
gressão e progressão continuada entre dois discursos. Daí que
ela opere em dois tempos: a citação e o enigma. Na citação,
procura-se realizar um enunciado sem enunciação. E a des­
crição dos atos concupiscentes, a narração da vida cotidiana,
a observação relatada dos detalhes dos atos e dos desejos cujo
objetivo é produzir uma conversão. No enigma, dá-se o con­
trário: procura-se realizar uma enunciação sem enunciado. Ê

270
a arte do confessor que acrescenta a dúvida, que incita a in­
vestigação da carne onde antes havia apenas o corpo. Coloca
em dúvida a íntima convicção, suspende a transparência das
intenções, explora ambigüidades, devassa certezas. A citação
é uma tática própria do discurso universitário; o enigma, do
discurso do mestre. Na segunda parte da confissão, a ordem
se altera. Uma vez extraída a enunciação sem enunciado, que
é a contrição e a vergonha do lado do confessante, passa-se ao
enunciado sem enunciação, que são a penitência e as práticas
de purificação. Vai-se, assim, do juízo sobre a carne à penitên­
cia, e desta à localização da sexualidade no lugar da verdade.
A confissão pode ser descrita como este movimento perpétuo
de reversão do discurso universitário em discurso do mestre,
e deste novamente ao universitário. A impotência constitutiva
do discurso universitário, ou seja, a impotência transformativa
da confissão-expiação, pode ser substituída pela impossibili-
dade no discurso do mestre, a impossibilidade de realizar a
confissão da carne, e assim reciprocamente:

Conversão Submissão
(Discurso universitário) (Discurso do mestre)
S, ------ ► a S. —► Ss
S, $ g A a

c o r p o — ►carne carne — ►confissão


expiação <— confissão sexualidade m— penitência

6.3. MONTAIGNE: A ESCRITA DE SI COMO QUESTÃO


Nos primórdios da modernidade, há ainda uma terceira es­
tratégia discursiva que rompe o circuito fechado entre a ordem
das questões (terapia pela conversão) e a ordem das respos­
tas (cura pela submissão). Podemos localizar sua origem num

271
vasto complexo de discursos e narrativas que se torna visível
a partir do século XVI. É o que Foucault (1974-75, p. 270)
chama de ponto de inversão e resistência à vaga de cristianiza-
ção, ao discurso formado por inquisição e reforma, nos quais
se incluem a feitiçaria e a possessão, a ars erótica e a scientia
sexualis, a peste e a cura.
Um exemplo particularmente significativo dessa terceira es­
tratégia é encontrado na vida e na obra de Montaigne (1533-
1592). Aos 37 anos, acometido por cálculos renais, Montaigne
retira-se para sua propriedade rural onde passa o resto da vida
dedicado à escrita. Ele inventa uma nova forma literária, o en­
saio, e estabelece um novo tema narrativo original: “Eu sou a
matéria de meu livro”. Misturando senso comum e a alta lite­
ratura, experiência e descrição, o ensaio tem um compromisso
firmado não com a autoridade, mas com a liberdade. O movi­
mento crucial que encontramos em Montaigne não está apenas
nesta abertura para a escrita de si, mas na curiosa combinação
com uma posição narrativa de auto-ironia. Para tanto, recupera-
se uma das correntes que compunham o cuidado de si, o ceticis­
mo, especialmente na corrente derivada de Pirro (318-272 a.C.).
O ceticismo terapêutico recusa o fim crítico e meramente
negativo da filosofia; ele procura descrever nossa vida comum
sem ultrapassar os limites da experiência. Isso faz da terapêu­
tica cética uma crítica das terapêuticas tradicionais. Ê uma
terapêutica que visa acabar com toda aspiração integrativa,
metafísica ou catártica baseada na conversão ou no compro­
misso narrativo. Ela se coloca claramente no polo clínico das
estratégias de tratamento, inspirando o que Montaigne chama
de anatomia da alma, ou seja, um discurso que suspende me-
todologicamente as aspirações de exclusividade, necessidade
e universalidade próprias do discurso filosófico, e as substitui
pela pluralidade, contingência e singularidade que constitui
experiências de não identidade.
A psicanálise é uma dialética, no sentido do que Montaigne
chamava de “arte de conferir” (SI: 1953-54, p. 317). Flaveria,

272
então, uma espécie de desistência de todo teorizar. O cético
não é aquele que derroga a verdade, pois isso seria admitir a
existência do falso, mas aquele que continua a procurá-la ao
mesmo tempo que afirma sua impossibilidade. O cético deve
abandonar toda aspiração a um “eu geral e abstrato”, pois isto
pressupõe que seria possível conhecê-lo. Ele troca tal crença
pela mera constatação de que há um eu pessoal, indissoluvel-
mente ligado ao corpo (Smith, 2005). Os seguidores de Sex­
to Empírico caracterizam uma filosofia do reconhecim ento do
mundo e do saber comum (no sentido de saber partilhado)
que nele vigora (Porchat Pereira, 1993, p. 112). E surpreen­
dente que Foucault, em sua análise do cuidado de si, tenha
concedido tão pouco espaço aos céticos, pois neles se verifica
admiravelmente a disjunção entre conhecer a si e cuidar de si.
E essa atitude cética que, segundo Lacan (SXIII: 1965-66),
a psicanálise exige de alguém que quer fazer uma análise: uma
atitude pirroniana. Alguns quiseram ver nessa afirmação um elo
com o tema da suspensão do juízo, da ação e da crítica, presen­
te na associação livre e, correlativamente, na atenção flutuante.
Mas a questão é mais estrutural que deontológica. A posição
real da verdade nao é a verdade de outra vida (como na estra­
tégia de Plutarco), ou a verdade de uma nova vida (como na
estratégia de Agostinho), é a verdade para a qual não podemos
ter nenhum saber. A neurose não suporta muito bem esta ideia,
pois a posição de verdade, esvaziada de qualquer saber, é ime­
diatamente ocupada pelo gozo (Ferreyra, 2004, p. 18). Como
se pudéssemos dizer: “não há grande perigo em nada saber, con­
quanto que o Outro saiba”. Ao receber do Outro a mensagem
de que este nada sabe o neurótico prefere supor que é justamen­
te aí que o Outro goza: “Agora te ofereço o meu gozo; vamos
ver se podes gozar disso. Faze de mim um masoquista que se
enamora de tua angústia” —este seria o enunciado subsequente
à tomada de posição pirrônica do analisante (SXIII: 1965-66).
Montaigne pode ser colocado como legítimo herdeiro e
representante da prática do cuidado de si helenista em sua

273
r

vertente meditativa. St|a prática assemelha-se à de Marco Au­


rélio na ideia de que a meditação é uma forma de controlar o
discurso interno (De Santi, 2003, p. 166). Ele procura uma
arte de viver que cultive a independência e o afaste da tutela
das instituições e dos contratos (Willemart, 1999, pp. 56-59),
conforme a fórmula “não emprestar-se aos outros, dar-se so­
mente para si-mesmo”. Todavia, encontramos nesta viragem
para si, que não é de forma alguma um conhecimento de si,
mas um discurso de si, uma retirada do mundo, no sentido da
comédia social, e uma orientação para este mundo, no sentido
de uma recusa da transcendentalidade representada pela ideia
de outro mundo. Nela, o eu se reduz a uma posição enunciati­
va, não a um ponto de partida para o conhecimento: eu nada
tenho a dizer de mim sólida, simples e inteiramente, sem confusão
e sem mistura (Montaigne, 1973b, p. 455). E a experiência de
fragmentação, de mistura, de não identidade a si que compõe
a matéria-prima de seus escritos.- Se, na superfície que reúne
a cura de Agostinho e a terapia de Plutarco, há um privilégio
de exemplos e mímesis, em Montaigne este privilégio se dirige
à escrita, a escrita de si. Em seus Ensaios (1973a), Montaigne
realiza uma semiologia dos estados da alma (medo, solidão,
tristeza, envelhecimento, cólera, crueldade), uma diagnostica
da intencionalidade humana (a incerteza dos juízos,'C acaso
das paixões, a loucura da razão, a indolência, a vaidade e o
egoísmo como motivações). Além disso, percebe-se a perma­
nência do veio retórico, agora não mais dedicado ao estudo e
à classificação das formas de discurso, mas ao exame da prática
conversacional ligada ao cotidiano (as negociações, os nomes,
as palavras vãs, o desmentido, a mentira, a arte de conversar).
Do ponto de vista da cura, há uma só direção geral: filoso­
far é aprender a morrer. Portanto, a narrativa de Montaigne
possui todas as características que se apresentam no discur­
so histérico: o sujeito dividido como agente do discurso, o
questionamento da lei como um sintoma (SXVII: 1969-70, p.
41), a produção de um saber que escapa à apropriação por seu

274
próprio enunciador e a formação de um objeto no lugar da
verdade (o corpo que morre). Pode-se separar estes aspectos
discursivos do potencial estilo histérico do homem Montaig-
ne: sua bela indiferença, sua propensão a considerar a vida
como um teatro, seu desafio irônico da lei, além de seu gosto
delirante pela liberdade. Agora se esclarece melhor por que a
posição cética deve ser encontrada no início do tratamento
psicanalítico: ela é índice do discurso da histeria (Ibid., p. 31).

Escrita de si
(Discurso da histeria)
$_----- ►S,
a S,

Ljuesl.ãu w lei
m o iL c su b je liv id a d e

É possível que, além dos cálculos renais, a conversão de


Montaigne deva muito à relação de amizade que mantinha
com Etiene de La Boétie, o que nos faz reencontrar a impor­
tância da ética da amizade, tão valorizada pelo cuidado de si,
em sua expressão na antiguidade. A execução política deste jo­
vem amigo exerceu papel importante na decisão de Montaig­
ne de se retirar do mundo. Em La Boétie, encontramos vários
dos temas fundamentais de Montaigne: a servidão voluntária,
a amizade como recusa da servidão, a diferença entre iguais, a
liberdade como mau encontro do qual tentamos nos proteger,
a crítica do Um como instância de justificação do poder e, é
claro, a meditação sobre a morte. E também pela alegoria da
cura que La Boétie inicia seu texto mais célebre:

Mas os médicos certamente aconselham que não se ponha


a mão nas feridas incuráveis; e não sou sensato ao querer
pregar isso ao povo que há muito perdeu todo conheci­
mento e por não sentir mais o seu mal, bem mostra que

275
sua doença é mortal. Por conjectura procuremos então, se
pudermos achar, çomo se enraizou tão antes essa obstina­
da vontade de servir que agora parece que o próprio amor
da liberdade não é tão natural. (La Boétie, 1999, p. 16)

A anatomia moral de Montaigne é, simultaneamente, uma crí­


tica irônica ao auto-engano e disposição à ilusão, verificadas entre
os homens, e o estudo de seus paradoxos. Como é possível que
tantos se submetam a tão poucos? Como explicar que se renun­
cie tão facilmente a liberdade? Por quais motivos se mantém, por
tanto tempo e em tantos lugares, a dominação? A resposta de La
Boétie a tais perguntas impacta pela simplicidade: a servidão é o
que é porque deriva do desejo humano. Há uma vontade de ser­
vidão, uma vontade que se impõe e faz esquecer a liberdade do
desejo. Nasce aqui o tema moderno da alienação do desejo a outro
desejo e a alienação do sujeito ao desejo do Outro. Em tal estado
de coisas, é somente na amizade que se expressa a recusa à servidão.
Agostinho, Plutarco e Montaigne representam três manei­
ras de localizar o sujeito, três pontos fundamentais nas super­
fícies da terapia, da clínica e da cura, respectivamente. O que
as articula é a premissa de que o sujeito se torna uma questão.
Tanto Agostinho quanto Plutarco e ainda Montaigne, de for­
ma mais explícita, estão às voltas com a pergunta: com o me
tornei o que sou? Portanto, o sujeito não precisa ser pensado
como estado, nem como condição, mas como atividade, como
o trabalho dessa questão. E exatamente nesta acepção que po­
demos entender a máxima de Freud sobre o tratamento psi­
canalítico: Wo Es war, soll Ich werden (Onde Isso estava, o Eu
deve advir). Podemos especular três leituras potenciais desta
máxima. Para a superfície terapêutica de Agostinho soll Ich
werden é principalmente uma questão em torno de quem sou
eu {Ich); para a superfície clínica de Plutarco soll Ich werden é
uma questão de saber que tipo de dever {sollen) organiza uma
vida; e para a superfície da cura e do cuidado de si, represen­
tada por Montaigne, a questão se acentua em torno do que
significa vir a ser {werden). Mas o que é uma questão?

276
O nascimento das primeiras universidades, ao final da
Idade Média, se fez acompanhar da aparição de um novo
gênero retórico conhecido como quaestio. Tratava-se de uma
prática pedagógica, ou método de aprendizagem, baseado
na alternância das objeçÕes, das exposições e das refutações.
Escolhia-se um tema e se o expunha à quaestio (questão, cau­
sa), permitindo, de forma inédita, que uma multiplicidade
de aprendizes, bacharéis e mestres participassem, ao mesmo
tempo, das disputas verbais que caracterizaram a construção
do saber medieval (Libera, 1990, p. 26). O procedimento da
quaestio presume uma exposição partilhada e, ao mesmo tem­
po, um trabalho pessoal. A ordem e a forma assumida pela
exposição combinam-se num discurso que, ao final, permite
passar ao momento das sentenças ou das sumas. Daí a quaestio
ser, ao mesmo tempo, uma espécie de preparação para o saber
e o ato de sua realização. No interior da quaestio suspendem-se
as autoridades constituídas nas pessoas e atribui-se a soberania
da razão ao desenvolvimento discursivo do saber. A diferença
entre iguais dá ensejo ao uso livre da palavra.
Quaestio vem do verbo latino quarere, ou seja, querer, pro­
curar, buscar. Talvez esta conotação se preserve no sentido ló­
gico do termo questão. Uma questão é um ato lingüístico que
consiste em enunciar algo denotando, quer pela entonação,
quer pela forma gramatical, quer pela pontuação, que se pede
a alguém que a enunciação seja completada (Lalande, 1997).
Uma questão não é uma pergunta, mas a causa material de
uma rede de perguntas. Esta causa é a designação de uma falta
no saber e uma indeterminação: “Para haver questão, o ser
deve ter dois nomes: vazio e penumbra” (Badiou, 2002, p.
128). Uma questão é percurso de uma verdade que parte de
um evento, de uma escolha, uma aposta cuja condição é a
presença de uma situação indecidível. Esta aposta produz um
sujeito às voltas com o indiscernível de sua escolha, as razões,
causas e motivos que o levaram ao ato que o incitam ao tra­
balho de saber. Há, então, a fase da fidelização à questão, a

277
investigação e o exame'da extensão de sua verdade. O percurso
termina na nomeação rdo evento, eventualmente na forçagem
desta nomeação. No fundo, o percurso da quaestio replica a
circulação geral que se encontra na noção lacaniana de discur­
so, em seus quatro lugares (Idem., 1994, p. 45):

A Semblante/Agente (4) -----► Outro (1)

Verdade (3) Produção (2)

(1) O momento da formação de uma questão. Aqui o sujeito é


interpelado pelo Outro na forma do Che voui? (Que queres?).
Esta interpelação posiciona uma falta no nível de um sistema
simbólico. A conversão, representada pela narrativa de Agos­
tinho, é um bom exemplo do processo de questionamento de
um sistema simbólico específico (o maniqueísmo). Nesta fase
uma questão insiste, torna-se recorrente, como um sonho que
não nos abandona ou como uma perturbação nas relações en­
tre o familiar e o estrangeiro (U nheimlich).
(2) A fase da investigação da questão, ou do trabalho da questão.
Aqui se apresentam provas, procedimentos, experiências. A ques­
tão pode-se tornar uma alegoria ou um princípio descritivo, há
sinais, grandes eventos comprobatórios, vivências crônicas e agu­
das que são agrupadas, ao modo das vidas paralelas de Plutarco. A
questão assume aqui a natureza de uma causa, ela produz efeitos
que comprovam os pressupostos da própria questão.
(3) O confronto da questão com o lugar da verdade. A for­
mação de um saber em torno do trabalho de uma questão
logo suscita outra fase: qual a veracidade deste saber? Qual
a extensão da verdade contida naquela questão? Assim como
no auto-exame praticado por Montaigne, é preciso nomear a
experiência, senão reconhecer o limite do que nela pode ser
nomeado e quando começa o forçamento de sua verdade. A
experiência se completa com a própria narração que cria, retros­
pectivamente, os pressupostos da questão.

278
(4) O retorno da questão ao próprio sujeito. Aqui se reconhe­
ce que a questão não pode ser julgada como uma experiência
universal transmissível, que ela funcionou como uma espécie de
ficção necessária. Ao final o percurso da questão define a posição
do sujeito que a produziu como tal.
Depois do século XV, o termo questão se dissemina, passando
a designar tanto o assunto, tema ou ponto em discussão quanto
o fato deste assunto não estar ainda resolvido. Toda questão é
um esforço de trabalho, um percurso ao qual se pode ou não
permanecer fiel. Expressa, portanto, a situação em que os que
pelo tema se interessam não encontram consenso ou concilia­
ção de teses. Daí os termos subject, em inglês, e sujet, em francês
significarem, ambiguamente, tanto assunto quanto alguém que
fala de um assunto. Diz-se assuntar, em português, no sentido de
convocar alguém a falar, incitar a dizer.
Na acepção de assunto, tema ou objeto, questão remete ao
antigo termo grego hypokeímenon, ou seja, o substrato lógico
ou material que subsiste numa transformação (Peters, 1974, p.
114). O hypokeímenon liga um saber à rede de suposições que
ele não pode explicitar integralmente, mas que aparecem como
pressuposto para uma posição ou escolha. A introdução da ca­
tegoria de hypokeímenon na teoria lacaniana dos anos 1966 res­
ponde a uma reviravolta autocrítica diante de uma concepção de
sujeito anterior, no qual este se identificava com o lugar do shifter
(o que representa a pessoa, o tempo e o espaço da enunciação no
enunciado) (E: 1960c, p. 814) e o confundia “provisoriamente”
(E: 1957b, p. 519) com o lugar do significado. Apesar de se ca­
racterizar por uma gramática de negações compatível com sua
concepção de metáfora, o sujeito até aqui é uma função lógica
e lingüística. Não há nada de Real no sujeito; ele se identifica
apenas com as categorias topológicas do espaço, do lugar e da
posição (a posição do significante no inconsciente) ou com as ca­
tegorias lógicas do tempo (instante, tempo e momento). A intro­
dução da referência ao hipokeímenon mantém a referência a essa
gramática de negações, mas precisa extrair dela um novo tipo de
negação, uma negação Real. Lacan fala do hypokeímenon como

279
uma variável, que deve|ser distinguida da ousict (substância). Esta
separação não corresponde à oposição entre sujeito e objeto, mas
à oposição entre necessidade e contingência. Ou seja, designa o
real do sujeito como uma contingência ou uma impossibilidade,
não como uma necessidade (Pierre-Christophe, 2001, pp. 238-
239).
Resulta que a questão do sujeito implica na coordenação de
uma tripla indagação: o que sou? Quando sou? Onde sou? A des­
coberta deste paradoxo nas formas de apreensão de si encontra-se
distribuída na estratégia discursiva exemplificada por Montaigne
e pode ser atribuída genericamente ao emprego da ironia cética.
A ironia cética, o trabalho da questão, a servidão imposta pelo
desejo, a fragmentação das demandas e a crítica do Um são ele­
mentos convergentes com o que Lacan chamou de discurso da
histérica (discourse histèriquè). E neste discurso que o sujeito divi­
dido apresenta-se como agente. Pelo fato desse agente ser apenas
resíduo das posições acumuladas em enunciados coletivos que se
unem na ficção de uma autoria, diz-se também que este agente
é um semblante. Ele convoca, no outro, um significante que se
apresente como suficiente a ponto de, por si mesmo, legitimar a
lei. Compreendemos, assim, por que Lacan qualifica a posição
inicial do analisante de pirroniana e afirma, ao mesmo tempo,
que o discurso histérico é o único propriamente analisável.
Montaigne é o primeiro a reconhecer a dimensão estrutural
do fato de que o desejo humano é o desejo do Outro, ou seja,
desejo do desejo do Outro. E ele o faz por meio de uma aná­
lise antropológica dos relacionamentos humanos que encontra
correlatos em vários outros autores do século XVI: as relações
humanas como loucura sábia ou loucura louca (Erasmo de Ro­
terdã); o poder como violência intrínseca e técnica sem justifica­
ção natural (Maquiavel, Hobbes); o papel crucial do reconheci­
mento e da ilusão (Shakespeare e Cervantes); a vida como teatro
e representação (Calderon de la Barca) ou como espelho da alma
(Margueritte Porete, Jacob Boheme). O que o discurso histérico
produz é um saber. Este saber está recalcado no sentido que não

280
é apropriado pelo sujeito de tal forma a resolver sua divisão sub­
jetiva. E um saber impotente, coligido por uma posição “fora do
mundo”, como a que aparece na posição de narratário, proposta
pela ironia de Montaigne. Sua impotência se traduz não pelo
fracasso, mas pela relativa indiferença ao poder. E uma impo­
tência que abriga o lugar da verdade contra sua ocupação por
um objeto. A ausência de objeto fixo e definido para o desejo do
homem já levou estudiosos da obra de Montaigne a reconhecer
sua importância para a psicanálise (De Santi, 2003, pp. 69-166).
Nele vigora uma prática melancólica e crítica que é condição
para que o eu assuma formas que ele jamais teve.
Também do ponto de vista formal Montaigne aproxima-se da
psicanálise uma vez que ele teria sido o inventor moderno da for­
ma literária conhecida como “ensaio”. Ensaio vem de exagium,
que quer dizer “pesar”, mas também, tentativa, experimentação
e degustação. Nele se pratica uma análise das aparências e da
constituição do eu. Essa crítica não se mostra como método, mas
como prática da distração. Apesar do saber, é com a escrita que
Montaigne goza e aprende a morrer.

Montaigne é verdadeiramente aquele que se centrou não


em torno de um ceticismo, mas em torno do movimento
vivo da afânise do sujeito. E é nisso que ele é fecundo, que
ele é guia eterno, que ultrapassa tudo o que pôde represen­
tar do momento, a ser definido, de uma virada histórica.
(SXI: 1964a, p. 212)

Todavia, o ponto crucial nessa aproximação é o fato de que


Montaigne, e a estratégia discursiva na qual ele se inclui, in­
troduz de forma inédita a extensão do discurso cujo agente
é um sujeito dividido que se apreende em sua própria desa-
parição (afânise). Poderia ser integrada aqui outra forma da
quaestio, representada, por exemplo, por Santa Teresa D 'Ávila
(1515-1582). Seus escritos exprimem a polifonia de uma sub­
jetividade descentrada e a experiência radical do fragmento
(Figueiredo, 1992, pp. 68-81). Ela insiste nos limites da re-

281
presentaçao de si e nas formas de nomeação da experiência
no sentido de uma ruptura radical, individual e irredutível à
replicação metódica. Com ela a divisão, a indeterminação e a
suspeita alcançam um novo domínio: o corpo.

Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em


cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo.
Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração
algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tira­
va parecia que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda
abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande
que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade
produzida por esta dor imensa que a alma não desejava
que tivesse fim nem se contentava senão com a presença
de Deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem
que o corpo também participa, e às vezes, muito. E um
contato tão suave entre a alma e Deus que suplico à Sua
bondade que dê esta experiência a quem pensar que min­
to. (Apud Borges Nunes, 2001)

Note-se a presença dos oxímoros (espiritual-corporal, dor


suave e abrasante), a retórica das qualidades, a fina ironia de
desejar essa deliciosa experiência a quem dela duvidar. Essa
divisão, representada pela afânise, pode ser verificada de forma
narrativa no conjunto de paradoxos alocados para referir-se ao
eu. Se, no cuidado de si, saber o que é este si era uma questão
secundária, aqui ela se torna uma quaestio.
Posso afirmar que o si exige um complemento (o si-mes-
mo). Esta mesmidade (Ricoeur, 1997) indica o fato de que
sou um ao longo do tempo, em continuidade ininterrupta e
permanente. Sou uma conjunção de predicados que me obje­
tivam e nos quais me alieno por comparação. Quando não me
perguntam, eu sei, mas quando me perguntam (interpelação),
já não sei mais o que sou. Mas saber o que sou não me esclarece
quando sou. Para isso, preciso saber que tipo de relação sus­
tento com a palavra que empenho (convocação). Logo, para
saber quando sou preciso saber quando minto e quando digo
a verdade. Isso me remete a uma reunião heterogênea daqui­
lo que me faz questão: descrever, relatar, prescrever, lembrar.
Em suma, encontrar na linguagem o tempo próprio que me
designa. Aqui não há nenhum tratamento possível da quaestio
sem o reconhecimento de que só apreendo quem sou quando
falo fora de onde estou. Quando sei o que desejo, não sei quem
sou; quando sei quem sou, já não sei mais o que desejo (Lacan,
1948b, pp. 37-58). Isso leva à terceira pergunta desenvolvida
na superfície discursiva de Montaigne: onde sou? Aqui ponho
em questão minha ipseidade, ou seja, aquilo que me faz essa
mistura singular e confusa entre identidade e diferença, entre
presença e desaparição, entre ser e estar.
Podemos, então, reorganizar as relações entre a terapêutica,
a clínica e a cura. Vemos que o século XVI inicia um processo
de apagamento da cura sobre a superfície formada pela terapêu­
tica e pela clínica. Vemos na prática taumatúrgica dos reis um
compromisso entre a superfície da cura e a superfície terapêuti­
ca. Este apagamento atinge o tema da enunciação da verdade,
que torna-se, a partir de então, ponto exterior à superfície assim
considerada, retornando sobre ela na forma de um sintoma:

Superfície da Terapia Superfície da Clínica Superfície da Cura


Cura Real Peste Cura Real
Agostinho Plutarco Montaigne
Possessa Feiticeira Mística
Conversão Submissão Quaestio
Confissão Iiscrita de Si
Discurso da Universidade Discurso do Mestre Discurso da Histérica
Saber Sintoma Verdade

283
CAPÍTULO 7

A M E D I T A Ç Ã O DE D E S C A R T E S

Curar, algumas vezes.


Ajudar, frequentemente.
Consolar, sempre.
Ditado francês do século XVII

E AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS INSPIRADAS EM SANTO AGOSTINHO

S e Plutarco formam uma linha psicoterapêutica baseada na


conversão e na submissão; se Montaigne é um ponto fora des­
ta reta, representando um polo de reflexões mais próximo da
ideia de cura; Descartes (1596-1650) constrói, entre a reta e
o ponto excluído, uma nova superfície homogênea: a clínica.
A dúvida de Montaigne é uma dúvida cética. Descartes res­
ponde a Montaigne transformando essa dúvida, que era uma
espécie de atitude antropológica e exercício reformulado da
quaestio, em critério para encontrar um novo tipo de evidên­
cia baseado na clareza e distinção. Assumindo que a organiza­
ção do saber medieval, baseado na autoridade constituída, era
sustentável apenas segundo uma ordem fechada do mundo
(o cosmos) e ciente que as descobertas astronômicas e mate­
máticas de sua época impunham uma nova forma de saber,
compatível com a infinitude do universo, Descartes precisa
encontrar um ponto certo, seguro e indubitável que defina
essa nova ordem (matfyesis) de saber, e que será a forma mo­
derna do conhecimento.
Deve-se ter em conta, à luz de nossas considerações sobre
a prática do cuidado de si, a presença e a confiança que Des­
cartes deposita na noção de método. O Discurso do M étodo
(1637) e as M editações (1641) fazem referência explícita à fa­
mília de práticas que vimos implantada na superfície que vai
do polo clínico à cura e ao cuidado de si. Meditação e método,
ao lado da memória, eram práticas alternantes orientadas para
a enunciação da verdade, não formas de garantir um saber
generalizado. Entende-se, assim, que em Descartes trata-se
de uma dúvida que se pratica, sobretudo, contra a autorida­
de constituída, contra a confiança na tradição e na educação
como fonte segura de saber. A tarefa de Descartes será a de
transformar a quaestio em caminho que leva do particular ao
universal.
Descartes estudou no colégio La Flèche, centro de for­
mação jesuíta, conhecido pelo seu rigor nas matemáticas. A
corrente jesuítica é um bom exemplo dos desdobramentos da
ascese helenista no quadro do cristianismo. Reencontramos
aqui a disciplina do auto-exame, da auto-correção e do domí­
nio de si. Discursivamente, o jesuitismo já foi definido como
estratégia de desambiguação, isto é, de purificação do sentido
e de formalização do espírito da letra, cujas origens remontam
ao direito canônico (Haroche, 1992). Em termos sociológicos,
o jesuitismo costuma ser tomado como boa referência para
representar as aspirações da modernidade em termos da razão
legisladora e discriminadora que caracteriza a tradição civili-
zatória ocidental. Sua origem remonta à família de práticas
baseadas na ascese como exercício. Poderia ser retomado aqui
o circuito descrito no capítulo anterior entre a forma saber e
a forma poder da conversão para caracterizar a obra de Iná­
cio de Loyola. Seu programa ascético ambiciona a construção
calculada de uma identidade, não apenas de dissolução e de
reconquista da identidade (Figueiredo, 1992). Há regras para

286
sentir, para se alimentar, para ler e compreender; há, inclusive,
regras e objetivos para flagelar o corpo: “O primeiro para sa­
tisfazer pelos pecados passados. O segundo para vencer-se a si
mesmo, isto é, para obrigar a sensualidade a obedecer a razão
(...) terceiro, para solicitar e obter de Deus alguma graça ou
dom que a pessoa deseja” (Loyola apud Ibid., p. 66).
Tudo funciona a partir de uma espécie de regra geral de
desambiguaçao. E uma estratégia frente ao horror da indeter-
minaçao e da incerteza gerada pela equivocidade do sentido
(Bauman, 1991). Mas, se há traços da narrativa baseada na
reforma de si, na inspiração geométrica e ascética de Descar­
tes, isso se combina admiravelmente com a retórica biográfica
de Santo Agostinho em seu método de exposição e prova. O
Discurso do M étodo e as M editações cartesianas são textos escri­
tos em francês e em primeira pessoa nos quais, inicialmente,
Descartes narra sua experiência de forma quase testemunhai,
terminando por apresentá-la segundo um modo geométrico.
Acostumamo-nos a encontrar em Descartes uma espécie de
patriarca da ciência moderna, desumanizador da experiência
humana, apanágio da razão sem subjetividade e dissociada do
corpo. O patriarca de uma época sem patriarcas, o espírito de
uma época sem espíritos. Todavia, é possível retomar a experi­
ência cartesiana como uma tentativa de separação e transfor­
mação tanto das práticas do estoicismo romano quanto dos
exercícios espirituais do cristianismo. Ou seja, um Descartes
que pode ser contado como último representante das antigas
práticas do cuidado de si e também primeiro representante
da forma moderna de conceber a experiência subjetiva, raiz e
condição de possibilidade para a abordagem clínica do sujeito.

Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus


preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e
resolvendo não procurar outra ciência que aquela que po­
deria ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do
mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar,

287
em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos
temperamentos e çondições. (Descartes, 1641, p. 41)

As primeiras páginas do Discurso do M étodo, escrito origi­


nalmente como introdução aos tratados sobre Dióptrica, Geo­
metria e Meteoros, narra a história dos encontros de Descartes
com diversas formas do saber: as contradições entre seus pre-
ceptores de infância, a diversidade de opiniões entre os grupos
e as diferenças de costumes entre os povos. Destaca-se a grande
admiração pela certeza produzida no saber das matemáticas.
Apesar de aspirar ao mesmo tipo de universalidade e certeza
próprias do conhecimento matemático, Descartes fala de uma
experiência que é, sobretudo, própria: “...meu desígnio não
é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem
conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me
esforcei por conduzir a minha” (Idem, 1637, p. 38).
É também de maneira pessoal que se estabelece o caminho
até a construção do método, como trajeto marcado pelo for­
te desejo de saber. O método é, antes de tudo, deliberação e
disciplina da vontade. Mais que uma reforma geral do saber,
interessa-lhe a reforma de si mesmo. A vontade, não o inte­
lecto, é o único aspecto ativo do espírito em busca da verdade
(Teixeira, 1990, p. 241).
Como transformar o saber informe, duvidoso e mal fun­
damentado, que nos é dado tanto pela tradição quanto pelos
sentidos, em outro tipo de saber, ou seja, em conhecimento
- um tipo de saber que se define pelo método, pela evidência,
pela certeza, e cuja pretensão é a restauração da universalida­
de? Vimos que o cuidado de si implica uma prática de cura,
da qual a meditação é um caso particular. Mas o cuidado de si
não é um método: é um conjunto de técnicas articulados por
uma ética. Por isso é significativo que Descartes tenha funda­
do a noção moderna de método justamente num texto intitu­
lado Meditações.

288
7.1. A IMORALIDADE DA VERDADE
Vejamos, portanto, os momentos da trajetória de conversão
do saber em conhecimento de tal modo a mostrar como essa
transformação implica uma teoria da constituição do sujeito e
como esta prescreve um tipo de tratamento da alma. Sabemos
do rico e extenso debate de Lacan com a noção de sujeito em
Descartes e também de suas implicações para as relações entre
psicanálise e ciência, mas não nos centraremos neste aspecto
agora. Lembremos que é em Descartes que Lacan melhor ca­
racteriza a aparição do sujeito da ciência, também afirmado
como sujeito da psicanálise. Geralmente se lê esta afirmação
no quadro das intenções epistemológicas de Lacan em firmar
a psicanálise como ciência paradoxal ou de configurá-la no es­
paço aberto pelos impasses de sua constituição (Milner, 1996)
a partir de seus compromissos metafísicos não declarados e da
forclusão do sujeito derivada da ciência moderna. Essa estra­
tégia lhe teria sido fornecida por Koyré (2006), que estudou a
relação de corte entre ciência antiga e moderna, introduzindo
ainda a importância da matematização do espaço e a função
prospectiva dos paradoxos.
Aqui surge um problema, pois a ciência moderna é carte-
siana em sentido bem restrito. Não foi a teoria da circulação
sanguínea de Descartes que prevaleceu, mas a de Harvey; não
foi a teoria cartesiana do movimento dos planetas que triun­
fou, mas a de Kepler; não foi a concepção cartesiana do uni­
verso (indefinido, mas não infinito) que se mostrou correta,
mas a de Bolzano e Cantor; isso sem falar na concepção psico­
lógica da comunicação entre alma e corpo pelas vias da glân­
dula pineal e nas objeçÕes filosóficas de Espinoza e Leibnitz.
Em suma, parece haver um problema congênito em Descartes
entre a forma de conceber o conhecimento e a forma de p ra ­
ticar o conhecimento. Para Lacan, Descartes havia percebido
um problema-chave —a implicação do sujeito no saber -, mas
desconheceu sua conseqüência mais imediata, a saber, que é

289
a estrutura do Outro que precede e constitui o sujeito, e não
o contrário. Portanto, dnferir que o sujeito da psicanálise é o
sujeito da ciência e que este é o sujeito cartesiano, não nos in­
forma se falamos do sujeito em teoria da ciência ou na prática
da ciência. Apesar da insistência renitente de Lacan pelo esta­
tuto epistemológico da psicanálise, interessa-me mais como
este utiliza a experiência do cogito cartesiano para emoldurar
o que se poderia chamar de estrutura do tratamento psicana-
lítico —aliás, definido por Freud como método de tratamento e
como método de investigação, além de doutrina de saber.
Nesse giro cartesiano rumo à nova ciência, modifica-se o
estatuto da relação entre sujeito e verdade. A partir de então, o
ser do sujeito não precisa passar por qualquer experiência nem
por nenhuma preparação para encontrar as condições de sua
veridicção. Ele é, apriori, capaz de verdade, e apenas acessoria-
mente um sujeito ético: “Eu posso ser imoral e, mesmo assim,
conhecer a verdade” (Foucault, 1985).
As M editações começam com um exercício de dúvida —dú­
vida que se aplica às falsas opiniões recebidas desde a infância,
aos sentidos que nos enganam; dúvida que concerne à posse
do corpo e à própria existência. Aqui aparecem duas condições
centrais por se encontrarem excluídas da prática da dúvida e,
por extensão, das evidências que dela decorrem: o louco e
aquele que sonha. Aqui a contraposição entre os dois contra-
exemplos tem sido pouco ressaltada. Descartes (1641, p. 94)
caracteriza os loucos como aqueles que imaginam-se dotados
de um “corpo de vidro”, aqueles que não percebem a dife­
rença entre a realidade objetiva e sua representação racional.
Poderíamos dizer que o sonhante exprime a experiência in­
versa daquele que se percebe dotado de uma “alma de vidro”;
ele não percebe nem distingue a realidade subjetiva da razão:
“... vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios
concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa dis­
tinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto pasmado”
(Ibid., p. 94).

290
A conjectura da alma de vidro corresponderia a uma subs­
tância translúcida, incapaz de reflexão, autoapropriação e ipsei-
dade, mas, ainda assim, uma substância, portanto, dotada de
mesmidade. Aqui devemos lembrar o controverso argumento
de Foucault (1961). Descartes representa o ponto de transição
do louco como sujeito de uma experiência trágica para o louco
como objeto de uma consciência crítica. O gesto de Descartes
inaugura o processo de silenciamento da loucura, seu enclau-
suramento e invisibilização por sucessivas camadas de discurso:
moral, jurídico, médico, psiquiátrico e... psicanalítico. A partir
desse gesto, a loucura não fala mais por si, mas aparece sempre
pelas vias de um porta-voz de sua desrazão. O louco deixa de
ocupar a posição social temida e respeitada, a função agente de
um saber, como se vê na antiguidade e na Idade Média oci­
dental, e passa a representar o negativo da razão e uma efígie
do grande mal, sucedendo a lepra. Tal processo é sincrônico à
emergência do Estado moderno e suas estratégias disciplinares
de controle, vigilância e punição. A hipótese aqui é clara: a cons­
tituição da loucura como objeto individualizado é contemporâ­
nea de uma mutação na forma do poder e sua conseqüente rela­
ção com os diferentes regimes de verdade. Daí o silenciamento
da loucura ser também o apagamento de um modo específico
de relação do ser do sujeito com a verdade. Descartes figura,
assim, como a condição de possibilidade para todo tratamento
possível da alma na modernidade. O deslocamento fundamen­
tal a ser aqui considerado não é de alma para espírito, mente,
consciência, sujeito ou personalidade. O deslocamento chave se
dá quando passamos das noções de cura e terapia para a noção
de método de tratamento. O similar cartesiano disponível para
esta operação encontra-se na ideia que intitula outro de seus li­
vros: Regras para a Direção do Espírito (1628). Tratamento surge,
assim, como uma noção intrinsecamente ligada à de método. O
preço a pagar por esse gesto é o esquecimento de que o próprio
contexto ao qual a noção de método se aplica aqui comprime e
subentende a prática de cura e as exigências da terapia.

291
7.2. SONHÇ E LOUCURA NA GÊNESE
DO MÉTODO CARTESIANO
Pode-se dizer que o método psicanalítico se estabelece como
tal e se autonomiza das práticas de sugestão e hipnose, quan­
do Freud reúne e articula as conquistas registradas na esfera
da psicoterapia da histeria (Freud & Breuer, 19 8 5 d) com as
hipóteses sobre o funcionamento e a interpretação dos sonhos
(Freud, 1900a). Sonho e loucura são, então, novamente reu­
nidos sob a égide de um método de tratamento. Isso significa
que será preciso refazer o estatuto de saber e da verdade, agora
condensado na noção de sintoma, ao mesmo tempo contan­
do e se separando de Descartes. Torna-se, assim, decisivo, na
constituição histórica da situação analítica mostrar que ela não
é apenas uma versão do silenciamento psiquiátrico. E preciso
mostrar que a autoridade do psicanalista procede de uma espé­
cie de transferência do crédito dado a uma ficção —a ficção de
um sujeito que seja correlativo do saber que a situação produz
(Derrida, 1994, pp. 81-82).
Como vimos, o percurso da dúvida recai tanto sobre a na­
tureza e a procedência do saber quanto sobre a condição do
próprio sujeito, seu corpo e sua consciência, se assim quiser­
mos. Contra esta incerteza apresenta-se a hipótese de que há
certas formas de saber, como a aritmética e a geometria, nas
quais não pode haver dúvida. Por exemplo, não pode haver
dúvida de que um pentágono tenha sempre cinco lados, e não
seis. Mas mesmo este saber é dubitável segundo a conjectura
de que tais ideias poderiam ter sido introduzidas por um gênio
enganador: “Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus,
que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno,
não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empre­
gou toda a sua indústria para enganar-me” (Descartes, 1641,
p. 96).
Este movimento de generalização da atitude inicial de dú­
vida seguido de sua radicalização em forma hiperbólica corres­

292
ponde a uma resposta muito astuta contra a posição assumi­
da pelos céticos. Neste movimento, ocorre um deslocamento
pelo qual Descartes abandona o terreno da ética, onde as teses
do ceticismo se estabeleceram inicialmente, e migra para o ter­
reno de uma teoria do sujeito necessária para o conhecimento
em geral. Esse deslocamento deixa uma espécie de rastro, pelo
qual se inicia o Discurso do Método, ou seja, a moral provisória.
Alvo de controvérsias e objeções, a moral provisória está na
origem dessa grande experiência do método cartesiano. Essa
moral provisória, jamais retomada em seus fundamentos, im­
plica a obediência às leis e costumes de seu país, em ser o mais
firme e resoluto em suas ações, de modo a não se deixar levar
pelas opiniões e: “... procurar vencer sempre mais a mim p ró ­
p rio do que à fortuna, e de antes modificar meus desejos do
que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer
que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto
nossos pensamentos...” (Idem, 1637, p. 51).
Vemos nessa moral provisória (aliás, provisoriedade e preca­
riedade que marcarão os parâmetros da ética moderna) os traços
tanto do cuidado de si em sua forma estoica e cética, mas, princi­
palmente, a ideia de que o único poder possível é o poder sobre si.
Descartes aponta que a atitude de duvidar é uma ação in-
telectiva. Ao duvidar, estamos pensando. Posso duvidar dos
sentidos, da memória, da imaginação, posso até duvidar de
minha existência, mas não posso duvidar de que, enquanto
estou duvidando, eu estou duvidando, e que duvidar é um ato
do pensamento. Por mais que um gênio maligno me enga­
ne quanto ao conteúdo de meus pensamentos, ele não pode
me enganar que estou pensando, ou seja, sobre esta atividade
mesma enquanto eu a pratico: “... cumpre enfim concluir e ter
por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é neces­
sariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a
concebo em meu espírito” (Ibid., p. 100).
O detalhe dramático é que essa primeira evidência, essa
primeira ideia clara e distinta que resiste ao critério da dúvida,

293
só é verdadeira quandá eu a enuncio. “Eu sou, eu existo; isto é
certo; mas por quanto tempo?”. Ou seja, o primeiro problema
do sujeito assim constituído é que ele é evanescente, depen­
dente de um ato de enunciação cujo conteúdo refere-se ao
próprio ato. A solução, que, aliás, gera um ponto de discussão
adicional com a psicanálise é referir essa substância pensante
(res cogitans) ao ato de pensamento (cogito) e à coisa pensada
icogitato). Reencontramos aqui as três posições indiretamen­
te presentes na noção aristotélica de hypokeímenon. Afirma-
se que a essência daquilo que pensa é o próprio pensamento,
reunindo, assim, ato e potência no mesmo ente. Observe-se
que, até aqui, há uma separação entre certeza e engano, que
são atributos psicológicos do sujeito e atributos da atividade
de pensar, em contraste com a evidência e a falsidade, que são
atributos lógicos do pensamento. A quaestio cartesiana estabe­
lece a certeza como condição da verdade, e não o contrário.
Será preciso um segundo passo para que essa certeza se trans­
forme em verdade pela intercessão de uma garantia.
O problema então se reduz a como sustentar o sujeito no
tempo. Posso estar sendo enganado por Deus e, mesmo assim,
existir (no ato de pensar), mas não posso postular que meu
pensamento seja ele mesmo verdadeiro por causa disso. Só o
meu pensar é verdadeiro no tempo e no ato de sua enunciação,
não meu pensam ento nem o objeto pensado. Para tanto, Des­
cartes se verá obrigado a refutar a hipótese do Deus enganador
ou do gênio maligno.
A partir da terceira meditação demonstra-se como a exis­
tência de Deus é necessária. Deus existe, e caracteriza-se pela
infinitude. A partir disso, o sujeito, antes caracterizado pela fini-
tude, pode se distender no tempo, garantindo a verdade do pen­
samento e do conhecimento assim produzido. Há, portanto,
uma transferência entre o Outro e o sujeito, uma transferência
da infinitude para a finitude, da universalidade para a particu­
laridade e da existência descontínua para a existência contínua.
Uma transferência que afeta e define as propriedades do saber

294
assim constituído. Deus é o suposto de todo saber posto, e o
sujeito se realiza como substância particular nessa transposição.
E este o tema.que Lacan desdobra em sua teoria do Outro.
A constituição do sujeito precede a teoria do Outro na ordem
expositiva da meditação de Descartes, mas é o Outro que pre­
cede ao sujeito na solução lógica do problema. Lacan é carte-
siano quanto ao processo de constituição do sujeito, mas não é
cartesiano quanto ao estatuto do Outro. O anti-cartesianismo
de Lacan neste caso se dá por três razões.
Primeiro, é preciso supor com Descartes a existência de três
tipos de ideias: as inatas (nascidas com o sujeito), as adventí-
cias (formadas pela combinação e pela dedução entre ideias)
e as factícias (conjecturadas sem pressuposição de existência).
A ideia de si mesmo é inata, assim como a ideia de Deus, pois
não as produzimos por ficção, nem podemos lhe acrescentar
ou tirar nada (como nas ideias factícias). O cogito também não
é uma ideia adventícia, pois não decorre de uma experiência
sensível concernente ao particular. O principal atributo que
é inferido por essa dedução baseada na tipologia das ideias é
que as ideias inatas são também universais. Elas não decorrem
do pensamento finito no tempo, mas do pensamento infinito.
Porém, para Lacan o universal é a própria divisão do sujeito.
Em segundo lugar, é preciso supor a distinção entre o pen­
samento finito e imperfeito e o pensamento infinito e perfeito.
A perfeição é definida aqui como ausência de falta. Assim, o
erro não advém de uma negação, considerada como carência
—logo falta —mas da privação de um conhecimento derivada
da finitude do pensamento (Ibid., p. 124). Esta privação apa­
rece nas duas fontes do erro, segundo Descartes: a precipitação
e o prejuízo. A precipitação ocorre porque ao sujeito não se
concede todo o tempo necessário para examinar (análise), re­
compor (síntese) e enumerar a ordem das ideias. A finitude do
tempo gera, portanto, a precipitação, e daí, o erro. O prejuízo,
ou o que nós chamaríamos de preconceito, advém da ausência
de exame e decomposição (análise) das ideias com as quais

295
nos deparamos. Tomanios, assim, o que é confuso e indistinto
pelo que é claro e distinto. O preconceito e a prevenção deri­
vam da antecipação do pensamento e, portanto, de sua tem­
poralidade. As duas fontes do erro são associadas finalmente
ao mau uso do livre-arbítrio ou da vontade. Elas configuram
uma traição ao método. Observe-se como, no artigo sobre o
tempo lógico, Lacan associa o prejuízo à primeira forma ló­
gica do sujeito e à precipitação como parte necessária para a
conclusão final. Portanto, para Lacan o sujeito é a expressão
temporal de uma negatividade.
Em terceiro lugar, é preciso considerar que a existência e
a essência de algo só se separam no nível das ideias —sepa­
ração que decorre da divisão acima exposta entre infinitude-
perfeição e finitude-imperfeição. Por exemplo, a essência de
um triângulo e sua existência diferem apenas na medida em
que são dois pensamentos diversos. No triângulo existente
fora de meu pensamento, essência e existência não podem ser
distintas (Ibid., p. 131). Contudo, para Lacan o sujeito é uma
existência singular sem essência.
Essas três perspectivas (1) universalidade em confronto com
a particularidade, (2) negação em confronto com a afirmação e
(3) existência confrontada à essência, são decisivas para a teoria
lacaniana do sujeito. Em Descartes, esses três temas cruzam-
se em uma rede de argumentos que retoma a célebre prova de
Santo Ancelmo acerca da existência de Deus. Vimos que a exis­
tência de Deus é condição para a produção de saber, mas ainda
não examinamos como Descartes prova a existência de Deus.
Resumidamente, trata-se da seguinte seqüência: considere-
se a ideia de Deus como destituída de substância. Ela cor­
responde apenas a uma conjectura e um sinônimo da ideia
de perfeição. Poderíamos dizer “Deus =perfeiçã o” no mesmo
sentido em que se afirma, por exemplo, uma função f(x) = y,
onde y =perfeição. Ora, se assumimos esta equivalência, somos
levados a admitir que a ideia de perfeição implica o conceito
de ausência de falta. Nada pode ser perfeito se nesse ser houver

296
alguma carência ou negatividade. Se a ideia de Deus correspon­
de à ideia de perfeição e se a ideia de perfeição não admite ne­
gatividade, logo Deus não pode ser apenas uma ideia destituída
de existência. Neste caso, verificaria-se a falta de algo, o atributo
de existir. Uma ideia que é tão-somente uma ideia, sem cor­
respondente de existência, é uma ideia imperfeita. Se Deus foi
definido como uma ideia perfeita, ele não pode estar privado
de um atributo sequer, muito menos do atributo da existência.
Se Deus eqüivale à perfeição, não pode não existir. Logo, Deus
existe, e não é apenas uma conjectura à qual falta existência.
Em extensão a esse argumento vem a ideia de que o mal é
uma privação do bem. Se o mal é uma falta sem existência ou
substância própria, consequentemente Deus não apenas exis­
te, mas também é necessariamente bom. Caso contrário, seria
privado de algo, a saber, do atributo da bondade. Note-se que
o argumento não admite inversão: Deus não está privado do
atributo da maldade, pois a maldade não é atributo dotado de
existência; ela é apenas a privação do bem. Se ele é necessaria­
mente bom, logo ele não é enganador e, portanto, afasta-se
a conjectura do ente maligno que perturbava a consistência
temporal do sujeito. Assim, o cogito deixa de ser um instante
pontual e circunscrito à sua própria enunciação e passa a ter
a sua garantia de verdade e evidência permanente no tempo.
Temos aqui a seqüência de modalidades da falta em Lacan: a
privação do Outro, a frustração do sujeito e a castração como
articulador (transferência) entre um e outro.
Ou seja, a partir do Outro (neste caso, figurado por Deus)
se extrai determinada garantia para o saber. Para conhecer não
é preciso re-enunciar, a cada vez, que penso; logo sou basta que
me lem bre disso quando a ocasião exigir. Reencontramos aqui
as circunstâncias pela qual determinada enunciação (,quando
a ocasião o exigir) posiciona a emergência do sujeito. O cogi­
to permanece como um dizer que não precisa se traduzir em
dito, um fato de memória pré-consciente, segundo a acepção
de Freud, ou seja, disponível para torna-se consciente a qual­

297
quer hora e segundo a' deliberação do sujeito. O esquema é
relativamente simples: o sujeito garante o saber e Deus garante
o sujeito. Se o cogito é a primeira evidência que constitui o su­
jeito, a prova de existência de Deus é a evidência que constitui
o Outro como garantia do saber do sujeito.

7.3. O TRATAMENTO LÓGICO DO SUJEITO


Até aqui a leitura de Lacan introduz uma dupla subversão.
Em relação ao sujeito, a separação entre pensamento e existên­
cia não será suturada pela interveniência do Outro. O sujeito,
enquanto dividido pela disparidade entre enunciado e enun­
ciação, ocorre como função negativa do pensar: penso onde não
sou, sou onde não penso. Essa função negativa é demonstrada
pela extensa revisão do estatuto de desejo em sua relação com a
linguagem e aparece em inúmeras versões ao longo da obra de
Lacan: a negatividade das formas estruturais da defesa (recalque,
foraclusão, recusa), a negatividade dos modos de inscrição do
sujeito na linguagem (traço, letra, significante), a negatividade
das posições existenciais do sujeito (alienação, separação). Isso
não reduz o inconsciente a uma figura da irracionalidade ou ao
afeto pré-reflexivo, mas coloca o problema das relações entre o
pensamento inconsciente. Ou seja, o não penso não é sinônimo
de não há pensamento em meu ser, mas de que há pensamento
que não se pensa com o si mesmo. O eu (moi, si mesmo) é o
lugar com qual o sujeito pensa e no qual ele deposita o pensado.
O sujeito é uma posição que mantém relação negativa {não p en ­
so, não sou) em face de seus modos de objetificação.
Transparece, assim, como Lacan retém o processo de cons­
tituição do sujeito cartesiano separando a primeira evidência
{penso, logo sou) da segunda evidência {Deus existe). Todos os
atributos da quaestio moderna que levam Descartes à primeira
evidência são conservados na acepção que Lacan dá ao sujeito:
seu caráter pontual, sua divisão pela dúvida, sua ausência de
conteúdo, sua imanência ao ato, seu valor posicionai ligado à

298
enunciação. Há, portanto, uma crítica da segunda evidência
cartesiana, não da primeira. A figura mais constante aqui é a
do Deus enganado (Bass & Zaloszyc, 1999, p. 57).
Os três atributos fundamentais de Deus serão objeto de
um trabalho de negativização: a universalidade do Outro se
transformará em uma universalidade fraturada (o significante
da falta no Outro), a existência do Outro será revertida em ex-
sistência (o Outro não existe) e a perfeição será anexada a um
tipo especial de objeto, caracterizado por sua negatividade (o
objeto d). Este movimento de inversão da teologia cartesiana
em ontologia negativa poderia ser sinalizado pelo interesse de
Lacan em místicos da negatividade como Jacob Boehme, An-
gelus Silesius e San Juan de La Cruz (Dufour, 1999). Nestes
autores a perfeição é produzida pela relação em espelho com
o outro. Deus menos do que uma ideia perfeita é o sucedâneo
de uma imagem perfeita, uma imagem na qual não há falta,
ou mesmo a garantia da perfectibilidade da imagem, como
princípio da unidade imaginária e narcísica do eu \moi] não
do sujeito [/<?]. Lacan parece denunciar uma ambivalência do
sujeito cartesiano, pois: “O Eu [Je] é a um só tempo, o conte­
údo da relação e o ato da relação” (E:1949, p. 96).
Portanto, o que é vetado ao sujeito após essa decomposição
lacaniana de Descartes é a reflexividade. Há um tipo de objeto
que não é especular e impede que o sujeito se apreenda como
si mesmo. Em vez da conjunção entre si (sujeito) mesmo (Ou­
tro), proposta pela transferência cartesiana, há uma disjunção
entre o si (Sujeito) e o mesmo (identidade como objeto). Ob-
serve-se como isso transpira nas primeiras intuiçoes de Freud
acerca do inconsciente: o sintoma é uma forma de lembrar-se
(um símbolo mnêmico) que não se lembra que é uma lem­
brança; a fantasia é uma forma de imaginação que não se ima­
gina a si mesma como tal; a transferência é uma forma de ato
(uma atualização) que não realiza a si mesma como ato.
Todavia, a negatividade que pesa sobre o ser do sujeito
não se apresenta como sucedâneo de uma negação idealista

299
ou niilista da realidade. Trata-se de uma existência definida
pelos modos como ela fracassa em seus modos de inscrição
simbólica ou imaginária. Do não sou não decorre a inexistên­
cia genérica do corpo, do ser-falante {parlètre) ou do vivente,
mas apenas o caráter sexuado insuficiente ou excessivo deste
corpo. Do não penso não decorre a inexistência genérica da
razão ou do saber que a noção de inconsciente viria instalar,
mas apenas a dimensão desejante presente nos sintomas. Há,
portanto, dois modos ou duas fases do sujeito em relação ao
desejo: o Eu enquanto sujeito, que se apresenta na alienação ao
significante, e o sujeito enquanto Eu, que se expressa na forma
do impensável (Ibid., p. 45).
Chegamos, assim, ao núcleo cartesiano de toda psicopato-
logia psicanalítica. As formas clínicas da psicose, da perversão
ou da neurose (consideradas como estruturas ou não) são es­
tratégias para recompor o Outro, fazê-lo fonte e origem da
autoridade, da legitimidade do saber e condição para todo de­
sejo possível. Não são, desta maneira, exteriores ao processo de
constituição do sujeito como universal ou figuras da desrazão,
como queria Descartes, mas modos de ser e de des-ser do su­
jeito. Ao lado dessas formas clínicas e suas estratégias desejan-
tes, há outra comissura do ser, aquela que se mostra na via da
existência pelas estratégias de gozo e de extração de prazer a
partir do Outro. Aqui não é a face do sujeito que conta, mas a
do sujeito como objeto em seu fantasma.
Lacan lerá Descartes aplicando essa espécie de chave negati­
va para pensar as relações entre universalidade e existência. Es­
pecificamente, trata-se de substituir a ligação coextensiva entre
sujeito e pensamento {penso, sou; ou ainda: penso, logo existo)
por uma ligação disjuntiva {penso ou sou; penso ou existo). Este
conectivo “ou” tem duas acepções distintas: significa tanto o
“ou” inclusivo (intersecção comutativa), que reúne os elemen­
tos alternativos, quanto o “ou” exclusivo (intersecção vazia),
que subsume que a escolha de uma alternativa exclui a outra.
Para Lacan, seria importante pensar uma terceira acepção para

300
este “ou” —uma acepção que contivesse, áo mesmo tempo, a
força da necessidade lógica do “ou” exclusivo (se escolho A,
necessariamente não escolho B) e a força da contingência ló­
gica do “ou” inclusivo (se escolho A, contingencialmente esco­
lho B). Por exemplo, diante de uma alternativa como a bolsa
ou a vida, podemos pensá-la exclusivamente (escolho a bolsa,
logo, necessariamente perco a vida) e também inclusivamente
(escolho a vida, mas nisso sou submetido a uma contingência
e levado a uma vida parcial, uma vida sem a bolsa). Ora, uma
vida sem a bolsa não é uma vida-toda, logo minha escolha
introduziu uma contingência no escolhido que não estava lá
antes da escolha. A terceira possibilidade, o “ou” que os latinos
chamavam de vel, implicaria escolher, na vida, a perda da bol­
sa. E a escolha pelo que, na interseção entre A e B, representa
o elemento negativo. Este tipo de escolha Lacan chamou de es­
colha forçada, e que condiciona a operação lógica da separação.
Essa breve revisão é importante para entender por que, ao
tentar formalizar o percurso do tratamento psicanalítico a par­
tir da noção de ato analítico, Lacan utiliza as categorias car-
tesianas do pensamento e da existência, aplicando sobre elas
a chave da negatividade e incluindo a tensão entre universal
e particular. Seu objetivo é duplo: primeiro, mostrar que a
divisão do sujeito entre enunciado e enunciação é recoberta
por outra divisão, entre saber e verdade, procedente do Outro.
Em segundo lugar, interessa a Lacan mostrar que a relação
do sujeito ao Outro não precisa ser uma relação de inclusão,
como em Descartes, pois ela pode ser pensada também como
relação de exceção (ou de intersecção vazia).
Vejamos esses dois argumentos em detalhe, uma vez que de­
les depende uma posição epistêmica quanto à possibilidade de
formalização científica do tratamento e uma dimensão política
implicada indiretamente pela ideia de soberania do Outro.
Tomemos a evidência cartesiana como uma proposição: o
sujeito pensa. Note-se que em Descartes ela não é primaria­
mente uma proposição. Só depois da intercessão do Outro,

301
que retira e estende o sujeito para além de seu ato enunciativo, o
pensamento torna-se atributo predicativo do sujeito. Examine­
mos essa proposição segundo a tipologia de Aristóteles, compa-
rando-a com as situações descritas por Descartes e escrevendo-as
segundo a conceitografia de Frege. Para Frege toda proposição
pode ser redescrita como um quantificador [universal (V) ou
existencial (a)], que se aplica a uma função (O). Uma função
traduz uma proposição afirmativa ou negativa, o que pode ser
indicado pela presença (negação) ou ausência (afirmação) de
uma barra na parte superior da fórmula (O ou (D). Além disso,
há um lugar vazio reservado à variável (x) e ao argumento f(x).
A variável se atribuirá um valor segundo o modelo semântico,
ou seja, o mundo possível escolhido como critério de verificação
também chamado de critério de verdade.

Exemplo Tipo de Proposição Descartes Escrita


(1) todo sujeito pensa universal afirmativa ciência V x. í>x
(2) algum sujeito pensa particular afirmativa cogito 3 x. 4>x
(3) todo sujeito não pensa universal negativa sonho V x. Ox
ou, nenhum sujeito pensa
(4) algum sujeito não pensa particular negativa loucura 3 x. ®x

Estas quatro classes de sentenças ou proposições podem ser


relacionadas entre si. A quantidade de uma proposição predi-
cativa é universal se o termo na posição de sujeito é um termo
universal, em nosso exemplo, a própria palavra sujeito quantifi­
cada entre todo e nenhum. A quantidade é particular se a posição
de sujeito é ocupada por um termo particular, no nosso exemplo
(algum sujeito). Diz-se também que apenas a quantificação parti­
cular (afirmativa e negativa) é de fato existencial. A qualidade de
uma proposição é negativa se está presente a negação do lado do
predicado, em nosso exemplo, o caso de não pensa. Estas propo­
sições podem ser tomadas aos pares no interior de um silogismo.
Surgem assim relações do seguinte tipo:

302
(T) Universal Afirmativa contrárias (III) Universal Negativa
t t
subalternas ' subalternas
i
(II) Particular Afirmativa subcontrárias (TV) Particular Negativa

Entre (I) e (IV) e entre (III) e (II) há relação de contradição,


ou seja, não é possível que sejam ambas verdadeiras ou ambas
falsas ao mesmo tempo.
Aristóteles estudou também o procedimento lógico necessá­
rio para que passemos, dentro de um mesmo tipo de proposi­
ção, para a sua inversa. A permutação da posição do sujeito com
a do predicado é chamada de conversão. As proposições do tipo
particular afirmativa “algum X é Y” converte-se em “algum Y é
X”. A proposição universal negativa “todo X não é Y” converte-
se em “todo Y não é X”. Estas são conversões simples. Todavia
a conversão de uma universal afirmativa revela um problema
adicional. É apenas um acidente que se “todo X é Y”, implique
que “algum Y é X” ( Todo homem é mortal, conversão para: Hi.
pelo menos um mortal que é homem). Além disso, a particular
negativa requer o método da obversão8 para passar de “Algum
X não é Y” para “Algum não Y é X” ( Todo homem nao é mortal,
conversão para: Algum não m ortaléhom em ). Isso autoriza apli­
carmos a inversão à nossas proposições de base.

Tipo da Proposição Conversão Tipo de


Proposição Original Intersecção
Universal Todo sujeito pensa Todo pensamento é sujeito Intersecção
Afirmativa nula
Particular Algum sujeito Algum pensamento é sujeito Intersecção
Afirmativa pensa comutativa

8. Obversão: transferência da negação da cópula da proposição original para o sujeito da


proposição conversa (Branquinho, Murcho & Gomes, 2006, p. 646).

303
Universal Nenhum sujeitõi, Não-todopensamento é sujeito Intersecção nula
N egativa pensa
Particular Algum sujeito não Ao menos um não pensamento Intersecção
Negativa pensa ê sujeito comutativa

Reencontramos assim a dupla intersecção que examinamos


anteriormente em termos da teoria dos conjuntos: em lógica
formal os casos PA e PN de conversão simples exprimem ape­
nas a propriedade comutativa da intersecção entre conjuntos9.
No caso UN a intersecção é nula, pois X nY = : pode inverter-
se facilmente em Y n X = :. No caso de UA surge uma solução
que recorre a normatividade. Presume-se que na proposição
Universal Afirmativa esteja contida uma proposição Particular
Afirmativa, ou seja, se todos homens são mortais [V x ( Xx ->
Xy)] presume-se que existe pelo menos um hom em que é m ortal
[3x (Xx AYx)]. Para Aristóteles a garantia para passar do uni­
versal para o existencial, provém de sua ontologia, uma que
vez que o Ser é c o Ser é universal. Mas para Lacan o ponto de
partida é a contingente da existência de um particular. Quatro
problemas colocam-se aqui, problemas que atravessaram a lei­
tura que Lacan faz de Descartes:
Ao ler logicamente a expressão gramatical “algum ” (pre­
sente nas proposições particulares) Lacan prefere interpretá-la
como “existe ao menos um” (-1), sem que, ao mesmo tempo,
isso signifique a exclusão de “todos” ou indique a presença de
“este” (proposição singular baseada no Nome Próprio).
Lacan recusa a regra normativa que proibe que a Proposi­
ção Universal Afirmativa, por implicação existencial, assuma
uma Proposição Particular Afirmativa, porque seu interesse
teórico recai justamente na aplicação da fórmula diante de um
domínio vazio de objetos (o sujeito) em um domínio de não-
identidade do ser.

9. Também expressa pelas chamadas Leis de Morgan: (1) [não (AriB) =nao (AuB)] ou [não (p
Aq) = (não p v nao q] e (2) [nao (AuB) =não (AnB)] ou [não (pvq) = (não p v não q)].

304
Ao interpretar a conversão da Proposição Universal Nega­
tiva Lacan desloca a negação do predicado para a negação do
quantificador, ou seja, em vez de passar de [não Y] para [não
( não Y)\ , ele passa para \não-todo Y\.
Ao radicalizar o problema da inclusão “natural” da Proposi­
ção Particular Afirmativa na Proposição Universal Afirmativa
Lacan reinterpreta as categorias da lógica modal à partir da
negação da necessidade pela contingência. Em Aristóteles a
expressão lógico-ontológica da Universal Afirmativa é a ne­
cessidade: o Ser necessariamente é. Em Lacan o problema se
re-coloca a partir da hipótese do vazio de Ser. Este movimento
pode ser escrito desta maneira:

Posição Modalidade Definição Escrita


(1) Necessário 0 que não cessa de se escrever 3 x . Ox
(2) Possível 0 que cessa de se escrever V x. <t>x
(3) Impossível 0 que não cessa de não se escrever 3x. (5x
(4) Contingente 0 que cessa de não se escrever Vx. ®x

Em nosso exemplo estamos distribuindo as relações lógicas


de acordo como um predicado simples, nomeadamente p en ­
sar. Mas imaginemos que nos deparemos com uma situação
envolvendo dois predicados: pensar e existir. Chamemos esta
situação de um mundo possível. Observemos que isso contra­
ria Descartes para quem o cogito não é uma inferência lógica,
mas um ato do espírito. Observemos ainda que isso contraria
também todo o consenso pós-kantiano em filosofia da lógica
que afirma que a existência não pode ser tomada como um
predicado. Consideremos agora estes dois predicados como
formalmente semelhantes a quaisquer outros, por exemplo,
\pensamento = traços verticais] e [existência = traços horizon­
tais], e representemos um dado estado de mundo [M l].
Queremos inferir a posição do sujeito (todos, nenhum, al­
gum , este) ao modo de uma combinatória considerando este

305
dois predicados. Enfatizemos agora a oposição quantitativa
entre universal e particular (lexis) e a oposição qualitativa en­
tre afirmação e negação (phasis) (SIX: 1961-62). Apliquemos
tal combinação, das condições lógicas sobre as proposições, a
uma situação real [M2]. Vamos supor então quatro casos de
verificação das proposições em acordo com o esquema abaixo:

Caso 1 Caso 3
H á pensam ento 1Va%io

Caso 2 Caso 4
H á pensam ento H á existência
H á existência

No fundo este experimento lógico consiste na aplicação do


quadrante de Peirce (como referência semântica) à substância
pensante de Descartes (como função proposicional).
(a) Os Casos (1) e (4) verificam como verdadeira a Proposição
Afirmativa Universal (todo sujeito pensa, logo algum sujeito
pensa). A proposição particular está incluída na universal,
Caso (1). Ela exclui a existência da negação do pensa­
mento, ou seja, o Caso (4). Se todo sujeito pensa (Caso
1), então nenhum sujeito nao pensa (Caso 4). Todavia há
um problema aqui, uma vez que nada pode garantir que
todo-sujeito pensa, ou que exista pelo menos um sujeito que
pensa. Assim pode-se derivar a lógica do não todo que La­
can usa para ler a sexualidade feminina. Isso não significa
que existe uma parte do sujeito que não pensa, mas que
“não-todo” (pas-tout) pensa. Aqui a existência deve ser di­
vidida em duas ideias diferentes: ser um elemento de um
conjunto (3) e ser parte de um conjunto (3 ).
(b) Os Casos (2) e (3) correspondem a verificação da Pro­
posição Universal Negativa (nenhum sujeito pensa, logo,
algum sujeito não pensa). A negação no universal im­
plica a negação no particular do predicado. Todavia a

306
negação do universal implica a afirmação do particular.
Todo pensamento implica existência [Caso (2)], mas
não-toda existência implica pensamento [Caso (3)]. O
problema crucial é que da ausência ou privação de pre­
dicado (nem pensamento nem existência) não se pode
inferir nem a universalidade nem a não universalidade
(no sentido do particular). Aqui se exemplifica o tema
da conversão problemática de nenhum para não-todos.
Reencontramos também o tema da dupla alternativi-
dade, a escolha inclusiva e a escolha exclusiva, a inter­
secção comutativa e a intersecção vazia. Examinamos a
diferença entre (1) se eu escolho A, eu necessariamente
nao escolho B e (2) se eu escolho A, eu contingencial-
m ente também escolho B e (3) se eu escolho A eu possi­
velm ente não escolho B (ou como vel).
(c) Os Casos (1) e (2) correspondem à verificação da Pro­
posição Afirmativa Particular (algum sujeito pensa, logo,
algum sujeito nao pensa). A afirmação da particularida­
de do pensamento (Caso 1) implica que o pensamen­
to não é apenas atributo do sujeito. Por exemplo, um
sujeito pode não pensar e mesmo assim existir [Caso
(2)]. A expressão proposta por Lacan de existir “não
sem” pensamento está baseada na interpretação do su­
jeito cartesiano como sujeito da ciência. Isso também
aparece na ideia de que a psicanálise existe “não-sem” o
sujeito da ciência. Não-sem é um tipo de negação con­
dicionada, assim como se nota na fórmula lacaniana de
que a “angústia não é sem objeto” o que não é o mesmo
que dizer que “a angústia tem um objeto”.
(d) Os Casos (3) e (4) verificam a Proposição Particular
Negativa {algum sujeito não pensa, logo, algum sujeito
pensa). A afirmação de que algum sujeito não pensa não
exclui a possibilidade de que o sujeito exista. Mas so­
mos levados a concluir que algum sujeito pensa pela ne­
gação de algum sujeito não pensa. Se algum sujeito não

307
pensa, então a|gum sujeito pensa. Mas isso não fun­
ciona porque cr caso (3) indica não pensamento e não
existência. A Proposição de que todo sujeito pensa, é ver­
dadeira mesmo no Caso (3), ali onde não há nenhum
sujeito, nem do pensamento nem da existência. Ora,
este não-pensamento e esta nao-existência, em senti­
do cartesiano correspondem exatamente ao sujeito em
sentido lacaniano. O sujeito como “ao menos um” (-1)
aparece no Caso (3) de nosso experimento. Este lugar
do não-pensamento (Wo Es war, ali onde eu estava) e
da não-existência (a falta-a-ser), este lugar que só pode
ser inferido à partir dos outros casos, indica o lugar pró­
prio ao sujeito na “razão desde Freud”.
O Caso (3) é um mundo possível sem valor de existência,
mas não obstante verdadeiro como universal, uma vez que o
sujeito desde o inconsciente não pode verificar sua existência
separado do Outro, senão como objeto. O sujeito aparece as­
sim como uma curiosa substância, ao mesmo tempo universal
e refratário ao universal (não-todo), a um tempo existencial e
refratário à existência (não-sem).
Podemos sintetizar esta ideia principal por meio de um
exemplo. Tomemos a proposição que diz: nao existem mar­
cianos verdes em Marte. Negando esta proposição poderíamos
concluir que: existem marcianos de outras cores em marte (azuis,
vermelhos ou roxos). Esta é uma proposição verdadeira que se
refere a um objeto não-existente [Caso (3)]. Inversamente po­
deríamos afirmar que: todos os marcianos são verdes [Caso (1)].
Isso nos mostra, trivialmente, que existem universais que não
possuem existência, e que nos levam a presumir particulares
existentes que não estão incluídos em universais.
A segunda conseqüência é que percebe-se nitidamente que
a oposição entre sujeito e não sujeito é diferente da oposição
entre pensam ento e existência. Ou seja, a relação a si (ser ou não
ser) não é simétrica à relação entre os predicados de si (ser alto
ou ser baixo). Para construir um predicado é preciso negar ou­

308
tro predicado. A não existência implica pensamento, desde que
nao se negue o sujeito também. Assim, o pensam ento é uma
exceção ao conjunto formado pela existência sobre o fundo de
não sujeito (o que Lacan chama também à efa d in g à o sujeito).
Retoma-se aqui a função da interseção na escolha alterna­
tiva inclusiva ou exclusiva e a possibilidade terceira do vel. O
universal funda-se nessa possibilidade da exceção, e não deve
ser pensado como totalidade saturada. Refuta-se, assim, a ideia
de Deus como infinito e universal, na qual o sujeito pensante
é incluído, necessariamente, como caso particular e finito. A
loucura e o sonho retornam agora como os dois paradigmas
do sujeito do inconsciente.
Vemos, desta forma, como o trajeto da quaestio exempli­
ficado em Montaigne é revertido por Descartes e novamente
revertido em Lacan (subvertido). Nesse movimento, não se re­
torna ao mesmo estado anterior. Lembremos que a experiência
do cogito e a formulação dos princípios da filosofia primeira
em Descartes correspondem às raízes metafísicas da árvore do
conhecimento. Seu tronco é a física e seus ramos são a moral,
a mecânica e a medicina. Vimos que a moral permanece em
estágio estacionário na obra de Descartes; a mecânica surge
como principal exemplo de aplicação do método geométri­
co. Resta a medicina como âmbito de aplicação da metafísica
cartesiana. Sabe-se que Descartes trabalhou em um tratado
sobre medicina, não esboçando mais que algumas descrições
sobre a circulação do sangue, além de algumas considerações
sobre a formação do feto humano. Em que pese seu inacaba-
mento, sabe-se o que Descartes esperava do projeto: firmar
uma prática que pudesse ser suficientemente metódica acerca
do tratamento das doenças. Segundo seu juízo, seria melhor
levar em conta o próprio bom senso do que consultar médicos
profissionais, tal o estado de dispersão e falta de fundamenta­
ção dessa prática no século XVII (Cottinghan, 1995, p. 109).
Essa forma metódica, fundada e perfeitamente transmissível
da cura é a forma moderna da noção de tratamento.

309
C A P ÍT U L O 8

A C O N T R O V É R S IA DO M É T O D O

pa r t ir d e D e sc a r t e s, se t o r n a p o s s ív e l , so b a é g id e d e

A uma nova noção de método, separar terapia e cura da no­


ção profundamente moderna de tratamento. A ideia de tra­
tamento envolve finitude, ordem e transformação relativa às
causas. No método se pratica uma disciplina da vontade e uma
purificação do sujeito necessária “para bem conduzir a própria
razão e procurar a verdade nas ciências”, conforme o subtítulo
da obra magna de Descartes (1637). O método é um discurso
e uma prática que conecta o exercício de domínios particulares
do entendimento por meio da razão universal.
Vimos também que o Discurso do M étodo é apresentado
como prefácio e introdução a três trabalhos propriamente
científicos. Conforme a ordem das razões, tudo se passa como
se, após uma longa consideração sobre a possibilidade, origem
e forma do conhecimento, estivéssemos, então, em condição
segura e fundada para a prática do saber. Vem daí a ideia,
consagrada pelo discurso universitário, de que a prática do
método é precedida da exposição de seus motivos na forma
de um discurso. O mesmo não se dá na ordem das matérias.
Primeiramente Descartes dedicou-se a uma forma específica
de conhecer, estudando a fundo a astronomia de Galileu, para
depois formular e sistematizar seus princípios. Essa forma es­
pecífica de conhecer refere-se principalmente à geometria e à
astronomia, duas ciências do espaço. A geometria cartesiana
assimila os desenvolvimentos sobre a perspectiva, iniciados por
Brunelleschi (1377-1446) e Alberti (1436), tornando possível
a descoberta do plano projetivo por Desargues (1591-1661).
Para Descartes, o espaço não é uma entidade distinta da ma­
téria que o preenche (Koyré, 2006, pp. 91-92). Sua apreensão
varia conforme a noção central de dimensão, ponto em que o
mensurável se separa do medido. A existência de três dimen­
sões sugere que não há nada de real na multiplicidade do ob­
jeto; ela é apenas efeito do sujeito ser uma condição posicionai
(Guenancia, 1986, p. 24). Neste sentido, Descartes é precedido
pela descoberta das regras de funcionamento da perspectiva na
teoria da ótica e na pintura renascentista do século XVI. A apre­
ensão do espaço concebido como matéria não se dá de modo
discursivo, pois este só apreende dimensões, mas por um tipo de
abstração que transporta relações válidas de objetos finitos para
relações em situação infinita. Esse tipo de abstração é a escrita
matemática. A existência de paradoxos, ou seja, contradições na
esfera dessa escrita, atesta a disparidade entre o finito, na razão
discursiva, e o infinito, na razão matemática.
Isso já tinha sido cbservado por Nicolau de Cusa (1401-
1462), que propunha a noção metodológica de douta ignorân­
cia (Cusa, 2002), como um saber que consiste em conhecer
seus limites como forma de apreender essa divergência. Além
disso, Cusa estabelece a teoria das duas verdades (discursiva e
matemática) como seu complemento conceituai (Koyré, Op.
Cit., pp. 12-13). A verdade matemática apreende-se de uma
vez, ao passo que a verdade discursiva se efetua em tentativas
e conjecturas progressivas. A teoria das duas verdades mar­
ca a separação, decisiva para a modernidade, entre a verdade
dependente da enunciação e das condições do sujeito que a
enuncia e a verdade como função proposicional, cujo valor
pode ser logicamente calculado e empiricamente verificado.

312
Podemos, então, separar a prática do método geométrico,
do qual a verdade está potencialmente excluída, e as considera­
ções que fundamentam e generalizam esse método. O discurso
do método, no qual a verdade ainda é categoria pertinente,
não deve ser confundido com a prática do método, no qual a
verdade torna-se efeito provisório das convenções assumidas:
“(...) não só as experiências válidas se baseiam numa teoria,
mas até os meios que as permitem realizar nada mais são do
que a própria encarnação da teoria” (Koyré, 1953).
O discurso do método cabe a filosofia ou a epistemologia e a
prática do m étodo às ciências, sendo o segundo uma retroação
sobre o primeiro. Todo método prático deveria ser remissível
aos fundamentos genéricos do discurso do método. Como vi­
mos anteriormente, este discurso, assim como o cogito, uma
vez enunciado, não precisa ser refeito; basta ser lembrado. Esse
circuito permanece funcional na maioria das ciências que, na
construção de seu saber, apenas verificam se seus métodos prá­
ticos conferem com as condições impostas pelo discurso do
método. Que existam várias formas deste discurso do método
(empirista, pragmatista, racionalista), isso é indiferente para a
questão. Também é irrelevante se levamos em conta teorias do
conhecimento mais “duras”, como as de Carnap (1952) e Po-
pper (1982), ou se nos atemos a epistemologias mais “leves”,
como as de Kuhn (1988) e Feyerabend (2007). Apesar das
divergências quanto à acepção de discurso, escrita matemáti­
ca e enunciados empíricos protocolares (no primeiro caso) ou
consenso e campo social de produção de paradigmas (segundo
caso), a condicionalidade entre métodos práticos e discurso de
referência permanece constante.

8 .1 .0 REAL E A CONSTITUIÇÃO DO MÉTODO CLÍNICO


Imaginemos agora uma ciência, com seus próprios méto­
dos práticos, que se queira ciência do real do sujeito. Seja ela
a psicanálise, a psicologia concreta ou a fenomenologia, ela

313
deverá refazer não só q* percurso de lembrança do discurso do
método ao modo de uma reconstrução, mas o próprio discur­
so em sua constituição. A alternativa aparenta ser cristalina:
ou confiamos no método, segundo sua acepção moderna, e
transformamos o sujeito em objeto de conhecimento como
qualquer outro (expondo-nos a reduções antropológicas, so­
ciológicas e psicológicas do sujeito), ou escolhemos o sujeito e,
neste caso, estamos em um saber e um discurso que não pode
mais se reivindicar científico. O ponto de partida cartesiano
nos leva a uma escolha forçada: o sujeito ou o método.
Não pretendemos reduzir as complexas relações entre psi­
canálise e ciência a esta alternativa simples. Em verdade a psi­
canálise situa-se exatamente no lugar em que esta alternativa
mostra-se problemática e quiçá paradoxal. A ciência moderna
define-se pela confiança no método e o método por sua vez tem
por condição sua adequação ao objeto. O método na ciência
moderna apoia-se em três propriedades fundamentais do real: o
real éautorreferente, ou seja, idêntico a si mesmo ao longo de sua
transform ação e incidência n o tempo ou espaço; o real é univer­
sal, ou seja, independe dos seus meios de apreensão particulares,
regionais ou locais e o real épositivo, ou seja, ele se apreende
como fenômeno.
Aqui nossa incursão pela teoria cartesiana nos permite apre­
sentar três dificuldades para situar a psicanálise dentro do campo
das ciências, mas também três dificuldades para situar a psi­
canálise fora do campo das ciências. Talvez a psicanálise esteja
“não-toda” na ciência e inversamente a existência da psicanálise
é “não-sem” a da ciência.
O primeiro ponto diz respeito à autoreferencialidade e à
existência do objeto, que constitui epistemicamente a psicanáli­
se. Todo objeto passível de conhecimento e, portanto, de repre­
sentação deve admitir uma identidade ontológica com relação
a si mesmo. Este é o principal argumento que encontramos nas
concepções monistas e materialistas acerca do conhecimento. A
tese de Koyré é que esta representação, principalmente conside­

314
rada como formalização matemática, é o que determina o obje­
to em sua cientificidade. Sua avaliação dos trabalhos de Galileu
e de Newton sugere que não são os dados empíricos acumu­
lados que espontaneamente engendram uma modificação no
tipo de saber, gerando o nascimento da física ou da astronomia
moderna, mas é a formalização que antecipa a existência do ob­
jeto como tal. A experimentação deve verificar, posteriormente, o
comportamento deste objeto. Daí que a identidade de existência
do objeto seja determinada antes pelo conceito que o determina.
Ora, o empreendimento cartesiano pode ser caracterizado
como uma reação à substância subjetiva descrita extensivamente
em Montaigne como uma substância diferente de si mesma.
No interior desta substância heterogênea Descartes encontra
um núcleo de identidade e permanência representado pela ra­
zão como sujeito. Daí a importância da expressão “penso, logo
existo’ e não “penso, logo desejo” ou “penso, logo fa lo”. No in­
terior da substância diferente de si mesma (subjetividade) há
uma substância idêntica a si mesma (sujeito). Mas em relação a
esta substância poderia-se aplicar o mesmo método que esta tor­
nou possível? O problema é formalmente semelhante ao que se
conhece em lógica como paradoxo de auto-referência. A auto-
referência pode incidir como problema lingüístico, conceituai e
ontológico. Vejamos um exemplo de sua expressão lingüística,
conhecida como paradoxo de Grelling.
Chamemos de heterólogo todo adjetivo que não se denota
a si mesmo. Por exemplo, o adjetivo “comprido” é heterólogo
porque não é comprido. O adjetivo “inglês” é heterólogo por­
que não é inglês, é uma palavra do português. O adjetivo “mo-
nossílabo” é heterólogo porque a palavra “monossílabo” não é
monossílaba, é pentassílaba. Por outro lado o adjetivo “curto”
não é heterólogo, pois denota a si mesmo, a palavra “curto” é
uma palavra curta. A palavra “português” não é heteróloga, pois
de fato pertence à língua portuguesa. O adjetivo “pentassílabo”
não é heterólogo, pois de fato compõe-se de cinco sílabas (Qui­
ne, 1996, p. 16).

