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O superego pós-moderno
23/05/1999
Autor: SLAVOJ ZIZEK
Assuntos Principais: SOCIOLOGIA; SOCIEDADE DE RISCO; ANÁLISE; SOCIEDADE
"Rule Girls" (garotas que seguem regras) são mulheres heterossexuais que seguem regras
precisas relativas a como se deixam seduzir (só aceitar um encontro quando se é convidada
com pelo menos três dias de antecedência, por exemplo). Embora essas regras correspondam
aos usos e costumes que, em tempos passados, moldavam o comportamento de mulheres à
moda antiga, "caçadas" ativamente por homens à moda antiga, o fenômeno das "Rule Girls"
não representa um retorno aos valores conservadores porque hoje as mulheres escolhem
livremente as regras que querem seguir. Trata-se de uma instância do processo de
"reflexivização'' dos costumes do dia-a-dia na moderna Sociedade de Risco. Segundo a teoria
da Sociedade de Risco, formulada por Anthony Giddens, Ulrich Beck e outros, nossa vida
não é vivida em submissão à Natureza ou à Tradição; não existe código ou ordem simbólica
de ficções aceitas (o que Lacan chama de "O Grande Outro'') para nos orientar em nosso
comportamento social. Todos nossos impulsos, desde nossa orientação sexual até o
sentimento de fazer parte de determinada etnia, são vividos, cada vez mais, como questões
sujeitas a nossa própria opção. Coisas que antes pareciam ser auto-evidentes _como se
alimenta e educa uma criança, como se procede na sedução sexual, como e o que comer,
como relaxar e divertir-se_ passaram a ser "colonizadas'' pela reflexividade e a ser vividas
como algo a ser aprendido e a ser sujeito à decisão pessoal. A primazia da decifração de
códigos na cultura popular explica a retirada de cena do Grande Outro aceito. Um exemplo
disso é dado pelas tentativas pseudocientíficas e New Age de usar a tecnologia da informática
para decifrar códigos recônditos _por exemplo na Bíblia ou nas pirâmides_ e lançar luz sobre
o futuro da humanidade. Outro exemplo é oferecido pelas cenas nos filmes de temática
ciberespacial em que o herói (ou, frequentemente, a heroína), debruçado sobre um
computador e correndo freneticamente contra o tempo, vê seu "acesso negado'' até conseguir
decifrar o código e descobrir que um órgão governamental secreto está envolvido numa
conspiração para acabar com a liberdade e a democracia. É claro que acreditar que existe um
código a ser decifrado é, sob muitos aspectos, a mesma coisa que acreditar na existência de
algum Grande Outro. Em ambos os casos, o que se procura é um agente que estruture nossas
vidas sociais caóticas. Hoje, até o racismo se tornou reflexivo. Consideremos os Bálcãs. Na
mídia ocidental liberal, são retratados como um redemoinho de antagonismos étnicos _um
sonho multicultural que virou pesadelo. A reação mais comum dos eslovenos (eu mesmo sou
um) é dizer "sim, nos Bálcãs é assim mesmo, mas a Eslovênia não faz parte dos Bálcãs _fica
na Europa central. Os Bálcãs começam na Croácia ou na Bósnia. Nós, eslovenos, somos o
último baluarte da civilização européia, uma barreira contra a insanidade balcânica''. Se você
perguntar onde começam os Bálcãs, sempre lhe dirão que começam "lá para baixo", em
direção sudeste. Para os sérvios, começam em Kosovo ou na Bósnia, onde a Sérvia está
tentando defender a Europa cristã e civilizada contra o avanço desse Outro. Para os croatas,
os Bálcãs começam na ortodoxa, despótica e bizantina Sérvia, contra a qual a Croácia
resguarda os valores democráticos ocidentais. Para muitos italianos e austríacos, começam na
Eslovênia, posto avançado das hordas eslávicas no Ocidente. Para muitos alemães, a Áustria
é manchada pela corrupção e ineficiência balcânica; para muitos alemães do norte, a Bavária
católica não está isenta de contaminação balcânica. Muitos franceses arrogantes associam a
Alemanha à brutalidade balcânica oriental, à qual faltaria a "finesse'' francesa. E para os
britânicos que se opõem à inclusão de seu país na União Européia, a Europa continental
representa a nova versão do Império Turco, e Bruxelas, a nova Istambul _representantes do
