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- Alô.
- Alô, Richard?
- Alôo.
- Sim, quem é?
- Lacan.
- Quem?
- Jacques Lacan.
- Ah, como você é amável, Richard; aguardo você, então, no café da esquina da
Saint Michel com o cais, dentro de trinta minutos.
E desligou.
Martin Richard ficou com o telefone na mão, com pouco tempo para decidir o
que fazer. Não tinha coragem de ligar de volta para Lacan, eram três e cinco da
manhã, não se fazia isso. Também não podia deixar o Doutor – assim ele era
chamado pelos próximos – esperando-o sozinho em um café.
Só teve tempo de calçar seus jeans, tênis, jaqueta, pegar sua bolsa de livros,
descer correndo as escadas, montar em sua bicicleta e aproveitar o leve
declive do Boulevard Magenta para ganhar velocidade.
Jacques Lacan gostava de dizer que tinha cinco anos. Aos cinco anos a pessoa
tem um querer direto, sem intermediários. É diferente do querer querelante e
reivindicativo dos quinze, e do querer conforme às regras do adulto. Mas vale
um detalhe: ter cinco anos após uma análise, chegar aos cinco anos pelo
convívio diário com o Real – conceito lacaniano que se refere à impossibilidade
da nomeação total de seu desejo (“o que será que será que nunca tem nome
nem nunca terá?”) – é diferente de tê-los por biologia ou retardo.
- “Eu sinto que você...” Essa frase acabou se incluindo no repertório caricatural
dos analistas, junto com a barba, a reserva pessoal, e os “hums-hums”. Ela se
refere à forma como foi entendida a “contratransferência”, Mais ou menos
assim: quando o analisando ficar em silêncio, gaguejar ou se enganar, o
analista pode lhe dizer a verdade que lhe está escapando, através do seu
sentimento, o do analista. Pensa-se que por ter feito uma análise o analista
esteja apto para se valer do seu sentimento como arauto do que o analisando
teria dificuldade de dizer. É como se tudo fosse dizível se não fossem as
dificuldades, e não que haja na estruturação humana uma impossível
fundamental, impossível que está na base da singularidade criativa da espécie.
Seu trabalho teve tanta repercussão, muito além de seus alunos, que ainda
hoje muitos associam Lacan à lingüística, o que é desconhecer o que veio
depois, especialmente depois de 1970.
O título do Seminário XX, Encore, “Mais, Ainda”, de 1973, destaca o fato de que
nem tudo foi dito na clínica do sujeito do inconsciente, na lógica do
significante, nem tudo aí pode ser tratado, há algo “mais ainda”, que insiste
além das tentativas da ordenação simbólica. É o tempo da clínica que dá
primazia ao Real, à certeza, não à verdade; à conseqüência, mais que ao
sentido;a um Real sem lei de formação, distinto do formulado pela ciência; a
um Real do corpo distinto do biológico, o que explica o jogo de palavras do
título original Encore, que em francês é homófono de “no corpo”.
Há, portanto, duas clínicas em Lacan: uma primeira que privilegia o simbólico,
chamada de clínica do significante, e uma segunda que privilegia o real,
chamada de clínica do ato, ou do real, ou, ainda, borromeana, referência à uma
topologia não cartesiana. Lembro que Lacan propôs três registros para o estudo
da experiência humana, ma seqüência daqueles propostos por Freud, o Id, o
Ego, e o Superego, a saber: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Sua explicação
ultrapassa o escopo deste artigo.
Não podendo ter garantia de sua ação em uma verdade prévia, resta uma
aposta baseada em uma certeza a ser provada a posteriori. Não há nada além
da palavra, o que equivale a dizer que além da cena está o obsceno e não um
conhecimento maior.
Um analisando diz:
- Doutor, cheguei à conclusão de que sou péssimo marido, mau amante e um
pai medíocre.
Diferentemente de Freud, que fez uma Sociedade de analistas, Lacan fez uma
Escola de psicanálise. Pôs o acento na tarefa, não no clube de classe, e não
titubeou em dissolver a sua própria Escola Freudiana de Paris, aos 80 anos de
idade, por considerar que os efeitos grupais estavam impedindo o trabalho que
deveria ser feito. Chamou-se de “Père sèvère”, um pai severo e perseverante,
duro de acompanhar.
O engano é simples: confundiu-se “si mesmo” com “eu mesmo”. O “si mesmo”
é o ponto de intimidade estranha, de “extimidade”, que um analisante se
confronta, em sua análise pessoal, muito diferente do narcísico “eu mesmo”. A
formação lacaniana é complexa e bem mais exigente que a universitária, uma
vez que não é padronizada, o que impede o cumprimento de fórmulas prontas,
o “cumprimento de tarefas”. É uma formação de um a um, e não em bloco.
“Novo amor”: a psicanálise, dizia Lacan, não foi capaz de inventar um novo
pecado, uma nova perversão. Talvez seja capaz de inventar um novo amor, que
não seja voltado ao pai em última instância, mas que, sabendo dele se servir,
possa ir além do chamado (em psicanálise, gozo fálico) e captar algo do real
feminino.