315
As formações do iif consciente, tais como o chiste, o sinto­
ma e o ato falho, dependem ou independem do sujeito para
se verificarem como existentes? Ora, é o mesmo caso da apli­
cação da regra ao próprio adjetivo “heterólogo”. Ele mesmo é
heterólogo, ou não? A resposta é simples: Ele é heterólogo se e
somente se, não denota a si mesmo, isto é, se e somente se, não
é heterólogo. Ele é heterólogo se não for heterólogo. Em cha­
ve cartesiana: a “existência” do sujeito só existe se não existir.
Sua existência depende da declaração ou do ato de aposta que
reconhece como condição a possibilidade de “não existência”
(a dúvida metódica), como parece sugerir Pascal contra Des­
cartes. E isso que Lacan chamou de foraclusão do sujeito pela
ciência. O sujeito é expulso para que possa se constituir como
existente. E pela exclusão do sujeito declarativo em primeira
pessoa “penso” e não “pensamos” ou “pensa-se”, que a realida­
de e existência dos objetos pensados se torna apreensível.
A segunda problemática cartesiana, inerente ao problema
da cientificidade da psicanálise, diz respeito à universalidade
do sujeito que ela considera e do saber que disto deriva. Ou
seja, universalidade de uma experiência e a transmissibilidade
de um saber. Ora, a universalidade do sujeito depende de dois
atributos: a linguagem, que o antecede e condiciona, e a divi­
são (Spaltung), que resume sua estrutura (Dor, 1993, p. 131).
O segundo problema decorre de que a linguagem e a divisão
do sujeito são universais em sentidos distintos. Lacan contesta
a lógica da inclusão das classes umas nas outras, invertendo a
hierarquia usual entre universalidade e particularidade (Pier-
re-Christophe, 2001, p. 133). No primeiro caso poderia-se
argumentar pela cientificidade da psicanálise no sentido em
que ela se inscreveria como apoiada nas ciências da linguagem
e na lógica em particular. O esforço de formalização de seus
conceitos seguiria assim a exigência epistemológica necessária
formulada por Koyré. Ocorre que a divisão do sujeito só é
apreensível não em termos de língua, mas em termos da fala,
e da fala em primeira pessoa, segundo o método da associação

316
livre. É a divisão singular, que se encontra em cada sujeito, que
interessa ao método de tratamento. O método de tratamento
não é sucedâneo perfeito do método de investigação. Neste
sentido, a psicanálise deteria-se sobre experiências cuja repro­
dução e particularização são possíveis, por exemplo, através de
sua psicopatologia, mas que, no entanto, exigem uma conces­
são à exigência fundamental de seu método. Portanto as duas
formas pelas quais se verifica o critério de universalidade são
incomensuráveis entre si. Mais uma vez a psicanálise inscreve-
se no campo da ciência ao mesmo tempo em que instabiliza o
critério pelo qual se deu esta inclusão.
A terceira figura problemática nas relações entre psicanálise
e ciência é a negatividade. Quer na figura de seus conceitos,
quer na prática de sua clínica, a psicanálise parece recusar o
critério de positividade do saber, necessário para que este se
estabeleça como conhecimento. No entanto ela contém uma
teoria crítica sobre a incidência do conhecimento sobre o
sujeito. Este é função de sua alienação e reificação na forma
de um objeto para si mesmo. É preciso não confundir esta
contra-experiência, representada pelo conhecimento no nível
da experiência subjetiva, com o conhecimento propriamente
dito, como forma-saber transmissível pela ciência através da
cultura. Ê uma característica desta forma-saber que a noção
de verdade lhe seja recusada. A ciência abdica da verdade para
engendrar um tipo de conhecimento, por definição prospec-
tivo, perspectivo e inacabado. Este é o principal critério em­
pregado por Freud (1915a) para distinguir metapsicologia de
metafísica. Ora, esta negação da verdade, mesmo que como
posição vazia de conteúdo, é importante para desligar a ciên­
cia de qualquer conteúdo normativo, que será objeto da ética e
da técnica. No entanto, para a psicanálise e para a experiência
subjetiva que se aborda no tratamento, esta posição de verdade
importa. A separação entre saber e verdade não implica que
uma ciência do sujeito não tenha que se haver com as formas
de retorno desta posição de verdade (Freire, 1996, p. 41). Isso

317
concerne às relações dó sujeito com uma forma específica de
objeto que funciona como causa. Novamente encontramos a
psicanálise como uma espécie de disciplina formada nos ras­
tros do que opera para constituir uma ciência. A foraclusão
do sujeito e da verdade são as condições científicas do apare­
cimento da psicanálise como ciência da linguagem habitada
pelo sujeito.
Ao contrário da metafísica, não se trata de um discurso do
ser, mas de um esvaziamento do ser e sua conseqüente substi­
tuição pelo saber:
(...) este esvaziamento do ser, não eqüivale à completude
do saber, onde este se dissolve, mas comporta um resí­
duo de impossibilidade, de não matematização possível,
um ponto de inconsistência e de indecidibilidade que se
forma no lugar mesmo onde este saber poderia se auto-
fundar. (Nogueira, 1997, p. 9)

8.2. MÉTODO DE TRATAMENTO


E MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO
Toda forma de psicologia que se queira crítica deve renun­
ciar a converter o sujeito que nela se empenha em reprodutor
do discurso psicológico do agente da cura. Encontramos aqui
a atualidade da crítica de Politzer (1928). Toda forma de trata­
mento que se queira do sujeito deve partir da renúncia à autori­
dade baseada na convencionalidade dos significados constituí­
dos. A cura requer uma ontologia em primeira pessoa. Trata-se
sempre deste sujeito singular que fala, que trabalha, que vive.
Que este sujeito se coloque, ou seja tomado como um caso
particular de uma classe, de uma coleção ou de um conjunto,
isso não autoriza o analista a tomar essas categorias como reais.
Ele suspende esta ilação sobre uma substância apreensível por
qualquer um em prol de uma ontologia em primeira pessoa.
Em outras palavras, o tratamento do sujeito tem como centro
a análise e a libertação das formas de objetificação, alienação
e atuação que se realizam apesar da suspensão praticada pelo
clínico e em função da singularidade de seu método. Em ou­
tras palavras, o analisante reconstitui, com o analista, a mesma
unificação entre saber, poder e desejo que se verifica em seus
modos mais ou menos regulares de constituição de objetos.
Ele não apenas lembra, mas pratica a história de sua divisão e
de sua verdade foracluída, recalcada ou renegada.
Uma das definições mais conhecidas da psicanálise afirma
que ela é o nome:

(1) de um p ro ced im en to que serve para investigar proces­


sos mentais dificilmente acessíveis por outros meios; (2)
de um m étodo d e tratam ento de perturbações neuróticas,
fu n d a d o neste procedimento; e (3) de uma série de inte-
lecções psicológicas, obtidas por este caminho, que pou­
co a pouco se coligaram numa nova disciplina científica.
(Freud, 1923a, p. 231)

Salta aos olhos, nesta definição, a hierarquia entre as esferas


de saber. Primeiro, e como fundam ento, há o procedimento de
investigação. Em segundo lugar está o método de tratamento e,
em seguida, como que a reunir método de tratamento e méto­
do de investigação, aparece a disciplina científica. Esta ordem
não reflete o desenvolvimento histórico da psicanálise. Antes de
tudo, Freud era um cientista. Dissecava enguias em laboratório,
descrevia funcionamentos cerebrais e tecia hipóteses sobre o em­
prego clínico da cocaína. A sua experiência clínica no curso de
Medicina (que ele dizia detestar) antecede seu interesse terapêu­
tico pela cura da histeria. E só depois disso que Freud estabelece
as regras para o método de tratamento psicanalítico. Em tercei­
ro lugar ele desenvolve as regras de um método de investigação.
Antes de formular um discurso do método psicanalítico, Freud
praticava um método de tratamento. E, concomitantemente ao
método de tratamento, ele desenvolve a técnica hipnótica de

319
terapia. Aqui se poderiâ argumentar que a anterioridade do mé­
todo de tratamento é histórica e contrasta com a anterioridade
lógica do método de investigação.
A ligação problemática entre método de tratamento e mé­
todo de investigação localiza a peculiaridade epistemológica
da psicanálise, ou seja, de ser ao mesmo tempo uma forma
de discursividade e uma ciência sem que uma esteja garanti­
da pela outra. Muitas vezes Freud insistiu na analogia entre
o tratamento psicanalítico e a investigação científica. Ambas
consistem na prática de um método que envolve a produção
de um saber, ambas presumem a natureza real de um obje­
to, ambas envolvem considerações prática e teóricas sobre o
sujeito deste saber. Por que então o tratamento psicanalítico
não pode ser descrito como um empreendimento de autoco-
nhecimento?
Não é só do ponto de vista do analisante que se espera
um discurso em primeira pessoa, também o psicanalista deve
se autorizar, deve se tornar incluso na função de autoria que
determina sua prática. Dai que sua prática tenha por condição
uma experiência, a própria análise e não um treinamento ou
mera aquisição anônima de habilidades. No entanto, não é
certo que o mesmo se dê em relação ao método de investiga­
ção. Há inúmeras pesquisas relevantes, que procuram exercer
o método de investigação psicanalítico, e que não obstante são
conduzidas por nao psicanalistas. Neste caso parece haver um
compromisso com a particularização e não com a singulariza-
ção da experiência, o que permite um tipo especial de conside­
ração da cientificidade da psicanálise neste caso:

O obstáculo único, mas radical, me parece ser a realida­


de in d ivid u a l dos acontecimentos e dos seres. O conhe­
cimento cientifico exerce-se plenamente quando pode
neutralizar essa individuação, sem alterar gravemente seu
objeto, como acontece em geral nas ciências da natureza.
(Granger, 1994, p. 113)

320
Observe-se que o processo de “neutralização” dessa indi-
vidualização exige um critério que garanta não “alterar gra­
vemente seu obje.to”. Este critério não poderia vir do próprio
método de “neutralização”. Ele não decorre apenas da esfera
produzida por este tipo de “cientificidade” da psicanálise, mas
da discursividade na qual a função da autoria não é eliminável.

O reexame do texto de Galileu pode muito bem mudar


o conhecimento que temos da história da mecânica, mas
nunca mudar a própria mecânica. Em contrapartida, o re­
exame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise
(...). Em particular, a oposição que tentei traçar entre uma
instauração (discursiva) e uma fundação científica. Nem
sempre é fácil decidir se estamos perante uma ou outra: e
nada prova que aí residam dois procedimentos incompa­
tíveis. (Foucault, 1970, pp. 66-67)

O que se quer destacar aqui é justamente a importância da


função autor para a fundação de uma discursividade. Este é o
caso de Freud e da psicanálise. A função autor é um caso parti­
cular da função sujeito (Ibid., p. 70), assim como o desejo do
analista é um caso particular da dialética do desejo. Ocorre que
no caso de discursividades importa a relação entre o dito e quem
o enuncia; coloca-se permanentemente a questão da autentici­
dade, de quem pode se apropriar do discurso, de quais lugares
estão reservados a outros sujeitos possíveis. Ou seja, a dimensão
política na esfera da discursividade é constitutiva, pois depende
de uma rede não anônima de reconhecimento e transmissão, ao
passo que a dimensão política na esfera da ciência é regulativa
(ou pelo menos apresentada como tal), pois depende de uma
rede anônima de reconhecimento e transmissão.
O que devemos entender por procedim ento de investigação,
na definição sugerida por Freud? E possível que esta expres­
são se refira aos estudos sobre a interpretação dos sonhos, a
psicopatologia da vida cotidiana e o chiste, mas também boa
parte do material descritivo encontrado em Três Ensaios para

321
uma Teoria da Sexualidade, nos trabalhos sobre a psicologia
da vida amorosa e nos estudos sobre literatura, cultura e so­
ciedade. E importante nao confundir aqui a ideia de procedi­
mento de investigação com a noção de psicanálise aplicada. A
aplicação, seja ela pertinente ou não, refere-se ao objeto, não
ao método. Ora, o tipo de observação psicanalítica que Freud
pratica nesse trabalho simplesmente ignora regras claras que
constituem o método de tratamento (transferência, associa­
ção livre, sintoma, interpretação). O método de investigação
suporta a temporalidade da escrita; o método de tratamento
exige regras próprias ao universo oral da fala. Suas fontes tam­
bém são heterogêneas. O livro sobre os chistes alinha-se com
a tradição retórica. A interpretação dos sonhos se inscreve na
linhagem do cuidado de si. A psicopatologia da vida cotidiana
é outro nome possível para a anatomia moral de Montaigne.
Finalmente, os estudos sobre a sexualidade e sobre o laço civi-
lizatório amparam-se num tipo de investigação antropológica
de fundamento narrativo.
Não se pretende reduzir a inovação freudiana à sua genea­
logia. O argumento é mais simples. O método de investigação,
por sua heterogeneidade e característica, não se confunde com
o método de tratamento, mas o fundamenta. Da afirmação
de Freud que, em psicanálise, investigação e tratamento não
se dissociam, não se conclui que sejam a mesma coisa. Quan­
do se interpreta um sonho em análise segundo os princípios
elucidados por um método de investigação, não se está prati­
cando o mesmo tipo de investigação de quando se escreve um
livro sobre os sonhos, mesmo que contenha uma escrita de si.
A ligação entre método de tratamento e método de inves­
tigação não é, contudo, de subserviência ou prioridade, mas
de mútua utilidade prática e teórica. Ela não é uma ligação
ocasional, mas intrínseca. Encontramos aqui a tese de Lacan
(OE: 1967b, pp. 261-263) de que, entre psicanálise em exten­
são (método de investigação) e psicanálise em intensão (méto­
do de tratamento), o ponto comum é a transferência. A psica­

322
nálise em extensão orienta-se por três temáticas fundamentais:
a identificação (imaginário), o Complexo de Edipo (simbóli­
co) e a segregação (real). Todas convergem diretamente para
a análise das estratégias positivas de poder. A psicanálise em
intensão, por sua vez, se define por formar operadores para a
prática e corresponde à experiência do tratamento.
Pela heterogeneidade de fontes, pela diversidade de meios e
pela distinção de princípios, o método de investigação é uma
estrutura aberta. Ela se comunica diretamente com outros dis­
cursos, estratégias de poder e de investigação. O método de tra­
tamento, ao contrário, é uma estrutura fechada. Com isso não
se quer dizer que ele permaneça sempre o mesmo ao longo do
tempo ou que contenha qualquer petição de identidade que jus­
tifique falar numa psicanálise verdadeira ou legítima, em con­
traste com derivações e cópias impuras. A questão é saber como
todas as versões e variantes do método respondem por uma úni­
ca estrutura. Fica evidente, por esta hipótese, que o método de
tratamento não pode se definir pela ordem dos procedimentos
clínicos, os modos de interpretação, as múltiplas maneiras de
lidar com a transferência ou de realizar diagnósticos.
Consideremos a analogia proposta por Freud entre o méto­
do psicanalítico e o jogo de xadrez. Há certas regras que defi­
nem pragmaticamente a estrutura do jogo de xadrez, tais como
o número e o movimento das peças, a posição de abertura e as
condições de seu encerramento. Podemos alterar essas regras,
mas, neste caso, não estamos mais praticando o xadrez, e sim
outro jogo eventualmente pertencente à mesma família. Tais
regras têm valor de corte entre um jogo e outro, e são, por­
tanto, constitutivas. Todavia, há no xadrez uma série de outras
regras sem as quais o jogo seria insípido. São as estratégias, tais
como a importância da ocupação do centro na abertura, o uso
combinado de peças e a lógica das trocas e redução de peças no
meio do jogo. Elas orientam seu desenvolvimento e facultam
a vitória de um dos oponentes. Essas são regras regulativas,
pois interferem na eficácia do jogo. Finalmente, existem as

323
situações mais ou meno's regulares que se terá de enfrentar em
inúmeros contextos estratégicos, as aberturas consagradas, os
finais previstos (rei e torre contra peão e rei, por exemplo).
Aqui encontramos regras construtivas, que possuem um valor
tático. Podem-se estudar tais situações isoladamente e refletir
sobre a melhor condução em cada caso. Incluem-se entre as
regras construtivas os elementos que tornam possível a realiza­
ção empírica do jogo: o tamanho das peças, a dimensão do ta­
buleiro, o uso de relógio. Entram aqui também a etiqueta que
se deve obedecer (peça tocada, peça jogada) e o tempo tomado
em cada lance. Já se mostrou que a experiência psicanalítica
poderia ser redescrita como um jogo (Rona, 2003).
Essa distinção encontra-se reproduzida nas categorias que
Lacan utilizou para definir o tratamento psicanalítico:

Eis porque o analista é menos livre em sua estratégia do -


que em sua tática. Vamos adiante. O analista é ainda me­
nos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou
seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em
sua falta-a-ser do que em seu ser. (E:1958d, p. 596)

Que a maior liberdade tática (o tipo, o modo e a frequência


das intervenções) seja restrita pela liberdade estratégica (o ma­
nejo da transferência, o diagnóstico), disso não se justifica que
a política seja equivalente perfeito de um método. A política
implica a consideração dos fins; a estratégia, apenas dos meios
e objetivos. Como vimos, fins não são objetivos. Contudo,
a introdução das categorias políticas, derivadas de Gramsci,
segue de perto a retórica de Freud para definir o método de
tratamento psicanalítico:

O procedimento psicanalítico se distingue de todos os


métodos sugestivos, persuasivos etc. pelo fato de que não
pretende sufocar m ediante a autoridade nenhum fenôme­
no psíquico. (...) O inevitável influxo sugestivo do médico
é guiado em psicanálise pela tarefa, que compete ao enfer­

324
mo, de vencer suas resistências, ou seja, efetuar o trabalho
da cura. (...) é o despertar das resistências o que o protege
contra eventuais efeitos enganosos do influxo sugestivo.
(Freud, 1923a, p. 231)

Ou seja, é a política, representada no exemplo, pela dimen­


são da autoridade ou pela resistência, que distingue e define,
por contraste, a psicanálise de outras estratégias ou táticas de
cura. Se a metafísica é o saber que se coloca para tampar o
buraco da política, e se a política da cura é onde o analista
está menos livre, podemos dizer que o hiato entre método de
investigação e método de tratamento é constitutivo da posição
do real na clínica psicanalítica. Real que não é nem epistêmico
nem ético-político. Real que é a hiância entre estes dois do­
mínios.
C A P ÍT U L O 9

A E S T R U T U R A DO T R A T A M E N T O
P S IC A N A L ÍT IC O

O que o analisando vem buscar na análise? A


única coisa que há para ele encontrar é por ex­
celência, o tropo dos tropos, aquilo que se chama
seu destino.
Lacan

EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA ENVOLVE VÁRIOS MOMENTOS: AS


A entrevistas preliminares, a entrada em análise, a interpre­
tação dos sintomas, a superação das resistências, a construção
da fantasia e o final do tratamento. Uma separação diacrônica
deste tipo traz o inconveniente de reduzir o tratamento a um
conjunto de eventos dispostos em linearidade, o que confe­
re apenas com a sucessão na experiência do tratamento. Por
outro lado, um modelo que pretenda abarcar a simultanei-
dade de caminhos, a variedade de interpretações, os modos
de transferência e as soluções de sintomas, em todo e qual­
quer tratamento analítico, responde a tal nível de generalida­
de que sua utilidade prática seria muito pequena. Finalmente,
se introduzíssemos nas questões de método a consideração de
sua política ou de sua ética, se produziria uma mistura de tal
modo complexa e heterogênea que seu valor elucidativo seria
deveras precário. Infelizmente, é esse estado que nos habitua­
mos a encontrar nos manuais sobre o tratamento e a direção
da cura (Fink, 1997; Nobus, 2000) consistindo, neste âmbito,
o melhor da produção teórica dos analistas as exposições so­
bre temas específicos: início (Leguil, 1993) ou fim de análise
(Pommier, 2003), transferência e interpretação, sintomas re-
gulares e estruturas ou casos clínicos.
Neste contexto, a noção de ato psicanalítico mostra-se par­
ticularmente interessante para examinar a questão. O ato ad­
mite uma tripla significação: (1) o conjunto do tratamento,
como a passagem de analisante a analista; (2) certas operações
que lhe são imanentes, como o ato de início de uma análise
(SXV: 1967-68, p. 4); e (3) um tipo de intervenção clínica,
como a interpretação, a construção, o manejo da transferência
e da angústia (Ibid., p. 65). Um ato é um gesto, simultanea­
mente, com conotação ético-política (o ato político), meto­
dológica (um fazer) e técnica (uma intervenção), ou seja, uma
“intervenção do analista no tratamento, enquanto ela consti­
tui o enquadramento do trabalho psíquico e possui efeito de
travessia” (Chemama, 1995, p. 18).
A definição comporta a tripla acepção antes apresentada.
Ela se refere claramente à ideia específica de um tipo de in­
tervenção do analista que é imediatamente matizada por algo
mais genérico, da ordem de uma atividade permanente, o
enquadramento do trabalho psíquico, pois fora do “manejo da
transferência, não há ato analítico” (Lacan, Op. Cit., p. 46).
Há, ainda, a presença de uma terceira acepção, ou seja,
sui efeito de travessia. A tentação seria interpolar aqui a noção
de travessia da fantasia, mas penso que seria um tanto reduti-
vo. A análise é uma travessia, sim, mas não só da fantasia; há
uma travessia da transferência (sua dissolução), uma travessia
da angústia (redução à sua forma cristalina) e uma travessia de
analisante a analista (passagem).
Aqui a analogia com o tema da viagem e da pilotagem ma­
rítima, desenvolvida na esfera do cuidado de si, é convidativa.

328
Uma viagem precisa de malas e preparativos, de rotas e pla­
nejamentos {enquadre). Uma viagem exige ainda uma decisão
quanto a seu início e seu fim (efeitos de travessia). Uma viagem
comporta pequenos ou grandes momentos de mudança, de
alteração de destino, de solução de problemas (intervenção).
Não são coisas independentes. Uma mudança de rota pode
envolver uma re-decisão de viajar, um desejo de continuar a
viagem ou de voltar. Inversamente, transformar uma viagem
no cumprimento estrito de uma seqüência de operações a em­
pobrece e descaracteriza.
Outra comparação possível se dá com o trabalho do pintor
e, por extensão, do artista. Cada pincelada traz a marca de
seu estilo e presume o conjunto realizado, conjunto composto
pela tela acabada. No entanto, a realização de uma tela não
é a aplicação metódica de um plano concebido nos estudos
preliminares ou nos esboços. O conjunto é transformado pelo
progresso da cor, pelas irrupções perturbadoras na perspectiva
ou na forma. Se perguntarmos, então, qual é o ato do pintor,
precisaríamos dizer que é, ao mesmo tempo, a tela acabada
e certas modificações que retrospectivamente reconhecemos
como decisivas para a composição do produto. Entre o ato
com o processo, o ato como procedim ento, e o ato como produto
há, como se pode perceber, uma relação de mútua negação.
Alegorias como a escultura, a viagem ou o jogo de xadrez,
várias vezes empregadas por Freud para referir-se ao tratamen­
to psicanalítico, representam um problema para a modeliza-
ção, uma vez que raros são os objetos que permitem represen­
tar a lógica compatível com a noção de ato e de experiência.
Isso ocorre porque, em geral, a escrita formal ou conceituai
acaba por reduzir a temporalidade própria da experiência a
uma temporalidade espacializada. Retido em relações de con-
dicionalidade e reversibilidade, o tempo próprio da experiên­
cia psicanalítica perde sua plena representação. Curiosamente,
e ao contrário de Descartes, quando o tempo se geometriza,
perde sua dimensão real.

329
Lacan nao foi o primeiro a pensar o método de tratamento
como ato. Ferenczi desenvolveu, nos anos 1920, uma extensão
da técnica clássica, ou seja, a técnica ativa, na qual: “... trata-se
de criar um conceito e um termo técnico para algo que sempre
foi utilizado de fato, mesmo sem ser formulado, e de empregá-
lo deliberadamente” (Ferenczi, 1921).
A técnica ativa presumia determinada estrutura do trata­
mento. Na primeira parte da psicanálise, toda libido é recu­
sada aos sintomas em proveito da transferência. Na segunda,
trata-se de fazer a libido evadir-se desse objeto e encontrar
novos destinos. A primeira parte do tratamento não implica
sustentação ativa ao alcance do médico. Aqui Freud fala numa
sugestão psicanalítica, que “utiliza a transferência para permi­
tir ao paciente convencer-se ( ÍJbersetzung) pessoalmente dos
motivos inconscientes de seus sofrimentos” (Ibid., p. 111).
Ferenczi parte de exceções nesta regra. A principal delas é a
histeria de angústia, quadro no qual o manejo clínico para solu­
ção do sintoma fóbico exige realizar certas ações desagradáveis
(injunção) e renunciar a certas ações agradáveis (interdição). Há
uma generalização dessa especificidade tática, pois Ferenczi en­
tende que isso pode ser usado diante de moções inconscientes
para “convertê-las em atos diante do médico” (Ibid., 124). Ou
seja, não é apenas um procedimento ligado à remoção de sinto­
mas e inibições, motivado por uma ambição terapêutica direta
ou ampliação de seu escopo estratégico, mas uma maneira de
produzir novo material discursivo para o tratamento.
Por isso, a técnica ativa é recomendada para a segunda fase
do tratamento, especialmente na liquidação da transferência,
e não para a primeira, na qual sua utilização se aproximaria
da psicanálise selvagem (Idem, 1925, p. 366). Ela é um auxi­
liar tático, e jamais deve substituir o tratamento tradicional.
Vê-se, assim, que a técnica ativa se distancia da sugestão hip­
nótica, mera oferta de tarefas ao analisante. Ela, na verdade,
incita uma interpolação da repetição dentro da transferência.
Ou seja, a inversão entre estratégias ativas e passivas ao longo

330
da direção da cura propicia a emergência da problemática do
poder e de sua reatualização.

O analista é aquele que rodeia toda uma zona em que


frequentemente é chamado pelo paciente à intervenção
enquanto ato, e não apenas na medida em que posso ser
chamado, ocasionalmente, a tomar partido, a estar do
lado de seu paciente com relação a um próximo (ou qual­
quer outro), ou até, simplesmente, a fazer esta espécie de
ato (com efeito, bem que é um) que consiste em intervir
por uma aprovação ou, pelo contrário, em aconselhar; é
isso, muito precisamente, o que a estrutura da psicanálise
deixa em branco. (Lacan, Op. Cit., p. 117)

Ferenczi continuou com seus experimentos clínicos até che­


gar à ideia de análise mútua, com inversão de papéis entre ana­
lisante e analista. Lacan parece observar que, nas injunçÕes e
interdições postuladas pela técnica ativa, não havia apenas uma
inovação tática e estratégica, mas uma dimensão política. Para
defender essa forma de procedimento clínico, pressuposta pela
prática do corte em sessões de tempo variável, Lacan precisa
estabelecer limites cruciais entre a noção de ato com relação às
categorias que lhe são próximas: a contratransferência, o ato fa­
lho, o ato sintomático, o acting out e a passagem ao ato.
Estamos agora em condições de apresentar a estrutura do
tratamento tendo em vista a ideia de ato. Advirto o leitor de
que a proposta de formalização da estrutura do tratamento
psicanalítico, que se seguirá, tem o objetivo de especular sobre
as ambições e limites do próprio método de formalização e
pretende dar continuidade aos desenvolvimentos inicialmente
propostos por Nogueira (1997), reunindo aspectos dispersos
pela obra de Lacan.
Três operações verificadas no início do tratamento podem
ser escritas com auxílio da estrutura matemática conhecida
como grupo de Klein, caso particular, e talvez o mais simples,
das estruturas algébricas: “Uma estrutura algébrica é um con­

331
junto cujos elementos,são quaisquer, mas entre os quais estão
definidas uma ou mais regras de composição ou (sinônimo)
operações” (Barbut, 1996).
As regras de composição, do Grupo de Klein, são: existência
do elemento neutro, operação associativa, operação de inversão e
operação de permutação. O emprego do grupo de Klein é cons­
tante em Lacan (Torres, 2008). Ele exprime a essência tanto da es­
tratégia expositiva baseada na topologia quanto da lógica modal.
A lógica do significante (topologia da rede de arado (E:1955b),
a estrutura da relação de fala (esquema Lambda (SII: 1954-55)),
a estrutura do sujeito (grafo do desejo (E: 1960c)), as relações do
sujeito com o objeto a (lógica da-fantasia (SXIV: 1966-67) e, prin­
cipalmente, a teoria dos quatro discursos (SXVII: 1969-70) são
todos esquemas e usos variantes do grupo de Klein. Ele admi­
te uma expressão algébrica e outra geométrica, comportando ou
não uma semântica específica. São exemplos de estruturas deste
tipo os sistemas de parentesco descritos por Lévy-Strauss (Weil,
1967), certas linguagens formais descritas por Russel ou Tarski,
estruturas cognitivas descritas por Piaget e até mesmo as seqüên­
cias lógicas dos testes de inteligência, como a prova de Raven. Ve­
jamos um exemplo de grupo de Klein baseado neste último caso:
(D (2)

(3) (4)

332
Temos, então, dois elementos, triângulos e tetraedros,
combinados com duas propriedades, coloridos e não colori­
dos. Há duas formas básicas de transformação: de cor e de for­
ma. A operação (1) (2) é uma mudança de forma. Se a mesma
operação for repetida, retorna-se à forma inicial, extraindo-se
a propriedade de que a repetição do oposto constitui elemen­
to neutro. Pode-se dizer que entre (1) e (2) há uma relação
de oposição. Mas se realizamos o percurso (2) (4), há uma
mudança de cor. Esta operação deve ser distinta da primeira,
e é chamada de inversão, mas apenas se a considerarmos no
âmbito do sistema que estabeleceu antes a relação de oposição.
Finalmente, se realizamos o percurso (1) (2) (4), há uma ope­
ração de inversão e de oposição. Esta é chamada de operação
de transposição ou de permutação (Barbut, 1996). Poderia-se
refazer o exemplo considerando as quatro operações elemen­
tares da matemática:
(a) oposição [x -^-x]
(b) inversão [x l/x]
(c) produto [ x ^ -l/x]
(d) identidade [ x-^ x]
Diz-se que uma coleção de elementos forma um grupo em
relação a determinada operação se:

(1) a coleção é fechada sob a operação, (2) a coleção con­


tém um elemento de identidade com relação à operação,
(3) para cada elemento nacoleção há um elemento inver­
so com relação à operação e(4) a operação é associativa.
Os elementos podem ser números (como na aritmética),
pontos (na geometria), transformações (álgebra ou geome­
tria) ou qualquer coisa. (...) A operação pode ser aritmética
(como na adição ou multiplicação), geométrica (como uma
rotação em torno de um ponto ou um eixo) ou qualquer
outra regra para combinar dois elementos de um conjunto
(tais como duas transformações) de modo a formar um ter­
ceiro elemento do conjunto. (Boyer, 2002, p. 379)

333
Ocorre que o grupo* de Klein completo é uma estrutura fe­
chada e involutiva. Iss® significa que sempre se pode retornar,
segundo um conjunto finito de elementos e lugares, a um esta­
do anterior do sistema pela repetição ordenada das operações
que nele são prescritas. A propriedade involutiva (o retorno ao
estado inicial), como vimos, nao pode ser aplicada à experiência
analítica, se bem que faça parte de sua metapsicologia na figura
da pulsao de morte. Essa objeção leva Lacan a trabalhar não
com um grupo de Klein perfeito, mas com dois subgrupos de
Klein, ou dois monoides. Isso confere com a ideia de que o tra­
tamento se desenvolve em duas fases e torna mais agudo o exa­
me do tipo de transformatividade que se dá entre uma e outra.
A leitura do ato analítico com o modelo lógico do grupo
de Klein deve responder ao seguinte conjunto de expectativas
sobre o tratamento psicanalítico (Torres, 2008):

(1) que este ato seja seu agente, produto e finalidade; que
guarde alguma relação (mesmo que negativa) com a
transferência (com o Outro e com o sujeito suposto
saber);
(2) que realize um momento de concluir (portanto um
tempo de escansão) que não se coloque na vertente do
desejo puro (falta-a-ser);
(3) que seja uma saída da situação de impasse a qual che­
gou o primeiro grupo, distinguindo-se do acting-out e
da passagem ao ato;
(4) que reúna em si a pressa e a repetição, tal como impõe
a estrutura temporal de grupo;
(5) que corresponda ao advento do sujeito, lá onde isso
estava (Wo Es war).

334
9.1. O PRIMEIRO TEMPO DA PSICANÁLISE:
A EMERGÊNCIA DO SUJEITO DO INCONSCIENTE
(a) Entrevistas Preliminares: alienação e desalienaçao
Havia meses e meses, ele contava a Lacan seu amor por X,
lhe falava dela, de sua relação com ela, de sua vida em comum
e de suas vicissitudes; havia analisado tudo muito bem, o por­
quê de sua escolha, que ela remetia a seu nome, etc. Agora ele
conclui: decidiu-se casar com ela. Chega à sessão e declara:
- Me caso na próxima semana.
Lacan:
- Com quem? (Allouch, 1992, p. 27)

Usemos o exemplo como conjectura. A intervenção “Com


quemT recobre simultaneamente três dimensões. Ela tem va­
lor de interpretação, ao sinalizar o saber inconsciente em curso
na escolha; um valor de manejo da transferência, ao colocar
sob suspeita a demanda de assentimento, e um valor de indi­
cação do objeto, ao introduzir sobre ele uma forma específica
de negatividade. Essas dimensões simultâneas na intervenção
possuem uma ordem de entrada no tratamento: a retificação
subjetiva condiciona a transferência e, por sua vez, condiciona
a interpretação (E:1958d, p. 604)
Durante as entrevistas preliminares, pelas quais a análise se
inicia, valem as mesmas regras táticas e estratégicas do método
de tratamento. Não obstante trata-se de um período de ensaio
(.Probebehandlung), de experiência e, portanto, de indetermi-
nação. Trata-se do que em teoria política chama-se de estado de
exceção. Nele as leis estão sujeitas a uma perigosa contingência
do ponto de vista de sua aplicação.
Ainda não se decidiu que haverá análise. Para tanto, será
preciso que sejam cumpridas algumas condições dadas pelas
funções sintomal, diagnostica e transferenciai de tais entre­
vistas (Quinet, 1991). A função sintomal diz respeito à pos­
sibilidade de implicação do sujeito no real que constitui seu

335
mal-estar. A função diâgnóstica refere-se ao tipo de alienação e
de sofrimento que se estabelece entre o sujeito e seus sintomas.
Finalmente, a dimensão transferenciai indica a forma como
essa alienação se realiza em relação ao próprio tratamento e
ao analista, em particular. Vemos que não é a função do sofri­
mento que constitui critério para a análise, mas a fratura do
saber e a posição do sujeito diante desta fratura. Igualmente
não é a dimensão de mal-estar que autoriza a entrada em aná­
lise, mas a disposição para nomear este mal-estar. Finalmente
não é a existência do sintoma que promove o ato, mas o reco­
nhecimento de que nele se localiza um objeto de gozo.
O monoide que exprime o primeiro tempo da análise é
construído a partir de uma intervenção que conjuga o dito
sintético freudiano sobre o tratamento (Wo Es war, soll Ich
werden) com as categorias extraídas do cogito cartesiano, mas
lidas em chave negativa. Assim, a posição inicial do sujeito que
ingressa na análise corresponde a um tipo particular de divi­
são: ou eu não penso ou eu não sou. Encontramos aqui a posição
pirrônica, o ceticismo à Montaigne e a origem da quaestio. E
o que Freud chamou de estado neurótico comum, caracteri­
zado pela drenagem da libido para os conflitos inconscientes,
pela angústia neurótica e pelas vicissitudes do narcisismo. O
elemento alternativo “ou” representa aqui a função de causa
da angústia, a oposição e discordância imaginária, próprias ao
narcisismo. Neste estado, há uma disparidade entre a subjeti-
vação do desejo (não me reconheço ali onde não penso - in­
consciente) e o modo de gozo preferencial do sujeito (não me
reconheço ali onde gozo —Id). Ou seja, o Wo Es war (onde Id
estava) não implica o soll Ich werden (devo advir como sujeito).
Esta posição, que as entrevistas preliminares têm por objetivo
verificar, admite três transformações possíveis, segundo as pro­
priedades do Grupo de Klein:

336
(I)

(2) Não penso (1) Ou não p en so


(operação da alienação) ou não sou

(3) Não p en so e não sou (4) N ão sou


(operação da transferência) (operação da verdade)

A operação de alienação (não penso) é um correlato da segunda


evidência cartesiana, que acrescenta à finitude e à precariedade do
sujeito, limitado ao ato de enunciação do cogito, a segurança e a
garantia da infinitude baseada na existência do Outro. Encontra­
mos aqüi tanto a alienação que caracteriza o sintoma (alienação
ao desejo do Outro, palavra amordaçada, metáfora do Nome-do-
Pai) quanto à alienação que caracteriza o narcisismo, neste caso
condensando pelo uso, raro em Lacan, da expressãofalso self Ha­
veria, ainda, uma forma de alienação típica da angústia. Na me­
dida em que ela não é sem objeto, sua forma própria de alienação
implica a produção de um objeto encobridor, mas sem o tipo de
negatividade que lhe corresponde, como se vê no objeto fóbico.
Essa forma de alienação exprime a afânise do sujeito, presente
no segundo tempo da fantasia. Lembremos que, segundo a tese
freudiana, à qual Lacan retorna inúmeras vezes, o primeiro tempo
(.Bate-se numa criança) e o terceiro tempo da fantasia {Vejo meu
p ai bater numa criança) são intercalados por um segundo tempo
{Sou a criança em que meu pai bate) que permanece inconsciente
e é objeto de construção pela análise. Ora, este segundo tempo é
oculto justamente porque nele o sujeito se vê indexado (me faço
bater). Logo, a afânise do sujeito na fantasia é a forma genérica
como o sujeito aliena-se como objeto, do qual derivam os três
outros modos de alienação (sintoma, angústia e narcisismo).
Reencontramos aqui a superfície cartesiana que integra o
ponto representado pela quaestio de Montaigne às estratégias da
conversão e da submissão —em outras palavras, a circulação fe­

337
chada entre o discurso fia histérica e o discurso de mestre. Aqui
se verifica um tipo específico de negação, uma negação indeter­
minada que opõe, mas nao reconhece o que é negado, tal como
encontramos no processo inicial da dúvida cartesiana. Essa forma
de negação é representada, no Grupo de Klein, pela negação asso­
ciativa, ou seja, pela exclusão do não sou em função do não penso.

(b) Implicação Subjetiva


A segunda operação {não penso e não sou) corresponde ao tra­
balho realizado na e pela transferência, que absorve gradualmente
a implicação do sujeito. Pode-se dizer que há uma articulação da
transferência nos modos de alienação do sujeito. Isso condiciona,
mas não define a transferência que é utilizável pelo tratamento
psicanalítico. Esta precisa se realizar como neurose de trans­
ferência. Ou seja, cada ponto da alienação originária ao Outro
encontra um símile que reproduz e atualiza a relação do sujeito
com o inconsciente. Vimos que, em Descartes, a transferência
de saber se dá por um movimento triplo de posição, suposição e
pós-posição. Em Lacan, a transferência terá estrutura semelhante:
o sujeito suposto saber. O sujeito suposto saber é uma operação
de transporte, atualização e redução dos modos de alienação do
sujeito para o analista. Há várias descrições possíveis deste pro­
cesso. Algumas enfatizam os movimentos de inversão, tais como
as inversões entre desenvolvimento da verdade e intervenção dia­
lética; a inversão entre a necessidade de repetição e a repetição
da necessidade; a inversão da demanda em desejo e a inversão
entre o toro do sujeito e o toro do Outro. Nesse transporte, há
ainda relações de oposição pelas quais a transferência se mostra
como resistência, seja no amor, na idealização, e principalmente,
na identificação. A resistência é uma propriedade do discurso, e
não do eu, justamente porque é o discurso que monta as relações
de oposição. Daí que a resistência seja, antes de tudo, resistência
do analista, pois indica que o discurso posiciona o analista como
negação direta e simétrica da posição do eu do sujeito.

338
(c) Neurose de Transferência
Finalmente, há um terceiro grupo de processos que giram em
torno da transposição. São aqueles que enfatizam como a trans­
ferência não é uma repetição, nem uma simples duplicação do
passado ou estagnação dos modos estáveis de produção de ob­
jetos, mas também a criação de algo novo. A “realidade sexual
do inconsciente posta em ato” é também um encontro do real
(SXI: 1964a). A passagem do sintoma queixa ao sintoma analítico
introduz algo a-mais no sintoma. Esse transporte dos modos de
alienação do sujeito ao Outro cria uma sobreposição entre incons­
ciente e sujeito suposto saber. E a neurose de transferência. Sua
orientação decanta gradualmente o analista na posição de objeto,
com o qual o analisante se identifica em sua fantasia (a & $). Se a
alienação se caracterizava por uma forma específica de negação (a
negação associativa), a transferência é_uma negação e uma afirma­
ção em ato desta alienação. Ela é correlata ao processo cartesiano
de construção de uma instância de garantia para o saber.
A terceira operação em curso no primeiro tempo da análise
diz respeito à verdade. Ê a passagem do ou ríko penso ou nao sou
ao nao sou. Mas, curiosamente, esta é uma operação bloqueada.
Disponível para o analisante sob a forma da passagem ao ato ou
do acting out, ela corresponderia, neste momento, apenas a uma
atualização da transferência sem interpretação. E o que Freud des­
creve na forma das interrupções precoces de tratamento geradas
pela repetição imediata e precipitada do sintoma na transferência.
Isso se aproxima da ideia, presente no cuidado de si, de que o
sujeito precisa de uma experiência que o habilite à enunciação da
verdade. E só pelos meios desta experiência que essa enunciação
se torna possível. Portanto, a operação do método, neste caso, se
limita a manter o lugar da verdade “abrigado”, insistir no prolon­
gamento de sua incompletude, distender a associação livre e a ex­
tensão dos sintomas. Guardar o lugar da verdade como um lugar
vazio implica ainda desocupá-lo das identificações e dos objetos
de angústia, que tendem a lhe fazer semblante.

339
9.2. -SEGUNDO TEMPO:
MUTAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA
Um jesuíta está em análise com Lacan. Ele faz parte da
primeira geração de seus alunos. Um dia, em sessão, for­
mula sua intenção de abandonar a Companhia e casar-se.
Lacan faz todo o possível para dissuadi-lo. Afirma que o
supereu, no casamento, seria pior do que o da Igreja. Re­
sultado: o analisante põe em ato sua decisão, mas agora
certo de que a tomou sozinho. (Allouch, 1992, p. 49)

A fase socrática da transferência implica um deslocamento


do amor ao objeto para o amor ao saber. O amor é um afeto
fundamental para entender a transferência nao apenas por­
que ele atualizaria um afeto, dando, assim, força de realidade
à transferência, mas porque sua gramática contém as formas
de negação que permitem descrever as diferentes modalida­
des assumidas pelo manejo da transferência. O amor não está
sujeito apenas a uma inversão simples (de amar em ser ama­
do), mas admite ainda uma transformação em contrário (de
amor em ódio) e uma transposição (de amor em indiferença).
A oposição é uma negação indeterminada, cuja enunciação
é: “Não é isso...”. Aqui a negação incide sobre o verbo ser,
excluindo ou expulsando (Ausstossung) um fragmento do real
que se realizará na forma da projeção imaginária ou da intro-
jeção simbólica. A inversão ( Verkehrung) é uma negação deter­
minada que incide sobre um significante de modo metafórico
ou metonímico, permitindo que o que é negado se conserve
simbolicamente sem ser reconhecido. A passagem ao contrário
(Umschlagen) também é uma negação determinada, mas, neste
caso, a realização do sentido também é a perda de sentido. Isso
se verifica no que Lacan chamou de sem-sentido, que é isolado
pela interpretação.
A atualização das formas de alienação do sujeito ao Outro
na esfera da transferência implica o transporte desses modos
de negação para a relação com o analista. O sujeito suposto

340
saber nao deveria ser identificado com a fantasia que o anali-
sante por vezes constrói acerca da infinita sabedoria e potência
de seu analista. É uma operação lógica de transporte que faz
supor um sujeito ao saber que se produz pela associação livre.
E isso o que se aponta com a ideia de que um significante re­
presenta um sujeito para outro significante.

S l ^ S2
S

O primeiro significante está no lugar do posto, o sujeito no


lugar do suposto e o saber no lugar do pós-posto. A suposição
não é um ato psicológico do sujeito, assemelhada à conjectura
ou à imaginação, mas um lugar lógico no que Descartes cha­
mou de a ordem das razões. Encontramos o mesmo esquema
lógico no matema da transferência.

S Sq
s (Sl, S2... Sn)

Aqui um significante da cadeia associativa do analisante (S)


se articula a um significante qualquer do analista (Sq). Esta re­
lação de implicação ou transporte entre os significantes, posto
e pós-posto, é garantida pelo que está no lugar do suposto, ou
seja, o sujeito (s) e a associação livre (Sl, S2... Sn). Cumpre
observar que o sujeito está apartado dessa série pela presença
de parênteses. Ora, os parênteses indicam que também entre o
sujeito e seus ditos há uma relação de implicação e transporte,
o que permite reaplicar o esquema. Esta reaplicação indefinida
se ilustra pela série de Fibonacci.

a =1
1+ 1
1 +1
n...

341
As modalidades de intervenção sobre a transferência compor-
tam-se de modo similar às relações transformativas especificadas
pelo grupo de Klein (oposição, inversão, transposição). Isso expli­
ca por que a posição da transferência é o que autoriza a interpreta­
ção e o ato. A interpretação introduz uma nova forma de negação.
Por exemplo, ali onde o sujeito se encontrava retido em uma ne­
gação indeterminada ele o faz passar a uma negação determina­
da. Ali onde ele se alienava na forma de uma inversão simples, a
interpretação introduz uma passagem ao contrário. Isso se faz, ao
mesmo tempo, pela passagem da alienação à transferência e pela
manutenção de restrição em relação à operação com a verdade.
Ocorre que este trabalho corresponde apenas ao primei­
ro monoide do grupo de Klein. Assume especial importância
aqui entender como se dá essa inversão na orientação dos veto­
res do Grupo de Klein (alienação, transferência e verdade) sem
que, ao mesmo tempo, seja de fato uma inversão no sentido de
um trajeto involutivo. Há, portanto, uma mutação no regime
de operação da transferência que não é da mesma natureza
da interpretação ou das demais intervenções que objetivam
a desalienação, nem da mesma ordem das intervenções que
visam guarnecer o lugar da verdade ou trazer para a transfe­
rência modos de alienação do sujeito ainda não inscritos. Há
uma mutação que se inscreve no interior do próprio esquema
lógico do sujeito suposto saber.
Ao verificarmos a centralidade da noção de sujeito suposto
saber, como posição final do tema da transferência em Lacan,
notamos que sua apresentação ignora os elementos concer­
nentes à pulsao. Verificamos que a estratégia da transferência
replica a gramática das pulsões, mas isso não significa que te­
nhamos integrado ao sujeito suposto saber a noção de obje­
to. O sujeito suposto saber parece dar conta da instalação da
neurose de transferência, mas o preço pago é uma autêntica
exclusão da pulsão. O problema se torna mais dramático se
observamos que, até então, todas as formulações de Lacan so­
bre a transferência a associavam diretamente à lógica das pul-

342
soes. São exemplos disso o conceito de agalma\ uma hipótese
sobre como a pulsão se mimetiza em saber por meio do amor;
a hipótese de que. a solução da transferência implica separação
entre pulsão e fantasia; a tese de que o manejo da transferência
implica separação entre objeto e Ideal; e a asserção de que o
desejo do analista retorna à pulsão aquilo que se fez demanda.
Isso permitiria apresentar a hipótese de que há um ponto
de mutação na transferência. Este ponto seria equivalente a
uma espécie de mediana da análise, a passagem da primei­
ra parte para a segunda, nos termos de Freud. E o ponto de
inversão do vetor da transferência e do semi-grupo de Klein,
que representa, ao mesmo tempo, o fim da primeira etapa da
análise e o início de seu fim.

9.3. TERCEIRO TEMPO: SEPARAÇÃO DO OBJETO a


(a) Construção da Fantasia: falo e objeto
- Pode ser que agora, no fundo, eu às vezes fique simples­
mente feliz. Mas como dizer o que se passou com o senhor?
Lacan:
- É exatamente isso. Como dizer?
- Mas o senhor disse que o objetivo não era a felicidade.
Lacan:
- Eu nunca disse isso. (La Sagna, 1992, p. 51)

O segundo tempo do tratamento precisa introduzir uma


mutação da transferência de forma a justificar a ideia de que
o ato reduz o sujeito suposto saber ao objeto a (SXV:1967-
68, p. 115). Vimos que isso representa uma espécie de passe
de mágica, pois na definição de sujeito suposto saber não há
qualquer referência ao objeto. Como, portanto, ele pode ser
reduzido a algo que não estava lá? Este é o trajeto do terceiro
tempo do tratamento psicanalítico.
A ideia de que a transferência catalisa e atualiza os modos
de alienação do sujeito nos levou a propor uma espécie de

343
isomorfismo entre as fçfrmas de negação praticadas na aliena­
ção e na transferência. O sintoma analítico é uma miniatura
do sintoma queixa e da demanda não apenas porque diminui
sua extensão, mas porque contém, de forma mais simples, por
redução simbólica, a prática de negação ali envolvida. Ocorre
que esse transporte, que identifica o sujeito suposto saber ao
inconsciente, tem particular dificuldade em se realizar no caso
da fantasia. Isso decorre do fato de que a fantasia, ao contrário
do sintoma, do narcisismo ou da angústia, não é uma estru­
tura inteiramente subjetivável. E certo que há um umbigo do
sonho, que há um núcleo real de gozo em cada sintoma e que
o narcisismo e a angústia se reduzem a uma forma objetai e
uma forma de objetalidade. Propiciar esta redução tem por
horizonte o que Lacan chamou de desejo puro. Ou seja, uma
forma de desejo cada vez mais separada dos objetos empíricos
e das formas de identidade presas à imagem ou ao significante
que os fixa ao objeto. Inicialmente, há duas figuras limites para
este processo: o falo e o Nome-do-Pai. Trata-se de uma estra­
tégia de purificação do desejo que está associada ao processo
pelo qual o sujeito se realiza em sua divisão. Mais tarde, essa
ideia de desejo puro será substituída pela ideia de um desejo
de estabelecer a diferença pura. Mesmo assim, essa estratégia
tem limite. Deve haver um ponto praticamente inesgotável,
mas pelo qual o trabalho discursivo do tratamento encontra
um horizonte finito de simbolização.
Aqui Lacan começa a se interessar por outras formas de sim­
bolização que permitam articular a universalidade do falo e do
Nome-do-Pai com a experiência existencial do sujeito e do objeto
a. É neste ponto que Lacan recorre sistematicamente à teoria nos
nomes próprios, à função da nominação, à noção de letra e aos
conceitos derivados do entendimento da linguagem como um sis­
tema de escrita. O traço unário como fundamento real da identifi­
cação simbólica; a letra como materialidade do gozo no sintoma; o
nome próprio como indizível de cada sujeito; a teoria da nomina­
ção (R.S.I.) e, principalmente, a escrita borromeana são exemplos

344
da tentativa de introduzir no método psicanalítico outra forma
de simbolização, que também se poderia chamar de formalização.
Aqui a aproximação com Descartes é incontornável. Esse
outro tipo de simbolização, a escrita ou a formalização, cor­
responde ao tema que vimos Descartes herdar de Nicolau de
Cusa: o tema do paradoxo ou da divergência entre o discursivo
e o matematizável. Esse tipo especial de abstração, expresso
pela douta ignorância, supõe uma espécie de passagem ou de
transporte entre o paradoxo, verificado na ordem discursiva,
e a contradição, verificada na ordem lógica. Se o Nome-do-
Pai e o falo são figuras do que Descartes chamava de substân­
cia pensante (res cogitans), e que, no interior do pensamen­
to, apontam para a finitude do pensamento, deve haver um
equivalente no interior da existência que também represente
a finitude da extensão topologicamente. Em Descartes, esse
problema não se coloca porque, neste ponto, se introduz o
Deus não enganador que garante que essa finitude é apenas
finitude da razão no sujeito, e não finitude da razão. Ora, se
para Lacan este tipo de Outro não existe, é necessário provar
que há um objeto que contraria a tese de que no espaço não
há lugares vazios, um objeto que seja dotado de materialidade
sem extensão. Assim como o Nome-do-Pai e o falo são estru­
turas que marcam uma espécie de universalidade fracassada,
o objeto a será uma estrutura que marca uma existência fra­
cassada. Muito da dificuldade de acompanhar as afirmações
às vezes francamente díspares em Lacan neste período de sua
obra se devem ao esforço de integrar uma teoria geral da ne-
gatividade a essas duas autocontradições: um indexador uni­
versal que não é um universal (o falo e o Nome-do-Pai) e um
indexador de existência que não é uma existência (o objeto a ).
Daí que “este a não está no interior nem no exterior, nem é
real ou ilusório” (Ibid., p. 73).
Independentemente da solução que se queira escolher, im­
porta, para nossa discussão sobre o método de tratamento, que
esse problema teórico encontra sua expressão clínica no tema

345
da fantasia. Ou seja, najexperiência do tratamento se trataria de
construir e atravessar uma espécie de modelo lógico (construção
da fantasia) e de experiência subjetiva (travessia da fantasia) que
desse expressão clínica à noção teórica de formalização.
A descrição dessa conjectura converge com o segundo mo-
noide do Grupo de Klein. Se no monoide que representa o
primeiro tempo do tratamento, verificamos uma combinató-
ria de simbolização das relações de exclusão e negação entre
Wo Es war (onde Isso era) e soll Ich werden (devo advir como
sujeito), no terceiro tempo do tratamento essa combinatória
será ampliada de modo a incluir outros procedimentos além
da simbolização. O ato, a formalização, a escrita e o enoda-
mento são exemplos de tais táticas clínicas.

(III)
(2) Não penso (3) Ou não p enso
(re-alienação) ou não sou
(,a ctin g out) (ato psica n a lítico)

t
(1) N ão sou e não pen so (4) Não sou
(fantasia) ---- ► (operação da verdade)
(aO -ip) (-<!>)

A primeira possibilidade no trajeto de redução do suposto


saber ao objeto a diz respeito às formas de ato pelas quais o
sujeito escolhe a alienação. Se a primeira alienação era cons­
titutiva ao modo de ser do sujeito, a re-escolha não será um
retorno ao estado anterior. Deverá ser um retorno que nega o
trajeto realizado. Isso pode ser feito de duas maneiras: o acting
out e. a passagem ao ato. A passagem ao ato é uma categoria da
psiquiatria francesa que se refere tipicamente a ações violentas

346
ou transgressivas nas quais o sujeito impinge dano ao outro
ou a si mesmo —o suicídio, por exemplo. Lacan desloca esta
significação específica para uma dimensão mais genérica, pela
qual, na passagem ao ato, o sujeito simplesmente tenta encon­
trar um novo início, fundar uma nova forma de ser no qual
“encontrará sua presença como renovada” (Ibid., p. 58). En­
contramos aqui ecos da tradição da conversão como retorno a
si e como fundação de uma nova ordem de ser no sujeito. Há
várias afirmações de Lacan que soam muito próximas dessa
ideia de que uma análise introduz uma espécie de novo início
radical para a vida de um sujeito: o clarão fulgurante do final
de análise, a beatitude transcendente, a santidade dos analistas
{saint-thomè) etc: “O ato psicanalítico designa uma forma de
envoltório, uma estrutura tal, que de algum modo, ele suspen­
de tudo o que até então foi instituído, formulado, produzido
como estatuto de ato, à sua própria lei” (Ibid., p. 64).
Outra forma de re-escolhcr a alienação é o acting out.
Este se define como transferência à qual faltou interpretação
(SX: 1962-63, pp. 140-143). Não se deve opor a transferência
como potência associativa, rememorativa e simbólica ao agir
como negação simples do lembrar, conforme se poderia ler em
Recordar, Repetir e Elaborar (Freud, 1914g). O agir (agieren) é
uma forma de símbolo que nao se reconhece como tal; é um
símbolo real. Ele é interpretável, e não apenas objeto do ma­
nejo no nível do eu ou de sua inclusão na transferência. Ele é
interpretável num sentido diferente das outras formações do
inconsciente, pois requer uma espécie de retificação das rela­
ções do sujeito com o real. No acting out, o sujeito age como o
olhar irônico que narra nao só uma cena, mas mostra como ela
foi construída, incluindo, assim, a posição do sujeito que olha.
O acting out é como uma ironia involuntária que faz o sujeito
encenar sua fantasia sem separar personagens e platéia. Que o
analista seja posto no lugar da platéia, isso é uma espécie de
forçamento da transferência, que retira o analista do lugar do
coro e o força a se identificar com a platéia ou com os juizes
desse teatro. E por isso que o acting out sempre tem enuncia-

347
ção cômica, assim corúo a passagem ao ato tem enunciação
trágica. Ambos são formas de re-escolhas da alienação.

(b) A Separação entre Sujeito Suposto Saber e Objeto a


A segunda operação possível a partir da inversão dos mo-
noides que dão estrutura ao tratamento é representada pelo
produto da reversão do sujeito suposto saber em objeto a. Aqui
o retorno não se dá para o produto da alienação (nãopenso), mas
para o lugar inicial de divisão do sujeito (ou não penso ou não
sou). Contudo, lembremo-nos que é um sistema não involutivo,
logo, essa divisão não será a mesma que a do começo da análise.
A diferença é que ela integra o percurso realizado numa forma
específica de negação, a negação determinada, que conserva o
que foi negado ao mesmo tempo que o escreve, formaliza ou
enoda. Seria um quarto tipo de negação capaz de praticar a re­
lação, antes examinada, entre contradição discursiva e parado­
xo lógico (Aufhebung). Ela possui a capacidade de bloquear o
movimento das inversões, oposições e passagens ao contrário
(Umschlagen), próprios dos processos de simbolização e imagi-
narização. Por isso, ela se mostra por intermédio da efetividade
de um ato. E o ato analítico. Se o início da análise é um ato do
analista, o fim da análise é um ato do analisante. Ato de pas­
sagem de analisante a analista. Ele também marca “a determi­
nação do começo” (initium, apke) (SX: 1962-63, p. 78), como
os atos tradicionais. A manipulação do arado pelo imperador,
iniciando a primavera, os ritos de passagem e o dictum bíblico,
de que no começo é o Verbo (São João), ou o romântico, de
que no começo está a ação (Goethe), caracterizam essa forma
de início. Pelas propriedades paradoxais, o ato psicanalítico é,
sobretudo, um dizer (Ibid., p. 106), uma enunciação ou um
discurso sem palavras. Reencontramos aqui a noção de excelên­
cia simbólica que utilizamos como operador para ler as antigas
práticas de cura. A excelência do ato é diferente da eficácia do
fazer. No ato não há sujeito, pois se a posição de sujeito decorre
da dimensionalidade conferida pela inscrição do falo no campo

348
do Outro, e se o ato decorre de uma espécie de negação da con­
sistência infinita do Outro, não há como conceber a posição de
sujeito neste caso.. Que o sujeito esteja abolido ou em afânise,
isso não significa que não exista, neste ponto, o Ser do sujeito.
Essa posição é reinstalada pelos efeitos do ato, pela sua leitura
retrospectiva (nachtrãglich), que a um tempo torna o gesto um
ato e engendra sua nomeação.

(c) Destituição Subjetiva


Finalmente, chegamos à terceira operação possível no ter­
ceiro tempo do tratamento analítico. Trata-se da possibilidade
da passagem pelo lugar da verdade. Este movimento entre o
n ío sou e não penso para o não sou corresponde à noção de
travessia da fantasia. Estamos aqui na ordem da experiência e
da formalização. O Operador fundamental aqui é o conceito
de separação. Separação entre o objeto a c o falo, que aqui re­
presenta a castração (-cp). Aqui se traduz clinicamente o tema
da tensão entre contradição discursiva e paradoxo lógico. Duas
linhas se abrem aqui. Primeiro, há uma série de movimentos
relativos à realização do ser do sujeito como falta (Ibid., p.
98). Em segundo lugar, ocorre a separação entre a pulsão e a
fantasia. Na primeira linha, a verdade é pensada como lugar
enunciativo de ocupação pontual e provisória, um resíduo da
operação de deflacionamento do saber. Um lugar que não é
sem saber, mas procede justamente de uma separação radical
entre saber e verdade. Onde isso era ( Wo Es war), posto que
o ser (war) se separou do Id, Eu devo advir (soll Ich werden)
como perda (-„). A realização da falta em ser do sujeito é cor-
relativa da realização do significante da falta no Outro [S (%)].
Na segunda linha de entendimento sobre a travessia da fan­
tasia (ou da travessia das identificações) como separação e ope­
ração da verdade, encontramos o problema do gozo. A fantasia
é um dispositivo subjetivo que torna o desejo apto ao prazer e
comanda, assim, toda a economia de gozo do sujeito. Sobre este
ponto, a posição de Lacan (Ibid., p. 38) é clara e distinta: a se­

349
xualidade não é o camp;o do qual se extrai a verdade do sujeito,
em função do caráter “irredutível do ato sexual a toda realiza­
ção verídica”. Isso levou Lacan a se embrenhar por um longo
tempo da demonstração de que a relação sexual nao existe. Há
vários argumentos: uma disparidade entre os modos de gozo
masculino e feminino, uma separação entre falo e objeto a, uma
desproporção entre objeto a e Outro. Importante para nossos
propósitos é ressaltar que essa é uma discussão que se desenvol­
ve inteiramente no domínio da existência (a relação sexual não
existe). A verdade é, neste contexto, ainda um lugar abrigado,
uma clareira guarnecida pelos semblantes acerca da relação se­
xual, ou seja, os diferentes modos pelos quais ela fracassa em
existir. O nome clínico deste “eu nao sou” do ponto de vista
do sujeito é a destituição subjetiva, somente no qual este sujei­
to, para este suposto saber (inconsciente), nesta transferência, é
destituído, ou seja, separado do objeto que o instituiu.
Chegamos, assim, ao final desta exposição bastante sintética
sobre a estrutura do método psicanalítico. Nosso objetivo não era
examinar todos os aspectos envolvidos na noção de tratamento,
mas mostrar como ela pode ser pensada radicalmente como uma
estrutura. Ou seja, a partir de um número bastante limitado de
lugares e operações definidas se consegue extrair uma combinató­
ria que reúna a razão constitutiva de todas as estratégias e táticas
possíveis ao tratamento. Que esta estrutura possa ser descrita em
outros termos de melhor qualidade conceituai ou apuro clínico,
isso é relativamente indiferente à ideia central de que o tratamen­
to pode ser concebido como discurso e percurso lógico.

9.4. ATO E DISCURSO DO PSICANALISTA


Isso se confirma na ideia que dá seqüência à de ato analí­
tico na obra de Lacan, ou seja, a teoria dos quatro discursos,
e particularmente a noção de discurso do psicanalista. Lacan
volta a apresentar um Grupo de Klein (agora com outras mo­
dificações) para dar forma a esse discurso:
Lugares Circulação entre Lugares

agente/semblante
verdade
óutro
produção
íx I ------►

Elementos D iscurso do P sican alista


S 1 = significante mestre a —#-► S
S2 =saber S2 S,

$ = sujeito dividido
a =ob jeto a

Reencontramos aqui o analista como agente do ato-dis-


curso e o analisante como sujeito. O significante mestre no
lugar da produção engloba a anteriormente chamada operação
de alienação. O significante saber no lugar da verdade reedi­
ta a operação de separação. Os vetores introduzem as noções
de impossibilidade e de impotência, antes representadas pela
existência de movimentos vetados dentro do sistema. A barra
contempla o tema da gramática das negações, o que inclui,
mas não se limita a seu emprego anterior na obra de Lacan
como designação da operação de metáfora e recalcamento.
Outra variante da sistematização do tratamento psicanalítico
a partir do Grupo de Klein se encontra na representação topo­
lógica. Aqui Lacan trabalha com quatro estruturas elementares:
o toro, a banda de Moebius, o plano projetivo (Cross Cap) e a
garrafa de Klein. Cada uma dessas figuras corresponde a um
tipo de relação entre torção e corte entre superfícies. Assim, o
tratamento pode ser descrito como a circulação inicial pelo toro
da demanda até que se precipite seu desdobramento numa ban­
da de Moebius, que indica as relações entre transferência e ideal.
Sobre este oito interior à esfera na qual se fixa essa banda, rea­
liza-se um corte duplo que separa o objeto a (OE: 1973a). Este

351
funciona como uma espécie de disco, completando a superfície
esférica do Outro. Isso-libera o sujeito desta ilusão criada pela
sua fantasia, cuja estrutura representa a conexão exterior entre
os dois toros. Essa descrição sumária é apenas uma indicação
de que, no fundo, todas as operações são conversíveis a grupos
transformativos: a banda de Moebius eqüivale a uma superfí­
cie acrescida de uma torção; os dois toros são duas bandas de
Moebius encaixadas; e assim por diante. O corte, por exemplo,
corresponde à separação, a junção à alienação e a torção à trans­
ferência. A combinatória das figuras reduz-se, assim, à combi-
natória entre elementos e operações. Desde o seminário sobre a
Identificação e até o final de seu ensino, Lacan dedica sistema­
ticamente uma parte de seu seminário ao desenvolvimento das
estruturas topológicas.
Geralmente se lê essa evolução da noção de ato analítico para
a de discurso analítico como um ganho de formalização e clareza.
Sabe-se que o Seminário sobre o ato analítico é um seminário
não concluído em função das manifestações operário-estudantis
de maio de 1968. Assim, soa intuitivamente atraente a ideia
de que um modelo de formalização complete o seguinte. No
entanto, algo se perde na passagem da noção de ato para a de
discurso. O ato é uma noção que procede da tradição ligada à
cura, o discurso provém da superfície ligada à terapia, assim
como tratamento surge em associação com a superfície clínica.
Sabe-se ainda que, após 1973 e nos oito anos finais de sua vida,
Lacan radicalizou ainda mais seu esforço de formalização com a
introdução de um novo tipo de escrita baseada na topologia dos
nós e no privilégio da noção de dimensão (dit-mension): Real,
Simbólico e Imaginário. Neste momento, se radicaliza ainda
mais a noção de sintoma. Mas, curiosamente, esta noção passa
a ser empregada num âmbito mais próximo da cura do que da
clínica. O sinthome, variante encontrada para realizar esta re­
versão, está mais próximo de uma forma de vida do que de um
sintoma ou um medo de sofrimento. Em que pese os inúmeros
aprofundamentos clínicos e as transformações conceituais que

352
se verificam neste momento da obra, eles nao introduzem um
novo modelo para entender a estrutura do tratamento psicana­
lítico. Apesar de alguns desenvolvimentos diagnósticos e semio-
lógicos importantes nao há elementos suficientes para afirmar a
existência de uma clínica nova em Lacan depois de 1970.
A diferença entre clínica psicanalítica e cura psicanalítica,
que ficou pressuposta no argumento anterior, é relevante. Esta
diferença costuma ser descartada no uso corrente que fala da
experiência da clínica como uma espécie de equivalente do mé­
todo de tratamento, e este é frequentemente reduzido a um dis­
positivo. Como vimos, a noção de posição, de onde deriva a de
dispositivo, é central para o entendimento dessa formalização
do método de tratamento. Um dispositivo é um conjunto arti­
culado de lugares, posições e operações, que traduzem conceitos
e fatos de experiência, tornando legível uma rede de estratégias
e táticas. Um dispositivo é:

Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba


discursos, instituições, organizações arquitetônicas, deci­
sões regulamentares, leis, medidas administrativas, enun­
ciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantró­
picas. Em suma: o dito e o não-dito (...). O dispositivo
é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.
(Foucault, 1977b, p. 224)

No entanto, um dispositivo está submetido a uma forma


de conceber o espaço.
Poder-se-ia intuir que a formalização do método de trata­
mento está condicionada pela concepção que se tem de espaço,
e daí explicar o porquê das últimas incursões de Lacan nesta
direção. Ocorre que isso seria presumir um isomorfismo entre
clínica e cura que é insustentável. A cura tem por horizonte
a verdade, tal como a teoria lacaniana do ato psicanalítico.
A clínica tem por referencia o real, tal como vemos na teoria
lacaniana dos quatro discursos. Em psicanálise nem sempre
estruturas antropológicas recobrem estruturas ontológicas.

353
Vimos que o modelo de estrutura de tratamento propos­
to por Lacan procura pensar essa relação entre clínica e cura
como uma superfície fechada e, no entanto, constituída por
um corte central a reversão do sujeito suposto saber em objeto
a. A crítica da noção de modelo, quando aplicada aos mate­
rnas e diagramas de Lacan, apoia-se geralmente na ideia de que
o modelo é uma abstração intuitiva da realidade, ao passo que
a escrita lacaniana, por sua forma e sua materialidade, conteria
o próprio real que pretende descrever. Mas se há uma con­
tinuidade no momento de formalização (o grupo de Klein),
isso não significa uma continuidade no tipo de relação entre
teorização e prática. Um mesmo modelo, como a tragédia ou
a retórica, pode se prestar a mais de um tipo de prática.

354
C A P Í T U L O 10

KANT E O PATOLÓGICO

Eis aí um amor prático e não patológico, que re­


side na vontade e não na tendência da sensibilida­
de, em princípios da ação e não numa compaixão
debilitante; ora, esse amor é o único que pode ser
ordenado.
Kant

I
MMANUEL K a n t teve uma v id a lo nga e e m o c io n a n t e .
Nascido em Kõnigsberg, numa família de origem humilde,
foi incentivado por sua mãe aos clássicos. Na universidade,
estudou história da filosofia, matemática e, principalmente,
física newtoniana. Com a morte de seu pai, passa a lecionar
como professor particular em famílias de nobres da Prússia
Oriental durante nove anos. Em 1755, torna-se professor da
Universidade de Kõnigsberg, onde ensinou até morrer.
O cotidiano de Kant (1724-1804) pode ser descrito com
bastante precisão. Levantava-se exatamente às cinco horas, no
verão ou no inverno. Vestia-se e fazia a toalete. Tomava uma
chávena de chá e fumava cachimbo. Neste tempo, fazia uma
planificação mental do dia. Dirigia-se, então, ao anfiteatro
onde dava aulas. Depois delas, respondia a correspondência.
Ao seu anúncio de que eram 12h45, a cozinheira lhe trazia o
almoço: sopa seguida <áe tônico. Depois do almoço, realizava
uma caminhada de percurso rigorosamente idêntico e exata­
mente no mesmo horário. Conta a lenda que as pessoas po­
diam ajustar seus relógios pelo horário do passeio de Kant, e
que ele só interrompera seu trajeto duas vezes na vida: uma
delas para receber uma carta de Rousseau sobre os eventos da
revolução francesa. Retornando do passeio, lia e escrevia até o
crepúsculo. Meditava então olhando para a torre de Loberni-
ch. Depois de acesas as candeias, retomava a leitura até 9h45.
Depois de quinze minutos, nos quais se desfazia dos pensa­
mentos que poderiam gerar insônia, dirigia-se para o quarto
onde Lampe, seu fiel criado, ajudava-o a se trocar. Desenvol­
vera um método específico de embrulhar-se para dormir. Em
movimento ágil, atirava-se obliquamente sobre a cama, puxava
por seu ombro esquerdo uma das pontas da colcha e, fazendo-
a deslizar por baixo das costas, ajustava-a a seu ombro direito.
Depois, por meio de um giro específico, fazia o m esm o co m a
outra ponta, terminando por rolar de lado, o que permitia que
fosse totalmente envolvido pelos cobertores: “Adequadamente
empacotado para a noite da forma como descrevi, ele ejacu-
lava frequentemente em si mesmo (como ele costum ava nos
contar durante o jantar)” (De Quincey, 1989).
Kant desenvolvera um método racional de viver baseado em
preceitos dietéticos, higiênicos e morais, bem como no exame
minucioso de como se deve proceder em cada situação coloca­
da pela existência. Impunha-se uma disciplina que ele mesmo
construíra baseado no uso livre de sua razão. Quando seu nao
tão fiel criado Lampe foi descoberto desviando dinheiro, após
38 anos de serviços prestados, Kant penosamente o despede e
escreve em seu caderno pessoal: “O nome de Lampe não deve
ser lembrado nunca mais”. Curioso sofisma: Kant anotava me­
ticulosamente em seu caderno as tarefas e preceitos que queria
lembrar. Ao anotar que o nome de Lampe não deve ser lembra­
do, ele se condenava a lembrar que não devia se lembrar. Seu
pendor para antinomias deste tipo se manifestava também em

356
relação às mulheres: “Quando eu podia precisar de uma mulher,
não podia sustentar nenhuma; quando pude sustentar uma,
dela não precisava mais” (Goulyga, 1981, pp. 65-69).
E interessante que pequenas contradições como essas não
passavam despercebidas ao herói de Kõnigsberg. Uma altera­
ção de sua rotina diária, como a demora na chegada do café,
podia gerar a seguinte intervenção de Kant:

—Caro professor, o café será servido imediatamente.


- Será, o problema é esse. Sim, tal como a próxima hora
será\ de resto, esse é o tempo que terei de esperar. Enfim
podemos morrer, apesar de tudo, e não será. Mas, no ou­
tro mundo, graças a Deus, não haverá café nem teremos,
portanto, que esperar por ele. (De Quincey, Op. Cit., pp.
32-33)

Apesar disso, Kant não era uma pessoa antipática ou intole­


rante, mas alegre, generosa e assaz interessada em outras pessoas.
O ponto alto de seu cotidiano eram os jantares que oferecia em
dias previamente estipulados da semana. Reunia para o even­
to não menos de cinco e não mais de oito pessoas convidadas
segundo justa proporção quanto à idade e procedência. Com
suave simpatia, coordenava as discussões e entretinha comen-
sais e alunos. Kant atribuía imensa importância à conversação,
especialmente na sua Tischgesellschaji (sociedade da mesa). Ele
se esforçava tanto em sua vida privada quanto em suas opiniões
políticas e nas relações institucionais (universitárias, editoriais)
em ser coerente com os princípios de sua filosofia. Kant era um
homem profundamente conseqüente com sua própria palavra.
Sem nunca sair dos arredores da pequena Kõnigsberg, Kant
considerava-se um cidadão do mundo. Vivendo uma vida or­
dinária, sem filhos, casamentos ou mulheres, nem rico nem
pobre, nem feliz nem infeliz, Kant sentia-se vivendo a maior
e mais emocionante das aventuras concebidas pelo homem: a
aventura da liberdade.

357
Hamlet (1599), Dq^n Quixote (1605), Don Juan (1620),
Robinson Crusoe (171'9) e Fausto (1808) são referências nar­
rativas obrigatórias quando se pensa no tipo de subjetividade
que caracterizou a modernidade. Cada um desses heróis, em
cada caso de maneira distinta, expressa uma mesma forma de
monomania. Eles estão exclusiva e egoisticamente interessa­
dos em seus empreendimentos pessoais, definindo-se e se fa­
zendo definir por aquilo que decidiram autonomamente fazer
ou ser. Eles são definidos pelo tipo de divisão subjetiva que
lhes caracteriza. Fausto, o professor errante, vive a alienação
de satisfazer-se através de uma alma que já nao lhe pertence
mais. Don Quixote enlouquece porque leu livros de cavalaria
em excesso e está fora de si por habitar um tempo que não lhe
é mais contemporâneo de si mesmo. Robinson Cruzoe expe-
riencia a tragédia da liberdade, como solidão e desamparo, de­
pois de visitar sua fazenda de escravos no Brasil. Hamlet hesita
diante do ato de vingança demandado pelo fantasma de seu
pai. Adia, reflete e pondera uma vez que a autoridade paterna
nao lhe garante mais o sentido legítimo de sua açao. Don Juan
padece da efemeridade do desejo e do abismo infinito e infini-
tesimal que cerca a escolha amorosa.
Todos eles de nobre estirpe apresentam-se indefesos diante
da própria divisão subjetiva. Não lhes falta astúcia ou enge­
nho, coragem ou dedicação e todas as virtudes clássicas sao
insuficientes para representá-los. Eles são figuras sem lugar:
desterrados, exilados, errantes. Padecem do mal-estar dos que
nunca estão propriamente em casa ou em plena estrangeiri-
dade. São vidas em estranhamentos de si {unheimlich). Suas
histórias são histórias de fracassos bem realizado. O que se
apresenta aqui é a construção de um paradigma mórbido que
caracteriza a subjetividade moderna como um inventário de
perdas e sua elaboração melancólica (Matos, 1989). Neste sen­
tido há uma espécie de pré-diagnóstico geral da modernidade
que a entende como perda do universo pré-moderno, rein-
terpretado como um tempo de segurança e determinação, de

358
ligações orgânicas e de experiências autênticas. Assim como na
melancolia, este universo perdido é também o ponto de iden­
tificação do eu. Don Quixote, por exemplo, luta exatamente
quarenta batalhas ao longo de sua jornada, perde 20 e vence
20. A lição maior deste empate é que o resultado importa tan­
to quanto o ponto de vista de onde se conta e importa menos
ainda se o consideramos como processo. Nossos heróis não
conseguiram transformar em realidade aquilo que almejaram
(Watt, 1997, pp. 233-236). Eles sobrevivem apenas em uma
espécie de existência póstuma, desprovida de acontecimentos,
como é o caso de nosso Brás Cubas, ou desprovida de essen-
cialidade, como o homem sem qualidades descrito por Mussil.
São narrativas que admitem uma leitura moral conservado­
ra cuja enunciação poderia ser: veja o que acontece com aqueles
que viram as costas para a solidariedade cósmica da vida, para a
com unidade de origem e para o sentido coletivo da convenciona-
lidade de significados. A loucura alucinatória de Dom Quixote,
a erotomania de Dom Juan, a melancolia de Fausto, a histeria
de Hamlet e a megalomania de Crusoé deveriam ser alinha­
das, portanto, com a neurose obsessiva de Kant.
Esta breve alusão literária permite introduzir a ideia de que
a modernidade caracteriza-se por um entendimento da pró­
pria subjetividade como, de alguma maneira, patológica. Este
campo pré-psiquiátrico do patológico não é redutível à esfera
jurídico-moral ou político-administrativa. Falamos de uma es­
pécie de autodiagnóstico maior da modernidade, que pensa a
si mesma e engendra suas práticas diagnosticas a partir de duas
grandes premissas:
(1) Há, na modernidade, um excesso de experiências impro­
dutivas de determinação. Ou seja, há hipertrofia dos sis­
temas e dispositivos disciplinares (Foucault, 1978-79)
que determinam as formas de vida e as gramáticas de
reconhecimento intersubjetivo. Há uma demasiada
racionalização da vida (Weber, 1946), da linguagem
e do trabalho, que redunda em perda do caráter or-

359
gânico e autênt|co da experiência (.Erfahrung) (Benja-
min, 1936). Há uma colonização do mundo da vida
(.Lebenswelt) pela razão instrumental (Habermas, 1988)
e pelo pensamento da identidade (Adorno & Horkhei-
mer, 1944), o que causa reificação generalizada da cons­
ciência (Lukács, 1923). Ao final, as estratégias de de­
terminação e de discriminação, próprias ao mundo da
técnica (Gestellt) (Heidegger, 1953), acabam gerando
vivências (.Erlebnis) improdutivas incapazes de produ­
zir reconhecimento social simbólico (Jameson, 1981),
o que acarreta mais ambivalência (Bauman, 1991), in-
discriminação e percepção de risco (Beck, 1997). Nesta
linhagem paranoide encontram-se inicialmente Don
Quixote, Hamlet e Don Juan, mais tarde a eles se agre­
gam os personagens de Henry James (Zizek, 2008), Ka-
fka (Santner, 1997) e é claro Flaubert e M adam e Bovary
(Kehl, 2008).
(2) Há, na modernidade, um déficit de experiências prod u ­
tivas de indeterminação. Ou seja, as experiências de in­
determinação, necessárias para que a liberdade se expri-
ma em ato, veem-se capturadas no interior de sistemas
ou metafísicas que bloqueiam seu potencial transfor­
mador. Não é apenas no reconhecimento e submissão
ao sistema, que representa ele mesmo a liberdade, que
tais formas de vida aspiram realizar-se. E no reconheci­
mento da força da anomia, da aposta trágica na desin­
tegração e na verdade contida no mal-estar que ainda
não ousa dizer seu nome que se formam demandas por
experiências produtivas de indeterminação. São aspira­
ções de cunho ético, baseada na recuperação de comu­
nidades de destino; ou político libertário, baseadas no
ideal revolucionário ou anárquico; ou ainda aspirações
privilegiadamente estéticas, como as que se insinuam
nas vanguardas (Tassinari, 2001). A falta de indeter­
minação produtiva pode aparecer como crise e empo-

360
brecimento do cotidiano (Certeau, 1990), como crítica
libertina da sexualidade conformista (Bataille, 1987) e
ainda como valorização da anomia institucional ou fa­
miliar em temas como o declínio da autoridade paterna
(OE:1938). Há, portanto, um sofrimento causado pela
percepção de insuficiência das experiências de indeter-
minação em gerar efeitos de liberdade (Honneth, 2007).
A esta percepção associa-se a moral do ressentimento
(Nietzsche, 1887) e da suspeita com a institucionaliza­
ção da experiência em instâncias ilegítimas ou inautên-
ticas de representação (Taylor, 1994). A representação,
inclusive a representação de si torna-se desconfiança e
desejo de autenticidade. A colonização da esfera pública
pela gramática privada do reconhecimento intersubjeti-
vo (Senett, 1973), o encurtamento da narrativa amorosa
(Giddens, 1992), ao lado da ascensão da moral da segu­
rança, colaboram para que a experiência real e produtiva
de indeterminação encontre cada vez menos espaço de
inscrição simbólica e discursiva. Nesta linhagem esqui-
zoide da modernidade encontram-se inicialmente Cru-
zoe e Fausto, depois pode-se incluir Baudelaire, Joyce,
Guimarães Rosa, Beckett.

Essa espécie bífida de meta-diagnóstico da modernidade,


que resumimos aqui, é ao mesmo tempo, condição para o sur­
gimento da psicanálise e sinal de sua confiança na razão melan­
cólica. Podemos falar, portanto, de uma modernidade melancó­
lica a partir da qual encontramos uma modernidade paranóica,
preocupada com a recuperação da eficácia da verdade (Kant,
Hegel), e uma modernidade esquizoide que anseia pela produ­
ção da excelência soberana do real (Schoppenhauer, Nietszche).
No início de seu seminário sobre a Ética da Psicanálise,
Lacan (SVII: 1959-60) elenca três ideais com relação aos quais
o psicanalista deveria estar advertido em sua prática: o ideal do
amor humano concluído, o ideal da autenticidade e o ideal da

361
não dependência. Ou seja, formações traiçoeiras, pois longe
de representarem o horizonte da cura psicanalítica compõe a
substância patológica da modernidade. E verdade que a análi­
se deve favorecer no analisante a possibilidade de amar e traba­
lhar, de construir sua autonom ia nos limites de sua economia
de gozo e de apropriar-se autenticam ente de seu desejo. Em
suma, há uma promessa psicanalítica de se apresentar como
um tratamento possível para a perda da experiência (de deter­
minação e de indeterminação) e de favorecer, em cada um de
nossos pacientes, a invenção de um herói moderno, para além
da culpa e do ressentimento.
O patológico, como campo formado por esta dupla e con­
traditória exigência, mostra-se assim o correlato necessário das
narrativas que apresentam a trajetória da divisão subjetiva que
caracteriza nossos heróis modernos. Todavia, ao contrário de
outros heróis, Kant tinha, além das ambições de autodetermi­
nação, um interesse clínico. Ele pretendia curar a razão de seus
excessos, estabelecer seus limites, descrever seu funcionamen­
to, em suma, mostrar como a loucura de nossos heróis pode
ser purificada e transformada de forma a justificar uma nova
forma de convivência entre liberdade e determinação.