despotismo voraz que ameaça a liberdade e soberania do Reino Unido. Estamos lidando com
uma cartografia imaginária que projeta na paisagem real seus próprios antagonismos
ideológicos sombrios, da mesma maneira como os sintomas de conversão do sujeito histérico
em Freud projetam sobre o corpo físico o mapa de uma anatomia outra e imaginária. Boa
parte dessa projeção é racista. Em primeiro lugar há a rejeição antiquada e despudorada do
Outro balcânico (despótico, bárbaro, ortodoxo, muçulmano, corrupto, oriental) em favor dos
valores verdadeiros (ocidental, civilizado, democrático, cristão). Mas também existe um
racismo "reflexivo'', politicamente correto: a percepção liberal e multiculturalista dos Bálcãs
como palco de horrores e intolerância étnicos, de paixões primitivas, tribais e irracionais, em
oposição à racionalidade da resolução do conflito pós-Estado nação por meio da negociação
e dos acordos. O racismo seria a enfermidade que acomete o Outro balcânico, enquanto nós,
no Ocidente, seríamos meros observadores, neutros, benévolos e horrorizados. Em último
lugar temos o racismo invertido, que louva o exotismo autêntico do Outro balcânico _como
no conceito que se faz dos sérvios que, em contrapartida aos europeus ocidentais inibidos e
anêmicos, ainda manifestariam uma prodigiosa sede de viver. Talvez o melhor exemplo da
reflexividade universalizada de nossas vidas seja a crescente ineficiência da interpretação. A
psicanálise tradicional baseava-se na noção do inconsciente como "continente escuro'', a
substância impenetrável do ser do sujeito, que tinha que ser sondada por meio da
interpretação _quando seu conteúdo fosse trazido à luz, seguir-se-ia uma nova consciência
libertadora. Hoje as formações do inconsciente (desde sonhos até sintomas histéricos)
perderam sua inocência; as "livres associações'' feitas pelo típico paciente instruído
consistem, em sua maioria, de tentativas de oferecer uma explicação psicanalítica de suas
próprias perturbações. Assim, temos não apenas interpretações annafreudianas, junguianas,
kleinianas e lacanianas dos sintomas, mas sintomas que são em si mesmos annafreudianos,
junguianos, kleinianos ou lacanianos _ou seja, não existem sem referência a alguma teoria
psicanalítica. O infeliz resultado dessa "reflexivização" é que a interpretação feita pelo
analista perde sua eficácia simbólica e deixa o sintoma intacto em sua "jouissance'' idiota. É
como se o skinhead neonazista, quando pressionado a explicar as razões de seu
comportamento, começasse a falar como assistente social, sociólogo ou psicólogo social,
citando a perda da mobilidade social, a crescente insegurança, a desintegração da autoridade
paterna e a ausência de amor materno em sua primeira infância. Goebbels teria dito que,
"quando ouço a palavra 'cultura', saco logo meu revólver''. "Quando ouço a palavra 'cultura',
saco logo meu talão de cheques'', diz o produtor cínico em "O Desprezo", de Godard. Um
slogan esquerdista inverte a declaração de Goebbels: "Quando ouço a palavra 'arma', saco
logo a cultura''. A cultura, segundo esse slogan, pode funcionar como resposta eficaz à arma:
uma erupção de violência é uma "passagem aos atos'' cujas raízes se situam na ignorância do
sujeito. Mas essa noção é contrariada pela ascensão daquilo que poderíamos chamar de "o
racismo pós-modernista'', cuja característica surpreendente é sua insensibilidade à reflexão. O
skinhead neonazista que espanca negros sabe o que está fazendo, mas o faz mesmo assim. A
"reflexivização" transformou a estrutura da dominância social. Considere-se a imagem
pública de Bill Gates. Gates não é um pai-senhor, nem mesmo um Grande Irmão corporativo
que dirige um império burocrático rígido, desde o alto de um andar superior inacessível,
cercado por uma multidão de secretários e assistentes. Antes, é uma espécie de Pequeno
Irmão. Sua própria qualidade de comum é indicativa de uma monstruosidade tão fantástica
que não pode mais assumir sua forma pública usual. Nas fotos e nos desenhos ele se parece
com qualquer um de nós, mas seu sorriso insincero aponta para uma maldade subjacente que