10.1. O OBJETO PATOLÓGICO COMO


EXPERIÊNCIA DE DETERMINAÇÃO
Muito já se fez para mostrar a importância teórica de Kant
para a psicanálise. A epistemologia freudiana, seu modo de
conceber o conhecimento e a ciência, tem sua principal refe­
rência em Kant. A identificação, feita por Freud, entre supereu
e imperativo categórico mostra sua importância no que diz
respeito à moral. As categorias do juízo sao fundamentais para
entender a lógica da negação, presente na teoria psicanalíti­
ca da constituição do sujeito. A noção kantiana de sublime
é peça chave da noção freudiana de sublimação. Apesar desta
recorrência de alusões, o uso direto que Freud faz de Kant é

362
bastante precário. Por exemplo, a identificação entre o supereu
e o imperativo categórico é simplesmente um erro de leitura
e uma falta de domínio do conceito. O imperativo categórico
é uma estrutura transcendental, funciona como condição de
possibilidade universal e, a priori, a todo ato moral. Ele se
atualiza em regras práticas ou máximas que orientam nossa
ação se, e somente se, tais máximas puderem ser erigidas em lei
universal. Amar ao próximo como a si mesmo; agir tomando
o outro como um fim em si mesmo, nunca como um meio;
agir com benevolência ou lealdade e todos os exemplos simi­
lares são apenas isso, exemplos ou máximas. Ora, a Crítica da
Razão Prática (1788) é uma maneira de fundar a ação moral
fora do regime dos exemplos fornecidos pelo costume e dos
modelos ou dos ideais que os organizam. O exemplo, forneci­
do pela vida dos homens notáveis, pode ser condensados em
máximas ou regras de ação e, como tais, regulam o hábito. Os
hábitos, no entanto, só nos oferecem base para juízos sintéti­
cos a posteriori, ou seja, que decorrem da experiência, da rela­
tividade e da diversidade sensível. Aqui se costuma introduzir
uma diferença entre ética e moral, sendo a primeira o campo
de reflexão e fundamentação sobre a segunda. Assim como se
pode agir imoralmente, mas conforme a lei jurídica, é possível
agir imoralmente no sentido de fazê-lo contra os costumes,
mas de acordo com a lei ética. Daí que certos teóricos da ética
distingam entre uma moral convencional e uma moral pós-
convencional (Tugenhat, 1996, pp. 161-176).
Ora, o fundamento da lei moral, caso se pretenda funda­
mento, não dever ser apenas baseado no a posteriori, mas em
uma instância analítica, ou seja, a p riori e condicionante em
relação à experiência. Daí que ele se enuncie para o sujeito
como um puro dever (sollen) num tipo de juízo que não é hi­
potético (princípio e conseqüência) nem disjuntivo (oposições
lógicas), mas categórico. O imperativo categórico é um juízo
de relação que envolve a ligação entre um sujeito e o predi­
cado de modo a reunir, na diversidade sensível, a unidade da

363
apercepção. Os juízos determinam, assim, a constituição dos
objetos e a unidade da'consciência (Pascal, 1985). O impera­
tivo categórico não é, portanto, um ente metafísico, mas um
juízo sintético apriori. E um caso especial. Os juízos sintéticos
são, em geral, a posteriori e decorrentes da experiência, mas
aqui temos um juízo que é sintético, pois toma por predicado
a experiência sensível, expressa pela máxima e, ao mesmo tem­
po, a priori, pois toma como sujeito a liberdade. Além disso,
o imperativo categórico se realiza por uma expulsão do pato­
lógico, o objeto de prazer, que substitui o bem dos sentidos
(Woht) pelo supremo bem moral (Gute). O patológico é, as­
sim, sinônimo da presença da sensibilidade, da diversidade e
da particularidade na esfera das razoes, causas ou motivos de
nossa ação ética. Através do imperativo categórico, não é só
possível, mas necessário amar a lei.
A associação entre supereu e imperativo categórico é uma
constante em Freud. Ele é usado para ilustrar o funcionamen­
to da censura onírica (Freud, 1900a, p. 567), reaparece como
tendo sua origem no tabu do incesto (Idem, 1912-13, p. 31) e
declaradamente explica a origem da autoridade: “Assim como
a criança está compelida a obedecer seus pais, da mesma ma­
neira o eu se submete ao imperativo categórico do supereu”
(Idem, 1923b, p. 49).
Ora, o supereu freudiano, apesar das aparências, derroga
quase todas características do imperativo categórico kantiano:
ele tem uma gênese empírica baseada na identificação (Com­
plexo de Edipo), uma justificativa antropológica ( Totem e
Tabu), se expressa em instâncias perceptivas como a voz e o
olhar, não é exterior ao prazer e à satisfação e seu fundamento
é um objeto patológico. O sujeito freudiano não obedece à
lei pelo desejo da lei, mas por amor às imagens que lhe dão
suporte e para fazer-se amável pela medida dos ideais que elas
propiciam. Por intermédio do supereu, o sujeito se faz objeto
patológico para o Outro. Isso se dissemina na teoria freudiana
pela tipificação dos efeitos da ação do supereu na forma do

364
masoquismo erógeno, do masoquismo feminino e do maso-
quismo moral. Além disso, a expressão mais pura do supereu
não é a consciência auto-observadora, mas a voz. A voz sem
palavras e sem enunciados é, ao mesmo tempo, fundamento
negativo e lugar da negatividade no coração da ética (Agam-
ben, 2006, p. 58). Esta forma da voz é um dos argumentos de
Freud para refutar a universalidade da forma espaço-temporal
da sensibilidade (Freud, 1920g, pp. 23-27). Para Kant, isso
acusaria a presença do patológico como determinação impró­
pria, ou seja, como determinação pela particularidade sensí­
vel do objeto. Mas o último argumento contra a identificação
entre supereu e imperativo categórico é o argumento clínico
segundo o qual quanto mais o sujeito atende à exigência moral
intransitiva, mais severidade seu superego exige. Ele oprime e
induz o sentimento de culpa, nao o apaziguamento sublime
da consciência, como queria Kant.
Isso não significa que Kant esteja com a razão, mas apenas
que Freud não empregou a noção apropriadamente. É possível
que Freud seja muito mais útil para compreender como a for­
ça enunciativa do imperativo categórico, lida em chave antro­
pológica, está a serviço da servidão voluntária e das estratégias
de alienação do sujeito. É em nome de um princípio universal
e categórico aplicado e sobreposto diretamente às circunstân­
cias empíricas que o pior se estabelece na experiência humana
(Fingermann & Dias, 2005).
Quando Eichman foi confrontado com as acusações de
suas práticas nazistas no julgamento de Jerusalém, sua respos­
ta foi coerente e cristalina: “Sou um kantiano, segui o impe­
rativo categórico necessário a um Estado universal” (Arendt,
1963). Poderíamos imaginar que Antígona, diante de seu ato
de confrontação da lei de Creonte, também apelasse para o
imperativo categórico. Neste caso, ela claramente apareceria
como personagem protofascista, derrogando a análise lacania­
na do ato de puro desejo. Tal como o herói stalinista que se
abole para comprovar as leis universais da história, Antígona

365
encontraria, na incon4‘icionalidade de seu ato, nao o desejo,
mas a lei. Também já se mostrou como a extensão do impe­
rativo categórico, em seu equivalente para os juízos estéticos,
e sua corrupção, num equivalente antropológico, explicam a
formação das comunidades de gosto e um tipo de religião esté­
tica baseado na ruptura da universalidade do sujeito (Lebrun,
1993, pp. 511-527). Nietzscbe (1887, pp. 63-73) também
observou que o formalismo contido no imperativo categórico
o toma um princípio de crueldade, fim último e consagração
da ascese cristã. Em suma, ruim com Kant, pior sem ele.
Contudo, a presença de Kant em Freud não é apenas temáti­
ca. Há ainda uma ampla presença de Kant no método freudiano
de investigação. Quando se considera as inúmeras proximidades
entre o procedimento especulativo em Kant e o uso de analogias
em Freud a aproximação é indiscutível (Fulgencio, 2008). Gos­
taria de salientar uma terceira via de aproximação, em certo sen­
tido mais frágil que as anteriores^ mas que está mais de acordo
com os propósitos deste estudo que é examinar as condições de
formação da prática psicanalítica. Trata-se da influência indireta
do pensamento de Kant, na psicopatologia na qual Freud se
formou. A linha divisória que hoje estabelecemos nitidamente
entre filosofia e psiquiatria não era tao clara no século XIX.
Há, desde Pinei, uma longa tradição, na qual a caracteriza­
ção das formas de sofrimento, alienação ou patologia mental,
fazia-se acompanhar da fundamentação ou da crítica filosófica.
Isso se mostra na influência que Pinei exerce sobre o pensamen­
to hegeliano, na importância de Kant para a formação da psi­
quiatria clássica alema (Kraepelin), do associacionismo inglês
na psiquiatria de Griesinger, ou do positivismo comteano para
a psiquiatria clássica francesa (Esquirol, Morei) ou ainda na pre­
sença de Husserl na psiquiatria de Karl Jaspers (Berrios, 1996).
A partir de meados do século XX este sistema de correspondên­
cias psiquiátrico-filosófico se deslocou de tal maneira a incluir
a psicanálise; o que se mostra inicialmente no modelo proposto
por Eugen Bleuler.

366
Toda linhagem alemã de psiquiatria está estreitamente vin­
culada à ideia de que a doença mental é um processo autônomo
que se insere no organismo ou na personalidade. Ao contrário
da psiquiatria francesa para a qual as relações entre moral e do­
ença mental permanecia obscuramente defensável, a psiquiatria
alemã caracteriza-se pela ideia de doença mental como processo
mórbido que priva a liberdade do sujeito ao modo de um ob­
jeto intrusivo que uma vez instalado prejudica a autonomia e
a possibilidade de emancipação. Ora, o kantismo metodológi­
co, temático e principalmente conceituai está disseminado nas
principais fontes freudianas sobre o patológico:
(a) Richard Kraft Von Ebbing, em seu Psychopathia sexua-
lis (1886) introduz quadros capitais para a psicanálise,
tais como fetichismo, masoquismo, sadismo, além de
sistematizar as perversões. Sua tipologia das perversões
baseia-se no esquema kantiano: desejo fora do tempo
(na criança ou no idoso), desejo em excesso, desejo em
falta ou desejo com um objetivo com mudança de ob­
jeto.
(b)Emil Kraepelin, em seu Compêndio de Psiquiatria (Freud
provavelmente leu a sexta e clássica edição de 1899) es­
tabeleceu não apenas uma classificação sistemática total
da patologia mental, mas uma série de princípios causais
que seriam adotados daí em diante. A importância da
combinação entre etiologia e evolução, a distinção entre
sintomas fundamentais e sintomas secundários, a sepa­
ração entre causas exógenas e endógenas, além da teoria
kantiana das faculdades mentais, e do eu como lugar de
síntese, encontra-se na base do sistema de Kraepelin.
Ora, o que a tradição psicopatológica de origem kantiana
mantém em comum é a crença de que o doente mental é um
sujeito de um corpo adoecido. Um corpo ao qual ele reage
como se reagisse a uma forma qualquer de alteridade. Um cor­
po tóxico, que é interpretado como objeto que induz a uma
privação da liberdade. Ou seja, o que Kant estabelece para

367
toda e qualquer psiquiatria dele derivada é a necessidade de
uma espécie de antropologia que sustente as razões e motivos,
as formas e meios, desta privação.

10.2. O SUJEITO ÉTICO COMO EXPERIÊNCIA


DE INDETERMINAÇÃO
Em Lacan, a relação com Kant é um pouco diferente. Não
há apenas deslocamento e reconfiguração de temas, conceitos e
categorias, mas debate aberto com a filosofia kantiana. Há um
verdadeiro programa que pode ser declarado com e contra Kant
no qual é preciso refazer a estética transcendental (topologia);
rever sua teoria da negatividade, revalorizando a noção kantia­
na de grandeza negativa (objeto d); mostrar como o imperativo
categórico se completa com o imperativo naturalista sadeano
(fantasia); introduzir um núcleo paradoxal nas categorias de
unidade, negação, causalidade e existência (teoria do desejo e do
gozo). A importância maior do pensamento de Kant para Lacan
reside no lugar estratégico que esse autor ocupa como ponto
de virada da obra lacaniana. Levando em conta o valor extre­
mamente limitado deste tipo de divisão, podemos dizer que há
um Lacan kantiano, até 1960, e um Lacan pós-kantiano, depois
de 1960. Acompanhemos de perto o exame deste problema se­
guindo a leitura proposta por Safatle (2003, p. 189).
O seminário sobre a ética e textos adjacentes, do início da
década de 1960, correspondem a um momento de autocrítica
deslocada que marca uma virada do pensamento lacaniano.
Em vez de rever diretamente os impasses a que sua teoria da
constituição dos objetos o havia conduzido, Lacan rediscute
sua própria posição, colocando Kant em seu lugar. Tudo se
passa como se Lacan percebesse que os protocolos de simbo­
lização e subjetivação que conduziam sua concepção de trata­
mento até então levavam a uma espécie de aplicação prática do
kantismo. Há bons comentadores que nos mostram como isso se
realiza pelos meios de uma espécie de doutrina transcendental do

368
sujeito (metáfora paterna) baseada numa estética transcendental
do desejo (a teoria do significante) e uma lógica transcendental
do Outro (a lei) (Santuário, 2004). Há outros estudos (Simanke,
2002) que nos permitem ver como essa infiltração kantiana em
Lacan aparece tanto como teoria de gênese empírica do eu - pon­
to no qual a teoria do Estádio do Espelho poderia ser confrontada
com uma teoria genética do conhecimento, como a de Piaget,
por exemplo - quanto emana da combinação improvável entre
uma antropologia estruturalista (Lévi-Strauss), uma antropologia
dialética (Kojéve) e uma antropologia heterológica (Bataille). Res­
saltemos que se trata, em todos os casos, de usar a crítica da razão
prática —a ética, portanto —como campo de prova para uma
teoria da intersubjetividade.
Até esse momento da obra de Lacan, o desejo, incapaz de
realizar-se por meio de objetos empíricos, deveria ser reconhe­
cido, em sua estrutura transcendental, como sobredetermina-
do pelo Outro. Isso permitiria que o desejo fosse desligado da
teleologia de sua demanda. E o que Lacan chama de submis­
são ao simbólico. A direção da cura se orienta para a produção
de um desejo puro pela experiência de que seu fundamento no
Outro é a falta (castração), quer pela via fálica, quer pela via
do Nome-do-Pai ou da Lei. O desejo puro, no entanto, ainda
se mantém subordinado à dialética do reconhecimento (Baas,
2001). Aqui surge um problema: na relação com a estrutura,
ou seja, com o Outro, não há intersubjetividade recíproca, mas
assimetria. Como vimos pelo exame das teses cartesianas e sua
apropriação diferencial em Lacan. O problema se aprofunda
se pensamos que o Outro, definido como lugar da linguagem,
é Outro absoluto, equivalente das categorias transcendentais
do entendimento (Verstand).
Uma solução é argumentar que, para manter uma relação
não-totalizável com o Outro, é preciso identificar-se com a
falta no Outro, e não com o Outro p er si (Stavrakakis, 1999,
p. 139). Mas esta ainda é uma solução muito precária, pois esse
tipo de negatividade no qual se baseia a noção de significante

369
da falta no Outro nao ppssui nenhuma referência antropológica
ou imanente. O que nos deixa ainda no registro transcendente,
pelo qual existem algumas ideias reguladoras como Deus, alma
e mundo que correspondem ao lugar onde a falta no Outro
implica a garantia do sujeito. Convém observar que, para La­
can, esse lugar é ocupado pela morte justamente para resolver o
problema. A morte é, ao mesmo tempo, figura da negatividade
e condição universal. Ela tem uma dimensão ontológica e an­
tropológica. Mas, ao assumir a morte como condicionante da
possibilidade de gozar da lei, diversos impasses clínicos emer­
gem. Como distinguir a realização dessa negatividade do desejo
sem confundi-la com o desejo de castração que move a histeria?
Como separar essa experiência, também chamada de segunda
morte, da efetivação de um fantasma masoquista? Finalmente,
como introduzir uma descontinuidade entre o puro desejo e
a lei moral, de extração superegoica, posto que tal indistinção
pode levar o sujeito, ao final da análise, a se fazer puro executor
da lei tal qual a prescrição de Sade?
O que está em jogo é o estatuto do lugar do Outro (univer­
sal ou particular) e o estatuto da posição do sujeito na fantasia
(necessária ou contingente). Reencontramos aqui, agora na
diagnostica lacaniana, a disparidade entre as duas fontes do
patológico: o excesso de experiência improdutiva de determi­
nação (lugar do Outro) e o déficit de experiências produtivas
de indeterminação (posição na fantasia). Há um fracasso na
teoria kantiana em reconhecer que a forma do ato não ga­
rante sua significação. Há, portanto, uma experiência central
e imprevista de indeterminação no centro da ética kantiana.
Quanto mais procuramos exemplos práticos de sua aplicação
melhor se percebe a importância de tal indeterminação. Em
outras palavras, é possível praticar a perversão pela estrita obe­
diência da lei. Se o superego freudiano se define pela obser­
vação, pelo julgamento e pela punição, ele pode se valer dos
mesmos processos para funcionar como máquina de conver­
são automática do narcisismo em masoquismo. Ou seja, ele

370
não age apenas como restrição de gozo, movendo a negação
das pulsões incompatíveis com o eu, mas também como im­
perativo de gozo,, transformando o eu em objeto da satisfação
que ele deveria evitar. Ora, a transcendência do imperativo
categórico kantiano, pelo qual há um puro dever (sollen) que
funda a ação moral, choca-se, assim, com a imanência do ob­
jeto que pode estar envolvido nesse dever. No fundo, há uma
instância patológica na moral kantiana, a qual se transfere para
a psicanálise pela figura do supereu.
A situação fica dramática quando percebemos como este de­
ver (sollen) figura no próprio imperativo categórico que coman­
da a cura analítica: Wo Es war, solllch werden. Enquanto este de­
ver (sollen) assumia simpática e austera ressonância com a moral
kantiana, tudo corria bem. A psicanálise era mais um braço no
projeto moderno do Esclarecimento (Aufklürung) a serviço da
construção de um supereu ao mesmo tempo crítico e benevo­
lente. Mas quando se percebe como o imperativo categórico
possui sua face de terror e opressão, nos vemos como autên­
ticos representantes das estratégias superegoicas de conversão,
purificação, extração de um desejo puro, pela via da ascese e da
confissão, o que Foucault tão bem criticou em sua arqueologia
da psicanálise. “Que advenha o sujeito” (soll Ich werden) pode
tornar-se máxima superegoica de aplicação clínica que justifica,
na universalidade de sua teoria, uma opressão do sujeito.
Isso levará Lacan ao duplo programa de demonstrar a fal­
ta constitutiva do Outro e a conjectura de que é possível um
ato que ultrapasse a alienação ao objeto que sutura esta falta:
a travessia da fantasia. Isso significa radicalizar a presença do
patológico no coração da prática analítica. Trata-se de inventar
uma nova forma de perversão. Este programa está marcado pela
disparidade entre o objeto localizado no Outro e o objeto lo­
calizado na fantasia. Tal objeto será pensado, a partir de então,
como dotado de uma opacidade irredutível à simbolização.
Reconhecer que, na ação moral, haverá sempre algum inte­
resse de gozo não é suficiente para reconfigurar o projeto clíni­
co da psicanálise. No fundo, isso é uma decorrência da própria

371
interpelação que coordenara a primeira fase da ética lacaniana,
qual seja: “Agiste em conformidade com seu desejo?”. Ora,
se o sujeito é capaz de responder afirmativamente a essa per­
gunta, isso mostra apenas que ele sabe algo sobre sua fantasia,
mas, ao mesmo tempo, permanece fixado nessa posição. Ele
permanece agindo em conformidade com uma heteronomia.
De certa forma, o Outro está ainda em seu lugar. A resposta
negativa também não é boa solução, pois revela apenas o esta­
do neurótico comum baseado na culpa, na transgressão e na
soberania do Outro.
A alternativa reside em encontrar um ato que faça aparecer
não apenas a posição ética, nem só o reconhecimento do lugar
ético, mas o que constitui o espaço mesmo da ética em sua
impossibilidade radical de totalização. Isso tem várias impli­
cações para o campo da erótica, da estética e da política em
psicanálise. Neste caso, a noção de ato torna-se uma categoria
central. Todavia, argumentar que há um fundamento real para
a ética coloca um problema relativo a qual implicação isso terá
para uma ontologia. O problema pode ser resumido ao fato de
que a ética é, desde sempre, o campo do dever e do possível,
tendo em vista o conceito limite de liberdade. Quando se quer
fundar o campo do dever na esfera do ser, o contingente no
necessário, geralmente o que se obtém é uma metafísica de cla­
ras implicações ideológicas. Daí que a solução moderna, com
as raras exceções representadas por Espinosa e Sartre (Chauí,
1981, pp. 10-98), tenha sido a de evadir o problema ético
quer em antropologia quer em teoria da convencionalidade
do significado. A ideia lacaniana de uma ética do real exige,
portanto, explicitação. Em outras palavras:

O coração de toda ética é algo que não é, em si, “ético”


(nem é “não ético”) - em outras palavras, não tem nada
que ver com o registro da ética. Este “algo” recebe vários no­
mes - apesar de que, nos limitamos a dois: para Lacan é “o ,
Real”; para Badiou, “o evento”. (Zupancic, 2000, p. 235)
Contudo, o objetivo de nossa incursão nao é mapear os
pontos de contato entre a psicanálise e a teoria kantiana. Es­
tamos mais interessados no valor que a problemática kantiana
possui para a constituição histórica da clínica psicanalítica. Vi­
mos que o idealismo transcendental kantiano recorre de forma
contumaz a uma noção de interesse para esta questão: o pato­
lógico. Vimos ainda como é pela evitação do patológico que
Kant funda a razão prática. O patológico nao é simplesmente
o empírico, mas a extrapolação dos limites do empírico, pos­
suindo também um equivalente na ordem do entendimento.
A intuição sem conceitos é cega; o entendimento sem intuição
é vazio. A tarefa de Kant como clínico da razão é tentar esta­
belecer os limites dentro dos quais essa relação sintética se es­
tabelece a priori. Isto se efetua nas três grandes perguntas que
ele pretendia responder: o que posso saber? O que devo fazer?
O que me é permitido esperar? Ou seja, trata-se das condições
necessárias para todo conhecimento, ação ética ou juízo (in­
clusive estético) possível. Esta filosofia ocupa um lugar homó­
logo ao do Discurso do M étodo em Descartes, ou seja, nao é a
ciência, e nem mesmo uma diretiva moral prática.

10.3. ANTROPOLOGIA E PSICOPATOLOGIA


Historicamente, duas estratégias tentaram dar um destino a
essa carência de aplicação transformativa da filosofia kantiana.
A primeira é de inspiração antropológica, mais precisamente
etnológica. Ela tenta reencontrar o universal kantiano de for­
ma culturalista, ou seja, reconhecendo a radical diversidade da
expressão simbólica e intersubjetiva do homem e pressupondo
uma homologia regular entre elas na solução do problema mo­
ral. A segunda estratégia é de inspiração psicológica, e procura
firmar o universal kantiano na forma de estruturas cognitivas
que seriam constantes e regulares em função de sua origem
comum, ou ainda de uma base inata. Ambas as estratégias du­
plicam a árvore kantiana das formas de juízo, dos tipos de

373
saberes e dos método^' de inferência de categorias de modo
a encontrar a versão positiva do que Kant descrevera. Estão
dadas as condições para uma nova maneira de apreender o pa­
tológico e firmar o espaço para uma Crítica da Razão Clínica.
Encontramos apoio para essa ideia mais uma vez em Fou­
cault (1960). Ele argumenta que a Antropologia do Ponto de
Vista Pragmático (Kant, 1798), geralmente tida como obra
menor, fruto da compilação dos vinte anos de aulas de Kant
sobre o assunto, corresponderia a uma espécie de quarta críti­
ca e, portanto, uma quarta pergunta fundamental, a saber: o
que é o homem? Esta deveria se acrescer à questão epistemoló-
gica (o que posso saber?), a questão ética (como devo agir?) e
a questão do juízo (o que é legítimo esperar?).
Veremos que a leitura que Foucault faz desse texto permite
entender o nascimento das ciências humanas, por um lado,
e da clínica moderna, por outro, segundo uma estratégia de
positivação da crítica kantiana. Além disso, há espaço, nesse
texto, para a existência de uma relação negativa entre a crí­
tica e as formas específicas de lidar com o patológico. Talvez
seja este o veio do espaço clínico explorado pela psicanálise
e também pela fenomenologia. Também já se mostrou que
Rousseau (Starobinski, 1991), assim como os moralistas es­
coceses (Maclntyre, 1991), podem ser lidos como teóricos da
antropologia negativa, ou seja, como pensadores interessados
no sofrimento de indeterminação.
A Antropologia examina as formas concretas da observação
de si. Seu ponto de partida é um tema comum à filosofia polí­
tica do final do século XVIII, ou seja, como justificar que um
indivíduo possa possuir outro. Várias circunstâncias anômalas
da noção de posse se aplicam aqui: um homem que adquire
uma mulher, um casal que adquire filhos, a família que adquire
um serviçal doméstico ou uma empresa que adquire escravos.
Em todos esses casos, acontece uma espécie de vácuo jurídico.
Se o campo jurídico versa sobre o gozo dos bens, sobre seu uso
e abuso, ele se vê subvertido por esses casos especiais em que

374
posse e propriedade se distinguem. A relação de dominação,
nesses casos, não é baseada na propriedade nem na soberania.
Este vácuo é percebido pelos libertinos, particularmente Sade
(1975), dando origem ao imperativo categórico complemen­
tar imaginado por Lacan: “Tenho o direito de gozar de seu
corpo, pode-me dizer qualquer um, e exercerei este direito,
sem que nenhum limite me detenha no capricho das extor­
sões que me dê gosto saciar” (E: 1963a). Em tese, a expressão
“pode-me dizer qualquer um” indica a universalidade; o juízo
é de tipo categórico, e também exprime um imperativo que
liga a ação moral à liberdade na forma de um juízo sintético
e a priori. Em suma, e como outros já apontaram (Adorno &
Horkheimer, 1947) Kant deve ser lido com Sade (E: 1963a).
Também em Sade verificamos esse furor clínico de descrever
e classificar exaustivamente as formas, os casos e os gêneros
possíveis da aplicação dessa lei. Neste vácuo entre direito e
moral, surge o problema da simetria entre a relação de pessoa
a pessoa com a relação pessoa a coisa. Por exemplo, Kant ar­
gumenta que o homem tem o direito de ter ciúmes da mulher,
pois sua ausência indicaria que ela se reduz a uma mercadoria
intercambiável. O direito do homem ao ciúme é um gesto de
reconhecimento da liberdade da mulher. A primeira reivin­
dicação dessa liberdade para a mulher será escapar do ciúme,
provando, assim, que é mais que uma coisa. A contrapartida é
que a mulher terá direito ao flerte, ponto de equilíbrio entre a
lei jurídica, que fazia da mulher a coisa de seu marido, e a lei
moral, que reconhece em toda pessoa um sujeito de liberdade
(Foucault, 1960, p. 14).
Esse tipo de análise se aproxima bastante de várias das inte-
lecções lacanianas sobre a dialética da transferência e do reco­
nhecimento intersubjetivo. Ele representa uma ruptura radical
com relação ao antigo esforço antropológico corrente no inte­
rior da medicina até o início do século XIX, de ajustar a doen­
ça a alguma forma de metafísica do mal. A categoria chave da
análise de Kant não é o mal, mas a liberdade. A ligação entre a

375
virtude ética e a saúde ppssa a ser arbitrária. Inversamente, será
preciso redescrever as formas do patológico em função de seu
modo específico de privação de liberdade.
Como vimos na apresentação da vida de Kant, há uma es­
pécie de partilha entre filosofia e medicina na construção de
uma arte cotidiana da saúde. Isto só é possível porque entre
preceito filosófico e receita médica há uma relação comple­
mentar. A medicina apresenta um universal negativo, afas­
tando a doença; a filosofia, um universal positivo, definindo
as leis de conservação da saúde. Daí a crescente importância
temática da autoconservação, do egoísmo e do amor de si em
autores dessa época. Inversamente, o problema chave para me­
dicina é definir as regras de aceleração e inibição do movimen­
to. O sintoma paradigmático para essa concepção de doença é
o espasmo, que reúne aceleração e inibição num mesmo gesto.
Há dois quadros clínicos que rapidamente dão visibilidade a
esse complexo discursivo formado pela medicina filosófica nos
limites da razão: a hipocondria e a melancolia. Ambos represen­
tam uma espécie de paradoxo para a lei geral da conservação de
si. A hipocondria acusa o excesso e a desmesura nessa nova for­
ma de cuidado de si. A melancolia ilustra a falta, a ausência do
princípio de autoconservaçao. Mas a teoria do espasmo parece
positivar ainda os dois aspectos da filosofia kantiana do sujeito:
a receptividade, presente nas condições de possibilidade da intui­
ção sensível (tempo e espaço), e a espontaneidade, presente nas
condições de possibilidade da formação de conceitos inteligíveis
(modo, relação, quantidade e qualidade). Assim, as sínteses es­
pontâneas e passivas do corpo podem ser retomadas pelos atos
voluntários do espírito (Ibid., p. 16).
A migração positiva e negativa das categorias formadas
nas três críticas estabelece uma primeira teoria das faculdades
mentais, reduzidas a três: a faculdade do entendimento {Vers-
tand), o sentimento de prazer e desprazer e o apetite ou desejo.
Nasce aqui a organização das matrizes conceituais que tornam
possível a psiquiatria e a psicologia como ciências do funciona­

37 6
mento das faculdades mentais: memória, atenção, percepção,
pensamento etc. Elas antecipam, organizam e condicionam as
descrições psicopatológicas da clínica clássica. Aqui ainda não
liá lugar para uma psicologia racional ou para uma psicologia
empírica. Esse lugar está ocupado por uma teoria da consti­
tuição do sujeito. Todavia, o objeto da antropologia não é a
alma (Seele) nem o espírito (Geist), mas a Gemüt, ou seja, não
o que se é ou o que se deveria ser, mas o que se faz de si mesmo
entre o que se é e o que se deveria ser. Isso corresponde à noção
de perfectibilidade, na expressão iluminista de Rousseau, e de
excelência (areté), na tradição grega.
Podemos agora renomear o tema da relação entre pessoas e
coisas. Ele é, mais propriamente falando, a expressão de uma
diferença radical entre o poder (kõnnen) e o dever (sollen). A
antropologia só é possível porque as pessoas não se compor­
tam —pelo menos, não sempre —segundo o imperativo cate­
górico. E o estudo de seu fracasso moral, não de seu sucesso, o
que encontramos na antropologia. Ela é, primariamente, o es­
tudo do não-ser, da disparidade e da incongruência de si a si e
de si ao outro. E essa a natureza negativa do regime de verdade
que lhe corresponde. O sujeito é um a p riori do ponto de vista
da possibilidade do conhecimento, mas é um objeto, do ponto
de vista da existência. Aquilo que representa, neste objeto, o
sujeito se dá por intermédio de uma função negativa: não eu,
ainda não puro eu, demasiado eu. A passividade que encontrá­
vamos nas categorias da sensibilidade nunca é realmente pas­
siva quando se trata de antropologia. Essa passividade é trans­
porta para a noção de originariedade. Esta originariedade não
é o que estava cronologicamente em primeiro lugar, mas um
efeito das sínteses do sujeito que revela, aposteriori, que aqui­
lo já estava lá (Ibid., p. 24). Se, na Crítica, há recorrência de
termos precedidos pelo sufixo [Ur\, que assinala o originário
como fundante, na antropologia dominam os termos prece­
didos pelo sufixo [Ver], que indica negação ou intensificação.
E exatamente este o tipo de experiência que fora tematizada

377
pelos estoieos, cínicos § céticos na esfera do cuidado de si. Ê
também o que encontramos na noção de retorno empregada
por Empédocles. Um retorno ao que ainda não foi. A verdade
como simultânea da experiência de perda da verdade.
Outro desdobramento importante da antropologia é a se­
paração entre fenômeno (.Erscheinung) e aparência (Schein). O
fenômeno é objeto de conhecimento; a aparência é meio de in~
tersubjetividade. Aqui se origina uma nova estratégia de poder
que marcará a racionalidade clínica. É o projeto de transformar
aquilo que é da ordem da aparência em fenômeno, projeto que
se realiza no nascimento de uma caracterologia ou uma fisiog-
nomia, ciências baseadas na inferência de traços interiores a
partir das aparências exteriores. Só então a psicologia empírica
poderá fazer parte do edifício da Antropologia (Ibid., p. 27).
Portanto, a antropologia toma por referência não o fenô­
meno, mas o mundo e os modos pelos quais um sujeito se afe­
ta no movimento em que se torna objeto para si mesmo. Ou
seja, ela estuda as figuras genéricas e mais ou menos regulares
da alienação. Estamos longe do cuidado de si como atividade
de ocupação e atenção, mas ainda imersos nos impasses do co­
nhecimento de si como vocação patológica do ser. O mundo
como totalidade está além de todas as predicaçÕes, e constitui
um sistema concreto de inclusão. Ao contrário do universo,
que é a totalidade do possível, o mundo é a totalidade da exis­
tência e um sistema do necessário. Encontramos aqui uma
nova figura para o Outro. Se, em Descartes, ele eqüivalia às
propriedades lógicas de Deus (infinito, perfeição, pensamen­
to), em Kant ele eqüivale ao mundo.
Três conceitos sao fundamentais para entender essa experi­
ência da perda de si: a fonte (Quellen), o domínio (Umfang) e
o limite ou fronteira (Grenze). A fonte aponta para a alienação
ao saber, posto que tudo que me é dado saber já está, de certa
maneira, estipulado pela anterioridade do Outro. O domínio
refere-se à alienação pelo poder que regula minha liberdade e
condiciona seu exercício a uma autoridade pré-instalada. O
limite, por sua vez, remete ao desamparo dessa situação na

378
qual nao se pode apelar para o uso transcendental da ideia: “A
questão antropológica não tem conteúdo independente; ex­
plicitamente ela repete as três primeiras questões [saber, fazer,
esperar], mas repete substituindo a tripartição mais ou menos
emprestada à distinção das faculdades” (Ibid., p. 33).
Essa repetição implica ainda uma transformação de voca­
bulário. Enquanto a Crítica deve construir um conjunto de
termos bem definidos, que aspira a definir-se como conceito-
grafia sem equívocos, a antropologia implica a consideração
de uma linguagem popular, do relato, do exemplo e do con­
selho. Seu domínio e seu contexto é o campo da Kunst (cul­
tura), no qual vigora a liberdade como exercício do arbitrário
e da negação (Ibid., p. 36). Esse saber sobre gostos, conceitos
e inclinações das pessoas está aberto indefinidamente a novos
exemplos e narrativas. Ou seja, encontramos na antropologia
kantiana uma forma de descrição, classificação e análise intei­
ramente baseada no uso cultural específico da linguagem. Seu
solo real é muito mais a lingüística do que a psicologia ou a
antropologia tal qual as conhecemos hoje (Ibid., p. 41).
Isso tem conseqüências sugestivas quando se considera que
faz parte da Antropologia do Ponto de Vista Pragmático uma sé­
rie de pequenas incursões sobre as doenças e afecções mentais.
Ela é feita colhendo tanto categorias mais ou menos firmadas
na medicina da época, como a amência, a demência, a insânia
e a vesânia, quanto descrições populares, como o simplório, o
estúpido, o insensato, o tolo e o dândi (Kant, 1798, pp. 102-
114). Sao as palavras, segundo seu emprego e uso comum, que
formam a substância da matéria examinada.
E interessante como esta disparidade entre linguagem
formal-conceitual e a linguagem natural-popular será trazida
para o interior da semiologia dos alienistas. E comum encon­
trar na psiquiatria do século XIX uma espécie de abismo entre
as noções científicas exuberantes e por vezes latinizadas que
designam a loucura (frenopatia, dem entia praecox, loucura
mixedematosa), associada a descrição de suas causas segundo
uma linguagem comum. Por exemplo, a população interna

379
no manicômio de Ronâa entre 1874 e 1880, aparece nos re­
latórios classificada segundo os tipos clínicos mais veneráveis
(Pessotti, 1996, pp. 203-206): mania, melancolia, demência,
frenesi, delírio agudo, idiotia, etc. Quando se compara tais
tipos com as causas a que se associam aparecem quatro gran­
des grupos (a) as sete causas morais: desgostos deprimentes e
emoções, susto, asceticismo, ofensas ao pudor, amor desilu­
dido, ofensas ao amor próprio, desajustes financeiros e falsa
posição social; (b) as causas físicas-, estudo excessivo, abuso de
vinho ou licor, fadiga, miséria, abuso de sulfato de quinino;
(c) as causas orgânicas-, congênitas, hereditariedade, epilepsia,
malária, puerpério, endometrite catarral, clorose, cefalgia; e
(d) as causas ambientais: prisão, insolação, falta de ventilação
ou alimentação inadequada. Note-se como as causas morais e
físicas, que se especificam pela relação ao dever, são apresen­
tadas em vocabulário prosaico e de aspiração particularista,
enquanto as causas orgânicas e ambientais, que se especificam
pela reação ao poder, são descritas em linguagem de aspiração
universalista.
Acostumamo-nos a encontrar essa referência também em
Freud: a conversão histérica realiza-se a partir da representação
popular da parte do corpo; os sonhos têm um sentido decifrá-
vel, como afirma o senso comum', há uma psicopatologia da
vida cotidiana. A importância conferida por Lacan ao signifi­
cante, tal como ele é efetivamente pronunciado pelo paciente,
segue na mesma direção. Com o progresso da obra lacaniana,
encontramos também uma preocupação em estabelecer uma
psicopatologia baseada na lógica da aparência. A aparição ou
valorização de noções como as de véu (pela qual se define a
perversão), de semblante (pela qual se lê o gozo) e de mascara­
da (pela qual se define a histeria) é exemplo deste movimento.
Trata-se, na antropologia kantiana, de uma explicitação da
linguagem em sua relação com a acepção forte do termo ex­
periência (.Erfahrung). A palavra vem de fahren, “viajar”, “va­
guear” ou “realizar uma jornada”. Ambiguamente, ela designa

380
tanto o processo quanto seu resultado em oscilação similar
à que encontramos no termo cura. Como falar de uma via­
gem que fiz? Posso contar as vivências (Erlebnis) que tive, os
momentos intensos e as sensações inusitadas, posso apresen­
tar registros ou arquivos e invocar testemunhas, mas a mera
descrição do deslocamento no espaço e a ocupação do tempo
não fazem de minha viagem uma verdadeira experiência. O
que interessa para saber se houve experiência é saber como
tal viagem me transformou, como depois dela não sou mais
o mesmo que era antes; como me apreendi de forma exterior,
a partir de onde não sou, como o radical “ex” de “experiên­
cia” sugere. Mas também como vagueei, como experimentei
a incerteza, a prova, a tentativa em torno de algo, conforme o
radical “peri” de “ex^mência” indica. Portanto, a experiência
não é o empírico nem o fenômeno, não é o dado imediato da
consciência, nem mesmo a apresentação controlada dos ob­
jetos. A experiência é um percurso do sujeito que envolve a
construção de um objeto, a constituição de um sujeito e a
formação de uma história.
E neste sentido que Lacan compara a psicanálise à ascese
mística, ao exercício das regras dos moralistas, às descobertas
iniciáticas, bem como ao caminho do artista em sua relação
produtiva. Podemos chamar de “experiência analítica”: a lei da
não omissão, a lei da não sistematização e a lei da associa­
ção livre (E:1936, p. 85). Observemos como estas três “leis”
são, na verdade regras de ação, ou disposições intencionais,
paradoxais, pois se colocam entre o dever (sollen) e o poder
(kdnnen). Ao falar livremente (como se deve), descobrimos de­
terminações inconscientes (que não podemos antecipar). Mes­
mo ao suspender a sistematização (como se deve) o analista vê
surgir efeitos de insistência, resistência e repetição (como um
poder imanente à linguagem). Ao manter-se como guardião
da não omissão de pensamentos e lembranças (como se deve)
o analista sabe que de fato o analisante não consegue material
e estruturalmente dizer tudo (porque isso nao se pode).

381
Como já indiquei açima, o modelo reduzido desse tipo de
análise da palavra em Kant é a Tischgesellschaft, a sociedade dos
comensais, quiçá precursora da sociedade freudiana inaugurada
pelo banquete totêmico. Na conversação que se tem à mesa há
uma continuidade sutil de modo que a liberdade de cada um
de formular suas opiniões e comentários, de insistir ou desviar
o assunto não seja experimentada pelos outros como abuso ou
coerção. E a noção originada no século XVI (Elias, 1939, pp.
95-109) de pequena ética, ou seja, etiqueta, como regime de
regulação da sociabilidade humana (Civilização). Reencontra­
mos aqui a importância da ética da amizade, tão valorizada na
esfera do cuidado de si. Cada qual é um cidadão do mundo não
porque detenha e pratique o bom uso da razão ou do impera­
tivo categórico, mas simplesmente porque fala. Seu escopo não
é, portanto, nem o domínio dos universais da cultura, da lin­
guagem e do pensamento, nem do particular representado pela
língua civilizada e local, mas a esfera do singular da fala. São as
regularidades, os jogos repetitivos de linguagem, as táticas das
relações intersubjetivas, as estratégias do prazer e do desprazer,
os exemplos paradigmáticos, os casos. Ela está entre o privilégio
metafísico atribuído ao estudo da alma e o domínio técnico do
organismo pela medicina. Ela está entre o estudo dos funda­
mentos da cultura (Kultur) e da civilização (Zivilisation).
Quando os psicanalistas insistem na importância de dis­
tinguir o organismo do corpo e o psíquico da alma, eles estão
tentando demarcar as fronteiras de sua origem na antropologia
kantiana. Quando a psiquiatria delimita-se entre a ordem jurí­
dica (dever) e os processos neurofisiológicos (poder), ela reali­
za outra ocupação possível desse espaço. Finalmente, quando
as ciências humanas atravessam esse espaço com as antinomias
entre norma e função, gênese e estrutura —demarcando seu
triângulo específico formado por desejo, linguagem e trabalho
—, trata-se de outra estratégia de ocupação (Foucault, 1966).
A Antropologia situa-se no interior da obra de Kant em
uma linhagem muito curiosa. Ela se liga a um dos encontros

382
pessoais mais decisivos de sua formação filosófica. Em 1766,
Kant publica um opúsculo intitulado Sonhos d e um visionário
esclarecidos pelos sonhos da metafísica, que resulta da leitura do
livro Arcanos Celestes, do místico, poeta e inventor sueco Ema­
nuel Swedenborg (1688-1772). Tal livro narra as experiências
espirituais do poeta, suas visões do céu e do inferno, sua ca­
pacidade de falar com anjos e espíritos, seu encontro direto e
pessoal com o Senhor, a telepatia, a influência de outros mun­
dos sobre o nosso, a curiosidade dos espíritos sobre a alma dos
homens. Até então, Kant escrevera sobre temas correntes da
história natural (o envelhecimento da terra, a teoria dos ven­
tos, o terremoto de Lisboa, a natureza do fogo), da lógica (teo­
ria do silogismo, as grandezas negativas) e, principalmente, da
metafísica (demonstração da existência de Deus). O contato
com Swedenborg introduz uma perturbação aterradora: como
é possível que o desenvolvimento metafísico conduza ao mes­
mo ponto que uma revelação alucinada? O que separa a me­
tafísica de uma loucura bem organizada? Se Hume despertou
Kant de seu sono dogmático, foi Swedenborg quem despertou
Kant de seu pesadelo metafísico. A partir de então, será pre­
ciso estabelecer as condições e os limites do exercício da razão
fora dos quais ela não será outra coisa que falsa razão ou razão
enlouquecida. Será ainda necessário refundar a metafísica e
afastar novamente a hipótese de um Deus enganador.
Dois anos separam o opúsculo sobre o visionário sueco e
o Ensaio sobre as Doenças da Cabeça (1764), título que, aliás,
segue o método explicitativo da antropologia; K o p fé cabeça,
não m ente ou espírito. David-Menard (1996, p. 98) mostra,
rigorosamente, como os temas decorrentes do encontro com
a loucura reconhecida em Swedenborg se desdobram na filo­
sofia kantiana: a filosofia crítica como ciência dos limites da
razão, a separação entre o sensível e o supra-sensível, a nova
concepção sobre as modalidades, a teoria da negatividade e
a própria reaplicação do método cético. A teoria das modali­
dades terá papel decisivo na grande redução e na organização

383
lógica quaternária que Kant fará das categorias de Aristóteles e
sua duplicação pela teoria dos juízos.
Nela há duas incidências da negação: como categoria a
priori do entendimento (negação ontológica) e como forma
de juízo (negação proposicional). E nessa passagem que Kant
descobre o conceito de que o que não é impossível nem por
isso é possível. Reencontramos aqui o grande tema lacaniano
da disparidade entre o universal e o existencial. Da negação da
existência não decorre a não-universalidade, e da negação da
universalidade não decorre a não-existência. Segundo a teoria
de Kant, as duas primeiras categorias ou juízos encontram sua
síntese na terceira —por exemplo, a unidade da pluralidade
nos dá a totalidade; a particularidade da universalidade nos
dá a singularidade; e assim por diante. Há, portanto, duas in­
cidências de negação: o conflito real e o conflito dialético. O
conflito real prende-se à lógica da existência e da aparência;
o conflito dialético, ao domínio do universal e dos juízos. A
disparidade entre essas duas formas do negativo deve ser re­
duzida ao mínimo na atividade do conhecimento ou na reta
ação moral, mas é ela que aparece na experiência examinada
pela antropologia e que define o campo do patológico (David-
Ménard, Op. Cit., pp. 223-239).
Se a negação é o elemento que faz o transporte do conflito
real para a contradição, haverá sempre uma espécie de inade­
quação entre o objetai e o objetivo, que é o que encontramos
disperso na Antropologia (Ibid., p. 266). Essa inadequação, em
suas diferentes formas específicas de fracasso da alienação, re­
cebe o nome de patológico. O que chamamos de patológico é
antes de tudo uma determinada experiência antropológica de
perda da experiência. Usualmente isso significa declínio da nar-
ratividade, corrupção do vínculo social autêntico, degrada­
ção das formas expressivas coletivas, declínio da sobreposição
entre autoridade e o agente que a pratica. Mas esta perda da
experiência é no fundo o grande tema definidor da moderni­
dade, e como tal está sujeita a inúmeras, contínuas e concor­

384
rentes reinterpretações. Ela pode se exprimir como descom­
passo entre regras simbólicas e suas condições de aplicação, se
pensamos na tríade anomia-egoísmo-altruísmo desenvolvida
por Durkheim (1897). Ela pode ser descrita por meio do sen­
timento de inadequação entre as expectativas simbólicas de
reconhecimento do desejo, proporcional imaginarização dos
meios pelos quais este reconhecimento se efetiva com a con­
seqüente inversão do sentido das trocas sociais, em acordo
como a noção de fetichismo proposta por Marx (1867). Ela
pode também se apresentar pela percepção crescente da con­
tingência real dos atos nos quais tal reconhecimento se verifica
como meio de reprodução e continuidade da racionalização
da vida, ou seja, como desencantamento do mundo segundo
expressão de Max Weber (1946). Nosso argumento aqui é de
que este processo teria sido percebido e tematizado por Kant
precisamente em uma de suas obras consideradas menores, a
Antropologia do Ponto de Vista Pragmático.
Até aqui, estamos sugerindo que há uma ligação constitu­
tiva entre o espaço firmado pela antropologia kantiana e a clí­
nica psicanalítica. Lacan afirmou diversas vezes que o sujeito
da psicanálise é o sujeito da ciência, cartesianamente conside­
rada. Contudo, nao basta a existência de um regime específico
do sujeito para que exista o dispositivo no qual ele poderá ser
tratado. Podemos suplementar a fórmula lacaniana da seguin­
te forma: se o sujeito da psicanálise tem como condição o
sujeito cartesiano, a clínica psicanalítica tem como condição
a antropologia kantiana. Se o sujeito cartesiano exprime um
regime de divisão e alienação com relação ao pensamento e a
existência, a clínica kantiana exprime um regime de transfor­
mação do outro, pela linguagem, em situação intersubjetiva
e determinada pela divisão e alienação entre ser e fazer; entre
a intenção e o ato; entre o pensamento e o pensado; entre o
poder e o dever. Contudo, o traço mais distintivo dessa apro­
ximação reside no tipo de relação entre o saber firmado pela
clínica, que é, antes de tudo, um saber descritivo, e a aspiração

385
do psicanalista que é, dp alguma forma, agir sobre o patológi­
co e transformá-lo.

Porque é impossível conceber nem a ex periência como


tal, nem como estrutura do neurótico moderno, que mes­
mo que não saibam, é coextensiva do sujeito d a clin ica , na
medida em que seu estatuto clin ico e tera pêu tico é dado
pela psicanálise. (...) A práxis psicanalítica é literalmente
o complemento do sintoma (...) E pela apreensão de certa
maneira de interrogar o sofrimento neurótico que se com­
pleta, na cura, a sintomatologia. (SXIII: 1965-66)

Observe-se como neste trecho há uma relação de alternância


entre experiência e estrutura, e como essa alternância se repete
entre estatuto clínico e terapêutico. Isso confere com a ideia de
que há uma coextensão entre a clínica e o completamento do
sintoma na práxis. O sintoma, tal como é estabelecido nesta
experiência que é a clínica, é um sintoma incompleto, tanto
por sua particularidade quanto por sua natureza intersubjeti-
va. Isso é fundamental para desequilibrar a positivação do sin­
toma em ordem descritiva de aspiração universal. Isso sugere
que há um saber do qual a psicanálise depende como práxis.
Um saber popular, distinto do conhecimento e da razão “sau­
dável”, dependente de uma narrativa e das práticas de retorno
a si: “Porque a questão começa a partir de que existem tipos de
sintomas. Existe uma clínica. Só que, vejam: ela é anterior ao
discurso analítico e, se este lhe traz uma luz, isso é seguro, mas
não é certo” (OE: 1975b, p. 554).
A afirmação pode ser lida em dupla chave. Ela confere com
a ideia de que os sintomas dos quais a psicanálise se ocupa fo­
ram, de alguma forma, descritos pela tradição clínica, médica
ou psiquiátrica que a antecedeu. Mas também sugere uma re­
lação de anterioridade entre a experiência da clínica e o discurso
da psicanálise, discurso aqui na acepção de tratamento.
Um dos objetivos desse exame sobre a formação do espaço
do patológico é mostrar que a clínica não deve ser compreendi-

386
da exclusivamente como ciência, mas como experiência, ou seja,
“nos termos de uma cura que será sempre patológica e o pato­
lógico que é sempre uma forma de cura” (Dean, 1992, p. 243).

387
C A P ÍT U L O 11

O N A S C IM E N T O DA C L ÍN IC A

Certamente não sou favorável a abandonar os


métodos inócuos de tratamento.
Para muitos casos eles são suficientes e, quando
tudo está dito, a sociedade humana não tem mais
uso para o furor sanandi, do que qualquer outro
fanatismo.
Freud

P
ODEMOS DATAR O NASCIMENTO DA CLÍNICA MODERNA ENTRE
o final do século XVIII e início do século XIX. Esta corres­
ponde a uma composição de práticas, discursos e dispositivos
bastante heterogêneos. A clínica nao se formou em torno de
um objeto comum, o corpo e suas afecções, mas em resposta a
demandas múltiplas cuja raiz de legitimação social deriva dos
sistemas jurídico, moral e religioso, dos saberes empíricos, ins­
titucionais e teóricos da medicina e do campo das práticas de
cura, tratamento e terapia. A clínica resulta do encontro de três
personagens: o cirurgião (cirurgião barbeiro errante, parteiro,
curandeiro), o médico (servidor de famílias abastadas, admi­
nistrador hospitalar) e o professor-pesquisador (estudioso da
anatomia, teórico do funcionamento do corpo). Ela é também
a fusão de dois lugares: o hospital e a universidade. A primeira

389
linha formativa da medicina clínica está ligada à observação e
a fundamentação do saber sobre o corpo, saber derivado do
contato cotidiano com o doente. Contato que se desdobra na
prática da autópsia e da dissecação, com cadáveres. A segunda
linha formativa prende-se aos estudiosos das chamadas ciên­
cias auxiliares que, desde o laboratório, o jardim botânico e
a bancada de experimentação, testam hipóteses etiológicas e
descrevem o funcionamento dos tecidos. A terceira linha de
força é representada pelos filósofos e políticos interessados em
dar expressão coletiva ao projeto desta nova medicina: a epide-
miologia, o higienismo e o vitalismo são parte de seu legado. A
fusão entre essas três linhagens:-a clinicalista, a fisiologista e a
vitalista é contemporânea de uma mudança paradigmática no
estatuto da medicina.
O nascimento da clínica é, antes de tudo, um aconteci­
mento na paisagem da medicina social (Foucault, 1974, pp.
179-198). Entenda-se por isso um imenso empreendimento
estatal, originado na Prússia do início do século XVIII, e de
lá disseminado para o restante da Europa. O modelo dessa
normalização do médico replica o bem-sucedido programa
de formação de exércitos profissionais, no qual a Prússia foi
também pioneira. Secundariamente, essa normalização é apli­
cada à relação entre médico e paciente. Temos, entao, o sur­
gimento de funcionários médicos e o controle administrativo
da profissão. Torna-se possível uma polícia médica responsável
pelo mapeamento e pelo controle da circulação de pessoas,
seus amontoamentos, sua dispersão. A metáfora da circulação
estende-se para o planejamento e a distribuição dos recursos
hospitalares, da água, do ar e do solo. Em meados do século
XVIII não se trata ainda de uma medicina das pessoas e dos
corpos, mas dos recursos ambientais e da salubridade. Ela é
primeiramente exercida sobre os pobres, cuja condição era in-
trinsecamente associada à insalubridade, à falta de higiene, à
hiperconcentraçao populacional. Medicina das constituições,
ela se preocupava com a associação entre doenças e lugares e

390
estações do ano. A medicina social era um empreendimen­
to de engenharia das populações, quer sob os auspícios dos
interesses monárquicos em aumentar seu poder pela via do
incremento de suas populações, quer sob o interesse nos novos
médicos ideólogos como Cabanis e Maine de Biran, voltados
para a expressão dos ideais iluministas e revolucionários. Com
a medicina social surge o higienismo e sua política de controle
dos nascimentos, das mortes, das epidemias e endemias, um
sistema inédito de normalização da prática médica que atinge
suas corporações e as universidades bem como uma aliança
inexorável com o projeto de fundamentação da medicina na
antropologia. E no interior deste sistema que a medicina es­
tabelece, em torno do tema da sexualidade e da reprodução,
ao mesmo tempo uma atitude policial e de aliança com as
famílias (Donzelot, 2001).
A este primeiro movimento da medicina social acrescenta-
se o abandono da medicina dos humores e a formação do con­
senso de que a experiência clínica deriva da observação contro­
lada e continuada dos doentes. Entre 1750 e 1850 abrem-se
novos hospitais em Viena, Londres, Copenhagen e Pádua,
orientados para a nova atitude clínica baseada na observação
do paciente e na ligação entre sintomas e lesões orgânicas. Sy-
denhan é recuperado como modelo desta nova atitude: “(■■■)
aquele que pretender apresentar uma história das doenças de­
verá renunciar a todas as hipóteses filosóficas e perceber com
muita exatidão os mais ínfimos fenômenos das doenças que
são claras e naturais” (apud Foucault, 1973-74, p. 4).
O terceiro fato que precede o nascimento da clínica mo­
derna remonta ao ensino da medicina que deixa de se orien­
tar pelo teatro nosológico dos casos magnos e concentra-se
na observação compartilhada de processos patológicos e tera­
pêuticos, do qual a Escola de Paris logo se torna um modelo
exportado para os outros centros (Corbin et al., 2005). Esse
programa se aproveita da concentração crescente de massas
de doentes nos hospitais, exigindo novas estratégias de poder

391
para sua administração p controle, mas também, oferecendo o
cenário ideal para a observação controlada das variedades do
patológico. O movimento da medicina clínica se exprime em
duas etapas: a partir de 1750 está caracterizado pela formação
de uma cultura clínica baseada na observação e, entre 1800 e
1850, pelo desenvolvimento dos instrumentos que melhoram
e refinam as técnicas diagnosticas. O speculum (1812), o oftal-
moscópio desenvolvido por Helmholz (1851), o uretroscópio
(1853), a medição da pressão arterial (1860), são extensões de
um primeiro caso paradigmático: o estetoscópio.
Proposto em 1761, por Auenbrugger, o estetoscópio deriva
das técnicas de auscultação dos compradores de vinhos, que
precisavam inferir características interiores da uva pelo som
que produziam ao serem tocadas. Contudo esta técnica re­
volucionária, de fácil aplicação e ademais extremamente útil
para realizar diagnósticos prementes, só foi empregada em lar­
ga escala quarenta e cinco anos depois. O motivo deste atraso
é semelhante ao que levou ao desenvolvimento tardio do uso
do termômetro para medir as febres (1840) (Faure in Corbin
et al., 2005, p. 23). Uma clara separação semiológica entre
signos e doenças condiciona a disseminação de tais técnicas: as
febres, por exemplo, eram consideradas doenças em si; quan­
do estas se transformam em meros signos de diferentes estados
patológicos as técnicas de observação podem ser aprofunda­
das, do sentido qualitativo ao quantitativo.
A ligação entre uma semiologia consistente com uma diag­
nostica segura dependia de duas tarefas que escapavam par­
cialmente aos domínios dos clínicos: a criação de um sistema
classificatório universal e organicamente referenciado e a in­
vestigação controlada das causas etiológicas. Estas duas tarefas
ficaram a cabo de uma segunda linha de fundadores da clínica
clássica, a saber, os fisiologistas. Considerados médicos de se­
gunda classe, sem o mesmo prestígio dos clínicos, nem a mes­
ma influência dos médicos-sociais, os fisiologistas tinham um
contato limitado com pacientes. Eram, em geral, professores

392
universitários que prolongavam por um lado as regras classi-
ficatórias propostas por Cuvier para os seres vivos e por outro
investigavam os agentes causais, os mecanismos e as redes de
determinação do interior do organismo. Eram químicos, físi­
cos, entomologistas e botânicos, como Pasteur e Koch, quan­
do não possuíam formações secundárias em medicina, como
Bichat, Magendie e Claude Bernard. Há aqui uma espécie de
distribuição de funções: os clínicos descrevem a “marcha da
doença”, os fisiologistas inferem suas causas ou agentes pató-
genos. Por exemplo, em 1823, Louis descreve a evolução da
difteria, em quatro etapas: angina vermelha, falsa membrana,
disfonia e sufocação final. Os fisiologistas procuram aplicar
sob esta sequencia as hipóteses patogenéticas em nível de te­
cidos (mecanismos), células (micróbios) e moléculas (intoxi­
cação). Enquanto os clínicos produzem histórias naturais os
fisiologistas inferem nexos causais entre pontos desta história.
Os fisiologistas verificam a realidade própria da história clí­
nica e neste sentido suprimem o conjunto para dedicar-se às
pequenas ligações. Uma boa história clínica deve ser plausível
reunindo de forma persuasiva e convincente o maior número
de signos coligidos em hipóteses verossímeis. Uma boa teoria
etiológica, ao contrário, preocupa-se com o nível de realidade
e de afetação entre causas e efeitos, de forma genérica e induti­
vamente verificável. Aos primeiros cabe buscar a verdade, aos
segundos investigar o Real.
Em 1703, Portugal e Inglaterra assinam um tratado co­
mercial por meio do qual os tecidos ingleses não pagariam
impostos ao serem comercializados com Portugal e os vinhos
portugueses tinham isenção equivalente na Inglaterra. Como
a viagem era longa, os vinhos portugueses tiveram de ser forta­
lecidos com álcool. Isso originou o Vinho do Porto. Porém, o
álcool utilizado para tanto fora destilado predominantemente
em recipientes de chumbo, deixando resíduos que se transpor­
taram para o vinho. A ingestão continuada de chumbo produz
danos aos rins. O mau funcionamento dos rins favorece o acú­

393
mulo de ácido úrico n^s extremidades do corpo. O depósito
de ácido úrico nos tecidos gera dor. Foi assim que a sociedade
britânica do século XVIII, tomando gosto pelo vinho do Por­
to, veio a sofrer de uma epidemia de gota. Ora, em sentido
clínico seria de todo falso dizer que o Tratado de Methuen é a
causa da gota? A analogia é com raciocínios do tipo: obesida­
de causa diabetes, a diabetes causa insuficiência renal, logo a
obesidade causa a insuficiência renal. Contudo, em sentido fi­
siológico esse raciocínio é incorreto, pois significaria romper o
princípio da maior proximidade possível entre causa e efeito e
o princípio da homogeneidade ontológica entre causa e efeito.
Ademais a análise indutiva de tipo estatístico não incide sobre
fatos singulares ou casos individuais, mas sobre classes de fa­
tos, acontecimentos repetitíveis e genéricos (Fagot-Largeault,
2006, pp. 185-200).
Um caso de grande interesse para nossos propósitos diz
respeito à relutância com a qual tanto clínicos, quanto fisio-
logistas e ainda uma parte dos médicos-sociais, lidaram com
o problema da dor e do sofrimento dos pacientes (Faure, Op.
Cit., pp. 26-32): Vespau declarou em 1840 que “evitar a dor
por meios artificiais é uma quimera”; Magendie condenou
moralmente a anestesia em 1847; há um incrível discurso de
resistência ao uso da morfina ao longo de todo século XIX. A
isso se acresce o preconceito médico acerca do exagero da dor
pelos pobres e a introdução de técnicas de estimulação direta
da dor (pelo uso do fogo ou de agulhas). Ora, a recusa em
admitir que a redução terapêutica da dor é finalidade da medi­
cina deve-se a diferentes motivos, que ajudam a compreender
o hibridismo formativo da clínica clássica. Para os fisiologistas
a dor acusa a presença de um elemento subjetivo que interes­
sava caracterizar como indiferente à ordem dos procedimentos
investigativos. Para os clínicos a dor era a fonte mesma de seu
savoir-faire, os tipos de dor, o discurso da dor era a matéria
prima de sua atividade, diminuí-la ou evitá-la simplesmente
complicava a atividade diagnostica. Finalmente, para a medi­

394
cina social mais conservadora, a dor era, em acordo com a he­
rança crista, sinal da graça e sofrimento de expiação punitiva.
A medicina social progressista reverteu esta concepção, con­
servando sua essência, na ideia de que a capacidade de sentir,
ressentir e suportar a dor é uma virtude moral. Compreende-se
assim tanto a admissão tardia dos procedimentos analgésicos
e anestésicos (apesar da disponibilidade técnica) quanto sua
introdução à partir da odontologia, área na qual a experiência
da dor parecia mais central para a demanda dos pacientes.
As técnicas de supressão da dor, entre elas o hipnotismo
assinalam uma dissociação importante entre o tratamento,
como ação sobre as causas e a terapia, como alívio e redução
do sofrimento. O desenvolvimento da semiologia faz com que
paciente e médico não falem mais a mesma língua: a popular
tísica torna-se tuberculose, os nomes das doenças se latinizam.
Com isso a antiga arte da interpretação do sofrimento cole­
tivo, seja das famílias, seja das pessoas, torna-se sinônimo de
obscurantismo. Por outro lado, o fator político representado
pela libertação moral das doenças, torna-se potencialmente
aproveitável. E por isso que ao lado da afirmação científica
da clínica clássica, como estrutura organizada de funções e
procedimentos, vemos surgir inúmeros projetos que tentam
replicar a clínica na esfera deste sofrimento moral flutuante: a
homeopatia, o magnetismo, a frenologia, a teoria da heredita­
riedade e das constituições. Elas refletem uma aliança entre a
medicina-social e a medicina-clínica, assim como a profilaxia,
as campanhas de vacinação e higienização nasce da aliança en­
tre medicina-social e medicina-fisiológica.
Tratar uma epidemia é um esforço médico-policial; tratar
um doente mental é um assunto médico-jurídico; tratar uma
criança ou uma mulher, um problema médico-moral. Essa
nova forma de medicina baseia-se na autoridade transferida
pelo Estado sob o domínio dos corpos, pela ciência universitá­
ria sob o domínio dos organismos e pela moral sob o domínio
da individualização do patológico. O surgimento da medicina

395
social é contemporâneo í‘do renascimento da clínica e da era
das descobertas fisiológicas, mas isso nao significa que estejam
todas estas formas da medicina regidas pela mesma estraté­
gia de biopoder. A medicina deixa de ser apenas um corpus
de técnicas e saberes necessários à cura; agora ela prescreve o
homem saudável como homem-modelo (Foucault, 1963, p.
39), alia-se ao programa das seguradoras de vida na predição
da extensão da vida (1887) (Postel-Vinay & Corvol, 1999),
com a educação, com o exército e com o mundo do trabalho,
na promessa de qualificar a vida. A clínica, como parte des­
te contexto, interessa-se pelo desvio e pela fenomenalização
das aparências que constituem o campo do patológico. Como
mostrou Canguilhem (1990, p. 188), há uma irreversibilidade
da normatividade biológica, definida pela ciência fisiológica,
à norma social, definida pelas práticas concretas de vida que
definem a saúde em cada momento.
A época em que Kant escrevia sobre os delírios de Sweden-
borg, a representação social da medicina encontrava-se ligada
a uma série de técnicas de vida e conservação da saúde que se
apresentavam como concorrentes e dispersas entre si. O ponto
de unificação teórica era ainda a síntese feita por Galeno (130-
220) da medicina hipocrática. Seu modelo patológico era ba­
seado em três tipos de doenças: dos órgãos específicos, dos te­
cidos e dos humores. Daí que o prestígio social e a eficácia real
da cura praticada pelos cirurgiões barbeiros não estivesse tão
distante dos sábios universitários, como satirizou Moliére em
1673. Começa aqui um processo de retomada da antiga ideia
de clínica, que não fazia parte da prática e da conceitografia
médica da medicina inspirada por Galeno.
Um dos elementos mais curiosos dessa concepção dizia res­
peito ao funcionamento do coração. A concepção de Galeno
prescrevia que o sangue fluía através de poros invisíveis do
ventrículo direito para o esquerdo; ali ele se enchia de pneu-
ma e calor. Os poros formavam a rete m irabile que Galeno
afirmava ter descoberto em suas dissecações. Ocorre que ja­

396
mais se encontrou novamente tal estrutura no corpo humano.
Ao que tudo indica, Galeno dissecara apenas porcos, em cuja
anatomia cardíaca se verifica estrutura similar. O mais incrí­
vel é que, desde Vesalius (1515-1558) e Harvey (1578-1657),
sabia-se teórica e empiricamente que a teoria da circulação de
Galeno era incorreta e dispunha-se de uma concepção melhor
(Lima, 2003). No entanto, este saber factual simplesmente
não era capaz de afetar a lógica da ação terapêutica, nem sua
razão diagnostica. Em 1764, Meckel, por exemplo, ainda estu­
dava as alterações do encéfalo na mania e na tuberculose pelo
método racional de pesagens de volumes iguais da massa cefáli-
ca dos pacientes. A balança, e não o estetoscópio, era o principal
instrumento da cura e da pesquisa médica (Foucault, 1963, XI).
Isso é compreensível quando nos lembramos que estamos no
quadro de uma teoria dos elementos, e da diferença material
entre eles, na produção da doença. A ideia de proporção tinha
uma denotação concreta na massa corporal e nos tecidos.
Seria, portanto, incorreto dizer que são os novos avanços
da fisiologia que desencadeiam a formação da clínica como
uma estrutura. O caso da rete mirabile mostra que estes avan­
ços eram em parte bem anteriores ao século XVIII. O que os
avanços técnicos e os saberes fisiológicos tomam assimiláveis
e realmente funcionais é sua integração sob a forma de uma
estrutura: a estrutura da clínica. Como vimos, tanto no âm­
bito da absorção da técnica, quanto no âmbito da concepção
de funcionamento do organismo e ainda na atitude política
diante da dor, esta estrutura integra funções socialmente he­
terogêneas em um mesmo sistema prático. Ao mesmo tempo
a emergência de uma estrutura, assim considerada, significa a
negação de uma série de saberes e clínicas sob os quais esta se
impõe (como a medicina galênica), a diferenciação em relação
a outras práticas (como a cirurgia) e a comparação desta estru­
tura em âmbitos ontológicos e epistêmicos alternativos.
Uma mutação decisiva na estrutura do saber permitiu que
a pergunta inicial feita ao doente não fosse mais “O que você

397
tem?”, mas “Onde lhe glói?” (Ibid., XVIII). A medicina antiga
assimilava ao processo da cura o saber que o sujeito tinha so­
bre sua doença. Ao modo de um tradutor o médico conversava
com a doença. Agora este saber é substituído pela relação com
um informante que descreve, mas não conjectura ou nada deve
supor sobre seu mal-estar. O paciente só pode voltar a falar, em
acordo com a interpretação corrente do gesto fundamental de
Freud, se um dia ele for silenciado. O que estamos vendo é que
este silenciamento não é tão antigo quanto poderia parecer. Por
outro lado se a clínica deixa de ser uma relação agonística e retó­
rica entre saberes, o clínico assume a atitude humilde e discreta
daquele que investiga. O clínico passou pela lição de Kant, e
agora sabe os limites e condições de seu saber.
Neste novo dispositivo, o olhar ocupa posição central (Ibid.,
p. 121). Olhar purificado, regulado e administrado por uma
série de operações nas quais este funciona como um espelho
dotado de memória. A personalidade, antes considerada uma
matriz diagnostica importante —uma vez derivada do quadro
da teoria dos humores, temperamentos ou formas de caráter
(sanguíneo, biliar, melancólico) —torna-se agora um obstáculo:

O instrumento de medida é pessoal e único. A avaliação


subjetiva diminui a precisão. Quem pode quantificar a náu­
sea ou a severidade da dor? Sintomas podem ser esquecidos,
suprimidos ou amplificados quando filtrados pela grade da
personalidade. (Wyngaarden & Smith, 1985, p. 16)

Na citação acima, extraída de um conhecido livro de refe­


rência da clínica médica, vemos como a personalidade do pa­
ciente, bem como a subjetividade do clínico, aparecem como
fonte de imprecisão. A personalidade é considerada como uma
grade, um filtro que desvia e relativiza, dificultando o acesso
purificado e translúcido do que interessa saber. A própria ideia
de que o médico possui uma personalidade é efeito de sua
individualização social. A avaliação só é subjetiva, pois o clí­
nico deve interpretar e ponderar suas diferentes expressões de

398
modo a reduzi-las a uma identidade. Há, então, uma oscilação
perpétua entre o olhar que observa e o olhar que julga. Daí a
afinidade histórica entre a prática clínica e a descrição visu­
almente comparativa, pois a ausência ou o retardo do juízo
clínico é sempre remetida à insuficiência de descrição.

A clínica, isto é, a apresentação do doente no interior de


uma encenação em que o interrogatório do doente serve
para a instrução dos estudantes e em que o médico vai
atuar no duplo registro daquele que examina o doente e
daquele que ensina os estudantes, de modo que será, ao
mesmo tempo, aquele que cuida e aquele que detém a
palavra do mestre. (Foucault, 1973-74, p. 232)

Clinicar é dobrar-se, inclinar-se diante do leito do paciente


e interpretar os sinais significativos de seu corpo. Em outras
palavras, aplicar sobre esse corpo determinado olhar e derivar
desse olhar um conjunto de operações. Lembremos que antes
de adquirir essa conotação metodológica, o termo cliné, do
qual deriva a palavra clínica, alcançou dignidade filosófica na
obra de Lucrécio (98-55 a.C.). Epicurista imerso nas práticas
do cuidado de si, para ele o clinamen designava uma declina-
ção ou um desvio original dos átomos, representando o núcleo
central de sua concepção do acaso como princípio geral de
sua física. Já em Epicuro, o termo adquiria importância para
assegurar a existência da liberdade e da moral. Em Lucrécio,
no entanto, a noção de clinamen assume uma conotação mais
ampla, justificando uma teoria radicalmente materialista, mas
não determinista da natureza. Um materialismo não determi­
nista, apoiado na ideia de desvio fundamental, como fonte e
origem de todo sistema, não implica, para Lucrécio, uma for­
ma qualquer de irracionalidade, mas de inclusão lógica do aca­
so. A inclusão necessária do acaso (tyché) no interior mesmo
da determinação lhe permitiu postular que as doenças possu­
íam causas materiais, a saber, organismos vivos invisíveis que

399
penetravam no corpo, um função de circunstâncias acidentais
da vida das pessoas, causando a doença.
Observe-se como é justamente esse compromisso entre
necessidade e acaso que reencontramos na atividade clínica
como prática reconstrutiva. Ela se mostra admiravelmente na
noção de caso (casus), ou seja, aquilo que cai, aquilo que acon­
tece como quaestio e contingência. A noção de clinam en reúne
duas conotações importantes: (1) inclinar-se diante do pacien­
te, aproximar o olhar, respeitar sua condição e (2) captar a ló­
gica do desvio, perceber declinaçÕes, integrar intelectivamente
acaso e necessidade.

11.1. A ESTRUTURA DA CLÍNICA CLÁSSICA


O olhar que organiza a clínica emergente no século XVIII
dá forma geométrica e constrói figuras no espaço que exem­
plificamos pela antropologia kantiana. Ou seja, ele transforma
metodicamente o que se mostra como aparência em signos e
fenômenos cognoscíveis, voltando à já mencionada citação de
Sydenham (1784):

E preciso que aquele que escreve a história das doenças


observe com atenção os fenômenos claros e naturais das
doenças, por menos interessantes que lhes pareçam. Deve-
se nisso imitar os pintores que, quando fazem um retrato,
têm cuidado de marcar até os sinais e as menores coisas.
(apud Foucault, 1973-74, p. 4)

Portanto, a doença tem uma história e uma geografia nas


quais figuram-se momentos fulgurantes, retratos instantâneos
que é preciso reconhecer. A anamnese, ou a arte de trazer de
novo à memória, é uma história composta por umamulti­
plicidade de histórias: história social da pessoa (que inclui as
factualidades de sua identificação), histórico institucional, his­
tória da queixa e da doença atual, história das afecçÕes médi­

400
cas pregressas, história da família, dos hábitos, dos ambientes,
história dos sistemas orgânicos individualizados. História que
nao está contida em um espaço fechado de possibilidades pré-
definidas, mas aberta a uma redescrição indefinida, ao fecha­
mento e abertura, ao modo de um hipertexto. A ideia de que a
doença é como um quadro em movimento permite estabelecer
analogias de grau e distância entre formas, de contraste e in­
tensidade entre cores. Assim como o pintor apreende em um
golpe do olhar o movimento de uma cena, o clínico constrói
a doença como um quadro. Vimos como a identificação da
racionalidade do processo e a integração das causas recorta a
narrativa clínica. Disso decorre a comparação possível entre
gêneros, famílias e espécies de doenças. Estamos diante de um
olhar que é antes qualitativo do que quantitativo. Daí a insis­
tente presença de termos metafóricos no discurso clínico: uma
dor aguda, um espasmo surdo, uma tosse seca.
Voltemos às operações fundamentais do olhar clínico. Elas
dividem-se em procedimentos classificatórios (taxonomia) e
procedimentos ordenadores (mathesis). A anatomia compara­
da de Cuvier (1769-1832), capaz de organizar a totalidade da
vida (incluindo achados fósseis) em famílias, classes, gêneros
e espécies é um exemplo chave para a classificação semiológi-
ca. A escola escocesa dos médicos sistemáticos, como Hunter
(1718-1793) e Cullen (1712-1790), que postula o raciocínio
clínico baseado em oposições fundamentais (excesso ou falta,
traumático ou funcional, etc) é um exemplo significativo dos
procedimentos classificatórios de linhagem diagnostica. As es­
colas fisiológicas francesas lideradas por Pasteur (1822-1895)
e alemã, representada por Koch (1843-1910), são exemplos do
desenvolvimento de discursos ordenadores no âmbito da etio-
logia. Finalmente a escola médica de Viena, de Skoda (1805-
1881) e Semmelweis (1818-1865), ao investigar a reatividade
das doenças a determinantes diversos, é um bom exemplo do
desenvolvimento de procedimentos ordenadores de natureza
terapêutica (Oliveira, 1981).

401
A noção genérica cfe tratamento (B ehandlung, Treatment,
Traitment) designa originalmente o trabalho da experiência e
do ofício de transformação. Podemos agora afirmar que, com
a modernidade clínica, a noção adquire a conotação condi­
cionada pelo emprego de um método. O tratamento passa
a designar o conjunto de ações tomadas, prescritiva ou pros-
critivamente, as observações realizadas, os atos diagnósticos
e a pesquisa das causas. Pode-se dizer que o tratamento é o
exercício articulado da clínica em um caso ou um grupo de
casos. A expressão tratamento possui valor metafórico quando
designa o conjunto deste processo e valor metonímico quan­
do representa uma de suas etapas que subsume o conjunto.
Diz-se, por exemplo, que o tratamento apresenta resultado,
no sentido de que a terapêutica apresenta resultados.
Classificar significa construir semelhanças que se repetem
de modo a incluí-las em um conjunto ou classe. Ordenar, por
sua vez, remete à descoberta das regras de formação que pre­
sidem a articulação entre os diferentes tipos de sinais. Além
disso, faz parte da clínica considerar que o quadro da doen­
ça se expõe sobre o cenário de uma constituição. O termo
constituição remete àquilo que é próprio da doença naquele
indivíduo. E tanto o que expõe e predispõe o paciente à en­
fermidade quanto o que nela se deve distinguir como sua par­
ticularidade. Uma constituição frágil pode predispor alguém
a gripes, mas o enfraquecimento causado pela gripe não deve
ser confundido com a fragilidade idiopática de sua constitui­
ção. A constituição não é apenas um fato individual do do­
ente. Há uma constituição ligada ao espaço, como as cidades
onde vigoram certas epidemias, e ao tempo, como certas épo­
cas do ano nas quais tipicamente se produzem determinadas
enfermidades. Um ponto que deve ser ressaltado aqui é que o
tema da constituição não interfere diretamente nas operações
clínicas. O clínico deve contar com a constituição, ponderar
seu valor na emergência e na evolução do quadro, mas não
agir sobre ela.

402
Podemos comparar o funcionamento articulado dessas
operações de classificação e ordenamento com a construção e
o domínio de uma espécie de linguagem. De um lado, há uma
semântica. Por meio dela se determina o significado clínico de
signos, traços, sintomas e síndromes. Há signos icônicos, como
uma irrupção cutânea; signos indiciais, como a qualidade dos
excrementos; e signos simbólicos, por exemplo, a distância en­
tre as contrações antes do parto. Além de uma semântica, é
preciso estabelecer uma gramática, contendo as regras de for­
mação e transformação das figuras patológicas segundo uma
ordem que permite antecipação e previsibilidade. A base dessa
gramática se divide entre os aspectos morfológicos, fornecidos
pela anatomia; os aspectos fisiológicos, fornecidos pela físico-
química da matéria viva; e os aspectos funcionais, dados pelas
finalidades específicas dos órgãos e tecidos.

(...) a doença é o terreno de uma verdadeira linguagem,


visto que há substância, o sintoma, e uma forma, o signo
(uma ordem biface significante-significado); uma com-
binatória multiplicadora; um significado nominal como
nos dicionários; e uma leitura, o diagnóstico, que é, aliás,
como para as línguas, submetida a um aprendizado. (Bar-
thes, 2001b, p. 244)

Entende-se, assim, por que na raiz do projeto clínico mo­


derno reside o estabelecimento de uma semiologia, isto é, uma
classificação e organização de signos, índices, sintomas e tra­
ços que devem se apresentar como diferenças significativas ao
olhar clínico. Por exemplo, a febre, as alterações na coloração,
na textura ou na forma de uma região do corpo são signos
que se articulam de forma simultânea e sucessiva. É esta ar­
ticulação que deve ser captada pelo olhar clínico, como uma
unidade dotada de valor e significação. Lembremos que o ter­
mo “semiologia” refere-se à ciência do signo (semeion), e que
Saussure assim definia o campo de estudos sobre a linguagem,

403
do qual a lingüística dqveria fazer parte. Nos livros de medi­
cina dos séculos XVI e XVII encontra-se também o termo
semiótica para designar essa parte da clínica. Ao estabelecer a
semiologia como fundamento, a clínica médica, em particular,
mas também qualquer outra clínica que se pretenda como tal,
adota, mesmo tacitamente, uma concepção sobre a linguagem
circunscrita aos signos que lhe dizem respeito. Nos primórdios
da clínica moderna, essa concepção presumia o princípio de
que as doenças possuem uma estrutura alfabética e seu estudo
corresponde à reconstrução de uma língua:

As observações particulares, isoladas, são para a ciência o


que as letras e as palavras são para o discurso; este só se
funda com o concurso e reunião das letras e das palavras,
cujo mecanismo e valor é necessário ter estudado e medi­
tado antes de fazer dele um bom e útil emprego; o mesmo
se dá com as observações. (Doublés, 1811, apud Foucault,
1963, p . 134)

Daí que o olhar clínico opere sobre a doença uma redução


nominalista. A essência de uma enfermidade é equivalente à
essência de uma palavra, com suas oposições, seus modos de
emprego, suas declinações e regularidades. Ao contrário dos
botânicos e zoologistas, que devem lidar com uma redução
nominalista semelhante, mas num espaço de categorias con­
vencionais, a semiologia clínica presume um sistema fechado,
mais próximo do que se encontra na química. Todavia, a se­
miologia deve incluir ainda uma sensibilidade específica desse
olhar. E ele que permitirá o golpe de vista clínico, a captura
da gestalt fundamental, a sobrevalorização do pequeno detalhe
distintivo. Não se trata, portanto, de um olhar mecânico, mas
de uma experiência.
Na clínica, é decisiva a diferença entre sintoma e signo. Na
sua acepção antiga, o sintoma indicava um estado mórbido
a ser decifrado, mas não necessariamente uma morbidez do
corpo. Daí que sua interpretação implicasse uma espécie de

404
partilha entre o natural e o sobrenatural, entre o sofrimento
necessário e o contingente, entre o mal-estar social e o indi­
vidual. A distinção entre o mal-estar do corpo e da alma fazia
parte dessa partilha, mas não era a mais importante nem a
única divisão possível. O surgimento da clínica moderna, no
século XVIII, altera esse método da partilha. Agora o sintoma
está mais próximo da matéria de linguagem antes de ser re­
cortada em unidades significantes. Há o sintoma, no sentido
lato, que inclui e se mistura com o mal-estar e o sofrimento, e
que se expressa, como vimos, de forma narrativa. Este é trans­
formado em sintoma, no sentido estrito, pela operação clínica
do olhar. O signo se sanciona em sintoma quando toma lugar
numa descrição e é suplementado pela consciência do médico.
É este movimento que torna o sintoma, como queixa genéri­
ca, ao sintoma no sentido clínico. Essa passagem implica sua
captura no discurso e sua sanção na ordem médica.
Como produto dessa redução, o signo admite um triplo
valor: anamnésico, prognóstico e diagnóstico. O signo clínico
pode ser ainda decomposto em unidades menores, os traços.
O traço funciona como determinativo do valor do signo. Ele
introduz oposições paradigmáticas pelas quais um signo ad­
quire, por exemplo, valor patognomônico (de interesse diag­
nóstico) ou valor idiopático (sem valor diagnóstico). A opera­
ção semiológica complementar leva em conta a significação do
signo em seu encadeamento sintagmático. Antecipar o curso
regular e previsível de uma doença envolve localizar a relação
entre a aparição de sintomas e a presença de suas causas (de-
sencadeamento), verificar a retirada do agente causai e porven­
tura constatar a presença de efeitos residuais. Entende-se, as­
sim, por que a oposição entre sintomas agudos (sincrônicos) e
sintomas crônicos (diacrônicos) foi tão importante no proces­
so de constituição da clínica moderna. Menos do que carac­
terizar, de fato, um crivo diagnóstico universal, sua oposição
tornava visível o funcionamento articulado desse sistema de
linguagem. Explica-se ainda o fascínio que a noção de síndro-
me exercia nessa época. As síndromes são blocos de signos que

405
aparecem em associação regular. São equivalentes discursivos
de expressões fechadas, 'como estribilhos e ritornelos (Barthes,
2001b, p. 236), que contêm uma repetição (diacronia) que,
no entanto, não se transforma no tempo (sincronia).
Na clínica médica, a relação entre signos e seus referentes
deve ser estável. Os signos são, de fato, signos quando se apre­
sentam como imediatamente legíveis na relação entre o olhar
do clínico e o corpo do doente. O que depende da fala ou da
lembrança do paciente, do relato de seus familiares e amigos
ou da simples impressão do observador possui valor secundá­
rio e suspeito. São fontes permanentes de relativização do teor
dos elementos envolvidos no processo mórbido. Esses signos
devem ser purificados por um aperfeiçoamento do olhar: são
os exames, as auscultações, as fotografias e a análises feitas em
laboratório. Mas aí já não estamos mais no campo específico
da clínica, mas em sua extensão.
O clínico, neste sentido, ouve o paciente, mas não o escuta.
Ouve na medida em que as informações que este lhe transmite
possam ser cotejadas com um referente anátomo-patológico.
O paciente atua, assim, como um informante daquilo que,
por motivos técnicos, não pode ser diretamente visível, como
a dor, a náusea e a intensidade do sintoma. Tudo o que se
afasta desse testemunho neutro, dispersa e prejudica o clínico.
Ao mesmo tempo, seu trabalho incide exatamente sobre essa
dispersão, essa incerteza e esse desvio. Bichat definia a saúde
como o “silêncio dos órgãos”, logo a doença começa quando
os órgãos falam, se completa quando o clínico é capaz de lê-la
e termina quando o corpo volta a emudecer-se.
Deste ponto de vista, o signo, na clínica clássica, procura
excluir o sujeito, ou melhor, só há de fato signo quando seu
sujeito é o médico, pois é este que estabelece, legitima e cer­
tifica a doença como tal (Clavreul, 1983). O signo representa
alguma coisa para alguém, mas o que ele representa para o
médico é diverso do que representa para o paciente. Aqui há
um novo redobramento pelo qual o médico e sua experiên­

406
cia tornam-se absorvidos ao discurso da medicina. Nada mais
distante da clínica que a ideia de que se trata de uma espécie
de leitura automática, de resultado idêntico segundo um crivo
que se domina completamente. Como vimos anteriormente,
a arte da clínica implica decisão e risco tomado no interior da
cena da cura e do tratamento. E por definir-se nessa região
de incerteza que se desenvolveu, na clínica clássica, o grande
valor da experiência, o sentido da repetição e a força conferida
ao saber prático e individualizado na figura do médico. Re­
encontramos aqui a tensão entre a disciplina, constitutiva do
discurso da medicina (a ordem médica), a experiência da cura
e a prática do método clínico.
O segundo elemento da estrutura da clínica clássica é o
diagnóstico. Se a semiologia é uma prática de leitura, o diag­
nóstico é um ato. Ele presume uma organização estável da
semiologia, a saber, a nosografia. O diagnóstico implica capa­
cidade de discernimento acerca do valor e da significação que
um conjunto de signos possui quando estes aparecem de for­
ma simultânea ou sucessiva na particularidade de um caso. O
termo caso, como vimos, refere-se etimologicamente a aconte­
cimento, fato ou ocorrência. Ele é o correlato orgânico da apa­
rição discursiva de uma questão. As gramáticas da antiguidade
procuravam compreender as variedades e transformações de
determinada partícula lingüística como um caso. Assim tam­
bém o diagnóstico começa pela visualização das declinações,
dos agrupamentos e das insistências entre os signos.
Seria preciso falar então, antes em uma diagnostica do que
em diagnóstico. O diagnóstico é um ato específico; a diagnos­
tica é o fazer continuado por meio do qual a hipótese diag­
nostica se confirma ou se desmente, se especifica ou se ge­
neraliza, se atualiza ou se transforma a cada novo tempo do
tratamento e suas intercorrências. A diagnostica implica uma
atitude contínua e extensa de atenção aos signos e uma for­
ma específica da racionalidade clínica. Nela há transposição
do singular ao particular e remissão do particular a seu gênero.

407
Tais agrupamentos defirfem uma nosologia, ou seja, um sistema
classificatório, relativamente estável, mas nao invariante, das es­
pécies e dos gêneros do patológico. Tendo em vista esse sistema,
o clínico deve distinguir entre aquilo que é contingente ou possí­
vel e o que é necessário ou impossível no curso do adoecimento.
Vemos assim, que a diagnostica introduz uma segunda forma de
objetivaçao no dispositivo clínico. Se, pela semiologia, o corpo
se torna corpo legível, pode ser submetido a uma grande regra de
determinação causai. Reencontramos aqui as quatro causas do
adoecimento, redescritas pelos desenvolvimentos clínicos inicia­
dos no século XVIII. A teoria dos agentes patógenos redescreve
a antiga concepção de que a causa do adoecimento decorre da
entrada de um objeto intrusivo. Agora tais corpos estranhos são
caracterizados por agentes patógenos microbiológicos como os
germes, estudados pela infectologia; por eventos intrusivos como
traumas ou contaminações; por aparições abruptas que tomam
o organismo despreparado, ao modo de choques. A etiologia
baseada no objeto intrusivo mantém, contudo, a sua grande
oposição constitutiva entre excesso e falta. A antiga teoria da
desregulação do espírito é redescrita no quadro do desequilíbrio
de funções, órgãos e tecidos. Agora é a noção de sistema, em
sua crescente segmentação em subsistemas correspondendes às
funções do corpo (alimentação, secreção, movimento, etc.) que
precisa ser pensadas como uma unidade. Há adoecimentos que
só se tornam compreensíveis pela interação entre sistemas, por
exemplo, do muscular ao neurológico, do gástrico ao circula­
tório. A desregulação do espírito, antes entendida como teoria
geral da circulação, é agora especificada no quadro do funciona­
mento sistêmico do organismo. Reencontramos aqui a segunda
oposição etiológica fundamental entre determinação e indeter­
minação. A terceira concepção etiológica da antiguidade enten­
dia o adoecimento como perda da alma. Na medicina moderna
ela é redescrita tendo em vista a noção de que há instâncias regu­
ladoras do organismo, como o sistema nervoso central, enzimas
e vitaminas. Descrevem-se assim afecções geradas pela perda da

408
capacidade integrativa do organismo, exemplificada por certas
síndromes constitucionais. A grande oposição etiológica neste
caso refere-se à perda ou preservação da unidade. Finalmente a
antiga teoria de que o adoecimento decorre da violação de tabus
ou regras sociais é redescrita em termos de hábitos, disposições e
comportamentos indutores de contágio, transmissão ou causa de
doenças ou epidemias. A profilaxia, os cuidados com a higiene,
alimentação e as condições de moradia tornam-se assim preocu­
pação primeira da medicina social. Reaparece aqui a oposição
entre experiências produtivas e experiências improdutivas que
concorrem na causação do adoecimento.
A diagnostica pressupõe, portanto, a semiologia. Mas se a se­
miologia é uma leitura, a diagnostica é a leitura que se desdobra
em diálogo entre o clínico e a doença. E uma investigação que
inclui agir sobre os signos, explorar sua receptividade, causar
pequenas transformações, verificar reações. Seria equívoco pen­
sar que o diagnóstico se limita à nomeação, de uma vez por to­
das, de uma forma patológica prevista na nosografia. Há formas
indefinidamente específicas para os grupos considerados; na
maior parte das vezes, precisar o tipo mais exato é desnecessário
para a cura, mas, em alguns casos, torna-se crucial. O diagnósti­
co serve e se limita a subsidiar o tratamento, e sua profundidade
depende das mudanças de rumo e de sua capacidade de afetá-lo.
O diagnóstico é, sobretudo, uma hipótese operativa, uma
regra de ação, logo pode e deve estar sujeita a correção, veri­
ficação e reformulação permanentes. Isso implica certo grau
probabilístico e expõe o diagnóstico ao caráter de uma deci­
são. É um ato prescrito pelo dispositivo clínico, logo supõe
a eficácia, e não a certeza como critério de legitimação. Um
diagnóstico de primeira ordem pode ser indefinidamente des­
dobrado em seus estratos mais elementares, que são correlati-
vos da decomposição a que o signo está sujeito em traço, letra,
fonema, significante, significado.
O diagnóstico contém várias ordens: asíndrome, o quadro,
o transtorno, a disfunção, o sintoma. O que torna a práti­

409
ca ainda mais complexa porque os signos nao possuem valor
diagnóstico fixo quando tomados isoladamente ou quando
integrados numa situação de comorbidade em seu processo
transformativo. Por exemplo: um paciente apresenta fraqueza
muscular, pele lívida, manchas pelo corpo e inchaço das gen­
givas. Cada signo pode remeter isoladamente a um diagnós­
tico: desnutrição, constipação, varíola ou tártaro. A hipótese
de que quatro enfermidades acometeram o mesmo indivíduo
é menos parcimoniosa do que a hipótese de que há um único
agente etiológico e, portanto, uma única afecção que deter­
mina todos os sintomas. Os signos podem então ser reunidos
em dois grupos: as manchas e a lividez apontam para uma
afecção dermatológica; a gengiva e a fraqueza muscular, para
uma intoxicação gástrica. Agora o signo pode ser decomposto
em unidades ainda menores: as manchas são erupções típicas
de erisipela. Eles podem ser descartados: o problema na gen­
giva é uma formação congênita. E assim que os quatro signos
de nosso exemplo podem ser reunidos numa única doença:
o escorbuto. Aqui vigora uma regra prática: a co-presença de
sintomas deve ser remetida a uma mesma causa até que se
mostre o contrário. Daí que o raciocínio diagnóstico opere
por exclusão e reconstrução da hipótese mais simples para a
mais complexa (Wyngaaden & Smith, 1985, pp- 69-111).
A diagnostica também pode ser dividida em seu eixo sin-
crônico e seu eixo diacrônico: diferencial ou evolutivo. No
diagnóstico diferencial sinais e sintomas permitem contraste
ou congruência com outras espécies patológicas, como vimos
no exemplo acima. No diagnóstico evolutivo aprecia-se a si-
multaneidade dos signos, privilegiando sua sucessão e trans­
formação ao longo do tempo (Ibid., pp. 112-143). No exem­
plo acima, a passagem do tempo poderia levar ao surgimento
de novos signos do escorbuto ou ao desaparecimento de um
ou mais sintomas transitórios. Se, no diagnóstico diferencial,
submete-se a sincronia das espécies clínicas à diacronia da
doença, no diagnóstico evolutivo dá-se o inverso. O exame

410
clínico é exemplo de procedimento ligado ao diagnóstico di­
ferencial. Nele, isola-se um estado sagital e atual do paciente;
os detalhes são visíveis e imediatamente legíveis. A anamnese,
por outro lado, ilustra o diagnóstico evolutivo ao se interessar
pela sucessão de aparecimentos dos signos clínicos reconsti­
tuindo a história do adoecimento. Aqui a leitura passa pela ha­
bilidade em interrogar e encaminhar a recordação do paciente.
A ideia de que o diagnóstico envolve uma anamnese, ou seja,
um des-esquecimento do passado da doença, se completa no
fato de que a qualidade do diagnóstico relaciona-se sincronica-
mente com sua capacidade de estabelecer um prognóstico. O
prognóstico é o curso esperado para a enfermidade naquele pa­
ciente específico. Portanto, a diagnostica inclui não só a avalia­
ção da perturbação, mas também dos recursos e circunstâncias
de que o paciente dispõe para atravessar o processo mórbido.
Além da semiologia e da diagnostica, a estrutura da clínica
moderna supõe também uma teoria da causalidade, ou seja,
uma concepção etiológica. No fundo, esta é a ambição máxi­
ma do trabalho diagnóstico: não apenas descrever e classificar a
enfermidade, mas indicar precisamente sua causa. Parece uma
redundância quando consideramos que a árvore nosológica está
construída sobre entidades clínicas finitas e com causa descrita.
Mas isso é duplamente falso. O trabalho diagnóstico pode levar
tanto à descoberta de um novo tipo de afecção quanto a uma
enfermidade de causa desconhecida. A investigação diagnosti­
ca transforma e verifica as hipóteses etiológicas, e as hipóteses
etiológicas afetam a prática diagnostica. Vejamos um exemplo.
Em 1847, o obstetra Ignaz Semmelweis trabalhava no Hos­
pital Geral de Viena, o mesmo lugar onde, trinta anos depois,
Freud iniciaria sua prática médica. Quase 10% de suas pa­
cientes morriam de uma terrível doença conhecida como febre
do parto, uma vez que se desconhecia a assepsia e a transmis­
são de doenças por germes. Considerava-se que havia alguma
particularidade naquelas mulheres grávidas ou na natureza do
parto que as predispunha ao desenvolvimento da febre. Havia,

411
assim, uma ampla pesquisa diagnostica para isolar o quadro
logo em seu início. A confusão entre pesquisa diagnostica e
etiológica dava margem a hipóteses causais tão dispersas e he­
terogêneas quanto inúteis. Supunham-se dois tipos de causas,
que podiam agir como fatores conjugados: as internas e as ex­
ternas. As causas internas incluíam: anomalias de loqueação,
leite materno, febre gástrica biliosa, inflamação local dos ge-
nitais externos, contágio de erisipela, alteração do sangue por
“miasmas” e causas emocionais. As causas externas incluíam:
genus epidem icum , influências atmosféricas e telúricas além de
erros dietéticos. Vê-se por este elenco bio-psico-social como
elementos de valor semiológico são misturados com formas
diagnosticas e ainda com ilações causais. Há, portanto, sig­
nos excessivamente dispersos, cuja única constante era a febre.
Semmelweis procurava isolar quais signos eram contingentes e
quais eram necessários de modo a estabelecer qual era o sinto­
ma e qual era a doença. Mas ele procurava isso nas mulheres,
não fora delas. Seu esforço mostrava-se infrutífero, e exata­
mente por não se contentar com o diagnóstico diferencial e
com o diagnóstico evolutivo, ele notou uma curiosa regulari­
dade: havia 18% de óbitos na sala de parto I e apenas 1% na
sala de parto II. Em seguida, ele observou que a sala de parto I
era usada em dias da semana nos quais a aula de dissecação an­
tecedia os serviços obstétricos. Ele intui, assim, que havia uma
relação etiológica entre algo que se transmitia da sala de dis­
secação para a sala de parto. Instituindo uma tigela com água
e sabão na porta das salas de parto, ele conseguiu erradicar a
febre do parto no hospital, descobrindo os princípios práticos
da antissepsia. Observe-se que Semmelweis não isolou o agen­
te causai específico da infecção, nem a transmissão das doen­
ças por germes; apenas introduziu em sua pesquisa diagnostica
a dimensão etiológica do problema. Desta maneira ele conse­
guiu criar um procedimento terapêutico e profilático sem ter
nenhuma certeza sobre a causa específica ou sobre a diagnos­
tica exata das febres puerperais (Adler, 2006, pp. 115-131).

412
A etiologia fornece subsídios para a organização de uma
patologia fundada em princípios causais comuns para um
conjunto mais ou menos regular de signos. Ela redobra-se em
nosologia regida pelos mesmos princípios causais verificados
agora na esfera do funcionamento do corpo em geral. Vemos,
assim, que tal concepção pode tanto modificar elementos se-
miológicos, quanto estabelecer novas grades nosológicas e,
consequentemente, diagnosticas. O paradigma estabelecido
por Claude Bernard, no final do século XVIII, foi decisivo
para a sedimentação dessa perspectiva etiológica (Oliveira,
1981, pp. 387-393). Ele permitia deduzir, das modificações
anátomo-patológicas, as entidades clínicas. Mais importante
do que isso era a ideia de que mesmo as etiologias desconheci­
das deveriam se comportar segundo essa regra. Estava enterra­
do o paradigma de Galeno.
Em sua Introdução ao Estudo da M edicina Experimental de
1865, Claude Bernard introduziu a distinção entre fenômenos
(fatos complexos) e propriedades (fatos simples). A combus­
tão, por exemplo, é um fenômeno, a ligação entre o oxigênio e
o carbono é uma propriedade. Existem fenômenos vitais, dos
quais se ocupa a fisiologia experimental, mas não há proprie­
dades vitais. As leis de Mendel, por exemplo, continuam va­
lendo antes e depois da descoberta da molécula de DNA. Por
trás deste paradigma anátomo-patológico reside um programa
de unificação das ciências. Os fenômenos são o limite da me­
dicina experimental, as propriedades são objeto de outra disci­
plina, a físico-química. Semelhante programa epistemológico
que consiste em traçar fronteiras para em seguida dividir ta­
refas, aparece na importante separação entre meio externo e
meio interno, sob a qual se erige posteriormente a noção de
homeostase. Esta divisão epistemológica exprime ainda uma
diferença de método. A observação do meio externo é redutí-
vel às mesmas forças e elementos presentes no meio interno,
porém o mesmo não se dá com relação à prática metodológi­
ca da observação. As causas primeiras confundem-se com um

413
“passado inacessível” qpe deve ser reconhecido como passível
de ficção e conjectura e não de observação (Dutra, 2006).
Há vários tipos de causalidade, conforme se enfatize di­
ferentes aspectos do movimento ou da transformação de um
estado A em um estado B. Originalmente há dois grupos se­
mânticos que se ligam à noção de causa (aiTicrç), o grupo
psicológico onde causa procede de radical semelhante a “res­
ponsável”, “culpado” e “questionar”, e o grupo lógico onde
causa liga-se as noções de antecedente e conseqüente, efeito
ou determinação. O sentido latino do termo procede de cave-
re, que na acepção jurídica implica em “colocar algo em cau­
sa” (acusação), como se vê no alemão “ Ursache” (a coisa/causa
primitiva). De toda forma, é improvável que a noção de causa
possa ser dissociada da ideia de processo temporal, como re­
quer a definição de Russel (1961), pela qual uma proposição
causai pode enunciar-se: “A existe no tempo t o que im plica B
existirá no tempo t + A t” .
Ou seja, a noção de causalidade contém a de implicação
lógica, porém acrescenta a ela duas qualidades que esta não
possui necessariamente: o tempo e a existência. Daí se aplicar
a noção de causa, habitualmente, a fenômenos. O que expli­
ca porque a teoria da causalidade desenvolveu-se em estreita
relação com uma teoria do movimento, da transformação ou
da passagem da potência ao ato, como em Aristóteles (Metafí­
sica, 1984, 1:3) para quem a ciência é conhecimento das causas
e pelas causas:

(a) causa material (hyle), aquilo do qual algo surge;


(b) causa eficiente (dynam is), o princípio e modo como
ocorre a mudança;
(c) causa formal (m orphê), a ideia ou o paradigma de algo;
(d) causa final (enthelékia ou telos), a realidade para a qual
algo tende a ser ou o lugar para onde o objeto tende.

Na modernidade, principalmente após Galileu, observou-


se a elevação da causa eficiente ao topo da hierarquia das cau­

414
sas. Pode-se dizer que a causa eficiente é o que passamos a cha­
mar de explicação de uma transformação. A medicina do século
XIX percebeu que as doenças deveriam ser abordadas especifi­
camente através da noção de causa, deixando as noções conexas
(lei, princípio e sucessão) para as ciências nas quais ela se apoia.
Isso permitiu a elaboração de classes de causas, dependentes
do tipo de relação verificado: agente patógeno específico, ação
traumática, desregulaçao sistêmica ou desvio funcional.
Entende-se, desta maneira, a importância assumida pela
explicação do processo mórbido de determinadas doenças que
serviriam de paradigma para um gênero de afecções semelhan­
tes. O processo causai poderia ser transposto de uma a outra
com relativa independência em relação ao quadro semiológi-
co. A etiologia, como elemento da clínica clássica, introduz,
assim, um terceiro nível de objetivação, pelo qual é possível
entender o processo mórbido no quadro geral do corpo pela
sua redução ao aparato eletro-químico e seu correlato visível: a
corrupção dos tecidos. Mesmo o que é invisível torna-se assim
objetivado, agora na forma de uma representação e de uma
teoria sobre o funcionamento do corpo e o restabelecimento
de sua funcionalidade. Tal teoria se propõe como parte inte­
grante de uma linguagem comum e universal através da qual
legitima suas pretensões enquanto ciência natural. Vê-se que
é o princípio etiológico, e não a prática semiológica ou diag­
nostica, que estabelecem a ciência médica na qual o método
clínico se apoia. Por outro lado, não devemos confundir a ci­
ência médica com a experiência clínica. O nível de exatidão
e precisão estipulado pela doutrina anatômica ou fisiológica
jamais é equivalente no plano clínico. O tempo da ciência é
infinito; o tempo da clínica, finito.
A quarta e última operação da clínica clássica é a terapêuti­
ca. Aqui se incluem todas as estratégias que visam interferir e
transformar a rede causai que constitui a etiologia, confirmar
a diagnostica e verificar o valor semiológico dos signos e sin­
tomas. A ação terapêutica deve incidir na medida do possí­

415
vel sobre as causas, e ç neste sentido que Freud distinguia a
psicanálise como terapêutica das causas, frente aos métodos
hipnóticos sugestivos, ou seja, terapêutica dos efeitos. A ação
terapêutica deve estabelecer a hierarquia das metas (curar,
controlar, mitigar), a estratégia relativa aos meios empregados
(tipo de intervenção, ordem de procedimentos) e as táticas
pelas quais a ação de dará (técnicas centrais e auxiliares). Em
geral, no desenvolvimento da técnica terapêutica é importan­
te a verificação diacrônica da eficácia e da responsividade aos
procedimentos empregados. E também parte da decisão clíni­
ca deliberar a utilização de uma ou várias ações terapêuticas,
contudo isso deve derivar da profundidade diagnostica e da
ambição terapêutica.
Podemos agora comparar as três tradições arqueológicas que
compõe a psicanálise com relação ao modo pelo qual se relacio­
nam com a clínica como estrutura e dispositivo de tratamento.
Em primeiro lugar, retomamos a distinção entre a tradição
da clínica, a clínica antiga, inspirada em Hipócrates, Empédo­
cles e Galeno e a clínica surgida entre os séculos XVIII e XIX.
Vimos que aqui a relação é de ruptura epistemológica. As ver­
tentes fisiológica, social e clínica introduzem novos princípios
de observação, verificação e direção política da medicina. O
que caracteriza este momento é a subordinação das técnicas de
tratamento ao método, sendo o método definido pelas aspira­
ções da modernidade científica. Por um lado a noção de terapia
(Therapie) subordina-se assim aos demais procedimentos da es­
trutura do tratamento (semiologia, diagnóstico e etiologia). A
noção de terapia se autonomiza enquanto técnica: fala-se em
quimioterapia, ergoterapia, eletroterapia, antibioticoterapia.
A ideia de técnica ou de medicamento específico está presen­
te aqui em associação com o desenvolvimento de uma teoria
da causalidade (etiologia) e em contraste com as terapêuticas
massivas e genéricas, tais como a purgação e a sangria. A estru­
tura da clínica absorve em seu interior a metafísica do retorno.
Os signos retornam aos mesmos lugares, nos mesmos tempos,

416
caracterizando a diagnostica das doenças. A terapêutica faz re­
tornar ao estado de saúde. Encontramos aqui a antiga noção
de restabelecimento (Genesung, Recovering, Guérison) fortemente
associada às metáforas político-militar de proteção, defesa, mu­
nição, resposta contra uma agressão ou sedição. Agora, porém,
este restabelecimento é depurado de sua conotação mágica e ad­
quire contornos materialistas, quer se considere do ângulo fisio­
lógico (recomposição funcional do organismo), clínico (recom­
posição funcional da vida) ou da medicina social (recomposição
do desequilíbrio antropológico). Conceitos como trauma e stress
assim como as ideias de restauração, restituição, reconstituição
e recuperação nos remetem à tradição da saúde como bem estar
social ou harmonia política.
Em segundo lugar examinamos a tradição da terapia como
aspiração de recomposição social e integração narrativa. Neste
caso a relação com a estrutura da clínica é de sobreposição in-
cidental. A noção de sanação (H eilung, Healing) designa, para
a tradição terapêutica, o resultado do processo de restabele­
cimento. O restabelecimento deveria eqüivaler à retirada ou
diminuição do sofrimento, entendida esta como noção moral
e política (Canguilhem, 2002, p. 75). Ocorre que isto é indi­
ferente para a estrutura da clínica. Surge então um espaço resi­
dual, formado pelo campo não recoberto pela estrutura. Neste
espaço se desenvolverão tanto as práticas higienistas quanto os
exercícios e cuidados do corpo, e ainda, no campo da saúde
mental, a psicoterapia francesa, a terapia moral e as diversas
formas técnicas de alívio do sofrimento, particularmente ao
longo do século XIX. A noção de terapia, aqui sobreposta,
mas não integrada à estrutura da clínica, carrega o significado
histórico cristão da noção de salvação que impregna na origem
a ideia de saúde (santé). Enquanto o restabelecimento é um
processo, pelo qual se recupera uma situação anterior, a sana­
ção eqüivale ao estado de saúde ou higidez.
Mesmer, um personagem prototípico da psicoterapia do
século XIX, permite ilustrar as características desta mimese

417
estrutural (Chcrtok & Sten geres, 1990). Em seu programa
psicoterapêutico encontramos: (a) ausência de semiologia,
médico e paciente falam a mesma língua e se entendem quan­
to à natureza do sofrimento; (b) discurso etiológico híbrido,
a eletricidade (magnetismo) funciona como metáfora dos
processos mentais, é a eletricidade e nao a palavra que age à
distância’; (c) terapêutica que reconhece a importância da in­
fluência pessoal, relativizando a força impessoal do método; e
(d) diagnostica própria capaz de produzir efeitos de reconheci­
mento e inclusão narrativa por parte do paciente. Vemos assim
que eventualmente o mesmo procedimento empírico, como o
hipnotismo, por exemplo, pode admitir um uso estrutural e
um uso não estrutural (Cazeto, 2001).
Em terceiro lugar, podemos isolar a tradição da cura {Kur,
Cure, Cure) que compreende um processo mais vasto que o
tratamento. A ideia mais simples é de que a cura é uma pala­
vra de origem médica que designaria a extinção do processo
patológico. Esta noção de cura liga-se muito mais à interpre­
tação coletiva e social das aspirações da medicina do que à
estrutura de sua clínica. A ideia de cura acaba por representar,
depois da emergência da clínica moderna, seu passado pré-
clínico. Assim ela acaba por encampar a teoria dos humores,
as indicações hipocráticas não integráveis à nova clínica, as­
sim como os procedimentos injustificáveis do ponto de vista
da ação terapêutica sobre as causas. Em outras palavras, se a
tradição psicoterapêutica integra-se à clínica clássica ao modo
de uma sobreposição acidental de técnicas, a cura termina por
acolher o resíduo ético, não integrável nesta operação. Como
vimos através da ideia de cuidado de si —na versão grega da
epimeléia heauton ou na variante latina da cura sui —trata-se de
uma experiência de produção da verdade e não apenas de ne­
gação do sofrimento. Aqui a ideia de mal-estar ou de angústia
é essencial. A cura admite uma direção, um sentido, um hori­
zonte e não necessariamente um fim, uma terminação ou um
produto. Como vimos anteriormente, a ideia de cura possui

418
uma afinidade histórica e etimológica com a noção de cuidado
{Sorge, Care, Cure). A partir da segunda metade do século XIX
esta noção tende a representar aquilo que era essencial à clínica
na antiguidade e torna-se contingente na clínica moderna: a
atitude ética do médico diante do doente. Gradualmente esta
atitude vai se transferindo para os auxiliares do médico. O
médico observa e trata, o enfermeiro cuida, o padre cura.
E por isso que a ação terapêutica tende a incluir três as­
pectos heterogêneos: a intervenção metódica no quadro da
estrutura da clínica, a atitude de cuidado, atenção e acompa­
nhamento e a utilização de técnicas secundárias, adjuvantes ou
auxiliares. Como vimos anteriormente, a terapêutica está asso­
ciada à introdução ou à retirada de um elemento ou condição
considerado relevante do ponto de vista etiológico. Como se
trata de uma rede causai há sempre escolhas quanto à ordem
e à importância pela qual se deve enfrentar a etiologia (causas
primarias e secundárias) e, simultaneamente, mitigar os efeitos
deletérios representados pelos sintomas. Além disso, o médico
deve levar em conta, nas suas escolhas, o potencial de perdas
e ganhos em relação à dignidade do paciente, sua qualidade
de vida e sua atitude diante do sofrimento e da morte. Daí a
distinção entre o tratamento primário da doença (ação sobre
as causas), o tratamento secundário sobre os sintomas (ação
sobre o sofrimento gerado pelos sintomas) e o tratamento ge­
nérico do sujeito (atitude de cuidado).
Na esfera do cuidado, inclui-se o fazer continuado e a aten­
ção constante a certos aspectos da vida do paciente; a interna­
ção, por exemplo, é uma prática de cuidado. Outro exemplo é
a deontologia, ou seja, o conjunto de prescrições, recomenda­
ções e deveres transmitidos ao paciente relacionados a aspectos
de sua vida que devem ser seguidos particularmente no con­
texto do tratamento: sugestões profiláticas e restrições dietéti-
cas, comportamentais ou ambientais. Outro exemplo da tera­
pêutica na esfera do cuidado é o tema hipocrático das relações
entre médico e paciente. Aqui há um duplo interesse: incitar

419
certa disposição para enfrentar o processo de cura e aderir o
paciente a este processo. Remanescem aqui todas as táticas e
temas de persuasão retórica que examinamos anteriormente,
mas agora elas se tornam acessórias ou dispensáveis no interior
do dispositivo clínico:

Então, pode se perguntar se a personalidade médica não


se tornará um modo legítimo, uma força curativa, sem
ter de ser feiticeira ou salvadora, sem que esteja presente
uma sugestão ou qualquer ilusão. A presença de uma per­
sonalidade que, na sua vontade de ajudar, esteja por um
momento, toda ali para o doente não é apenas intermina-
velmente benfazeja. (Jaspers, 1986, p. 17)

Se o cuidado segue a articulação diacrônica na esfera do


tratamento, a intervenção é seu elemento sincrônico. A inter­
venção segue o princípio da economia, seja ela, cirúrgica, far-
macológica ou mecânica. Ela deve ser a mais breve e menos
invasiva possível, assim como o diagnóstico deve sempre partir
do mais simples para o mais complexo. Finalmente, ela deve
tocar o ponto de maior anterioridade possível na rede causai. A
terapêutica segue o raciocínio econômico também no sentido
de que deve avaliar constantemente os riscos e a relação entre
custos e benefícios para o paciente. Entre a dimensão do cuida­
do e a dimensão da intervenção há uma prática mista, ou seja,
a propedêutica. Aqui se trata de preparar e estabelecer as con­
dições que tornam a intervenção possível e eficaz. É, ao mesmo
tempo, cuidado, mas que se realiza em ação pontual: a assepsia,
a preparação do campo cirúrgico, as dietas preparatórias.
Tanto a dimensão do cuidado quanto do tratamento, e ain­
da da intervenção, concorrem para que a terapêutica retor­
ne sobre a semiologia. São os novos signos, as alterações nos
sintomas, as remissões ou recidivas que orientam a estratégia
e a continuidade do tratamento. Tudo se passa como se retor­
nássemos ao ponto inicial, realizando um giro que reinicia o

420
processo em nova escala. A observação semiológica durante o
tratamento foi responsável pela descoberta de inúmeras etiolo-
gias, além de reformulações decisivas nas estratégias diagnos­
ticas. Portanto, a intervenção não deve ser pensada como um
agir cego; uma vez firmado seu objetivo, ela é modulada pelo
funcionamento articulado da estrutura da clínica, que agora
podemos representar:

Terapêutica Diagnostica

1 X tI
Etiologia Semiologia

O modelo corresponde a um grupo transformativo seme­


lhante ao Grupo de Klein, o que nos permite formular certas
leis de estrutura. Não se passa da semiologia à terapêutica sem
passar pela diagnostica. Não se chega à diagnostica sem semio­
logia. Não se vai da diagnostica à etiologia sem passar pela se­
miologia ou pela terapêutica. Por fim, é possível conceber cir­
culações fechadas entre diagnostica e semiologia, ou a pequena
circulação envolvendo semiologia, diagnóstico e terapêutica.
O modelo coloca a diagnostica como operação chave da clí­
nica, pois dela dependem todas as outras operações. Podemos
dizer que o diagnóstico, como reconhecimento do sintoma
é o ato elementar da clínica. Esta pequena circulação entre
semiologia, diagnostica e terapêutica compõe o procedimento
clínico mais simples. Ao lado desta segue-se a grande circula­
ção, formada pelo percurso que parte da diagnostica e chega
até a etiologia e desta incide sobre a terapêutica. Este percurso
envolve ação sobre as causas. Ora, a ação correta sobre as cau­
sas deve ter por conseqüência uma modificação da semiologia.
E assim que a resposta terapêutica sanciona o diagnóstico de
onde se partiu como hipótese. Além da circulação simples e da
grande circulação, o modelo do grupo transformativo permite

421
entender as operações de reversão permanente entre diagnós­
tico e semiologia.
A estrutura da clínica apresenta-se como sistema com duas
propriedades fundamentais: a homogeneidade entre seus ele­
mentos e a covariância de suas operações (Dunker, 2001, pp.
39-61). A homogeneidade diz respeito à identidade de natu­
reza entre os elementos. Por exemplo, o princípio de Claude
Bernard verifica essa propriedade ao afirmar que causas ma­
teriais possuem efeitos materiais. A natureza dos elementos
se define por um mesmo tipo de causalidade que os rege. É
pouco provável, por exemplo, que o fiogisto como entidade
psíquica ou espiritual funcione como causa de transformações
materiais na esfera do corpo. Isso nao vem ao caso do ponto de
vista da estrutura. O problema começa quando uma etiologia
baseada em entidades ideais se liga a uma terapêutica baseada
em intervenções materiais: sanguessugas, purgações, sangrias
etc. O que define a natureza das causas é, antes de tudo, o
estatuto da semiologia para com os outros elementos da estru­
tura. Um exemplo de violação do princípio da homogeneida­
de. A astrologia presume que o movimento dos planetas causa
disposições estáveis na personalidade. É um caso no qual há
heterogeneidade entre a semiologia, a ontologia que esta pres­
supõe e a etiologia que lhe é correlativa. Além disso, há ausên­
cia definida de um elemento: a terapêutica. Não há, portanto,
estrutura de clínica na astrologia. A homeopatia é um exemplo
inverso. Ela parte do pressuposto etiológico e terapêutico de
que o semelhante cura o semelhante, o que pode ser falso ou
verdadeiro (o que é irrelevante para a questão), mas, de toda
forma, sua semiologia é compatível em natureza à diagnostica
e à terapêutica.
A segunda propriedade necessária para sabermos se estamos
ou não diante de uma clínica, na acepção estrutural do termo,
é a covariância. Isso quer dizer que os elementos devem se
afetar mútua e necessariamente. Por exemplo, uma reformu­
lação na semiologia deve ser capaz de alterar e prescrever um

422
conjunto possível de reformulações diagnosticas, terapêuticas
e etiológicas. As transformações no plano etiológico devem
ser capazes de alterar procedimentos diagnósticos e iluminar
aspectos semiológicos antes ignorados. Achados diagnósticos e
patológicos devem ter implicação suficiente para fazer desmo­
ronar profundas convicções etiológicas. Essa covariância é, no
fundo, uma espécie de prova possível da aplicação do primeiro
princípio de homogeneidade. Ou seja, se os elementos são ca­
pazes de ser afetados mutuamente, isso certifica sua homoge­
neidade. Podemos agora representar o conjunto formado pela
clínica em sua relação com a cura e o tratamento:

Cura

Terapêutica <----- Diagnostica

t
Etiologia
X Semiologia

O desenvolvimento de especialidades médicas a partir do


século XIX sugere que os princípios da homogeneidade e da
covariância passaram a ser aplicados em escala cada vez mais
restrita, que vai da totalidade do corpo aos sistemas, e destes
aos órgãos, às células e, finalmente, ao material genético. Por
outro lado, a quebra do princípio de covariância e homogenei­
dade permite explicar uma série de insucessos de projetos clí­
nicos que historicamente não chegaram a se realizar como tal.
É o caso da frenologia de Lavater, da criminologia de Lombro-
so e de diversos sistemas psicológicos e psiquiátricos.

423
Aqui se generaliza p. ideia de que as propriedades estrutu­
rais, aqui reduzidas à covariância e congruência, são critérios
para todo e qualquer projeto que pretenda se apresentar, tá­
cita ou explicitamente, como uma clínica. Constituem, as­
sim, uma espécie de crivo epistemológico para legitimar sua
constituição e para analisar a problemática de sua legitimação.
Ressalte-se que a estrutura da clínica, assim considerada, não
deve ser identificada com a clínica médica. Tratam-se aqui de
critérios formais que, de certo modo, independem das condi­
ções epistêmicas e ontológicas particularmente adotadas por
cada clínica em particular. Por exemplo, Empédocles de Agri­
gento formulou uma clínica com princípios etiológicos com­
patíveis com seu método diagnóstico e com sua semiologia.
Sua terapêutica é perfeitamente coerente e covariante com os
outros elementos da estrutura. Que sua ontologia seja discutí­
vel, improvável ou mesmo francamente falsa, isso não impor­
ta. Trata-se de uma clínica. Veremos agora dois exemplos de
como a identificação entre a noção de clínica e clínica médica
nos leva a impasses incontornáveis e a soluções inusitadas.

11.2. A CLÍNICA NA PSIQUIATRIA


O século XIX viu florescer a autonomização de diversas
especialidades clínicas, cada qual definida por seu objeto e
pela maneira como particularizava a estrutura da clínica e suas
operações. Além disso, cada especialidade devia conjugar a ex­
periência e a estrutura da clínica com a positivação social de
sua prática no campo mais extenso da ordem médica. Neste
sentido, uma especialidade como a epidemiologia segue uma
estratégia de implantação discursiva completamente distinta
da obstetrícia ou da pediatria.
O caso da psiquiatria representa uma dificuldade excepcio­
nal neste movimento de especialização. A biologia de Lineu
classificava as espécies, a química de Mendeleiev classificava
os tipos de átomos, a física de Maxwell classificava os tipos de

424
força. Nada devia impedir que se estabelecessem os limites e as
condições de uma semiologia da loucura, ou seja, os tipos de
doença mental. Clínicos como Kraepelin, Charcot e Esquirol
tomaram para si esta tarefa, que logo se revelou inglória.
Uma parte da dificuldade reside no fato de que os prin­
cipais fenômenos que, agrupados, formariam as espécies da
loucura são expressos nao apenas no corpo, como a dor, nem
mesmo definidos como déficits de função (como as afasias
para a linguagem), mas essencialmente dependentes do uso
intersubjetivo da linguagem. Em outras palavras, a realidade
do delírio é uma realidade lingüística; ele é composto por pa­
lavras, não por tecidos ou hematomas. A totalidade na qual
o delírio se inclui não é a totalidade fechada do corpo, mas o
universo aberto das significações. Como se poderia encontrar
o referente, do qual os signos cumpririam sua função de ín­
dice ou de ícone, segundo uma relação estável, se esta relação
é de saída, definida pela arbitrariedade, e não pela motivação
intrínseca? Como, enfim, constituir uma semiologia que não
fosse mera convenção moral ou abstração relativa ao universo
de significações do próprio clínico? Para que isso fosse possí­
vel, seria necessário construir uma espécie de anatomia uni­
versal dos modos de produção da significação. A atenção, a
memória, a imaginação, o pensamento, a vontade, a consciên­
cia, surgem aqui como figuras de um vocabulário que permite
fixar as espécies clínicas em alguma objetividade. No entanto,
essas faculdades mentais não possuem as mesmas proprieda­
des ontológicas dos tecidos, sejam eles visíveis ou não. Proces­
sos abstratos como esses induzem uma espécie de reprodução
artificial da totalidade, um análogo do corpo orgânico, uma
espécie de corpo psíquico para os quais se poderia transpor­
tar as mesmas leis de equilíbrio, funcionalidade e homeostase
postuladas para o funcionamento dos tecidos.
No entanto, essa abstração possuía um sério inconveniente:
não era material. O que dela se podia apreender eram apenas
outras inflexões da substância lingüística ou comportamentos

425
cuja significação era igualmente aberta. Em outras palavras, a
semiologia que a psiquiatria precisa construir para estabelecer-
se como clínica é expressa em uma metalinguagem. O proble­
ma não se limita ao fato de que a mente é um objeto ideal e
os tecidos, um objeto real, mas em como passar da substância
narrativa, na qual se expressa o sofrimento, para a substância
descritiva, na qual se define o sintoma.
Vimos que a clínica começa pela atividade de descrição que
mapeia regularidades e diferenças. Contudo, um mapa de todas
as significações engendradas por todos os jogos de linguagem
em todos os mundos possíveis não é apenas algo impraticável,
mas, sobretudo, inútil. Seria tão próximo da própria realida­
de que não serviria mais para nos orientar dentro dela —como
o mapa do geógrafo imaginário criado por Borges, que de tão
perfeito ocupava o tamanbo da ilha que procurava representar.
Se, no plano da classificação, a semiologia encontra proble­
mas, no plano do ordenamento dos signos as dificuldades não
eram menores. Quando a história da doença confunde-se com a
história do doente, esta história não é mais uma sucessão de sig­
nos, mas uma narrativa. Uma narrativa supõe certas regras para
ser construída ou interpretada, regras que são essencialmente di­
ferentes das regras de composição de uma descrição. Apreender
uma narrativa teatral não é destacar seus personagens e entender
seus movimentos na cena, mas interpretação da trama narrativa,
ou seja, da relação entre os personagens em torno de tensões,
alianças e contrastes, que é o que os define como tais.
Essa dupla dificuldade semiológica explica por que a clíni­
ca psiquiátrica do século XIX foi marcada pelo conflito entre
diferentes tradições descritivas, originadas em diversas manei­
ras de conceber a matriz interpretativa do universo de signi­
ficações trazido pela loucura. Contudo, isso é completamente
diferente de provar a realização meterial deste objeto segundo
uma etiologia própria de modo a constituir uma especiali­
dade. Ao contrário dos fenômenos da clínica moderna, que
encontravam sua estabilidade pelo acesso ao olhar, as figuras

426
clínicas da loucura se definiam por fatos de linguagem - como
tais, invisíveis. O sintoma precisa da cena enunciativa para ser
definido enquanto sintoma. As litanias, os refrões, os neolo-
gismos, as incongruências sintáticas e semânticas, assim como
as diferentes formas de mutismo e interrupções do discurso,
compõem o equivalente do tecido mórbido sobre o qual se
deve realizar o diagnóstico. As diferentes apresentações deli­
rantes, as alucinações, a melancolia e a mania são indissociá­
veis da maneira como o paciente usa sua fala. Fora dessa refe­
rência, elas seriam precariamente descritas como aceleração ou
lentificação na emissão de palavras, agitação ou paralisia dos
movimentos, corrupção de sistemas sensoriais, transtornos do
sono ou da alimentação e assim por diante.
E neste ponto que a psiquiatria cruza, desavisadamente, a
linha divisória entre a antropologia kantiana e a sua teoria das
condições universais de possibilidade do conhecimento, da ação
ética e do juízo. Ultrapassada esta fronteira, a anatomia necessá­
ria para fundar os parâmetros semiológicos está pronta, acabada
e disponível na teoria kantiana da constituição dos objetos. Os
fatos clínicos, colhidos pela observação etnográfica, podem ago­
ra ser remetidos positiva e diretamente às categorias da Crítica da
Razão Pura, da Crítica do Juízo e da Crítica da Razão Prática.
Viola-se, assim, a estratégia kantiana inicial de manter entre as
críticas e a antropologia uma relação negativa, baseada no fra­
casso da adequação da experiência humana aos limites e condi­
ções que definem a sua própria razão. A crítica deixa de ter valor
restritivo, como sugere a expressão limites da razão, e passa a ter
valor prescritivo, indicando como a razão deve ser praticada.
A psicopatologia das faculdades (Vermogen) mentais é o
produto final dessa operação de transposição e positivação.
Berrios (1996) é um autor que constitui, em nossos dias, a
referência mais consensualmente reconhecida no campo da
história da psiquiatria e na história dos sintomas mentais —,
nos surpreendemos com a reaparição integral das categorias e
divisões indicadas por Kant em sua Antropologia-, uma semio-

427
logia do entendimentQ-sensibilidade (cognição, consciência,
memória, percepção), uma semiologia dos afetos e emoções
(prazer-desprazer) e uma semiologia da vontade e da ação.
Ainda em Berrios vemos que a pesquisa psiquiátrica sobre
a alucinação, por exemplo, progrediu da discussão mais ou
menos teológica, como nos relatos de Swedenborg, para sua
analogia com o sonho (Baillarger) e, daí, para o tema da con­
tinuidade entre a sensação e a imaginação (Michéia). A descri­
ção da síndrome de Bonnet, em 1872, que se caracteriza por
alucinações sem transtorno visual ou cognitivo em pacientes
idosos, levou a fixar o estatuto clínico da alucinação na esfera
perceptiva. Mas isso não lhe conferia nenhum valor diagnós­
tico ou etiológico. Isso não se deve ao fato de que ela podia se
apresentar tanto em associação com uma patologia orgânica
dos tecidos (psicoses tóxicas) quanto na carência de um subs­
trato orgânico demonstrável. Vemos que o critério de Claude-
Bernand não é a verificação efetiva, mas sua verificabilidade.
Todavia, por mais que se apresentassem sucessivas hipóteses
semiológicas sobre essa verificação, nenhuma delas poderia re­
solver o problema diagnóstico representado pelo fato de que a
apresentação clínica da psicose não se define pela presença ou
não de alucinações, mas pela relação de crença, certeza ou in­
fluência que elas exercem sobre o paciente, como apontou Fal-
ret. Ou seja, o problema não dependia apenas das categorias
da sensibilidade, mas da síntese que o eu realiza sobre elas na
forma da apercepção. Kahlbaum e Griesinger avançaram essa
hipótese numa perspectiva associacionista, afirmando que as
alucinações seriam uma espécie de erro ou cruzamento equí­
voco entre percepção e memória.
Essa última linha de investigação é derrubada pelo impres­
sionante relato do psiquiatra Victor Kandinsky por volta de
1880. Ele era chefe do Asilo Psiquiátrico de São Petesburgo
quando se desencadeou sua psicose. Ele se empenha em descre­
ver seu processo com a fidedignidade das categorias semiológi­
cas kantianas, concentrando-se nas alucinações. Segundo ele,
as alucinações nao são vividas como possuindo uma externali-
dade objetiva, como nas ilusões, nem como uma externalida-
de subjetiva, como no sonho. Elas são vividas, sensorialmente
intensas, nao implicando nenhuma alteração da consciência.
Ademais, são involuntárias e claramente distinguíveis como
não reais. Portanto, não são alucinações no mesmo sentido
em que se descrevia o fato até então, mas pseudo-alucinaçÕes.
Para Kandinsky, o único fato semiológico realmente distinti­
vo residia no caráter imposto ou forçado que elas assumiam
para si. Ora, essa impressão psicológica de que algo ou alguém
domina a experiência, e não a percepção ou a sensação do su­
jeito, permite distinguir claramente a alucinação como fato da
lógica da aparência, não da lógica do fenômeno.
É deste princípio que partiram Séglas, Clérambault e Ey
para descrever os automatismos mentais como chave da psi­
copatologia. Eles se caracterizam por serem ego-distônicos
(qualificação técnica da ideia de forçamento ou imposição)
e antecederem os delírios e as formas menores de ilusão. Os
automatismos mentais distribuem-se entre: (1) os que proce­
dem de imagens sensoriais recebidas como impostas; (2) os
que emanam de ideias formuladas arbitrária e verbalmente, ao
modo de vozes ou ruídos; e (3) os que consistem em tendên­
cias volitivas ou afetivas reconhecidas como estrangeiras pelo
próprio sujeito (Ibid., pp. 35-60). E ainda:

Por automatismo entendo os fenômenos clínicos: adian­


tamento do pensamento, enunciação de atos, impulsões
verbais, tendência aos fenômenos psicomotores. (...) Os
oponho às alucinações auditivas, quer dizer, às vozes ob­
jetivadas, individualizadas e temáticas; os oponho também
às alucinações psicomotoras; com efeito, estes dois tipos de
vozes, auditivas e motoras, são tardias em relação aos fenô­
menos supra-citados. (Berrios & Diego, 1996, p. 106)

Os automatismos e, mais especificamente os fenômenos


elementares, constituem a primeira grande regularidade dia-

429
crônica efetivamente cfescrita em psiquiatria. Ou seja, eles
acontecem sempre e necessariamente antes da aparição de ou­
tros sintomas. Não são equivalentes dos estados de agitação
e insônia ou de depressão e hipocondria, mas precisamente
pré-fenômenos, aparência de fenômenos. A existência desses
estados pré-delirantes abriu caminho para a centralidade do
problema da interpretação e da compreensão tanto do pro­
cesso mórbido (psiquiatria germânica) quanto da constituição
patológica (psiquiatria francesa). Isso subsidia tanto o empre­
endimento de Jaspers na construção de uma psicopatologia
baseada na noção de intencionalidade quanto as inúmeras for­
mas de compromisso, deslocamento e colusão entre a psiquia­
tria e as mais diversas linhagens da psicologia e da psicanálise.
Esse breve percurso sobre a trajetória da alucinação entre o
século XIX e meados do século XX poderia ser refeito em rela­
ção ao delírio, equivalente formal no campo dos transtornos do
pensamento, se seguíssemos a trajetória da escola de Kraepelin
(escola de Munique), ou ainda em relação aos transtornos do
afeto, se seguíssemos a trajetória de Bleuler (escola suíça). Há
um deslocamento sistemático que vai da procura de uma semio­
logia e uma etiologia que buscam responder às exigências do
paradigma anátomo-patológico. Este movimento prossegue até
sua inversão completa num registro que define suas categorias
em termos políticos de privação de liberdade (imposição, for-
çamento). E pela aparência e não pelo fenômeno, pela certeza
psicológica e não pela verdade moral que a psiquiatria se apro­
pria empiricamente das categorias kantianas. Esse deslocamen­
to caracteriza justamente a violação do princípio de homoge­
neidade que define a estrutura de uma clínica. Uma semiologia
centrada nas reações do sujeito não pode se conjugar com uma
etiologia baseada em substratos anátomo-patológicos. Não que
esta ligação não seja possível ou porque a posição idealista seja
necessária, mas porque ela implica violação lógica entre pressu­
postos e conclusões. Isso não quer dizer que a psiquiatria não
possa se apresentar como ciência, técnica, experiência ou uma

430
boa descrição regular dos sintomas. Isso apenas diz que ela ja­
mais chegou a se constituir, quanto à sua estrutura, como uma
clínica. O que se denomina clínica psiquiátrica jamais passou
de um projeto, que se interrompe antes de ser concluído:

O resultado conjunto dos impasses da clínica, da urgência


doutrinai e das perspectivas do pragmatismo terapêutico
foi fazer com que a clínica desaparecesse lentamente -
primeiro seu espírito depois seu conteúdo. Abramos um
manual clássico de psiquiatria: trata-se mais de um maço
de documentos concretos, descritos e analisados, do que
um tratado de psicologia patológica, como nossas obras
modernas, sem exemplos, sem relatos de casos clínicos,
sem ilustração, sem um plano de exame e um verdadei­
ro inventário semiológico. Já faz algumas décadas que a
psiquiatria começou a se envergonhar da clínica pura, da
simples observação, do olhar... (Bercherie, 1980, p. 217)

O segundo argumento para essa ideia reside no fato de que


a psiquiatria, à época da clínica moderna, nunca conseguiu
desenvolver uma terapêutica que fosse concordante com esse
híbrido de Kant e Claude Bernard. Suas técnicas de aconse­
lhamento, reclusão, repouso, contrastes térmicos, químicos ou
elétricos, além de ineficazes, jamais conseguiram se apresentar
como um procedimento sobre causas específicas. Há alguns
curiosos exemplos desse impasse: cura por intermédio de ba­
nhos, ar fresco, terapia ocupacional, ergoterapia, hipnotera-
pia, enfim, expor o corpo a situações controladas como forma
de alterar a linguagem que o habita parece uma luta contra um
abismo intransponível. Eram intervenções cuja única justifica­
ção se encontrava na esfera do cuidado. Mudanças terapêuti­
cas jamais foram suficientes para alterar a semiologia de base e,
inversamente, rupturas radicais de esquemas diagnósticos nao
implicaram qualquer conseqüência sobre a terapêutica. Viola-
se, assim, a segunda propriedade da estrutura da clínica, ou
seja, não há covariância entre seus elementos.

431
Um caso paradigmático para ilustrar essa lacuna terapêuti­
ca da psiquiatria é o de Anton Mesmer (Cazeto, 2001, pp. 83-
120). Em 1774, ele curou uma jovem de 29 anos acometida
por uma enfermidade convulsiva que envolvia sangramentos
pela cabeça, dores de dente e de ouvido, seguidas de delírios
e vômitos. Sua terapia consistia na aplicação de magnetos elé­
tricos sobre a paciente em sessões contínuas até o final dos
sintomas. Além disso, Mesmer explicou o funcionamento de
seu método de tratamento segundo um sistema de 27 pontos,
baseado na circulação da energia animal (oposta à energia mi­
neral) de modo semelhante à transmissão do impulso elétrico.
Seu sistema integra e mistura elementos da cura, da terapêuti­
ca e da clínica. A saúde é o restabelecimento da harmonia. Há
os sintomas que devem ser curados e os sintomas críticos, que
exprimem reações hipocráticas de tentativa de autocura. Há
o excesso da energia fluídica que se manifesta nos espasmos e
nas convulsões (aparentemente, sua especialidade). Suas curas
eram públicas e espetaculares, contando com o dispositivo
do baquet, máquina por ele inventada com fins diagnósticos.
Em 1871, a Academia de Ciências da França conduz um teste
aberto do sistema de cura de Mesmer, comparando seu trata­
mento com o convencional. Ele forma mais de 300 alunos, e
apesar da crescente objeção de cientistas e médicos às ideias
do magnetismo, seu sistema se desdobra e dissemina numa
série de ramificações que acabam por se conectar com o hip­
notismo e com o sonambulismo. A questão não é porque sua
descendência metodológica não encontrou reconhecimento
consensual, mas porque sua ideia se encaixa tão bem nâ paisa­
gem. Ela explica, de forma material e alegórica, o problema da
influência à distância. Fazendo da influência entre duas pesso­
as um correlato da influência entre correntes elétricas ao mes­
mo tempo invisíveis e afetáveis. Assim, ele realiza, mesmo que
de maneira empiricamente falsa, o passo impossível que seria
preciso dar para constituir uma verdadeira clínica psiquiátrica.
Ou seja, as palavras afetam as pessoas da mesma maneira que

432
a eletricidade. Ambas funcionam à distância; ambas sáo ma­
teriais e invisíveis; ambas são fontes de poder. Temos, assim,
uma espécie de conexão analógica entre a visibilidade do olhar
e a escuta das palavras.
A objeção mais simples à constituição da psiquiatria como
clínica, que reúne a objeção à sua covariância e homogeneidade,
é de que a psiquiatria trai o elemento constitutivo do disposi­
tivo, ou seja, o olhar. O psiquiatra, ao contrário do que ocorre
em todas as outras modalidades médicas, não pode ser surdo.
Sua semiologia depende essencial, e não extrinsecamente, do
relato do sujeito em primeira pessoa. E esse relato é invisível.
Sem ele, seria impossível distinguir uma agitação maníaca de
uma crise de hiperatividade neurológica, uma face de tristeza de
uma depressão, a presença ou não de uma alucinação. Esta con­
tradição insuperável faz convergir o impasse entre a psiquiatria
e a psicologia que se organiza em torno do mesmo pressuposto:

O futuro da psicologia não estaria, doravante, no levar a


sério estas contradições, cuja experiência, justamente, fez
nascer a psicologia? Por conseguinte, não haveria desde
então psicologia possível senão pela análise das condições
de existência do homem e pela retomada do que há de
mais humano no homem, quer dizer, sua história. (Fou­
cault, 1957, p. 139)

Cuiiosa expressão desta saudade de um olhar impossível


manifesta-se nos desenhos e nas fotografias dos alienados
mentais. Tal prática, comum na psiquiatria do século XIX,
procurava retratar a loucura em seu gesto elementar. A face
tensionada do catatônico, o olhar esgazeado do demente, o
aspecto de suspeita e desconfiança da paranóia alucinatória;
temas que receberam a atenção de pintores como Géricault,
Van Gogh e Brouillet10 . As histéricas de Charcot foram retra-

10. Autor da tela Lição Clínica da Salpêtrière, apresentada no Salão dos Independentes de 1887.

433
tadas, com toda minúcia, em posturas de espasmo, de contra­
ção clônica ou de deleite. As seqüências dos ataques histéricos
captados em toda sua plasticidade passional transformaram
Augustine, Blanche Wittman ou Rosalie Dubois em autênti­
cas personagens (Trilard, 1991).
Tais representações não pertencem, definitivamente, ao
mesmo plano das fotos e diagramas de alterações de tecidos,
músculos ou órgãos. Elas não condenam o que é representado
ao instante da presença anatômica ou morfológica. Ao contrá­
rio, a iconografia do alienismo nos traz condensações de his­
tórias de vida, metonímias de contradições sociais, metáforas
de afetos e experiências. Em outras palavras, ela nos permite
escutar o que está efetivamente ausente enquanto fato iconi-
camente representado.
Em alguns casos, a invisibilidade do agente etiológico e a
babel classificatória que disso deriva foi compensada pela fixa­
ção de um quadro clínico de referência que tivesse comprova­
da referência anátomo-patológica e do qual se poderia deslocar
o mecanismo etiológico para as doenças mentais. A sífilis, cujo
estado terminal induzia à catatonia, foi o primeiro exemplo
firmado por Bayle, em 1825. Depois dela vieram as demên-
cias, adotadas como paradigma por Kraepelin em 1883, ao
qual se seguiram a epilepsia, as encefalites, as lesões cerebrais
e até mesmo a afasia. Em todos os casos, a existência de um
achado orgânico, regularmente associado a uma forma discur­
siva, parecia sugerir a descoberta de uma conexão causai. Mas,
mesmo essa associação, mostrou-se inoperante para produzir,
por si mesma, uma semiologia, uma diagnostica e uma tera­
pêutica que funcionassem de forma covariante, uma vez que
havia heterogeneidade radical entre o agente etiológico e seus
efeitos sintomáticos. Mas, mesmo que esse fundamento bio­
lógico fosse achado no funcionamento cerebral, isso significa­
ria a fundamentação da psiquiatria na neurologia, destruindo
seu objeto próprio e reduzindo-a a uma técnica terapêutica
da clínica neurológica. É um paradoxo epistemológico pelo

434
qual a comprovação da hipótese pressuposta destrói o objetivo
da comprovação. Ao aderimos ao critério da homogeneidade,
perdemos a covariância, e se ficamos com a covariância, não
há mais homogeneidade.
Tudo se passa como se, à falta de uma terapêutica que reco­
nhecesse a disparidade da condição do sujeito em relação à ob­
jetividade da natureza orgânica, a clínica psiquiátrica recorresse
a formas subsidiárias de sustentação. A deontologia evolui para
o tratamento moral já em Pinei e para as diferentes práticas de
reeducação no alienismo em geral. A teoria da degenerescência,
desenvolvida por Morei e Esquirol, por meio da qual os vícios
morais transmitiam-se de geração a geração, redundando, por
acumulação, na doença mental, é um exemplo dessa prolifera­
ção do patológico para fora da ordem orgânica.
Ao final, e como efeito continuado da ruptura dos pressu­
postos constitutivos da clínica, o projeto de constituição da psi­
quiatria como clínica autônoma leva a uma crise de fundamen­
to. Há um arco histórico que registra esse empreendimento. Ele
começa quanto Esquirol (1838) substitui a atitude filantrópica
de Pinei pela atitude clínica, e termina quando a psiquiatria
produz sua crise de identidade ao se reconhecer apenas como
mediadora das relações entre o louco e a sociedade, em meados
da década de 1940 (Postei & Quétel, 1993, p. 471).
Seria possível argumentar que esse projeto foi retomado e
concluído com a descoberta da importância dos neurotrans-
missores, da determinação genética e com o estabelecimento
de uma verdadeira teoria empírica do sujeito por meio das
neurociências. Afinal, aqui se verifica, de fato, uma regra de
transformação constante e homogênea entre terapêutica, se­
miologia e diagnostica, a ponto de novas formas clínicas serem
diagnosticadas em função da descoberta de tratamento para
elas. A depressão, por exemplo, torna-se um quadro cada vez
mais deduzido dos efeitos inversos aos dos antidepressivos. O
déficit de atenção com hiperatividade, surge como um sín-
drome epidêmica na medida em que existe um tratamento

435
que lhe é definido. Há uma referência diagnostica consensual,
o M anual Estatístico de Transtornos M entais (Francês, 1994),
que se liga logicamente a uma semiologia e a uma terapêutica.
Entretanto tal classificação rompe explicitamente sua ligação
com a etiologia. A recusa da relação entre etiologia e semiolo­
gia aparece declaradamente:

O princípio organizador para todas as seções remanescen­


tes (exceto para os Transtornos de Ajustamento) consiste
em agrupar os transtornos com base em suas característi­
cas fenomenológicas compartilhadas, de forma a facilitar
o diagnóstico diferencial. A seção sobre “Transtornos de
Ajustamento” está organizada diferentemente, no sentido
de que estes transtornos são agrupados com base em sua
etiologia comum (por exemplo, reação de má adaptação a
um estressor). (Ibid., p. 10)

Curiosamente o único grupo clínico organizado a partir da


etiologia é o grupo mais próximo de uma etiologia “social” ou
“psicológica”. A exceção aponta perigosamente para a ruptura
do critério da homogeneidade (causas “sociais” para proble­
mas “neurofisiológicos”?). Mas ainda assim poderia-se argu­
mentar que a funcionalidade do procedimento e sua relação
com a produção de saber baseado em evidências, teriam alcan­
çado o ideal de consagração estrutural da clínica como uma
ciência. Contudo, não parece ser o caso de que esse conjunto
corresponda a uma clínica; ele corresponde mais exatamente
a uma forma radical de abolição da clínica e sua substituição
por uma tecno-ciência. Tal prática exprime mais a absorção
direta do paciente como objeto para o discurso médico, sem a
mediação da clínica. A figura do clínico e a experiência que lhe
é coextensiva são totalmente dispensáveis neste funcionamen­
to. E mais barato e mais simples, por exemplo, alterar os tipos
de medicamento disponíveis até chegar a uma solução que se
“ajuste” ao paciente, do que elaborar com precisão um diag­
nóstico exato acerca de qual tipo de depressão está em curso no
caso especifico. Já se mostrou, através de estudos comparativos

436
entre médicos e programas de computador, que estes realizam
diagnósticos e prescrevem tratamentos com maior eficácia,
menor custo e maior precisão do que os clínicos (Bergman &
Fors, 2008). Mesmo que restrições éticas e práticas tornem tal
procedimento pouco recomendável, seu embrião atual se loca­
liza mais na vertente das políticas de saúde e disseminação do
biopoder do que propriamente no solo da clínica. Há tal divi­
são de tarefas entre os que se dedicam a firmar a etiologia (os
laboratórios farmacêuticos), os que verificam uma semiologia
(laboratórios universitários), os que definem os diagnósticos
(associações de classe) e os que praticam a terapêutica (psi­
quiatras “clínicos”) que seria mais lícito sugerir que a função
destes últimos progressivamente se reduz à de um técnico que
protocola procedimentos. Rapidamente, o paciente o supera,
em qualidade e destreza específica, nesta arte.
A tecnociência psiquiátrica é de outra natureza; ela se or­
ganiza em torno do discurso do capitalista. Este discurso se
caracteriza por uma espécie de mutação do discurso do mestre
que inverte a relação entre o sujeito e o significante mestre
(SXVIII: 1970-71, 2/12). Algumas vezes, Lacan fala do dis­
curso do capitalista; algumas vezes, associando-o ao discurso
do mestre, e outras, separando-o, o que permite inferir, talvez,
duas formas discursivas associáveis ao fenômeno social do ca­
pitalismo. A principal característica desta segunda forma do
discurso do capitalista é que nele o lugar da verdade não é mais
um lugar abrigado, mas exposto e habitado por um significan­
te mestre. Inversamente, a relação do sujeito ao objeto é direta
no que se convencionou chamar de montagem de gozo ou,
simplesmente, consumo (Gonçalves, 2000, p. 67).
Isso já havia sido descrito como funcionamento geral da
medicina antes mesmo da virada farmacológica dos anos 1980
e do paradigma da medicina baseada em evidências:

O doente moderno, dizem, não quer ser tratado pessoal­


mente. Vai à clínica como a uma loja, a fim de ser servi­

437
do com o melhof, através de um aparelho impessoal. E o
médico moderna atuaria como um coletivo, por meio do
qual o doente é tratado, sem que o médico pessoalmente
sobressaia. (Jaspers, 1986, p. 42)

O ponto que quero ressaltar é a incompatibilidade da clíni­


ca como experiência, da clínica como estrutura e o discurso do
capitalista. Esta tem sido uma característica sistematicamente
apontada pelos que examinam o capitalismo como discurso e
laço social, ou seja, ele corrói, impossibilita e destrói a possibi­
lidade de verdadeiras experiências, substituindo-as por simples
vivências (Benjamin, 1936).

1 1 .3 . A C L ÍN IC A N A P S IC A N Á L IS E

Freud se forma e desenvolve a maior parte de sua obra no


período em que a clínica moderna encontra seu apogeu nas es­
feras da psiquiatria e da neurologia. Neste sentido, ele também
era um clínico, o que se evidencia em seus trabalhos iniciais
em neurologia e em sua experiência junto a Charcot na Salpe-
trière. Mas no espaço fechado dos problemas que a psiquiatria
e a neurologia enfrentavam para se constituir como clínicas,
Freud introduz uma perspectiva inteiramente nova. Em vez de
caminhar pacientemente a partir da semiologia para daí cons­
truir uma ligaçao diagnostica com as hipóteses etiológicas, ele
parte do ponto fraco do sistema: a terapêutica.
A base para tal movimento estava na descoberta de que os
sintomas histéricos poderiam ser simulados através da sugestão
hipnótica. Ao converter o método de investigação semiológica
de Charcot em método de tratamento, o método catártico,
todos os elementos da estrutura foram mutuamente afetados.
Esta é ainda uma clínica híbrida entre o olhar e a escuta. Mas
o olhar de que se trata na hipnose não foi feito para ver. E uma
espécie de ardil para que a verdade apareça em outro lugar, um
procedimento propedêutico para a intervenção sugestiva, uma

438
tática para extrair e incitar recordações. Freud afirma que o
uso do diva é uma lembrança do método catártico que perma­
nece no método-psicanalítico. Como símbolo da passagem do
olhar à escuta, o divã é também um instrumento específico de
corte para o olhar. O paciente se deita, mas não há inclinação
do olhar do médico sobre seu corpo.
Assim como a clínica moderna começa quando o médico
decide tocar no paciente e examiná-lo com as próprias mãos
na proximidade do leito, a clínica psicanalítica começa quan­
do Freud decide tirar as mãos de seus pacientes segundo o que
chamou de método da pressão. Esta variante da catarse é en­
contrada no caso de Emmy Von N. (Freud & Breuer, 1895d)
e teve vida breve. Consistia em encostar a mão na testa do
paciente, sugerindo que, quando a mão fosse retirada, ele se
lembraria. É no contexto do relativo fracasso desta técnica,
híbrida entre a sugestão e a hipnose, que surge a associação
livre. Ê interessante notar a natureza clínica dos argumentos
empregados para justificar o abandono da catarse: é um mé­
todo sintomático, que não toca as causas, implicando recaídas
constantes; depende da autoridade do médico e da empatia
do paciente, o que nem sempre se consegue; não possui cor­
relação diagnostica estável, pois apenas algumas histerias são
hipnotizáveis; e, finalmente, não separa a natureza dos sinto­
mas das queixas dos pacientes. Trata-se de indicações críticas
contra os quatro elementos da estrutura da clínica.
A escuta torna-se, assim, essência desse novo projeto clíni­
co. Escuta metódica, atenta ao detalhe, à pequena incongru­
ência, ao deslize, à repetição ou à ruptura da fala. Flutuante e
aberta a interrupções, insistências e silêncios do discurso. Tal
escuta trará para o centro da cena clínica aquilo que o olhar
médico deixava na sombra. A psicanálise pode ser assim defi­
nida como método de escuta e intervenção sobre a fala, mas
também como método de leitura da escrita que constitui a
materialidade do inconsciente. A ideia de uma escuta ativa e
espontânea, assim como uma leitura não visual, pode parecer

439
estranha. Para clarificáè-la, poderíamos fazer uma comparação
com a audição musical. Quando ouvimos uma sinfonia, isso
nos desperta uma série de impressões, imagens e juízos; no
entanto, alcançar a complexidade da polifonia dos instrumen­
tos, apreciar a sucessão das notas e a simultaneidade dos acor­
des, ponderar o valor dos ritmos e dos contrastes melódicos
parece exigir uma espécie de técnica. Todavia, o termo técnica
soa um tanto impreciso neste contexto, pois a habilidade em
questão depende também de uma exposição ao gênero musi­
cal abordado, da atenção a certas diferenças significativas, da
apreciação comparativa do sentido histórico ou cultural de
uma determinada peça e, principalmente, da consciência de
um sistema de notação que permite interpretar os acordes.
Isso ocorre de forma homóloga na escuta clínica.
Bercherie (1983, p. 25), em estudo específico sobre a his­
tória e a estrutura do saber psiquiátrico, argumenta que: “po­
demos falar em clínica psicanalítica sob a condição de não
esquecer que, nesta expressão composta, o adjetivo é mais
importante do que o substantivo, e os dois termos são inse­
paráveis”.
Ou seja, a psicanálise é uma clínica, mas uma clínica que
submete sua estrutura a seus próprios pressupostos. A hipó­
tese que introduzimos aqui é a de que a psicanálise subverte,
na acepção forte do termo, o estatuto dos parâmetros da clí­
nica da qual se originou. Há uma relação de corte e ruptura
constitutiva quando se pensa na passagem de uma clínica do
olhar para uma clínica da escuta. Há, ainda, uma relação de
subversão quando se retomam seus elementos.
Subversão significa inverter e deslocar o sentido de um
processo. Não é apenas a passagem ao contrário, mas é esta
passagem acrescida de um deslocamento novo. Sua figura não
é o círculo, mas a elipse. Ou seja, uma passagem que inverte o
centro e o mantém em deslocamento. Versus deriva do verbo
latino verso, que indica “girar’, “torcer”, “examinar” ou “vol­
tado em direção a”. Notemos a insistência das variações do

440
termo verso na obra de Lacan: a subversão do sujeito (sub-ver-
sion), a travessia da fantasia {tra-verser) , o avesso da psicanálise
(envers também-tem o sentido de “retorno”), as versões ou
p ére-versões do Nome-do-Pai (version e pére-versiorí). É neste
sentido que falamos em uma subversão da clínica, com a pre­
servação de sua estrutura.

11.3.1. SEMIOLOGIA

Admitindo-se este descentramento radical do olhar, na


subversão freudiana, qual seria o papel reservado à semiologia?
Abandonando o sistema baseado na semântica orgânica, que
prescrevia a estabilidade do signo em relação a seu referente,
Freud se interessará pelo caráter singular e instável da ligação
entre o significante e o significado e pelo aspecto multiface-
tado e temporal da produção da significação. Por exemplo,
uma conversão histérica, como a paralisia de um membro, se
realiza sobre a representação que o sujeito faz deste membro, e
não pela sua estrutura anatômica. É o órgão sócio-simbólico,
não o órgão anatômico que é convertido.
Os relatos de caso e os fragmentos clínicos trazidos por
Freud e pela tradição psicanalítica que o sucedeu representam
uma ruptura estilística e epistêmica em relação aos relatos da
clínica tradicional. Tais relatos realizam uma genealogia do
sujeito e uma arqueologia do sentido (Birman, 1991, p. 107).
São histórias que se apropriam de recursos da literatura e seu
suporte linguístico-discursivo: a relatividade, a temporalidade
e a arbitrariedade da significação, o caráter trágico, cômico ou
dramático de sua experiência, sua imprevisibilidade e sobre-
determinação.
As regras de composição do sonho, do chiste, dos atos fa­
lhos e dos sintomas podem ser descritas em termos de uma
semiologia própria. Deslocamento, condensação, condição de
figurabilidade, regressão e elaboração secundária, adquirem,
neste sentido, a textura de uma gramática discursiva sobre a

441
qual se erige a noção de inconsciente. É preciso salientar que
tal proximidade foi reconhecida já na década de 1940 por au­
tores da psicanálise, como Lacan, mas também da lingüística
estrutural, como Jakobson (1970, p. 33), da filosofia neokan-
tiana das formas simbólicas, como Langer (1989), e ainda em
movimentos estéticos, como o surrealismo.
A subversão da semiologia é interna a qualquer projeto clíni­
co que se queira separar da clínica médica. Isso implica, direta
ou indiretamente, a adoção de uma perspectiva específica e dife­
rente sobre o entendimento do funcionamento dos signos. Esse
movimento, no caso da psicanálise, deixa em aberto o problema
da fixação de sua referência semântica. Isso não passou desper­
cebido por Freud, e deixou marcas contínuas em sua obra: a
sexualidade, o trauma, a castração e, no mais, todo o comple­
xo de conceitos que remetem ao originário (Ur) tem por fun­
ção precisar ou estabilizar a referência semântica da semiologia
psicanalítica. Da retórica (Chaitin, 1996) à análise de discurso
(Leite, 1994), da semiótica (Saporiti, 1996) à pragmática (Frei­
re Costa, 1994) ou ainda da hermenêutica (Ricoeur, 1966) aos
teóricos da desconstrução (Derrida, 1997), vemos como são as
ciências da linguagem, e não a biologia, o campo de maior inter-
locução para a psicanálise na segunda metade do século XX. A
proximidade da semiologia analítica com o campo da literatura
também vem sendo assinalada sob muitos ângulos, como a es­
cuta poética (Chnaiderman, 1989), o romance policial (Zizek,
1991a), o problema da tradução (Arrojo, 1993) e os gêneros da
literatura (Mahony, 1990). As ciências da linguagem estão para
a psicanálise assim como a anatomia está para a medicina.
Lacan procurou inicialmente descartar o problema da re­
ferência semântica, mostrando que seria possível uma leitura
rigorosa do conceito de inconsciente prescindido deste ponto
(E: 1957b). Mas, no momento subsequente, ele reintroduz o
problema sob nova angulação, qual seja, a da referência se­
mântica negativa, que é o que encontramos fundamentalmen­
te na noção de objeto a e na teoria da sexuação.

442
A semiologia psicanalítica possui uma característica espe­
cial: ela se completa apenas no próprio dispositivo de trata­
mento. Segundo a tese que o que “constitui o campo analíti­
co é idêntico ao que constitui o fenômeno analítico, ou seja,
o sintoma” (SIII: 1955-56, p. 189), entende-se que os signos
que interessam à psicanálise são definidos por sua relação ao
sujeito em situação de fala ao outro. Ou seja, não é uma se­
miologia referida à uma ontologia em terceira pessoa, segun­
do a qual uma boa descrição permanece válida em todos os
mundos possíveis para qualquer sujeito, mas uma ontologia
em primeira pessoa. Em Lacan assistimos ao desenvolvimento
progressivo de categorias semiológicas e uma preocupação sis­
temática com esta dimensão da clínica. A semiologia lacaniana
erige-se em torno de dois modelos consistentes internamente,
mas de certa forma díspares entre si,
O primeiro modelo domina a primeira parte de sua obra,
desde os escritos psiquiátricos até a descoberta do estrutura-
lismo (1932-1953). Nele encontramos a tentativa de estabe­
lecer uma semiologia baseada na noção de forma, complexo
ou imago. A ideia de forma nos remete à certos modos típi­
cos de produção de objetos, tomados quer do ponto de vista
da sua representabilidade no espaço da formação de imagens
(complexo de desmame, complexo de intrusão, complexo de
Édipo, estádio do espelho) (OE:1938), quer na dimensão de
formas temporais associáveis aos níveis de integração da alte-
ridade (instante de ver, tempo de compreender, momento de
concluir) (E: 1945a), quer ainda em modos de relação inter-
subjetivos ligados à lógica do coletivo (OE:1947), tais como a
autopunição e a reivindicação (1932), a forma lógica da sus­
peita (OE:1945-46), o crime (E:1950a; OE:1951b). No cen­
tro desta semiologia encontra-se a distinção entre as formas
imaginárias e o valor simbólico destas formas. É uma semio­
logia das form as de alienação, no tempo, no espaço, no outro.
Uma semiologia das formas de reconhecimento que presidem
ás relações desejantes.

443
O segundo modelo semiológico presente em Lacan pode
ser resumido na tese do retorno à Freud (1953-1960) e na
introdução do paradigma representado pelo inconsciente es­
truturado como linguagem. E por isso que este programa co­
meça enfatizando a importância da distinção entre análise do
eu e análise do discurso (SI: 1953-54). Ou seja, para além das
formas particulares que sobredeterminam os modos mais ou
menos típicos de formação de objetos há uma estrutura uni­
versal representada pela linguagem. Aqui a semiologia laca­
niana herdará o método de dualizações presente na lingüística
e na antropologia estruturais: o significante e o significado, a
significância e a significação, a estrutura da língua e a dialética
da fala (E:1953a), a metáfora do sintoma e a metonímia do
desejo (E:1957b), o enunciado fantasmático (SVL1958-59) e
a enunciação desejante (E: 1960c).
Ao longo de todo este período Lacan tenta integrar sua
topologia do sujeito (primeiro modelo) com sua doutrina do
significante (segundo modelo). As diferentes dialéticas pre­
sentes na obra de Lacan deste momento são ótimos exemplos
destas tentativas de integração semiológica: a dialética entre
desejo e demanda, a dialética da transferência e da resistência,
a dialética entre código e mensagem.
No período subsequente (1960-1967) podemos acompa­
nhar uma revisão no primeiro modelo representado pelas rela­
ções de forma. Para além da oposição entre as formas imaginá­
rias e simbólicas Lacan desenvolve uma semiologia do ato, ou
seja, as diferentes modalidades de relação do sujeito ao Outro
são suplementadas pelas variantes relações do sujeito com seu
ato. Consideremos aqui as variações permitidas pela estrutura
do ato, considerado como ato de satisfação (teoria dos gozos)
(E: 1963a), ato analítico (teoria do tratamento) (SXV:1967-
68), modalidades de inserção ou de relação com a fantasia
(SXIV: 1966-67), modalidades de incidência do objeto a, e o
próprio espectro de formas de fracasso da relação entre juízo e
ato, a saber, a angústia, tal como aparece no seguinte modelo
semiológico (SX: 1962-63, p. 22):

444
Dificuldade
Movimento Inibição Impedimento Embaraço
ir Emoção Sintoma Passagem ao Ato
Efusão Acting Out Angústia

No período final de sua obra (1968-1981) Lacan retoma


a dimensão semiológica tentando superar tanto os limites da
semiologia estrutural, com a introdução da noção de letra e de
escrita, quanto os impasses de uma teoria das formas do sujei­
to (ou dos tipos de defesa), com a teoria dos quatro discursos
(SXVII: 1969-70) e com a teoria da sexuação (SXX: 1972-73).
Tanto a semiologia das formas de inscrição do sujeito quanto
a semiologia do significante respondem a esta exigência pri­
mária de tomar as leis da linguagem como referencia para os
processos patológicos. Porém, ao que tudo indica, a última
fase da obra lacaniana ocupa-se mais de problemas diagnósti­
cos e terapêuticos, tentando elevar a semiologia à dimensão de
enodamentos e desencadeamentos entre o Real, o Simbólico
e o Imaginário.