ultrapassa o poder da representação. Outro aspecto crucial de Gates enquanto ícone é o fato
de que é visto como o hacker que deu certo na vida (o próprio termo "hacker'', é claro, possui
conotações subversivas/marginais/antiestablishment; sugere alguém que se propõe a
perturbar o funcionamento tranquilo de grandes corporações burocráticas). Ao nível da
fantasia, Gates é um vândalo subversivo menor que assumiu o lugar do respeitável presidente
da empresa, vestindo-se como ele. Em Bill Gates, o Pequeno Irmão, o "bandido'' médio
coincide com e contém a figura do gênio do mal que busca o controle total sobre nossas
vidas. Nos primeiros filmes de James Bond, o gênio do mal era uma figura excêntrica que se
vestia de maneira extravagante ou, alternativamente, no uniforme cinzento do comissário
maoísta. No caso de Gates, essa farsa ridícula se torna redundante. O gênio do mal revela ser
o rapaz da casa ao lado. Outro aspecto desse processo é a mudança do status da tradição
narrativa que utilizamos para compreender nossas vidas. Em "Os Homens São de Marte, As
Mulheres São de Vênus'' (1992), John Gray propõe uma versão vulgarizada da psicanálise
narrativista-desconstrucionista. Já que, em última análise, "somos'' as histórias que contamos
a nosso próprio respeito, a solução do impasse psicológico reside, propõe Gray, em
reescrever de maneira "positiva'' a narrativa de nosso passado. O que ele tem em mente não é
apenas a terapia cognitiva padronizada de transformar as falsas "crenças negativas'' que
temos a nosso próprio respeito na afirmação de que somos amados pelas outras pessoas e
capazes de alcançar realizações criativas, mas um procedimento pseudofreudiano mais
"radical'' de regressar ao palco da ferida traumática primordial. Gray aceita a noção de uma
experiência traumática na primeira infância que deixa uma marca permanente no
desenvolvimento posterior do sujeito, mas lhe confere uma versão ou um desenvolvimento
patológico. O que ele propõe é que, depois de regredir até sua cena traumática original _logo,
confrontá-la, o sujeito, sob a orientação do terapeuta, "reescreva'' a cena, esse quadro
fantasmático máximo de sua subjetividade, como parte de uma narrativa mais benigna e
produtiva. Digamos, por exemplo, que a cena traumática primordial que existe em seu
inconsciente e que deforma e inibe sua atitude criativa seja a de seu pai gritando: "Você não
passa de um inútil! Eu o desprezo! Você nunca vai fazer nada de bom!''. Você terá que
reescrever a cena, de modo que seu pai benevolente sorria e diga: "Você é ótimo! Confio
plenamente em você''. (Desse modo, a solução, para o Homem Lobo, teria sido regredir para
o "coitus a tergo'' de seus pais e depois reescrever a cena de modo que o que visse fosse
apenas seus pais deitados na cama, seu pai folheando o jornal e sua mãe lendo um
romance).Pode parecer ridículo, mas existe uma versão amplamente aceita e politicamente
correta desse procedimento no qual as minorias étnicas, sexuais e outras reescrevem seu
passado num tom mais positivo e auto-afirmativo (os afro-americanos afirmam que muito
antes da modernidade européia os impérios africanos da Antiguidade já tinham
conhecimentos científicos e tecnológicos sofisticados).Imagine-se o Decálogo sendo
reescrito nessa linha. Um dos mandamentos é severo demais? Só precisamos regredir até o
monte Sinai e reescrevê-lo. Adultério: sem problemas, desde que seja sincero e promova a
meta da auto-realização profunda. O que desaparece não é o fato em si, nu e cru, mas a
realidade de um encontro traumático, cujo papel organizador na economia psíquica do sujeito
resiste a sua reescritura simbólica. Em nossa sociedade liberal-permissiva pós-política, os
direitos humanos podem ser vistos como expressão do direito de violar os Dez
Mandamentos. O direito à privacidade é, em efeito, o direito de cometer adultério em
segredo, sem ser observado ou investigado. O direito de buscar a felicidade e possuir
propriedade privada é, com efeito, o direito de roubar (explorar os outros). A liberdade de
imprensa e de expressão é o direito de mentir. Continua na pág. 5-8