11.3.2. ETIOLOGIA

No plano da etiologia, a psicanálise introduz uma subver­


são correlativa da noção de causalidade. Este é o tema que
domina as origens da psicanálise, e que melhor responde ao
interesse inicial de Freud pela clínica: estabelecer a etiologia da
histeria. Proveniente da tradição de fisiologistas alemãs, para a
qual a determinação das causas se tornara a tarefa fundamen­
tal, capaz de integrar a pesquisa com a clínica, Freud fixara
para si este programa de investigação. Lembremos que Freud
havia trabalhado por seis anos no laboratório de fisiologia de
Brücke, seu professor, e passou pelo serviço de psiquiatria de
Mcyncrt com o objetivo de se estabelecer como neuropato-
logista. Trabalhou no laboratório de histologia do sistema
nervoso e depois no serviço de neurologia, onde cuidava do

445
tratamento de doenças,nervosas; “essa formação nada tinha de
original. Estava de acordo com a visão organicista da época”
(Chertok & Stengeres, 1990, p. 49).
Ao contrário da tradição reinante de estudos sobre a histe­
ria, que enfatizavam a diagnostica e a semiologia, Freud con­
centrou-se na hipótese de que seria possível articular etiologia
e terapêutica de forma regular. É este o objetivo que transpa­
rece em textos seminais da psicanálise tais como: Observação
de um caso de hemianestesia de um homem histérico (1886d),
que descarta a determinação da histeria pelo gênero; Sobre o
mecanismo psíquico dos fenôm enos histéricos (1893a); Obsessões e
fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia (1895c); A herança
e a etiologia das neuroses (1896a); Minha tese sobre o papel da
sexualidade na etiologia das neuroses (1906a); além do texto de
síntese sobre o assunto, Algumas perspectivas sobre o desenvolvi­
mento e a regressão: etiologia (1916-17). Toda a correspondência
com Fliess, considerada o marco inaugural da psicanálise, está
baseada na discussão central da etiologia, como o atesta as duas
grandes missivas A etiologia das neuroses (1896a) e A Sexualidade
na etiologia das neuroses (1898a). Todos os grandes casos clíni­
cos descritos por Freud comportam uma discussão etiológica.
Ocorre que com o desenvolvimento das hipóteses iniciais em
torno do papel da sexualidade e do recaicarnento de recordações
infantis, a etiologia psicanalítica tende a se ramificar em níveis
secundários, orientando-se para a etiologia específica de tipos
clínicos, de sintomas e de formas de angústia. De tal forma que
a descrição de mecanismos etiológicos torna-se indiscernível em
relação à investigação do funcionamento psíquico. É, portanto,
pela desintegração da fronteira entre normal e patológico que a
perspectiva etiológica se desdobra na temática mais genérica da
causalidade em psicanálise.
Uma premissa que organiza o desenvolvimento da psico-
patologia freudiana desde o texto sobre as Psiconeuroses de De­
fesa (1894a) é a de que as neuroses não devem ser clinicamente
definidas por um conjunto de signos estáveis ou regulares, isto

446
é, por sua semiologia fixa, mas por aquilo que a torna uma uni­
dade, ou seja, a capacidade de produzir sintomas segundo sua
lógica de formação. As principais entidades diagnosticas estuda­
das por Freud nao são quadros de perfil evolutivo estável, com
fases separadas e com sinais diacríticos e patognomônicos cons­
tantes. Elas estão mais próximas de síndromes, ou seja, quadros
nos quais a presença de todos ou de alguns signos é ocasional,
com raros elementos estáveis e presentes em todos os casos.
Portanto é na aptidão para formar sintomas e não apenas na
apresentação necessária de todos os signos e sintomas que Freud
centrará seu interesse. Esta relativa dispersão semiológica será
compensada pelas pretensões de uma terapêutica que não seja
apenas sintomática, como o hipnotismo, mas que altere algo no
nível de sua causalidade. A procura desta causalidade se refere,
no texto citado, basicamente ao destino do “afeto ou soma de
excitação”: conversão na histeria, representação substitutiva na
neurose obsessiva e objeto na fobia.
A ideia de uma determinação única dos sintomas está au­
sente em Freud. De fato, a descrição dos agenciamentos repre-
sentacionais e pulsionais que movem a produção de sintomas a
partir de conflitos em termos tópicos, dinâmicos e econômicos
é insuficiente para responder a questão: por que se contrai uma
neurose? A hipótese de Freud nos remete a uma espécie de so-
mação causai. Em Os caminhos da form ação de sintomas (1916c),
encontramos o seguinte esquema etiológico das neuroses:

(3) Disposição por Fixação (4) Acontecimento Acidental


da Libido (causa eficiente) (causa desencadeante)

\
(1) Constituição Sexual (2) Acontecimento Infantil
(causa predisponente) (causa específica)

447
Explicitemos os componentes deste quadro:
(1) A Constituição Sêxual. Freud participava de um ambien­
te psiquiátrico no qual o componente hereditário das doenças
nervosas era um ponto consensual. Ao final do século XIX
discutia-se a noção de hereditariedade, especialmente no ce­
nário psiquiátrico francês e alemão, a partir de uma amálgama
entre lamarkismo e darwinismo. Este último, de recente im­
plantação na Alemanha, foi absorvido por Freud, de forma a
preservar a transmissão de certas disposições hereditariamente
(Ritvo, 1992). O que comporia este extrato herdado, pré-his­
tórico ou filogenético varia ao longo da obra de Freud. Inicial­
mente seria a disposição à dissociação da consciência (Char­
cot), depois a “aptidão” para a conversão (Breuer), em seguida
as protofantasias e as experiências fundamentais da aurora da
civilização (Monzani, 1990). Tais “experiência arcaica” expli­
cariam indiretamente certas particularidades da transferência
neurótica. Argumento semelhante aparecerá em textos como
Aquisição e Controle do Fogo (1932a), Sobre o Sentido Antitético
das Palavras Primitivas (1910e) e, sobretudo, em Totem e Tabu
(1912-13).
(2) A contecimento Infantil. Trata-se da causa material da
neurose. Aqui Freud se refere às vicissitudes da história infantil
capazes de induzir o redespertar da fantasia herdada. Um en­
contro entre o universal da fantasia com o particular daquele
indivíduo. Por exemplo, a premissa universal do falo (uma das
teorias sexuais infantis) é confrontada com uma experiência
singular que atesta a castração, um ferimento acidental ocor­
rido na infância, por exemplo. Deste encontro produzem-se
efeitos retrospectivos em termos de recalcamento e de angús­
tia. Freud assinala que a ameaça de castração só se torna eficaz,
do ponto de vista causai, quando certas propriedades associa­
tivas são inseridas no trabalho de simbolização deste encontro.
Em termos freudianos este encontro é uma experiência relati­
va à castração, como se discute em textos sobre o D eclínio do
complexo de Edipo (1924d), As consequèncias psíquicas da dife­

448
rença anatômica entre os sexos (1925j) e o Fetichismo (1927e).
O acontecimento infantil é fundamentalmente a significação
articulada de três eventos, que nem sempre se apresentam em
Freud de acordo com a mesma ordenação: a ameaça de castra­
ção, a angústia e o encontro da castração.
(3) Fixação. Trata-se da causa eficiente da neurose. A con­
jugação das duas séries causais precedentes estabelece o que
Freud chamou de ponto de fixação. Na conferência sobre a
formação de sintomas este ponto é apresentado como um nó
de satisfação da pulsão que articula o narcisismo secundário
próprio do eu com as exigências pulsionais e desej antes que
posicionam o sujeito diante do supereu. Quando em 1905
falava-se do sintoma como “prática sexual do neurótico”, tal
prática continha o elemento perverso polimorfo, inerente à
sexualidade infantil. Este elemento envolve a substituição do
eu na posição de objeto por uma identificação sintomática.
Ou seja, o sintoma torna-se assim expressão da fantasia tan­
to como prática pulsional quanto como modo de relação ao
outro. Assim como a regressão, a fixação pode ser triplamente
definida como um modo de relação intersubjetivo (identifica­
ção), interobjetivo (fantasia) e sistêmico (processo primário,
compulsão à repetição). Como resultante dos processos cau­
sais anteriores, poderíamos falar aqui de fantasia, como arti-
culador causai entre universal e particular da experiência. O
ponto de fixação é assim um estilo singular da pulsão, uma
resposta ao mesmo tempo única e universal ao problema da
castração. Justamente por isso o ponto de fixação (Fixierung)
revela e esconde simultaneamente a castração.
(4) Acontecimento Acidental. Trata-se aqui da causa preci-
pitante ou desencadeadora do quadro neurótico. Um acon­
tecimento que se liga ao ponto de fixação tornando-o eficaz.
Pelo princípio da posterioridade {nachtraglichkeit), algo cro­
nologicamente posterior retoma um traço mnêmico infantil
anterior, tornando-o ativo na produção do sintoma. O acon­
tecimento desencadeante é assim uma segunda resposta à cas­

449
tração, um segundo retprno a determinados traços mnêmicos.
O que determina o retorno e a produção de um sentido sobre a
castração, e daí a formação de um sintoma, é definido por Freud
como a Versagung do objeto, que na edição brasileira aparece
traduzido como frustração em geral relativa ao objeto. Na edição
espanhola o termo empregado é ora resignacion ora denegacion.
A etimologia da palavra alemã, no entanto, nos remete ao sufixo
sagen, literalmente, dizer, falar. Propomos assim, que se trate na
causa desencadeante de um, re-dizer, ou sobre-dizer (lendo o
prefixo Ver com valor de acentuação) ou eventualmente de um
des-dizer a castração e o objeto que ela faz supor.
O programa inicial de Lacan, com relação à noção de etio­
logia, passará por uma revisão sistemática da noção de causa­
lidade. Apreendida em termos freudianos como mecanismos,
determinações e condicionalidades, Lacan percebeu que havia
uma espécie de heterogeneidade fundamental entre razões ex­
plicativas e razões compreensivas no uso freudiano da noção
de causalidade. Do ponto de vista pragmático isso representa­
ria uma mistura entre causas, motivos e razões (Freire Costa,
1990). Uma heterogeneidade deste tipo pode ser o foco desa-
gregador de um programa clínico, dissociando, por exemplo, a
dimensão etiológica da dimensão semiológica (como apontou
Ricoeur (1966)) ou mesmo da dimensão terapêutica (como
apontou Sartre (Gonçalves, 1996)).
Há dois momentos fundamentais desta revisão (Gianesi,
2011). No primeiro, no qual nos deteremos com mais deta­
lhes, a noção de causalidade é revertida pelo conceito de estru­
tura. A estrutura não é nem um mecanismo, nem uma rede
de condições, e também não se reduz à determinação dialética
reflexiva, mas de certa forma, pode ser construída de modo a
agregar dentro de si todos estes modelos de causalidade. O se­
gundo momento da revisão lacaniana da ideia de causalidade
reintroduz, a partir de 1964, a noção forte de causa. Ela será
ligada inicialmente a noção de causação do sujeito (alienação
e separação co m o categorias existenciais) e objeto a causa de

450
desejo (como causa negativa) e depois disseminada na teoria
do Real sob as diferentes expressões da causalidade negativa.
Existem diversas noções de estrutura na obra de Lacan. A
estrutura do inconsciente, formalizada a partir de um modelo
lingüístico cujo produto é a lógica do significante, é sem dú­
vida a mais conhecida; mas poderíamos nos referir também à
estrutura do ato de fala, a estrutura do discurso, a estrutura
do objeto, a estrutura topológica das relações entre demanda
e desejo (o toro), da fantasia (o cross-cap), do sujeito (a banda
de moebius) e da transferência (a garrafa de Klein). A estrutu­
ra deixa de ser, gradualmente, um constructo metodológico e
se aproxima de uma indagação sobre a própria realidade (Eco,
1989), à medida que ocorre uma ontologização da causalidade.
A estrutura não é um estado cuja fenomenologia possa ser
descrita, mas uma hipótese acerca da forma como o sujeito se
engendra em relação à linguagem. A estrutura clínica, em sua
operação etiológica, não se define, portanto, pelo que o sujeito
faz ou pela avaliação do seu comportamento, mas por como
ele fala do que faz, na transferência.
A causa predisponente da neurose será considerada como
espaço de discurso onde uma criança é recebida, onde seu lu­
gar está prescrito antes mesmo do seu nascimento, a partir da
mitologia familiar, da estrutura de parentesco daquela cultu­
ra e do desejo específico que a precede. A noção de Outro,
identificado ao campo simbólico, é, portanto, um dos compo­
nentes da estrutura. O Outro, contudo, possui uma flutuação
semântica importante, ora ele se aproxima do que a tradição
fenomenológica alemã chama de mundo da vida (Lebenswelt
— Umwelt), o mundo dos sentidos possíveis (Prado, 1996),
ora prende-se ao entendimento da linguagem como cálculo ou
sistema (Kush, 1989).
O acontecimento acidental da infância, segundo termo da
etiologia freudiana, será considerado à luz das redes de sobre-
determinaçao significante. Aquilo que é supostamente aciden­
tal se transforma assim em uma necessidade de estrutura, um

451
conjunto de relações entre lugares e posições. Assim quando o
pequeno Hans desenvolve uma fobia a cavalos, o significante
cavalo (Pferd) só funciona como significante porque bá um
lugar na estrutura, o lugar paterno, que sustenta sua eficácia.
O que é próprio da neurose, e que a distingue etiologicamente
da psicose ou da perversão, é a tomada de uma posição em
relação a este lugar.
O tema da fixação (Fixierung), terceiro ponto da etiologia
freudiana, deve ser considerado em Lacan a partir de uma re­
visão da teoria do objeto, e consequentemente, da fantasia. O
acontecimento empírico, a falta de pênis na mulher, torna-se
um acontecimento simbólico, a falta instituída pelo falo, isto
é, por um significante. A castração é definida como a falta sim­
bólica (fálica) de um objeto imaginário (imagem do pênis). A
compulsão à repetição desta falta é o próprio movimento do
desejo no agenciamento metonímico dos significantes. Ora, o
que está perdido, se observamos o esquema da metáfora pater­
na é o significado envolvido neste signo.
A fixação torna-se assim a própria construção deste objeto
regredido da demanda (Soler, 1995). No caso do Homem dos
Lobos (1918b) este ponto de fixação aponta para a analidade,
conforme se nota no plano dos sintomas, mas também para
a pulsão escópica (SXI: 1964a). No sonho dos seis lobos nos
galhos da nogueira um deles olha fixamente para o paciente
que acorda sob efeito da angústia. Lacan nota que este olhar é
o próprio homem dos Lobos tomado em sua fantasia funda­
mental. A construção de Freud caminha no sentido de que a
cena primária, olhar a relação sexual dos pais (ad tergo) signi­
fica a castração como perda do pênis ou por deslocamento, do
rabo do lobo. O paciente se inclui na cena retendo a posição
imediatamente anterior à constatação da castração, isto é, a
satisfação anal. O caso se presta a distinguir a fixação (anal) da
fantasia (escópica).
O quarto termo da etiologia freudiana é o acontecim ento
acidental, da vida do adulto, que dá origem a um novo de-
sencadeamento de sintomas da neurose. Geralmente é este o
elemento que o paciente traz ao localizar a origem do seu so­
frimento. Todas as condições da neurose estão dadas, e inclu­
sive, como observa Freud a propósito do Homem dos Ratos,
às vezes uma neurose completa bem antes disso. Neste caso, o
relato feito pelo cruel capitão tcheco, acerca da tortura com ra­
tos, aparentemente provoca uma série de obsessões, formações
reativas e fórmulas protetoras que autorizam o diagnóstico de
neurose. A Versagung do objeto, como vimos acima, é desloca­
da por Lacan à condição de uma contingência estrutural, ou
seja, uma necessidade. Não há objeto imanente à pulsão e esta
indeterminação é a condição pela qual qualquer objeto possa
ser tomado por ela. Mas se não há objeto, como ele pode ser
Versagung.? Pelo que expusemos acerca da fantasia, como ficção
estruturante do objeto, a resposta só pode concernir ao fracas­
so de uma dada montagem desta fantasia. Freud ao falar da
fantasia em Bate-se em uma criança (1919e), mostra como esta
se faz em versões ou conjugações. Lacan lê esta determinação
com seu esquema causai, baseado na tripartição real, simbóli­
co e imaginário:
(a) vertente simbólica baseada em uma forma lógico-gra-
matical (voz ativa, passiva e reflexiva);
(b) vertente imaginária baseada na semântica constituída
pelas cenas “traumáticas”, pelos afetos (vergonha, cul­
pa, nojo) e pelas identificações do outro como objeto; e
(c) vertente real, constituída pelo aspecto inominável e re­
petitivo do objeto.
Uma vez apresentada a releitura de Lacan em relação à fun­
ção etiológica freudiana poderíamos nos encontrar com a se­
guinte objeção: a leitura estruturalista trai a intenção freudia­
na de inventar um método que fosse capaz de curar a neurose,
ao modificar sua causa. Este tipo de transformação fica invia­
bilizado pela própria noção de estrutura como algo que não se
transforma. De fato, o que se pode esperar da clínica psicanalí­
tica diz respeito apenas aos efeitos da estrutura (especialmente

453
com relação ao sujeito) |nunca em relação a ela mesma. Não
há, nesse sentido, passagem da neurose à psicose ou da psicose
à neurose e assim por diante. Neste sentido a ideia de uma
cura da neurose não é de forma alguma a passagem a uma
condição de normalidade psíquica, mas a invenção de novas
alternativas para responder às sobredeterminações estruturais.
Por exemplo, a noção de determinação significante (auto-
maton), ou de encontro com o Real (tychê), são duas maneiras
de pensar materialmente a causalidade em um registro dife­
rente do que se verifica em boa parte das ciências naturais.
A concepção vigente na clínica moderna supunha algumas
propriedades causais, verificadas na esfera do organismo e
coextensivas ao campo da natureza em geral. Algumas dessas
propriedades são subvertidas pela psicanálise, outras sao mera­
mente abandonadas outras ainda são mantidas. Por exemplo,
no processo de formação de sintomas, bem como na decisão
de determinada estrutura neurótica (histérica, obsessiva ou
fóbica), e ainda na própria constituição do sujeito, podemos
apontar exemplos deste hibridismo causai. Acontecimentos
cronologicamente posteriores a determinado evento retor­
nam sobre esse mesmo evento, modificando-o. Determinado
acontecimento pode tornar-se traumático muito depois de sua
ocorrência. Uma paciente (Freud & Breuer, 1895d, caso Ka-
tharina) que assistira a seu tio manter relações sexuais com
uma prima, mantém inicialmente suspensa a significação des­
te acontecimento. Este lhe parece algo curioso, mas relativa­
mente indiferente. Muito tempo depois, ela é surpreendida
por um abraço masculino que lhe toca no mesmo lugar em
que vira a menina ser tocada pelo tio. Ela retroage sobre a cena
anterior, conferindo-lhe uma significação sexual. A partir dis­
so, a cena é esquecida e, em seu lugar, surgem sintomas: falta
de ar, sensação de opressão sobre o peito, vertigens. Em Lacan,
a subversão da noção de causalidade não se reduz a este tipo
determinação significante (E: 1955b). Há, ainda, a introdução
da noção de causalidade do desejo, para a qual a noção de

454
objeto a adquire um valor específico. O conceito de sobrede-
terminação (lJberdeterm inierungj e a ideia de que nada ocorre
ao acaso na vida psíquica não reflete o mesmo tipo de causa­
lidade descrito por Laplace - pelo contrário, é uma forma de
materialismo que inclui o acaso, exatamente como postulava
Lucrécio com a noção de clinamen.
A noçao de objeto a subsume as quatro modalidades de
causação do mal-estar que descrevemos na origem da medici­
na grega, redescritas pela clínica médica, inaugurada no século
XVIII e subvertida pela psicanálise. O objeto a pode ser pensa­
do como um objeto intrusivo, traumático, que incide desde o
exterior, mas apoiado na fantasia. Ele é, portanto, uma causa
interna e externa, índice da falta para o desejo e do excesso
para o gozo. Além disso, objeto a é o que mantém a ilusória
unidade de um sistema simbólico; o fragmento do Real que
organiza a realidade e aquilo que colocado entre parênteses
mantém a unidade da imagem. Ele é o objeto perdido, que
constitui e garante certa unidade da realidade, objeto funda­
mental do narcisismo de alguém. Portanto, ele regula os pro­
cessos de perda e de recomposição da experiência. Em terceiro
lugar objeto a delimita a incidência da repetição como causa
ausente na cadeia significante (automaton) e como encontro
do real (tychê). Portanto é o objeto a, no interior da sexuação,
que introduz as experiências de indeterminação e de determi­
nação para um sujeito. Finalmente é também o objeto a que
reúne a lei ao desejo, o ponto de instituição e violação de um
tabu simbólico no pacto social. E em torno deste objeto a que
se estabelecem as experiências produtivas de sublimação, de
angústia e de fa d in g à o sujeito. E fácil perceber como, nos di­
ferentes desenvolvimentos teóricos de Lacan o objeto a cum­
pre sempre uma função etiológica:
(a) Objeto a causa de desejo, no quadro da teoria da defesa e
da dialética entre desejo e demanda, desenvolvida até
os anos 1960.
(b) Objeto a condensador de gozo, objeto da angústia e ane-

455
lador da consistência entre os registros do Real, do
Simbólico e do Imaginário, no interior da teoria da
fantasia, desenvolvida entre 1960 e 1966, função reto­
mada também na teoria do nó borromeano desenvol­
vida entre 1973 e 1979.
(c) Objeto a mais-de-gozar no quadro da teoria dos quatro
discursos, desenvolvida entre 1966 e 1970.
(d) Objeto a que a mulher representa para o homem, no
quadro da teoria da sexuação desenvolvida, entre 1970
e 1975.
Nesse contexto, expressões como evento, acontecim ento e
ocorrência devem ser transladadas de sua relação com o fe­
nômeno para sua ligação com a lógica da aparência. Trata-
se de um acontecimento de linguagem, não de uma conexão
entre fenômenos. Fenômenos, na acepção objetivista, não se
alteram aos serem redescritos; não se modificam pela maneira
como os nomeamos. Eles são, em si, resultados de sínteses au­
tônomas entre a passividade da intuição sensível e a esponta­
neidade da apercepção dos conceitos. A subjetividade, ao con­
trário, possui a propriedade de se transformar à medida que a
descrevemos, redescrevemos, nomeamos, desconstruimos ou
narramos. Dizer a alguém que ele sofre de tuberculose ou he­
patite não transforma a própria tuberculose, mas pode afetar e
transformar radicalmente o sujeito. É somente em função da
hom ogeneidade pressuposta entre a concepção semiológica e
diagnostica de sintoma, como matéria de linguagem intersub-
jetiva, e a concepção etiológica e terapêutica de intervenção
baseada na fala que o sintoma pode ser reversível pela interpre­
tação sob transferência.

11.3.3. DIAGNÓSTICA

Com relação ao diagnóstico, a subversão freudiana não foi


menor em envergadura. Em vez de uma classificação exaustiva
e de uma descrição objetivante, Freud reintroduz uma homo­

456
geneidade entre tratamento e diagnóstico, abolida na clínica
psiquiátrica. Vimos que o sujeito deste dispositivo era o dis­
curso médico, representado pelo clínico, e seu objeto, o pa­
ciente, representado por seu corpo. Ora, a psicanálise inverte e
desloca essa relação. E o analisando quem será posto, por con­
dição do método clínico, na posição de sujeito. Inversamente,
o analista, ainda que no lugar de agente do discurso, exer­
cerá sua ação na posição de objeto. Seguindo essa estratégia,
verifica-se que a relação estabelecida com esse objeto replica e
acrescenta algo novo aos modos objetais de construção, for­
mação e constituição de objetos que caracterizam as diferentes
estruturas clínicas.
O diagnóstico é a leitura dessas articulações entre traços,
significantes e sintomas em sua reatualização da realidade se­
xual do inconsciente, ou seja, é o diagnóstico feito não ape­
nas através da transferência, mas da transferência. Isso implica
uma reformulação radical da psicopatologia. Ela não exprime
quadros fixos para um observador anônimo, mas formas mais
ou menos regulares de transferência. Aqui poderíamos decom­
por as diferentes ordens de diagnóstico em função das diferen­
tes ordens de questões implicadas na noção de transferência: o
tipo de relação de fala (o modo específico como a mensagem
retorna de forma invertida ao próprio sujeito), o tipo de re­
lação ao saber (atribuído, suposto, exposto), o tipo de com-
pletamento do sintoma pela demanda (no Outro, do Outro),
o tipo de aparelhamento de gozo (histérico, universitário, de
mestre), o tipo de relação com a falta (recalque, forclusão, re­
cusa) e assim por diante.
O trabalho diagnóstico, como vimos, depende da semio­
logia. Se a semiologia psicanalítica não implica um regime
semântico fixo dos signos, e se a sua universalidade está pres­
suposta apenas na forma vazia das leis de articulação do in­
consciente e da pulsão, então será necessário ao trabalho diag­
nóstico isolar os significantes particulares tais como aparecem
em sua articulação singular para cada paciente. A linguagem

457
entra na diagnostica psicánalítica não apenas como estrutura,
mas como mediação fundamental na dialética com o Outro.
Não é a linguagem como meio de comunicação, veículo neu­
tro para o transporte de ideias e sentimentos, ou a linguagem
como nomenclatura inerte para referir-se aos fenômenos, nem
mesmo a linguagem como produto motor da emissão articula­
da de sons. E a linguagem como alteridade e campo simbólico
que submete o sujeito; que o constrange ali onde ele não é
mais senhor em sua própria morada.
Assim como na clínica moderna, o diagnóstico em psicaná­
lise é uma atividade que se poderá desdobrar continuamente.
Mas, ao contrário da clínica médica, em psicanálise o diagnós­
tico não é um ato, pois isso implica a objetivação do paciente
em uma nova forma de alienação e contraria o princípio de
que, no tratamento analítico, o único sujeito presente no dis­
positivo é o analisante. Mas há dois correlatos possíveis do ato
diagnóstico em psicanálise. O primeiro consiste em torná-lo
uma condição do ato de entrada em análise, ou seja, é só quan­
do se tem uma hipótese diagnostica minimamente formada
que se deve autorizar a transferência e a interpretação. Aqui
o diagnóstico é condição, e não ato. O segundo caso consiste
no trabalho de nomeação dos sintomas, o que nem sempre é
necessário, mas pode consistir em ganho estratégico para o
tratamento. Observe-se que ao desconhecer os níveis distintos
desta diagnostica, por exemplo, no sintoma, nos traços estru­
turais, na posição fantasmática, na estrutura do narcisismo e
na economia de gozo, acabamos por recorrer ao mesmo tipo
de temporalidade clínica própria à clínica médica: primeiro
diagnóstico, depois intervenção, no meio a transferência. A
diagnostica psicanalítica é distinta deste esquema de sucessões
simples porque a temporalidade que a articula é diferente. A
diagnostica em psicanálise se exerce da primeira até a última
sessão da experiência e isso decorre de sua íntima conexão re­
troativa com os modos e condições da intervenção terapêutica.
Imaginar que esta diagnostica possa ser separada da etiologia

458
(na qual se inscreve o tema da constituição do sujeito) é sepa­
rar não dialeticamente construção, formação e constituição, é
dar a constituição como pressuposto e ignorar sua relação com
o que éposto na própria experiência subjetiva e em sua media­
ção pelo suposto (Dunker, 2006b). No fundo a diagnostica psi-
canalítica deveria poder inferir radicalmente da estrutura da
transferência a estrutura clínica em questão (Calligaris, 1986).
Inversamente a estrutura clínica não deveria ultrapassar os
modos de constituição da transferência.
Vimos que na clínica médica o desdobramento da diagnos­
tica é menos comum e tende a se limitar à relação de corro-
boração ou correção da hipótese diagnostica ao longo da cura.
Na clínica psicanalítica, esse desdobramento é prática corrente
e necessária por dois motivos. A cada sessão será preciso efe­
tuar um diagnóstico do estado da transferência, da questão
específica, do primeiro tempo da sessão. A cada encontro se
revê a configuração particular da economia entre sintoma, ini­
bição e angústia em suas variantes específicas e suas relações
com as formas de ato. A cada rodada do tratamento será pre­
ciso, pela escuta diagnostica, encontrar a posição do sujeito.
Portanto, o diagnóstico psicanalítico só se completa ao final
do tratamento. Outro motivo para este desdobramento da in­
vestigação diagnostica em psicanálise diz respeito ao trabalho
de exploração e construção da fantasia do sujeito. Aqui encon­
tramos a ideia clínica de que a aspiração última da diagnostica
é a realização do diagnóstico etiológico (Dunker, 2006b). Se a
etiologia psicanalítica, pelo menos em Lacan, se subverte atra­
vés da noção de objeto a, e se este objeto é o articulador central
da fantasia do sujeito, o diagnóstico etiológico corresponde ao
trabalho de enquadramento e localização dessa fantasia.
Cabe aqui uma consideração acerca da homologia entre as
categorias semiológicas e diagnosticas entre psiquiatria e psi­
canálise. Freud importou e manteve em uso noções descritivas
que se originaram na psiquiatria: histeria, neurose obsessiva,
fobia, paranóia (demência precoce), esquizofrenia, melanco­

459
lia, sadismo, fctichismo e masoquismo. Fato semelhante veri-
fica-se em outros níveis semiológicos. Neste ponto, três pro­
cedimentos decisivos marcam a clínica psicanalítica em sua
operação de subversão da clínica clássica.
Em primeiro lugar, há os procedimentos que reorganizam
essas classificações segundo princípios de ordens distintas. Por
exemplo, a separação entre psiconeuroses de defesa (fobia,
neurose obsessiva, histeria e paranóia) e psiconeuroses atuais
(neurastenia, hipocondria e neurose de angústia) tem como
crivo de organização a incidência diferencial da sexualidade. A
separação entre neuroses de transferência (histeria de angústia,
histeria de conversão e neurose obsessiva) e neuroses narcísi-
cas (melancolia, paranóia e parafrenia) tem como princípio de
ordem a relação diferencial da circulação da libido entre o eu
e os objetos. A separação entre psicoses, neuroses e perversões
tem como parâmetro a relação com a perda da realidade. Ou
seja, são os conceitos psicanalíticos, não às descrições clínicas
puras, que comandam as redescrições psicanalíticas dos qua­
dros psiquiátricos.
Em segundo lugar, há os procedimentos que visam intro­
duzir uma nova categoria clínica. Neste caso se incluem as
neurose atuais (de angústia, neurastenia, hipocondria), a pa­
rafrenia (espécie de híbrido entre paranóia e esquizofrenia),
e as neuroses não estruturais (neurose de caráter, neurose de
destino, neurose traumática). Ou seja, não há dependência ou
soberania da origem psiquiátrica das descrições e, ponto im­
portante, elas se apresentam como verdadeiras contribuições
da psicanálise à clínica em geral.
Em terceiro lugar, e talvez mais importante, há um traba­
lho de redescrição das categorias da clínica clássica que, ao
mesmo tempo, não as reduz a uma linguagem regional para
uso próprio apenas pelos psicanalistas. Se a sua aplicação clí­
nica está circunscrita à situação de tratamento segundo con­
dições que examinamos acima, isso não significa que elas não
sejam examinadas segundo um método de investigação que

460
lhe será próprio, mas nao exclusivo. Esse trabalho de redes-
criçáo é sinal indicativo do funcionamento covariante da es­
trutura da clínica psicanalítica. Ou seja, é preciso redescrever
as categorias da diagnostica psicanalítica porque elas estão
sujeitas e dependentes de sua semiologia, de sua terapêutica
e de sua concepção etiológica. Esse trabalho de redescrição,
que se orienta genericamente pelas exigências da metapsico-
logia, nem sempre é praticado com atenção, se observamos
a história da psicanálise. Neste contexto, inúmeras afecçÕes
migraram para o interior da psicanálise sem um trabalho de
redescrição subversiva. Daí que seja comum encontrarmos
categorias como a depressão, a dependência química, o dé­
ficit de atenção, os transtornos psicomotores, os problemas
de aprendizagem e uma miríade de congêneres empregados
em seu valor de face descritivo, sem qualquer consideração
pelo seu funcionamento numa clínica outra. Por outro lado,
há algumas categorias introduzidas pela própria psicanálise,
tais como estados limites e casos borderline.
Podemos enumerar alguns critérios não exaustivos para
este processo de redescrição (Dunker, 2002b, p. 104):
(1) o quadro clínico deve sempre ser descrito tendo em
vista seu tratamento possível ou sua etiologia sustentá­
vel à luz da compreensão psicanalítica;
(2) um quadro clínico é uma geratriz de sintomas possíveis,
sendo sua estrutura condicionante de sua fenomenolo-
gia e ambas apreciáveis em situação de transferência;
(3) um quadro clínico deve ser apresentado de forma a se
integrar ou a questionar premissas metapsicológicas,
requerendo, portanto, uma explicitação tópica, dinâ­
mica e econômica de sua apresentação; e
(4) um quadro clínico deve ser capaz de contraste e com­
paração com outros para que sua descrição não seja
tautológica e para que se admita explicações concor­
rentes e redutíveis no processo de pesquisa sobre os
mesmos.

461
Tanto em sua teoriá das estruturas clínicas (SIIL1955-
56), quanto em sua concepção sobre a constituição do sujeito
(SV: 1957-58) e ainda em sua concepção dos discursos como
formas de laço social (SXVII: 1969-70) ou nas teses sobre a
sexuação (SXX:1972-73), Lacan afasta os fundamentos natu­
ralistas do campo da psicopatologia. Vejamos então, de forma
sintética, alguns aspectos do desenvolvimento da diagnostica
lacaniana, tendo em vista a tese de sua integração e covariância
com os demais elementos da estrutura da clínica.
Os primeiros desenvolvimentos da noção de estrutura clí­
nica em Lacan remontam a tentativa de superação da psicopa­
tologia organicista ou mentalista por uma teoria do materia-
lismo social da personalidade psicanaliticamente inspirada. A
reinterpretação do problema do narcisismo em Freud, inspi­
rando uma teoria da constituição do sujeito que o distinga do
eu empírico, bem como a reinterpretação em chave estrutural
dos casos clínicos de Freud, levam Lacan a postular, inicial­
mente, quatro pontos que sustentam a estrutura na form ação
dos sintomas: o pai simbólico, o pai imaginário, o narcisismo
e a morte. A noção de estrutura, como disposição lógica, surge
assim como uma coleção de problemas, que são equacionados
ou correlacionados pela estrutura. Daí a tese de que “A estru­
tura do sujeito é a estrutura de uma questão” (SIII: 1955-56).
LIá um segundo momento intensivo do conceito de estrutura
clínica que engloba o Seminário III, em 1955, e a tese da psicose
consideradas a partir de um significante refratário à linguagem,
o Seminário IV, em 1956, e a tese da fobia e da perversão defini­
das em função da posição do falo, e o Seminário V, em 1957 e a
tese do contraste entre histeria e neurose obsessiva consideradas
à partir do grafo do desejo. Este momento possui dois adendos
importantes: De uma questão prelim inar a todo tratamento pos­
sível da psicose (E: 1958a) onde se desenvolve a hipótese da fora-
clusão do Nome-do-Pai e Kant com Sade (E: 1963a) no qual a
hipótese da perversão, considerada a partir da fantasia, é revista.

462
Após este momento intensivo (1953-66), há um relativo
declínio do conceito de estrutura clínica com potenciais rede­
finições das estruturas clínicas, a partir da noçao de discurso
e da tese do quarto nó (Sinthome) como elemento articulador
entre Real, Simbólico e Imaginário.
O sujeito se apoia na estrutura em quatro pontos: fantasia
(S <>a), desejo (d), narcisismo [i (a)] e identificação (SV:1957-
58, p. 410), o que explica as variantes definicionais do concei­
to que encontramos entre os comentadores, a saber, (a) como
estrutura do sujeito em relação à falta e divisão (Cabas, 1980;
Porge, 2006), (b) como modo de relação com o Real, em seus
diferentes níveis (Miller, 1998, 1997), (c) como relação com
a lei simbólica e metáfora paterna (Juranville, 1987; Dor,
1991a, 1991c), e (d) como articulação da fantasia (Calligaris,
1983, 1989; Nasio, 1991; Amigo, 2008). A complexidade e
as variações de leitura presentes na noção de estrutura clínica
encobriram o fato de que esta não é a única dimensão diag­
nostica em Lacan. Há vários temas em psicopatologia que tem
um estatuto incerto diante da noção de estrutura clínica: for­
mações de caráter, vicissitudes narcísicas, posições fantasmáti-
cas específicas, contingências da economia de gozo. A noção
de estrutura clínica não deve ambicionar a totalização da sub­
jetividade e de suas formas de sofrimento. Isso seria confundir
semiologia e diagnostica.

São semelhantes trajetórias, estabilizadas, que chamarei,


por assim dizer, traços estruturais. As referências diagnos­
ticas estruturais aparecem, então, como indícios codifica­
dos pelos traços de estrutura, que são, eles próprios, tes­
temunhas da economia do desejo. Donde a necessidade,
para precisar o caráter operatório do diagnóstico, de se
estabelecer claramente a distinção que existe entre sinto­
mas e os traços estruturais. (Dor, 1991b, p. 22)

463
A hipótese da defesã como negação constitutiva (Vernein-
gung) entende a neurose como estrutura de negação simbólica
com retorno no simbólico: sintoma. O recalque ( Verdrãngung)
é lido como a substituição metafórica do desejo da mãe pelo
Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai em elisão frente ao campo do
Outro (Ideal de Eu):

NP . DM -> N.P. (A )
DM x cp

A estrutura neurótica é definida como instalação da falta


(castração) no campo do Outro (falo) e conseqüente perda
simbólica de um objeto imaginário. Esta operação de ane-
lamento é representada pela identificação ao Pai Simbólico.
Na histeria o produto desta identificação é o pai impotente,
enfraquecido, a recusa como condição do desejo. Daí a pre­
valência do pai frustrador (imaginário). Na neurose obsessiva
o produto desta identificação é um pai hiperpotente. Daí os
impasses em termos de permissão como condição do desejo
e a imaginarização do pai privador (Real). Na fobia trataria-
se de uma identificação cujo resíduo é um pai aterrorizador,
vacilante em sua inscrição simbólica. O objeto fóbico, fonte
de desejo e angústia eqüivale à combinação ou alternação en­
tre o pai frustrador e privador. Na Psicose haveria uma não
inscrição simbólica do Nome-do-Pai com conseqüente retor­
no do real: alucinação. Esta forma de negação, chamada de
foraclusão (Verwerfung) da castração implica na irrealização
da metáfora paterna, ou foraclusão do Nome-do-Pai. Aqui
a identificação produz uma forma degradada, a identificação
imaginária com o falo (emasculação de Schreber) pela qual o
Outro se faz equivalente do Ideal de Eu (relação de Schreber
com Deus). Na perversão, por sua vez, haveria uma negação
simbólica com retorno no imaginário: fetiche. A recusa, rene-
gação ou desautorização (Verleugnung) se daria por identifica-

464
çao com mae fálica, equivalente possível do Pai Real, agente da
privação. A fixação à mãe fálica (DM/x) implicaria em cum­
plicidade libidinal da mãe e complacência paterna. No caso
do fetichismo isso permitiria não renunciar á identificação ao
falo, e ao mesmo tempo, conjurar a angústia de castração, dela
se protegendo ao escolher uma mulher como supostamente
quem tem o falo. E a mãe como perversão feminina:

É o que os autores analistas exprimiram dizendo que, se


há menos perversão entre as mulheres que entre os ho­
mens, é que elas satisfazem sua grandeza perversa em sua
relação com os filhos. Por isso é que há algumas crianças
de que, como analistas, devemos cuidar. (SV: 1957-58)

A diagnostica lacaniana corresponde à exigência de que esta


respeite o princípio da reversibilidade terapêutica do sintoma.
Freud postulava a teoria do recalque e a etiologia sexual das
neuroses porque os sintomas são reversíveis por operações de
rememoração e ab-reação. Mas a ambição clínica de Freud se
modifica ao longo de sua obra terminando por uma renúncia à
eliminação completa do fator causai das neuroses. Surge então
o problema acerca do que é reversível e do que é intratável na
neurose. Contudo a tese de que a estrutura clínica compreen­
de também o nível do intratável, torna-se assim equiparável
a um modo de subjetivação, uma estrutura existencial, uma
condição trágica. Isso foi exposto dramaticamente pela impor­
tância estratégica assumida pelo problema do final de análise,
pela reversibilidade no nível do sintoma explicada pela fanta­
sia e pela tese de que a fantasia.
Tendo em vista estas quatro exigências do conceito po­
demos apresentar um diagrama das estruturas, seus tipos clí­
nicos, seus sintomas fundamentais, bem como a modalidade
retorno que estas implicam.

465
Uxpenéiicia
Perda de Experi­
Oposição Falta e Produtiva e Determinação e
ência e Recons­
Diagnostica Excesso Experiência Indeterminação
tituição
Improdutiva
Tipo Clínico Sintoma Retomo Fantasia
Estrutura (relação ao Fundamental (resposta ao (articulação
Outro) (relação ao Pai) R eal) ao objeto)

_a 0 A
Histeria Conversão Simbólico
-cp

Neurose C J U .M
Fobia Fobia Simbólico
(M + <p+ a)

Neurose
Ideia Obsessiva Simbólico A 0 q>(a, a '... a n)
Obsessiva

Esquizofrenia Alucinação Real aó D


Melancolia Alteração do
Psicose Real a ( S l , S l , S l ...)
Mania Eu

Paranóia Delírio Real D0 a


Idealização i ° 9-
Masoquismo Imaginário
do Eu 9-

i fal <> A
Perversão Fetichismo Fetiche Imaginário
S I (a)
Angústia no
Sadismo Imaginário S0 D
Outro

Como se pode ver o progresso da construção de diferenças


clínicas, em nível estrutural, nem sempre segue o mesmo tipo
de argumentação e tem a mesma finalidade. Por exemplo, a
teoria da simbolização primordial permite distinguir neurose e
psicose. Na neurose há a realização de uma primeira afirmação
(.Bejahung), decorrente da inscrição simbólica da presença-au-
sência (fort-da). Há ainda traço unário e identificação primor­
dial, bem como alienação primária ao sentido no Outro. Na
psicose, ao contrário, não haveria realização de uma primeira
afirmação (Bejahung) o que levaria a uma alienação primária
no ser. Ora, destas diferenças nada se infere quanto à perversão.

466
Outro exemplo. Na teoria do encontro com o Real a neuro­
se aparece caracterizada pela perda de gozo associada à entrada
na linguagem (trauma). E a leitura lacaniana da localização do
trauma precoce, como experiência de prazer passivo na histe­
ria e ativo na neurose obsessiva. Isso demarcaria um ponto de
fixação ao qual a regressão formadora dos sintomas retornaria.
Para Lacan isso implicaria a inserção de temporalidades distintas,
pois “o histérico repete sempre o que há de inicial em seu trau­
ma, ou seja, um cedo demais, uma imaturidade fundamental”
(SVI: 1958-59, p. 60), ao contrário do neurótico obsessivo que
“posterga porque ele sempre antecipa tarde demais” (Ibid., p. 59).
Poderíamos encontrar correlatos da experiência do tempo, para a
experiência no espaço, para a angústia, para as relações de crença
ou de unidade e fragmentação narcísica. Ou seja, as experiências
primárias de indeterminação estabelecem o regime de unidade
tanto em nível do registro imaginário, real e simbólico, quanto a
unidade formada pelo anelamento entre estes registros. Podemos
entender desta maneira os fenômenos de reposição narcísica, no
registro imaginário, as voltas da demanda, no registro do simbó­
lico e as consistências da angústia, no registro do Real.
Situação diversa verifica-se se partimos da hipótese da fa-
licização diferencial do eu (identificação). Na neurose a expe­
riência do estádio do espelho facultaria a falicização primária
do eu como unidade do corpo próprio. Haveria reaparição
de fantasias de castração (imagens) diante da crise narcísica.
A demanda materna se converte em desejo na criança e há
surgimento do eu como objeto metonímico para o Outro.
Temos uma neurose definida pela identificação da demanda
do Outro ao desejo do sujeito. Na histeria, o déficit narcí-
sico estrutural apareceria na convicção de imperfeição (crise
crônica de identidade), identificação com o duplo feminino,
posição sacrificial e reivindicativa, fascínio pela heteridade e
confusão trágica entre desejo e amor (histeria feminina). O
mesmo déficit narcísico apareceria em signos clínicos como a
incapacidade de experimentar satisfação sexual, identificação
com trajetórias de fracasso, desejo de fracasso diante do su­

467
cesso no caso da histeria masculina. Na neurose obsessiva, ao
contrário, encontraríamos uma variação diferencial da iden­
tificação, uma vez que esta é com a demanda no Outro (não
com o desejo), como o caso da identificação heróica: “ser agido
p o r seu desejo, com todo o gozo que isso comporta ’ (Dor, 1991b,
p. 45). O mesmo tópico da identificação diferencial pode ser
usado para a psicose, nela há a fragmentação do esquema cor­
poral, relação de discordância com o corpo e com a apreensão
do espaço, a despersonalização como efeito da fragmentação
fálico imaginária, identificação da criança como falo para a
mãe. Poderíamos ainda usar o tema da identificação como es­
copo diagnóstico para a perversão, na qual há a clivagem do eu
(sei, mas ajo como se não soubesse), identificação da criança
como pênis da mãe, como na identificação alternante que cul­
tiva a ambigüidade do reconhecimento da castração (sedução
materna) e sua negação (desafio e transgressão).
Talvez o sucesso da teoria da defesa como negação, a forma
mais popular das estratégias diagnosticas de Lacan, deva-se ao fato
de que ela permite uma diferenciação radical entre as estruturas.

11.3.4. TERAPÊUTICA

Vimos que a dimensão terapêutica em psicanálise apresen­


ta-se de várias maneiras. Mostramos como a retórica, como
técnica de linguagem, provê discussões sobre a interpretação,
a convicção e a lógica do conflito. Vimos ainda como a di­
mensão terapêutica aparece associada ao contexto do método
de tratamento. Encontramos a noção de técnica terapêutica
imersa tanto entre as práticas do cuidado de si quanto liga­
da à reflexão ética sobre o poder e sua eficácia discursiva. De
fato, a tradição lacaniana caracteriza-se por uma espécie de
esvaziamento da questão da técnica, quer por sua submissão
ao método, quer pela sua subordinação à ética, quer ao am­
plo domínio retórico-literário das técnicas de linguagem, quer
ainda por uma crítica de fundo, de inspiração heideggeriana

468
ou hegeliana, ao mundo da técnica. Contudo, há um texto
que separa-se desta tendência e, pelo seu contexto de produ­
ção, coloca Lacan frontalmente diante do problema da técnica
terapêutica, a saber, Variantes do Tratamento Padrão, escrito
em 1955 e revisto em 1966.
Redigido a pedido de Henry Ey, psiquiatria da corrente
orgâno-dinâmica, para a Encyclopédie M édico-Chirurgicale, o
texto foi suprimido em 1960. Ele tem por objetivo estabelecer
as diferentes modalidades ou variantes do tratamento psica­
nalítico. O propósito do texto já assinala as diferenças entre a
noçao de técnica em medicina e em psicanálise. Para a medici­
na a técnica é um conjunto de procedimentos que podem ser
descritos e praticados a partir da confiança na sua regularidade
repetitiva. A técnica se reproduz com exatidão, tanto pelo sa­
ber que a determina quanto pelo resultado que produz. Daí
que o texto comece pela afirmação de que “a psicanálise não
é uma terapêutica como as outras” (E:1955a, pp. 325-327)
pois a noção de variantes nao quer dizer, como na medicina,
adaptação a critérios empíricos ou clínicos. E neste ponto que
se apresenta uma curiosa nota de rodapé, acrescida em 1966,
cujo fim é indicar uma exceção a este argumento:

A não ser retomando na estrutura aquilo que especifica


nossa “clínica”, no sentido de que ela se escora ainda num
momento de nascimento, momento originalmente re­
calcado no médico que a prorroga, transformando-se ele
mesmo, a partir deste momento, cada vez mais no filho
perdido. Conforme Michel Foucault, Naissance de La
Clinique, PUF, 1964. (Ibid., p. 326)

Ora, a nota corrobora nossa hipótese de trabalho: que se


pode falar em clínica psicanalítica desde que se a retome na es­
trutura. A referência para isso é o trabalho de Foucault sobre o
nascimento da clínica e finalmente, que a relação da psicanáli­
se com esta tradição de origem é uma relação de recalcamento,
segundo a hipótese da subversão da clínica moderna.

469
O texto começa lembrando que em psicanálise a cura acon­
tece como benefício adicional, que Freud temia o desejo de
curar e suspeitava das inovações motivadas pela técnica. Elas
sempre suscitam a pergunta de foro íntimo: “será que isso ain­
da é psicanálise?”. Novamente opõe-se a ideia da técnica como
ação racional com respeito a fins e a definição da psicanálise
como método. E neste ponto que Lacan alude a uma teoria
dos critérios terapêuticos em psicanálise. Assinala como marco
deste tipo de iniciativa a pesquisa realizada por Edward Glo-
ver, desde 1934, acerca das “práticas técnicas reais e normas de
trabalho dos psicanalistas” entre os analistas britânicos. Dos
sessenta e três pontos levantados apenas seis encontraram con­
senso. Desses seis, apenas um é de fundamental importância:
a necessidade de analisar a transferência. Os outros cinco refe-
rem-se a questões deontológicas e propedêuticas: não aceitar
presentes, rejeição de uso de termos técnicos no contato com
o paciente, evitar contatos sociais, abstenção de responder
perguntas, recusar-se a receber pacientes que apresentem ob-
jeçÕes quanto a falar de temas ou aspectos específicos de suas
vidas e a necessidade de pagamento das sessões a que se deixa
de comparecer (Ibid., p. 328). A pesquisa tem seu valor na
medida em que lida com dados de vinte e quatro dos vinte e
nove psicanalistas membros iniciais da Associação Britânica de
Psicanálise. Supõe-se que tais práticas tendem a se transmitir
entre as gerações de psicanalistas e se disseminar ao longo do
mundo dada a importância política da ABP.
Os pontos menosprezados por Lacan merecem uma reava­
liação. A recusa em utilizar termos técnicos ou uma linguagem
de autoridade não é algo tão anódino assim. Esta é uma das
principais características da tradição psicoterapêutica. Contu­
do lidar com o sofrimento valorizando e sancionando os ter­
mos, o nível discursivo, as interpretações e o estilo do próprio
paciente, é condição necessária, mas não suficiente para que ele
recupere sua própria fala e autorize nela seu desejo. Também o
reforço do princípio de não exceção, pelo qual se afirma que em

470
associação livre nada pode ser deixado de lado, por isenção de
extra-territorialidade (por exemplo, o político que não pode fa­
lar de certos temas pois são segredos de Estado, ou o criminoso
que tende revelar seus atos com receio de ser preso), é um ponto
importante tendo em vista a similaridade com a técnica da con­
fissão. Finalmente o princípio do pagamento, da não gratidão
(não aceitar presentes) e da não convivência social, nos remetem
à crítica da ética da amizade, imanente ao cuidado de si.
A conclusão da pesquisa de Glover, aparentemente endos­
sada por Lacan, é de que os psicanalistas não falam a mesma
linguagem técnica, não seguem sistemas idênticos de diag­
nóstico, prognóstico e de seleção de casos. Ou seja, nem de
maneira aproximativa seguem os mesmo “métodos técnicos”.
Menos importante do que o conteúdo da conclusão são os
termos pelas quais esta se exprime: a linguagem técnica é uma
alusão franca à semiologia. Diagnóstico e prognóstico tam­
bém confirmam a procedência clínica pela qual a psicanálise
poderia ser comparada entre si, do ponto de vista da terapêu­
tica. Ora, a rarefação do consenso terapêutico nos remeteria a
uma mistificação da técnica, mistificação definida como “pro­
cesso que torne oculta para o sujeito a origem dos efeitos de
sua própria ação” (Ibid., p. 329). Note-se como o termo esco­
lhido aqui é origem e não causa. Ela é remetida por Lacan ao
contexto político ou sociológico dos grupos psicanalíticos que
teriam perdido o interesse em fundamentar o método para
beneficiar-se de um sistema de transmissão pessoal da autori­
dade. Lembremos que a técnica tem um aspecto democrático
no sentido de que ela impessoaliza a produção de efeitos ao
remetê-los a causas eficientes. Daí a alusão subsequente à He-
gel como formulador de leis que nos fariam compreender a
identidade técnico-teórica da noção de transferência: “(...) que
outro conceito existe, com efeito, capaz de destacar melhor
sua identidade com a coisa, a coisa analítica, no caso, quando
lhe agrega todas as ambigüidades que constituem seu tempo
lógico” (Ibid., p. 331).

471
Dialética entre metafísica do retorno e história, entre ficção
e real, entre necessidade e repetição, a terapêutica psicanalítica
não poderia fugir às leis da intersubjetividade. E neste con­
texto que Lacan reverte o problema do tratamento, padrão
ou não, para o tema do que vem a ser o próprio psicanalista.
Uma vez definido o psicanalista se deduz o que é o tratamento
padrão, a saber, o tratamento que se espera que ele conduza.
Há uma gritante reversão do argumento. Se no início Lacan
parecia defender a importância do método científico contra
a anomia da técnica, agora ele reconhece a dimensão pessoal
de quem o pratica, assim como na concepção de método que
vimos no cuidado de si, e recusa a sua formalização como ga­
rantia dos efeitos obtidos. Ocorre que este comentário entre o
irônico e o tautológico, pretende-se uma espécie de antídoto
ao próprio estado de relações degradadas do sujeito com o
método na modernidade: má fé da prática instituída, rotinas,
produção de dons e segredos entre especialistas e peritos. Ou
seja, há uma distância entre o homem real e o homem m eto­
dológico, que precisa ser absorvida na terapêutica. Daí que o
analista não deva “fazer uma ideia demasiado elevada de sua
missão e menos ainda fazer-se profeta de uma verdade esta­
belecida” (Ibid., p. 332), pois não é nem o saber do método,
nem a potência da verdade o que garante sua ação.
Descartadas estas duas perspectivas vemos o texto cami­
nhar para uma resposta à questão apresentada. A terapêutica
psicanalítica se caracteriza por acolher o discurso reconhecen­
do “o poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma se­
gunda potência” (Ibid., p. 333). A psicoterapia parte e retorna
ao tema do poder e isso aparece também em Lacan. O poder
discricionário diz respeito ao fato de que quem determina o
sentido da mensagem é quem escuta, não que a profere. Em
vez de se colocar como intérprete do discurso do paciente ele
devolve ao analisante suas próprias palavras para que ele possa
delas se apropriar e nelas reconhecer seu desejo. Portanto as
exigências terapêuticas são exigências de discurso: interrup-

472
çao, contenção, coerência, racionalidade interna, referencia-
lidade externa, aceitação pelo outro. Os critérios terapêuticos
são critérios de linguagem: fala constitutiva, discurso consti­
tuído. No fulcro da questão da técnica terapêutica residiria a
hesitação ou resistência do analista em “considerar a ação que
lhe cabe na produção da verdade” (Ibid., p. 334). Ora, isso
significa dizer que no centro da questão da técnica terapêutica
está algo que não é mais técnica, ou seja, está o desejo do ana­
lista e a produção da verdade. Este é o ponto de intersecção
entre o plano da terapia e o plano da cura em psicanálise.
Não obstante pode-se falar em transformações da técnica
e a mais conhecida é certamente a virada dos anos 1920, lida
como momento de alteração da ambição terapêutica de Freud.
A técnica da interpretação baldeia-se então em técnica da in­
terpretação de resistências e esta desdobra-se, equivocamente
para Lacan, em técnica da análise de defesas contra angústia:
“O sujeito constituinte do sintoma é tratado como constitu­
ído (como material), enquanto o Eu, por mais que seja cons­
tituído na resistência, torna-se sujeito a quem o analista apela
como instância constitutiva” (Ibid., 337).
Observe-se como o critério da crítica de Lacan refere-se
principalmente ao âmbito no qual o sujeito pode ser respon­
sabilizado e onde ele não deve. Ou seja, a aposta terapêutica
resume-se na ideia de que “a fala constituinte seja suposta no
discurso constituído” (Ibid., p. 339). Observemos que este
princípio também deveria valer para o psicanalista, conside­
rando-se que nele o discurso constituído é justamente o dis­
curso da técnica. Isso explicaria a giro pelo qual no texto em
questão, o problema da técnica terapêutica torna-se um pro­
blema relativo ao estatuto do eu no psicanalista.
Em termos concisos, a cura é a cura do eu entendida como
sua extinção, daí que ela termine no ser-para-a-morte e na
subjetivação da própria morte (Ibid., p. 359). As variantes da
técnica mais populares na década de 1950 são relidas a partir
deste princípio: a técnica elástica (Ferenczi), a técnica das rela­

473
ções de objeto (Klein), a análise do caráter (Reich), as técnicas de
análise das defesas (Ana Preud), as técnicas relativas ao amor pri­
mário na transferência (Balint), o holding (Winnicott) são todas
avaliadas do ponto de vista da redução ou inflação narcísica que
propiciam ao sujeito. Elas se articulam com a superfície clínica,
na medida em que referem-se a diferentes sistemas diagnósticos,
prognósticos e etiológicos. Elas se fazem acompanhar de reco­
mendações atitudinais de extração psicoterapêuticas: redução da
equação pessoal, lugar segundo do saber, influência sem insis­
tência, bondade sem complacência, desconfiança dos benefícios,
modéstia verdadeira, crítica da indiferença ao outro e da arro­
gância de si. Todas elas recomendações que visam apagar o eu,
senhor e soberano da técnica terapêutica (Ibid., p. 343). Assim
como na cena clínica o analista deveria tornar invisível seu nar­
cisismo e na cena da cura ele deve subverter a relação de mestria.
Sobretudo, o analista “não pode ficar entregue à indeterminação
de uma liberdade de indiferença” (Ibid., p. 351). Em nosso con­
texto esta liberdade de indiferença adquire uma tripla conotação:
indiferença gerada pela confiança na impessoalidade do método
clínico, indiferença com o sofrimento do paciente e indiferença
na cura, com relação ao estatuto da liberdade e da verdade.
Esta crítica das noções convencionais de método, de técnica
e clínica levanta a questão sobre o estatuto do saber do psicana­
lista. Afinal retirada as garantias tradicionais sobre sua prática o
que resta é a eficácia simbólica do xamã, as vivências iniciáticas
e os poderes propiciatórios ou astuciosos dos homens especiais.
Contra esta ideia surge a ideia de que há um saber “técnico” do
psicanalista e ele é de dois tipos: saber sobre as leis da linguagem,
saber sobre as leis do reconhecimento, saber sobre o impasse en­
tre a verdade e o Real: “(...) o analista faz silenciar em si o discur­
so intermediário, para se abrir para as cadeias de falas verdadeiras
[autênticas], que ele pode instaurar sua interpretação reveladora”
(Ibid., p. 355).
Francamente decepcionante para quem pretenda encontrar
neste texto inspirações para um manual de técnica ou meramen­

474
te regras de ação para agir com analisantes. Contudo há, como
que a escoar por entre os dedos, uma espécie de alusão à técnica
(interpretação reveladora), a clínica (cadeias de fala) e a cura (si­
lêncio da verdade). O que confere unidade a ação do psicanalista
não é o saber ou o método, mas sua formação, ou melhor: “o
contraste entre os objetos propostos ao analista por sua experiên­
cia e a disciplina necessária à sua formação” (Ibid., p. 357). Não
se pode deixar de notar que o argumento de Lacan padece do
sabor decadentista dos discursos contra a técnica - Lacan, aliás,
leitor transparente de T.S. Eliot (1962) - nos quais se afirma o
caráter irrecuperável da excelência do passado frente à eficácia
do presente. Também ao afirmar que a psicanálise não é uma
técnica ou um método operacional, mas uma arte, - “no sentido
em que era empregada na Idade Média, quando se falava em
artes liberais” (Lacan, 1948b), tais como: astronomia, dialética,
aritmética, geometria, música, gramática - Lacan procura uma
alternativa ao modelo de formação tecno-clínica do psicanalista.
Trata-se da relação entre seu fazer clínico em sua relação a for­
mação. O discurso de Theodor Reik, referendado por Lacan em
1955, ainda tem sua atualidade:

Antigamente eles [os candidatos] eram, antes de mais


nada, individualidades introspectivas, marcados por seu
pendor para o estudo e a meditação, e que tendiam a re­
alizar uma individualidade elevada, ou mesmo restringir
sua vida social às discussões clínicas e teóricas com seus
colegas. [Em contraste com os candidatos de hoje que]
(...) só desejam acabar o mais depressa possível o que é
exigido de sua formação. Seu interesse volta-se primaria­
mente para a clínica, preferida à pesquisa e à teoria. Sua
motivação para serem analisados é basicamente a de passar
pelo que sua formação exige. (Reik, 1951 apud E:1955a,
p. 358, grifo nosso)

E levar a cabo as ambições de um “engenheiro da alma”.


Vê-se assim como uma discussão sobre a técnica e os fun-

475
damentos terapêuticos»'da psicanálise transforma-se em uma
discussão sobre a transmissão de um saber. Se uma técnica é
também o que tecnicamente se transmite, as discussões sobre
um modelo mais tecnicista (eventualmente regulado pelo Es­
tado), um modelo mais humanista (eventualmente regulado
pela tradição) e um modelo mais científico-liberal (eventual­
mente regulado por grupos concorrentes de associações e uni­
versidades) traduz as diferentes formas de implantação social
da prática psicanalítica. Reencontramos aqui, de forma reno­
vada, a indicação genericamente decepcionante de Freud com
relação à técnica terapêutica:

Mas, devo dizer, expressamente que esta técnica foi obtida


apenas como sendo a única apropriada à m inha individu­
alidade; eu não me atreveria a contestar que uma persona­
lidade médica constituída de modo totalmente diferente
pudesse ser levada a preferir outras disposições no tocante
aos doentes e aos problemas por resolver. (1912e, p. 129)

Dito isso, basta remeter o leitor ao capítulo sobre a Estru­


tura do Tratamento Psicanalítico para situarmos um modelo
do que poderiam ser as operações de covariância internas à
terapêutica psicanalítica:

Momento do tratamento Operação Lógica Operação Clínica


Entrevistas preliminares Ou nao penso Retificação das relações
Primeiro tempo ou nao sou com o Real
Implicação subjetiva Des-alienação Entrada cm análise
Neurose de transferência Corte Interpretação
(operação verdade)
Análise das resistências
Segundo tempo Mutação da transferência Não penso e nao sou Travessia da angústia
Travessia das identificações
Construção da fantasia Penso onde não sou Castração
Sou onde não penso
Terceiro tempo Separação entre sujeito Luto (não penso) Queda do objeto a
suposto saber e objeto a
Destituição Subjetiva Separação (não sou) Passagem de analisante a
analista

476
11.3.5. A SUBVERSÃO PSICANALÍTICA

Verificamos, assim, que a psicanálise é uma clínica, pois


obedece ao princípio de homogeneidade e covariância entre
seus elementos constitutivos. Contudo esta homogeneidade,
verificada no interior da estrutura da clínica, como uma cons­
trução; contrasta com a heterogeneidade que podemos agora
postular quanto ao tratamento no seu conjunto. Ou seja, uma
psicanalista não faz sempre a mesma coisa ao longo do trata­
mento. Ele pode focar-se em momentos mais clínicos, outros
mais terapêuticos e outros ainda no qual a cura será o proce­
dimento fundamental. Com um mesmo paciente isto pode
mudar ao longo do tratamento. Para um mesmo psicanalis­
ta esta configuração pode mudar ao longo de sua formação
e de sua trajetória. Talvez diferentes demandas, sintomas ou
formas de sofrimento e mal-estar possam jogar seu papel no
interior desta heterogeneidade. Uma heterogeneidade que é
relativa tanto à formação do discurso, quanto à constituição
de sua práxis. É apenas no nível construtivo das estruturas da
clínica que verificamos uma homogeneidade entre elementos
ou formas práticas. É por este motivo que a terapia é ao mes­
mo tempo um dos pontos constitutivos do espaço da prática
psicanalítica (ao lado da cura e da clínica), um lugar formador
de superfícies de contradição (entre método e técnica, entre
ética e método) e uma posição no interior da estrutura da clí­
nica (ao lado da semiologia, da diagnostica e da etiologia). A
subversão psicanalítica, da filosofia, da psicologia e da clínica,
operada em cada um destes planos, pontos e superfícies.
A psicanálise não é a única forma clínica a se deparar com
as questões e com a história deixada pelo dispositivo clínico
moderno. As diferentes modalidades de psicoterapia, certas
variantes da pedagogia, da fonoaudiologia e mesmo alguns
saberes e práticas que transitam pelas bordas do instituído
parasitam, revertem, prolongam ou mimetizam as questões
deixadas pela clínica por meio das mais diversas combinações.

477
Tais projetos clínicos nein sempre terminam por incluir seus
termos, suas pressuposições epistemológicas, formas de racio­
cínio e formações éticas, ideológicas ou discursivas. A clínica,
em sentido genérico e ampliado, é um dispositivo que com­
porta práticas heterogêneas. Ela contém uma estrutura que
especifica a ação de um método (o método clínico), mas tam­
bém inclui um discurso, que confere a este método sua razão
técnica e política. Além disse a clínica, em sentido amplo, con­
templa atos dirigidos a uma produção de verdade no quadro
de uma experiência ética.
Portanto, o corte e a subversão que a psicanálise aplica à clí­
nica clássica é uma operação de conjunto que funda uma nova
discursividade, como assinalou Foucault (1970). E por isso que
sua semiologia, constituída a partir da fala e da linguagem, sua
diagnostica baseada na transferência e sua concepção etiológica
baseada no inconsciente e na pulsão fundam, de fato, uma clí­
nica. Mas o olhar que foi ejetado pelo corte retornará em uma
espécie de reconstrução automática pelo paciente de sua posição
do dispositivo clássico. Esta retomada fornece coordenadas para
a transferência e absorve este olhar segundo uma mutação:

...onde o psicanalista termina por deter-se, com relação a


sua experiência que ele chama de clínica. E que não pode­
ria encontrar ali o modelo da recordação do signo, que não
poderia instituir nada do mundo de sua experiência sem que
tenha, com absoluta necessidade, que presentificar ali como
tal a função de seu próprio olhar. (SXV',1967-68, aula 14)

Presentificar a função do olhar é diferente de presentificar


um olhar. Presentificar uma função é um ato, é uma tomada
de posição. Sua função, se nosso exame da questão é proce­
dente, representa aquilo que foi excluído, internamente, para
que a clínica psicanalítica pudesse se constituir.
Há, ainda, um último ponto no qual essa subversão consti­
tutiva se radicaliza. A clínica moderna se define por uma estru­

478
1

tura, mas também por uma forma específica de experiência. O


conjunto formado pela estrutura, pela experiência e pelo ato,
se incluía, como vimos, no espaço mais amplo, formado pela
ordem médica. E nessa articulação que a clínica compõe parte
de uma estratégia de docilização dos corpos e de exercício de
biopoder. É isso que a faz aparecer como puro procedimento
técnico e, ao mesmo tempo, legítimo; é daí que emana sua
autoridade e a garantia de seu saber. Em última instância, o
Estado. Disso se poderia depreender que se trata, também na
psicanálise, de uma técnica —em outras palavras, da prática
anônima de um conjunto de regras visando determinado fim
ou objetivo. Isso seria desconhecer e repudiar praticamente
que a psicanálise é, também, uma forma de cura, além de uma
clínica que compreende um tratamento. Ocorre que uma téc­
nica só é, de fato, uma técnica se for independente do desejo
de seu usuário ou praticante. Por exemplo, a técnica para ex­
tração de algum tecido continua idêntica a si mesma, inde­
pendentemente do clínico que a aplique. Ele pode ser mais
ou menos hábil na sua utilização; pode introduzir variações
em seu uso; ou descobrir novos contextos nos quais ela pode
ser aplicada; mas, ao final, a técnica não deixará de ser instru­
mento empírico ou formal anônimo para obter determinado
resultado de forma sistemática e reprodutiva. Um instrumen­
to, usado de forma mais versátil ou mais mecânica, não deixa
de ser um mero instrumento ou um protocolo.
Ocorre que, por depender intrinsecamente do sujeito para
se efetivar como tal, a psicanálise não pode ser dissociada do
desejo do analista e do desejo do analisante. Se um médico
emprega suas técnicas sem o desejar, isso não afeta seu fazer
enquanto clínico; se um analista o fizer sem desejo de analis­
ta, ele simplesmente não estará mais fazendo psicanálise, mas
outra coisa qualquer. A ética é uma regra constitutiva do jogo
analítico, mas apenas uma regra regulativa do jogo clínico.
Neste último caso, ela vem de fora do dispositivo e visa limitá-
lo diante de outros imperativos morais. No caso da psicaná­

479
lise, ela é interna ao tratamento. Dentro desta condição, não
se pauta integralmente pela eficácia na remoção de sintomas
e no abreviamento do sofrimento psíquico, mas encontra-se
sempre tensionada com o que examinamos anteriormente por
meio da noção de excelência contida na esfera do cuidado de
si e do mal-estar (Unbehagen) que este implica.
Podemos agora voltar ao nosso esquema sobre as relações entre
cura, terapia e clínica, tendo em vista o tratamento psicanalítico:

Cura

Terapia Diagnostica
Etiologia Semiologia
Verdade

Na superfície que liga a cura ao diagnóstico, encontramos


o trabalho clínico de aprofundamento diagnóstico. E o mape­
amento da quaestio do sujeito, das articulações significantes,
das insistências e repetições pela qual a narrativa clínica se ex­
prime. Esta superfície é atravessada pelo que não cessa de não
se inscrever, ou seja, os modos de gozo preferenciais, as esco­
lhas recorrentes e tudo aquilo que nos oferece uma posição do
sujeito com relação à sexualidade e ao objeto a.

480
Na superfície que liga a cura a terapia, encontramos o tra­
balho de decifraçáo do inconsciente, a interpretação e a cons­
trução da fantasia, que responderia pela noção de causalidade.
Esta superfície é atravessada pela dimensão do saber que uma
análise pode produzir para um determinado sujeito sobre seus
sintomas e seus modos de funcionamento intersubjetivos. Tra-
ta-se aqui do deflacionamento dos ideais, da rearticulação das
identificações e do trabalho clínico em torno das noções de
narcisismo e castração.
Finalmente, na superfície que liga a terapia à diagnostica
encontramos o trabalho de manejo da transferência e mo­
dulação da angústia. São as intervenções que visam susten­
tar a transferência e realizar o que Freud chamava de análise
(Behandlung) das resistências. Essa superfície esta atravessada
pela dimensão da verdade, pela qual a transferência se desfaz,
segundo o exame realizado anteriormente da noção de sujeito
suposto saber. Aqui é central a noção de desejo do analista.
C A P ÍT U LO 12

H EG EL: O RE A L E SEU N E G A T IV O

O eu só c real após ter sido superado.


Hegel

íc a r d o M in u t o l o ESTÁ APAIXONADO po r C a t e l l a , MULHER

R de Felipe. Esta nao corresponde a suas investidas, pois está


seriamente comprometida com o marido. Ricardo descobre
então que Catella é extremamente ciumenta com relação a seu
marido Felipe. Isso muda sua atitude: Ricardo passa a ser frio
e ostenta publicamente seu desinteresse e indiferença por Ca­
tella. Ricardo chega ao ponto de declarar isso pessoalmente
e aproveita a ocasião para dizer, indignado, que Felipe está
flertando com sua própria mulher. Catella fica furiosa e quer
saber de tudo. Ricardo diz que o casal infiel marcara um en­
contro em certa casa de banhos e que para confirmar a histó­
ria bastaria comparecer ao lugar na hora exata. Ricardo teria
o cuidado de reter sua esposa em casa na hora do encontro.
Realiza-se assim um pacto entre Ricardo —em sua falsa in­
diferença —e Catella —em sua não indiferença. Catella segue
o acordo. Todavia, na hora, em vez de encontrar seu marido,
suposto infiel, ela encontra Ricardo. Contudo, Catella não re­
conhece Ricardo pois o local está escuro e ele está disfarçado.
Ela entrega-se então ao Jiesejo daquele que acredita ser seu
marido. Logo depois começa a injuriá-lo revelando que ela
nao é a mulher de Felipe, mas a sua própria esposa Catella. O
ato recém-acontecido seria prova a traição do marido. É então
que Ricardo se revela. Catella fica desesperada, ao tentar pro­
var a infidelidade do marido é ela mesma quem pratica o ato
desleal. Isso certamente favorece que Catella seja convencida
pelas hábeis e oportunas palavras de Ricardo que o escândalo
não servirá a ninguém, que é importante ser fiel ao que acon­
tecera, e que “os beijos do amante têm mais sabor do que os do
marido”. (Todorov, 1980, p. 61, citação adaptada)
O Decameron (1370), escrito por Giovanni Bocaccio
(1313-1375) em dialeto toscano, no qual este é um de seus con­
tos, compila e reescreve narrativas medievais acrescentando-lhe
uma moral realista. Ela mostra personagens e fatos reais, como
a peste de 1348 em Florença, com ficção. Influencia, Voltaire,
Molière, Swift, Vivaldi e a formação de toda literatura moderna,
inaugurando uma forma de construir histórias, incluindo nelas
a consciência crítica de seu próprio processo de construção.
Poderíamos interpolar, na narração aqui comprimida, uma
longa descrição sobre a compleição física e moral dos perso­
nagens, como vimos na narrativa homérica. Isso seria contras­
tante com o desenvolvimento de uma dúvida indefinidamen­
te desdobrada sobre os estados moventes do desejo, tal como
encontramos na narrativa bíblica. De toda forma, temos aqui
um processo duplo de cura: a cura da paixão não correspon­
dida de Ricardo por Catella e a cura do desespero de Catella
diante de seu ato. Mas essa cura não se efetua pela integração
ou pela purificação das forças alienígenas que levaram um e
outro a essa hubris, tal como encontramos na tragédia grega e
na cura xamânica. Não há desequilíbrio entre elementos que
são retornados a uma configuração anterior. Sob certo ângu­
lo, o tratamento é hipocrática, ao mostrar que a passagem do
tempo oferece momentos fecundos, dos quais Ricardo soube
se aproveitar. Por outro ângulo há uma reversão da tragédia
do desejo em comédia erótica. Temos ainda um momento tí­
pico do cuidado de si. Ricardo e Catella falam entre si como
amigos unidos pelo mesmo destino da infidelidade comum
suposta em seus cônjuges. Mas esse momento é quase um ins­
tante. Ele se transforma rapidamente em deliberação retórica
sobre o que fazer. Agir como os exemplos históricos nos ensi­
nam sobre o cultivo da honra? Converter-se pela experiência
de radical decepção amorosa? Recolher-se à torre cética e in­
vestigar a anatomia da incoerência própria à loucura humana?
Certo é que a ausência de dúvida e de tratamento das paixões
em Catella contrasta com o frio procedimento metódico le­
vado a cabo por Ricardo. Seria ela tola, estúpida ou idiota,
perguntaria Kant. Que tipo específico de adesão a esse objeto
patológico —do qual emana seu ciúme e no qual se funda
sua liberdade - está em jogo nesta afecção do espírito: ciúme
delirante ou franca erotomania? Que dizer do imperativo cate­
górico na máxima que comanda a ação de Ricardo: perversão,
reverso sadeano de uma moral naturalista ou radical astúcia,
qual Ulisses ou Antígona, induzida pela ação em conformida­
de com o desejo? Certo é que a consolação final praticada por
Ricardo diante do desespero de Catella a faz ver as coisas nem
tão de perto nem tão de longe. E uma meditação que não se
orienta para a verdade das contradições do desejo, mas para
fins práticos nos quais ele está interessado.
Podemos imaginar que, no início da novela, Catella não
tem dúvida de que não ama e nem deseja Ricardo. Sua reali­
dade subjetiva está limitada pela negação indeterminada desse
aspecto: “Você nada significa para mim”. A passividade ine­
rente e espontânea com a qual Ricardo teria sido levado ao
desespero e à privação é revestida por um ato de reconheci­
mento: “Catella ama seu marido; mas seu ciúme aponta para
uma potencial negação deste amor”.
Se Ricardo quer fazer reconhecer seu desejo junto a Ca­
tella ele deve aceitar reconhecer o desejo dela pelo marido.
Como todo desejo, ele se funda numa falta e se aliena num

485
objeto. Ricardo nega esse desejo justamente ao afirmá-lo de
outra maneira. Ele nega'seu desejo no enunciado, assim como
o afirma em sua enunciação. É um ardil. Vem, então, a confir­
mação empírica a partir do encontro às escuras. Agora incide
sobre Catella a inversão (Verkehrung) de seu afeto por Felipe.
Contudo, o objeto que determina esta inversão é apenas um
semblante. O esforço de reconhecimento, que move o desejo
de Catella e se expressa em seu ciúme, mostra-se, assim, a re­
alização de uma passagem ao contrário ( Umschlagen). O ato a
torna uma infiel, revelando que seu desejo agora se faz eqüi­
valer ao desejo do Outro. A negação de algo que não estava
lá, em seu início, produziu uma transformação à qual o juízo
procura corresponder: os beijos do am ante são mais saborosos.
A transformação narrativamente exposta se identifica especu-
lativamente com o conceito que esta forma. Sujeito e desejo
retornam para si tudo aquilo que negam para se constituir
(Aufheben). A experiência desejante que se desenrola entre Ri­
cardo e Catella nos serve para indicar a estrutura dialética da
intersubjetividade.
Tomada como um caso clínico esta novela renascentista se
estrutura como um conjunto de oposições, análogas às que
Freud, seis séculos mais tarde, abordaria em suas investiga­
ções clínicas sobre o caso Dora e o Homem dos Ratos ou em
suas leituras de narrativas literárias como a Gradiva de Jensen
e o Homem de Areia, de Hoffman; e ainda em seus estudos
biográficos em torno de Leonardo da Vinci e Goethe. Esta
variação de formas expositivas e de fontes testemunhais sobre
a realidade da experiência clínica não é um acaso. Talvez seja
necessário e incontornável, para pensar o Real da experiên­
cia psicanalítica, tomar em consideração oposições como as
que vimos aparecer, na leitura lacaniana de Descartes, entre
universalidade e existência; ou na leitura lacaniana de Kant,
entre aparência e fenômeno; ou ainda, como vimos na leitura
lacaniana do cuidado de si e da retórica, uma oposição entre
ato como efetividade da verdade e discurso como estrutura de
ficção. O elemento comum entre estas oposições, nas quais se
constitui historicamente a prática psicanalítica é a negativida-
de. E como experiência produtiva de não-identidade, de inde­
terminação e de impossibilidade de simbolização que se pode
formar historicamente o sintoma como fenômeno clínico sen­
sível à logica da aparência (semblante). E como experiência
da falta, da castração e da destituição subjetiva que se pode
constituir uma prática dialética baseada em atos de reconhe­
cimento do sujeito, em sua relação de negação determinada
(repetição) ao objeto na fantasia (desejo) e na identificação
(transferência). É como experiência não integrativa de gozo
e de produção de diferenças que se mostram em sucessivos
fracassos e paradoxos de representação, de conceitualização e
de formalização, que a psicanálise faria parte de uma ciência
do Real. Seja como efetividade, seja como expressividade, seja
ainda como objetalidade o traço comum do real em psicanáli­
se é sua negatividade.
Abordar a lógica da aparência sem reduzi-la à expressão
de fenômenos, pensar os limites do conceito de conceito,
por meio dos impasses entre a consciência e seus objetos, foi
exatamente uma das tarefas que Hegel (1770-1831) tomou
para si. Hegel é um caso interessante para as relações entre
cura, terapia e clínica. Mais do que qualquer outro pensador
do século XIX, do idealismo alemão ou do romantismo, sua
filosofia tem por pressuposto um condicionante fundamental
da prática psicanalítica, a saber, uma consciência da própria
historicidade da consciência. Sem isso a dimensão ontológica
do mal-estar se sobreporia à dimensão histórica do sofrimen­
to, tornando o sintoma apenas uma questão de ajustamento e
adequação à realidade.
Por exemplo, no romance Os M andarins, de Simone de
Beauvoir, uma mulher invejosa e insuportável acaba por pro­
curar uma psicanálise. Ela se cura e torna-se uma mulher nor­
mal, mas então fica pior que antes. Torna-se insípida, tediosa e
uma pessoa aborrecidamente adaptada. Esse seria o protótipo

487
de um modelo de tratamento que exclui a dimensão da verda­
de, que trata a realidade como uma figura inerte e que aborda
a ilusão como puro futuro inexistente, ou seja, um tratamento
que exclui a ideia de cura ou a reduz à de ajustamento (Hyp-
polite, 1989, p. 113). Aqui a ideia de universal se reduziria à
de totalidade social, assim como a ideia de singularidade se
dissolveria na particularidade.
Hegel está interessado no problema que é também o da
cura psicanalítica, a saber, como é possível que o evento único,
o caso único, seja ao mesmo tempo universal? Como é possí­
vel confrontar-se, dilacerar-se e finalmente separar-se daquilo
que nos formou como cultura (Bildung)? Como é possível que
dentro de uma história que é a de cada um, mas também a de
uma comunidade, de uma época ou de um sistema de pensa­
mento, uma negação que a realize como tal? Menos do que
um pensamento da totalidade sintética, Hegel escreve para um
destinatário que não confia mais na finalidade pré-estabeleci-
da para uma vida e que ao mesmo tempo não se apropriou
totalmente de sua condição de senhor da própria história. Al­
guém que precisa ao mesmo tempo reconhecer a incerteza e
precariedade das significações socialmente compartilhadas e
renunciar à soberania absoluta de seu próprio sentido. Esse é,
em muitos sentidos, o sujeito que a cura psicanalítica pressu­
põe e institui (Lebrun, 2006, p. 109).
O sistema hegeliano é um sistema no tempo, daí que seus
operadores fundamentais se refiram ao espaço. Um sistema uni­
versal de todos os saberes em que sua própria exposição não dis­
socia os conceitos dos movimentos que lhes deram origem. Esta
construção é simultaneamente lógica e narrativa e sua solução
final encontra-se no que Hegel chamou de o Conceito: o tempo
em que o real se mostra racional e o racional se mostra real.
Seria possível dividir o pensamento de Hegel em três gran­
des vertentes (Habermas, 1998). Na primeira, encontramos a
ideia de realização histórica da verdade. A verdade nao se dá
pela relação fixa e de correspondência entre a coisa e sua re­

488
presentação, mas é um tempo ou uma posição que se desloca
conforme a própria transformação da racionalidade que a torna
possível. A segunda vertente da interpretação do pensamento
de Hegel interessa-se por uma teoria da intersubjetividade, que
procura mostrar como é possível uma ocupação do espaço an­
tropológico baseado na atividade de negação que constituiria a
consciência. Essa atividade se mostra sob três formas elementa­
res: a linguagem, o trabalho e o desejo. Encontramos aqui a ideia
de que há uma forma de lógica (a dialética) que preside todo o
processo, tendo seu motor na contradição e na negatividade.
A terceira vertente de leitura hegeliana está em busca de uma
teoria que possa mostrar que a própria estrutura do real pode
ser apreendida logicamente por uma ontologia negativa. Essas
três vertentes hegelianas enfatizam três atividades reflexivas, ou
três métodos de subjetivação: a introspecção e a teoria dos atos
de reconhecimento (Anerkennen), a explicação genética e uma
filosofia da história, e a verdade como experiência no quadro de
uma ciência lógica do Real (Idem, 1999, p. 187).
Vejamos, então, como essa primeira vertente hegeliana ser­
viu como uma espécie de modelo para pensar a constituição do
tratamento psicanalítico de seu início até seu fim, nos convi­
dando ao circuito de problemas relativos à eficácia do tratamen­
to como percurso de simbolização. Em seguida, abordaremos
o alcance e os limites de uma teoria da intersubjetividade em
psicanálise centrada na noção de desejo que pode ser derivada
de Hegel, o que nos convida a examinar os impasses da expli­
cação genética em psicanálise como percurso de subjetivação.
Por fim, examinaremos o argumento de que o tema da lógica e
do Real em Lacan deriva de Hegel, e sua pretensão é ultrapassar
o plano formal rumo a uma ontologia negativa. Conjugada-
mente ou tomadas de forma independente, essas três incursões
pretendem mostrar a alternativa tomada pela psicanálise em
sua estratégia de ocupação do solo kantiano. Elas se apoiam em
três versões que encontramos em Lacan para o tema do Real: o
real da estrutura, o real do sujeito e o real da pulsão.

489
12.1. A FfNOMENOLOGIA DA
EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA
Há muitas maneiras pelas quais o pensamento de Hegel
chegou à psicanálise, combinando-se aos seus temas e pro­
pósitos. Mesmo em Lacan, há vários momentos de sua in­
cidência, sendo a referência inicial à dialética do senhor e do
escravo a mais conhecida, mas nao a mais importante. Contu­
do, isso deixa em aberto o valor de Hegel para a constituição
da clínica psicanalítica. A prática clínica supõe rememoração
(Errinerung), retorno da consciência alienada e reconhecimen­
to de seu desejo (Entfremdung) além de separação do sujeito
em relação a suas objetivaçÕes alienantes {Entãusserung). Mas
esta prática é ao mesmo tempo continuação e recuperação
de uma história intersubjetiva e dos atos do espírito que a
constituem no tempo e em suas modalidade de negação. Há,
neste progresso do espírito, sucessivas inversões e incorpora­
ções (Aujhebung), pelas quais a palavra, o discurso e a fala são
absorvidas ao progresso desta história, alterando-a e transfor-
mando-a. Este movimento pode ser descrito também como
uma alternação entre o desenvolvimento de um saber e o re­
conhecimento da precariedade da verdade que ele engendra,
tal como se observa no trabalho da transferência. O avanço
da simbolização, que se espera de um tratamento, exprime, a
cada momento uma nova constelação das contradições ineren­
tes às relações entre o sujeito e o desejo inconsciente.
Vimos que a clínica é uma experiência que comporta uma
estrutura. A clínica é uma experiência, não uma ciência, muito
menos uma Ciência da Lógica, como um dia Hegel preten­
deu estabelecer. Hegel percebeu que a história dos saberes que
constituem, a cada momento, uma prática científica, artísti­
ca ou religiosa, estabelecem também os limites e condições
de sua experiência e de sua verdade. Ora, um processo que
se desenvolve absorvendo em si os momentos de sua própria
história, suas resistências, seus equívocos e suas contradições,

490
bem se aproxima da psicanálise. Neste caso, a história de uma
psicanálise poderia ser pensada da mesma maneira que Hegel
pensou a história, em geral (Dunker, 2003a).
Este foi o projeto inicial e declarado de Lacan (E:1936)
com relação à Hegel: fazer uma fenomenologia da experiên­
cia analítica, importando para tal o modelo da Fenomenologia
do Espírito. Ê interessante lembrar que esse projeto surge no
momento biográfico em que Lacan está em sua análise com
Lowenstein. Ele representa, portanto, um duplo interesse de
realizar o Conceito da experiência. Daí a importância que o
tema do final do tratamento assume para Lacan, bem como
a força de interesse em formalizar ou conceitualizar o con­
junto da experiência psicanalítica. Observe-se que, se esse
projeto é abandonado por Lacan em meados dos anos 1960,
ele reaparece na controversa ideia de passe (OE: 1967b) como
momento em que o sujeito narra sua experiência de análise a
duas testemunhas (chamadas de passadores) que, em seguida,
reapresentam essa narrativa reformulada para um júri ou cartel
que decide sobre a pertinência específica dessa experiência.
A ideia de uma fenomenologia da experiência psicanalí­
tica tem como referência a fenomenologia hegeliana; não a
fenomenologia de Husserl ou Heidegger; nem a noção de fe­
nômeno absorvida pelo positivismo lógico a partir de Kant,
Frege e Wittgenstein. Aqui nos detemos, portanto, no pri­
meiro aspecto da influência de Hegel sobre Lacan: a filosofia
da história. A Fenomenologia do Espírito (Hegel, 1807) é um
imenso empreendimento intelectual que consiste na narrati­
va conceituai da história da constituição do espírito por sua
relação com a totalidade dos saberes e das figuras de sua alte-
ridade. E o discurso sobre o espírito tal qual ele aparece e se
dá na experiência com o outro, contrastando e separando-se,
assim, da antropologia e da psicologia. Não se trata do estudo
da alma ou do homem em si ou para si, mas da análise dos
enganos da consciência nesse caminho que a leva a realizar-se.
A análise das ilusões da consciência implica o exame de como

491
estas ilusões preservam-sp de forma modificada em cada des­
dobramento de suas formas e aparências. Este desenvolvimen­
to concreto e explícito da cultura do indivíduo vai da própria
gênese do eu até sua elevação em eu absoluto, e é sincrônico
aos momentos da história do saber imanentes a essa consciên­
cia (Hyppolite, 1999, p. 57).
É possível ler esse texto como uma sucessão de quatro figu­
ras da consciência: (1) certeza sensível e percepção; (2) força
e entendimento; (3) consciência de si e certeza; e (4) verdade
da razão. Mas também como a seqüência lógica dos sistemas
de pensamento: platonismo, ceticismo, estoicismo, etc. Há
vários usos para esse texto de Hegel conforme se acentuam os
momentos da vida social do homem (Marx), a história uni­
versal de sua experiência (Herder) ou como constituição da
consciência individual (Wallon). Mas a suprema astúcia está
no fato de que, em cada fragmento ou passagem, se encontrará
a lógica da contradição que preside sua totalidade. As formas
de alteridade que possuem valor constitutivo para o sujeito
cruzam-se, assim, em relação dupla, ao mesmo tempo como
objeto de conhecimento e território de resistência, como con­
fronto para a realização de si e como disposição de liberdade.

De que modo o mundo pode ser objeto de conhecimen­


to e, ao mesmo tempo, lugar de prova para o sujeito; de
que modo pode haver um sujeito do conhecimento, que
se oferece ao mundo como objeto através de uma technê,
e um sujeito da experiência de si, que se oferece a este
mesmo mundo, mas na forma radicalmente diferente, de
lugar de prova? Se é este o desafio da filosofia ocidental,
compreendemos então porque a F enom enologia d o Espírito
é o ápice desta filosofia. (Foucault, 1981-82, p. 591)

E essa lógica da disparidade entre as formas de conheci­


mento e a experiência de si que Lacan tentará apreender em
seus ensaios para uma fenomenologia da psicanálise. Daí que
ele trabalhe sempre com a tentativa de descrever inversões e

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ultrapassagens que estariam, por assim dizer, no núcleo do
processo e que poderiam se explicitar ao seu final. O agudo
interesse de Lacan pelo tema do final do tratamento decorre
dessa ideia de que o processo, para ser de fato equivalente à Fe­
nom enologia, deve ter um fim. Há uma analogia entre o tema
do fim da história em Hegel e o tema da realização do ser do
sujeito em Lacan. O tema do final do tratamento tem impor­
tância relativa em Freud e é um esforço conceituai quase au­
sente entre outros teóricos da psicanálise. Uma breve inspeção
nas afirmações de Lacan sobre o final do tratamento nos leva a
reconhecer essa ideia central em Hegel de que o fim da histó­
ria é, ao mesmo tempo, a realização do sujeito e sua absorção
numa negatividade fundamental; o momento em que se chega
ao limite estático do “Tu és isto” (E:1949, p. 103); o advento
da fala verdadeira que permite a realização, pelo sujeito, de sua
história em relação com o futuro (E:1953a, p. 303); o tempo
em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na
satisfação de cada um com quem se associa numa obra huma­
na (Ibid., p. 322); o instante de subjetivação da própria morte
(E:1955a, p. 350); o reconhecimento da castração [í> (a)] no
desejo masculino e [A (cp)] no desejo feminino (E: 1960a, p.
690); a destituição subjetiva, a queda do objeto a na transfe­
rência e a travessia do fantasma (OE: 1967b, pp. 251-253); e,
finalmente, o momento em que ocorre a identificação com
uma forma especial e reduzida de sintoma, chamada também
de Sinthome (SXXIIL1975-76).
Em todas essas teses sobre o final do tratamento, o ser do
sujeito é afirmado e apreendido em chave negativa. Há duas
estratégias expositivas para abordar esta negatividade: a lógica
e a estética. Em ambos os casos esta negatividade pode ser for­
malizada, mas também facilmente hipostasiada em uma ideo­
logia psicanalítica do fim de análise (Dunker, 1998). E a falta-
a-ser (manque-a-létre) e as inúmeras figuras do negativo que
se espalham pelas intelecçÕes lacanianas em suas versões sobre
o final do tratamento: “Nunca há um sujeito sem um eu, um

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sujeito plenamente realizado, mas é isso que deve sempre se
tentar obter do sujeito em análise” (SIL1954-55, p- 287).
Disso nao se conclui, necessariamente, uma teologia negati­
va, baseada na aceitação da falta e na conversão como resigna­
ção, que nos faria retornar ao conteúdo da moral estoica. O que
importa é o percurso, as formas pelas quais esse fracasso em ser
se organiza, se repete e cria novas alternativas. Daí a importân­
cia da lógica dessas inversões {Verkehrung) e interversões (Ums-
chlagen) que se resumem e se superam no que Hegel chamava
de o tempo do conceito ou reconciliação (Aufhebung).
Isso já aparece naquela que talvez seja a mais antiga formu­
lação de Lacan sobre o tratamento, qual seja, a ideia de que o
analista opera em dois registros: a elucidação intelectual pela
interpretação e a manobra afetiva pela transferência, e que o
crucial é modular os tempos dessas intervenções (Ibid., p. 88).
O tratamento é descrito por sucessivas inversões e uma pro­
gressiva assimilação da imagem ao real, seguida de uma conse­
qüente realização simbólica da imagem. O tratamento é assim
ilustrado por um conjunto de voltas concêntricas em torno
de dois centros móveis (SL1953-54, p. 191). Em A (Outro),
encontra-se o “inconsciente do eu do sujeito”, o trauma e, ge­
nericamente, a parte desconhecida ou ignorada do eu; o frag­
mento de sua história que só lhe pode ser restituído pela fala
em primeira pessoa. Trata-se, então, de realização simbólica,
no sentido da verdade como efetividade {Wirklichkeit). Reali­
zar, passar ao real, é tornar efetivo aquilo que é ideal por um
“completamento do imaginário” (SII: 1954-55, p- 89). Ocorre
que este completamento falha, reposicionando então o Real
para o sujeito. Em A’ encontra-se o eco desse ponto conside­
rado a partir do analista. Quando o analisante aproxima-se
rápido demais de A (realização do Outro como outro-seme-
lhante), a transferência se intensifica, surgem os fenômenos
de resistência; particularmente o silêncio. Aqui o analista não
deve se deixar apreender totalmente numa imagem formada

494
pela suposição do analisante. Ele se desloca para que a fala seja
reenviada para A.
É essa, basicamente, a crítica de Lacan a Freud na condução
do caso Dora (E: 1951 a). Ele teria caminhado rápido demais
na interpretação e deixado de se desinstalar da imagem em que
se colocava para Dora. Com isso, realizou a imagem que Dora
desenhava sobre si, em vez de dialetizá-la simbolicamente na
transferência. O que vemos surgir dessa reflexão sobre verdade
e a realização do ser do sujeito é uma espécie de regra clínica:
quando o sujeito se aproxima da objetificação de seu desejo,
a intervenção incide como problematização das imagens que
integram o eu. Inversamente, quando o sujeito se aproxima
da objetificação de seu eu, a resposta é a problematização do
desejo. Esta simbolização reflexiva se realiza na transferência e
exprime uma concepção de tratamento: “O sujeito começa a
análise falando de si sem falar a você, ou falando a você sem
falar de si. Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise
está terminada” (E: 1954a, p. 373).
Lacan chega a apontar um esquema possível desse trajeto. A
análise se inicia pela instituição do analista como personagem
simbólico, mestre, autoridade e senhor de minha verdade\ é a
realização do símbolo (rS). Esta autoridade, mesmo que ilu­
sória, desdobra-se na realização de uma imagem por intermé­
dio da alienação narcísica (ri), no que Freud chamou de “lua
de mel analítica”. Disso decorre a decepção que confirma que
aquela é apenas mais uma imaginarização da imagem (il); são
os primeiros indícios de resistência. O logro transforma-se, as­
sim, em esforço de negação da imagem, em apelo e demanda à
sua transformação em real (iR). E o momento da transferência
negativa, do delírio organizado e da paranóia dirigida que ca­
racterizam o tratamento. Esta crise se resolve por uma espécie
de consolação. Sem encontrar a realidade da imagem, é preci­
so reconhecer que o trabalho produzido para fazê-lo simboliza
e faz existir algo novo. Lentamente, substitui-se a imaginariza­
ção do Real pela imaginarização do símbolo, processo neces­

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sário para toda decomposição de uma identificação. É o mo­
mento em que as formações do inconsciente encontram sua
plena inscrição no tratamento: são os sonhos decisivos (não por
seu conteúdo, mas pela sua posição de apresentação) e também
o momento em que Lacan fala de comunicação dos inconscien­
tes. Neste ponto, o analista intervém ativamente, invertendo a
fase inicial do tratamento, caracterizada pela imaginarização.
Ele o faz, primeiro, testemunhando a natureza simbólica de
símbolo (sS), sendo o maior deles o supereu (uma fala que nada
diz); depois, afirmando a natureza simbólica da imagem (SI)
na interpretação dos sintomas; e, finalmente, fazendo reconhe­
cer a natureza Simbólica do Real (SR) pelo reconhecimento da
transferência. Este triplo reconhecimento realiza uma primeira
forma da intersubjetividade e se faz acompanhar de uma eficá­
cia que Lacan compara ao restabelecimento da saúde. O ciclo
(sS, SI e SR) se repete várias vezes, interpolado pela reaparição
de (rl, iR e iS) e constituindo a fase mediana do tratamento.
O final da análise se caracteriza por duas novas operações: a
realização do real (rR), pela identidade especulativa entre o real
e o racional que atesta a experiência como tal, e pelo retorno
possível à primeira posição, a de realização do Símbolo, agora
não mais identificado ao analista como mestre, mas ao conceito
da análise (Idem, 1953c).
Assim como a experiência psicanalítica pode ser descrita
pela articulação dos registros a própria constituição do su jeito
pode ser descrita como articulação dos registros. É o que se
pode verificar no modelo em trança, proposto por Vorcaro
(2004) em seus diferentes enodamentos. Partindo-se da prece­
dência simbólica ao sujeito verifica-se uma fissura real no sim­
bólico. Esta hiância é então recoberta pelo imaginário. Esta
hiância culmina na separação demarcada entre imaginário e
simbólico. O momento seguinte implica a reaparição da fissu­
ra real, mas agora rompendo a equivalência simbólica entre a
criança e o falo. Ocorre então um novo recobrimento imagi­
nário desta interdição real que culmina no laço em metáfora

496
pela qual o simbólico incide sobre o imaginário. Ou seja, tan­
to os momentos do tratamento quanto os tempos da consti­
tuição do sujeito podem ser descritos por meio de articulações
entre registros. Em ambos os modelos vigora as disjunções e
enodamentos entre a unidade e a multiplicidade entre a nega­
ção e seu encobrimento, entre a falta e seus derivados.
Contudo a realização da personalidade, que figurava no
programa clínico de Lacan não se confunde com a solução das
estruturas patológicas e mantém com esta uma relação indire­
ta. Por exemplo, a paranóia de autopunição, descrita da Tese
de 1932, não exclui a realização da personalidade, ao contrário
da parafrenia, dos delírios de relação, perseguição ou reinvin-
dicação e da psicose alucinatória (Allouch, 1997, p. 77). Isso
é uma ideia importante e permanente em Lacan: a cura não
corresponde à solução da neurose, da psicose ou da perversão.
Isso vem por acréscimo. A tese é sincrônica à afirmação de
outro tipo de reconhecimento exterior ao de autoridade fecha­
da, representado pela família, e pela escala reduzida do drama
edipiano: “Hegel formula que indivíduo que não luta para ser
reconhecido fora do grupo familiar jamais atinge a personali­
dade antes da morte” (Lacan, 1938).
Vemos aqui a entrada do tema da morte como referência
antropológica para a realização da personalidade. A realiza­
ção do ser do sujeito deve ser contemporânea da efetivação do
conceito da análise. Assim como, para Hegel, a autoconsciên-
cia (Selbstbewustsein) se realiza no espírito absoluto.
Mal ou bem realizado, este projeto de fazer uma fenome­
nologia do tratamento analítico e mostrar que a psicanálise
é uma experiência dialética prolonga-se e é reconhecível nas
noções de ato, discurso analítico e nas séries transformativas
da topologia. A combinatória entre os registros e seus movi­
mentos (simbolização do Real, etc.) já se expressa na forma
possível de um grafo, recurso que Lacan utilizará inúmeras
vezes, particularmente em sua teoria sobre o sujeito. O que
muda é o próprio entendimento e a formalização da lógica

497
dialética com a incorporação de problemas e soluções provin-
dos da lógica formal (Cantor, Frege, Russel). Seria um sério
empobrecimento trocar os ganhos assim obtidos por uma es­
pécie de superação da dialética imanente entre lógica formal e
lógica discursivo-narrativa. Acompanhamos aqui a tese de que
Lacan se torna realmente hegeliano não no início, mas no fim
de sua obra (Safatle, 2006).
Aqui estamos diante de uma encruzilhada. E projeto teórico
de Hegel a tentativa de dominar a totalidade da experiência pelo
conceito. E um sistema de pensamento que não admite nada
que seja dado, que venha de fora. A exterioridade já está conti­
da, mesmo que não revelada na interioridade. A única pressupo­
sição é uma divisão originária (Entzweiung) entre o ser e o não
ser (Inwood, 1997, p. 47). Teria Lacan herdado essa maneira de
pensar em seu entendimento da teoria da clínica psicanalítica?
Já se observou que há uma diferença muito importante
entre a metapsicologia freudiana e a metapsicologia lacania­
na (Souza, 1998). Para Freud, os conceitos têm uma natureza
provisória, estando submetidos a constantes revisões e à crítica
pela experiência:

Só após ter explorado mais a fundo o campo dos fenôme­


nos em questão é possível apreender com maior exatidão
também os conceitos científicos básicos e afiná-los para
que se tornem utilizáveis num âmbito vasto, e para que,
ademais, completamente isentos de contradição. Então
talvez tenha chegado a hora de cunhar algumas defini­
ções. Mas o progresso da ciência não tolera rigidez algu­
ma, tampouco as definições. (Freud, 1915c, p. 113)

Ou seja, os conceitos mantêm uma relação com uma exte­


rioridade que possui poder de negá-los e transformá-los. Ao
modo kantiano, as sínteses são sucessivas e tensionam perma­
nente e criticamente as novas intuições empíricas com as cate­
gorias do entendimento e, assim, inversamente. Freud sempre
manteve, mesmo em suas postulações mais especulativas, pelo

498
menos uma noçao que assinalasse o limite em que o objeto não
pode ser pensado mais em termos estritamente psicanalíticos.
E a função da Q, energia exterior, antes de converter-se em
Qn no interior do aparelho psíquico, no Projeto de Psicologia
Científica; é a funçao do trauma antes da invenção da teoria
da fantasia; é a função da realidade externa e da pulsão de au-
toconservação até Introdução ao Narcisismo; é, ainda, a função
mítica da antropologia, da biologia e mesmo da geologia no
arco que vai de Totem e Tabu a Além do Princípio do Prazer.
São todos exemplos de noções; não podem ser propriamente
conceitos pela sua função de assinalamento de fronteiras. A
precariedade das noções clínicas indica, na teoria psicanalítica,
um aspecto do objeto que lhe é exterior. São ideias reguladoras
que não podem ser conhecidas, mas funcionam como hori­
zonte de integração e mediação do entendimento pela razão.
Aparentemente Lacan rompe este procedimento. Seus
conceitos tem difícil paridade empírica; suas referências nar­
rativas são, principalmente, objetos literários, estéticos e até
mesmo epistemológicos. Os casos clínicos alheios, fartamente
comentados, são, apesar de tudo, filtrados pela conceitografia
de quem os construiu. Mas a pergunta chave é: o que estaria
em relação de exterioridade frente ao Real, o Simbólico e o
Imaginário? Ou: estamos diante de um sistema semelhante
ao hegeliano, onde não há nada que fique de fora? E, ade­
mais, quando escolhemos uma metapsicologia sem exterio­
ridade, cuja única resistência se dá entre seus conceitos, não
estaríamos também indicando uma escolha ética? Em suma,
consideremos aqui quatro críticas quanto à absorção de Hegel
como modelo teórico da prática psicanalítica:
(a) A pretensão formalizante acaba perdendo uma parte
da experiência contida no conceito, a saber, o conteú­
do do objeto;
(b) As narrativas clínicas alheias tornam-se “interpretadas”
pelos conceitos, perdendo-se assim o aspecto de con­
tradição entre narrativa e conceito;

499
(c) A prática psicanalífica é concebida como um sistema sem
exterioridade (nem com a experiência da clínica em senti­
do amplo, nem com qualquer outra forma de teorização);
(d) A ética na qual se sustenta tal projeto desenvolve
uma alta periculosidade dogmática, contradizendo
o sentido político da noção hegeliana de eticidade
{Sittlichkeit).
A crítica admite três contra-argumentos. Ao servir-se de
Hegel, Lacan teria rompido com esse pressuposto de exterio­
ridade, trazendo para dentro do conceito sua própria contra­
dição. Assim, bastaria procurar, por exemplo, dentro do Real
aquilo que o nega e contradiz para recuperar a mesma força
criativa e transformadora fornecida pelo “cboque” da expe­
riência. O contra argumento é parcial, pois apenas recupera
deslocadamente a importância da contradição, mas não colo­
ca, de fato, uma exterioridade. A ideia de que o Real é exterior
ao Simbólico e ao Imaginário, e assim permutativamente, é
apenas uma variante desse problema. Todas as exterioridades
seriam, desta forma, locais e suprassumidas pela totalidade do
sistema. Isso sem levar em conta a crítica da própria noção de
exterioridade, trivialmente descartada por argumentos topo-
lógicos. Não há ponto de fuga que não se inclua nessa mesma
totalidade. Isso obrigaria a psicanálise a ser, constantemente,
um empreendimento epistemológico de si mesma. O argu­
mento é defensável, mas, sem dúvida, representa uma forte
descaracterização do âmbito de fundamentação clínico da psi­
canálise. Ele indiretamente nos ajuda a entender por que é tão
difícil, no escopo lacaniano, separar a teoria do tratamento da
teoria da clínica, e esta de uma metapsicologia.
O segundo argumento é que Real, Imaginário e Simbólico
não formam um universal dos universais. Lacan teria introdu­
zido o quarto nó (o Nome-do-Pai como sinthomè) para fugir
a esse problema. Este argumento é fraco. Tal movimento se
compreende melhor pela extensão da tríade hegeliana a um ra­
ciocínio a quatro termos, como, aliás, é comum nas tentativas

500
de formalização da lógica dialética. No fundo, não importa o
número de categorias — importa que elas não sejam exaustivas.
O terceiro argumento, quero crer, é mais plausível. A ex-
terioridade e a contradição ocorrem entre as modalidades de
saber que caracterizam a clínica; logo, esta é uma totalidade
heterogênea. Cura, clínica e tratamento se relacionam, mas
também eqüivalem a práticas que são exteriores entre si pela
sua constituição histórica. Elas se apresentam em relação de
mútua negação não exaustiva. Ou seja, as estruturas ontoló-
gicas como o Real, Simbólico e Imaginário, concernem e se
limitam pelas estruturas antropológicas, como a metáfora, o
significante e a letra. O movimento do pensamento psicana­
lítico depende desta inversão entre estruturas ontológicas e
estruturas antropológicas. Caso contrário, saímos da metap-
sicologia e entramos na metafísica. É isso que se apreende na
tentativa lacaniana de estabelecer uma fenomenologia do tra­
tamento psicanalítico, com a intromissão de uma categoria
totalmente estranha tanto à ordem da terapêutica quanto à
ordem da clínica, a saber, o conceito de verdade.
Outra conseqüência da mesma tese. A teoria da constitui­
ção do sujeito em Lacan deve muito a Descartes, Kant e Hegel.
Há corte, transformação radical de pressupostos, deformação
de conceitos, mas isso não autoriza o metodologismo oportu­
nista que vê nessas incorporações a criação, por exemplo, de
um “Descartes lacaniano” ou de um “Saussure psicanalítico”
para uso interno e próprio, que só faz sentido à luz de nossos
próprios interesses e conceitos. Afirmar que todos os conceitos
e noções da psicanálise só fazem sentido na clínica, e que esta
é soberano privilégio dos psicanalistas é testemunho patente
de rigidez ideológica e fixação de fronteiras impermeáveis. Seu
efeito colateral imediato é que não sabemos mais definir o que
é a clínica sem reduzi-la ao universo do tratamento.
Há, ainda, uma terceira fonte de alimentação da clínica,
que não se reduz à teoria do sujeito, nem à teoria do pato­
lógico. Trata-se de uma espécie de teoria geral da construção

501
w

'\

de objetos. Aqui a psicanálise tem conversado com os temas


ontológicos e ônticos, mas também com o problema da fun­
damentação da moral, com os objetos estéticos, com a erótica.
Seu interesse, difuso em cada caso, parece consistir no mape­
amento e na teorização sobre aquilo que resiste a se inscrever
psiquicamente. Aquilo para o qual a noção de realidade psí­
quica parece insuficiente.
Estabelecer uma concepção diagnostica da formação de sin­
tomas, uma hipótese sobre a constituição do sujeito e um en­
tendimento sobre o estatuto e a construção da fantasia são três
tarefas teóricas que toda e qualquer forma de psicanálise deve
realizar. Elas compõem o substrato do saber clínico e, ao mesmo
tempo, se separam de sua simples efetivação terapêutica ou da
atividade de cuidado imanente à cura. Clínica, cura e psicotera­
pia não devem ser identificadas com categorias como as de Real,
Simbólico e Imaginário. Devemos lembrar aqui o conceito de
constituição como aquilo que deve ser perdido para que uma
prática se sustente como superfície de contradições. É simples
perceber que cada uma destas intelecções corresponde a uma
forma de racionalidade clínica que usa os conceitos de maneira
um pouco distinta, segundo os propósitos que lhe são próprios.
Por exemplo, as oscilações gritantes que encontramos no uso e
no entendimento da noção de Real, mesmo entre comentadores
qualificados, não nos parecem apenas um problema solúvel por
correção cognitiva ou refinamento da interpretação de textos.
Ela reflete maneiras regionais e, às vezes, próprias à estilística de
cada analista em responder às exigências contraditórias, da cura,
do tratamento e da clínica.
A serventia de Hegel como parâmetro para a fenomenolo­
gia da experiência psicanalítica mostra aqui uma face bífida:
por um lado, é útil, mas discutível procedimento para siste­
matização da totalidade do tratamento; por outro, recoloca
o problema das relações entre o tratamento e os saberes e as
práticas que nele comparecem em exterioridade interior.

502
12.2. SENHOR E ESCRAVO
A trama amorosa que se desenrola entre Ricardo e Catella
exprime um fato central da experiência intersubjetiva. Ao se
apaixonar, Ricardo experimenta uma forma de dominação
pelo outro, uma vez que o objeto de nosso amor é sempre fon­
te de um poder do qual não se é senhor. Kant já havia explora­
do um conjunto de paradoxos contidos na noção liberdade da
vontade. Somos livres para querer o que livremente queremos,
mas, se assim fosse, por que, quando queremos um objeto
indisponível, como Ricardo quer Catella, não podemos usar
nossa liberdade para rapidamente escolher amar outra pessoa?
É o tema do patológico (pathos) como passividade, perda de
autonomia e como desejo de servidão.
Há três fontes permanentes de perda da soberania de si: o
desejo, que não podemos dominar inteiramente por ser desejo
do desejo do outro; o amor; que nos impõe voluntariamente
dar o que não se tem; e o gozo, que nos compele a servir como
objeto para o outro para encontrar nossa própria satisfação.
Quando Freud estabeleceu a sexualidade como causa eficiente
da intersubjetividade, reuniu essas três condições do patológi­
co, acrescentando contradições cruzadas a suas contradições
intrínsecas. Acompanhamos aqui a tese de Safatle de que a
teoria da sexualidade em psicanálise contém uma teoria do re­
conhecimento cuja raiz é dialética. Vejamos como uma leitura
de Hegel permite, ao mesmo tempo, situar a importância e os
limites da dialética do reconhecimento nas figuras do senhor
e do escravo (Hegel, 1807, pp. 119-133), mas antes recapitu-
lemos os quatro casos de negação que isolamos até aqui, para
fixar as trocas de posição e de lugar entre senhor e escravo:
1. Oposição (negação indeterminada) (Verneinung);
2. Inversão ao contrário (reconhecimento de contradi­
ções) (Verkehrung);
3. Interversão (negação determinada por contradições in­
ternalizadas) (Umschlagen);

503
4. Negação real conp. conservação do processo (Aufheben).
E como oposição indeterminada que as relações entre se­
nhor e escravo se inauguram. O senhor é o homem que arrisca
sua vida para se fazer reconhecer como senhor por outro ho­
mem, isto é, prefere ser reconhecido, fato ideal ou simbólico,
a preservar sua própria vida, fato real e biológico. O ato de
reconhecimento possui natureza própria, e sua figura elemen­
tar é a nomeação: ser chamado de senhor. Não é o mesmo que
imaginar que os outros assim o percebam. Aqui começa uma
inversão, que deriva do fato de que o reconhecimento pela
palavra pode ser um falso reconhecimento, resultado do uso
de força e coerção. A prova real de que o senhor é o senhor e o
escravo é o escravo está no trabalho. O escravo trabalha para o
senhor e cede a este uma parte do produto de sua ação. Uma
parte, e não tudo, pois mesmo que tudo nele se expolie, ainda
restará ao escravo o saber necessário ao trabalho. Assim como
o senhor domina o escravo, o escravo domina a natureza. As­
sim, o escravo se torna também senhor, o senhor da natureza.
Mas o verdadeiro senhor vive da natureza sem lutar contra ela;
ele goza (Genuss) a natureza por meio do escravo. A fruição
sem esforço é o prazer (Lust), e o estado que disso decorre é a
satisfação (Befriedichkeit).
Ora, o que o senhor deseja é ser reconhecido como senhor,
não viver uma vida de satisfação. No final da luta, ele é re­
conhecido por um escravo, não por um verdadeiro homem
como o senhor. Logo, ele deve se dirigir a outro senhor ini­
ciando nova luta. Contudo, agora a alternativa entre vida e
morte se transforma na luta de prestígio e reconhecimento,
incorporando a luta anterior de vida ou morte em outro nível.
E o momento da intervenção das contradições anteriores. Mas
isso é impossível, pois redundaria no mesmo impasse decor­
rente do fato de que seu triunfo (como senhor) é também
seu fracasso (reconhecido por um escravo). Agora a morte é
negação tanto da condição de senhor quanto de escravo; só
ela, e não qualquer mestre em particular, é o mestre absoluto.

504
Assim, o senhor só pode estar realmente satisfeito pela morte,
seja sua, seja do escravo. Logo, o senhor estará sempre insa­
tisfeito ou assombrado pelo fantasma de que sua satisfação é
parcial, insuficiente ou meramente falsa. Ela não simboliza o
que deveria. A dominação é um impasse existencial —morrer
lutando ou embrutecer-se no prazer; em ambos os casos, ele
estará insatisfeito com o que é. Essa negação própria e intrín­
seca à consciência do senhor só pode se realizar pelo reconhe­
cimento de que a sua verdade (Warheit) está dada no e pelo
escravo. O senhor só aparece para engendrar o escravo que o
suprime e conserva (Aujheben). Inversamente, o escravo que
se reconheceu no senhor torna-se um ex-escravo, um cidadão.
Assim, ele não é mais apenas um senhor da natureza, mas tam­
bém um escravo entre outros.
O homem tornou-se escravo porque teve medo da morte.
Sua dependência do senhor reflete sua dependência da natu­
reza como conservação de si e transformação dos objetos. Esse
medo é uma experiência fundamental. Revela que o escravo
experimentou a angústia e o terror da morte e intuiu o nada.
Compreendeu, assim, que sua existência é apenas morte supri­
mida e conservada no Ser. E seu Ser é apenas negação do que
ele apreende como posição de ser. Esse medo da morte se con­
serva como medo do senhor durante o processo do trabalho,
mas não é o mesmo medo, pois agora a morte e o senhor são
apreendidos como um conceito, o conceito da angústia. Em
nome das figuras deste conceito, o escravo reprime seu prazer
e recebe, em troca, um saber. E a técnica por um lado, a ciên­
cia por outro e os ideais num terceiro plano. A luta inicial se
desdobra no esforço de negação representado pelo trabalho. O
escravo, por seu trabalho e seu saber, e o senhor, por sua cora­
gem e seu gozo, constituem, simultaneamente, o conceito de
liberdade. O escravo e o senhor se libertam para serem livre­
mente escravos. O senhor é senhor de uma liberdade insufi­
ciente, posto que realizada e destituída de ideal. O escravo, por
outro lado, tem um ideal não realizado de liberdade. Apenas

505
o escravo pode realizar <çideal e ultrapassar, assim, sua própria
condição. Só para ele esse progresso pode ter algum sentido.
Para o senhor, como vimos, a luta termina num impasse e deve
recomeçar perpetuamente. Para o escravo, sua liberdade só
pode se realizar se for universalmente reconhecida por aqueles
que ele reconhece como dignos de reconhecê-la. Há, portanto,
um real em jogo no reconhecimento. Inicialmente, este real
é questionado pelo fato de que se baseia no reconhecimento
de escravos, mas aqui se inicia uma luta inversa, do escravo
contra o senhor para fazer valer a este seu próprio conceito de
liberdade. Neste conceito, suprime-se e conserva-se a realidade
e a dignidade humana do senhor, posto que são universais,
enquanto a liberdade do senhor, para ele mesmo, é particu­
lar. Basta, portanto, que o escravo imponha sua liberdade ao
senhor de tal forma a fazê-la reconhecida para que o processo
se interrompa, destruindo as categorias de senhor e escravo e
subsumindo-as numa nova etapa da Fenomenologia do Espírito
(Kojéve, pp. 168-172). Eis a intersubjetividade realizada.
Essa leitura de Hegel tem alguns pressupostos discutíveis. O
primeiro deles é a associação entre ação e negação. Todo ato, ao
contrário do comportamento, é um ato de negação. Negação
da natureza pelo trabalho, negação da coisa pela linguagem e
negação do objeto pelo desejo. São as três figuras fundamentais
do ato: linguagem, trabalho e desejo. Dessa tese do ato como
negação decorre que o eu do desejo é necessariamente vazio,
caso contrário não poderia ser agente de negação. Ele é ocupado
por uma espécie de impostura positiva que é o sentimento de
si, diverso da verdadeira consciência de si. Outra conseqüência
é que o desejo será desejo de outro desejo. Ele nao pode ser
realizado num objeto, mas apenas em outro ato. E o ato de
reconhecimento. Logo, sua forma será o tempo, não o espaço.
Há, então, três momentos: a constituição do sujeito, pela nega­
ção do sentimento de si; a formação do desejo como negação e
reconhecimento do outro; e a construção do objeto, pelo traba­
lho e pelo saber. O desejo se humaniza pelo risco e pela renún­

506
cia à conservação de si, que se convertem em reconhecimento.
Desejar um desejo inaugura uma historicidade, a história dos
desejos desejados. O desejo é desejo do Outro, pois esta história
é lugar em que ele se realiza. Ou seja, é uma dialética entre po­
sições que determinam o desejo, que aspiram a realizar-se como
lugares. Daí que sua realidade se baseie no reconhecimento, e,
para tanto, é necessário que os dois desejos permaneçam, em
sua diferença, após a luta. Mas aqui não há mais oposição entre
senhor e escravo, apenas oposição e reconhecimento entre dese­
jos. O desejo do senhor destrói, pelo consumo, o que o trabalho
produtivo do escravo construiu. Mas o trabalho do escravo é
também o de transformar sua angústia e enfrentar a lei do se­
nhor para realizar sua liberdade (Ibid., pp. 11-31).
Vemos nesta narrativa conceituai as inversões, negações e
contradições que foram utilizadas por Lacan em sua teoria do
desejo e da transferência. A narrativa adquire uma conotação
antropológica, e tematiza um trajeto de reconciliação. Ela não
evoca uma catharsis integrativa cujas origens encontramos em
uma ontologia naturalista ou em uma metafísica da harmonia
política, mas presume que o drama se desenrola no próprio su­
jeito em suas relações simbólicas com o Outro. Responde ainda
ao critério kantiano de ser uma antropologia negativa, na qual o
homem se define por sua falta em ser e pela sua ação negadora.
Não podemos deixar de notar que a narrativa do senhor e
do escravo aborda frontalmente o tema do poder e da domi­
nação. Esta foi uma dimensão esquecida pela leitura lacaniana
da constituição do sujeito e da formação dos sintomas que pri­
vilegiou, respectivamente, o desejo e a linguagem. Ora, o tema
do poder, excluído nesta vertente teórica, parece retornar, um
tanto deslocadamente, quando se trata da concepção lacaniana
do tratamento e da transmissão e da dialética da transferência.
Vejamos, então, como a noção de autoridade e de poder é
abordada na dialética do senhor e do escravo, reintroduzindo
uma série de temas ligados ao cuidado de si. Isso ocorre, inicial­
mente, pelas quatro formas de autoridade descritas por Hegel:

507
1. Estoicismo: representa a atitude da consciência que se
retira do mundo e retorna para seu próprio interior, re­
conhecendo a força superior da oposição representada
pelo outro. O mestre, o destino, a morte são forças in­
superáveis diante das quais é preciso cultivar a aceitação;
2. Ceticismo-, é a inversão (Verkerhrung) da atitude estoica,
ou seja, a consciência re-orienta-se para o mundo mas
coloca a superioridade moral do senhor em dúvida. O
cético obedece na prática, mas subjetivamente resiste
ao senhor. Estoicismo e ceticismo são posições de re­
sistência passiva ao poder, que baseiam-se na separação
entre poder, ao qual se resignam, e autoridade que não
reconhecem verdadeiramente;
3. Consciência Infeliz: é a interversão (Umschlagen) das
duas posições anteriores. A oposição entre ceticismo
e ceticismo faz reconhecer que a posição de senhor e
de escravo encontram-se em cada um e não são apenas
uma oposição simples entre interior e exterior. Isso sig­
nifica reconhecer, pela primeira vez, uma divisão sub­
jetiva. Com isso se reconhecem também as implicações
da consciência na produção do mundo e do senhor do
qual ela se queixa;
4. Consciência Racional: subsume (Aufhebung) a posição
da consciência infeliz reconhecendo-a no outro. Dois
efeitos deste processo são importantes: a universaliza­
ção do reconhecimento (como lei simbólica) e a pro­
dução de uma nova forma de existência (como objeto
residual que conserva o que foi negado). A divisão do
sujeito é agora reconhecida como falta no Outro. Resta
saber se entre esta divisão no sujeito e esta divisão no
Outro a relação é de identidade ou de disparidade.
Portanto, as transformações na forma do poder são assi­
naladas por movimentos de crise periódica de determinado
modo de relação de autoridade e por movimentos internos
que alteram a lógica de reconhecimento. A ética do reconhe-

508
cimento, pautada na sensibilidade, na empatia ou na simpa­
tia choca-se com a interpretação do poder como fato real. E
pela ação mútua.dessas três estratégias, a saber, da verdade, do
real e do reconhecimento, que se desenvolvem os momentos
transformativos da transferência. A liberdade não é, então, o
contentamento ou a bem-aventurança, mas essa experiência
mesma de cisão. Por exemplo, na dependência desobediente,
própria ao ceticismo, o escravo rebela-se e insulta o senhor,
mas é para continuar a se sentir seguro em suas mãos. E uma
revolução feita para manter o senhor em seu lugar. O ódio
ao senhor o torna mais forte, não mais fraco. Na autorida­
de estoica dá-se o contrário. É uma autoridade sem amor ou
ódio, mas baseada no ressentimento. Ao fingir-se indiferente à
diferença de poder, ela mantém a aquiescência necessária para
a sustentação do cuidado. O cuidado, como proteção, torna-
se, assim, uma espécie de obrigação que o senhor nos deve em
contrapartida à nossa passividade diante dele. A consciência
infeliz é capaz de dissociar a autoridade da pessoa que a exerce.
Ela corresponde, desta maneira, a uma simbolização das duas
posições anteriores e à distinção entre o estatuto das regras e a
ordem da Lei. Ela exprime um duplo movimento de separação
em relação ao outro e de elaboração de um saber: como era eu
sobre a influência dessa autoridade? De que form a concorria para
que ela se exercesse sobre m im ? Aqui está a primeira incidên­
cia da relação a si como fonte de resistência ao poder. Mas a
consciência infeliz nos coloca diante de uma nova escolha: ao
poder se subtrair ao domínio de uma relação de autoridade,
posso reingressar nela (Sennet, 2001, p. 174-178). Esta elabo­
ração de saber e esta escolha ou aposta que se abre à consci­
ência infeliz engendra duas táticas distintas: a máscara e o ex­
purgo. A máscara é uma estratégia esquizoide que corresponde
à internalização da relação de poder. Ela inflaciona o diálogo
interno como substituição ao diálogo externo e aprofunda a
meditação sobre a passividade. Ela cultiva a existência de uma
espécie de eu secreto que estaria protegido da dominação so­

509
frida pela apresentação ípública do eu. É o que se mostra na
quaestio de Montaigne. O expurgo é a estratégia paranóica in­
versa. Aqui se trata de afastar de si tudo aquilo que é localizado
como fonte de influência. E uma reação pela qual o sujeito se
apresenta ativamente como passivo, tal como vemos na ca­
tharsis e na confissão. O ato de expurgo não é um alívio da dor,
mas um aumento do sofrimento a fim de que algo destrutivo,
ainda que prazeroso, seja excluído. Essas duas estratégias da
consciência infeliz são extremamente limitadas, pois a autori­
dade real não pode ser desfeita apenas por um ato libertário da
vontade. Daí que suas imagens fundamentais, a autonomia e
o paternalismo, se apresentem como modos fundamentos da
alienação em sua dinâmica de identificações (Ibid., p. 218). A
conseqüência de seu emprego continuado é o reforço de uma
forma de identificação ao outro, a forma da vítima.
De fato, o século XIX acusa uma transformação radical na
esfera da moral do sofrimento. Vimos que essa tinha como mo­
delo o martírio e o caráter exemplar que este podia representar
para um coletivo. Aqui estamos no regime inteiramente diverso
da vítima não heróica e do sofrimento como uma experiência
que adquire valor moral imediato. Essa atividade será deportada
para o outro, seja ele a família, a sociedade civil ou o Estado.
Esta tática impede que se realize o cuidado de si. Em vez de
olhar o poder de frente, de atravessar a autoridade pela apro­
ximação e pelo desvinculamento, o sofrimento se amesquinha
em problema prático de dominação. Daí o poder ser cada vez
mais o poder de inspirar o medo para oferecer a segurança. De
Maquiavel a Max Weber, o estudo da figura carismática é o es­
tudo da capacidade de evocar e transferir o medo. E por isso que
Hegel afirma a superação da consciência infeliz como processo
no qual se traz para perto de si as imagens da autoridade de
maneira a olhá-las de forma tão intensa e próxima que o medo
se apagaria, transformando-se em angústia, o conceito de an­
gústia. Reconhecemos aqui as estratégias combinadas do antigo
cuidado de si: ver de perto, ver de longe, meditação sobre a

510
morte, premeditação dos males. Ora, a solução hegeliana para a
consciência infeliz e a realização da intersubjetividade passa pela
universalização concreta da divisão constitutiva do poder.
Um aspecto saliente da narrativa do senhor e do escravo
é que ela é, simultaneamente, uma história sobre o desejo e
sobre o poder. E a história do poder em sua incidência micros­
cópica que podemos reconhecer nas relações entre marido e
mulher, entre pai e filho, entre patrão e empregado e —por que
não? —entre analista e analisando, quaisquer que sejam as es­
colhas das figuras. Substituindo-se o homem e a mulher pelas
figuras do escravo e do senhor, cedo se percebe que essa supe­
ração é impossível. Poderíamos reparar o problema, sugerindo
que se trata, ao final, do reconhecimento de duas formas de
desejo distintas, duas posições diferentes diante da castração
ou dois valores irredutíveis para o cruzamento entre desejos.
Contudo, a intersubjetividade tem um limite, e este limite
é a sexualidade. É neste escopo, portanto, que se distinguirá a
incorporação da psicanálise aos dispositivos de poder, seja pela
via da localização da verdade do sujeito, pela via da hipótese
repressiva ou pela via da docilização dos corpos. Os impasses da
integração psicanalítica do modelo antropologizado da dialética
hegeliana traduzem, cada qual ao seu modo, este núcleo pelo
qual a diferença que não pode ser dialetizada surge como núcleo
e fonte disseminadora do que não pode ser simbolizado.
Em Lacan existe uma tensão permanente e não resolvida
entre a dimensão do reconhecimento e a esfera do Real, entre
o universal e o existencial, entre o desejo e o gozo, entre a to­
talidade e a unidade. Isso culmina em sua teoria da sexuação
e em seu projeto clínico que sem jamais renunciar à aspiração
da lógica do reconhecimento acaba por admitir um elemento
não dialetizável, no plano do gozo.
Reencontramos aqui a mesma lógica quaternária que des­
crevemos na estrutura do tratamento e na teoria do sujeito,
acrescida de algumas alterações importantes. O ponto de par­
tida é a problemática freudiana da disparidade entre o falo,

511
como premissa univerpl da sexualidade, e a teoria da bisse-
xualidade, como dimensão existencial da escolha de objeto.
Lembremos que estes são também dois pontos duramente
criticados tanto pela tradição culturalista quanto pela pós-es-
truturalista em psicanálise. Da premissa de que o falo é organi­
zador central da sexualidade humana se depreendeu a objeção
falocêntrica, patriarcal, heterossexual e androcêntrica contra
a psicanálise. Da premissa da bissexualidade vem a objeção
de que isso representaria uma exclusão do homoerotismo, a
primazia da genitalidade e uma dicotomização entre os sexos.
Com a teoria da sexuação, Lacan preserva tais categorias
sem que elas mantenham entre si, e dentro de si, uma relação
de unificação. Do lado do homem, há dois modos de rela­
ção ao falo. No primeiro, afirma-se a universalidade do falo
e, coextensivamente, da castração. No segundo, afirma-se
a existência de um elemento que faz a função de exceção a
esta regra: é o pai mítico da horda primitiva que teria acesso
a todas as mulheres. Assim, reencontramos a ideia de que o
universal funda-se na exceção. No lado da mulher, afirma-se
que não existe mulher que não seja castrada, o que se poderia
defender freudianamente tanto pelo argumento da anatomia
quanto pela noção de inveja do pênis (Penis Neid). Além disso,
afirma-se que a mulher é não-toda inscrita na função fálica e,
portanto, que há uma forma de gozo especificamente femini­
na e suplementar ao gozo fálico (SXX: 1972-73, p. 105).

h o m em M u lher
3x . x 3 x . <Px
V x . <S x Vx . <J>x

S (A) A (gozo não todo)


(gozo fálico) § o b je t o a
<- A (gozo fálico)

512
Portanto, nao há uma medida comum entre o universal
fálico e o existencial do objeto, ou “nao há universal que não
deva ser contido por uma existência que o negue” (OE: 1973a,
p. 450). Aqui se altera a referência hegeliana da lógica da inter-
subjetividade entre o universal e o particular para a primazia
do objeto como diferença. Isso aparece frequentemente em
Lacan através da expressão não-sem, por exemplo, na tese de
que a angústia não é sem objeto. Tal disparidade vale para os
dois sexos. No entanto, há ainda uma disparidade interna ao
feminino entre o universal, assim definido, e o não universal.
Ora, este não universal não é nem o particular nem o univer­
sal, é o não todo (pas tout), como expressão da singularidade.
Essas fórmulas funcionam de modo articulado à fantasia
(S 0 a) e à posição de objeto (cf) 4" A). Assim, desde o lado
homem, toma-se a mulher como objeto de seu fantasma, en­
quanto esta toma o homem como falo. Mas, ao mesmo tem­
po, a mulher tem uma relação particular com o significante da
falta do Outro [S (A)], do qual extrai seu gozo suplementar.
Aqui surge a articulação política da sexuação. Entre os co­
mentadores de Lacan, há uma diversidade de entendimentos
sobre o escopo ao qual se deve aplicar a noção de homem e de
mulher, contempladas pelas fórmulas da sexuação. Seria o caso
de uma referência ao homem e à mulher no sentido empíri­
co? Teríamos que entender cada sujeito dividido em face mas­
culina e outra feminina (Gaufey, 2009)? Seriam elas posições
cambiantes, como os discursos? Ou ainda, estaríamos diante
de uma concepção renovada da bissexualdide como experiên­
cia de uma dupla forma de gozar (Pommier, 1987). A única
constante entre os comentadores é de que a introdução do
gozo feminino, como não-todo, significa o reconhecimento ra­
dical de experiências de indeterminação ou de não-identidade
no núcleo mesmo da sexualidade.
Essa diversidade encontra-se também na absorção dessa
tese entre os teóricos de gênero e nos estudos culturais. Não
penso que seja uma querela que se resolva apenas pelo exame

513
e pelo esclarecimento daí textualidade das afirmações de Lacan.
Há aqueles que leem a sexuação como uma confirmação do
sexismo tradicional da psicanálise, acentuando o enunciado “a
mulher não existe” como mais uma estratégia de silenciamento
e incitação do falar feminino numa nova versão da produção
e expropriação de sua identidade (Brennan, 1989). Há outros
que encontram nesta teoria a descrição das inscrições primárias
dos modos de gozo de um sujeito, fazendo-as depender da no­
ção freudiana de fixação (Prates e Silva, 2001). Há ainda os que
entendem tratar-se de modos de dizer, que satisfazem ou não a
função fálica proposicional e de tipos específicos de perturbação
ou de fracasso da função fálica (excepcionalidade, não univer­
salidade, existência não toda) (Porge, 2006, pp. 259-263). Por
fim, há aqueles que veem uma similaridade entre as fórmulas
da sexuação e a teoria dos discursos, entendendo assim que a
posição masculina ou feminina é flutuante e depende apenas da
performatividade imposta pelo discurso (Butler, 2005).
De todo modo, a distribuição das posições mais essencialis-
tas ou mais desconstrutivistas, de corte empirista ou mais for-
malista, refletem e admitem tacitamente, no núcleo da teoria
psicanalítica da sexualidade, figuras não integráveis à dialética
da intersubjetividade, como o objeto a e o Real. No fundo,
trata-se de uma nova forma de negatividade cuja característica
mais saliente é ultrapassar o registro do conflito e convidar a
uma revisão da teoria do reconhecimento. A contradição entre
a teoria do reconhecimento, expressa na dialética do senhor
e do escravo, com a teoria da sexuação, em sua variedade de
leituras, formam a superfície que vai do polo psicoterapêutico
ao polo clínico.

12.3. LÓGICA DO REAL


O pensamento dialético em psicanálise se funda, portanto,
numa tensão entre a negação ontológica (o Real) e os impera­
tivos de reconhecimento (a intersubjetividade) (Safatle, 2006,

514
p. 323). Vejamos, então, como a dialética do reconhecimento
se articula com a experiência do Real, segundo uma lógica da
negatividade, num dos raros relatos clínicos de Lacan. Uma vez
que esse relato é extremamente compacto, optamos por inter-
polar nele aspectos da teoria do tratamento e da concepção de
neurose obsessiva que permitem torná-lo mais compreensível.
Tratava-se de um homem na idade madura e espírito de­
siludido. Havia estado em análise com Lacan por um bom
tempo, e esta agora aproximava-se de seu fim. Sofria com sua
neurose obsessiva e com a conseqüente transformação de sua
vida numa espécie de arena de luta na qual desempenhava es­
petáculos de agressão imaginária e vinganças intermináveis.
As oposiçoes sucediam-se no trabalho, na família e com os
amigos, dando à luz variações de sua identificação heróica e a
continuidade de seu sentimento de perseguição e injustiça. A
disputa pela posse da razão das razões e da palavra final se de­
senvolvia sob o fundo de uma apresentação social escrupulosa
e bem-educada. Quanto a isso, Lacan mostrava sonora indife­
rença, e o analisante perguntava-se, em contrapartida, quan­
do, afinal, teria sua agressividade propriamente interpretada.
Todavia, a análise progredira em outra direção. Ela o fi­
zera reconhecer que ocupava um lugar ingrato no jogo pelo
qual sua mãe praticava uma espécie de destruição do desejo
de seu pai. Para isso, utilizava o filho como elemento terceiro
que, ao mesmo tempo, eliciava o desejo do pai e impedia sua
consecução. Ele intui que isso se relaciona com seu próprio
sentimento de impotência. Para desejar, era preciso, de alguma
maneira, destruir o Outro, mas com isso destruía seu próprio
desejo. Ele sabia, mas ainda era, de fato, difícil aceitar que o
desejo, sendo desejo do desejo do Outro, não poderia ser sepa­
rado deste sem aniquilar sua própria condição. Consolava-se,
assim, com os encargos da demanda, ganhando, em contrape­
so, a sensação de ser um espectador de sua própria vida.
Lacan insistira pesadamente sobre suas manobras para pro­
teger o Outro. Um extenso trabalho na transferência fizera a

515
elaboração dessa separação estrita e artificial que ele praticava
para manter apartado o Outro, como lugar simbólico e impes­
soal da lei, e o outro, seu parceiro e semelhante, que insistia
em se comportar às expensas e em paralelo ao primeiro. Como
encarregado e embaixador do Outro, ele se identificava fora da
cena e sofria com o tédio que essa posição lhe impingia. Havia,
então, uma sobreposição entre o lugar do Outro e a sua posição
de sujeito. Isso tinha alguma relação com seu sentimento per­
manente de impostura, falsidade e inautenticidade. A graça é
que, a partir dessa sobreposição, ele podia apreciar o espetáculo
de oposições entre o pequeno a c o seu próprio eu, que lhe
servia de sombra. A vida era, então, um teatro, um jogo e uma
guerra, mas em todos os casos, ele estava seguro e ausente.
Seus problemas narcísicos com este complexo de fachada
mais pareciam um labirinto sem fim. Após muitas voltas, La­
can parecia adivinhar a combinatória e os ciclos que inevi­
tavelmente se repetiam em suas relações intersubjetivas. Por
exemplo, havia uma seqüência que o fazia passar de uma atitu­
de sedutora a um questionamento próximo da insurreição, ter­
minando numa impassividade pétrea. Os pontos de transição
estavam marcados por pequenas irrupções de angústia. Neles,
havia sempre um sentimento de contradição: um desempenho
bem-sucedido era vivido como fracasso, um ressentimento se
fazia concomitante à prática da generosidade, uma inconstân­
cia de afetos era simultânea a uma rígida fidelidade. Nesses
pontos de transição, não foi raro ele confrontar abertamente
Lacan, queixar-se de sua inépcia e indiferença, acusar-lhe de
excessiva proximidade e ingerência. Queixas contraditórias,
mas de acordo com sua própria transferência.
Esta seqüência tornava-se enfadonha, e ele sentia seus re­
cursos e apelos se esgotarem pela ironia cômica da repetição.
Daí que a análise parecia se encaminhar para seu fim... por
esgotamento. E neste momento que aparece uma última ma­
nobra. Ele torna-se, pela primeira vez, impotente com sua
amante. Atribui isso à sua “menopausa” e à própria impotên­

516
cia de Lacan em salvá-lo dessa monotonia. Considerando suas
descobertas sobre a função do terceiro potencial para a eficácia
erótica de um casal, ele propõe à amante que esta durma com
outro homem “para ver no que dá”. A amante, que mantinha
certo acordo com os postulados inconscientes que sustentam
o desejo do paciente, não se mostra nem complacente nem
reticente com a demanda dele. Na mesma noite, ela tem um
sonho: “ela tem um falo e sente-lhe a forma sob suas roupas, o
que não a impede de ter também uma vagina e, acima de tudo,
de desejar que este falo a penetre” (E:1958d, p. 637).
Ao ouvir o relato do sonho, o analisante recupera imediata­
mente sua potência sexual e a demonstra brilhantemente à sua
sagaz amante. A demanda que ele formula à amante é reco­
nhecida por Lacan como uma antiga oferta para que este san­
cionasse sua “homossexualidade recalcada”. E claro que isso
jamais se fazia de modo explícito, de acordo com a articulação
inconsciente da demanda. De alguma maneira, essa deman­
da se encontrava saciada pela transferência. Tanto pela recusa
quanto pelo adiamento suposto de sua resposta, ela se inseria
no roteiro de administração de demandas conhecido por ele.
A sagacidade da amante reside, primeiramente, no fato de
que ela não introduz nenhum coadjuvante em seu sonho. As­
sim, ela não responde e responde a demanda de seu senhor. O
que o analisante recusa-se a reconhecer é a castração do Outro.
Este parece ser o ponto central da escuta que Lacan tem neste
momento. No lugar da castração do Outro, ele oferece todos
os emblemas de sua própria falta, impotência e frustração. E
o preço a pagar para ter uma posição concêntrica ao lugar do
Outro. No jogo reconstruído de seu próprio romance familiar,
a destruição do desejo do pai se devia também ao escamotea-
mento da falta na mãe. Mas esse semblante de quem despreza
o desejo do marido se fazia pela fantasia do paciente, por meio
da qual este permanecia como objeto. A fantasia de que sua
amante se deitasse com outro homem tornava-se mais clara.
Não é apenas porque isso revelaria o desejo da amante, mas

517
porque este desejo estava coordenado pelo império de sua pró­
pria demanda. Ela o faria p or ele, por amor incondicional a ele.
É assim que a amante, na própria figuração do ato sexual, se
mostraria o Outro sem falta, um puro agente e executor da lei,
cujo objeto é ele próprio.
O segundo aspecto da sagacidade da amante reside do fato
de que ela sonha para ele, mas para além de sua demanda. Nis­
so, ela figura o Outro desejante e toca o desejo inconsciente
do sujeito. E por isso que o sonho tem o valor de restabelecer
imediatamente a força erótica ao desejo do paciente. O sonho
e seu relato cumprem a função da intervenção do psicanalista.
Mas esta também é a ocasião para que Lacan insista na função
que o significante fálico possui para seu desejo. No sonho, este
significante não é o falo (como eufemismo para pênis) nem a
vagina ou mesmo as vestes que lhe encobrem. Também não é
o desejo de ser penetrada. O falo é um significante impronun-
ciável, uma posição formada ou inferida por esses outros sig­
nificantes pelos quais ele se desloca. Não podemos isolá-lo ou
identificá-lo de forma permanente a nenhum desses termos,
mas, sem eles, e nesta articulação entre eles, o falo não pode
ser localizado. Em suma, o falo é uma posição, não um lugar.
Mas o fato de que, pelo sonho, a amante se apresenta como
tendo o falo não é suficiente para explicar a restituição de seu
valor erótico:

Ter um falo, com efeito, não basta para lhe restituir uma
posição de objeto que a aproprie a uma fantasia a partir da
qual nosso paciente, como obsessivo, possa manter seu de­
sejo num impossível que preserve suas condições de me-
tonímia. (...) a mulher restaura aqui, por uma astúcia cuja
rudeza oculta um refinamento que é a conta certa para
ilustrar a ciência inclusa no inconsciente. (Ibid., p. 639)

Nesta passagem, aparece condensado o problema envolvi­


do nas fórmulas da sexuação e na dialética do reconhecimento.
Ou seja, ter ou não ter o falo, ser ou não ser o falo envolve dois

518
modos de negação distintos: a exceção, pela qual essa mulher
aparece dotada de falo, e a negação condicional, pela qual ela
é dotada de falo, mas não-sem uma vagina e não-sem deixar de
desejar a penetração. Ocorre que essas duas fraturas do uni­
versal fálico devem se absorver ainda ao objeto da fantasia.
A fantasia faz o objeto apto ao prazer ao torná-lo compatível
com o falo. Essa apropriação responde à estilística da fantasia
e, por isso, é dela que se pode inferir a estrutura clínica, (ob­
sessiva) como um modo de articulação do desejo (impossível)
e uma estratégia discursiva (metonímica). Lembremos que o
relato do sonho ao paciente é homólogo da intervenção de um
psicanalista, podemos identificar a astúcia da amante à ciência
inclusa no inconsciente.
De fato, esta inclusão do falo ao objeto só funciona porque o
desejo do paciente é o desejo de ser o falo, e para isso precisa que
o Outro tenha o falo. Lembremos: ser o falo é, para o sujeito,
uma posição; ter o falo é, para o Outro, um lugar. Lugar e posi­
ção não se identificam naturalmente, mas às custas da operação
da fantasia. É por isso que, apesar de mostrar a posse do falo,
assim como a personagem mitológica da Medusa, ela revela ao
sujeito sua própria castração. Como resposta a essa imagem da
castração no lugar do Outro, encontramos o objeto que causa
seu desejo e lhe restitui a potência. A seqüência funciona, assim,
como interpretação da neurose infantil que fazia da mãe alguém
que desprezava ou se mostrava recalcitrante diante da imagem
ardentemente desejante do pai. Neste desprezo, o analisante en­
contrava lugar para instalar sua identificação.
Aqui acrescenta-se aos impasses da universalidade do falo
um elemento adicional: apesar de possuir o falo e a vagina,
ela continuava a desejar. É neste ponto que a “falta-a-ser” do
paciente é tocada. Não a falta-a-ser o falo, mas a falta-a-ser no
nível do ser do sujeito, ou seja, da existência, não da universa­
lidade. Para se referir a isso, Lacan usa a expressão “êxodo do
ser”. O que está em jogo aqui é o que será tematizado doze
anos mais tarde com as fórmulas da sexuação. Ou seja, um tipo
de negatividade que nap se reduz à oposição, à inversão ou à
passagem ao contrário. E uma negação que cria uma experiência
que Lacan associa sistematicamente ao final de análise.
Contudo, em 1958, época em que Lacan apresenta este
caso, tal experiência ainda é abordada pelas vias tradicionais da
negação. Aqui a experiência da falta-a-ser situa-se entre o falo e
o objeto, produzindo inversões. E neste ponto que a exposição
do caso salienta uma série coordenada de contradições. Sua
posição entre o desejo e seu desprezo por ele se articula com o
fato de que, apesar de ter o falo, a mulher ainda deseja. É por
isso que ele oscila entre a dificuldade do desejo (impotência) e
o desejo de dificuldade (a potência do Outro). Que ela tenha
o falo é uma “garantia forte demais para não ser frágil” (Ibid.,
p. 639). Que ela tenha o falo não garante que ela não possa
tomá-lo dele. Que ela tenha o falo se mostra um signo: “... e é
ao mostrar este signo como tal, ao fazê-lo aparecer ali onde ele
não pode estar, que ela adquire seu efeito” (Ibid., 639).
É um signo que só pode se representar pelo desmentido da na­
tureza, pela ruptura da função referencial e denotativa do signo.
Este signo problemático não é o falo, mas o semblante objeto a, a
causa do desejo para este sujeito. O que encontramos aqui é um
choque entre a negação predicativa e a negação ontológica.
Acompanhamos aqui a tese de Safatle (2006) de que o La­
can verdadeiramente dialético não é o do início, inspirado por
Kojéve quanto à dialética ativista do reconhecimento ou inspi­
rado por Hyppolite quanto à filosofia da história, mas o Lacan
teórico do Real e da lógica.
Em que pese o fato de o discurso de Hegel abordar uma
possível lógica concreta —crítico, portanto, das divisões entre
forma e conteúdo, juízos sintéticos e analíticos, real e ideal
—, podemos fazer um exercício de formalização dos diferentes
modos de negação que são alocados como crítica a Kant em
sua passagem, rápida demais, entre a negação ontológica e a
negação predicativa (David-Ménard, 2004). O objetivo deste
exercício é duplo: salientar a estratégia negativa de ocupação

520
do solo clínico pela psicanálise e mostrar que o ponto de liga­
ção entre a hermenêutica do inconsciente e a teoria pulsional
da sexualidade depende de uma concepção negativa do Real.
Apoiamo-nos, para isso, no fato de que este é um procedimen­
to semelhante ao que encontramos ao longo de toda a obra de
Lacan quanto ao uso da dialética, ou seja, ela não aparece em
sua habitual apresentação conceitual-narrativa, como exercí­
cio de escrita. A diferença crucial entre lógica formal e lógica
concreta remonta ao tipo de relação que se estabelece entre
a verdade e o Real. Ao contrário das soluções mais habitual­
mente conhecidas para este ponto, Lacan não tenta estabele­
cer uma teoria da veridicção do Real (lógica concreta) nem
uma teoria que separe ou torne arbitrária relações entre verda­
de (em estrutura de ficção) e real (logicamente formalizável).
Talvez Lacan procure empregar a negatividade para articular
estruturas antropológicas, que oferecem semântica predicativa
ou ficcional da verdade, com estruturas ontológicas, que im­
plicam a escrita nos registros, em particular o Real.
O problema é homólogo, portanto, ao da possível forma­
lização da lógica dialética enfrentado por alguns comenta­
dores de Hegel. Para eles, o núcleo dessa formalização reside
na possível redução metodológica das modalidades de nega­
ção. Por exemplo, os tipos hegelianos de negação poderiam
ser representados conforme a álgebra de Boole. Segundo esta
linguagem formal, define-se, primeiramente, um alfabeto de
sinais válidos para o sistema e sua relação com palavras, ter­
mos e proposições. Depois, fixa-se a operação de nomeação,
pela qual as palavras se tornam símbolos de primeira catego­
ria. Assim, através de notações indeterminadas, como letras
designam termos nocionais quaisquer, tais como conjunto,
classe, subconjunto, etc. Em seguida, se estabelece que os sím­
bolos de segunda categoria designam operadores que afetam
os termos, por exemplo, a complementação e a interseção. Fi­
nalmente, determina-se que os símbolos de terceira categoria
afetam as proposições. São os conectores, tais como negação e

521
implicação. A partir dessa sintaxe entre letras, termos e pro­
posições, é possível saber o que é uma expressão bem formada
dentro deste sistema.
As expressões bem formadas mais primitivas se dividem em
duas classes: (1) as definições, como a conjunção, a equivalên­
cia, a reunião e a igualdade, além dos termos nocionais, como
o vazio e o universal, e (2) os axiomas, como as regras de dedu­
ção clássicas (não contradição, terceiro excluído, identidade),
a lei de Morgan, etc.
Os problemas com Hegel começam quando sua noção de
conceito não admite que exista tal coisa como um termo vazio.
Um termo vazio —por exemplo, o zero na operação de soma
—é sempre resultado de uma supressão entre dois termos dos
quais este conserva sua verdade ou substância. Uma operação
envolvendo um termo neutro não afeta o produto, mas afeta
o processo e deve, como tal, ser contada como operação. Aqui
salta aos olhos a dificuldade da lógica formal para considerar o
tempo como imanente ao conceito. Desta maneira, é possível
considerar o termo vazio ou o elemento neutro como o que
representa o tempo da passagem entre as posições hegelianas
(Dubarle, 1979, p. 160).
Essa passagem de uma posição, como produto, a uma nova
posição, como sub-posição, cria a identidade entre o que é
posto nos dois momentos por meio de operações de negação.
Ocorre que o Real é insensível a essas negações. Ele só pode
ser intuito pela negação desta gramática de negações. Podemos
representar essa identidade pelo acréscimo de uma operação
ou termo vazio: P + 0 = P. Operação semelhante poderia ser
aplicada ao segundo momento, o da criação do sub-suposto:
SI + 0 = S l. Neste caso, teríamos que admitir que o termo
vazio tem duplo sentido. Ele é elemento neutro de uma opera­
ção formal e elemento não neutro numa operação ontológica.
Apliquemos agora essa distinção entre o vazio contável
(caso, por exemplo, em que P = 0) e o vazio não contável (caso
em que P + 0 = P) à relação de mútua negação entre o particu-

522
lar e o universal. O zero pode ser contado como um elemento
do conjunto. O vazio, por sua vez, é a referência (Bedeutung)
para a expressão-“o número de objetos” que apresentam o zero
como extensionalidade. O número é zero, o conjunto é vazio.
Ocorre que o vazio designa coisas contraditórias, ao mesmo
tempo um conjunto (o conjunto vazio) e o não conjunto, a
ausência de conjunto (o que não é idêntico a si mesmo). O
zero não é o vazio, o zero é o vazio contado como um conjunto.
O zero é então um número, o número que convém ao concei­
to de “diferente de si mesmo” (Frege, 2000).
Em termos hcgelianos isso eqüivale á diferença entre o in­
finito ruim (representado pela reta sem início e sem fim), e o
infinito bom (representado pelo círculo como determinação e li­
mitação). O infinito bom constitui um conjunto, como é o caso
do zero. O infinito ruim, ao contrário representa um problema,
pois ele é ao mesmo tempo um conjunto (o conjunto vazio) e a
negação de um conjunto (o não conjunto, o vazio de conjunto).
É importante lembrar que para Hegel esta distinção recobre a
distinção entre os tipos de negação, ou seja, negação da coisa, do
conceito ou no juízo.
O universal fica, assim, decomposto em um par ordenado
[(U), (U+P)] no qual o primeiro valor refere-se ao vazio con-
tável e o segundo, a sua implicação no particular, ou seja, o va­
zio neutro. Vemos, desta maneira, que a formação do terceiro
termo articula duas formas diferentes de negação: a negação
indeterminada do universal pelo não-universal e a negação de­
terminada do universal pelo particular.

O terceiro termo é terceiro ao mesmo tempo em relação


ao que é primeiramente colocado como negativo, ou ne­
gativo formal, e em relação à negatividade absoluta, que é
o segundo negativo. Enquanto agora este primeiro nega­
tivo é já o segundo termo, o que se conta como terceiro
pode também ser contado como quarto e em vez da tripli-
cidade a forma abstrata pode ser considerada como uma
quadruplicidade. (Hegel, 1830a, pp. 497-498)

523
Temos, então, um esquema a quatro posições no qual um
eixo reflete a relação puramente formal (para o qual o ser não
existe) e o outro, uma implicação ontológica (para o qual o ser
é um modo de existência). Daí que o Real seja o impossível,
na existência. Temos ainda o fato de que o conceito apresenta-
se segundo seus momentos lógicos próprios: universalidade,
particularidade e singularidade. O conceito subjetivo é o que
se apresenta como singular, do qual o universal e o particu­
lar são os momentos constitutivos (Dubarle, 1979, p. 164).
Acrescentando o termo vazio podemos escrever o problema:

Universal
Vazio Singular (Irrealizado)
Particular

Entre o universal e o particular há uma negação de tipo


complementar ou de interseção, pois trata-se de uma negação
entre termos. O universal cinde-se, assim, em duas espécies:
(D uma classe lógica de mesmo nível do particular, onde há
complementação e (2) uma posição de conteúdo no qual há
interseção com o particular. Neste segundo caso, a colocação
do particular tem a função de esvaziar o conteúdo do univer­
sal, tornando-o um termo nocionalmente vazio (Ibid., 167).
É a operação que Hegel chama de negação absoluta, ou de
segunda negação.
Na narrativa de Bocaccio seria o equivalente ao momen­
to anterior ao início dos acontecimentos, em que Ricardo re­
nuncia a perseguir seu ideal de mulher, em que ele opõe \A
mulher\ à negação de [A mulher\. Note-se que esta negação é
indeterminada. O conjunto [não —A mulher] pode ser preen­
chido extensionalmente tanto por elementos como (homem),
(animal), (criança), quanto por determinações deste universal
(uma mulher), (esta mulher), e ainda por negação global do
conjunto (nada), (ninguém). Ele pode ser preenchido até mes­

524
mo por um elemento indiscernível, por exemplo, {eu mesmo),
{uma p arte de mim). Portanto, este universal está esvaziado
de conteúdo. Ele nao se opõe ao particular, mas apenas ao
não universal. E o universal do qual se extraiu toda a relação
com o conteúdo do particular por meio da negação segunda
ou negação absoluta. No caso clínico relatado por Lacan, esse
momento corresponde à teoria sexual infantil pela qual sua
mãe figura o Outro incastrado, destruidor do desejo do Pai.
Tanto Ricardo quanto o paciente obsessivo de Lacan já pra­
ticaram uma negação de outro tipo. Casados, eles têm uma mu­
lher. Aqui o universal como classe lógica admite uma interseção
com o particular. Este particular é um elemento do conjunto
universal cujo nome é \Mulher\. Trata-se de outro tipo de ne­
gação: a negação formal ou negação primeira. No caso clínico
de Lacan, esta posição está figurada pela relação com a amante,
que, de certa forma, representa e nega a posição materna.
Os problemas começam quando Ricardo se interessa por
esta outra mulher, ou quando o analisante de Lacan se vê dian­
te da impotência e conjectura a entrada de este outro homem.
Aqui não se trata apenas de uma mullier ou de um homem, um
particular entre outros, mas daquele termo que fará exceção
ao conjunto [uma mulher/homem qualquer\. Ou seja, trata-se
de um entre outros, mas de um específico, este um particular
dotado de existência. Ao escolhê-lo, ele nega tanto o univer­
sal vazio [A m ulher 10 homem\ quanto o particular específico
[uma mulher/um homem ]. E o paradoxo da demanda. Ela não
pode ser satisfeita porque nenhuma existência particular em­
pírica contém a universalidade (fálica) que ela presume. Mas
inversamente nenhum universal necessário e abstrato contém
a particularidade como negação da existência (objeto d). E isso
o que querem dizer as fórmulas: “a mulher não existe” ou “a
relação sexual nao existe”. A gramática de oposições e inver­
sões que caracterizam as voltas da demanda do paciente apon­
ta para repetição deste paradoxo. Há, no entanto, um tipo de
resposta, figurada pelo sonho da amante, que potencialmente
nega tanto a negação primeira (aceitar/recusar) quanto a ne­
gação segunda (universal/particular). E este também o sentido
dialético do ardil promovido por Ricardo para seduzir Catella.
Abre-se aqui o terreno para o terceiro tipo de negação: a nega­
ção da negação.
A trama intersubjetiva só se resolve quando ocorre uma
última passagem na qual bá uma espécie renovada de dupla
negação. No conto de Bocaccio, o equívoco se desfaz quando
Catella está desesperada, pois seu ato nega e desfaz na reali­
dade a intencionalidade que este pressupunha. Ela tornou-se
aquilo que repudiava no marido (infiel). Aqui o Real coincide
com sua própria impossibilidade, mostrando que a “essência
do objeto é seu próprio fracasso” (SXX: 1972-73, p. 55). É
o mesmo tipo de contradição interpretada pelo analisante de
Lacan diante do sonho de sua amante.
Ao indicar, na realidade, um fragmento do Real, desfaz-se
a condição particular de Catella como esposa de Felipe (nega­
ção formal) ou da amante com um suposto terceiro elemen­
to. Todavia, é preciso lembrar a presença de outra inversão.
Catella se entrega a um homem no escuro (suposto Felipe);
a amante do paciente de Lacan ainda deseja, mesmo dotada
dos atributos fálicos. No conto de Bocaccio, o amor suposto
nesta entrega se inverte, por uma oposição de conteúdo, em
ódio. No caso de Lacan, o erotismo retorna da impotência à
potência. Esta transição corresponde exatamente à extração ou
deposição do conteúdo do particular (negação absoluta).
Temos, desta maneira, o desenlace. Ricardo se faz figura
singular para Catella ao mostrar, por sua astúcia e trabalho,
um percurso de negações que o retirou da condição de um
entre outros \marido de x\. Catella se faz figura singular para
Ricardo ao negar sua posição de particular [esposa de Felipe\ e
reconhecer seu desejo corrente no encontro, pois... os beijos do
am ante são mais saborosos. Nas circunstâncias do caso clínico,
isso permite que o analisante reencontre sua própria amante...
como outra. Além disso, esse fracasso bem-sucedido da po-

526
siçao do objeto sugere que um elemento que a transferência
permitia satisfazer, em termos da demanda, torna-se agora se­
parado. Para isso é preciso ter em conta que há duas maneiras
diferentes de negar a universalidade do falo, assim como há
duas maneiras diferentes de negar a particularidade existencial
representado pelo objeto a.

Não particular (ao-menos-um) Universal Não particular (não-sem)


Zero Singular Vazio
Não universal-existencial (há-um) Particular Não universal (não-todo)

Esta interpolaçao corresponde a uma negação que suprime


e conserva o percurso realizado. É o nosso quarto tipo de ne­
gação: aAufhebung, contradição dialética, ou contradição real
entre falo e objeto a. Aqui temos que deixar para trás a forma­
lização booleana, posto que ela exige suspensão das considera­
ções ontológicas. Este tipo de negação coloca o objeto que, de
certa forma, já estava lá e o apreende segundo uma negativida­
de lógica específica. Ela implica a passagem da aparência para
outro domínio que não é o do fenômeno em sua positividade,
mas a essência fracassada da constituição do fenômeno.
Entendemos agora por que Lacan descreve o tratamento
psicanalítico por meio de dois semigrupos de Klein e uma
misteriosa operação de inversão no sentido dos vetores com­
ponentes destes semigrupos, tal como examinamos no capítu­
lo 8. As operações verticais de nosso esquema possuem valor
de constituição; sem elas é impossível pensar o sujeito como
posição de particularidade e universalidade. As operações ho­
rizontais tem valor de form ação para a economia do gozo e
para a gênese dos sintomas. A leitura vertical e horizontal ex­
plica a construção da fantasia e a produção da singularidade
dialética esperada do tratamento psicanalítico.
Para Lacan, as sínteses kantianas que permitiam estabelecer
uma razão de identidade entre o objeto e o sujeito realizam

527
uma função teórica quq seria equivalente à função clínica da
fantasia. A fantasia é uma espécie de catalizador das pulsões:
“... o lugar da síntese fantasmática, ao mesmo tempo em que
conserva seus efeitos de denunciar as identificações em seus
enganos” (E: 1964b, p. 851).
Esta síntese fantasmática não pode ser inteiramente con­
vertida em modos de intersubjetivação, mas também não au­
toriza um retorno à imanência pré-reflexiva, nem uma recusa
direta da noção de verdade. Nosso modelo lógico-dialético
confronta as duas modalidades do Real na clínica: o caráter
constitutivo da alienação em relação ao sujeito e o caráter ir-
redutivelmente negativo do objeto. Essa é uma tradução pos­
sível para a tensão entre o imperativo de reconhecimento, de­
corrente da constituição do sujeito, e a dimensão ontológica
negativa, decorrente da construção do objeto. Entre ambos,
localiza-se o espaço da formação, do compromisso e dá sobre­
posição entre fenômeno e aparência.
Lacan fala, por exemplo, da formação do eu como sintoma,
na medida em que ele é, ao mesmo tempo, colocação de um
objeto, uma mensagem para o Outro e modo de realização
simbólica do desejo no sujeito. Assim, o trabalho contínuo
de inversão entre a alienação (Entfremdung) e a rememoração
(Erinnerung) (Safatle, 2006, p. 36) realizado no tratamento
intervém sobre as formações do inconsciente e sobre as for­
mações de angústia, separando e reunindo sua expressão de
desejo e sua expressão de gozo.
Todavia, há duas formas de negação distintas quando se fala
na economia das pulsões. A negação judicativa, que age sobre
seus representantes, e a negação pré-judicativa envolvida, por
exemplo, na noção de pulsão de morte. O trabalho clínico sobre
as negações judicativas permite o progresso da intersubjetivida­
de segundo a elaboração de seus modos de juízo relativamente
permanentes: recalque (Verdrãngung), renegação (Verleugnung)
e foraclusão (Verwerfung). Ele deve ser distinto do trabalho clí­
nico que se realiza sobre os modos de negação não judicativos.

528
As negações que se efetuam por meio do juízo são, por exem­
plo, o juízo de atribuição, o juízo de valor e a denegação (Vernei-
nung), através dos quais julgar eqüivale a recalcar. Elas tem uma
valor constitutivo para o sujeito: designa a í o lugar mesmo da
Verneinung, ou seja, o fenômeno pelo qual o sujeito revela um
de seus movimentos pela própria denegação que faz deles, e no
momento mesmo em que a faz” (E: 1946a, p. 180).
Mas há também a negação que é condição para todo juízo
possível. Freud oscila os termos para designar esta operação:
ora emprega expulsão (Ausstossung) ora clivagem (Spaltung)
ora foraclusão {Verwerfung). Este primeiro ato, e somente se o
consideramos como ato, é também uma afirmação (Bejahung).
Ou seja, não é uma proposição afirmativa, mas a afirmação
como gesto de existência, que só posteriormente se incorpo­
ra na forma de um juízo. Corresponde ao conceito hegeliano
de Enzweiunug, que Lacan examina extensamente. Trata-se de
uma espécie de divisão originária entre ser e não ser, entre o
singular e o nada, entre o ser e o sentido. Isso leva à concepção
de uma foraclusão primordial ( Urverwerfung) como anterior
à própria estrutura clínica e destino indeterminado do Real,
antes da castração propriamente dita (Safatle, 2006, p. 51).
Este Real pode ser parcialmente comparado à Coisa em si
kantiana. A diferença crucial é que ele é um Real constitutivo do
sujeito como objeto, não do mundo. E o que Lacan chama de
acoisa (lachose). Por isso, quando procuro adequar a percepção do
objeto à sua inscrição fantasmática, esta tentativa inverte-se em
demanda de reconhecimento e deslocamento da inadequação.
O retorno simbólico daquilo que foi excluído pelo juízo é
diferente do retorno real daquilo que foi excluído pelo ato. Há
uma simbolização reflexiva do ser do sujeito que é dessimétri-
ca da realização não reflexiva do objeto. Esta última retorna
no imaginário, constituindo a realidade psíquica como uma
primeira formação do sujeito. Por isso, a fantasia, que é a es­
trutura que faz a ligação entre ambos, é, ao mesmo tempo, o
parâmetro maior da realidade do sujeito e o articulador central

529
das relações entre desejq e gozo. Daí que o retorno do Real se
mostre em figuras clínicas como a alucinação e o acting out,
ou seja, figuras que precisam ser primeiro transcritas simbo­
licamente e inscritas num novo modo de existência, para daí
serem interpretadas.
E importante distinguir entre esse retorno do real ao imagi­
nário e as formações imaginárias que bloqueiam a simbolização
do desejo. Esta deriva das variantes da denegação (Verneinungj,
aquelas do retorno da foraclusão generalizada. A primeira orga­
niza-se pelo contínuo de automaton, as segundas pelo descontí­
nuo da tyché(SXi\ 1964a, pp. 55-68). Portanto, fantasia organi­
za a heterogeneidade dos modos de construção do objeto e de
constituição do sujeito. E pela existência de duas formas muito
distintas de negação que Freud precisa adicionar ao conceito de
fantasia a noção de fantasia fundamental (Urphantasie).
Lembremos que o fim do tratamento psicanalítico envolve
uma separação entre a pulsão e a fantasia, ou seja, operação
logicamente equivalente ai desmembramento da articulação
horizontal e vertical de nosso modelo, e que há quatro desti­
nos para a pulsão (Freud, 1915c):
(1) O recaicamento (Verdrãngung), por meio do qual o re­
presentante representativo (Vorstellungsreprãsentanz) da pulsão
se desliga de seu representante de objeto, retornando em subs­
tituição simbólica por algum derivado: uma ideia substitutiva
(neurose obsessiva), uma parte do corpo (histeria de conver­
são), um objeto (fobia). Mas, na mesma classe do recalcamen-
to, devemos incluir outros modos de substituição. A substitui­
ção imaginária (Verleugnung), que caracteriza a perversão por
retornar como fetiche, e a não substituição (Verwerfung), que
caracteriza a psicose por retornar como alucinação ou delírio.
Este primeiro grupo de destinos da pulsão poderia ser nome­
ado por sua figura genérica maior, a denegação (Verneinung),
que inclui três espécies. Ela é uma negação menor, como vi­
mos, na exposição acima, pois opera apenas a dois termos: o
termo negado e seu retorno. Que ela incida na oposição entre

530
o Um e o múltiplo (como na neurose e na perversão) ou sobre
o ser e o nada (como na psicose), isso é indiferente.
(2) A transposição ao contrário (Verkehrung ins Gegensteil),
como segundo destino da pulsão, corresponde ao movimento
de inversão da pulsão, por exemplo, de seu modo ativo para
seu modo passivo e, assim, reciprocamente. Este movimento
tem como condição e resultado uma operação original que
é a identificação. Por exemplo, a criança que age sadicamen-
te em relação a um pequeno inseto transpõe a pulsão ao se
identificar com esse objeto, realizando, a partir de então, seu
próprio masoquismo. A transposição ao contrário é crucial
para entender tanto os processos de constituição do eu a partir
do masoquismo primordial quanto os processos de introjeção
simbólica e projeção imaginária. Ela se assemelha muito ao
que Hegel chamava de passagem ao contrário {Umschlagen),
ou seja, a identidade dos opostos. A ação do recalcamento e
seus similares têm por efeito bloquear essas passagens ao con­
trário. É, por exemplo, o tema do recalque da passividade na
neurose obsessiva e da atividade na histeria.
Mas o ponto mais interessante desse destino da pulsão é
o caso anômalo representado pelo amor. O amor não admite
apenas uma transposição ao contrário (ativo ** passivo), mas
três: (1) amar e ser amado, que corresponde à passagem ao
contrário (Umschagen); (2) amar e odiar, que corresponde à
inversão de conteúdo da pulsão; e (3) amar e ser indiferente,
que corresponde a uma negação indeterminada. Para designar
essa inversão de conteúdo, sem passagem ao contrário, Hegel
tinha uma expressão própria. É a posição do particular que es­
vazia o universal, caracterizando o primeiro tempo da dialética
entre universal e particular.
(3) Retorno à própria pessoa (Wendlung gegen die eigene
Persorí) é o terceiro destino da pulsão. Ele diz respeito ao fun­
cionamento do narcisismo como modo de articulação entre
o primeiro e o segundo grupos dos destinos da pulsão. E pela
identificação que o sujeito encontra os motivos e as consequ-

531
ências para o recalque, t também é pela identificação que ele
alterna as passagens ao contrário próprias da Verkehrung.
Há três desenvolvimentos distintos e complementares sobre
este tema em Lacan. O primeiro deriva das teses sobre o está­
dio do espelho (Lacan, E:1949). Neste caso, a alienação do eu
se fundamenta em experiências primitivas da criança, etologi-
camente verificáveis, que são fonte gradativa de perturbação e
crise pela entrada de uma imagem discordante, por exemplo:
a especularidade, a angústia dos oito meses, o transitivismo, o
negativismo, os ciúmes e a inveja, além dos complexos de des-
mame, de intrusão e de Edipo. Aqui se expressa uma espécie
de teoria kantiana reversa sobre a função do conhecimento na
relação intersubjetiva. E a conhecida inversão da tese de que, se
a paranóia é um fenômeno de conhecimento, o conhecimento é
um fenômeno paranoico. Ou seja, trata-se do narcisismo como
sistema de formação de objetos em estreita dependência com as
categorias da estética transcendental: o tempo, o espaço.
No segundo desenvolvimento, o narcisismo passa a ser um
sistema crítico e instável tanto por suas exigências antinômi-
cas intrínsecas quanto pela heterogeneidade de suas funções
extrínsecas. Cabe ao narcisismo: “... fazer a distinção entre o
que a função do Eu impõe ao mundo em suas projeções ima­
ginárias e os efeitos de defena que elas retiram de mobiliar o
lugar onde se produz o juízo ” (E:1960a, p. 677)-
Ou seja, o narcisismo contém três funções: projeção imaginá­
ria, efeito de defesa e lugar Aojuízo (Dunker & Milnitsky, 2006).
Para realizar a ilusão, própria à projeção, o sujeito não pode se
incluir na imagem e, inversamente, se ele se inclui na imagem,
o objeto não se forma. E uma síntese do primeiro desenvolvi­
mento sobre o narcisismo. A função defensiva contra a falta de
objeto (Versagung) induz efeitos de uma nova ordem: relação de
impotência, falso domínio, alienação, masoquismo, regressão.
A ideia de que o narcisismo concernente à construção de
juízos nos leva ao tema do recalque, da autoestima (Selbs-
fühlung), da distância e da autoridade. Se, no primeiro de­

532
senvolvimento, valoriza-se a noçao de Ideal do eu, que é uma
formação simbólica que produz objetos imaginários, agora o
narcisismo se articula com o supereu, que é uma formação
simbólica que produz efeitos no real. O narcisismo não deve
ser apreendido de forma simples, como ajuste do eu a uma
imagem em referência ao espaço. E o esquema dos espelhos
conjugados no qual o narcisismo tem:

... seu momento mais puro no gesto pelo qual a criança


diante do espelho, voltando-se para aquele que a segura,
apela com o olhar para o testemunho que decanta, por
confirmá-lo, o reconhecimento da imagem, da assunção ju-
bilatória em que por certo ele já estava lá. (E: 1960a, p. 685)

O gesto da criança, de virar-se para ver quem a segura dian­


te do espelho, introduz a experiência do tempo, confirmada
pela experiência de que o outro já estava lá. Este é o primeiro
gesto simbólico de reconhecimento, contendo em si a dimen­
são de testemunho e apelo. Ele é transformado, a posteriori,
em primeiro gesto de julgamento ou de comparação entre a
imagem e o objeto, pelo qual a criança coloca-se em posição
terceira. As experiências de não identidade, propiciadas por
uma análise, modificam esse circuito narcísico, sem eqüivaler
a uma desintegração do sujeito (Safatle, 2006, p. 29).
O último desenvolvimento direto e significativo de Lacan
sobre o narcisismo ocorre no interior da problemática que vai
da angústia à fantasia. Agora se acrescenta ao modelo ótico à
ideia de que o narcisismo é uma espécie de moldura para um
objeto sem especularidade e inapreensível ao juízo: o objeto
a. Até aqui; o retorno à própria pessoa podia ser assimilado a
uma forma de subjetivação do desejo. Neste ponto, esgota-se
a perspectiva clínica de realização da intersubjetividade e, no
entanto, remanesce um objeto que se encontra entre o real e o
sexual. Este objeto pode ser inferido da teoria da formação dos
sintomas e da teoria da constituição do sujeito, mas só pode

533
ser manejado clinicamente do ponto de vista de uma teoria da
construção de objeto.
(4) A sublimação (Sublimierung) é o quarto destino da pul­
são. Nela pode-se localizar o tipo de negação expresso pela
contradição objetiva, ou seja, inscrever o pensamento e o ob­
jeto no interior de uma aparência posta como aparência. Ela
apresenta o objeto a configurando suas bordas, sem nomeá-lo
todo e introduzindo um tipo especial de efetividade (Wirkli-
chkeit) (Ibid., p. 133). Lembremos o modo enigmático e dis­
perso como Freud tematiza a sublimação: transmutação da li­
bido, alteração de seus meios, uso da fantasia para a produção
de objetos socialmente reconhecidos. No entanto, se há um
procedimento clínico que poderia concorrer com a simboliza­
ção e a subjetivação, este procedimento deve ter estrutura de
sublimação. Daí a afinidade entre o tema da construção, em
Freud, e da escrita, em Lacan. Chegou-se, inclusive, a postu­
lar que a escrita ocuparia uma função semelhante à de uma
quarta estrutura clínica (Juranville, 1987, pp. 243-264). Esta
ideia confunde um pouco a lógica da negatividade judicativa
(que define as estruturas) com a negatividade ontológica (que
define os modos de relação ao gozo), mas sua intuição é, no
fundo, pertinente. Uma série de autores vem trabalhando com
um uso não estrutural das noções de defesa descritas inicial­
mente por Lacan (Baas, 2000, pp. 210-266).
Ao contrário das outras formas de intervenção clínica -
que são, a seu modo, redutivas - , as intervenções que possuem
estrutura de sublimação são construtivas. Ou seja, elas não
operam pela desocupação de simulacros pelos quais as figu­
ras da falta (castração, frustração, privação) e seus operado­
res (falo, Nome-do-Pai, objeto a) se articulam na formação
de sintomas. Vimos a importância do campo da aparência na
constituição do espaço antropológico kantiano, é com Hegel
que esta lógica da aparência se tornará realmente capaz de in­
troduzir algo novo no real e é nesta medida que a sublimação é
solidária do semblante. Agora podemos dizer que o semblante

534
é a aparência colocada como pura aparência, distinguindo-se,
portanto, da noção de simulacro, de virtualidade, de véu ou de
mascarada. O semblante, assim como a noção de letra, não é
um representante imaginário ou simbólico de outra coisa. Daí
que ele não convide ao deciframento, mas à continuidade de
seu ciframento. Reencontramos, assim em torno das figuras
da sublimação, uma exigência de teorização clínica que é, ao
mesmo tempo, negativa e irredutível à constituição do sujeito
e à formação de sintomas, além disso, compatível com as prá­
ticas de cuidado de si.
Chegamos, assim, a indicar a presença e a importância da
negatividade no regime conceituai da psicanálise, na formali­
zação de seu tratamento e na teoria da intersubjetividade.

535
C A P Í T U L O 13

A C O N S T R U Ç Ã O DO C A S O C L Í N I C O

CASO CLÍNICO É A PRINCIPAL PEÇA NA ARGUMENTAÇÃO

O psicanalítica em favor de sua eficácia, na explicitação da


ação de seu método e no diálogo com a psicopatologia. Ele é
também o principal instrumento de articulação entre o caráter
privado e sigiloso da experiência do tratamento e as pretensões
de legitimação científica ou de justificação pública da psica­
nálise. Para alguns a construção de casos clínicos caracteriza
paradigmaticamente o método de investigação psicanalítico
(Rubaie, 2006). Contudo a própria definição extensional e
intensional do que vem a ser um caso clínico é controversa.
Extensionalmente um caso clínico pode incluir desde um
fragmento composto por algumas linhas (como o caso Albert,
referido em Interpretação dos Sonhos) até um relato pormeno­
rizado de uma centena de páginas (como o caso do Homem
dos Lobos). Pode ser desde um caso atendido por aquele que
escreve até a leitura crítica de uma exposição feita por outro
psicanalista. Há ainda personagens literários, teatrais e fílmi-
cos que são tratados, proveitosamente, como casos clínicos.
Há casos que são o relato da própria experiência analisante de
quem o escreve (Leclaire, 1990). Há casos relatados por leigos,
escritos em parceria (como o estudo biográfico realizado por
Freud e Bulitt (1984)) p até mesmo casos inventados como
ficçÕes. Em Freud há 29 casos identificados por nome ou pe-
rífrase (como Elisabeth Von R, ou D outor Z.) e 67 referências a
casos apresentados por situações sintomáticas (como a Dama
que se proibia usar adornos ou a Jovem que devia esvaziar obses­
sivam ente uma bacia).
Gostaria de admitir que o critério mais simples para que
um relato seja utilizado como caso é que ele se inscreva em um
determinado sistema de transmissão. É deste sistema de trans­
missão, como comunidade social de pesquisa, que caracteriza
a psicanálise, que deveríamos extrair os critérios pragmáticos
que definiriam um caso. Como em qualquer método, o caso
clínico se presta à verificação, comparação e crítica de fenô­
menos, conceitos e hipóteses sobre os quais é apresentado no
quadro de uma comunidade de pesquisa. Ou seja, se é pelo
uso que um caso se caracteriza como tal, não será pelo deline-
amento de suas características formais (narrativas ou discursi­
vas), temáticas (conceituais ou nocionais) e categoriais (como
os da escala Wacldcr) que se poderá chegar ao reconhecimento
das condições que tornam uma peça de escrita um caso clíni­
co. Encontrar as constantes pragmáticas que caracterizam uma
prática é algo que se pode fazer retornando à história desta
prática, ou seja, à recorrência de usos e ao depósito de funções
a que esta se prestou.
A palavra caso vem do latim casu e do grego ptosis, pos­
suindo o sentido genérico de queda ou por eufemismo, ato de
cair, ou seja, morrer. Em alemão o termo preserva esta litera-
lidade, por exemplo, Bermerkung über einen Fali von Zwangs-
neurose, ou seja, A Propósito de um Caso de Neurose Obsessiva,
o Homem dos Ratos. Casu indicava queda como acidente,
acaso, circunstância imprevista ou sorte e seu uso pelos po­
etas latinos geralmente conotava desgraça ou desventura. A
palavra grega sym-pton significa acaso, algo que acontece, que
cai para alguém em separado (sym), como um caso (ptosis) e
é empregado, também em grego, para designar aquilo que é

538
notável em uma doença. Em alemão encontramos cognatos
como acontecim ento (Zufall), choque acidental iUnfall) ou caso
{Fali}. Portanto, o caso é o campo delimitado pela experiên­
cia de mal-estar, de sofrimento ou de sintomas, no sentido de
uma história de encontros e ocorrências que se apresentam
pela concorrência de acasos e ações controladas: “Neste aspec­
to tyché e techne estão em tensão especial e antagônica. Aquilo
que vale para o caso da cura bem sucedida não vale menos
para o caso negativo do fracasso” (Gadamer, 1993).
Há três sentidos específicos para o termo, relativos, respec­
tivamente, aos domínios: jurídico, médico e lingüístico. Na
acepção lingüística um caso é uma categoria da língua pela
qual um sintagma nominal varia por razões gramaticais ou
semânticas (Trakl, 2004, p. 51). Na acepção jurídica um caso
corresponde à querela ou pleito que se inscreve no ordena­
mento jurídico, ou seja, que é a causa em questão no proces­
so. Finalmente na ordem médica a noção de caso não remete
apenas à questão a ser decidida ou tratada, mas ao conjunto de
fatos que compõe a história da doença e do tratamento.
Vemos assim que a noção de caso sempre nos remete ao
problema mais genérico da relação de inclusão em categorias:
o gênero e a espécie, a ocorrência e a lei, o elemento e o con­
junto, o caso e a regra, a manifestação e o tipo a que ela perten­
ce. A formação das categorias se apresenta de modo dedutivo
no caso do direito (o que não estiver prescrito na lei não pode
ser objeto de julgamento), indutivo no caso da medicina (re-
gularidades entre os casos permitem que eles sejam agrupados
em novos sintomas, síndromes, transtornos ou doenças) e ab-
dutivo no caso das línguas (os casos não ocorrentes podem ser
inferidos, assim como os casos ocorrentes são indutivamente
constatados). Um caso jurídico deve ser construído com pro­
vas, evidências e fatos; é constituído à priori pela forma da
lei. Um caso médico pode ser construído através do resulta­
do de exames, da observação comparativa e eventualmente de
pequenos experimentos; é constituído à posteriori. Um caso

539
lingüístico é construído Indutivamente a partir do uso e ob­
servação da língua, mas também dedutivamente a partir da
estrutura da língua.
Freud, tanto como neurologista e estudioso das afasias, quanto
como zoólogo estudioso da anatomia das enguias, sabia manejar o
método dos tipos. Há vários argumentos que sugerem que Freud
teria aplicado o método dos tipos em sua escrita de casos clínicos:
a confiança que Charcot depositava na cientificidade deste proce­
dimento (absorvido de Claude Bernard); seu emprego eficaz na
neurologia por Hughlings Jackson (replicado por Freud em seu
estudo sobre as afasias (1891b)), sua compatibilidade com a fun­
damentação filosófica oferecida por Stuart Mill (de quem Freud
absorve a teoria das classificações), a anuência dos mestres como
Meynert, Brücke e Exner (com quem o Freud se formara pesqui­
sador) (Honda, 2008). O método dos tipos estava originalmente
baseado na descrição de um tipo puro, que torna visível os meca­
nismos e permite formular leis atinentes a todos os membros da
classe a que pertence. Ao lado do tipo puro seria preciso distinguir
as formas variantes, as formas degeneradas e os tipos frustros, que
não chegam, consistentemente, a tomar parte da classe. Pressen-
te-se aqui como o método dos tipos foi o caminho pelo qual a
medicina firmava uma aliança metodológica com a antropologia.
A característica freudiana no emprego deste modelo de classifica­
ção é que ele privilegia a etiologia e, portanto, forma classes pelo
funcionamento e não das características morfológico descritivas.
Um bom exemplo disso é a distinção entre os tipos de neuroses
de defesa, segundo o destino do afeto, uma vez separado de sua
representação (Freud, 1894a). Aqui o modelo freudiano se opõe à
Escola de Paris que postulava uma classificação à base da existên­
cia ou não da divisão subjetiva. Mas apesar disso é notável o fra­
casso de Freud em descrever um caso típico, nos termos exigidos
por este método. Quase todos os casos descritos em Estudos sobre
Histeria são tipos mistos (entre neurose de defesa e neurose atual).
Ou seja, é, sobretudo, na esteira do fracasso na aplicação do mé­
todo dos tipos que a construção de casos clínicos se desenvolveu

540
na escrita freudiana. Isso decorre do fato de que a generalização
começa a ser feita antes da descrição e não antes (Honda, 2008,
p. 192). Logo a generalização nao é meta, mas uma espécie de a
priori, ela não é nem puramente dedutiva, nem apenas indutiva,
mas abdutiva, combinando, portanto, mais com o método do
linguista do que com o do médico ou do jurista.
O termo abdução foi introduzido por Peirce (1839-1914)
para referir-se a uma inferência do tipo: se A então B, verifica-
se B logo A. Ocorre que a primeira asserção, se A então B,
pode se referir tanto à relação de implicação material como de
causalidade. Por exemplo: se há histeria então existe sintoma
conversivo. Verifica-se o sintoma conversivo, logo há histeria.
O segundo ponto frágil da abdução é que ela precisaria ex­
cluir todas as outras possibilidades causais para garantir, por
exemplo, que não há nenhuma outra forma de produção do
sintoma conversivo que não a histeria. Essa não totalização da
série causai, a sua indeterminação face à implicação material
são compensados pelo fato de que a abdução é a forma mais
simples de explicar um acontecimento ou um conjunto de
acontecimentos (Branquinho et al., 2006, pp. 9-10).
Mas, por que a construção de casos clínicos em psicanálise
se diferenciaria de usos mais correntes, indutivista e dedutivis-
ta, da noção de caso? Observemos inicialmente que a ideia de
construção é também um conceito psicanalítico importante
para seu método de tratamento. Não obstante este é um con­
ceito que pode ser empregado também no âmbito do método
de investigação. Ao apresentar a noção de Konstruction, Freud
parece retomar os três ângulos semânticos examinados acima:
(1) O analista “tem que coligir o esquecido desde os in­
dícios que este deixou atrás de si, melhor dito, tem
que construí-lo” (Freud, 1937d, p. 260), como um ar­
queólogo, em que pese que para este a reconstrução é
um fim em si mesma e para o psicanalista é um meio.
Ora, o critério aqui empregado implica verossimilhança
e exaustividade, ou seja, a conjectura que acolhe, reú-

541
ne e seja corrobqrada pelo maior número de elemen­
tos do caso formando uma totalidade plausível de suas
determinações. Encontramos aqui a figura do investi­
gador policial, ou do processo jurídico às voltas com a
produção de uma verdade: “(...) Não só há método na
loucura, como discerniu o poeta, senão que ela contém
também um fragmento de verdade histórico-vivencial
(,bistorischer Warheit)” (Ibid., p. 269).
(2) A finalidade da investigação não é apenas inclusão ou
exclusão em categorias de potencial dedutivo. Segue-se
o problema relativo aos critérios de validade da cons­
trução, pois “(...) apenas a continuação da análise pode
decidir se nossa construção é correta ou viável” (Ibid,
p. 266). O critério estabelecido por Freud não é o as­
sentimento (ou a confissão, na lógica jurídica), mas a
confirmação indireta. Exemplo: um paciente se quei­
xa que sua esposa não lhe concede favores sexuais. Ele
a traz ao consultório e pede que Freud lhe explique
as conseqüências de sua atitude. Freud começa então
a mostrar como esta recusa pode trazer “lamentáveis
perturbações à saúde dele e ainda tentações que po­
deriam levar à quebra do matrimônio”. Neste ponto o
marido intervém: “O inglês em que você diagnosticou
um tumor cerebral também morreu” (Ibid., p. 265). E
óbvio que o marido queria corroborar o “diagnóstico”
de Freud, mas ele não o faz direta, mas indiretamen­
te, através deste comentário aparentemente sem sen­
tido. Assim como na construção do caso médico, não
interessa o assentimento consciente do paciente, mas
as corroboraçoes indiretas, reveladas pela evolução do
quadro clínico. O critério em curso aqui é a eficácia,
não a verdade ética dos acontecimentos, daí que uma
construção eficaz tenha o mesmo valor terapêutico de
uma lembrança rememorada (Ibid., p. 267).
(3) A construção consistiria em “liberar o fragmento de

542
verdade histórico vivencial de suas desfigurações e
apoios no real-objetivo, e ressituá-lo nos lugares do
passado a que pertence” (Ibid., 269). A função da
construção é equiparada aqui à função do delírio na
psicose. Ora, sabemos que esta função refere-se a uma
tentativa de cura pelo reinvestimento que faz de rea­
lidade. Ou seja, o delírio é uma espécie de realidade
artificial construída para tratar o Real. Aqui a noção de
construção reúne a via dos poetas e a via da formaliza­
ção lógica. “Se se toma a humanidade como um todo e
se a poe em lugar do indivíduo humano isolado, resta
que também ela desenvolveu formações delirantes ina­
cessíveis à crítica lógica e que contradizem a realidade
efetiva (Wirklichkeit)” (Ibid., p. 270).
A noção de construção aponta para o terreno da realidade
(Realitãt) e do Real (Wirklichkeit), sem que este se confunda
com o critério da eficácia terapêutica, nem com o critério da
verdade (Wahrheit). As três dimensões da noção de constru­
ção, metodologicamente enfatizadas aqui, possuem estreita
relação com as linhagens históricas que deram origem à psi­
canálise como prática de cura, psicoterapia e clínica. Temos
então as três funções possíveis do caso clínico:
(a) A fu n ção ética: representada pelo fragmento de verdade
pelo qual um caso subverte a classe, tipo ou categoria
na qual se inclui;
(b) K função lógica: representada pela organização coerente
da diagnostica, da semiologia, da terapêutica e da etio­
logia; e
(c) A fu n ção retórico-conceitual: representada pela descri­
ção da eficácia ou ineficácia dos procedimentos e in­
tervenções no contexto de transmissão de um saber, no
quadro de um sistema de transmissão.
A construção de um caso deve sempre ser também a crítica
do dispositivo psicanalítico, a dialetização do regime de verda­
de que nele se pressupõe. Isso justifica a maior parte dos casos

543
construídos por Freud seja composta por casos que fracassa­
ram: Dora abandona o tratamento precocemente, o Homem
dos Lobos torna-se um paciente crônico, Anna O. indispõe-se
com a psicanálise e dedica sua vida à assistência social, a Jovem
Homossexual é um caso que não passa das entrevistas prelimi­
nares. Este é um aspecto ignorado pelos críticos factualistas
dos casos clínicos psicanalíticos. Ignorando que a função do
caso clínico em psicanálise não é apenas produzir generaliza­
ções empíricas através de ilustrações de grupos ou classes de
funcionamento, aos quais caberia comparar a norma ao caso,
como sói acontecer na medicina, tais críticos julgam o estatuto
dos casos clínicos à luz de uma concepção empírico-verifica-
cionista da verdade (Grünbaum, 1984).
Os críticos da casuística psicanalítica têm apontado, através
de levantamento historiográfico consistente, que o que Freud
relatava em seus casos estava muito distante do que ele efetiva­
m ente fazia no cotidiano de sua clínica (Sulloway, 1992). De
fato, novamente encontramos uma incompreensão em perce­
ber que um caso clínico não é um relatório ou um prontuário
de procedimentos, mas é uma história com fortes infiltrações
literárias, cujo fim não é iludir o leitor e divulgar uma im­
postura, mas tentar reproduzir o mesmo regime de eficácia
lingüística pelo qual se julga um tratamento psicanalítico, a
saber, o assentimento entre as partes.
A casuística psicanalítica não é de natureza clínica porque
segue a ordem médica, mas porque segue a estrutura da clínica
e o método clínico de investigação. De fato os estudos compa­
rativos entre a psicanálise e outras formas de psicoterapia, ou
entre a psicanálise e o tratamento farmacológico, vêm sistema­
ticamente rendendo resultados pífios. Em geral eles mostram
como a psicanálise é medianamente eficaz, como outras psi­
coterapias (Luborsky et al., 1993) e que há maior significância
clínica na redução de sintomas entre diferentes psicanalistas
praticando o mesmo método, do que entre diferentes escolas
de psicanálise ou de psicoterapia (Roth & Fonagy, 2005). O

544
que tais pesquisas mostram é que o caráter reprodutível do
método de tratamento é bastante questionável. Além disso, a
construção do caso clínico deveria ser formalmente homogê­
nea para que se pudessem comparar os casos. Para sanar esta
dificuldade surgiram alguns manuais para formulação de ca­
sos clínicos (Ingram, 2006). A pretensão deles é estabelecer,
exaustivamente, todas as hipóteses atinentes a todas as práticas
clínicas orientadas para o tratamento do sofrimento psíquico.
A psicanálise está representada no grupo: modelospsicodinâm i-
cos e suas hipóteses clínicas são reduzidas a quatro: (1) partes
internas e sub-personalidades; (2) reatualização de experiên­
cias infantis; (3) percepção imatura de si e dos outros; e (4)
dinâmica inconsciente. Ao todo são vinte e oito hipóteses que
vão da conexão mente-corpo à estressores situacionais, e ex­
pectativas utópicas até a evitação de responsabilidade ou ainda
o grupo de hipóteses relativas ao contexto familiar-cultural-
social. O que este metodologismo bizarro permite perceber,
pela sua inadequação e impropriedade, é que quando falamos
em método clínico da psicanálise isto pressupõe autonomia
em relação inclusive ao método clínico da medicina ou das
ciências experimentais.
Vejamos um exemplo do exercício deste método, fora da
medicina e da psicanálise, de tal forma a ilustrar tanto a lógica
da investigação como a presença dos condicionantes genéri­
cos que caracterizam um caso clínico: (a) a problemática da
realidade (abdução lingüística), (b) a problemática da eficácia
(indutividade médica) e (c) a problemática da verdade (dedu-
tividade jurídica).
Trata-se de uma jovem, que atendia pelo pseudônimo de
senhorita Hélène Smith e vivia em Genebra na virada do sécu­
lo XX (Todorov, 1966, 353-363). Ela entrava constantemente
em estados sonambúlicos e mediúnicos nos quais começava
a falar outras línguas. Nesta outra cena ela vive dois roman­
ces alternados. No primeiro, visita o planeta Marte e conversa
com seus habitantes, tal qual uma antropóloga. No segundo,

545
revive pessoalmente umja aventura amorosa que se passa na
índia. Tbeodore Flournoy, professor de psicologia que se en­
carrega do caso, há duas línguas que lhe são completamente
ininteligíveis: o marciano e o sânscrito. Chama, então, um
eminente orientalista, Ferdinand de Saussure, para desfazer a
farsa. Para decepção e assombro de Flournoy, o linguista con­
firma tratar-se realmente de uma variação do sânscrito, ao pas­
so que o marciano parece uma deformação do francês, língua
materna da paciente. Saussure apaixona-se pelo caso, uma vez
que a senhorita Smith jamais tivera contato algum conhecido
com qualquer forma falada ou escrita do sânscrito, uma língua
de sintaxe e léxico muito distintos das línguas latinas. O mais
espantoso é que a senhora Simandini (versão indiana da se­
nhorita Smith) fala o sânscrito ou uma de suas variações possí­
veis, uma vez que esta é uma língua proibida para as mulheres
indianas, que falam pácrito, uma língua de estrutura diferente
do verdadeiro sânscrito. Saussure assiste às sessões mediúnicas
e comprova a fluidez e naturalidade da fala da paciente. Não se
trata de trechos decorados, mas de verdadeira incorporação de
outra língua. Contudo, não é um sânscrito perfeito: há blocos
sem sentido. Uma análise detalhada desses blocos mostra que
eles não são erros ou deformações previstos pela estrutura do
sânscrito, mas são compatíveis com a estrutura do latim. Há
outro fato intrigante: a senhora Simandini nunca emprega a
consoante “f” em suas construções, e, de fato, este fonema está
ausente na língua sânscrita. Portanto, mesmo que a senhorita
Smith estivesse mentindo, seria difícil explicar a lógica rigoro­
sa dessa criação delirante.
Aqui os linguistas se dividem. Victor Henry defende que
a ausência do “f” se explica pelo procedimento simbólico da
acrofonia, pelo qual a letra “f” remete a “francês”, língua que
se opõe ao sânscrito no inconsciente lingüístico da senhori­
ta Smith. Sua tese remete ao valor singular da língua para a
senhorita Smith, e não apenas ao funcionamento da língua
como ordem simbólica universal. Saussure toma o partido

546
oposto. Defende que seria mais fácil para ele admitir o princí­
pio da transmigraçao das almas do que romper a premissa da
arbitrariedade dos signos.
Desloca-se, então, o problema para a língua marciana, que
se mostra um caso mais fácil. Ela é uma deformação do fran­
cês baseada em princípios relativamente simples e regulares,
por exemplo: chécké, por sinédoque material do francês cheque
(cheque), significa p a p el na língua marciana; épine (espinho)
significa a cor rosa; chine significa porcelana; rnidée, contra­
ção de misére (desgraça); e hideux (horrível) significa feio em
marciano. Isso parece dar razão a Henry contra Saussure: a
linguagem glossolálica é uma linguagem motivada. A hipótese
se confirma na clínica. Ao perceber que a equipe de Flournoy
havia decifrado a língua marciana, a senhorita Smith passa a
falar outra língua, o ultramarciano.
Assim como os sintomas histéricos mudam de lugar com
as intervenções sugestivas, a senhorita Smith muda a forma
de sua expressão lingüística com o ultramarciano quando é
questionada sobre sua autenticidade. Aparentemente é muito
importante para a jovem genebrina, que a verdade de sua ex­
periência seja reconhecida. O caso testemunha o choque entre
as formas de saber mágico-popular e a forma universitário-
científica. Ambos estão em uma espécie de concorrência em
torno da eficácia explicativa e do nível de realidade que se está
disposto a admitir. O desenvolvimento do caso envolve ainda
o cruzamento entre a trama investigativa de Flournoy e o estu­
do “clínico” da língua realizado entre Saussure e Henry Victor.

13.1. PINEL E A SUPERFÍCIE DA CURA


Era um rapaz dominado por preconceitos religiosos. Pen­
sava que, para alcançar sua salvação, devia imitar as absti-
nências e macerações dos antigos anacoretas, isto é, rejeitar
não apenas todos os prazeres da carne, mas também qual­
quer alimentação. Um dia ele recusa com mais dureza do

547
que costume uma sojpa que lhe servem. O cidadão Pussin
apresenta-se com um aparato próprio para assustar: olhos
em fogo, tom de voz fulminante, um grupo de serventes à
sua volta armados com fortes correntes que agitam furiosa­
mente. Colocam a sopa ao seu lado. Retiram-se. Ele passa
a noite atormentado entre o temor da punição e a ideia
da culpa nas vidas vindouras. O temor triunfa, ele aceita a
sopa, logo depois a alimentação regular e em seguida o uso
da razão. Foi durante a convalescença que ele me confessou
suas agitações cruéis e sua perplexidade durante aquela noi­
te de provação. (Pinei apud Foucault, 1973-74, pp. 13-14)

A cena teatral, cuidadosamente planejada por Pussin, nao exi­


ge reflexão diagnostica, nem a aplicação de uma técnica médica.
E um confronto moral entre a vontade do médico e a do alienado.
Hegel (1830b) foi o primeiro a pensar a loucura como uma
experiência interior à própria razão: “a alienação mental não é
a perda abstrata da Razão, mas somente contradição na Razão
que ainda existe”. Ou seja, a loucura não é nem perda, nem
ausência, nem o contrário da razão, mas contradição entre seu
aspecto de totalidade ordenada e seu aspecto de determinação
particular. Haveria assim duas formas principais da loucura,
aquela em que uma determinação particular eleva-se à con­
dição de falsa totalidade e aquela em que a totalidade impede
o reconhecimento da determinação particular. Os elementos
particulares são as paixões: vaidade, orgulho, ódio, imagina­
ção, esperança. Na loucura o sujeito alienado apresenta-se
como não idêntico a si mesmo. Ora, o teatro é esta prática na
qual a não identidade de si pode ser reconhecida. O ator é ao
mesmo tempo um personagem, outro portanto, que não ele
mesmo. É por isso que ao ser confrontado com esta diferença
interna à razão, ao reconhecer-se como personagem e ator de
sua própria loucura, que o louco poderia escapar da condição
de alienado. Era isso que Pinei chamava de “a cura” (cure).
A loucura confrontada com sua própria desrazão recupera
sua própria razão. Daí que tanto o tratamento moral quanto

548
a prática das teatralizações joguem sistematicamente com in­
versões e atos de reconhecimento. A relação de força externa se
mimetiza no conflito interno entre ceder ou resistir. A intersub-
jetividade imita a intrassubjetividade. Há um ponto preciso de
conversão quando o doente reconhece seu erro e abandona sua
crença. A cena termina com a confissão, que certifica e legitima
a verdade em causa no trajeto de conversão. A liberdade alcan­
çada contém a marca da gratidão e da dívida para com o alie-
nista. E uma operação de transferência e restituição de poder.
Ao submeter-se ao teatro da razão, ele pode, reciprocamente,
ser reconhecido por meio dela e fazer-se reconhecer como seu
agente e soberano. Tais são as quatro formas de poder que defi­
nem a cura depois de sua longa metamorfose religiosa e política
a partir das antigas práticas de cuidado de si: a dependência, a
confissão, a inadmissibilidade do desejo e a dívida (Foucault,
1973-74, p. 222). Essa quádrupla sujeição disciplinar reúne-se
e delimita-se em uma nova forma de associação entre cura e ver­
dade. Esta última localiza-se agora na soberana enunciação do
médico e em sua prática de modulação da realidade. O alienista
é o diretor da cura, mas seu agente é o cidadão, encarregado
prático e inventor da terapia moral.
O relato de Pinei (1745-1826) é um exemplo das formas
pré-clínicas de construção de um caso. O caso é o relato da
superação de uma dificuldade, a recusa a comer, a travessia de
um sofrimento, a noite de angústia e terror. Não há referência
à conexão causai entre sintoma e a intervenção que o modifi­
ca, pois o sofrimento não é nomeado em termos diagnósticos,
mas morais {um rapaz dominado p o r preconceitos religiosos).
Isso é significativo uma vez que Pinei é o autor da Nosografia
Filosófica ou M étodo da Análise Aplicado à M edicina (1798),
no qual aborda a mania, a melancolia e agrega as patologias às
funções corporais, como a visão, a locomoção e... a alimenta­
ção. Vê-se assim como a diagnostica é entendida como uma
atividade independente da terapêutica. A intervenção terrifi-
cante baseia-se em um pressuposto não explicitado, mas cor­

549
rente à época de Pinei, a .saber, o poder curativo representado
pelo susto, pelo pânico e pela dor. Os nomes dos instrumentos
empregados pela terapia física falam por si mesmos: a cintura
de Haslam, a máscara de Atenrich, o saco de Horn, a crucifi-
xão, os banhos frios de surpresa (Pessotti, 1996). O discurso
semiológico está ausente. Nao há procura da conexão entre a
causalidade moral, levada em conta pela prática, e a causalida­
de orgânica, levada em conta pela teoria. E por isso que este é
um relato pré-clínico de caso, nele não há conexidade e cova­
riância entre semiologia, diagnostica, etiologia e terapêutica.
Do ponto de vista formal o relato inicia-se pela descrição das
circunstâncias, os personagens e o-cenário. Forma-se um ponto
de resistência —a recusa da sopa. É aqui que intervém o cidadão.
Trata-se de uma alusão a Jean-Baptiste Pussin (1746—1811), um
aprendiz de curtidor de peles que com 25 anos é internado em
Bicêtre, vítima de escrófulas, lá permanecendo como adminis­
trador de internos. Temos assim esta primeira montagem: o caso
do recusador de sopa é tratado por Pussin, mas escrito por Pinei.
Ressalte-se que o relato tem um duplo fim: mostrar que a loucura
pode ser curada por intermédio de práticas racionais e mostrar
que uma vez curado o sujeito pode se tornar um cidadão ativo e
capaz de curar outros.
Pussin é chamado de o cidadão, ou seja, apresentado como um
personagem político. Isso contrasta com a cena final da confissão
na qual Pinei se inclui através da expressão “ele me confessou suas
agitações cruéis”. Tal contraste acusa uma transformação caracterís­
tica do gênero discursivo representado pelo caso clínico. O começo
do conto é marcado pela função referencial da linguagem, centrada
na terceira pessoa e na descrição. A segunda parte começa pela indi­
cação de um personagem e pela passagem à narração dos aconteci­
mentos. Segue-se uma ruptura temporal (foi durante a convalescença
que ele me contou) e um novo reposicionamento do narrador, agora
incluído na cena como personagem. E este terceiro movimento que
especifica a dominante deste discurso: a enunciação em primeira
pessoa, característica do gênero dramático.

550
Pinei é contemporâneo da aparição do drama burguês do
século XVIII que prezava o retorno aos assuntos atuais, as per­
sonagens emprestadas à vida comum, o realismo das situações
ao modo de “quadros vivos”. Há uma mistura de tons e o texto
contém um inconfundível alcance edificante (Stalloni, 2001).
Este movimento em três tempos, esta passagem do relato à nar­
rativa, esta infiltração vacilante da primeira pessoa marcará pro­
fundamente a estratégia retórica da construção de casos clínicos.
Lembremos que Pinei era membro da Sociedade dos Obser­
vadores do Homem e seus tratados revelam grande preocupação
com o método necessário para observar a alienação mental.
Há cinco regras principais, que não deixam de conter uma
irônica atualidade, tanto por seu espírito ingenuamente cien­
tífico quanto pela confiança em suas teses especificamente me­
todológicas: (1) toda observação deve ser feita sem qualquer
pressuposto teológico, teórico ou metafísico; (2) suspender
a avaliação sobre o significado último da loucura; (3) a boa
observação requer elegância no falar e crédito na racionali­
dade residual dos alienados; (4) a observação clínica é uma
“imposição” da realidade, exige tempo e não deve ser apres­
sada; e (5) a observação correta e útil deve ser realizada em
ambiente controlado, ou seja, o manicômio (Pessoti, 1996).
Estas recomendações são importantes, sobretudo para evitar a
particularidade, o acidental, o idiossincrático. Elas compõem
a primeira tática para conferir autoridade ao relato: a tática da
neutralidade. Seria, porém, impreciso dizer que o caso se resu­
me a isso. Pinei parece explicitar regras que não serão seguidas
na efetiva construção do caso. Este fracasso, esta dificuldade
em seguir o método é a segunda fonte de autoridade retórica
do texto. A oscilação revela que a transformação do persona­
gem se acompanha de mudanças na posição do narrador: de
observador externo à participante e testemunha ocular, de cro­
nista de eventos pitorescos à representante universal da razão.
Anuncia-se a estratégia desenvolvida posteriormente tan­
to pelo drama romântico quanto pelo romance naturalista ou

551
realista, ou seja, a tematização do herói como reduto simbó­
lico de uma trama universal. Se Pussin representa uma forma
embrionária da ação psicoterapêutica, Pinei escreve em nome
da instância que sanciona a cura, como diretor, testemunha
e relator. A relação de cura presume oposições, resistências,
conflitos, inversões contínuas entre ações e reações. E por isso
que os relatos de casos obedecem uma rigorosa sincronia entre
o nível moral das paixões, o nível político da resistência à razão
e o nível médico da enfermidade corporal:

O princípio da filosofia moral que ensina a não destruir


as paixões humanas, mas opô-las umas contra as outras,
aplica-se igualmente à medicina como à política, e não
é somente aí o único exemplo de contato entre a arte de
governar os homens e aquela de curá-los de suas enfermi­
dades. (Pinei, 1800, p. 227)

No contexto de Pinei a importância retórica do caso parti­


cular conjuga-se com a racionalidade administrativa dos tipos
de alienação. Por exemplo, a eficácia da cura pelo regime úni­
co (exercício do corpo), pode ser atestada por tabelas minu­
ciosas nas quais consta a data de entrada no hospício (Bicêtre),
a idade do alienado, sua profissão, a causa da alienação, sua
espécie particular e as recaídas pela qual o alienado passou.
Este procedimento, hoje banal, de indexar e catalogar os inter­
nos representa uma verdadeira novidade para a época. E pela
necessidade de administrar uma população específica que se
impulsiona a investigação das causas da alienação e a nome­
ação das espécies particulares. Esta combinação entre exigên­
cias administrativas e curativas revela-se na heterogeneidade
dos tipos de causas: amor contrariado, excesso de trabalho, pâ­
nicos, excesso de ambição, perda da fortuna, ardência ao sol,
desgostos, pavor por um estrondo de artilharia (Ibid., 236).
Também os critérios diagnósticos são infiltrados por exigên­
cias administrativas: a curabilidade, a necessidade de retorno

552
para convalescência e, sobretudo, a submissão (melancolia,
demência) ou insubmissão ao contexto asilar (furor periódico
com delírio). Ou seja, o caso clínico cumpre também a função
de um caso jurídico-administrativo.
Para aqueles que podem pensar que Pinei está muito dis­
tante da psicanálise, no que toca à escrita de casos clínicos,
convém lembrar alguns aspectos do caso prínceps de Lacan
(1932). E também um caso no qual esta função do ato dra­
mático e da reclusão exerce seu papel. Aimée, uma jovem
funcionária dos correios está atormentada pela angústia e vive
um drama persecutório que passa pela erotomania, pela insô­
nia e inquietação. Este quadro muda completamente após a
passagem ao ato na qual Aimée tenta apunhalar uma famosa
atriz francesa (Huguette Duflos). A cura, conforme expressão
nominal de Lacan, decorre de uma espécie de realização. Re­
alização cujo destino é incerto no texto da tese, ora se prende
à confissão, ora à satisfação da culpa pela via da autopunição,
ora à realização, por Aimée, da perda de seu filho. O certo é
que Lacan parece perceber uma espécie de valor terapêutico
do ato real de Aimée. Ato que implica em uma dimensão de
linguagem e de engajamento em suas conseqüências impre­
visíveis e nao antecipáveis (Allouch, 1997). Ato que tem por
fim o objeto a e que se caracteriza pelo fato de que não com­
porta “em seu instante, a presença do sujeito” (SXV: 1967-68,
27/11/67).
Segundo extensa produção delirante de Aimée, a atriz to­
mava parte num complô do qual compareciam ainda o prín­
cipe de Gales, seus familiares e alguns colegas da agência de
correios onde ela trabalhava. Aimée, o pseudônimo escolhido
por Lacan, escreve narrativas, cartas e romances que se conec-
tam com o delírio, situando como ponto central a perda ou
rapto de seu filho. Seus escritos são parte de uma estratégia
de apelo e reivindicação para o reconhecimento do lugar em
que se encontra. A passagem ao ato (categoria simultaneamen­
te jurídica e psiquiátrica trazida por Lacan para a psicanálise)

553
representa, assim, o mo^mento de conclusão e localização da
figura perseguidora na atriz.
Lacan acompanha o caso durante quinze meses, nos quais
estimula a criação literária de Aimée. Sua atenção volta-se para
o momento de realização da cura (cure). Ou seja, o valor tera­
pêutico do ato. Este permitiu que ela atacasse a si mesma, por
meio da imagem ideal de si, representada pela atriz, realizan­
do, assim, a autopunição que caracterizaria sua paranóia:

... ‘quando todos estavam deitados, lá pelas sete da noite,


comecei a soluçar e dizer que aquela atriz não me queria
mal nenhum, que eu não devia tê-la assustado’. (...) Todo
o delírio caiu ao mesmo tempo, ‘tanto o bom quanto o
m au, nos diz ela. Toda a vaidade de suas ilusões magalô-
manas lhe aparece ao mesmo tempo em que a inanidade
de seus temores. (...) Todos os temas de idealismo altruísta
e erotomania, bem como os de perseguição e de ciúmes,
segundo seus próprio termos, 'caem ao mesmo tempo.
(1932, pp. 173-250)

Observe-se como a expressão cair aparece repetidamente.


Ela, de fato, entrará definitivamente no vocabulário da cura
lacaniana, impregnando sua teoria do ato e do final de aná­
lise. A descrição lembra muito de perto o teatro de Pinei: a
confrontação da vontade, o arrependimento, a admissão do
desejo, a dívida. A testemunha. O fulcro dos acontecimentos é
o encarceramento e o valor simbólico da punição conseqüente
ao ato. Já se chamou a atenção (Allouch, 1997, p. 119) para as
contradições que derivam do fato de que, apesar da cura, Mar-
guerite permanece internada e vários sintomas menores rema­
nescem. Há ainda a indeterminação clínica do que de fato foi
curado: o delírio, a psicose, o antagonismo da personalidade?

554
13.2. LIÉBEAULT E A SUPERFÍCIE PSICOTERAPÊUTICA
Compare-se esse caso de Pinei, datado em 1820, com o
modo como Liébeault, um dos primeiros psicoterapeutas da
era moderna, abordava seus pacientes quarenta anos depois.
Lembremos que Freud visitara este curador de almas, em me­
ados de 1889, em busca do aperfeiçoamento da técnica suges­
tiva e hipnótica. Segundo Liébeault, a relação entre paciente e
médico deveria mimetizar a relação de uma mãe com seu bebê.
A cura extrairia sua força e eficácia da reminiscência evocada
desta situação primária, na medida em que conseguiria reto­
mar os meios de comunicação da energia fluídica. Esta energia
fluídica era uma noção importante para explicar porque o te­
rapeuta podia agir sobre seu paciente à distância, isto é, sem
nenhuma interveniência física direta, mas apenas através de
toques superficiais, imposição de mãos e palavras. Assim como
no fenômeno físico do eletro-magnetismo, no qual os metais
se afetam sem contato direto, terapeuta e paciente se afetariam
sem contato direto, através do magnetismo-animal. Animal
refere-se aqui a ânima, ou seja, àquilo que produz movimento,
que é animado, conforme uma das mais antigas significações
da ideia de alma. Daí que a manifestação corporal deste mag­
netismo se mostre através da função psicológica da atenção.
O tipo de atenção —mais consciente ou mais inconsciente —
define a forma predominante da comunicação, ou do “conta­
to entre almas”. Há três formas principais desta comunicação
que correspondem aos três modos de funcionamento básicos
da mente: a imitação, o amor e os fenômenos de grupo. O
sofrimento é compreendido, nesta prática pré-clínica, como
excessiva dispersão ou concentração da atenção e a terapia visa
redistribuir a força e qualidade da atenção.
Sem nenhuma apresentação, exame ou consideração diag­
nostica, Liébeault atendia de quarenta a cinqüenta pacientes
por dia em sua própria casa, nos arredores de Nancy, em siste­
ma de pagamento nao obrigatório. Pousava a mão sobre a testa

555
do paciente e dizia: “Vofcê vai dormir”. Em seguida, vinham as
palavras de acalanto: “Você vai se curar, as digestões serão boas,
seu sono será bom, você vai sentir força em seus membros, etc.”
(Cazeto, 2001, p. 304). A firmeza empática de Liébeault con­
trasta com a simpatia autoritária de Pinei. Ainda estamos no
teatro da cura, mas agora este parece mutuamente consentido.
Trata-se de pacientes que procuram livremente um terapeuta,
não de alienados submetidos a uma disciplina institucional.
No que o teatro de Liébeault diferia do teatro de Pinei? A
dependência e a dívida estariam presentes de modo diminu­
to e concentrado. A inadmissibilidade do desejo e a confissão
estão completamente excluídas, não há diálogo tenso ou resis­
tência entre terapeuta e paciente. A autoridade de Liébeault
era diferente da de Pinei. Este era um médico, aristocrata e in­
telectual defensor das ideias iluministas. Pinei foi oficialmente
encarregado de uma missão institucional relativa à gestão de
massas humanas encarceradas, dele se esperava um relatório
médico-administrativo. Liébeault, ao contrário, era um pobre
camponês aspirante ao sacerdócio, com muitos admiradores,
mas sem nenhum discípulo ou aluno. Sempre viveu à margem
das instituições, quer religiosa quer científica. Escreveu livros
e relatou casos ao modo de um literato.
O teatro de Pinei não é diferente do de Liébeault pelas téc­
nicas mais ou menos acolhedoras, pelo tipo de saber mais ou
menos legítimo no qual se apoiava. A diferença fundamental
está na maneira como cada qual compreende o poder no in­
terior da cura. Essa diferença replica-se na estratégia adotada
para a construção do relato de caso. Os casos relatados por
Liébeault também estão divididos em três partes bem deli­
mitadas: na primeira apresenta-se a diagnostica médica em
detalhes, por exemplo, o desenvolvimento de uma dor ciática
resistente a diferentes tipos de tratamento ou a dificuldade de
uma grávida de dar luz à sua criança. Em seguida encontramos
um breve relato da situação de cura pela hipnose. Fecha-se
o caso acentuando que a cura foi prolongada ou encontrou

556
recaída. Ou seja, apesar do caráter extremamente pessoal da
terapia empreendida por Liébeault, de sua ambiência român­
tica e de sua apresentação em forma de espetáculo público, o
relato do caso ambiciona apenas secundariamente legitimar-se
através de uma semiologia ou de uma diagnostica.
Isso pode ser atribuído a um novo funcionamento em du­
pla, uma nova distribuição de tarefas, tal como vimos ocorrer
entre Pinei e Pussin. O caso, antes mencionado, de uma se­
nhora de 71 anos acometida pela dor ciática, havia sido trata­
do por Bernheim sem sucesso. Lembremos que Freud traduz o
tratado de Bernheim Sobre a Sugestão e suas Aplicações Terapêu­
ticas, em 1888, estando, portanto, a par do estilo de constru­
ção dos casos ali apresentados. Ao saber que Liébeault curara a
paciente por meio da hipnose Bernheim dirige-se a Nancy, tal
como Freud fará em 1889, interessado em conhecer a técnica
deste curador campestre. Bernheim o considera imediatamen­
te um impostor. Não obstante torna-se seu amigo e encarrega-
se de fazer a “divulgação científica” de seus achados terapêuti­
cos, iniciando assim uma longa colaboração. Reencontramos
assim o esquema: Liébeault figura o psicoterapeuta, Bernheim
o professor que universaliza e confirma a experiência da cura
no discurso da clínica.

13.3. CHARCOT E A SUPERFÍCIE CLÍNICA


Nas formas pré-clínicas da escrita de casos, representadas
por Pinei e Liébeault, encontramos esta divisão de funções en­
tre o prático da cura e o escrivão relator. Esta distinção não se
apaga com o nascimento do relato de caso clínico propriamen­
te dito, cuja referência aqui adotada é Charcot. Freud o com­
parava a Pinei por ter libertado a histeria do âmbito moral, na
qual esta aparecia associada à mentira, a simulação e ao drama,
em acordo com a expressão pequeno teatro histérico. Mas Freud
o comparava também à Bernheim pelo uso da técnica hipnó­
tica e pela preocupação com a acuracidade descritiva.

557
Charcot não era um teórico, mas um “visual” ou um “fo­
tógrafo” como ele mesmo se definia, ou seja, um clínico in­
teressado em descrições, alguém disposto a cruzar a fronteira
entre as imagens do corpo e as palavras da alma, segundo seu
preceito: “Os senhores sabem que tenho por princípio não
considerar a teoria e deixar de lado todos os preconceitos. Se
quiserem ver as coisas de modo claro, é preciso tomar as coisas
como elas são” (Charcot, 1888).
Charcot fazia-se acompanhar de desenhistas e pintores na
tentativa de colocar em imagens esta grande entidade visual
- a primeira em psicopatologia —conhecida como histeria.
Albert Londe um destes fotógrafos da Salpêtrière afirmava
que “a chapa fotográfica é a retina do sábio”. O projeto não é
novo, remonta a ciência da fisiognomia, formulada por Lava-
ter (1788), passando por Lombroso (1896) e pelo estudo da
expressão das emoções em Darwin (1872). Influenciado pela
tese fisiognomista, Géricault produzirá em 1821 uma série de
doze telas retratando alienados, segundo seus traços caracterís­
ticos, por exemplo: o jogador compulsivo, a mulher sofrendo
de inveja compulsiva, a clep tomaníaca, o homem sofrendo
de desilusão de grandeza militar. A ideia de que seria possí­
vel reconhecer um monomaníaco apenas pela sua fotografia,
assim como se poderia reconhecer um dipsomaníaco pela sua
caricatura marcou profundamente as primeiras estratégias de
individualização clínica da loucura.
Charcot não se interessa em retratar a histeria como um con­
junto de traços fixos e estigmas permanentes. Entre a expressivi­
dade súbita, brutal e incontrolada daquele que está fora de si e a
impassividade do rosto impenetrável, comedido, do burguês im-
perturbado, que está na posse de si (Courtine & Haroche, 1988),
há o evento transformador. A originalidade de Charcot pretende
capturar o instante de transição, o gesto elementar em sua regula­
ridade. Ele não descreve apenas a histeria, mas o ataque histérico.
Sua utilização do hipnotismo não é terapêutica, como na
Escola de Nancy, mas metodológica, ou seja, interessada em

558
reproduzir artificialmente os sintomas histéricos mostrando a
autonomia deste quadro clínico em relação à epilepsia. Vê-se
assim que a noção de quadro clínico não é inteiramente uma
metáfora. Charcot enfrenta um problema técnico que domina
a pintura romântica e realista, qual seja, como escolher o gesto
preciso no qual se concentra o universal de uma experiência. O
aprofundamento deste problema formal conduz, na história das
artes plásticas, a esta reversão representada pelo impressionismo.
Em linhas gerais a solução consiste em fazer passar da simula­
ção da realidade para a realidade da simulação. O caso clínico,
propriamente dito, nasce quando há uma plena consciência da
separação entre o que se vê e o que se olha, ou seja, quando se
torna central não apenas o que deve ser dito e representado,
mas todo o universo de problemas formais relativos ao modo
como se produzirá um determinado efeito visual ou literário.
Paradoxalmente é apenas neste momento quando a medicina
reconhece sua dependência para com o teatro (Pinei e Liébe­
ault), e as artes plásticas (Charcot) que o caso clínico se torna de
fato uma peça argumentativa relevante na discussão científica.
Até então o caso clínico era apenas uma ilustração, ou seja, uma
individualidade cuja função é corroborar e servir de exemplo
para a classe à qual pertence. Neste sentido, a ilustração é a mor­
te do caso clínico. Curiosamente é também nesta época que os
médicos tornam-se frequentemente escritores, fazendo de seus
pacientes heróis literários, como Arthur Conan Doyle, Anton
Checov e Wiliam Williams (Hunter, 1992).
Esta reversão do fracasso em captar a realidade da simula­
ção para a tentativa de construir um semblante, uma parecen-
ça eficaz possui um correlato teórico em Charcot. Lembremos
que ele desloca a simulação histérica do âmbito moral, cujo
agente deve ser re-educado, para o âmbito investigativo no
qual a simulação é uma estratégia de experimentação, contro­
le e semiologização de fenômenos, sendo a terapêutica, neste
caso, secundária. Daí que o próprio método seja empregado
para redescrever a patologia. Em acordo com esta reversão im­
pressionista Charcot redefine o hipnotismo como uma “neu­
rose artificial de essência histérica” (Bercherie, 1983, p. 80).
Uma parte significativa dos casos clínicos de Charcot en­
contra-se compilada nas Lições de Terça-Feira, relatos colhidos
pelos que assistiam às suas apresentações de pacientes. Apre­
sentações das quais Freud participa no início de 1886. Reen­
contramos assim a duplicação de funções, agora em hierarquia
invertida, entre quem escreve o caso e quem o trata. Vejamos
a síntese de um caso de grande histeria:

Uma doente é trazida na maca para a sala de aula. (...)


Após uma queda sofreu uma contratura do membro in­
ferior direito que deixou seu pé torto. Em uma histérica
nada é mais freqüente que uma contratura produzida ime­
diatamente após um traumatismo (...) Em doentes como
esta mulher, via de regra, é bastante provável provocar um
ataque histérico, havendo circunstâncias em que o ataque
é de alguma maneira um meio terapêutico. Não raro um
ataque provocado resulta em uma mudança visível, e uma
contratura que parecia irredutível (...) desaparece sob sua
influência. (...) Esta doente servirá para demonstrar o
que proponho. (...) Não é raro afirmar que experiências
com animais feitas em público não são tão bem sucedi­
das quanto as de laboratório. (...) Se o ataque se produzir
como espero, gostaria que tentassem apreender todas as
suas fases, o que não é fácil. (...) procedia com a maior
cautela possível em meus diagnósticos, pois me pergunta­
va como é possível que estas coisas não estivessem publi­
cadas. Como faríamos, caso quiséssemos descrevê-las tal
como se apresentavam a nós? (...) Até que um dia, meio
intuitivamente, disse a mim mesmo: é sempre a mesma
coisa. Concluí que ali havia uma doença particular (...)
embora nada tenha em comum com a epilepsia. (Charcot,
1888, p . 39)

Note-se como a apresentação da paciente tem uma fina­


lidade sumamente didática baseada no posicionamento do

560
olhar dos alunos. Charcot tenta dirigir a atenção do público
para os movimentos que se seguirão, sem ter completa certeza
de seu desenvolvimento. Ele divide suas dificuldades quanto
à transmissão desta experiência, assinalando seu caráter dis­
perso, confuso e que subitamente reuniu-se em uma mesma
espécie regular e discernível. Aqui ele fala em primeira pessoa,
narrando sua descoberta, mas logo em seguida aplica-se um
corte retórico e ele passa a apresentar sumária e objetivamente
a semiologia do ataque histérico, qual um botânico a descre­
ver, em terceira pessoa, sua espécie:

A fase epileptoide se subdivide em um período tônico e


um período clônico. Segue-se o silêncio e a fase dos gran­
des movimentos, produzida sob dois aspectos principais:
as saudações e o arco em círculo. Chega-se assim a terceira
fase. Repentinamente vê-se a doente olhar uma imagem
fictícia: uma alucinação que varia segundo as circunstân­
cias. A doente dá sinais ora de pavor, ora de alegria, con­
forme o espetáculo que acredita ter diante de seus olhos.
(...) Eu os previno, para que possam observar o que deve
ser visto, que repito, não é fácil de conseguir. Quero lhes
mostrar que não há uma sucessão de ataques passageiros,
mas sim um ataque que se desenvolve. (Ibid., p. 40)

Uma vez apresentado o que deve ser visto e discutida a unida­


de da seqüência que se irá verificar tem início a experimentação:

Um dos médicos residentes toca a ponta histerógena situ­


ada sob o seio esquerdo. Imediatamente o ataque começa.
Observem o período epileptoide, arco, círculo, saudações.
(...) Eis agora o período das atitudes passionais (...) agora
um ataque de contratura (...) O período epileptoide reco­
meça agora (...) vejamos se a doente é ovariana. A região
ovariana da doente é pressionada. Façam isso com uma
epilética e não haverá qualquer modificação, o que deixa
ver a diferença entre a histeroepilepsia e a epilepsia. (...)
Os senhores podem observar que o ataque se interrompe
sob influência da pressão. (...) Vejam agora o famoso arco
de círculo que os senhores encontram descrito por toda
parte. R epentinam ente a doente grita: mamãe, estou com
medo. (...) vejam como gritam as histéricas. Pode-se dizer
que é muito barulho por nada. A epilepsia, muito mais
grave, é muito mais silenciosa. (Ibid., p. 43)

Segue-se uma discussão contra a prática, em voga nos Esta­


dos Unidos, da extração dos ovários para tratamento da histe­
ria o que Charcot critica baseado no argumento de que apenas
algumas pacientes são ovarianas, assim como só alguns histéri­
cos são testiculares. Ademais há nos pacientes histéricos múl­
tiplos pontos histerógenos, que se dividem em espasmódicos e
frenadores. O caso termina pela alusão aos relatos demoníacos
da Idade Média, que funcionam como precedente histórico de
suas observações. A pincelada final reúne a força da observa­
ção imparcial e controlada com o referendo do senso comum e
do olhar não especializado. Charcot indica que os enfermeiros
mais simples conseguem facilmente distinguir a diferença en­
tre um ataque histérico e um acesso epilético. Distinção crucial
na medida em que um acesso continuado pode levar ao “esta­
do de mal” e daí à morte, ao passo que o ataque histérico pode
tomar três a cinco dias sem deixar seqüelas.
Vemos assim como para Charcot a escrita da clínica é uma
atividade eminentemente visual e figurativa. Seu núcleo é a
descrição do sintoma que pode ser visto e testemunhado pelos
alunos, imediatamente, mas também pelas referênciasjiistóri-
cas, pelos tratados médicos e pelos mais simples enfermeiros.
Sua regularidade é ponderada e suas variantes são dispostas em
tipos, espécies e gêneros. Não há qualquer alusão à história de
vida da paciente, suas circunstâncias morais ou relacionais. Ela
entra no teatro da cura representada por seu pé torcido. Mes­
mo seu apelo é descrito como um grito ao qual não se deve dar
muita atenção. As manipulações de seu corpo servem como
induções experimentais e seus efeitos são simultaneamente
confirmações de uma semiologia exposta com anterioridade e

562
verificações causais do diagnóstico. A terapêutica é discutida
em função destas exigências como condição adjuvante.
Mas Charcot não era apenas um clínico, era também
um herdeiro de Pinei. Acompanhemos o contraste narrativo
quando ele descreve esta prática. Agora é o romance ou o con­
to e não a fotografia ou a tela, o que nos fornece a dominante
discursiva da construção do caso.
Trata-se de uma menina de treze anos que está sofrendo de
grave anorexia nervosa. Seu pai escreve à Charcot em deses­
pero de causa. Este lhe responde sumariamente que interne a
menina em uma clínica hidropática qualquer e a abandone lá,
fazendo-a saber que os pais a deixariam na capital retornando
ao interior. Os pais seguem parcialmente as instruções. Não
conseguindo separar-se da filha naquelas condições, internam-
na, mas permanecem na cidade fazendo visitas ocasionais. In­
formado do insucesso da cura, Charcot fica furioso. Insiste
que suas ordens deveriam ter sido seguidas à risca e ameaça
abandonar o caso. Em seguida, consegue persuadir os pais de
que a cura exigia este sacrifício. Após a partida dos pais, a me­
nina chora durante uma hora, e em seguida, começa a comer.
Em dois meses, estava curada. E só depois disso (como vimos
ocorrer no caso de Pinei), que Charcot interroga a paciente:

... eu sabia que o senhor queria confinar-me, eu acreditava


que minha doença não era séria, e como tinha horror de
comer, não comia. Quando vi que o senhor tinha sido o
ven ced or, fiquei com medo, e a despeito de meu horror,
tentei comer e pouco a pouco isso se tornou possível.
(Forrester, 1983, pp. 32-33)

Exatamente como em Pinei, a confissão é posterior ao ato


traumático de conversão. Ela parece justificar, no autêntico
exercício da razão dos vencidos, sua própria transformação.
Depois do ato que reposiciona o sujeito, vem a narrativa que
a integra subjetivamente. O mundo se reorganiza entre ven­

563
cedores e vencidos, a forCna-poder da família é superada e ab­
sorvida à do Estado na figura de seu representante, o médico.
Note-se como a trajetória da jovem anoréxica é contada como
uma história. Nao há digressões, nem assertivas didáticas ou
argumentação. A posição do narrador é fixa e onisciente.
Encontramos, portanto, uma dupla divisão: entre Charcot
clínico e Charcot curador, cada qual com sua retórica, ou seja,
a fotografia e o teatro. Em ambos há distribuição de tarefas
entre os práticos da cura e aqueles que a relatam e a inscrevem
em um sistema de transmissão e legitimação. Esta divisão en­
contra-se na origem de um problema prático enfrentado por
aqueles que se dedicam à escrita de casos clínicos em psicaná­
lise, a saber: como posicionar o narrador? Falar em primeira
pessoa, ou referir-se a si mesmo através do impessoal “o ana­
lista”? Evitar o problema adotando o discurso indireto livre ou
descrever os fatos em terceira pessoa?
A tradição psicoterapêutica de Mesmer a Liébault, tem suas
raízes na prática confessional. Ou seja, compreende uma di­
versidade de narrativas, depoimentos e relatos orientados por
uma única e grande experiência: a conversão. A retórica psi­
coterapêutica está interessada em mostrar efeitos transforma-
tivos, em ressaltar diferenças entre antes e depois. Ela é um
exercício combinado de provas que tem a estrutura argumen-
tativa das fábulas e dos aforismos morais. Aqui o caso clínico
tem uma função metafórica, ele na pior circunstância ilustra
(alegoria) e no melhor sentido cria (metáfora) uma nova sig­
nificação a partir de um processo transformativo. Desta for­
ma outros podem reconhecer-se neste mesmo processo. Mas a
questão torna-se então saber que tipo de literatura desviante,
de escritura errática é essa na qual se localizariam os casos clí­
nicos psicanalíticos: literatura de testemunho, autobiografia,
romance de aventura ou romance policial?
Lembremos novamente um aspecto curioso do caso Aimée,
forma pré psicanalítica de construção de caso clínico. Aimée
interessa Lacan antes de tudo por seus escritos. Ela mesma de­

564
fine-se como escritora e toda a trama persecutória e erotoma-
níaca se dá por meio de cartas, poemas e romances literários.
Sua perseguidora é uma atriz de teatro, seu auxiliar é um dra­
maturgo e crítico. Seu ataque se dá depois que Aimée assiste
ao filme no qual Huguette Duflos é protagonista. O momento
em que Aimée está curada corresponde também ao momento
em que surgem novos efeitos de criação, ou seja, pelos quais
ela muda sua relação com os seus próprios escritos: “Pois a
fidelidade ao invólucro formal do sintoma, que é o verdadeiro
traço clínico de que tomávamos o gosto, nos levou a este limi­
te, onde ela se inverte em efeitos de criação” (E:1966b, p. 70).
Este efeito de criação não deve ser entendido apenas como
catarse expressiva. Há um reconhecimento, pertencente a outra
ordem de discurso, que ocorre quando seu trabalho é publica­
do, com anuência e auxílio de Lacan, por Paul Eluard. Aimée
passa a fazer parte das vedetes do surrealismo. Talvez o efeito
simbólico deste reconhecimento se ampare na associação com
o seu primeiro namorado, designado pela expressão poetastro.
A tradição clínica de Charcot a Kraepelin tem outra do­
minante discursiva. Aqui interessa menos narrar a teleologia
de uma transformação e mais descrever articuladamente um
processo. Trata-se de uma descrição controlada por quatro do­
minantes: (1) uma semiologia, que procura estabelecer a re­
gularidade e universalidade do valor e da significação que um
determinado signo possui, (2) uma diagnostica que pretende
diferenciar as classes de doenças e sintomas segundo a possi­
bilidade de reconhecimento particular, (3) uma etiologia que
procura estabelecer as relações causais entre signos e sintomas
e (4) uma terapêutica, que procura homogeneizar os procedi­
mentos e intervenções decorrentes e congruentes com os três
aspectos anteriores.
Ora, no cenário da psicopatologia o caso clínico tem uma
função bastante precisa, trata-se de uma função retórico-con-
ceitual. A escrita do caso clínico pretende substituir a ampliar
esta função de tal forma a que a experiência do diagnóstico, as

565
regularidades semiológica^, as constatações etiológicas, ou as
derivações terapêuticas, sejam confirmadas ou desmentidas por
outros psicopatólogos.
Estas três tradições a da cura, a psicoterapêutica, e a clí­
nica combinam-se admiravelmente na escrita freudiana dos
casos clínicos. A tensão entre literatura e ciência, que está na
origem das discussões sobre a construção de casos clínicos em
psicanálise deve, em função do exposto, ser relativizada. Não
se trata de qualquer literatura, mas da literatura de conversão
testemunhai por um lado e da ensaística filosófica, por outro.
Também não se trata de qualquer ciência, mas da psicopato-
logia de fundamentação antropológica. Ademais a fusão entre
uma e outra não se dá em qualquer terreno literário, mas em
uma forma bem definida: o romance.

13.4. FREUD: O CASO CLÍNICO COMO


CONSTRUÇÃO DE UM ROMANCE
Espero que a exposição precedente seja suficiente para afas­
tar a estratégia de caracterização do caso clínico em psicanálise
baseada em traçar uma linha divisória entre literatura e ciência,
separando duas funções e demarcando duas formas de discurso,
que se fundiriam da construção de um caso clínico. Desta ma­
neira as habilidades literárias da exposição seriam combinadas
com as formas diagnosticas ou conceituais da ciência. A her­
menêutica compreensiva se enlaçaria com a explicação causai,
o poema se acasalaria com o matema. E certo que a relação en­
tre ética e verdade na relação com a escrita é uma preocupação
muito anterior à psicanálise. Desde a tradição conhecida como
cuidado de si, passando pelas cartas dos helênicos como Sêneca
e Marco Aurélio, pela escrita particular dos Ensaios de Mon­
taigne, até mesmo as Meditações de Descartes, há uma longa
história das relações entre escrita e verdade. A famosa afirmação
de que os poetas e escritores criativos antecedem o trabalho dos
psicanalistas, e que estes, por sua vez, tentam refazer as mesmas

566
intuições por eles dirimidas no âmbito da ciência e dos concei­
tos nao deveria servir de desculpa para nos aliviar das dificulda­
des formais que a psicanálise deve enfrentar nesta tarefa.
Ora, se assim fosse a psicanálise teria resolvido uma ques­
tão central da crítica da cultura na modernidade. Entre contar
(Erzãhlen), apresentar (Dartstellen) e descrever (Beschreiben)
teríamos encontrado a chave mestra para capturar e transmitir
a experiência (Erfahrung). De fato a experiência de uma psica­
nálise envolve uma transmissão cultural que muito se asseme­
lha a da narração, em sentido forte do termo, pelos seguintes
traços (Benjamin, 1936): transformação criativa entre memó­
ria e história, valorização do lado épico da verdade, inerência a
uma tradição oral, recusa da soberania da informação, econo­
mia de explicações, fala autoral que se elabora em seu próprio
processo e apropriação coletiva de uma experiência. Contudo
esta forma de transmissão cultural não deve se confundir com
o romance formado sobre esta mesma experiência. E Freud
estava advertido deste problema: “Sei que há —ao menos nes­
ta cidade —muitos médicos que (coisa bastante repugnante)
vão querer ler um caso clínico desta índole como uma novela
destinada a sua diversão e não como uma contribuição a psi­
copatologia das neuroses” (1905d, p. 8).
O termo em alemão para novela, neste trecho, é Schlüsselro-
man, ou seja, literalmente romance chave, e não apenas novela
(como a tradução espanhola) ou romance (como na tradução
brasileira). Ora, o argumento freudiano reconhece que o es­
tatuto da escritura do caso depende da vontade do leitor a
quem se destina o texto, a vontade repugnante dos médicos
de Viena ou a vontade mais pura dos interessados em psico­
patologia. Esta observação parece fortuita, mas ela denuncia
um problema de base: se a escrita do caso clínico depende do
destinatário, admite-se assim uma suspeita sobre a possibilida­
de de definir a escrita de um caso clínico tendo em vista suas
propriedades intrínsecas: suas táticas formais, sua temática,
sua estratégia de composição, seu gênero.

567
A consideração aparentemente banal de Freud nos leva a
assumir que a noçao de caso clínico é inerente a um sistema de
transmissão, seja ele o sistema das artes ou da literatura, seja
ele o sistema científico, médico ou jurídico e ainda filosófico.
Pode-se argumentar que o sistema de transmissão no qual a
noção de caso clínico deve ser avaliado é o da própria trans­
missão da psicanálise. Um sistema de transmissão funciona
como um discurso que garante e regula a boa vontade dos que
dele participam. Mas o sistema no qual Freud quer indexar o
caso clínico é denominado explicitamente como o da psicopa-
tologia.
Aqui há uma passagem da teoria para o romance. Duas noções
que têm acepções psicanalíticas particulares. Lembremos que a
teoria sexual infantil (1908c, p. 183), um autêntico exercício
de investigação etnográfica sobre o modo como as crianças in­
vestigam a sexualidade, suas hipóteses regulares, suas correções,
a transformação orientada para certas constatações. A criança
pensa a sexualidade como um clínico: recolhe evidencias, veri­
fica certos signos, combina-os em formações regulares, testa-os
contra a experiência intuitiva, diagnostica as diferenças entre os
sexos. De forma quase complementar Freud descreve a aparição
do romance fam iliar do neurótico (1909c, p. 213), a formação
da grande narrativa pela qual a criança depõe os pais de seu pa­
pel soberano, imagina-se adotada, formula para si um passado
glorioso á partir da conversão dos pais em figuras menores e da
conversão de si a de herdeiro de uma nobre genealogia. Afinal
a moral do romance familiar do neurótico não é a da deposição
dos pais, mas a sua proteção, a sua re-instituiçao em seus lugares
segundo uma nova chave simbólica.
Ora, se consideramos a escrita de casos clínicos em psi­
canálise como um gênero literário vemos que ela é de fato
contemporânea de uma nova forma de romance, o romance
policial. Já se observou as congruências entre a vida e obra de
Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e a escrita
da investigação psicanalítica em Freud (Mezan, 1998). Esta

568
aproximação é ainda mais estrita quando se trata de pesqui­
sa em psicanálise (Dunker et al., 2002): a reunião de signos
em evidências, a lógica da suspeita, a função de Watson como
sucedâneo da transferência, a importância da ficcionalidade
como estratégia de revelação. Também já se objetou como a
psicanálise ficou prisioneira desta fórmula (Spence, 1992),
historicamente datada, trazendo para a escrita de sua casuísti­
ca um aplainamento narrativo e carregando para a concepção
de tratamento analogias improdutivas. Sabemos que Edipo é
culpado, desde o início da peça, mas mesmo assim o texto
funciona como uma intriga. Uma fórmula retórica desgasta-se
com o seu emprego, assim como um chiste contado indefini­
damente perde sua eficácia.
Lembremos que o romance policial realista (Poe, Doyle,
Chesterton) é um conto estendido, com narrador onisciente
em flashback, ao modo de uma aventura, com eventuais tons
góticos, cômicos ou líricos. Ao longo do século XX esta fórmu­
la transformou-se completamente com a aparição do romance
policial moderno (Chandler, Christie, Sayers) de grande ape­
lo popular, narrado em primeira pessoa e compatível com a
emergência social do cinema e da cultura do entretenimen­
to. Ambas as formas de romance policial giram em torno do
problema formal representado pela impossibilidade de contar
consistentemente uma história de forma linear e completa.
Daí que a solução não esteja em descobrir quem cometeu o
crime, mas na possibilidade de contar a história novamente,
mesmo que agora, com o enigma desvendado, não exista ne­
nhum interesse real em fazer isso. Assim como um caso clínico
espera-se do romance policial uma fórmula que se repete; que
o leitor saia do texto surpreso e tocado por um efeito que com­
bina plausibilidade, verossimilhança e engenhosidade. Um
caso que meramente explicite um conjunto racional de pro­
cedimentos que levam a uma conclusão não é bem um caso
clínico, mas um relatório que aspira a inclusão em uma classe
ou um prontuário para deslocar o paciente dentro do circuito

569
administrativo do tratamento. Portanto, a estrutura do conto
policial gira em torno de uma intuição imprevisível do lado do
detetive e de uma fratura da ordem regular de aparecimento
da realidade, geralmente sinalizada por um pequeno indício
estranho ou fora de lugar (Zizek, 1991a). E exatamente isto
que Freud, no contexto da noção de construção, chamava de
corroboração indireta. Ou seja, é preciso que exista a conjec­
tura de uma corroboração direta (interpretação) para que a
corroboração indireta seja possível, assim como para o roman­
ce policial é necessário que exista uma falsa solução, uma falsa
aparência (com a qual o autor está tentando ludibriar o leitor),
para que surja uma solução verdadeira.
Um bom romance policial não é apenas uma rede defor­
mada de significações, ou um quebra-cabeças, que se resolve.
Como no sonho o mais importante não é nem o ponto de
partida nem o ponto de chegada, mas o percurso e o trabalho
realizado entre um e outro. De alguma forma um caso clínico
deve tocar algo de real em nossa existência: a relação entre a
lei, a morte e o desejo.

13.5. LACAN E OS LIMITES DA FORMA ROMANCE


Compreende-se então o impacto calculado quando Lacan
escolhe como texto de abertura para seus Escritos a análise de
um conto policial seminal em seu gênero: A Carta Roubada,
de Edgard Allan Poe (E: 1955b, p. 13). Para Lacan a estrutura
do conto interessa mais que sua história narrativa. Ele descarta
a lógica da investigação e mostra como a narrativa dobra-se a
certas posições que se repetem. Tal como a escrita etnográfica,
por equivalência e generalização, a escrita do caso deve ser a
escrita de sua estrutura. Por razão de método ela deve ser re­
duzida ao mínimo das relações lógicas que este compreende.
Também em relação à chave freudiana da oposição entre teo­
ria (sexual infantil) e romance (familiar do neurótico) Lacan
inova ao propor por referência o conto, como modalidade li­

570
terária, mas também o mito como modalidade narrativa. As­
sim o mito individual do neurótico (1948b) comprime teoria e
romance em uma dominante discursiva que pode ser analisada
e descrita segundo o método estrutural. Os grandes casos freu­
dianos são relidos segundo este método: Homem dos Lobos,
Homem dos Ratos, Schreber, Dora, Hans, nesta ordem, são
seguidos por textos de outros gêneros: Hamlet, Antígona, Paul
Claudel, Sade. Entremeando estes dois gêneros, deve-se men­
cionar a prática constante de Lacan do comentário de casos
clínicos de outros psicanalistas: Ernest Kris, Ella Sharpe, Lucy
Tower, Margareth Lide, Melanie Klein, Winnicott.
A estratégia estrutural, ao contrário da estratégia funcional
adotada por Freud, consiste em criticar os conceitos como ope­
radores empírico-descritivos procurando distanciar-se do uso
extensivo da forma romance na qual os relatos se apresentam.
O método estrutural traz consigo um benefício secundário; nos
força a respeitar o critério da descontinuidade entre experiência
da análise e construção do caso clínico. Ou seja, as estruturas
formalizadas em um caso são, por definição, coletivas e neste
sentido, anônimas. Outra condição do método estrutural é que
a linguagem na qual se descreve uma forma lógica seja de um
nível superior de linguagem na qual se apresenta o objeto a ser
formalizado (Lévi-Strauss, 1949c). A escrita do caso seria então
a escrita da lógica do caso, ou seja, uma montagem possível de
sua estrutura e sua conseqüente formalização.
A narrativa do caso é apenas uma versão e quanto maior o
número de versões, mais clara as constantes estruturais (mi-
temas). Abole-se assim a importância da eficácia, presente na
narrativa psicoterapêutica. Na escala invertida do naturalismo
de Charcot esta estratégia puramente clínica da construção de
casos, mostra-se congruente com a proposição de um modelo.
Seu critério é exclusivamente a consistência interna e não a ve­
rificação referencialista. Contudo isso traz um sério inconve­
niente, entre a experiência da análise e a escrita do caso não há
mais contrariedade possível. Muitas práticas podem ser descri­

571
tas logicamente: a culin4ria, o sistema da moda, um jogo de
futebol, no entanto sua descrição lógica tem outra função que
a de produzir uma experiência, elas apenas descrevem como as
coisas são, não como deveriam ou poderiam ser, e ainda, o mais
importante, como seria impossível que elas fossem.
Mas a história da escrita da clínica não se reduz, como vi­
mos, às múltiplas combinações entre a eficácia psicoterapêu-
tica e o descritivismo clínico. O que fica excluído pela prática
do método estrutural de construção de casos clínicos é justa­
mente a dimensão de verdade e a problemática do narrador na
composição do caso clínico. Derrida observou, contra Lacan
(Derrida, 1980), que o método estrutural é tão extensivamen­
te aplicável porque ele coloca entre parênteses a função da
verdade no acontecimento enunciativo do texto, ele suspende
justamente aquilo que Freud adotava como critério intuitivo:
a boa vontade do leitor ao qual o texto se destina, a sanção
dada a sua estrutura de ficção, o estilo narrativo que lhe é ati-
nente. Um caso clínico é um evento ético na vida de quem o
escreve e um efeito descontínuo do acontecimento ético, que é
a existência de uma análise. Ética e verdade tem, para a psica­
nálise, uma relação que não pode ser evitada pela distribuição
de tarefas históricas entre psicoterapia e clínica, ou pela distri­
buição de condições metodológicas aplicada à escrita e leitura.
Ocorre que ao final de sua obra Lacan parece perceber no­
vos obstáculos e dificuldades: Marguerite Duras (OE: 1965b)
e James Joyce (OE: 1979a, p. 560), duas formas de escrita
assumida e complexamente autobiográficas, parecem resistir
ao método. Não é um acaso que Joyce e Duras sejam contra
exemplos, neles não se pode dissociar com clareza o “eu lírico”,
o narrador e a função autor. Lembremos que Freud introduz
a noção de construção justamente no contexto de uma discus­
são sobre a verdade. A verdade histórica, a verdade material e
a realidade (Wirklichkeit) psíquica. Construir um caso clínico,
diferentemente de relatar um tratamento, implica acrescentar
ao caso o que não pode ser lembrado, nem pelo analisante,
nem pelo analista, na cena do tratamento. Se a construção se
legitima pelos efeitos de continuidade no discurso (corrobo­
ração indireta) não seria o caso de pensar nos efeitos de con­
tinuidade de um discurso que é este requerido no sistema de
transmissão da psicanálise?
A rigor um paciente em análise, um psicanalisante, não
tem nada que ver com um caso clínico. Ele se torna um caso
clínico apenas quando é escrito, e como tal desaparecido, ra-
surado por esta operação. Em acordo com a ideia de queda
presente na etimologia da palavra caso (Fali) talvez a escri­
ta clínica seja uma forma de nos separarmos da experiência
acontecida na análise, uma forma de inventarmos o que nela
não encontrou inscrição, tempo e representação. É preciso evi­
tar que um psicanalisante transforme-se em um caso clínico,
identifique-se com esta condição, como parece ter ocorrido
com o Homem dos Lobos. Para isso é preciso introduzir o que
poderia ter acontecido (a falsa solução necessária) e também o
impossível de ter acontecido (o real impossível de representar)
como condições para construção do caso clínico.
Nasio (2000, pp. 14-17) afirma que o caso clínico possui
três funções: metafórica, didática e heurística. Podemos acres­
centar que estas três funções são em grande medida incons-
ciliáveis. A função fundamental da narrativa é interromper
a história, implodí-la. Criar rupturas que poderiam indicar
a possibilidade de outras histórias e criticar a ilusão da uni­
versalidade de uma narrativa linear e totalizante (Gagnebin,
1996, p. 94) —mesmo que seu prolongamento seja a teoria
psicanalítica. Vimos com Pinei e Charcot como a dimensão
clínica está intimamente relacionada à didática. Vimos ainda
como a forma-Romance, particularmente o Romance policial
desenvolve estratégias para produção de efeitos e tratamento
da verdade que se aproximam do que Nasio chama de função
heurística, ou seja, a possibilidade criar, quer novas relações,
quer novos problemas e ainda novas formas de nomeação
para os leitores de casos clínicos. Se a forma romance opõe-se
ponto a ponto à experiência da narração e se esta exerce uma
função opressiva sobre aquela, a construção do caso clínico
baseada no épico naturalista, ou no romance policial clássico,
longe de resolver a oposição entre narrar e descrever contribui
para acirrar o problema.
Não creio que seja apenas por motivos internos aos limites
do método estrutural ou relativos aos novos avanços metapsico-
lógicos que Lacan tenha mantido uma atitude de reserva sobre a
escrita da clínica. Há também o fato de que ele tenha colocado
mais que qualquer outro, o problema de como, e em que ter­
mos, seria possível transmitir a experiência da análise, em uma
forma própria da análise. Por exemplo, este experimento conhe­
cido como passe11 coloca em jogo diretamente a possibilidade
da enunciação de uma verdade, que não é nem a do triunfo
terapêutico, nem a verificação de regularidades clínicas.
Lacan fornece apenas uma indicação, e mesmo assim in­
direta, sobre o gênero narrativo que poderia se ajustar a este
experimento. Trata-se de uma indicação acerca da destituição
subjetiva, uma experiência associada ao final do tratamento
psicanalítico no contexto da formulação da ideia de passe.
Trata-se da alusão ao texto de Jean Paulhan (1930), o Guer­
reiro Aplicado. Ora, esta indicação permanece profundamente
enigmática. O texto narra a história de Jacques Masst que se
engaja na primeira guerra mundial e a atravessa com aparen­
te indiferença e apatia. Ora, Jean Paulhan é mais conhecido
como crítico literário do que como escritor. Como editor res­
ponsável pela N ouvelle Revou Française ele foi uma espécie de
iminência parda na geração do pós-guerra francês. Geração

11. O passe é conhecido como um dos dispositivos fundamentais da Escola proposta por La­
can em 1967. O passe consiste no relato do percurso de uma análise feito pelo próprio
analisante a dois outros analistas em formação (passadores). Estes produzem cada qual
um relato do que foi ouvido e o transmitem a um júri que decide pela nomeação ou não
do candidato (passante) ao título de AE (Analista de Escola). Uma exposição detalhada
encontra-se em Proposição d e 9 d e O utubro d e 1 9 67sobre o Analista d e Escola (OE: 1967b).

574
que estava ás voltas com uma saída literária para a asfixia ge­
rada pela hegemonia da forma romance. Ao mesmo tempo
esta é uma geração que refletia sobre os vínculos entre litera­
tura e política, tendo por antecedente o colaboracionismo e a
resistência contra a ocupação nazista. Paulhan quando jovem
trabalhou na ilha de Madagascar interessando-se profunda­
mente pelo uso dos provérbios ou narrativas (récit) deste lugar.
Opondo retórica e terror, Paulhan - ex-membro da resistência
francesa - foi um dos responsáveis pela introdução da valo­
rização dos aspectos lingüísticos formais na escrita literária.
Ele desenvolveu uma forma curta de conto no qual narrava
situações cotidianas aparentemente banais. Os récits contém
o relato de um incrível efeito transformador em seus persona­
gens, transformação vivida pelo encontro com um pequeno
objeto inusitado, ao modo de uma epifania laica. A ideia é
aproximativa, mas sugere que há algo entre o provérbio e o
récit, potencialmente importante para a renovação das formas
de construção de casos clínicos, inspirada em Lacan.

13.6. O CASO SINGULAR E O CASO GENÉRICO


Muito se tem falado sobre a especificidade do caso clínico
psicanalítico como uma espécie de contra-caso, ou seja, um
caso que é tão forte em sua irredutibilidade a formas ou tipos
clínicos anteriormente descritos que é capaz de destruir ou des­
fazer a classe na qual se inclui. Esta tendência tem reaproxima-
do a psicanálise da escrita literária e dos espinhosos problemas
relativos à transmissão e recomposição da experiência (como,
por exemplo, na literatura de testemunho). Ora, esta tendência
nos conduz a um fato quase consensual entre os psicanalistas,
a saber, no limite, a relativa incomensurabilidade entre os casos
clínicos. Em última instância a função ética e a função lógica da
construção do caso clínico em psicanálise, representam um ape­
lo considerável ao que os epistemólogos contemporâneos de­
nominam de excesso de internalismo. Ou seja, faltam critérios

575
de externalidade na medida em que a construção do caso passa
pelo desejo do analista pela irredutibilidade da experiência do
paciente, pelas instituições psicanalíticas.
Freud usava recorrentemente uma figura retórica muito
curiosa, chamava de “interlocutor imparcial”. E assim que ele
defende a análise leiga, por exemplo, através de uma espécie de
diálogo com um leitor não persuadido das premissas psicanalí­
ticas. Mahony (1990) mostrou como esta figura retórica atra­
vessa toda a obra freudiana, indicando que longe de “falar para
convertidos”, Freud não recuava diante de um adversário cético.
De fato um interlocutor imparcial diria sobre estas funções do
caso clínico (lógica e ética) que elas são muito endogâmicas e que
ao final derrogam o uso mais intuitivo e mais simples do caso clí­
nico em medicina, a saber, transmitir a experiência de uma certa
eficácia. Assumindo-se que procedimentos iguais geram resulta­
dos semelhantes o caso clínico deve possuir, antes de tudo um
valor de generalização. Temos então um extenso discurso sobre o
caso clínico singular, o caso único. Mas, perguntaria nosso inter­
locutor imparcial - não seria isso uma forma de desviarmo-nos
do problema central da eficácia da psicanálise? Se não podemos
comparar os casos não podemos estabelecer critérios de eficácia.
Em outras palavras: a retórica do caso singular não seria ao fim
e a cabo uma retórica defensiva, endogâmica e internalista? Ou
ainda, uma maneira de furtar-se ao problema central dos resulta­
dos, regulares e genéricos, do tratamento psicanalíticos?
Ora, o problema da generalização de resultados começa
pela generalização do que se deve entender por psicanálise,
os tipos de formação, as variantes quanto aos procedimentos.
Admite-se consensualmente que as generalizações sucessivas
que se é obrigado a fazer em termos diagnósticos, semiológicos
e terapêuticos de um lado, e da própria caracterização do que
vem a ser psicanálise por outro, tornam impraticável o uso do
caso clínico como parâmetro de eficácia terapêutica.
Teríamos então que responder a este interlocutor imparcial:
Suponho que o senhor aceitaria como contraprova ao argum en­

576
r

to um estudo do tipo duplo cego form ulado segundo parâm etros


metodológicos da medicina baseada em evidências. Ocorre que
este tipo de estudo é bastante difícil de levar a cabo, pois ainda
nao conseguimos definir o que seria uma psicoterapia placebo,
nem como simular uma psicoterapia sem que o paciente fa­
cilmente descubra o truque, pois afinal nem mesmo sabemos
o que é uma psicoterapia, e se ela não é ao final apenas uma
extensão complexa e calculada do efeito placebo.
Teríamos ainda que responder ao nosso interlocutor im­
parcial: Suponho que o senhor está pedindo que nos justifique­
mos em termos tecnológicos, ou seja, de reprodutibilidade técnica
porque pedim os tanto tempo para tratar nossos pacientes. Ocorre
que esta reprodutibilidade exige generalizações diagnosticas
difíceis de estabelecer entre diferentes tradições psicanalíticas,
e mais difíceis ainda de manter ao longo do tempo pela trans­
formação das próprias formas diagnosticas estudadas pela psi­
canálise ao longo de sua história.
Teríamos ainda que responder ao nosso interlocutor impar­
cial. Suponho que o senhor está pedindo um argum ento m elhor e
cientificam ente subsidiado, sobre porque nao deveríam os escolher
a m elhor técnica psicoterapêutica disponível, que nos ofereça os
melhores resultados no m enor tempo possível. A urgência é sim
um critério terapêutico. Não seria digno propor a um paciente
com tuberculose um tratamento mais longo e demorado do
que o necessário. Porque isso se aplicaria aos pacientes neuró­
ticos? Aliás, não seria a diagnostica psicanalítica tão comple­
xa, controversa e idiossincrática justamente para produzir um
adiamento premeditado dos critérios de restabelecimento e,
consequentemente, uma justificativa internalista para a exten­
são da psicoterapêutica?
Minha resposta a este interlocutor imparcial é, neste caso
uma resposta externalista. Recentemente dois pesquisadores
do centro Médico da Universidade de Hamburg-Eppendorf
conduziram não apenas um trial ou um estudo observacional
ou um estudo comparativo, mas a “joia da coroa” da medicina

5 77
baseada em evidências, ou seja, a primeira meta-análise conhe­
cida sobre a eficácia do que os autores chamaram, como um
compromisso de generalização, de Psicanálise e Psicoterapia
Psicodinâmica de Longo Prazo. Leichsenring & Rabung (2008)
partiram de mais de mil estudos clínicos, realizados desde
1960 até 2008, envolvendo análise de eficácia de tratamentos
realizados por mais de um ano ou 50 sessões, definíveis nos se­
guintes termos: “(...) uma terapia que envolva cuidado atento
para a interação entre paciente e terapeuta, com interpretações
pensadas no tempo, na transferência e na resistência impli­
cando apreciação sofisticada da contribuição do terapeuta ao
campo interpessoal”.
Comparando-se este tipo de psicoterapia de longo prazo
(1053 pacientes selecionados) com outras formas de psicote­
rapias (cognitivo comportamental, dialético comportamental,
terapia familiar, terapia suportiva, terapia psicodinâmica de
curto prazo e tratamento psiquiátrico convencional) os resul­
tados são assustadores:
(a) A psicoterapia psicanalítica mostrou-se duas vezes
mais eficaz considerando-se a “efetividade genérica”.
Duas vezes mais eficaz para problemas focais (target
problems). Quase quatro vezes mais eficaz para proble­
mas funcionais de personalidade. Largamente mais efi­
caz para problemas relativos ao funcionamento social e
para os sintomas específicos.
(b) A vantagem comparativa da psicoterapia psicanalítica
frente a outras abordagens aumenta para patamares
ainda maiores quando se considera quadros complexos
(complex m ental disorders) como os transtornos de per­
sonalidade, os transtornos mentais crônicos, os trans­
tornos mentais múltiplos e co-morbidades. A melhora
genérica do tratamento psicanalítico é 96 % superior
aos outros tratamentos. O dado ganha mais força ain­
da se considerarmos que mais de 50% dos casos consi­
derados incluem dois ou mais diagnósticos.

578
(c) Um dado mais impressionante e eontra-intuitivo. O tra­
tamento psicanalítico acompanhado de medicação psi-
cotrópica é um pouco menos eficaz do que o tratamento
psicanalítico sem medicação psicotrópica adjuvante.
(d) O número de sessões realizadas mostra uma correlação
positiva com aumento de eficácia com relação a sinto­
mas psiquiátricos em geral. Já com relação à melhora
genérica (overall outcom e), mudanças na personalidade
e funcionamento social não há correlação entre núme­
ro de sessões e aumento de eficácia.
(e) Também são significativas as variáveis que não apre­
sentam correlação de eficácia: idade, sexo, experiência
prévia do terapeuta, experiência geral ou específica do
terapeuta, emprego de manuais ou programas de in­
tervenção. Além dessas destaca-se a ausência de cor­
relação de eficácia quando se considera o sub-grupo
diagnóstico específico (dentro dos transtornos de per­
sonalidade, transtornos crônicos ou múltiplos, trans­
tornos depressivos ou de ansiedade). Cai por terra, des­
ta maneira, o mito da terapia específica e a ideia de que
certos quadros são melhor curáveis por certas técnicas.
Quem cura o quê? E uma falsa pergunta para além do
genérico: psicanálise.
Os autores estimam que mais de 300 estudos, com resul­
tados opostos, seriam necessários para inverter os resultados
desta meta-análise de significativos para não-significativos. O
único motivo, levantado pelos autores, para desconsiderar o
emprego dapsicoterapiapsicodinâm ica de longo prazo é um mo­
tivo pouco clínico, a saber: o custo. Mas esta é uma pergunta
que deixo para meu interlocutor imparcial: o custo não seria
um critério p io r do que a ética ou a lógica para avaliar o uso de
uma form a d e tratamento?

579
C AP ÍT U LO 14

L Ó G I C A E P O L ÍT IC A DA
E X P E R I Ê N C IA P S I C A N A L Í T I C A

N o início não é a origem, é o lugar.


Lacan

E
st e l iv r o p o d e s e r c o m p r e e n d id o , até a q u i , c o m o o e x a m e
da gênese e autonomização da psicanálise como um cam­
po. Ao contrário de outros estudos (Ellenberger, 1970; Alexan-
der & Selesnick, 1996), que se concentraram na tese de que
a psicanálise se autonomiza a partir da medicina psiquiátrica
do século XIX, argumentei que há outras superfícies de prove-
niência, igualmente substantivas para a gênese de sua prática.
Segui assim um caminho homólogo ao tomado por Bourdieu
(1996) para definir, por exemplo, as regras de constituição da
literatura europeia. Segundo tal perspectiva a autonomização
de um campo deve ser pensada a partir de sua posição em
relação ao campo genérico do poder e sua delimitação por su­
perfícies, nas quais se formam objetos, ao longo do tempo.
Espero ter delimitado o campo da psicanálise, como prática,
como delimitado por três superfícies: clínica, cura e psicote­
rapia. Deixei de lado os dois passos seguintes do método de
Bourdieu, a saber, a análise da estrutura interna do campo e a
análise da gênese dos hábitos dos ocupantes de posições chaves
e suas disposições incorporadas. Penso que estes dois últimos
aspectos tem obtido boa atenção dos pesquisadores.
Já se afirmou que a psicanálise alcançou grande autonomi-
zação de seu campo, atestada pelos seus jogos de linguagem
específicos, seu sistema prático de ações e de transmissão de
seu saber e sua prática. Além disso, verificamos a excepcional
condição pela qual ela é capaz de estabelecer as próprias condi­
ções de legitimação de seus praticantes com relativa indepen­
dência em relação aos sistemas universitário, profissionalizante
e confessional. A existência de sistemas concorrentes, de gene­
alogias antagônicas, de rivalidades epistêmicas, culturais e até
estilísticas, é outro forte indício de autonomização deste cam­
po (Lima, 2005). Argumentei no primeiro capítulo que outro
elemento constitutivo é a diferenciação entre as duas lógicas
antitéticas: a qualificação ética de atos e discursos orientados
para ler e significar as formas de mal-estar em torno de uma
experiência com a verdade (excelência simbólica) e a produção
de efeitos com valor de troca e uso na economia das formas de
sofrimento em uma experiência com o Real (eficácia simbó­
lica). Pode-se reencontrar nesta diferença a polarização entre
ética da convicção e ética da responsabilidade, política ou ci­
ência (Weber, 1946). Contudo esta divisão de territórios e sua
conseqüente distribuição de funções, é, precisamente, o que a
psicanálise acaba por recusar, tem dificuldade em estabelecer
ou cronicamente fracassa em manter. E a precariedade da linha
divisória que separa técnica e ética, ciência e arte, excelência e
eficácia, método de tratamento e método de investigação, que
ao final constitui a política-propriamente dita da psicanálise.

14.1. HISTÓRIA E TOPOLOGIA


No interior do campo formado por este ensaio de topologia
histórica podemos agrupar as diferentes formas de psicanálise
como políticas específicas que articulam ou desarticulam exi­
gências atinentes às superfícies constituintes. Reconhecemos

582
que nenhuma instituição, nenhum código ou nenhuma prá­
tica formativa, exterior ao campo (universidade, leis trabalhis­
tas, códigos de saúde) ou interior ao campo (instituições, esco­
las, linhas e orientações teóricas), é suficientemente forte para
determinar sozinha, o funcionamento hegemônico da relação
entre as superfícies da clínica, da cura e da psicanálise, ou de
submetê-lo a um campo mais extenso. Isso permitiria traçar as
linhas de força de uma geografia da psicanálise a partir de uma
topologia de sua história. Uma derivação convergente com a
ideia de Merleau-Ponty (1964, pp. 196-197):

Tomar c o m o modelo do ser o espaço topológico. O es­


paço euclidiano é o modelo do ser perspectivo, é um es­
paço sem transcendência, positivo, rede de retas, parale­
las entre si ou perpendiculares segundo três dimensões,
que comporta todas as disposições possíveis —profunda
conveniência dessa ideia de espaço (e da velocidade, do
movimento, do tempo) com a ontologia clássica do Ens
realissim um , do ente infinito. O espaço topológico, pelo
contrário, (...) [a]clia-se não somente ao nível do mundo
físico, mas é também constitutivo da vida e por fim funda
o princípio selvagem do Logos - é este ser selvagem ou
bruto que intervém em todos os níveis para ultrapassar
os problemas da ontologia clássica (mecanismo, finalismo,
em todo caso: artificialismo).

Ou seja, a topologia poderia nos fornecer um entendimen­


to do Logos selvagem (como não ver aqui a política, a arte e
o amor), para o qual a geometria clássica é inapta. Um dos
conceitos axiais da topologia é o conceito de vizinhança. A
separação entre adjacente e não adjacente, que parece intuiti­
vamente simples, é na verdade, bastante difícil de formalizar.
Comecemos pelos casos mais simples e que historicamente se
consagram como práticas exteriores à psicanálise lembrando
que na história da psicanálise encontramos três tipos de de­
rivações clínicas da experiência inaugurada por Freud: os que

583
se separaram da psicanálise originando novas práticas clínicas
(vizinhança externa), os que dentro, da psicanálise formavam
novas escolas, estilos ou abordagens (vizinhança interna) e
aqueles que absorveram aspectos técnicos, conceituais ou éti­
cos da psicanálise sem, contudo, situarem-se, propriamente,
no sistema de transmissão e formação da psicanálise (transição
entre vizinhança e não vizinhança).
No primeiro grupo há aqueles como Adler (1870-1937),
Jung (1875-1961) e Reich (1897-1957), que a partir de revi­
sões teóricas chegam a formular projetos clínicos independen­
tes e autônomos. A psicologia analítica a bioenergética ou a
psicologia individual são concepções de tratamento derivadas,
mas claramente distintas da psicanálise. E importante notar
que nos primeiros momentos da disseminação cultural da psi­
canálise pelo mundo, durante as décadas de 1930-1950, tais
tendências combinadas eram apresentadas como subdivisões
da psicanálise. Ainda hoje em muitos manuais de orientação
psicológica convencional tais autores formam parte da psica­
nálise. Os três casos mencionado, são muito diferentes entre si.
Jung era extremamente próximo e respeitado por Freud, que
chegou a indicá-lo para dirigir o Jahbuch fü r Psychoanalitishe
u nd Psychopathologische Forschungen (Anuário para a Pesquisa
em Psicanálise e Psicopatologia) e a nascente instituição inter­
nacional de psicanálise (IPA). Jung possuía uma formação psi­
quiátrica francamente melhor que Freud e se equiparava a este
em termos de formação clássica. Senão vejamos a declaração
de Jung a Freud em uma de suas últimas cartas, em 1912:

O senhor sabe, é claro. Até onde vai um paciente com a


auto-análise: não para fora da sua neurose - exatamente
como o senhor. Se o senhor se livrasse de seus complexos
e parasse de bancar o pai para os seus filhos e, ao invés
de visar continuamente os pontos fracos destes, examinas­
se bem a si próprio, para variar, então eu me corrigiria e
corrigiria de um só golpe o vício de hesitar em relação ao
senhor. (McGuire, 1993, p. 542)
O velho mote, se quiser governar os outros cuide prim eiro de
si mesmo, parece estar sendo claramente usado por Jung nesta
situaçao. A forma carismática de tratamento do poder em Jung
(Noll, 1994) opõe-se assim ao manejo personalista que encon­
tramos em Freud. Assim como nos casos contíguos de Adler
e Reich, estava em jogo com Jung algo central para a tradição
da cura, a saber, as relações entre poder e verdade. No caso do
criador da psicologia individual (Adler, 1967) e da expressão
complexo de inferioridade, destaca-se a presença de uma teoria do
caráter que retoma o antigo tema do sentimento social da cor-
poreidade, sua disciplina e sua ascese disciplinar, evocando para
tanto um tema clássico da psicoterapia: a influência da autori­
dade do superior sobre o inferior. Finalmente, no caso de Reich
encontramos uma acusação oposta em relação ao estatuto da se­
xualidade. Enquanto Adler e Jung pendiam para uma crítica do
peso da sexualidade na teoria psicanalítica, e consequentemente
revisões no conceito de libido, Reich apontava o crescente es­
quecimento da radicalidade desta noção, mais especificamen­
te o esquecimento da erótica dentro da psicanálise. Ainda no
quadro da política da ascese ele postulou uma ampliação das
técnicas e disciplinas do corpo. Como Adler, Reich reconheceu
a dimensão social do corpo, no entanto, foi além, ao acolher a
interpretação marxista do campo social. Como presidente do
comitê sobre técnica psicanalítica, nos anos 1930, mostrou-se
extremamente lúcido em suas considerações clínicas. Saliente-se
que uma grande contribuição clínica de Reich foi ter levantado,
criticamente, a posição patológica daqueles que se adaptavam
demasiadamente ao contexto social e ao dispositivo psicana­
lítico em particular. A valorização das neuroses atuais (Reich,
1933) e da possibilidade de transformar, por via profilática ou
educativa, as relações dos indivíduos com seus corpos e com as
experiências de satisfação sexual fazem de Reich um descenden­
te direto da antiga prática da ascese.
A segunda noção básica da topologia diz respeito à métri­
ca das dimensões do espaço (Pontryagin, 1952) e ao caráter

585
deformável, e não métrico, das estruturas definidas dentro de
um determinado espaço. E a noção de lugar. Em termos laca-
nianos a política é a forma de ocupação (Besetzung) do lugar:
“Se encontramos na demanda um objeto a, este é ensejo para
assinalar que o que é demandado nunca é senão um lugar”
(SXVI: 1968-69, p. 307).
Examinemos assim o segundo caso composto por aqueles
que, mantendo-se no espaço dos fundamentos da cura psica­
nalítica, inovam sua clínica, sua concepção de tratamento e
seu método. Temos aqui três bons exemplos para cada geração
de psicanalistas: Ferenczi, Abraham e Jones para a primeira ge­
ração e Melanie Klein, Ana Freud € Winnicott para a segunda.
Uma tentativa de resumir os desenvolvimentos clínicos das
diferentes escolas psicanalíticas seria de pouca serventia neste
contexto. Há algumas boas apresentações comparativas (Pin­
to, 2007), porém poucos trabalhos se arriscam a lançar hipó­
teses sobre a lógica de sua diferenciação em termos de políticas
de tratamento. Consideremos as diferentes escolas, linhas ou
tradições psicanalíticas como lugares, ou seja, arranjos ou ob­
jetos específicos que a cada momento, articulam e resolvem
as exigências políticas do tratamento constituindo um obje­
to. E apenas neste sentido aproximativo que poderíamos dizer
que um autor como Ferenczi encontra-se próximo do polo da
cura, enquanto um psicanalista como Abraham parece estar
mais próximo das exigências atinentes ao polo da clínica. Um
autor como Jones, por sua vez, surge como um representante
da vertente psicoterapêutica dentro da psicanálise. Isso seria
um uso muito pobre e na verdade categorial de nossa topo­
logia histórica, pois o que ela destaca como mais saliente não
são as formas típicas identificáveis com a clínica, com a cura
ou com a psicoterapia, mas o fato de que cada superfície se
compõe de contradições entre as exigências de cada um destes
polos e de que a formação de uma superfície deixa e produz
como elemento exterior um ponto fora da reta, ou seja, um
polo excluído, que adquire a partir de então força constitutiva.

586
Poderíamos dizer que um autor como Winicott concilia
admiravelmente as exigências da psicoterapia com as exigên­
cias da cura. Sua vasta experiência clínica pregressa na prática
médica funciona como polo de exterioridade, favorecendo e
caracterizando sua maneira própria de articular psicoterapia
com a cura. A escola derivada de Ana Freud, com sua ên­
fase na análise das defesas e na perspectiva educativa, pode
ser pensada como um caso modelo de articulação entre as
exigências da psicoterapia com as exigências da clínica. In­
versamente a escola das relações de objeto, representada por
Melanie Klein, é uma articulação bem concluída entre a polí­
tica da cura e a política da clínica. Quando se discute o lugar
da técnica, na análise de crianças ou na abordagem da psico­
se, tais diferenças deveria ser consideradas. Ou seja, não são
apenas modos de ler e interpretar conceitos, mas formas de
entender os fins e os meios da prática, maneiras de resolver
o problema do poder e da verdade em psicanálise, além de
configurações semiológicas e diagnosticas diferentes.
Quando praticamos psicanálise não fazemos sempre o
mesmo. Nem ao longo de um mesmo tratamento, nem ao
longo de nossa trajetória como clínicos, nem quando consi­
deramos os diferentes pacientes de quem cuidamos. Isso de­
veria contribuir para aclarar a antiga distinção entre deman­
das psicoterapêuticas e demandas de formação. Ou seja, as
demandas e complexos discursivos (Parker, 1997) que orga­
nizam o espaço topológico da prática psicanalítica pertencem
ao mesmo espaço social no qual se organizam as diferentes
demandas de tratamento e modalidades de transferência. As­
sim como há uma política do tratamento há uma política
complementar, que ultrapassa em muito a da psicanálise, para
nomear, legitimar e reconhecer o mal-estar, o sofrimento e o
sintoma. Durkheim foi um dos primeiros a reconhecer este
isomorfismo social entre formas de tratamento e formas de
sofrimento social:

587
(...) são as correntes do egoísmo, do altruísmo e da anomia
que atuam dentro da'sociedade em consideração com as
tendências para a melancolia langorosa ou para a renúncia
ativa ou para a lassidão exasperada. São estas tendências
da coletividade que, penetrando no indivíduo, os levam a
matar-se. (Durkheim, 1897, p. 487)

Esta noção é importante para examinarmos o terceiro grupo


de derivações que encontramos no campo psicanalítico, a saber,
as escolas terapêuticas que importam noções, procedimentos e
técnicas da psicanálise adaptando-os a outras perspectivas psi-
coterapêuticas ou contextos de tratamento, com ou sem de­
claração de proveniência. Este é o caso, historicamente muito
representativo, das práticas psicodinâmicas, que no ambiente
anglo-saxônico albergaram as diversas tendências psicanalíticas
com suas próprias traduções, compromissos e ramificações (psi-
codinâmica hospitalar, psicodinâmica do trabalho, psicodinâ-
mica psicossomática). Poderíamos mencionar ainda a psicotera-
pia breve, de inspiração psicanalítica; a psicoterapia familiar de
orientação psicanalítica, o psicodrama de influência psicanalíti­
ca e até mesmo a “genérica” psicoterapia de base psicanalítica.
Aqui o critério de pertinência não é a diversidade interna, nem
a autonomização, mas a gradualização, ou seja, formas de psico­
terapia mais próximas ou mais distantes do limite que definiria
normativa ou essencialmente a psicanálise.
As posições são ainda importantes para definir quantitati­
vamente o nível de pertinência de um psicanalista aos lugares
desta topologia. A política do lugar regula o regime de filia­
ções que este desenvolve as apostas carismáticas e o destino
das transferências. A posição tomada no interior de um lugar,
ao contrário, é um aspecto temporal da política. As posições
alteram-se em acordo com outras posições, ao contrário dos
lugares que sempre se transformam por complexas operações
de corte, ruptura ou dissensão. É neste nível que alguns auto­
res defendem a necessidade do ecletismo técnico do psicanalis­
ta. Ou seja, desde que a disposição política esteja corretamente

588
formada, na superfície da cura, ou que os princípios meto­
dológicos sejam atendidos, no âmbito da clínica, encontra-se
liberdade tática para que os procedimentos, ou posições, sejam
tomados segundo os princípios do estilo, personalidade e ou
criatividade de cada analista.
Lembremos que o que caracteriza a divisão social do tra­
balho na forma capitalista é que os meios de produção não
pertencem àquele que vende sua mão de obra segundo a for­
ma mercadoria. Isso vale tanto para os instrumentos e máqui­
nas quanto para os saberes e técnicas. Por exemplo, em vários
países (Parker & Revelli, 2008) observou-se uma espécie de
separação dos clínicos em duas classes. Os verdadeiros psica­
nalistas, que podiam apresentar seus trainings, suas análises de
controlé, segundo os caros institutos de formação. Estes po­
diam desrespeitar as associações de classe, as práticas vulga­
res de reconhecimento e legitimação profissional bem como
desdenhar das questões em torno da regulação da psicanálise
pelo Estado e das regras universais de formação. Ao lado deste
grupo havia ainda os práticos, que mesmo possuindo longos
percursos formativos em psicanálise pessoal, anos de estudo
e formação, entendiam-se mais como psicólogos de orienta­
ção psicanalítica do que como autênticos psicanalistas. Espero
ter deixado claro com isso como a importação de técnicas —
como, por exemplo, se verificou nos anos 50 através dos tes­
tes psicológicos de inspiração ou interpretação psicanalítica,
como o Pfister, o Rorschach, o TAT, etc. —nao é apenas uma
agregação de eficácia, mas representa potencial desautorização
e alienação do agente em relação à sua própria ação.
A política da psicoterapia está virtualmente centrada na in­
terpretação de demandas, ou seja, é uma política voltada para
a eficácia e seu interesse prático orientado por resultados. Nes­
te sentido a antiga querela quanto a denominar aqueles que
procuram auxílio psicológico como pacientes ou clientes só re­
vela a identidade entre duas posições contrárias, que poderiam
ser complementadas pelo mais recente termo institucional:

589
usuário. O que a hipótese do livre deslocamento de técnicas
traz adicionalmente de problemático é a identificação de uma
substância comum e abstrata que torna equivalente o trabalho
de um ou outro que empregue a mesma técnica. Seria à partir
desta identidade que se poderia fazer eqüivaler o valor do tra-
balho com a preço do serviço. Ou seja, o ecletismo de técnicas
é possível e desejável, mas é extremamente trabalhoso, pois
implica uma retradução constante dos elementos da clínica.

14.2. LACAN: O LIBERTADOR DA PSICANÁLISE?


Quando examinamos a posição de Lacan nesta pequena
topologia das formas de tratamento psicanalítico encontramos
uma dificuldade. Em primeiro lugar ele propõe uma revisão
teórica radical na forma de ler e praticar os principais ope­
radores clínicos da psicanálise. Isso de fato dá origem a uma
tradição autônoma de transmissão da clínica, com suas regras,
associações e genealogias. Ocorre que em vez de caracterizar-se
e justificar-se segundo “outros princípios”, com um programa
clínico independente ou autônomo, ela apresenta-se como clí­
nica psicanalítica e ademais rigorosamente freudiana.
Em segundo lugar Lacan inova tal clínica tanto no que diz
respeito à sua técnica (notadamente o manejo do tempo e das
palavras em análise), quanto ao seu alcance (seja com relação
ao tratamento das psicoses, seja das perversões), e ainda quan­
to aos seus objetivos (tanto em face da proposição radical de
uma ética da psicanálise, quanto no que diz respeito ao final
do tratamento).
Portanto a experiência lacaniana pode ser recebida como
um fragmento adicional no quadro da diversidade das psica­
nálises. Novamente encontramos objeções para enquadrar a
clínica lacaniana neste critério. A adesão de Lacan às suas ino­
vações técnicas, a idiossincrasia de seu estilo e as conseqüências
políticas de suas ideias, determinam que ele seja expulso da
Associação Psicanalítica Internacional, em 1963-Teoricamen-

590
te isso representaria um caso limite de passagem da condição
da interioridade para exterioridade. Ora, neste momento La­
can já havia contribuído significativamente para formar uma
nova geração francesa de analistas, contava 62 anos de idade
e era figura conhecida e respeitada tanto nos círculos psicana-
líticos quanto psiquiátricos e ainda nos circuitos intelectuais
e universitários. Portanto sua descaracterização como psicana­
lista soa como uma manobra político-normativa, francamente
indefensável segundo parâmetros atuais - uma destituição po­
lítica quiçá determinada pelo desequilíbrio de forças e ruptura
de alianças que Lacan representava dentro dos circuitos insti­
tucionais da psicanálise francesa (Roudinesco, 1986).
Esta situação duplamente anômala, clínica independente,
mas não autônoma, e clínica diversa, mas excluída normativa-
mente do conjunto, sugere que tratamos aqui de um exemplo
do terceiro tipo, qual seja, uma clínica mais ou menos psica­
nalítica, e conseqüente hegemonia de uma política de linha­
gem psicoterapêutica. Ora, esse enquadramento também não
é possível. Há um esforço contínuo de Lacan para fundamen­
tar não apenas a psicanálise, como teoria do inconsciente e
das pulsões, mas seu método de tratamento. Há uma crítica
permanente da técnica com a introdução da tese de uma éti­
ca da psicanálise. Um esforço para determinar as condições
e limites não apenas de um prolongamento da técnica ou de
certas modificações de sua doutrina teórica, mas de toda e
qualquer experiência que se queira psicanalítica. Para Lacan o
psicanalista, para além de uma pessoa e de uma função, toma
parte no próprio conceito de inconsciente. Desta maneira ele
contribui para estabelecer alguma unidade do próprio campo
psicanalítico e para uma separação mais clara frente a outras
modalidades de tratamento psicológico.
Esta ambição de fundamentar a ação do psicanalista tan­
to ética quanto epistemologicamente é ao mesmo tempo um
convite à exploração de novas formas de intervenção e à cons­
trução de um estilo próprio para cada analista. Ou seja, em

591
vez de padronizar a ação; normativizar a formação de analistas
e burocratizar os procedimentos clínicos, Lacan tenta fixar al-
guns princípios com segurança e convidar o psicanalista a pen­
sar e problematizar continuamente as razões de sua prática.
Portanto, no projeto clínico engendrado por Lacan encon-
tramos esta partilha entre uma exigência radical de produção da
singularidade, na forma de receber a tratar cada paciente segun­
do o conjunto de particularidades e contingências únicos que
regem uma vida, e a aspiração universalista de prestar contas da
ação clínica do psicanalista segundo critérios comuns, públicos
e conceituais. Esta dupla exigência de singularidade e universa­
lidade exprime-se em quatro aspectos de seu programa clínico.
Primeiro, Lacan procura mostrar que a psicanálise é capaz
de contar com uma psicopatologia própria, ou seja, que os
quadros clínicos há muito conhecidos pela psiquiatria e pela
medicina da alma, podem e devem ser redescritos segundo as
condições do método psicanalítico. Com isso Lacan conse­
gue despsiquiatrizar e desbiologizar a psicanálise sem que esta
deixe de ser uma clínica, no sentido mais rigoroso do termo.
Há, portanto, diagnóstico psicanalítico, mas ele não deve ser
entendido como detecção de uma doença orgânica ou de um
desvio moral, e sim como um diagnóstico das formas de relação
do sujeito com o outro, especificamente segundo o fenômeno
descrito por Freud como transferência. Há uma semiologia,
mas esta não é formada por um conjunto de signos estáveis
ou por um dicionário de sintomas, mas pela relação do sujeito
com sua própria fala, com a linguagem que esta pressupõe e
com os discursos que a organizam. Há ainda um método de
intervenção, mas este não eqüivale a um conjunto de proto­
colos técnicos que devem ser anonimamente seguidos. Final­
mente Lacan investigou sistematicamente a questão da causa
(Gianesi, 2011), descartou qualquer associação do inconscien­
te com a irracionalidade e estudou a profunda regularidade
estrutural dos sintomas, das inibições e das angústias. Ou seja,
há uma clínica psicanalítica e esta não é apenas importação

592
deformada ou mimetizada da clínica médica. Trata-se de uma
clínica autônoma capaz de oferecer seus próprios fundamentos
segundo o crivo, da razão e em acordo com critérios de cientifi­
cidade, justificação e transmissão que lhe seriam atinentes.
O segundo aspecto do programa clínico lacaniano corres­
ponde à crítica sistemática do exercício do poder na situação
de tratamento. Lacan entendeu primeiramente que isso se ori­
ginava na forma autocrática e subserviente como a formação
de analistas vinha sendo tratada nos anos 1940 e 1950. Ou
seja, após anos obedecendo regulamentos e mestres esta ex­
periência de dominação tendia a reproduzir-se no interior do
tratamento psicanalítico. O fato leva Lacan a pensar mais ra­
dicalmente esta vocação humana para a servidão voluntária e
para a alienação, relação esta que se atualiza nas formas de sin­
tomas, nos tipos de relação neurótica, perversa ou psicótica, e
que afinal definem uma espécie de desconhecimento sistemá­
tico do sujeito em relação a seu desejo. Distinguir a dimensão
imaginária da dimensão simbólica na condução do tratamen­
to seria assim um primeiro antídoto para que a “impotência
em sustentar autenticamente uma praxis [não se reduza] ao
exercício de um poder” (E: 1958d, p. 592). A pedagogia ou
ortopedia da alma, assim como a direção da consciência, rumo
à adaptação ou conformismo, figuram assim como anti-mode-
los para a psicanálise lacaniana. Neste sentido Lacan pretende
orientar o tratamento psicanalítico para uma espécie de dis­
solução das condições que o tornaram possível, ou seja, para
uma experiência radical de decomposição da ficção pela qual
o psicanalista apresenta-se como soberano mestre de nosso sa­
ber inconsciente (função também chamada de sujeito suposto
saber). Ou seja, aqui Lacan aparece como crítico radical da
superfície psicoterapêutica da psicanálise.
O terceiro aspecto saliente no projeto clínico de Lacan é sua
insistência de que este seja uma espécie de aventura da verda­
de. Recuperando a noção forte de experiência, como percurso
dialético e transformativo pelo qual um sujeito se encontra e

593
produz suas próprias condições de existência, a psicanálise co-
loca-se simultaneamente como um empreendimento de des­
coberta e invenção. Descoberta no sentido de que o trabalho
da associação livre em análise, a rememoração e a reapropria-
ção dos desejos desejados por uma vida, levam a uma espécie
de reconstituição simbólica do desejo. A descoberta de certas
regularidades, por exemplo, na gramática da vida amorosa ou
na recorrência de certas injunções da economia libidinal, pro­
duzem algum incremento de saber sobre a vida do paciente.
A lição clínica de Lacan começa pelo fato de que este saber,
obtido pelo processo de decifração do inconsciente, segundo
a rigorosa escuta da fala do paciente, com o menor acréscimo
possível de sentido, este saber não cura o sujeito. E fato que
isso produz efeitos de estabilização narcísica, de redução de
angústia e até de rearticulaçao das relações com a realidade
e seus laços constitutivos. Ou seja, há um efeito terapêutico
decorrente de tal forma de produzir um saber, de refazer uma
história, de recuperar as escolhas de um sujeito segundo de­
terminações que lhe escapam. Contudo uma psicanálise não
termina, mas começa neste ponto. Para Lacan uma experiên­
cia psicanalítica deve ser capaz de inventar uma verdade, deve
ser um acontecimento de verdade na vida de alguém. Não se
trata da verdade como conteúdo ou conjunto de saberes mais
ou menos confiáveis sobre si mesmo. A psicanálise, para La­
can, não é uma experiência de autoconhecimento, pois só se
pode conhecer propriamente objetos, conhecer-se a si mesmo
é tomar-se como objeto, portanto alienar-se, logo um contra-
senso diante da perspectiva lacaniana. A psicanálise tem mais
que ver com cuidar de si do que com conhecer a si.

Se o que nós fazemos, nós analistas, opera, é justamente


disso, que o sofrimento não é o sofrimento. Para dizer
o que é preciso dizer, é preciso dizer que o sofrimento é
um fato (...) Há sofrimento que é fato, quer dizer, que
oculta um dizer. E por esta ambigüidade que se refuta
que ele seja inultrapassável em sua manifestação. O so-

594
frimento quer ser sintoma, o que quer dizer, verdade.
(SXVI: 1968-69, p. 69)

E nesta direção que Lacan filia-se ao polo da cura e do


cuidado de si.
O quarto aspecto que caracteriza a clínica de orientação
lacaniana diz respeito ao que não pode ser curado, ou seja, ao
destino do intratável em um determinado sujeito. Aqui apare­
ce um traço anti-psicológico ou anti-filosófico marcante desta
concepção de experiência psicanalítica. Ou seja, ela se propõe
reduzir o sofrimento, dissolver certos sintomas, mas ela não é
capaz de acabar com o que Freud chamava de mal estar ( Un-
behagen). Tudo se passa como se no núcleo de certos sintomas
(mas não de todos), na forma cristalina de certas angústias
(mas não de todas) e no fundo no que há de pior na experiên­
cia de alguém, encontrássemos algo que precisa ser reconheci­
do ou destinado, mas não eliminado. E a ideia heideggeriana
de que a verdade da dor é a própria dor (Henry, 1963). E o
que Freud chamava de pulsão de morte e que compõe um ver­
dadeiro divisor de águas dentro da história da psicanálise entre
aqueles que admitem e aqueles que recusam tal conceito. La­
can leu esta noção de várias maneiras: como repetição insidio-
sa que atravessa a vida de alguém, como fascinação neurótica
pelo trauma, como lugar de retorno da alucinação, como uma
espécie de molde às avessas para nossa própria sexualidade e
eventualmente para o masoquismo. A esta série de fenômenos
clínicos e de constatações em torno da forma como lidamos
com certas condições como a finitude, o desamparo e a dife­
rença sexual, Lacan deu o nome de Real.
Portanto, (1) autonomia clínica aliada à universalidade
psicopatológica, (2) crítica das formas terapêuticas de poder
e alienação, (3) cuidado de si como aventura ética da verdade
e (4) realismo dos limites da experiência, são suficientes para
delimitar o que venho chamando de uma política da psicaná­
lise. Contudo é preciso levar em conta que uma política, aqui

595
abordada segundo as razões e fins de sua prática, define-se,
precisamente, pela existência de outras políticas. Ou seja, ou­
tras formas de tomar posição em um campo que é reconheci­
do, em seu conjunto, como psicanalítico.
Detectamos no projeto de Lacan uma política para a psi­
canálise, mas ela não é em absoluto correlata das políticas là-
canianas. O mesmo se poderia verificar em relação a outras
matrizes teóricas e outras escolas culturalmente definidas.

14.3. ESPAÇO, LUGAR E POSIÇÃO


Há duas maneiras tradicionais de analisar as relações de po­
der: o modelo baseado no direito, no qual se privilegia as leis,
as proibições e as instituições, e o modelo baseado na guerra,
no qual se privilegia os temas da força, da estratégia e da se­
gurança (Foucault, 1979, p. 241). Se o nascimento da clínica
está intimamente ligado à primeira forma, a invenção da psi­
coterapia partilha da segunda.
Surgiria, assim, uma geografia espontânea, dentro da psica­
nálise, entre as práticas de fraternidade, as estratégias de liberda­
de e as políticas de igualdade. Os diferentes tipos de individu­
alismo que a psicanálise carrega em seu interior encontrariam,
assim, uma redistribuição. Não estamos falando de categorias
que delimitam o discurso terapêutico do ponto de vista da pró­
pria psicanálise, mas da inscrição da psicanálise nas práticas de
subjetivação da modernidade. Ou seja, ela participa como dis­
positivo de saber e tratamento, mas também na forma como
pensamos sobre nós mesmos, nos instrumentos discursivos de
uma tecnologia de si e em suas formas coextensivas de poder.
Vemos que a noção de cura, desde os helênicos até Mon­
taigne e Pinei, tem em comum uma política da transferência.
Esta política resume-se a manter aberto o espaço que constitui
O político, o que só pode ser feito pela renúncia da confian­
ça irrestrita em as políticas e da segurança fornecida por uma
atitude militante. Lembremos que, na tradição do cuidado de

596
si, trata-se justamente de abrir ao sujeito a dimensão do poder
(A política.) e separá-lo do engajamento instrumental numa
política específica (as políticas).
A retórica, as terapias narrativas por conversão, compro­
misso ou submissão situam-se como um conjunto de táticas
psicoterapeuticas. Procuram refazer a cesura, a divisão e a frag­
mentação que, por vezes, elas mesmas acabam induzindo por
meio da recomposição de posições. Ou seja, elas ressituam o
sujeito no mundo, fixam-lhe uma posição ou transformam
hermeneuticamente a realidade para que sua posição se man­
tenha ou se modifique. As estratégias clínicas como as que
encontramos no polo de ocupação positiva do espaço antro­
pológico delimitado por Kant, ou no polo de ocupação nega­
tiva desse espaço, representado por Hegel, estão interessadas
na transformação de lugares.
Apresentemos, então, nosso argumento. Toda forma de po­
der exercido no tratamento deriva da injunção entre a posição
do sujeito, o lugar que este ocupa num discurso e o espaço que
o condiciona e limita. O poder funciona pela unificação e pela
homogeneização entre espaço, lugar e posição: “(...) uma or­
dem particular se unifica num conhecimento mais universal,
em que a ética desemboca numa política e, mais além, numa
imitação da ordem cósmica” (SVII: 1959-60, p. 33).
Pelo fato de que esta montagem é heterogênea, pode-se
pensar que em qualquer forma de poder há uma zona de re­
sistência que lhe é coextensiva. E a tentativa de incorporar
a exceção ao universal. Há resistências que se realizam como
uma espécie de efeito estrutural da heterogeneidade entre o
espaço que é pressuposto em cada forma-poder e os lugares
e, subsidiariamente, entre os lugares e as posições. Penso que
são esses efeitos de resistência e incorporação que Foucault
estudou ao analisar as práticas de individualização nas formas
disciplinares da modernidade. Esta heterogeneidade aparece
em categorias como enunciado, dispositivo e discurso (Fou­
cault, 1969).
Lembremos que a referência ao espaço acompanhou toda
nossa trajetória sobre a constituição do tratamento psicana­
lítico. Desde o seu início nas práticas narrativas, xamânicas
e trágicas, a ideia de um restabelecimento em lugares e posi­
ções é marcante. Também na retórica e nas técnicas médicas
da antiguidade, verificamos esta preocupação em sincronizar
espaço e posição, ou posição e lugar, através de uma reflexão
sobre o tempo e o lugar. Contudo, é em torno das práticas
concernentes ao cuidado de si que vimos, pela primeira vez,
aparecer uma reflexão sistemática sobre o descompasso e a se­
paração entre o espaço político e os lugares éticos da enuncia­
ção da verdade de uma experiência. Montaigne recuperou essa
disjunção e a distendeu numa prática singular de cura. Vimos
em Descartes a profunda afinidade entre sua teoria da consti­
tuição do sujeito e uma nova concepção de espaço trazida por
Galileu e Copérnico. Sabemos tratar-se de noções distintas de
espaço; contudo, a persistência dessa alegoria é sugestiva. São
essas estratégias de migração, de redução e de assujeitamento
lógico-político que definem o campo das práticas psicanalí-
ticas. Ainda na modernidade, nos empenhamos em mostrar
como é na habitação de um espaço antropológico, fixado por
Kant, numa relação de inversão negativa das categorias da Ra­
zão Pura e da Razão Prática, que se pode compreender tan­
to a formação da clínica médica quanto psiquiátrica e ainda
psicanalítica. Não seria, assim, Hegel o melhor exemplo de
como essa totalidade pode conter dentro de si uma contradi­
ção imanente?
O real, cuja referência política é o território, se tenciona
com o real cuja referência ética é a morada. O espaço perma­
nece, todavia, contínuo. Esta é uma das premissas mais cons­
tantes da onto-teologia e da metafísica ocidental:

A questão fundamental que envolve esse tipo de liberdade


política é ser um constructo espacial. Aquele que deixa a sua
pólis, ou dela é banido, perde não apenas sua terra natal ou

598
pátria: perde também o único espaço onde pode ser livre —e
a companhia dos seus iguais. (Arendt, 2008, p. 173)

Nessa repli cação do espaço político ao lugar, se expressa


simetricamente uma tendência a considerar que o lugar inclui
e contém, necessariamente, o conjunto exaustivo das posições,
assim como o gênero contém a totalidade das espécies. Por
intermédio de uma gramática da inclusão e da exclusão, fomos
levados a supor que toda posição se inclui num lugar, ambos
reunidos num espaço assim tornado invisível e homogêneo...
como o poder que nele se exerce.
Pretendi contribuir para a desconstrução desta ideia a par­
tir da premissa de que nem sempre o espaço considerado para
pensar o lugar precisa ser contínuo ao espaço considerado para
pensar a posição (Dunker, 2003b). Esta determinação é política
e lógica, sem que ambas se confundam no mesmo movimento.
Napoleão afirmou, primeiro, que a geografia é o destino, e
depois, que a forma moderna do destino é a política. A feli­
cidade tornou-se um fator político por meio dessa operação.
Um efeito dessa espécie de fechamento do espaço político
propriamente dito é sua inteira distribuição pela ética, pela
economia (esta ciência da infelicidade), pelas formas jurídicas
e pelas tecnologias de si. Foucault percebeu esse movimento,
e suas tematizações críticas em relação à psicanálise têm regu­
larmente esse endereço.
(1) A psicanálise participa do dispositivo de sexualidade ao
fixar a verdade do sujeito na enunciação contínua e repressiva
de seu próprio desejo sexual (1976). A teoria da perversão e
da sexualidade são os índices conceituais desse movimento de
posicionamento do sujeito;
(2) A psicanálise participa de um discurso que fixa o dis­
positivo de sexualidade ao dispositivo de aliança, permitindo
uma sólida combinação entre o poder público representado
pelas disciplinas sociais e a forma-poder verificada no interior
da família (1977a). A teoria do complexo de Edipo é o me­

599
lhor exemplo conceituai .desta operação de ligação entre lugar
e posição. A incitação do desejo pelos pais é correlativa ao
dispositivo de medicalização da família - logo, longe de ser in­
tolerável, a ideia do incesto está na origem mesma da pastoral
da carne (1974-75, p. 341);
(3) A psicanálise faz parte de uma estratégia repressiva que
se verifica, em sua prática, na forma de uma variante do dispo­
sitivo jurídico-moral de confissão (1975c). A transferência e a
rememoração são os rastros nocionais dessa tática de articula­
ção entre posição e lugar; e
(4) A psicanálise faz parte de um longo processo de silen-
ciamento da loucura e expropriação de sua verdade, contri­
buindo e inovando no processo de patologização e individua-
lização de sua experiência (1961). Aqui está em jogo os limites
e alcances pelos quais a psicopatologia psicanalítica é capaz de
reconhecer e redescrever os quadros psiquiátricos. A desconti-
nuidade estrutural e a continuidade fenomenológica entre as
superfícies que determinam o espaço antropológico sobre o
qual o patológico se firma ara ambos envolve o Real, em chave
negativa ou positiva.
As objeções de Foucault são todas pertinentes. E irrefutável
que a implantação social da psicanálise deve muito à sua com­
posição com estas operações de unificação entre espaço, lugar
e posição. Recusar isso é recusar que a psicanálise tem uma
história e que sua constituição não é hagiográfica nem orien­
tada pela divina providência do corte. Ocorre que nenhuma
forma de discurso constituído pode garantir um lugar de resis­
tência desconstrutiva ou crítica, pois sua constituição já é, em
si, uma articulação ideológica, uma captura num espaço que
o antecede. A crítica depende da experiência, e é nela que se
pode tencionar as relações entre espaço, lugar e posição.
Em termos lacanianos, podemos dizer que a política do tra­
tamento decorre basicamente de como se concebe o lugar do
Outro e como se entende a posição do sujeito na fantasia. Lu­
gar do Outro e posição do sujeito são duas noções que reme­

600
tem ao espaço ético-discursivo no qual se desenrola uma análise
que, no melhor dos casos, produz a experiência de um objeto
irredutível ao espaço que o tornou possível. SupÕe-se, assim,
que uma análise tem uma tripla tarefa do ponto de vista de sua
política: (1) permitir ao sujeito verificar a contingência de sua
posição fantasmática; (2) realizar a experiência de tornar o lugar
do Outro um lugar não inteiramente consistente; e (3) intro­
duzir um objeto resistente à sua integração no espaço uniforme
entre o sujeito e o Outro. Daí a importância de uma disjunção
entre os saberes que compõem a referência de sua clínica.
Uma pequena observação sobre estas categorias na obra de
Lacan. O seminário sobre a Etica da Psicanálise (SVIL1959-
60) costuma despertar a atenção dos comentaristas como um
seminário anômalo. Ele representa uma espécie de parêntese
e inversão no programa de investigação lacaniano. Nos seis
primeiros seminários, bem como nos textos posteriores ao es­
tádio do espelho, verificamos um aprofundamento contínuo
do projeto de Lacan em propor uma teoria da constituição do
sujeito, apoiada na reflexão freudiana sobre o narcisismo e na
dialética de Hegel lida na chave de Kojève.
Isso se combina com uma espécie de programa paralelo,
baseado no refinamento progressivo de uma investigação so­
bre as formas de mediação simbólicas que permitem pensar
o inconsciente de modo estrutural. O resultado é um pen­
samento que identifica o desejo como efeito de uma rede de
lugares que sobredeterminam a posição do sujeito. A tarefa da
análise seria a de desfazer a alienação que impede o reconheci­
mento do valor constitutivo desta rede de lugares denominada
de Outro. O Outro é definido como lugar da linguagem. Mas,
então, qual seria a natureza desses lugares? Em que domínio
se poderia encontrar sua referência? Diante de uma pergunta
direta acerca da ontologia do inconsciente, a resposta de La­
can é assertiva: “O estatuto do inconsciente não é ontológico,
mas ético” (SXI: 1964a). Logo, é também a lugares éticos que
se refere quando se fala de lugar em psicanálise. Ao contrário

601
dos lugares lógicos, o lugar ético tem uma história e implica
uma política.
Do ponto de vista metodológico, a investigação sobre os me­
diadores simbólicos do desejo apoia-se fortemente no estrutu­
ral is mo lingüístico, mas também em aproximações com a ma­
temática, particularmente com alguns aspectos introdutórios da
topologia: a teoria das séries, os grafos e o grupo de Klein. O
resultado disso se encontra formalizado no esquema da estru­
tura da fala (SIII: 1955-56), no grafo do desejo (SV:1957-58),
na teoria do sujeito desenvolvida a partir da leitura de A Carta
Roubada (SII: 1954-55) ou na tentativa de apreensão topoló­
gica dos desenvolvimentos clínicos da fobia do Pequeno Hans
(SIV: 1956-57). O uso da topologia marca e caracteriza forte­
mente o período anterior ao Seminário da Ética.
Igualmente, se examinamos o período posterior ao Semi­
nário da Ética e aos dois artigos que lhe são correspondentes,
Direção da Cura e os Princípios de seu Poder (1958d) e K ant com
Sade (1963a), vemos que o uso da topologia é constante. Nes­
ta medida, as noções de espaço, lugar e posição vão perdendo
seu valor metafórico e adquirindo um emprego progressiva­
mente formal. Considerando a seqüência de seminários ime­
diatamente posteriores ao da ética, observamos que mesmo o
giro temático da análise do desejo para a análise da pulsao pre­
serva a forte presença metodológica de categorias topológicas.
Se há, então, esta constância metodológica da topologia
antes e depois do seminário da ética, por que nele não en­
contramos nenhuma menção sequer às relações entre a ética e
o espaço, ou à relação entre ética e matemática? O problema
torna-se ainda mais intrigante se lembramos que tal aproxima­
ção é patente em autores admirados e conhecidos por Lacan,
tais como Espinosa e Nicolau de Cusa.
Segundo nossa hipótese, essa ausência das referências to­
pológicas na temática ética marca uma posição política em
Lacan. Isso pode ajudar a justificar a ideia de que uma lógica
completa, que unifique lugar, espaço e posição, é justamen­

602
te o que se deve evitar em psicanálise. Isso corresponderia a
uma espécie de patologia política da clínica e da cura (Dunker,
2003c). Em outras palavras, a estrutura lógica do tratamento
não se reúne nem se dissolve na totalidade formada pelo espa­
ço da clínica, da cura e da psicoterapia.
Autores de extração lacaniana, interessados no tema da
política, têm insistido em aspectos diferentes de nosso argu­
mento. Os teóricos da democracia radical (Laclau, 2000) têm
reforçado a ideia de que é preciso separar O Político de as p olíti­
cas para pensar o antagonismo social que constitui o primeiro
caso sem reduzi-lo às práticas de articulação de demandas em
torno de significantes flutuantes (floating signifiers), que espe­
cificam a segunda situação. Sua crítica da democracia baseada
na confiança excessiva da noção de representação se ampara
na ideia de que o lugar do poder se tornou um lugar vazio,
que não deve ser ocupado hege monica mente por nenhuma
posição (Stravrakakis, 1999, p. 123). Deslocando a noção la­
caniana de que o Outro não existe, eles afirmam que A So­
ciedade nao existe. Ou seja, a unificação do espaço político é
decorrente da contingência, não da exclusão ou da eliminação
das posições que indicam a sua falha. Esta interpretação de La­
can explora, principalmente, a ideia de um universal fraturado
como definidora do espaço político.
Os autores ligados à escola eslovena de psicanálise (Zizek,
2002) têm insistido em outro aspecto do problema. Para eles,
é na ideia de ato e em sua correlação ao ato político que se
mostraria não apenas a negatividade que funda o universal da
política, mas a queda de um objeto que não lhe é incorporável.
Ou seja, a totalidade imaginária formada pelo espaço político
pode ser decomposta por uma subversão específica da relação
entre o lugar e a posição, que corresponde a uma leitura possí­
vel da noção de ato em Lacan.
A perspectiva pós-marxista assumida por Badiou (1996)
investe na recuperação da noção de verdade para estabelecer
uma nova teoria do sujeito. Examinando rigorosamente as re­

603
laçÕes entre lógica e ontologia, ele parece buscar uma espécie
de rede de paradoxos entre a dimensão do lugar, do espaço e da
posição. Encontramos aqui a noção de evento como aparição
de uma anomalia contingente no espaço político, coextensivo,
para este autor, ao lugar do amor e da estética em nossa época.
O evento é uma posição fora de lugar. Badiou detalha o tipo de
relação problemática entre os diferentes modos do sujeito em
seu percurso de verdade: o indiscernível, o indecidível, a no­
meação, o forçamento e a fidelidade. Seu trabalho dá preciosas
indicações sobre a relação não totalizável entre lógica e política.
Finalmente, a perspectiva desenvolvida pelo Grupo de Man-
chester de Psicanálise de orientação social crítica (Parker, 2007,
2008; Burman, 2008) envolve uma abordagem sistemática das
formas de reificação da psicopatologia. Centrados na formação
histórico-social de demandas de tratamento, tais trabalhos exa­
minam a criação e o funcionamento da autoridade discursiva na
construção psicoterapêutica da subjetividade.
Tais empreendimentos críticos situam-se fora do escopo es­
pecífico deste trabalho. Se os menciono, é para sugerir uma ho-
mologia possível com a noção de política em teoria social. No
entanto, o impacto deste tipo de investigação sobre os modos
de inscrição social e cultural da psicanálise ainda está longe de
ser sentido^ A tentativa de enfrentar problemas institucionais e
associativos, bem como corporativos e propriamente políticos,
usando diretamente a teoria clínica psicanalítica sem media­
ção - ou, inversamente, separando completamente a psicaná­
lise como método e a ação pública das pessoas que exercem a
psicanálise - são efeitos de invisibilização do espaço político
da clínica, da cura e da psicoterapia, e conseqüente ocupação
positiva de lugares em formas discursivas pré- definidas.
De maneira inversa, é preciso mencionar outro entendi­
mento possível de política que se encontra, por exemplo, na
ideia de política do sintoma no interior do campo psicanalítico.
Esta acepção remete ao tema da escolha da neurose, das estru­
turas e tipos clínicos. A experiência psicanalítica poderia favo­

604
r

recer no analisante a invenção de outra política como posição


de escolha e responsabilidade diante de seus destinos de gozo
(Goldenberg, 1994, p. 94). Este encaminhamento enfatiza a
política do lado do analisante, mas deixa em branco seu cor­
relato do lado do analista. O problema é que essa posição em
branco, coerente com os princípios genéricos da abstinência,
da liberdade associativa e do desejo de analista como desejo
de obter a pura diferença, é ainda uma posição. Uma posi­
ção política baseada numa ontologia negativa do espaço po­
lítico. O argumento de que ela seria uma posição e um lugar
restritamente ético corta qualquer possibilidade de tematizar
objeções importantes, por exemplo, como as de Foucault. O
segundo problema desta posição é que ela tende a restringir a
conotação de ética ao âmbito da particularidade. Novamente,
não é falso, mas também não inteiramente verdadeiro. O in­
teressante na maneira como'Lacan pensa a ética não está em
sua decorrência possível para justificar os costumes de uma co­
munidade de analistas ou uma deontologia formal da situação
de tratamento. Sua radicalidade reside no fato de que ela não
renuncia à universalidade. Ela se constitui na fratura mesma
desta universalidade e na demonstração prática de sua impos­
sibilidade e existência. Portanto, não deveria ser usada como
argumento para legitimar toda e qualquer ação terapêutica.
A noção de política em psicanálise poderia encontrar ainda
uma terceira conotação. É aquela na qual ela se inscreve no
âmbito das políticas da felicidade, na mesma direção em que
Freud (1930a, p. 69) fala nas técnicas de felicidade: fugir do
desprazer, procurar o prazer, adormecer ou excitar os prazeres
do corpo (erótica), diminuir o peso da natureza sobre o ho­
mem ou reduzir as exigências que a civilização lhe impõe. As
indicações psicanalíticas sobre esse ponto sao, de fato, escassas,
mas existem: amar e trabalhar. Cada qual deve encontrar a so­
lução que lhe for possível, transformar o sofrimento neurótico
em miséria banal. Lacan não hesitou em dizer que os pacientes
nos pedem a felicidade, e que alguma resposta a psicanálise

605
lhes dá, mesmo que subverta os parâmetros do pedido. Tais
parâmetros são históricos: os ideais do amor concluído, da au­
tenticidade e da nao dependência (SVTI: 1959-60, pp. 17-19).
Portanto, há políticas da felicidade às quais os psicanalistas se
dedicam em face da singularidade de seus pacientes. A preo­
cupação e o tom que rondam esse aspecto do problema enfati­
zam a dimensão negativa: não prometer a cura, não procurá-la
com excessiva ganância, não fixar-se num ideal de felicidade,
evitar o fu ro r curandis. E uma política menor, política pruden­
te, mas que nao descarta uma forma específica de liberdade
que não seja a realização delirante, mas compatível com uma
experiência da verdade.
Observemos como as principais imagens usadas para de­
signar a posição e o lugar do analista na cura são imagens que
apontam para uma espécie de deslocamento ou descentra-
mento em relação ao próprio lugar em que se está. É o caso do
estrangeiro (Koltai, 2000), do imigrante, do viajante (Calliga-
ris, 1999), do poeta (Kehl, 2002), do passador (Fingerman &
Dias, 2005), do santo errante (saint hommè) (Teixeira, 1999)
e do bobo da corte. Isso para nao mencionar as situações in-
tervalares, tais como entre duas mortes, entre a implicação e a
reserva (Figueiredo & Coelho, 2000), ou as condições ilocali-
záveis entre as quais a utopia (Souza, 2006), a atopia (como no
desejo de Sócrates) e a distopia. Se o analista deve estar à altura
de seu tempo, ele parece estar sempre um pouco fora de lugar.
Ao contrário dessas imagens, nossos pacientes são usualmente
apresentados como pessoas que estão fixadas a modos de gozo,
presas em seus circuitos imaginários, identificadas a posições
ou alienadas a lugares.
Estou sugerindo que é exatamente a ambigüidade discursiva
da noção de cura, que não encontramos na ideia de tratamento
e muito menos na de restabelecimento, que se verifica na raiz
histórica desta transitividade entre espaço, lugar e posição.

606
CONCLUSÃO

CLÍNICA, CURA E PSICOTERAPIA

Mas você se convencerá de que é uma grande


ambição se conseguimos transformar a miscria
histérica em infortúnio ordinário.
Freud

I
NICIAMOS NOSSO PERCURSO ASSINALANDO A IMPORTÂNCIA DE
distinguir, no espectro mais amplo do tratamento (Behan-
dlung) as noções de cura (Kur), de psicoterapia (Psychotherapie)
e clínica (K linic). Vimos em seguida que tais noções formavam
zonas de compromisso como se verificou na noção de restabe­
lecimento (H eilung), localizada entre a cura e a terapia, bem
como a noção de saúde (Genesung), localizada entre a clínica
e a cura. Foi, de fato, pela noção de restabelecimento, como
retorno a um estado anterior, que pudemos compreender as
primeiras estratégias de tratamento baseadas no compromisso
e na noção de reequilibração narrativa do indivíduo à totali­
dade simbólica na qual este se reconhece compreendido. Se as
curas xamânicas estão para as sociedades holistas assim como
o tratamento psicanalítico está para as sociedades modernas,
tornou-se importante explicar a diferença no estatuto da efi­
cácia simbólica, quando se passa do mito coletivo ao mito in­
dividual do neurótico. Surgiu aqui uma primeira dissociação
ética entre a eficácia do tratamento e a excelência da cura. Esta
última nos levou ao problema da origem e legitimidade do
poder e da autoridade nas práticas de tratamento do mal-estar
e redução do sofrimento.
O nascimento da medicina grega nos ofereceu três modelos
para este problema. O primeiro, representado por Empédo­
cles, parece não renunciar a excelência do prático e exige que
este mantenha uma relação específica com a verdade e com o
Real para que o tratamento se realize. O segundo, representa­
do por Hipócrates, enfatiza a dimensão do cuidado, referindo
a origem do poder da cura a um sistema de transmissão de
saber compartilhado, baseado na tradição e no juramento. O
modelo platônico subordina a prática médica como caso par­
ticular da relação com o saber, unindo pela primeira vez a hie­
rarquia epistêmica com a ética. Se estes consideram a doença
como dotada de um percurso narrativo e de uma história, o
primeiro sugere a importância de atos capazes de lhe alterar
o destino, enquanto o segundo dirige-se a modular os seus
tempos e aceitar seu ciclo próprio, enquanto o terceiro univer­
saliza o sentido do adoecimento.
Menos do que uma resposta para essa relação entre poder
e verdade, a tragédia grega indica um novo desenvolvimento
desta questão. Isso nos permitiu examinar como a verdade de
que se trata não pode ser enunciada fora do espaço da ficção
que marcará, a partir de então, o teatro como um dos lugares
fundamentais da cura e da terapia. Tanto pelo seu caráter não
tético quanto por sua ligação ao tempo, este novo regime de
ligação entre verdade e poder como um ultrapassamento (hy-
bris), fonte de perturbação da pólis decorrente do mal-estar que
ainda não pode ser nomeado, quer como sintoma, quer como
sofrimento individualizado. O uso que a psicanálise reencontra
para a noção de catharsis não pode ser reduzir nem à sua com­
preensão platônica, de expurgo e exclusão do mal, nem ao seu
entendimento aristotélico, como momento de reconciliação e

608
integração do mal às condições que o tornaram possível. Suge­
rimos, assim, a noção de catharsis desintegrativa para exprimir o
caráter irreconciliável das estruturas familiares ao universo polí­
tico. Há aqui um divisor de águas para a psicanálise em termos
do uso terapêutico-narrativo de suas estruturas trágicas funda­
mentais: o narcisismo, o Complexo de Edipo e a pulsão de mor­
te. Um ponto que tensiona as ambições do tratamento entre a
dimensão política da cura e da terapia. Não há como descartar
a função integrativa, terapêutica e reconciliatória que as nar­
rativas edípicas e narcísicas facultam ao longo do tratamento.
Sua importância para a construção semiológica ou diagnostica
do caso é decisiva. Ocorre que ao lado da catharsis integrativa,
pela qual a psicanálise oferece uma experiência de elaboração e
produção de sentido, existe uma experiência induzida ao modo
de uma catharsis desintegrativa. Consequentemente a ética trá­
gica em psicanálise acusa uma primeira partilha política entre
clínica, terapia e cura. Uma primeira partilha da verdade como
disjunção entre saber, poder e desejar, segundo as diferentes mo­
dalidades de nomeação paterna.
As principais questões ditas técnicas da psicanálise são re­
encontradas num primeiro sistema de reflexão e intervenção
sobre os discursos, que é a retórica. A interpretação, a diagnos­
tica, a transferência e até mesmo a temporalidade da lingua­
gem e a extensão das sessões podem ser pensadas em termos
dos tópicos retóricos da antiguidade. Como técnica de mane­
jo da linguagem, a retórica jamais deixou de ser questionada
quanto às suas ligações com as mais diferentes estratégias de
poder. A ficcionalidade introduzida pela tragédia se desdobra­
ria, assim, em substituição radical da verdade pela verossimi­
lhança, da certeza pela persuasão, da evidência pela sincerida­
de. A excelência retórica não contempla dignidade ontológica
alguma para a função de agente de um discurso, mas também
não tolera participação do desejo. A retórica é o campo da for­
mação de semblantes que unem narrativas e discursos. Quer
pela estrutura narrativa da doença, quer pelo tipo de formação

609
cultural que se verifica na tragédia e ainda pela participação da
mítica na concepção de cura, a psicanálise é um tratamento
que opera sobre narrativas e com narrativas. Todos os sinais
clínicos e as estruturas das quais se ocupa são redefiníveis em
termos narrativos. Para isso, podem ser usados instrumentos
que, num nível formal superior, permitem descrever e operar
sobre a estrutura da narrativa nas categorias lógicas, discursi­
vas ou lingüísticas que se queira. Tentamos mostrar como isso
se aplica à estrutura temporal a sessão psicanalítica, aos lugares
e os paradoxos que constituem sua prática interpretativa.
E como uma espécie de complemento invertido para a re­
tórica que encontramos, no período helenístico, as práticas do
cuidado de si (epimeléía heatou), de onde se extraiu uma refe­
rência arqueológica para a noção de cura {Kur, Sorge). Desde
a condição enigmática e atópica que se pode intuir do desejo
de Sócrates em seus diferentes encontros com Alcebíades, até
sua diluição na figura de um diretor de consciência, insinua-se
um espaço no qual, pela primeira vez, examina-se de forma
sistemática e metódica as condições pelas quais um sujeito se
transforma em sua relação problemática e continuada com a
verdade, na experiência de fala com o outro. Não se trata de
uma verdade interior, muito menos uma verdade individual;
contudo ocorrente no espaço limítrofe e.ntre a ética e políti­
ca. Encontramos, assim, a ideia de que nao há outro ponto,
primeiro e último, de resistência ao poder político senão na
relação a si. Neste sentido, o projeto de uma dominação de si é
tão problemático quanto a dominação do outro. Combinação
entre arte e medicina da alma, entre filosofia e ciência da vida
cotidiana, o cuidado de si nos oferece um novo repertório de
temas e táticas que a psicanálise virá a retomar: a interpretação
dos sonhos, o método de cura, a meditação, a importância da
relação de fala, da rememoração e a implicação do sujeito em
seu próprio destino. São exemplos de práticas para realização
desse giro para si e retorno ao outro. Aqui se poderia ver ape­
nas uma forma ética precária, fruto da desintegração do impé­

610
rio grego e do nascente cristianismo latino. Insisto, de outro
modo, que aqui se verifica um tipo especial de política, uma
política da inevitabilidade das políticas, se assim for possível
dizer. E compreensível que o cuidado de si tenha sido a matriz
sobre a qual se erigem os dispositivos de confissão, de sexuali­
dade e de conversão. Mas o próprio percurso mostra que essa
assimilação não é necessária, mas contingência da instalação
de uma nova forma de poder, que unifica lugar, espaço e posi­
ção, discursiva e politicamente.
A forma mais bem-acabada dessa montagem que vai da
cura à sua incorporação pelo poder se expressa nas curas tau-
matárgicas ao tempo da emergência do absolutismo no sécu­
lo XVI. O surgimento da modernidade, tanto em sua matriz
disciplinar quanto nas reações liberal e romântica, tem como
característica a ocupação do lugar da cura pelo espaço políti­
co do poder positivo. Sua administração, sua organização e
sua legitimação são também o paradoxal controle da liberda­
de. Tudo se passa como se a liberdade possível fosse também
aquela que é imediatamente realizada como perdida. Isso não
significa que a cura tenha deixado de conter o ideal crítico de
liberdade. Ocorre que ela se torna impensável pelos próprios
dispositivos que a tornam possível. Encontramos aqui a figura
de Montaigne como exemplo de como esta vertente de resis­
tência ao poder sobrevive no mesmo espaço de administração
e controle da cura. Sua estratégia discursiva inverte o lugar até
então conferido à escrita. De forma maior de sedimentação
e luta contra a perenidade das formas jurídicas e morais, a
escrita adquire sentido terapêutico, transitório e marcado pela
problemática do sujeito. Sua inspiração não é deontológica
ou programática, mas cética. Assim como no cuidado de si,
verdade e ceticismo não são duas posições necessariamente ex-
cludentes. Ocorre que a experiência da verdade é diferente do
discurso sobre a verdade. Deste modo Montaigne consegue
praticar um tipo de conversão, no sentido de retorno a si, e
um tipo de reforma de si, no sentido de investigação trans-

611
formativa, que se inscreve num discurso totalmente diverso.
Um bom exemplo de como um discurso não domina todas as
narrativas que nele se inspiram.
Descartes e o século XVII assistiram ao remanejamento das
relações entre verdade e tratamento. Ela não é mais exterior
ao sujeito nem fixada à experiência da amizade e da escrita de
si. Ao mesmo tempo, ela é profundamente própria, confor­
me essa nova técnica da meditação praticada por Descartes, e
universal, conforme as relações estabelecidas entre existência
e pensamento. Assim deflacionada de seu potencial ético ou
estético, a verdade torna-se acessível a todos, sem um percur­
so transformativo. Ela se torna, inversamente, destituída do
poder de curar. Ou ainda, há um processo de cura da verdade
assim concebida por meio do exercício crítico da razão. Inau-
gura-se, assim, um sujeito condenado a uma moral provisória.
O aprofundamento da vertente ligada ao conhecimento de si é
uma espécie de sintoma desta situação. Se o mundo moderno
implica unificação de todos os sistemas simbólicos na forma
de um Outro consistente, a alma de vidro, que lhe é correlati-
va, só admite tratamentos (Behandlung), nunca a cura. Nasce
aqui a disjunção entre os métodos formais de abordagem do
Real e a experiência própria da verdade. Nasce aqui a condição
de emergência da psicanálise como método clínico para tratar
o retorno do que será foracluído pela modernidade cartesiana.
O século XVIII parece suspeitar desse programa e interes-
sa-se por seus limites. O tratamento crítico da razão passa,
então, à condição de exercício da liberdade e fonte de resis­
tência ao poder ilegítimo. Kant nos serviu para caracterizar o
patológico como experiência de perda de liberdade. Ponto de
inflexão das duas meta-diagnósticas da modernidade basea­
das contraditoriamente no excesso de experiências improdu­
tivas de determinação e no déficit de experiências produtivas
de indeterminação. Kant é também o grau zero da separação
entre a questão filosófica do mal-estar, a questão antropoló­
gica do sofrimento e questão clínica do sintoma. Os destinos

612
da antropologia kantiana, em que pese o caráter precário de
sua primeira formulação, determina um campo de estraté­
gias de poder sob o qual se instalarão as diferentes práticas
de tratamento. Kant situa as condições para a configuração
moderna das relações entre cura, terapia e clínica. A teoria da
constituição do sujeito, a teoria da formação de sintomas, a
teoria da construção da fantasia são expressões teóricas desta
disjunção. O problema assim legado por Kant admite diversos
encaminhamentos. Para a vertente terapêutica o patológico é
mero desvio a ser corrigido pela educação e pelo esclarecimen­
to. Para a vertente da clínica o patológico se autonomiza da
dimensão ético-política. Finalmente, para a tradição da cura
interpreta-se que o homem é um constructo de valor negativo
e sua não paridade ética, epistêmica ou estética com o que
deveria ser (sollen werden) não é efeito de contingência. Temos
aqui Schoppenhauer e Nietszche, na tradição filosófica, e cer­
tas formas de romantismo, na tradição estética. A psicanálise
encontrará articulações dispersas e heterogêneas entre essas
três heranças kantianas.
Encontramos em Hegel uma articulação possível dessas três
estratégias que decorrem do iluminismo kantiano. Há, por um
lado, uma antropologia negativa, baseada na atividade de nega­
ção pelo trabalho, pelo desejo e pela linguagem, como ressaltou
Kojéve. Por outro lado, há o momento específico da formação
(.Bildung) pelo qual o reconhecimento da alienação se mostra
em formas positivas e sistemáticas na relação com o outro e com
a própria história, como ressaltou Hyppolite. Finalmente, há o
Hegel que pensou a lógica primária das relações de negativida-
de, incluindo o nível ontológico. Hegel é uma ótima referência,
independentemente da adesão às suas teses específicas, de como
a noção de alienação permanece útil para a reflexão sobre o su­
jeito em sua relação ao poder e à verdade.
As diferentes práticas examinadas neste livro não devem ser
pensada como unidades homogêneas. Práticas como a retóri­
ca, a tragédia, a medicina da antiguidade ou o cuidado de si,

613
são reconfiguradas por sua inscrição em discursos, sejam eles,
filosóficos, morais, literários ou jurídicos. Entre o discurso sobre
a prática e o ato, propriamente dito, há um hiato que a noção
de dispositivo vem a encobrir e revelar. A prática psicanalítica
não escapa a esta regra. Tentei mostrar que a heterogeneidade
é constitutiva da própria prática psicanalítica porque já é uma
propriedade que encontramos nas práticas que a constituíram
historicamente como tal. Desta maneira espero ter contribuí­
do para uma definição menos nominalista e menos institucio-
nalista da prática psicanalítica. Talvez uma série de oposições
conceituais, vividas como cortes epistemológicos, entre escolas
e orientações clínicas, ou entre modelos formativos possam ser
reconsideradas a partir desta arqueologia da prática.
Este ensaio de topologia histórica escolheu algumas inter-
secções básicas para construir as superfícies necessárias para
pensar a prática psicanalítica. Neste sentido a hipótese de que
uma prática precisa perder ou renunciar a algo para se consti­
tuir como tal mostrou-se eficiente. Uma clínica que se torna
possível a partir de uma determinada consciência da perda,
que caracteriza modernidade, não poderia ser pensada sem in­
tegrar em sua própria história um conceito que incorporasse
tal perda como Real. A neutralização da experiência da ver­
dade foi necessária para a constituição histórica da superfície
da clínica. Inversamente a perda ou renúncia ao exercício do
poder foi necessária para a constituição da superfície da cura.
Assim como na superfície da psicoterapia foi necessário sus­
pender ou relativizar a eficiência da comunidade narrativa que
regia a metafísica do retorno a um estado anterior.
O que se destaca desta lógica na constituição é que talvez a
psicanálise trate de forma diferente, diferentes pacientes. Um
mesmo paciente, ao longo de seu percurso no tratamento pode
exigir diferentes configurações, assim como um psicanalista
ao longo de sua trajetória, formativa e clínica. Seria possível
imaginar que o teor mesmo do que se trata muda de superfície
para superfície. Se tratamos sempre do sujeito é possível que

614
como clínicos nos dediquemos aos seus sintomas, como psi-
coterapeutas ao seu sofrimento e como práticos da cura ao seu
mal-estar ( Unbehagen).
Contudo esta aproximação categorial ignora que além do
processo de constituição por exterioridade, cada superfície
nunca aparece como um ponto, mas apenas como trabalho
de contradições entre suas diferentes formações. E tendo em
vista o processo de formação de uma superfície que pudemos
examinar as modalidades de cura xamânica (excelência e eficá­
cia), as diferentes formas da catharsis trágica (integrativa, fun­
cional, desintegrativa), os diferentes tipos de retórica (do tem­
po, do lugar), os diferentes programas de medicina (Platão,
Hipócrates, Empédocles), as diferentes incidências da cura no
século XVI (Agostinho, Plutarco, Montaigne), as diferentes
estratégias de construção de caso (Pinei, Liebáult, Charcot).
São os compromissos e as articulações ideológicas ou críticas,
as flutuações de inserção entre falas, narrativas e discursos que
explicam, a cada momento, a formação de uma superfície que
vai, por exemplo, da clínica à cura, ou da cura à psicotera­
pia. Cada uma destas superfícies deveria ser considerada como
uma banda de Moebius, contendo um ponto de corte e in­
versão, representativo da contradição que trabalha como seu
princípio formativo. E neste nível que introduzimos a ideia de
que os agenciamentos entre práticas constituem uma política,
ou melhor, diversas políticas de tratamento.
O terceiro conceito fundamental desta topologia histórica
é o de construção. Para exemplificar seu uso e importância
construímos dois modelos estruturais. O primeiro tenta dar
conta do processo transformativo do tratamento psicanalíti­
co, em sua orientação lacaniana, baseado na formalização do
ato segundo o modelo matemático representado pelo grupo
de Klein. Não pensamos tratar-se de uma formalização exaus­
tiva, nem completamente original, pois desenvolve e amplia
uma possível interpretação do seminário homônimo de La­
can sobre o ato psicanalítico. O segundo modelo estrutural

615
proposto diz respeito à clínica propriamente dita. O interesse
deste exercício de formalização foi descrever o funcionamento
articulado de uma prática tendo em vista suas propriedades
essenciais e seus elementos covariantes tais como a semiologia,
a etiologia, a diagnostica e a terapêutica. Com esta estrutu­
ra transformativa tentamos mostrar o tipo de subversão que
a clínica psicanalítica representa em relação à clínica médica.
Estes dois exercícios do método estrutural se prestam eluci­
dar o esforço de construção de um objeto, em torno do qual
o tratamento psicanalítico num caso e a clínica no outro se
organiza. Sugerimos que dentro de cada estrutura podem-se
construir outras, como é o caso das estruturas causais-etio-
lógicas, diagnóstico-patológicas, semiológico-discursivas. Isso
explica porque a terapêutica é ao mesmo tempo um elemento
construtivo, quando a consideramos no interior da estrutura
da clínica, uma dimensão form ativa quando se a considera na
superfície da psicoterapia em sua relação com a clínica ou com
a cura, e ainda um polo constitutivo da prática psicanalítica.
Ao longo deste trajeto de constituição histórica da clínica
psicanalítica, interpolamos várias incursões sobre uma mesma
hipótese: há estruturas mais ou menos formalizáveis do per­
curso do tratamento psicanalítico e mesmo da clínica na qual
este se inclui. No entanto, a ética que regula suas estratégias
não garante uma passagem necessária para a política, pela qual
a psicanálise se inclui entre outros discursos a ponto de facil­
mente se subordinar a eles.
Se este percurso pode ser usado como maneira de introduzir
historicamente a prática psicanalítica, também é uma advertência
sobre as ligações não redutíveis entre lógica e política do trata­
mento. Em outras palavras, é no fracasso da lógica que se encon­
trará o ponto enigmático pelo qual a psicanálise é um ato político
e, inversamente, é no fracasso da política que se encontrará o pon­
to paradoxal em que a psicanálise é uma operação lógica.
Em vários momentos deste livro, suspendemos o trabalho
de reconstrução histórica e interpolamos discussões sobre te­

616
mas e problemas presentes na reflexão psicanalítica atual. Isso
pode ter trazido prejuízo tanto para o aprofundamento dos te­
mas quanto para sua eventual dilucidação. Contudo, esse pro­
cedimento nos ajudou na tentativa de mostrar como a reflexão
histórica liga-se internamente aos problemas teórico e clínicos
atuais da psicanálise. Neste sentido a história da prática tem um
papel um pouco diferente do que habitualmente se verifica na
epistemologia e na história da ciência. Pode se objetar que o
custo disso para o rigor historiográfico é muito alto e o resultado
é mera projeção do presente sobre o passado, com a sua conse­
qüente deformação e parcialização. De fato, a correção e deta­
lhamento das intuições aqui apresentadas aguarda contribuição
de historiadores profissionais. Neste ponto contento-me em ter
assinalado, em cada caso de modo um tanto diverso, a presença
da temática do poder na constituição da clínica psicanalítica.
Terá sido suficiente se o leitor, ao final, puder considerar que ao
lado do longo trajeto que permitiu a constituição de um tipo
específico de sujeito, em relação com as formas da verdade, e
do não menos extenso caminho formativo das éticas, que de­
terminam nossa prática, há ainda este outro eixo genealógico
que é o do poder ou do eventual contra-poder representado na
prática psicanalítica. Ele não se refere apenas à situação gené­
rica de influência do psicanalista sobre seu analisante, e assim
reciprocamente. Há também a superfície na qual o poder se
mostra na dominação e servidão a si ou na possibilidade de nos
libertarmos de nós mesmos.
A diversidade de implantações culturais da psicanálise —in­
clusive no Brasil - pode ser compreendida pela força e con­
tingência que cada uma destas tradições possui nos solos em
que elas se estabelecem. Em cada caso é importante observar
como remanesce um polo excluído por uma determinada for­
mação de compromisso. Por exemplo, o polo da psicoterapia
para Lacan, da clínica para Ferenczi e o da cura para a teoria
das relações de objeto. Se tais categorias parecem um tanto
aproximativas para estabelecer nosso objeto de investigação -

617
a prática psicanalítica - elas servem para uma definição nomi­
nal das práticas que se situam fora do campo psicanalítico, a
saber, aquelas que se concentram exagerada ou exclusivamen­
te um dos polos, clínico, psicoterapêutico ou da cura. Neste
caso seus laços e compromissos com os outros, mesmo que
subjacentes, são rompidos. São estes os casos da aplicação ou
derivação da psicanálise como uma técnica psiquiátrica, como
um método psicométrico, ou como uma cosmovisão moral,
educativa ou religiosa.
Desta forma muitos aspectos do problema ficaram na pe­
numbra. Lamento principalmente a ausência de uma discussão
mais vertical com a história da filosofia política e com a socio­
logia da economia. Também o exame de outras modalidades e
tradições dentro da psicanálise ficou prejudicado pela extensão
do projeto. Espero, no entanto, que o leitor possa construir
suas próprias ilações, a partir da formalização proposta por
meio deste ensaio de topologia histórica. Não se quer sugerir
que a arqueologia da psicanálise possa estar completa apenas
com considerações, às vezes muitos específicas, da prática laca­
niana aqui tomada por referência, contudo penso que o exame
dos temas pontuais pode melhor visualizar a utilidade do mé­
todo arqueológico e genealógico para a psicanálise.

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COLEÇÃO ATO PSICANALÍTICO

C onselho científico: C h ristian D unker (d ireção ), N in a de A raújo L eite, D om inique F in-


germ ann, A ntonio Q uinet, R au l A lbin o P acheco, V lad im ir S afa tle, N elson d a S ilv a Jr.,
M a ria  n g e la Vorcaro, A n a P au la G ianesi, M a ria de F átim a M iln itz k i, H elo ísa H elen a
A rag ão e R am irez, T atiana C arvalho A ssad i, Fuad K irillo s N eto, R onaldo Torres

Títulos publicados:

D im ensões do ato em psican álise


R onaldo Torres

Apele com o litoral—


fenôm eno p sicossom á tico e psican álise
C hristian Ingo Lenz Dunker, H eloísa R am irez e T atiana A ssad i

Causalidade e desencadeam ento na clínica psicanalítica


A n a P au la G ianesi

Estrutura e con stitu ição da clín ica psicanalítica - uma arq u eologia das prá ticas de cura,
p sicotera p ia e tratamento
C hristian Ingo L en z D unker

Próxim os lançam entos:

O que é o in co n scien te?


C o le tte S o le r

P sicanálise lacaniana - revolu çã o na subjetividade


Ian Parker
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